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MARINA SOLER JORGE
Cultura popular no cinema brasileiro dos anos 90
São Paulo
2007
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Marina Soler Jorge
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
F
ACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
D
EPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Cultura popular no cinema brasileiro dos anos 90
Tese apresentada ao Departamento de
Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Doutor em
Sociologia sob orientação do Prof. Dr.
Paulo Roberto Arruda de Menezes.
São Paulo
2007
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Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Jorge, Marina Soler.
Cultura popular no cinema brasileiro dos anos 90 / Marina Soler Jorge ;
orientador Paulo Roberto Arruda de Menezes. --São Paulo, 2007.
337 f.
Tese (Doutorado -Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Área de
concentração: Sociologia) -Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
1. Sociologia do cinema (Brasil). 2. Cinema brasileiro (Aspectos sociais;
Aspectos culturais) – Década de 1990. 3. Cultura popular -Brasil. I. Título.
21ª. CDD 306.485
J826c
Marina Soler Jorge
Cultura popular no cinema brasileiro dos anos 90
Tese apresentada ao Departamento de
Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Doutor em
Sociologia sob orientação do Prof. Dr.
Paulo Roberto Arruda de Menezes.
Este exemplar corresponde à
redação final da tese defendida
e aprovada pela Comissão
Julgadora em 22 de maio de
2007.
BANCA
Prof. Dr. Paulo Roberto Arruda de Menezes (orientador)
Prof. Dr. Marcelo Siqueira Ridenti
Prof. Dr. Ismail Norberto Xavier
Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda
Profa. Dra. Mariarosaria Fabris
São Paulo
2007
dedicatória
Para Vitor,
in memoriam
.
Sempre comigo.
agradecimentos
agradecimentos Gostaria de agradecer às pessoas que me ajudaram direta e
indiretamente na confecção desta tese de doutorado. A meu orientador, Paulo
Menezes, pelo estímulo intelectual, pelo rigor sociológico que nos transmite em
nossas discussões e pela confiança que deposita em seus orientandos. A todos os
alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado que participaram das reuniões de
Paulo Menezes e que me ajudaram diretamente nesse trabalho, contribuindo com
valorosas sugestões para o seu desenvolvimento. São eles: Anderson Trevisan,
Daniela Dumaresq, Maíra Saruê Machado, Edílson Sacashima, Michelle Urcci,
Michele Perusso, Carla Bernava e Caio Pompéia. Agradeço também às professoras
Mariarosaria Fabris e Maria Arminda do Nascimento Arruda que participaram de
minha banca de qualificação e que contribuíram com excelentes sugestões ao meu
trabalho. Agradeço à Fapesp pela bolsa de doutorado concedida para a realização
dessa pesquisa. Por fim, agradeço imensamente aos meus pais, amigos e familiares,
por me ajudarem e me darem todo o apoio no ano de 2006 que foi muito difícil para
mim em virtude dos difíceis problemas pessoais pelos quais passei.
resumo
resumo Esta tese pretende discutir a imagem do povo no cinema brasileiro pós-
retomada, ou seja, do cinema brasileiro que ressurge nos anos 90, depois do fim da
EMBRAFILME, até os primeiros anos do século XXI, quando a produção nacional se
estabiliza com importantes conseqüências para o mercado e o público
cinematográfico. Trata-se de investigar a imagem do povo e da cultura popular em
filmes recentes e a relação do povo e da cultura popular com a chamada cultura
erudita e cultura de massas.
O trabalho se insere no âmbito da sociologia da obra de arte e, portanto, é através da
análise de determinados filmes que se buscará compreender o mundo social que está
no imaginário e que, desta forma, deve ser observado a partir dele. Os objetos da
sociologia podem estar em tudo aquilo que é externo à obra de arte, mas sem dúvida
também está dentro da obra. A obra de arte nos apresenta, de forma autônoma, um
mundo social, cujo sentido é dado na relação entre a obra e o espectador. Ela
apresenta concepções de mundo que são sociais e que nos transmitem valores. Nela se
manifesta um aspecto da sociedade que é relevante e que não se confunde com
nenhum outro aspecto da vida material e simbólica. Em outras palavras, uma
sociologia do cinema parte do princípio que a obra apresenta um conteúdo social em
si mesma que não é redutível a seu contexto mais geral. O conteúdo social a ser
investigado, nesta tese, é a imagem do povo e da cultura popular em relação a cultura
erudita e a cultura de massas no cinema brasileiro pós-retomada.
palavras-chave Cinema brasileiro, cultura popular, sociologia da arte, cultura
erudita, cultura de massas.
abstract
abstract
This thesis is intended to examine the image of people within the
Brazilian cinema at its recovering stage, i.e., the Brazilian cinema that comes around
in the 90’s, as Embrafilme (Brazilian Enterprise of Movie Pictures) was extinguished,
up to the first years of the 21
st
Century, when the national film production is
stabilized, which results in outstanding consequences for the market as well as for the
cinematographic audiences. It is a matter of researching the image of people and
popular culture in recent films, in addition to the relation of people and popular
culture with the so-called high culture and mass culture.
The study is included within the scope of sociology of art. Therefore, an attempt to
understand the social world found in the collective imagery is made through the
analysis of certain films. Sociological objects may be in everything outside the
masterpiece, though they might also be found in its inner part. The masterpiece
provides a social world in an autonomous way, the sense of which is supplied in the
relation established between the work and the audience. The masterpiece presents
world views that are pretty much social and capable of communicating values.
Through the masterpiece, an aspect of society is conveyed, which is relevant and not
blended with any other aspect of both material and symbolic life. In other words, a
sociology of the cinema holds the principle according to which the masterpiece
presents a social content in itself, which is not reducible to its general context. The
social content to be researched in this thesis is the image of people and popular
culture in relation to high culture and mass culture in the Brazilian cinema in its
recent recovery stage.
keywords Brazilian cinema, popular culture, sociology of art, high culture, mass
culture.
sumário
apresentação 9
1. terra estrangeira 14
2. crede-mi 64
3. santo forte 101
4. baile perfumado 141
5. amélia 181
6. nós que aqui estamos por vós esperamos 219
7. o homem que copiava 258
conclusão 300
bibliografia citada 333
apresentação
Este trabalho pretende discutir a imagem do povo no cinema brasileiro pós-retomada,
ou seja, do cinema brasileiro que ressurge nos anos 90, depois do fim da
EMBRAFILME, até os primeiros anos do século XXI, quando a produção nacional se
estabiliza com importantes conseqüências para o mercado e o público
cinematográfico. Com efeito, temos hoje uma oferta mais ou menos constante de
cinema nacional nas salas de cinema e videolocadoras, com razoável diversificação
de temas – comédias românticas, filmes infantis, dramas sociais – e com sucesso de
público variado, ainda que estejamos longe do ideal em termos de mercado. De
tempos em tempos, filmes brasileiros fazem grandes bilheterias, criam interessantes
polêmicas ou se mostram apostas erradas naquilo que se acredita ser o gosto médio do
público, numa diversificação saudável para o mercado, para os espectadores e para a
crítica.
Nosso assunto aqui, porém, não diz respeito ao mercado, à recepção ou à produção de
filmes brasileiros. Estamos interessados: 1. na imagem do povo e da cultura popular
em filmes recentes; 2. na relação do povo e da cultura popular com a chamada cultura
erudita e cultura de massas.
Quando falamos em povo e cultura popular, não pretendemos que esses conceitos se
refiram a um dado da realidade, como se existissem de forma concreta na sociedade.
Sabemos que o povo é uma abstração, uma idéia que no Brasil, inclusive, contou com
ampla colaboração de artistas e pensadores da “esquerda” dos anos 50 e 60 para seu
desenvolvimento, como mostram Marcelo Ridenti
1
e Mariarosaria Fabris
2
. Em
relação à cultura popular – que aqui identificamos à cultura do povo e não à cultura
de massas como fazia a chamada Escola de Frankfurt – o mesmo acontece: é muito
difícil definirmos o que é de fato uma cultura popular, em que medida ela se origina
do povo ou lhe é imposta, se é ou não uma cultura, sem mencionar o fato de que, se o
próprio povo é uma abstração, sua cultura não poderia deixar de também o ser.
Nesse sentido o povo e a cultura popular, seja no cinema, na sociologia ou na política,
fazem parte de estratégias discursivas no sentido de Michel Foucault, ou seja, como
1
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro – artistas da revolução, do CPC à era da tv. Rio de
Janeiro: Record, 2000.
2
FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? São Paulo: USP, 1994.
9
apresentação
discursos que atribuem ao mundo uma determinada existência que, em si, o mundo
não tem.
Segundo Foucault, não devemos “imaginar que o mundo nos apresenta uma face
legível que teríamos de decifrar apenas; ele não é cúmplice de nosso conhecimento;
não há providência pré-discursiva que o disponha a nosso favor. Deve-se conceber o
discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes
impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso
encontram o princípio de sua regularidade”
3
.
Desta forma, não temos a ilusão ou a ingenuidade de encontrarmos o povo nos filmes
analisados. O que iremos encontrar são construções que atribuem ao povo e à cultura
popular determinados traços que fazem parte de um imaginário sobre o que sejam
esses conceitos. Além disso, ou seja, além do entendimento dos filmes como discurso,
não temos, da mesma forma, a ilusão de que nosso próprio trabalho aqui assim não o
seja. Em cima de um discurso fílmico, propomos outro discurso, desta vez
sociológico. Esta é uma análise entre outras diversas possíveis.
Estamos interessados na construção da imagem do povo, e faremos isso com a certeza
de que, ainda que o povo exista apenas como abstração, ele tem uma força concreta,
atuando na sociedade como coisa material. As estruturas e as instituições, como sabe
qualquer sociólogo, necessitam de um invólucro ideológico para funcionarem. Esse
invólucro é tão importante para a manutenção de determinada ordem que, no fundo,
não se diferencia do que chamamos infraestrutura ou base econômica, pois esta não
funcionaria sozinha, sem a colaboração, por exemplo, do Direito, da Política, da
Família, da Religião e, evidentemente, do imaginário. O povo não existe como dado
da realidade mas existe como representação – desta forma, paradoxalmente, é como
se ele efetivamente existisse.
Ao analisar os filmes escolhidos, procuramos não impor uma determinada definição
de cultura popular, cultura de massas e cultura erudita. Ou seja, não elaboramos
inicialmente uma definição desses termos para depois comprovarmos em que medida
os filmes se aproximavam ou se afastavam deles. Queríamos, ao contrário, retirar dos
3
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1998, p. 53
10
apresentação
filmes suas possíveis definições, suas visões do que seria o popular em relação ao
erudito e ao massificado e vice versa. Mesmo porque, do contrário, teríamos grandes
problemas, já que as definições de popular, erudito e massificado são suscetíveis a
inúmeras discussões.
Popular, por exemplo, pode estar associado a regionalismo, primitivismo, passado
ameaçado de ser perder, como ato de produção coletiva, frequentemente ingênua,
como produção carregada de purismo, de tradição, cujo processo de criação está
associado ao “fazer” e não ao “saber”. Algumas vezes o popular é valorizado a partir
destas características, ou seja, pelo seu papel na manutenção de tradições e práticas
que, sem ele, estariam perdidas em meio às transformações do mundo industrializado
e urbano.
Popular também pode assumir uma conotação pejorativa relacionada a baixo nível
intelectual e artístico e a atraso. Marilena Chauí comenta a ambivalência do conceito:
“Em decorrência do verde-amarelismo, dos populismos, do autoritarismo paternalista,
freqüentemente encontramos no Brasil uma atitude ambivalente e dicotômica diante
do popular. Este é encarado ora como ignorância, ora como saber autêntico; ora como
atraso, ora como fonte de emancipação. Talvez seja mais interessante considerá-lo
ambíguo, tecido de ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação,
capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambigüidade
que o determina radicalmente como lógica e prática que se desenvolvem sob a
dominação”
4
.
Segundo Antônio Augusto Arantes, a cultura popular é vista por “alguns
pesquisadores mais sofisticados” como “resíduo da cultura ‘culta’ de outras épocas
(às vezes de outros lugares), filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas camadas de
estratificação social”
5
. Segundo essa visão de popular, existe uma identificação de
conteúdo entre cultura popular e alta cultura, ambas sobrevivendo enquanto reduto da
originalidade e autenticidade em meio ao oceano de produtos massificados. É o que
se depreende da leitura de Sergio Paulo Rouanet: “(...) a alta cultura e a cultura
4
CHAUÍ, Marilena, Conformismo e Resistência – aspectos da cultura popular no Brasil. 6 ed. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p. 124.
5
ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.16.
11
apresentação
popular são as duas metades de uma totalidade cindida, que só poderá recompor-se na
linha de fuga de uma utopia tendencial. No meio tempo, elas têm de manter-se em sua
autonomia, pois seria tão bárbaro abolir a cultura popular, onde habita a memória da
injustiça, como abolir a alta cultura, onde habita a promessa de reconciliação”
6
. Ecléa
Bosi dirá: “Um forte componente lúdico anima todo ato genuinamente estético, e
será, talvez, o traço distintivo mais importante a separar a arte (popular ou não) da
indústria cultural”
7
.
Popular pode também estar associado ao que é conhecido, ao consumo, ao que vende
mais, ao que agrada a muitos, ao que tem larga penetração na vida social. Nesta
acepção, cultura popular não está exatamente relacionada ao “povo” como reduto da
ingenuidade, espontaneidade, tradição, numa visão romântica que valoriza o
regionalismo, o purismo, nem à cultura erudita. Nesta acepção, cultura popular
relaciona-se a consumo de massas, tornando-se inclusive substituto deste termo.
O fenômeno da cultura de massa começou a chamar a atenção de pesquisadores das
ciências humanas principalmente a partir da década de 40, quando houve uma difusão
dos meios de comunicação e quando se percebeu a importância que adquiria a
mensagem transmitida por eles
8
. “O moderno fenômeno da cultura de massa só se
tornou possível com o desenvolvimento do sistema de comunicação por media, ou
seja, com o progresso e a multiplicação vertiginosa dos veículos de massa – o jornal,
a revista, o filme, o disco, o rádio, a televisão. Como causas subjacentes necessárias,
mencionam-se os fenômenos de urbanização crescente, de formação de públicos de
massa e do aumento das necessidades de lazer. Portanto, o que se convencionou
chamar cultura de massa tem como pressuposto, e como suporte tecnológico, a
instauração de um sistema moderno de comunicação (os mass-media, ou veículos de
massa) ajustados a um quadro social propício”
9
.
Alguns autores consideram que o termo “cultura de massas” traz problemas dentro de
6
ROUANET, Sergio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 130.
7
BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular – leituras de operárias. 2 ed. Petrópolis: Vozes,
1973, p. 57.
8
LIMA, Luis da Costa (org.). Teoria da cultura de massa. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.
13.
9
SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco – introdução à cultura de massa brasileira. 2 ed.
Petrópolis: Vozes, 1973, p. 13.
12
apresentação
uma interpretação marxista da cultura. Raymond Williams
10
acredita que o conceito
de “massa” não nos deixa antever o caráter de dominação de classe que perspassa
essa nova cultura, assentada na dominação capitalista e não simplesmente na
novidade das multidões urbanas dispostas ao consumo em larga escala.
No lugar de cultura de massas, Theodor Adorno utiliza o conceito, criado por ele e
Max Horkheimer, de indústria cultural – que na verdade não é uma indústria, pois se
realiza na circulação, e que não é cultural, pois o que circula são mercadorias. Dentro
da perspectiva marxista a idéia de indústria cultural substitui com vantagens a noção
de cultura de massas. Quando falamos em indústria cultural nos deparamos com o
fato de que estes produtos não são criados a partir da produção e elaboração das
classes trabalhadoras – indistintamente incluídas num mesmo conjunto designado
como massa – mas são na verdade impostos aos dominados pelas classes proprietárias
dos meios de produção, que fazem deles um veículo de acumulação e de divulgação
de sua ideologia.
Como podemos ver por esses breves comentários a respeito da cultura popular, da
cultura de massas e da cultura erudita, as definições são diversas, principalmente,
talvez, a respeito do popular. Isso nos obriga a analisar os filmes não tomando por
base qualquer uma delas, mas levando-as todas em conta, e, principalmente, levando
em conta aquelas sugeridas pelos próprios filmes, retirando deles novas definições ou
sugestões. Por isso acreditamos que, melhor do que abarcar uma grande parte da
cinematografia dos anos 90, o mais interessante será analisar em profundidade poucos
filmes, de modo a fazer com que eles nos instiguem a retirar deles uma visão de
popular específica, ainda que relacionada a obras de arte anteriores e a uma visão de
popular mais geral que circule na sociedade.
10
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 130.
13
terra estrangeira
a vida contra a arte de um povo desterrado
14
terra estrangeira
O filme Terra Estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995) procura inscrever-
se, a meu ver, numa tradição erudita do cinema brasileiro, ao mesmo tempo em que
trata, a seu modo, de trajetórias de personagens populares. Seu tema pede reflexão,
suas imagens procuram a sobriedade, e o filme como um todo exala uma melancólica
beleza que convida a uma fruição erudita. Além disso, temos diversas citações da
cinematografia brasileira e estrangeira de arte – Cinema Novo brasileiro e alemão
principalmente. Elementos do filme são construídos segundo uma tradição mais
vinculada ao cinema de arte – em especial os personagens lacunares e as seqüências
que, sem dar desenvolvimento à ação principal, convidam à reflexão sobre identidade
nacional. O personagem principal do filme, Paco, deseja interpretar Fausto, e
compraz-se perante a visão do teatro clássico de Shakespeare. Existe, no entanto,
neste filme que procura um lugar entre o erudito, uma grande homenagem a um
gênero cinematográfico norte-americano que poderia ser considerado com parte da
cultura de massas, o film noir. Aqui ele aparece como um gênero a ser cultuado e
homenageado, como visão de mundo a dar conta dos problemas que se impõe ao
observador contemporâneo, e que por isso pode ter, segundo sugere o filme, uma
leitura na chave da cultura erudita. Trata-se de uma valorização do gênero que o
desloca de seu aspecto massificado e eleva-o a uma cultura relevante, culta, capaz de
dar conta de problemas fundamentais do ser humano num mundo hostil e sem sentido.
É nesse contexto de desejo de erudição e da inevitabilidade da imersão num mundo
massificado que se deslocam os personagens populares de Terra Estrangeira. São
personagens populares num sentido discreto – um popular anônimo e solitário, que
mora em frente ao Minhocão ou que parte para tentar uma vida melhor em outro país
no qual sofrerá preconceitos, servirá à criminalidade, terá sua arte rejeitada. E são
estes personagens, populares neste sentido, que servirão de suporte dos desejos
artísticos e de reflexões sobre identidade nacional, mas que terão de lidar e participar
de um mundo de atividades bem menos elevadas. O povo em Terra Estrangeira
parece antes discutir a questão nacional e a impossibilidade da arte erudita do que
tecer considerações de aspectos eminentemente populares. O povo aqui se manifesta,
de certa maneira, como uma classe média baixa premida pelas circunstancias
nacionais objetivas e contextualizadas. Vamos ao filme.
15
terra estrangeira
Os créditos iniciais de Terra Estrangeira surgem em letras brancas em um fundo
preto associados à música de José Miguel Wisnik. Entre cada nome anunciado, as
notas soam doloridas, e o intervalo entre elas nos suspende por um momento, como se
cada compasso tivesse deixado escapar um instante a partir de agora perdido para
sempre.
Elas parecem ao mesmo tempo algo lamentar em relação ao passado e já anunciar
desesperançosamente o destino trágico dos personagens. Melancolia sonora inicial
que tem como clímax o símbolo da República Federativa do Brasil sobreposto
violentamente, como um carimbo num passaporte, ao nome do filme: Terra
Estrangeira. Entrevê-se nos créditos iniciais, portanto, que estaremos diante de uma
visão de Brasil: uma terra estrangeira, onde não é possível se sentir em casa e
abrigado, função de pertencimento fundamental entre as características atribuídas
idealmente a uma nação que já de início parece negada pelo filme.
Viaduto Minhocão (ou Elevado Costa e Silva, seu nome oficial), São Paulo,
madrugada. Num dos prédios que margeiam esta paisagem urbana paulistana
deteriorada, vemos uma janela acessa, na qual vislumbramos discretamente o vulto de
uma pessoa andando para lá e para cá. Ouvimos a voz de um rapaz declamar um texto
(que saberemos depois se tratar de uma peça de teatro) e falar a si mesmo sozinho,
refletindo sobre o que está lendo. A câmera se concentra em nos mostrar este prédio
com suas inúmeras janelas indiferenciadas, formando um padrão.
16
terra estrangeira
A imagem do prédio enquanto um lugar indiferenciado e não individualizado nos
sugere que a história que veremos é uma história comum a muitos cidadãos urbanos
brasileiros. No caso, cidadãos pertencentes a uma camada média baixa e solitária à
qual foi designado como moradia um ambiente degradado, poluído e barulhento da
maior metrópole brasileira. Outros filmes recentes de temática urbana e social, como
Carandiru (Hector Babenco, 2003) e Ônibus 147 (José Padilha, 2002), começam de
modo diferente: uma imagem aérea da cidade a partir da qual a câmera “mergulha”
em algum ponto exclusivo da paisagem. Trata-se de escolher, privilegiar um ponto de
vista, diferenciá-lo dos demais objetos circundantes e contar uma história específica.
No caso destes dois filmes, o foco é o drama individual, que apesar de pretender nos
dizer sobre trajetórias de cidadãos brasileiros em meio ao caos nacional, procura
identifica-los, dar-lhes personalidade e construir trajetórias. Em Ônibus 147, é preciso
dotar o homem brasileiro de uma biografia para entender os seus percalços, já que,
segundo a tese sugerida no filme, a forma imagética sensacionalista que tem sido
amplamente praticada acaba simplificando ao invés de tornar compreensíveis as
escolhas individuais
11
. Em Carandiru, após perseguir trajetórias de maneira a tornar
mais compreensíveis, humanos e, de certa maneira, menos “criminosos” os presos do
complexo penitenciário paulistano, vemos uma espécie de estrutura documental,
ancorada em entrevistas fictícias, dando voz aos personagens sobreviventes do
massacre. A câmera que filma adere e aceita imediatamente o que foi falado, e as
múltiplas narrativas prévias internas ao filme que construíram a história dos presos
colabora para tornar conclusivas suas palavras. A meu ver, em ambos os casos, trata-
se de estratégias mais sintonizadas com o cinema clássico, atento à construção do
personagem individualizado e de seus problemas e percalços, um personagem mais
simplificado e moralmente menos matizado, cujas motivações possam vir a ser
definidas e localizadas sem maiores dificuldades por parte do espectador, que pode
então dotá-lo de uma “integridade” e traduzi-lo em termos de um ser humano
“completo”. O Prisioneiro da Grade de Ferro (Paulo Sacramento, 2004),
documentário que não segue esta estrutura clássica no que diz respeito aos
11
Ao discutir o papel dos meios de comunicação de massa na construção de um bandido, porém,
Ônibus 147 eximiu seu próprio cinema e sua própria estrutura documental de uma análise do mesmo
tipo. Não se questiona o próprio papel do filme, por exemplo, na criação de um novo ser humano
personagem.
17
terra estrangeira
personagens, não conseguiu o mesmo sucesso de Carandiru, apesar de tratar do
mesmo tema, ainda que as razões de seu pequeno público não se restrinjam apenas à
estrutura menos “clássica” de composição dos personagens.
David Bordwell, ao escrever sobre o que caracteriza os diferentes tipos de narrativa
(clássica, de arte e paramétrica, por exemplo), está atento à construção dos
personagens como uma das maneiras de diferenciá-los. Sem propor uma formulação
estanque, e mostrando como muitas vezes a narrativa clássica adere a procedimentos
do cinema de arte e vice-versa, Bordwell cria uma espécie de tipologia bastante
interessante que acaba por mostrar quão ingênuo é considerar estes formalismos
(cinema clássico, cinema de arte, etc) como apenas parte das estratégias de distinção
e luta entre os envolvidos no campo cinematográfico. Em outras palavras, sem
identificar nas diferenças entre o cinema clássico e o de arte uma luta entre o “bem” e
“mal” (mercado versus arte ou algo assim), ele nos faz ver o que de concreto há por
trás dos diferentes modos de narração e como eles operam efetivamente na prática.
Segundo ele, os personagens típicos do melodrama e da ficção clássica são dotados de
motivos singulares e explícitos, hábitos específicos, comportamentos que os
diferenciam dos demais e que dão lógicas identificáveis e compreensíveis às suas
ações. Orientam suas trajetórias visando objetivos determinados (goal-oriented), que
perseguirão com ou sem sucesso e de maneira bastante obstinada durante a
narrativa
12
.
A construção dos personagens de Terra Estrangeira não segue irrestritamente, a meu
ver, estes procedimentos clássicos, e podemos entendê-los como suportes para
considerações alegóricas, ou seja, suportes de outros pensamentos, idéias e conceitos
que extrapolam o sentido imediato dos personagens, e que têm seu sentido revelado
não apenas pela forma que tomam mas também na relação com o contexto histórico
13
.
Pode-se argumentar que Paco (Fernando Alves Pinto), Alex (Fernanda Torres) e
Miguel (Alexandre Borges) são personagens, ao mesmo tempo, erigidos segundo uma
12
Cf. BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: The University of Wisconsin Press,
1997, pp. 156-166.
13
Cf. KOTHE, Flávio. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986, p.7 e 24.
18
terra estrangeira
concepção de fundo realista
14
. Desta forma, não são, portanto, alegóricos da mesma
forma que o eram Antônio das Mortes ou Macunaíma. Mas deve-se levar em conta
que são personagens lacunares, sem família, amigos, passado, ou fortes
determinações internas. Suas motivações não estão explicitadas segundo a lógica da
dramaturgia clássica – na qual elementos prévios são desenvolvidos de modo a dar
inteligibilidade às ações futuras – podendo muitas vezes ser apenas presumidas
segundo o contexto histórico em que vivem. Não sabemos exatamente o que fez Alex
e Miguel, por exemplo, estabelecerem-se em Portugal, sofrendo preconceitos pela
condição de imigrados de países subdesenvolvidos. Nem o que faz Paco, jovem
estudante universitário, encontrar-se tão isolado perante a morte da mãe e as
dificuldades financeiras, sem absolutamente nenhum amigo ou parente a quem
recorrer, totalmente disponível para, como veremos, “vender-se ao diabo” (Igor) e
embarcar numa aventura perigosa. O que vemos portanto são personagens que
parecem ser levados à ação segundo as circunstâncias, mobilizados pelo contexto no
qual vivem ou viviam. Mais especificamente, mobilizados pela falência de uma nação
enquanto projeto superestrutural de integração e como lugar a oferecer perspectivas
em relação ao futuro. Podemos dizer que este procedimento de construção lacunar de
personagens não tem sido recorrente no cinema brasileiro dito “da retomada”: Ismail
Xavier lamenta a tendência que viu no cinema brasileiro posterior à Terra
Estrangeira de se dar grande ênfase ao aspecto dramático dos personagens, em
detrimento de outros elementos do cinema, por exemplo, aqueles que colaboram para
uma reflexão visual sobre o filme e não apenas para o desenvolvimento do enredo.
Segundo o pesquisador, “(...) a tônica gira em torno de estruturas dramáticas, em
torno de construção de personagens, de definição de conflitos, do aspecto narrativo
dramático. Isso está muito forte
15
.
14
Como observa Ismail Xavier, o realismo é uma convenção, relacionado no caso a uma “perspectiva
constituída na Renascença ou (...), no plano narrativo, julgada com os critérios de uma narração linear
cronológica, dominada pelo senso comum. Afinal, todo e qualquer realismo é sempre uma questão de
ponto de vista, e envolve a mobilização de uma ideologia cuja perspectiva diante do real legitima ou
condena certo método de construção artística” (X
AVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 83). Estamos aqui utilizando esta concepção do convencional,
estabelecido segundo os critérios da narrativa linear, cronológica, que Xavier discute e apresenta em
O discurso cinematográfico.
15
XAVIER, Ismail. Dramaturgias do cinema brasileiro - Inventar narrativas (para dar conta das
experiências contemporâneas. In: Cinemais , 11:79-120, maio/jun. 1998.
19
terra estrangeira
Walter Salles e Daniela Thomas levarão adiante este estilo circunstancial dos
personagens, objetos da ação e não sujeitos dela, populares discretos cujas
motivações são misteriosas, em O primeiro dia (1999), filme no qual os personagens,
sintomaticamente identificados pelos nomes de João e Maria, carecem quase
absolutamente de uma biografia e de detalhes individuais. São antes representantes de
seus estratos sociais: a garota de classe média que tem medo de bandido (Fernanda
Torres), o bandido sem passado que se encontra comprometido com a polícia (Luís
Carlos Vasconcelos), o intelectual deslocado que, consciente da convencionalidade de
sua vida, parte não se sabe para onde (Carlos Vereza)
16
. Terra Estrangeira procura,
no mesmo sentido, dar aos personagens um caráter inefável e alegórico, ainda que
estes contenham elementos realistas e desempenhem uma interpretação naturalista.
Vamos então dar prosseguimento a esta análise e começar a apresentar, enfim, estes
personagens dos quais falamos.
Paco é o rapaz que fala sozinho apresentado na primeira cena do filme em meio às
janelas do prédio onde vive, em frente ao Minhocão, declamando um texto que depois
saberemos tratar-se de Fausto, de Goethe. É este o texto que ouvimos a voz off do
vulto de Paco na janela ensaiar, de maneira entrecortada e vacilante:
Como é que eu vou dizer isto? Sinto meus poderes aumentarem... sinto os meus
poderes aumentarem... estou ardendo, bêbado de um novo vinho. Sinto a coragem, o
ímpeto de ir ao mundo, de carregar a dor da terra, o prazer da terra, de lutar contra
as tempestades, de enfrentar a ira do trovão. Nuvens se ajuntam sobre mim, a lua
esconde sua luz, a lâmpada se apaga! A lâmpada se apaga... Devo levantar... devo
levantar... Eu não era nada, e aquilo me bastava. Agora não quero mais a parte, eu
quero toda a vida.
Podemos notar a semelhança da observação de Paco espiado discretamente pela
câmera na janela de um prédio de madrugada e o comentário de Marshall Berman em
Tudo que é sólido desmancha no ar sobre o personagem cujo texto o jovem brasileiro
ensaia: “Fausto se insere em uma longa tradição de heróis e heroínas modernos
surpreendidos falando a si mesmos no meio da noite. Normalmente, porém, o falante
16
Cf. NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2006, pp. 76-83.
20
terra estrangeira
é jovem, pobre, inexperiente – decerto privado de experiências pelas barreiras de
classe, de sexo ou de raça de uma sociedade cruel”
17
.
Berman cita a mesma fala de Fausto que Paco declama durante a madrugada como
exemplar da primeira metamorfose do herói de Goethe: “o sonhador”
18
. Como Fausto,
Paco tem sonhos de novas conquistas interiores que o lançarão sobre um novo mundo
repleto de experiências. Nosso aspirante brasileiro e empobrecido a Fausto tem
sonhos mais modestos do que abarcar toda a vida, saberes, alegrias, desgraças,
amores e posses. Paco quer ser ator de teatro, um projeto pessoal que, se der certo,
segundo ele mesmo diz, vai mudar sua vida completamente. Paco é um personagem
popular que, desde logo, é apresentado como alguém que anseia pela cultura erudita,
sonho que se revelará frustado pelas condições objetivas da sociedade em que vive.
O livro de Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, tornou-se um
clássico entre a intelectualidade de esquerda no Brasil, entre outras coisas por
descrever um processo que chamou de tragédia do desenvolvimento, explicitada
segundo ele em Fausto, de Goethe. O modelo fáustico de desenvolvimento, que
“confere prioridade absoluta aos gigantescos projetos de energia e transporte em
escala internacional”
19
, é um velho conhecido dos povos dos países periféricos
industrializados. Na esteira deste processo procura-se aniquilar, como Fausto fez ao
mandar eliminar o casal de velhinhos que morava na propriedade destinada a tornar-
se o futuro do planejamento, traços da vida anterior que, embora não necessariamente
atrapalhem o desenvolvimento das forças produtivas, parecem anacrônicos perante o
novo mundo que vai nascer. O modelo fáustico de desenvolvimento, portanto, fala a
nós, do mundo periférico industrializado, de uma eterna nação que vai nascer, como
se cada passo da história do país fosse um novo começo.
Outro fator que levou o livro de Marshall Berman tornar-se bastante popular entre
intelectuais da esquerda brasileira é o processo chamado pelo autor de cisão fáustica,
e utilizado por Marcelo Ridenti como um dos elementos da análise da trajetória
política de intelectuais e artísticas de vanguarda entre 1964 e 1990 no livro Em busca
17
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.
42.
18
Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. op. cit. p.46.
19
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. op. cit. pp.72-73.
21
terra estrangeira
do povo brasileiro
20
. A cisão fáustica relaciona-se à distância existente entre o
intelectual e artista, portador da cultura de sua sociedade, e o povo da nação que está
sempre em seu horizonte criativo mas com o qual, por circunstâncias estruturais do
capitalismo periférico, ele não consegue efetivamente se relacionar. Isso gera
angústia e desespero no seio destes intelectuais que se encontram, enfim, apartados
daqueles para quem almejam produzir e envoltos por fim em estratégias pessoais e
pequeno-burguesas de sobrevivência. Mas é preciso voltar ao filme e ver como isso
tudo funciona em Terra Estrangeira, no qual a obra de Goethe estará presente em
alguns momentos importantes.
Amanhece e o Minhocão que víamos silencioso durante a noite adquire movimento.
Barulho e trânsito. Uma senhora carregando sacolas de compras caminha e entra no
prédio decadente que vimos anteriormente. É Maria, mãe de Paco, que nos é agora
apresentada em suas atividades cotidianas. A câmera nos mostra um gigantesco
outdoor de calcinhas Hope cobrindo uma das laterais do prédio.
Paco ainda ensaia:
Os espíritos pairam próximos. Me ouvem! Desçam! Desçam dessa atmosfera áurea e
levem-me daqui para uma vida nova e variada! Que um manto mágico seja meu e me
carregue para terras estrangeiras!
Até este momento nada saberemos efetivamente dos planos de Paco de se tornar ator.
Os planos que serão explicitados inicialmente serão os de Maria, sua mãe.
Afetuosamente, ela lhe pergunta se o livro que ele “carrega para baixo e para cima”
tem algo a ver com a faculdade. Paco se recusa a explicar o que é, mas garante que, se
der certo, sua vida vai mudar completamente. Irritada, ela reclama, com medo de ficar
solitária e temendo que seus sonhos venham a ser frustrados pelos projetos de seu
20
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. op. cit.
22
terra estrangeira
filho: “E os nossos planos? E San Sebastian, você já esqueceu?”. Maria almeja voltar
a ver a terra de seu pai, e já em outro momento, ao olhar para seu filho, discorrerá
sobre a permanência da figura paterna no seu imaginário: “você está ficando
igualzinho ao seu avô. Se eu começar a te chamar de pai, você disfarça e deixa”.
Quando, mais à frente, Paco tenta lhe mostrar que eles ainda não têm dinheiro para
fazer a viagem a San Sebastian, nem se considerarem o que ela tem guardado na
poupança, Maria, deprimida, procura explicar a necessidade que tem de voltar à
capital do país basco:
Você não entende mesmo. Você não pode dizer ‘esquece San Sebastian’ como se fosse
um capricho meu. É San Sebastian que não me larga, Paco. Sabe, às vezes eu ando
pela casa, e sinto um cheiro, um cheiro antigo. Eu sei que não é possível, mas eu
sinto. Eu tenho que voltar lá para acabar com essa agonia. Será que não dá para
entender isso? Será que não dá para entender?
Ela não viverá para realizar seu sonho. Enquanto Paco assiste furtivamente e
embevecido a um ensaio de Hamlet, sua mãe, em frente ao aparelho de TV, assiste
estarrecida à ministra Zélia Cardoso de Mello anunciar o bloqueio de todas as
aplicações financeiras, incluindo a poupança, onde ela guarda suas economias. A arte
erudita e o contexto histórico e imediato estão em Terra Estrangeira colocados lado a
lado, sempre de modo a ilustrar a impossibilidade da arte na situação presente. O
popular, premido pelas circunstâncias, não consegue manifestar-se enquanto erudito,
como desejaria.
Aqui a arte será vituperada pela “realidade” que é transmitida via meios de
comunicação de massa. Maria desliga a televisão, levanta-se transtornada, chama por
seu pai na língua basca, e se deixa cair no sofá, morta.
23
terra estrangeira
Lado a lado, a seqüência do teatro de Paco e a morte da mãe são sintomáticas de uma
falência intelectual da nação, que, segundo Terra Estrangeira, coincide, não por
acaso, com o início do governo Collor (que, como sabemos, entre outras coisas,
acabou com a Embrafilme). Paco, a partir de então, irá enveredar-se no caminho do
crime, de início de maneira discreta mas acabando por ser fatalísticamente envolvido
numa trama complexa, tendo de abandonar os sonhos eruditos que cultivava
anteriormente. De algum modo, a cultura erudita, livre, arrebatadora como
representada pela interpretação do Hamlet de Beth Coelho e pelo desejo de Paco, não
é uma possibilidade dada a situação concreta da sociedade na qual vivem nossos
personagens. A associação entre desejos artísticos falidos e/ou frustrados e a opção
pelo crime – materializada agora em Paco e como veremos também em Miguel e
Pedro – relaciona-se a esta falência intelectual e artística, às difíceis condições pelas
quais passam os artistas e aqueles que desejam seguir essa carreira num contexto que
faz com que a arte – e sobretudo a arte erudita – seja impossível.
Não sabemos exatamente, num nível extradiegético, quais as causas patológicas da
morte de Maria. E parece importante que seja assim. Sua morte permanece então
como simbólica, uma alegoria da falência de uma nação a partir da morte da mãe
21
. A
morte da mãe é a morte da nação, figura também feminina e materna, e marca o fim
da esperança (Hope) e o começo da derrota, não apenas de um país, mas da arte
erudita produzida nele. Assim como Glauber Rocha, que segundo sua mãe Lúcia
Rocha morreu de Brasil, Maria também parece ser vítima deste país, e pode então ser
considerada como um símbolo da derrota de um projeto nacional. A meu ver temos
aqui, na verdade, duas mortes, a do pai e a da mãe. O pai, que não está lá mas cuja
21
César Kieling observa que a morte de Maria é “tratada à maneira de um assassinato”. Cf. KIELING,
César. Utopia e identidade em Terra Estrangeira. Dissertação (Mestrado em Multimeios). Unicamp.
Campinas, 2003, p. 64.
24
terra estrangeira
lembrança é invocada, morre quando o confisco da poupança acaba com os sonhos de
volta à terra natal. Como conseqüência segue-se a morte da mãe, Maria.
Há, porém, um outro nível de morte, paterna e materna, simbólica: podemos associar
a figura do pai ao Estado e a da mãe, como já fizemos, à Nação. Ao pai/Estado cabem
os papéis relativos à manutenção da ordem, da autoridade, do poder hierárquico e
impessoal, que desempenha a função de provedor e deve proteger materialmente de
seus filhos. Este papel, em Terra Estrangeira, está mal desempenhado. A figura
investida do poder de Estado (o presidente da República) é um sujeito amedrontador
de olhos flamejantes. A visão de Fernando Collor de Mello aciona nos espectadores
brasileiros um passado de irracionalidade, demência e frustração. Um “pai”
autoritário (o que é diferente de ter autoridade) que quis mal a seus “filhos”,
enganando-os quanto ao que faria com o dinheiro deles. Um pai que, de certa forma,
chegou a “roubar”, ainda que momentaneamente, as economias de seus filhos,
construídas com muitas dificuldades em épocas de inflação. E um pai que não
deixava de proclamar, efetivamente, que visava diminuir o papel do Estado, reduzir
suas funções, deixando a seus filhos a missão de se auto-organizarem, os mais fortes
vencendo os mais fracos (o chamado Neoliberalismo). À mãe/Nação cabem os papéis
relativos ao acolhimento e abrigo, a função de pertencimento a um todo maior, de
sentir-se bem e em casa, de transmissão de amor e de cultura (de nutrir portanto dos
alimentos essenciais para o espírito), da proteção afetiva em braços carinhosos com
os quais a Virgem Maria enlaça Jesus Cristo na Pietá. Agora a Pietá está morta e seu
corpo é abraçado pelo seu filho. Se, a partir do que aqui foi exposto, o pai puder ser
associado à sociedade e a mãe à comunidade, temos aqui a morte de ambos. A morte
da simbólica do Brasil enquanto sociedade – com desemprego, falta de perspectivas
para os jovens, miséria – e enquanto comunidade – o que significa que os laços de
identidade que une seus cidadãos, que deveria os manter visceralmente próximos,
estão rompidos. Paco é o órfão nesta situação, o que o ambiente de extrema
decadência externa e interna a seu personagem o filme procura explicitar.
Desligado a partir de então dos elementos materiais e emocionais que preenchiam sua
existência – o parco dinheiro de Maria e a amorosa companhia dela –, Paco vê cartões
postais de San Sebastian e fica transtornado. As contas acumuladas explicitam a
25
terra estrangeira
passagem do tempo, o transcorrer dos dias. Enquanto toma banho e tenta ensaiar o
texto de Fausto em meio ao choro, ele deixa a água transbordar e invadir o
apartamento. Os cartões de San Sebastian deslizam pela água, que inunda a sala como
o resultado do transbordamento de suas lágrimas. Há uma transposição dos limites
que separam sua dor interna do ambiente externo. A água que inunda seu apartamento
parece ser a extinção das fronteiras entre o que se passa dentro e fora de Paco. A
última frase de Fausto que Paco declama no chuveiro antes da seqüência seguinte
será: “que a minha vida seja o custo”. Profético, ele antecipa seu futuro, introduzindo
o tema do destino inescapável que seu personagem, espécie de mártir desprovido de
sentido, deve cumprir. Como se a partir de agora ele fosse colocado nas mãos do
destino, seguindo uma trajetória predeterminada que, neste momento, no chuveiro, ele
mesmo explicita.
A morte é abordada diversas vezes durante o filme, seja de maneira literal seja
através dos fracassos e da tristeza que perpassa o filma. Em um plano específico
participaremos deste processo melancólico de destruição e de fenecimento de sonhos.
Já falamos sobre a impossibilidade da cultura erudita, que de certa maneira é uma
morte intelectual e artística de um país, associada à morte da Maria/Nação. Maria é
enterrada num cemitério de concreto vertical, feito para quem não pode pagar por
uma cova, e quando os homens que transportam seu caixão fecham a tampa da
zimbra, a câmera permanece lá dentro. Somos enterrados junto com Maria, e como
espectadores enclausurados, somos então imobilizados, encerrados num estado
melancólico.
Enterrados com Maria, símbolo aqui de nossa Nação, passamos então, como Paco, à
condição de desterrados. Por enquanto em nossa própria terra, mas em seguida
desterrados pelo mundo, mais especificamente em Portugal.
26
terra estrangeira
Close da lista de candidatos ao teste de Fausto (quando ficamos sabendo efetivamente
tratar-se do texto de Goethe) e uma voz em off chama Paco: “O próximo... Francisco
Eizaguirre”. Vemos seu rosto trêmulo e um tanto ausente em meio às sombras – num
plano no qual a falta de transição entre os claros e escuros exacerba o aspecto
desolador do personagem – e ouvimos as batidas de seu coração. Ficará logo claro
que Paco não conseguirá dizer uma palavra, enquanto a voz distante do diretor insiste
para que ele comece logo o teste. Uma gota de suor de seu rosto cai no chão e vemos
na seqüência o rapaz caminhar desesperadamente pelas ruas de São Paulo, terminando
sua trajetória sentado desoladamente no chão de uma estação de metrô, alheio ao que
se passa a sua volta. Mais uma vez cultura erudita e “realidade” colocam-se lado a
lado, na montagem de Terra Estrangeira, em detrimento daquela, numa sugestão de
que o mundo das grandes obras espirituais não se encontra afastado dos
condicionantes mais imediatos. E, deste modo, a partir da associação entre o estado
desolador de Paco e o cenário em seu entorno, vemos a impossibilidade da arte no
contexto em questão, uma idéia que, como estamos sugerindo, Terra Estrangeira
procurará explicitar. Paco, um reduto dos desejos de elevação via arte, encontra-se
abandonado anônimo em meio à cidade que mostra-se alheia à sua dor. Na próxima
seqüência a decadência do personagem, bêbado num bar, continua.
Retomando as considerações de Marshall Bermann sobre Fausto, no momento
justamente em que os sonhos artísticos de Paco foram despedaçados, vejo este
personagem como exemplar da subjetividade moderna tal como descreve o autor de
Tudo que é sólido desmancha no ar. O capitalismo moderno nos atirou diante de uma
atmosfera que exige do indivíduo mudança e fluidez, adaptabilidade e
disponibilidade, expansão e desordem, e que “promete aventura, poder, alegria,
crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas que ao
mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que
somos”
22
. Ao indivíduo é exigido “não apenas estar apto a mudanças em sua vida
pessoal e social, mas ir efetivamente em busca de mudanças, procurá-las de forma
ativa, levando-as adiante”
23
. Paco Eizaguirre é neste sentido um personagem impelido
22
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. op. cit. p. 15.
23
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. op. cit. p. 94.
27
terra estrangeira
e obrigado à tomada da ação individual, atirado à corrente da modernidade que o
coloca diante da necessidade de perseguir seus sonhos de realização pessoal, no caso
ser ator de teatro. No entanto, porém, o capitalismo não tem como realizar as
promessas que ele próprio cria. Sabemos desde Marx a que se referem os ideais
burgueses de liberdade e igualdade. Nas palavras de Marshall Berman, o capitalismo
“destrói as possibilidades humanas por ele criadas. Estimula, ou melhor, força o
autodesenvolvimento de todos, mas as pessoas só podem desenvolver-se de maneira
restrita e distorcida”
24
. Nesse sentido, existe uma forte semelhança entre Paco e o
personagem de O homem que copiava (Jorge Furtado, 2003), último filme a ser
analisado neste trabalho. André, como Paco, também está caracterizado, a meu ver,
como um personagem popular discreto. Ambos estão justamente atirados ao
capitalismo que os impele a buscar seus sonhos individuais mas que ao mesmo limita
a conquista destes sonhos. Num certo sentido, o popular, tal como aparece nesses
filmes, precisa justamente ser atirado à corrente da modernidade para que seu lado
discreto apareça e sensibilize o espectador.
Enlutado e disponível, depois da morte de sua mãe e do fracasso do teste de teatro,
Paco é visto no balcão de um bar vazio já embriagado. Lá ele conhecerá Igor (Luís
Mello), uma espécie de Mefistófeles que, concedendo-lhe o manto mágico
25
, o levará
a “terras estrangeiras”. Oferece um copo de uísque a Paco e desta maneira se
aproxima do rapaz. Com um leve sotaque português, apresenta-se – Igor Bentes Pena
– e ouve Paco apresentar-se, devagar e já enrolando a língua – Francisco Ei-za-guir-
re. Animado e sorridente, Igor utiliza de charme e carisma para conquistar a atenção
do rapaz. Comenta que o nome de Paco é basco, mostra algum conhecimento da
língua e simpatia pela situação política e cultural da região. Vê um cartão na mão do
rapaz e, fingindo certa familiaridade, “adivinha” tratar-se de San Sebastian (o nome
da cidade está escrito logo abaixo da foto da cidade). Paco lhe explica que sua mãe
era de lá, ao que Igor, provavelmente cada vez mais consciente da disponibilidade
24
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. op. cit. p. 95.
25
No banheiro do aeroporto, antes de Paco embarcar, Igor analisa a roupa de Paco e comenta: “Mas
estás com uma aparência horrível, meu rapaz. Deixe-me ver... Vamos dar um jeito nisso. Dessa forma
não entras na imigração”. Joga na lata de lixo a jaqueta de Paco e veste-o com seu blazer. “Ora, meu
rapaz. Agora estás muito mais elegante”.
28
terra estrangeira
material e afetiva do rapaz, comenta o quão bonita é a cidade. Paco diz não conhecer
San Sebastian, e explica que nunca terá dinheiro para conhecê-la.
Na seqüência seguinte, após o que vimos no bar, vemos Igor e Paco numa galeria
estreita onde se encontram móveis e objetos antigos dispostos desorganizadamente,
numa cultura acumulada que, disposta daquela maneira, parece inútil,
descontextualizada, desvalorizada. Igor descreve a sua maneira o ambiente que rodeia
a ambos:
Está vendo essa cadeira, Paco? Isto não é uma cadeira. Este prato aqui não é um
prato. Esta não é uma mesa. São vestígios, isso, vestígios de uma puta aventura! A
maior aventura de todos os tempos, a dos conquistadores, dos Aguirres, Ex-Aguirre!
Igor faz uma citação de fundo histórico. Lope de Aguirre era um conquistador basco
que em 1559 participou de uma expedição de busca do El Dorado, cidade feita de
ouro, prata e pedras preciosas que povoava a imaginação das metrópoles sedentas de
exploração
26
. A expedição em questão saiu do Peru e rumou em direção ao
Amazonas. Era comandada pelo espanhol Pedro de Úrsua. Este, no entanto, foi morto
por Aguirre, que obteve o controle da expedição e proclamou a si e a seus homens
independentes da Espanha e membros agora de um novo reino que ele acabara de
criar. Escolheu um rei, que logo matou, assim como matou diversos de seus homens,
negros e índios numa trajetória de atrocidades. Escreveu para o rei da Espanha, Felipe
26
Eldorado é também o nome do país onde se passa Terra em Transe, de Glauber Rocha.
29
terra estrangeira
II, proclamando-se inimigo. Na carta ao rei, Aguirre dizia que a Amazônia era um
inferno – afirmação que se chocava exatamente com todo o sentido da busca do El
Dorado, o paraíso na terra – e dizia-se resolvido a voltar para o Peru, contra a
orientação real. Foi então considerado traidor por Felipe II e assassinado por tropas
reais em 27 de outubro de 1561, depois de espalhar por meses a violência em meio à
selva. Antes de morrer, matou esfaqueada sua própria filha para que ela não caísse
nas mãos dos soldados.
Em meio a seu discurso sobre o passado colonial, ao dizer o sobrenome de Paco com
ênfase no eiz, tornando-o portanto ex
27
, e colocando vigorosamente suas mãos sobre
os ombros do rapaz enquanto pronuncia ex-Aguirre, Igor relaciona-o ao colonizador
espanhol. Paco, também como Aguirre de origem basca, é um elemento de ligação
simbólica entre a era das conquistas e os dias atuais. Igor, na galeria, havia prometido
que a primeira coisa que vendesse para a Espanha arranjaria para Paco levar. Já no
aeroporto, prestes a embarcar, Paco é avisado por Igor que este só conseguiu Lisboa,
e que o rapaz vai portanto para Portugal – de onde pode partir para San Sebastian
após receber o pagamento pela entrega. Ao embarcar para Portugal levando
contrabando brasileiro de Igor, Paco refaz de maneira invertida o caminho dos
primeiros colonizadores, dos Aguirres de outrora. A história, que havia sido tragédia
num primeiro momento, repete-se aqui como farsa, cheia de inversões: Paco não é um
conquistador, mas o contrário, cidadão do país conquistado. Ao dizer enfaticamente
ex-aguirre e colocar as mãos em seus ombros, Igor obriga-o a se sentar numa cadeira,
colocando-o numa posição de inferioridade que é o oposto do tratamento que se
espera que um colonizador Aguirre receba, mas condizente com a posição de
dominado que Paco efetivamente desempenha. O país onde se pensava há quinhentos
anos atrás ser o lugar onde existia o paraíso mítico e utópico de El Dorado está, como
percebeu Lope de Aguirre, longe de ser o paraíso imaginado, o que confirmam as
imagens desoladoras filmadas no Brasil (Minhocão, prédios decadentes, barulho de
transito, pessoas solitárias). E este país, outrora de recursos e bens naturais
abundantes, agora exporta pedras, talvez falsas (os diamantes pisoteados parecem se
quebrar na última seqüência do filme).
27
Cf. NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro. op. cit. p. 47.
30
terra estrangeira
O cineasta alemão Werner Herzog abordou a história do conquistador basco em
Aguirre, a cólera dos deuses (1972). Não se trata, no entanto, a meu ver, de um filme
exatamente histórico ou épico, como o são 1492 (Ridley Scott, 1992) ou Canudos
(Sérgio Resende, 1996), mas mais possivelmente alegórico
28
, que se utiliza de
momentos da história dos conquistadores para falar dela mas também de outras
coisas, talvez, por exemplo, do perturbador e aparentemente irracional destino da
Alemanha no século XX sob o comando de Hitler, ele também uma espécie de
instrumento da cólera dos deuses contra os homens. À diferença de Terra
Estrangeira, no entanto, o filme de Herzog transporta a farsa para o interior da
própria narrativa. Há todo um clima de irrealidade que torna a evolução das tropas,
fantasiadas com roupas que as assemelham a uma espécie de grupo de teatro que se
perdeu na floresta, algo grotesca. Ao contrário da maioria dos filmes sobre o período
colonial, aqui os conquistadores estão em franco desentendimento com a natureza a
seu redor, que se torna hostil, ofensiva, quase dotada de vontade própria, como que
encantada. Além disso, o desempenho dos atores parece ser marcadamente
contemporâneo para que eles estejam trajados daquela maneira. Klaus Kinsky, como
Aguirre, tem uma interpretação antinaturalista e exagerada, quase demoníaca. Seus
gestos são amplos demais, ao andar ele manca demais, e suas expressões anunciam
ódio demais.
Diversos elementos em Terra Estrangeira comentam o passado colonial brasileiro e
suas relações com a metrópole, e nos deteremos mais neles ao tratar dos planos
filmados especificamente em Portugal. Não temos aqui apenas o tratamento do
território lusitano, cuja tradição navegante instala-se no filme, mas também da
Espanha, país dos Aguirrres de outrora e dos Eizaguirres de hoje. Paco é descendente
de espanhóis, e ao levar pedras talvez ele esteja refazendo de forma mais patente o
28
Para uma definição de alegoria e alegórico ver KOTHE, Flávio. A alegoria. op. cit. Sua definição
essencial, extraída do vocabulário crítico ao final do livro, é a seguinte: “Alegoria: representação
concreta de uma idéia abstrata. Exposição de um pensamento sob forma figurada em que se representa
algo para indicar outra coisa. Subjacente ao seu nível manifesto, comporta um outro conteúdo. É uma
metáfora continuada, como tropo de pensamento, consistindo na substituição do pensamento em causa
por outro, ligado ao primeiro por uma relação de semelhança”. A definição essencial é interessante,
mas vale a pena também dar uma olhada em outros momentos do texto de Kothe, nos quais ele discute
a relação da alegoria com seu tempo histórico (de onde deriva sua leitura e sua compreensão), seu
papel central na difusão das idéias das classes dominantes, e o caráter mais ou menos hermético que
ela pode assumir.
31
terra estrangeira
caminho dos colonizadores seus conterrâneos, que ficaram com a parte da América
Latina na qual abundavam estas riquezas, mais do que no território que coube aos
portugueses, cuja exploração de metais preciosos foi descoberta tardiamente e logo se
exauriu. Paco deseja ir para San Sebastian, cidade de sua mãe, e ver com seus olhos o
que ela não pode mais contemplar. Imbuído de um desejo materno, ele tenta alcançar
esta cidade cujo nome também nos remete, como fez Aguirre, a uma parte da história
e a um filme específico.
Podemos dizer que a palavra San Sebastian aciona a lembrança de Dom Sebastião, rei
de Portugal que foi para a Batalha de Alcácer Quibir em 1578 e nunca mais voltou.
Continuou sendo esperado, criando o chamado sebatianismo: o mito da volta de Dom
Sebastião como redentor de Portugal, o homem que faria o país reerguer-se no século
XVII. Encerrada a era das navegações, Portugal tornou-se periferia do continente
europeu, nunca mais voltando a ter a posição central que ocupava no século XVI. É
natural, portanto, que o mito da volta de Dom Sebastião tivesse permanência.
Associa-se assim ao espírito melancólico que permeia o filme e a história deste país:
o sentimento de perda de algo que se teve no passado e cuja ausência será
constantemente rememorada, mas que não comporta uma possibilidade de retorno real
ao estado inicial
29
. Sentimento que, segundo Ismail Xavier, será abordado numa outra
chave pelo cineasta Manuel de Oliveira, “o mais talentoso dentre os ironistas da
península Ibérica, implacável com a melancolia romântica portuguesa e sua
morbidez”
30
. O corpo de D. Sebastião nunca foi achado, o que impediu a
materialização do luto português: ele pode então ser chorado eternamente,
dificultando a mobilização em busca de algum caminho que aponte ao futuro.
Sebastião é o nome que foi dado ao beato de Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber
Rocha, 1963): o beato Sebastião. Era uma espécie de Antônio Conselheiro, mas não
era o Antônio Conselheiro. Sua não-identificação completa a este personagem
histórico brasileiro faz dele algo maior. Alguém, enfim, no qual podem ser
depositados mitos diversos relacionados ao messianismo, e por isso o nome de um
outro “santo” em quem foi projetado um futuro melhor que reproduzisse uma era
29
Uma das definições do Dicionário Aurélio para sebastianista é: “Pessoa que, partidária ardorosa de
uma situação política, espera vê-la retornar, quando isso, ao menos aparentemente, é impossível”.
30
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.87.
32
terra estrangeira
passada, Dom Sebastião. O beato Sebastião é alguém que, podemos dizer, comporta
projeções passadistas de mudanças, projeções estas relacionadas a um ambiente em
crise e incapazes de dar conta efetivamente dos problemas a serem enfrentados, na
medida em que são escapistas, imaginárias e/ou alienantes. Como parte da própria
cultura brasileira vituperada pelos acontecimentos recentes, compartilhando de um
desejo artístico impossível diante da morte simbólica de uma mãe e de uma nação,
Terra Estrangeira coloca-se seus personagens populares num dilema erudito, e neste
processo recorre a citações artísticas e históricas que legitimam a sobriedade de seu
tema e a profundidade da dor que manifesta.
Então neste momento talvez já esteja mais do que na hora de dizermos que Terra
Estrangeira, durante toda a seqüência de acontecimentos envolvendo Paco e sua mãe
que acabamos que relatar, mostra ao mesmo tempo a trajetória de um casal de
brasileiros em Portugal, país que o jovem paulistano está prestes a conhecer. Em
montagem paralela, os planos filmados no Brasil alternam-se aos filmados em
Portugal. Há aqui um sentimento antecipatório ao fato de que, em algum momento, as
trajetórias dos personagens no Brasil e em Portugal se cruzarão. Há também um
paralelismo temático que a montagem constrói, mostrando as trajetórias do Brasil e
de Portugal como parte de uma mesma Nação derrotada, de um mesmo desejo de
evasão, de um mesmo fracasso do projeto dos cidadãos de um país. Além, é claro, da
exposição da idéia de que os acontecimentos narrados nos dois países são
simultâneos. O Brasil deixará de aparecer no filme assim que Paco chegar a Portugal.
A última imagem brasileira que vemos é a do aeroporto, onde Paco se prepara para
viajar. O plano imediatamente anterior nos mostra também um brasileiro que vai
partir: Miguel explica a seu amigo português Pedro (João Lagarto) que buscará sua
mulher Alex e sairá de Portugal, partindo então para a “Europa”. Partir, abandonar
um lugar ou abandonar-se, faz parte de certo “destino” português; conforme explica
Pedro num dado momento a Paco:
Isso aqui não é sítio para encontrar ninguém. Isto é uma terra de gente que partiu
para o mar. É o lugar ideal para perder alguém ou para perder-se de si próprio.
A tradição marítima de Portugal é enfocada nos quadros relacionados ao mar
(rebocador apitando, barco encalhado, plano no qual Alex e Paco olham o mar em
33
terra estrangeira
uma falésia na “pontinha” da Europa) e num clima de saudade que está
simbolicamente associado a esta tradição de lançar-se ao mar e que só parece surgir
nos planos que se ligam a Portugal.
O filme está repleto de diálogos e quadros, exatamente como a frase que acabamos de
citar, que comentam a “identidade” portuguesa. Muitos destas seqüências são
compostas de espaços amplos e disposições horizontais; enquanto falam sobre
Portugal, os quadros e personagens então olham pensativamente para o infinito, para
o que está ao longe mas que não pode ser entrevisto. Há um sentimento de
organização espacial, mas também de uma tranqüila e conformada fatalidade nas
disposições horizontais, pois o que está acima da linha do horizonte parece pesar
sobre o que está abaixo, imobilizando-o.
34
terra estrangeira
Fernando Pessoa está presente aqui como poeta do passado português ao mesmo
tempo belo e tristonho, de conquistas e separações, nostálgico porque relacionado ao
mesmo tempo às viagens longas e incertas e por invocar uma época em que Portugal
era, junto com a Espanha, um país absolutamente central: “Ó, mar salgado, quanto do
teu sal/São lágrimas de Portugal!/Por te cruzarmos, quantas mães choraram/Quantos
filhos em vão rezaram!/Quantas noivas ficaram por casar/Para que fosses nosso, ó
mar!/Valeu a pena? Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena”
31
. Pessoa aparece na
figura de Pedro, personagem dado a frases “poéticas” (nada é definitivo nessa vida,
nem a dor), e que, conforme o dono do Hotel dos Viajantes informa a Igor, é parecido
com o poeta:
Era um português mais ou menos da sua idade, talvez um pouco mais baixo. De
cabelo preto, já com grandes entradas. Sobrancelhas grossas. Assim... um tipo meio
intelectual... com óculos redondos, à Fernando Pessoa.
Nesse sentido, é de se notar a diferença que marca no filme a paisagem de Portugal e
a brasileira. De alguma forma é como se o Brasil mostrado não comportasse uma
tradição, preso que está às contingências do presente, o que parece fundamental na
trajetória de nossos personagens populares, que não parecem se sentir ligados ao país
no qual nasceram, como se este fosse efetivamente um país “efêmero”, desinteressado
por sua história. Ao contrário, portanto, de Portugal, preso ao passado, invocado
como nação que se lançou ao mar e que desde o fim da era das navegações não
conseguiu mais “fazer parte” da Europa
32
. A história brasileira narrada no filme está
ligada ao acontecimento imediato, ao instantâneo
33
– à Era Collor – e quando nos
voltamos para o passado nacional é para localizá-lo enquanto território colonial,
relacioná-lo portanto à tradição de Portugal. Isto aparece na diferença de tratamento
que é dispensado aos planos filmados em Portugal e no Brasil, em Terra Estrangeira.
Ao Brasil são relegados planos desoladores, principalmente ligados a uma degradação
31
Segunda parte do poema de Fernando Pessoa A mensagem, intitulada “Mar Português”.
32
Ao despedir-se de Pedro, em Portugal, Miguel dirá, imitando seu sotaque português: Ouve lá: a
gente te manda um cartão postal da “Europa”. Ao que Pedro, ciente da graça, responde: Vê lá se
consegues entrar na Europa primeiro.
33
E este “instantâneo” surge, por exemplo, nas imagens de Fernando Collor e da ministra Zélia vistas
através da
TV de Maria, ou seja, imagens que “colam” o filme ao aqui e agora, que contextualizam
com precisão o tempo histórico do filme.
35
terra estrangeira
urbana. Cartazes de propaganda envelhecidos poluem o ambiente, há o barulho de
sirenes de polícia e ambulância (barulho que nos causa apreensão, antecipando
tragédias) e também de televisões anônimas ligadas enquanto Paco anda nas ruas. Ele
quase tropeça em um mendigo e desvia de um catador de lixo. Portugal, por outro
lado, tem o mar, navios melancolicamente apitando ou poeticamente encalhados, e
suas ruas têm aquele aspecto de antigüidade e História que tende a encantar o
brasileiro, privado que está da vivência em grandes cidades “históricas”.
A degradação do Brasil não está apenas na cidade, mas no apartamento de Paco após
a morte da mãe, quando lixo, cartas e louças sujas começam a se acumular. A cidade
degradada nos relaciona ao Estado degradado, o que por sua vez nos remete à
degradação da Nação, representada simbolicamente por aquilo que está relacionado a
Maria. Esta degradação generalizada nos sugere uma lacuna histórica, um
desligamento da experiência do presente com aquela do passado, típica de um país
que sempre está para ser construído. Isso não ocorre em Portugal. As imagens deste
país nos sugerem uma cultura na qual passado e presente estão intimamente ligadas,
na qual, justamente, a experiência do passado de certa forma condiciona o presente (e
aí o mito de Sebastião faz todo o sentido...). O apartamento de Pedro é, por exemplo,
um acúmulo do passado, cheio de quadrinhos na parede e livros antigos. No entanto,
em Terra Estrangeira, esse acúmulo de cultura e de passado não leva a nada, na
medida em que Portugal também é enfocado, segundo penso, como um país no qual
os desejos e projetos também não podem ter prosseguimento, um país parado no
tempo e afastado da “Europa”.
36
terra estrangeira
Não obstante, uma cidade na qual o passado deixou belos vestígios encanta o
brasileiro, privado que está da experiência da história preservada. As seqüências em
Portugal dão diversas vezes uma agradável idéia de amplitude e tranqüilidade (e isso
ocorre mesmo nas cenas filmadas em partes mais degradadas de Lisboa, como a
região do Hotel dos Viajantes). A fotografia em preto e branco, que dá uma atmosfera
cinzenta a São Paulo, deixa, ao contrário, Lisboa mais encantadora. Alex, olhando a
paisagem urbana portuguesa, dirá:
Eu gosto dessa hora nessa cidade... cidade branca. Bonito, né?
Além disso, a loja A Musicóloga, de propriedade de Pedro, remete-nos
agradavelmente a um mundo de pequenos comerciantes locais, livros delicados e
especializados, relações sociais mais próximas, clientela conhecida, amor sincero à
arte, algo a ver com “comunidade”, enfim
34
. Quando o freguês entra, um sininho
pendurado na porta avisa sua chegada, e o plano que pela primeira vez nos mostra a
fachada da loja é invadido por um bonde e seu barulho característico.
34
As pequenas livrarias ou as livrarias extremamente especializadas em geral comportam mesmo esse
sentimento de “comunidade”. Em Notting Hill (Roger Mitchell, 1999), por exemplo, filme no qual
uma estrela de Hollywood (Julia Roberts) entra na vida de um pacato morador do tradicional bairro
londrino que dá nome ao filme (Hugh Grant) – ou seja, um filme que apresenta o choque entre dois
mundos opostos (o moderno e o tradicional) – este morador é justamente dono de uma pequena
livraria especializada em guias turísticos.
37
terra estrangeira
Em outro momento repleto de um clima passadista – e este a meu ver romântico, no
sentido de que impele o casal protagonista ao futuro mas através da visão do
passado
35
– vemos um barco antigo encalhado numa praia, onde Paco e Alex se
abraçam e decidem entusiasmados continuar a viagem rumo a Espanha. Há, enfim,
um ar de saudade e nostalgia que está associado, por exemplo na tradição literária e
navegante do país, ao espírito português.
Este país, porém, que é visto através das lentes de Terra Estrangeira como um lugar
belo e ligado ao passado, também é um lugar de impossibilidade da arte. Paco está lá
para ser contrabandista, e não para realizar seu sonho de ser ator de teatro. Miguel,
enquanto não consegue viver de sua música, vai se virando imerso no mundo do
crime. Até Pedro, violinista e amante dos livros e da música, nos dá a entender que
também já teve relações, talvez bem íntimas, com Igor. O corredor de seu
apartamento, no qual Paco e Alex brigam em meio a quadros que vão caindo das
paredes, também é de certa forma um retrato de uma cultura acumulada mas que ali
parece estar descontextualizada e inutilizada. E Portugal também é um lugar de
preconceito, já que lá brasileiros passam por dificuldades financeiras e angolanos são
discriminados. Os dois primeiros planos filmados em Portugal mostram justamente
Alex e Miguel sofrendo rejeição na atividade que desempenham – ela porque é
brasileira, ele porque não se quer dar ao público a música que o público quer ouvir.
35
Ver a respeito do romantismo tal como concebido aqui LÖWY, Michel, SAYRE, Robert. Revolta e
Melancolia – o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995, pp. 9-70.
38
terra estrangeira
Estamos em Lisboa num plano diurno. Um rebocador cruza o quadro e, num espírito
semelhante ao da música que ouvimos por ocasião dos créditos iniciais, parece
abandonar, enquanto desliza, algo que não pode ser revisto. O plano contrasta com a
imagem seguinte da cantina abarrotada de gente na qual trabalha a brasileira Alex.
Ela se esforça para atender os clientes, preocupada com o horário pois, como veremos
em seguida, está atrasada para a apresentação musical de seu companheiro Miguel.
Saberemos depois, em outro momento do filme, que seu patrão português costuma
não deixá-la sair no horário combinado, obrigando-a a trabalhar mais do que ela
deveria.
Enquanto na cantina Alex é explorada pelo patrão português, no Bar Ritz Miguel toca
trompete para uma audiência que não o suporta. A música que Miguel executa é um
solo de jazz contemporâneo, cuja melodia aparentemente incoerente e desarticulada
introduz o tema da relação entre o artista e o público. Trata-se aqui, mais
especificamente, de uma não-relação, na medida em não parece ter havido disposição
para o diálogo entre o músico e a platéia, mas apenas rejeição. Vamos vir a saber na
próximas imagens que Miguel é inclusive o compositor da música, e não apenas um
intérprete. A câmera focaliza alguns freqüentadores do bar que expressam
descontentamento e mesmo revolta pela música que ouvem. Assim que Miguel acaba
de executar seu solo diante da aborrecida platéia, um play-back de música pop invade
o ambiente, fazendo com que os antes entediados ouvintes corram a dançar
animadamente.
39
terra estrangeira
Pedro, também músico e amigo português de Miguel e Alex, é o único que aplaude, e
parece sincero nos elogios que tece à música do brasileiro.
És o maior, pá. O solo foi muito bom! Isto é uma cambada de bestas. Ninguém
percebe nada. Não ligues, pá. O solo foi muito interessante, Miguel.
Em Villa-Lobos, uma vida de paixão (Zelito Viana, 2000) presenciamos uma outra
cena de mal-estar na relação público-artista, e na seqüência um outro reconhecimento
mútuo entre dois amantes da música. Heitor Villa-Lobos (Marcos Palmeira), em
começo de carreira, só é aplaudido pelo compositor Pixinguinha (interpretado por
Paulo Moura, importante clarinetista de choro) ao final de uma audição. Ou seja,
freqüentemente apenas um grande artista consegue reconhecer outro muito antes de
sua popularização entre as “massas”. Em Terra Estrangeira não estamos diante da
genialidade a ser proclamada, como no filme de Zelito Viana. Nada nos indica que
Miguel é realmente um artista diferenciado. Mas acredito que neste filme a qualidade
efetiva da música de Miguel não seja importante. Se temos, à semelhança de Villa-
Lobos, um caso de incompreensão do público, temos diferentemente, em Terra
Estrangeira, a incompreensão do público ampliada de modo a envolver pessoas
comuns – tipos como Miguel e Paco, populares a seu modo – que amam a arte e a
executam assumindo os riscos de estarem à margem do que espera o mercado. Trata-
se, a meu ver, de um questionamento sobre os limites da cultura de massas. E, para
isso, parece-me importante que Miguel seja um tipo anônimo e discreto, e não um
gênio, tentando fazer sua música, assim como Paco é um anônimo almejando fazer
teatro clássico (ensaiando uma peça identificada à cultura erudita, Fausto). O aspecto
comum e anônimo destes personagens reforça a idéia da impossibilidade da arte.
Afinal, a idéia do gênio que demora a ser digerido pelas massas, como Villa-Lobos,
Beethoven ou Van Gogh, já é parte do mercado e figura entre os seus temas mais
comercialmente interessantes que vez ou outra são rememorados pelo cinema. É,
enfim, um consolo para a classe média e alta, compungida por estar efetivamente
afastada da arte considerada erudita, que pode deliciar-se em reconhecer a qualidade
destes gênios naquilo que antes seus pares não compreendiam, ainda que este
reconhecimento se dê na maioria das vezes por um consumo superficial das obras de
40
terra estrangeira
arte. Um consumo antes como um símbolo de status, que adiciona uma espécie de
“brilho” cultural à vida burguesa.
Em outro momento do filme, quando Paco entra furtivamente no interior de um teatro
para assistir a um ensaio de Shakespeare, a cena que se descortina diante de seus
embevecidos olhos reproduz um diálogo de Hamlet no qual o personagem que dá
nome à peça questiona a pertinência de um ator vender seu talento para fazer um
papel que na verdade não o engrandece nem nada acrescenta efetivamente à sua
carreira. Miguel também padece da cisão da dupla vida do artista: vender-se ao
mercado e fazer sucesso ou ser coerente com seus desejos estéticos. No seu caso
específico, no entanto, a decisão já está tomada. Miguel opta por executar uma
atividade ilegal mas não concebe tocar o tipo de música brasileira que o estrangeiro
gostaria de ouvir:
Você acha que eu gosto de viver de contrabando? Eu quero é tocar. Só que ninguém
agüenta me ouvir, nem a porra da minha mulher!
Assim como Miguel, Paco também fracassou em seu desejo de aproximar-se da arte.
E, novamente, convém lembrar que Paco aproximou-se da arte via cultura
considerada erudita ao inscrever-se para encenar o texto de Goethe.
Não convém, no entanto, identificarmos aqui exatamente uma exaltação a essa cultura
ou um pedantismo que pode ou não acompanhá-la. Paco, por exemplo, falha de modo
patético no teste de teatro – o caráter elevado e emancipador da cultura erudita tem
seus limites e ela não se constitui como resposta perante situações concretas e
práticas. A cultura erudita não habita um mundo à parte em relação ao mundo “real”,
ao imediato, à economia, à política e ao medo do futuro incerto, e é justamente por
isso que a arte se torna impossível diante da falência da nação. Miguel, que quer
manter sua arte “pura” da contaminação da cultura de massas, é um dependente de
drogas e está envolvido com o crime internacional, e portanto não está caracterizado
como vítima, mas como alguém enfiado até o pescoço com o mundo “concreto”, com
a situação imediata. Ademais, sua aparência causa certa repulsa, apesar dele ser
interpretado por um ator considerado galã e ser mostrado como um tipo caloroso e
simpático. Miguel é apresentado sempre meio ensebado, às vezes deselegantemente
41
terra estrangeira
com as mangas da camiseta dobradas até mostrar os ombros, e leva constantemente
um cigarro quase no seu estágio “bituca” na boca
36
.
Por outro lado, podemos pensar em outra direção. Paco falha porque o desejo de
elevar-se via cultura erudita não é imune à tragédia social de um país. E Miguel pode
ser visto simplesmente como um personagem construído de modo a evitar
moralismos. O artista que quer ser correto e íntegro perante sua obra pode ser
incorreto socialmente e agir de modo a desestruturar sua própria vida, o que o
caracteriza antes como vítima do que como algoz. Com efeito, não vejo em Terra
Estrangeira exatamente uma condenação às atitudes de Miguel, nem as que se
referem à sua música nem as que se referem às drogas. E o fato da falha de Paco
parecer estar tão ligada ao desespero pela morte de sua mãe – que por sua vez parece
relacionada ao bloqueio da poupança – tende a inclinar-me para a segunda hipótese,
ou seja, a de que a cultura erudita não pode sobreviver à falência de uma nação. Em
Terra Estrangeira, a meu ver, existe uma tendência a apresentar a cultura erudita e a
não-contaminação do artista pelo gosto tirânico do grande público (e portanto do
mercado) de maneira positiva. Os personagens de Paco e Miguel, não obstante as
relações que estabelecem com o mundo do crime, são tipos com os quais nos
identificamos, provavelmente, segundo penso, em decorrência da situação difícil pela
qual passam e pelos desejos artísticos que carregam.
Somos então, a partir da rejeição, introduzidos na história de um casal de brasileiros,
Alex e Miguel, que estão tentando viver em Portugal. Os motivos que os levaram a
abandonar seu país de origem podem apenas ser presumidos, uma vez que não foram
explicitados. E, o que a meu ver os reveste de certo caráter “universal”, no sentido de
expressarem um fenômeno mais geral, estes motivos parecem ligados ao contexto
específico brasileiro, sem no entanto estarem mencionados, o que pode nos levar a
identificá-los de modo genérico com os cidadãos brasileiros que padecem do mesmo
desejo de abandonar o país. Podem ser vistos então como personagens “políticos”,
não no sentido de serem impelidos ou almejarem à ação política, mas por suas
trajetórias serem fruto, em última instância, das condições periféricas da sociedade
36
Interessante notar que acender um cigarro e começar a fumá-lo nos dá uma impressão de elegância
e superioridade, mas portá-lo já quase no fim entre os dentes, com uns dois centímetros de cinza
prestes a cair, nos dá a sensação oposta.
42
terra estrangeira
brasileira. Personagens sem passado, Alex e Miguel tentam o futuro numa terra
estrangeira, como os personagem Tonho (Rogério Bomtempo) e Rita (Débora
Falabella) de Dois perdidos numa noite suja (José Joffili, 2002). Com a diferença
essencial, que lhes dá outra conotação, de que Tonho e Rita estão a todo momento
justificando sua condição de exilados pelo passado no Brasil e explicitando as
ambições que os levaram a Nova Iorque: o primeiro para ganhar dinheiro e o segundo
para obter reconhecimento artístico. O que queremos dizer, em outras palavras, é que
a indiferença de Terra Estrangeira em dar uma história de vida a Alex e Miguel os
torna parte de um tipo de personagem mais amplo, que explicitam sentimentos mais
genéricos. Como Paco, Alex e Miguel desfrutam da condição de uma espécie
invertida de novos colonizadores, fazendo o caminho contrário àquele que levou os
primeiros portugueses à América do Sul, e encontram-se agora desamparados num
mundo contemporâneo no qual a idéia de nação não perdeu a sua centralidade
simbólica ou prática
37
, mas que nega incessantemente a realização da utopia de um
ambiente integrador e confortável. Alex dirá:
Eu morro de medo de ficar velha aqui fora. Mas também, quando eu penso em voltar
para o Brasil me dá um frio na espinha...
Depois de ser demitida pelo dono do bar em que trabalhava, Alex chega em seu
apartamento e encontra Miguel acabando de se picar com uma seringa. Ela fica brava
e decepcionada. Ele, alterado e feliz, conta que pretende vender diretamente o
contrabando que vai receber. Inicia-se assim, com a exposição dos planos de Miguel
que envolvem “passar a perna” em Igor, a influência do film noir que invadirá Terra
Estrangeira, como notou César Kieling
38
.
Segundo Paul Schrader
39
, o film noir não é um gênero, mas algo mais próximo a um
movimento. Da mesma forma, não se refere exatamente a temas, convenções de
37
Não compartilhamos da idéia de que de na chamada globalização a noção e a própria existência de
nação perderam o sentido. Ela permanece ocupando um lugar econômico, simbólico e político central.
É o que mostram as análises mais agudas de autores que acompanham de perto o embate internacional
por poder e mercado. Ver, por exemplo, G
UIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia.
Porto Alegre/Rio de Janeiro: Editora da UFRGS/Contraponto, 1999.
38
Cf. KIELING, César. Utopia e identidade em Terra Estrangeira. op. cit.
39
Cf. SCHRADER, Paul. Notes on film noir. in: GRANT, Barry Keith (ed.). Film Genre Reader II.
Austin: University of Texas Press, pp. 213-226.
43
terra estrangeira
setting
40
ou conflitos, mas a um clima e um humor que tomou conta de parte da
cinematografia norte-americana nos anos 30 e 40. Suas influências, que estão
justamente por trás deste clima e deste humor, são: i) a desilusão da guerra e do pós-
guerra; ii) uma necessidade por parte do público de um maior “realismo” no
tratamento dos temas – a desilusão do pós-guerra havia feito o artificialismo dos
filmes de Hollywood perder parte de seu encanto; iii) a influência expressionista, que
veio principalmente com a imigração de cineastas alemães, como Fritz Lang e Billy
Wilder, para os EUA; iv) uma nova escola de escritores e roteiristas que davam ênfase
a temas mais duros e austeros e menos ao heroísmo, ao romantismo, à redenção. Tudo
isso fez com que parte do cinema de ficção norte-americano (e Paul Schrader
considera a melhor parte deste cinema) se tornasse mais sombrio, suas luzes mais
escuras, seus temas mais fatalistas e o tom geral mais desesperançoso. Os
personagens são mais cínicos, alguns entre eles mais corruptos, enquanto outros
recebem um papel de mártir
41
, sofrendo as desgraças de uma sociedade opressiva e
implacável sem no entanto estarem caracterizados simplesmente como vítimas,
inocentes ou não.
Há, segundo Schrader, também uma estilística específica: atração pela noite (temos a
impressão, segundo observação do autor, de que se a luz alcançar os personagens,
eles fugirão da cena como Conde Drácula do sol); linhas oblíquas e verticais – como
no Expressionismo, e ao contrário da tradição de Griffith e Ford que preferiam as
linhas horizontais; ao ator e ao setting são dadas a mesma ênfase de luz – o que cria
um clima fatalista, desesperançoso; não há nada que o protagonista possa fazer, a
cidade nega seus mais veementes esforços; a tensão composicional é preferível à ação
física; presença da água – chuva, docas e piers; irreversibilidade dos fatos passados,
destino predeterminado, desesperança que a tudo engloba; complexidade cronológica,
de modo a reforçar a desesperança e a sensação de tempo perdido. Tudo isso tem
muito a ver com o clima de Terra Estrangeira neste momento e com seus
personagens, sobretudo Alex, a mulher “fatal” responsável pelos acontecimentos
complicadores, e com Paco, espécie de mártir a cumprir fatalisticamente um destino
40
Em inglês, tempo ou lugar particular no qual uma peça, livro ou filme se passa. C.f. Macmillan
Engllish Dictionary; cd-rom.
41
Cf. ORR, John. Cinema and Modernity. Cambridge: Polity Press, 1993, pp. 162-163.
44
terra estrangeira
que já foi anunciado e do qual ele não pode escapar. Neste momento, perante o
desenrolar dos acontecimentos, os personagens parecem ficar “menores”, o mundo
fica mais opressivo, as esperanças de saída surgem para serem logo em seguida
frustradas.
Ao chegar em Portugal, Paco não recebe a visita do contato de Igor que pegaria a
mercadoria, ao contrário do que havia sido informado. Enquanto Paco espera
impacientemente sua chegada, este contato, que é Miguel, é assassinado. Não vemos
a cena, mas ficaremos sabendo, no momento em que Paco vê o corpo, que ele está
morto. Este, com a ajuda de Loli, um angolano seu vizinho, vai até o apartamento de
Miguel, procurar o contato que não apareceu. De longe ambos avistam a polícia, e
enquanto Loli permanece afastado do local, Paco adentra o prédio e procura entre as
caixas de correspondência o número do apartamento de Miguel: 2B. Enquanto sobe, a
polícia desce com um corpo em uma maca. Paco, assustado, esbarra nos policiais que
a carregam, derrubando diversos papéis que haviam pertencido a Miguel. Continua
subindo, e se dá conta assustado que é do apartamento 2B que o corpo de morto havia
sido retirado.
Descendo as escadas, ele recolhe um papel esquecido pela polícia, justamente um
cartão d’A Musicóloga no qual Pedro havia escrito o endereço do apartamento que
emprestara a Alex quando ela quis abandonar Miguel. Paco vai então procurar a moça
– acreditando tratar-se de um rapaz – sua única esperança de descobrir para quem
afinal ele deve agora entregar a mercadoria que trouxe do Brasil.
Paco encontra a moça e entra no apartamento, perguntando pelo Alex. Ela tem uma
arma e, assustada depois da morte de Miguel, diz que não o conhece e ameaça o
rapaz. Bate a porta na cara dele apesar de seus apelos desesperados para que o ajude.
Em seguida ela olha pelo olho mágico e, vendo que Paco ainda está lá, abre a porta.
45
terra estrangeira
Coloca a arma na sua própria têmpora e a dispara. Pedro, porém, havia retirado a
primeira bala do pente.
Estas seqüências de acontecimentos, e os planos opressivos e escuros com o qual eles
são abordados, remetem muito imediatamente, a meu ver, ao film noir. Temos ainda,
segundo César Kieling, elementos de roteiro característicos e bem evidentes do estilo,
como a presença do violino e da estatueta barroca que “têm a função de ocultar
perigosas riquezas de forma similar ao que ocorre no film noir O Falcão Maltês (John
Houston, 1941)”
42
.
E temos também “o que poderia se chamar de epílogo do filme, mostrando o destino
do objeto de cobiça entregue a um violinista cego, terminando com as pedras
pisoteadas por transeuntes desatentos, quase uma demonstração da inutilidade dos
riscos implicados na sua busca”
43
. Como, segundo Paul Schrader
44
, os filmes noir se
referem menos a um gênero de história do que a um estilo, é preciso ainda atentarmos
para o desespero que caracteriza Paco e Alex, a situação de desesperança em que
ambos se encontram e que é mostrada com clareza, simultaneamente, pelo olho
mágico, através do qual vemos o rapaz, num gesto aflito, passando a mão pelo cabelo
e, logo em seguida Alex, que abre a porta e pratica sua tentativa de suicídio mal
sucedida. Além disso, nestas cenas descritas, temos uma atenção da câmera à noite e
às sombras como ainda não havíamos visto anteriormente em Terra Estrangeira.
Em seguida a sua tentativa de suicídio, porém, o plano se enche de luz. Paco e Alex
estão sentados numa falésia, de dia, olhando para o mar que se encontra diante deles.
Alex explica:
42
KIELING, César. Utopia e identidade em Terra Estrangeira. op. cit. p. 50.
43
KIELING, César. Utopia e identidade em Terra Estrangeira. op. cit. p. 95.
44
Cf. SCHRADER, Paul. Notes on film noir. op. cit.
46
terra estrangeira
Você não tem nem idéia de onde você está, né? Isso aqui é a ponta da Europa. Isso
aqui é o fim! Coragem, né? Cruzar esse mar há 500 anos atrás... É que eles achavam
que o paraíso estava alí, ó (apontando para o horizonte). Coitados dos portugueses...
acabaram descobrindo o Brasil.
O casal espera a chegada de algum contato para entregar o violino. É Paco, na
verdade, que acredita esperar, pois graças a um telefonema de Alex para Pedro
saberemos que ela o está despistando enquanto seu amigo português pega a
mercadoria no hotel em que Paco está hospedado. A noite chega e a moça aproxima-
se do rapaz. Ouvimos um jazz de Miles Davis (que Miguel gostava) e imaginamos
então que, enquanto seduz Paco, Alex deve estar na verdade pensando em Miguel. No
dia seguinte ela tentará abandoná-lo lá mesmo, na ponta da Europa, e voltar para
Lisboa sozinha, como se nada tivesse acontecido entre ambos. Paco está, mais uma
vez, entregue a seu próprio destino, e decepcionado com a falta de solidariedade da
moça ele se choca ao saber que seria deixado naquele lugar. Alex é, nesse momento,
uma femme fatale bastante aparentada àquelas dos filmes noir. Porém, veremos, ao
longo do filme, esse caráter se diluir, na medida em que ela se mostra mais romântica
e vulnerável. Alex é uma espécie de femme fatale degradada, na medida passa a não
poder corresponder às determinações mais típicas do personagem típico dos filmes
noir, diluindo-se conforme avançamos no filme. O espírito da degradação está
presente como um clima em Terra Estrangeira, como uma espécie de cultura que se
dilui até se esvanecer. Nada é original, nada existe em sua forma pura: temos um
clima da degradação da cultura que atinge desde o estilo noir até os desejos eruditos
de Paco e Miguel, culminando no pisoteio de diamantes que, talvez por serem falsos,
parecem se quebrar.
Ainda em Cabo Espichel a imagem de Paco é antecedida por um símbolo religioso. A
câmera focaliza uma enorme cruz em um pátio, movimenta-se, e nos mostra Paco
abaixo dela. Enquanto Alex fala ao telefone com Pedro, Paco continua ao pé da cruz.
Numa cena anterior mais evidente, ainda em São Paulo, temos Paco na sala de sua
casa ajudando Maria a finalizar o vestido que costura para uma cliente. Paco está de
pé com os braços abertos. A cliente entra e comenta: Nossa, Paco. Você está
parecendo o Cristo Redentor!
47
terra estrangeira
De alguma maneira, visa-se estabelecer uma relação entre Paco e Jesus Cristo. Talvez
lhe concedendo o caráter de mártir, que John Orr
45
vê como um elemento recorrente
do filme noir, e que aqui se combina ao fatalismo do destino de Paco, anunciando sua
própria morte no chuveiro, como trajetória a ser cumprida. Ainda em consonância
com o espírito cínico e desesperançoso noir, este “Cristo” não pode ser caracterizado
apenas como vítima, pois comporta ações ambíguas – de resto como os outros
personagens – envolvido que está com contrabando internacional
46
.
