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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
“Eu exalto a alegria...” (Ec 8.15)
Morte e fruição da vida em Eclesiastes a partir da psicanálise de Jung
ERICA LUISA ZIEGLER
DOUTORADO EM TEOLOGIA
Área de Concentração: Bíblia
São Leopoldo, março de 2006.
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“Eu exalto a alegria...” (Ec 8.15)
Morte e fruição da vida em Eclesiastes a partir da psicanálise de Jung
TESE DE DOUTORADO
por
Erica Luisa Ziegler
em cumprimento parcial das exigências
do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia
para obtenção do grau de
Doutora em Teologia
Escola Superior de Teologia
São Leopoldo, RS, Brasil
Março de 2006
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3
ZIEGLER, Erica Luisa. “Eu exalto a alegria...” (Ec 8.15). Morte e fruição da vida em Eclesi-
astes a partir da psicanálise de Jung. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2006.
SINOPSE
A pergunta pelo sentido da vida e a frustração decorrente do
fato de todos os seres humanos serem mortais, portanto infe-
riores aos deuses, constituem dois dos elementos fundantes
da psique humana. O livro do Eclesiastes, em seu tempo, e a
psicologia profunda, a partir do séc. XX, são duas tentativas
de trabalhar esses assuntos e buscar saídas para uma nova
forma de fruir a vida e chegar à sabedoria que se eleva para
além do mundo terreno, valorizando a vivência espiritual, a-
fetiva e emocional, para além dos limites estreitos do poder
derivado da posse de bens materiais. Cada qual à sua manei-
ra, o autor do livro do Eclesiastes e Carl G. Jung propõem
princípios como dignidade, solidariedade e integralização do
ser, para uma vida realizada e plena em todas as suas poten-
cialidades. Esta pesquisa mostra uma das possibilidades de
reler o livro do Eclesiastes a partir da psicologia profunda,
tornando-o acessível para as pessoas que estão à busca de
novas formas de viver sua espiritualidade no cotidiano.
4
ZIEGLER, Erica Luisa. “Eu exalto a alegria...” (Ec 8.15). Morte e fruição da vida em Eclesi-
astes a partir da psicanálise de Jung. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2006.
ABSTRACT
The quest for the sense of life and the frustration derived
from the fact that humanity is mortal, that means inferior to
gods, constitute two of the most important elements of the
human psyche. As a consequence, life is often considered as
being tasteless and without any sense or purpose. The book
of Ecclesiastes, in its time, and the profound psychology from
the 20
th
century are two forms of dealing with these questions
and to look for solutions. New ways of enjoying life and
attaining wisdom that go beyond the terrenal world
emphasize the spiritual, affective and emotional life beyond
the narrow limits of power deriving from material goods
only. Each in his own way, both the author of the book of the
Ecclesiastes and Carl G. Jung propose principles such as
dignity, solidarity, and integralization of the human being in
sense of live in plenitude all the life’s possibilities. This
research shows an alternative to read the book of Ecclesiastes
from the view of the profound psychology, making it
accessible to all people who look for new ways to experience
their spirituality in everyday’s life.
5
BANCA EXAMINADORA
1º Examinador: Prof. Dr. Nelson Kilpp (Presidente)
2º Examinador: Prof. Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero (EST – IEPG)
3º Examinador: Profa. Dra. Elaine Glecí Neuenfeldt (EST – IEPG)
4º Examinador: Prof. Dr. Renatus Porath (FLT)
5º Examinador: Prof. Dr. Everton Ricardo Bootz (ULS)
6
AGRADECIMENTOS
Ao meu professor orientador, Dr. Nelson Kilpp.
À equipe da biblioteca da EST.
À Prof
a
Ms
a
Karin Helen Kepler Wondracek.
À Prof
a
Dr
a
Valburga Schmiedt Streck.
Ao Prof. Dr. Uwe Wegner.
Ao Prof. Dr. Luís Marcos Sander.
À equipe do Instituto Junguiano do Rio Grande do Sul IJRS, nas pessoas de Maria da Graça
Serpa e Gelson Luis Ribeiro.
Ao Dr. Marco Antônio de Menezes.
Ao Dr. Jorge Alberto Frischenbruder.
... e a todas as pessoas, impossíveis de serem nomeadas individualmente, que me acompanha-
ram até aqui.