Talvez ainda esta associação com Jesus Cristo deva-se a um lado simbólico que Paco
comporta e que o permitiria então expiar, pela sua morte, os pecados na nação
brasileira. Jesus Cristo sofreu e morreu pela humanidade, deixando uma mensagem
religiosa para o futuro. Paco, por outro lado, não parece carregar consigo nenhuma
mensagem, o sentido de sua trajetória parece estar mais associado a uma falta de
sentido, e sua morte não pode inspirar nenhuma lição. Seria então um Jesus Cristo
descrente, sem ensinamentos a passar, cujos planos são de curtíssimo prazo,
individuais e razoavelmente modestos (ver a cidade que sua mãe não pode ver antes
45
Cf. ORR, John. Cinema and Modernity. op. cit. pp. 162-163.
46
Apenas para deixarmos mais claro como isto funciona em um filme noir, vamos nos remeter a um
exemplo, o filme Vive-se só uma vez, de Fritz Lang (You only live once, 1937). Lá o personagem de
Henri Fonda é um criminoso que ao sair da cadeia casa-se e pretende viver honestamente ao lado de
sua amada. Sobre ele, porém, recaem suspeitas injustas, e ele é condenado à cadeira elétrica. Seu
caráter de vítima de uma sociedade, de uma estrutura da qual ele não tem controle, é evidente, mas
ele ao mesmo tempo é caracterizado como alguém de passado condenável, o que sua familiaridade
com assuntos referentes ao mundo do crime no presente corrobora.
48
terra estrangeira
de morrer), e cuja morte nos remete mais a um vazio de opções do que a um futuro
qualquer, como veremos.
A associação com a religião cristã pode ainda ser vista como um tema que atrai
pessoalmente Walter Salles. Central do Brasil está cheio destas referências, inclusive
na famosa cena da procissão quando Dora (Fernanda Montenegro) passa por uma
catarse e torna-se uma pessoa melhor. Ou no fato do garoto Josué ser filho de um
carpinteiro em busca do pai. Em Central do Brasil, no entanto, o caráter de redenção
via experiência religiosa me parece mais acentuado e menos problematizado, digamos
mais positivo, visto que a via cruxis de Dora faz parte de um processo de
humanização de sua pessoa. Em Terra Estrangeira não há redenção, nem mensagem,
e o “pai” que Paco procura através da viagem de San Sebastian lhe é absolutamente
negado. É interessante que a influência cristã se faz notar também em um autor como
Glauber Rocha, com o qual, como veremos, Walter Salles dialoga.
De volta ao Hotel dos Viajantes, onde está hospedado, Paco fica sabendo pelo senhor
que cuida do local que alguém apareceu enquanto ele não estava e pegou a mala na
qual o brasileiro havia deixado o violino. O rapaz pedira ao senhor que guardasse a
mala e ele, sabendo que Paco esperava ansiosamente a chegada de alguém, acreditou
que deveria entregá-la a tal pessoa. O senhor ainda avisa que alguém telefonou e
deixou um recado:
Houve uma mudança nos planos. Encontre o senhor Kraft hoje à noite, às 21 horas,
no Machado, 17, Atalaia.
Tudo ainda é um tanto confuso, não só para Paco como para nós espectadores, e a
proximidade entre a chegada de alguém que pegou a encomenda e o bilhete parece
mostrar que tudo está se resolvendo. Paco está otimista e acredita que vai receber o
dinheiro.
Igor, acompanhado de Carlos (João Grosso) e Kraft (Tcheky Karyo), sujeitos que
parecem superiores na hierarquia do contrabando em relação ao primeiro, esperam
Paco no restaurante combinado enquanto ouvem um fado. Kraft, um francês, pergunta
a Carlos o que vem a ser o fado. Carlos lhe explica que a palavra fado quer dizer
49
terra estrangeira
destino. Palavra portanto, que remete ao fatalismo, à inexorabilidade, adjetivos que
ganham corpo na voz triste e na expressão condoída da moça que canta.
Quando Paco chega inicia-se uma conversa e então percebemos, surpresos como o
rapaz, que Kraft, Carlos e Igor esperam que Paco lhes entregue o violino, e Paco
parece compreender então que outra pessoa deve estar por trás do desaparecimento da
mercadoria, pois disfarça e acaba por não contar que o violino na verdade já fora
entregue a alguém. Sentado no restaurante com os contrabandistas, entre os quais
surge repentinamente Igor, Paco, inicialmente preocupado, muda de expressão e,
triunfante, começa a se lembrar do texto de Fausto que não foi capaz de recitar no
teste de teatro.
Sinto a coragem, o ímpeto de ir ao mundo. De carregar a dor da terra, o prazer da
terra, de lutar contra tempestades, de enfrentar a ira do trovão. Nuvens se ajuntam
sobre mim, a lua esconde sua luz, a lâmpada se apaga! Eu vou levantar! Que a minha
vida seja o custo!
A fala de Fausto marca uma metamorfose na trajetória de Paco, que passa a tentar
agora controlar o seu destino. Algo também comum nos filmes noir, ou seja, esse
pequeno instante em que o protagonista acredita que é um homem que “faz sua
história”, driblando a inexorabilidade da corrupção, da escuridão e da opressão
urbana que o rodeiam. Esse momento de tentativa de autodeterminação individual nos
filmes noir parece inclusive reforçar o caráter de inelutabilidade do mundo que nos
cerca, configurando-se no filme como um espaço de liberdade que está lá para ser
negado; o fatalismo então se manifesta com maior força. É admirável querer lutar,
mas no fundo não faz diferença. O caráter opressivo do mundo é afirmado com mais
força quando vence o herói que acaba de surgir. A sociedade parece ainda mais
injusta quando esmaga os sonhos de um homem que decidiu ser audaz e decidido. A
50
terra estrangeira
vida de Paco será efetivamente o custo da ousadia, como ele havia previsto. Ele foge
pelas ruas escuras de Lisboa, sendo perseguido pelos contrabandistas.
O clima noir também é dado pelo contraste claro-escuro, pela presença marcante da
arquitetura de Lisboa, pela câmera inquieta que “corre” junto com os personagens, e
pelo barulho dos sapatos nos paralelepípedos da cidade. E ainda, pelo caráter
hierárquico e impassível do mundo do crime – metáfora do “sistema”, impessoal
como uma burocracia, comparável à dominação racional-legal de Estado e empresas
capitalistas e diferente portanto do caráter de comunidade que rege a máfia de origem
italiana no cinema.
Os quadros passam a ter uma composição mais oblíqua e vertical, e alguns closes dos
personagens os mostram levemente distorcidos pela posição da câmera ou pela
incidência da luz de modo a acentuar um caráter expressionista.
Paco chega À Musicóloga para pegar Alex e fugir. Inicialmente agressiva quando
avista o rapaz, tentando manter o controle da situação como esteve até agora, ela
percebe o perigo que corre e chora quando Paco lhe avisa que Igor está em Lisboa.
51
terra estrangeira
Ela lhe conta que não tem como achar o homem para quem deu o violino e parece
enfim fraca e derrotada: Vai embora, cara... Eu vou morrer aqui mesmo... Paco pega
a moça pelo braço e avisa-lhe que vão fugir para a Espanha. Ele está, podemos ver,
tão decidido a ser finalmente dono do seu destino que ainda se lembra de não apenas
fugir, mas também perseguir o objetivo que tinha quando saiu do Brasil: ver San
Sebastian. Mais uma vez, Alex se revela um personagem crucial para a trama, na
medida em que suas ações causam toda uma seqüência de problemas: ela vendeu o
passaporte e não pode passar pela fronteira. Pedro pega um mapa e recomenda-lhes
uma estrada secundária para chegar a Espanha. Dá também seu carro e dinheiro para
o casal, explicitando no diálogo de despedida com Alex o lado ambivalente de seu
personagem, artista mas também ligado ao contrabando, alguém que deseja evadir-se
pela arte mas que tem na verdade responsabilidades perante a situação concreta de
sua vida e da de Alex:
Eu tenho a ver com isto. É minha culpa também. Eu estou farto disso. Eu estou farto
de realidade. Eu quero é ficção. Eu quero é voltar para os meus livros. Vai-te
embora, vai-te embora... (...) O Igor é assunto meu. Eu resolvo o assunto do Igor.
Dentro do carro de Igor, Paco e Alex partem rumo à San Sebastian e inicia-se uma
parte de Terra Estrangeira que o autor César Kieling vê como influenciada pelo road
movie
47
.
Annie Goldmann analisa alguns filmes que podemos entender como pertencentes ao
chamado road movie, como Easy Rider (Dennis Hopper, 1969) e Paris, Texas (Win
Wenders, 1984)
48
. Trata-se, para a autora, de filmes nos quais o mundo perdeu a
realidade, esvaziou-se de sentido e que não são mais racionalizáveis. O deslocamento,
portanto, traz a marca desta falta de contexto, do abandonar-se a nada, do vazio
existencial. São filmes que se caracterizam por uma ausência de história, pela
dissolução da consciência do sujeito. A viagem em si é o que importa, e durante a
trajetória dos personagens não haverá nenhum momento de felicidade, apenas o
enorme mal estar de ver-se rompido com a comunidade humana e consigo mesmo
49
.
47
KIELING, César. Utopia e identidade em Terra Estrangeira, op. cit. p. 13.
48
Cf. GOLDMANN, Annie. L’errance dans le cinéma contemporain. Paris: Henri Veyrier, 1985.
49
Cf. GOLDMANN, Annie. L’errance dans le cinéma contemporain. op cit. pp.14, 16, 59, 121.
52
terra estrangeira
Seria mais uma citação um gênero da cultura de massa cultuado e, dessa forma,
colocado numa condição de arte erudita? A meu ver, não temos estes elementos
desenvolvidos suficientemente de modo que se possa aproximar Terra Estrangeira ao
road movie. Se há mesmo uma tentativa de abordagem do filme de estrada, ela
permanece num nível superficial, inclusive em decorrência da aproximação em
relação aos outros gêneros abordados anteriormente durante o filme e que a meu ver
colaboram justamente para a construção de um mundo repleto de história e sentido
(ainda que numa chave da falta de sentido): inicialmente uma espécie de drama
histórico, “colado” à realidade brasileira de um determinado período, e depois um
film noir, ambos gêneros que tentam dar justamente um fundo racionalizável ao
mundo que envolve os personagens. As imagens realizadas em São Paulo, como
temos visto, também constroem uma realidade dotada de sentido e de história, e os
personagens são impulsionados à ação em decorrência justamente deste contexto
mostrado. Em Portugal, o film noir funciona de modo a dotar a realidade de novos
conteúdos que estão longe de serem “irracionalizáveis” – são, ao contrário, patentes e
observáveis: o mundo é escuro, corrupto, opressor, a cidade é impenetrável e está
repleta de pessoas ambíguas. O protagonista também é corruptível, mas tentou ser
herói, terminando como vítima. Há algo maior que a todos oprime que pode inclusive
ser visualizado nas imagens de tom noir.
A cidade de Lisboa, que será abandonada, parece ser efetivamente um lugar com o
qual os personagens em trânsito não têm vínculos. Paco está nela de passagem (para
San Sebastian) e nada em Alex nos dá a impressão de que algum motivo especial a
prenda lá. Ambos estão disponíveis para a mudança. Na verdade, o casal não tem
vínculo com lugar nenhum, nem com o Brasil. Ele não quer voltar para seu país de
origem e nem sente saudades ou nostalgia, como dirá:
Voltar para o Brasil? Eu não vou voltar para o Brasil! Eu não quero voltar para o
Brasil! Eu não tenho nem como voltar para o Brasil!
Ela, durante a viagem, manifesta algum desejo de voltar para casa, mas é um desejo
tão pouco fundamental que ela nem sabe o que seria sua casa, ou seja, ela não tem um
lugar para onde efetivamente queira voltar, algum lugar que cumpra a função precisa
de lar:
53
terra estrangeira
Paco – Onde é que é a tua casa?
Alex – Boa pergunta. Sei que aqui não é, né? Sei lá, viu? Moema, Duque de Caxias,
Mooca... Acho que eu ficava feliz até se morasse debaixo do Minhocão, viu?
Mas é importante notar que ambos precisam ir embora e decidem efetivamente para
onde vão. Por isso, ao contrário do que Annie Goldmann descreve como um elemento
do road movie, vemos aqui que a viagem está razoavelmente associada a uma opção
consciente, a um ato de vontade, ainda que impulsionado pelas contingências do
destino. Não se trata de um “abandonar-se” dos personagens ao sabor da estrada, mas
de uma trajetória dotada de planos, objetivos e inclusive de um mapa. A viagem em si
não é fundamental, ao contrário do que vemos nos road movies, mas sim aonde ela os
leva. Além disso, as seqüências dentro do carro, desde que abandonam Lisboa até o
momento em que param para comer na fronteira, duram pouco tempo em relação à
duração total do filme, e não me parecem suficientes para caracterizar uma
aproximação ao road movie. Fora do carro, no restaurante, o noir volta a dar o tom.
Existe um clima que de alguma forma nos faz lembrar o Profissão:Repórter de
Michelangelo Antonioni: personagens disponíveis, o contato que não acontece, a
cidade que é abandonada e na qual não são formados vínculos, uma certa
espacialidade, ampla e aberta, que existe em Antonioni e também na praça na qual
Paco quase é abandonado, a viagem que passa por lugares que dão uma certa
impressão de abandono, o pedido de informação para o camponês, a mulher sentada
de costas para o motorista no carro. Trata-se, em ambos os casos, não de elementos
do road movie, mas de um clima de fatalidade e disponibilidade, uma errância
motivada, uma sensação de que os personagens estão caminhando para seu destino,
naturalmente trágico. Paco e o personagem de Jack Nicholson podem ser
efetivamente aproximados neste sentido.
Em oposição ao que parece ser um traço característico do road movie, a viagem em
Terra Estrangeira parece justamente dotar de algum conteúdo a vida dos
personagens, mais uma vez em dissonância com o road movie tal como Annie
Goldmann o concebe. A de Paco porque teve como impulso uma tomada de decisão
como não se tinha visto até então, cujo start foi dado pela lembrança do texto de
54
terra estrangeira
Fausto. A vida de Alex, por sua vez, é finalmente invadida por um conteúdo feliz. Ela
envolve-se com Paco novamente, mas dessa vez estabelece um vínculo amoroso com
ele, perdendo sua postura cínica.
Quando ambos fazem uma pausa na viagem para comer num pequeno restaurante,
pela primeira vez ela mostra-se contente, cantando Vapor Barato, de Caetano Veloso,
babando vinho e sorrindo.
Assim, talvez Terra Estrangeira tenha uma necessidade de diálogo com os “gêneros”
mas as características históricas destes, mais especificamente dos filmes de estrada,
não são levadas às últimas conseqüências. Os estilos e gêneros cinematográficos, a
meu ver, comportam potencialmente uma estrutura mental, uma abordagem em
relação ao mundo observável, quase uma atitude ética. Se há um road movie em Terra
Estrangeira, ele permanece apenas superficialmente desenvolvido. E quando os
estilos e gêneros são esvaziados, perde-se justamente este fio que os conecta a uma
interpretação de mundo e que é o que os dotam de permanência e integridade
50
.
50
Fredric Jameson, por exemplo, analisa O Iluminado (The Shinning, Stanley Kubrick, 1980) como
pertencente a um subgênero antigo, o da história de fantasma. E mostra todo o conteúdo, o que
chamamos aqui de atitude ética, que este subgênero comporta: a relação do fantasma com uma casa
específica – invariavelmente burguesa –, que transmite uma idéia de culto dos antepassados, do apego
passadista à ancestralidade e da nostalgia de uma época em que as pessoas sabiam seu devido lugar
(disposições sentimentais que neste filme específico são vistas como possessão e que levam à
loucura: “O Jack Nicholson de O Iluminado não está possuído pela maldade em si nem pelo
‘demônio’ ou alguma força oculta semelhante, mas simplesmente pela História, pelo passado
americano”). J
AMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p.93.
55
terra estrangeira
De qualquer maneira, podemos dizer que, no que se refere ao film noir, trata-se
provavelmente de uma homenagem à este importante gênero do cinema norte-
americano, a um só tempo cultura de massas – pois produto de um sistema industrial
do país que mais e melhor desenvolve produtos culturais para consumo em larga
escala – mas que também confere erudição a Terra Estrangeira na medida em que
promove a citação de um gênero hoje cultuado por cinéfilos e amantes conhecedores
da arte. Por isso a meu ver não cabe aqui o diagnóstico tão unilateral do cineasta
Andrei Tarkovski, na medida em que gêneros da cultura de massas se prestam muito
facilmente a citações cultas: “Qualquer conversa sobre ‘gênero’ no cinema refere-se,
em regra, às produções comerciais – comédias de situações, filmes de bangue-bangue,
drama psicológico, melodrama, musicais, filmes policiais, de terror ou de suspense. E
o que esses filmes tem a ver com a arte? São produtos para o consumo de massas. E,
infelizmente, são também a forma em que o cinema hoje existe em quase todo o
mundo, uma forma que lhe foi imposta de fora, e por razões comerciais. Só há uma
maneira de conceber o cinema: poeticamente. Só através dessa abordagem é possível
resolver o paradoxal e o irreconciliável, e fazer com que o cinema se transforme no
meio de expressão ideal para as idéias e os sentimentos do autor. A verdadeira
imagem cinematográfica edifica-se sobre a destruição do gênero, sobre o conflito com
ele. E, neste caso, os ideais que o artista aparentemente busca expressar não se
prestam, sem dúvida alguma, às restrições dos parâmetros de um gênero”
51
.
O cinema brasileiro recente não tem recorrido às construções ostensivamente
“genéricas”, a não ser talvez com a realização de comédias românticas tais como
Bossa Nova (Bruno Barreto, 2000) ou alguns poucos filmes policiais como Bellini e a
Esfinge (Roberto Santucci, 2001). No caso de Terra Estrangeira vejo, porém, tratar-
se de um desejo de estabelecer vínculos com a história do cinema, de homenagear
estilos que têm efetivamente uma sagacidade na visão de mundo construída, de
desenvolver citações, como o foram as de Fausto e as históricas (sebastianismo,
colonialismo, etc), ou seja, de inserir o filme no âmbito da história de arte. Nesse
sentido, para falar de um aspecto popular do Brasil – as condições desterritorializadas
e degradadas de uma classe média baixa premida pelas circunstâncias objetivas de seu
51
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.182.
56
terra estrangeira
país de origem –, Terra Estrangeira vale-se da cultura erudita. Ela confere dignidade
e idealismo aos personagens populares, no sentido de que suas ambições artísticas
estão colocadas como legítimas. Nesse processo, gêneros como o film noir, que
remetem a uma cultura de massas, são também utilizados como uma cultura erudita,
atualizando a idéia de popular a partir da abordagem de gêneros cinematográficos e
da citação a autores cults como Win Wenders, Werner Herzog e Glauber Rocha.
Temos falado sobre elementos de Terra Estrangeira que o ligam a uma abordagem do
passado. A presença de certo espírito português, a discussão sobre o passado colonial
(que pode explicar o fato de Paco levar pedras preciosas para Portugal, e não outro
contrabando mais “moderno”, como drogas, armas ou mulheres), a melancolia sonora
através da música de Wisnik e do barulho do rebocador apitando
52
. Podemos notar a
presença de outro elemento do passado: as referências que Terra Estrangeira faz ao
Cinema Novo brasileiro.
Inicialmente é preciso dizer que não encontraremos em Terra Estrangeira, ou na
maior parte dos filmes realizados a partir dos anos 90, a ênfase na reflexão política,
conjugada a uma reflexão estética, que impulsionou filmes como Vidas Secas (Nelson
Pereira dos Santos, 1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1963) e
São Bernardo (Leon Hirszman, 1971). O engajamento político e estético
autoproclamado, a pretensão de transformar a realidade social, a divisão do campo
cinematográfico entre os que fazem arte e os que fazem produtos comerciais e
populistas (acusação que faziam os pertencentes ao Cinema Novo a filmes como O
Pagador de Promessas [1962], de Anselmo Duarte), são discussões que estão fora de
moda e até mesmo causam embaraço entre artistas e intelectuais ultimamente.
Segundo Jean-Claude Bernardet, no cinema dos anos 60 existia “uma ligação e uma
preocupação com uma proposta política que era fundamental para a sobrevivência
52
Segundo Paulo Menezes, “É curioso como a sensação do apito de um navio quase sempre nos
remete a uma partida e não a uma chegada. Talvez aí resida sua característica mais melancólica, pois
o sair para o mar carrega consigo sempre o peso de uma grande indeterminação: a dúvida da
possibilidade de um retorno, a incerteza de se conseguir voltar”. M
ENEZES, Paulo. À meia-luz –
cinema e sexualidade nos anos 70. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 98.
57
terra estrangeira
ideológica do movimento; esta proposta está absolutamente ausente nos cineastas de
hoje”
53
.
No entanto pode-se notar algumas referências ao Cinema Novo, principalmente a dois
filmes de Glauber Rocha: Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe. Estas
referências podem ser vistas em seqüências de Terra Estrangeira que retomam
momentos chaves do cinema glauberiano.
Em Terra em Transe, o personagem principal, Paulo Martins (Jardel Filho), é poeta,
assim como Paco Eizaguirre sonha em ser também artista. O país imaginário deste
filme, que funciona como uma metáfora condensatória dos problemas pelos quais
passam as sociedades latino-americanas, chama-se Eldorado, como o paraíso
perseguido e depois rejeitado por Lope de Aguirre. Mais importante, não podemos
esquecer a seqüência do casal Paulo e Sara (Glauce Rocha) atravessando a barreira
policial, presente no filme de Glauber Rocha e retomada por Walter Salles. Em Terra
em transe os personagens fazem-no como resultado de desilusões políticas e
incertezas quanto ao futuro de Eldorado. Paulo dirige e é alvejado, e enquanto delira
moribundo, conta a história que dará início à narrativa do filme.
Em Terra Estrangeira é Alex, a mulher, que toma a decisão de furar a barreira
policial. Paco já está moribundo a seu lado, como conseqüência de uma desastrosa
trajetória individual inserida e em boa medida determinada por um contexto histórico
específico.
53
NAGIB, Lúcia (org.). O cinema da retomada – depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo:
Editora 34, 2002, pp. 16-17.
58
terra estrangeira
Na seqüência final de Deus e o Diabo na Terra do Sol vemos o vaqueiro Manuel
(Geraldo Del Rey), liberto das influências alienantes da religião e da violência, correr
num travelling através da caatinga sob o coro que utopicamente anuncia: o sertão vai
virar mar, o mar vai virar sertão. O plano da caatinga é então substituído pelo mar, e
escutamos a música erudita e nacionalista de Heitor Villa-Lobos. Em Terra
Estrangeira, também num travelling, vemos um carro correndo pelas estradas da
Europa, levando Alex e Paco que está prestes a morrer, mas, em relação ao filme de
Glauber Rocha, correndo na direção contrária (da direita para a esquerda, direção
aliás não usual no cinema).
A presença do cinema de Glauber Rocha, portanto, faz-se notar em Terra
Estrangeira, mas agora a discussão que havia no pré-golpe sobre a possibilidade de
revolução (o sertão vai virar mar) transforma-se em desânimo diante das incertezas
quanto ao futuro. Não há o plano do mar, que funciona como um futuro qualquer, e a
esperança da transformação social está ausente. Esperança, hope, resume-se a um
outdoor de calcinhas ao lado do Viaduto Minhocão. A referência ao Cinema Novo
torna-se nostálgica porque lhe falta esperança e também a presença de algo que está
por vir. É o que a morte de Paco parece nos anunciar – ou melhor, não anunciar, pois
ela nada antecipa. René Gardies escreve sobre os personagens de Glauber Rocha: “O
herói glauberiano será o homem da passagem. Com ele morre um mundo, um outro
toma forma”
54
. Paco morre sem que nenhum outro mundo possa ser vislumbrado;
nem a mera possibilidade da existência de uma outra coisa qualquer está presente.
Ainda que Glauber Rocha cale-se sobre o que está por vir, silenciando-se sobre o que
há entre os planos do sertão e o do mar e prevendo apenas que algo virá (pensando
aqui em Deus e o Diabo na Terra do Sol), em Terra Estrangeira não temos nem esta
54
BERNARDET, Jean-Claude (org.), GOMES, Paulo Emílio Salles (org.). Glauber Rocha. Coleção
Cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, vol. I. p. 50.
59
terra estrangeira
previsão. E ainda que Alex permaneça dizendo, diante da figura moribunda de Paco,
que eles estão indo para casa, a música Vapor Barato colabora para um sentimento de
desistência:
Seria a casa a cidade de San Sebastian? Há, acredito, um vislumbre de utopia possível
no carro que corre em direção à capital basca, uma utopia que também é entrevista na
forma como Alex, diante da visão do barco encalhado na praia, abraça Paco e decide
satisfeita: Vamos embora para San Sebastian, Paco. Seria, porém, uma utopia
invertida em relação ao paraíso imaginado pelos conquistadores da era das
navegações, que acreditavam que ele estivesse localizado no Novo Mundo. Mas esta
utopia de San Sebastian, como saberemos, não se realiza. O casal provavelmente não
chegará ao país basco.
Também não vimos Manuel, o vaqueiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol, chegar ao
mar. Mas ele continua correndo, e o plano seguinte nos mostra um longo travelling do
mar. Glauber Rocha parece saber qual é o ponto de partida e o ponto de chegada para
a transformação, ainda que se cale quanto ao caminho que conduz um a outro. O final
de Terra Estrangeira, ao contrário, não se pronuncia quanto ao futuro, e o caminho
está já de antemão condenado, na medida em que Paco provavelmente não
sobreviverá. A sensação é de uma grande derrota.
A música Vapor Barato também nos remete ao navio encalhado, melancólico porque
não pode seguir viagem nem retornar, impossibilitado de voltar ou ir em frente: vou
descendo por todas as ruas/e vou tomar/ aquele velho navio. Ao mesmo tempo a
música é um “clássico” da MPB dos anos do regime militar, assim como Caetano
Veloso e Gal Costa são figuras chave na cultura brasileira dos anos 60 e 70. Esta
época é retomada também quando Paco pergunta a Alex, durante a viagem de carro,
em que dia estão, ao que ela responde: Hoje é 31. Não. Hoje é primeiro de abril.
60
terra estrangeira
Claro, né? Ia ser o quê? Primeiro de Abril...
55
O que queremos dizer é que o Cinema
Novo, também parte indissociável desta época repleta da imaginação romântica
revolucionária
56
– e por isso uma época de aposta no futuro –, é uma referência
cultuada, mas bastante desenganada. O contexto dos anos 90, de desmanche industrial
do cinema brasileiro e de ressaca da Era Collor, é privilegiado enquanto portador de
sentimentos de desesperança.
Na última cena do filme, que como César Kieling descreve funciona como um
epílogo no qual nós, espectadores, seremos informados sobre o destino das pedras que
Paco trouxe e que Alex fez desaparecerem, vemos um cego tocando violino numa
plataforma de metrô. Alguém derruba o estojo do instrumento, recolocando-o no
lugar. As pedras que caem do estojo permanecem no chão, e são pisoteadas pelos
transeuntes que nada percebem. Algumas se quebram, o que nos dá a entender que
eram falsas.
Temos aqui indiferença, tanto do cego quanto dos transeuntes, quanto ao destino do
contrabando de Paco, o que estimula o sentimento de que a tragédia do rapaz foi em
vão, de que ele sofreu e morreu por nada, mais uma vez em consonância com o clima
nostálgico, melancólico e antiutópico que permeia o filme. E que também pode ser
relacionado ao papel de Paco como um Cristo invertido, cujo sofrimento foi na
verdade inútil e sem sentido. A trajetória e a morte de Jesus Cristo têm sentido como
forma de cumprir a vontade do Pai e de trazer Sua palavra e Seu exemplo para a
humanidade. Paco é alguém que, abandonado pelo Estado, impossibilitado de chegar
a San Sebastian, é privado da figura paterna, e portanto não tem uma origem que lhe
dê identidade nem um fim a cumprir que lhe dê objetivo, o que reforça a falta de
sentido do seu destino.
Segundo Kieling, há também na última sequência “uma alusão às tragédias gregas em
que os videntes eram representados por cegos”
57
. Podemos pensar não apenas nos
videntes, mas também em Édipo, que fura os olhos quando descobre ter matado seu
55
Inicialmente temos a impressão de que ela ironiza o fato de tratar-se do dia da mentira. Porém, se
atentarmos para a dúvida que a cerca quanto ao dia, podemos nos lembrar do Golpe Militar de 1964,
que começou na verdade no dia 31 e caracterizou-se como Golpe realmente no dia Primeiro.
56
De acordo com a interpretação de RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. op. cit.
57
KIELING, César. Utopia e identidade em Terra Estrangeira, op. cit. p. 95.
61
terra estrangeira
pai e casado com sua mãe. E também no narrador cego, como Homero, ou seja,
aquele que conhece em profundidade a história, que pode dar sentido aos
acontecimentos, que sabe mais
58
. O narrador cego no cinema brasileiro está presente
em O Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, e também em Deus e o Diabo
na Terra do Sol, filme no qual o cego acompanha toda a narrativa, um personagem
quase onipresente, cúmplice do narrador. De todas as formas, o que liga estes casos
de cegueira é o fato do cego parecer ser, na verdade, a pessoa dotada de maior visão,
que enxerga melhor do que as outras porque vê por trás das aparências e porque não
se deixa enganar pelo sentido do olhar
59
. Édipo é exemplar porque fica cego como
resultado da uma tomada de consciência – quando ele sabe mais, passa a enxergar
menos. Nosso cego de Terra Estrangeira pode ser visto como alguém que, no seu
alheamento em relação pedras, tem a maior clareza do mundo a seu redor.
A música que ele executa no violino dado por Alex é um fado. O filme se encerra,
portanto, com o som que corporifica o destino, e aqui, ao vermos o fim que foi dado
ao instrumento e às pedras, pisoteadas por transeuntes, mais uma vez temos a
sensação de que esse destino, incluindo toda a trajetória de Paco, é completamente
desprovido de sentido. Não há lição a ser apreendida, não há esperança no futuro
colocada, Paco morreu cumprindo uma trajetória de fracassos, e o contrabando, que o
colocou no caminho de sua trágica história, está incólume, anônimo e destruído em
alguma estação do metrô de Lisboa.
58
O cego como aquele que sabe – porque não se deixa levar pelas ilusões daquilo que se vê – é figura
recorrente, e pode ser vista, por exemplo, no último filme da trilogia Matrix: Neo (um Jesus Cristo
mais bem sucedido e mais óbvio do que Paco) fica cego e consegue derrotar as máquinas.
59
Tema retomado também por Glauber Rocha na figura do Cego Júlio (Deus e o Diabo no terra do
sol), que, “olhando” o sertão, diz a Antônio das Mortes: Nesse sertão grande eu enxergo, no fundo, a
terra vermelha do sangue do Conselheiro (...). Isso eu vejo melhor no meu escuro.
62
terra estrangeira
63
crede-mi
quando thomas mann foi ao ceará
64
crede-mi
Em Crede-mi (Bia Lessa/Dani Roland, 1996) a face do popular está exposta. Temos
um popular ostensivo, ao contrário de Terra Estrangeira, quando víamos um popular
que chamamos “discreto”. Não é possível não sentirmos a presença do que
comumente se entende como povo nas imagens rodadas por Bia Lessa e Dani Roland
no interior do sertão cearense. Não se trata de tematizar o popular. O povo
efetivamente aparece na tela. O filme, no entanto, não procura discorrer diretamente
sobre o povo. Quem esperar alguma informação sobre o elemento popular ou sobre a
cultura popular do interior do Ceará pouco encontrará. O povo aqui desempenha um
papel técnico e artístico, interpretando os personagens que aparecerão no decorrer da
narrativa. E esses personagens não serão personagens populares. O povo não
interpreta a si mesmo, mas interpreta personagens retirados de uma obra literária
erudita.
Na análise de Crede-mi não é possível usarmos o artifício de escondermos uma
possível inabilidade para com o trato do material fílmico nos concentrando no enredo
e na história contada. Pois a história de Crede-mi é por demais simples, e de maneira
nenhuma encerra o que há de mais interessante para se contar, ainda que a montagem
possa torná-la menos imediatamente compreensível. Trata-se de uma adaptação da
narrativa de O Eleito, de Thomas Mann, que por sua vez baseia-se na epopéia
medieval Greogorjus, que por sua vez se inspirou no texto francês Vie de Saint
Grégoire, segundo a edição brasileira da obra
60
. Podemos aqui fazer um esforço de
resumir a história de Crede-mi, já que não vamos nos referir a ela com mais detalhes
no decorrer deste capítulo. É importante dizer, porém, que este enredo apresentado a
seguir não se encontra de tal maneira claro no filme, pelo contrário: a clareza aqui
expressa é fruto do fato de que, para esta pesquisa, assistimos ao filme inúmeras e
inúmeras vezes. É bem possível que o espectador, num contato inicial com o filme,
perca-se na história, confusão que, a meu ver, é resultado, entre outras coisas, da
montagem de Crede-mi, que discutiremos mais a frente.
O Duque Grimald e sua esposa viviam felizes, mas não conseguiam ter filhos. A
Duquesa rezou e pediu a Deus que lhe concedesse a graça da maternidade e, depois de
muito orar, conseguir ver seu desejo realizado. Ela deu à luz não a um mas a dois
60
MANN, Thomas. O Eleito, São Paulo: ARX, 2000, p. 5.
65
crede-mi
bebês, um menino e uma menina. Porém, não sobreviveu ao parto dos gêmeos. O
Duque Grimald era pai mas, ao mesmo tempo, viúvo.
Os dois gêmeos cresceram e, dezessete anos depois da morte de sua esposa, o Duque
se foi também. Na mesma noite, com o pai ainda presente enquanto cadáver, o irmão
procurou a irmã e dormiram juntos na mesma cama, como um casal de amantes.
Viveram como marido e mulher noite após noite, até que a menina, Sibila, ficou
grávida. Os irmãos foram então separados: ele deveria rumar em peregrinação e ela
daria à luz na casa da esposa de um conselheiro do reino, onde seu pecado poderia ser
mantido com discrição.
Durante a viagem, o irmão morre, assassinado por ladrões. Sibila da à luz a um
menino, que coloca em um barco sozinho, junto apenas de uma carta e um manto, e
lança ao mar. Se ele sobreviver, será porque Deus assim o quer. Ela intera-se da
morte do irmão e decide guardar luto eterno. Com a morte de seu pai e de seu irmão,
ela agora é rainha de seu país. Diversos pretendentes vindos de outros reinos
aparecem, mas ela recusa-se a se casar. Entre eles, um nobre que, após muito insistir,
irrita-se com o luto da rainha, e decide casar com ela à força, travando uma longa
guerra.
Enquanto isso, o barco com o recém nascido chega a um vilarejo. O menino é criado
por uma família de pescadores como se fosse um deles, e recebe o nome de Gregório.
Chega o momento de revelar a verdade para o jovem nobre, e ele toma conhecimento
de sua condição. Decide então que deve partir pelo mundo, novamente lançado ao
mar e conduzido pela vontade de Deus.
Dessa maneira, ele aporta num reino no qual se trava uma guerra há anos. Os
moradores o avisam da miséria e violência que assolam o país, e o aconselham a ir
embora, ou então a ajudá-los a defender a rainha. Gregório pede permissão para lutar
pelo reino, e ganha a guerra. Ele e a rainha, apaixonados, casam-se, e vivem felizes.
Até que um dia a rainha encontra entre as coisas de Gregório a carta e o manto que
ela mesma deixou junto a seu bebê abandonado no mar. Descobre então, com horror,
que está casada com seu próprio filho. Logo conta a Gregório o que se sucedeu,
pedindo que ele confirme a história. Gregório, sabendo-se filho do pecado e agora
66
crede-mi
mais uma vez pecador por casar com sua própria mãe, decide errar pelo mundo em
penitência. Ele chega a uma pedra onde vive sozinho por muitos anos. A expiação de
Sibila se dará pelo cuidado constante com os doentes; ela se dedica aos enfermos e
resolve nunca mais se casar novamente.
Depois de muitos anos, em Roma, morre o papa. Os cardeais reunidos não conseguem
decidir quem será o novo papa, e resolvem deixar a decisão para Deus. Um milagre
acontece, e Deus informa que o próximo papa vive há anos numa pedra. Gregório é
então encontrado nas condições descritas por Deus, e é eleito o novo papa, dirigindo a
igreja por muitos anos e sendo considerado um excelente papa.
Esta é a história que nos é contada em Crede-mi. Trata-se de uma narrativa simples,
que tem ar de tragédia grega e que pode ser resumida em poucas linhas: casal de
irmãos tem um filho em pecado que é abandonado ao mar. O filho cresce, defende a
mãe em uma guerra e, sem saber que é seu filho, casa-se com ela. Descobrindo seu
pecado, parte em penitência, e vive muitos anos em uma pedra, até que é escolhido
papa. Ou seja: do maior dos pecadores nasce a mais sublime virtude. Esta história
serve como pretexto para que os realizadores do filme coordenem uma equipe de
atores não profissionais escolhidos entre moradores de cidades do interior do Ceará.
O livro de Thomas Mann trás mais detalhes e nos coloca diante de elementos mais
desenvolvidos que faltam a Crede-mi, de uma psicologia mais elaborada, de eventos
ricamente descritos, e de uma certa ironia em relação ao fato de que, no cristianismo,
um pecador, por maiores que seja seus pecados, sempre pode ser perdoado, e
inclusive chegar a papa. É de maneira sarcástica que Mann comenta o fato de, no
cristianismo, se dar tanto valor ao pecado: o pecado é um caminho para se chegar a
salvação, de forma que o pecador, na verdade, é tratado, nessa religião, com certo
carinho e comoção. Trata-se de um caso limite da lógica do perdão, que, a meu ver,
na obra de Thomas Mann, perde um pouco seu caráter de ensinamento para se
aproximar do deboche. Em Crede-mi, o conteúdo da obra é reelaborado de maneira
quase pueril, transformando-se de certa forma num drama estereotipado. É possível
dizer que, no que diz respeito àquilo que nos remete à erudição da obra de Mann,
Crede-mi é inevitavelmente inferior ao livro, perdendo a fina ironia. Isso é comum
em adaptações cinematográficas, principalmente de livros que devem muito ao estilo
67
crede-mi
de seu autor. André Bazin, em Pur un cinéma impur
61
, discorre sobre as adaptações
cinematográficas de obras literárias, que quase sempre são consideradas aquém do
original que lhes deu origem. Muitas vezes, segundo o autor, uma obra “revela uma
forma tão evoluída de literatura que seus heróis e a significação de seus atos
dependem intimamente do estilo do escritor”
62
, algo que naturalmente um filme terá
dificuldade de exprimir, já que se trata de um meio diferente, que tem a
especificidade de recriar “as condições de uma autêntica e grande arte popular”
63
. Ele
lembra que as adaptações não são novidade na história de arte, e cita a influência da
escultura na pintura, assim como a do cinema na própria literatura
64
. Além disso,
considera que, mesmo nos casos em que o filme é inferior à obra literária, existe
sempre o aspecto positivo de fazer com que o espectador de cinema se interesse em
ler o livro após ter contato com o filme
65
e que, de maneira nenhuma, a literatura ou o
cinema tem a perder com as tentativas de adaptação
66
. Por ser um meio artístico
diferente da literatura, é preciso efetivamente “adaptar” a escrita ao cinema: quanto
mais a adaptação cinematográfica desorganiza o equilíbrio que existe na obra
literária, mais é necessário um talento criador para reconstruir um novo equilíbrio,
dessa vez adequado ao meio cinematográfico
67
. Ou seja, filme e livro são, segundo
Bazin, formas de expressão diferentes, e, por isso, devem expressar o mesmo objeto
de maneira diferente, mantendo a especificidade de sua linguagem.
Em Cineastas e Imagens do Povo, Jean-Claude Bernardet comenta as relações que se
estabelecem entre os filmes que ele escolheu para analisar e suas análises
propriamente ditas. E ele tem a impressão de que, no caso de certas análises, “os
textos permanecem aquém da potencialidade dos filmes”
68
. Pois Crede-mi causa-me a
mesma impressão. Naturalmente, em qualquer análise fílmica, o que se escreve não é
de maneira nenhuma o que se vê. O ato de assistir um filme nos causa sensações,
61
BAZIN, André. Pur un cinema impur. In: Qu’est-ce que le cinéma. Paris: Éditions du Cerf, 2002.
62
BAZIN, André. Pur un cinema impur. In: Qu’est-ce que le cinéma. op. cit. p. 82.
63
BAZIN, André. Pur un cinema impur. In: Qu’est-ce que le cinéma. op. cit. p. 85.
64
BAZIN, André. Pur un cinema impur. In: Qu’est-ce que le cinéma. op. cit. p. 88.
65
BAZIN, André. Pur un cinema impur. In: Qu’est-ce que le cinéma. op. cit. p. 92.
66
BAZIN, André. Pur un cinema impur. In: Qu’est-ce que le cinéma. op. cit. p. 94.
67
BAZIN, André. Pur un cinema impur. In: Qu’est-ce que le cinéma. op. cit. p. 97.
68
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. op. cit. p.212.
68
crede-mi
pensamentos, emoções, que não são traduzíveis por palavras, nem por qualquer outra
manifestação do intelecto e da criatividade humana. Segundo Michel Foucault: “Não
que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão se
esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que se
vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se
está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem
não é aquele que os olhos descortinam, mas aqueles que as sucessões de sintaxe
definem”
69
. No caso de Crede-mi, há algo que me faz ficar sempre insatisfeita com a
interpretação que estou em vias de empreender. Aquilo que se passa na tela é por
demais particular, causa sensações ainda mais intraduzíveis, desperta idéias que, para
mim, estão mais próximas ainda do sentir do que do racionalizar. Este é um
mecanismo, na verdade, próprio ao cinema, segundo as considerações de Maurice
Merleau-Ponty em O cinema e a nova psicologia, texto no qual o autor nos mostra
que, nos fenômenos da visão, perceber e sentir é mais forte do que racionalizar: “é
mediante a percepção que podemos compreender a significação do cinema: um filme
não é pensado e, sim, percebido. Eis porque a expressão humana pode ser tão
arrebatadora no cinema: este não nos proporciona os pensamentos do homem, como o
fez o romance, durante muito tempo; dá-nos a sua conduta ou o seu comportamento, e
nos oferece diretamente esse modo peculiar de estar no mundo, de lidar com as coisas
e com os seus semelhantes, que permanece, para nós, visível nos gestos, no olhar, na
mímica, definindo com clareza cada pessoa que conhecemos”
70
.
No que se refere ao estudo aqui empreendido, há uma imagem do povo em Crede-mi?
Sim, sem dúvida ela está lá. Da mesma forma, há um conteúdo erudito que perspassa
a obra? Parece evidente que sim, dada a escolha da obra de Thomas Mann como guia
a conduzir as imagens. E não apenas aí, mas também na forma erudita de montar o
filme, que o torna praticamente inacessível aos populares que o representam. No
entanto, falar sobre a visão do popular e do erudito que estão no filme, ao mesmo
tempo em que parece longe de esgotar esta visão, não nos dá pálida idéia do que é
este filme sui generis. Porque este povo está na tela de uma maneira muito específica,
69
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes: 2000, p.12.
70
MERLEAU-PONTY, Maurice. O cinema e a nova psicologia. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência
do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp.115-116.
69
crede-mi
apropriando-se da cultura erudita também de modo muito particular, sempre
naturalmente sob a direção dos realizadores, cujo trabalho de orientar e construir os
populares-atores e de dar um conteúdo diferente às manifestações populares não
procura ser escondido a favor de um “espontaneísmo” do povo.
Alguns componentes da definição do popular e de suas práticas artísticas estão
difundidos em larga escala na sociedade e têm longa permanência em discursos sobre
a cultura: a cultura popular como ligada a regionalismo, primitivismo, passado
ameaçado de se perder, como ato da produção coletiva, frequentemente ingênua (e aí
o nome arte naïve), como produção carregada de purismo, de tradição, cujo processo
de criação está associado ao “fazer” e não ao “saber”. Parece recorrente a valorização
do popular a partir destas características elencadas, ou seja, pelo seu papel na
manutenção de tradições e práticas que, sem ele, estariam perdidas em meio às
transformações do mundo industrializado e urbano. Por outro lado, nem sempre a
palavra popular tem uma acepção positiva. Popular pode assumir uma conotação
pejorativa relacionada, em geral, a baixo nível intelectual e artístico e a atraso.
Marilena Chauí comenta a ambivalência do conceito: “Em decorrência do verde-
amarelismo, dos populismos, do autoritarismo paternalista, freqüentemente
encontramos no Brasil uma atitude ambivalente e dicotômica diante do popular. Este
é encarado ora como ignorância, ora como saber autêntico; ora como atraso, ora como
fonte de emancipação. Talvez seja mais interessante considerá-lo ambíguo, tecido de
ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo
ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambigüidade que o determina
radicalmente como lógica e prática que se desenvolvem sob a dominação”
71
. Nos dois
casos, como reduto da tradição, do “fazer”, do regionalismo, do purismo, ou do atraso
da ignorância, há sempre uma perspectiva de espontaneidade, da ação que é
instintiva, maquinal, irrefletida, natural. Como veremos, não é isso o que se passa em
Crede-mi, já que o povo aqui é dotado de habilidades artísticas que se aproximam da
técnica, do esforço intelectual, que exige treinamento adequado, provavelmente
disponibilizado pela equipe que dirigiu o workshop.
71
CHAUÍ, Marilena, Conformismo e Resistência – aspectos da cultura popular no Brasil. op. cit. p.
124.
70
crede-mi
A dificuldade de análise do filme que estamos relatando aqui não está referida a uma
suposta inacessibilidade do conteúdo, mas a uma dificuldade em acompanhar a
imagem, erudita e fechada em sua montagem, e, principalmente, em expressá-la de
modo racionalizável. Em relação ao conteúdo não há, por exemplo, sentidos ocultos,
ambigüidades. O enredo coordena a narrativa, dá-lhe uma direção segura e às vezes
mesmo limitante, no sentido de que os acontecimentos estão por demais amarrados à
trama central de Thomas Mann. As imagens estão em grande medida fazendo
referência à história que contamos. Em outras palavras, não há dúvida de que o filme
nos conta uma história, cujo conteúdo é simples e que tem um quê de déjà vu, uma
certa imemorabilidade, que pode ser devida ao fato de se referir a “lendas” que
atravessaram séculos e que, como mencionei, tem certa semelhança com o tema das
tragédias gregas. Pode-se pensar logo na história de Édipo, que também casou com a
própria mãe e que se puniu voluntariamente pelos erros não-propositalmente
cometidos. E também em Penélope, que tentava enrolar seus pretendentes enquanto
Ulisses não voltava da Guerra de Tróia. Há algo de atemporal e imemorial na história
de Gregório, que o aproxima do mito e da lenda, e que a princípio choca-se com o
persistente cenário do interior cearense, com o aspecto imediatamente popular dos
atores, tanto na fisionomia quanto na maneira de falar. É como se, enfim,
estivéssemos vendo a encenação de Édipo Rei no sertão, sem que se procure em nada
ocultar o cenário cearense.
Assim como a obra de Mann passa-se numa Europa temporal e localmente mal
definida, mas certamente na Europa, Crede-mi passa-se num nordeste de certa forma
não-localizado, mas com certeza nordeste. Existe, portanto, uma tensão entre a
narrativa imemorial e o sertão. A história não é fruto daquele cenário, como o é, por
exemplo, em Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Estamos mais próximos
daquele nordeste atemporal e alegórico de Deus e o Diabo na Terra do Sol: como se
71
crede-mi
tudo fosse sertão, como se fora do sertão nada existisse, como se o sertão fosse eterno
e imutável.
Ismail Xavier argumenta que muitos dos filmes por ele analisados em Alegorias do
subdesenvolvimento se passam em espaços que “se estruturam como microcosmos
mais ou menos fechados, podendo receber nomeações reveladoras (como o Eldorado
de Glauber, a Boca do Lixo de Sganzerla, o Me Esqueci de Walter Lima Junior) ou
reiterar um traço disjuntivo que sinaliza a deliberada esquematização (como os
espaços vazios de O Anjo Nasceu e de Bang Bang)”
72
. Deus e o Diabo na terra do
sol, apesar de não constar da obra citada, constitui, a meu ver, mais um exemplo do
espaço fechado e alegórico, ao contrário, por exemplo, do que ocorre com o sertão de
Baile Perfumado, cujos limites não estão colocados, que é aberto ao mundo urbano do
cinema, do perfume, do whisky, à vaidade e ao pop. Em Crede-mi temos um sertão
com pouco contato com o mundo “exterior”, fechado em si mesmo como uma
alegoria simultaneamente atemporal e contextual, de forma que o sertão está ali mas
ultrapassa a si mesmo. Segundo Xavier, a dialética fragmentação/totalização está
colocada em cada filme analisado em sua obra, de modo que por vezes temos um
deslocamento em direção à problematização do sentido da alegoria (fragmentação) e
em outras um deslocamento em direção à afirmação plena deste sentido
(totalização)
73
. Em Crede-mi, podemos nos referir a esta dialética alegórica
fragmentação/totalização ou problematização de sentido/afirmação de sentido
justamente no que se refere às imagens do sertão como um espaço no qual são
exacerbados todos os elementos indicativos do sertão histórico e contextualizado –
urbanização precária, sol e calor, casas de barro, ruas de terra, catolicismo “místico”,
etc. – e ao mesmo tempo é dada certa unidade atemporal àquele cenário, tornando-o
totalizante enquanto espaço fechado e encerrado em si mesmo.
Em princípio, uma legenda escrita em tela preta nos informa: “Gravado a partir de
workshops e imagens documentais no interior do Ceará. Inspirado em ‘O Eleito’ de
Thomas Mann”. Legenda importante, que nos revela de imediato ao menos quatro
informações que tentarão conduzir a interpretação das imagens que se seguirão: 1) o
72
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993, p.15.
73
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. op. cit. p.14.
72
crede-mi
local onde se deu as filmagens; 2) o tipo de trabalho (workshop) que levou às cenas
filmadas; 3) a inspiração numa obra literária; 3) a expectativa quanto à visão das
imagens ditas documentais. Legenda também curiosa: mistura “imagens
documentais” com a “inspiração” em uma obra de ficção. Estamos acostumados a ver
ficções “baseadas em fatos reais”, mas não documentos “inspirados” em obras
ficcionais, o que, a meu ver, torna essa legenda bastante interessante: a expectativa
que ela aciona no expectador quanto ao documental e ao ficcional aparece invertida.
Saber que as imagens foram rodadas no interior do Ceará pode levar o espectador a
desde já antecipar-se em relação à visão do popular que surgirá na tela,
principalmente se considerarmos que o espectador de um filme de Bia Lessa, que
permaneceu relativamente à margem do circuito comercial, deve pertencer a um
grupo diferente em quase tudo do grupo dos moradores do interior do Ceará. O
interior do Ceará deve acionar uma expectativa quanto à visão do chamado “Brasil
profundo”, do sertão nordestino, pouco urbanizado, menos desenvolvido, e
provavelmente muito mais popular. Antecipa-se aqui a visão de uma cultura popular,
que, como veremos, será colocada em cena de uma maneira bastante específica e, de
certa forma, incomum.
Da mesma forma, ao anunciar que as imagens foram fruto de um trabalho com
workshop, o filme sugere ao espectador um tipo de relação entre os moradores do
interior do Ceará e a equipe que produziu o filme. É possível pensar que houve uma
interação entre equipe e povo, e que dela nasceu o filme. E que esta interação se deu a
partir de uma relação de aprendizado, treinamento, no qual a equipe ensinou ao povo
como se portar e agir diante de uma câmera de cinema, possivelmente dirigindo-os
inclusive quanto aquilo que o cineasta Chris Marker considera bastante estúpido: não
olhar para a câmera
74
. No caso de Crede-mi, quando estamos no terreno da ficção, os
atores olham ou não olham de acordo com as necessidades do momento (se são
narradores olham, contando a história ao espectador; se são personagens, não olham,
disfarçando a irrealidade da ficção que representam). Nas imagens documentais, as
pessoas olham para a câmera, já que não foram dirigidas pelos realizadores no sentido
74
“Francamente, já se inventou algo mais estúpido do que dizer às pessoas, como se ensina nas
escolas de cinema, a não olhar a câmera?”. G
ILLET, Catherine. Visages de Marker. In: Théoreme –
Recherches sur Chris Marker. Paris: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 2002, p. 75.
73
crede-mi
de evitar esse olhar. De qualquer modo, a assimetria da relação povo/equipe técnica é
evidente, mas, a meu ver, não se dá em prejuízo do elemento popular. Ao contrário,
como veremos, reforça-se a qualidade de sua interpretação perante a câmera.
A informação de que o filme foi inspirado em obra de Thomas Mann, um escritor
erudito, da mesma forma, diz respeito ao espectador que, fora do grupo de filmados,
reconhece naquele o elemento popular. Aqui, ao dar a conhecer sua inspiração
erudita, o filme legitima-se perante esse espectador, aciona uma expectativa quanto à
qualidade do que será visto na tela, e também uma expectativa quanto à importância e
a relevância do material. Essa expectativa, no entanto, funciona quase que
exclusivamente como legitimação, na medida em que o elemento erudito presente na
narrativa de Mann parece dissolvido, desprovido de maiores significações e de sua
possível complexidade, no limite um mero suporte ao desempenho do popular. Não
há, em Crede-mi, exatamente uma interação entre o erudito de Mann e o popular, ou
uma tensão, um embaralhamento de fronteiras, uma transposição ou sobreposição. A
relação aqui é muito pouco dinâmica e, se não soubéssemos que se trata da adaptação
de uma obra de Thomas Mann, podemos dizer que em nada a falta desta informação
faria diferença. A erudição de Crede-mi encontra-se em outro lugar, como já
sugerimos: na montagem de Crede-mi, que o aproxima do cinema de Eisenstein e de
Glauber Rocha, e que pressupõe um processo do qual o povo não participou.
Ao trazer em seus créditos iniciais a informação de que o filme foi gravado a partir de
“imagens documentais”, Crede-mi imediatamente tenta nos direcionar a certa leitura
do filme: aquela que o relaciona a um aspecto da verdade, do “real”, do documento.
Como coloca o autor Brian Winston, na hierarquia da verdade, o documentário
permanece um degrau acima da ficção
75
. A palavra “documentário” remete a um
gênero que está associado, para a maioria dos espectadores, à transposição do “real”,
à busca da objetividade, a uma forma particular de olhar o mundo que procura
transpor com mais fidedignidade a idéia da “realidade”. Pois o documentário tenta, a
meu ver, mais do que a ficção, disfarçar sua irrealidade de maneira mais ostensiva,
não apenas utilizando-se para isso dos mesmos meios da ficção – essencialmente,
75
WINSTON, Brian. Documentary: I think we are in trouble. In: ROSENTHAL, Alan (org). New
challenges for documentary: Berkeley: University of California Press, 1988, p. 22.
74
crede-mi
como mostra Jean-Claude Carrière
76
, a manipulação do tempo – mas também
incorporando um discurso mais ou menos enfático da verdade que tende a influenciar,
no sentido de uma determinada leitura fílmica, mesmo os espectadores menos
ingênuos. Ao assistir a um documentário, em suma, eu penso me aproximar, ao menos
em parte, do mundo que efetivamente existe, do “real” no qual está inserida minha
própria existência. Segundo Bill Nichols, “o documentário tem uma forte relação com
outros sistemas não-ficcionais que juntos criam o que podemos chamar de discurso da
sobriedade”
77
. “O documentário, como outros discursos do “real”, mantém um
vestígio de responsabilidade na descrição e interpretação do mundo como experiência
coletiva, uma responsabilidade que de forma alguma é pequena. E ainda mais, ele
une-se a estes outros discursos (da lei, da família, da educação, da economia, da
política, do Estado e da nação) numa verdadeira construção da realidade social”
78
.
Paulo Menezes considera que o documentário promove uma exacerbação da ilusão de
realidade: “O documentário, ao se apresentar como uma verdade sobre as coisas,
tenta colocar-se como um olho neutro que passaria sobre as coisas e os
acontecimentos, registrando-os sem distorções. Utiliza-se do pressuposto da ilusão de
verdade, para construir a verdade dos fatos que ali são narrados”
79
. Segundo
Menezes, o fato de um filme dizer-se baseado em fatos reais – em Crede-mi, baseado
em imagens documentais – deve ser uma pista de investigação na análise a ser
empreendida, na medida em que essa informação nos diz coisas relevantes, não sobre
a “verdade” das imagens, mas sobre o discurso fílmico
80
.
Existem movimentos cinematográficos e cineastas que procuram tensionar a relação
entre documentário e “real”, tendendo no limite a questionar os princípios mais
positivistas sobre os quais se assenta a relação entre o documentário e o “mundo”.
Um bom exemplo no cinema brasileiro é Iracema, uma transa amazônica, um filme
76
CARRIÉRE, Jean-Claude. Anatomia do tempo. In: A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1995, pp. 103-141.
77
NICHOLS, Bill. Representing Reality – issues and concepts in documentary. Bloomington: Indiana
University Press, 1991, p. 3.
78
NICHOLS, Bill. Representing Reality – issues and concepts in documentary. op. cit. p. 10.
79
MENEZES, Paulo. A questão do herói-sujeito em cabra marcado pra morrer, filme de Eduardo
Coutinho. Tempo Social. São Paulo, vol. 6, n. 1-2, 1994, p. 114.
80
MENEZES, Paulo. A questão do herói-sujeito em cabra marcado pra morrer, filme de Eduardo
Coutinho. op. cit., p.114.
75
crede-mi
que questiona o tempo todo o espectador sobre se aquilo que ele está vendo é ficção,
documentário ou – mais surpreendente – os dois. Mas o mais recorrente é, ao
contrário, uma tentativa de aproximação entre a imagem documental e um suposto
“real”, como fez, por exemplo, o cinema-direto de Primary e Salesman, como faz
Eduardo Coutinho em Santo Forte e João Moreira Salles em Entreatos, como fazem
os documentários mais usuais que vemos na Discovery Channel e na National
Geographic. A meu ver, ao trazer inscrita a palavra documental em seus créditos
iniciais, Crede-mi não nos sugere as tensões mencionadas anteriormente, mas as
reificações mais correntes na relação entre imagem e “real”. O espectador espera, ao
ler as palavras iniciais da legenda, ver no filme uma parte do “real”.
Se é essa relação específica com o “real” que efetivamente Crede-mi sugere em seus
créditos iniciais, não é exatamente isto que veremos na tela no decorrer do filme, ou,
para ser mais exato, não serão cumpridas muitas das expectativas associadas às
formas mais tradicionais de inserção das ditas imagens documentais. A “verdade” e o
““real””, em Crede-mi, aparecem de modo completamente diferente do que se poderia
esperar, pois aparecem dissociadas de seu contexto, sem maiores informações que
expliquem ao espectador do que se trata aquelas imagens, e em grande medida
subjugadas à ficção – no caso, à história de Thomas Mann. Em Crede-mi, ao ver uma
imagem documental, ela quase que não nos sugere nada sobre “real”, pois seu sentido
relaciona-se intimamente àquele conferido pela ficção. Isso não significa que essas
imagens não tenham certo impacto associado ao seu teor documental. Mas a força das
imagens documentais em Crede-mi traduz-se principalmente numa certa visualidade,
numa plástica, e não exatamente no contexto que vêm trazer ao espectador, no seu
caráter explicativo, observador, participativo ou reflexivo, para falar nos termos de
Bill Nichols e sua tipologia documental
81
. Em outras palavras: ao sugerir que o filme
baseia-se em imagens documentais, Crede-mi faz com que o espectador espere
encontrar uma explicação sobre o mundo, uma observação sobre o mundo, ou uma
interpretação sobre o mundo, do tipo que vemos nos documentários mais recorrentes
entre aqueles feitos para cinema e televisão. Em Crede-mi as imagens documentais
certamente se relacionam com o mundo observável, como justificaremos a seguir,
81
NICHOLS, Bill. Representing Reality. op. cit., pp. 32-73.
76
crede-mi
mas não procuram contextualizá-lo, ou seja, não trazem aquelas informações que
fazem parte da expectativa quanto ao filme documental. Nos créditos finais do filme
serão explicitados os contextos das imagens documentais e o local onde elas se
deram: Festa de São Francisco (Canindé), Procissão de Nossa Senhora das Dores
(Juazeiro do Norte), Irmãos Aniceto (Crato), Reisado Adulto (V. Bela Vista), etc.
Mas aquele que não for iniciado em “folclore” ou “manifestações populares e
religiosas” não saberá distinguir, com exceção talvez da imagem de Juazeiro do
Norte, qual manifestação se relaciona a qual imagem – isso imaginando que o
espectador assistirá o filme até quase o final dos créditos para ter acesso a estas
informações. Ou seja, enquanto vemos as imagens, nada saberemos das
manifestações. Não há narração ou legenda que informe o dia, o local e o contexto,
um artifício muito comum quando se quer contextualizar a imagem documental para o
espectador. Quem, ao começar a assistir Crede-mi, estiver esperando um
documentário como os outros, não irá encontrar. E o interessante é que quem espera
uma ficção como as outras, também não. Aqui as coisas se apresentam de forma um
tanto diferente.
As imagens documentais de que tratam o letreiro no início do filme vão logo
aparecer, e permearão toda a narrativa, por vezes de forma mais ou menos integrada a
ela, surgindo com certa periodicidade e regularidade, algumas vezes ocupando longos
minutos do filme. Na primeira vez em que vemos uma imagem documental, trata-se
da visão de multidões numa Igreja, em seguida nas ruas, entoando hinos, em forte
fervor religioso. Dá-se no momento em que ficamos sabendo que a Duqueza não
consegue engravidar, e em que ela pede a Deus que lhe conceda seu grande sonho que
é ter filhos. Então vemos o povo aglomerado, amontoado, em demonstração de fé,
pagando promessas, as mulheres cortando seus cabelos, outras possivelmente pedindo
a Deus que seus desejos e necessidades sejam atendidos. Interpretando de maneira
mais livre estas imagens, e integrando-as à ficção, poderíamos dizer que temos, por
um lado, certa “ilustração” da fé da Duqueza e, por outro lado, uma sequência que
procuraria mostrar que todo o povo do reino também pediu por sua graça.
77
crede-mi
Esse tipo de imagem documental será bastante utilizado: o povo aglomerado em
manifestação de fé religiosa. Manifestações diversas seguindo-se umas às outras:
igrejas, homens vestidos de franciscanos, festas de rua, paradas, meninas fantasiadas
de anjo. Imagens filmadas de uma maneira que poderíamos considerar convencional:
planos abertos alternados com closes, câmera procurando manter-se imóvel,
travellings que procuram dar uma visão geral do fenômeno. Trata-se de uma fé
primordialmente católica, cujos símbolos nos são bastante reconhecíveis. Logo que o
Duque morre e seus filhos se despedem dele, vemos velas, novamente o povo
entoando hinos, mulheres com lenços na cabeça em procissão, padres. Da mesma
forma é possível integrar a imagem à narrativa, como se aquelas pessoas lá
estivessem para o funeral do Duque. Quando o irmão gêmeo de Sibila é assaltado e
morto em sua peregrinação de penitência, após tomar conhecimento da gravidez de
sua irmã, vemos novamente o povo nas ruas, e mais uma vez podemos fazer da cena
documental uma parte da ficção, como se aquelas pessoas chorassem a morte do
jovem nobre. Mais para frente, um dos narradores nos conta que, com o irmão morto
e o bebê lançado ao mar, muitos pretendentes começaram a se dirigir à Rainha, que
não aceitava nenhum, o que provocou a ira de um deles, que decidiu enviar seu
exército em guerra. Neste momento vemos imagens de pessoas do povo fantasiadas
como se formassem um batalhão. Em seguida, também fantasiadas, meninas lutam
num embate festivo. Mais uma vez, o documental pode ser lido como parte da ficção:
o exército do nobre se formando. Por fim, após Gregório ter sido reconhecido com
78
crede-mi
Papa e ter sido levado a Roma, vemos novamente imagens da multidão em fé, e por
fim as imagens de um padre realizando uma missa para um grande público de fiéis.
Lendo o documental como parte da ficção, estaríamos vendo Gregório tornado Papa.
Aqui, no entanto, o personagem Gregório é levado para dentro da imagem
documental, e ele aparece, com sua indefectível coroa, no meio da multidão,
cumprimentando os transeuntes que obviamente acham graça naquela pessoa de
manto e coroa seguido por uma equipe de filmagem e que os aborda para receber
saudações. Gregório aparece por fim dentro do confessionário de uma igreja,
ouvindo, já como Papa, a confissão de sua própria mãe, e concedendo-lhe o perdão.
Essa é uma das formas através das quais vemos as imagens documentais nas quais o
filme, em seus letreiros iniciais, diz se basear. A meu ver, além desta forma, temos
outras duas, que iremos comentar em seguida. Teríamos então o que chamaremos,
apenas para os diferenciarmos, de três planos de imagens documentais, cujas
diferenças podem na verdade não ser tão bem delimitadas como faremos crer em
seguida mas que ressaltaremos agora como uma estratégia da pesquisa aqui
empreendida. Trata-se, a meu ver, de três formas de inserção do povo no que se refere
às anunciadas imagens documentais, sendo esta primeira, que acabou de ser descrita,
provavelmente a mais convencional, no sentido de que o popular está menos
problematizado: aqui vemos o povo amorfo, aglomerado, por vezes quase num transe
místico, desivindualizado, como um todo uniforme, numa imagem “antropológica”,
um povo que efetivamente preenche algum interesse do tipo antropológico, um povo
que está desempenhando seus festejos, suas crenças, as atividades que, enfim, fazem
dele efetivamente o povo da forma mais tradicional.
Como dissemos, neste primeiro plano de imagem documental, as seqüências podem
ser vistas como parte da história, tanto de maneira mais ilustrativa quanto de forma
mais integrada, ou seja, associadas à gravidez da Duqueza, à morte do Duque, de seu
79
crede-mi
filho, à ascensão de Gregório como Papa. No entanto, elas guardam muito de sua
autonomia enquanto imagens documentais, justamente por se referirem àquela
expectativa mais convencional em relação ao popular que o documental (e também a
ficção) pode preencher, ou seja, a visão do “outro” como uniformidade, totalidade,
coletividade, como curiosidade, imbuído de tradição, religiosidade, fé, pouco
problematizado. Ou seja, elas podem ser lidas como o que são num nível mais
imediato: imagens do povo reunido em manifestação religiosa. Elas nos apresentam,
mais do que discutem, aspectos da cultura popular. Aqui o povo é um objeto da
câmera de maneira mais imediata, sendo sua relação com ela pouco discutida.
Em relação a este primeiro plano de imagem documental, o que chamaremos de
segundo plano está mais diretamente relacionado à ficção de Crede-mi, ou seja, pode
ser visto de modo mais integrado à narrativa ficcional que estamos acompanhando,
participa dela mais diretamente, mistura-se à ficção, antes de remeter imediatamente a
um momento um tanto autônomo do povo como manifestação pública, festiva e
religiosa. Trata-se das seqüências nas quais vemos os embates entre os soldados do
reino cujo rei deseja se casar com a rainha e aqueles organizados por Gregório. A luta
que vemos parece tratar-se de uma espécie de dança folclórica (é o Reisado), mas
desta vez, ao contrário do primeiro plano de imagem documental, a manifestação não
estava simplesmente acontecendo por si mesma, espontaneamente, quando a equipe
se dirigiu para filmá-la. Apesar de tratar-se de uma manifestação tradicional, cultural,
como o eram as imagens do primeiro plano documental, aqui ela ocorre, a meu ver,
com certa exclusividade, para a câmera, e os participantes provavelmente estavam
informados de que suas imagens seriam usadas num filme, e é muito possível que
tenham recebido orientação dos diretores neste sentido. Um dos participantes do
folguedo utiliza a coroa que identifica Gregório além de qualquer personagem (todos
os atores que fazem Gregório a utilizam, assim como todas as atrizes que interpretam
Sibila utilizam um arranjo de flores), numa interferência direta da narrativa na
manifestação popular. Os envolvidos na dança sabem-se filmados, mostram seu saber
para a câmera, provavelmente prepararam-se para isso. O filme, ao mesmo tempo em
que “documenta” um aspecto da cultura popular, ficcionaliza-o. No primeiro nível de
imagem documental temos uma manifestação inscrita numa tradição que tem seu
80
crede-mi
lugar, seu dia, sua hora predeterminada, cabendo à equipe de filmagem subordinar-se
a sua temporalidade e espacialidade e registrá-la da maneira que julgar mais
adequada. Ao mesmo tempo, o povo que lá está filmado, no primeiro nível de imagem
documental, não se relaciona com a câmera no mesmo sentido deste segundo nível:
ele controla muito pouco sua performance, não é dirigido (e por isso olha para a
câmera, quebrando uma das “regras” das escolas de cinema, conforme citado por
Chris Marker), muitas vezes não se sabe filmado, e está sendo exibido não como
detentor de um saber, mas como exemplo de manifestação religiosa intensa e coletiva,
que é o que dá força a estas imagens.
No segundo nível de imagem documental a manifestação popular aconteceu, podemos
afirmar quase que com certeza, para a câmera, e no momento em que ela ocorreu já
havia sido decidido que aquelas seriam imagens que se subordinariam à ficção, que
ilustrariam a narrativa, que satisfariam uma necessidade dela. Por outro lado, no
entanto, podemos falar de uma subordinação da própria ficção ao documental, na
medida em que os realizadores precisam aproveitar-se de um material, no caso do
Reisado, que existe de forma anterior à ficção, que serve para lhe dar sentido, mas
que também a obriga a um determinado sentido na medida em que existe de forma
autônoma e culturalmente institucionalizada. Ou seja, os realizadores ficcionalizam
uma manifestação dando-lhe um outro conteúdo, e alteram-na como querem, mas ao
mesmo tempo a ficção que eles estão empenhados em realizar torna-se subordinada a
uma visualidade dada por uma imagem que a princípio existe antes da ficção que está
sendo realizada. A meu ver, isso dá a essa imagem da cultura popular uma impressão
de autonomia, na medida em que ela traz um conteúdo independente, e ao mesmo
tempo dota-lhe de um significado diferente, de um uso diferente, o que faz com que
ela apareça como algo que vai além de sua temporalidade, de sua espacialidade, de
um suposto enraizamento na tradição.
81
crede-mi
A cultura popular, tal como vista através destas imagens documentais em segundo
nível, afasta-se daquele primeiro sentido dado pelas primeiras imagens que
analisamos. Lá a câmera dirigia o olhar ao povo com certa curiosidade, explorando o
que havia de coletivo, uniforme, tradicional. Aqui temos a sensação de que a cultura
popular afasta-se desta condição de objeto a ser olhado com curiosidade e exotismo,
na medida em que o olhar que recai sobre ela procura uma manifestação mais
autônoma, aparentemente mais controlada pelos seus participantes, que parecem
deter, inclusive, uma certa habilidade técnica na execução de seus movimentos
coreografados, ou seja, um saber e uma plástica que tornam o que vemos um objeto
de interesse. Aqui não se trata de uma massa uniforme deslocando-se segundo suas
crenças religiosas, mas de um grupo popular que detém um conhecimento, que é
responsável pela manutenção e assim pela continuidade de uma manifestação
artística.
Resta falar do que consideramos um terceiro nível de imagem documental, que
aparece na cena do parto e no casamento. Aqui não se trata de multidões em
demonstração de fé religiosa ou de cultura popular sendo apresentada para câmera e
funcionando diretamente como parte da narrativa ficcional, mas de cenas do cotidiano
local: uma mulher dando à luz, um casal casando-se, um bebê recém nascido na
maternidade.
Inicialmente vemos um parto “encenado” com vários de seus aspectos recorrentes: a
parturiente uivando de dor ininterruptamente e as parteiras gritando “força, força!”.
Trata-se da seqüência na qual Sibila dá a luz ao filho concebido da relação com seu
irmão gêmeo. Logo em seguida, vemos um parto “documental”, que foge em tudo do
aspecto melodramático do parto encenado. O parto “documental” tem uma crueza que
é exacerbada pelo silêncio da sala cirúrgica, pelos instrumentos que nela se
encontram, pelo modo de proceder tranqüilo e técnico das enfermeiras, pelo silêncio e
pela expressão dura e resignada de dor da mãe que está preste a parir, pelas imagens
em close que revelam a abertura por onde o bebê sairá, e por fim pelo bebê recém
nascido sendo brevemente limpo e colocado na barriga da mãe exausta. A imagem
pode chocar pela crueza com a qual o parto é filmado, principalmente pela exposição
veemente das partes íntimas da iminente mãe.
82
crede-mi
O bebê aparecerá novamente, recém-nascido, deitado no carrinho do berçário com a
pulserinha da maternidade, mas desta vez entre seqüências do mar: Sibila chora e
grita “meu filho não”, vemos o mar (no mesmo sentido da imagem inicial do filme), o
bebê, e depois o mar novamente (no mesmo sentido). Ouvimos então a voz da mãe
amaldiçoando Deus, que não a avisou que o que ela havia feito era pecado. Da mesma
forma que o parto, aqui se trata de um bebê “documental”: sua pulseirinha e a visão
de seu pequeno leito hospitalar lhe dão um aspecto de “realidade” que contrasta com
os paninhos enrolados que fazem as vezes de bebê quando estamos no terreno
exclusivo da ficção.
A cena “documental” de casamento insere-se na história no momento em que Sibila e
Gregório estão se casando na ficção. Vemos ao longe um casal “real” nesta situação,
um pouco constrangido (não por causa da câmera, que está muito longe), numa
situação formal e também um tanto comovente pelos modos daqueles que não sabem
exatamente que gestos devem ser empreendidos no momento. Ao contrário do que
ocorre na maior parte do filme, quando a câmera procura a proximidade e o close,
aqui somos mantidos um tanto afastados da cena, que é filmada de longe, como se
não fôssemos íntimos o bastante para participarmos do casamento como fomos para
participar do parto. Além disso, o casal é mostrado fora da Igreja, o que aumenta
nosso afastamento em relação a ele, já que não podemos participar da cerimônia mas
apenas observá-la do lado de fora. Em seguida vemos um casamento “encenado”, no
qual participa um dos senhores que participou do Reisado que fazia as vezes da
83
crede-mi
batalha entre Gregório e o nobre em guerra com Sibila, e que mais uma vez está aqui
para demonstrar um certo “saber” ao proferir seus versos rapidamente.
Em ambos os casos, ou seja, tanto no parto quanto no casamento, vemos a ficção e o
documental lado a lado: o parto ficcional e também o parto documental, o casamento
documental e também o ficcional. Aqui existe, no caso do parto, uma
“documentarização” do parto ficcional que vemos inicialmente, e no caso do
casamento, uma “ficcionalização” das cerimônias documentais que aparecem
primeiramente. Não é fácil, a meu ver, dotar de sentidos estas imagens, ou seja, este
terceiro nível de imagem documental do povo tal qual ele aparece em Crede-mi, em
especial se pensarmos na “documentarização” e na “ficcionalização” que as
acompanham, ou seja, se pensarmos nas imagens que as antecedem e as precedem. A
que tipo de imagem documental estamos assistindo?
Existe em primeiro lugar, segundo penso, um sentido de “observação” dado pelas
imagens: trata-se de sugerir ao espectador que ele agora está acompanhando como é
efetivamente um parto “de verdade”, e que ele está observando diversas cenas “reais”
de casamento. O sentido de observação já existia, naturalmente, no primeiro nível de
imagem documental: as seqüências do povo em manifestação religiosa procuram
mostrar sua fé, a aglomeração, a força da coletividade. Aqui, no entanto, não se trata
de tentar mostrar exatamente o povo como ente coletivo e uniforme, mas alguns
aspectos do mundo observável, do cotidiano que tem algo de extraordinário e comum
ao mesmo tempo (um parto, um casamento), da vida como ela se desenrola para além
da ficção. O bebê se chama Nazaré, sendo portanto uma menina (e não um menino
como será o filho de Sibila), o que, junto com o aspecto em todo cru e imediato da
cena do parto colabora para dar uma autonomia a estas imagens documentais que as
fazem ir além da ficção.
Ou seja, em relação ao primeiro e segundo níveis de imagens documentais, aqui
temos o que poderíamos chamar de um “choque de realidade”, principalmente se
colocarmos lado a lado as imagens “documentais” e as “ficcionais” que a
acompanham. Em relação ao parto encenado isso me parece mais facilmente
perceptível, já que ele é efetivamente chocante, e colabora a meu ver para de certa
maneira nos transmitir uma sensação de inferioridade do mundo social tal qual visto
84
crede-mi
através da ficção em relação ao mundo social tal qual visto a partir do documentário.
É claro que as distinções entre ficção e documentário no que se refere à relação com o
“real” não devem ser supervalorizadas quando empreendemos uma análise fílmica:
em ambos os casos, trata-se de elaborações narrativas, de visões de mundo, cujo
aspecto de construção tem muito mais em comum do que se costuma fazer acreditar.
Mas, como dissemos no começo deste texto, a imagem documental aciona no
espectador de cinema – que não costuma assistir ao filme fazendo análise dos planos
e das sequências, mas deixando-se levar pelas imagens – uma expectativa quanto ao
teor de “verdade” que ele verá. Existe, portanto, entre o parto encenado e o parto
documental, e do ponto de vista do espectador, uma diferença que vem reforçar as
oposições entre o mundo tal qual visto pela ficção e o mundo tal qual visto pelo
documental, uma diferença portanto entre o documental e o ficcional, dada pelo
discurso de Crede-mi, que é mais acentuada do que, por exemplo, nos planos
anteriores de imagem documental.
No primeiro e no segundo plano de imagens documentais havia certa integração do
documental à ficção, e não exatamente contraposição. Procurava-se fazer o
documental integrar-se à ficção, colaborar com ela, e sem dúvida também acrescentar
algo a ela que não poderia ser visto unicamente através da ficção. De algum modo,
havia no documental uma emoção a mais que se somaria à ficção – a força das
imagens do povo, a plástica da dança-combate –, que acrescentava algo que a ficção
sozinha não podia mostrar, mas que estava em harmonia com ela, como um plus
estético e popular.
No caso do parto – e também do casamento, como falarei adiante – a imagem
documental não acrescenta à ficção, mas de certa maneira se opõe a ela. Não é apenas
um plus, mas uma outra “realidade” que estamos vendo. Se se tratasse apenas de
acrescentar, a seqüência do parto ficcional não precisaria acontecer. Bastava mostrar
o parto documental. Por que a repetição, uma vez ficção, a outra documental? A meu
ver, o fato de uma seqüência preceder a outra vêm nos sugerir que a segunda cena,
aquela que é documental, é muito mais “verdadeira” do que a primeira: agora sim
estamos vendo o que acontece no mundo social, agora sim o cinema procurou o
mundo observável e o colocou a disposição dos espectadores. O “artificialismo” da
85
crede-mi
ficção, através do parto encenado, é sobremaneira acentuado, quando colocado lado a
lado com o parto documental.
Em relação à cena de casamento, podemos dizer mais ou menos a mesma coisa. Ainda
que vistos de longe, por uma câmera que se recusa a atrapalhar a intimidade do casal
recém saído da Igreja e que tenta antes de tudo observar o que se desenrola diante
dela, existe uma emoção impregnada nas seqüências de casamento, um certo carinho
em relação ao casal, à moça gordinha e graciosa vestida de noiva. Segundo Marc
Piault
82
, na verdade, não necessariamente existe oposição entre o desejo de observar e
de transmitir emoção. Ao contrário, ao tratar do cinema-direto, Piault considera que
uma de suas características é justamente a transmissão da emoção, da empatia, da
intimidade, da participação que são possíveis pela presença da câmera “objetiva”,
“observadora”. Um sentimento que presenciamos em filmes como Salesman (Maysles
Brothers, 1969) ou Hospital (Fred Wiseman, 1971), por exemplo, expoentes do
cinema-direto. Sem querermos remeter Crede-mi a este cinema, poderíamos fazer
anotações semelhantes em relação à cena de casamento: não há aqui oposição entre a
câmera, que neste momento procura a objetividade, e as sensações de carinho e
ternura transmitidas por este momento. São sensações que não encontram paralelo no
casamento encenado. Da mesma forma que na seqüência de partos, aqui o documental
pode mais do que a ficção, vai mais longe, mostra mais, cria para o espectador uma
sensação mais intensa.
Em relação a uma Sociologia da Arte, e dentro do tema que nos propomos neste
trabalho, o que tudo isso significa? Em primeiro lugar, temos que considerar que há
um mundo social na obra de arte e cujo sentido, segundo temos argumentado, é em
parte sugerido, em Crede-mi, pela relação entre as imagens ficcionais e as imagens
documentais que estamos acompanhando. Em segundo lugar, este mundo social
remete à cultura popular e ao povo do interior cearense, e portanto tem relação direta
com o tema da pesquisa aqui empreendida. Ou seja, há um mundo social em Crede-mi
que se relaciona com a “hierarquia” ficção/documental e que nos transmite uma visão
de cultura popular e de povo. Podemos resumir o que dissemos em relação a idéia de
popular que nos é sugerida da seguinte forma:
82
PIAULT, Marc Henri. Anthropologie et Cinema. Paris: Nathan, 2000, p. 170-172.
86
crede-mi
No primeiro plano de imagem documental, o que temos, como dissemos, é um povo
uniforme, religioso, desempenhando seu papel como coletividade, um papel enfim
que está relacionado à representação mais tradicional do que seria o popular. No
segundo plano de imagem documental, temos o povo ainda realizando uma atividade
“tradicional”, ou seja, realizando seus folguedos, mas agora não tanto como algo
amorfo, coletivo e indiferenciado, mas apresentando um saber artístico único e
plástico, informado de que está sendo filmado, e possivelmente do uso mais geral que
será dado a suas imagens. Ou seja, ainda que se possa argumentar que aquele povo
filmado pode não ter tido acesso ao filme que ajudou a realizar, e, se tiver acesso,
pode não ter conseguido mesmo entender a narrativa entrecortada de Bia Lessa e
Dany Roland, eles se sabem na frente de uma câmera, sabem que serão parte de uma
imagem, e que terão um desempenho que se aproxima do que se espera de um ator.
No terceiro plano de imagem documental, o povo em grande medida dissolveu-se:
não é mais aquele povo detentor de práticas culturais específicas, ou o povo amorfo
que existe como massa religiosa. A mulher do povo está lá, dando à luz num hospital
local, ou tímida e vestida de noiva em frente a uma Igreja. Mas agora este povo está
dissolvido no “real” tal qual exibido por Crede-mi, e é uma parte do mundo
observável tanto como objetividade quanto como possível fonte de emoção.
Sobre a relação entre o que é mostrado pelo documental e pela ficção, podemos
sugerir que, a partir do terceiro plano de imagem documental, temos a sensação,
como dissemos, de que em Crede-mi o documental é muito mais poderoso do que a
ficção para transmitir este mundo social. O primeiro e o segundo planos de imagens
documentais sugerem que uma de suas funções é, da mesma forma, mostrar o que a
ficção não poderia mostrar, ou não poderia mostrar com a mesma força: a imagem do
povo aglomerado e a dança executada pelos populares. Mas aqui não há tanto uma
inferioridade da ficção em relação à idéia de verdade transmitida pelo documental
como há no terceiro nível. O mundo social transmitido pelo documental parece ser
mais forte, principalmente a partir do terceiro plano de imagem documental, o que
não quer dizer que os outros sejam incapazes de fazê-lo. Com efeito, se pensarmos
em conjunto nos três planos de imagens documentais em Crede-mi, veremos que
todos, com graus variáveis, querem mostrar algo que a ficção não mostra.
87
crede-mi
Isso pode estar relacionado àquela curiosa legenda inicial: baseado em imagens
documentais, inspirado numa obra de ficção. Ela nos sugere, de certa forma, uma
força maior do documental, ou uma maior importância deste em relação à ficção. É
possível que os próprios realizadores do filme tenham manifestado nesta legenda o
fato de que, no filme, as imagens documentais procuram conferir uma força, um
poder de “realidade” e de “verdade”, e de aproximação com o povo, que a ficção não
teria. Primeiro o documento, no qual o filme se baseia. Depois a ficção, na qual o
filme é apenas “inspirado”. Essa “hierarquia”, na entanto, não corresponde ao que
veremos. Em Crede-mi é a ficção que articula as seqüências de imagens, mesmo as
documentais, e o enredo de Mann é um poderoso instrumento neste sentido. A ficção,
com efeito, parece “dominar” o filme, inclusive se pensarmos no tempo dedicado a
ela em relação ao tempo dedicado ao documental.
Se as imagens documentais, como dissemos, querem mostrar algo que a ficção de
Crede-mi não mostra, esta, segundo penso, em relação ao popular, mostra-nos algo
muito mais interessante. O popular, tal como aparece na ficção, ou seja, basicamente
no papel de atores e narradores, afasta-se do aspecto mais imediatamente relacionado
ao que é tradicional, imemorial, coletivo, folclórico, imutável, que muitas vezes
costuma estar relacionado a popular.
Jean-Claude Bernardet, em Cineastas e imagens do Povo, discorre, a partir de filmes
documentais brasileiros, sobre algumas formas de atitude que realizadores e suas
câmeras adotam no que diz respeito ao povo e ao popular. Seu livro sugere uma
progressiva mudança na maneira de relacionar-se com o povo, uma transformação
que está profundamente relacionada com o momento político e cultural vivido pelo
Brasil desde o final dos anos 50 até anos mais recentes. Existiria, em primeiro lugar,
uma postura “sociológica”, relacionada ao pensamento do ISEB (Instituto Superior de
Estudos Brasileiros) e do CPC (Centro Popular de Cultura), na qual o povo é alienado
e o cineasta deve ser o gerador de uma consciência que viabilize a transformação
83
.
Nesta maneira de mostrar o povo, “é evidentemente essencial que a alienação
presente na representação do povo não seja mostrada como uma necessidade sua, e
sim como um dado indiscutível do ‘real’. Donde a absoluta urgência de uma
83
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. op. cit., p. 34.
88
crede-mi
linguagem que, fiel à tradição do cinema de representação, nos dê uma total
impressão de coincidência com o real”
84
. Isto é que vemos, segundo Bernardet, em
Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), filme no qual o modelo sociológico, proposto por
Bernardet, atua de maneira exemplar. Há também uma atitude do cineasta que procura
fazer com que o “outro de classe” fale, que “se curve diante do discurso do outro,
diante do discurso de alguém das classes subalternas”, e que pode estar acompanhado
de uma redução ao mínimo dos recursos da linguagem cinematográfica
85
. Por fim,
para que não nos estendamos muito nos exemplos, existe também uma tendência à
exacerbação do caráter de discurso do material cinematográfico, que procura “quebrar
o fluxo da montagem audiovisual e desenvolver uma linguagem baseada no
fragmento e na justaposição; opor-se à univocidade e trabalhar sobre a
ambigüidade”
86
. Naturalmente, segundo Bernardet, nenhuma dessas posturas em
relação ao “outro de classe” fazem emergir o povo no cinema, na medida em que os
caminhos para a expressão do popular, segundo o autor, passam pela posse dos meios
de produção cinematográficos: “A rigor, o outro nunca toma a palavra, a qual só lhe
pode ser emprestada”
87
.
O que é interessante é notar, a partir das análises fílmicas de Bernardet no que refere
às “imagens do povo”, o quanto estamos lidando, em Crede-mi, com uma postura
diferente em relação ao “modelo sociológico” que atua em maior ou em menor grau
em filmes como Viramundo e Maioria Absoluta e também em relação ao filmes que,
dentro da análise de Benardet, colocam em cheque esse modelo, como Tarumã, Gilda
ou Porto de Santos. Não se trata de falar pelo povo aquilo que o povo supostamente
gostaria que fosse falado sobre ele, nem adotar uma postura de humildade em relação
ao elemento popular e tentar deixar falá-lo por si mesmo, e muito menos de exacerbar
o discurso e colocar em discussão a própria matriz que sustenta a representação
cinematográfica. Aqui o dito povo se submete aos desígnios que lhes deram os
realizadores do filme, sem que seja, por isso, colocado numa posição de
subalternidade, ou impedido de manifestar-se. O workshop entra em cena, e podemos
84
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. op. cit., p. 35.
85
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. op. cit., p. 123.
86
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. op. cit., p. 217.
87
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. op. cit., p. 217-218.
89
crede-mi
antever o trabalho “assimétrico”, no sentido de que houve um pólo direcionador e um
pólo executor do projeto fílmico. Naturalmente, a equipe de Bia Lessa lá estava, no
interior do Ceará, para ensinar ao povo um pouco da prática de interpretação. O que
vemos nos sugere um povo que executa uma performance dirigida, subordinada a um
projeto de ficção, desempenhando de forma bastante adequada os papéis que lhes
foram conferidos, e nesse sentido povo não como reduto do que é simples,
espontâneo, natural, instintivo, original, mas povo como capaz de um trabalho
artístico cujo caráter de “trabalho” é acentuado. Não sabemos se aquele povo teve
acesso ao filme que foi realizado e, se teve, se conseguiu entender alguma coisa, tal a
dificuldade da linguagem utilizada, o que coloca em evidência, mais uma vez, o
aspecto assimétrico da relação. Ou seja, não parece haver complacência com os
populares-atores que vemos na tela: com poucas exceções, eles estão lá porque
conseguiram realizar um trabalho artístico competente. Podemos sugerir, justamente a
partir do que pode ser visto na tela, que o povo aqui tem um desempenho dirigido,
subordinado a certas determinações do roteiro e da imagem, e que isso não diminui
em nada um aspecto de exaltação a esse povo por privá-lo do espontaneísmo e
capacidade de improvisação. Ao contrário, isso o exalta na medida em que o mostra,
em grande parte, como capaz de um desempenho adequado frente a uma câmera de
cinema. O aspecto de espontaneísmo popular é dado mais fortemente, a meu ver,
pelas imagens ditas documentais, mas a estas, como vimos, também não é conferida
uma total liberdade de manifestação: elas subordinam-se a necessidades do roteiro e a
uma certa necessidade plástica que muitas vezes as retira de seu contexto e as
transforma em componentes da ficção.
Após a exibição dos créditos iniciais, temos o mar, inicialmente em silêncio, depois
sobreposto a uma música, e em seguida a uma voz. O mar será a primeira cena do
filme e aparecerá diversas vezes. Será o primeiro “símbolo” religioso neste filme que
tem um diálogo com o cristianismo, a começar pelo seu nome, Crede-mi, que nos
remete, naturalmente, à crença
88
. O mar nos remete à purificação religiosa, e o bebê
88
No livro de Thomas Mann Crede-mi é o apelido dado a Gregório quando este ainda era jovem e
estudava num mosteiro. Gregório, a exemplo do monge seu tutor, dizia crede-mi ao final de cada
frase, como uma interjeição. Isso faz com que crede-mi, no livro, tenha um aspecto de deboche, e não
solene, como tem no filme.
90
crede-mi
Gregório, lançado ao mar, pode nos remeter à história de Moisés. Com efeito, o livro
de Mann no qual Crede-mi é inspirado nos remete a estas grandes narrativas, como
Moisés e Édipo Rei, num disseminado déjà vu. Por vezes vemos o mar indo da direita
para a esquerda, como na seqüência inicial, às vezes da esquerda para a direita, como
na seqüência que vêm logo em seguida. Às vezes ele corre de maneira mais rápida, às
vezes de maneira mais lenta. Na verdade, o que corre não é o mar. Percebemos que é
a câmera que corre em relação ao mar, mostrando-o por vezes de forma tranqüila,
outras vezes de maneira exaltada e violenta. O movimento da câmera faz o mar ir e
voltar. Da direita para a esquerda temos a impressão de que estamos indo, enquanto
da esquerda para a direita estamos em certa medida voltando. O bebê lançado no mar,
está indo. Quando ele cresce, vira Gregório, e decide tomar um barco que lhe leve
onde Deus quiser, ele vai no sentido inverso. Está portanto voltando. O mais
importante porém é perceber a ostensiva presença do mar neste sertão do interior do
nordeste (as imagens podem ser de um rio, mas a meu ver é sugerido que estamos
vendo o mar). O sertão vai virar mar? Aqui o sertão é em certa medida um lugar
universal, atemporal, desprovido de seu conteúdo de “nordeste” comumente exibido
no cinema brasileiro, para se tornar um sertão de conteúdo também plástico – o que o
aproxima de Deus e o Diabo –, palco de qualquer drama, inclusive este, que nos conta
uma história de reis, duques, papas, e mar. Há uma tensão estimulante entre o interior
do nordeste brasileiro tão perceptível – não apenas pela natureza, mas pelas casas,
pelos habitantes, pelo sotaque que ostentam – e a narrativa tão atemporal. Essa tensão
é exacerbada quando identificamos a imagem de Padre Cícero em Juazeiro do Norte.
Neste momento, o espaço no qual é rodado o filme torna-se ostensivamente
perceptível. Os realizadores do filme deixam que seja filmada a enorme estátua do
Padre Cícero, um símbolo de religiosidade, de fé, de culto ao beato, uma imagem que
localiza o filme, e nos deixa antever a importância que a religião tem nesta obra. A
estátua de Padre Cícero, o nome do filme (que não é o nome da obra de Mann), a
simbólica imagem do mar sendo mostrada constantemente (símbolo de purificação e
recorrência no imaginário cristão), as imagens documentais de cultos e festas
religiosas, e o próprio fato da obra de Thomas Mann ter perdido todo seu sarcasmo e
ironia em relação ao cristianismo nos sugerem o aspecto de respeito à religião. Em
Crede-mi, acredito, este respeito à religião torna-se parte do respeito ao povo
91
crede-mi
sugerido pelo filme, que aqui aparece como respeito ao desempenho artístico deste
povo. Com efeito, é bastante incomum que um cineasta procure, simultaneamente,
respeitar o povo e avacalhar com sua fé. Não é isso o que vemos aqui. Seria uma
combinação interessante...
Com a imagem do mar já em cena, começamos a ouvir a voz de um senhor. Ele
aparece e percebemos, apesar da voz um tanto difícil de ser escutada e da qualidade
não muito boa do som, que ele está contando a história da criação. No primeiro dia,
Deus fez isso, no segundo dia, fez aquilo, e assim por diante. O senhor está contando
a história do começo do mundo, do início dos tempos, numa clara sugestão, já desde o
início do filme, do tema religioso que veremos. Ele tem uma maneira infantil de falar.
E em seguida um menino pequeno aparece, cantando uma música também um tanto
infantil. A imagem do velho será mostrada diversas vezes durante o filme, e nestas
ocasiões durará um curto intervalo de tempo, de modo que mal poderemos entender o
que ele fala. Ela, talvez, marque um intervalo de sequências, uma nova parte da
narrativa, ou esteja lá apenas conferindo certa plasticidade, um ritmo ao filme. Em
seguida a imagem do nordeste nos é revelada com todo seu impacto, ou pelo menos
seu impacto para as populações urbanas das cidades do sudeste e sul do Brasil,
público que deve ter sido o receptor principal destas imagens. A fala difícil do velho,
o som direto um tanto precário, o menino franzino cantando, são mostrados de forma
que já sabemos se tratar de uma parte do país, de um aspecto popular do Brasil. O
olhar “antropológico”, no entanto, passa longe deste cinema: nada nos é dito acerca
das pessoas que estamos vendo, dos lugares no qual o filme é rodado, e o conteúdo
mais específico ou detalhado das ditas imagens “documentais” não será informado ou
explicado, e nem podemos muitas coisas dele inferir pela simples observação. O
interesse no popular não é, nesse filme, antropológico. Segundo Marc Piault, em seu
livro sobre a relação entre o olhar antropológico e o olhar cinematográfico, “a questão
crucial para a antropologia, aquela da transcrição de uma lógica à outra, de uma
língua a outra, é aquela da passagem de uma cultura à outra, de uma inteligência do
mundo a uma outra percepção daquilo que contorna e condiciona os
comportamentos”
89
. Não é isso o que temos em Crede-mi. Não há intenção em tornar
89
PIAULT, Marc Henri. Anthropologie et Cinema. op. cit., p. 184.
92
crede-mi
a população do interior do Ceará mais compreensível para um espectador de cinema
que pertença a um outro grupo social. Nada saberemos sobre aqueles atores e o lugar
no qual vivem, a não ser que são capazes de um desempenho bastante satisfatório
como atores de cinema. O popular não é exaltado pelo seu caráter popular, o que pode
transmitir uma sensação de complacência e compreensão, mas por algo cuja
existência independe do caráter popular: uma habilidade técnica e artística perante a
câmera de cinema.
Depois do menino cantando veremos o primeiro narrador da história. Um tipo
também popular, ele nos conta que assistiremos a uma história horrível mas muito
edificante. É seguido pela imagem de uma mulher, também narradora. Veremos
diversos narradores durante o filme, cada um com uma curta participação, uma
seqüência rápida que colabora para tornar o filme mais ágil. São filmados,
geralmente, em composição diagonal, ou de cima para baixo, em planos pouco usuais,
de modo a criar dramaticidade visual à seqüência. Este primeiro narrador se dirige à
câmera, como a maioria deles. Outros narram de maneira performática e teatral,
olhando para a câmera mas também para algumas pessoas que estão a seu redor,
gesticulando. Os narradores são completamente intercambiáveis, e chegam a trocar de
lugar com os personagens. Não há lugar fixo neste filme. Os personagens são vividos
por diferentes atores, sendo que, como já mencionamos, todos os “Gregórios” e todas
as “Sibilas” usam coroas de modo a identificá-los. Um dos narradores será o próprio
Gregório posteriormente. E os narradores, assim como os atores que fazem os
personagens, tendem a desempenhar seu trabalho com muita competência. No geral,
narram bem, são eloqüentes, e realizam um bom trabalho de interpretação, com
algumas exceções que, a meu ver, não chegam a comprometer o sentido geral de
desempenho satisfatório no filme. A intercambialidade entre os narradores e atores
sugere que todos os que participam do filme podem realizar um trabalho adequado. E,
de resto, essa mudança de atores para um mesmo personagem não é nova: Wim
Wenders a realizou em A estrada da vida e Luis Bunüel em Esse obscuro objeto do
desejo, sendo que, neste último filme, muitos espectadores nem se deram conta
90
da
existência de duas atrizes para o mesmo personagem. Neste sentido, Crede-mi retoma
90
Cf. CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. op. cit., p. 95.
93
crede-mi
estratégias de um cinema considerado erudito – Bunüel e Wenders – para enfocar o
popular. Uma tal “ousadia”, acredito, não poderia vir de um cinema como cultura de
massas no sentido mais convencional e menos desafiador.
narradores diversos
Brian Winston considera que muitos filmes que procuram tratar de temas populares,
que tentam realizar uma cine-etnografia, que se concentram em questões sociais e nas
pessoas que são “incapazes de se cuidar por si mesmas”, na verdade acabam por
realizar um cinema diferente do que arvoram, ao exibir seus personagens e objetos
como sujeitos desviantes, ao demonstrarem interesse na verdade no que é bizarro e
anormal
91
. A outra face desta atitude, segundo penso, é a complacência com o
“outro”, o que significa, da mesma forma, tratá-lo de maneira infantilizante, como o
Nanook sorridente de Robert Flaherty. O cineasta Eduardo Coutinho, por exemplo,
que tenta evitar este tipo de atitude em relação ao “outro” em seus filmes às vezes
com mais ou menos sucesso, acaba escorregando no tratamento bizarro e
91
WINSTON, Brian. Documentary: I think we are in trouble. op. cit., p. 30.
94
crede-mi
infantilizante em Babilônia 2000, por exemplo na cena em que uma das moradoras do
morro é incentivada a mostrar seu talento em imitar Janis Joplin, ou naquela na qual
Coutinho deixa um jovem comentar, orgulhoso e contente, que aquela “comunidade”
(o nome politicamente correto da favela) não está acostumada a ouvir mais de cinco
tiros: “um tiro, dois tiros, tudo bem, passou de cinco tiros a comunidade entra em
pânico”. A meu ver, ao fazer ressaltar o bom desempenho dos narradores e atores de
maneira geral, Crede-mi foge deste aspecto, tão recorrente no cinema, de tratar o
popular como um tipo específico, em certa medida anormal, que merece de nós
complacência, cujas atitudes devem ser relevadas, e que desperta interesse justamente
por ser “diferente”. Crede-mi, ao levar à tela o bom desempenho dos atores, ao
mesmo tempo em que não esconde seu caráter popular, faz com que eles sobressaiam-
se pelo aspecto técnico da atuação. Não há teor paternalista em relação ao atores. Eles
aparecem na tela porque conseguiram realizar um bom trabalho, e não porque são
diferentes, comoventes, patéticos, exóticos, típicos, exemplares de alguma coisa, etc.
Com algumas exceções, temos muitos bons desempenhos. Os planos bastante
próximos ao rosto dos personagens, a maioria closes, fazem salientar o trabalho dos
atores. A câmera mantém-se perto, de modo que podemos verificar com certa clareza
o desempenho, e a meu ver é difícil negar que são exibidos momentos marcantes, de
grande qualidade interpretativa, com a exibição de performances fortes e eloqüentes.
O aspecto técnico é ressaltado, mais do que um suposto talento, inspiração ou dom. É
isso que, a meu ver, também é sugerido pelas interpretações de Crede-mi: esse
aspecto técnico que vem de um trabalho árduo, que é enfatizado pela
intercambialidade dos atores e personagens, de modo que a boa atuação dependa de
um esforço de tipo “profissional” que estes populares são plenamente capazes.
Se há uma complexificação da atuação, no sentido de fazer ressaltar a qualidade dos
atores, o mesmo não ocorre com a história que serve de suporte ao trabalho de
interpretação realizado. Voltando ao início: o narrador logo anuncia que vai nos
contar uma história horrível, mas muito edificante. São as mesmas palavras que se
encontram no livro para adjetivar a história. E, efetivamente, o filme utiliza-se de
expressões e mesmo frases inteiras da obra de Thomas Mann. No entanto, há algo
95
crede-mi
muito diferente entre o livro e o filme, e neste sentido nos aproximamos do aspecto
possivelmente erudito que transpassaria de um a outro.
Há um refinamento no livro no que diz respeito à narrativa que não encontramos no
filme. E isso é, a meu ver, parte essencial da erudição de Thomas Mann, que ficou
fora da obra de Bia Lessa, que é erudita em outro sentido. A começar, por exemplo,
pelo narrador. Mann é especialmente irônico com seu narrador, um monge que conta
a história em primeira pessoa. O narrador é deliciosamente ambíguo, por vezes
inconsistente, faz comentários pouco “cristãos” a respeito de seus personagens, e ele
mesmo se mostra demasiado afeito às coisas da “carne”, contando anedotas que
deixam entrever sua familiaridade com toda a seqüência de pecados que se passa na
narrativa
92
. E ao descrever e interpretar as ações dos personagens, contando-nos o que
se passou, o narrador de Thomas Mann continua numa fina ironia, adentrando
detalhadamente nas motivações sexuais, chegando a sugerir fortemente a
homossexualidade do padre que encontra o Gregório bebê no barco e que o educa
posteriormente
93
. Quando um carneiro enviado por Deus conta a dois monges que o
novo papa já nasceu e vive há 17 anos numa pedra, é delicioso acompanhar o ciúme
que um monge sente do outro pela dupla revelação, e principalmente quando um se
intera do fato de que o outro viu flores junto ao carneiro, enquanto ele não
94
. Há,
podemos sentir, uma importante ironia e brincadeira em Thomas Mann com tudo o
92
“(...) de manhã, quando Wiligis, eufórico ao despertar, nu como um deus pagão (...) saltava para
dentro da banheira colocada diante da cama (...), aquilo que o distinguia da irmã, a sua virilidade,
parecia grande demais em comparação com o estreito corpo de marfim. A mim, essa visão me deixa
um pouco perturbado. Tão infantil, delicada e inteligente a cabecinha sobre os ombros finos e, lá
embaixo, aquele pinto enorme!”. M
ANN, Thomas. O eleito. op. cit., p. 26.
93
Diante da visão dos pescadores, o padre comenta: “Que barbas vermelhas as deles, e que vermelhos
e salgados seus corpos musculosos e troncudos, nus da cintura para cima. Por que será que estão nus
desse jeito e, com um tempo desses, tiraram a camisa e o gibão?”. M
ANN, Thomas. O eleito. op. cit.,
p. 79.
94
“‘Ah, e as rosas’, lembrou Probus, com o rosto apoiado no peito do outro, ‘as rosas em que se
transformou seu amado sangue quando eu quis desistir de minha missão!’
‘Rosas?’ perguntou Liberus, afrouxando o braço. ‘Não sei nada sobre isso’.
‘Comigo houve uma enorme quantidade de rosas!’ assegurou Probus. ‘Seu aroma era muito mais forte
do que o dos arbustos de louro no jardim.’
‘Só posso repetir que não me foi mostrada nenhuma rosa’, insistiu Liberus. ‘Mas não vamos estragar
um fato tão maravilhoso com invejas! Considero possível que o Cordeiro na tenha julgado necessário
amparar minha fé com o milagre das rosas, devido a minha posição de filho e príncipe da Igreja.’
‘Com certeza, meu caro’, concordou Anicius. ‘mas não te deves aborrecer com o fato de eu admirar a
poesia dessa visão que só a mim foi dada e te convidar a partilhar dela comigo’”. M
ANN, Thomas. O
eleito. op. cit., p. 217.
96
crede-mi
que é cristão
95
, não apenas na trama principal da história – o fato do maior pecador do
mundo tornar-se papa – mas em detalhes diversos que compõe O Eleito. Esta ironia e
os detalhes cuidadosamente trabalhados, a meu ver, é o que torna interessante o livro
do escritor alemão. E, ao contrário, a trama principal – a seqüência de incestos –, que
foi usada por Bia Lessa e Dany Roland, é o aspecto menos interessante de seu
trabalho, exalando banalidade, e parece mero suporte para Mann exercitar sua
habilidade erudita com as palavras e o refinamento de suas construções. Em Mann,
tudo o que é cristão é tratado à maneira de deboche, enquanto em Crede-mi aquilo
que é cristão torna-se motivo de circunspeção, tendo um aspecto grave e importante, a
começar pelo título. Crede-mi para Mann é apenas um maneirismo no vocabulário de
Gregório, uma palavra que ele repete exaustivamente, um vício de linguagem. Além
disso, como já dissemos, Mann procura reunir histórias e narrativas conhecidas e
importantes, como Moisés e Édipo Rei, mas isto, em sua obra, não a torna mais grave
e importante, ao contrário, nos transmite uma sensação mais uma vez irônica de
convencionalidade e de não-originalidade. O aspecto erudito da obra de Thomas
Mann foi deixado de lado e a narrativa simplificada, restringindo-se a seus aspectos
mais banais.
Há, no entanto, um aspecto de erudição em Crede-mi que existe independentemente
de Thomas Mann: trata-se de sua montagem, muito erudita, que o torna um filme
difícil, e que faz com que imaginemos que boa parte dos atores que o fizeram tenha
dificuldade de entender o que foi realizado de seu esforço interpretativo. Em Crede-
mi não há planos-seqüência, um tipo de plano que, acredito, favoreceria a clareza da
ação e, provavelmente, do enredo. André Bazin discorre sobre o papel da montagem
em Montage Interdit e L’évolution du langage cinématographique. Ele analisa filmes
como Le balon rouge, Crin blanc e Nanook para mostrar os casos em que a
montagem, como diz o título de seu artigo, é proibida: são “filmes de ficção que não
alcançam todo o seu sentido ou, no limite, não tem valor senão pela realidade
integrada ao imaginário”
96
. Ou seja, nestes filmes, a montagem deve tornar crível o
acontecimento, ainda que, como no caso de Le balon rouge, trate-se de algo
95
“(...) sabia que ele nascera de grandes pecados, e isso comove o coração de um cristão, incluindo-
lhe uma espécie de respeito”. M
ANN, Thomas. O eleito. op. cit., p. 88.
96
BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma. op. cit., p. 61.
97
crede-mi
completamente fantástico (o balão persegue um menino como se fosse um cachorro).
O esquimó Nanook, a foca e o buraco no gelo devem ser mostrados no mesmo plano,
sem cortes, para que o espectador veja todos os elementos que são necessários à
“verdade” cinematográfica daquela ação. Em L’évolution du langage
cinématographique, Bazin discorre sobre a montagem invisível: “o corte dos planos
não tem outro fim senão analisar o evento segundo a lógica material ou dramática da
cena. É a sua lógica que torna essa análise insensível, o espírito do espectador aceita
naturalmente os pontos de vista que lhe propõe o diretor porque eles são justificáveis
pela geografia da ação ou o deslocamento do interesse dramático”
97
. Em ambos os
casos, ou seja, nas duas justificativas para uso do plano-sequência, trata-se, a meu
ver, de uma questão de clareza da cena, de tentativa de dotá-la de naturalidade e, no
limite, de veracidade, como se dessa maneira o cinema se aproximasse do real,
daquilo que a câmera, em sua “objetividade”, pudesse captar. Não é toa, portanto, que
um dos exemplos de filmes nos quais é necessário evitar os cortes é o “filme
documentário no qual o objeto é reportar fatos que perdem todo interesse se o evento
não teve lugar realmente em frente à câmera, ou seja, os documentários relacionados
à reportagem”
98
.
Tudo isso é exatamente o contrário da montagem que vemos em Crede-mi. Clareza é
que não se quer. É interessante que, num filme “baseado em imagens documentais”,
ou seja, que cria no espectador a expectativa do “real” e da “verdade”, a ficção seja
tão veemente no sentido de, a partir da montagem, evitar qualquer aproximação ao
fluxo “natural” dos acontecimentos. E, para aquele que assiste ao filme pela primeira
vez, essa é efetivamente uma fonte possível de estranhamento: a legenda nos aciona
uma expectativa de “documento” e de “veracidade”, mas o clima do filme –
dominado pela ficção – é absolutamente anti-naturalista e anti-documental, graças à
montagem.
Estamos mais próximos em Crede-mi da montagem eisensteiniana, talvez não no
sentido da necessidade de expor uma idéia, uma tese, a partir de cortes “dialéticos”,
mas certamente pela plástica dos rostos e dos ângulos inusitados. Estamos diante de
97
BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma. op. cit., p. 64.
98
BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma. op. cit., p. 60.
98
crede-mi
uma profusão de faces, de corpos, de espacialidades, que nos remetem também, além
de Eisenstein, ao cinema de Glauber Rocha, e que, a meu ver, traz erudição à obra de
Bia Lessa e Dany Roland. Ao contrário do que poderia parecer, não é Mann que trás
erudição ao filme, com o conteúdo de sua narrativa. O erudito também não está
relacionado aqui à cultura popular e sua técnica adequada. A erudição aqui inscreve-
se numa tradição de montagem e com a sensação de estranhamento que ela nos causa.
A partir desta observação, devemos fazer um último comentário a respeito do filme.
Voltando a Paulo Menezes, no artigo em que ele analisa o filme Cabra marcado para
morrer, podemos retomar do autor a observação segundo a qual, ao retomar a história
de João Pedro e de Elisabeth, Eduardo Coutinho estaria na verdade retomando a sua
própria história. O sujeito do filme é menos o líder camponês assassinado e sua
esposa do que a saga do próprio cineasta entre as imagens de 1964 e as filmadas
décadas depois. “O que fica claro (...) é o sujeito-herói real do filme, em
contraposição aos muitos sujeitos fictícios das várias histórias que o compõe. O que a
história está tentando recuperar é, sem dúvida, o tempo perdido. Mas não o tempo
perdido de João Pedro e Elisabeth, como pressupúnhamos desde o início, mas o do
próprio Eduardo Coutinho e de seu filme inacabado de 1964, através da vida e obra
de outros personagens e protagonistas”
99
. Na construção de seu outro enquanto
líderes camponeses, Coutinho acaba construindo a si próprio como o outro fílmico.
Segundo Menezes, “em um filme quem dá primeiro o seu depoimento é o cineasta e
não os personagens das histórias, por mais reais que eles e elas sejam”
100
.
Nesse sentido, podemos analisar a construção do outro em Crede-mi como um
discurso sobre os próprios realizadores do filme, e não exatamente sobre o povo do
interior do Ceará. Ou ainda, um discurso sobre a visão que os realizadores do filme
têm sobre o povo no interior do Ceará. E podemos perceber o quanto Bia Lessa e
Dany Roland se esforçaram para fazer deste povo um povo erudito. Em primeiro
lugar, utilizaram-se de uma obra de autor erudito, o que é uma forma de conferir
legitimação culta à narrativa a ser filmada. Pois, por mais que o livro de Thomas
99
MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. A questão do sujeito herói em cabra marcado para morrer.
op. cit., p. 121.
100
MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. A questão do sujeito herói em cabra marcado para morrer.
op. cit., p. 123.
99
crede-mi
Mann tenha sido desprovido de seus elementos mais especificamente eruditos, o
nome do autor desempenha certa função, acionando no espectador idéias quanto à
erudição do filme que está para ser visto. O nome do autor, segundo Foucault, não é
um nome próprio como os outros: ele exerce um certo papel na construção dos
discursos, ele tem uma função classificatória. Por isso, segundo Foucault, a figura do
autor exerce uma “função autor” que “é característica do modo de existência, de
circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade”
101
.
O autor enquanto “função” é objeto de apropriação, ele informa e organiza, e ele não
se constrói de maneira espontânea mas é resultado de uma operação complexa que
constrói um certo ser dotado de razão que é justamente o chamado “autor”
102
. Em
segundo lugar, Bia Lessa e Dany Roland tentaram evitar a complacência para com
este povo – ao menos no que se refere às imagens ficcionais –, mostrando-os apenas
quando eles eram dignos de um bom desempenho artístico, ou seja, mostrando-os
como bons atores. O que vemos são boas interpretações, algumas realmente notáveis.
E, por fim, é preciso mencionar a montagem erudita que foi realizada a partir do
material popular, um tipo de montagem que possivelmente os atores que participaram
do filme estranhariam, já que incomum no cinema que atinge o povo mais
diretamente. Trabalhar com o material fílmico de modo erudito acaba por conferir
erudição a esse material – o que é notável neste filme feito a partir de imagens
“documentais” e “ficcionais” de populares.
101
FOUCAULT, Michel. Qu’est qu’ est um auteur. In: Dits et écrits I. Galllimard: 1994, p. 798.
102
FOUCAULT, Michel. Qu’est qu’est um auteur. In: Dits et écrits I. op. cit., p. 801.
100
santo forte
o cineasta constrói seu povo
101
santo forte
Neste trabalho temos procurado deixar de lado aquilo que se fala sobre o filme
analisado e sobre seus realizadores. Não se trata de ignorar o material crítico
produzido sobre a obra e a imagem – artigos, livros acadêmicos, textos que se
debrucem sobre a imagem são, naturalmente, amplamente utilizados. O que não nos
interessa nesta pesquisa é o mundo social que gravita ao redor do filme e do cineasta:
coisas como o chamado “campo” ao qual o artista pertence, o meio social no qual ele
nasceu, os prêmios e menções honrosas que seu filme ganhou, as suas estratégias de
distribuição e exibição etc. Procuramos o que há de social dentro da própria imagem,
admitindo que ela possui uma linguagem que lhe é própria e que revela, a sua
maneira, aspectos relevantes da sociedade. Por isso trata-se aqui de uma Sociologia
da Arte, e não de uma sociologia que procure analisar o que se pensa sobre
determinado artista ou seu comportamento diante de seus pares e da sociedade como
um todo.
No entanto, ao tratar de um filme de Eduardo Coutinho, não poderemos ignorar as
opiniões mais difundidas sobre seu trabalho como documentarista. Em primeiro lugar,
pois dele se diz que criou um “estilo”, uma forma própria de fazer cinema que tem
sido aclamada e que se tornou praticamente parte da própria leitura da obra,
influenciando sobremaneira a forma como pensamos seus filmes. Em segundo lugar,
pois muito do que se fala sobre seu estilo documental não corresponde exatamente ao
que se vê em seus filmes, o que os torna, a meu ver, na verdade mais interessantes,
pois mais permeados por tensões que muitas vezes tornam-se ocultas debaixo da
monotonia de opiniões sobre este cineasta. Levaremos em conta, enfim, as opiniões
quase sempre apaixonadas sobre Coutinho justamente para mostrar em que medida
ela influenciam uma leitura fílmica que não corresponde exatamente àquilo que
vemos na tela, apesar de provavelmente corresponder ao que o cineasta desejaria que
fosse visto.
Numa breve pesquisa nos arquivos de um jornal de grande circulação do estado de
São Paulo, por exemplo, em três anos de tiragem, não encontramos nenhum artigo
restritivo a respeito dos filmes de Eduardo Coutinho. Frases laudatórias, por sua vez,
são abundantes. Nos artigos que encontramos, Coutinho é “sinônimo de maestria no
102
santo forte
documentário” e “referência incontornável do documentário contemporâneo”
103
; ele
“está no auge”
104
e é “considerado o maior documentarista brasileiro”
105
. Além disso,
“sua câmera realiza verdadeiros milagres de simpatia e penetração humana”
106
e “os
entrevistados se revelam com total naturalidade”
107
. Encontramos ainda que “a
‘retomada’ da obra de Coutinho a partir de ‘Santo Forte’ foi uma das melhores coisas
da nova fase da produção brasileira. Poucos foram capazes de se reinventar mantendo
fidelidade aos princípios; poucos seguiram de modo antidemagógico o pressuposto
humanista que sempre foi o ponto forte do cinema nacional”
108
. Além do jornal Folha
de S. Paulo, encontramos uma revista Trip de outubro de 2005 que começa sua
matéria sobre o diretor, sintomaticamente intitulada Fala que eu te escuto, com as
seguintes palavras: “Talvez a única pessoa que não considere Eduardo Coutinho o
mais importante diretor de documentários do país seja ele mesmo”
109
. Além de ser
considerado o melhor documentarista do país, Coutinho é tido como uma pessoa humilde e
desinteressada.
O “estilo” de Eduardo Coutinho é elogiado por duas razões principais. Em primeiro
lugar, pelo “estilo” em si mesmo, ou seja, pelo tipo de documentário praticado por
ele, no qual o foco são entrevistas com pessoas “comuns” – normalmente pobres ou
de classe média baixa, já que são estes que parecem sempre ter algo mais interessante
ou emocionante para dizer na visão de certa camada erudita representada aqui pelo
próprio Coutinho e pelo espectador ideal a quem são destinados seus filmes. Nesse
sentido, o objeto do documentário de Coutinho em Santo Forte (1997) constitui-se
como um objeto de certa forma “esperado” e recorrente entre documentários que
abordam questões sociais: pessoas na sociedade que são tidas como incapazes de
103
COUTO, José Geraldo. Obras decifram cinema de Coutinho. Folha de São Paulo. São Paulo, 3 abr. 2004,
Ilustrada, p. E4.
104
CRUZ, Leonardo. O ser e o nada. Folha de São Paulo. São Paulo, 18 nov. 2005, Ilustrada, p. E1.
105
ARANTES, Silvana. Diretor vive encontro marcado no sertão. Folha de São Paulo. São Paulo, 4 dez. 2005,
Ilustrada, p. E3.
106
COELHO, Marcelo. O fim, o princípio e o meio do caminho. Folha de São Paulo. São Paulo, 30 nov. 2005,
Ilustrada, p. E10. O artigo de Marcelo Coelho, articulista habitual sobre cinema da Folha de S. Paulo, na
verdade faz algumas críticas a um dos filmes mais recentes do cineasta, mas apenas na medida em que o
compara com suas obras anteriores, que ele considera superiores.
107
COELHO, Marcelo. O fim, o princípio e o meio do caminho. Folha de São Paulo, op. cit.
108
BUTCHER, Pedro. Festival do Cinema do Rio começa hoje com a melhor seleção brasileira de sua história.
Folha de São Paulo. São Paulo, 22 set. 2005, Ilustrada, p. E1.
109
LUNA, Fernando. Fala que eu te escuto. Revista Trip. São Paulo, ano 18, número 138, out. 2005, p.28.
103
santo forte
defenderem-se e falarem por si mesmas
110
, necessitando portanto de um interlocutor –
o cineasta – para levar suas palavras e sentimentos ao conhecimento público. Um tipo
de objeto que contem duas características que, segundo David MacDougall, são
fundamentais na capacidade de despertar o interesse e a empatia do espectador pelos
personagens “desconhecidos” ou não-mitificados: sua vida absolutamente banal e
ordinária e, ao mesmo tempo, uma sensação de que há algo de extraordinário nessa
banalidade
111
. Os personagens de Coutinho em Santo Forte são em grande medida
construídos dessa maneira, e disso decorre parte da força de seu “estilo” baseado em
entrevistas que exacerbam esta relação banal/extraordinário dos personagens.
Parte importante do “estilo” consiste em mostrar o quanto o entrevistado está à
vontade com o entrevistador e a equipe de produção – mostrando-se amável,
sentimental, aberto, vulnerável, sincero etc. – e também em mostrar o fato de que
estamos vendo de fato uma produção – e por isso a ênfase na imagem da câmera, do
microfone, dos fios, das pessoas que compõe a equipe e do dinheiro pago aos
entrevistados. Mais do reflexividade, este procedimento exacerba, segundo penso, o
fato de Coutinho ser o grande personagem de seu filme. Não temos exatamente um
filme sobre homens e mulheres do povo, mas um filme sobre um cineasta que,
aparentemente com respeito e humildade, se dispõe a subir o morro e a ligar sua câmera
diante de pessoas pobres e espiritualizadas. A construção do personagem Coutinho é um
processo elaborado e executado com maestria, vide a quase unanimidade das opiniões
sobre seus documentários. Ele é aquele que parece estabelecer relações sinceras e
desinteressadas com seus entrevistados, criando uma sensação de que os respeita, de que
gosta deles, os compreende, é íntimo, etc. Segundo MacDougall, o cineasta é sempre
parte do objeto de seu próprio filme
112
. O sucesso do objeto e personagem Coutinho é
nos dar a impressão de que ele não é o objeto de seu filme, e sim os entrevistados, e
de que ele obscureceu seu ego para fazer emergir o ego dos destes, quando o que
ocorre é quase o oposto: o cineasta se utiliza da simpatia e da disponibilidade dos
entrevistados de modo que suas falas criem antes uma imagem do realizador do que
110
WINSTON, Brian. Documentary: I think we are in trouble. In: ROSENTHAL, Alan (org). New challenges for
documentary, Berkeley: University of California, 1988, p. 31.
111
MACDOUGALL, David. The fate of the cinema subjet. In: Transcultural Cinema. Princeton, New Jersey:
Princeton University Press, 1998.
112
MACDOUGALl, David. The fate of the cinema subjet. In: Transcultural Cinema. op. cit., p. 29.
104
santo forte
do povo.
O segundo motivo pelo qual o “estilo” de Coutinho costuma ser elogiado é sua suposta
capacidade de dar acesso aos sentimentos mais íntimos dos personagens, por ser capaz de
escutar os outros com carinho e nesse processo tirar deles os depoimentos mais
verdadeiros e emocionantes possíveis. Considera-se que as pessoas falam a Coutinho
coisas que não falariam normalmente. É por isso que se diz que “sua câmera realiza
verdadeiros milagres de simpatia e penetração humana”
113
e que “os entrevistados se
revelam com total naturalidade”
114
. Coutinho é elogiado pelo poder que sua câmera
tem de aproximar-se intimamente dos personagens, revelando assim algo da
“verdade” e da “realidade” daquele povo filmado. Isso justifica a preferência pela
filmagem nas casas dos entrevistados, onde naturalmente há uma maior sensação de
que o cineasta está penetrando na intimidade destas pessoas.
Sabemos, no entanto, que a revelação de uma “verdade” ou “realidade” do povo não é
uma questão de intenção do cineasta nem da capacidade tecnológica a que chegou o
cinema, capaz de gravar o som direto numa entrevista e de nos fazer ver os menores
detalhes do rosto humano – o reduto da identificação tão fundamental na experiência
do espectador
115
. A “realidade” ou a “verdade” de uma imagem é uma construção
social e temporal: “Não importa o quanto nós sintamos a necessidade de um
testemunho objetivo da realidade, nossas tecnologias de produção da imagem não
providenciarão isso para nós”
116
.
Sobre estes dois aspectos, portanto, ou seja, pela qualidade do seu “estilo” e por uma
suposta “verdade” que este “estilo” permite tirar dos personagens – Coutinho parece
ser uma quase unanimidade.
Nada disso é, naturalmente, desprovido de sentido, como parte de uma grande
alucinação coletiva, mas sim uma construção fílmica bem realizada. O cinema de
Eduardo Coutinho consegue efetivamente fazer emocionar grande parte do público,
principalmente aquele mais intelectualizado ou erudito, pela intimidade que parece ter
113
COELHO, Marcelo. O fim, o princípio e o meio do caminho. Folha de São Paulo. op. cit.
114
COELHO, Marcelo. O fim, o princípio e o meio do caminho. Folha de São Paulo. op. cit.
115
MACDOUGALl, David. The fate of the cinema subjet. In: Transcultural Cinema. op. cit., p. 51.
116
RUBY, Jay. The ethics of imagemaking; or, “They’re going to put me in the movies. They’re going to
make a big star out of me...”. In: R
OSENTHAL, Alan (org). New challenges for documentary. op. cit., p, 309.
105
santo forte
com as pessoas “simples” e “pobres”. Além disso, Coutinho parece efetivamente
conseguir uma aproximação de ordem emocional com seus personagens que muitos
outros cineastas talvez tivessem dificuldade de obter. Alguns de seus entrevistados,
por exemplo, e não poucos, revelam coisas muito íntimas, como pensamentos suicidas
ou homicidas. Ao assistir pela primeira vez um de seus filmes, é admissível que o
espectador sinta que efetivamente aquele cineasta conseguiu dar “voz ao povo”, que
ele procura respeitar ao máximo seus personagens, que ele deixa-os à vontade e é
capaz de tirar depoimentos incrivelmente verdadeiros. Todas estas sensações que
muitos têm ao assistir um filme de Eduardo Coutinho são absolutamente
compreensíveis: seus filmes são rodados e montados para que pareçam exatamente
assim, como dotados de uma “verdade” popular alcançada pela realização de
entrevistas nas quais o entrevistado parece sentir-se absolutamente à vontade com o
entrevistador. A sensação de “verdade” no cinema decorre de uma elaboração fílmica, de
escolhas que são feitas no processo de produção – ou seja, a “verdade” não é um dado da
realidade social, mas um empreendimento, que também depende da disposição do
espectador. É por isso que temos “verdades” tão diversas, como as construídas pelo
Cinema Direto dos irmãos Mayles – aproximando-se idéia do cinema como “mosca
na parede” – e pelo Cinema Verdade de Jean Rouch e Edgar Morin – adeptos da idéia
da mosca na sopa. Coutinho também é um exímio construtor de “verdades”, e é assim
que é tido pelo público e pela crítica em geral: sua “verdade” residiria em sua habilidade de
mostrar e de dar voz ao povo, sem imposições. Procuraremos mostrar aqui como se
constrói filmicamente este mecanismo de aproximação de uma suposta “verdade”
popular em Santo Forte e sua relação com o elemento erudito corporificado no
próprio cineasta e no olhar que suas imagens nos sugerem.
Santo Forte talvez seja, entre os filmes de Coutinho, aquele que é mais capaz de
despertar nossa empatia para com aqueles entrevistados e para com o “estilo” do
cineasta. Há um frescor próprio da obra que inaugura a série, uma pequena
indefinição do “estilo” que não compromete sua unidade mas que é, em si mesma,
agradável, pois ele aparece menos presunçoso e enrijecido. Babilônia 2000, ao
contrário, mostrar-nos-á o “estilo” de uma forma um tanto caricata, e Edifício Master,
a meu ver, compromete-se no maneirismo em que redunda seu estilo. Se neste último
106
santo forte
talvez a força dos depoimentos seja maior, mais facilmente eles recaem no
sentimentalismo e com mais freqüência funcionam como reafirmação das qualidades
do próprio “estilo”, numa certa redundância. Em Santo Forte, a meu ver, manifestam-
se algumas características que David MacDougall descreve a respeito da imagem dos
homens e mulheres que são objetos de muitos documentários, e por isso o prazer em
observá-los: “Cada palavra ou gesto das pessoas filmadas assume um peso adicional
no conhecimento do que será feito delas, mas também na sua certitude quintessencial.
Em cenas vistas e revistas novamente, as pessoas comportam-se de maneira
misteriosa – como se elas estivessem destinadas a assim se comportar. Cada um vê
em cada pessoa a perfeição de qualidades das quais ela mesma não tem consciência.
Há uma sensação de imerecido privilégio por se ser testemunha de momentos de
graça transitória nas vidas das pessoas”
117
.
Escolhemos Santo Forte para essa análise não apenas pelos motivos acima
explicitados – sobretudo a construção da imagem do popular em relação a seu
“construtor” erudito –, mas também porque, a meu ver, lá se encontram visões
bastante interessantes do popular como sujeito de práticas religiosas. Além disso, o
elemento popular em Santo Forte estará confrontado a o todo momento com o
elemento erudito – o próprio Coutinho e também a Igreja Católica – que estão
munidos, justamente, dos instrumentais necessários à disseminação de uma cultura de
massas – a equipe de filmagem, o cinema, a transmissão da missa do Papa pela
TV
Globo.
A primeira imagem que veremos é um plano estático de um casal. Eles olham para a
câmera, como se posassem para uma fotografia. Diversos personagens serão
introduzidos desta maneira, que lhes instaura ao mesmo tempo um aspecto de
dignidade, objetividade e respeito. Estaríamos vendo os personagens da forma que
são, como num “retrato”, como se o realizador quisesse mostrá-los da maneira mais
verdadeira possível, sem intervenções. Além disso, há uma sensação de que desta
maneira eles se mostram a si mesmos, de que eles se apresentam para nós, sem a
mediação do cineasta. Há, portanto, nestes quadros imóveis que “apresentam” os
117
MACDOUGALl, David. The fate of the cinema subjet. In: Transcultural Cinema. op. cit., p. 34.
107
santo forte
personagens durante todo o filme, um desejo de transmitir a sensação de verdade e de
deferência para com aqueles homens e mulheres do povo filmados.
O fato de este quadro ser a primeira seqüência do filme pode também nos transmitir a
sensação de que a palavra do povo será a primeira e a mais importante a aparecer na
tela, antes mesmo da palavra do cineasta, como se este fosse um simples veículo para
a transmissão da voz popular. Com efeito, Coutinho, além de nos deixar ver logo no
começo de seu filme o “retrato” do povo, logo nos deixará ouvir sua voz, sem
mediações: a próxima seqüência será de André (o homem do casal que vemos na tela)
falando. Há, naturalmente, um certo impacto nesta seqüência tão “popular”: dar a voz
ao povo é a primeira coisa que se faz, logo depois deste ser apresentado de uma
maneira também sui generis (não há locução dizendo “este é André e sua esposa” e
coisa do tipo). Ainda não temos os créditos iniciais, não temos o nome do filme, não
temos a voz do narrador, mas já temos a imagem e a voz do povo.
Outros quadros parados, além dos retratos, aparecerão diversas vezes durante o filme.
Trata-se de cenas de espaços vazios, nos quais possivelmente se deu alguma
manifestação paranormal, conforme relatado pelos personagens. O quarto onde a
falecida mãe de André manifestou-se em sua esposa é o primeiro. Outros virão, como
a sala na qual Carla levava surra de preto velho e o quintal da casa de Thereza que
aparecerá depois dela dizer que “os espíritos estão por toda a parte, é que a gente não
tem vidência para ver; agora mesmo tem uma legião aqui”. Trata-se naturalmente de
um poderoso recurso estilístico usado por Coutinho para corroborar sutilmente o que
seus personagens falam.
108
santo forte
O cômodo sem ninguém não é apenas um local da neutralidade, no qual o espectador
pode ver o que quiser, e atestar por si mesmo o relato dos personagens. Não se trata
em realidade de ambientes vazios, mas de ambientes povoados pelas palavras
imediatamente anteriores ditas pelos personagens. À semelhança da experiência de
Kulechov
118
, podemos dizer que aquele quarto, sala e quintal tem uma conotação
dada pela sequência que lhe é imediatamente anterior. Por isso, mais do que deixar o
espectador ver e sentir o que quiser diante dos ambientes vazios, acredito que eles nos
fazem sentir, ao contrário, a presença dos espíritos descritos pelos personagens. O
que é aparentemente “neutro”, desprovido de conteúdo, vazio, torna-se local de
confirmação daquilo que os entrevistados disseram. Coutinho lança mão o tempo todo
desta estratégia poderosa: parecer alguém isento e desprovido de julgamentos,
comprometido com a voz do povo; mas ao mesmo tempo procurando corroborar
aquilo que seus entrevistados disseram, o que faz com que nos sintamos mais
próximos deles e mais emocionados com suas palavras. Da união desta suposta
“verdade da imagem” com a suposta “verdade do povo”, transmitida através da
corroboração de seu discurso, teremos a estratégia principal de Coutinho e aquilo que
dá força a seu estilo, fazendo com que ele convença a maioria dos espectadores de
que “sua câmera realiza verdadeiros milagres de simpatia e penetração humana” e de
118
Experiência na qual planos de conteúdo absolutamente diferentes eram intercalados com o mesmo plano
de um homem. De acordo com o plano anterior, o rosto do homem, que era propositalmente bastante
inexpressivo, ganhava expressões de tristeza, alegria ou fome, não obstante ser exatamente o mesmo plano
que apenas era intercalado com diferentes imagens. A experiência nos mostra que o espectador constrói o
sentido de uma imagem na sua relação com as imagens que lhe são anteriores e posteriores.
109
santo forte
que “os entrevistados se revelam com total naturalidade”. O povo aqui é construído
para que pareça mais verdadeiro e muito mais interessante aos olhos do espectador.
André começa a falar sobre a pomba-gira que baixava no espírito de sua esposa e que
dizia querer matá-lo. Diz que pede para a mulher se tratar do problema dela com os
espíritos, caso contrário lhe avisa que o casamento corre perigo
119
. A fala de André é
cheia de entonações, gesticulada, interessante. Mais à frente, em outro momento do
filme, com André ainda sendo entrevistado, a câmera deixará um espaço do lado
esquerdo de André enquanto ele reproduz sua conversa com a falecida mãe, de modo
que quase enxergamos o espírito sentado a seu lado. Com esse e os demais recursos,
Coutinho cria um poderoso ambiente de aceitação do que o entrevistado diz, de modo
a parecer que o “respeita”. Mas logo ouviremos a primeira intervenção do cineasta na
entrevista, primeiramente elaborando uma pergunta para que André esclareça o modo
como um espírito repleto de boas intenções tratou de sua mulher médium: Coutinho
diz: “Fez a limpeza como?”. André lhe responde. Mais algumas falas do entrevistado
e nova intervenção de Coutinho: “É como se você estivesse falando com três
pessoas?”. Agora, mais do que perguntar, Coutinho aqui procura dar uma direção à
fala do entrevistado, de modo que consiga extrair aquilo que é mais interessante para
seu documentário. Na verdade, Coutinho colocou na boca do entrevistado aquilo que
ele quer que ele diga: era como se houvesse três pessoas conversando com André.
Parece um artifício natural, visto tratar-se de um filme baseado em entrevistas: em
certos momentos o entrevistador deve “dar corda” ao entrevistado, de modo que a
conversa não esmoreça. Porém, conforme o filme avança, vamos percebendo que este
procedimento, tornando-se cada vez mais intenso, será importante para situar o lugar
do popular em relação ao erudito, ou seja, ao próprio Coutinho. Para criar o
sentimento de “verdade” e “naturalidade” do estilo Coutinho, e para transmitir e a
sensação de que sua câmera consegue “penetrar na alma humana”, não basta
simplesmente ligar a câmera e dar voz ao povo, mas fazê-lo falar conforme se espera
que ele fale. E quando pensamos nesta expectativa em relação à fala do povo
pensamos, naturalmente, em um espectador que não pertence a esse mesmo povo, mas
que está mais próximo do lado erudito de Coutinho. É este o espectador ideal do
119
É de se notar, inclusive, o fato de que durante todo o filme veremos depoimentos de mulheres
abandonadas pelo marido ou, nesse caso, de um marido ameaçando abandonar sua mulher.
110
santo forte
filme, justamente aquele que pode ver o povo como um outro e regozijar-se com sua
imagem emocionante e exótica. As intervenções de Coutinho funcionam para criar
uma idéia de popular a ser consumida por aquele espectador que compartilha com o
diretor de uma mesma posição na sociedade. O espectador pode identificar-se com o
personagem de Coutinho, e contentar-se com o que entende ser um respeito ao povo: o
suposto respeito de Coutinho por aqueles personagens é, de alguma forma, um respeito que
o espectador ideal deste filme também gostaria de acreditar que tem.
Há, naturalmente, um certo prazer no espectador em compartilhar esta posição, um
prazer que é dado, como coloca Elizabeth Cowie, pelo fato de que o espectador vê-se
alinhado ao discurso de sobriedade, cientificidade e conhecimento que é transmitido
pelo documentário
120
. O espectador é colocado como o sujeito de um conhecimento
que ele e o diretor compartilham, do que decorre sua identificação com o próprio
conhecimento. O espectador tem prazer em sentir-se conhecedor do mundo, sensação
que o documentário justamente pode transmitir por sua maior relação com o discurso
da sobriedade.
Voltando a André, vimos que a fala de Coutinho não apenas dá corda para o
entrevistado, mas colabora para construir uma imagem deste entrevistado como
alguém pertencente ao universo popular. Quando André termina sua fala – é essa a
impressão que temos dada a “naturalidade” dos cortes de Coutinho, mas naturalmente
é Coutinho que interrompe a fala de André com uma montagem que nos passa uma
sensação de naturalidade, como se o entrevistado tivesse dito tudo aquilo que queria
antes de ser interrompido – temos a contextualização temporal e espacial do filme que
veremos: uma tela preta nos anuncia que estamos no Rio de Janeiro no dia 3 de
outubro de 1997. A próxima imagem introduz um dado novo neste local e nesta data:
nesse dia o Papa João Paulo II estava no Brasil e rezava uma missa perante uma
multidão de fiéis no Aterro do Flamengo. Está dada, portanto, uma qualificação
temporal que serve de pano de fundo ao filme de Coutinho: colher depoimentos sobre
a religião entre homens e mulheres do povo durante a visita do Papa ao Brasil. A
imagem mostra o Papa iniciando sua missa e incitando o povo a pedir perdão pelos
120
COWIE, Elizabeth. The spectacle of actuality. In: GAINES, Jane, (org.), RENOV, Michael (org.). Collecting
Visible Evidence. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999, p. 29.
111
santo forte
pecados cometidos contra a família. Naturalmente, trata-se de uma frase muito bem
escolhida, dado que, de pecados contra a família, este filme estará cheio. Quando a
câmera abandona o rosto do Papa para concentrar-se numa panorâmica da multidão,
ouvimos a voz do povo rezando o Pai Nosso. A imagem afasta-se para nos mostrar a
força popular daquela ocasião, e em seguida sobrevoa morros cariocas, ainda
acompanhada pela voz da multidão.
A impressão que temos, naturalmente, é de que a missa extrapola o Aterro do
Flamengo e invade os barracos cariocas, como se todo o povo participasse com certo
fervor desse momento católico. E é efetivamente este o teor das próximas imagens,
mostrando lares populares cariocas nos quais a família se reúne em frente à televisão
para acompanhar Sua Santidade. Mas conforme os depoimentos vão se sucedendo,
veremos que o fervor católico parece restrito àquele momento no qual o Papa
apresenta-se diante do povo do Rio de Janeiro. O catolicismo em Santo Forte é um
“outro” em relação aos entrevistados, apesar de todos se dizerem católicos. Neste
sentido, o catolicismo e Eduardo Coutinho estão colocados num mesmo lugar e em
oposição aos entrevistados: são um elemento estranho que eles aceitam em sua casa,
com quem dialogam, mas que acreditam estar de um lado mais “erudito” em relação
ao popular. O catolicismo absolutamente não lhes pertence, ao menos não no sentido
ilustrado pela visita do Papa, assim como Coutinho, logicamente, não pertence ao
mundo popular. Diante da Igreja e diante do cineasta, a atitude dos entrevistados é de
um respeito que revela inclusive, a meu ver, subalternidade. Na estratificação social,
Coutinho é duplamente “superior” ao entrevistado: é superior no sentido da cultura a
que pertence – e nesse aspecto seu lugar é o mesmo do Papa e da Igreja Católica – e é
superior no sentido de que carrega uma câmera cinematográfica e tem um poder sobre
a imagem daqueles entrevistados: “Como cineasta, você está sempre... explorando. É
parte da vida moderna”
121
, diz Marcel Ophuls. Segundo Calvin Pryluck, há “uma
relação de poder desigual entre investigadores e objetos; a desproporção de status e
sofisticação é sutilmente coercitiva. Provavelmente não é por acaso que um grande
número de participantes em experimentos médicos são prisioneiros ou então
indígenas (...). Margaret Mead coloca a questão de maneira direta: ‘Quanto menos
121
C.f. PRYLUCK, Calvin. Ultimately we are ousiders: the ethics of documentary filming. In: ROSENTHAL,
Alan (org.). New challenges for documentary. op. cit. p., 257.
112
santo forte
poderoso o objeto é, per se, mais a questão da ética – e do poder – emerge’”
122
.
É interessante que a afirmação de que o cineasta estabelece uma relação assimétrica
com as pessoas por ele filmadas soa banal e primária, como se revelasse apenas o
óbvio já sabido e reconhecido por grande parte dos espectadores de documentários.
No entanto, estes mesmos espectadores, que provavelmente não exitariam em assinar
embaixo da declaração do realizador Marcel Ophuls, continuam a ver os filmes de
Coutinho como “verdadeiros milagres de simpatia e penetração humana” e acreditam
que diante de Coutinho “os entrevistados se revelam com total naturalidade”,
conforme nossas já citadas resenhas de jornal. A aceitação da assimetria não os
impede de ter uma visão positivista do documentário em geral e laudatória de
Coutinho em particular: a imagem documental continua sendo entendida como algo
que pode revelar uma parte da realidade e Coutinho como alguém que consegue fazer
isso em relação aos objetos populares.
A assimetria se revela claramente, a meu ver, no momento em que Thereza, a
entrevistada, é questionada sobre se é feliz. Pergunta que à primeira vista emociona
por possibilitar a revelação de uma verdade popular, mas que, diante das inúmeras
dificuldades narradas pela entrevistada, soa na verdade como um tanto cretina,
esperando uma resposta que confirme ou o lado estranho e conformado do pobre – “é
pobre mas é feliz” – ou sua capacidade de emocionar o erudito pela tristeza
manifestada. Ela esboçará um meio termo, dizendo que por um lado é feliz, mas por
outro não. Coutinho insiste em tirar dela uma resposta que satisfaça a nós,
espectadores, como confirmação de alguma essência popular, e pergunta-lhe o
porquê, ao que se revela a submissão da entrevistada ao permitir permissão para
deixar de responder: “Eu preciso responder a essa pergunta?”. Trata-se de um
momento-limite da desigualdade de posição ocupada por Coutinho – erudito, classe
média alta, munido de uma câmera, que pode comprar o direito de utilização da
imagem da entrevistada – em relação aos entrevistados. Mas, durante todo o filme,
esta relação estará presente como um pano de fundo incômodo mas evitado pelo
cineasta, que pretende sugerir que desempenha uma função próxima a um “amigo”
122
PRYLUCK, Calvin. Ultimately we are ousiders: the ethics of documentary filming. In: ROSENTHAL, Alan
(org.). New challenges for documentary. op. cit. p., 262.
113
santo forte
para aqueles entrevistados. A presença de Coutinho é fundamental pra despertar
certas opiniões dos entrevistados, assim como a presença do Papa é fundamental para
despertar o sentimento católico que soa também, em grande medida, como temor e
submissão a uma determinada autoridade.
Em relação à Igreja Católica, isso logo se revela no depoimento de Braulino,
justamente um dos que parecem ser dos mais "orgulhosos" em relação a sua condição
de umbandista. Coutinho lhe pergunta o porquê dele estar gravando em fita de vídeo
cassete a missa do Papa, ao que ele responde, sem muito entusiasmo e
desconversando: "eu sou católico". Coutinho não percebe que Braulino não quer
muita conversa naquele momento e continua, dessa vez cometendo uma gafe,
perguntando a Braulino quais são os espíritos que ele incorpora. Braulino então diz
que não quer conversar sobre isso naquele momento e os espectadores, que
provavelmente pertencem ao mesmo universo cultural de Coutinho, podem não
entender de imediato, assim como ele, o porquê de Braulino ter desconversado. Perto
do final do filme isso será esclarecido: Braulino não queria falar da umbanda na
“frente” do Papa. Deve ter achado desrespeitoso e, mais do que isso, deve ter achado
de certa forma temerário. A gafe de Coutinho mostra um pouco da profunda
separação entre ele e os entrevistados já que, para o diretor, assim como para a
maioria dos espectadores, a Igreja Católica talvez não seja algo a ser "temida". Já os
entrevistados demonstram, na frente de Coutinho, um profundo respeito e parecem
temer ao Deus católico. No entanto, o que queremos sugerir aqui, é que essas
demonstrações de respeito à Igreja Católica na frente de Coutinho ocorrem com tal
intensidade justamente pela presença do cineasta que, para aqueles moradores do
morro, ocupa, no espectro da estratificação social, posição de “outro” exatamente
como o catolicismo. Na frente de Coutinho deve-se temer a Igreja Católica pelo
simples motivo de que Coutinho está lá, na casa e na sala de homens e mulheres do
povo, ocupando na vida deles uma posição semelhante à que ocupa a Igreja Católica.
Com um “agravante”: ele tem uma câmera de cinema e o saber para utilizá-la. Nesse
sentido tanto ele quanto o Papa demonstram parte de sua força a partir de sua
intimidade com os meios de comunicação de massa.
Naturalmente, deve ser considerado também o fato, que já se refere ao sincretismo
114
santo forte
religioso com tema do filme, de que muitos dos personagens umbandistas ou
evangélicos devem sentir sua porção católica aflorar durante a comoção causada pela
missa do Papa rezada diante de dois milhões de pessoas no aterro do Flamengo e
acompanhada pelo ídolo Roberto Carlos. É também por isso, e pelos depoimentos que
se seguirão, que digo que Coutinho e o Papa estão, neste filme, do mesmo lado em
relação aos entrevistados: o lado daquilo que é oficial, que deve ser temido e
respeitado, do lado da erudição. Pois Coutinho causa, muitas vezes, a mesma reação
do Papa, fazendo despertar os sentimentos mais católicos dos entrevistados.
Um entrevistado dirá, ante a pergunta de Coutinho sobre a religião que ele pratica:
“Eu fico com o Senhor! Eu sou umbandista, mas digo
123
que sou católico”. Em
seguida vemos um homem cantando timidamente junto com Roberto Carlos e logo
depois uma moça que acompanha o cantor de maneira bem mais extrovertida. O
cineasta pergunta a qual religião ela pertence, ao que a moça responde, sem titubear:
“católica apostólico-romana”. Ela não quer deixar dúvidas de que pertence à mesma
religião de João Paulo II. Coutinho continua sua intervenção, perguntando se ela fez
algum pedido. A moça lhe responde que sim, que pediu para ter um filho, e que fez o
pedido durante a missa do Papa, que ela acompanha pela televisão. Interessante
contato este que os católicos deste filme travam com a religião: alguns admitem que
nunca vão à missa, que não praticam o catolicismo, outros que acreditam nas pombas-
giras e nos pais de santo; mas, na frente do Papa, que eles vêm pela televisão, fazem
questão de dizer que pertencem a sua Igreja, a ponto de incluir o “apostólico-romano”
em sua fala. Mais uma vez, o papel ocupado pelo cineasta e sua equipe se assemelha
ao do Papa, no sentido de que a equipe de Coutinho também pertence a este mundo da
televisão e do cinema. Desta vez, porém, os entrevistados terão um contato com o
universo da imagem muito mais íntimo do que têm com a visão do Papa pela
televisão. O cineasta, porém, parece não perceber a importância de sua presença,
tanto neste sentido, quanto no sentido de que falamos anteriormente – o cineasta
como símbolo da oficialidade e da erudição. Se percebe, não colocou esta discussão
no filme. Parece que vemos uma tentativa intensa de respeitar a opinião do povo,
123
A entonação do entrevistado não deixa as dúvidas que a transcrição de sua fala pode incitar. Com o verbo
“digo” ele não quer dizer que “finge” ser católico a despeito de ser umbandista. Ele diz que, apesar de
praticar a umbanda, é, na verdade, católico.
115
santo forte
como se aqueles depoimentos tivessem algo de sagrado, como se a voz do povo nos
revelassem uma sabedoria inigualável. E não vemos indicação alguma que o cineasta
e a equipe se dêem conta de que os depoimentos que eles obtém estão determinados
pela presença de Coutinho, pela posição social que este ocupa em relação aos
depoentes, e pelo fato deles estarem munidos do equipamento cinematográfico. Seria
fundamental e interessante discutir esse aspecto, sem o qual a possibilidade de dar
“voz ao povo” fica reificada numa relação fetichista dada pelo entrevistador e sua
câmera. Autores como Jay Ruby consideram a reflexividade uma obrigação ética e
estética do realizador para com seu objeto: é preciso mostrar não apenas o produto (o
filme), mas também o produtor e o processo que levou a sua elaboração
124
. No caso
de Santo Forte seria fundamental, de acordo com aqueles autores que consideram a
importância da reflexividade, apresentar justamente o processo de construção da
imagem do popular sincrético e o papel do produtor na construção dessa imagem. Os
planos em que vemos a equipe de Coutinho não são, naturalmente, suficientes para
isso, nem o fato de vermos o pagamento aos entrevistados. Não é a toa que prolifera
uma visão positivista a respeito dos filmes de Eduardo Coutinho: é parte da construção
do personagem do realizador que ele não discuta nos filmes a assimetria da relação que
estabelece, apesar de parecer estar consciente dela nas entrevistas e palestras que profere.
O tema do sincretismo entre religiões afro-brasileiras e catolicismo aparece em
profusão durante o filme, e esse momento, o da missa do Papa, é especial neste
sentido. Existe uma preocupação, logo no início do filme, com as estratégias e os
temas principais que serão abordados. O depoimento de André, que abre o filme,
como já vimos, nos coloca diante de um “estilo” de entrevista que será próprio de
Coutinho. A tela preta contextualiza o local e a data. A missa do Papa preenche esta
data com uma conotação muito específica, e dá um “pano de fundo” para o
documentário. Há uma preocupação em colocar logo em cena todos os aspectos que
serão relevantes durante o filme, inclusive um que já mencionamos brevemente
acima: o caráter de produção, de cinema, de intervenção da imagem a que estamos
assistindo. Ou seja, Coutinho procura logo inserir imagens da câmera, de sua equipe e
de toda sua parafernália para tentar deixar claro o caráter cinematográfico do que
124
RUBY, Jay. The image mirrored: reflexivity and the documentary film. In: ROSENTHAL, Alan (org.). New
challenges for documentary. op. cit.
116
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vemos ali. Essa imagem da equipe, porém, tem algo importante que não podemos
deixar passar, e que já nos sugere o verdadeiro foco deste documentário: a
centralidade do próprio Coutinho. Com efeito, se repararmos nas imagens da equipe
subindo e descendo o morro, veremos que Coutinho é o comandante da troupe, a
quem a câmera fielmente também segue e que ela coloca no centro da tela.
Aqui, portanto, temos duas questões: a da necessidade de Santo Forte em esclarecer
seu caráter de cinema – o que, como dissemos, não é suficiente para discutir a questão
da reflexividade – e o fato do próprio realizador do filme ser o centro de seu cinema.
A centralidade de Coutinho, naturalmente, não diz respeito apenas ao fato de ele estar
sendo mostrado como o líder de um séqüito que o acompanha, ou ao fato de ouvirmos
sua voz ou vermos sua imagem de relance algumas vezes. A imagem central de
Coutinho em meio à equipe é apenas um pequeno “sintoma” do fato de que é ele e seu
“estilo”, na verdade, o verdadeiro objeto fílmico. O importante é atentarmos para o
cineasta ser, a todo o momento, o pólo imantador das entrevistas, e para o fato de que
ele consegue, às vezes mais às vezes menos sutilmente, levar a entrevista para o
caminho que deseja, criando assim uma idéia de popular que tem no cineasta sua
própria referência. Provavelmente é desta habilidade de colocar-se no centro de seu
filme e de ao mesmo tempo aparentar estar dando a voz ao outro que surge o tão
elogiado “estilo Coutinho”: ninguém esquece que ele, o cineasta, está lá a todo o
momento, catalisando as entrevistas – e por isso o nome do cineasta é sempre
lembrado associado a seu “estilo” – e a maioria acredita que o modo como se dá a
presença do cineasta confere ao popular um caráter extremamente respeitoso – e por
isso os elogios a seu cinema. Com efeito, além de ouvirmos sua voz, percebemos que
o entrevistado olha, durante as entrevistas, o tempo todo para Coutinho, como se
esquecesse que lá existe uma câmera de cinema. O fato de os entrevistados não
olharem para a câmera nos remete ao efeito de “naturalidade” que Coutinho quer
117
santo forte
transmitir, como se eles falassem espontaneamente para o cineasta, como se se
esquecessem de toda a equipe e a parafernália cinematográfica justamente devido à
habilidade de Coutinho de fazê-los se sentirem à vontade, como se conversassem com
um amigo, e portanto como se se mostrassem completamente abertos e verdadeiros.
Vê-se por aí, portanto, como o “estilo” Coutinho, apesar de parecer brotar da
habilidade de um cineasta de fazer emergir os depoimentos mais impactantes e
sinceros do povo, é fruto de uma construção cuidadosa, que inclui até mesmo o fato dos
entrevistados olharem fixamente para o próprio cineasta. Desta forma, mostrar a
parafernália apenas reforça o sentimento de naturalidade e amizade conquistado por
Coutinho: tem-se a sensação de que mesmo diante de toda a equipe que estamos
vendo, o entrevistador sente-se absolutamente natural e portanto “verdadeiro”
enquanto conversa com o cineasta.
Jean-Claude Bernardet escreve, em Cineastas e imagens do povo, sobre a centralidade
do cineasta em determinado tipo de entrevista: “Se, nos primórdios do cinema direto,
a entrevista era uma tentativa de encontrar o outro, após a fase de criação dessa
linguagem que se tornou um automatismo, ela hoje remete mais ao cineasta do que ao
entrevistado. Existe um espaço da entrevista: o entrevistado fica no campo da câmera,
geralmente de frente (...); seu olhar passa rente à objetiva, à direita ou à esquerda, em
direção ao entrevistador, que costuma ser o próprio realizador e que faz a pergunta à
qual o entrevistado responde (é o tal ¾ frente). Que este seja um sem-teto ou um
sociólogo que fala do sem-teto, seja o cego ou a vidente, o dispositivo espacial é o
mesmo. Tal dispositivo tem um centro imantador que é o lugar ao lado da câmera
onde se encontra o diretor (...). A repetição ad nauseam deste dispositivo, em
detrimento de outras formas dramáticas e narrativas, gerou um espaço narcisíco de
que o cineasta é o centro, pois é para esse centro que se dirige o olhar do
entrevistado”
125
. Talvez Bernardet não estivesse pensando exatamente em Coutinho
quando escreveu estas palavras, mas elas descrevem bem a situação que é criada pela
construção da entrevista enquanto imagem. Os entrevistados vem e vão, os temas
aparecem e desaparecem em suas falas, mas a todo momento o cineasta está lá, dando
uma coesão brutal a seu filme com sua simples presença, esteja ela perfeitamente
125
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. op. cit., p.286.
118
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aparente – como nas cenas de “bastidores” – ou apenas invocada pelo olhar que o
entrevistado lhe dirige. O fato de Coutinho ser o “centro imantador” deste filme é tão
nítido que não é à toa que seu nome seja associado a um “estilo” que ele vem
repetindo, inclusive, filme após filme, dialogando com sua própria obra e
reproduzindo seu próprio legado.
Naturalmente, uma tal presença do cineasta faz com que ele se torne o principal
objeto de seu filme, apesar da temática popular/religiosa que informa o conteúdo mais
aparente. É o “estilo Coutinho” quem aparece, e não exatamente os entrevistados.
Como escreve Paulo Menezes: “em um filme quem dá primeiro o seu depoimento é o
cineasta e não os personagens das histórias, por mais reais que elas sejam
126
. Em
Santo Forte, temos um filme que procura ocultar esta relação, dotando-a de uma
aparência de “naturalidade” e espontaneidade. A assimetria e a lugar ocupado pelo
popular e pela equipe de filmagem seria um aspecto interessante a ser explorado no próprio
filme Santo Forte, e não algo a ser obscurecido pelos numerosos procedimentos que visam
nos causar a impressão de que estamos vendo e ouvindo a voz do povo a respeito de sua
religião. É justamente pelo fato de o cineasta de Santo Forte ser o principal
personagem do filme – e não o povo, como parece – que citamos seu nome tão
frequentemente nesta análise, o que, naturalmente, não fizemos nas análises
anteriores. Desta vez ele é efetivamente um personagem de seu filme, como o norte-
americano Michael Moore é dos seus, evidentemente sob um outro aspecto.
Paulo Menezes, ao escrever sobre Cabra marcado para morrer, discorre sobre a
centralidade do realizador em questão. Segundo o autor, é Coutinho o “herói-sujeito”
do filme, e não João Pedro Teixeira ou sua viúva: “O que a história está tentando
recuperar é, sem dúvida, o tempo perdido. Mas não o tempo perdido de João Pedro e
Elisabeth, como pressupúnhamos desde o início, mas o do próprio Eduardo Coutinho
e de seu filme inacabado de 1964, através de outros personagens e protagonistas”
127
.
E Menezes continua, resumindo o processo que procura elaborar um resgate da
história do cineasta e do filme inacabado no procedimento de “dar a voz ao povo”: “A
126
MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. A questão do herói-sujeito em cabra marcado para morrer, filme de
Eduardo Coutinho. Tempo Social. op. cit., p. 123.
127
MENEZES, Paulo. A questão do herói-sujeito em cabra marcado para morrer, filme de Eduardo Coutinho.
Tempo Social. op. cit, p. 121.
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técnica de deixar estes ‘sujeitos’ falarem por si sós esbarra em alguns empecilhos que
neste momento devem tornar-se claros. O maior deles é que nossos personagens reais
não falam o que se suporia e o que se desejaria que eles falassem (...). Então o que
pode fazer o nosso diretor-narrador para tentar consertar a história que ele estava
construindo para nós? Sem mediações, ele simplesmente começa a colocar a fala na
boca dos personagens e, portanto, começa a falar por eles e em seu lugar”
128
.
Em Santo Forte, de modo semelhante, o que vemos é uma progressiva intervenção de
Coutinho, muitas delas no sentido de tirar de seus depoimentos aquilo que ele espera
que os entrevistados falem. Qualitativamente, a intervenção talvez seja de outra
ordem em relação ao que Paulo Menezes afirma enxergar em Cabra marcado, filme
no qual alguns personagens causam constrangimentos mais importantes devido às
suas opiniões sobre a ditadura, às suas falas “despolitizadas”, e inclusive devido a
alguns problemas com bebida. Em Santo Forte não há nenhuma animosidade ou
desconforto na relação entre entrevistador e entrevistado – ao contrário, o que se tem
é uma construção bem elaborada de uma relação que é o mais amistosa possível. Em
Santo Forte, a meu ver, o que se sobressai é sobretudo uma tentativa sutil mas eficaz
de estabelecer, com as intervenções do cineasta, uma espécie de hierarquia entre as
religiões na qual as religiões afro-brasileiras ocupam um papel mais elevado,
provavelmente por seu caráter mais imediatamente popular aos olhos de parte da
camada erudita a quem se dirige o filme. A Igreja Católica e a Universal do Reino de
Deus também são, naturalmente, populares, no sentido de que têm uma ressonância e
uma presença no povo, conforme podemos ver no próprio Santo Forte. Mas as
religiões afro-brasileiras parecem ser, aos olhos de Coutinho, e possivelmente de
grande parte de seus espectadores, mais autenticamente populares, ligadas às “raízes”
do povo brasileiro afro-descendente e, aos olhos das camadas mais eruditas, muito
mais interessantes. Para estas mesmas camadas a Igreja Universal do Reino de Deus
comporta possivelmente alienação, já que não parece se originar das tradições
“autênticas” de um povo, mas do empreendedorismo de alguns bispos espertos que
conseguiram criar uma estrutura empresarial-religiosa bastante lucrativa e com
ramificações inclusive no mundo da política (vide a dita “bancada evangélica” nas
128
MENEZES, Paulo. A questão do herói-sujeito em cabra marcado para morrer, filme de Eduardo Coutinho.
Tempo Social, op. cit. p.122.
120
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duas casas do congresso nacional, por exemplo). Ao falar sobre a verossimilhança no
documentário, Elizabeth Cowie diz que o pobre “precisa aparecer adequadamente
pobre de maneira que a audiência possa reconhecer a pobreza”
129
. Podemos dizer que,
em Santo Forte, o popular precisa aparecer como tal no sentido de que os
espectadores possam reconhecer nele uma suposta autenticidade e originalidade
daquilo que é popular, assim como algum aspecto curioso que os transforme em um
tema atraente. Temos aqui, respectivamente, desempenhando estas funções, a
religiosidade afro-brasileira e o sincretismo religioso.
Coutinho procura, com algumas de suas intervenções, reforçar esse caráter popular
das religiões afro-brasileiras, o que faz com que ele, da mesma forma, procure
qualificar positivamente as manifestações espíritas que lhe são associadas. Isso ocorre
na medida em que Coutinho verbaliza sua empolgação com os relatos das religiões
afro-brasileiras, e intervém com perguntas para que o entrevistado recubra seu
depoimento com um caráter de veracidade irresistível. À esposa de Braulino ele
pergunta, um tanto deslumbrado com a figura do homem que parece, em si mesmo, o
personagem que ele diz incorporar: “E ele fala com aquela voz de preto velho?”.
Pergunta à médium Thereza: “A senhora teve outras vidas? Conta para mim”; “A
senhora acha que está pagando um pouco os pecados da rainha (que ela diz ter sido
em outra vida)?”. Pergunta para André, depois que ele conta o encontro com a
falecida mãe, de modo a reforçar o impacto de seu depoimento: “Você chorava? Ela
chorava?”. Para Dejair, visando esclarecer o aspecto eminentemente popular da
umbanda, depois que ele esclarece a hierarquia do espiritismo afro-brasileiro: “E você
acha que tudo isso aí tema ver com a África?”. Para Carla, quando ela diz que quem
der mais compra a proteção de um exu: “E você acha que o mundo é assim?”; “Você
não tem medo de que a Maria Padilha (pomba-gira) se vingue de você?”. A resposta a
estas indagações estão, naturalmente, dadas pelas próprias perguntas de Coutinho. O
entrevistador não visa adquirir alguma informação nova, mas reforçar uma imagem
do popular que deseja transmitir.
Não é apenas verbalizando, porém, que o cineasta consegue extrair dos entrevistados
129
COWIE, Elizabeth. The spectacle of actuality. In: Gaines, Jane (org.), Renov, Michael (org.). Collecting
visible evidence. op. cit., p. 30.
121
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as afirmações que ele, Coutinho, julga importantes na construção de sua visão de
popular. Os quadros parados, de espaços vazios, como já dissemos, também
funcionam neste sentido. O fato de vermos o quintal de Thereza completamente
vazio, colorido e silencioso nos confirma suas palavras imediatamente anteriores: “Os
espíritos estão por toda a parte, é que a gente não tem vidência para ver. Agora
mesmo tem uma legião aqui”. O mesmo ocorre com o quadro vazio do quarto de
André e a sala de Carla, como já dissemos. São reafirmações do depoimento dos
personagens, no sentido de conferir credibilidade e impacto às histórias de
incorporação, e portanto no sentido de valorizar as religiões afro-brasileiras
positivamente.
O discurso dos médiuns, dos umbandistas e dos que convivem com as manifestações
espíritas têm, no geral, uma representação positiva. O filme parece deslumbrar-se
com estas manifestações e aproximar-se carinhosamente deles. Como dissemos, as
perguntas de Coutinho vão todas no sentido de fazer os personagens falarem
positivamente e vivazmente sobre suas experiências religiosas. O mesmo não ocorre
com as opiniões a respeito da Igreja Universal ou das Igrejas Evangélicas em geral,
provavelmente consideradas menos dignas de serem vistas como autenticamente
populares.
Logo no depoimento de Vera, um dos primeiros do filme, podemos notar um
procedimento sutil de desvalorização destas Igrejas em relação ao espiritismo
popular, apesar de aparentemente tratar-se do contrário. Vera nos conta que nasceu no
espiritismo, mas foi para a Universal e depois virou evangélica. As mudanças de
Igreja parecem, no caso dela, estar associadas a uma espécie de pragmatismo. Ela, na
verdade, muda de religião cada vez que é abandonada por um noivo ou marido. E, no
momento da entrevista, está apenas fazendo “visitas”, ou seja, freqüentando diversas
Igrejas para “congregar”. No momento da entrevista ela também critica as entidades
do espiritismo, relatando as sessões de descarrego que viu na Universal e aceitando a
versão desta Igreja a respeito dos espíritos que baixam nos terreiros de umbanda: são
na verdade muito malvados, apesar de terem um discurso sobre ajudar as pessoas.
Apesar de sua crítica às entidades da umbanda, que ela trata à maneira de “encostos”,
o caráter pragmático e as determinações tão imediatas que a fizeram trocar mais de
122
santo forte
uma vez de Igreja nos deixam com a sensação de que a religião original – a afro-
brasileira – é a que detém o maior grau de autenticidade, em relação à qual as outras
se definem. Além disso – falem mal mas falem de mim – o fato de Vera definir a
experiência na Universal a partir do que esta Igreja diz a respeito das entidades do
espiritismo apenas reforça a sensação de que essas são as entidades que devem ser
consideradas como mais autênticas e mais próximas da experiência imediata do povo.
A história de Vera ilustra um desvio do caminho em relação à religião original e
popular. Afinal, como Vera mesma diz, ela nasceu no espiritismo (sua mãe era
médium), procurando depois novas experiências religiosas em função dessa sua
experiência primeira, original, “de berço”, e portanto a única das experiências que
tem as “raízes” populares na história de vida da moça. Para a Universal se afirmar ela
deve ocupar este lugar popular desempenhado pelas religiões afro-brasileiras, e faz
isso denegrindo a imagem das entidades da umbanda. Isto faz com que a vejamos, a
partir do depoimento de Vera, como uma religião popular de segunda ordem, ou ainda
como uma religião anti-popular, no sentido de que precisa se afirmar na negação da
imagem de outra considerada como eminentemente popular. É preciso considerar
também que, em relação à galeria de personagens populares pela qual passa o filme,
Vera é que está menos imbuída do aspecto de pertencimento imediato ao povo: em
relação aos outros personagens, ela fala de acordo com um português mais oficial,
não é negra, e é identificada como alguém que detém certas informações sobre a
comunidade que a colocam como uma pessoa já um tanto separada daquela massa
popular, pois detentora de uma posição de “liderança” em relação a ela.
Em outros momentos veremos depoimentos que criticam explicitamente a Igreja
Universal. Dejair critica o fato de a Igreja Universal falar constantemente no diabo, e
diz que na umbanda o “coisa-ruim” só é invocado em determinados momentos.
Segundo ele, se você não quer a presença do diabo, não deve chamá-lo tão
frequentemente como se faz na Universal. Taninha, outro entrevistado, será
estimulado por Coutinho a falar mal desta Igreja: “Como é que eles (os espíritos)
baixam na Universal?”, ao que o homem começa a criticar o ritual de “descarrego” e
todo o escândalo promovido pelo pastor. Logo no começo do filme, quando o Papa
está na televisão, uma senhora fala mal da Igreja Universal por esta Igreja ter
123
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criticado a vinda do Papa ao Brasil. Sua fala é entrecortada pela voz do próprio
Coutinho que faz perguntas para que ela esclareça o teor de sua crítica: “O povo (da
Universal) não critica o Papa que veio aqui?! Um homem que não faz mal a ninguém,
que veio aqui dar a benção para todo mundo...Teve gente da Universal que criticou
ele por ele ter vindo aqui...”. Enquanto ela fala, Coutinho permanece questionando-a
para que ela continue falando e explicite do que se trata: “Quem criticou?”, “Por que
critica?”, “Eles falam o que?” e coisas do tipo.
Além da crítica direta à Igreja Universal do Reino de Deus, os personagens são
estimulados a falar da umbanda, e parece haver sempre um certo deslumbramento
com as experiências que os entrevistados relatam. Quando se trata da Universal,
porém, isso não acontece.
Alex, por exemplo, nos é mostrado como um adepto da umbanda. Vemos imagens,
que a própria equipe de Coutinho fez, do batizado de sua filha num terreiro. Pais e
mães de santo balançam o bebê e cantam músicas típicas das religiões afro-
brasileiras. Ficamos sabendo, o que pode causar certa surpresa, que a água benta foi
fornecida por um padre da Igreja Católica que, segundo Alex, não se importou com o
batizado umbandista, já que a menina havia sido batizada na Igreja Católica antes.
Alex diz: “Eu sempre coloquei na minha cabeça que o mais importante é a Igreja
Católica. Não existe religião para mim, e sim a Igreja Católica. Eu não sigo a ela, não
vou aos domingos em missas, mas eu acredito muito”. O sincretismo de Alex,
surpreendente para um olhar erudito e que justamente por isso desperta o interesse do
realizador em fazer um filme sobre o assunto, torna-se ainda mais evidente e radical
quando ouvimos sua mãe, freqüentadora da Igreja Universal, nos informar que o
próprio Alex, umbandista praticante e católico quando convém, freqüentou a
Universal do Reino de Deus com o objetivo de curar-se de alguns problemas de
saúde, que segundo ela o estavam quase matando (afirmação estranha pois ele é
jovem, forte, e aparenta ser muito saudável). Coutinho quer saber de Alex se ele ficou
bom depois disso, e ele confirma que sim. Segundo o rapaz, o pastor fez um gesto
com a mão e ele saiu de lá bom no mesmo instante. Coutinho intervém novamente e
“pergunta”: “Como é que você explica, você acha que tendo fé qualquer coisa pode
acontecer?”. Um tipo de pergunta que, como já dissemos, contém em si a própria
124
santo forte
resposta, que será aquela dada efetivamente por Alex: “Eu acho que o que aconteceu
lá foi uma fé muito grande”.
Porque Coutinho não pergunta ao próprio Alex sobre a ida dele à Igreja Universal do
Reino de Deus? Porque coloca sua mãe para falar, ela que inclusive só aparece nesse
momento e que nos causa a impressão, pelo seu modo de falar tipicamente “universal
do reino de deus” (é só assistir ao canal televisivo da Igreja para percebermos que a
entonação é exatamente a mesma), que é uma seguidora menos sincrética da Igreja?
Penso que Coutinho não nos mostra diretamente Alex dizendo “bem, um dia eu tive
um problema de saúde e fui na Universal e lá eles fazem um trabalho muito bom, fui
curado completamente etc” pois isso, de alguma forma, macularia sua imagem de
umbandista, e portanto seu aspecto eminentemente popular. Coutinho coloca a mãe
para nos contar essa história. Quando a imagem volta para Alex a pergunta de
Coutinho sobre o que aconteceu na Universal procura excluir a possibilidade de a
cura ter sido efetuada pelo poder do pastor ou da Igreja em si mesma. A cura é devida
ao próprio Alex através de sua fé, e por isso a preocupação tão grande do
entrevistador de colocá-la nestes termos, conduzindo a própria resposta do rapaz, de
modo que não haja risco de ele elogiar diretamente o trabalho que é feito na
Universal.
Às entidades espíritas é dado, ao contrário, um tratamento menos desconfiado em
comparação ao tratamento dado à Universal. Coutinho não nos deixa duvidar do
poder que os pais e mães-de-santo, que os exus e as pombas-gira, possuem. Ao
contrário, juntamente com o procedimento de nos mostrar os quadros “vazios” e
parados, ele intercala entre as entrevistas representações das entidades da umbanda,
sobretudo pequenas estátuas.
125
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Esse procedimento materializa e dá concretude às situações paranormais relatadas, e
nos transmite a sensação de que o filme não apenas as respeita mas também acredita
nos relatos. O procedimento de mostrar as estátuas também nos revela o espectador
alvo deste documentário, já que para o popular-umbandista aquela estatuária é
bastante familiar e provavelmente não acrescenta novidade nenhuma. Já para o
espectador que não faz parte daquele universo, ou que pertence a um extrato mais
erudito e não espírita, como Coutinho, aquelas representações podem ser
esclarecedoras, pois nos mostram como deve parecer o corpo físico dos caboclos e
das pombas-gira, e porque transbordam de um exotismo que só aquilo que é
“autenticamente” popular pode fazer despertar
130
. Podemos dizer também que Santo
Forte estabelece uma relação com seus personagens semelhante àquela que estabelece
com as estátuas: visando o que neles há de mais popular e procurando colocá-los em
cena com uma espécie de “objetividade” carinhosa, na medida em que procura nos
dar a impressão de que eles estão mostrando-se a si mesmos, da forma que desejam,
sendo o realizador do filme apenas um veículo para sua expressão. Como estamos
vendo, após empreendermos uma observação mais atenta do filme os mecanismos de
construção da imagem popular podem ser revelados com menos ingenuidade, o que
não significa que Coutinho não opere com certa habilidade para nos causar a
impressão de que dá voz ao povo enquanto faz aflorar este lado curioso e sincrético
do popular. Se o realizador tivesse uma mão mais pesada, seu “estilo” não teria
conquistado a “unanimidade” que parece ter e o aspecto de “veracidade” que procura
transmitir.
Coutinho tanto trata seus personagens à semelhança daquela estatuária que num
130
Em Babilônia 2000, uma moça que corta batatas no quintal de seu barraco para a ceia de Ano Novo nos
mostra que o “povo” sabe que será objeto do interesse pelo diferente. Ao ver-se filmada, ela pede para entrar
em casa e se arrumar, ao que o cinegrafista diz que não há necessidade. A moça então dirá algo que tem mais
ou menos essa conotação: “Ah, entendi, você quer [filmar] miséria mesmo?!”.
126
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determinado momento, ao invés de colocar a estátua, coloca o próprio personagem em
seu lugar, de modo que ele desempenhe a mesma função. Isso ocorre durante a
entrevista de Carla. Assim como, em certos momentos do filme, ao mencionar as
pombas-gira e os exus, a imagem da estátua de algum deles aparece, quando Carla
menciona a pomba-gira – e inclusive o próprio diabo – é a imagem da própria Carla,
dançando seminua num “inferninho”, que aparecerá, como a ilustrar a situação
relatada por ela. A seqüência de acontecimentos é basicamente a seguinte: Carla
explica que, no lugar onde ela trabalha (ainda não sabemos o que ela faz), não se
pode entrar sem uma “proteção”, já que o ambiente é muito carregado. E diz que “mal
ou bem a noite é das pombas-gira” e que, conforme as pessoas comentam, “passou de
meia-noite o diabo está solto”. A imagem seguinte da moça dançando sem roupa
numa boate faz mais do que simplesmente “mostrar imparcialmente” seu ambiente de
trabalho carregado: o que temos aqui é uma identificação de Carla às próprias
entidades mencionadas por ela. Não se trata apenas de confirmar a veracidade da
informação da moça, mas de apresentá-la como parte algo “diabólica” – pela
associação entre o sexo e o mundo espiritualmente “inferior” – desse universo
místico, diferente e interessante da religiosidade popular. Com efeito, se há alguém
neste filme que inspira certa desconfiança em relação a sua proximidade com o
mundo da umbanda, é Carla: ela nos fala de casos de relações sexuais entre pais-de-
santo e filhas-de-santo (entre as quais ela se inclui sem nenhum embaraço), explica a
lógica da compra do favor de uma entidade, nos diz o quanto elas são apegadas a bens
materiais, parece ter intimidade com o mundo dos “trabalhos”, conta que levava surra
de preto-velho, e está associada ao comércio sexual como stripper de uma boate
decadente (o que ela mostra de forma também completamente desinibida). Com
efeito, ela ilustra o que vem falando das pombas-gira e de todo o lado diabólico,
sensual e estranho desse mundo das religiões afro-brasileiras, que Coutinho faz
questão de reforçar e de dar maior impacto ao lhe questionar, aparentemente de
maneira isenta e objetiva, quando ela nos conta que os espíritos são compráveis: “E
você acha que o mundo é assim?”. Diante de pergunta tão diretiva, a resposta da moça
não poderia ser outra a não ser concordar enfaticamente com o cineasta, ainda que ela
nunca tenha pensado nesses termos: “O mundo é assim!”.
127
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A entrevista de Thereza é provavelmente aquela na qual melhor se revela o
deslumbramento do diretor pelo universo das religiões afro-brasileiras. Suas
perguntas iniciais já são colocadas no sentido de fazer a senhora falar de sua relação
também íntima, mas num sentido agora amigável, com os espíritos. “O que são essas
pulseiras no seu braço?”; “Como é que a senhoras cuida deles (dos guias
espirituais)?”. Em seguida, uma pergunta para nos fazer simpatizar com a própria
entrevistada, e assim estarmos mais receptivos ao que ela vai contar: “A senhora
criou seis filhos sozinha?”. Ela, como muitas das entrevistadas, teve um marido
imprestável e acabou se virando sozinha na criação da quase sempre numerosa prole.
Thereza parece ser um personagem que por si só já desperta empatia, como uma
“vovó” sofrida e simpática. Mas o discurso de Coutinho é cuidadosamente elaborado
para exacerbar essa sua característica. Não é a toa que é ela quem aparece no centro
do pôster do filme e que é dela a frase que colocada no centro deste: “Os espíritos
estão em toda a parte. Aqui mesmo tem uma legião, agora mesmo. É que a gente não
tem vidência para ver”. Ela é, segundo penso, um personagem que condensa as
características populares e religiosas que Coutinho gostaria de reforçar com seu
filme: uma senhora animada e amável, com uma vida difícil, com uma espécie de
simplicidade que consegue emocionar, que tem uma crença profunda no espiritismo e
dotada de uma mediunidade poderosa (vê e ouve os espíritos e também os incorpora).
Ela conversa de maneira aberta com Coutinho, o que ajuda a transmitir a sensação de
“naturalidade” e de respeito responsável pelos elogios efusivos que acompanham o
cinema deste realizador. Ela é, enfim, o tipo de entrevistado que melhor incorpora as
características que o cinema de Coutinho visa justamente inculcar em seus
personagens, de modo a transmitir a sensação de veracidade e honestidade tão caras
ao realizador.
Thereza se deslumbra com aquilo que é erudito ou próprio de uma classe mais alta do
mesmo modo que Coutinho se deslumbra com o universo da religiosidade popular.
Enquanto ele sobe o morro procurando por aquilo que acredita ser “autêntico” no
povo, Thereza desce todos os dias para trabalhar e lá adquire uma espécie de
admiração por aquilo que é menos popular e mais “sofisticado” mesmo no interior de
sua religião. Pode-se dizer que Coutinho e Thereza efetuam o movimento contrário,
128
santo forte
não apenas em termos espaciais mas também “ideológicos”, demonstrando admiração
por aquilo pertence a um universo cultural diferente do seu. E isso é importante para
despertar o sentimento de simpatia que é tão próprio dela, já que, ao mesmo tempo
em que ela é caracterizada como eminentemente popular, também nos mostra um
gosto inexplicável pela cultura erudita (que ela naturalmente identifica com as
camadas sociais mais favorecidas) que lhe dá um aspecto mais interessante – afinal, é
espantoso que uma senhora tão humilde diga gostar de Beethoven. Em outras
palavras, Thereza simpatiza e emociona pelo ser caráter popular e ao mesmo tempo
reforça a “superioridade” da condição erudita do espectador ao se aproximar, ela
mesma, desse mundo erudito com deslumbramento.
O deslumbramento do personagem com o mundo de uma cultura que ela trata à
maneira de algo mais erudito – pois “superior” a suas condições materiais no aspecto
da qualidade e do refinamento – pode ser visto em diversos momentos razoavelmente
claros de sua entrevista. Não se trata apenas de se deslumbrar com as posses materiais
e imateriais de uma camada social mais endinheirada do que a dela – o que talvez a
tornasse menos simpática pois mais materialista – mas de se deslumbrar com a aquilo
que estas posses significam cultural e simbolicamente. Para justificar a suspeita
depois “confirmada” de que ela pertenceu a uma camada endinheirada, Thereza diz
que sempre gostou de coisas boas e finas que ela enquanto pobre nunca pode
comprar. Ao se referir ao terreiro de seus patrões – onde ela confirmou as suspeitas
de ter sido rica em outra vida – ela fala como se fosse algo mais sofisticado,
justamente por estar privado daquelas mesmas manifestações populares que Coutinho
visa enaltecer: lá não tem guia que bebe e que fuma, aspectos que tornam o
espetáculo afro-brasileiro mais interessante do ponto de vista do erudito. Para
Thereza, o centro espírita de seus patrões é mais sofisticado em relação ao terreiro
que ela freqüentava e tem práticas que ela cita com certo deslumbramento – como o
passe magnético e a mesa branca. Lá ela descobriu ter sido uma Rainha no Egito, e
como as rainhas eram muito malvadas, ela acredita estar pagando seus nesta vida seus
pecados de outra encarnação.
Além do fato de gostar de coisas finas e caras, que ela sabe que “não são para ela”,
Thereza também tem relações espirituais com o mundo não apenas material mas
129
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também artístico e intelectual da cultura erudita. Em relação à arte, ela afirma gostar
de Beethoven, o que, dada a sua condição de pobre e analfabeta, só pode ser
explicado, segundo ela mesma, pelo fato de ter tido uma vida no tempo e no país do
compositor alemão. Além de gostar da música erudita de Beethoven, Thereza diz que
quando ficou internada para uma cirurgia de estômago recebeu a visita de inúmeros
guias, entre eles um homem que depois ela descobriu ser José do Patrocínio
(jornalista, romancista, orador e importante abolicionista). Naturalmente, José do
Patrocínio, ainda que tenha nascido em condições próximas às de Thereza, ao tornar-
se um jornalista, tornou-se parte de uma cultura intelectual erudita em relação ao
mundo da entrevistada
131
.
Não é apenas Thereza que procura, com seu discurso, aproximar-se de um mundo que
não é o seu. Se Thereza diz que, de alguma forma, tem uma relação de pertencimento
com o mundo da cultura erudita dado pelas suas vidas passadas, Braulino, também
médium, tem uma relação de proximidade com o mundo dos endinheirados em
virtude de um contato ao estilo de Gilberto Freyre. Braulino, assim como Thereza,
também é médium de incorporação, e dirá que é muito bajulado, “e não por pessoas
humildes”. Um de seus guias, Brás Carneiro, foi escravo na casa grande, e por isso
estabeleceu relações próximas com os senhores. Braulino diz que, quando incorpora
esse seu guia, sente que o que Brás Carneiro foi, ele, Braulino, também é. E daí se
deduz a razão pela qual ele, Braulino, é bajulado por pessoas de, nas suas palavras,
“alto poder aquisitivo”. É interessante como Braulino fala com orgulho dessa sua
relação com pessoas de outras camadas sociais, feliz por, de alguma forma,
reproduzir no presente a relação de proximidade de Casa Grande & Senzala.
Depoimentos interessantes e reveladores como esses – quando uma relação entre
classes se expressa a partir da relação entre entrevistador e entrevistado – vem e vão,
mas, ao prender-se a um “estilo” baseado exclusivamente na sua habilidade como
entrevistador, Coutinho deixa de investigar ou mesmo de observar com maior
profundidade muitas das sugestões levantadas pelas próprias entrevistas. O resultado
é uma espécie de “naturalismo” bem construído, no qual temos a impressão de que as
131
Dessa vez parece que ela está em melhor companhia em relação àquelas que encontrou no terreiro de seus
patrões: Patrocínio defendia pessoas como Thereza e foi leitor de teóricos radicais como Proudhon (de onde
ele tirou a inspiração para o slogan “escravidão é roubo”).
130
santo forte
coisas se sucedem da maneira mais “verdadeira” possível na frente da câmera, mas
pobre na investigação. “Deixar” que as pessoas falem – ou fazer tudo para que as
pessoas pareçam falar com espontaneidade – é parte inalienável do estilo executado
pelo diretor. Mas, ao contrário do que muito se diz sobre seus filmes, pouco revela de
uma natureza humana e popular daqueles entrevistados, pois estabelece uma relação
fetichizada com a palavra que, além da estar ela mesma reificada como instrumento
de investigação popular, foi instigada pelo realizador e registrada com a sua presença
sem que no entanto nada disso tenha sido colocado em questão pelo filme. Temos
aqui o problema da falta da reflexividade, a que nos referimos anteriormente. Além
disso, sabemos que “deixar as pessoas falarem” ou “deixar as imagens falarem”, ou
ainda, como coloca Weber em relação à ciência, “deixar os fatos falarem”, constitui-
se numa tomada de posição, e uma tomada de posição “desleal”, pois é uma atitude
convencer num certo sentido enquanto se oculta o lugar de onde se fala
132
.
Em outras palavras, pouco ou nada do que estamos discorrendo aqui é discutido no
filme, apesar de estar tudo mais ou menos claro, provavelmente até pelo realizador,
que em algumas entrevistas para revistas deixa transparecer uma visão menos ingênua
do modo de construção de suas imagens populares. Há apenas uma menção, no filme,
ao processo fílmico de construção das imagens e da palavra do popular, e que,
segundo penso, tem sido supervalorizada enquanto medida de exacerbação da verdade
documental e de honestidade do diretor com o direito de mostrar seus entrevistados: a
explicitação de que eles recebem dinheiro para se deixarem filmar. Há também a
explicitação da imagem da equipe de filmagem e de todo o seu equipamento, mas
estas cenas apenas nos mostram a existência de um contingente de técnicos e
realizadores e, como já comentamos, da centralidade que Coutinho ocupa entre eles.
A imagem da equipe subindo o morro funciona mais como parte da narrativa
documental – a contextualizar que, em determinado dia do ano de 1997, Coutinho e
sua equipe subiram a favela Vila Parque na Cidade, que a moradora muito orgulhosa
faz questão de situar na zona sul do Rio de Janeiro – do que como exacerbação do
processo de construção fílmico. Am disso, a explicitação da equipe de filmagem não
132
WEBER, Max. A ciência como vocação. In: Ciência e Política, duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2005, p.
35.
131
santo forte
causa mais estranhamento ao espectador de documentários, e o próprio Coutinho já havia
colocado sua equipe em cena em Cabra marcado para morrer.
Já as seqüências nas quais vemos uma profissional da equipe de Coutinho pagando
aos entrevistados visa, segundo penso, alertar para um procedimento documental que
normalmente fica escondido por trás da “naturalidade” das entrevistas, ou seja, para o
fato que tudo aquilo tem menos de “natural” do que parece, já que deve ter havido ao
menos uma negociação mínima a respeito dos direitos de imagem e da quantia que
seria paga aos entrevistados em razão do uso destas imagens. Mas Santo Forte é um
filme tão crente na “naturalidade”, na sinceridade e na verdade daquilo que põe em
cena que essa tentativa de radicalização do discurso documental soa tímida. Mais do
que tímida, da maneira que é colocada, apenas visa reforçar todas essas sensações
descritas, ao nos mostrar o pagamento como uma espécie de necessidade contratual
que não abalaria a maneira aberta, sincera e natural a partir da qual os entrevistados
hipoteticamente se expõem para Coutinho. O fato de a equipe pagar aos entrevistados
depois da entrevista também funciona para diluir um pouco a impressão de uma
relação comercial, tendo em vista que, se víssemos o dinheiro sendo pago antes, o
comércio ficaria muito mais explícito. Tudo isso reforça, a meu ver, não apenas uma
determinada idéia de popular – extremamente positiva e assentada na sinceridade, na
fé, na hospitalidade – como uma visão do erudito, representado aqui pelo próprio
Coutinho, que é aquele que, munido de boas intenções, pode dar voz ao povo ao
mostrar sua religiosidade e sincretismo. Mas é insignificante como medida de
radicalizar e de expor os mecanismos de construção da imagem documental Vejamos
melhor como isso acontece.
Da primeira vez que vemos a moça da equipe de Coutinho pagando um entrevistado,
esse entrevistado será Lídia, uma senhora que também descobriu que podia receber
espíritos quando era jovem. Segundo ela, seu pai não aceitaria seu dom, e um médium
mais experiente “amarrou” os espíritos que queriam trabalhar com ela. A partir de
então ela ficou boa, nunca mais os espíritos se manifestaram nela. Mas se “soltaram”
em seu marido, que a traía constantemente e que não mais a ajudava a criar os filhos.
Ela identifica os espíritos com o diabo ao dizer que o diabo se manifestou no seu
marido com o mesmo sentido de “espíritos”. Lídia hoje se diz cristã. Temos aqui o
132
santo forte
depoimento de uma mulher que, apesar de envolvida de alguma forma com os
espíritos, diz-se cristã e apenas cristã, considerando as manifestações de mediunidade
como coisas diabólicas. Vemos, com Lídia, um sincretismo à revelia, enquanto
diversos outros personagens mostram-se completamente à vontade com seu
sincretismo. Em comum com os outros, temos a história de vida repleta de
dificuldades, entre as quais o marido que bebe, foge, trai, ameaça ir embora, etc.
Então, num dado momento, numa altura do filme na qual já nos acostumamos com o
desenrolar da entrevistas, construídas para parecerem o mais naturais e espontâneas
possíveis, surpreendemos-nos com algo inédito até então neste filme: a moça da
equipe de Coutinho que paga trinta reais a Lídia pela entrevista concedida. Ela esboça
uma recusa pouco convincente, dizendo que “para dar testemunho da palavra de
Deus” não precisa de dinheiro, mas logo aceita o pagamento e muda de assunto,
dizendo que quando o filme ficar pronto ela vai querer assisti-lo, e engatando uma
nova conversa com a equipe. Tudo continua da mesma forma que antes, como se
nenhum elemento novo na relação entre entrevistado e entrevistador tivesse sido
inserido. Pelo contrário, ela engata uma nova conversa, o que nos dá a sensação de
que está absolutamente à vontade. O momento em que se explicita o pagamento de
Lídia também é colocado “naturalmente”, como uma decorrência lógica e “natural”
deste filme repleto de estratégias para demonstrar que “respeita” seus entrevistados.
A meu ver, justamente por isso, para a integridade do “estilo” Coutinho, é que a
primeira menção ao pagamento é colocada aí: parece importante que a entrevistada
recuse a oferta de dinheiro para que tudo soe verdadeiro e amigável. Com a recusa de
Lídia temos uma tentativa de confirmação das boas relações que Coutinho
estabeleceu com seus entrevistados, como se, mesmo sem o dinheiro, eles estivessem
dispostos a responder às perguntas do diretor. A recusa do dinheiro acaba por reforçar
a idéia de que o que está se estabelecendo é uma “conversa”, e não uma troca de
133
santo forte
depoimentos por trinta reais, e por isso a idéia de que tudo ocorre de maneira
“natural” e espontânea.
Além disso, existe aqui o papel da moça da equipe de produção que, falando
suavemente como se fala a uma criança, explica o porquê do pagamento: ele é devido
ao fato de que a equipe está fazendo um filme e o exibirá nos cinemas, sendo portanto
justo que o entrevistado receba um certo dinheiro pelo trabalho prestado na confecção
do filme. Não são exatamente estas as palavras da moça, cuja oralidade talvez
prejudicasse seu entendimento caso as transcrevêssemos. Mas acreditamos que o
sentido seja esse, ou seja, uma remuneração justa pela ajuda do entrevistado tornando
o filme possível. Ao enfatizar a idéia de “justiça”, o “estilo” Coutinho está salvo, já
que são ele e sua equipe os responsáveis pela promoção desta justa remuneração em
troca da entrevista realizada. Ao invés de exacerbar um modo de produção
documental assimétrico, a imagem da compra do depoimento apenas reforça o
aspecto de “respeito ao povo” e de espontaneidade que o filme quer passar.
Outras imagens de entrevistados sendo pagos serão exibidas. Taninha recebe trinta
reais em notas de um real (temos a impressão de que ele pediu para receber o dinheiro
trocado) e Braulino aparece lendo o termo de cessão de imagem, o que
implicitamente remete ao pagamento. É interessante notar que após cada uma dessas
imagens de pagamento pela entrevista, haverá uma pequena seqüência que restabelece
a idéia da amizade e espontaneidade, de modo a desfazer qualquer impressão de que
aquela relação que se estabeleceu entre entrevistador e entrevistado tenha sido uma
relação eminentemente comercial. Taninha e a moça da equipe que lhe paga divertem-
se com o fato de ela lhe dar o dinheiro em notas de um real. Braulino pega um copo
de cerveja e brinda junto com a equipe de Coutinho. Portanto, a meu ver, em Santo
Forte, ao invés de propiciar alguma discussão sobre os procedimentos documentais –
que repousam naturalmente no limite da ética pela já mencionada exploração da
imagem do entrevistado –, mostrar os entrevistados sendo pagos acaba por reforçar a
imagem do popular de Coutinho e o próprio “estilo” criado por ele. Ou seja, acaba
por recolocar a imagem de um popular verdadeiro, aberto, generoso e hospitaleiro, e
também funciona de modo a nos sugerir um Coutinho íntimo e respeitoso em relação
a esse popular, como se ele e sua equipe estivessem sendo efetivamente aceitos no
134
santo forte
seio da comunidade entrevistada e, por um momento, fazendo parte desse universo
popular.
Além disso, as seqüências que nos mostram Coutinho oferecendo dinheiro funcionam
de modo a resolver filmicamente a questão do consentimento do entrevistado, uma
questão que é eticamente muito mais complexa do que parece em Santo Forte.
Naturalmente, após filmar os depoimentos, ou antes ainda de obtê-los, o cineasta deve
informar que fará um filme e se a pessoa aceita ser mostrada nesse filme. Calvin
Pryluck comenta que na verdade poucas pessoas – principalmente estas do universo
dos filmes de Coutinho – tem exata noção do que acontecerá com suas imagens. As
palavras de Lídia, após receber o dinheiro, são exemplares neste sentido, pois
mostram que ela não entendeu direito para quê e para quem estava dando um
depoimento. Pryluck ilustra o problema com o exemplo de Salesman, filme dos
irmãos Maysles no qual acompanhamos um grupo de vendedores adentrando nas
casas de famílias norte-americanas para vender bíblias:
“A coerção pode assumir muitas formas. Em Salesman, os irmãos Maysles seguiam
vendedores em suas rondas. Todos os três visitantes – o vendedor carregando sua
maleta, Albert Maysles com sua câmera, David Maysles com microfone e gravador –
se aproximavam da porta. Uma breve explicação era oferecida. ‘Isso vai levar uns
trinta minutos’, Albert falava. ‘A maioria das pessoas nesse ponto dizia então que
haviam entendido, mesmo se talvez não entendessem... Então a filmagem acabava... e
eles diziam, ‘Diga-me mais uma vez sobre o que é tudo isso mesmo’, e então nós
explicávamos e dávamos um formulário que eles deveriam assinar’. Em troca, a
pessoa recebia um dólar, ‘para tornar a coisa legal’”
133
.
Mostrar, como faz Santo Forte, o pagamento ao entrevistado e a assinatura do termo
133
PRYLUCK, Calvin. Ultimately we are all outsiders. In: Rosenthal, Alan (org.). New challenges for
documentary. op. cit., p. 257.
135
santo forte
de cessão de imagens funciona não tanto, a meu ver, para levantar a questão ética da
exploração da imagem do entrevistado, mas para resolvê-la no filme, de forma que a
sensação de respeito e de intimidade na relação entre equipe e entrevistado
permaneça. A exploração da imagem da pessoa filmada é, como sugere Pryluck,
muito mais complexa do que a solução adotada por Santo Forte, pois envolve a
assimetria da relação, o saber cinematográfico, a edição do material, o fato de que
entrevistador e entrevistado pertencem a camadas sociais diferentes, e também o
simples fato de que a pessoa pode não ter entendido exatamente o que vai acontecer
com sua imagem, como mostra a fala de Lídia. Além do procedimento de nos mostrar
o pagamento, ao nos transmitir a sensação de que respeita o entrevistado e de que dá
“voz ao povo”, Coutinho fica, de certa forma, aparentemente isento de maiores
considerações éticas, afinal, aquelas imagens dos entrevistados parecem ter sido
manipuladas exatamente no sentido de engrandecê-los. Ou seja, tudo se passa como
se o realizador, por oferecer uma imagem popular construída para parecer “positiva”
aos olhos do espectador erudito e também por mostrar o pagamento, se eximisse das
questões éticas da exploração dos entrevistados. Ao contrário dos irmãos Mayles, por
exemplo, que afundam os pezinhos do tripé de sua câmera na questão ética ao expor
de forma tão evidente a fragilidade das famílias norte-americanas perante os
vendedores de bíblia mais bem-sucedidos e inescrupulosos.
Outros procedimentos reforçarão a idéia de intimidade entre Coutinho e as pessoas
entrevistadas. Mostrar Thereza oferecendo cafezinho à equipe, entrar na sua casa na
noite de Natal e filmar seus netinhos dormindo, mostrar Quinha conversando
espontaneamente com alguém da equipe de Coutinho enquanto ela acredita estar em
off, filmar a entrega das fotos realizadas pela equipe para os personagens
fotografados, além da já citada cervejinha – imagem extrema da cumplicidade entre o
povo e a equipe de Coutinho – são procedimentos que visam aproximar o lado
erudito, representado pelo realizador, do lado popular, representado por aquela
comunidade. As diferenças entre eles permanecem, pois não há no filme exatamente
uma idéia de identidade entre equipe e entrevistados, como se ambos estivessem do
mesmo lado da estrutura social. O que existe é uma sensação, eficientemente construída
ao longo do filme, de que as fronteiras entre o cineasta e o povo tornam-se mais suaves e
136
santo forte
adocicadas graças justamente ao papel do realizador em parecer que faz aflorar o lado
sincero, humano e aberto das pessoas daquela comunidade. Assim, ao fazer com que o
espectador acredite que está “dando a voz ao povo” e mostrando-lhe a beleza simples da
maneira popular de lidar com o mundo, Coutinho na verdade está construindo uma visão
de si próprio e auto-conferindo a si mesmo a imagem daquele que justamente tem a
habilidade de catalizar toda a espontaneidade popular. Por isso em Santo Forte, como via
de regra nos demais filmes de Eduardo Coutinho, a imagem do povo é apenas secundária –
ela serve de suporte, segundo penso, à imagem do próprio realizador e à construção de seu
“estilo”.
O sucesso de sua empreitada em convencer o espectador de seu papel de revelador do
popular é evidente, como vimos logo no começo desta análise com as inúmeras
referências elogiosas que encontramos. Mas uma análise mais detida sobre cada uma
de suas produções revelará, como estamos procurando fazer aqui, que, longe de ser
aspecto da espontaneidade e naturalidade do povo, o que temos é uma elaboração
cuidadosa desta idéia a partir de inúmeros procedimentos implementados pelo
realizador. Exemplos destes procedimentos são justamente aqueles já discutidos aqui:
1) uma certa intervenção do cineasta no sentido de produzir a resposta que deseja e
que normalmente corrobora o sentido de “verdade” do povo; 2) a ampla aceitação
daquilo que o popular diz, mesmo que soe como bobagem
134
(como a fala de Bráulio
na qual ele diz que tem orgulho de ser negro porque “preto é cor, negro é raça”); 3) o
deslumbramento com as religiões afro-brasileiras (com raízes mais “verdadeiramente”
populares) e a crítica implícita à Igreja Universal do Reino de Deus que, apesar de
seu freqüentada pelo povo, não tem o apelo “antropologicamente” popular que tem a
umbanda e o candomblé; 4) as imagens que mostram a intimidade conquistada pelo
realizador em sua relação com os homens e mulheres considerados como parte do
povo.
Entre estas últimas, ainda não falamos de uma forma de aproximação que talvez seja
a mais forte no sentido de nos criar a sensação de intimidade e aceitação na relação
134
Segundo Jean-Claude Bernardet, “não se dialoga com entrevistado pobre. Há como que uma dupla atitude
em relação a esse tipo de entrevistado. Por um lado, uma relação fetichista: tudo o que diz o pobre vale; não
vamos contradizer o pobre, que isso implicaria uma colaboração com os mecanismos de opressão –
entrevistado pobre é um tanto sacralizado. Por outro, não passa de matéria-prima para os filmes”.
B
ERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. op., cit., p. 295.
137
santo forte
entre realizador e entrevistado. Trata-se das várias seqüências nas quais vemos os
personagens cantando. Logo no começo do filme, um homem canta timidamente junto
com Roberto Carlos na missa do Papa. Uma mocinha canta em seguida de maneira
bem mais desinibida, levando inclusive as mãos ao alto enquanto acompanha o “Rei”.
Entre os personagens que ocuparão mais tempo do filme, Alex, Braulino, André (com
a esposa) e Thereza cantam. Coutinho parece gostar muito das imagens dos
entrevistados cantando. É fácil entender por que. Ora, cantar na frente de
desconhecidos (a equipe cinematográfica) e deixar-se gravar por uma câmera de
cinema enquanto se canta é sinal inequívoco da proximidade que Coutinho aparenta
ter conseguido com seus populares, já que é algo que exige, para a maioria das
pessoas que não canta profissionalmente, uma certa dose de desinibição. Ao mostrar
seus personagens cantando, Coutinho nos dá a impressão de que conseguiu fazer com
que eles se revelassem totalmente para a câmera, de maneira aberta e desinibida, e
que portanto só captou a “verdade”. Ouvir os personagens cantando é algo que serve
duplamente ao propósito de Coutinho: é emocionante e exótico ao mesmo tempo. Ás
vezes o aspecto exótico se sobressai, como, por exemplo, na seqüência de Babilônia
2000 na qual uma mulher canta Janis Joplin, ou mais recentemente em Edifício
Máster quando um senhor que diz ter cantado com Frank Sinatra interpreta My way.
Em Santo Forte haverá, segundo penso, uma dose equilibrada de emoção e
curiosidade, o que pode agradar em grande medida muitos dos espectadores que não
compartilham do universo popular da comunidade mas que se aproximam do universo
erudito de Coutinho. O exótico-popular em si pode ser um tanto grosseiro aos olhos
do erudito – aproximando-se por exemplo do universo bizarro dos programas
dominicais exibidos pela TV aberta. Mas, temperado com o aspecto emocionante que
Coutinho consegue imprimir, um sentimento enternecedor pode ser transmitido pela
imagem dos personagens cantando. Nisto também se assenta, em grande parte, o
138
santo forte
“estilo” Coutinho.
O aspecto da aproximação e da intimidade é deveras importante para a eficácia filme,
tanto que Coutinho se encaminha para seu final aumentando o tom de cumplicidade
que foi formando ao longo da produção. É 24 de dezembro, véspera de Natal – uma
data por si reveladora de uma intimidade adquirida – e ele entrevista Thereza agora
perguntando não dos espíritos que ela recebe, mas querendo saber sobre o dia que ela
passou, como um bom e velho amigo faria. E, ao final, ela insiste para que ele entre
na sua casa e veja seus netos dormindo. A câmera percorre o quarto e encontra um
pequeno altar no qual Thereza presta homenagens a “Vovó Cambina”, um espírito
que ela incorpora. É com essa imagem que Coutinho encerra seu filme, enquanto a
trilha sonora capta o som ambiente – um rádio ou cd ligado – de modo, mais uma vez,
a reforçar, desta vez pelo som direto, a “naturalidade” e a “verdade” do que está
sendo filmado.
Como visto, portanto, estamos diante de um filme que, segundo a análise aqui
empreendida, esforça-se por construir uma visão de popular a partir de suas práticas
religiosas sincréticas, utilizando-se de procedimentos que procuram sugerir uma
aproximação afetiva e respeitosa com o povo. O principal deles, que domina o filme,
é, sem dúvida, a entrevista: planos americanos nos quais os entrevistados contam
experiências religiosas para o realizador e, adicionalmente, relatam outros aspectos
particulares de suas vidas. As entrevistas, no entanto, quando nos esforçamos para ver
que está por trás das aparências mais imediatas de Santo Forte, revelam que o grande
personagem aqui não é o povo, mas o cineasta, que ocupa um lugar erudito em
relação a este, já que é dono de um saber técnico e intelectual considerado “superior”
do ponto de vista do conhecimento institucionalizado. Coutinho parece visar adquirir,
com suas entrevistas, um outro conhecimento do povo, e valorizá-lo enquanto
manifestação eminentemente popular: aquele que advém de suas experiências
místico-religiosas afro-brasileiras e do sincretismo muito observado no Brasil. Seu
filme é montado para valorizar a experiência e o conhecimento do povo, e mesmo as
pessoas do povo enquanto indivíduos dotados de um aspecto emocionante que valeria
a pena ser revelado. Tudo isso pressupõe um espectador erudito como o próprio
realizador, ou seja, um espectador que também encontre satisfação na visão deste
139
santo forte
outro popular, sincrético e sofrido. Cabe indagar, na contramão do que costuma ser
dito sobre o cinema de Coutinho, se o popular pode realmente ser dotado de voz e
tratado com dignidade quando se torna um objeto de consumo – no mercado
simbólico das sensações estéticas e sociais – cujo valor é dado por sua capacidade de
despertar emoção aos olhos das camadas eruditas que dirige e a quem se dirige este
filme.
140
baile perfumado
quando o popular quer ser pop
141
baile perfumado
Certos personagens, reais ou ficcionais, são tidos frequentemente como personagens
populares, pois carregam consigo algumas das determinações mais usuais deste
termo: tradição, primitivismo, pobreza, passado, etc. O cangaceiro Lampião é um
deles. É um personagem popular de tipo “ostensivo”, portanto, como já vimos nos
filmes Crede-mi e Santo Forte analisados anteriormente. O popular de Terra
Estrangeira nós o chamamos de “discreto”, já que suas características populares não
são tão exacerbadas.
No filme a partir de agora analisado, porém, existe uma diferença importante. Se em
Crede-mi vimos um popular num desempenho erudito e em Santo Forte
acompanhamos o processo de construção do popular “tradicional”, mais próximo do
que poderia chamar “senso comum”, em Baile Perfumado (1997) o popular está
associado à cultura de massas. O cangaceiro Lampião, no filme analisado, é
indissociavelmente popular como reduto da tradição e do arcaísmo e como cultura de
massas.
O fenômeno da cultura de massa começou a chamar a atenção de pesquisadores das
ciências humanas principalmente a partir da década de 40, quando houve uma difusão
dos meios de comunicação e quando se percebeu a importância que adquiria a
mensagem transmitida por eles
135
. “O moderno fenômeno da cultura de massa só se
tornou possível com o desenvolvimento do sistema de comunicação por media, ou
seja, com o progresso e a multiplicação vertiginosa dos veículos de massa – o jornal,
a revista, o filme, o disco, o rádio, a televisão. Como causas subjacentes necessárias,
mencionam-se os fenômenos de urbanização crescente, de formação de públicos de
massa e do aumento das necessidades de lazer. Portanto, o que se convencionou
chamar cultura de massa tem como pressuposto, e como suporte tecnológico, a
instauração de um sistema moderno de comunicação (os mass-media, ou veículos de
massa) ajustados a um quadro social propício”
136
.
Dentro do tema a que nos propomos tratar neste trabalho, aquele que se refere à
imagem da cultura dita popular e do povo no cinema brasileiro recente, Baile
135
LIMA, Luis da Costa (org). Teoria da cultura de massa. op. cit, p. 13.
136
SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco – introdução à cultura de massa brasileira. op. cit., p.
13.
142
baile perfumado
Perfumado (1997), filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, parece-me uma obra
importante. Inspirado pelo movimento musical pernambucano conhecido como
manguebeat, Baile Perfumado é uma espécie de manguemovie composto tanto a partir
de aspectos tidos como tradicionais da cultura popular (música, temas, personagens,
histórias, tradicionalismo no poder, cangaço) quanto por aqueles que fazem parte do
que aqui chamaremos de cultura de massas (especialmente os modernos meios de
comunicação, as estratégias empresariais que os regem e as formas artísticas que lhe
são mais familiares: o cinema e a fotografia). Para isso colabora a presença musical
de artistas como Chico Science, Fred 04 e Mestre Ambrósio – expoentes do
manguebeat que mesclam frevo, maracatu e cavalo-marinho
137
com o som de
guitarras elétricas, baixos poderosos e influências musicais modernas.
o rabequeiro siba do mestre ambrósio e a banda
Também colaboram algumas imagens exuberantes e velozes que ressaltam a
performance de ídolos construídos pelas próprias imagens – velocidade que
provavelmente está aí para que tenhamos a sensação vertiginosa e intensa que deve
ter causado a experiência do cinema para os espectadores contemporâneos ao
momento histórico do filme de Abrahão sobre Lampião. Em outras palavras, neste
filme que muitas vezes apresenta um ritmo que no geral poderíamos considerar lento,
algumas seqüências são filmadas com a agilidade de um vídeo-clip, tentando talvez
reproduzir a emoção e o arrebatamento que deveria causar a experiência de estar no
cinema na década de 1930.
Trata-se, da mesma forma, de um filme que procura não ocultar seu caráter de filme,
de construção, de interpretação interessada e que ocorre a partir de um lugar
137
Folguedo pernambucano da zona da mata que tradicionalmente é celebrado no Dia de Reis (6 de
janeiro) e que é considerado uma dança dramática, com música, toadas, dança, etc. É uma espécie de
variante do bumba-meu-boi. O responsável pela apresentação dos personagens que vão aparecendo no
folguedo é o Mestre (daí o nome da banda Mestre Ambrósio).
143
baile perfumado
específico e explicitado: o lugar do manguebeat. A música pernambucana
contemporânea ajuda a localizar o lugar de onde são narrados os eventos do filme, de
modo a instaurar um anti-naturalismo, uma recusa à reconstituição histórica,
exacerbada pela confrontação com as imagens “originais” de Benjamim Abrahão.
Assim, ao mesmo tempo em que procura atualizar a intensidade do cinema nas suas
primeiras décadas de vida, a montagem veloz de algumas seqüências, junto com a
música pop contemporânea e a interpretação por vezes não-naturalista, fazem de
Baile Perfumado uma espécie de anti-representante do filme dito “histórico”, ou que
procura, por meio de procedimentos cinematográficos específicos, “reconstruir” a
suposta paisagem e o suposto clima do passado. No caso, o sertão dos anos 30. Trata-
se de um filme que, ao explicitar o lugar de onde seu discurso é construído, o tempo
presente, a cena manguebeat, o pop, recusa o naturalismo do filme “histórico”
tradicional.
Segundo Jean-Claude Carrière
138
, em filmes de época o cineasta procura utilizar-se da
linguagem cinematográfica com discrição, de modo que a técnica não seja visível e
assim não atrapalhe a imersão do espectador no mundo que está a ser reconstruído e
no qual naturalmente a tecnologia seria uma intrusa em meio ao “clima” passadista.
Nas palavras do autor, “no momento em que um efeito aparece, corremos o risco de
ver técnica, unicamente técnica. Quando a câmera toma conta da tela, nos damos
conta, imediatamente; percebemos de repente que estamos no cinema – e não no
interior da história que viemos ver. Essa transgressão é especialmente óbvia e
incômoda em filmes de época (...). Lembro-me do cuidado com que Daniel Vigne
situava sua câmera em O retorno de Martin Guerre, escolhendo a altura do ponto de
vista, mantendo os movimentos imperceptíveis e sempre concatenados com o
movimento de determinado personagem. A máxima discrição, como se estivesse se
desculpando por essa intrusão de parafernália moderna em meio a camponeses
trajados à moda do século XVI. Qualquer um que tenha alguma vez tentado
reconstruir o passado com o máximo de fidelidade se defrontou com os mesmos
problemas e adotou os mesmos tipos de solução. A não ser que se faça dessa
138
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. op. cit., 1995.
144
baile perfumado
interferência, dessa quebra de continuidade, a própria essência do filme”
139
. A meu
ver, em certa medida, é este o caso: além de dar uma nova conformação ao popular,
tornando-o indissociavelmente popular e moderno, popular e consumível, popular e
“de massas”, trata-se de explicitar a interferência da câmera, já que a produção
interessada da imagem é, como veremos, um dos temas do filme.
Neste processo de construção de um produto cultural de massas assentado em
elementos da cultura popular (o mito de Lampião), colabora o importante papel do
cinema e da fotografia. A cultura de massas aqui, com as formas artísticas que lhe são
mais familiares, estabelece relações com a cultura popular, e vice-versa. Não se trata
apenas de um resgate do suposto aspecto ingênuo e puro do popular como produto
midiático e folclorizado para consumo imediato, mas também do popular como
colaborador ativo neste processo de sua recriação e perpetuação através da indústria e
do cinema.
O jornalista pernambucano José Teles, entusiasta do manguebeat, comenta a cena
musical em Pernambuco antes de eclosão dos mangueboys: “A temática primava pela
redundância. Teciam-se loas às ladeiras de Olinda, à morena faceira e dourada pelo
sol; louvavam-se os coqueiros, o mar, a alegria e adrenalina do frevo; os idílicos
blocos olindenses; enfim, mais a um estado ideal de espírito do que à realidade das
duas cidades onde a maioria da população vive em favelas à beira dos mangues, em
morros. O comércio informal é a principal ocupação da população ativa, e o
contingente de menores de rua é, proporcionalmente, o mais numeroso do país”
140
.
Ou seja, valorizava-se uma suposta cultura popular enquanto algo engessado no
passado, um todo harmônico, como construção “totalizante”, reacionária e oficialesca
pronta para um consumo sem riscos mercadológicos ou ideológicos. O manguebeat
surge para questionar esta concepção passadista da cultura pernambucana, incapaz de
respeitar verdadeiramente o tradicional e de abrir-se para o novo. Seu primeiro
Manifesto procura justificar o nome do movimento atentando para o fato de que,
embora associados à sujeira e à podridão, “os mangues estão entre os ecossistemas
139
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. op. cit., p. 41.
140
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 226.
145
baile perfumado
mais produtivos do mundo”, ou seja, anunciando a criatividade vinda da situação
decadente da cidade do Recife
141
.
Situação decadente que nem sempre marcou a capital de Pernambuco. Pelo contrário,
“até meados dos anos 50, o Recife era incontestavelmente a principal cidade do
Nordeste, por muitas décadas a terceira capital do país, como também o pólo cultural
mais atuante, depois de São Paulo e Rio de Janeiro”
142
. É esta cidade então bela e
importante, que teve seu auge durante o Estado Novo, que vemos em Baile
Perfumado, e que neste filme comporta a urbanidade ao mesmo tempo em que exala
coronelismo, paternalismo, influências pessoais, violência e poder de vida e morte
por parte dos poderosos.
O que temos em Baile Perfumado é um enfoque que procura diferenciar-se das
concepções anacrônicas da cultura popular que a vêem como cristalizadas, imutáveis,
romanticamente incapazes de resistir ao contato com os modernos meios de
comunicação, ingênua, pura
143
. Concepções que permearam nossos primeiros e
importantes folcloristas como Celso de Magalhães, Sílvio Isso, José de Alencar e
Luis da Câmara Cascudo
144
e que são explicitadas por Antônio Augusto Arantes:
“Pensar a ‘cultura popular’ como sinônimo de ‘tradição’ é reafirmar constantemente a
idéia de que sua idade de ouro deu-se no passado. Em conseqüência disso, as
sucessivas modificações por que necessariamente passaram esses objetos, concepções
e práticas não podem ser compreendidas, senão como deturpadoras ou
empobrecedoras. Aquilo que se considera como tendo tido vigência plena no passado
só pode ser interpretado, no presente, como curiosidade”
145
. Baile Perfumado
distancia-se destas concepções, acredito, a despeito da sugestão final de que a cultura
de massas pode ajudar a criar mitos como o de Lampião mas também pode ajudar a
141
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. op. cit., p. 255.
142
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. op. cit., p.15.
143
Ismail Xavier faz um balanço sobre a produção de filmes sobre o nordeste a partir dos anos 60: “as
obras de ficção mais conhecidas definiram um campo de debate em torno da apropriação de um
patrimônio de cultura popular que o cinema assumiu preservar contra o tempo e contra o efeito das
modernizações de que este próprio foi parte”. X
AVIER, Ismail. Microcosmo em celulóide. Folha de
São Paulo. São Paulo, Caderno Mais! 01 dez. 2002.
144
Cf. AYALA, Marcos e AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil – perspectivas de
análise. São Paulo: Ática, 1987, capítulo 2.
145
ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. op. cit, p. 18.
146
baile perfumado
apressar a sua morte física. Pois ao final lá está ele, morto mas mais glorioso do que
nunca, olhando o sertão de cima, numa imagem que caberia bem à sua vaidade tal
como descrita pelo filme. Por isso, a meu ver, a morte de Lampião em Baile
Perfumado não se presta a condenações ao processo massificado de construção de um
mito popular, como poderiam sugerir as concepções passadistas que citamos. Estamos
diante de uma espécie de contextualização da cultura popular: “não cabe mais analisar
as práticas culturais populares como sobrevivências do passado no presente, pois
independente de suas origens, mais remotas ou mais recentes, mais próximas ou mais
distantes geograficamente, elas se reproduzem e atuam como parte de um processo
histórico e social que lhes dá sentido no presente, que as transforma e faz com que
ganhem novos significados”
146
. O tradicionalismo na análise da cultura popular,
embora tendencialmente superado em obras de arte (como o próprio Baile
Perfumado) e análises acadêmicas, parece ainda vigorar no senso comum e no
mercado de bens culturais. Pois, como coloca Raymond Williams em seu livro
Cultura
147
, a idéia da cultura popular, quando definida genericamente e em bloco, de
modo a se deixar de lado suas contradições inerentes, encerra-se no passado, e por
isso é utilizada para defender a manutenção da ordem social a partir de um elemento
“morto”, imutável, integrado: “A ‘cultura popular’ é a mais importante área da
produção cultural burguesa e da classe dominante, que caminha no sentido de uma
universalidade oferecida nas modernas instituições de comunicação, como um setor
‘minoritário’ cada vez mais encarado como residual e a ser preservado formalmente
nesses termos”
148
.
Tendo dito sobre as análises acadêmicas que procuraram contextualizar a cultura
popular frente a uma sociedade dividida em classes e em constante transformação, é
preciso considerar que em Baile Perfumado não se trata exatamente de uma
contextualização sociológica ou antropológica da cultura popular. O que temos, a meu
ver, é uma visão que procura unir o popular e o pop (palavra cuja raiz é justamente a
palavra popular, mas no sentido do consumo, do que vende bem), não exatamente
146
AYALA, Marcos e AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil – perspectivas de
análise. op. cit., p. 52.
147
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
148
WILLIAMS, Raymond. Cultura. op. cit., p. 227.
147
baile perfumado
identificando os dois termos, como quer a concepção que considera popular tudo que
faz sucesso no mercado (e portanto cultura popular e cultura de massas seriam a
mesma coisa). Mas entendendo que essa conexão entre o popular e pop não surge à
revelia de seus protagonistas indefesos ou explorados, mas como parte da estratégia
de sucesso destes enquanto membros da sociedade em que vivem. Os cangaceiros e
tudo o que os envolve são simultaneamente parte da cultura popular e do mundo pop
do consumo. São populares porque são identificados a uma manifestação social
originada das camadas dominadas da sociedade, e porque, como tal, são sujeito e
objeto de uma história oral, artística, musical, criada e difundida por estas mesmas
camadas populares. E são pop pois, como a arte pop que ajudou a difundir e a
consolidar o termo, fazem parte de um universo do consumo, de abundância material,
do lazer e do hedonismo, da produção em massa, na qual os “produtos” devem ser
chamativos, glamourosos “e um grande negócio”
149
. Os cangaceiros são, como
veremos, estrelas modernas, no sentido dado por Edgar Morin
150
, herdeiros diretos
das grandes vedetes do cinema da primeira metade do século XX.
Já podemos pressentir a relação entre o popular e o massificado, segundo penso, antes
dos créditos iniciais, quando vemos Padre Cícero (Jofre Soares), uma dessas
personalidades eminentes da cultura popular cearense, nordestina e brasileira,
moribundo em sua cama. Algumas religiosas e o cineasta libanês Benjamin Abrahão
(Duda Mamberti), que foi uma espécie de secretario particular do padre
151
, estão a
seu lado. Ainda não sabemos que é do Padre Cícero que se trata, mas logo em seguida
o plano se abre e a câmera afasta-se performaticamente, iniciando um passeio pela
casa em plano-seqüência, mostrando quadros com o rosto do Padre na parede e uma
estatueta de sua pessoa, enquanto um estrangeiro fala. Se ainda não percebemos que
se trata do Padre Cícero, já nos é dado a entender que o homem morto é uma
personalidade, como atesta a atenção da câmera em nos mostrar suas reproduções em
barro e tinta a óleo. O que a seqüência nos sugere é que, morto o homem, surge o
mito, dado pelas reproduções que se seguem ao seu último suspiro. Padre Cícero
149
Cf. MCCARTHY, David. Arte pop. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 8 e 46.
150
MORIN, Edgar. As estrelas – mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
151
HOLANDA, Firmino. Benjamin Abrahão. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2000, p. 8.
148
baile perfumado
expira, a câmera logo busca suas reproduções destinadas ao consumo das massas. É
ali que sua vida, como mito, continua a partir de então.
O aspecto mítico do Padre também é reafirmado pelas suas fotografias que aparecem
ou são mencionadas durante o filme, fotografias estas que Benjamin Abrahão
distribui quando quer agradar alguém ou mostrar sua própria importância ao ter-se
fotografado ao lado do Padre. Fotografias que, portanto, dão a entender a importância
que é dada, não apenas à pessoa do Padre, mas à sua imagem reproduzida através
desta singular forma de reprodução, que, como considera Paulo Menezes, tem o
poder, pela ilusão de verdade da foto, de nos colocar numa espécie de pseudo-
presença do objeto retratado
152
, sendo desta forma um meio bastante adequado para a
reprodução e circulação de imagens de celebridades.
benjamin abrahão e o padre cícero
O espaço do sertão costuma comportar toda uma iconografia e temática
cinematográfica, que reúne, em filmes muito diferentes, religião, milenarismo,
violência, coronelismo, seca, machismo, macheza, miséria, etc. E, nesta iconografia, a
figura do Padre, do Santo ou do Beato tem relevância, sendo suporte dos anseios
populares de transformação social. Não é ao partido político ou ao sindicato que o
“povo” tem recorrido, no cinema brasileiro, quando se encontra em dificuldades, o
que nada mais é do que a reafirmação daquela visão tradicionalista da cultura popular
152
Cf. MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. Cinema: imagem e interpretação. Tempo Social. São
Paulo, vol. 8, n. 2, out. 1996, p. 85.
149
baile perfumado
que vê o povo como incapaz de relacionar-se com os elementos advindos de um
moderno Estado capitalista. Em Baile Perfumado, a figura religiosa, Padre Cícero,
ganha destaque não exatamente pela função de amparar demandas religiosas
populares, mas pela capacidade de influenciar figuras poderosas, entre elas o próprio
Lampião, que vemos junto ao padre em cenas não apenas de devoção mas também de
cumplicidade e clandestinidade. Ele, portanto, não é apenas possível suporte de
desejos místicos-revolucionários populares, como o Beato Sebastião de Glauber
Rocha (Deus e o diabo na terra do sol, 1963), ou fruto da indignação milenarista
contra a fome e o poder do Estado, como o Antônio Conselheiro algo demente
desempenhado por José Wilker em Canudos (Sérgio Rezende, 1993), mas alguém que
circula no mundo do poder do sertão e que é, em si mesmo, uma figura politicamente
poderosa e influente. Conta o historiador Eric Hobsbawn: “Em 1926, a Coluna
Prestes, uma formação guerrilheira volante liderada por um oficial rebelde do
exército, que na época se transformava em chefe do Partido Comunista Brasileiro,
chegou ao nordeste depois de dois anos de operações em outras partes do interior do
Brasil. O Governo federal solicitou a ajuda do Messias do Ceará, o Padre Cícero, cuja
influência o convertera no verdadeiro chefe político do Estado, em parte, porque um
messias poderia contribuir para manter os fiéis imunes aos apelos revolucionários de
Prestes e de seus homens. O Padre Cícero, que não via com bons olhos a presença de
tropas federais em seus domínios (...), aceitou a solução proposta. Lampião foi
convidado a ir a Juazeiro, a Jerusalém do Padre Cícero, onde foi recebido com todas
as honras, ganhou a patente oficial de capitão das mãos do mais graduado funcionário
federal da cidade, juntamente com um fuzil e 300 cargas de munição para cada um de
seus homens, sendo-lhe ordenado que perseguisse os rebeldes. O famoso bandido
ficou entusiasmadíssimo com essa súbita conversão à legitimidade. Contudo, um
‘coronel’ amigo advertiu-o de que ele estava apenas fazendo o jogo do governo, que
certamente alegaria, depois do desaparecimento de Prestes, que sua patente não era
válida, recusando-se do mesmo modo a cumprir a promessa de anistia para crimes
anteriores. O raciocínio parece ter convencido Lampião, que imediatamente cessou a
perseguição a Prestes. Sem dúvida, ele compartilhava da opinião geral de todos os
sertanejos, de que os bandos volantes de homens armados eram uma coisa com a qual
150
baile perfumado
se sabia lidar, mas que o Governo era ao mesmo tempo mais imprevisível e mais
perigoso”
153
.
A próxima personalidade recorrente do arcabouço da cultura popular a aparecer é
justamente Lampião (Luís Carlos Vasconcelos). De certa forma, sua aparição física é
introduzida pelos créditos dando o nome do filme que aparecem após a morte do
Padre. Um chapéu de cangaceiro estilizado e iluminado, como se sob holofotes,
acompanha o escrito Baile Perfumado e colabora para introduzir o aspecto de
“produto” que acompanha o “governador do sertão” e que aqui é dado por essa
espécie de logotipo do cangaço.
Inicialmente vemos Lampião num combate contra a polícia (os macacos) cuja mise-
en-scene em nada se aproxima dos combates pretensamente épicos que o gênero
nordwestern usava para representar as refregas do cangaço em filmes como Lampião,
O Rei do Cangaço (Carlos Coimbra, 1962). Aqui nada visa acentuar o heroísmo e a
coragem destes homens, mas o lado falicamente
154
egocêntrico dos que empunham
uma arma. Os cangaceiros pulam performaticamente, gritam frases intercaladamente,
como se o Corisco (Othon Bastos) de Deus e o Diabo na Terra do Sol se soubesse
diante das câmeras e parte da “sociedade do espetáculo”. O cangaceiro de Glauber
Rocha não poderia ver a si mesmo como parte de um mundo midiático e estruturado
na imagem, pois o sertão do cineasta é, como nos diz Ismail Xavier, um espaço
153
HOBSBAWN, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976, pp. 91-92.
154
O falo, elemento primordial da masculinidade, tem presença neste filme: enquanto mata os dois
traidores com uma espada (o terceiro sobrevive para contar a história), sangue espirra na cara de
Lampião. A seqüência, composta apenas pela cara de Lampião e pelo sangue jorrando, lembra muito
as cenas de ejaculação dos filmes pornográficos, nos quais há sempre o close do rosto da mulher e do
esperma saindo. Neste sentido, pode-se dizer que Lampião sente prazer em matar os traidores.
Também podemos atentar para o fato de que, como forma de se vingar do filho de Zé do Zito, também
traidor, o bando de Lampião resolve emasculá-lo.
151
baile perfumado
fechado
155
, sem contato com o mundo exterior, e o extravasamento de seus atos
parece melhor corresponder a uma necessidade de sua personalidade transitória e
incorporadora de aspectos políticos, míticos, revolucionários. O sertão de Baile
Perfumado não é este espaço fechado, mas ao contrário, um lugar no qual a presença
da sociedade a seu redor, na forma de perfumes e whiskys, faz-se notar. Benjamin
Abrahão vai do Recife ao acampamento dos cangaceiros com relativa facilidade de
locomoção, como se estivesse de certa forma em ambientes próximos – e cabe
lembrar que este Recife aqui é uma cidade exuberante e urbana, ainda que permeada
das relações patrimonialistas. Quem parece se saber diante das câmeras é Lampião
que, findo o combate, atira para o alto, performaticamente, dá um tiro cuja única
finalidade aqui é mostrar sua presença, fazer-se notar, regozijar-se de sua própria
importância, edificar sua imagem.
Seu tiro é seguido do baixo eletrizante de Chico Science que passa a compor a
imagem de um outro ícone do sertão: o rio São Francisco.
O rio se transforma aqui em algo como o protagonista de um videoclipe, filmado ora
em branco e preto ora em cores, enquadrado em travellings vertiginosos e
acompanhado da música que mistura guitarra elétrica com triângulos, rock com
música regional. Parece que estamos longe do sertão da seca e da fome, dada a
exuberância do rio e do verde que o cerca.
E, com efeito, quando acompanhamos o bando de Lampião pelo sertão adentro, nada
nos dá a perceber uma possível situação de penúria e luta contra o ambiente hostil e
miserável envolvendo e determinando a trajetória dos personagens – situação de
penúria associada ao nordeste cujo clássico cinematográfico é Vidas Secas (Nelson
Pereira dos Santos, 1963). É possível que estejamos em frente, inclusive, de um filme
155
Cf. XAVIER, Ismail. Dramaturgias do cinema brasileiro: inventar narrativas (para tentar dar conta
das experiências) contemporâneas. Cinemais, op. cit.
152
baile perfumado
que procura contrapor-se à imagem do nordeste que, principalmente na região sudeste
e sul, predomina, e que tem um de seus principais representantes justamente no filme
de Nelson Pereira dos Santos acima citado. Estamos, ao contrário, presenciando a
vitalidade da vegetação às margens do Rio São Francisco.
Benjamin Abrahão, depois de ter se tornado conhecido por filmar o bando de
Lampião, procura utilizar o imaginário de pobreza natural para engrandecer sua
passagem pelo cangaço. Assim como Lampião faz ao negociar suas imagens com o
cineasta libanês, Benjamin também procura construir um personagem de si mesmo, e
relata aos jornalistas d’O Cruzeiro que o entrevistam como a caatinga é hostil e dura
– desconforto que não o vimos enfrentar, mas que com certeza colabora para a
construção de sua imagem, também pop e atravessada pela cultura de massas, de
homem destemido. Pelo contrário, onde quer que vá, Benjamin parece usufruir sem
constrangimentos dos confortos e dos bens que lhe oferecem, e por isso o vemos
tantas vezes comendo – com Ademar, com Zé de Zito, com Said – ou bebendo – com
o bando, com o tenente, com Zé de Zito e até sozinho. Sua imagem de homem
destemido, porém, a meu ver, não se restringe a apenas imagem em Baile Perfumado:
o filme tende a elogiar seu caráter inovador e, como ele mesmo se autodefine,
inquieto, e o que nos resta findo o filme é a imagem positiva deste homem a despeito
153
baile perfumado
da interpretação um tanto automática do ator que o representa deslocada em meio a
um filme de momentos de poesia e beleza
156
.
Voltando ao rio São Francisco, podemos dizer que a água, que já foi utopia
revolucionária em Deus e o Diabo na Terra do Sol e que tem sido utilizada em
diversos filmes brasileiros, parece ter sido em Baile Perfumado esvaziada de um
conteúdo mais “alegórico” ou “simbólico” e permanecer enquanto visão luxuriante,
parte da paisagem exuberante tratada em imagens que, como num videoclipe, atraem
pela velocidade, vertigem e trilha sonora. Parece não haver o conteúdo metafórico
que persegue a água e o mar em nosso cinema, como a discussão sobre a identidade
nacional em Terra Estrangeira (Walter Salles, 1995), o espaço “uterino” ligado a
uma volta ao lar em Amélia (Ana Carolina, 1998), ou a visão da superação da
violência e da ordem tradicional em Abril Despedaçado (Walter Salles, 2002). Temos
em Baile Perfumado, a meu ver, uma utilização diferente deste elemento que costuma
carregar alusões simbólicas fortes: seu papel parece estar mais relacionado a uma
inversão de expectativas com relação ao sertão que aqui não é seca, sofrimento,
dificuldades, nem isolamento, arcaísmo e pureza. Além do rio como visão da
exuberância do sertão, podemos relacioná-lo, talvez, e por essa mesma beleza, a uma
revolução de algum modo já realizada. Neste sentido, se em Deus e o Diabo, em sua
última seqüência, Glauber se cala com respeito à transformação que virá, em Baile
Perfumado a cena final, invertida cronologicamente quanto à história que vimos, dá
um conteúdo à transformação, caracteriza-a: “os inquietos mudarão o mundo”. E,
sendo cronologicamente anterior a tudo o que vimos, colocada como cena final, a
seqüência parece se referir ao filme que passou, ou seja, ao próprio conteúdo fílmico,
como essa transformação já realizada. Lúcia Nagib considera que, em Baile
Perfumado, “fica ainda mais evidente que a situação conflituosa entre sertão e mar
formulada por Glauber Rocha encontra-se superada. A caatinga onde se esconde
Lampião está verde (o filme foi rodado logo após um período de chuvas) e as águas,
156
Ver, como exemplo, a seqüência na qual o rabequeiro (Ciba, do Mestre Ambrósio) toca para o
bando numa canoa que desliza suavemente ao mesmo tempo em que não parece sair do lugar.
154
baile perfumado
dos rios ou do mar, são presença mais freqüentes que as imagens do próprio
sertão”
157
.
Padre Cícero, Lampião, rio São Francisco. Um após o outro, estes símbolos de força
no imaginário na região do nordeste desfilam perante nós imbuídos de suas
representações, de atuações performáticas e indissociadas do desempenho espetacular
da câmera e da música. Depois de dar uma roupagem não tradicionalista a estes
ícones populares, associando-os ao mundo urbano, aos bens de consumo, à vaidade e
à exuberância, Baile Perfumado em seguida apresenta alguns dos meios através dos
quais os aspectos considerados como parte do mundo da cultura popular tornam-se
indissociavelmente populares – pois referentes a um imaginário criado e reproduzido
pelas camadas dominadas fora do ambiente do conhecimento culto – e parte da
cultura de massas – pois incluídos entre o rol de seus produtos comerciais. Estes
meios são o cinema e a fotografia, que estarão presentes em diversos momentos do
filme.
Benjamin Abrahão dá instruções para um retrato de família, que vemos como a
imagem invertida que efetivamente o mecanismo da câmera escura capta. A inversão
da imagem não é gratuita, mas já nos introduz em um dos temas mais interessantes do
filme: o modo como o cineasta constrói o filme de Lampião e todas as outras imagens
suas (inclusive a dele mesmo), ou seja, sua maneira de montar, encenar, inverter o
“real” quando este não se presta às suas aspirações, ou quando o “real” não dá uma
boa imagem captada pela câmera. Nesta inversão da foto de família, na cena da
vaquejada – que tem de ser refeita de uma maneira diferente especialmente para a
filmagem porque a vaca não correu suficientemente perto da câmera – e na refrega
encenada do bando de Lampião, revela-se o mecanismo de construção/inversão do
real operado pelas lentes de Abrahão.
Seguindo-se à cena da fotografia invertida, observamos Lampião e Maria Bonita no
cinema. Ela parece deslumbrada pelo que vê, e ele ao mesmo tempo desconfiado e
satisfeito como se a partir de agora tivesse descoberto as grandes possibilidades de
construção de realidade dadas por este aparato.
157
NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro. op. cit., p. 52.
155
baile perfumado
E o cinema e a fotografia serão meios fundamentais nas estratégias de nossos
personagens em suas trajetórias com vistas ao sucesso, reconhecimento e poder.
Lampião negocia sua imagem com Benjamin Abrahão, e este utiliza suas fotografias e
filmes domésticos para conseguir favores e abrandar os ânimos de pessoas poderosas
acostumadas ao mando e desmando.
As imagens do Recife que Maria Bonita vê no cinema acionam nela a impressão de
realidade que é própria deste meio, na medida em que reúne a ilusão fotográfica mais
a temporalidade. Segundo Paulo Menezes, temos uma tendência muito forte a
acreditar na veracidade das imagens fotográficas, por mais que estejamos conscientes
das possibilidades de manipulação. Isso se explica, para falar com André Bazin, pela
“ontologia da imagem fotográfica”. Segundo o crítico francês, “o fenômeno essencial
na passagem da pintura barroca para a fotografia não reside em um simples
aperfeiçoamento material (...), mas num fato psicológico: a satisfação completa de
nosso apetite de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem é
156
baile perfumado
excluído”
158
. “Essa gênese automática transformou radicalmente a psicologia da
imagem. A objetividade da fotografia lhe confere um poder de credibilidade ausente
em toda obra pictórica”
159
. “A fotografia beneficia-se de uma transferência da
realidade da coisa para a sua reprodução”
160
. A ilusão da fotografia, como constata
André Bazin, está fundada em grande parte no próprio aparato fotográfico, cujas
lentes chamam-se sintomaticamente objetivas. No cinema, segundo Paulo Menezes,
tudo isso é exacerbado, uma vez que o próprio ambiente da sala nos coloca em estado
de imersão – e portanto mais predispostos a participar do jogo da ilusão projetada – e
na medida em que as imagens cinematográficas só existem no tempo da projeção,
adicionando portanto mais uma dimensão da realidade àquela do espaço na
fotografia
161
. Assim, Maria Bonita, voltando com Lampião para o refúgio do bando,
dirá que o Recife deve ser muito bonito e que gostaria de conhecê-lo. Lampião
mostra-se, neste momento, talvez dissimuladamente, distante da forte impressão que a
experiência causou a Maria, e quando perguntado se gostou de ir ao cinema,
responderá, desdenhoso, que Maria é que deve ter gostado, pois não pára de falar no
assunto. Porém, quando negocia com Benjamin Abrahão o teor de suas imagens – o
que pode revelar o lado menos ingênuo e afetivo com o qual ele se relacionou com a
experiência do cinema –, vemos que ele percebeu o poder do meio, tentando a partir
daí controlá-lo a seu favor: ele testa a câmera em primeiro lugar e depois informa a
Benjamin que cabe a ele, Lampião, decidir como as filmagens serão realizadas. Ele é
que mandava, não só no cineasta, mas naquilo que a câmera poderia revelar ou não
sobre Lampião. Contra sua imagem divulgada pelos meios oficiais, e que aqui tem
seu lugar na figura da polícia e no governo de Getúlio Vargas, Lampião quer
controlar o que é mostrado sobre si mesmo, e nesta tentativa de apoderar-se do
discurso que é elaborado sobre si acaba desagradando as autoridades. Então vemos
que o que há de popular em sua figura nada tem a ver com ingenuidade e
tradicionalismo no que se refere ao poder da imagem.
158
BAZIN, André. Ontologie de l’image photographique. In: Qu’est-ce que le cinema? op. cit., p. 12.
159
BAZIN, André. Ontologie de l’image photographique. op. cit., p. 13.
160
BAZIN, André. Ontologie de l’image photographique. op. cit., p.14.
161
C.f. MENEZES, Paulo. Cinema: imagem e interpretação. Tempo Social. op. cit., pp. 83-104.
157
baile perfumado
Trata-se, em certa medida, de uma troca simbólica entre Benjamin e Lampião, na qual
o cangaceiro passa a compreender o poder de suas imagens na construção de seu mito
e, então, resolve “administrar” o material produzido sobre ele. O material de
Benjamin é resultado da negociação entre cineasta e cangaceiro. Como nas relações
estabelecidas entre Portinari e as personalidades por ele retratadas vistas no livro
Imagens negociadas
162
, de Sergio Miceli – a partir das quais o pintor procurava
destacar-se entre seus pares e seus retratados faturarem em termos de imagem pública
– o que temos em Baile Perfumado é um jogo de intenções indissociavelmente
imagéticas e simbólicas, que colaboram na construção das imagens públicas de
Benjamin e de Lampião. Há troca, portanto, no sentido de que ambos tentam ganhar
com o material filmado – Benjamin lucra com sua imagem empreendedora e
destemida e Lampião com a fixação de sua força e poder na película cinematográfica.
Para isso eles têm de se colocar frente a frente negociando o teor do material filmado.
A refrega encenada é o principal caso de acordo e ganho mútuo com as imagens.
A adesão negociada de Lampião ao cinema é coerente com a postura que seu bando
adota com relação à própria performance como cangaceiros, administrando a fama
que conquistaram, conscientes portanto de que têm uma imagem a preservar e criar.
Assim, em Baile Perfumado, com exceção da refrega inicial, não vemos combates ou
ações importantes desempenhadas pelo cangaço. Não há o heroísmo e o
desprendimento por vezes associados ao banditismo social. Ainda que se saiba que o
fenômeno não tem características revolucionárias, em geral “os bandidos corrigem os
erros, desagravam a injustiças, e ao assim proceder aplicam um critério mais geral de
relações justas e eqüitativas entre os homens em geral, em particular entre os ricos e
os pobres, os fortes e os fracos”
163
. A violência que Lampião exerce ou manda
exercer, contra quatro delatores e depois contra Zé do Zito, refere-se a questões
pequenas de vingança, e estão longe de ações maiores e de maior impacto que,
lendárias ou verdadeiras, trouxe notoriedade ao cangaço e aos bandidos sociais. O
bando parece acomodar-se à fama que criou. É o que Benjamin Abrahão nota ao
escrever em seu diário que o grupo parece se divertir despreocupadamente,
162
MICELI, Sergio. Imagens Negociadas: retratos da elite brasileira. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
163
HOBSBAWN, Eric. Bandidos. op. cit., p. 19.
158
baile perfumado
desfrutando tranqüilamente do próprio mito. Também é o que sentimos quando vemos
a relação que o bando tem com mercadorias próprias do mundo “burguês” e citadino,
como whisky White Horse e perfume Fleur d’Amour, que Lampião joga no ar como
se estivesse perfumando o sertão, o que sugere que ele sente seu ambiente como uma
extensão de si mesmo. Além disso, sugere uma aproximação entre o ambiente dele,
Lampião, e o mundo urbano, local por excelência de cosméticos e afins.
Em O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, havia menção ao interesse dos
cangaceiros pelas mercadorias do mundo urbano. O bando de Galdino Ferreira
(Milton Ribeiro) gosta de posar para retratos fotográficos e quer ouvir música no
gramofone que rouba num dos saques à cidade. Eles são, porém, “selvagens” demais
para utilizarem tal “tecnologia”, confundindo a rotação adequada e dependendo da
moça urbana que seqüestraram para operar o aparelho. Um modo ingênuo, portanto,
dos cangaceiros lidarem com os bens da civilização que tende a ser negado em Baile
Perfumado, quando vemos que Lampião e seu bando logo percebem o potencial do
cinema na construção do mito do cangaço. Não apenas Lampião, mas também o
tenente Lindalvo Rosa, que pede orgulhoso que Benjamin fotografe a cabeça de
cangaceiro que ele decepou.
Ainda sobre o gramofone, é de se notar que o aparato em O Cangaceiro é fonte de
conflitos entre os cangaceiros, que não sabem usá-lo, enquanto que, em Baile
Perfumado, ele faz parte do ambiente do bando de modo integrado, servindo ao
momento de lazer do grupo. Assim como o gramofone faz parte do cangaço, também
participa do ambiente mais requintado da casa de Zé do Zito, o que sugere, a meu ver,
uma certa indiferenciação entre estes dois lugares.
Se em O Cangaceiro de Lima Barreto o bando é rude demais para lidar com um
gramofone, Galdino parece se preocupar em demasia com sua aparência e com os
bens materiais que ostenta, polindo constantemente os anéis que leva nos dedos. Ou
seja, falta a este homem cultura “civilizada” para operar um aparato técnico, mas
sobra a vaidade que está associada ao aspecto vão e superficial da “civilização”. Este
é um dos traços negativos da personalidade de Galdino, que o faz contrastar com o
159
baile perfumado
cangaceiro Teodoro (Alberto Rushel)
164
, que, ao invés de ostentar riqueza e vaidade,
tem educação formal, inteligência e bom-senso. Além disso, diz-se umbilicalmente
ligado à terra (“Parece que tenho um bocado desta terra desmanchada no sangue”),
sendo portador portanto não só do que há de melhor na “civilização” mas também do
que seriam os verdadeiros valores do mundo natural, daquilo que confere, no filme, o
aspecto redentor de sua morte – ele morre agarrado a um punhado da terra que tanto
ama depois de libertar a mocinha civilizada. “Teodoro seria a própria rusticidade
civilizada, conhecedor e preservador das boas coisas do mundo sertanejo, como o
indígena pacificado”
165
. Já na refilmagem de Aníbal Massaíni de 1997 (O
Cangaceiro) permanece o lado grotesco, irracional, primitivo e caricatural que havia
no bando no filme de Lima Barreto, mas diminui o interesse dos cangaceiros pelos
meios de comunicação de massa e pelos bens materiais. Porém, se se deixa de lado o
aspecto da vaidade e capricho que liga o bando ao mundo das coisas urbanas e caras,
este aparece como justificativa para a diferença de Olívia em relação às outras
mulheres raptadas pelos cangaceiros. Ela não é mais a professora, como no filme de
Lima Barreto – condição que justificava sua importância diferenciada –, mas a filha
de uma família muito rica. O que na primeira versão é visto como o lado supérfluo da
“civilização”, aqui se torna um aspecto desejável dela: é o dinheiro que dá o caráter
nobre à mocinha raptada, não mais a educação. Com efeito, da década de 1950 para o
final do século XX, o saber perdeu parte do seu prestígio para o glamour do sucesso
financeiro, que hoje é muito mais invejado e desejável do que a cultura. Num mundo
no qual a erudição perdeu importância, a transformação do personagem da professora
é sintomática da avassaladora presença da cultura de massas, local por excelência da
valorização do dinheiro, do sucesso, da mercadoria, da autopromoção. Pode-se dizer
que O Cangaceiro de 1997 faz como Baile Perfumado, explicitando a desejabilidade
164
Cf. TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O Cangaço ou o rural como um tempo pré-civilizado In:
O rural no cinema brasileiro. São Paulo: U
NESP, 2001. Neste capítulo, a autora explicita os
constantes contrastes que O Cangaceiro estabelece entre os personagens de Teodoro e Galdino e
defende que estes servem para identificar no rural o espaço do primitivo, do incivilizado, do grosseiro
e do arcaico contra o mundo urbano que, na figura de Teodoro, representa educação, confiabilidade,
racionalidade, moralidade, etc.
165
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O Cangaço ou o rural como um tempo pré-civilizado. In: O
rural no cinema brasileiro. São Paulo: Unesp, 2001, p. 82.
160
baile perfumado
da penetração na cultura de massas, mas naturalmente sem o poder de reflexão e a
profundidade do filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira.
O libanês Benjamin Abrahão, fotógrafo e cineasta, também está consciente do poder
das imagens que produz e as utiliza como estratégia para conseguir circular entre
coronéis, policiais e cangaceiros, além de ser capaz de seduzir mulheres casadas que
inevitavelmente comparam seu caráter destemido e empreendedor – indissociável do
fascínio pelos meios artísticos que ele domina e da exposição que conquista nos
meios de comunicação – com a mediocridade de seus maridos. É notável, nesse
sentido, que a filha de Dona Arminda, proprietária da pensão na qual ele passa alguns
dias, demonstre fascínio pelo libanês ao ver sua foto publicada no jornal, seguida de
uma matéria sobre o ineditismo das imagens de Lampião que ele conseguiu. Depois
disso a moça, casada com Pedro, terá relações sexuais com o libanês. Ao que consta,
parece que o verdadeiro Benjamin já tinha, antes de se tornar cinegrafista, uma
intimidade com a veiculação promocional e comercial das imagens: Benjamin teria
mantido em Juazeiro uma loja na qual se vendiam imagens de santos
166
.
Procurando proteção de autoridades locais para filmar o bando, Benjamin usa a
fotografia e o cinema como meios de conquistar a simpatia e os favores daqueles que
podem garantir o sucesso de seu filme. O exemplo mais marcante é sua estratégia de
filmar a vaquejada do Coronel Libório que, encantado com o resultado, garante sua
proteção junto aos cangaceiros.
Como já dissemos, aqui também se revela a “mentira” cinematográfica, a construção
cuidadosa do “real”, para que, em alguma medida, ele fique mais real do que o “real”.
A vaca não passa suficientemente perto da câmera, e o Coronel Libório, também já
166
HOLANDA, Firmino. Benjamin Abrahão. op. cit., p. 19.
161
baile perfumado
penetrando nos mecanismo de construção de imagem e veracidade, ordena que a vaca
seja jogada na frente das lentes de Abrahão da próxima vez.
Naturalmente, apenas os recursos imagéticos não seriam suficientes para o cineasta
conseguir as condições necessárias para o seu trabalho, mas eles se associam à sua
simpatia, habilidade de negociador e a sua ambição cinematográfica. Além de
talentoso por trás das câmeras – as imagens “originais” de Lampião são realmente
marcantes – em Baile Perfumado este homem é mostrado como alguém desinibido
para circular entre poderosos, e, a meu ver, a valorização de seu caráter
empreendedor no que se refere ao cinema permanece em Baile Perfumado a despeito
do final trágico que o espera e a despeito do libanês conseguir acabar aborrecendo o
coronel Libório, a polícia, o próprio Lampião, e ainda ser assassinato por ter dormido
com uma mulher casada. As imagens “documentais” de Lampião que Benjamin
Abrahão produziu, misturadas às imagens de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, vêem
recompensar, segundo acredito, o risco que o cineasta libanês esteve disposto a
correr, circulando, às vezes com mais e às vezes com menos habilidade, entre
bandidos, poderosos, policiais e governo.
A presença das cenas originais do bando de Lampião, destacadas pela música de
Chico Science, impressiona por estarmos vendo efetivamente um ícone da cultura
popular brasileira, e nos deleitamos em ver as imagens deste mito tais como
produzidas por este meio poderoso de produção da impressão de realidade que é o
cinema. Ver as imagens “verdadeiras” de Lampião é como ter acesso a um vídeo
íntimo de alguma celebridade, que nos dá, portanto, a impressão de que entramos
num mundo privado e assim desvendamos os segredos dos mitos. É interessante que a
partir do momento em que o bando precisa partir, e expulsa Benjamin, passamos a ter
contato com os cangaceiros apenas através das imagens que ele permitiu filmar e
fotografar. O bando não mais aparece. Assim como o cineasta libanês, nós também
somos privados das imagens “verdadeiras” de Lampião.
A admiração pelo trabalho do cineasta ganha materialidade nas cenas que comprovam
seu mérito empreendedor e seu ineditismo (são as únicas imagens cinematográficas
de Lampião conhecidas). Porque tendemos a admirar o lado de “verdade” que as
imagens “documentais” fazem despertar, tiramos prazer da visão do mito Lampião,
162
baile perfumado
ainda que estejamos acompanhando o processo de fabricação deste mito e a
negociação da imagem que está tendo lugar durante as filmagens.
Nesse sentido é interessante voltarmos a Jean-Claude Carrière e seu livro A
linguagem secreta do cinema no que se refere à construção da realidade e da história
operada pelo cinema. Pois aqui, quando vemos as imagens documentais de Lampião,
quando vemos o “verdadeiro” Lampião, aquela clivagem que havíamos comentado
entre o filme de época e o filme que pretende, principalmente com os movimentos de
câmera que explicitam a presença do aparato, mostrar-se enquanto filme, volta a
surgir sob uma nova rubrica. Pois se a História foi afastada em Baile Perfumado pela
presença da câmera e pelo manguebeat, ela retorna com toda sua força nas imagens
documentais produzidas por Benjamim Abrahão e inseridas no filme de Paulo Caldas
e Lírio Ferreira. Carrière comenta o movimento contrário: a inserção de imagens
ficcionais em relatos jornalísticos, históricos, “documentais”: “Já temos programas
que se intitulam ‘históricos’ e usam profusamente filmes ‘históricos’ para ilustrar os
acontecimentos que registram. Eles nos mostram, como se fossem filmadas ao vivo,
cenas da Antiguidade ou da Idade Média. Vemos Napoleão com o perfil de Marlon
Brando, Joana d’Arc com o rosto e os ombros largos de Ingrid Bergman”
167
. Aqui se
trata da inserção das imagens documentais da ficção. Mas o que é importante reter a
respeito do argumento de Carrière, a meu ver, é a interpenetração cada vez maior
entre ficção e História que, no caso de Baile Perfumado, empolga pelo acesso que dá,
em certa medida, à intimidade do cangaceiro: “A pseudo-realidade e a assim chamada
ficção estão cada vez mais próximas (...). A realidade já não é suficiente para
escrevermos a História. Queremos saber o que nossos predecessores pensavam, a
substância de seus desejos, fantasias e sonhos. Então o cinema, que procurava recriar
167
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. op. cit., p. 62-63.
163
baile perfumado
não apenas a forma, mas também as mentalidades do passado (mentalidades que são,
é claro, inverificáveis), tem lugar de honra nesse novo mosaico”
168
.
Mais do que empolgar, as imagens documentais legitimam um discurso, no caso, o
discurso de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. As imagens documentais, por pertencer a
um “gênero” específico que comumente está identificado a uma maior capacidade de
reter a realidade, pela mobilização de um discurso que pretende estabelecer uma
maior proximidade com o fato vivido, com a “História”, portanto, vêm aqui legitimar
o discurso ficcional. Se, como considera Bill Nichols, “algo da realidade parece
passar através das lentes e permanecer embebida da emulsão fotográfica”
169
, nas
imagens documentais essa realidade atravessa ainda melhor, pois vêm atingir o
espectador sem o intermédio da narrativa de ficção – abertamente “mentirosa”,
“inventada”, lúdica. Ou, como diz Paulo Menezes: “É quase uma afirmação de senso
comum dizer que o cinema não reproduz a realidade, como cansa de explicitar
Arnhein em seus textos. Ao mesmo tempo, se isso fosse tão senso comum assim o
livro de Arnhein seria totalmente dispensável e não precisaria ter sido escrito. Assim,
se parece ser quase ‘natural’ esta percepção de que existe uma diferença intrínseca
entre imagem e real, ao mesmo tempo não parece que para o público ela sempre
exista, ou pelo menos não exista sempre um pouco”
170
. O que queremos dizer,
portanto, é que com as imagens documentais a diferença entre imagem e real torna-se
menos perceptível para a maior parte dos espectadores, e é por isso que as imagens
documentais de Lampião vem aqui legitimar o discurso ficcional de Paulo Caldas e
Lírio Ferreira. Como sugerem as palavras de Bráulio Tavares, falando sobre as
imagens documentais de Benjamin Abrahão: “Nunca assisti a esse filme sem
perceber, na platéia, um pesado silêncio expectante durante essas cenas. Essas
imagens (...) se impõem diante de qualquer platéia que tenha conhecimento do mito,
mesmo aquelas cuja infância não tenha sido povoada pelas lendas que ele produziu
168
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. op. cit., p. 63.
169
NICHOLS, Bill. Representing Reality. Bloomington: Indiana University Press, 1991, p. 5.
170
MENEZES, Paulo. Problematizando a “representação”: fundamentos sociológicos da relação entre
cinema, real e sociedade. Socine - Estudos de Cinema. Porto Alegre: Sulina, 2001, p. 342.
164
baile perfumado
(...). A força das imagens está na mente do espectador. Um registro que se propunha a
uma ingênua objetividade acaba ganhando proporções mágicas”
171
.
Afastada a História, afastado o “clima” de época, tudo isso volta a aparecer aqui.
Baile Perfumado parece recusar o aspecto mais ingênuo da identificação entre
imagem e real, dado pela “reconstrução” do “clima” da época, da invisibilidade de
câmera, da trilha sonora adequada; no entanto volta a aproximar-se do real ao inserir
as imagens documentais de Lampião, que, a meu ver, imediatamente despertam
fascínio no espectador cultivado suficientemente para despir-se da ingenuidade da
identificação imagem/real, mas também cultivado suficientemente para empolgar-se
diante da imagem da História do Brasil “profundo” e popular.
As imagens geradas pela fotografia e pelo cinema são mostradas em Baile Perfumado
como tendo grande importância no mundo que nos cerca. O filme de Benjamin
Abrahão retratando o bando de cangaceiros é, de alguma maneira, responsável pelo
endurecimento do combate ao cangaço. “Mostrar” e “dar a voz” ao outro através do
cinema aqui está longe de ser uma atividade apenas positiva e pacífica; um filme
pode, em certa medida, matar, ou levar à morte.
A possibilidade de ser filmado gera grandes expectativas e mexe com a vaidade das
pessoas. Quando Benjamin Abrahão propõe a Lampião a realização do filme sobre o
bando, vemos Maria Bonita ao fundo sentir-se toda orgulhosa e feliz com a
possibilidade de ser filmada. O próprio Lampião, que, diante da proposta, demonstra
desconfiança, se mostrará depois bastante à vontade diante da câmera, discursando
sobre o poder de sua pessoa, “governador do sertão”, com muita desenvoltura e
teatralidade, ampliando cada gesto que executa diante das câmeras como a reforçar
seu caráter perigoso e destemido.
171
Apud. HOLANDA, Firmino. Benjamin Abrahão. op. cit., p. 74.
165
baile perfumado
Dançando diante da máquina de Benjamin, seu bando expõe-se orgulhosamente. Quer
mostrar-se, desfilando diante do aparelho do libanês. Estamos aqui diante do “baile
perfumado” que dá nome ao filme, e que nos remete ao aspecto aburguesado do
cangaço que estamos vendo. Sinestesicamente, o que Paulo Caldas e Lírio Ferreira
acabam por nos propor com este nome é a visão do lado festivo e despreocupado do
bando e ao mesmo tempo o aroma da vaidade que está imbuída na sua auto-
representação. O título nos desvia do caráter mais previsível da representação do
cangaço e do sertão – miséria, violência, fome, personalismo, extraordinariedade –
para focalizar um aspecto cotidiano e agradável da vida íntima do bando pelo qual ele
próprio se representa. E remete também à seqüência plena de simbolismo na qual
Lampião perfuma o sertão.
No baile o que vemos é que a presença da câmera modifica imediatamente o caráter
da manifestação popular, fazendo com que seus participantes adotem posturas que
provavelmente são diferentes das que teriam sem a câmera, tal é o desejo de
exibirem-se enquanto dançam. A câmera não causa constrangimentos, mas, ao
contrário, reforça o lado exibicionista de todos, que aderem espontaneamente, como
se todos ali estivessem a jogar de comum acordo o mesmo jogo da imagem. Os
cangaceiros, para falar com Erving Goffman, formam uma “equipe de representação”,
cooperando na encenação de uma rotina particular
172
. Estão unidos para manter a
imagem do grupo diante da câmara de Abrahão. Neste sentido, o cineasta não é a
“platéia”, ainda para falar como Goffman, apesar de ser, aparentemente, objeto
perante o qual a representação se realiza, mas é parte da equipe, solidário a ela e
organizador de sua performance. A platéia será, naturalmente, o público futuro das
imagens. E a convicção, por parte dos cangaceiros, da importância do lugar da
câmera, verdadeiro veículo para o encontro com platéia que no momento só existe
como virtualidade, os desprovê de ingenuidade. O libanês, como parte fundamental
da equipe, inventa situações e cenas de modo a obter imagens mais impactantes: ele
pede para que os cangaceiros representem uma luta para a câmera, depois de ser
repreendido por Lampião ao pedir para filmar uma refrega de verdade. Naturalmente,
faz parte das expectativas geradas pela exibição de um filme de cangaço imagens que
172
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 78.
166
baile perfumado
justifiquem a fama do bando. É nos dado a entender que Benjamin Abrahão não
ficaria satisfeito se não obtivesse imagens tão importantes para o impacto de seu
filme. Lampião, que a princípio não entende tratar-se de uma farsa, quer mostrar que
está no controle da situação, apesar de Benjamin operar o aparato, e diz que só ele
determina quando seus homens devem lutar, pois é ele quem está no comando alí. Ao
que o cineasta explica que a luta não será de verdade, mas apenas uma encenação
para a câmera. Lampião acha graça da inventividade do libanês e então aceita
participar do espetáculo, mobilizando seu grupo.
o baile e a refrega encenada
Como na seqüência da vaquejada, temos aqui a “farsa” cinematográfica revelada, na
medida em que o filme explicita a encenação elaborada, o papel fundamental do
cineasta na construção da imagem, e a negociação com o representado no que se
refere à divulgação de sua imagem. Por meio deste mecanismo, Baile Perfumado
tenta deixar claro seu caráter de filme, tentando revelar a construção de seu discurso,
o lugar de onde é feito. Se, como dissemos, não há a preocupação com a
reconstituição histórica, há, além disso, a revelação dos mecanismos pelos quais a
dita reconstituição histórica é realizada: a partir de acordos, interesses, acasos,
encenações. Lampião vai colaborando na construção de seu próprio personagem, que
em Baile Perfumado, como temos dito, adquire uma dimensão de ídolo pop. Tendo
chegado ao Rio de Janeiro a notícia das imagens de Benjamin, que merecem destaque
na revista O Cruzeiro, vemos Adhemar (Adhemar Bezerra Albuquerque, criador da
Aba Film), o proprietário dos equipamentos que o libanês usou em sua empreitada, ao
telefone, com um pôster de Lampião ao fundo, numa menção, a meu ver, do status de
personalidade midiática que o cangaceiro adquiriu, e como que substituindo a foto da
autoridade (Getúlio Vargars) que vemos na parede da sala da polícia. Adhemar tenta
conseguir a liberação do filme junto ao governo federal, que o censurou por
167
baile perfumado
considerar que as imagens mostram o bandido ganhando a guerra contra a repressão
estatal, o que desrespeita o governo e a polícia. Assim, o caráter de ídolo daquele
homem impresso no pôster é, a meu ver, destacado, na medida em que vemos o
diálogo de um empreendedor da cultura, uma espécie de empresário artístico,
negociando a exposição da imagem de seu produto.
Ismail Xavier observa esse caráter de pop-star de Lampião e considera que ele é um
mito esvaziado de conteúdo. Compara-o com o Corisco de Deus e o diabo na terra do
sol: “Glauber está pensando (...) o cangaceiro como figura mítica, mas pautado pela
cultura popular. É mito porque é cordel, é mito porque é cantador de feira, é mito
porque aquela cultura popular específica daquela região é uma coisa enraizada.
Agora, a questão do mito de Lampião, em O Baile Perfumado, (...) é o cinema. O que
importa é a imagem produzida de Lampião, a relação com esse instrumento moderno.
E quando o cinema é retrabalhado no filme, Lampião é projetado numa esfera de pop-
star. (...) (O filme) Faz a transformação de Lampião num ícone esvaziado de
conteúdo”
173
. A meu ver, o Lampião de Baile Perfumado está esvaziado de conteúdo
no sentido de que lhe falta a performance de herói ou a personalidade que poderia ser
condizente com uma imagem glamourosa. Como já observamos, do bandido social,
tal como Hobsbawn o entende, é esperado mais do que vinganças pessoais e combates
com a polícia. Ele pode pertencer, segundo a tipologia do Historiador, ao tipo
vingador, que inclui o bando de Lampião, ou ao tipo Robin Hood, que tem nesse
personagem a melhor condensação de suas características. Mas é importante que
tenha ações que justifiquem sua notoriedade.
Sobre o tipo vingador, diz Hobsbawn: “A moderação ao matar e agir com violência
faz parte da imagem do bandido social. Não há razão para esperarmos que, como
173
XAVIER, Ismail. Dramaturgias do cinema brasileiro: inventar narrativas (para tentar dar conta das
experiências) contemporâneas. Cinemais. op. cit., p. 94-95.
168
baile perfumado
grupo, ajam em conformidade com os padrões morais que aceitam e que seu público
deles espera, mais do que se espera do cidadão comum. Não obstante, à primeira vista
causa estranheza encontrarmos bandidos que não só praticam o terror e a crueldade
numa medida que não pode ser explicada como simples retaliação, mas cujo terror na
verdade faz parte de sua imagem pública. São heróis, não a despeito do medo e horror
que inspiram suas ações, mas, de certa forma, por causa delas”
174
. Quanto ao tipo
Robin Hood, temos a seguinte citação, um tanto longa mas importante por descrever
admiravelmente o Lampião desempenhado por Leonardo Villar em Lampião, o rei do
cangaço, em 1962: ““Seu papel é o do campeão, aquele que corrige os erros, que
dispensa a justiça e promove a eqüidade social. Sua relação com os camponeses é de
solidariedade e identidade totais. A ‘imagem’ reflete ambas as coisas, e pode ser
sintetizada em nove pontos. Primeiro, o ladrão nobre inicia sua carreira de
marginalidade não pelo crime, mas como vítima de injustiça, ou pela perseguição,
pelas autoridades, devido a algum ato que consideram criminoso, mas que é aceito
pelo costume local. Segundo, ele ‘corrige os erros’. Terceiro, ‘tira dos ricos e dá aos
pobres’. Quarto, ‘nunca mata, a não ser em legítima defesa ou vingança justa’.
Quinto, ‘se sobrevive, retorna a sua gente como cidadão honrado e membro da
comunidade. Na verdade, ele nunca chega realmente a deixar a comunidade’. Sexto,
‘ele é admirado, ajudado e mantido por seu povo’. Sétimo, ‘morre invariavelmente, e
apenas por traição, uma vez que nenhum membro decente da comunidade auxiliaria
as autoridades contra ele. Oitavo, ele é ‘– pelo menos em teoria – invisível e
invulnerável’. Nono, ele ‘não é inimigo do rei ou imperador, fontes da Justiça, mas
apenas da nobreza local, do clero e de outros opressores’”
175
.
No filme de 1962 o heroísmo de Lampião nos é mostrado antes mesmo do rapaz
entrar no cangaço, quando oferece água a um estranho que está muito cansado. Sua
entrada no cangaço se dá por motivos fortes e nobres: seu pai foi assassinado por
autoridades e ele quer vingança. É verdade que Maria, uma mocinha que virá a ser
sua companheira, o idolatra como a um ídolo pop, tal como o Lampião de Baile
Perfumado quer ser visto. Aqui, porém, são expostos os motivos inerentes à
174
HOBSBAWN, Eric. Bandidos. op. cit., p. 54.
175
HOBSBAWN, Eric. Bandidos. op. cit., p. 37-38.
169
baile perfumado
personalidade do cangaceiro que justificam a idolatria: ele é bom, corajoso,
habilidoso, e como Robin Hood diz tirar dinheiro dos ricos para dar aos pobres. Um
verdadeiro herói, um homem completo que dispensa da narrativa até o cantador,
assumindo ele próprio a tarefa de cantar sua saga.
o lampião de leonardo villar discursa em praça pública contra a
injustiça social
Em Baile Perfumado o mito de Lampião é construído enquanto cultura de massas,
através do filme de Benjamin que tem, segundo suas intenções proclamadas, um forte
lado comercial, e pela sua exposição nos meios de comunicação de massa, diga-se
uma revista de grande circulação na época, O Cruzeiro.
As seqüências em preto e branco filmadas pelo verdadeiro Benjamin Abrahão tem um
impacto considerável, e provavelmente o tiveram ainda mais no momento de sua
exibição há décadas atrás. Sua projeção deve ter causado uma forte experiência visual
que em certa medida tenta ser reproduzida por Paulo Caldas e Lírio Ferreira em
algumas seqüências de Lampião e seu bando (principalmente a refrega inicial e a cena
de Lampião no penhasco), que podemos dizer que nos remetem à cultura de massas
pela estética rápida do vídeoclipe contemporâneo. A morte do cangaceiro, que nas
palavras de Ismail Xavier é uma morte “desdramatizada”
176
, sugere um mito
esvaziado de conteúdo, porque priva-o da performance heróica neste momento final
176
Cf. XAVIER, Ismail. Dramaturgias do cinema brrasileiro: inventar narrativas (para tentar dar conta
das experiências) contemporâneas. Cinemais. op. cit., p. 95.
170
baile perfumado
que poderia ser justamente um momento de afirmação das qualidades intrínsecas ao
homem que justificam o mito. É preciso, como faz Baile Perfumado, colocar em
questão a criação dos mitos operada pelos meios de comunicação de massa, pois
talvez eles não passem construções interessadas. Lampião morre, para nós, sem
nenhuma pompa – nem chegamos a presenciar sua morte. Por outro lado, o fato dele
surgir, ao final do filme, glorioso no alto de um penhasco, sugere, a meu ver, que não
devemos menosprezar o poder e a força dessa imagem criada. Talvez ela seja apenas
desprovida de conteúdo no sentido de um cinema anterior – como Deus e o Diabo na
terra do sol – que operava tendo em vista um conteúdo mais estritamente político. O
Lampião de Baile Perfurmado pode estar fortemente impregnado de um conteúdo
imagético, devido a sua condição de ícone pop, de cultura de massas.
Para exemplificarmos a questão da morte do personagem a partir dos filmes que
temos comentado, em O Cangaceiro, versão original de Lima Barreto, Teodoro é
digno de um fim absolutamente heróico, que vem reafirmar suas virtudes. Depois de
salvar a mocinha Olívia, ele aceita caminhar de costas para o bando de Galdino
Ferreira, enquanto um por um os cangaceiros atiram para acertá-lo. Ele é tão virtuoso
que um dos “cabras” logo se recusa a participar do “duelo”, levando então um tiro de
Galdino. Não apenas Teodoro tem a dignidade de não sair correndo, mas também é
merecedor de um desfecho emocionante. Toda a mise-en-scène reforça o caráter
honrado do personagem, e a demora dos tiros dos cangaceiros em acertá-lo cria uma
expectativa de que, para este homem diferenciado, mesmo o impossível (ele sair vivo)
pode acontecer.
teodoro caminha para a morte e morre agarrado à terra
Em Lampião, o rei do cangaço, se não temos o dilatamento de tempo da morte,
importante para reforçar o lado heróico do personagem neste momento crucial da
171
baile perfumado
construção do mito, vemos Leonardo Villar tombar ao lado de sua amada, Maria
Bonita, depois de resistir a muitas outras tentativas de extermínio de seu bando.
Junto com A morte comanda o cangaço (Carlos Coimbra, 1960), estes dois filmes
colaboraram para a criação do termo nordwestern, ou seja, a realização de filmes
tendo como cenário o nordeste e utilizando-se de elementos da iconografia western.
Não se trata, naturalmente, de uma transposição exata dos mesmos elementos
iconográficos: os cangaceiros não se locomovem no oeste americano, não usam
estrelas de xerife e não andam em diligências. Mas eles perambulam pelo sertão
nordestino, usam chapéus com estrela e andam à cavalo, o que sugere uma associação
iconográfica forte, que inclui a atenção ao modo de falar, às roupas, à trilha sonora,
ao papel central do ambiente natural, da mesma forma que no western há, no geral,
uma atenção a estes elementos, que compõem um conjunto identificador do gênero
177
.
É claro que, apesar da enorme variedade que compõe o gênero western
178
, a presença
do Oeste enquanto não apenas simples cenário para o desenrolar da trama mas como
um aspecto central na seqüência de eventos, conformando expectativas quanto ao
comportamento dos personagens e do enredo, costuma ser fundamental na definição
do gênero. Entende-se então porque muitos realizadores de filmes de cangaço foram
inspirar-se no western para criar suas narrativas: o fenômeno do cangaço é, de certa
forma, indissociável do ambiente no qual tomou forma – o sertão nordestino, palco da
fome, da violência, da arbitrariedade, do isolamento que passa a ser preenchido por
bandos de homens sem um lugar certo para fixarem-se, donos ao mesmo tempo de
tudo e de nada e livres para, se quiserem, tudo abandonarem. O cangaço, visto então
como um fenômeno de certa maneira isolado no espaço, inacessível e próximo, como
os desbravadores norte-americanos das fronteiras oeste, presta-se à criação de uma
iconografia específica – roupas, códigos de honra, formas permitidas de se matar e
morrer, música, armas, etc. –, que sem dúvida varia nos filmes aqui citados realizados
em meados dos anos 60, mas que, no interior de cada um destes filmes, compõe um
177
Cf. PYE, Douglas. The western (genre and movies). in: GRANT, Barry Keith. Film gender reader II.
op. cit..
178
Segundo Douglas Pye, “O reconhecimento de um trabalho como pertencente a um gênero pode ser
visto como o resultado do (seguinte) processo – a intersecção de uma gama de categorias, a interação
que gera significado em um contexto estreito o suficiente para o reconhecimento do gênero mas
amplo o bastante para permitir a variação individual”. P
YE, Douglas. The western (genre and movies).
in: G
RANT, Barry Keith (org.). Film gender reader II. op. cit. p. 187-188.
172
baile perfumado
conjunto importante de características e um padrão de verossimilhança (é cabível, por
exemplo, que Teodoro caminhe de costas e não saia correndo, já que estamos no
terreno da honra, do heroísmo, etc.).
Neste sentido é possível pensar com Ismail Xavier e considerar que a morte
desdramatizada de Lampião em Baile Perfumado é esvaziada de conteúdo. Ou seja, é
esvaziada porque simplesmente o encontramos já morto, sem direito à performance
que justifique a grandeza do mito, e porque esta maneira de encontrá-lo contrapõe-se
ao modo de morrer que se espera de um personagem dotado de alguma grandeza
heróica, que se espera enfim do mito Lampião. O mito aqui, como temos insistido,
relaciona-se às imagens que dele se faz e que ele entende como importantes para a
construção de sua personalidade enquanto “governador do sertão”.
No entanto, não podemos negar que a exposição de Lampião no penhasco remete a
alguma grandeza que, se não encontramos nas ações de Lampião, podem ser achadas
em outro lugar. Talvez no próprio filme de Benjamin Abrahão, nas suas imagens
exclusivas e empolgantes, no seu ineditismo e no seu material fílmico. Ou seja, o
filme de Abrahão pode dar ao Lampião de Baile Perfumado a condição de mito que
suas ações não deram, e então teremos o cinema como mito e como construtor de
mitos ao mesmo tempo em que vemos a exposição de seu mecanismo de construção
de discurso, de impressão de realidade, de negociação interessada.
Assim, a cultura de massas aqui, através do impressionante filme de Abrahão, ao
dotar a imagem de Lampião de uma grandeza, de uma certa imortalidade, aproxima-
se do que Edgar Morin nos fala sobre a “alma” do cinema: ainda que a cultura de
massas esteja impulsionada pelo desejo de lucro capitalista, como de fato está, “uma
vez dado esse impulso, o movimento ultrapassa o capitalismo propriamente dito”
179
179
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX – neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1999, p. 22.
173
baile perfumado
e é neste “ultrapassar o capitalismo” que podemos encontrar a “alma” que emana dos
filmes, e que deve ser levada em conta no estudo desta grande cultura de massas que
é o cinema
180
.
Acostumados que estamos à exposição do herói morto, de seus últimos e dignificantes
minutos de vida, é possível que se venha sugerir que não sabemos se foi efetivamente
Lampião que morreu. A distância na qual somos mantidos em relação à sua morte é
tal que não podemos distinguir as figuras mortas que Lindalvo Rosa encontra. Mas, a
meu ver, o perfume Fleur d’Amour que o tenente pisa e a música que se segue – cujo
eu-lírico é o próprio Lampião morto (quando degolaram minha cabeça passei mais de
dois minutos vendo meu corpo tremendo
181
) – são forte indicações de que é seu corpo
que lá está.
Apesar de morrer sem nenhuma pompa, sem os honrosos minutos finais de vida, sem
sequer ter exposta a imagem serena de seu corpo em meio aos demais mortos,
Lampião ressurge do alto de um penhasco, observando a exuberância do sertão e
sobrevoado por uma câmera-helicóptero. Morto anonimamente, quase
incolumemente, ele ressurge tendo seu caráter de mito exacerbado, como um ídolo.
Lampião aqui é uma espécie de estrela, para retomarmos a idéia geral de Edgar
Morin
182
. A estrela é uma vedete que confere um caráter especial ao herói que
representa, e que se funde com este herói representado, tornando-se, ela própria,
homem e herói, ou ainda, abraçando de forma tão intensa o herói que criou que ele
180
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Moraes Editores, 1970, pp. 105-139.
181
A música é parte do disco Afrociberdelia de Chico Science & Nação Zumbi. A letra completa diz o
seguinte: Bezouro, Moderno, Ezequiel/Candeeiro, Cela Preta, Labareda, Azulão/Arvoredo, Quina-
Quina, Bananeira, Sabonete/Catingueira, Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco!/ Volta Seca,
Jararaca, Cajarana, Viriato/Gitirana, Moita-Brava, Meia-noite, Zabelê!/Quando degolaram minha
cabeça/passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo/e não sabia o que fazer/morrer,viver,
morrer, viver.
182
MORIN, Edgar. As estrelas – mito e sedução no cinema. op. cit.
174
baile perfumado
estará permanentemente identificado com ela. A estrela é um híbrido. “Os heróis
atuam a meio caminho entre os deuses e os mortais; ambicionam tanto a condição de
deuses quanto aspiram a libertar os mortais de sua miséria infinita. Na vanguarda da
humanidade, o herói é o mortal em processo de divinização. Parente dos homens e
dos deuses, os heróis dos mitos são, muito justamente, denominados semideuses”
183
.
É assim, como deus ou semideus, que Lampião aparece após sua morte: ele anda
vigorosamente pelo penhasco, seu Olimpo verdejante, e está acima de todos os
outros, olhando para o mundo com o olhar de um proprietário, colocado no centro da
atenção da câmera, que se move para todos os lados mas que não cessa de centralizá-
lo.
O caráter de mito porém não é conferido apenas pela mise-em-scene – Lampião no
penhasco como elemento central da câmera – mas pelo próprio caráter da imagem,
ainda segundo Edgar Morin em O cinema ou o homem imaginário. Para o autor, a
imagem está animada de uma vida mais intensa e profunda do que a realidade, “duma
vida sobrenatural”
184
, que dá lugar à produção do duplo, “imagem-espectro do
homem”
185
. O duplo, ou o homem feito imagem, adquire uma dimensão de
objetividade em relação ao homem, transformando-se num espectro autônomo dotado
de realidade própria. E, o que é mais importante para nós aqui, essa autonomia, face
da alienação da imagem em relação ao homem, realiza as carências e o anseio mais
importante do sujeito: a imortalidade. Lampião morre anonimamente, mas o duplo
permanece, eternizado pela imagem, que lhe dá a tão desejada eternidade. E,
efetivamente, assim parece ter sido: em O dragão da maldade contra o santo
guerreiro a data da morte do cangaceiro figura, entre as lições dadas pelo professor às
crianças da cidade, ao lado das datas de comemoração oficial do Brasil. O duplo
permite a emergência do mito.
A imagem e a indústria da imagem são fundamentais no “renascimento” de Lampião
como mito: “A estrela do cinema é deusa. O público a torna assim, mas quem a
prepara, apronta, modela, propõe e fabrica é o star system. A estrela responde a uma
183
MORIN, Edgar. As estrelas – mito e sedução no cinema. op. cit. p., 26.
184
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. op. cit., p. 33.
185
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. op. cit., p. 34.
175
baile perfumado
necessidade afetiva ou mítica que não é criada pelo star system; no entanto, sem ele,
essa necessidade não encontraria as suas formas, seus suportes e seus
afrodisíacos”
186
. Ainda um último comentário sobre a estrela de Morin que nos cabe
aqui nesta investigação: segundo este autor, principalmente a partir dos anos 60, o
status da estrela se modifica. A vedete de cinema passa a concorrer com novos ídolos,
e as estrelas “se diluem no novo Olimpo da cultura de massas, misturadas com
príncipes e princesas, reis e rainhas (...), com playboys como Gunter Sachs, bailarinos
como Nureyev, com os novos ídolos da música rock e pop
187
. A meu ver, Lampião,
no alto do penhasco, acompanhado pelo manguebeat, andando vigorosamente e
imperturbável, um tanto aborrecido e condescendente, incorpora esta nova vedete,
que inclui não mais apenas os atores de cinema mas os ídolos de música pop com seu
ar entediado, os playboys e sua vida despreocupada, e imortais diversos de nossa
variada fauna de estrelas modernas.
Para retomarmos a menção ao western, diríamos que este Lampião – a quem Baile
Perfumado negou o lado da honra, do “ideal” heróico de vida, da coragem, para
imprimir aburguesamento, vaidade, personalidade midiática – retorna agora sob a
forma do herói publicitário, um produto semelhante ao cowboy da propaganda do
cigarro Marlboro, que retoma um dos gêneros norte-americanos clássico como
embalagem mercadológica, forma que é, segundo Renato Ortiz, imediatamente
compreensível porque parte de uma cultura que o autor chama “internacional-
popular” (popular aqui relacionada a cultura de massas): “é possível dizer que o Oeste
já não é mais americano. A imagem, nele operacionalizada, pertence a um domínio
comum, distante da territorialidade dos Estados Unidos. Por isso ela é mundialmente
inteligível. Isto explica em boa parte o sucesso da propaganda do Marlboro. Sua
eficácia reside em algo que lhe é anterior, uma educação, temática e visual,
propiciada pelo cinema, televisão, história em quadrinhos, literatura, que divulgou
entre os povos uma imagem verossímil do que seria o faroeste”
188
. Ou seja, o gênero,
nas palavras deste autor, desterritorializou-se como parte de um universo de consumo
186
MORIN, Edgar. As estrelas – mito e sedução no cinema. op. cit., p. 74.
187
MORIN, Edgar. As estrelas – mito e sedução no cinema. op. cit., p.128.
188
ORTIZ, Renato. Uma cultura internacional-popular. In: Mundialização e Cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994, pp. 115-116.
176
baile perfumado
mundializado, desterritorialização que a indústria cultural italiana, por exemplo,
soube utilizar a seu favor para criar o western spaghetti. Segundo um crítico italiano,
citado por Ortiz, “‘Enquanto no faroeste clássico o ponto de referência para a
construção do mito é providenciado pelo passado histórico, no faroeste italiano, o
ponto de referência é o mesmo mito (o mito cinematográfico) olhado pela luz sombria
do presente’. Portanto, já não é mais a realidade mítica (que não corresponde à
realidade social) que conta, mas sua imagem. Enquanto signo ela possui uma
identidade própria, afastando-se de suas origens históricas. A cultura de massas
italiana se apropria do formato imagético, podendo reelaborá-lo segundo suas
conveniências mercadológicas”
189
. Desprovido do conteúdo grandioso, a forma
grandiosa de Lampião permanece, e com mais força ainda, agora que o homem está
morto.
Ismail Xavier comenta, como já dissemos, que em Baile Perfumado há indícios de
que o cinema colaborou para a morte de Lampião, por ser justamente intolerável para
o governo federal e a polícia a forma pela qual o cangaceiro estava sendo “celebrado”
pelos meios de comunicação
190
. Se lembrarmos que vemos, durante o filme, tanto a
imagem de Getulio Vargas no escritório da polícia quanto a imagem de Lampião na
sala de um empresário, reforçaremos a idéia de Lampião como um “governador do
sertão”, e portanto como um poder concorrente ao do Estado, o que não poderia ser
aceito, principalmente numa época de grande centralização de poderes na figura do
presidente da República e do personalismo exacerbado da figura que ocupava o cargo,
figura que, de resto, assim como Lampião, tinha uma forte estratégia imagética de
auto-publicidade. Sobre o papel do cinema na morte de Lampião, podemos pensar na
música que acompanha o cangaceiro no penhasco, que lembra o som de
metralhadoras disparando. Assim, o mesmo cinema que mata, faz viver, dando
sobrevida ao homem na forma de mito, embalando-o com uma roupagem publicitária
para que ele permaneça enquanto produto. Lampião teve uma performance
acomodada em vida, desfrutando de bons perfumes, whiskys importados, “divertindo-
189
ORTIZ, Renato. Uma cultura internacional-popular. Mundialização e Cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p.114.
190
Cf. XAVIER, Ismail. Dramaturgias do cinema brasileiro: inventar narrativas (para tentar dar conta
das experiências) contemporâneas. Cinemais. op. cit, p. 93.
177
baile perfumado
se despreocupadamente”, como disse Benjamin, desfrutando da companhia de
coronéis influentes. Mas conseguiu construir, com a ajuda do libanês, uma imagem
diferente da performance que vemos, e que permanecerá depois de sua morte. O que
vemos em Baile Perfumado, acredito, é que nem sempre a uma certa imagem
corresponde a performance esperada. Pedro nos fornece um bom contra-exemplo: sua
imagem de deficiente físico não corresponde a sua performance quando resolve
espancar, provavelmente até a morte, Benjamin Abrahão, que se esforça para circular,
no limite da segurança, entre o poder de cangaceiros, policiais e coronéis, mas que
acaba morto por ter dormido com uma mulher casada.
Lampião ressurge como mito, solitário e imponente perante o sertão, elevado à
condição de ídolo, produto da imagem e pronto para ser utilizado enquanto tal, com
uma grandeza imagética que, como vimos, tem como um de seus fundamentos o filme
de Abrahão. E o cineasta libanês é em grande medida homenageado no final de Baile
Perfumado com a última palavra na narrativa. Chegando ao Brasil, 25 anos antes, seu
amigo Said o espera no porto de Recife e pergunta o que ele veio fazer nesta terra, ao
que Benjamin responde que veio “mudar o mundo”. Said observa que só Deus pode
mudar o mundo e, sorrindo confiante, Benjamin lhe responde que os inquietos
mudarão o mundo. Benjamin tem a última e também a primeira palavra na narrativa,
pois é sua a voz que, verbalizando o que escreve num diário, acompanha o plano-
sequência inicial, assim como é sua a voz que em vários momentos interfere na
narrativa para manifestar suas impressões.
No plano-sequência inicial Benjamin fala libanês sem legendas, o que nos coloca
imediatamente diante do fato de que estamos diante de um estrangeiro. Este
estrangeiro empreendedor é homenageado a partir das relações que conseguiu
estabelecer com elementos da cultura popular brasileira que tiveram penetração nos
meios de comunicação (jornais e revistas) e deixaram um importante legado
cinematográfico. Neste sentido, podemos nos lembrar novamente do manguebeat em
suas influências manifestas da música estrangeira (rock e disco). O estrangeiro aqui
não é apenas uma espécie de outro distante ou ameaça exógena a rondar nossas raízes,
mas parte de nós, que, misturado à cultura popular brasileira, possibilita sua
transformação e sua permanência, sua constante recriação como algo não encerrado
178
baile perfumado
no passado, mas sensível a mudanças e tomando ativamente parte nelas. É possível
então retomarmos o estrangeiro de Georg Simmel
191
e pensarmos o quanto Benjamin
se aproxima do conceito do autor. Em primeiro lugar, Simmel relembra que a figura
do estrangeiro está em grande medida relacionada ao seu papel como comerciante,
alguém que possibilita a troca entre países – e Benjamin Abrahão, dotado de
desenvoltura na arte da pechincha, é identificado como mascate em certo momento do
filme. Também podemos nos referir ao fato de Simmel dotar o estrangeiro de um tipo
particular de objetividade, não no sentido de passividade e afastamento, mas numa
relação de distanciamento ao mesmo tempo que de proximidade, de indiferença e
envolvimento. Munido de uma câmera de cinema, Benjamin é o portador de um
aparato que é ao mesmo tempo objetividade – pois seu mecanismo de funcionamento
comporta ilusões quanto ao fato de registrar o “real” tal como se apresenta – e
proximidade, pois, como visto no filme, a câmera estabelece negociações, relações de
poder, obriga envolvimento entre o cineasta e aquele que é filmado. Estando próximo
e distante ao mesmo tempo, o estrangeiro de Simmel, e também Benjamin Abrahão, é
alguém que pode nos revelar mais sobre o mundo com o qual passa a interagir, que
pode ter acesso aos mais diversos grupos sociais, negociar com todos, pois de
nenhum deles ele participa. Ele não está amarrado a compromissos estritos com
ninguém, pois não vive entre seus semelhantes, e assim pode circular entre muitos
revelando-nos percepções de um ponto de vista diferente e, em alguma medida,
privilegiado. Sua ausência de laços, no entanto, também comporta possibilidades
perigosas: o estrangeiro, trazendo idéias “alienígenas” para o interior de um grupo, é
muitas visto como um elemento causador de distúrbio, e responsabilizado por isso,
como ocorreu com Benjamin.
A fala final do cineasta, “os inquietos mudarão o mundo”, pode ser pensada como
algo que não comenta apenas suas ações, mas também as de Lampião, na medida em
que Benjamin Abrahão, munido de uma câmera em meio ao sertão, construiu, junto
com o cangaceiro, um discurso que se contrapôs ao discurso oficial sobre Lampião. O
popular, portanto, é resgatado do discurso oficialesco e tradicional, por vezes
laudatório por vezes preconceituoso, e neste sentido temos a imagem positiva do
191
SIMMEL, Georg. O Estrangeiro. In: FILHO, Evaristo de Moraes (org.). Sociologia. São Paulo: Ática,
1983.
179
baile perfumado
cineasta que colaborou para esse resgate na seqüência final. Como o manguebeat,
Baile Perfumado procura dar outro conteúdo ao discurso sobre o popular, e, neste
caso, isso se deve as relações que se estabeleceram entre um cineasta, portador de um
instrumento criador de cultura de massas, e Lampião, um dos bandidos mais famosos
da história do Brasil. Ambos, Abrahão e Lampião, podem ser entendidos como
figuras que existem uma em função da outra, que colaboram mutuamente para dotar
suas imagens sentido. E por isso talvez, como forma de traçar um paralelo, ambos
ressurjam depois de suas mortes, avisando, com ou sem palavras, ou seja, como
imagem (Lampião) ou como fala (Benjamin Abrahão), que, contra Deus ou qualquer
outra autoridade, os inquietos mudarão o mundo.
180
amélia
o povo “bárbaro” diante do “civilizado”
181
amélia
Em Amélia (Ana Carolina, 1998), o popular parece saltar aos olhos e ser
imediatamente identificável na figura de três mulheres caipiras, imbuídas de tudo
aquilo que poderia identificá-las enquanto tal (ingenuidade, aspecto físico, modo de
falar, ligação com a tradição, costumes arcaicos, inadaptação à “civilização”). Em
oposição às figuras populares das caipiras, a cultura erudita também se encontra
imediatamente identificada na figura de uma grande atriz francesa de teatro
dramático, mulher “civilizada”, culta, refinada, pertencente ao mundo da “grande
arte”.
No entanto, tudo será mais fluído e mais maleável do que se poderia esperar. Pois as
caipiras não são tão populares assim, e Sarah Bernhardt não é tão “civilizada” quanto
se pensa. Aquelas são capazes de demonstrar conhecimento erudito e esta, para falar
com Sérgio Buarque de Holanda, parece muitas vezes imbuída da cultura da
personalidade
192
, da cordialidade que ignora a coisa pública e procura atuar no âmbito
das relações pessoais e afetivas
193
, do exacerbamento das paixões particulares
194
, de
tudo aquilo, enfim, que acaba identificando-a como parte do nosso “povo”. O
afrouxamento das fronteiras entre o popular e o erudito se dará, no entanto,
progressivamente, culminando numa assimilação sui generis ao final do filme, e está
relacionado a um embaralhamento dos conceitos de “civilizado” e de “não-civilizado”
(ou “bárbaro”, como se queira). Embaralhamento este que, na verdade, não constitui
novidade na história das idéias se pensarmos que o próprio conceito de civilização já
foi motivo de relativismos diversos (abarcando inclusive uma inversão de valores,
como se o “bárbaro” fosse o verdadeiro “civilizado” e o “civilizado” nada mais do
que um selvagem).
Quando um filme tem como título o nome de alguém, costuma-se esperar que esse
alguém desfrute de posição privilegiada na narrativa e em grande parte da história.
Que tenha, enfim, presença física importante e em certa medida evidente. E a
seqüência inicial de Amélia parece confirmar essa expectativa, uma vez que Sarah
192
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.32.
193
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. op. cit., p. 146.
194
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. op. cit., p 147.
182
amélia
Bernhardt (Beatrice Agenin), caído o pano do palco onde se apresenta, será
imediatamente amparada pelos braços da personagem-título Amélia (Marília Pêra),
invocando seu nome enquanto lamenta-se do pequeno número de espectadores que
estavam na platéia para vê-la. O nome de Amélia é a primeira palavra proferida em
cena, e a presença desta amparando Sarah evidencia o papel importante que a
personagem tem na trajetória profissional da atriz francesa, além de criar uma
expectativa quanto ao desenvolvimento da narrativa sobre a personagem-título.
Finda esta pequena apresentação da situação decadente de Sarah Bernhardt, de sua
vulnerabilidade desde já teatralizada e melodramática e da relação de cumplicidade
que ela estabelece com a brasileira que dá nome ao filme, segue-se então uma grande
alteração no clima, na paisagem, na oposição entre o espaço “civilizado” do teatro e a
vida “não-civilizada” em Cambuquira
195
. A câmera acompanha o andar de Francisca
(Miriam Muniz) abrindo a porteira no que desde logo parece ser um sítio ou uma
propriedade rural qualquer, apresentando desta vez o meio onde vive a senhora
caipira enquanto segue seu trajeto entre porcos, cercas e barulhos da natureza.
195
Cambuquira é uma estância hidromineral localizada no sul de Minas Gerais rica em águas minerais
gasosas. Fica a aproximadamente 300 km de Belo Horizonte, da cidade São Paulo e também da cidade
do Rio de Janeiro. Diz a lenda que três senhoras eram donas de uma fazenda onde hoje é a cidade.
Como não tinham filhos, deixaram a propriedade para seus escravos. Porém, quando foram
descobertas as águas minerais, as autoridades locais obrigaram os escravos a venderem as terras e
passaram a explorar o recurso descoberto. Em 1906 Cambuquira adquiriu status de município. Tendo
seu auge nos anos 60 e 70, hoje Cambuquira parece uma cidade decadente, vide a rua central repleta
de hotéis desativados e semidestruídos, resquícios melancólicos de uma prosperidade anterior. Uma
curiosidade: a água gasosa de Cambuquira foi eleita pela Revista Exame em 1997 como a 2ª melhor
água mineral do mundo.
183
amélia
A figura de Francisca é forte e sóbria, vestida em roupas acinzentadas, fumando um
cigarro e movendo-se desafetadamente. Ela é, como sua figura nos dá a entender,
pragmática, decidida, sem artificialismos e sentimentalismos, espontânea, como logo
veremos quando ela diz que sua irmã, Oswalda (Camila Amada), deve ler a carta que
chegou de Amélia apenas “do meio pro fim, apenas “onde ela diz o que interessa”.
Através da carta, Francisca e Oswalda, irmãs de Amélia, e Maria Luíza (Alice
Borges), uma espécie de agregada, são informadas de que a personagem-título deseja
vender as terras de Cambuquira. É o ponto de inflexão no cotidiano sempre igual das
caipiras, que se deslocarão até o Rio de Janeiro, onde Sarah fará uma apresentação.
No Rio de Janeiro, no entanto, o espectador ficará surpreso, tanto ou mais do que as
próprias irmãs, ao saber que, mal começado o filme, a tão citada Amélia – que até
agora dominava o assunto das conversas entre as caipiras –, já morreu, vítima de
febre na Argentina. Afinal, não era sobre ela a narrativa?
196
O espectador que
entender a língua francesa descobrirá que Amélia morreu antes mesmo de suas irmãs
saberem. Vincentine (Beth Goffman), habilleuse
197
de Sarah Bernardht incumbida de
dar a notícia às irmãs, parece se recusar a conceber que as mulheres não
compreendam o francês, pois sua relação com o “outro” à sua frente é de absoluta
repugnância, não apenas neste momento inicial, no qual ela choca-se ao ver fezes de
porcos e restos de comida pelo quarto de hotel, mas durante todo o filme,
acreditando-se diferente e separada do mundo “não-civilizado” que tem a sua frente.
Vincentine então inicia, falsa e como que pelo acionamento de um botão, o discurso
que havia decorado e que visa informá-las da “tragédia”. Vai repeti-lo diversas vezes,
visto que as caipiras, que se esforçam para compreendê-la, não tem a mínima idéia de
qual seria a língua que ela fala. Não há legendas acompanhando Vincentine, o que vai
reforçar a sensação de incomunicabilidade e extender ao máximo a impaciência em
relação à descoberta sobre o que afinal trata-se aquele discurso artificialmente
196
A descoberta de que Amélia morreu se dará quando o filme já estiver razoavelmente adiantado. O
espectador já deve, provavelmente, estar impaciente por ter a sensação de que não está, afinal,
compreendendo o lugar que será designado para a personagem-título nesta narrativa. E isso é
reforçado, a meu ver, pelo fato de que já vimos a atriz que fará Amélia logo na primeira seqüência,
Marília Pêra, considerada uma das grandes atrizes brasileiras e uma das mais reconhecidas pelo
público, e portanto alguém que deveria já estar presente no filme.
197
habilleuse n. f. – pessoa que ajuda os atores, os manequins a se vestir e que toma conta de suas
roupas”. L
E ROBERT Micro. Dictionnaires Le Robert: Paris, 1998 (tradução do verbete minha).
184
amélia
carregado de emoção. As palavras de Vincentine serão traduzidas com a chegada de
Lano, um português também um tanto falso, de gestos e modos artificiais e
teatralizados, mas não trágicos, como o são os de Vicentine e Sarah, e sim paródicos,
como convém a um comediante
198
.
Tanto na oposição que é já de início estabelecida em Amélia entre o ambiente do
teatro e o da roça, e entre Vincentine e as caipiras, exacerbado a meu ver pela
ausência das legendas, somos colocados diante de dois mundos que agora nos
parecem inevitavelmente separados e distintos mas cujas fronteiras, durante o filme,
serão contestadas. Sarah é, inicialmente, o mundo “civilizado” e tudo o que o
comporta: “abrandamento dos costumes, educação dos espíritos, desenvolvimento da
polidez, cultura das artes e das ciências, crescimento do comércio e da indústria,
aquisição das comodidades materiais e do luxo”
199
. As caipiras, pelo menos por
enquanto, serão as “selvagens”, parte do mundo dos “não-civilizados” – não apenas
pelos costumes e hábitos “rudes” que demonstram e demonstrarão mas também
porque o camponês é comumente associado ao “não-civilizado”. Civilidade, como
escreve Starobinski, é prerrogativa dos habitantes das cidades: “As maneiras do
camponês (villanus) são vilania em comparação com os usos da corte (cortesia). O
descrédito do mundo rural é ainda abertamente legível nas definições que os
dicionários da época clássica dão da civilidade. Furetière, Dicionário (1694):
Civilidade: maneira honesta, suave e polida de agir, de conviver. Deve-se tratar todo
mundo com civilidade. Ensina-se às crianças a civilidade infantil. Apenas os
198
O filme é uma espécie de comédia “amarga”, e portanto o humor envolvido nesta seqüência
colabora para amenizar a sensação de surpresa dos personagens com a notícia da morte de Amélia.
199
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 14.
185
amélia
camponeses, as pessoas grosseiras, carecem de civilidade. Civilizar: tornar civil e
polido, tratável e cortês. Os camponeses não são civilizados como os burgueses”
200
.
Morta sem que seja dado conhecê-la, Amélia é uma espécie de abstração construída
pelo discurso de Sarah Bernhardt, que sente sua falta, mas que por poucas e breves
seqüências aparece. Estas aparições têm um papel ilustrativo. Não nos informam nada
de muito relevante na narrativa que não pudesse ser visto de outro modo. Algumas
explicitam o estado de fragilidade de Sarah, e outras assinalam a distância que marca
a relação da atriz com o Brasil. E, no entanto, Sarah passará boa parte do filme
falando na brasileira e lamentando sua morte, já que passa por um período de crise
pessoal e artística e via na companheira um apoio emocional. Tentando compreender
sua decadência profissional e seu inferno emocional, Sarah procura, ao mesmo tempo,
compreender Amélia, construindo uma imagem dela por vezes contraditória, às vezes
fiel e amiga como nenhuma outra criada e companheira poderia ser, às vezes
independente o suficiente para querer se livrar de Sarah e viver sua própria vida. De
qualquer modo, temos aqui a construção parcial e entrecortada de um personagem
ausente, na maioria das vezes idealizada e segundo um ponto de vista específico, o de
Sarah. O título do filme pode nos fazer lembrar da música de Ataulfo Alves e Mário
Lago, Saudades da Amélia
201
. E, como na música, a Amélia não está lá, é apenas
invocada como objeto de referência, em relação ao qual as outras mulheres se
comparam. Amélia é, tanto na música quanto no filme, uma espécie de idealização, e
como tal adquire qualidades exageradas, um aspecto perfeito que só é possível na
ausência. Em Saudades da Amélia, o eu-lírico, ao compará-la com sua mulher atual,
viu amor e companheirismo onde na verdade poderia haver somente uma atitude de
resignação diante do inevitável: Meu filho, o que se há de fazer! Como no filme, a
canção nos fala de uma Amélia que também já se foi – não sabemos se porque morreu
ou se porque não gostava tanto assim de passar fome ao lado do eu-lírico – e que será
relembrada como alguém inigualável, perfeita, insubstituível.
A Amélia, porém, não é dada importância somente em razão da situação emocional e
profissional de Sarah. Esta personagem que está ausente, que dá título ao filme e que
200
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. op. cit., p.21.
201
Composta em 1941, sucesso no carnaval de 1942.
186
amélia
causa surpresa no espectador por estar na verdade morta desde o início, terá papel
fundamental na história, pois possibilitará o contato entre dois mundos que de outra
maneira jamais se encontrariam. Graças a sua morte, as caipiras e as francesas
conviverão de maneira muito próxima – o que não ocorreria se ela estivesse viva, já
que ela intercederia pessoalmente na relação entre estas mulheres
202
. Estando morta,
sua intervenção torna-se então qualitativamente diferente, e vemos que seu papel é
importante como sugere o título do filme, pois ela é a mediação possível entre o
mundo “civilizado” da francesa e seu séqüito e o mundo “não-civilizado” das
caipiras. A ausência de Amélia é fundamental neste sentido, e, graças ao flashs backs
de Sarah, vemos que essa ausência não impede que percebamos que Amélia é alguém
que efetivamente fez parte de dois mundos até então vistos aqui no filme como
absolutamente separados, o da “civilização” e o da “barbárie” – no sentido do “não-
civilizado” e por vezes do “incivilizado. A carta que ela escreve as irmãs é
importante também nesse aspecto, ou seja, por deixar claro seu papel mediador: nela
Amélia procura introduzir as irmãs no mundo “civilizado” que elas logo irão
conhecer, dando conselhos práticos, antecipando as experiências que as caipiras
viverão, tentando fazer com que elas compreendam um pouco melhor o mundo da
francesa e seus objetos.
A mediação é inclusive materializada em um flash back específico, no qual vemos
que Amélia tenta fazer Sarah compreender alguns elementos de seu mundo de origem
declamando A canção de exílio e em seguida perguntando se a atriz a compreende. Da
mesma forma, ela tenta transmitir algumas informações mais elementares sobre o
mundo “civilizado” para suas irmãs quando, na carta, avisa que os vestidos de Sarah
que elas devem costurar são de um tecido importado, de extrema qualidade. E
também quando sugere para as irmãs a estratégia de, perante os novos códigos
culturais que elas encontrarão no Rio de Janeiro, fingirem que os conhecem muito
bem.
Estabelecida a morte de Amélia, as caipiras e a francesa terão que se entender
diretamente, e conflitos inevitáveis daí surgirão, normalmente numa chave cômica
202
O que Francisca comenta, ao dizer, enquanto toma banho com Sarah, que Amélia jamais deixaria
que ela e suas companheiras caipiras ficassem tão próximas da atriz se estivesse viva.
187
amélia
mas também amarga, na qual o riso combina-se à constatação da situação de
desamparo material para a qual caminham as pobres caipiras, lado mais fraco até o
ato final da apresentação de Tosca, quando elas tentarão virar o jogo a seu favor.
Situação de desamparo que não está relacionada à falta de inteligência ou
pragmatismo por parte destas mulheres, mas por elas estarem inseridas numa relação
de poder e simulação na qual aqueles que pertencem ao mundo “civilizado” e que
detém certos meios – a posse dos bens de Amélia, que Vincentine dá entender que
estariam com ela; o uso da força no momento crucial, atributo do português Lano; o
poder algo despótico sobre os que a cercam, em um séqüito no qual Sarah inclui as
caipiras – tentam subjugá-las objetivamente. Sem manifestarem deslumbramento em
relação ao mundo da celebridade, do hotel sofisticado e do Rio de Janeiro, as caipiras
permanecem junto a Sarah porque têm o dinheiro de Amélia a reaver, o que nos leva a
atentar para o caráter pragmático das mulheres, principalmente de Francisca, num
contraste com a postura verborrágica, existencial e algo irracional de Sarah –
justamente a representante máxima da “civilização”, mundo da razão, da “moderação
das emoções espontâneas” e do “controle dos sentimentos”
203
, tudo o que Sarah não
tem. E as caipiras convivem então com a atriz que, por sua vez, também está de certa
maneira impelida por forças externas a manter-se naquela situação. Sarah quer ir
embora, e tenta convencer Salustiano (Pedro Paulo Rangel), o empresário que
contratou seu espetáculo, de que precisa partir, de que deve voltar para a França
imediatamente. Ele então a ameaça, de uma maneira cinicamente amável de modo a
adocicar o discurso empresarial que o move, com a multa por rescisão de contrato, e
ela percebe que não pode partir. Desta maneira, Sarah e as caipiras colocam-se frente
a frente, mais ou menos em conflito, não tendo nenhum interesse especial uma no
mundo da outra, e desejando na verdade que a convivência “forçada” seja breve.
Parece que não o será, dada a última seqüência do filme. A relação ambígua de
aproximação e afastamento que as envolve está colocada a partir da saída de cena de
Salustiano, quando Francisca, Oswalda e Maria Luíza aparecem diante de Sarah. Elas
serão bem recebidas inicialmente – é muito importante que vocês estejam aqui,
203
ELIAS, Norbert. O processo civilizador – volume 2: formação do Estado e Civilização. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 198.
188
amélia
Amélia me abandonou no pior momento – mas em questão de segundos Sarah estará
expulsando-as agressivamente.
Ismail Xavier discorreu sobre o papel de voz da razão, de personagem ponderado, de
observador compreensivo, de detentor da lógica e da racionalidade, parte da
“civilização”, portanto, que foi reservado ao estrangeiro no cinema que renasce nos
anos 90
204
. Em Amélia vemos o bom comportamento à mesa, os gestos e a postura
corporal tidos como refinados, a performance correta perante os outros,
características que Norbert Elias descreve como parte do processo que culminou no
que chamamos de civilização
205
e que Sarah procura ostentar. Ismail Xavier localizou
dois filmes nos quais o estrangeiro como detentor da razão aparece de forma bem
patente: O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1996) e Como nascem os anjos
(Murilo Salles, 1996). Nestes filmes, a distância “intelectual” entre o mundo do
estrangeiro e o do nacional – este imprevisível, irracional, irrefletido nas suas ações –
mantém-se intacta, a despeito da proximidade física que é estabelecida (ambos tratam
de casos de seqüestros).
A postura de Amélia em relação ao estrangeiro como parte do mundo “civilizado” é
outra e, como conseqüência, o mundo deste e o do “não-civilizado” se aproximarão.
Estas definições serão matizadas, ao invés de serem reafirmadas como nos dois filmes
anteriores citados. Sarah não pode ser vista como detentora da razão, do bom-senso,
da lógica. Ao contrário, ela é impulsiva, sensível, sensual, emotiva, exagerada e
teatral, como se estivesse dada a exibir-se constantemente, num esquema que dá
continuidade a seu mundo privado no espaço do palco, e vice-versa. Pode-se ver o
tênue limite que separa estas duas esferas, digamos a pública e a privada, quando de
sua apresentação de Tosca no Rio de Janeiro, na qual Sarah interrompe sua fala e,
para desespero do ponto e curiosidade da platéia, passa a fazer indagações sobre seu
atual estado emocional. Ela é inconstante, passando da ternura à raiva, da tentativa de
aproximação ao desprezo. É esnobe, pois se sabe uma grande estrela, mas é insegura e
percebe que está num momento ruim de sua carreira. É agressiva e pode vir a ofender
sem muitos motivos os que estão a seu redor – como quando empurra as caipiras e as
204
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro dos anos 90. In: Praga, nº 9. São Paulo: Hucitec, 2000.
205
Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. op. cit. Ver por exempo os capítulos “Do
comportamento à mesa” e “Do hábito de escarrar”.
189
amélia
chama de bruxas no momento em que elas tentavam tomar suas medidas para um
vestido – mas é também doce, meiga e frágil, traços pautados pela interpretação de
Beatrice Agenin, que a faz calorosa, feminina e suave quando não está exercendo o
lado despótico de ser celebridade. Em consonância com seu espírito pouco racional e
impetuoso – ela chega a desobrigar-se do jantar com o presidente da República em
razão de seu interesse sexual nos “belos selvagens” brasileiros –, todo o sofrimento
de Sarah tem um aspecto melodramático, no sentido de seus gestos e falas apelarem
diretamente aos sentimentos e de afirmarem reiteradamente seu estado emocional
206
.
Naturalmente faz parte também de uma expectativa quanto ao comportamento da
“diva”, ardente e repleta de uma gestualidade grandiosa. Seu aspecto geral é
melodramático então na medida em que mobiliza uma postura “grandiloqüente”,
“gestos largos”, “sentimentalismo”, características do “gênero” melodrama que
passaram exatamente de uma determinada concepção de teatro a um determinado tipo
de cinema, conforme escreve Ismail Xavier em O olhar e a cena
207
. Ensaios e
desabafos, crises pessoais e representação, a tudo é conferido o mesmo aspecto de
encenação e exagero, numa constante exibição.
Às caipiras, no entanto, também são reservados momentos da teatralidade específica
que invadiu parte do cinema, e cujas origens remontam ao cubo cenográfico da
pintura tal como concebido por Pierre Francastel em A realidade figurativa. Se Sarah
é melodramática por exibir-se, as mulheres de Cambuquira o são por estarem
freqüentemente dispostas numa mise-en-scène que lembra a exibição através da
disposição do palco italiano adotada no teatro. Esta maneira de colocar-se em cena,
segundo Pierre Francastel, está relacionada ao Iluminismo, quando se vivencia a
“crença na existência de um universo objetivo colocado face a face com o homem
206
Cf. OROZ, Silvia. Melodrama – o cinema de lágrimas da América Latina. Rio de Janeiro: Funarte,
1999, pp. 17 e 32.
207
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. op. cit., p.64.
190
amélia
como uma coisa estável, cuja medida ele se esforça, desde as origens, por tomar cada
vez com mais exatidão”. Trata-se da disposição em cena cúbica, relativa ao cubo
cenográfico, “espécie de caixa fechada, microcosmo imutável em que se reflete o
universo” e que “materializa (...) a concepção ideal do microcosmo-macrocosmo que
constitui o fundo da filosofia dos tempos modernos”
208
.
Dispostas freqüentemente num “enquadramento” que as coloca dentro de um espaço
privilegiado de exibição, as caipiras então, em consonância com este espaço, atuam a
partir de uma espécie de ritmo teatral, marcado pelos gestos que esperam sua vez de
acontecer de modo a mobilizar completamente a atenção do espectador, pela
movimentação, na qual seus corpos atravessam a “cena” diante da câmera, e pelos
diálogos, nos quais os personagens falam de modo bastante ritmado. É claro que esta
disposição para a exibição teatralizada não ocorre o tempo todo, mas acredito que ela
possa ser verificada principalmente em dois momentos. O primeiro, nas seqüências
que se passam no campo, especialmente logo após a notícia da propriedade vendida,
quando a casa parece se tornar uma espécie de palco no qual elas brigam, entendem-
se, simulam e exibem em voz alta suas reflexões. O segundo já no hotel, quando
sozinhas elas são, algo ostensivamente, mostradas como anti-higiênicas e inadaptadas
para a “civilização”. Ou, ainda no hotel, na presença de Lano, ator cômico de teatro,
quando as seqüências que protagonizam colaboram para o tom um tanto bufo do
filme.
208
FRANCASTEL, Pierre. Imaginação Plástica, visão teatral e significação humana. In: A realidade
figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São Paulo: Perspectiva, Editora da
Universidade de São Paulo, 1973, p. 230 e 242.
191
amélia
Em outros importantes momentos o cinema brasileiro retratou este personagem do
meio rural que vive e viveu principalmente nos estados de São Paulo, Minas Gerais,
Mato Grosso, Espírito Santo, e Rio de Janeiro
209
, e denominado, inclusive
sociologicamente por Antonio Candido
210
, caipira. Esta figura aparece em
importantes momentos da cultura brasileira, e talvez seja interessante nos remetermos
a ela antes de continuarmos falando de Amélia.
O caipira começou a ser tematizado com mais recorrência no cinema e na literatura
brasileira graças ao trabalho de Monteiro Lobato, ao criar a figura do Jeca Tatu, e de
Mazzaropi, que o consagrou em cena. Em ambos os casos, trata-se de uma figura
incapaz para o trabalho, distante da ação racional, inadaptado para a vida em
modernidade
211
. E em ambos os casos, a figura passa por uma transformação – “O
Jeca de Lobato moderniza-se e, portanto, deixa de pertencer ao mundo ‘doente’ do
atraso. O Jeca de Mazzaropi, mais coerentemente com a realidade brasileira, se
moderniza apenas na fachada, fazendo o uso mais estapafúrdio dos signos dessa
modernidade”
212
. O caipira de Mazzaropi demonstra freqüentemente preguiça, atraso,
incapacidade para o trabalho, etc. Essas são as características que, exploradas pelo
comediante, constituem o humor de seus filmes, e que são ressaltadas, por oposição,
quando o personagem do campo desloca-se para o ambiente urbano, onde não domina
os códigos e porta-se inadequadamente.
Nelson Pereira dos Santos tematizou o caipira em A Estrada da Vida (1980), no qual
acompanha a dupla Milionário e José Rico na trajetória que culminou no seu
reconhecimento musical. Nelson Pereira dos Santos procurou colocar “o povo nas
209
Cf. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 383.
210
Durante todo o seu livro Antonio Candido usa livremente este nome – caipira – e aqui faremos o
mesmo. Cf. C
ANDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Editora 34, 2001.
211
Cf. TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural do cinema brasileiro. op. cit., pp. 96-100.
212
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural do cinema brasileiro. op. cit., p.118.
192
amélia
telas” em outros momentos de sua cinematografia, por exemplo com O Amuleto de
Ogum (1974) e Tenda dos Milagres (1976). Dos seus filmes “descolonizados”, ou
“sem sociologia”
213
, como ele e parte da crítica os considerava, acredito que A
Estrada da Vida seja o mais bem-sucedido, dado o grau de despojamento e
simplicidade que atravessa o filme e a maneira lúdica com a qual a dupla caipira
trabalha. Neste discurso fílmico, povo e mercado idealmente se encontram, pois o
filme de Nelson Pereira dos Santos procura demonstrar, quase cartesianamente, que,
por serem legítimos representantes da cultura de seu “povo”, Milionário e José Rico,
mais cedo ou mais tarde, ainda que tenham que enfrentar obstáculos diversos da
indústria fonográfica (empresários, principalmente), acabarão por integrarem-se
harmoniosamente a ela, tendo como suporte comercial o público composto por
homens simples e autênticos como eles. O humor não vem exatamente do
deslocamento dos personagens caipiras no mundo civilizado, pois não se procura o
riso na oposição “não-civilizado”/“civilizado”, numa postura que poderia ser vista, na
época, como exterior e mesmo desrespeitosa ao “povo”
214
, mais adequada ao
espetáculo irracional para as massas do tipo Mazzaropi. Vem do próprio estilo bem
humorado da dupla caipira e é valorizado como algo interno ao seu caráter
eminentemente popular.
Mais recentemente A Marvada Carne (André Klotzel, 1985), procurando da mesma
forma que Nelson Pereira dos Santos uma atitude de respeito às características
internas da cultura caipira, tomando-a também como um discurso autônomo e
compreensível, valeu-se de sociologia e antropologia apropriando-se igualmente das
constatações de Antonio Candido em Parceiros do Rio Bonito e dos mitos e lendas
213
Sobre esse aspecto, ver as palavras introdutórias à entrevista do cineasta na revista Veja: “Entre as
pessoas que já viram sua última criação, ‘Tenda dos Milagres’ (...), há quem considere que este talvez
seja o filme brasileiro ‘mais descolonizado’ (...). ‘Devemos ser o que somos. O modelo do nosso povo
é o comportamento do nosso povo’. Ver Revista Veja, nº 464, 27 de julho de 1977: p. 3. E ainda, as
próprias palavras do cineasta em Filme Cultura: “O Amuleto da Morte (posteriormente O Amuleto de
Ogum) é um filme popular, embora não seja obrigatoriamente comercial (...). A diferença entre os
dois é que o popular não se preocupa com a oferta e a procura: tenta principalmente traduzir uma
visão do povo e da realidade que o cerca. Meu filme não tem sociologia, não critica os personagens,
não toma partido de ninguém. Para mim é como se fosse o primeiro filme”. Revista Filme Cultura, nº
24, 1973.
214
Cf. JORGE, Marina Soler. Cinema Novo e Embrafilme: Cineastas e Estado pela consolidação da
indústria cinematográfica brasileira. 2002, 184 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia), - Intituto de
Filosofia e Ciências Humanas, U
NICAMP, Campinas, 2002.
193
amélia
típicos da cultura caipira (seres folclóricos, encantos, feitiços, crendices e
religiosidade). Ciência social e mitologia ocupam aqui o mesmo lugar e têm o mesmo
poder de explicação na trajetória do caipira que se desloca procurando realizar o
sonho de comer carne de boi. As crenças do caipira são respeitadas e não
ridicularizadas como atrasadas ou mera superstição. E elas convivem neste filme com
elementos mais descritivos do mundo rural tal como aparecem no livro de Antonio
Candido, elementos que procuram dotar de certo teor “documental” o filme, como se
pudessem aproximar a narrativa da “verdade” do cotidiano caipira. A composição da
dieta (arroz, feijão e farinha); a dificuldade e o desejo de comer carne de boi; a avidez
pela carne na vizinhança cada vez que um vizinho matava algum animal para comer;
as “provas” que o pai da noiva obrigava o noivo a cumprir; a cumplicidade disfarçada
deste pai com o “casamento na delegacia”, que o desobrigava da festa e
conseqüentemente da carne de boi; enfim, todos estes elementos estão claramente
presentes na obra sociológica e na obra fílmica, às vezes de modo literal (as questões
da “prova” de pergunta e resposta para o noivo no filme são exatamente as mesmas
citadas por Candido). Talvez com a diferença de que, no filme, muitas vezes é
explicitada a má-vontade do caipira em cumprir alguma regra de etiqueta,
principalmente as relacionadas à alimentação (o pai de Sacarula esconde o queijo
quando avista o visitante para não ter que dividi-lo e sua mãe comenta maldosamente
que mal matou o porco a vizinha já apareceu para comê-lo), enquanto que no livro de
Antônio Candido há uma tendência a descrever o cumprimento destas regras como
algo isento de maiores considerações por parte do caipira, de forma a acentuar o
aspecto estruturado de sua cultura (no sentido antropológico) por meio das exigências
estritas e costumeiras que organizam seu cotidiano. Apesar de conferir autonomia e
compreensibilidade ao modo de vida caipira em si mesmo, a partir de uma visão
interna, em A Marvada Carne, como em Amélia, o personagem que não domina as
regras da “civilização” é colocado em contato com este mundo (quando é logo
enganado por um golpista). Se com Mazzaropi ele acabava achincalhado e no filme
de Nelson Pereira dos Santos ele terminava por aproveitar-se dos aspectos modernos
que lhe eram interessantes (a indústria fonográfica), em A Marvada Carne a cidade
acaba por oferecer ao caipira a realização de seu mais sublime desejo alimentar, e ele
194
amélia
então para lá se muda e passa a viver uma existência ainda bastante modesta mas na
qual é fácil encontrar um açougue.
Em Amélia, como em Mazzaropi, a “civilização” também atua de modo a exacerbar a
veia cômica presente no comportamento do caipira, que se manifesta mais
acentuadamente por oposição ao mundo “civilizado”, no caso o mundo tido como da
francesa e de todos que a cercam. No entanto, como veremos, não estamos diante do
estereótipo exaustivamente explorado no que ele tem de preconceito, como em
Mazzaropi. Além disso, a transformação que se opera sobre as caipiras quando da
inserção destas no ambiente “civilizado” de Sarah me parece mais radical do que a
simples constatação do atraso e sua eventual “cura”, tanto para elas quanto para o
elemento da “civilização” por excelência, a atriz francesa, e tanto num nível imediato
quanto pelas inferências simbólicas que a transformação comporta. Depois de
passarem pelo Rio de Janeiro, as caipiras são definitivamente despojadas de seus bens
e de seu ambiente (as terras de Cambuquira) enquanto Sarah passará a ter apenas uma
perna e a apresentar-se numa fantasia indígena. A meu ver, portanto, o elemento
“não-civilizado” não está aqui colocado diante de seu oposto apenas para que seu
aspecto grotesco sobressaia-se, ainda que isto acabe acontecendo, principalmente
quando da exposição de seus aspectos anti-higiênicos no Rio de Janeiro.
Lembrar de Mazzaropi quando se trata do caipira risível em relação ao mundo
“civilizado” me parece inevitável, mas acredito que às caipiras de Minas Gerais é
dado um tratamento menos redutor. Certamente elas não dominam certos códigos que
lhes são novos, como comer de garfo e faca, não deixar um leitão fazer cocô no
quarto de um hotel luxuoso, bem como desprezar um prato de lagosta provavelmente
por não saber do que se trata. No entanto, sabem o valor do dinheiro, que é uma das
características importantes do pensamento racional, e apenas se submetem às
exigências e bizarrices de Sarah para tentar reaver a herança de Amélia. Em relação a
Mazzaropi, portanto, acredito que se possa dizer que o filme de Ana Carolina é
profundamente mais questionador do lugar social do caipira em relação ao
“civilizado”, subvertendo as hierarquias e definições que Mazzaropi procura
cristalizar. Nossas caipiras de Cambuquira não são caracterizadas como estúpidas –
apenas lhes falta saberes que, por condições estruturais, lhes foram negados, como
195
amélia
costurar adequadamente roupas finas, saber falar o francês e o savoir-vivre de um
modo geral, ou seja, saberes que em Amélia, neste momento, ajudam a separar as
caipiras do que se propõe como “civilização”. Porém, em mais de um momento,
percebemos que elas vão pouco a pouco compreendendo o que é dito em outra língua,
e respondem adequadamente no conteúdo ou ainda na forma – Maria Luíza, ao ouvir
merci, responde pas de quoi, e quando é chamada para contar sua “primeira vez”, é
Sarah na verdade que não a compreende, já que a moça acaba por relatar exatamente
o que a atriz lhe pediu. Francisca logo se adapta à estratégia, racional porque eficiente
e prática, recomendada por Amélia – fingir que conhece tudo muito bem – e não dá
muita importância ao que não compreende ou ao que lhe parece ridículo na
“civilização”. As mulheres de Cambuquira não se deslumbram com o mundo das
coisas sofisticadas, mas não porque sejam ignorantes, pois conseguem reconhecê-lo:
as caipiras percebem que Sarah é uma celebridade, e Francisca dirá, divertindo-se,
que, se Amélia estivesse viva, nunca deixaria que as irmãs pobres tomassem banho
junto com a atriz.
O que não quer dizer que sobre elas não paire o peso de um certo estereótipo, que é o
que pretende fazer rir neste filme. A comédia assenta-se na expectativa de
cumprimento das características que desejamos ver no caipira, e tem um de seus
momentos bastante explícito com a entrada em cena do personagem televisivo de
Pedro Bismarck, o Seo Nerson da Capitinga, aqui com outro nome, mas que pode ser
plenamente identificado pelos espectadores que viram uma vez ou outra o programa
humorístico da TV Globo Escolinha do Professor Raimundo, de Chico Anísio.
Nesse sentido, do humor baseado em estereótipos, poderíamos nos perguntar se o fato
das caipiras não terem usado o dinheiro que Amélia enviava para os trabalhos nas
minas de água mineral pode ser visto como preguiça, mau uso dos recursos, falta de
uma ética do trabalho e de disposição para tal, características profundamente
196
amélia
preconceituosas associadas ao caipira que permearam a construção do personagem de
Mazzaropi e que chegaram ao mundo das histórias em quadrinhos com Chico Bento
(que até recentemente não gostava de estudar). São traços tão recorrentes no
imaginário sobre o caipira que autores de tradições diferentes como Darcy Ribeiro e
Antonio Candido não puderam ignorar, e que um cinema menos ostensivamente
comercial, ainda que procurando um contato com o público, como A Estrada da Vida
e Marvada Carne, repudiaram. Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, em parte os
aceita, mas procura interpretá-los: o equilíbrio encontrado pelo modo de vida caipira,
produzindo para sobrevivência e dispondo de tempo de lazer, condicionou “o caipira
a um horizonte culturalmente limitado de aspirações, que o faz parecer desambicioso
e imprevidente, ocioso e vadio”
215
. E Antonio Candido os rejeita mais explicitamente,
atentando para o fundo de precariedade que determina seu comportamento: “A posse,
mais ou menos formal, ou a ocupação, pura e simples, vêm juntar-se aos tipos de
exploração e ao equipamento cultural, a fim de configurar uma vida social marcada
pelo isolamento, a independência, o alheamento às mudanças sociais”
216
. A falta de
disposição para o trabalho foi um dos elementos utilizados por Sérgio Buarque de
Holanda na caracterização da sociedade que aqui se formou com a vinda dos
portugueses. Na tipologia de inspiração weberiana do autor, os portugueses se
aproximam do tipo aventureiro, em oposição aos povos nos quais predomina o caráter
trabalhador. Segundo este autor, em Raízes do Brasil, os portugueses são
desleixados, não-metódicos e pouco racionais. Desprezam o trabalho e são dados a
vagabundagem: a “exploração dos trópicos não se processou, em verdade, por um
empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e
enérgica: fez-se antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez
apesar de seus autores”
217
. Essas características seriam então fundamentais para a
compreensão do tipo de sociedade que se formou no Brasil. É preciso considerar,
então, que a não disposição para o trabalho é uma característica que permeia diversas
formas de compreensão sobre o caráter da sociedade brasileira ou de parte dela, ou
seja, sobre o caipira ou os brasileiros como um todo.
215
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. op. cit., p. 385.
216
CANDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. op. cit., p. 60.
217
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. op. cit., p. 43.
197
amélia
Nossas caipiras de Cambuquira, a meu ver, são mais matizadas do que os exemplos
literários e cinematográficos citados. Apesar de Francisca, ao ser acusada por Maria
Luíza de não ter feito as benfeitorias nas minas d’água com o dinheiro enviado por
Amélia, admitir que ali entre elas ninguém tinha muita iniciativa mesmo, as mulheres
não parecem viver uma vida de ociosidade e irresponsabilidade para com sua
propriedade. Quando, ao ler carta de Amélia, Oswalda nos informa que a irmã
imaginava encontrarem-se as terras da família com um aspecto pior, nada na imagem
confirma a impressão de suposta decadência. Não há feiúra ou sujeira, mas apenas o
aspecto bucólico do campo, e uma certa impressão de que como ele está assim ele
permanecerá. Podemos talvez dizer que algumas das características pré-concebidas e
originadas de uma tradição preconceituosa imputadas ao caipira estão aqui presentes,
no que se refere a formas pouco eficientes de trabalho, má educação à mesa,
deslocamento no mundo urbano –, mas que não se trata, em Amélia, de retomar o
estereótipo de Jeca Tatu, Mazzaropi ou Chico Bento e basear a narrativa na
exploração quase exaustiva deste. Pelo contrário, entendemos que as caipiras vão,
paulatinamente, dominando alguns dos códigos “civilizados” – e a mínima
compreensão da língua francesa, que faz com que elas estejam, ao final, aptas a
discutir com Sarah, cada uma em sua língua, disso é um exemplo.
Ainda sobre o humor baseado em estereótipos, é de se perguntar, por exemplo, por
que elas de repente tornam-se sujas e desorganizadas na cidade se na roça elas não
aparentavam viver assim. Em Cambuquira, vemos Oswalda arrumar cuidadosamente
as facas de cozinha num pano de prato e cobri-las antes de se deitar, e a mesa do café
da manhã das mulheres é simples mas arrumadinha.
Porém, no quarto de um hotel luxuoso no Rio de Janeiro, o porquinho come, faz suas
necessidades e Maria Luíza limpa sua bota.
198
amélia
Estas cenas sugerem o aspecto de extremo deslocamento das caipiras na
“civilização”, e ajudam a compor a veia cômica do filme. Logo ao chegar ao hotel no
Rio de Janeiro a balbúrdia se instala, decorrente da inadequação extrema das
personagens àquele ambiente. É claro que elas não estão no seu lugar, e têm
dificuldade de se relacionarem com este novo mundo, ainda que permaneçam
encerradas no quarto. Tratar-se-ia de uma predisposição, em Amélia, a justamente
confinar o caipira ao horizonte limitado de seus parcos meios de produção e
subsistência, negando-lhe possibilidades de desenvolvimento material e cultural na
cidade? Como se houvesse algo de “puro” e comovente no caipira em seu mundo
“não-civilizado”, ou seja, no “homem do povo” que se mantém no seu lugar – o lugar
da precariedade dos meios de sobrevivência – e algo de escatológico e ridículo neste
mesmo homem quando ele é inserido no mundo da “civilização”. Antonio Candido,
em Parceiros do Rio Bonito, entende que a história de contato entre estes dois
mundos teve sempre um sentido de precarizar as condições de vida do caipira, já que
ele tende a ser integrado como elemento subalterno. Luiz Carlos Jackson, em
pesquisa sobre o livro de Antônio Candido, vê no autor um “diagnóstico” “que
verifica o fim inevitável do mundo caipira, diante das transformações decorrentes do
impacto da sociedade capitalista”
218
. “Em nenhum momento do livro, embora haja
simpatia pelo caipira, há a defesa do retorno à vida tradicional, que, como vimos,
resultava de ajuste mínimo ao meio ambiente. De forma sintética, o que propõe é a
inclusão e não a exclusão das populações rústicas, inseridas em processo de
urbanização inevitável”
219
.
218
JACKSON, Luiz Carlos. Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia esquecida de Antonio Candido.
Belo Horizonte/São Paulo: UFMG/Fapesp. 2002, p. 51.
219
JACKSON, Luiz Carlos. Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia esquecida de Antonio Candido.
op. cit., p. 62.
199
amélia
No caso de Amélia, há uma transformação que se opera nas caipiras e em Sarah
durante o contato das representantes destes dois mundos – o da “civilização” e o da
“não-civilização” – que ultrapassa, a meu ver, o sentido da assimilação e da
precarização, e está mais relacionado à diminuição da distância entre elas, e portanto
a um progressivo embaralhamento das fronteiras entre o “civilizado” e o “não-
civilizado”; e também entre essas definições e o “incivilizado”, pois diversas vezes os
personagens originados do meio “civilizado” comportam-se inadequadamente, agindo
portanto “incivilizadamente” na medida em que conhecem os códigos “civilizados”
mas passam a rejeitá-los. É por isso, acredito, por essa diminuição das distâncias, que
Amélia é tão insistente em nos mostrar o deslocamento inicial das caipiras no Rio de
Janeiro – para depois encaminhar a narrativa no sentido de uma maior compreensão,
que é o que possibilita as discussões entre elas. É preciso afirmar, a princípio, uma
inadequação “cultural” para ao final permitir, nos momentos de briga que antecedem
a apresentação de Tosca, um diálogo violento de conteúdo cultivado entre elas – por
tratar de questões de identidade, conhecimento, saber institucionalizado – o que
significa que os códigos ficaram mais próximos. Por isso entendo que não se trata de
confinar as mulheres de Cambuquira aos horizontes limitados do caipira pois, para o
bem ou para o mal, elas o superam, e é nessa superação que temos uma visão de
popular que nos interessa neste trabalho.
Além dos fatores que acentuam o deslocamento que já citamos, podemos nos referir
também à diferença de atitude das caipiras e de Sarah em relação ao porquinho.
Vemos nas seqüências em Cambuquira que Francisca, Oswalda e Maria Luiza
convivem diretamente com animais como porcos e galinhas, que estes fazem parte,
enfim, de seu mundo, como se espera de um pequeno agricultor. Enquanto isso,
Sarah, também como esperado em um membro da “civilização”, ao receber o
porquinho, demonstra a distância que a separa do mundo natural, distância esta que só
lhe permite ver o animal enquanto comida, e a atriz efetivamente logo manda assá-lo
para o piquenique no teatro.
Ora, essa distância em relação ao mundo animal é um dos fatores mais característicos
a separar o mundo “civilizado” do “não-civilizado”, e faz parte de um processo
capitalista operado nos séculos XIX e XX na Europa, processo pelo qual “toda
200
amélia
tradição que havia sido previamente mediada entre homem e natureza foi quebrada.
Antes desta ruptura, os animais constituíam o primeiro círculo daquilo que rodeava o
homem”
220
. Segundo John Berger, é um erro histórico “supor que os animais entraram
primeiramente na imaginação do homem como bife ou couro”
221
. O animal visto
como refeição está relacionado ao advento da sociedade capitalista industrial. A
convivência específica que as caipiras estabelecem com os animais nos indica a que
mundo elas pertencem, e portanto as coloca fora do que consideramos a “civilização”:
“A marginalização dos animais está hoje sendo seguida pela marginalização e
despojamento da única classe que, através da história, permaneceu familiar aos
animais e manteve a sabedoria que acompanha essa familiaridade: o médio e pequeno
camponês”
222
. A relação que Sarah mantém com o porquinho nos mostra, da mesma
forma, a sua separação ostensiva deste mundo natural, que ela atomiza e exterioriza
enquanto refeição, pois está obviamente afastado dele.
Antes da briga que antecede a apresentação de Tosca já temos uma seqüência que, a
meu ver, colabora fortemente na impressão de diminuição da distância entre as
mulheres, ao mesmo tempo em que ressalta o aspecto um tanto decadente da cultura
do “civilizado” e a força autêntica que vem do “bárbaro”. Trata-se do treino de
esgrima de Sarah. Após subjulgar Maria Luisa e Oswalda, por não conseguir que elas
digam le talent a un fin (o talento tem um fim), Sarah encontra em Francisca uma
possível interlocutora. Sempre mais combativa em relação a suas companheiras de
Cambuquira, e mais disposta a fingir que conhece tudo muito bem – ou seja, a lidar
pragmaticamente com os códigos do mundo “civilizado” –, Francisca mune-se de um
sabre com o qual Sarah pretendia ensiná-la a esgrimar. Segue-se então uma luta na
qual Francisca aceita o jogo do “civilizado” (o esporte em questão) e o desempenha
com razoável desenvoltura. Ao mesmo tempo, o combate em si tem algo de “bárbaro”
– como Sarah nota, ironicamente, ao comentar que aprender a esgrima será muito útil
quando as caipiras estiverem em Cambuquira, o que remete ao aspecto algo
“incivilizado” deste esporte “civilizado” que tem por objetivo atingir o adversário
com uma arma. Por algumas vezes Francisca tenta dizer a frase mas esquece-se do
220
BERGER, John. Why look at animals. In: About Looking. New York: Pantheon, 1980, p. 1.
221
BERGER, John. Why look at animals. In: About Looking. op. cit., p. 2.
222
BERGER, John. Why look at animals. In: About Looking. op. cit., p. 26.
201
amélia
artigo indefinido, dizendo apenas le talent a fin (que pode ser entendido como le
talent a fain, o talento tem fome). A luta termina quando Francisca consegue dizer a
Sarah, em francês, que o talento também acaba, ao que a atriz interrompe não apenas
o combate mas seu discurso que tinha como teor a autoproclamação da sua própria
importância. Sintomaticamente, como sugestão da aproximação “cultural” entre as
mulheres, findo o combate, ambas dizem praticamente a mesma coisa, cada uma em
sua língua: “Graças a Deus!”. Antes, porém, Sarah comenta como Francisca é
autêntica.
No clímax do embate entre Sarah e as mulheres, que antecede a apresentação de
Tosca e o acidente final, temos uma seqüência, a meu ver, que vem dotar as
personagens de Cambuquira de inteligência, capacidade de compreensão do outro,
indignação quanto à posição subordinada na qual Sarah as mantém e, mais
importante, cultura, não enquanto cultura tradicional “caipira”, cultura popular neste
sentido, o que quer que isso seja, mas sim cultura como parte do mundo formal e
erudito. Elas são mostradas neste momento, em alguma medida, pois dotadas do saber
“culto”, como parte de um mundo que é considerado o da “civilização”, justamente
aquele mundo do qual a francesa Sarah e todos os que a rodeiam se julgam parte.
Ameaçada fisicamente por Lano, Oswalda acaba por entregar-lhe a escritura das
terras de Cambuquira. Percebendo-se então numa situação total de desamparo, sem a
herança de Amélia e sem a propriedade rural, as mulheres, depois de muitas tentativas
de falar com Sarah sobre o dinheiro – sempre mais ou menos ignoradas – resolvem
reclamar mais insistentemente com a francesa, tentando desesperadamente fazê-la
despertar de sua crise pessoal para o estado de penúria e humilhação em que agora se
encontram. Lamentando-se veementemente da falta de respeito com a qual vem sendo
tratada, Francisca exaspera-se, numa seqüência que, ao contrário do que vem
ocorrendo até agora, não ousa ser engraçada:
202
amélia
Hoje, sou mais do que nunca, desgraçada. Você nos desrespeitou! E o nosso
pagamento? Você cagou daqui até Cambuquira.
Sarah, no entanto, continua insensível para o teor do sofrimento das mulheres de
Cambuquira. Com efeito, todas as tentativas de aproximação com as caipiras que ela
havia feito até agora se referiam mais ou menos a tentativas de dotá-las de um certo
verniz da “civilização” – tentando ensiná-las a comer de garfo e faca, dando-lhes
banho – ou de arrancar-lhes prazeres pessoais – perguntando a Maria Luiza sobre suas
aventuras sexuais. É uma aproximação por vezes doce e carinhosa, como Sarah é na
sua fragilidade, mas inócua e superficial, que visa antes tirar algo de proveitoso para
si mesmo mais do que ajudá-las numa situação material difícil. E, ao ouvir mais uma
vez a reclamação de Francisca sobre o dinheiro, nas horas antecedentes a sua
apresentação, Sarah torna-se mais agressiva do que havia sido até agora. Seu discurso
de agressão às caipiras, mais uma vez teatral, exagerado, que ela profere inclusive
fantasiada como Tosca, estabelece relações entre o mundo civilizado da França e o
destino selvagem do Brasil, numa luta verbal entre o moderno e o arcaico, entre o que
Sarah pensa ser a “civilização” e a “barbárie”:
Vocês vão me engolir crua, e sua voracidade grosseira não vos alimentará jamais da
civilização da qual sou testemunha viva. Porque foi lá, sim, lá, que fui educada. Lá
na França, onde aprendi a sabedoria, a inteligência, o dom da ação, o sentido das
palavras, o valor do pensamento. Foi lá! Aqui, nada. Olhem para mim... e olhem
para vocês. Vocês são apenas a inação, a preguiça, a destruição!
Ao que Francisca, de algum modo consciente do teor de agressividade cultural e
xenofóbica das palavras da francesa, o que nos sugere justamente uma grande
compreensão que passa a ter delas, orgulhosamente levanta suas mãos e declama, sob
o olhar altivo das outras caipiras, um trecho de I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias,
poesia que ela nomeia, dá a autoria e informa a naturalidade do poeta maranhense:
203
amélia
Meu canto de morte,/Guerreiros, ouvi:/Sou filho das selvas,/Nas selvas cresci;/
Guerreiros, descendo/Da tribo tupi./Da tribo pujante,/Que agora anda errante/Por
fado inconstante,/Guerreiros, nasci;/Sou bravo, sou forte,/Sou filho do Norte;/Meu
canto de morte,/Guerreiros, ouvi.
E em seguida declama o último verso de Navio Negreiro, de Castro Alves: Colombo!
fecha a porta dos teus mares!
Esta é uma seqüência que penso dotar de cultura – no sentido que entendemos como
um aspecto da “civilização” – e conhecimento erudito as personagens de Cambuquira.
As pretensas matutas surpreendem citando poesia, pois aqui elas mostram que não
apenas são hábeis quando se trata de compreender a situação de subordinação e
humilhação na qual são colocadas como também rechaçam o preconceito cultural que
vê nelas a falta de ilustração. Contra a verborragia nacionalista de Sarah, Francisca
responde com dois dos mais importantes poetas brasileiros, cuja poesia trata
exatamente da situação de um elemento dominado em presença do outro, e da
reafirmação do orgulho e da dignidade destes dominados. Assim, elas surpreendem
inserindo o Brasil, país que normalmente é visto pelo estrangeiro como “não-
civilizado”, na “civilização”, ao menos no que se refere à capacidade de produção
artística e intelectual segundo as normas ditadas e fixadas pela estética “civilizada”.
I-Juca Pirama relata a captura de um índio tupi pelos Timbiras, que organizam então
o ritual para sacrificá-lo e comê-lo. Ao que o índio apresenta-se – o trecho declamado
– e pede para ser libertado apenas para alimentar seu pai, cego, fraco e moribundo. É,
no entanto, mal-compreendido: o chefe dos Timbira manda que se liberte o
prisioneiro, pois ele, tendo chorado ao pensar no pai sozinho, faria dos guerreiros que
o comessem fracos. O tupi vai em busca de seu pai que, percebendo pela ausência de
suas armas que ele foi feito prisioneiro e depois libertado, sofre pela vergonha de ter
sido o causador da desonra e volta ao grupo dos Timbira para explicar que seu filho
204
amélia
não é um fraco. O chefe Timbira conta ao velho que seu filho chorou, e o pai rejeita
então o tupi covarde. O tupi, para mostrar que tem coragem, volta e tenta lutar contra
os Timbiras, que o capturam e aceitam então sacrificá-lo, honrando o pai agora
orgulhoso do filho. O Navio Negreiro trata das atrocidades cometidas contra os
africanos capturados e trazidos como escravos para a América, desde o momento pré-
captura, até a insalubre viagem à América. E o eu-lírico, após descrever a situação
aviltante desta gente e toda a desumanidade envolvida nesta forma de dominação,
pede a Cristóvão Colombo que feche a porta dos seus mares.
Temos aqui portanto dois textos tornados clássicos na literatura brasileira que nos
remetem a narrativas de subordinação, luta, história e origens. No entanto, a presença
destas poesias em Amélia deve ser vista, acredito, menos através do conteúdo destes
textos e mais no tipo de saber que eles denotam e conotam. Pois a trajetória da
relação entre as caipiras e a francesa e o resultado final de assimilação grotesca tende
a rechaçar o tipo de tratamento romântico dado ao “nativo” tal como consagrado na
poesia de escritores como Gonçalves Dias e Castro Alves: bem-comportado, repleto
de sentimentos nobres e capazes de atos de grande coragem e valentia, extremamente
moral na sua amoralidade ingênua, quase “civilizado” nesse sentido, precisando
apenas de um empurrãozinho de algum padre ou fazendeiro para se tornar assimilável
no seio da “civilização”, num meio caminho portanto do ideal que Sarah, como
representante do “berço da civilização”, representaria. O que penso ver em Amélia é
antes uma postura mais afinada com a antropofagia modernista, ou seja, “uma
exaltação ao índio não cristianizado, ou melhor, do homem natural representando uma
cultura oposta à da catequese. O contrário, portanto, do que tinham feito os nossos
chateau-brianistas como Gonçalves Dias e Alencar”
223
. Um índio, portanto, capaz de
um canibalismo mais anárquico e menos carregado do tratamento infantilizante que
confere ao canibal pureza e idiotia, como faz Hans Staden (Luiz Alberto Pereira,
1999). Se pudermos pensar na antropofagia tal como vista pelo cinema, estamos aqui
mais próximos de uma compreensão mais complexa das relações de dominação, mais
afinada à rejeição da simples oposição fracos contra fortes, ingênuos contra
espertalhões, de Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1970),
223
ANDRADE, Oswald. Mensagem ao antropófago desconhecido. In: Obras Completas - Estética e
Política. São Paulo: Globo, 1992, p. 199.
205
amélia
que aproxima índios e europeus não no sentido da demonstração do caminho que
levaria aqueles a entrar no mundo “civilizado” deste, mas no sentido de uma
diminuição da distância que os separa ao expor o lado racional, malicioso e
estratégico dos tupinambás, bem como o dos colonizadores.
Podemos dizer que, mais importante do que o conteúdo dos poemas declamados,
temos aqui uma citação de fundo erudito por parte das caipiras, “civilizado” neste
sentido, portanto, que envolve a discussão sobre a própria noção de “civilidade” e não
identifica-o simplesmente ao europeu (e principalmente ao francês), que se julga o
“civilizado” por excelência, como bem demonstrou Sarah em sua discussão com as
caipiras. Talvez seja importante retomarmos o conceito, tal como exposto por Norbert
Elias e por Raymond Williams naquilo que aqui nos interessa. Ou seja, em primeiro
lugar, a idéia de “civilização” como um processo em direção a um estágio visto pelos
seus artífices como mais “avançado” de sociedade, o que corresponde ao
comportamento e às palavras de Sarah. E, em segundo lugar, a idéia de “civilização”
como cultura intelectual e artística, o que nos aproxima da poesia declamada por
Francisca.
Segundo Norbert Elias, o conceito de civilização “resume tudo em que a sociedade
ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas
ou a sociedades contemporâneas mais ‘primitivas’. Com essa palavra, a sociedade
ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se
orgulha: o nivel de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de
sua cultura científica ou visão de mundo, e muito mais”
224
. É possível ver Sarah
Bernhardt como parte desta sociedade, orgulhosa portanto de sua pretensa
superioridade como filha de uma nação que está recorrentemente associada à
“civilização”. Recorrendo a manuais de etiqueta, Elias reconstrói o processo que deu
origem às boas maneiras e ao savoir-vivre que parecem separar o séquito da atriz das
caipiras de Cambuquira. Mas, para além da caracterização da idéia de “civilização”, a
obra de Elias tem como resultado a historicização deste conceito e, desta forma, assim
como o filme Amélia, sua relativização.
224
ELIAS, Norbert. O processo civilizador – Uma História dos Costumes. op. cit., p. 23.
206
amélia
Raymond Williams, em seu livro Marxismo e Forma, procura, ao definir cultura,
explorar a origem da idéia de “civilização” e as lutas envolvidas nas suas diversas
definições. “A noção de ‘civilizar’, como sendo a absorção dos homens por uma
organização social, já era conhecida, é claro – baseava-se em civis e civitas, e seu
âmbito se expressava no adjetivo ‘civil’, indicando ordenado, educado, cortês. Teve
uma ampliação positiva de significado, como já vimos, no conceito de ‘sociedade
civil’. Mas ‘civilização’ deveria significar mais do que isso. Expressava dois sentidos
que estavam historicamente unidos: um Estado realizado, que se podia contrastar com
a ‘barbárie’, mas também agora um estado realizado de desenvolvimento, que
implicava processo histórico e progresso”
225
. Naturalmente, a França de Sarah teve
um papel central na definição do conceito de “civilização”. A esse conceito a tradição
rousseauniana e romântica opôs o de “cultura” “como um processo de
desenvolvimento ‘íntimo’”, associado à religião, às artes, à família e à vida pessoal.
Raymond Williams nos mostra que a idéia de “cultura” sofreu diversos
desenvolvimentos, inclusive os que resultaram na “cultura” como conceito
antropológico e das ciências sociais em geral
226
.
Podemos considerar que cabe uma associação entre “civilização” e cultura no sentido
da cultura erudita, cultura portanto como um dos elementos centrais da realização
estética permitida pelo desenvolvimento da dita “civilização”. Se a “civilizada” Sarah
Bernhardt é produto do processo civilizador tal como analisado por Elias, Francisca
nos surpreende inserindo-se a si mesma e, de certa forma, o mundo caipira que a
acompanha, na “civilização” enquanto realização intelectual e artística.
Não estaríamos então, a partir da exasperação poética de Francisca, no âmbito da
valorização do nacional, do popular ou do regional como o lugar do saber-fazer, do
saber que é prática, do saber cotidiano, que por vezes é valorizado como o que de
mais interessante o dito “homem do povo”, “homem simples”, pode nos transmitir.
Mas do saber “oficial”, da cultura letrada, que implica ir à escola ou receber educação
formal e ter acesso a obras clássicas da literatura brasileira. É o tipo de saber que
Sérgio Paulo Rouanet valoriza em As razões do Iluminismo. Ele mostra a importância
225
WILLIAMS, Raymond. Cultura. In: Marxismo e Literatura. op. cit., p. 19.
226
Cf. WILLIAMS, Raymond. Cultura. In: Marxismo e Literatura. op. cit., p 17-26.
207
amélia
da cultura erudita como expressão letrada, em oposição à comunicação cotidiana, que
só pode operar dentro de certos limites cognitivos, mantendo o sujeito atrelado ao
vínculo estreito que o liga a sua realidade social. Quando, num de seus exemplos
baseado em pesquisa de Bárbara Freitag, uma criança favelada é impedida de ter
acesso à educação formal via escola, a sua capacidade cognitiva mantém-se restrita,
sem atingir o último estágio intelectual – o das operações formais. “Ora, como é
precisamente esse último estágio que permite ao indivíduo aceder ao pensamento
hipotético-dedutivo e à plena competência moral, isto é, transcender sua experiência
imediata, generalizar, contestar normas, postular um estado de coisas alternativo,
segue-se que as crianças faveladas estavam em situação objetiva de desvantagem com
relação a seus pares. O meio bloqueava seu pleno desenvolvimento psicogenético e
com isso impedia uma reflexão totalizadora”
227
. A educação pela “escola da vida”
mostra-se nitidamente inferior à educação formal, na qual a criança tem acesso ao
saber que lhe possibilita conhecer e interpretar Gonçalves Dias e Castro Alves e
generalizar suas poesias para as diversas situações na qual a literatura pode ajudar a
comentar a realidade. “Glorificar o estilo de pensamento da criança favelada não é
somente um absurdo científico: é uma posição visceralmente reacionária. As pessoas
que exaltam as competências práticas do menino que sobrevive vendendo laranjas não
se dão conta de que não são essas competências que vão permitir à população
favelada transformar suas condições de vida, e sim, precisamente, as competências de
que ela não dispõe: a de pensar abstratamente, a de contestar valores, a de perceber
que a ordem existente é modificável”
228
.
O que Sarah faz é totalizar o outro à sua frente segundo o que acredita ser um caráter
nacional, ou identificá-lo a um hipotético modo brasileiro de agir e pensar, operação
da qual, a meu ver, o discurso fílmico de Amélia não participa, mas que não é
estranha à produção cinematográfica do Brasil. Segundo Célia Tolentino, em seu
livro sobre o rural no cinema brasileiro, a figura do homem do campo ou sertanejo foi
por vezes identificada como “a nossa mais profunda brasilidade, ou nosso atraso, ou
227
ROUANET, Sergio Paulo. O novo irracionalismo brasileiro. In: As razões do Iluminismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, p. 138.
228
ROUANET, Sergio Paulo. O novo irracionalismo brasileiro. In: As razões do Iluminismo. op. cit.,
pp. 139-140.
208
amélia
nossa reserva de purismo, mas será sempre uma espécie de outro, distante daquele
que fala, mesmo quando no discurso à primeira vista venha considerado como o tal
‘país real’”
229
. Há, portanto, uma disposição da cinematografia brasileira, que a
autora percorre desde os filmes de cangaço dos anos 50/60, passando por Mazzaropi,
até o Cinema Novo, em ver o rural como síntese de um país, elemento eminentemente
nacional que nos dá singularidade, ao mesmo tempo em que esse elemento é visto
pelo narrador cinematográfico com exterioridade. Em Amélia esse rural não é
imediatamente identificado a um suposto Brasil enquanto totalização, ao contrário, a
meu ver o elemento popular aqui é bastante circunscrito a certa região do país, e a um
aspecto da cultura desta região, que certamente é considerada “não-civilizada” em
oposição ao mundo dos citadinos. As caipiras, por exemplo, têm dificuldade de lidar
com o Rio de Janeiro e seus elementos “civilizados”, principalmente com o ambiente
do luxuoso hotel. Este Rio de Janeiro é antes o ambiente de Sarah do que das caipiras,
tal a facilidade que a atriz tem em comunicar-se com os brasileiros francófonos que a
rodeiam e trabalham para ela. Mas Sarah não percebe que lá é ela que está em seu
lugar, enquanto as caipiras encontram-se, ainda que em seu próprio país, totalmente
deslocadas, justamente porque aquele Rio de Janeiro – parte dos trópicos no qual se
tentou a implantação de uma cultura européia – não pode lhes abrigar. Sarah,
erroneamente, acaba conferindo a tudo o que remete ao Brasil – caipira, hotel,
vegetação luxuriante, mulatos, sexualidade disponível, papagaios (que enfeitam seu
quarto) – um mesmo status de barbárie, de exótico, de “incivilizado”, ainda que por
vezes atraente.
Quem identifica as mulheres de Cambuquira ao Brasil é a estrangeira, Sarah, que vê
as partes decompostas do país como compondo uma construção nacional única,
totalizante, em relação à qual ela acredita que a França se opõe. Seu discurso de
agressão às mulheres está permeado de assertivas sobre o Brasil, mas as personagens
do campo não estão identificadas a este país como um todo indiscriminado em
Amélia. Ao contrário, elas também se encontram em um lugar “estrangeiro”, no qual
elas não se encaixam e onde não dominam os códigos de sociabilidade. Elas se sabem
estranhas lá, e pode-se dizer que o mundo civilizado do Rio de Janeiro é mais
229
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural do cinema brasileiro. op. cit., p.11
209
amélia
compreensível e acolhedor a Sarah do que às caipiras (como a própria atriz notará ao
mudar-se para o teatro e proclamar satisfeita que lá é o seu país). Se lembrarmos do
conceito de “estrangeiro” de Georg Simmel, veremos que esta categoria não é
adequada exatamente para Sarah, francesa no Brasil, que se aproxima mais do
“viajante”, mas sim para as mulheres de Cambuquira no Rio de Janeiro. É a pessoa
que chega e não mais vai embora, que tem desta maneira uma qualidade de não-
pertencimento ao grupo desde o início, e que assim introduz no grupo no qual se
instala desta maneira particular uma série de características externas, que não se
originaram em seu interior. É alguém que desfruta de uma posição relativa de
“objetividade”, o que não significa passividade e afastamento, mas distância e
proximidade, indiferença e envolvimento ao mesmo tempo. Assim, é um sujeito que
pode desvendar melhor as relações que organizam o grupo que ele passa agora a
freqüentar (Simmel dá o exemplo, na Itália, de se requisitar juízes de fora do grupo
para garantir isenção em julgamentos)
230
. As caipiras de Cambuquira, da mesma
forma, como “estrangeiras” no Rio de Janeiro, passam a nos mostrar que as distâncias
que separam o “civilizado” do “não-civilizado” são menores do que se imagina,
ajudando a desvendar o mundo “civilizado” ao fazer com que nele apareçam
características como a irracionalidade, a grosseria, a rapinagem, o oportunismo.
A indisposição de Sarah para com os elementos de nacionalidade, ou seu discurso
totalizante, tem mais relação com o estado emocional e profissional em que ela se
encontra, atriz em crise criativa, do que com o que vemos em cena. Acredito que não
temos efetivamente em Amélia a construção, no discurso cinematográfico, daquele
país que ela descreve em seus momentos de fúria. Pelo contrário, na maioria das
vezes, de algum modo os “nativos” colaboram para que sua estada aqui transcorra
com tranqüilidade e civilidade, principalmente porque vários deles fazem parte do
mesmo mundo que ela, dominando os mesmos códigos – notadamente a língua
francesa, código central aqui para a distinção do mundo “civilizado”. A análise
totalizante que Sarah faz do Brasil faria assim parte, a meu ver, do traço verborrágico
que permeia a atriz – e talvez de uma possível visão acachapante, preconceituosa e
“do alto”, que o “civilizado” vindo de uma nação central tenderia a ter sobre o país
230
C.f. SIMMEL, Georg. O Estrangeiro. In: FILHO, Evaristo de Moraes (org.). Sociologia. op. cit., p.
184.
210
amélia
periférico em que se encontra, tal como sugerido em Amélia –, pois na tela o que
vemos é um país heterogêneo e não totalizável
231
. Pois, da mesma forma que a atriz
diz não agüentar mais “a obrigação de ser feliz”, a “vegetação luxuriante”, esse
paraíso que já a “encheu”, ela parece desfrutar alegremente de alguns outros
elementos da vida nacional, em especial dos espécimes masculinos nativos, que ela
chama de “belos selvagens”, recusando, para estar com eles, um jantar pleno de
aspectos da civilidade com o Presidente da República. As mulheres de Cambuquira,
ao contrário, sabem-se e sentem-se completamente fora de seu lugar de origem no Rio
de Janeiro, tendendo a permanecerem encerradas no quarto de hotel, com a janela
fechada, para que os elementos do lado de fora não o invada. Como, porém, o próprio
quarto é elemento de um ambiente desconhecido e hostil, mesmo encerradas em seu
interior elas exibem seu completo deslocamento.
A agressividade de Sarah em relação às mulheres materializa-se no aspecto de
construção totalizante do que seria o “Brasil” do qual temos falado, mas sua postura
não é de constante embate contra as caipiras. Pois Amélia é também um filme sobre
mulheres, que se delicia e demora-se em mostrar os aspectos amorosos, solidários,
intempestivos e complexos do gênero. Como se o gênero feminino pudesse explicitar
com mais clareza a intercambialidade das fronteiras entre o “civilizado” e o “não-
civilizado”, dada uma possível flexibilidade, mutabilidade, inconstância, desejo de
contato e proximidade que aqui seriam parte do universo feminino (com exceção de
Vincentine). Vemos isto quando Sara chama Maria Luíza para junto de si para que
conte suas aventuras sexuais. Ou quando toma banho junto com elas. Ou ainda
quando as convida para comer o leitão assado. Atitudes que acabam permitindo o
231
Ao contrário por exemplo de Cronicamente Inviável (Sérgio Bianchi, 1999), filme no qual o que
vemos em tela corresponde em grande parte ao discurso fílmico explicitado, ou seja, um país com
uma totalidade, no qual de Norte e Sul, entre todas as camadas sociais, estão presentes traços
homogêneos e lamentáveis.
211
amélia
contato entre o “civilizado” e o “não-civilizado”. Temos uma aproximação sensível,
da ordem do sentimento, que parece só ser possível dentro do mundo feminino, no
qual há espaço para a atitude afetiva e carinhosa, e assim elas choram juntas, riem
juntas, odeiam-se, entendem-se e desentendem-se.
O aspecto de feminilidade presente na relação entre Sarah e as caipiras me parece
importante ainda que, desprovidas do acesso ao mundo material, estas tenham menos
condições de ostentar os adornos de seu gênero do que aquela. Nesse sentido, é de se
notar que a agressiva Vicentine tende a pertencer antes a um mundo masculino, tanto
nos trajes sóbrios, cores neutras e poucos adereços, quanto na postura de evitar a
aproximação e portar-se insensivelmente diante do outro. Quando Sarah ofende as
caipiras ela o faz como resultado de uma exasperação em boa medida existencial e
sentimental, para logo em seguida alterar esta forma ofensiva de tratamento, como se
pode dar ao luxo uma mulher em seu caráter frágil, sensível, inconstante, adequado ao
mundo das artes. Quando Vincentine as ofende, ela parece antes desfrutar de um
prazer de superioridade perante os mais “fracos”, prazer este em humilhar os “de
baixo” que se adequa bem a seu aspecto tão subalterno em relação a Sarah.
A agressividade de Vincentine também está relacionada, a meu ver, ao progressivo
embararalhamento das fronteiras entre “civilizado”, o “não-civilizado” e o
“incivilizado”. Se Sarah é mostrada como pouco racional, inconstante,
melodramática, exagerada, características que não pertencem exatamente ao que,
ainda que típicas da “diva”, se considera o mundo da “civilização” – este racional,
212
amélia
inteligível, previsível porque lógico, no qual as pessoas se controlam perante as
outras, uma “sociedade pacificada”
232
, etc. – Vincentine é uma “incivilizada” em
decorrência de sua extrema falta de educação – e lembramos aqui Raymond Williams
quando ele atenta para o lado de “cortês” que se relaciona à uma definição possível da
palavra “civilizado”. E, na verdade, podemos notar que todo o mundo “civilizado”,
em Amélia, presta-se à permeabilidade das definições, adotando aspectos
“incivilizados” em momentos importantes, ou seja, mostrando que aqueles que
possuem as referências dos códigos “civilizados” acabam por abandoná-los a todo
instante. Já falamos de Vincentine e cabe também mencionar o português Lano, que é
capaz de ameaçar com o uso de uma arma duas senhoras como Oswalda e Francisca
para obter, por meio da força, as escrituras de suas terras. E que, além de tentar ser
engraçado sem obter sucesso, tem o hábito torpe de apalpar as nádegas de Vincentine.
Cabe mencionar também Salustiano, movido que está pelo cálculo empresarial
mesquinho e que é visto, em um flash back de Sarah, “puxando seu saco”
ostensivamente. Ou seja, o mundo dos personagens “civilizados” é de um modo geral
bastante antipático, pois “bárbaro” e “incivilizado” no tratamento com o outro, ainda
que Beatrice Agenin tenha feito de Sarah uma mulher doce e carinhosa, cuja
“incivilidade” tendemos a aceitar.
Se Francisca mostra-se “civilizada” no conteúdo, ao declamar poesia, o Brasil pode
ser “civilizado” na forma. O desfile que segue pelas ruas do Rio de Janeiro, após
Sarah decidir ir viver no teatro, coloca esta cidade formalmente como parte, um tanto
grotesca na verdade, da “civilização”, pois a dota dos elementos simbólicos-oficiais
de nacionalidade, que aparecem como parte do estabelecimento de uma organização
territorial institucionalizada inspirada justamente na formação política que teve
origem nas sociedades européias que se aburguesavam, quando formaram-se os
Estados-Nação. Neste sentido, é importante lembrar que o segundo volume de O
processo civilizador, de Norbert Elias, pretende justamente relacionar a formação dos
Estados nacionais com o processo em questão, chamando a atenção para o fato do
monopólio da violência física por parte de um poder central ter colaborado para
232
Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. op. cit., p. 93.
213
amélia
pacificar os homens e as sociedades
233
. Encabeçando uma espécie de parada, ao som
do Hino Nacional Brasileiro, a atriz instala-se altivamente numa carroça sendo
acompanhada, em seguida, por Vicentine e pelas caipiras, cada uma sentada em uma
outra carroça que a segue. A cena, irônica e patética, ao mesmo tempo em que mostra
o lugar social das caipiras perante Sarah, colocadas atrás da charrete principal,
prenuncia a diminuição das distâncias entre o “bárbaro” e o “civilizado”, ao
apresentar Sarah numa situação um tanto ridícula, tendo de conviver com as mulheres
“não-civilizadas”, procurando manter a pose ao mesmo tempo em que está envolta
num certo constrangimento, ela própria fazendo parte e liderando o cotejo grotesco. É
possível lembrar a saída das caipiras de seu sítio rumo ao Rio de Janeiro,
acompanhadas de um cachorro e um leitão, chacoalhando num carro de boi cujo
caráter “incivilizado” é bastante visível. Há certo paralelismo entre a saída do campo
e a saída do hotel. São situações que guardam algumas diferenças no grau de conforto
e “civilidade” do passeio. Mas ao mesmo tempo, que mantém importantes
semelhanças, o que colabora para a aproximação entre o universo e Sarah e o das
caipiras. Do carro de boi ao cotejo pelo Rio as mulheres de Cambuquira mudaram de
lugar, de charrete, de companhia, aproximando-se do “civilizado” ao mesmo tempo
em que permanecem eminentemente “bárbaras”, colaborando desta forma para
impregnar Sarah de “incivilidade”.
A diminuição da distância entre o “bárbaro” e o “civilizado” é, em alguma medida,
realizada ao final do filme, quando vemos Sarah e as caipiras dividindo o mesmo
palco numa encenação francesa de I-Juca Pirama. Neste momento, as caipiras
tornam-se parte do mundo “civilizado” de Sarah, enquanto a atriz francesa faz da
poesia sobre índios – os “não-civilizados”, bárbaros ou selvagens por excelência –
uma parte de seu próprio espetáculo. Não nos é dado saber exatamente o que levou as
personagens de Cambuquira até lá, mas vemos as circunstâncias dramáticas
anteriores, ainda no Rio de Janeiro.
No jogo de forças final, após serem descritas por Sarah como “bárbaras” e
declamarem, como resposta, Gonçalves Dias e Castro Alves, as caipiras resolvem se
233
Cf. Elias, Norbert. O abrandamente das pulsões: psicologização e racionalização. In: O processo
civilizador. op. cit., pp. 225-241.
214
amélia
vingar retirando as almofadas que amparariam a queda da atriz no último ato de
Tosca. Sarah olha para o chão sem almofadas e mesmo assim joga-se do palco, como
previsto na peça. Nós, espectadores, mas também Sarah, vemos que são as caipiras as
responsáveis pela tragédia que a mutilará. Jogar-se foi, portanto, um ato consciente da
atriz. A seqüência de sua queda é interrompida por um plano de um céu aberto, que
pode sugerir liberdade, como se Sarah estivesse agora disponível para algo novo e
diferente. Para assumir seu lado “bárbaro” e “incivilizado” talvez, recusando em parte
suas origens “civilizadas”? Efetivamente, seremos surpreendidos ao vermos Sarah no
palco declamando, mutilada, I-Juca Pirama em francês, recostada em uma onça
empalhada, rodeada de figurantes trajados como índios entre os quais um está prestes
a ser cozido num caldeirão de água fervente – um ensopado canibal estereotipado –, e
ainda acompanhada, logo num segundo plano, das caipiras, figurantes nitidamente
deslocadas, que desempenham sua função no palco sem a mínima intimidade com o
novo ofício.
Temos aqui uma incorporação suis generis do outro – Sarah absorveu não apenas as
mulheres, mas nutriu-se da literatura daquele país exótico, fazendo do outro uma
parte de si. A mudança é substancial, se pensarmos, seguindo trabalho de José de
Souza Martins, na condição de inassimilável do outro “não-civilizado” para o branco
“civilizado”, com quem este só se relaciona quando aquele ocupa uma posição
215
amélia
servil
234
. Além disso, a distância entre o mundo de Sarah e o das caipiras fica em
grande medida diminuída, considerando que a assimilação antropofágica é antes
associada à posição ocupada pelas caipiras do que pela de Sarah: “Essa antropofagia
ritual, cultural, profundamente presente na cultura dos povos originais da América,
está dentro de nós latino-americanos; qualquer pessoa que ali chegue, depois de uma
geração se tornará herdeira dessa tradição antropofágica, isto é, da tradição de
assimilar o outro, de incorporar a sua cultura e os seus modos”
235
.
Se a européia antropofágica é novidade, não o é o caráter movediço e plural da idéia
de civilização, ou de sua crítica, como faz Amélia. A obra de Jean Starobinski, As
máscaras da civilização, está repleta de exemplos da diversidade que povoou o
conceito, especialmente numa chave contestatória da idéia do europeu como
“civilizado”: “de Montaigne a Rousseu, passando por La Hontan e muitos outros
viajantes do Novo Mundo, a comparação entre o civilizado e o selvagem (ainda que
canibal) não acaba em vantagem do civilizado”
236
. “Considera-se então que a palavra
civilização, tão logo escrita, pode constituir o objeto de um mal-entendido. Um outro
texto de Mirabeau fala de ‘falsa civilização’; em outra parte ainda, ele chega a anular
a oposição entre bárbaro e civilizado, ao denunciar a “barbárie de nossas
civilizações
237
. Além disso, é importante considerar, como coloca o autor, a
indissociabilidade entre o conceito de “civilizado” e seu oposto, sem o qual aquele
não poderia ser nomeado
238
. Sarah e as caipiras estão, além de embaralhadas,
interligadas desde o início, na medida em que, enquanto “civilizadas” e “bárbaras”,
uma não existira sem a outra.
Temos a impressão, na seqüência final, de que se trata de um “civilizado” esgotado,
que precisa nutrir de outras culturas para renovar-se, e que, ainda assim, não
consegue ser autêntico como a cultura da qual nutriu-se. Na cena da esgrima entre
Sarah e Francisca, até que a caipira consiga falar le talent a um fin, ela dirá le talent a
fin, que podemos entender como le talent a faim, ou seja, o talento tem fome, como a
234
Cf. MARTINS, José de Souza. A chegada do estranho. São Paulo: Hucitec, 1993, p. 19.
235
MARTINS, José de Souza. A chegada do estranho. op. cit., p. 20.
236
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. op. cit., p. 18.
237
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. op. cit., p.19.
238
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. op. cit., p.20.
216
amélia
sugerir essa necessidade de absorção por uma cultura que se esgotou e perdeu a
originalidade. Essa falta de renovação e esgotamento é, aliás, como vimos, uma
característica que a própria Sarah irá salientar o tempo todo a respeito do seu
trabalho. Porém, se Sarah, na esgrima, percebe o caráter autêntico de Francisca, isso
não poderá ser transportado para o palco do teatro europeu, onde o que vemos é um
espetáculo caricato, sem qualquer sombra de força e originalidade. Sarah não
consegue recriar-se na assimilação do outro, e seu público é menor ainda do que a
platéia da seqüência inicial. Há uma incorporação que não deu origem a algo novo e
melhor, porque original, mas antes a uma espécie de somatória grotesca, na qual os
dados de diferentes culturas conjugam-se de forma bizarra, sob liderança de uma atriz
em decadência e mutilada. É uma situação, portanto, um tanto risível pelo ridículo,
que faz parte do estilo de comédia amarga que o filme vem perseguindo, às vezes
com mais ou com menos sucesso na alternância entre a opção de fazer rir e fazer
emocionar. Aqui, nesta última seqüência do filme, depois do aspecto em tudo
estranho, grotesco e constrangedor do espetáculo, que procura matizar a distância
entre o “civilizado” e o “não-civilizado” colocando ambos os mundos no mesmo
palco, o que faz emocionar, a meu ver, é a voz e a viola da dupla Pena Branca e
Xavantinho, musicando a Canção do Exílio, e retomando aquela convergência que já
notamos quando Francisca declama Gonçalves Dias, entre o caipira e do erudito.
Afinal, a música da dupla que ouvimos durante os créditos finais seria popular, seja lá
o que se queira dizer por esse rótulo problemático, ou seria erudita, por se tratar de
obra de um poeta consagrado nas instâncias acadêmicas e cultivadas, ainda que
atualizada na voz de representantes da música chamada “de raiz”? Amélia, a meu ver,
não insiste nesta contestável oposição, mas desloca sua interpretação das
manifestações culturais numa outra chave, a da tentativa, por vezes bem sucedida e
por vezes fracassada, do embaralhamento de mundos que são considerados opostos e
da aproximação sensível – pois resultado de uma disposição feminina ou de uma
afinidade estética – entre aqueles que normalmente são considerados como
estruturalmente separados, como Sarah e as caipiras, ou como a música caipira e a
poesia erudita.
217
amélia
No entanto, apesar do filme prosseguir numa aproximação de culturas, que por fim
coloca lado a lado o popular e erudito com Pena Branca e Xavantinho, a música que
encerra o filme sugere que a autenticidade e a beleza na arte reside em uma
modulação popular, nativa, “bárbara”. Nesse sentido, segundo a autora, a música
resgata o popular como o lugar da força e da originalidade da cultura, como se a única
forma de devolver sua espontaneidade, que a seqüência do teatro de todo privou, é
devolver a ela seu aspecto popular, no caso na voz de dois eminentes músicos da
música caipira. Popular como está, a Canção do Exílio é, simultaneamente, mais
erudita.
Antônio Augusto Arantes faz uma observação interessante a respeito da cultura
popular, que, segundo acredito, define este clima que aproxima o popular e o erudito
ao final de Amélia. Segundo o autor, a cultura popular é vista por “alguns
pesquisadores mais sofisticados” como “resíduo da cultura ‘culta’ de outras épocas
(às vezes de outros lugares), filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas camadas de
estratificação social”
239
. Isso pode nos indicar que existe, segundo certa visão de
popular, uma identificação de conteúdo entre cultura popular e cultura erudita, ambas
sobrevivendo enquanto reduto da originalidade e autenticidade em meio ao oceano de
produtos massificados. É o que se depreende da leitura de Sergio Paulo Rouanet: “(...)
a alta cultura e a cultura popular são as duas metades de uma totalidade cindida, que
só poderá recompor-se na linha de fuga de uma utopia tendencial. No meio tempo,
elas têm de manter-se em sua autonomia, pois seria tão bárbaro abolir a cultura
popular, onde habita a memória da injustiça, como abolir a alta cultura, onde habita a
promessa de reconciliação”
240
.
239
ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. op. cit., p.16.
240
ROUANET, Sergio Paulo. As razões do Iluminismo. op. cit., p. 130.
218
nós que aqui estamos por vós esperamos
o povo como História
219
nós que aqui estamos por vós esperamos
Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Masagão, 1999) inicia-se com
duas frases escritas na tela. A primeira: “O Historiador é o Rei”. Uma homenagem?
Um tributo? Uma frase de conotação positiva em relação aos historiadores. Em
seguida, a segunda frase, um tanto surpreendente pela condição feminina do
homenageado: “Freud a Rainha”. Podemos dizer que haveria também uma
homenagem a Freud? Ou seria mais uma sátira, uma frase jocosa, engraçadinha? Em
relação ao historiador, a homenagem me parece clara. Durante o filme, por exemplo,
veremos citações bastante reconhecíveis de Era dos Extremos, obra do historiador
Eric Hobsbawm. Em relação a Freud, se a frase inicial parece surpreendente e um
tanto dúbia, as imagens que veremos no filme não parecem o ser. Freud é citado
explicitamente, como imagem e como texto, descontando a frase inicial, três vezes.
São citações de caráter positivo, mostrando-o como uma referência para compreender
o século XX e também como um dos homens que efetivamente contribuiu para o
século XX ter sido da maneira que foi. Com efeito, a psicanálise, enquanto
epistemologia, trouxe mudanças profundas na maneira de pensar o indivíduo e a
sociedade, e nesse sentido é parte indiscutível das novidades que o século XX
apresenta.
pedaço de frase de Freud e sua imagem sobreposta ao plano principal
Num filme que parece querer anunciar em seus primeiros quadros aquilo que norteará
a narrativa, nuvens aparecem e, entre elas, a imagem de jipes de guerra e de um
soldado iluminando o caminho. A guerra é, com efeito, um tema recorrente em Nós
que aqui estamos. A relação entre guerra e cinema foi explorada por Paulo Virilio.
Ele nos mostra o paralelismo que há entre o desenvolvimento das técnicas de combate
e das técnicas cinematográficas. Para Virilio, “A guerra não pode jamais ser separada
do espetáculo mágico, porque sua principal finalidade é justamente a produção deste
espetáculo: abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir-lhes,
220
nós que aqui estamos por vós esperamos
antes da morte, o pavor da morte (...). Não existe guerra, portanto, sem representação,
nem arma sofisticada sem mistificação psicológica, pois, além de instrumentos de
destruição, as armas são também instrumentos de percepção (...)”
241
. Nós que aqui
estamos por vós esperamos utiliza-se amplamente de imagens de guerra, explicitando
a proximidade entre as duas técnicas num duplo sentido conforme explorado por
Virilio: por um lado, onde existe a guerra, existe a produção de imagens sobre a
guerra – e por isso a profusão de seqüências de execuções, combates, trincheiras,
cidades ocupadas, bombas, explosões, etc., que Nós que aqui estamos encontra em
arquivos e utiliza; por outro lado, a imagem é parte da própria tecnologia militar, que
se utiliza amplamente dela para elaborar mapas, estratégias, localizar inimigos,
acertar alvos. “Quando nos lembramos de que foi trabalhando no aperfeiçoamento da
telemetria de artilharia, durante a Grande Guerra, que o professor de óptica Henri
Chrétien descobriu as bases da técnica do que, 36 anos mais tarde, seria o
‘cinemascope’, pode-se avaliar melhor a coerência fatal que sempre se estabeleceu
entre as funções do olho e as da arma”
242
. Num certo sentido, é a própria existência
da intimidade entre a câmera e a guerra que permite que um filme como Nós que aqui
estamos tenha sido feito, já que grande parte de sua interpretação do século XX
baseia-se nas imagens da guerra.
A seguir, surgem frases que procuram sugerir o sentido de muitas das imagens que
veremos: “pequenas histórias, grandes personagens”, “pequenos personagens, grandes
histórias”. Em Nós que aqui estamos encontraremos, em acordo com a frase que o
anuncia, narrativas centradas em homens e mulheres que se tornaram célebres, como
Hitler, Stalin, Nijinski, Fred Astaire, Garrincha, Josephine Baker, Coco Channel, Yuri
Gagarin, e em homem e mulheres comuns, a quem o realizador do filme dá uma
biografia inserindo-os em importantes acontecimentos históricos – são os grandes
personagens e os pequenos personagens anunciados na legenda. Estes homens e
mulheres comuns são construídos de modo a ressaltar a ordinariedade de suas vidas,
seu aspecto comum, o fato de sucumbirem aos fatos históricos mais representativos
do século XX (guerras, doenças, campos de concentração, protestos políticos), o fato
241
VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 24.
242
VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema, op. cit., p. 166.
221
nós que aqui estamos por vós esperamos
de trabalharem em profissões, da mesma forma, ilustrativas do mundo do século XX
(minas, fábricas, campos de batalhas, nos afazeres domésticos). São personagens
construídos, nesse sentido, como veremos mais detalhadamente, como figuras
eminentemente populares.
Em seguida, mais uma frase, que novamente procura dizer a que veio o filme:
“Memória/do breve Século XX”. A frase contextualiza as narrativas que veremos – o
século XX – e nos sugere que se trata de um filme sobre a memória. As nuvens
reforçam o aspecto de “memória” do filme, dando uma conotação pessoal e
sentimental para os fatos que se desenrolarão. O “breve” é, muito provavelmente,
uma citação a Hobsbawm, para quem o século XX começa com a Primeira Guerra e
termina com a queda do muro de Berlin.
Percebemos, em todo o decorrer do filme, que Nós que aqui estamos aciona alguns
tipos de memória que, citando Maurice Halbwachs, poderíamos chamar memória
histórica, memória autobiográfica e memória coletiva
243
. A memória histórica é uma
reconstrução erudita do passado, realizada por historiadores, como o citado Eric
Hobsbawm, e que organiza a representação de uma coletividade segundo parâmetros
que são, em grande medida, exteriores a essa coletividade. Halbwachs a considera
algo desprovida de sentido, na medida em que evoca antes fatos do que experiências
que tiveram efetivamente lugar num grupo: “Nomes próprios, datas, fórmulas que
resumem uma longa seqüência de detalhes, algumas vezes uma anedota ou uma
citação: é o epitáfio dos acontecimentos de outrora, tão curto, geral e pobre de sentido
como a maioria das inscrições que lemos sobre os túmulos. É que a história, com
efeito, assemelha-se a um cemitério onde o espaço é medido e onde é preciso, a cada
instante, achar lugar para novas sepulturas”
244
. A memória autobiográfica, por outro
lado, tem lugar no indivíduo, é sua história pessoal, seu passado e suas lembranças, e
estaria representada pelos “pequenos personagens” de que trata o filme e pelas suas
histórias privadas, das quais falaremos mais a frente. Ainda falando com Halbwachs,
no entanto, poderíamos dizer que, em Nós que aqui estamos por vós esperamos, essa
memória autobiográfica se reverte em memória coletiva, na medida em que os
243
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva e memória histórica. In: A memória coletiva. São Paulo:
Vértice, 1990.
244
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva e memória histórica. In: A memória coletiva. op. cit., p. 55.
222
nós que aqui estamos por vós esperamos
acontecimentos individuais estão aqui colocados como memória de um grupo, de uma
coletividade, país, região: o operário da Ford nos fala sobre os operários em geral, a
lanterninha solitária nos fala sobre o sentimento de todas as pessoas solitárias na
modernidade. Com efeito, segundo Maurice Halbwachs, a memória autobiográfica e a
memória coletiva, apesar de serem diferentes e de cada uma “seguir seu próprio
caminho”, se interpenetram frequentemente, já que a experiência do grupo muitas
vezes dá sentido aos fatos vividos individualmente
245
. Em Nós que aqui estamos por
vós esperamos essas duas memórias se interpenetram dando assim corporalidade à
chamada memória histórica. Enquanto esta se relaciona, como veremos, ao que é
erudito neste filme, a memória autobiográfica e a memória coletiva relacionam-se ao
aspecto popular. O popular e o erudito, no filme de Masagão, são ambos partes
essenciais da interpretação do século.
O século XX é delimitado e marcado pelas guerras, as mundiais e a Guerra Fria. Com
efeito, a guerra é uma constante de Nós que aqui estamos por vós esperamos. Logo
vemos mais uma imagem que evoca um tema que será recorrente durante o filme, a
morte: vemos a execução de dois homens que estão com as mãos amarradas e
ajoelhados de costas para seus algozes.
Uma cena violenta que é exibida em meio às nuvens e acompanhada pela música
suave e melancólica de Wim Mertens, o que talvez diminua algo do seu impacto, mas
que evoca uma tristeza profunda, e que nos introduz no tema da morte que será
retomado diversas vezes durante o filme. Com efeito, a seguir teremos um cemitério,
ainda num pequeno quadro redondo em meio às nuvens, que desta vez se abrirá para
tomar todo o plano e que encerrará, junto com a música, este primeiro capítulo do
filme que funciona na verdade como uma seqüência introdutória, antecipando
245
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva e memória histórica. In: A memória coletiva. op. cit., p. 53.
223
nós que aqui estamos por vós esperamos
assuntos e sensações que serão desenvolvidos posteriormente.
Voltando aos “homenageados” do início, e já os relacionando com os planos do
cemitério, podemos encontrar neste filme uma longa citação a Freud que jaz
sutilmente no interior das imagens que perpassam todo o filme, incluindo seu título:
trata-se do fato inevitável, relembrado a todo o momento, de que todos retornaremos
ao estado inanimado de onde viemos – ou seja, de que um dia todos morreremos.
Freud chamou as forças que nos impelem a retornar a um estado primitivo de pulsão
de morte
246
, em oposição à pulsão de vida, representada por Eros. A pulsão de morte
também é responsável, segundo Freud, por uma disposição agressiva do ser humano,
e constitui o maior empecilho à união dos homens enquanto civilização
247
. Na forma
das guerras que permearam e definiram o século XX, a agressão dos homens contra
seus semelhantes será uma imagem recorrente em Nós que aqui estamos por vós
esperamos, dominando praticamente todo o conteúdo mais imediatamente histórico
que veremos.
Além da questão da morte, duas frases de Freud podem ser lidas durante o filme, em
dois de seus capítulos. Uma delas está naquele que nos mostra “O Alfaiate”, um
homem que acredita poder pular da Torre Eiffel e sair voando graças a sua roupa
articulada. Ele, naturalmente, despenca para a morte diante do público e das câmeras
de cinema. Um casal de senhores em meio a uma multidão assiste a sua tentativa
fracassada de voar, e então percebemos que aquele casal na verdade acompanhava,
atonitamente, a dramática explosão do ônibus espacial Challenger, ocorrida muitos
anos depois do desastrado vôo do alfaiate.
Masagão evita, assim, que a imagem do alfaiate se resuma à visão patética de um
246
Cf. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. O mal radical em Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004,
p.130; e cf. F
REUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 2003, cap.V.
247
Cf. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p.81.
224
nós que aqui estamos por vós esperamos
homem pulando para a morte, e pode tematizar o fato de que estamos sempre
tentando, a partir da tecnologia disponível, superar nossos limites naturais e, muitas
vezes, fracassamos neste objetivo. Essa interpretação é reforçada pela sentença de
Freud que vem a seguir: “Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso
organismo corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma
estrutura passageira, com limitada capacidade de adaptação e absorção”
248
. O fato de
a natureza ter um poder tão superior ao nosso, e o fato de nossos corpos serem tão
frágeis diante dela são, para o criador da Psicanálise, duas das fontes de infelicidade
humana.
Trata-se de uma frase retirada de O mal-estar na civilização, livro no qual Freud
finalmente denomina a pulsão da qual ele vinha tratando desde sua obra Além do
princípio do prazer, e que já citamos aqui: a pulsão de morte. Em Além do princípio
do prazer, a partir da compulsão à repetição que é tão comum nas crianças, Freud
começa a sugerir que há uma força a nos compelir à inércia, a “restaurar um estado
anterior de coisas”
249
. Segundo o autor, “Se tomarmos como verdade que não conhece
exceção o fato de tudo o que vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez
inorgânico, seremos então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida é a
morte’”
250
. E, citando Schopenhauer: “a morte é o ‘verdadeiro resultado e, até esse
ponto, o propósito da vida’, ao passo que o instinto sexual é a corporificação da
vontade de viver”
251
.
Em O mal-estar na civilização, Freud procura mostrar que a pulsão de morte é um
obstáculo à sociedade humana, à civilização, à união dos homens, à convivência
social. Ele dirá que, por causa da pulsão de morte, há no homem uma inclinação
instintiva à agressão, e que “ela é o maior impedimento à civilização”
252
: “a
civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar
indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações
numa única grande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer,
248
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. op. cit., p. 37.
249
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. op. cit., p. 47.
250
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. op. cit., p. 49.
251
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. op. cit., p. 64.
252
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. op. cit., p. 81.
225
nós que aqui estamos por vós esperamos
não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de homens
devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as vantagens do
trabalho em comum, por si sós, não as manteria unidas. Mas o natural instinto
agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada
um, se opõe a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o
principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e
que com este divide o domínio do mundo”
253
.
Com efeito, em Nós que aqui estamos por vós esperamos quase todos os personagens
sucumbiram e retornaram ao inanimado, que é o lugar de onde o filme fala. Apenas
um ainda vive, uma sobrevivência, de resto, muito interessante: trata-se de um
combatente da chamada Guerra do Golfo
254
, um conflito bastante suis generis no qual
ninguém parecia estar lutando ou morrendo. Nós que aqui estamos por vós esperamos
sugere também a pulsão de morte como impedimento à civilização na medida em que
o que vemos, durante boa parte do filme, são imagens relacionadas ao horror da
guerra. A guerra, aqui, parece ser uma das manifestações de Tânatos em sua
disposição a destruir o projeto de Eros. Por isso, segundo penso, o filme, em suas
frases iniciais – O Historiador é o Rei, Freud a Rainha –, além de prestar homenagem
ao historiador, o faz igualmente em relação ao pai da psicanálise, não obstante o
aspecto irônico de tratá-lo como “rainha”. Trata-se de duas homenagens eruditas – à
História constituída como disciplina acadêmica e ao importante pensador que foi
Sigmund Freud. As citações eruditas são importantes, mas não obscurecem o papel
fundamental que desempenham os personagens populares, que são efetivamente os
homens e mulheres que vivem o século XX.
Estas duas homenagens, à Freud e ao historiador, estão relacionadas, da mesma
forma, à maneira peculiar de ver o século que será empreendida por Nós que aqui
estamos: uma visão que procura privilegiar, ao mesmo tempo, os aspectos mais
gerais, as grandes narrativas (guerras, manifestações, modos de produção), e também
aquilo que se refere mais estritamente a pequenas narrativas que tem lugar na
banalidade do cotidiano, na vida privada, naquilo que é mais individual e corriqueiro.
253
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. op. cit., p. 81.
254
Popularizada como guerra mas que se constituiu como uma resposta armada autorizada pela ONU à
invasão do Kwait, o que não a define tecnicamente como guerra.
226
nós que aqui estamos por vós esperamos
Temos a visão, portanto, do Rei, referindo-se àquilo que é macro e coletivo, e da
Rainha, que aborda um aspecto privado e pessoal. História e Psicanálise são
expressões de uma abordagem que procura ser a um só tempo social e individual.
Podemos voltar àquela distinção entre Estado e Nação que abordamos em Terra
Estrangeira e que está materializada no pai e na mãe do personagem Paco Eizaguirre.
Mais uma vez, a condição masculina e feminina faz referência a distintos aspectos da
organização simbólica da vida social: o Rei é aquele que fornece o aspecto mais
geral, público, “objetivo”, o contexto no qual os dramas se desenrolam; a Rainha
aparece como o que é privado, desordenado, individual, pessoal, familiar, os dramas
propriamente ditos. Se o Historiador, por exemplo, é a guerra, Freud é seu efeito no
corpo do indivíduo (choque de guerra), como vemos numa das seqüências do filme.
Trata-se não tanto de uma separação entre o que é macro e micro, masculino e
feminino, social e individual, mas de uma relação entre estes aspectos simbolizados
no Historiador e em Freud e que se imbricam para fornecer uma interpretação sobre o
século XX.
Pequenos e grandes personagens, pequenas e grandes histórias, a guerra e a morte que
espreita a todos, são os elementos principais deste filme sobre a memória do século
XX, reunidos e interpretados à luz da História de Hobsbawm e da Psicanálise. No
panorama apresentado, elementos populares, massificados e eruditos se sucederão
como elementos do século analisado. Ao caracterizar o século
XX como breve, o
realizador naturalmente coloca-se ao lado de Eric Hobsbawm e seu Era dos extremos
e, portanto, coloca-se num ponto de vista relacionado à interpretação histórica erudita
do século. E, com efeito, seu filme tem um ponto de partida erudito, e se dirige a um
espectador erudito, utilizando grandes pensadores e artistas como referência ao
mesmo tempo em que cria personagens populares como elemento de sensibilização do
espectador.
Isto pode ser visto logo na seqüência seguinte, que efetivamente abre o filme após
esta introdução temática. Trata-se de uma imagem de Nijinski, considerado um dos
maiores bailarinos do mundo. Junto com sua imagem, as palavras: “L’aprés midi d’un
faune”/ “Théâtre du Chatelêt”. Imagens do balé “L’aprés midi d’un faune” se seguem,
acompanhadas de uma “explicação”: “No dia seguinte.../ O balé já não era clássico”.
227
nós que aqui estamos por vós esperamos
Nijinski é considerado, efetivamente, o inaugurador do balé moderno. No entanto,
apenas os espectadores com alguma erudição saberão quem foi Nijinski, ou ainda,
que “L’aprés midi d’un faune” é um balé, ou o que este nome quer dizer na verdade
(não há tradução no filme). A “explicação” que vem em seguida pouco ajuda aqueles
que nunca ouviram falar de Nijinski (“No dia seguinte o balé já não era clássico”), e
parece ser dirigida, mais uma vez, aos espectadores com alguma erudição.
Naturalmente, para além da referência erudita, a frase marca o fim de uma época – a
clássica – e o começo de outra: a modernidade. Ao mesmo tempo, vemos imagens que
evocam o mundo urbano, industrial e moderno que surgia no século XX: máquinas,
carros, bondes, tudo numa velocidade acelerada, como a sugerir a rapidez dos novos
tempos.
São imagens retiradas do filme O homem da câmera, do russo Dziga Vertov, um dos
principais documentaristas da história do cinema, que tinha como um de seus
principais objetivos exacerbar as possibilidades técnicas e mecânicas do aparato
cinematográfico, num procedimento que pode ser visto como uma tentativa não
apenas de adequar o cinema à modernidade mas também de radicalizá-la em direção a
uma maior reflexividade. Este objetivo é explicitado no filme de Vertov – que
procura “libertar” o potencial da câmera enquanto olho privilegiado em relação aos
demais instrumentos que tornam visível o mundo moderno – e também em seus
manifestos e resoluções, nos quais encontramos sentenças empolgadas com a
modernidade como estas:
“Nós saudamos a fantástica regularidade dos movimentos. Carregados nas asas das
hipóteses, nosso olhar movido à hélice se perde no futuro (...). Viva a poesia da
máquina acionada e em movimento, a poesia dos guindastes, rodas e asas de aço, o
228
nós que aqui estamos por vós esperamos
grito de ferro dos movimentos, os ofuscantes trejeitos dos raios incandescentes”
255
.
“Nem um exame mais atento pode revelar filme ou pesquisa que traduzisse a
aspiração legítima de libertar a câmera reduzida a uma lamentável escravidão,
submetida que foi à imperfeição e à miopia do olho humano (...). Até hoje, nós
violentávamos a câmera forçando-a a copiar o trabalho do olho humano. Quanto
melhor a cópia, mais se ficava contente com a tomada de cena. Doravante, a câmera
estará liberta e nós a faremos funcionar na direção oposta, o mais possível distanciada
da cópia”
256
.
Pensando na influência de Vertov como documentarista em seu projeto de radicalizar
o potencial do olhar da câmera de cinema em direção àquilo que o olho humano não
pode ver, e pensando também sobre a reflexividade contida em O homem da câmera
filme no qual o próprio aparato cinematográfico nos é mostrado e discutido o tempo
todo – veremos que a citação a Vertov parece não ser acidental. As imagens do
cineasta russo sugerem a reflexividade do próprio filme de Masagão e seu potencial
em nos mostrar algo sobre o século XX que não poderíamos ver apenas com nossos
olhos “biológicos”. Em primeiro lugar, temos aqui uma citação de um cineasta que,
na tipologia de Bill Nichols, nos fala não apenas sobre o mundo histórico – o século
XX – mas sobre a própria representação artística do mundo histórico
257
, uma
representação confiante na técnica e na máquina. A citação a Vertov nos sugere um
desejo de inserção de Nós que aqui estamos por vós esperamos numa tradição de
cinema reflexivo da qual o cineasta russo é um dos principais expoentes. Ou seja,
podemos sugerir que o filme de Masagão não apenas deseja falar sobre o século XX,
mas falar sobre o que se fala sobre o século XX, e falar sobre o que se fala sobre esse
século também a partir de sua câmera de cinema, de seu kino eye. Para isso, a seu
modo, ele também confia na técnica e na máquina, mas dessa vez na técnica
historiográfica e na máquina de edição, uma vez que seu filme foi inteiramente
elaborado com imagens de arquivo e montado num programa de computador. Sua
255
VERTOV, Dziga. Variação do manifesto. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de
Janeiro: Graal, 2003, p. 251.
256
VERTOV, Dziga. Resolução do conselho dos três em 10-04-1923. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência
do cinema. op. cit., p. 253-254.
257
NICHOLS, Bill. Representing Reality. op. cit., p.56-57.
229
nós que aqui estamos por vós esperamos
profusão de imagens também constitui um balé moderno, cujas imagens dançam ao
som de Win Mertens. Em segundo lugar, podemos entender a câmera de Masagão
como uma câmera que também tem liberdade para ver aquilo que o olho humano não
vê, nos dando acesso, voyeristicamente, ao desenrolar da vida cotidiana de
personagens anônimos e populares do século XX que apenas as imagens e a montagem
de Nós que aqui estamos podem sugerir, no sentido de que não teríamos acesso a elas
a partir de nossa experiência individual, limitada que está no tempo e no espaço.
Sabemos que Vertov é sinônimo de vanguarda artística e de esquerda revolucionária
na Rússia do começo do século, o que nos encaminha, desde o começo do filme, para
um posicionamento político implícito, que irá se tornando mais claro conforme
formos avançando na análise. Marcelo Masagão irá operar o mecanismo de
sobreposição de imagens durante todo o filme, numa obra de diversas fontes coladas
umas às outras (à maneira de uma pesquisa histórica em arquivos de imagens
efetivamente). Vemos frases que sugerem o processo “civilizador” pelo qual passa o
mundo urbano e o processo de transformação deste mundo num sentido de
“modernidade”: “A cidade já não cheirava a cavalo”; “Pelo túnel, o metrô. Pelo fio
preto, a fala”. Vemos estruturas, telefones, peças de engrenagens, e os planos têm
uma textura metálica que evocam a experiência moderna. Trata-se também,
retomando Nijinski, não apenas de uma evocação ao mundo moderno, mas também à
arte moderna: “O balé já não era clássico”. E, vemos, no mesmo sentido, a imagem de
Picasso em meio ao turbilhão de maquinário e operários que passam diante de nossos
olhos: “Os quadros já eram Picasso”. Enquanto Picasso se mantém, aparece Freud:
“Os sonhos já eram interpretados”. Em seguida, a imagem de Lênin: “Na Rússia”. E
Einstein: “E=mc
2
”.
Desde o começo, portanto, é notável, a meu ver, o fato de o filme ser dirigido a um
público com alguma erudição. Se a face de Picasso é acompanhada de seu nome
230
nós que aqui estamos por vós esperamos
escrito na tela, as demais frases se omitem quanto à identidade dos homens evocados.
Nós que aqui estamos, a meu ver, dirige-se a um público com alguma erudição porque
fala ao espectador que conhece, por exemplo, a face de Freud, e o papel da
interpretação dos sonhos na psicanálise, ou que identifica a imagem de Lênin e sua
relação com a Revolução Russa do início do século.
No entanto, o aspecto massificado, a meu ver, está, da mesma forma, “colado” a essas
imagens eruditas, colocadas aqui à semelhança de uma arte pop, como “propaganda
iconográfica” da mercadoria que pretendem difundir: o cubismo, o socialismo, a
psicanálise e a relatividade. A imagem de Einstein é a mais pop delas – pois mais
disseminada, estampada em camisetas e outdoors de cursinhos pré-vestibulares.
Picasso é aquele cujo rosto talvez seja menos conhecido (Salvador Dali seria mais
reconhecível pelos seus longos e extravagantes bigodes), mas que, da mesma forma,
nos sugere uma massificação pelo fato de sua obra – erudita – ter se tornado tão
popular no mundo do consumo. De qualquer modo, trata-se de uma citação erudita,
mas tratada aqui de modo massificado, na medida em que a exposição dos rostos nos
aciona a impressão de sua popularização iconográfica. Talvez tenhamos aqui a idéia
de que, num século marcado, entre outras coisas, pela proliferação dos meios de
comunicação de massa, aquilo que é erudito, ainda que não perca a relevância de sua
erudição, também circula com a publicidade típica de um produto mercadológico.
Num filme segmentado em “capítulos” bem definidos, esta “parte” do filme encerra-
se com a foto de Nijinski acompanhada da data de seu nascimento e de sua morte.
Todos os “capítulos”, inclusive este que se passou, iniciam-se com a imagem de um
cemitério, de forma que Nós que aqui estamos evoca a morte constantemente,
inclusive no seu título que, como saberá o espectador que chegar ao final do filme, foi
retirado de uma inscrição no pórtico de entrada de um cemitério (o cemitério de
Paraibuna). Desta maneira, a imagem constante de cemitérios e, ao final, a frase tão
“convidativa” retirada de um deles, de alguma forma nos lembra que este será o nosso
destino, como foi o destino de todos os “personagens” que passaram por Nós que aqui
estamos por vós esperamos.
Se até o momento vimos alguns dos “grandes personagens” que povoam Nós que aqui
estamos por vós esperamos, a próxima seqüência será iniciada com um dos “pequenos
231
nós que aqui estamos por vós esperamos
personagens”: Alex Anderson. Os pequenos personagens são construções do
realizador, pequenas narrativas de ficção criadas para ajudar a construir o panorama
do século XX. Mas a estas construções é dado um interessante aspecto “documental”.
Embalados que estamos por Nijinski, Freud e Picasso, que sabemos terem
efetivamente existido, temos a sensação de que este Alex Anderson existiu da mesma
maneira. Grande parte da narrativa que Nós que aqui estamos está construindo está
baseada nestas pequenas figuras, pessoas comuns que participaram de eventos
importantes do século ou que sofreram suas conseqüências. São elas que dão
materialidade à História tal como ela é construída pelo filme. Há, portanto, uma
espécie de micro-História em Nós que aqui estamos, e, para o assunto que nos
interessa neste trabalho, podemos dizer que seus pequenos personagens são figuras
eminentemente populares, no sentido de que são comuns, pessoas simples, que não
tem nada de extraordinário: operários e operárias, donas de casa, soldados. Populares
discretos. A História de Nós que aqui estamos está em grande medida baseada nestas
figuras populares, e não apenas nos grandes personagens como Picasso, Freud,
Einstein e Lênin, como vimos, e nos outros homens e mulheres importantes do século
que surgirão no decorrer do filme.
Alex Anderson é operário na Ford em Detroit, e produz Fords T, carro que nunca
poderá comprar. Trabalha 12 horas por dia, inclusive sábado. Domingo, faz
piqueniques. Morre de gripe espanhola. Assim como ele, outros personagens
populares surgirão, todos, acredito, com uma biografia inventada pelo realizador, que
as inventa não baseada em fatos extraordinários, mas naquilo que é mais banal: ser
operário, fazer piquenique aos domingos. Uma biografia inventada, mas possível. E
que se relaciona também não apenas com aquilo que é banal, mas com o que pode
ilustrar o século, com o que lhe dá certa “tipificação”, no sentido de que ele se torna
exemplar de um tipo de trabalhador industrial do começo do século. Nós que aqui
estamos não procura descrever didaticamente o século XX. Mais uma vez, o
espectador privilegiado é aquele com alguma erudição, que conhece ao menos de
maneira mais geral os eventos mencionados, como as duas guerras mundiais, o entre-
guerras, e os demais conflitos que marcaram o século. Da mesma forma que no livro
de Eric Hobsbawm, é pressuposto um leitor/espectador razoavelmente versado em
232
nós que aqui estamos por vós esperamos
História, já que não se trata de recontar os fatos marcantes do século XX mas de
conferir um sentido mais geral a eles.
Como dissemos, além de Alex Anderson, diversos outros personagens populares são
colocados no filme no mesmo sentido que estamos comentando: ilustrar e apresentar
o século XX. Temos os Jones, um século de homens da mesma família que atenderam
aos diversos chamados do Tio Sam para defender o país da ameaça externa. Tom
Jones, o bisavô, morre na Primeira Guerra. Paul Jones, o avô, é visto divertindo-se
inocentemente com colegas em alguma praia européia por ocasião da Segunda
Guerra. Sua data de nascimento e morte indica que ele teve seu fim por lá mesmo, no
último ano do conflito. Em seguida, numa imagem chocante – a música delicada
inclusive pára para dar lugar ao horror – vemos uma perna decepada, acompanhada da
legenda que indica mais um integrante da família: Robert Jones, o pai. Além de
violenta, a imagem é irônica ao sugerir que aquela perna seja efetivamente Robert
Jones, como se a totalidade do seu ser se resumisse ao membro decepado. O ano da
morte mostra 1971, o que sugere que este integrante da família também morreu na
guerra, desta vez no Vietnã. De forma chocante, um soldado vietnamita lança ao
longe a perna, divertindo-se com o arremesso. O horror da perna decepada contrasta
com a imagem quase ascética que ilustra o destino do próximo membro da família,
Robert Jones Júnior, que esteve na chamada Guerra do Golfo e ainda vive (não há
data de sua morte). Como sabemos, as imagens da retaliação à invasão do Iraque no
Kwait que nos chegaram mantinham uma distância estética do conflito, evitando a
exibição de civis e soldados, e o que víamos nas TVs nos davam a impressão de que
naquele conflito ninguém estava lutando nem morrendo, principalmente norte-
americanos. O século da família Jones nos sugere, assim como ouvimos do
protagonista de Soldado Anônimo (Sam Mendes, 2005) ao avistar um veterano do
Vietnã, que cada guerra é diferente, toda guerra é igual.
Numa profusão de citações, uma em especial deste capítulo do filme, a meu ver,
sintetiza em grande medida o espírito de Nós que aqui estamos por vós esperamos:
“Em uma guerra não se matam milhares de pessoas. Mata-se alguém que adora
espaguete, outro que é gay, outro que tem uma namorada. Uma acumulação de
pequenas memórias...”. Aos personagens construídos em Nós que aqui estamos é dada
233
nós que aqui estamos por vós esperamos
uma biografia com certos detalhes pessoais de modo que os espectadores sintam-se
próximos daquelas pessoas e daquelas famílias, e tenham a sensação portanto de que
aquelas histórias de vida podem ser histórias de suas próprias famílias, que podem ser
histórias de qualquer família.
Um capítulo em especial trata particularmente dos personagens comuns e populares
construídos pelo filme. Num plano de um cemitério aparecem diversos nomes, de
homens e mulheres de diferentes nacionalidades, desta vez sem os sobrenomes, de
modo a conferir ainda mais proximidade e intimidade ao espectador: Martha, George,
João, Hermann, Antônio, Sabrina, Lev, e por fim Pablito, um diminutivo que vem
reforçar ainda mais o caráter íntimo destas pessoas e o sentimento de simpatia que
elas despertam. Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, com efeito, estes
populares são tratados de maneira quase sempre carinhosa e, com efeito, a imagem
seguinte, segundo penso, visa transmitir uma sensação de simpatia para muitos dos
espectadores, além de insinuar o viés “esquerdista” do filme: trabalhadores franceses
reivindicando a jornada de 8 horas. Percebemos imediatamente que são trabalhadores
em luta por seus direitos e, ainda que o telespectador não saiba francês, pode deduzir
as “8 horas”. Porém, a informação que vemos na tela nos fala dos bigodes dos
trabalhadores, e não de sua luta específica, o que pode remeter ao aspecto de memória
de Nós que aqui estamos por vós esperamos, já que a informação está centrada num
dado de ordem emocional e psicológica – a fisionomia daqueles muitos trabalhadores.
O mundo destas pessoas comuns é efetivamente o mundo do trabalho. Martha era
empacotadora, depois virou telefonista; Mary (um personagem terrivelmente solitário
de um quadro de Hopper) é lanterninha num cinema (apesar dela parecer mais uma
espectadora que inexplicavelmente se recusa a participar do espetáculo
cinematográfico); George trabalha construindo prédios em Nova Iorque,
permanecendo a centenas de metros de altura sem qualquer segurança e qualquer
medo; Lev era operário padrão na Rússia, mas acabou na Sibéria; Pablito é coveiro no
Chile; Hermann e Rainer trabalharam na construção do Muro de Berlin. Existem
também detalhes acerca da vida privada não profissional destes personagens: Lev
apaixonou-se por uma turista italiana, Pablito jogava dominó aos domingos. Mas a
informação principal é a ocupação por eles desempenhada – a exceção é o chinês
234
nós que aqui estamos por vós esperamos
Ling, que tem como principal informação o fato de ter executado professores de
matemática durante a Revolução Cultural chinesa, dado chocante para o pacato
mecânico de bicicletas que vemos na tela. Trata-se, naturalmente, de materializar e
esmiuçar os fatos mais relevantes do século a partir dessas figuras populares: a
Revolução Chinesa, por exemplo, contou com o apoio de cidadãos comuns, como
Ling, que, arrebatados por uma “ideologia” supostamente comunista, acabou
cometendo atrocidades que em princípio não combinam com sua figura comum. Além
disso, o fato de serem professores os mortos nos remetem ao caráter de expurgo
intelectual que é conferido à Revolução Cultural. Ling e os demais personagens deste
capítulo exemplificam bem o papel dado ao popular em Nós que aqui estamos por vós
esperamos: emocionar por sua banalidade e condensar aspectos relevantes do século.
Além da tematização do mundo do trabalho, a referência à Rússia, ao Chile, à
Alemanha e à China nos faz recordar o fato de que muitos desses trabalhadores
viviam num mundo de totalitarismo e perseguição política. Nesse sentido, podemos
entender estas imagens como uma crítica ao rumo que tomou o chamado socialismo
real, descambando para um regime de centralização do poder e perseguição política.
Como já sugerimos no início a partir da referência à Dziga Vertov, Nós que aqui
estamos por vós esperamos vai, com o acúmulo de imagens, posicionando-se
politicamente pela liberdade estética e política.
O mundo do trabalho aparecerá também nas imagens de Serra Pelada, de uma fábrica
de televisores no Japão, de uma montadora da Renault na Argentina, de uma mina de
carvão na Índia, e, finalmente, de trabalhadores desempregados sentados numa longa
calçada após a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929. Entre eles, um engenheiro,
que agora vende maçãs – segundo a legenda, “o engenheiro que virou maçã”, numa
provável alusão ao homem que virou suco de João Batista de Andrade e também à
própria cidade de Nova Iorque – o engenheiro que virou maçã como o engenheiro
desempregado devido ao colapso no mercado financeiro da “Big Apple”.
O fato de o mundo destes populares ser o mundo do trabalho sugere o lugar de
distância em relação a eles que ocupa o realizador do filme. Trata-se, como temos
dito, de um lugar erudito, a partir do qual Nós que aqui estamos tematiza o popular à
luz da História e da Psicanálise. Jean-Claude Bernardet nos dá a pista da relação entre
235
nós que aqui estamos por vós esperamos
a separação do realizador de seu objeto popular e o foco no mundo do trabalho. Em
Jardim Nova Bahia, o realizador Aloysio Raulino dá a câmera a um popular,
Deutrudes Carlos da Rocha: “Deutrudes pega na câmera e filma o quê? Dentro da
tradição do documentário sociológico, poderia se esperar que filmasse algo
relacionado com suas condições de vida e trabalho, algo que tivesse um caráter
reivindicatório ou denunciador. Mas não: filma a estação do Brás e a praia de Santos,
uma mendiga, umas pessoas e dois amigos na praia quase deserta. Ele filma para se
exercitar ou brincar com a câmera, filma alguma coisa que se refere antes ao lazer
que ao trabalho. Raulino não quer reduzir seu personagem proletário ao trabalho; de
sua vida fazem igualmente parte o lazer, as relações amorosas”
258
. Ao centralizar a
identificação dos personagens no trabalho, Nós que aqui estamos sugere, portanto,
sua separação em relação a estes personagens, na medida em que, seguindo a pista de
Bernardet, caso coubesse a eles mesmos lhes conferir uma caracterização, muito
provavelmente ela estaria relacionada a aspectos exteriores ao trabalho,
principalmente na medida em que este trabalho não confere status algum, como é o
caso de pedreiros, lanterninhas, operários não qualificados, mineiros, garimpeiros,
etc. Sem dúvida, Marcelo Masagão por vezes identifica lazeres, preferências, relações
familiares em seus personagens. Mas o que chama mais atenção, sem dúvida, é sua
ocupação enquanto trabalhadores ou – já que a guerra é uma constante neste filme –
como combatentes. A caracterização do popular, aqui, está intimamente relacionada
ao mundo do trabalho ou ao campo de batalha. De qualquer maneira, é uma
caracterização que nos remete à luta pela sobrevivência, ao sofrimento, às
dificuldades, e não ao lazer e ao prazer que, como veremos, tende a estar associado ao
elemento erudito.
O capítulo seguinte é mais uma vez destinado a nos mostrar a guerra. Temos Hans e
Anna, num casamento improvisado às vésperas do rapaz partir para o front. Hans
atira bombas enquanto Anna as fabrica. O aspecto desolador da guerra é exacerbado,
com casas explodindo e refugiados partindo. Num filme no qual a música influencia
em grande medida o clima belo e triste das imagens, temos agora sons “realistas” de
bombas, de tiros, sons da guerra sendo reproduzidos para conferir impacto ao que
258
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. op. cit., p. 129.
236
nós que aqui estamos por vós esperamos
vemos. Soldados desolados e feridos. Um navio afunda e as pessoas a bordo caem na
água. A guerra, enfim, é o horror. Aviões jogando bombas, em seguida, um trecho de
Um cão andaluz, de Luiz Buñuel, no qual uma figura andrógina cotuca uma mão
decepada sob o olhar curioso de uma multidão. Trata-se, a meu ver, de uma
homenagem a este importante cineasta e também uma tematização do absurdo, do
surreal, do que está além da compreensão, como é a guerra e como o foram os ataques
a Hiroshima e Nagazaki. A seqüência de Buñuel passa novamente, desta vez de trás
para frente, e as bombas atiradas, da mesma forma, sobem de volta ao avião, talvez
para nos fazer voltar no filme e relembrar outro membro decepado: aquele que
representava o Jones que foi ao Vietnã. Vemos o Enola Gay, o cogumelo nuclear e a
imagem de uma família japonesa: mãe, pai, dois filhinhos e suas data de nascimento e
morte (morreram provavelmente durante o ataque nuclear), com os mesmos detalhes
banais, privados e sentimentais que temos por ocasião dos demais personagens
criados por Masagão: ela “fazia bolinhos de arroz como ninguém”, e ele era “um
exímio carteiro”.
As imagens dos personagens populares, neste capítulo Hans e Anna, os soldados
feridos e desolados e a família japonesa, são sucedidas de uma frase de Malcom
McLuhan: “Os homens criam as ferramentas, as ferramentas recriam os homens”.
O elemento erudito, neste filme, pauta interpretações de mundo, maneiras de olhar, e
estabelece interlocução entre as imagens e o espectador. O aspecto popular ilustra, dá
materialidade à História, e tem um forte caráter sentimental, procurando despertar
simpatia, afetuosidade, compaixão. Existe uma banalidade agradável nestes homens e
mulheres comuns, em nada extraordinários, e nos sentimos próximos deles. É um
sentimento parecido com o que sentimos por André de O homem que copiava, alguém
que, pelo menos durante boa parte do filme, nos parece em tudo banal, comum,
simples, simpático. Há algo de comovente e belo neste tipo de personagem, que atrai
237
nós que aqui estamos por vós esperamos
e aproxima o espectador, como o era o André de O homem que copiava. Personagens
cujas vidas, nas palavras de Michel Foucault, foram “obscuras; que nada as tivesse
predisposto a qualquer notoriedade; que não tenham sido dotadas de nenhuma das
grandezas como tal estabelecidas e reconhecidas – as do nascimento, da fortuna, da
santidade, do heroísmo ou do gênio; que pertencessem àqueles milhões de existências
que estão destinadas a não deixar rastro”
259
. O elemento erudito neste filme nos
instrui sobre o século, confere importância ao que é dito e mostrado, acrescenta
informações relevantes, procura nos fazer refletir sobre as imagens que vemos,
cumpre uma função, enfim, que é o que se espera da “erudição”, relacionando-se ao
saber institucionalizado, culto, ao pensamento que tem lugar na academia, nos livros,
nas artes, nos grandes pensadores e cientistas do século. Mais do que emocionar –
função aqui do popular – o elemento erudito confere conhecimento, reflexão.
A Solidão e a Guerra é a legenda que dá título ao próximo capítulo do filme, em mais
uma tematização das batalhas que tiveram lugar no século XX. Da mesma forma que
no capítulo anterior, o aspecto desolador da guerra é ressaltado e, mais uma vez,
como se passa no filme inteiro, este aspecto se materializa na vida de personagens
comuns, de populares que, a partir de suas vidas privadas e profissionais, procuram
fazer emergir as angústias e as dores que dão o clima melancólico ao século. Neste
capítulo temos a bela e triste correspondência de um soldado em sua tediosa espera
pela batalha, um homem que treme e que a legenda do filme diz estar desta
desoladora maneira por causa do choque de guerra, e a impressionante carta de um
jovem soldado japonês kamikaze que se despede de seus pais com o seguinte ditado
japonês: “A morte é mais leve do que uma pluma. A responsabilidade de viver é tão
pesada quanto uma montanha”. Em mais um gesto extremo, vemos um monge budista
que ateia fogo a seu próprio corpo em protesto contra a guerra do Vietnã, e que se
mantém sentado imóvel enquanto o fogo queima seu corpo e o reduz a cinzas. E
vemos as famosas imagens do chinês que tentou deter o avanço dos tanques na Praça
da Paz Celestial, e que a legenda nos informa ser professor de literatura e estudioso
de Baudelaire (professor como aqueles que Ling havia executado na Revolução
Cultural Chinesa). A estratégia de nos informar sobre pequenos detalhes da vida dos
259
FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. Lisboa: Vega/Passagens, 1992, p. 97.
238
nós que aqui estamos por vós esperamos
populares – como o fato do chinês ser “estudioso de Baudelaire” – nos aproxima
destes personagens “reais” ou “fictícios”, cria uma sensação de intimidade entre eles
e o espectador, o que aumenta a carga emotiva de cada um deles. No caso do
professor de literatura, a proximidade é ainda maior: considerando que, como estamos
tentando mostrar, o filme tem como espectador privilegiado aquele que tem certa
erudição, o fato de o chinês ter a profissão que tem e, mais importante, ser estudioso
de Baudelaire e ser capaz de um ato heróico, faz com que ele se torne uma figura
ainda mais simpática para do espectador. Sempre é possível considerarmos que, para
um possível espectador conservador ou belicista, as imagens de conflitos e de
manifestações pacifistas podem ser vistas de maneira diferente. Mas penso que é
possível dizermos que, em Nós que aqui estamos por vós esperamos, existe uma
postura anti-militarista que se apóia não apenas nas imagens de horror da guerra, mas
nas histórias, construídas de maneira comovente, dos personagens comuns que
sofreram a experiência da batalha ou que contra ela lutaram.
Após o professor, temos uma mudança completa em relação ao tipo de personagem
que víamos até agora, não apenas por tratar-se de alguém que não tem uma inserção
tão clara na história do século XX conforme vem sendo mostrada mas também pela
forma através da qual ele é apresentado. Trata-se da imagem de um índio, muito
provavelmente brasileiro. Ou melhor, três planos nos quais vemos imagens de índios
brasileiros. O interessante aqui é que estes índios não são nomeados, não são
classificados, não são identificados sequer como índios. O primeiro plano diz “O
Chapéu”; o segundo, “A Cidade e a TV”; e o terceiro, “A Polícia”. Percebemos a
ausência de qualquer legenda mencionando a palavra índio em qualquer um dos três
planos.
Estes homens e mulheres não podem sequer pertencer ao espectro dos personagens
populares que estamos identificando, já que para a construção destas pessoas a
239
nós que aqui estamos por vós esperamos
legenda lhes caracterizando é fundamental. Sem o escrito informando que fulano
trabalhava 12 horas por dia, que cicrana fazia bolinhos de arroz ou que beltrana
adorava o Elvis, não teríamos estas construções populares tão claramente
estabelecidas. Ao índio, falta a legenda. Ao índio falta um nome, uma identidade,
uma atividade. Ele fica, na legenda, ofuscado até em relação a um chapéu. Mas
apenas na legenda. A meu ver, Nós que aqui estamos por vós esperamos coloca em
questão justamente essa figura de certa forma à margem da sociedade, considerado
semi-incapaz, semi-ininputável, semi-cidadão, tutelado, tendo portanto um status
social semelhante ao de uma criança. Uma não-existência, de certa forma, no século
em questão. O índio é uma reminiscência de um passado que parece nada ter a ver
com a modernidade. Por isso, considero que, se a legenda explicita a não existência
do índio, as imagens, ao contrário, são de uma força extraordinária, de maneira a não
esquecermos que, apesar de inominado, ele existe, mas existe sem lugar em nossa
“civilização”, sendo tratado como um elemento à margem das importantes narrativas
históricas que têm a cultura do mundo ocidental e central como o palco dos
acontecimentos que valem a pena serem mencionados. A ausência da legenda
identificando o índio pode ser vista como uma menção à sua ausência na História
oficial do século XX, enquanto a persistência de sua imagem nos lembra que esta
ausência é também uma construção histórica e social, dada justamente pela repressão
física (a polícia) e cultural (a cidade e a
TV) que o índio sofreu e vem sofrendo.
Os grandes personagens históricos, com os quais a identificação do espectador tende
a ser evitada no filme em favor dos personagens populares, voltarão a aparecer.
Hitler, Stalin, Mao, Pinochet, diversos ditadores, do Ocidente e do Oriente, terão seus
rostos expostos e deformados com movimentos retorcidos e acompanhados de uma
trilha sonora grave.
E aqui o conflito entre a análise histórica e uma análise mais “psicologizante” pode
240
nós que aqui estamos por vós esperamos
ser vislumbrado. Pois até agora tivemos o predomínio de uma análise histórica sobre
o século, inclusive inspirada em grande medida em Eric Hobsbawm: a caracterização
do século como breve, a importância do mundo do trabalho, o cotidiano das massas
como algo historicamente relevante, e a importância das guerras para se entender e
até definir o período. Mas, com estes ditadores, vemos uma maneira diferente de se
interpretar os acontecimentos, não baseada na História, mas no que se passava em
suas mentes. Não é por acaso que vemos apenas seus rostos ocupando toda a tela,
como se a câmera quisesse penetrar nos seus pensamentos, da mesma forma que não é
por acaso que os vemos distorcidos, como se nas suas cabeças seus pensamentos
também fossem, da mesma forma, desequilibradas. Diversas vezes a palavra
“paranóia” aparece escrita na tela, dando a entender que os ditadores em questão
padeciam deste problema. Deste modo, existe uma sugestão de que certo desvio
psicológico poderia ser responsável pelas atrocidades que eles cometeram. Trata-se
de uma explicação psicologizante para fatos históricos que, em Nós que aqui estamos
por vós esperamos, é generalizada para todos os ditadores em questão. Todos são
iguais em suas psicopatologias, como se, na essência, não houvesse diferença entre as
ditaduras e os ditadores, e como se lhes faltasse certa humanidade. É por isso que
todos eles aparecem meio misturados, como se seus rostos se imiscuíssem uns aos
outros, todos deformados. Trata-se de uma generalização que, a meu ver, desvia-se do
espírito de historicidade que o filme perseguia, na medida em que busca a explicação
das ditaduras fora das relações entre os homens, fora dos acontecimentos políticos,
econômicos e sociais do século, uma explicação psicologizante que, a meu ver, não
consegue esclarecer o origem e a diferença entre os regimes ditatoriais ou totalitários
que ocorreram por toda a parte no mundo. Sempre é possível desconfiar que homens
como Hitler e Stalin não eram completamente “normais”, mas isso não ajuda a tornar
compreensível o fenômeno do nazismo ou do stalinismo, e nem compreender os
critérios que definiriam tal “normalidade”. Eric Hobsbawm, por exemplo, procura ser
exaustivo em enumerar os motivos sociais, culturais, econômicos e políticos que
tornaram fenômenos com o nazismo ou o stalinismo possíveis
260
. Da mesma forma,
considerar estes grandes personagens históricos como carecendo da humanidade que
260
CF. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 29-60.
241
nós que aqui estamos por vós esperamos
acompanha os personagens populares, como se fossem efetivamente menos
“humanos” do que os homens simples apresentados, também não ajuda a entender as
atrocidades praticadas por ditadores ou governantes. Parece horrível considerar
homens como Hitler e Stalin como seres humanos como outros quaisquer, já que isso
significa admitir que homens podem se comportar de forma monstruosa, mas é
efetivamente isso o que eles são, ao contrário do que nos dá a entender Nós que aqui
estamos por vós esperamos. É bastante razoável imaginar que Hitler, por exemplo, ao
mesmo tempo em que mandou exterminar milhões, gostava de cachorros e tratava
civilizadamente suas secretárias, como vemos no filme A queda (Olivier
Hirschbiegel, 2004).
A cultura erudita volta a aparecer na cerimônia de queima de livros de autores
degenerados promovida pelo nazismo. Enquanto o fogo queima toneladas de papel,
trechos de livros de Oscar Wilde, Franz Kafka, Freud e Karl Kraus aparecem na tela.
Naturalmente, a seqüência é construída para que sintamos repulsa e horror mediante
manifestação tão medievalesca de ignorância intelectual. Em consonância com a
homenagem que intelectuais e artistas recebem em Nós que aqui estamos, destruir a
cultura erudita é um ato tratado aqui como abominável. Com efeito, a pequena
história do membro da juventude hitlerista que vem criar coelhos no Brasil é uma das
poucas dos pequenos personagens construída de modo a criar antipatia: “morreu
obsessivo e brigado com os vizinhos”. Mais uma vez podemos perceber que o
espectador a quem parece se dirigir Nós que aqui estamos é um espectador erudito, no
sentido de alguém letrado, cultivado, que se sentirá consternado mediante a imagem
da destruição da cultura, consternação que os trechos de livros de grandes escritores e
pensadores vêm reforçar, na medida em que nos dão uma pequena idéia da
importância do conhecimento que está sendo queimado. Da mesma forma, podemos
perceber aqui o popular desempenhando um papel de emocionar em sua ligação com
os fatos mais concretos, banais e imediatos da vida contemporânea: o caráter
antipático do jovem hitlerista advém do fato dele não ter conseguido estabelecer as
relações mais elementares com as pessoas com quem tinha de conviver – seus
vizinhos.
Depois de toda esta seqüência de imagens sobre conflitos diversos que marcaram o
242
nós que aqui estamos por vós esperamos
século XX, e que adquirem seu aspecto trágico e comovente a partir das narrativas dos
pequenos personagens populares, temos capítulos mais amenos e muito mais lúdicos.
O primeiro tem esse caráter devido principalmente à montagem empreendida: vemos
Fred Astaire e Mané Garrincha com imagens intercaladas, de modo a transmitir uma
sensação de equivalência das artes e habilidades de que eles eram capazes com suas
pernas. Trata-se de uma seqüência empolgante, entre outras coisas, pela música
eufórica, “abrasileirada” por André Abujamra, e pelo aspecto criativo estabelecido
pela montagem. É, efetivamente, um capítulo que se distingue dos demais, não apenas
pela alegria transmitida mas também porque temos aqui uma montagem lúdica e
brincalhona, que cria uma idéia – a da equivalência entre Astaire e Garrincha –, sem
ter de se utilizar da legenda para isso. Efetivamente, podemos pensar que Nós que
aqui estamos por vós esperamos é um filme que depende em grande parte dos escritos
que se sucedem na tela. As imagens ganham força com as legendas, e as legendas
fazem muitas vezes com que as imagens emocionem. Penso que muitos dos sentidos
que os espectadores estabelecem na sua relação com este filme, e que nós estamos
comentando aqui, não existiriam sem as legendas, que aqui funcionam como uma
espécie de narração, conduzindo o espectador através das imagens. As imagens, neste
filme, não falam por si só – elas precisam ser “explicadas”. Com Astaire e Garrincha,
ao contrário, as palavras são totalmente indispensáveis. O espectador provavelmente
sabe quem são estes personagens. Mas, mesmo que não souber, consegue perceber a
idéia que a montagem propõe: são ambos gênios com suas pernas, mestres
aparentados de artes diferentes, iguais no talento, iguais na alegria e criatividade.
Mané Garrincha é, naturalmente, um homem popular. Mas aqui, ao ter sua arte
comparada e equivalente à arte de um grande dançarino, sua habilidade é elevada a
uma condição superior. O filme parece dizer que sua arte vai além do futebol. Este
homem popular é efetivamente um artista, no sentido que Fred Astaire também o é.
Ou ainda, podemos pensar que o filme nos diz que, pela beleza dos lances
promovidos por certos jogadores, ao futebol pode ser conferido o status de arte. Se
for esta a idéia que Nós que aqui estamos nos transmite, estamos muito próximos de
uma assertiva específica do historiador Eric Hobsbawm. Tão próximos que
estaríamos praticamente vendo uma tentativa de tradução iconográfica do bem
243
nós que aqui estamos por vós esperamos
humorado comentário do historiador segundo o qual não se poderia negar ao futebol
brasileiro dos anos 70 a condição de arte
261
. Sabemos, pela leitura de Era dos
extremos, que o historiador está presente durante todo o filme, assim como Antonio
Candido está em A marvada carne
262
. O artista popular aparecerá em um momento
posterior do filme, que mais tarde comentaremos. O importante aqui é comentar que
esta figura popular, como o era Mané Garrincha, precisa ser comparada a um
dançarino para ter seu status de artista explicitado. Se víssemos apenas as imagens
dos dribles de Garrincha provavelmente não teríamos o caráter de arte de seus dribles
tão exacerbado. Poderíamos, contemplando seu futebol, pensar que se trata de um
“artista da bola”. Mas o que Nós que aqui estamos faz é ir além deste clichê:
Garrincha é um artista e ponto final, assim como Astaire é um artista, e não um
“artista da dança”, assim como Picasso é um artista, e não um “artista da pintura”,
afirmações que naturalmente soariam redundantes.
O próximo capítulo, também lúdico e alegre, apresenta imagens de Viagem à lua de
Méliès, ficção científica dos idos do cinema, para contextualizar a dupla viagem do
guru do LSD Timothy Leary – através das drogas e através da morte. Na lua, Timothy
se junta a Che Guevara, Martin Luther King, John Lennon e Gandhi. Surpreendente
seleção esta de personalidades, que deixa entrever uma simpatia do realizador não
apenas pelos homens que já estavam na lua mas também por Timothy Leary, que
passa a fazer parte do seleto grupo de personalidades “revolucionárias” do século.
Mais uma vez, Nós que aqui estamos por vós esperamos parece estar tomando uma
posição que poderíamos considerar política. Tivemos os ditadores sendo tratados com
doentes mentais, independente de serem de direita ou esquerda, e usuários e drogas,
revolucionários e pacifistas sendo tratados com muita simpatia por Masagão.
Enquanto o filme se desenrola, associamos o discurso do narrador do filme a um
discurso esquerdista e anti-totalitário, de modo a criticar os rumos do socialismo real
e a enaltecer os homens que lutaram pela liberdade, seja ela uma liberdade polícia ou
de comportamento. Para isso, Masagão elabora um capítulo lúdico e bem-humorado,
uma pequena viagem do cineasta, que logo voltará a pôr os pés no chão – ou melhor,
261
“(...) quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição
de arte?”. H
OBSBAWM, Eric. Era dos extremos. op. cit., p. 197.
262
Conforme discutido no capítulo “Amélia”.
244
nós que aqui estamos por vós esperamos
no cemitério – para, desta vez, prestar uma homenagem explícita às mulheres.
No geral mulheres ousadas, que usaram roupas mais curtas do que deveriam,
queimaram sutiêns, inventaram danças exóticas, lutaram pelo direito a voto,
escreveram poemas, entraram no mercado de trabalho, defenderam o direito à
anticoncepção. O filme tem simpatia por todas estas mulheres, famosas ou anônimas,
que lutaram para transformar suas condições de vida e que procuraram emancipar-se
do mundo dos homens. É possível dizer que Nós que aqui estamos por vós esperamos
tem, na verdade, certa simpatia por muito do que fez avançar o século no sentido dos
costumes, dos direitos, das liberdades: artistas modernos, psicanálise, líderes
revolucionários como Che, King e Gandhi, mulheres emancipadas, e um guru das
drogas. E tem uma antipatia profunda pela guerra e pela destruição causada por ela.
Essas mulheres, no entanto, já não possuem aquele sentido de ordinariedade que
fizeram dos outros personagens pessoas populares. Elas são, segundo Nós que aqui
estamos, extraordinárias. Muitas são mulheres comuns, sem fama ou fortuna, mas que
estão no filme porque saíram do seu marasmo, porque tentaram mudar suas vidas e
porque lutaram por outras mulheres. Não estão aqui porque faziam maravilhosos
bolinhos de arroz, porque se casaram às vésperas da segunda guerra ou porque
adoravam o Elvis – condições que as tornariam muito mais populares e banais –, mas
porque adotaram costumes masculinos (fumar cigarros), ocuparam postos de
trabalhos masculinos (durante a Primeira e Segunda Guerra), usaram roupas ousadas,
foram artistas provocativas como Josephine Baker ou Coco Channel, lutaram pelo
controle de natalidade. Se o mundo do trabalho é mundo do popular, o mundo dos
costumes, das artes, das invenções é o mundo do extraordinário. O capítulo sobre as
mulheres reforça, a meu ver, o que havíamos falado anteriormente sobre o popular,
desta vez pela oposição: o povo em Nós que aqui estamos está principalmente na
labuta e na guerra e, nesse sentido, na mais estreita e comovente banalidade.
A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina é o título que anuncia o próximo capítulo.
Elementos fundamentais neste século da modernidade, anunciando uma nova maneira
de viver, na qual aqueles que podem são cercados pelo conforto dos eletrodomésticos
e dos analgésicos. Um século no qual surgem os bens de consumo de massa e a
própria idéia da “massa” ganha corpo. A eletricidade faz maravilhas como tornar
245
nós que aqui estamos por vós esperamos
possível a iluminação da Torre Eiffel inteira, mas também executa um condenado a
morte nos Estados Unidos. Ela maravilha Yuri Gagarin pai, cujo filho, Yuri Gagarin
astronauta, vai ao espaço em 1961. Entre duas gerações, uma mudança radical na
tecnologia criada pelo homem, e portanto em seu modo de vida. O pai, um camponês
russo que conhece a luz elétrica depois de adulto. O filho torna-se o primeiro homem
a ir para o espaço. Naturalmente, aquela figura de Yuri Gararin pai é, muito
provavelmente, pura ficção. Mas o que Nós que aqui estamos está ilustrando é essa
importante passagem, que se deu no século XX, da vida no campo para a vida na
cidade, fato muito ressaltado por Eric Hobsbawm
263
. O rádio, da mesma forma,
transforma o modo de viver dos homens como um importante veículo de comunicação
de massa, um lazer ao mesmo tempo de classe média e operário. Aqui o rádio reúne a
família a sua volta e, portanto, de certa forma, cria a “massa” que é objeto desta
comunicação tão importante no século XX
264
. O rádio, reunindo pequenas hordas de
soldados em diversos campos de batalha, dá boas notícias a jovens soldados norte-
americanos de um batalhão, e desempenha um papel positivo nesse sentido, como
veículo de transmissão da felicidade de um grupo de combatentes. Bill já pode voltar
para a América, onde cria o McDonald’s, elevando brutalmente o padrão de consumo
de sua família: ele compra um carro, a casa própria, a televisão e dezessete
eletrodomésticos. Seu vício inocente, a aspirina, transforma-o no modelo de cidadão
norte-americano. Bill é como os EUA gostariam de ser. Pode ser considerado o
263
“A mudança social mais impressionante e de mais longo alcance da segunda metade do século, e
que nos isola para sempre do mundo do passado, é a morte do campesinato”. H
OBSBAWM, Eric. Era
dos extremos. op. cit., p. 284.
264
Eric Hobsbawm não se cansa de descrever a importância do rádio após a Primeira Guerra: “As
grandes concentrações de aparelhos de rádio se encontrava, na véspera da Segunda Guerra Mundial,
nos EUA, Escandinávia , Nova Zelândia e Grã-Bretanha. Contudo, nesses países, ele avançou em
ritmo espetacular, e mesmo os pobres podiam comprá-lo (...). Talvez não surpreenda o fato de que a
audiência de rádio duplicou nos anos da Grande Depressão, quando sua taxa de crescimento foi mais
rápida do que antes ou depois. Pois o rádio transformava a vida dos pobres, e sobretudo das mulheres
pobres presas ao lar, como nada fizera antes. Trazia o mundo à sua sala. Daí em diante, os mais
solitários não precisavam mais ficar inteiramente sós. E toda a gama do que podia ser dito, cantado,
tocado ou de outro modo expresso em som estava agora ao alcance deles. (...) Ao contrário do
cinema, ou mesmo da nova imprensa de massa, o rádio não transformou de nenhum modo profundo a
maneira de perceber a realidade (...). Era simplesmente um veículo, não uma mensagem. Mas sua
capacidade de falar simultaneamente a incontáveis milhões, cada um deles sentindo-se abordado
como indivíduo, transformava-o numa ferramenta inconcebivelmente poderosa de informação de
massa, como governantes e vendedores logo perceberam. (o rádio), (...) embora essencialmente
centrado no indivíduo e na família, criou sua própria esfera pública. Pela primeira vez na história
pessoas desconhecidas que se encontravam provavelmente sabiam o que cada uma tinha ouvido (...)
na noite anterior”. H
OBSBAWM, Eric. Era dos extremos. op. cit., p. 195.
246
nós que aqui estamos por vós esperamos
personagem popular daquele país: um homem em tudo massificado: símbolo de uma
rede de fast food, apto a comprar bens de consumos de produção em massa
265
. Nos
EUA, segundo nos sugere o filme, o homem popular e o homem inserido na cultura de
massas são a mesma pessoa.
A televisão continuará a aparecer, como parte fundamental que é deste século XX. E
neste momento podemos perceber o quanto Nós que aqui estamos é hábil em criar
uma “realidade” a partir de palavras e imagens que faz combinar, mas cuja
combinação é algo, na verdade, completamente inventado pelo espírito do realizador.
Nos divertimos em imaginar que aquele senhor é pai de Yuri Gagarin, que o homem
que criou o McDonald´s era efetivamente aquele soldado sorridente, que aquele casal
dançando é Hans e Anna. Faz parte do aspecto lúdico do filme acreditar que todas
aquelas pessoas são efetivamente os personagens que Marcelo Masagão construiu
para eles, ainda que isso dure apenas o tempo do encantamento da projeção do filme.
Porém, com a televisão, a mão de realizador se revela não apenas lúdica mas também
pesada na construção dos personagens. É de uma agradável melancolia imaginar que
aquela senhora japonesa fazia excelentes bolinhos. Mas é sarcástico e cruel dizer que
Joselina da Silva, uma mulher que ficou conhecida no Brasil pelo imenso sobrepeso e
pelas tentativas de eliminá-lo através de intervenções hospitalares, assistia muita TV.
265
“O modelo de produção em massa de Henry Ford espalhou-se para indústrias do outro lado dos
oceanos, enquanto nos EUA o princípio fordista ampliava-se para novos tipos de produção, da
construção de habitações à chamada junk food (o McDonald’s foi uma história de sucesso do pós-
guerra)”. H
OBSBAWM, Eric. A era dos extremos. op. cit., p. 259.
247
nós que aqui estamos por vós esperamos
A relação entre ver TV e engordar é imediata e um tanto maldosa. E aí podemos
perceber os problemas éticos que podem ser colocados a partir do uso que Masagão
faz das imagens quando as combina com as legendas, propondo um sentido específico
para aquelas. Nesse momento sarcástico e um tanto rude, é possível que o espectador,
talvez agredido, perceba que efetivamente não dispomos de nenhum elemento para
dizer se Joselina realmente não perdia uma sessão da tarde, ou se se trata apenas de
um comentário maldoso do diretor. O que queremos dizer é que uma junção que nos
parecia inocente enquanto se tratava de populares anônimos, cujas vidas não podemos
ter acesso, revela-se potencialmente antiética – e efetivamente antiética no caso de
Joselina – quando o espectador brasileiro reconhece uma mulher que esteve na mídia
e a quem foi atribuída uma causa para o sobrepeso que ela, já falecida, não pode
contestar. Nesse momento podemos recordar que os outros populares mostrados são
efetivamente pessoas, com uma história pessoal a qual não podemos ter acesso, e que
talvez não se sentissem felizes com a história que, pela legenda, foi inventada para
eles. O chinês Ling, que consertava bicicletas, pode não ter tido nada a ver com as
execuções na Revolução Cultural chinesa e provavelmente o personagem inventado
para ele pode ser ofensivo a sua memória. Como não o conhecemos, nos esquecemos
disso. Com Joselina, que o espectador brasileiro conhece, esse aspecto de ética
duvidosa tende a aflorar.
De qualquer forma, é interessante notar que em Nós que aqui estamos o popular só
existe justamente por causa das legendas do realizador. Masagão procura nos
transmitir a sensação de que aquele popular foi pego diretamente da realidade da
história do século XX, do âmago dos acontecimentos mais importantes que o mundo
viveu, que ele é o representante do século. Mas, ao mesmo tempo, a construção de
sentido desse popular passa claramente pela legenda proposta pelo realizador – no
limite, o popular só existe por causa do sentido dado pelas legendas.
Estamos nos aproximando do final de Nós que aqui estamos por vós esperamos.
Depois de muita guerra e de muitos personagens populares, no sentido da banalidade
e da convencionalidade, temos um pequeno capítulo dedicado à arte e outro dedicado
à fé, o último do filme.
O capítulo da arte se chama “4 Domingos”. Vemos quatro artistas: Marcel Duchamp
248
nós que aqui estamos por vós esperamos
jogando xadrez com uma modelo nua, talvez numa espécie de instalação ou
happening; um quadro de Munch; um de Hopper e uma obra do artista brasileiro José
Leonilson, um travesseiro cor de rosa delicadamente bordado e assinado “ninguém”.
As imagens, no entanto, em nada nos explicam ou sugerem o porquê deste capítulo
fazer referência ao domingo, ou o porquê da relação entre os artistas e os domingos
(quatro artistas = quatro domingos). O domingo é um dia do não-trabalho, do lazer,
do piquenique de Alex Anderson, e talvez da contemplação da arte, tal como vemos
em Nós que aqui estamos por vós esperamos. Dada a relação que temos visto dos
personagens populares com o mundo do trabalho, aqui podemos imaginar o inverso –
o universo da arte, ao contrário do universo dos populares, é aquele do não-trabalho,
do lazer, da criatividade.
O capítulo que trata da religião e da fé chama-se “Perto de Deus”. Nele vemos as
práticas empreendidas por diversos grupos e indivíduos para, como sugere o título,
aproximar-se de Deus. Budistas no Tibet; judeus em Jerusalém, no muro das
lamentações; muçulmanos em Meca; praticantes de uma espécie de candomblé em
Angola; hindus num ritual para nós um tanto estranho; um exorcismo na Venezuela;
uma moça aparentemente católica em Portugal. E, em algum campo de batalha gelado
em 1917, aparentemente na Rússia, um padre católico ortodoxo abençoa os soldados
na trincheira. A legenda diz, a confirmar nossa sugestão da visão negativa da guerra:
“Deus perto do inferno”. E, “Em alguma esquina do hemisfério sul” vemos uma
criança aparentemente pobre (pode não ser tão pobre, mas a legenda é sugestiva
demais nesse sentido, conduzindo inevitavelmente nossa interpretação da imagem):
“à espera de Deus”. Um comentário, a meu ver, ateu e descrente, como a sugerir que
Deus ainda não chegou a todos, e deixa esperando, justamente, uma criança inocente.
A próxima imagem trata então de destituí-lo: uma igreja na Rússia de 1922 tem sua
decoração religiosa retirada, sua cruz derrubada, e é transformada em Repartição
Pública Vermelha, sob as manifestações de júbilo da população a seu redor. É
interessante que um filme que até agora procurou mostrar inúmeras atrocidades
cometidas pelos homens resolva colocar parte da culpa das mazelas sociais num ente
divino ou na crença nele, como se no próprio filme não houvesse motivos suficientes
que justificassem o estado das coisas do mundo independentemente da existência ou
249
nós que aqui estamos por vós esperamos
não de Deus.
Se o filme, no que se refere ao que denominamos seus capítulos, começou com a
imagem de um artista erudito – o bailarino Nijinski – ele se encerra, também no que
se refere a seus capítulos, com a imagem de um artista que se originou de um
ambiente popular, mas cujas obras foram recuperadas por pesquisadores e intelectuais
eruditos: Arthur Bispo do Rosário. Segundo a legenda, Arthur Bispo do Rosário “fez
uma roupa especial para se encontrar com Deus”. Trata-se do Manto da Apresentação,
uma roupa que o artista – muito religioso e que passou boa parte da vida internado em
manicômios – fez justamente para se apresentar diante do Senhor quando chegasse a
sua hora.
Apesar de podemos considerar que a arte de Arthur Bispo do Rosário tem uma
circulação erudita, acredito que, neste momento, o filme vale-se de seu aspecto
popular, inclusive numa chave de exotismo, loucura, religiosidade, enquanto que o
erudito – representado por artistas como Picasso e Oscar Wilde e intelectuais como
Freud – relaciona-se ao que há de conhecimento elevado no século, conferindo
importância científica e artística a ele. O erudito e o popular, efetivamente,
perpassam todo o filme, do começo ao fim, e a cada um é designada uma função no
sentido da construção de uma interpretação do século, conforme temos comentado.
Quando da imagem do artista popular Arthur Bispo do Rosário, por exemplo, não há
legendas designando-o como artista. Ao imiscuir a imagem de Arthur Bispo do
Rosário com a de um homem tentando voar trajando asas articuladas, temos a
impressão de tratar-se apenas de um lunático. Com efeito, aqui ele é antes um popular
exótico e criativo do que um artista institucionalizado – apesar de ter sido
institucionalizado por círculos eruditos. Nijinski, ao contrário, é claramente
identificado como um bailarino, e apenas isso, apesar de, assim como o brasileiro,
também ter passado boa parte de sua vida num hospício. Ao erudito, neste filme, é
250
nós que aqui estamos por vós esperamos
conferido um papel mais contido, mais sério, importante. O erudito é a ilustração, o
conhecimento, a pesquisa, as importantes transformações no pensamento e nos
costumes pelas quais passou o século XX. O popular se presta muito mais facilmente à
desconcentração, à brincadeira. O popular é o cotidiano e o mundo do trabalho. Ele
também é o que dá tipicidade ao século, materialidade, concretude, na medida em que
os fatos importante da história recaem, efetivamente, sobre os homens comuns.
O filme encerra-se com um passeio da câmera pelo cemitério de Paraibuna,
percorrendo um ciclo que começa e termina no mesmo lugar, sem antes nele retornar,
periodicamente, entre seus capítulos. Inicialmente, a imagem é em preto e branco,
para, depois de alguns segundos, adquirir cor.
Esta mudança, naturalmente, nos sugere uma passagem de tempo, do passado para o
presente: trazer a memória do século XX à luz dos dias atuais. Hobsbawm dirá: "A
destruição do passado - ou melhor, os mecanismos sociais que vinculam nossa
experiência pessoal à das gerações passadas - é um dos fenômenos mais
característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje
crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o
passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é
lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do
segundo milênio"
266
. Em certa medida, vincular o passado ao presente é o que o filme
procura fazer neste passeio final pelo cemitério, justamente procurando nos lembrar,
pela imagem de inúmeros túmulos, que o que vincula estes dois tempos é a memória,
que jaz em cada existência vivida durante o século. Em certo sentido, trata-se de uma
noção de tempo que poderíamos aproximar do tempo bergsoniano: cada vez que se
rememora o passado, ele se torna presente, sendo a memória a faculdade que nos
permite existir sob uma simultaneidade de tempos: “A heterogeneidade qualitativa de
266
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. op. cit., p. 13.
251
nós que aqui estamos por vós esperamos
nossas percepções sucessivas do universo deve-se ao fato de que cada uma dessas
percepções estende-se, ela própria, sobre uma certa espessura de duração, ao fato de
que a memória condensa aí uma multiplicidade enorme de estímulos que nos
aparecem juntos, embora sucessivos. (...) as questões relativas ao sujeito e ao objeto,
à sua distinção e à sua união, devem ser colocadas mais em função do tempo do que
do espaço
267
. Segundo o historiador da arte Arnold Hauser, esse tempo bergsoniano
– a “simultaneidade dos estados da alma” – é bastante característica da arte moderna,
tanto no cinema quanto no romance e na pintura
268
. Ela pode ser encontrada em
Proust e em Joyce, e, segundo Hauser, a experiência da simultaneidade é parte
fundamental do cinema: “O novo conceito de tempo, cujo elemento fundamental é a
simultaneidade e cuja natureza consiste na espacialização do elemento temporal, em
nenhum outro gênero de exprime tão bem como nesta arte de todas a mais jovem, que
data do mesmo período que a filosofia do tempo de Bérgson. A concordância entre os
métodos técnicos do filme e as características do novo conceito de tempo é tão
completa , que se tem a impressão de que as categorias temporais da moderna arte
devem ter surgido absolutamente do espírito da forma cinemática, e é-se levado a
considerar o filme como o gênero de arte estilisticamente mais representativo, ainda
que qualitativamente talvez não mais fecundo”
269
. A meu ver, Nós que aqui estamos
por vos esperamos, utilizando da percepção que pode causar através da imagem e da
narrativa de vidas e fatos passados, tenta, “bergsonianamente”, fazer do passado algo
presente, unindo a memória histórica à memória individual, e assim vinculando a
experiência das gerações presentes e futuras àquela das gerações passadas.
O filme nos sugere que, apesar do corpo humano e individual estar morto e enterrado,
a memória permanece, pronta para ser rememorada pelo trabalho do Historiador. O
Historiador é o Rei. Freud é a Rainha?
Naturalmente, cemitério nos lembra a morte. E, para além do cemitério, a morte está
presente durante todo o filme. Muitos de nossos personagens populares como que
saem do cemitério – os planos nos sugerem que eles jazem sob aquelas lápides e que
267
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 74-75.
268
HAUSER, Arnold. A era do filme. In: História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1982,
p. 1135.
269
HAUSER, Arnold. A era do filme. In: História social da literatura e da arte, op. cit., p. 1128.
252
nós que aqui estamos por vós esperamos
a câmera, de alguma forma, pode penetrar em suas existências agora encerradas e nos
dar a conhecer um pouco de suas vidas. A maioria deles tem uma data de nascimento
e outra de morte acompanhando sua imagem, exatamente como vemos nas lápides dos
cemitérios. E, mais importante, a morte está presente durante todo o filme como tema:
a guerra não nos deixa esquecer que homens e mulheres morrem e morreram
violentamente durante um século marcado pela beligerância. Além disso, o nome do
filme é um dizer encontrado em pórticos de cemitérios. O lugar de onde o filme nos
fala é lugar dos mortos. Nós que aqui estamos por vós esperamos fala de junto dos
mortos a nós, os vivos.
Dentro do longo plano-seqüência do cemitério surge a imagem de uma locomativa
com um homem sentado nas engrenagens de suas rodas. O homem é Buster Keaton,
“o comediante que nunca ri”, ator e diretor famoso na época do cinema mudo pelas
comédias nas quais, diante das mais diferentes situações – dando um beijo em uma
mocinha ou perseguindo soldados inimigos – mantinha a mesma expressão no rosto,
como se estivesse um tanto alheio aos fatos inusitados que se davam a seu redor. E
então mais uma legenda, a última no filme, com alguns versos do poeta russo
Maiakovski, escolha esta que mais uma vez sugere uma tomada de posição política do
filme em favor de uma esquerda mais libertária e menos oficial. "Dizem que em
algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz". Uma estrofe de
Maiakovski que trata com certa ironia a imagem de Buster Keaton, o homem que
vemos sentado na “locomotiva da História”. Afinal, se existir apenas um homem feliz
no mundo, como Maiakovski dá a entender, temos o fracasso da civilização moderna
em proporcionar prazer e satisfação ao indivíduo
270
. Se este homem hipotético se
assemelhar a Buster Keaton, aquele que nunca ri, teremos então a negação da
possibilidade de existência de um homem feliz sequer. Talvez a ironia da frase e da
imagem de Maiakovski e Keaton possa estar relacionada ao próprio veredicto de Eric
Hobsbawm sobre o século XX: “Não sabemos o que moldará o futuro, embora eu não
270
Mais um tema freudiano, como bem explica Herbert Marcuse em Eros e Civilização: a civilização como
algo que leva à insatisfação dos desejos do indivíduo por ser uma construção que procura justamente
proporcionar alguma segurança ao homem em troca de sua liberdade de procurar ter todos os seus desejos
satisfeitos. Marcuse, como sabemos, procura mostrar que é possível a hipótese de uma civilização não-
repressiva. M
ARCUSE, Herbert, Eros e Civilização, Rio de Janeiro: Zahar, 1968. Ver, por exemplo, o capítulo
6 e 7.
253
nós que aqui estamos por vós esperamos
tenha resistido à tentação de refletir sobre parte desses problemas, na medida em que
eles surgem dos escombros do período que acaba de chegar ao fim. Esperemos que
seja um mundo melhor, mais justo e mais viável. O velho século não acabou bem”
271
.
Naturalmente, esta é uma leitura possível principalmente para o espectador erudito, o
que reforça nosso argumento de que este é espectador privilegiado de Nós que aqui
estamos por vós esperamos. Afinal, poucos serão os que reconhecerão Buster Keaton,
o “comediante que nunca ri” (é um ator muito menos popular do que Charles Chaplin
por exemplo). Acredito que a frase de Maiakovski isolada pode relacionar-se a certo
clima de Nós que aqui estamos: temos uma agradável sensação de que as
infelicidades pelas quais passaram nossos personagens populares, entre a labuta e a
guerra, não eliminaram o lado terno e amável de suas vidas, o prazer da simplicidade,
a altivez de seu anonimato. A meu ver, é principalmente assim que vemos o popular
no filme.
A frase de Maikovski não é a primeira citação a respeito do Brasil. Vimos Serra
Pelada, Joselina, índios brasileiros, Garrincha, José Leonilson, Arthur Bispo do
Rosário. Masagão procura inserir o Brasil, tanto na forma popular quanto na forma
erudita, na História do Breve Século XX. E, para sermos honestos com Eric
Hobsbawm, é preciso dizer que, não obstante sermos parte da periferia do mundo,
lemos em seu livro diversas citações sobre o país. Hobsbawm e Masagão trabalham, a
meu ver, numa linha tênue que separa o etnocentrismo da admissão da pluri-
centralidade da História. Os fatos que vemos desenrolar-se diante de nós na tela
dizem respeito, primordialmente, aos países centrais – os da Europa e os EUA –, mas
países periféricos como o nosso não são esquecidos, ainda que colocados,
condizentemente com sua posição na ordem internacional, como periferia do sistema.
No começo do século, o Brasil deveria ser, para um russo de 1907, um lugar dos mais
exóticos do planeta, um país longínquo, misterioso, e esse é um sentido possível para
a frase de Maiakovski que vemos na tela: lá, no fim do mundo, parece que há um
homem feliz. No entanto, para além do exotismo, acredito que em Nós que aqui
estamos por vós esperamos, com os versos do poeta, sentimos uma espécie de
271
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. op. cit. p. 26.
254
nós que aqui estamos por vós esperamos
internacionalismo, que na verdade está presente durante todo o filme. Trata-se,
naturalmente, de um documentário brasileiro, mas penso que o filme procura
imiscuir-se numa trajetória histórica que pertence à humanidade, e não às nações, não
obstante um esperado etnocentrismo. Por isso temos aqui um russo que fala do Brasil,
assim como um brasileiro - Marcelo Masagão - que procura falar não só da Rússia,
mas do mundo. É, com certeza, o menos “brasileiro” e o mais “internacional” dos
filmes que analisamos neste trabalho, ainda que não o mais ambicioso: temos a todo o
momento a sensação da simplicidade de seu projeto, e da grandeza que reside nessa
simplicidade.
O internacionalismo, que confere certa importância e magnitude ao filme, e ao
mesmo tempo a simplicidade do projeto de Nós que aqui estamos – um filme
realizado num computador com pedaços de outros filmes, fotos, e imagens diversas
produzidas em outros contextos e para outras finalidades – nos leva novamente ao
tema da memória, com o qual encerraremos esta análise. O filme se coloca, em suas
primeiras legendas, como uma “Memória do Breve Século XX”. E a opção por ser
memória pode justamente condensar a importância do projeto fílmico de Nós que aqui
estamos e a simplicidade que rege sua idéia. Pois a memória é um mecanismo básico
de ligação entre as gerações e entre os homens e seu passado. Nesse sentido, tratar da
memória é tratar de um dos aspectos mais elementares da condição do homem como
um ser histórico que, ao menos na civilização atual, entende o tempo como uma
acumulação de momentos sucessivos – ou seja, como cronologia. Ao mesmo tempo,
tratar da memória, ao final do século XX, significa discorrer sobre algo que está longe
de ser simples e banal, pois se trata de abordar um dos elementos que se encontra em
profunda transformação passado este século que alterou para sempre a face da
humanidade.
A destruição “dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência ao passado”
foi abordada por Walter Benjamin em O Narrador
272
. Segundo ele, é a própria noção
de experiência que está em baixa, e isto vêm ocorrendo desde a traumática Primeira
Guerra Mundial: “Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que
272
BENJAMIN, Walter, O narrador. In: Magia e técnica, arte e política – obras escolhidas volume 1. São
Paulo: Brasiliense, 1996.
255
nós que aqui estamos por vós esperamos
continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam
mudos do campo de batalha, não mais ricos, e sim mais pobres em experiência
comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a
guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca a boca. Não
havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente
desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de fronteiras, a experiência
econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a
experiência ética pelos governantes”
273
. Segundo Benjamin, o fim da experiência está
relaciona ao fim da sabedoria – na medida em que a verdadeira narrativa tem uma
dimensão utilitária – e ao deslocamento do lugar da morte, cada vez mais afastado do
mundo dos vivos – pois é “no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem
e sobretudo sua experiência vivida (...) assumem pela primeira vez uma forma
transmissível”
274
. Ou seja, segundo Benjamin, cada vez mais o indivíduo chega ao
fim de sua vida privado de experiências e, na medida em que ao fim de sua vida ele é
colocado num lugar de marginalidade em relação aos vivos, a possibilidade de
transmissão de experiências que ele poderia ter tido é completamente solapada. Isso,
naturalmente, colabora para o rompimento da ligação entre o passado e o presente, e
faz com tenhamos a sensação de vivermos num presente que nos basta como
experiência.
O tema da morte na modernidade como algo sem sentido mereceu uma breve reflexão
de Max Weber em A ciência como vocação, que também pode ser reproduzida aqui na
medida em que também nos fala da relação entre experiência, ciência e morte no
mundo moderno. Ao discorrer sobre o papel do conhecimento científico, Weber evoca
o escritor Leon Tolstoi para dizer que, entre suas funções da ciência, não está a de dar
sentido para a vida do homem, pelo contrário:
“O conjunto de suas meditações (de Tolstoi) cristalizou-se crescentemente ao redor
do tema seguinte: a morte é ou não um acontecimento que encerra sentido? Sua
resposta é a de que, para um homem civilizado, aquele sentido não existe. E não pode
273
BENJAMIN, Walter, O narrador. In: Magia e técnica, arte e política – obras escolhidas volume 1. op. cit.,
p. 198.
274
BENJAMIN, Walter, O narrador. In: Magia e técnica, arte e política – obras escolhidas volume 1. op. cit.,
p. 207.
256
nós que aqui estamos por vós esperamos
existir porque a vida individual do civilizado está imersa no ‘progresso’ e no infinito
e, segundo seu sentido imanente, essa vida não deveria ter fim. Com efeito, há sempre
possibilidade de novo progresso para aquele que vive no progresso; nenhum dos que
morrem chega jamais a atingir o pico, pois que esse pico se põe no infinito. Abrão ou
os camponeses de outrora morreram ‘velhos e plenos de vida’, pois que estavam
instalados num ciclo orgânico da vida, porque esta lhes havia ofertado, ao fim de seus
dias, todo o sentido que podia proporcionar-lhes e porque não subsistiria enigma que
eles ainda teriam desejado resolver. Podiam, portanto, considerar-se satisfeitos com a
vida. O homem civilizado, ao contrário, colocado em meio ao caminhar de uma
civilização que se enriquece continuamente de pensamentos, de experiências e de
problemas, pode sentir-se ‘cansado’ da vida, mas não ‘pleno’ dela. Com efeito, ele
não pode jamais apossar-se senão de uma parte ínfima do que a vida do espírito
incessantemente produz, ele não pode captar senão o provisório e nunca o definitivo.
Por esse motivo, a morte é, a seus olhos, um acontecimento que não tem sentido. E
porque a morte não tem sentido, a vida do civilizado também não o tem, pois a
‘progressividade’ despojada de significação faz da vida um acontecimento igualmente
sem significação”.
O homem velho, portanto, ou o homem à beira da morte, não é alguém que sabe mais,
“pleno de vida”, mas ao contrário: desatualizado em relação ao presente e sem
experiências do passado, cansado dos crescentes problemas que a vida lhe impõe,
sentindo que não teve tempo ou condições de se apossar deste conhecimento
cumulativo e infinito proposto pela ciência, está privado daquilo que poderia
constituir seu mais importante legado. Com efeito, se pensarmos nas mortes em Nós
que aqui estamos por vós esperamos, perceberemos que elas são completamente
desprovidas de sentido. O melancólico e trágico fim dos personagens populares nos
mostra o quanto suas vidas estão eivadas de um anonimato que não os capacita a
deixar ensinamentos ou conselhos para a posteridade e nem a desfrutar do
conhecimento incessante que na maioria das vezes foi produzido de maneira
absolutamente exterior a eles, ainda que eles tenham sido os instrumentos de sua
realização.
257
o homem que copiava
o anonimato popular como refúgio da cultura erudita
258
o homem que copiava
O homem que copiava é (Jorge Furtado, 2003
275
) um filme que contém uma série de
citações da história da arte sem a aura de pedantismo que por ventura pode
acompanhar as referências à cultura erudita, pedantismo este que adviria de uma
natureza supostamente elitista, para poucos, desta cultura. Em O homem que copiava
a arte erudita se manifesta num personagem que está longe de pertencer a qualquer
elite. O filme, ainda que cite Shakespeare, Cervantes, Dostoievski e Van Gogh,
refere-se à cultura erudita em geral de maneira leve e divertida, de modo que ela não
suscite circunspeção e refinamento, mas bom humor e graça. Os espectadores que têm
alguma erudição podem identificar as citações no decorrer da narrativa, e é provável
que se divirtam com a descoberta das menções às artes plásticas, literatura, cinema,
tirando prazer deste reconhecimento que os inscreve em uma espécie de “clube”
restrito dos que têm algum saber erudito ou cultivado. Os espectadores que não têm
erudição, no entanto, podem acompanhar O homem que copiava sem problema algum,
e a não compreensão das citações não lhes fará falta no que se refere ao envolvimento
com a narrativa. Seria possível dizer que O homem que copiava pode ser visto numa
chave dupla, falando ao mesmo tempo aos que podem e aos que não podem
compartilhar das citações mencionadas. Quem introduzirá as referências artísticas ao
longo do filme é o personagem André (Lázaro Ramos), um tipo popular discreto
(como em Terra Estrangeira mas cujo aspecto discreto é exacerbado), uma figura que
não participa da espécie de “clube” restrito invocada, mas que ao mesmo tempo
ultrapassa os limites de conhecimento que se esperaria dele. André, portanto, pode ser
visto como a personificação de uma dupla chave de compreensão do popular, aquela
que valoriza-o como dotado de um conhecimento especial, ao mesmo tempo popular e
erudito.
Nem sempre a palavra popular tem uma acepção positiva. Popular pode assumir uma
conotação pejorativa relacionada, em geral, a baixo nível intelectual e artístico e a
atraso. De certa maneira, como veremos, é assim que André se coloca durante boa
parte do filme – como alguém em certo sentido inferior. Marilena Chauí comenta a
275
O filme é de 2003, mas o inserimos nesta pesquisa sobre o cinema dos anos 90 pois acreditamos que, em
primeiro lugar, as “décadas” não existem de maneira estanque para o cientista social e, em segundo lugar, as
questões relativas à cultura popular trabalhadas por esse filme relacionam-se àquelas que viemos discutindo
até agora neste trabalho.
259
o homem que copiava
ambivalência do conceito e a simultaneidade das visões: “Em decorrência do verde-
amarelismo, dos populismos, do autoritarismo paternalista, freqüentemente
encontramos no Brasil uma atitude ambivalente e dicotômica diante do popular. Este
é encarado ora como ignorância, ora como saber autêntico; ora como atraso, ora como
fonte de emancipação. Talvez seja mais interessante considerá-lo ambíguo, tecido de
ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo
ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambigüidade que o determina
radicalmente como lógica e prática que se desenvolvem sob a dominação”
276
.
André coloca-se, de certa maneira, como dotado desta ambigüidade: seu discurso
exacerba sua ignorância, mas as imagens eruditas que o acompanham nos sugerem
emancipação. É preciso considerar, no entanto, que o acesso de André à cultura
erudita se dá muitas vezes a partir da estratégia da cultura de massas de difundir
conteúdo cultural erudito como forma de, econômica e simbolicamente, agregar valor
simbólico ao produto destinado ao consumo.
Vamos então elencar algumas características de André tais como ele as apresenta ao
longo do filme, de modo a ter acesso imediato ao nosso protagonista popular, erudito
(sem o saber) e também massificado que se revela tão importante para os objetivos da
pesquisa aqui empreendida. André, negro, 19 anos, escolaridade incompleta, é o cara
do xerox de uma papelaria na Rua Presidente Roosevelt, em Porto Alegre. Se as
garotas perguntam – e apenas se elas perguntam – ele diz que é “operador de
fotocopiadora”, tentando se passar por um trabalhador especializado e qualificado que
ele de fato não é. Mora num apartamento de classe média baixa na mesma Presidente
Roosevelt com sua mãe, e passa seu tempo livre desenhando. Já mandou um
“material” para uma revista, mas não obteve resposta. Seu pai, que também se
chamava André, saiu de casa quando ele tinha quatro anos e nunca mais voltou. Com
seu salário na papelaria ele paga metade do aluguel e das prestações da televisão de
14 polegadas. Sobram-lhe R$ 68,00 reais, que ele gasta “com umas bobagens”.
Vemos André inicialmente no caixa de um supermercado, passando suas compras. Ele
interrompe a moça do caixa enquanto ela registra os produtos, preocupado se terá
276
CHAUÍ, Marilena, Conformismo e Resistência – aspectos da cultura popular no Brasil. op. cit., p.
124.
260
o homem que copiava
dinheiro suficiente para levar tudo o que necessita. Após a moça ter registrado quase
tudo, André percebe que não tem dinheiro suficiente para levar os fósforos. Ele
precisa levar os fósforos. Enquanto as pessoas na fila esperam ansiosas que ele decida
o que fazer em relação a sua compra, a moça do caixa, igualmente impaciente, chama
o gerente para cancelar os produtos que já foram registrados. A cena demora-se,
estendendo a situação constrangedora a que André, em sua penúria, submete-se. Com
uma mistura de vergonha e timidez ele informa ao gerente que dispõe de apenas onze
e cinqüenta. Faltam-lhe alguns poucos reais, e por alguns momentos esperamos que o
gerente releve o pouco que falta. Após abrir o caixa para cancelar as compras, André
demora-se mais uma vez a escolher algum produto a ser retirado. Entre esponjas,
detergentes, pãezinhos, margarina, e outros, ele escolhe retirar a carne, produto
símbolo do consumo de classe média e alta, ao qual ele não pode se dar ao luxo.
Explicita-se a situação financeira na qual ele vive. Percebemos desde este início que
André é obrigado a planejar-se constantemente, sob pena de não ter dinheiro
suficiente para comprar aquilo que gostaria. Seus gastos envolvem necessariamente
previsão e planejamento. Efetivamente, sempre que precisar lidar com dinheiro,
André, com sua narração off, explicitará os cálculos que efetua em pensamento para
conseguir adquirir aquilo de que necessita ou deseja.
Minha mãe paga o supermercado com a pensão dela, eu pago metade do aluguel (...).
Sala, vista para o prédio da frente, tudo isso por apenas... trezentos e oitenta reais,
com o condomínio. Sobram cem. Pago metade da prestação da tv, quatorze
polegadas, controle remoto, sessenta e quatro reais, trinta e dois a minha parte.
Sobram sessenta e oito.
Depois que eu acabar de pagar a televisão vão me sobrar cinqüenta e cinco reais por
mês. Se eu não gastar nada, em um ano eu tenho seiscentos e sessenta. Em dez anos
eu tenho seis mil e sessenta, já da pra comprar um carro usado, daqui a dez anos, se
eu não gastar nada.
Para comprar meu binóculo eu precisei economizar um ano.
André é o homem que copiava, personagem que dá nome ao filme de Jorge Furtado.
Com certa graça e ironia, este título pode nos remeter ao livro de Malba Tahan, O
261
o homem que copiava
homem que calculava, que narra as aventuras do prodigioso calculista Beremiz Samir
pelo mundo árabe, conquistando a admiração de inúmeros governantes, sábios e
princesas pela sua extraordinária inteligência matemática. A ironia, naturalmente, está
no fato de que títulos como este – o homem que etc. – nos fazem vislumbrar uma
personalidade extraordinária, um personagem famoso, alguém importante ou
diferenciado, inesquecível justamente graças à sua habilidade de realizar aquilo que o
adjetiva – no caso de Beremiz, calcular
277
. O livro de Malba Tahan, pseudônimo de
Júlio César de Melo e Souza, já possui mais de cinqüenta edições brasileiras e
diversas traduções mundo afora, e marcou os anos escolares de diversas gerações com
seus problemas curiosos e sua moral edificante. As qualidades do homem que
calculava parecem ser infinitas, e a correção moral e intelectual deste homem chega a
ser engraçada para o leitor de hoje pelo exagero: Beremiz é sereno ao resolver os
mais complicados problemas, extremamente culto, jovem (tem apenas 26 anos), hábil
com as palavras como um poeta, de raciocínio rápido e impecável, verdadeiramente
modesto, incrivelmente desambicioso, extremamente caridoso para com os pobres,
humilde perante os poderosos, respeitoso com as mulheres, profundamente religioso
(e, para torná-lo moralmente ainda mais adequado aos leitores ocidentais, ele, um fiel
seguidor de Alá, surpreendentemente abraça o cristianismo ao final do livro). Ora,
parece evidente, conforme assistimos O homem que copiava, que André, ao contrário,
é um personagem indigno de qualquer reverência, que logo de início aparece
inseguro, complicando-se com seu dinheiro (tentando calcular, é verdade),
atrapalhando uma fila de supermercado, quase fadado ao completo anonimato, não
fosse alguns atos “prodigiosos” que acaba realizando (falsificar notas de cinqüenta
reais, assaltar um banco, ganhar na loteria com uma seqüência de números
improvável). A “habilidade” que lhe adjetiva no título, copiar, na verdade é descrita
por ele mesmo como uma atividade boçal que qualquer pessoa pode realizar, e que
nunca garantirá a ele fama, fortuna e uma mulher desejável, como o homem que
calculava pode conquistar. Operar uma máquina de xerox não torna ninguém
277
Podemos nos lembrar também do conto de Machado de Assis O homem que sabia javanês, cuja
ironia do título está no fato de que o homem em questão nunca soube javanês, mas que, por esta
habilidade fingida, foi alçado a um importante cargo na carreira diplomática. Consideramos aqui, no
entanto, mais interessante lembrar do homem que calculava, tanto pelo fato de que calculava e
copiava são palavras naturalmente muito semelhantes quanto pelo exagero moral e intelectual do
personagem do livro de Malba Tahan, que se diferencia da ordinariedade da vida de André.
262
o homem que copiava
admirado, e André sabe disso: “quantos neurônios um sujeito precisa para fazer essa
merda?”, pergunta ele, já adivinhando uma possível resposta. Operar uma máquina de
xerox funciona aqui de modo a estabelecer o lugar social de André, trabalhador
manual, sem nenhuma especialização, e sem nenhuma perspectiva de ascensão social.
Ainda assim, André prefere dizer-se “operador de fotocopiadora” do que
simplesmente dizer que tira xerox o dia inteiro, e a diferença entre ser um “operador
de fotocopiadora” e ser o cara do xerox de uma papelaria constitui motivo de graça
durante boa parte do filme. Naturalmente, as denominações servem para designar a
mesma profissão, mas a primeira é muito menos reveladora do verdadeiro status
social do personagem. Com Erving Goffman, em A representação do eu na vida
cotidiana, podemos dizer que, ao dizer-se “operador de fotocopiadora”, André
procura, a partir de palavras mais pomposas e unusuais, estabelecer uma
representação específica de si mesmo para que seus interlocutores não percebam o
caráter banal e não-especializado de sua profissão: “(...) um ator cuida de dissimular
ou desprezar as atividades, fatos e motivos incompatíveis com a versão idealizada de
sua pessoa e de suas realizações”
278
. Goffman estabelece uma distinção entre o ator
que está plenamente convencido de seu próprio número e aquele que não crê na sua
representação
279
. André faz parte do segundo caso: é interessante notarmos como nem
ele mesmo parece convicto de que sua profissão banal mereça o nome elegante de
“operador de fotocopiadora”, e, receando que lhe descubram o “embuste”, evita dar
maiores explicações sobre o que quer que seja essa profissão. É notável, dentro deste
contexto, e bastante enternecedor, o fato de André não designar-se como “operador de
fotocopiadora” para Sílvia, por quem está apaixonado, provavelmente porque ele sabe
que a expressão não combina com a banalidade de sua profissão e que, neste sentido,
ele a estaria enganando. Sem coragem para enganá-la nem para revelar sua profissão,
André diz que faz ilustrações – o que não é uma mentira. Depois, ao ter uma conversa
sincera com Sílvia, ele revela-lhe sem demora o que é efetivamente: o cara do xerox
de uma papelaria. Detalhes como estes existem desde o princípio e vão dando ao
personagem uma humanidade comovente, e em poucos minutos de filme estaremos
278
GOFFMAN, Erving . A representação do eu na vida cotidiana. op. cit., p. 51.
279
GOFFMAN, Erving). A representação do eu na vida cotidiana. op. cit., p.25.
263
o homem que copiava
completamente simpatizados com sua complexa simplicidade. Vamos voltar
posteriormente a representação de si que André estabelece nos seus primeiros
contatos com Sílvia, e que constituem uma parte importante do que dissemos ser sua
humanidade comovente.
Voltemos então ao filme. Cômica e triste, a seqüência inicial dá lugar aos créditos,
enquanto André anda pelas ruas da cidade. Ele encontra um terreno baldio e retira de
sua mochila uma grande quantidade de notas de cinqüenta reais. Aquele rapaz a quem
lhe faltavam alguns reais para levar um pedaço de carne surpreendentemente acende
um fósforo e queima o montante de dinheiro. Veremos essa cena novamente no
decorrer do filme, e então compreenderemos melhor aquilo que parecia
incompreensível. Saberemos que André, o homem que copiava, não copia apenas
trabalhos escolares, livros e documentos pessoais, mas notas de cinqüenta reais.
André decidirá queimar estas cópias valiosas. Neste filme, na verdade, o ato de copiar
está por todo lugar, e parece relacionar-se às citações artísticas, já que a inserção
destas ao longo da narrativa não deixa de ser, em alguma medida, a inserção
pequenos pedaços “copiados” de outras obras de arte.
André se apresenta, conta-nos seu passado, descreve seu cotidiano e nos revela seus
sonhos, sempre com uma linguagem coloquial, mas não ignorante ou chula, que o
torna um personagem simpático. Ele nos faz acompanhar sua trajetória de rapaz
“duro” e vive-a ao mesmo tempo. Não narra simplesmente descrevendo seu passado,
mas enquanto o presente acontece, intercalando episódios anteriores de sua vida a
cenas do momento narrado, criando um painel feito de pequenas seqüências que dão
certa impressão de casualidade, de eventualidade, de dispersão, fazendo com que nós,
como espectadores, não vislumbremos neste personagem algum forte objetivo
imediato, mas pequenos desejos comuns e triviais para um jovem pobre de sua idade
(ganhar algum dinheiro, conquistar uma garota, mudar de vida). Sua narração off dura
quase toda a primeira metade do filme. Cronologicamente, extende-se até a seqüência
que já havíamos visto no início, na qual queima as inúmeras notas de cinqüenta reais,
quando então passa a não mais narrar, como se os acontecimentos se apoderassem de
sua história freneticamente, obrigando-o a uma tomada de ação inadiável, a
estabelecer objetivos, a perseguir alvos, a não mais hesitar.
264
o homem que copiava
Para contar fatos de seu passado, André conta com a ajuda de um personagem que ele
mesmo inventou, Zeca Olho (ou Zé Caolho), e sua Vó Doutrina – uma fotocópia da
foto de Eleonor Roosevelt que ele levou da loja onde trabalha. Zeca Olho “substitui”
André na seqüência que trata de sua expulsão do colégio, e também naquela que ele
“descobre” a equivalência entre duas notas de cinco e uma de dez, quando sua mãe
devolve o dinheiro que ele havia emprestado de Mairoldi. As ilustrações de André o
ajudam a contar sua história, a ilustrar o que sente, a expressá-lo iconograficamente.
Seu quarto é repleto de fotos e desenhos colados na parede. Outras ilustrações,
animações e imagens diversas aparecem em profusão, e colaboram em grande parte
para a ironia e o bom humor que atravessa O homem que copiava na primeira parte do
filme, quando o riso será substituído pelo clima sombrio. O ritmo é dado pela
sucessão de planos curtos, alguns repetidos, muitos mostrando a mesma ação diversas
vezes de forma a expressar aborrecimento, tédio, situações triviais (André apertando
aborrecidamente o botão da fotocopiadora vestindo roupas diferentes em sucessivos
planos), num impulso repetitivo que é explicitado na capa de um dos livros que ele
fotocopia (O Impulso Duplicador). Histórias em quadrinhos, “colagens” de fotos de
revistas e ilustrações, tornam o filme divertido e agradavelmente delirante, algo
despretensioso, que num primeiro momento parece composto de aventuras modestas,
pelo menos até o episódio que encerra a narração off de André.
265
o homem que copiava
estes diferentes planos correspondem a uma sucessão de seqüências,
na ordem em que eles aparecem aqui
A narrativa do filme parece seguir o fluxo de pensamento do protagonista, no qual
presente, passado e imaginação se sucedem. Cada plano ou seqüência nos remete a
outro, num ritmo que de certa forma perambula para lá e para cá, mas que não nos
deixa fazer vagar nosso pensamento para longe da profusão de imagens que se
sucedem e que nos envolvem com agilidade e bom humor. Enquanto nos conta seus
sonhos mais sublimes, André lembra-se de algo prosaico, que toma conta da narração
anterior e já se finda para dar lugar a um outro evento. É notável, por exemplo, a
seqüência em preto e branco (monocromatismo clichê quando se trata de “lembranças
do passado” e aqui usado de forma irônica como a satirizar o próprio clichê) na qual
André, contando que sonhava em ser famoso jogando futebol, realiza em pensamento
os muitos gols decisivos que fariam dele um craque, quando é subitamente
interrompido pela senhora que invade sua fantasia e rispidamente pede para que ele,
então empacotador de supermercado, retire o azeite de cima das frutas. Suas fantasias
realizam-se em seqüências imaginadas e são então interrompidas subitamente pela
realidade que chega a André como se este acordasse de um sonho bom e impossível.
Acredito que o modo de narrar de André e os planos que se intercalam como
resultado de suas palavras e peripécias farão alguns espectadores lembrarem-se de
Ilha das Flores, curta metragem bastante mordaz e amargo de Jorge Furtado que
266
o homem que copiava
parece ironizar o estilo didático que predomina em muitos documentários e que
costuma estar acompanhado da narração voz de Deus
280
, transbordante de autoridade.
Como se não soubéssemos o que são seres humanos, japoneses e tomates, o narrador
de Ilha das Flores explica-nos muito seriamente do que se tratam e a relação que
estabelecem, utilizando-se para isso critérios discutíveis e seqüências esquemáticas
que fazem suas definições falsamente simples e muito parciais, como costuma ser o
didatismo. O homem que copiava, na primeira metade, também persegue um estilo
ironicamente explicativo, mantendo em grande parte a maneira simples de falar de
coisas que não são tão simples assim, intercalando comentários díspares que parecem
se relacionar claramente, mas que na verdade não estabelecem relações tão
necessárias. Para alem disto que chamamos o estilo explicativo, temos, a meu ver,
semelhanças entre Ilha das Flores e O homem que copiava na montagem rápida que
funciona como uma colagem aproximando-se de um raciocínio antes lógico (ainda
que de uma lógica bizarra) do que dialético (pensando aqui na montagem de Serguei
Eisenstein
281
), uma maneira de intercalar imagens e seqüências que Jorge Furtado
parece dominar. O homem que copiava é, a meu ver, mais interessante quando o
diretor imprime esta forma, aparentemente despretensiosa, divertida e mordaz ao
mesmo tempo.
Ao se apresentar, André nos diz seu nome, e logo comenta que tem o nome de seu
pai. Podemos considerar que neste sentido André é, ele mesmo, uma espécie de cópia,
um não-original. Em outro momento saberemos que André-pai abandonou a família
quando André-filho era uma criança. Em O homem que copiava, o pai é uma figura
que concentra parte dos rancores dos personagens principais. O pai de André deixou a
família, e o suposto pai de Silvia (Leandra Leal), Antunes, um personagem construído
como vilão, tem o hábito de observá-la enquanto ela toma banho, além de ter abusado
sexualmente dela no passado, segundo a moça sugere quando, em voz off, lê sua carta
a Paulo (Paulo José). Apesar deste rancor contra a figura do pai, o soneto de
Shakespeare que André achou bonito trata justamente de driblar a morte na
paternidade. Trata, de alguma forma, portanto, da beleza desta forma de reprodução
280
NICHOLS, Bill. Representing Reality. op. cit., pp. 3-62.
281
EISENSTEIN, Sergei. Dickens, Griffith e nós. A forma do filme. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990.
267
o homem que copiava
de certas cópias (os filhos). André vê algo de sublime na reprodução humana tal como
descrita por Shakespeare, assim como é capaz, a despeito de seu trabalho boçal e de
sua pouca escolaridade, de retirar alguma beleza das fotocópias que reproduz:
material para suas ilustrações, imagens de obras de arte, informações sobre autores.
Silvia procura um novo pai, e neste sentido podemos considerar que ela quer
encontrar um substituto ao pai “original”. A moça quer acreditar que seu pai não é
Antunes, e sim Paulo, um ator (Paulo José) com quem ela espera encontrar-se no Rio
de Janeiro. O ator, naturalmente, é um profissional que tem por objetivo representar
personagens, e portanto em certo sentido copiar os sentimentos, criar uma
personalidade a partir das sensações originais. Para encontrar-se com este pai
idealizado, Silvia não exitará em matar Antunes, o pai de fato, o pai “original”,
inferior à sua cópia “melhorada” (Paulo). Em O homem que copiava, falsificar, roubar
e matar parecem ser atos tratados amoralmente. Nenhum juízo de valor está
subentendido.
Voltemos à apresentação de André, que se estende durante a primeira metade de O
homem que copiava e que, na verdade, constitui o filme neste primeiro momento,
fazendo com que a narrativa flua entrecortada como um pensamento, um tanto a
deriva, o que não quer dizer desorganizada – pelo contrário, o ritmo “colagem” faz
com que imagens e pensamentos diferentes se combinem, associem-se e componham
um quadro visualmente complexo que incentiva nossa adesão. Em meio ao narrar de
André, acontecimentos e personagens vêm e vão de modo a ajudá-lo a compor sua
história. Vemos Seu Gomide, o dono da loja na qual André trabalha, e Marinês
(Luana Piovani), a colega de trabalho. André conhece Cardoso (Pedro Cardoso),
pretendente de Marinês. Neste filme, que tem grande parte de sua graça nos detalhes
que admiravelmente compõem a vida do nosso protagonista, eventos de menor
destaque ganham seqüências caprichadas: a paquera com a garota que, subentende-se,
desiste de André ao saber que ele trabalha num xerox de papelaria, e que aqui
funciona de modo a generalizar a opinião das mulheres sobre os operadores de
fotocopiadora (Gurias não sonham passar o resto da vida ao lado de operadores de
fotocopiadora); a rotina noturna de sua mãe em frente da televisão, arrastando os
chinelos rumo à geladeira, indo-se deitar pois televisão me dá um sono, e que vem
268
o homem que copiava
reforçar o caráter até então ordinário da vida deste rapaz de classe média baixa.
Através da narração, André constrói a si mesmo como um garoto de cotidiano pouco
interessante, que vive com um orçamento apertado, cujo caráter limitante é reforçado
pela descrição detalhada do que ele faz com seu dinheiro (paga metade do aluguel, as
prestações da televisão, quase não sai, gasta o pouco que lhe sobra com revistas,
canetas, uma cerveja). Ao mesmo tempo em que vemos sucessões de planos curtos e
pequenas informações, o filme, por outro lado, demora-se em longas seqüências
constituídas de ações banais e despretensiosas, tirando grande prazer em observar os
personagens enquanto eles tentam, erram, confundem-se, parecem ridículos. Neste
sentido, é notável a primeira noite dos personagens principais no Mamma Grave: oito
minutos de uma série de lugares comuns na tentativa de paquera de Cardoso, que
ostenta o celular, tenta despertar ciúmes fingindo ligar para uma amiga, e chega ao
clichê-limite de convidar Marinês para ouvir um CD em sua casa (The Rock Greatest
Hits, tipo de coletânea que em si já é um clássico do lugar comum – e também uma
“cópia”, uma colagem de vários intérpretes – e cujo nome Cardoso não consegue
pronunciar).
André explicita em grande medida a banalidade de sua vida descrevendo as operações
extremamente simples das quais ele se encarrega à frente da fotocopiadora. Pegar o
papel, soltar o papel, colocar o papel na bandeja e vai, minha filha. A câmera o
acompanha, solidária ao seu narrar, e insiste no caráter repetitivo de sua ocupação
profissional ao exibir os mesmos planos diversas vezes.
Aqui você diz para ela quantas cópias você quer. Aí você levanta esta tampa e põe o
papel que você quer copiar, o original, aqui. Você tem que pôr no limite desta marca
no vidro. Aí você fecha a tampa, cuidando para não tirar o papel do lugar.
Apertando este botão aqui você está dizendo: vá em frente, minha filha, está tudo
certo. E ela vai. Pronto. Você já sabe tudo que é preciso saber para fazer o que eu
faço. Operador de fotocopiadora. Grande merda.
Pode-se dizer, avançando agora no tema que nos interessa nesta pesquisa, que André
é construído até aqui como um tipo popular – negro, pobre, criado apenas pela mãe,
trabalhador não-qualificado, sem escolaridade, sem perspectiva de ascensão
profissional, sonhador, que vive uma vida sem sobressaltos, limitado pelo orçamento
269
o homem que copiava
doméstico, de cotidiano previsível e sem glamour. Os demais personagens principais
também podem ser compreendidos assim: todos pertencem, com pequenas diferenças,
a camadas sociais médio-baixas, e portanto a tipos de certa forma populares. O
popular, no cinema e fora dele, tem passado, sabemos, por diversas conotações, e é
uma categoria de status sociológico bastante duvidoso. No cinema, o povo já foi
passivo e miserável em Os fuzis (Ruy Guerra, 1964), místico e revolucionário em
Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), alienado e manipulável em
Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), sabido e sensual em Tenda dos Milagres
(Nelson Pereira dos Santos, 1976), trabalhador e engajado em Eles não usam black-
tie (Leon Hirszman, 1981). Dependendo dos interesses que persegue e do enunciador
do discurso, o popular pode ter um aspecto de imemorial, tradicional, e também de
extraordinário – e por isso pode congregar cangaceiros, justiceiros, favelados,
operários, fanáticos religiosos e mesmo artistas considerados populares. “Com o
Romantismo, delineiam-se os traços principais do que se tornou a Cultura Popular:
primitivismo (isto é, a idéia de que a cultura popular é a retomada e preservação de
tradições que, sem o povo, teriam sido perdidas), comunitarismo (isto é, a criação
popular nunca é individual, mas coletiva e anônima, pois é manifestação da Natureza
e do Espírito do Povo) e purismo (isto é, o povo por excelência é o povo pré-
capitalista, que não foi contaminado pelos hábitos da vida urbana – na Europa, são os
camponeses que, vivendo próximos da Natureza e sem contato com estranhos,
preservaram os costumes primitivos em sua pureza original; na América Latina são os
índios, “raices de America”)”
282
.
Aqui, no entanto, gostaria de chamar a atenção para o popular no sentido do
despossuído, do pobre, do simples, do lugar-comum, do banal, do indivíduo situado
num lugar pantanoso, que não comporta classificações imediatas – popular portanto
na acepção que aqui denominamos “discreta”, um popular que não faz questão de
alardear seu pertencimento ao popular, que simplesmente vai existindo anonimamente
e que, se pudesse, deixaria para trás esta condição popular para penetrar no mundo do
diferente, do extraordinário, no mundo das revistas de ricos e famosos que Marinês
folheia e na qual ela vê a cama de dossel que tanto gosta. Negro, pobre, sem
282
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência – aspectos da cultura popular no Brasil. op. cit., p.
20.
270
o homem que copiava
instrução, desempenhando um trabalho que não lhe caracteriza de nenhuma maneira
especial (ele não é o camponês, o operário, o marginal, o poeta, o miserável, o
retirante), André é o povo anônimo, que passa despercebido, que não chama a atenção
de ninguém. Este popular não carrega um discurso consigo, e se apresenta a nós da
mesma maneira com a qual Jorge Furtado lida com as questões relativas ao lugar
social de seu protagonista: com discrição. Sem alardear o racismo, deu a entender o
preconceito transformando-o no personagem mais pobre dentre os seus amigos; sem
fazê-lo traumatizado e problemático, disse-nos que seu pai o abandonou quando ele
era criança; sem fazê-lo ignorante, transformou-o num personagem sem muita
instrução.
E Jorge Furtado debruça-se sobre este anônimo com carinho, de certa forma do
mesmo modo que Michel Foucault debruça-se sobre a “vida dos homens infames” em
artigo de mesmo nome, pessoas que viveram e que deixaram na história a marca de
sua inexistência quase total, a não ser por algumas menções que acabarem por
merecer da justiça com a qual tiveram problemas. “Pretendi (...) que estas
personagens fossem elas mesmas obscuras; que nada as tivesse predisposto a qualquer
notoriedade; que não tenham sido dotadas de nenhuma das grandezas como tal
estabelecidas e reconhecidas – as do nascimento, da fortuna, da santidade, do
heroísmo ou do gênio; que pertencessem àqueles milhões de existências que estão
destinadas a não deixar rastro; que, nas suas infelicidades, nas suas paixões, naqueles
amores e naqueles ódios, houvesse algo de cinzento e de ordinário aos olhos daquilo
que habitualmente temos por digno de ser relatado; que contudo, tenham sido
animados por uma violência, uma energia, um excesso de malvadez, na vilania, na
baixeza, na obstinação ou no infortúnio, tais que lhe proporcionassem, aos olhos
daqueles que os rodeavam, e à medida de sua própria mediocridade, uma espécie de
medonha ou lamentável grandeza”
283
. Há, naturalmente, como sugere a leitura do
artigo de Foucault, aos olhos do indivíduo cultivado (como ele próprio, Foucault),
uma beleza peculiar neste popular anônimo, que provavelmente origina-se da sua
comovedora pequenês, e que aparece na seqüência inicial no caixa do supermercado.
Comovente é, a meu ver, a palavra, e o sentimento que nos arrebata ao observar esta
283
FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. op. cit., p. 97.
271
o homem que copiava
construção do popular, não nos esquecendo de que o olhamos com os olhos do
cultivado, ou seja, a partir do ponto de vista de alguém que compartilha do
conhecimento e da cultura escolar, institucionalizada, acumulada, e que muitas vezes
se deleita com a visão da simplicidade. A seguir, na seqüência seguinte a do
supermercado, André executa um ato surpreendente sem maiores explicações (queima
o dinheiro), como a reafirmar, para os olhos do cultivado, a inacessibilidade deste
popular anônimo, os mistérios que se escondem na sua vida ordinária, que tem uma
grandeza difícil de se decifrar, e difícil de se descrever. Que tem, nas palavras de
Foucault, uma “baixeza” que nenhuma literatura pode acolher
284
.
Essa beleza que vem da simplicidade está relacionada, segundo Edgar Morin, à
própria magia do cinema enquanto revelador do cotidiano. Ou, melhor dizendo, é
justamente ao voltar-se para esse cotidiano, que aqui está identificado a André, que o
cinema adquire todo o seu poder de atração e admiração, e que reside na fotogenia:
“‘essa qualidade poética dos seres e das coisas’ (Moussinac), ‘susceptíveis de nos
serem exclusivamente revelados através do cinematógrafo’ (Delluc e Moussinac)”
285
.
Segundo Morin, o grande êxito de Lumière se deveu ao fato de suas imagens
apresentarem o cotidiano e o banal: ele percebera que “antes de mais nada, as pessoas
iriam maravilhar-se ao voltarem a ver tudo aquilo que as não maravilha: as suas
casas, as suas caras, o ambiente de sua vida familiar”
286
.
Assim como o dia de trabalho de André é algo repetitivo, suas noites também seguem
uma rotina, e por isso ele pode nos falar dela como um hábito, algo que é sempre
igual, contando-nos sobre como sua mãe pega água na geladeira, até que horas ela vê
TV, e seu invariável boa noite, meu filho, televisão me dá um sono... Mas aqui há algo
de lúdico no cotidiano do rapaz, que o retira do lugar do banal e do ordinário, que o
faz transcender perante nós, espectadores, a condição de operador de fotocopiadora.
Em primeiro lugar, ele passa boa parte da noite desenhando em seu quarto, tendo um
quê de artista, portanto. Suas ilustrações estão repletas de comentários irônicos (como
o desenho da empregada, que eles não têm, dormindo encolhida no minúsculo quarto
284
FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. op. cit., p. 121.
285
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. op. cit., p. 21.
286
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. op. cit., p. 20-21.
272
o homem que copiava
que lhe foi reservado no apartamento), o que acaba por tornar André um personagem
ainda mais simpático, de uma inteligência pungente. Em segundo lugar, André assiste
à televisão sem som, como se fosse um aquário iluminado, um modo bastante peculiar
de observá-la, que parece dar ao eletrodoméstico uma qualidade “estética” que nunca
imaginávamos que ele possuísse, e a André certa sensibilidade por ser capaz de
descobrir neste objeto de uso cotidiano e muitas vezes considerado “alienante” uma
nova beleza
287
. A televisão sem som é também uma espécie de janela para André.
Como a janela de verdade através da qual ele olha Sílvia, temos aqui um objeto de
uso cotidiano e “massificado” que funciona como uma abertura para o mundo, e o
mundo das obras eruditas. Entre as imagens que ele vê enquanto passa rapidamente
pelos canais podemos ver os personagens Dom Quixote e Sancho Pança e o ator
Laurence Olivier interpretando Hamlet (na cena em que segura a caveira) – imagens
que dificilmente veríamos na televisão aberta (supomos aqui que André não assina
televisão a cabo...), e que reforçam o caráter que chamamos aqui de “estético” desta
televisão de André.
Em terceiro lugar, depois das onze da noite, o rapaz dedica-se a espiar os prédios
vizinhos com um binóculo, o que parece conferir a este personagem, de resto com
uma vida tão ordinária, um interesse especial, por dedicar-se a essa atividade curiosa
e excitante de observar os outros sem ser observado, atividade cuja natureza pode ser
comparada ao prazer do olhar do espectador cinematográfico que, a seu modo,
também é um voyer.
Poderíamos relacionar o prazer de observação de André ao olhar do espectador de
cinema, atividade voyeur por excelência no mundo das artes, e que teve seu poder de
fascinação metaforizado em Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954). Sobre Jeff
287
Enquanto André assiste TV como se esta fosse um aquário, Silvia olha seu aquário como se fosse
uma
TV.
273
o homem que copiava
(James Stewart), o voyeur, assinala Ismail Xavier: “Junto à janela, ele se entretém
observando os apartamentos vizinhos que cercam o grande pátio interno do
quarteirão, e a vida desfila diante de seu olhar como num cinema, conforme ressalta a
crítica, seja porque lá estão as várias janelas enquadrando as diferentes experiências
(os diversos filmes que ele tem a escolher), seja porque certos detalhes de sua prática
de voyeur colocam-no quase como uma ilustração da teoria do dispositivo
cinematográfico formulada por Jean-Louis Baudry: imobilidade, investimento da
energia do olhar, prazer nessa posição de ‘tudo perceber’, regressão infantil”
288
. É o
prazer de olhar e penetrar no mundo que em alguma medida é reproduzido no ato de
estarmos no cinema, onde, nos termos de Edgar Morin
289
, participamos da cena de
modo afetivo e em boa medida de uma forma passiva. Passiva pois o ambiente da
sala, o fato de estarmos isolados e ao mesmo tempo em grupo (condições favoráveis à
sugestão), uma nova subjetividade que é criada pelo que se passa nas telas, tudo isso
“arrasta” o espectador, e lhe confere prazer: “O filme é detentor de algo equivalente a
um condensador ou a um agente de participação que lhe mime com antecedência os
efeitos. Na medida, pois, em que ele executa, por conta do espectador, toda uma parte
do seu trabalho psíquico, dá-lhe satisfação, com um mínimo de despesa”
290
.
Naturalmente, nem tudo é passivo na relação do espectador com o que se passa na
tela; o próprio termo “participação” de Morin nos deixa vislumbrar o papel do
espectador na construção do sentido fílmico. “Há certamente passividade no sentido
em que o cinema abre, sem cessar, as canalizações por onde a participação se irá
embrenhar. Mas no fim de contas, a mangueira irrigadora é do espectador que vê,
visto que nele está. Sem ela, é o filme ininteligível, uma incoerente sucessão de
imagens, puzzle de sombras e luzes... O espectador passivo mostra-se ativo; como diz
Francastel, colabora no filme tanto quanto seus autores”
291
.
Não por acaso, nossa visão do prédio da frente acompanha o olhar do observador, seja
ele André ou Jeff: intercalam-se planos dos rostos dos personagens que olham com
planos do apartamento tal como está sendo observado. Enquanto espectadores, nos
288
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. op. cit., p.72.
289
MORIN, Edgar. A alma do cinema. O cinema ou o homem imaginário. op. cit.
290
MORIN, Edgar. A alma do cinema. O cinema ou o homem imaginário. op. cit., p.125.
291
MORIN, Edgar. A alma do cinema. O cinema ou o homem imaginário. op. cit., p.125.
274
o homem que copiava
identificamos portanto com o olhar voyeur, sem ter acesso ao interior dos
apartamentos observados, tão separados deles quanto os personagens que observam.
O filme, portanto, assume o papel tradicional do olhar, e a tudo é conferido o status
de objeto. Porém, há uma brincadeira com esse olhar tradicional, uma inversão de
expectativas, já que Sílvia, tradicional objeto, também observa André, tornando-o
também objeto do olhar tradicional.
Em certo momento o olhar de André é descoberto por Silvia, que logo percebe estar
sendo observada. E o próprio André sabe-se observado por nós, espectadores de
cinema, que acompanhamos a evolução de sua narrativa, mais uma vez numa
referência ao papel tradicional do olhar cinematográfico e numa brincadeira com esse
papel. Desfaz-se assim o anonimato assegurado pelo dispositivo cinematográfico.
André fala a nós como se soubesse da nossa condição voyeur, assim como Silvia tira
a roupa sabendo que está sendo observada. É uma seqüência um tanto discreta, mas
que permite que argumentemos que André apenas executa sua performance, ligando e
desligando a fotocopiadora desnecessariamente, para que nós o acompanhemos:
Eu trabalho nesta papelaria, sou operador de fotocopiadora. Aqui você liga e desliga
a máquina. Está vendo? Liga. Desliga. Liga. Desliga. Liga, desliga. Não é bom ficar
fazendo isto muitas vezes, pode queimar. Liga. Desliga. É melhor parar, o Bolha
acaba me vendo pelo espelho bolha dele.
Da janela de seu prédio, André espera Silvia (Leandra Leal) chegar. Como nota
Xavier, e segundo temos comentado, trata-se de uma divisão de papéis tradicional no
que se refere ao olhar que é encampada pelo filme: “quase sempre o olhar é
masculino, e o objeto do olhar é a figura feminina. As instâncias de voyerismo
masculino não devem, no entanto, nos fazer esquecer que a vontade de saber dirigida
a intimidade é comum a todos”
292
. O dar-se a olhar feminino não se originou no
cinema, mas corresponde a uma tradição muito mais antiga no que se refere às
convenções artísticas, que, por sua vez, encontra correlato numa atitude que se espera
da mulher e que ela mesma se policia para desempenhar, como nos mostra John
Berger
293
: “Uma mulher deve vigiar-se. Ela está quase que continuamente
292
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. op. cit., p. 19-20.
293
BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 47-66.
275
o homem que copiava
acompanhada pela própria imagem de si mesma. Quer ela esteja atravessando uma
sala ou chorando a morte do pai, ela mal pode evitar estar vendo a si própria andando
ou chorando. Desde a mais tenra infância foi ensinada e persuadida a vigiar-se
contantemente”
294
. Berger dá exemplos em seu livro de diversas obras de arte de
diferentes períodos nas quais é possível ver a mulher na pintura como depositária do
olhar masculino, como objeto, portanto, do olhar. “Na forma artística do nu europeu
os pintores e os proprietários-espectadores era geralmente homens, e as pessoas, em
geral mulheres, eram tratadas como objetos. Esse relacionamento desigual está tão
fortemente fincado em nossa cultura que ainda estrutura a percepção que muitas
mulheres têm de si próprias. Elas fazem consigo mesmas o que os homens fazem com
elas. Como os homens, elas fiscalizam a própria feminilidade (...). Hoje, os
comportamentos e valores que informam aquela tradição se exprimem através de
outros meios mais largamente difundidos – a propaganda, o jornalismo, a televisão.
Mas a forma essencial de ver a mulher, o uso básico a que se destina sua imagem, não
mudou. A mulher é representada de uma maneira bastante diferente do homem – não
porque o feminino é diferente do masculino – mas porque se presume sempre que o
espectador ‘ideal’ é masculino, e a imagem da mulher tem como objetivo agradá-
lo”
295
.
André descreve o que imagina serem os hábitos da moça – vai à cozinha, pega alguma
coisa para comer, fica vendo televisão até tarde. Aquilo que ele não vê, ele deduz,
acostumado à observação: ela deve estudar à noite, seu pai deve trabalhar como
policial civil ou agente sanitário, eles devem ser tão duros quanto ele. Uma família
construída como um tipo também popular, portanto. Silvia tem um papel colado na
janela do quarto fazendo as vezes de uma cortina. Esse papel limita o campo de olhar
de André, e ele tratará de substituir por uma cortina que, na sua transparência,
permite a visão total do quarto de Silvia. É a mesma cortina que adorna a janela de
Jeff e que vemos na seqüência inicial de Janela Indiscreta. O olhar sobre a vida
íntima alheia também aparece na seqüência que nos conta sobre como o pai de André
desapareceu. O garoto estava assistindo um desenho no qual o cenário era uma casa
294
BERGER, John. Modos de ver. op. cit., p. 48.
295
BERGER, John. Modos de ver. op. cit., p. 65-66.
276
o homem que copiava
cortada no meio, sem as paredes para se ver dentro, quando seu pai saiu para não
voltar mais. Naturalmente, trata-se de uma visão que se assemelha ao que ele pode
observar de seu prédio. E André comenta lembrar-se de um livro que fotocopiou que
tinha na capa uma ilustração muito parecida.
Os créditos desaparecem e a cortina japonesa se abre em Janela
Indiscreta.
André vê televisão quando seu pai vai embora. Ao lado, o livro que
André fotocópia.
Já comentamos anteriormente sobre o papel de janela que desempenha sua televisão.
Temos, com efeito, uma profusão de “janelas”, como a sugerir a abertura de André
para o mundo, seu interesse incessante pelo que vê, e que faz dele este personagem
popular aberto ao mundo da cultura erudita. Em Janela Indiscreta, enquanto seguem-
se os créditos iniciais, a cortina enrola-se, descortinando um palco, ou uma tela, onde
o espetáculo terá lugar (os apartamentos vizinhos). Jeff procura aventura e emoção
nestes apartamentos – é um repórter fotográfico acostumado a cobrir guerras, corridas
de carro, lugares distantes e inóspitos, e que agora se encontra temporariamente
confinado a uma cadeira de rodas. Entediado por ter de ficar em casa e pressionado
por sua namorada que quer casar, ele tenta reaver algo da aventura que costumava ter
em sua vida bisbilhotando os vizinhos, que por sua vez parecem ter realmente algum
277
o homem que copiava
interesse a oferecer: a bailarina que se exercita com roupas mínimas, o casal recém
casado no auge da paixão, miss lonely heart que prepara jantares românticos como se
tivesse uma companhia masculina a seu lado, o pianista que dá festas, o vendedor que
num certo dia faz “sumir” sua esposa. André, ao contrário do aventureiro profissional
Jeff, explicita o caráter rotineiro de sua vida como operador de fotocopiadora, e no
sempre igual de seu cotidiano há o momento excitante de observar os vizinhos. O
olhar de Jeff tem algo de malicioso – ele quer o crime, ele insiste no assassinato, nem
tanto confiante no pouco que viu mas mais naquilo que deseja ver. O olhar de André,
por outro lado, parece procurar não apenas um pouco de emoção como também a
beleza, e é acompanhado da trilha sonora suave, executada numa guitarra dedilhada,
que comenta sua disposição amigável. Ele quer ver a mulher por quem está
apaixonado – cuja rotina também não apresenta grandes aventuras e que por si só não
justifica a observação –, ele gostaria de saber mais sobre a música que o gordinho
ouve. Numa comparação com o que Jeff vê, o “crime” observado por André – o pai
de Silvia que a expia tomando banho – ocorre frente aos seus olhos por acaso, sem
que ele desejasse ver tal cena, e a partir deste momento o olhar do protagonista
modifica-se.
Por causa do papel colado na janela, André só tem acesso a uma pequena parte do
quarto de Silvia, às vezes conseguindo ver mais dependendo da posição do espelho de
seu guarda-roupa. E aí se torna mais claro um aspecto importante do modo de André
ver o mundo: sua fragmentação. As informações a que ele tem acesso vêm a ele de
forma fragmentada, tanto pela sua profissão, como através de certa maneira do
personagem de se colocar no mundo, amante dos quadrinhos, pessoa “incompleta”
(lhe falta o pai e o olho a Zeca Olho), que vê televisão sem se ligar a nenhum
programa mas mudando de canal o tempo todo. Ele procura, diversas vezes, reunir as
informações de modo a construir um todo mais compreensível e mais interessante. É
o que faz ao compor as imagens que tem do quarto de Silvia, numa tentativa de
apreendê-lo por completo. Da mesma forma, ele lamenta-se por não ter acesso à
música que o gordinho do outro apartamento observado escuta enquanto dança,
desejando portanto ter acesso a todos os elementos que compõem esta cena curiosa e
lúdica.
278
o homem que copiava
Logo ao se apresentar, após nos dizer seu nome, André nos informa que mora na Av.
Presidente Roosevelt, mas ele não sabe exatamente os motivos que fizeram deste
homem uma pessoa tão famosa.
Roosevelt foi presidente dos Estados Unidos, era casado com uma gordinha que era
prima dele. Ele ficou conhecido por causa da Doutrina Roosevelt, que não deu tempo
de eu ler o que era.
Como operador de fotocopiadora, André tem acesso a informações incompletas, que
duram o tempo das folhas sucederem-se na máquina que opera ou do cliente vir
buscar o trabalho.
A maior parte do tempo eu fico lendo as coisas que as pessoas trazem para copiar.
Enquanto eu estou tirando as cópias, só consigo ler algumas linhas de cada folha. Já
é alguma coisa.
Parece claro, desde o início, em O homem que copiava, que André gostaria de obter
as informações que lhe faltam, e que dariam acesso a um mundo de certa forma mais
279
o homem que copiava
completo e coeso. No mesmo sentido, podemos lembrar que ele não concluiu os
estudos, tendo portanto escolaridade incompleta. Foi expulso do colégio após bater
com uma garrafa na cabeça de Mairoldi, deixando o rapaz cego de um olho, de
alguma forma também “incompleto” (característica que o alter ego de André, Zeca
Olho, acabou por assimilar, simbolizando assim a visão incompleta e parcial do
mundo que chega aos olhos de nosso protagonista). A incompletude das informações
me parece reforçada pelo estilo colagem da montagem, que recorta informações,
interrompe conteúdos, insere breves observações deixando outras inconclusas.
Chama a nossa atenção, no entanto, o interesse que este rapaz de conhecimentos
fragmentados, por força de sua profissão e do mundo “colagem” em que vive,
manifesta pelas informações que lhe chegam entrecortadas. Acredito que O homem
que copiava tende a insistir no fato de André ser naturalmente curioso, querer
ultrapassar o conteúdo a que tem acesso, estar, a partir das muitas janelas de sua vida,
aberto ao mundo. Ele faz de sua profissão, boçal segundo ele próprio, uma maneira
para descobrir coisas novas, uma forma de alimentar sua criatividade. E por isso ele
lê o que as pessoas trazem e ainda leva para casa as fotocópias com defeito. Sentimos
que de certa forma ele se destaca em seu meio limitante, e há um algo de
extraordinário neste personagem. Ele quase não se contém, precisa falar sobre o que
sabe, e o filme sempre encontra alguma brecha no desenvolvimento da ação para que
ele se manifeste. Podemos citar alguns exemplos. Logo no início do filme, André nos
diz que Shakespeare e Cervantes morreram no mesmo dia. Em meio à narrativa sobre
como “conheceu” Silvia, André, ao contar que o prédio no qual a moça mora chama-
se Santa Cecília, informa-nos sobre como os romanos mataram esta cristã. Ele sabe o
nome da cama cheia de babados suspensos que Marinês tanto gosta (cama de dossel).
Ao falar de seu sonho de ficar rico logo, ele lembra das gravuras que fotocopiou de
um livro de Keith Haring, artista que morreu antes de poder desfrutar a fortuna que
seus quadros renderam. Religião, decoração, artes plásticas: temos a impressão de que
André gostaria, mas não tem tempo de prender-se a nenhum conteúdo; as informações
vêm e vão com velocidade e ele capta o que pode, adquirindo um “saber” vasto,
episódico e parcial sobre o mundo. Saber este que poderia ser considerado fútil,
entrecortado, limitado, um não-saber na verdade. Mas de alguma forma, como que
280
o homem que copiava
naturalmente, André sente-se inclinado a uma cultura mais erudita do que aquela que
lhe chega: ele gostaria de compreender o soneto de Shakespeare que estava lendo,
porém:
A guria chegou para buscar o trabalho. Não consegui ler a última linha. E não sei o
que é hirsuta.
Antes de roubar o banco, momento da virada na vida de André, ele encontra por
acaso, numa locadora de vídeos, o gordinho que dança na janela ao som de uma
música que ele não sabe qual é. Fingindo fazer uma pesquisa para o colégio, André
lhe pergunta que tipo de música ele prefere e qual banda em especial. Ao saber que o
gordinho ouve Creedance, um empolgante rock’n’roll vem completar a imagem do
observado dançando na janela que André espia. O resultado é uma seqüência enérgica
e triunfante, um momento de alegria pela completude da cena que André vê da janela
de seu quarto, pela esperada combinação entre imagem e som, e que prepara nosso
espírito agora excitado para a cena do assalto que se segue. Exultamos pois imagem e
música combinadas tornam a dança do gordinho muito mais interessante de ser
observada, e também porque estamos diante de uma espécie de vitória pessoal de
André. A música acompanha todo o assalto, montado em seqüências breves e rápidas,
visto de diversos e inquietos ângulos, tornando-o em certa medida também enérgico e
empolgante, ainda que nem tudo saia como previsto. André acaba atirando sem querer
na perna do policial que lhe tirara o capuz, acidente que também é visto da mesma
maneira empolgante e algo cômica, pois acompanhado do mesmo Creedance
animado.
O roubo do banco é o momento crucial da trajetória de André que estamos
acompanhando, e alguns planos anteriores mostrando a visão do carro forte do
apartamento de André nos antecipa a importância que tomará este lugar. O rapaz
decide levar a cabo este ato arriscado justamente ao ter acesso a uma das informações
que ele lamentava não possuir: a totalidade do quarto de Silvia. Ao comprar uma
cortina japonesa para a moça, igual àquela de James Stewart em Janela Indiscreta,
torna-se visível o ato do pai, que a observa no banheiro enquanto ela toma banho.
Silvia entrara no quarto ao som da trilha sonora suave (Sinfonia Júpiter, de Mozart),
uma música que comenta sua delicadeza e o amor que André, observando-a, deposita
281
o homem que copiava
nela. É uma seqüência bela cuja descrição sempre ficará aquém da imagem, tal a
sincronia entre imagem e som, e dado o transbordar de emoção de André ao ver o
quarto por completo. Ela tira parte da roupa e a música eleva-se, triunfante, enquanto
André emociona-se com a visão agora total de sua amada. O pai entra no quarto e,
exatamente ao mesmo tempo, a música torna-se sombria, marcando a entrada em cena
do “vilão”, como se observássemos a narrativa de uma ópera instalados num camarim
e através de um binóculo.
André exaspera-se, sai do seu apartamento e corre na rua, impotente, até o meio do
caminho que separa seu prédio do de Silvia. A mudança de clima na trilha sonora,
que começa a ocorrer no desenrolar desta seqüência voyeur, acompanha a mudança no
humor do filme. Vão-se as tiradas, as ironias, os pequenos e divertidos delitos, a
trajetória algo errante e ordinária do nosso protagonista, e inicia-se uma tomada de
ação decisiva: tirar Silvia do convívio do pai. É claro, pode-se considerar que desde
que começou a falsificar notas de cinqüenta reais André saiu de seu lugar comum de
operador de fotocopiadora. Este “crime”, no entanto, é tratado segundo o humor geral
do filme, e como um ato sem maiores conseqüências, mal planejado, feito sem
“profissionalismo”, um estopim para André aproximar-se de Silvia e começar a
vislumbrar o mundo que se abriria diante de si caso ele tivesse dinheiro.
Para tirar Silvia do convívio com seu pai, André decide casar-se com a moça, que
prontamente aceita. Para isso precisa arrumar dinheiro, e dinheiro de verdade, não o
dinheiro que ele vinha “fabricando”. Desde que chegara a fotocopiadora colorida em
sua loja, André se dedicava a falsificar notas de cinqüenta reais. Seus objetivos eram
modestos: comprar uma roupa na loja de Silvia, comprar um presente para ela. Em O
homem que copiava o dinheiro desempenha um papel central na trajetória dos
personagens. Marinês deixa claro que só teria relações sexuais ou se casaria com um
282
o homem que copiava
homem rico – pai pobre é destino, marido pobre é burrice. Cardoso sabe que um
possível sucesso com as mulheres depende de fazê-las acreditar que ele não é tão duro
quanto é realmente, e por isso ele diz trabalhar com “antiguidades”, e não numa
espécie de sebo precário de objetos. Notamos de imediato, e isso é parte da graça do
filme, a representação de si que os personagens desempenham, para falar como
Erving Goffman, e neste sentido aproximando André, sobre quem já comentamos, de
Cardoso. Assim com André diz ser “operador de fotocopiadora”, Cardoso diz
trabalhar com “antiguidades”. Trata-se de parte da “fachada” de ambos: “(...) o
equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente
empregado pelo indivíduo durante a representação”
296
. Ambos sabem que, no trato
com as mulheres, precisam do que Goffman denomina “fachada” para esconder a
situação de classe na qual se encontram e que, naturalmente, prejudica a paquera com
as mulheres. “Entre as várias partes da fachada pessoal podemos incluir os distintivos
da função ou da categoria, vestuário, sexo, idade e linguagem, expressões faciais,
gestos corporais e coisas semelhantes. Alguns desses veículos de transmissão de
sinais, como as características raciais, são relativamente fixos e, dentro de um certo
espaço de tempo, não variam para o indivíduo de uma situação para outra. Em
contraposição, alguns desses veículos de sinais são relativamente móveis ou
transitórios, como a expressão facial, e podem variar, numa representação, de um
momento a outro”
297
. No caso de Cardoso, seu distintivo de função (trabalhar com
antiguidades) fica logo evidente como fachada, na medida em que ele não consegue
esconder outras características decorrentes de sua condição social que o revelam, tais
como o perfume barato que utiliza, o sapato que foi reformado e a gravata “brega”
que ostenta.
Ainda sobre dinheiro, André conta que antigamente sonhava em ser famoso jogando
futebol, mas agora só pensava em ser rico – aquela antiga vontade de ter algum
talento fora substituída por uma versão mais pragmática e imediatista do sonho. Ele
também sabe que garotas não se interessam por rapazes sem grana. O comportamento
de Silvia leva-o a acreditar nisso: ele acredita que ela só passa a tratá-lo com simpatia
296
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. op. cit., p. 29.
297
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. op. cit., p. 31.
283
o homem que copiava
quando ele compra o chambre de trinta e oito reais. Ele diz “obrigado” e ela responde,
meiga: “imagina, obrigado a você”. André está feliz no ônibus e ouvimos sua voz em
off, tornando audível seu pensamento:
‘Imagina. Obrigado você...’ Esse foi totalmente diferente, ela disse obrigado a você
me olhando nos olhos. Ela me olhou e me chamou de você. Mas o melhor foi aquele
‘imagina’.
André chega em casa e pega seu binóculo para observar Silvia. Ela está na janela do
quarto e olha diretamente para a câmera – ou para André, que como observador
estaria colocado na mesma posição – e, toda sexy, diz: “imagina...”. Vemos o
desenho/colagem de um rapaz feliz deitado sobre um monte de dinheiro, com algumas
fotos de mulheres ao seu redor.
Imagina um monte de dinheiro. Imagina um monte de coisas que dá para comprar
com esse dinheiro. Imagina como as pessoas vão tratar você depois que comprar esse
monte de coisa. E agora imagina que você é um otário imaginando um monte de
coisas.
A partir do momento em que compra o chambre da loja na qual Silvia trabalha, André
se torna muito mais confiante na paquera com ela, pois se acredita valorizado em
razão de seu efêmero “poder aquisitivo” e pensa que, segundo lhe dá a entender
Marinês e suas experiências com mulheres (que não sonham em passar o resto da vida
com operadores de fotocopiadora), não conseguiria conquistar ninguém sendo duro. E
Marinês, efetivamente, resolve ter sua primeira relação sexual com Cardoso e casar-
se com ele depois que ele se torna milionário, quando antes achava impensável sequer
sentir tesão pelo personagem. Saberemos mais tarde que Silvia, na verdade, não se
importa com o fato de André ser duro, afinal, desde o princípio ela sabia que o rapaz
trabalhava no xerox de uma papelaria, e seu interesse surgiu quando ela percebeu que
era observada pela janela do apartamento. No entanto, essa moça, que a princípio não
visa à ascensão social via casamento, ao contrário de Marinês, também se importa
com o dinheiro, pois acredita que ele é o meio de tirá-la do convívio com Antunes e
de viajar para o Rio de Janeiro. Quando seu pai descobre que era André o assaltante
284
o homem que copiava
de banco, pede metade do dinheiro para não denunciá-lo. Silvia recusa-se
veementemente a deixar André entregar o dinheiro, e diz preferir matá-lo.
Todo o assunto do dinheiro começa, no entanto, com a falsificação da primeira nota
de cinqüenta reais, e a facilidade que André encontra para passá-la sem ser
descoberto. Tem início a seqüência de atividades ilícitas que em O homem que
copiava são recompensadas. Todos os planos de André para conseguir dinheiro
parecem dar certo, e ele vai crescendo no grau de criminalidade de suas ações.
Falsificação, roubo a banco, lesão corporal, homicídio... Fotocopiar notas de
cinqüenta reais permite que se mantenha o tom irônico e o bom humor do filme. A
cena do roubo a banco também, como já notamos, é acompanhada de uma trilha
sonora empolgante. As atividades ilícitas que envolvem dinheiro são tratadas com
simpatia e naturalidade, constituindo motivo de tiradas do filme. Em nenhum
momento em O homem que copiava sentimos um teor repreensivo sobre os
personagens. Ao contrário, o sucesso deles como falsários torna-os mais simpáticos.
A narrativa inclusive os recompensa: André ganha um grande prêmio na loteria
jogando uma seqüência de números improvável (01, 02, 03, 04, 05, 06) – e
lembremos que era justamente nas casas lotéricas que André e Cardoso costumavam
trocar as notas de cinqüenta falsificadas, o que, a meu ver, aumenta o caráter de
“recompensa” do prêmio pelos atos praticados. Além disso, é preciso considerar que
trocar dinheiro falso em casas lotéricas e roubar bancos são ilegalidades
aparentemente praticadas contra ninguém. Não há vítimas das falcatruas de André e
Cardoso. Ninguém ficou mais pobre, nenhuma família foi usurpada. André até
pensara em trocar a primeira nota de cinqüenta reais falsa num boteco, mas o dono do
estabelecimento devia ser tão duro quanto ele, segundo ponderava.
Quem é construído como um personagem “vilão” aqui é o pai de Silvia, que a observa
tomando banho. É interessante considerar que André também observa Silvia, mas o
ato de Antunes é tratado como algo muito mais repulsivo, provavelmente porque ele é
seu pai e porque seu olhar é dirigido por um interesse exclusivamente sexual e
portanto incestuoso (o tabu universal), enquanto o olhar de André, ainda que anseie
avidamente por um relance do corpo da moça, justifica-se pela sua paixão sincera e
romântica. E também porque, como já dissemos, seu olhar parece procurar algo da
285
o homem que copiava
beleza que haveria num mundo mais completo, num mundo no qual ele pudesse ler o
soneto de Shakespeare até o fim e no qual ele soubesse o significado da palavra
hirsuta, que tornaria melhor sua compreensão do poema.
Poderíamos dizer que a presença de André está relacionada a um olhar erudito, no
sentido da pesquisa aqui realizada. André olha um soneto Shakespeare com interesse,
olha Hamlet de Laurence Olivier e Dom Quixote e Sancho Pança na televisão, olha
para os livros “acadêmicos” que fotocopia nos dando a sensação de que gostaria de
tê-los lido, olha quadros de Van Gogh, de Keith Haring e de Andy Warhol, cujas
Marylins e Maos podem ser identificados. A respeito deste último pintor, inclusive,
podemos dizer que o procedimento do cineasta Jorge Furtado assemelha-se ao
praticado por ele: como Warhol, Furtado elabora, na montagem, uma justaposição de
imagens idênticas ou muito similares, recarregando-as de sentido pela repetição.
Além disso, como o pintor, Furtado trabalha em grande medida sobre aquilo que é
corriqueiro, cotidiano, trivial, fazendo emergir um novo sentido na banalidade.
Poder-se-ia argumentar que todas estas citações artísticas chegam a ele sem querer,
meio por acaso – e a montagem colagem de Jorge Furtado algumas vezes intensifica a
sensação de aleatoriedade, tal o ritmo e a variedade dos planos que se sucedem. Mas é
preciso considerar que André demonstra interesse no material que seus olhos
encontram. Além disso, o fato das citações chegarem até ele casualmente pode nos
transmitir uma sensação de que este personagem tem algo de “predestinado”, de
286
o homem que copiava
fadado a uma cultura diferente do que aquela que normalmente chega a um garoto de
classe média baixa sem escolaridade, de um personagem mais identificado a um tipo
popular, e não intelectual, e que portanto dificilmente tem acesso à cultura erudita.
André percebe que esta cultura lhe chega de maneira fragmentada, entrecortada,
veloz, impedindo suas possibilidades de reflexão, atrapalhando um pensamento mais
completo – esta cultura lhe chega portanto de uma maneira que poderíamos
considerar massificada, pronta para o consumo rápido e inconseqüente, transformada
muitas vezes em artefatos comerciais, como o são os produtos da cultura de massas.
Sabemos que na cultura de massas é comum utilizar-se de conteúdo erudito ou
cultivado para ampliar as vendas. Em alguma medida é assim que André toma contato
com a alta cultura, quando anda pela rua e vê produtos estampados com reproduções
de Van Gogh e Keith Haring, ou quando liga a televisão e vê cenas de Hamlet de
Laurence Olivier.
O mundo de André é fragmentado, sua profissão só lhe permite ter as informações
pela metade, sua falta de dinheiro limita a obtenção daquilo que ele deseja. Ainda
assim, limitado pelo mundo fragmentado, pela boçalidade de sua profissão, pela
pobreza e pouca educação, as imagens de uma cultura erudita lhe chegam como se
nada disso pudesse impedir que André esteja atento ao que há de belo neste saber e
arte, quando sabemos que todas estas condições efetivamente dificultam muito o
acesso à alta cultura. É claro, André não é alguém que se debruça sobre o
conhecimento erudito de forma sistemática e propositalmente. Mas, se os livros
entram na sua vida por força de sua profissão, ele os relembra nas referências a um
conhecimento um tanto sofisticado – e por isso é capaz de corrigir Cardoso quando
este resolve fazer “apucuntura”. E, é preciso considerar, seu olhar na janela de Silvia
é acompanhado por música clássica, o que nos remete, de certa forma, a uma beleza
elevada deste olhar, acompanhada de uma verdade de sentimento, de uma sobriedade
no coração.
Se as imagens de uma cultura erudita chegam a André por força do acaso, de sua
profissão ou do seu próprio interesse, é preciso considerar que Silvia desempenha um
papel muito importante na compreensão destas imagens. Sílvia possui códigos cultos,
e portanto é alguém que colabora para André ter acesso ao mundo da beleza. No
287
o homem que copiava
momento mais relevante, ela explica o poema de Shakespeare para André, e ela sabe
usar o dicionário para procurar o significado da palavra hirsuta. Ela de certa forma
exerce um papel de “comando” na trajetória de André, não apenas por deter alguns
códigos da cultura erudita que o rodeia, mas também por introduzir nele certas
decisões que são, em grande parte, obra dela. Estamos falando principalmente da
introdução da idéia do Rio de Janeiro no imaginário de André, e pensamos aqui numa
das cenas inicias, quando ele recolhe do chão da papelaria um cartão da cidade, que
depois saberemos ter sido jogado por ela.
Em O homem que copiava as citações têm lugar privilegiado em meio à colagem da
montagem e do fluxo de pensamento de André, e os créditos finais fazem questão de
explicitá-las. Acredito inclusive que exista uma certa ostensividade nas citações, o
que sugeriria uma necessidade de inscrição do filme no âmbito de uma cultura
erudita. Trata-se também, provavelmente, de prestar uma homenagem às grandes
obras de arte da humanidade, o que da mesma forma parece pretender mostrar o valor
da cultura erudita em oposição ao mundo fragmentado que impede André de ter
acesso completo a esta cultura. Há homenagens à literatura de Shakespeare,
Dostoievski e Kafka (o último trecho da carta de Silvia é inspirado na Carta ao pai),
à música com sinfonias clássicas (Sinfonia n
o
41 de Mozart, Concerto duplo para dois
violinos e orquestra em ré menor de Bach), ao cinema (Hamlet, de Laurence Olivier,
A Noite de São Lourenço, dos irmãos Taviani), às artes plásticas (desenhos de Keith
Haring e pinturas de Vincent Van Gogh). Ao espectador que não estiver atento às
citações, porém, nada lhe faltará para a compreensão da história. Aqui a cultura
erudita é também parte da diversão, do jogo, do lúdico. Para aquele que não puder
identificar as referências, fica o aspecto divertido da profusão de imagens, dos planos
que se sucedem, da surpreendente presença do mundo no trabalho boçal de André.
Por que o prazer do cinema, como nos dá a entender O homem que copiava, pela sua
própria natureza de combinação de imagem, música, linguagem, literatura, indústria,
tecnologia, também é cópia, também é colagem, também é pilhagem. Não apenas no
sentido erudito – no qual uma imagem deve mais às outras do que à observação do
real
298
–, mas como apropriação livre do mundo extra-filme e das demais formas
298
Cf. GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 340.
288
o homem que copiava
artísticas. O cinema, como André, também é um falsário. Arte impura, pura cópia,
forma que se concretiza na reprodução. Cópia em movimento, que se apropria de
demais imagens e sons, e transforma-as numa coisa diferente, procedimento colagem
de O homem que copiava. Apropriação que está no âmago da arte cinematográfica:
“Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado
estava contido virtualmente na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se no
fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de
qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das
obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como
conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos
299
.
E como reprodução, segundo Walter Benjamin, o cinema é cópia não apenas no
sentido erudito metalingüístico, ou no apropriar-se do mundo, mas também porque,
enquanto arte, ele não comporta a idéia de um “original” (ao contrário de um quadro
ou de uma escultura). Sendo uma obra de arte da era da “reprodutibilidade técnica”,
no cinema não há sentido em se falar de autenticidade. Um dos aspectos do cinema é
justamente, para o autor, seu caráter de “cópia”. “Nas obras cinematográficas, a
reprodutibilidade técnica do produto não é, como no caso da literatura ou da pintura,
uma condição externa para sua difusão maciça. A reprodutibilidade técnica do filme
tem seu fundamento imediato na técnica de sua produção. Esta não apenas permite,
da forma mais imediata, a difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna
obrigatória
300
. Desta forma, o cinema, como o dinheiro falso de André, traz inscrito
em si a marca da não-originalidade. André queima seu dinheiro; a cópia pode não
valer absolutamente nada.
É interessante, pensando do ponto de inflexão na vida de André, fazermos algumas
considerações sobre a mudança narrativa que tem lugar a partir deste momento.
Gostaria de chamar a atenção para o fato de que os elementos próximos a um cinema
“de arte” tendem a ser abandonados em favor das características da uma narrativa
mais aproximada do modo clássico de se contar histórias. A meu ver, podemos sentir
299
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Obras escolhidas
volume 1 - Magia e técnica, arte e política. op. cit., p. 167.
300
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Obras escolhidas
volume 1 - Magia e técnica, arte e política. op. cit., p.172.
289
o homem que copiava
uma certa transformação na estrutura de O homem que copiava a partir de um dado
momento, transformação esta que faz com que o personagem André perca algo de seu
caráter popular-discreto, de seu anonimato comovente, de sua insignificância
enternecedora que é dada pelo relato do sempre igual do seu cotidiano e pelo seu
trabalho como “operador de fotocopiadora”. Enquanto André nos conta sua vida,
alternando passado e presente, fazendo repetir seqüências semelhantes de modo a
ressaltar o aspecto ordinário de seu cotidiano, um estilo que podemos chamar de
“episódico” predomina. Vemos pequenas seências narrativas, redundâncias que não
fazem avançar o enredo, banalidades divertidas que ainda não trazem grandes
conseqüências para o desenvolvimento da história contada de André. A meu ver, é o
ponto forte de O homem que copiava, e que será abandonado por uma necessidade de
se avançar nos acontecimentos extraordinários que ocorrem na vida do protagonista.
Não devemos ser por demais rígidos nas definições de “cinema de arte” ou “cinema
clássico”, já que convenções tanto da narrativa “de arte” quanto do cinema clássico
podem estar presentes ao mesmo tempo em maior ou menor grau em diversos filmes,
e na medida em que devemos levar em conta o olhar do espectador, necessariamente
ativo no que se refere à compreensão de um filme. Além disso, a utilização de
convenções do cinema dito “de arte” não necessariamente transforma o filme em arte
erudita, já que esta classificação parece fazer parte das próprias clivagens da indústria
de cinema com vistas a segmentar o público.
O que é interessante é notarmos uma mudança na trajetória do personagem, e para
isso vamos utilizar das convenções do cinema clássico e do cinema dito “de arte”, ou,
em outras palavras, acreditamos que estas convenções podem, aqui, nos ajudar a
compreender a mudança narrativa de O homem que copiava e a mudança do
personagem André.
David Bordwell elabora uma espécie de tipologia que aqui julgamos interessante por
ser sensível a aspectos narrativos que muitas vezes temos dificuldade em
explicitar
301
. “O filme hollywoodiano clássico apresenta indivíduos psicologicamente
definidos que lutam para resolver um problema definido ou atingir objetivos
específicos. No curso desta batalha, os personagens entram em conflito com outros ou
301
Cf. BORDWELL, David. Narration in the fiction film. op. cit., pp. 156-233.
290
o homem que copiava
com circunstâncias externas. A história termina com uma vitória decisiva ou com o
fracasso”
302
. A narrativa do cinema “de arte”, por outro lado, segundo Bordwell
303
,
não é tão evidente no que ser refere ao desenrolar dos acontecimentos e à trajetória
dos personagens, não dando tanta atenção, por exemplo, ao desenvolvimento da ação,
guardando espaço para buracos, informações suprimidas, distribuindo as informações
relevantes ao longo da narrativa, mostrando tanto os momentos cruciais quanto os
mais triviais. Seqüências importantes são construídas a partir de encontros fortuitos e
de situações banais. Os personagens parecem não ter traços característicos tão
demarcados, não constituindo tipos tão evidentes, que agem prontamente, sem
hesitações. Os protagonistas da narrativa “de arte” podem questionar a si mesmo, agir
inconsistentemente, “perambular” mais do que agir, passar passivamente de uma
situação a outra, como se o filme nos mostrasse que a vida vai de certa forma à
deriva, e que um filme nunca pode chegar perto de reproduzi-la em suas
inconsistências e inclassificáveis sensações.
Não é do nosso interesse aqui classificar O homem que copiava como um filme de
narrativa clássica ou “de arte” a partir destes elementos. Apenas gostaria de salientar
uma mudança na trajetória de André, que passa a perder o caráter popular episódico,
banal, anônimo, discreto, comovente, mais próximo ao personagem do cinema “de
arte”. Ao ver Antunes observando sua filha no banheiro, André passa a agir num
ritmo mais decisivo rumo ao desenrolar da história, e ao final seu aspecto de popular
terá se perdido quase por completo, quando então ele é visto no Rio de Janeiro –
cidade que não tem nada de discreta, que é conhecida por sua beleza, sua
extraordinariedade, que é inspiração para músicas e poemas, que fulgura entre as
cidades-celebridades. Podemos dizer que a mudança no rumo da vida de André será
introduzida em seqüências anteriores do filme, em idéia que são lançadas, quando
vemos, por exemplo, imagens do carro forte e do Rio de Janeiro, muito antes do
personagem decidir praticar um assalto e mudar de cidade. São imagens que, de
maneira discreta, introduzem os acontecimentos posteriores. Assim, as mudanças
serão insinuadas ao longo do filme, talvez como parte de seu caráter também
302
BORDWELL, David. Narration in the fiction film. op. cit., p. 157. Sobre a narrativa clássica, ver pp.
156-166.
303
BORDWELL. David. Narration in the fiction film. op. cit., pp. 205-233.
291
o homem que copiava
fragmentado, que vai dando acesso ao todo de modo devagar e progressivo, até
culminarem em um momento decisivo.
No entanto, inclusive pela inserção destes fragmentos e repetições que por ocasião de
seu aparecimento não terão seu sentido revelado, a narrativa evolui de maneira algo
incerta até o momento crucial do assalto ao banco, sem a objetividade econômica
característica do cinema clássico, e tínhamos um protagonista que se questionava ao
explicitar seus pensamentos, que de alguma forma vagava entre suas ações, que nos
apresentava seu cotidiano repetitivo e que, segundo acredito, passava passivamente de
uma situação a outra, como diz Bordwell sobre o cinema “de arte”, ainda que André
tenha demonstrado alguma iniciativa ao procurar Silvia na loja em que trabalhava.
Mas mesmo essa iniciativa, essa sua tomada de ação, acontece de maneira que ele
pouco controla o desenrolar dos acontecimentos. Ele confunde-se (dizendo que queria
comprar algo para ele numa loja de roupas femininas), fica nervoso (e sai logo da loja
ao saber o preço do chambre), encontra Silvia sem querer no ônibus (ocasião em que
logo se arrepende de dizer que compraria o chambre), tenta passar uma cantada que
logo soa ridícula (Silvia, você gosta de cerveja?). De certa forma, é como se víssemos
o “ator” de Erving Goffman em ação esforçando-se na representação de si e
acumulando sucessivos fracassos. No entanto, quando decide assaltar o banco e
“salvar” a menina do convívio do pai, suas ações passam a ser melhor dirigidas, a
narrativa evolui de maneira direta, e André pára de narrar, o que até então havia
colaborado fortemente para o vagar da história, a incerteza do personagem, a
banalidade de sua vida. Nosso protagonista torna-se tão decidido que conta duas
grandes mentiras sem hesitar (dizendo para Silvia que viajaria para o Rio de Janeiro e
para sua mãe que iria para a Holanda), quando até então se confundia ao dizer
pequenas mentirinhas (sobre o chambre para a mãe) e ponderava se valia a pena faltar
com a verdade (ele teme pedir o dinheiro emprestado ao Seu Gomide utilizando como
desculpa o aniversário de sua mãe). Mais decidido ainda, e de maneira surpreendente,
ele pede Silvia em casamento, quando ainda poucos eram os indícios de que ela
correspondia ao seu amor. Trata-se, falando novamente nos termos de Goffman, de
uma mudança na auto-representação do personagem, e na verdade temos a impressão
de que ele abandona os pequenos números forçados e banais que ele se esforçava para
292
o homem que copiava
desempenhar passando agora a representar um grande papel que lhe cai com muito
mais naturalidade. Em um momento anterior, quando a narrativa evoluía
diferentemente, André já havia cogitado pedi-la em casamento, mas apenas em seu
pensamento. Vemos uma seqüência na qual ele pergunta se ela quer casar com ele e
em seguida uma nova seqüência, “corrigindo” a anterior, na qual a única coisa que ele
tem coragem de dizer a ela é “obrigado”. A meu ver, temos aí a explicitação de uma
diferença importante: o pedido de casamento imaginado e o pedido de casamento real,
como indicativos da mudança de narrativa em direção a uma tomada de ação mais
decisiva.
Enquanto André flutuava em sua narrativa, na qual a aventura mais excitante que
parecia distraí-lo era seguir a moça do prédio em frente, e que coincidia com o
respeito a algumas convenções do cinema “de arte” como o descrevemos acima,
tratava-se de um personagem moralmente simpático, não idealizado, que confessa seu
desejo de ganhar dinheiro mas que não parece ter uma ambição exagerada, um jovem
cujos sonhos são compreensíveis, comuns, gerais (ganhar dinheiro para abandonar
sua profissão banal e enfadonha e conquistar uma garota). Os avanços narrativos se
davam no contato com Silvia, uma situação de todo banal, entremeada pela
falsificação de dinheiro, de resto uma atividade que surge um tanto por acaso, e que
não leva nosso protagonista mais longe do que comprar alguns presentinhos para a
amada. Ou seja, nossos personagens têm uma certa humanidade comum, e nada
indicava que seriam capazes de matar uma pessoa, ato de certa forma
“extraordinário”.
Exemplos do que chamamos de “humanidade” dos personagens podem ser entrevistos
nas situações patéticas ou constrangedoras nas quais Cardoso e André se colocam.
André muitas vezes erra, percebe que fez algo idiota (principalmente no que se refere
a sua paquera com Silvia: Silvia, você gosta de cerveja?), age sem muita certeza,
assim como pouca certeza parece ter a narrativa sobre o caminho que irá tomar.
Cardoso também é dotado de uma banalidade comovedora, tentando conquistar
Marinês executando para isso as estratégias mais triviais (fazê-la sentir ciúmes de
uma suposta amiga, fingir que tem dinheiro, convidá-la para ouvir uma coleção de cds
na sua casa, estratégias que nos divertem pela convencionalidade).
293
o homem que copiava
Podemos dizer, mais uma vez junto com Erving Goffman em A representação do eu
na vida cotidiana
304
, que, enquanto “atores” representando o papel deles mesmos,
André e Cardoso são pouco convincentes para suas “platéias”, que percebem a
atuação (Marinês percebe que Cardoso é duro apesar de ele tentar mostrar o contrário
e Silvia sabe que a história do presente para a mãe de André é apenas um
“teatrinho”). Na medida em que a atuação é mal-sucedida e a verdade é revelada, a
constrangedora e comovente humanidade dos personagens aparece, pois o revelar-se
por trás da máscara coloca o ator numa posição defensiva e vulnerável. Goffman
descreve como poucos o tocante despertar desta humanidade que reside na falha. Vale
a pena acompanhá-lo na longa citação: “A despeito do fato de os atores e o público
empregarem (...) técnicas de manipulação da impressão (...), sabemos, sem dúvida,
que ocorrem incidentes”. Nestes casos, “os membros da platéia às vezes aprendem
uma lição importante, mais importante para eles do que o prazer agressivo que
poderiam ter ao descobrir os segredos escusos, de confiança, interiores ou secretos de
alguém. Os membros da platéia podem descobrir uma democracia fundamental, que é
geralmente bem escondida. Quer o personagem que está sendo apresentado seja
sóbrio quer descuidado, da alta ou baixa condição, o indivíduo que o representa será
visto como aquilo que em larga medida é: um ator solitário envolvido numa opressiva
preocupação com sua produção. Por trás de muitas máscaras e muitos personagens,
cada ator tende a usar uma única aparência, uma aparência nua não socializada de
concentração, uma aparência de quem está pessoalmente empenhado em uma tarefa
difícil e traiçoeira”
305
. É exemplar a imagem de André que, após fracassar na sua
paquera idiota (Silvia, você gosta de cerveja), vê-se na tela de uma televisão –
possivelmente um correspondente moderno do palco a que se referia Goffman – e
leva uma torta na cara, numa rejeição da imagem de si que ele estava tentando
construir. André percebe, na ocasião, que seu “eu” ali representado não deu muito
certo, e despede-se de Silvia pateticamente, constrangido, como se na verdade não
304
“Passemos agora do indivíduo como personagem representado ao indivíduo como ator. Tem a
capacidade de aprender, sendo esta exercida na tarefa de treinamento para um papel. É dado a ter
fantasias e sonhos, alguns que agradavelmente desenrolam uma representação triunfante, outros,
cheios de ansiedade e terror, que nervosamente se referem a descréditos vitais numa pública região de
fachada”. G
OFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. op. cit.
305
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. op. cit., p. 215-216.
294
o homem que copiava
quisesse nada com aquela pergunta estúpida, mas provavelmente com a forte
impressão de que seu “eu” patético fora revelado. Numa ocasião como esta, “é
possível que todos nos tornemos transitoriamente para nós próprios a pior pessoa que
podemos imaginar que os outros sejam capazes de imaginar que somos”
306
.
Pensar na completa ausência de culpa dos personagens homicidas em O homem que
copiava nos remete ao cartaz com uma foto do livro Crime e Castigo que aparece em
um ponto de ônibus onde André espera. Ao contrário dos homicidas André, Sílvia,
Marinês e Cardoso, a trajetória de Raskolhnikov, protagonista do romance de
Dostoievski, transforma-se em pura culpa, impedindo-o de levantar de sua cama, de
sair de seu quarto, de ser amável com sua amada mãe e irmã. Os personagens de O
homem que copiava enfrentam pouco ou nenhum mal-estar pelos atos praticados.
Enquanto Raskolhnikov passa a viver terrivelmente amargurado depois de matar uma
antipática velha usurária e sua irmã – neste penoso estado mental constituindo o
verdadeiro castigo que recai sobre ele – André, Silvia, Marinês e Cardoso falsificam
dinheiro, roubam um banco, matam dois homens (Antunes e Feitosa) e depois são
vistos divertindo-se no Corcovado, tendo sido ainda recompensados com a sorte
grande na loteria. Não há culpa. E talvez seja por isso que André, que se mostra tão
interessado nas referências à cultura erudita que lhe chegam enquanto ele trabalha, é
visto de costas para o cartaz, sem tomar conhecimento de sua presença, ignorando ou
mesmo negando o castigo moral que o crime poderia lhe suscitar se houvesse uma
moral conduzindo a história, como havia no livro de Dostoievski. Esta citação
erudita, portanto, pode estar aí para quem sabe nos mostrar a indiferença de André em
relação à culpa de Raskolhnikov.
306
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. op. cit., p. 216.
295
o homem que copiava
A morte de Feitosa é tratada com bastante frieza, principalmente se pensarmos na
maneira extremamente violenta que André usa para dar cabo de seu “amigo”. Em
consonância com o caráter fragmentado que muitas vezes toma o filme, com
repetições de planos e antecipações de seqüências, a morte de Feitosa havia sido
“anunciada” quando vimos A Noite de São Lourenço na TV de André. Assim, ao
caráter fragmentário do mundo que cerca André é conferida certa unidade e
inteligibilidade por atuação do próprio personagem principal, que consegue utilizar-se
das informações que lhe chegam entrecortadas para, ao fim do filme, tomar decisões
completas.
De forma a amenizar a surpreendente decisão de matar Antunes, André e Cardoso
arrependem-se no meio da execução do plano, e ainda tentam desligar a geladeira.
Silvia liga-a novamente, convencida de que deve matar o pai. Após a explosão do
apartamento eles partem para o Rio de Janeiro, cidade que será progressivamente
introduzida no filme, primeiramente pelo cartão postal que Silvia joga anonimamente
aos pés de André na papelaria, em seguida com imagens da Baía de Guanabara, nos
comentários da menina sobre seu pai que mora na cidade, e assim paulatinamente, até
que a vontade de partir para lá se torna também um desejo do próprio André e uma
realidade para todos os personagens, simbolizando uma possibilidade de mudança de
vida.
Logo eles aparecem aos pés do Cristo Redentor, num dia ensolarado, comentando a
morte de Antunes através da leitura de um jornal. Aqui novamente o mundo que
qualificamos de “fragmentado”, que nos priva das informações completas e
essenciais, que, ao mesmo tempo em que nos impossibilita o acesso ao conteúdo
aprofundado, faz com que esse conteúdo circule na forma de mercadorias como
pôsteres e camisetas, aparece: a notícia da morte de Antunes dá mais destaque à
galinha do que ao crime, o que provavelmente colabora para a tranqüilidade dos
personagens que percebem que o foco da atenção sobre o crime está desviado para o
animal encontrado. A fragmentação do conteúdo, a superficialidade da informação
aqui, portanto, age em favor do protagonista André, que se vale do sensacionalismo
jornalístico para passar desapercebido. André, que muitas vezes era de certa forma
“tomado de assalto” pela cultura que lhe chegava no trabalho, na rua, na televisão,
296
o homem que copiava
agora consegue em alguma medida determinar o conteúdo a ser difundido em um
meio de comunicação de massa.
Do alto do Corcovado o ponto de vista narrativo de O homem que copiava muda, e é a
vez de Silvia contar brevemente sua versão da história. Conta-nos que sabia estar
sendo observada por André, e que desde que o viu na janela ficou interessada no
rapaz. Seqüências que havíamos visto no decorrer do filme repetem-se, agora
narradas segundo Silvia. Nessa narração ela colabora na construção de uma
totalidade, como um personagem capaz de dotar de sentido muito do que vimos até
agora, organizando material e explicando seqüências, o que pode estar relacionado
àquele seu aspecto de dar acesso a um mundo de códigos cultos a André, um mundo,
portanto, onde o todo se torna mais compreensível. Ela espera Paulo, o ex-namorado
de sua mãe que era ator e que deixou Porto Alegre para viver no Rio de Janeiro,
conforme o encontro marcado no Corcovado. Vemos então o ator Paulo José se
aproximando, e temos a impressão de que o papel que ele interpreta é, ao menos
aproximadamente, o dele mesmo, vestindo o colete e a camisa que nos dão certa
impressão de familiaridade – “já vimos esse cara antes...” ou “que surpresa, o pai da
Sílvia é o Paulo José!”. Além do nome e da profissão em comum, Paulo José também
é gaúcho, como deve ser o personagem que interpreta, e sabemos que trabalha na
Rede Globo, cuja sede principal é no Rio de Janeiro. Silvia então encontra um ator –
possivelmente da Rede Globo – que ela gostaria que fosse seu pai, e beija sua mão.
Depois de termos associado nosso protagonista à cultura erudita mostrando como suas
citações fazem referência a ela, descrevendo o que chamamos de seu olhar erudito,
chamando a atenção para o fato de imagens e sons da cultura erudita acompanharem a
trajetória do personagem negro e sem escolaridade, acredito agora que seja possível
dizermos que o final de O homem que copiava relaciona-se de certa forma à cultura
de massas, identificada aqui a uma cidade que muitas vezes está associada, no cinema
da retomada, a uma produção cinematográfica “mais leve”, que procura seguir a um
padrão dito hollywoodiano (e Bossa Nova, de Bruno Barreto, talvez seja o melhor
representante deste cinema leve que explora as belezas naturais da cidade), e que é
sede do maior canal de televisão brasileiro, cuja produção confunde-se muitas vezes
com a história da cultura de massas brasileira em suas bem produzidas telenovelas, no
297
o homem que copiava
seu estilo fronteiriço de telejornalismo – num meio caminho entre o sensacionalismo
e a sobriedade –, nos seus especiais kitchs de fim de ano. Portanto, poderíamos dizer
que o encontro com o ator da TV Globo resulta numa sugestiva aproximação com a
cultura de massas, e que, na medida em que esse encontro ocorre no Rio de Janeiro,
podemos considerar que esta cidade está aí colocada como uma possível fuga de um
cotidiano de classe média baixa que circundava nossos personagens em Porto Alegre.
A carta de Sílvia para o pai reproduz um trecho de Carta ao pai de Franz Kafka, e é
parte das citações eruditas que permeiam o filme. Aqui, no entanto, a citação parece
um tanto deslocada em relação ao humor inteligente ou ao caráter episódico que
permeava as diversas outras citações. O trecho final da carta de Silvia não consegue
evitar um sentimentalismo fácil, que não havíamos visto antes, e uma sensação de
conclusão que não parece se encaixar bem neste filme de fragmentos: “Quando a
gente conta tudo acontece rápido e parece que as coisas se encaixam. A vida é mais
complicada que um quebra cabeças. Mas acho que eu consegui, escrevendo essa
carta, dizer quase a verdade. Só isso já me deixa mais tranqüila. Agora parece mais
fácil entender a vida”.
A última seqüência encerra-se com a imagem do Cristo Redentor, filho cumprindo a
trajetória designada pelo pai e não nos fazendo esquecer de que somos todos culpados
pela sua morte. A culpa, no entanto, é algo desconhecido para os nossos personagens,
que se movem no terreno da amoralidade. Porém, me parece que este Cristo não está
ali para relembrar exatamente uma culpa, já que sua imagem é amigável, aberta,
receptiva, de esperança. Como a estátua do anjo que André comprou para sua mãe,
que marca uma mudança importante na vida do rapaz, o Cristo aqui pode também
significar uma nova etapa na vida de nossos personagens que, de alguma forma,
superaram a fragmentação que operava em suas vidas sem abandonar os elementos
pops e massificados – como a cidade do Rio de Janeiro – que representam uma
transformação positiva em suas vidas.
298
o homem que copiava
299
conclusão
o povo existe no cinema
300
conclusão
O trabalho que aqui realizamos é, simultaneamente, um empreendimento sociológico
e uma pesquisa sobre cinema. Procuramos investigar, primordialmente, a imagem do
povo e da cultura popular em suas relações com a chamada cultura erudita e cultura
de massas em filmes brasileiros dos anos 90. Neste empreendimento não
investigamos a vida pública e privada dos cineastas, seu círculo de amizades, seus
pares profissionais, seus financiadores, nem aquilo que eles dizem a respeito de suas
próprias obras. Estamos interessados numa sociologia da obra de arte e, portanto, é
através da análise dos filmes que procuraremos compreender o mundo social que está
no imaginário e que, portanto, deve ser observado a partir dele. Os objetos da
sociologia podem estar em tudo aquilo que é externo à obra de arte: nos círculos
intelectuais, na vida material, nos modos de produção, nas indústrias culturais. Mas
sem dúvida também está dentro da obra. A obra de arte nos apresenta, de forma
autônoma, um mundo social, cujo sentido é dado na relação entre a obra e o
espectador. Ela apresenta concepções de mundo que são sociais e que nos transmitem
valores. Nela se manifesta um aspecto da sociedade que é relevante e que não se
confunde com nenhum outro aspecto da vida material e simbólica. Em outras
palavras, uma sociologia do cinema parte do princípio que a obra apresenta um
conteúdo social em si mesma que não é redutível a seu contexto mais geral.
A sociologia do cinema, segundo entendemos, é uma parte da sociologia da arte, e se
diferencia da sociologia da cultura na medida em que esta tem como objeto os grupos
de artistas, o contexto histórico e social da obra de arte e a produção social de valor a
respeito destas obras. Segundo Jacques Leenhardt, “(...) a sociologia da cultura tem
como objeto o conhecimento das modalidades pelas quais as sociedades atribuem um
certo valor às obras simbólicas. Chamaríamos então de sociologia das artes o estudo
das formas objetais que a realidade, concebida sob o ângulo do valor ou ideal,
assume, em determinadas circunstâncias históricas. Este objeto, comumente chamado
obra, é uma constituição objetal de um estado ideal da sociedade, um momento da
sociedade visto na perspectiva daquilo que Durkheim denominava ‘uma vida psíquica
de um novo gênero’”
307
.
307
LEENHARDT, Jacques. Uma sociologia das obras de arte é necessária e possível? Tempo Social. São Paulo,
vol. 10, n. 2, out. 1998, p. 104.
301
conclusão
Justificando a existência de uma sociologia da arte como conhecimento não-redutível
àquilo que conhecemos como sociologia da cultura, Pierre Francastel escreveu uma
obra que denominou Estudos de Sociologia da Arte e a introdução de seu livro A
realidade figurativa é intitulada “Sociologia da Arte e a problemática do imaginário”.
Sua preocupação reside principalmente nas artes plásticas, mas, além de tratar
longamente do cinema em Visão, Imagem e Imaginação, podemos perceber que o que
ele escreve sobre pinturas pode se relacionar ao estudo de qualquer material artístico.
Pierre Sorlin, de modo mais específico, escreveu Sociologia do Cinema, naturalmente
como um desdobramento de uma sociologia da arte. E ambos são bastante incisivos e
claros no que entendem por um estudo sociológico das obras de arte.
Pierre Francastel, em A realidade figurativa
308
, considera que, para se estudar a arte,
é preciso conhecê-la, e isso só é possível na medida em que nos debruçamos
especificamente sobre as obras. Muitos sociólogos e historiadores, segundo
Francastel, ao procurar a razão de ser das obras, olham para aquilo que está fora do
material eminentemente artístico. Consideram que uma sociedade possui suas
estruturas econômicas, sociais e políticas, e que os artistas que nela vivem apenas
materializam, nas obras, estas estruturas segundo o meio em que vivem. Francastel
critica este modo de se efetuar um estudo da arte. Segundo o autor, os artistas e a arte
não apenas refletem ou materializam os valores de seu meio, mas constroem estes
valores na medida em que criam as obras.
A arte tem um papel fundamental na construção do social, um papel que não se
restringe a aquilo que a envolve externamente e como condição de sua realização – no
caso do cinema, a indústria, os artistas, os técnicos, o mercado, o suporte (película,
digital, etc). Um papel que é desempenhado, no cinema, pelo que é visto na tela, pelo
modo de construção fílmica, pelos valores que a arte informa e que podem e devem
ser analisados através do conteúdo, e não do que pensam seus realizadores ou
financiadores. “A Arte não é apenas o domínio das satisfações fáceis e imaginárias,
ela informa atividades fundamentais. Imensos aspectos da vida atual, assim como do
308
FRANCASTEL, Pierre. Sociologia da Arte e a problemática do imaginário. In: A realidade
figurativa. op. cit.
302
conclusão
passado, manifestam-se em setores que dependem da Arte”
309
.
Francastel rejeita uma sociologia das obras que utilize a arte apenas como ilustração
de argumentos que foram buscados fora dela. “Se as obras que constituem o produto
das atividades propriamente estéticas das sociedades constituíssem tão somente uma
espécie de duplo dos outros produtos de nossa conduta, seria legítimo reter esses
trabalhos apenas como uma fonte de informação complementar. Uma Sociologia da
Arte seria então fácil de escrever, pois resumir-se-ia em confirmar – ilustrar –
conhecimentos adquiridos ao cabo de pesquisas de interesse e alcance superiores.
Como isso não é verdade, as obras de arte conferem ao historiador, assim como ao
sociólogo, elementos de informação que de outro modo não possuem”
310
. Francastel
rejeita, portanto, a sociologia que, analisando outros aspectos da vida social que não a
obra de arte – círculo de artistas, indústria do cinema, aspectos econômicos, políticos,
etc. – proponha-se a encontrar explicações para o que é visto dentro da obra de arte.
Trata-se de uma pesquisa igualmente relevante na sociologia, mas que é
completamente diferente do que fizemos neste trabalho.
Pierre Francastel também recusa uma sociologia da arte que utilize as obras apenas
como ilustração de aspectos mais gerais da vida social porque, para ele, aquilo a arte
diz só pode ser dito através dela. O sociólogo, portanto, ao analisar o cinema, não
precisa ir buscar a explicação para o que vê nos filmes no contexto social mais geral.
Os próprios filmes apresentam conteúdos que são em si uma construção social e que,
como tal, colaboram, na sua específica forma imagética, na construção do mundo
social. Francastel defende a existência de um pensamento plástico, que informa em si
mesmo, sem que tenhamos de recorrer a outras formas de pensamento para
compreendê-lo: “cada uma das grandes formas de ação preenche total e perfeitamente
seu papel sem recorrer a outros meios de expressão que não sejam os que lhe são
próprios: Álgebra, Geometria, Pintura, Arquitetura, Música, etc.”
311
. Em Estudos de
Sociologia da Arte Francastel retoma algumas das idéias de A Realidade Figurativa
309
FRANCASTEL, Pierre. Sociologia da Arte e a problemática do imaginário. In: A realidade
figurativa, op. cit., p. 3.
310
FRANCASTEL, Pierre. Sociologia da Arte e a problemática do imaginário. In: A realidade
figurativa, op. cit., p. 4.
311
FRANCASTEL, Pierre. Sociologia da Arte e a problemática do imaginário. In: A realidade
figurativa. op. cit., p. 6.
303
conclusão
chamando a atenção para a importância de uma pesquisa cujo objeto é uma
manifestação artística aderir “estritamente ao estudo direto das obras”
312
. Para o
autor, as obras de arte têm “uma significação própria, irredutível a qualquer outra”
313
.
O sociólogo Pierre Sorlin também é enfático ao apresentar o modo de proceder de sua
sociologia do cinema: seu trabalho, em suas palavras, “consiste precisamente em
rechaçar o que é exterior ao filme e não reter mais do que as indicações apresentadas
na tela”
314
. Sua operação materializa-se com a análise do filme Obsessão, de Luchino
Visconti. Sorlin procura mostrar como, a partir de dentro do filme, operam-se
estruturas de pensamento que dizem respeito a um contexto social e histórico
específico, e que contém visões de mundo a respeito da mulher, da família, do
dinheiro e da sociedade italiana. A análise de Sorlin, portanto, começa de dentro da
obra, para então chegar ao seu contexto, e não o contrário. Ou seja, não é a partir da
história de vida ou através do espaço social que os realizadores ocupam e no qual se
deslocam, pelas relações objetivas que eles estabelecem uns com os outros e com seu
meio, que Sorlin analisa o que diz um filme, mas ao contrário: ele procura no próprio
filme aspectos que informem as posições sociais. Ele procura, em outras palavras, “o
universo social do filme”, subtítulo sintomático de um de seus capítulos, ou seja,
aquilo que de social reside dentro do filme, e o “sistema de relações” que são
colocadas em funcionamento a partir dele
315
.
Trata-se observar na própria obra o que nela há de relevante sociologicamente, e não
procurar no contexto ou no autor a compreensão do que se vê na tela. A biografia do
autor, sua vida em sociedade, o círculo de amigos que freqüenta, as relações que
estabelece com seus pares e as relações objetivas com seu meio podem ser estudadas
pela sociologia. Mas nada disso é nosso assunto aqui, na medida em que nos
propomos a desvendar sociologicamente uma obra de arte, simplesmente porque o
contexto do realizador e de seus pares, nesta acepção, não é a chave de acesso ao que
vemos na tela.
312
FRANCASTEL, Pierre. Études de Sociologie de l’Art. Paris: Denoel, 1970, p. 7.
313
FRANCASTEL, Pierre. Études de Sociologie de l’Art. op. cit, p. 9.
314
SORLIN, Pierre. Sociologia del Cine. México: Fundo de Cultura Econômica, 1985, p. 148.
315
SORLIN, Pierre. Sociologia del Cine. op. cit., p. 154.
304
conclusão
A figura do artista, principalmente se seu nome invocar certas expectativas estéticas,
é sem dúvida algo forte, que tende a ser valorizada como função explicativa, e que
pode nos fazer cair na armadilha de deixarmos de ver as obras e nos concentrarmos
apenas sobre o contexto de seu realizador. É preciso um esforço para colocá-lo de
lado quando se pretende uma sociologia da arte tal como a compreendemos. O
realizador de um filme carrega consigo as determinações da “função autor” analisadas
por Michel Foucault. O nome do autor, segundo o pensador francês, não é um nome
próprio como os outros: ele exerce um papel na construção dos discursos, ele tem
uma função classificatória. Por isso Foucault diz que a figura do autor exerce uma
função que “é característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento
de certos discursos no interior de uma sociedade”
316
. O autor enquanto “função” é
objeto de apropriação, ele informa e organiza, e ele não se constrói de maneira
espontânea mas é resultado de uma operação complexa que forja uma figura dotada
de razão e coerência e que articula um discurso ao seu redor. Esse discurso, no
trabalho aqui realizado, foi deixado de lado, para que as obras pudessem emergir.
Para Foucault, deixar de lado o autor, ou seja, ser indiferente em relação a quem se
fala, deveria ser um princípio ético e uma regra imanente na construção do
conhecimento
317
.
Em sua aula inaugural no Collège de France, Foucault empreende uma análise dos
fatores que colaboram para a produção do discurso na sociedade ocidental
318
. Ele nos
mostra o quanto a produção de discurso é “controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade”
319
. Segundo Foucault, desejaríamos que o discurso fosse
transparente, aberto, claro, “de onde as verdades se elevassem, uma a uma”
320
. Existe,
para ele, uma vontade de saber, um anseio pela verdade cuja origem está na
Antiguidade, entre Hesíodo e Platão, quando os sofistas passaram a ser rejeitados e a
316
FOUCAULT, Michel. Qu’est qu’ est um auteur. In: Dits et écrits I. op. cit., p. 798.
317
FOUCAULT, Michel. Qu’est qu’est um auteur. In: Dits et écrits I. op. cit., p. 792.
318
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. op. cit., 1998.
319
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. op. cit., p. 9.
320
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. op. cit., p. 7.
305
conclusão
idéia do discurso verdadeiro passa a ser valorizada
321
. A vontade de verdade, junto
com a palavra proibida e a segregação da loucura, são procedimentos externos ao
discurso que o controla, seleciona, organiza. Entre os procedimentos internos que
organizam e classificam o discurso temos justamente o autor, “não entendido, é claro,
como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como
princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações,
como foco de sua coerência”
322
. Para Foucault, enquanto no discurso científico a
função autor não cessou de se enfraquecer, no discurso literário ela se reforçou
323
.
Muitas narrativas, poemas e dramas que circulavam anonimamente na Idade Média
são hoje investigados para que se revele quem eram seus autores. O anonimato não
nos é mais suportável. Foucault nos mostra, portanto, que, quando procuramos no
autor a referência para a análise de uma obra, estamos nos transferindo na verdade do
terreno da obra para o terreno da produção de discurso, onde se organiza, se classifica
e se seleciona o que deve e o que não deve ser dito a respeito da obra com base nas
disposições discursivas que seu autor aciona.
Se a obra de arte é capaz de produzir valores sociais, se ela pode “introduzir uma
realidade social nova no circuito do pensamento, quaisquer que sejam suas
modalidades
324
”, o cinema o faz de maneira ainda mais exacerbada, segundo penso.
Isso porque o cinema, conforme apontado por diversos autores, é capaz de nos
oferecer uma ilusão de verdade muito convincente, e porque nos desperta sentimentos
de identificação muito intensos. Os aspectos sociais presentes nos filmes, portanto,
costumam chegar ao espectador com uma força que talvez não seja tão evidente em
outras manifestações estéticas. Maurice Merleau-Ponty, em texto já citado neste
trabalho, justifica justamente o aspecto arrebatador do cinema em relação a outras
manifestações estéticas: o cinema não fala ao pensamento, mas à percepção e, desta
forma, nos oferece uma conduta, um modo de “estar no mundo”. Além disso, o
cinema é capaz de, de certa forma, condensar a vida, de modo que ela se ofereça a nós
321
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. op. cit., p. 17.
322
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. op. cit., p. 26.
323
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. op. cit., p. 27.
324
LEENHARDT, Jacques. Uma sociologia das obras de arte é necessária e possível? Tempo Social. op. cit., p.
104.
306
conclusão
de modo muito mais intenso e direto. “O entrecho cinematográfico tem, por assim
dizer, um cerne mais compacto do que o da vida real, decorre de um mundo mais
exato do que o mundo real”
325
. Isso é fundamental para se pensar os aspectos
sociológicos presentes nessa forma artística, na medida em que o universo social
dentro do filme, necessariamente condensado, exacerbado e arrebatador, chega a nós,
espectadores, ao mesmo tempo com uma potência extraordinária e com uma enorme
leveza, falando antes ao sentimento e às sensações do que ao pensamento e à razão.
Os autores principais, a meu ver, quando se fala da capacidade do cinema de
proporcionar uma ilusão de objetividade e uma identificação com o espectador são
André Bazin e Edgar Morin. Esses são aspectos que, como veremos, são
fundamentais para se pensar a imagem do povo no cinema.
Bazin nos mostra, em A ontologia da imagem fotográfica, que a gênese da fotografia
lhe confere uma impressão de objetividade nunca antes alcançada na história da arte.
O cinema, naturalmente, vale-se desta gênese “objetiva” e a intensifica, na medida em
que acrescenta o fator “tempo” e “movimento” às imagens fotográficas:
“A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na sua objetividade
essencial. Tanto é que o conjunto de lentes que constitui o olho fotográfico em
substituição ao olho humano denomina-se precisamente ‘objetiva’. Pela primeira vez,
entre o objeto inicial e a sua representação nada se interpõe, a não ser um outro
objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma,
automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso
determinismo (...). Esta gênese automática subverteu radicalmente a psicologia da
imagem. A objetividade da fotografia confere-lhe um poder de credibilidade ausente
de qualquer obra pictórica. Sejam quais forem as objeções do nosso espírito crítico,
somos obrigados a crer na existência do objeto representado, literalmente re-
presentado, quer dizer, tornado presente no tempo e no espaço. A fotografia se
beneficia de uma transferência de realidade da coisa para a sua reprodução”
326
.
325
MERLEAU-PONTY, Maurice. O cinema e a nova psicologia. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do
cinema. op. cit., p. 115.
326
BAZIN, André. A ontologia da imagem cinematográfica. In: Xavier, Ismail (org). A experiência do cinema.
op. cit., p. 125-126.
307
conclusão
No entanto, além de nos proporcionar a ilusão da objetividade – que, como considera
Paulo Menezes, opera por mais que tenhamos consciência do aspecto de “simulação”
e “engano” da imagem cinematográfica
327
– um filme aciona em nós uma intervenção
que não fala apenas a nosso desejo de “objetividade”, mas aos nossos anseios
afetivos. Edgar Morin denominou essa capacidade do cinema de nos atingir
afetivamente de projeção-identificação. Ambos são processos, segundo Morin,
“universais e multiformes”
328
. Projetamos nossos desejos, aspirações e receios “sobre
todas as coisas e todos os seres”. Da mesma forma, nos identificamos de maneira
generalizada com as coisas e os seres: “Na identificação, o sujeito, em vez de se
projetar no mundo, absorve-o”
329
.
Para Morin, os processos de projeção-identificação não ocorrem apenas no cinema,
mas na vida e no cotidiano de um modo geral
330
. No entanto o cinema, segundo o
autor, é uma “máquina de projeção-identificação”, ou seja, dispõe de uma série de
elementos técnicos e aciona uma gama de disposições psicológicas que exacerbam a
identificação afetiva do espectador com aquilo que ele vê na tela
331
. “A ausência ou o
atrofiamento da participação motriz, prática ou ativa (...), está estreitamente ligada à
participação psíquica e afetiva. Não podendo exprimir-se por atos, a participação do
espectador interioriza-se. A cinestesia do espetáculo escoa-se na coenestesia do
espetáculo, isto é, na sua subjetividade, arrastando consigo as projeções-
identificações. A ausência de participação prática determina portanto uma
participação afetiva intensa: operam-se verdadeiras transferências entre a alma do
espectador e espetáculo da tela” (154).
O cinema é capaz, portanto, ao mesmo tempo, de acionar no espectador uma enorme
impressão de realidade e de objetividade ao mesmo tempo em que faz com que ele
estabeleça uma relação afetiva com aquilo que vê na tela. Os dois elementos – a
ontogênese “objetiva” e o processo de projeção-identificação – estão intimamente
relacionados. Existe um prazer que decorre da associação da experiência afetiva com
327
MENEZES, Paulo. Cinema: imagem e interpretação. In: Tempo Social. op. cit., p. 84.
328
MORIN, Edgar. A alma do cinema. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema. op. cit., p. 145.
329
MORIN, Edgar. A alma do cinema. op. cit., p. 146.
330
MORIN, Edgar. A alma do cinema. op. cit., p. 150.
331
MORIN, Edgar. A alma do cinema. op. cit., p. 125.
308
conclusão
a objetividade: é como se o cinema nos transportasse, pelo menos pelas
aproximadamente duas horas do tempo de projeção, para uma outra realidade, mais
intensa, condensada, imediata, emocionante e, ao mesmo tempo, extremamente crível.
A força da projeção-identificação reside em grande parte na suposta objetividade da
imagem cinematográfica. “No cinema alguns dos nossos sentidos estão em estado de
suspensão. Entramos em um túnel que irá desligar-nos de nossas relações imediatas
com o mundo que nos cerca. Quando lá estamos, estamos fora do tempo e do espaço.
Estamos em um lugar para entrar em imersão em algo que é absolutamente diferente
do mundo do qual saímos e no qual vivemos”
332
.
Neste mundo ao mesmo tempo imaginário e absolutamente “real” – cuja objetividade
é dada pela “ontologia da imagem fotográfica” – a visão tanto do banal quanto do
maravilhoso é capaz de provocar no espectador uma forte sensação de prazer. O
cinema consegue nos proporcionar com competência a imersão no fantástico – e é por
isso que a ficção científica é um gênero recorrente desde os primórdios do
cinematógrafo. Mas também oferece de um modo intensamente atraente visão do
prosaico. Se Meliès percebeu a graça de se filmar viagens à lua e seres
extraordinários, Lumière compreendeu o impacto de colocar na tela aquilo que era
banal, como trens chegando na estação e bebês comendo papinha. “O cinematógrafo
dispõe do encanto da imagem, ou seja, renova ou exalta a visão das coisas banais e
quotidianas. A qualidade implícita do duplo, os poderes da sombra e uma certa
sensibilidade à fantasmagoria, vêm reunir os seus prestígios milenários no seio da
ampliação fotogênica, e atrair as projeções-identificações imaginárias melhor, muitas
vezes, que a própria vida prática. O arrebatamento provocado pelo fumo, pelos
vapores e ventos, e a alegria ingênua de reconhecer lugares familiares (...) traem
claramente as participações que o cinematógrafo Lumière excita”
333
.
Naturalmente, a imagem do banal e do cotidiano passou por um desenvolvimento, e
começou a ser emoldurada por narrativas mais incrementadas e planos mais atraentes
em relação ao objeto em questão – notadamente o close e o plano americano que, por
sua proximidade com o rosto dos personagens, nos permite uma forte identificação e
332
MENEZES, Paulo. Cinema: imagem e interpretação. Tempo Social. op. cit., p. 86.
333
MORIN, Edgar. A alma do cinema. op. cit., p. 153.
309
conclusão
sentimento afetivo pelo homem comum. Trata-se, a meu ver, de transformar em
extraordinário aquilo que não é extraordinário, ou em mostrar que existe uma
emocionante extraordinariedade naquilo que parece mais banal – uma operação que
se manifesta fortemente, segundo quisemos mostrar com esse trabalho, na imagem do
povo no cinema brasileiro pós-“retomada”.
Para Pierre Sorlin, a imagem do popular e do povo costuma desempenhar um papel de
importância na definição do que se considera a transmissão de uma “verdade”: “A
crítica imediatamente aponta uma primeira indicação: a verdade é o povo, a gente
comum”. “(...) a realidade se confunde, em ambos os casos, com a abertura sobre um
meio qualificado sumariamente como ‘popular’”
334
. Embora ele esteja se referindo
especificamente ao neo-realismo, a idéia de que a imagem do povo estaria relacionada
a uma maior capacidade de penetração numa suposta “verdade” tem ressonância
direta no cinema brasileiro. Um filme “colado” ao que se considera ser a “realidade
nacional” parece ter algo mais importante a dizer a respeito do país. E, para tanto, ele
deve, de alguma forma, tematizar o povo e o popular, esteja este identificado aos
presos do complexo penitenciário do Carandiru, aos moradores da Cidade de Deus ou
aos seguidores de Antônio Conselheiro pelos sertões nordestinos.
Trinh T. Minh-há, documentarista vietnamita, no livro When the moon waxes red,
analisa justamente a utilização das imagens das pessoas comuns pelos cineastas como
forma não de elevar a um status socialmente superior essas pessoas, mas de fazer
sobressair, na verdade, a própria equipe de produção cinematográfica. Segundo a
cineasta, “As pessoas comuns e silenciosas – aquelas que ‘nunca expressaram-se por
si mesmas’ a não ser que seja dada a oportunidade de verbalizar seus pensamentos
através daquele que vem para redimi-los – são constantemente evocadas para
significar o mundo real. Elas são o referente fundamental do social, e portanto é
suficiente apontar a câmera para eles, mostrar sua pobreza (industrializada), ou
contextualizar e empacotar seus estilos de vida não-familiares para a sempre
consumista e caridosa audiência, de modo a entrar no santificado mundo do
moralmente certo”
335
.
334
SORLIN, Pierre. Sociologia del Cine. op. cit., p. 158.
335
MINH-, Trinh T. When the moon waxes red. New York: Routledge: 1991, p. 37.
310
conclusão
A identificação entre os desfavorecidos e o “mundo real” é bastante recorrente no
cinema e, num determinado momento da história cultural brasileira, esta associação
perspassava as mais diversas manifestações artísticas do país. Nos anos 50 e 60, com
efeito, tematizar o povo e a cultura popular significava mostrar o Brasil real, com
seus problemas, sua vitalidade, seus defeitos e também suas qualidades. Mostrar o
povo e estar ao lado do povo foi, para muitos artistas, um princípio ético e também
uma possibilidade de revelar e ao mesmo tempo de transformar o país.
É nesse sentido, por exemplo, que podemos entender a influência do neo-realismo
italiano no cinema produzido no Brasil nessa época. Mariarosaria Fabris nos mostra
que, mais do que a questão eminentemente estética, o neo-realismo empolgava por ser
um cinema tipicamente nacional, com vocação popular, tendências progressistas, e
preocupação de colocar na tela o homem e o contexto do país representado
336
. Além
disso, o neo-realismo empolgava também por representar uma reação à Hollywood e
por ser um exemplo concreto da possibilidade de se produzir filmes de qualidade com
orçamento limitado
337
.
A fala de Nelson Pereira dos Santos citada por Fabris nos permite ter uma idéia das
expectativas acionadas pela imagem do povo nas décadas de 1950 e 1960:
“Cinema brasileiro na verdade será aquele que reproduzir na tela a vida, as histórias,
as lutas, as aspirações de nossa gente, do litoral ou do interior, no árduo esforço de
marchar para o progresso, em meio a todo o atraso e a toda a exploração, impostos
pelas forças de reação. Cinema brasileiro será aquele que respeitar, ainda que falho
inicialmente de técnica e de forma, a verdade e a realidade de nossa vida e de nossos
hábitos, sem preocupação maliciosamente evidente de pôr em relevo costumes que
não são nossos e cacoetes que nos estão sendo impingidos pelas múltiplas
manifestações desse cosmopolitismo desmoralizante que quer aprofundar entre nós a
confusão, a perversão e o espírito de derrota. Cinema brasileiro será aquele que no
curso das suas cenas e no desenrolar dos seus enredos mostrar os pontos altos (que
são muitos) da riqueza material, moral e cultural que o nosso vem construindo dentro
336
FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? op. cit., p. 26.
337
FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? op. cit., p. 59.
311
conclusão
das mais diversas condições”
338
.
Mariarosaria Fabris cita ainda o II Congresso Nacional do Cinema Brasileiro,
realizado em São Paulo em 1953, e que teve como um dos temas debatidos o
“desenvolvimento de uma temática nacional”: “retratar o homem brasileiro – e por
homem brasileiro entendia-se o homem do povo – em seu trabalho, em seu modo de
pensar, em seu jeito de andar, falar, vestir, se mexer, ser, existir. Para tanto,
recomendava-se aos escritores de cinema que se inspirassem nas tradições históricas
(...), folclóricas (...) e literárias (...) do povo brasileiro e que, ao elaborarem os
diálogos dos filmes, respeitassem as peculiaridades do linguajar nacional”
339
.
A valorização de um cinema popular estava, nessa época, intimamente ligada à
necessidade dos filmes retratarem povo brasileiro. Bernardet e Galvão
340
mostram
que desde as primeiras décadas do século XX no Brasil existia a preocupação em se
realizar uma cinematografia eminentemente “nacional”. Para que um filme fosse
assim considerado, era necessário que mostrasse o que é “nosso”, os nossos costumes,
nossas belezas naturais, nosso estilo de vida. A novidade dos anos 50 é que as
preocupações com uma cinematografia nacional e uma cinematografia popular se
conjugam, e dão origem a um ideal de cinema “nacional-popular”, bastante
condizente aliás com o momento político do período (as metas do governo JK, depois
as esperanças nacionalistas acionadas pelo governo de João Goulart etc). Lima
Barreto, diretor de O cangaceiro, exemplifica essa preocupação conforme citado por
Alex Viany em Introdução ao Cinema Brasileiro
341
:
“E, enquanto não descobrirmos, para expressá-los, os nossos temas, dentro do
próprio, do nosso, do conceito estético-fílmico-cinematográfico eminentemente
matuto-caipira-caboclo-campeiro-sertanejo, como queria Mário de Andrade e querem
os raros homens de cultura do Brasil, não encontraremos a forma áudio-visual de
generalizar, de disseminar a nossa cultura – incipiente, sim, mas autêntica,
verdadeira, irretorquível. Quem pensa de maneira diferente é burro e antipatriota”.
338
FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? op. cit., p. 65.
339
FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista? op. cit., p. 74.
340
BERNARDET, Jean-Claude, GALVÃO, Maria Rita, O nacional e o popular na cultura brasileira – cinema.
São Paulo: Brasiliense, 1983.
341
VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1993, p. 109.
312
conclusão
Segundo Renato Ortiz, a efervescência política da época marca uma mudança em
relação à concepção de cultura dos anos anteriores. Antes da década de 50, havia uma
visão tradicionalista que associava cultura a folclore, e portanto a entendia como algo
estático, imobilizado no passado. Graças ao ISEB – Instituto Superior de Estudos
Brasileiros –, de acordo com Ortiz, a cultura passa a ser vista numa perspectiva
política, associada à transformação da sociedade brasileira, e os intelectuais passam a
se ver como agentes da conscientização junto às classes subalternas
342
.
Daniel Pécaut, no livro Os intelectuais e a política no Brasil
343
, considera que os
intelectuais da geração dos anos 54-60 entendiam que, como intelectuais, deveriam
fazer com que as massas populares tomassem consciência de seu papel transformador,
o que fez com que diversos intelectuais se lançassem na tarefa de educar o povo para
as mudanças sociais que, nesse momento, pereciam estar a caminho (mas que
acabaram sendo interrompidas pelo Golpe de 1964). Existia uma mítica identificação
entre intelectuais e povo, principalmente no imaginário dos jovens ligados ao CPC –
Centro Popular de Cultura – e ao partido comunista. Basta pensarmos na idéia
original da produção de Cabra marcado para morrer (que depois foi reformulada por
Coutinho, como podemos ver no próprio filme) para visualizarmos o tipo de
identificação que unia idealmente o intelectual ao povo.
Alguns autores, como Heloísa Buarque de Hollanda
344
, vêem essa postura como
paternalista e como uma atitude que procura escamotear as diferenças de classe entre
o dito povo e os intelectuais. Renato Ortiz, no entanto, matiza esse tipo de crítica ao
mostrar o possível caráter subversivo da visão de povo do CPC em relação àquela
disseminada pelos folcloristas mais tradicionais: “Enquanto o folclore é interpretado
como sendo as manifestações de cunho tradicional, a noção de ‘cultura popular’ é
definida em termos exclusivos de transformação”
345
. “O conceito de cultura popular
se confunde, pois, com a idéia de conscientização; subverte-se desta forma o antigo
342
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 162.
343
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990, p. 110.
344
HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo:
Brasiliense, 1981, p. 19.
345
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 71.
313
conclusão
significado que assimilava a tradição à categoria de cultura popular”
346
. Portanto, sem
procurarmos esquecer a ingenuidade e o possível paternalismo do CPC e afins em
pretenderem forjar uma identificação entre o intelectual e o povo, como mostra
Heloísa Buarque de Hollanda, há que se considerar que a noção de povo encampada
por setores importantes da esquerda dos anos 60 trazia algo importante em relação à
idéia de cultura popular das décadas anteriores, que terá implicações até hoje, no
cinema brasileiro pós-anos 90.
Marcelo Ridenti, no livro Em Busca do Povo Brasileiro, empreende uma pesquisa
monumental a respeito dos artistas de esquerda brasileiros e sua participação na
política entre os anos 60 e 90. Como o próprio nome do livro sugere, a valorização do
povo era um dos elementos centrais na utopia revolucionária dos artistas da época.
Segundo Ridenti, “(...) nos anos 60 e início dos anos 70, nos meios artísticos e
intelectualizados da época, era central o problema da identidade nacional e política do
povo brasileiro; buscava-se a um tempo suas raízes e a ruptura com o
desenvolvimento, numa espécie de desvio à esquerda do que convencionou chamar
ultimamente de era Vargas, caracterizada pela aposta no desenvolvimento nacional,
com base na intervenção do Estado. Esse tema foi-se diluindo ao longo dos anos,
especialmente após o fim da ditadura civil-militar. Com a mundialização da economia
e da cultura, que atingiu diretamente a sociedade brasileira dos anos 90, voltaram à
tona velhas questões mal resolvidas sobre a identidade nacional do povo
brasileiro”
347
.
Marcelo Ridenti utiliza o conceito de romantismo revolucionário, cunhado por
Michael Lowy e Robert Sayre, para analisar aquilo que viu como os aspectos comuns
entre as manifestações artísticas de esquerda do período. Havia, segundo Ridenti, uma
“utopia da integração do intelectual com o homem simples do povo brasileiro,
supostamente não contaminado pela modernidade capitalista, podendo dar vida a um
projeto alternativo de sociedade desenvolvida”
348
. Acreditava-se na importância de se
construir um homem novo que comportasse os ideais revolucionários, mas, segundo
346
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. op. cit., p. 72.
347
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. op. cit., p. 11.
348
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. op. cit., p. 24.
314
conclusão
Ridenti, o modelo desse homem estava no passado, idealizado como “um autêntico
homem do povo, com raízes rurais, do interior, do ‘coração do Brasil’, supostamente
não contaminado pela modernidade urbana capitalista”
349
.
Se nos anos 60 a idéia de povo aparece ligada aos movimentos de esquerda, e nesse
sentido é utilizada para se pensar a transformação da sociedade brasileira, nos anos 70
é o Estado que encampa a defesa de uma suposta cultura popular, e de uma cultura
brasileira de modo geral. No caso do cinema, por exemplo, é importante lembrarmos
que 1969 é o ano da criação da Embrafilme, que surge envolta justamente pela
ideologia da defesa de um cinema nacional contra o estrangeiro e da conquista do
público brasileiro com o cinema realizado no país, de que decorria supostamente seu
caráter popular. Em 1975 é publicada a Política Nacional de Cultura, elaborada sob a
égide do ministro da Educação e Cultura, Ney Braga. Neste documento, podemos
perceber que o povo e a cultura popular perdem completamente seu caráter de sujeitos
da ação transformadora revolucionária para se tornar um objeto que necessita ser
protegido de ataques da cultura “alienígena”: “Uma política de cultura deve levar em
consideração a ética do humanismo e o respeito à espontaneidade da criação popular.
Justifica-se, assim, uma política de cultura como o conjunto de iniciativas
governamentais coordenadas pela necessidade de ativar a criatividade, reduzida,
distorcida e ameaçada pelos mecanismos de controle desencadeados através dos
meios de comunicação de massa e pela racionalização da sociedade industrial”
350
.
O progressivo envolvimento do Estado militar na questão cultural leva a uma
despolitização da reflexão sobre povo e cultura popular
351
. Estes termos vão aparecer,
no texto da Política Nacional de Cultura, antes de tudo como folclore, passado
fossilizado e a ser protegido. Mas além da idéia de cultura popular como folclore,
dissemina-se, no caso do cinema, a visão de popular identificado a público. A questão
comercial – que no fundo aparecia como a questão da própria manutenção da
atividade cinematográfica no Brasil – dominava a maior parte dos debates, e aparecia
associada à discussão sobre a cultura popular. A identificação entre povo e público
349
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. op. cit., p. 12.
350
ARTE em Revista, ano 2, n 3, 1983, 2 ed., São Paulo, ECA-USP, p. 6.
351
C.f. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. op. cit., p. 164.
315
conclusão
era a esperança de muitos cineastas para conquistarem as bilheterias. Fazendo-se
filmes populares (seja lá o que isso signifique) o povo iria ao cinema, e o problema
do público estaria resolvido, como explicita Nelson Pereira dos Santos: “Fazendo um
filme que não só se baseie em valores populares, como que também os aceite e os
assuma positivamente, o povo se reconhecerá no filme. E assim, os espectadores ao
mesmo tempo poderão se afirmar culturalmente ao assistir o filme, e constituirão um
público que sustentará economicamente a produção”
352
.
Não é correto, portanto, inferir que o Estado militar apropriou-se da valorização do
popular como possibilidade de transformação que vinha dos anos 50 e 60 e a
transformou sozinho numa questão de folclore e de consumo. Se o governo percebeu
a importância ideológica e estratégica de aproximar-se da questão cultural,
incorporando-a ao plano de governo de forma despolitizada, muitos artistas souberam
aproveitar desse momento. Houve uma aproximação, no caso do cinema, entre setores
militares que pensavam a cultura e muitos cineastas, que tinham na Embrafilme,
efetivamente, uma possibilidade muito vantajosa de financiamento de seus filmes
353
.
Nos anos 70 e 80, segundo Marcelo Ridenti, no que se refere à atividade mais
diretamente política, houve um refluxo das utopias revolucionárias e, nesse contexto,
surgiram críticas às visões apologéticas de povo e de nação que circulavam entre as
esquerdas. Para o autor de Em Busca do Povo Brasileiro, os movimentos sociais
ligados principalmente aos operários do ABC não se valiam das idéias de povo e
nação, mas procuravam justificar sua luta em termos classistas e com base nas
experiências dos trabalhadores urbanos
354
. É a época, por exemplo, da emergência do
Partido dos Trabalhadores, fundado em 1980. Diversos filmes passam a abordar as
lutas dos trabalhadores urbanos, como Braços cruzados, máquinas paradas (Roberto
Gervitz e Sérgio Toledo, 1978), Greve de março (Renato Tapajós, 1979), O homem
que virou suco (João Batista de Andrade, 1978), ABC da greve (Leon Hirszman e
outros, 1980), Eles não usam black-tie (Leon Hirszman, 1981) e Linha de montagem
(Renato Tapajós, 1982).
352
BERNARDET, Jean-Claude (org.), GOMES, Paulo Emílio Salles (org.), Glauber Rocha. op. cit., p. 18.
353
JORGE, Marina Soler. Cinema Novo e Embrafilme: cineastas e Estado pela consolidação da indústria
cinematográfica brasileira. op. cit.
354
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. op. cit., p. 355.
316
conclusão
Nos anos 90, porém, segundo Ridenti, algumas idéias que impeliam a ação política e
estética nos anos 60 voltam a ganhar terreno entre as esquerdas enquanto as clivagens
classistas vão perdendo parte de sua força:
“As antes esquecidas idéias de povo, Estado-nação e raízes culturais foram sendo
lenta mas claramente recuperadas, até como reação ao ímpeto transnacionalizante
neoliberal. A coligação que quase elegeu Lula presidente da República, em 1989,
chamava-se sintomaticamente Frente Brasil Popular. Pelo menos a partir daí, a idéia
de povo brasileiro, que ficara latente nos primeiros anos do PT, sem que tivesse sido
de fato superada, viria a instalar-se novamente. As caravanas da cidadania nos anos
90 levaram Lula e dirigentes petistas aos chamados grotões do país, para atestar in
loco os problemas populares. Lula vive-se gabando de ser o único líder político que
conhece, tanto por sua origem como por suas andanças pelo interior, os problemas do
povo brasileiro (aconselhou Fernando Henrique a ir ver de perto a vida dos
trabalhadores, Brasil afora, em vez de viajar tão frequentemente ao exterior)”
355
.
Um dos exemplos de Ridenti para argumentar a favor de uma retomada da questão
nacional e popular é o filme de Walter Salles, Central do Brasil (1998)
356
, filme no
qual um garoto e uma professora saem do Rio de Janeiro em direção ao sertão
nordestino em busca do pai do garoto. No caminho, Dora, a professora, passa por um
processo de humanização enquanto penetra no interior do Brasil e estabelece contato
com homens e mulheres do povo. Segundo Ridenti, na retomada dos valores de povo
e nação empreendida nos anos 90, “quase desaparece o que poderia haver de classista
e revolucionário no romantismo, num sentido marxista; mas eles não deixam de ser
românticos, a valorizar a humanidade e o resgate da identidade nacional, perdidos
num mundo unificado pelo mercado global. Aqui talvez esteja ainda a chave do
sucesso internacional do filme, que provoca empatia com platéias estrangeiras,
carentes de valores comunitários, perdidos no processo de mundialização do
capital”
357
.
Sabemos que a discussão sobre a nação e sobre o povo costumam vir juntas no Brasil.
355
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. op. cit., p. 359.
356
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. op. cit., p. 361.
357
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. op. cit., p. 361.
317
conclusão
A retomada da questão do popular pela esquerda brasileira nos anos 50 e 60 era parte
da questão nacional – a superação do subdesenvolvimento, o rompimento com o
capital estrangeiro, a industrialização em bases nacionais, etc. As idéias de povo e
nação estão intimamente relacionadas como categorias que visam dar uma unidade a
práticas e lugares dispersos e por vezes antagônicos. Não são dados do “real”, mas
categorias que buscam dar uma homogeneidade a esse real. Como dissemos na
apresentação deste trabalho, sabemos que não encontraremos o “povo” em lugar
nenhum da “realidade”, o que não impede que essa categoria tenha uma
representação, e que essa representação opere “com força de coisa material”. O povo
e a nação não existem como dados observáveis, mas existem como idéias e imagens.
Para além da questão do gosto pessoal da pesquisadora, procuramos neste trabalho
escolher filmes que tiveram ou alguma penetração no mercado cinematográfico ou
algum sucesso entre críticos e pesquisadores de cinema. Segundo Pierre Sorlin, “uma
realização que teve um grande público e da qual muito se falou provavelmente
marcou mais profundamente o público do que um filme que ninguém viu: esta é uma
suposição que no mínimo nos obriga a trabalhar de preferência com filmes
conhecidos”
358
. Sorlin considera que, na escolha de um filme para a análise, um dos
critérios deve ser sua repercussão no momento de sua estréia, o que se pode medir
pelo número de espectadores ou pela repercussão gerada pelo filme na crítica
359
. No
caso do cinema brasileiro, ficaríamos um pouco limitados se considerássemos apenas
as grandes bilheterias. Porém, com exceção de Crede-mi, filme de menor penetração
no mercado mas que teve sucesso junto à crítica, escolhemos produções que são
razoavelmente conhecidas do público, que tiveram repercussão na ocasião de seu
lançamento ou que tiveram boa distribuição em videolocadoras. Terra estrangeira,
por exemplo, marcou profundamente o cinema brasileiro na época da “retomada”, e
ainda hoje provoca debates e reflexões (por ocasião dos 10 anos de seu lançamento
foi produzida uma edição especial de DVD com o título). Além disso, lançou
definitivamente Walter Salles como diretor. Baile Perfumado, se teve menor
penetração nos cinemas na ocasião de seu lançamento, é um filme citado
358
SORLIN, Pierre. Sociologia del Cine. op. cit. p. 171.
359
SORLIN, Pierre. Sociologia del Cine. op. cit. p. 172.
318
conclusão
constantemente em pesquisas e análises sobre a produção nacional, o que é,
simultaneamente, indício de uma importância e de certa penetração junto à crítica.
Amélia, da mesma forma, não teve carreira tão intensa nos cinemas, mas teve boa
distribuição e pode ser encontrado com facilidade em grandes videolocadoras. Já O
homem que copiava e Nós que aqui estamos por vós esperamos tiveram boa
distribuição nos cinemas e nas videolocadoras e também suscitaram análises e debates
nos meios de comunicação nacionais. Santo Forte teve boa bilheteria se
considerarmos o que se espera de um documentário brasileiro e lançou o nome de
Coutinho e de seu cinema para as gerações pós-Cabra marcado para morrer. Não se
trata de considerar o que teve mais público ou melhor estratégia de distribuição como
mais importante ou mais relevante para a pesquisa. Apenas procuramos, segundo as
indicações de Sorlin, filmes que tiveram maior ressonância junto ao público, já que,
na Sociologia da Arte que procuramos empreender, o espectador é parte constituinte
na construção de sentido do filme.
Terra Estrangeira, o primeiro filme analisado neste trabalho, obra de Walter Salles e
Daniela Thomas anterior a Central do Brasil, nos coloca diante da discussão sobre a
identidade nacional e sobre a trajetória do povo de um determinado país quando passa
pelo que Luiz Zanin Oricchio descreveu como “a sensação de desenraizamento do
brasileiro no começo da última década do século”
360
. Como vimos, Paco e Alex são
dois brasileiros desterrados, que se sentem estrangeiros em qualquer lugar. Paco, e
também Miguel, cultivam sonhos de fazer arte erudita, mas as condições objetivas
dos países nos quais vivem – e nesse sentido as condições objetivas transnacionais –
os impedem de realizar esse sonho, o que, por sua vez, os impele ao mundo do crime.
Terra Estrangeira discute a trajetória de determinada parte do povo brasileiro quando
a nação perde o sentido, tanto simbólico quanto material: trata-se de uma falência do
Brasil como idéia e como economia. Em Terra Estrangeira, assim como em O homem
que copiava, não se trata do povo ostensivo mas, como tentamos mostrar neste
trabalho, de um povo discreto, que não está imerso na cultura popular tal como ela
costuma ser entendida dentro das tradições que procuramos retomar – não é o popular
360
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo – um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade,
2003, p. 71.
319
conclusão
associado a folclore, nem reduto das esperanças de transformação da sociedade
brasileira, não é o homem do campo e nem o operário fabril, não é o favelado e nem o
bandido. Sua principal característica é justamente sua falta de destaque como
personagem que pode comportar as identificações mais imediatas a um grupo
ostensivamente popular. Ele, de certa forma, é um personagem cujas identidades são
tênues, dispersas, pelo menos no que se refere ao que se espera do popular: Paco é de
uma classe média baixa, filho de imigrantes, estudante universitário de física que tem
veleidades artísticas, extremamente solitário, alguém que, necessitado de dinheiro
depois que sua mãe morre, dispõe-se a abandonar seu país embarcando numa aventura
arriscada. Lá ele conhece Alex, personagem isolada e disponível como ele, uma moça
também de classe média baixa que expressa com clareza sua sensação de não
pertencimento a qualquer lugar.
O popular discreto tem um alto poder de sensibilizar o espectador através de sua
banalidade, do fato de ser um personagem comum, representando um tipo médio que
parece ter tanto poder de atração ou mais do que o popular ostensivo. O popular
discreto parece não ter uma caracterização demasiadamente “típica”. Ele é o meio-
termo. Não pode ser excessivamente pobre, nem demasiado regional, nem pertencente
a um grupo tido como popular, como o dos cangaceiros, o das caipiras, o dos
“nordestinos” etc. André, personagem de O homem que copiava, e Paco, de Terra
Estrangeira, são assim. São pobres – André mais do que Paco – mas não tanto que
não tenham aonde morar ou que estejam na indigência, por exemplo. Paco faz
faculdade e André tem um emprego, apesar de ser muito mal-remunerado. Ambos
moram com a mãe. E nenhum dos dois tem pai, o que é bastante interessante: falta-
lhes justamente a figura que, como vimos em Terra Estrangeira, pode representar o
poder do Estado e a idéia de sociedade (em oposição à comunidade). Seriam órfãos,
então, de um país – o Brasil – contando apenas com a identificação à nação,
representada pela mãe, mas sem poder desfrutar da segurança material que deveria ser
proporcionada pelo Estado.
O popular discreto é, portanto, um desfavorecido ainda num outro sentido, além de o
ser materialmente: no aspecto emocional. Uma classe média baixa que pode
comportar outras carências além daquelas que são mais imediatamente identificadas
320
conclusão
ao popular ostensivo – que tende a sofrer fome, seca, violência, encarceramento, más
condições de habitação, desemprego, tráfico, etc. Por isso, a meu ver, ele é um
personagem importante no cinema brasileiro recente, já que pode comportar uma falta
de outra ordem, uma falta que é indissociavelmente material e emocional e que se
relaciona a uma falência do Brasil enquanto Estado e a uma percepção de que as
carências sociais e emocionais podem estar sobremaneira relacionadas. Além disso, a
disponibilidade material e emocional dos personagens populares discretos pode ser
colocada em termos de dificuldade de concretização dos sonhos individuais, o que já
não é tão recorrente no popular ostensivo, para quem as faltas parecem mais
relacionadas àquilo que ameaça a própria sobrevivência física dos personagens. Paco
sonha em ser ator de teatro e André sonha em ser ilustrador. Parece-nos óbvio que,
dada as condições de vida de ambos e o contexto social no qual vivem, eles não
realizarão seus sonhos. Eles tentam então o caminho do crime e, enquanto Paco se dá
mal, André consegue virar o jogo a seu favor. Paco e André, personagens populares
discretos, em sua vulnerabilidade material não exagerada e disponíveis
emocionalmente, parecem os personagens perfeitos para uma trajetória de peripécias
semi-inconseqüentes que nos mostram também a trajetória de um país “falido”. Paco
morre ao final do filme e André só dá a volta por cima por ter sorte nas tramóias que
realiza, como se o caminho do sucesso, apesar do talento e da inteligência de André,
residisse no mundo do crime.
Em Terra Estrangeira os personagens populares anônimos cultivam sonhos que os
fariam ultrapassar as limitações impostas pela cultura de massas. Paco e Miguel, na
verdade, não querem mais ser populares anônimos, ao contrário: querem se destacar
no mundo das artes. Naturalmente, pertencer ao mundo daqueles que são
insignificantes e invisíveis aos olhos da sociedade não tem nada de atrativo. Ser mais
um em meio à massa parece ser aquilo que o popular anônimo não quer. O desejo de
superação de sua condição de invisibilidade parece ser o que move André, de O
homem que copiava, personagem limite do popular anônimo e discreto. Ele é
construído para parecer em tudo insignificante. Sua vida é completamente desprovida
de glamour. Ele não tem quase nada de “especial”: a única coisa que lhe tira da
monotonia parece ser justamente a consciência de sua invisibilidade social e o desejo
321
conclusão
de ultrapassar sua condição de insignificância. E, ao contrário de Paco, ele
efetivamente consegue realizar seus sonhos através de um plano mirabolante que
conta com a ajuda do acaso. Seu sucesso em ultrapassar sua condição popular está
associado a uma imersão completa na cultura de massas: ele utiliza das imagens que
viu na TV e na rua para elaborar seu plano e para se safar do crime que cometeu, ele
adere a um amoralismo pragmático que parece típico de uma cultura que tem como
finalidade última o lucro e a disseminação de valores capitalistas, e ele acaba sua
trajetória no Rio de Janeiro, cidade glamourizada entre os centros urbanos brasileiros.
Em Nós que aqui estamos pos vós esperamos os personagens populares também são
do tipo anônimos e discretos. Aliás, boa parte da graça do filme consiste nisso, ou
seja, na construção de uma imagem do século XX baseada não só nos grandes feitos
de líderes políticos mas também nos pequenos feitos cotidianos e invisíveis de
homens e mulheres anônimos. Em Terra Estrangeira, assim como em Nós que aqui
estamos por vós esperamos, filme de Marcelo Masagão, o personagem popular e a
cultura erudita mantém-se afastados. No filme de Walter Salles e Daniela Thomas, no
entanto, existe uma tentativa de aproximação que será frustrada pelo contexto
histórico no qual se movem os personagens. O popular nem pensa em ser erudito em
Nós que aqui estamos: há uma “divisão de trabalho” que o coloca num papel de
sensibilizar pela ordinariedade, pela banalidade, como se cada personagem popular
pudesse ser representativo de toda uma gama de homens e mulheres que enfrentaram
situações absolutamente semelhantes em suas vidas. Em O homem que copiava, da
mesma forma, o que vemos é um personagem imerso em estímulos visuais que vêm
tanto da cultura popular quanto da cultura erudita, mas que não estabelece uma
relação mais simbiótica com ela. Há uma sensação de que os estímulos chegam até
ele por acaso, como se ele fosse, de alguma forma, predestinado a sair de sua
condição popular e a usar o que lhe vem de fora para virar o jogo de sua vida. André
tem um olhar ao mesmo tempo massificado e erudito que se dirige ao mundo. Mas ele
não é um personagem que estabelece uma fusão entre cultura popular, cultura de
massas e cultura erudita. Se pensarmos em Crede-mi veremos um processo
semelhante: Bia Lessa e Dani Roland utilizam a cultura erudita para tratar do popular.
Mas não há exatamente uma mistura, visto que o erudito parece claramente vindo de
322
conclusão
fora, a partir de uma decisão tomada pelos realizadores.
Cultura popular e cultura erudita também convivem em Nós que aqui estamos por vós
esperamos, mas dessa vez elas nem se fundem e mal estabelecem contato ao contrário
do que acontece em Crede-mi. No filme de Bia Lessa e Dani Roland o popular de
certa forma se apossa da cultura erudita e nesse processo valoriza-se. No filme de
Marcelo Masagão popular e erudito mantém-se cuidadosamente afastados, sendo que
a imagem do popular dá um contraponto prático e cotidiano ao conhecimento erudito,
aquele que efetivamente explica o século XX. Em Nós que aqui estamos vemos
popular e erudito desempenhando funções completamente diferentes em relação às
explicações e à materialidade que dão ao século XX. Quem pode fornecer uma
explicação para os fatos que ocorreram no século XX, são os intelectuais, artistas,
cientistas, líderes revolucionários. O povo é quem “vive” estes fatos, e nos seus
afazeres diários e cotidianos acaba fornecendo uma imagem histórica do século a
partir de fatos privados. É ele quem sofre as conseqüências das decisões históricas,
como ataques nucleares e crises econômicas, enquanto a cultura erudita funciona
como explicação sistematizada a respeito destes fatos.
A comparação deste popular de Nós que aqui estamos por vós esperamos com aquele
que aparece em parte do cinema brasileiro dos anos 60 e 70 faz com que este pareça,
a primeira vista, pouco popular, por ser muito discreto e por não estar associado a
uma reflexão sobre identidade nacional. Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e
Carlos Diegues foram alguns dos nomes mais importantes do cinema brasileiro que
colocaram em cena um povo muito mais ostensivo. Filmes como Terra em transe,
Deus e o diabo na terra do sol, Vidas Secas, Tenda dos Milagres, Ganga Zumba e
Xica da Silva tem um povo mais facilmente identificável – o sertanejo, o retirante, o
umbandista, o quilombola, a escrava. A imagem do povo, nestes casos, parece estar
colada a uma representação da nação, e muitas vezes aparece acompanhada de uma
crítica social implícita ou explícita em relação às condições deste povo apresentado.
Outras vezes, apesar da crítica, existe um tom otimista, que identifica alegria e
sabedoria neste popular necessitado. É o caso de Tenda dos Milagres e dos filmes
mais recentes de Carlos Diegues, como Orfeu e Deus é brasileiro.
Em Nós aqui estamos por vós esperamos esse povo nem é ostensivo nem está
323
conclusão
identificado ao elemento nacional. O que dá o caráter popular aos personagens é sua
generalidade e banalidade, como se não tivessem nada de extraordinário além de se
transformarem em uns entre muitos daqueles homens e mulheres que sofreram na pele
as conseqüências das decisões políticas e econômicas tomadas no século XX. Além
disso, esse popular é um homem ou mulher do mundo, alguém cuja identidade
ultrapassa as fronteiras de seu país e cujo pertencimento a um grupo deve-se antes à
semelhança quanto à sua ordinariedade do que a particularismos locais.
O povo em Nós que aqui estamos por vós esperamos transcende as nações, as
fronteiras, as línguas. Nesse sentido, trata-se efetivamente de uma imagem de popular
que se relaciona imediatamente à história do século XX, quando surge, efetivamente,
uma idéia de “massa”. A “massa” ultrapassa o território nacional para se constituir
como uma espécie de unidade na fragmentação do cotidiano global. Ela é dada
justamente pela existência de um modo de vida mais ou menos comum espalhado
pelo planeta cuja emergência está intimamente relacionada ao fenômeno da
urbanização, ao desenvolvimento dos meios de comunicação e ao desenvolvimento
técnico-científico.
Nesse sentido, não é de se surpreender que os personagens populares discretos de
nossos filmes estejam justamente imersos numa cultura de massas. O popular discreto
parece ser um sujeito isolado no meio de uma multidão também isolada. São Paulo,
onde vive Paco, é o lugar ideal para expressar a sensação da solidão em meio à massa.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos os personagens populares também nos
passam uma importante sensação de isolamento, que é sintetizada na imagem da moça
do cinema do quadro de Hopper. O cotidiano não consegue prover de sentido a
existência dos personagens. O sentido deve ser procurado – se é que ele existe – na
cultura erudita, segundo o que vemos no filme de Masagão.
Desta forma, pelo menos nos filmes analisados, o contraponto do popular discreto e
anônimo é a cultura de massas na qual ele está obrigatoriamente imerso e,
invariavelmente, isolado. Se a imagem de um povo “tradicional”, antropológica,
remetendo a práticas culturais folclóricas, como vimos em Santo Forte e Crede-mi,
comporta homogeneidade, pertencimento a um grupo e participação em uma cultura,
a imagem de um povo discreto e anônimo associa-se à dispersão, isolamento,
324
conclusão
fragmentação, heterogeneidade. Veremos isso tanto em Nós que aqui estamos por vós
esperamos quanto em Terra Estrangeira e O homem que copiava. No primeiro, a
heterogeneidade daqueles personagens populares é palpável – cada um num país,
numa época, num lado da guerra –, o que não nos impede de desfrutar da sensação de
que todos eles são expressão de um mesmo grupo invisível: justamente aquele ao qual
pertencem os homens e mulheres anônimos na sociedade de massas. Podemos dizer,
portanto, que esse popular anônimo e discreto existe, na verdade, como conseqüência
da vida na cultura de massas.
Tanto Crede-mi quanto Santo Forte afastam-se do popular como anônimo e discreto.
Ao contrário, os realizadores saem de suas “zonas de conforto” urbana-classe-média-
alta e adentram no território do popular, seja ele o interior cearense ou uma favela
carioca. É preciso partir em busca desse popular ostensivo, já que, ao contrário do
popular discreto, ele parece residir em um local específico, ter um estilo de vida, um
vocabulário, um sotaque e até mesmo uma aparência específica, enquanto o popular
discreto confunde-se com a multidão dos demais anônimos dos centros urbanos.
Porém, Crede-mi e Santo Forte são filmes muito diferentes na imagem que constroem
desse popular.
Há em Santo Forte, a meu ver, uma pretensão de apresentar o povo como se apresenta
a descoberta de uma “verdade”, como se estivéssemos penetrando, através do filme,
nos recônditos cotidianos de uma parte “autêntica” da sociedade brasileira. Nesse
sentido podemos dizer que o povo tal qual aparece em Santo Forte pode ser visto
como um desdobramento das concepções CPCistas dos anos 60, desta vez porém
eivada de um mea culpa por parte de um realizador que foi justamente adepto do
cinema popular dos CPCs. Sua frase, citada por Consuelo Lins, expressa justamente
isso:
“O diretor (Eduardo Coutinho) tenta compreender o imaginário do outro sem aderir a
ele, mas também sem julgamentos ou avaliações de qualquer ordem, ironias ou
ceticismos, sem achar que o que está sendo dito é delito, superstição ou loucura. ‘O
que o outro diz é sagrado’. Sabe também que o seu imaginário pode ser tão frágil
quanto o do outro. ‘Não houve gente que acreditou durante muito tempo que o paraíso
era a Albânia e outros países? É tão mágico e crédulo quanto uma pessoa religiosa.
325
conclusão
Não vejo por que achar que é mais alienado quem acredita em outro mundo do que
quem acredita em um paraíso na terra’”
361
.
A frase de Coutinho a respeito da relação entre alienação e religião citada por
Consuelo Lins expressa uma postura própria de quem se sente portador de um
discurso privilegiado sobre o popular e se acredita apto a revelá-lo ao público através
de seus procedimentos cinematográficos. A “verdade” apresentada constitui-se numa
sensação provocada por este discurso e, como dissemos, diz mais respeito ao próprio
cineasta e a uma determinada imagem do povo do que ao povo em si. A relação entre
religião e alienação mostra o lugar do “outro” de Coutinho em relação ao povo, e
apresenta uma imagem da cultura popular aproximada a uma visão tradicional.
Segundo Antônio Augusto Arantes, “Pensar a ‘cultura popular’ como sinônimo de
‘tradição’ é reafirmar constantemente a idéia de que sua idade de ouro deu-se no
passado. Em conseqüência disso, as sucessivas modificações por que necessariamente
passaram esses objetos, concepções e práticas não podem ser compreendidas, senão
como deturpadoras ou empobrecedoras. Aquilo que se considera como tendo tido
vigência plena no passado só pode ser interpretado, no presente, como
curiosidade”
362
.
A imagem do povo em Santo Forte aproxima-se de uma visão tradicional ao valorizar
as religiões afro-brasileiras e o catolicismo popular ao mesmo tempo em que critica a
Igreja Universal do Reino de Deus, mais adequada ao moderno consumo religioso das
massas. O filme constrói uma imagem do popular exótico e eivado de uma
religiosidade mística e ancestral, de modo a formar uma idéia tradicional do povo que
transita no limite entre o emocionante e o aberrante. Em Crede-mi, ao contrário, o
povo e a cultura popular não são valorizados por sua banalidade, ordinariedade, por
estar próxima ou íntima do espectador através da exposição de seus problemas
particulares. Também não é valorizada por designar aquilo que é exótico, regional,
primitivo, espontâneo, uma caracterização que muitas vezes impregna o senso comum
com relação à cultura popular. Não é sua religiosidade exótica e sincrética que nos
interessa, apesar da religião também aparecer no filme. Não é a espontaneidade com a
361
LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p.107.
362
ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. op. cit., p.18.
326
conclusão
qual ela se manifesta que nos fascina – ao contrário de Santo Forte – mas, ao
contrário, aquilo que nela não é espontâneo. Aqui o popular está valorizado por ser
capaz de um desempenho técnico e artístico que custa esforço e um tipo de
treinamento que em tese não diferiria daquele que é típico da cultura erudita como um
sistema institucionalizado de práticas e saberes. O popular em Crede-mi é capaz das
mesmas práticas, dos mesmos saberes, do mesmo desempenho baseado no
treinamento e no esforço.
Antonio Augusto Arantes considera que a idéia de popular costuma estar associada a
“fazer” e não a “saber”
363
, ou seja, como uma prática não sistematizada em
conhecimento, ou como um conhecimento empírico, que tem na aplicação sua
finalidade última. Marilena Chauí, por exemplo, vê o popular como uma dimensão
constituída de práticas locais e temporalmente determinadas, dispersas no interior da
cultura dominante, e cuja lógica é dada pela ação
364
. Não é isso o que ocorre em
Crede-mi. Neste filme, o popular é apresentado como tendo uma dimensão que está
indissociavelmente relacionada ao saber e ao fazer. O desempenho dos atores reveste-
se de uma qualidade erudita, na medida em que sua atuação aproxima-se daquela
esperada de um ator que teve contato com o conhecimento artístico sistematizado. A
atuação dos populares não tem nada de espontaneísmo, ao contrário, parece
cuidadosamente elaborada de acordo com o que se espera de um ator profissional.
Nestes dois filmes, Santo Forte e Crede-mi, temos imagens ostensivas do povo e do
popular. Não se trata do popular discreto que vimos em outros filmes aqui analisados,
como Nós que aqui estamos por vós esperamos, Terra Estrangeira e O homem que
copiava. O popular de Coutinho e Lessa/Roland está caracterizado imediatamente
como popular, envolvido em alguns dos estereótipos mais recorrentes: pobreza,
misticismo, religiosidade, folclore. Temos, nestes filmes, dois dos principais – senão
os principais – redutos do personagem associado ao povo no Brasil: o sertão e a
favela. Ao adentrar no sertão ou ao adentrar na favela, tanto Crede-mi quanto Santo
Forte acionam no espectador um imaginário a respeito do popular, ao qual o cinema
brasileiro tem recorrido bem frequentemente desde pelo menos o final dos anos 50.
363
ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. op. cit., p.14.
364
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência – aspectos da cultura popular no Brasil. op. cit., p.
116.
327
conclusão
No entanto, que diferença de imagem e de discurso sobre o popular temos entre estes
dois filmes: o primeiro busca o extraordinário do popular em seu cotidiano eivado de
uma religiosidade que nos é apresentada como exótica e sincrética, enquanto o
segundo procura valorizá-lo a partir de um tipo de desempenho artístico que
normalmente não está associado a ele. Além disso, no primeiro a valorização do
popular parece funcionar como forma de valorização do próprio cineasta, justamente
aquele que tem a habilidade necessária para tirar dos personagens um depoimento
com uma aura de “autenticidade” e uma alta carga emocional. Em Crede-mi, por
outro lado, sabemos o tempo todo que o que vemos é fruto de um trabalho dos
realizadores que treinaram os atores para obter aquele desempenho extraordinário. No
entanto, o que as imagens valorizam são os próprios atores, e não os responsáveis
pelo wokshop em si. Se analisarmos com cuidado, portanto, veremos que as imagens
revelam mais do que aparentam à primeira vista: uma construção elaborada
cuidadosamente para que pareça fazer sobressair o popular acaba revelando o diretor,
enquanto outra que torna óbvio o trabalho de preparação realizado pela equipe
cinematográfica faz sobressair, a meu ver, o popular. Segundo penso, isso acontece
justamente por que em Crede-mi a valorização do popular não ocorre naquilo que
parece mais “natural” e imediato ao povo – suas condições de vida, sua religiosidade,
sua cultura, apesar de tudo isso aparecer no filme – mas naquilo que mostra
justamente uma superação estética em relação ao cotidiano imediato e suas
dificuldades.
Nos dois filmes temos como espectador privilegiado alguém que não faz parte do
universo dos populares apresentados. Em Santo Forte, a meu ver, este é um aspecto
importante na atração que o filme exerce: o que parece fascinar no popular é
justamente seu caráter de outro em relação ao espectador. Em Crede-mi, por outro
lado, o que nos fascina é ver este outro aproximar-se de nós, espectadores de um
cinema “de arte” como este de Lessa e Roland, via cultura e desempenho erudito.
Já em Baile Perfumado e Amélia temos algo diferente: o popular não se mostra
apenas como popular, mas como adepto de uma cultura de massas e como portador de
uma cultura erudita. Trata-se em ambos os casos de um popular ostensivo: o
cangaceiro e o caipira, paramentados de todos os adereços e atitudes que os
328
conclusão
identificam como tal. Mas dessa vez eles ultrapassam sua identificação ao popular e
tornam-se indissociavelmente populares e massificados (Baile Perfumado) e
populares e eruditos (Amélia). Eles são, de certa forma, contextualizados, segundo
colocam Ayala e Ayala:
“Hoje a contextualização implica situar a cultura popular enquanto processo dinâmico
e atual no interior de uma sociedade dividida em classes com interesses antagônicos.
Assim, não cabe mais analisar as práticas culturais populares como sobrevivências do
passado no presente, pois, independentemente de suas origens, mais remotas ou mais
recentes, mais próximas ou mais distantes geograficamente, elas se reproduzem e
atuam como parte de um processo histórico e social que lhes dá sentido no presente,
que as transforma e faz com que ganhem novos significados”
365
.
O fato de tratar-se de populares ostensivos torna a identificação com a cultura de
massas e a cultura erudita ainda mais radical. Parece que antes é necessário reafirmar
o estereótipo popular para depois nos afastarmos dele. Em Amélia temos um
embaralhamento das fronteiras que a princípio contrapõem uma atriz francesa e culta
a três caipiras ignorantes do interior de Minas Gerais. No entanto, estas caipiras vão
se revelando cada vez menos ignorantes e cada vez mais eruditas, enquanto Sarah se
revela cada vez mais bárbara e incivilizada. As fronteiras entre as caipiras e Sarah
Bernardht tornam-se completamente indeterminadas ao final do filme. Deslocadas,
elas compõem um teatro grotesco e antropofágico, no qual Sarah tenta se alimentar da
cultura “nativa” mas acaba sendo devorada pelo bizarro que ela mesma se esforçou
em fazer emergir ao insistir numa imagem estereotipada do popular. A Canção do
Exílio na versão de Pena Branca e Xavantinho durante os créditos finais, no entanto,
traz de volta a beleza do erudito ao dotá-lo de uma espécie de originalidade dada
justamente pelo aspecto popular da música da dupla. Enquanto Baile Perfumado
parece nos mostrar a importância de inserir o popular na cultura de massas como
condição de sua própria permanência, Amélia parece encerrar-se com a idéia de que o
popular - associado ao que é autêntico, "nativo", enraizado, tradicional - pode trazer
originalidade e beleza ao erudito. O popular exacerba uma beleza que o erudito já
365
AYALA, Marcos, AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil – perspectivas de análise. op.
cit., p.52.
329
conclusão
possui, mas que estava ausente da mistura grotesca encenada por Sarah.
Em Baile Perfumado, o que temos são cangaceiros que desejam pertencer ao mundo
da cultura de massas como ícones pop. Nesse processo, eles não demonstram
nenhuma ingenuidade: o cinema e a fotografia não os assustam, não os intimidam,
pelo contrário, eles demonstram bastante intimidade com a câmera e sabem muito
bem o poder que suas imagens podem transmitir. O filme mantém-se o tempo todo
fiel à sua mistura entre popular e pop, o que a inspiração bastante clara no
manguebeat nos deixa entrever. O ídolo pop que ressurge ao final do filme, após sua
morte, observando altivo seu sertão, não dá espaço para saudosismos em relação à
idéia popular "tradicional", que o identifica a um passado fossilizado, a práticas
enraizadas e imutáveis, à manutenção do folclore. O manguebeat e a trajetória de
Lampião e de Benjamin Abraão mostram, ao contrário, que a manutenção de certa
prática tida como tradicional depende, em grande medida, da capacidade de
atualização desta prática tendo em vista as condições presentes. A cultura de massas
não é uma ameaça à cultura popular; ao contrário: pode ser utilizada para dar
permanência a ela. Do popular como reduto do tradicional e como sinônimo de
passado chegamos a uma contextualização e atualização desse popular e, junto com
ele, da idéia da "tradição". Segundo Raymond Williams:
“(...) ‘tradição’ foi comumente entendida como um segmento relativamente inerte,
historicizado, de uma estrutura social: a tradição como a sobrevivência do passado.
Mas essa versão da tradição é frágil no ponto mesmo em que o sentido incorporador
da tradição é forte: quando vista, de fato, como uma força ativamente modeladora. A
tradição é na prática a expressão mais evidente das pressões e limites dominantes e
hegemônicos. É sempre mais do que um segmento inerte desistoricizado; na verdade,
é o meio prático de incorporação mais poderoso. O que temos de ver não é apenas
‘uma tradição’, mas uma tradição seletiva: uma versão intencionalmente seletiva de
um passado modelador e de um presente pré-modelado, que se torna poderosamente
operativa no processo de definição e identificação social e cultural”. “O que temos,
então, a dizer sobre qualquer tradição é que nesse sentido ela é um aspecto da
organização social contemporânea, no interesse do domínio de uma classe específica.
É uma versão do passado que se deve ligar ao presente e ratificá-lo. O que ela oferece
330
conclusão
na prática é um senso de continuidade predisposta
366
.
Entre os filmes analisados, Santo Forte é aquele que mais se aproxima da idéia de
povo como tradição no sentido do segmento desistoricizado, enquanto Baile
Perfumado nos mostra justamente o processo de seleção de uma tradição, ou seja, o
processo obrigatoriamente contextualizado que permite que uma determinada imagem
tradicional – no caso, a do bando de Lampião – seja selecionada a partir de
procedimentos e interesses contemporâneos. Nesse sentido, os dois filmes nos
mostram que a idéia do popular é uma construção imagética. No caso do filme de
Coutinho, é uma construção que depende, naturalmente, das decisões tomadas pela
equipe de produção e pela interpretação do espectador - que, por sua vez, depende de
sua inserção social e cultural. Coutinho constrói uma imagem “tradicional” do
popular: razoavelmente isolado em seu habitat (a favela, mas poderia ser o sertão...),
praticante de religiões "exóticas", pobre, no meio caminho entre o bizarro e o
emocionante. Com Crede-mi, por outro lado, vimos que, na medida em que a imagem
do popular é uma construção, ela pode ser construída de maneiras diversas e até
antagônicas. Este filme, como Santo Forte, também nos mostra um popular
“tradicional”: isolado em seu habitat (o sertão, mas poderia ser a favela...), adepto
fervoroso e místico do catolicismo, pobre, reduto do folclore, etc. Mas agora este
popular parece valorizado pelo desempenho técnico e artístico – erudito – que é capaz
de realizar, e não exatamente por sua condição popular. Temos uma construção
completamente diferente do popular em relação a Santo Forte e em ambos os casos é
muito claro que as diferenças de escolhas na imagem do povo estão intimamente
relacionadas a uma diferença na imagem dos próprios realizadores dos filmes, que se
colocam de maneiras muito diferentes como, em certa medida, personagens dos
filmes. Em Nós que aqui estamos por vós esperamos aparece um popular que
denominamos “discreto”, já que desprovido das identificações mais antropológicas
que costumam estar associadas ao popular. Esse popular, no entanto, está separado da
cultura erudita, e parece ser antes uma vítima do que um participante ativo num
século no qual a cultura de massas dissemina-se pelo planeta. Já em Terra
Estrangeira, esse popular discreto procura a cultura erudita mas, da mesma forma, é
366
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. op. cit., p. 118-119.
331
conclusão
impedido, pelas condições históricas e sociais que encontra pela frente, a realizar seus
sonhos artísticos. Em O homem que copiava o popular discreto vive num mundo onde
recebe ao mesmo tempo estímulos eruditos e massificados. Mas dessa vez ele inverte
sua condição de vítima tirando lições desses estímulos e conseguindo ascender
socialmente. Em Baile Perfumado e Amélia, finalmente, o popular, dessa vez não
discreto, mas ostensivo, mistura-se definitivamente à cultura de massas e à cultura
erudita. Na verdade, mais do que misturar-se, ele se mostra efetivamente massificado
e erudito. O que temos nestes filmes, portanto, como vimos, são visões do popular
que por hora se assemelham e por hora se diferenciam. São imagens que são ao
mesmo tempo estéticas e sociais, e, nessa última acepção, são imagens que dizem
respeito ao campo da sociologia.
Esperamos com essa pesquisa ter mostrado a importância da imagem cinematográfica
para a construção de determinadas visões de mundo que, apesar de se constituírem
como representações, atuam diretamente no mundo social, e são, nesse sentido,
fundamentais para se entender a manutenção ou a transformação das estruturas
sociais. Como dissemos na apresentação deste trabalho, sabemos que o “povo” não
existe como dado do real, mas apenas como categoria ou como construção simbólica
que informa o pensamento. O povo não existe, mas quanto já se foi produzido ou
destruído em nome dele. O povo não existe, mas, assim como a nação, tem uma
função essencial na desmobilização da classe trabalhadora, que se identifica a uma
representação nacional sem perceber o quanto ela atrapalha o reconhecimento do
proletariado enquanto classe que ultrapassa as fronteiras dos países. Quantos políticos
não dizem atuar em nome do povo, quantos artistas não procuram produzir para o
povo, quantos ativistas em atividade revolucionária não procuram o contato com o
povo, quantos pensadores não tentaram apreender a identidade do povo brasileiro. Da
mesma forma, no cinema, o povo tem uma realidade simbólica, uma existência
imagética que, no fundo, não se distingue de uma existência concreta, material, pois
opera com a mesma força. O cinema brasileiro, como as demais manifestações
artísticas, oferece uma visão de povo que tem uma existência social, que circula os
espectadores e que informa atitudes e expectativas no mundo social, fora da sala de
cinema.
332
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