7
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS..............................................................................................................9
INTRODUÇÃO....................................................................................................................................10
I. O LIVRO DO ECLESIASTES........................................................................................................26
C
ONSIDERAÇÕES GERAIS
...................................................................................................................26
1.
A
DENOMINAÇÃO
E
CLESIASTES
.....................................................................................................28
2.
Q
UESTÕES DE DATAÇÃO
................................................................................................................29
2.1 Datação na época salomônica ................................................................................................29
2.2 Datação da época persa ou helenística...................................................................................32
3.
U
M AUTOR OU VÁRIOS AUTORES
?..................................................................................................35
4.
G
ÊNERO LITERÁRIO
........................................................................................................................40
5.
C
ONTEÚDO SAPIENCIAL
.................................................................................................................42
5.1 Sabedoria e insensatez: questões de gênero e de polarizações...............................................43
5.2 O papel da lei e da transcendência e o sentido da vida nas reflexões do Eclesiastes.............45
5.3 Trabalho, esforço e vaidade no livro do Eclesiastes...............................................................48
5.4 Ética e responsabilidade social...............................................................................................50
5.5 Um Deus distante e impessoal?...............................................................................................52
5.6 A falência do esquema ação-retribuição.................................................................................56
5.7 Uma reflexão pessimista e desenganada sobre morte e vida?................................................58
6.
D
AS INFLUÊNCIAS DO
A
NTIGO
O
RIENTE
M
ÉDIO À VIVÊNCIA DO PROCESSO DE HELENIZAÇÃO NA
P
ALESTINA PÓS
-
EXÍLICA
....................................................................................................................63
6.1 O mundo do Antigo Oriente Médio.........................................................................................63
6.1.1 O juízo dos mortos egípcio...............................................................................................65
6.1.2 A Epopéia de Gilgamesh..................................................................................................69
6.2 O mundo helenístico................................................................................................................73
II. CARL GUSTAV JUNG E A PSICOLOGIA PROFUNDA: UMA INTRODUÇÃO................81
1.
C
ONSIDERAÇÕES GERAIS
...............................................................................................................81
2.
A
IMPORTÂNCIA DOS SONHOS
........................................................................................................93
3.
O
CONSCIENTE
PERSONA E EGO
...................................................................................................95
4.
O
INCONSCIENTE PESSOAL E COLETIVO
.........................................................................................97
4.1 O inconsciente pessoal............................................................................................................98
4.2 O inconsciente coletivo............................................................................................................99
8
5.
O
S ARQUÉTIPOS
............................................................................................................................103
5.1 A sombra................................................................................................................................107
5.2 A anima..................................................................................................................................110
5.3 O animus................................................................................................................................115
5.4 O self .....................................................................................................................................118
E
XCURSO
:
SOBRE A RELAÇÃO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA COM A POESIA
......................................121
III. MORTE E FRUIÇÃO DE VIDA EM ECLESIASTES...........................................................127
C
ONSIDERAÇÕES GERAIS
.................................................................................................................127
P
OSSIBILIDADES TRANSDISCIPLINARES
...........................................................................................129
1.
A
VISÃO DO
E
CLESIASTES
............................................................................................................131
2.
A
VISÃO DE
C
ARL
G
USTAV
J
UNG
.................................................................................................134
3.
P
ERÍCOPES DO LIVRO DO
E
CLESIASTES RELATIVAS À MORTE E À FRUIÇÃO DA VIDA
..................138
3.4.1 Ec 2.14-16 – a vaidade dos poderes humanos diante da morte.........................................138
3.4.2 Ec 2.24-26 – a dádiva de Deus para quem vive em seu agrado.........................................142
3.4.3 Ec 3.1-8 – o tempo certo para viver e morrer....................................................................147
3.4.4 Ec 3.9-15 – a eternidade e o poder de Deus sobre a vida e a morte..................................152
3.4.5 Ec 3.16-22 – os seres humanos e os animais são iguais diante da morte..........................160
3.4.6 Ec 5.17-19 – o direito de ser feliz com o próprio trabalho................................................164
3.4.7 Ec 7.1-6 – a morte como motivo de reflexão sobre o sentido da vida................................167
3.4.8 Ec 8.8-10 – a impossibilidade de conhecer o dia da morte................................................170
3.4.9 Ec 8.15-17 – a exaltação máxima da alegria.....................................................................176
3.4.10 Ec 9.3-6 – saber-se vivo sempre é melhor que encarar o poder anulador da morte.......179
3.4.11 Ec 9.7-10 – a exaltação da vida cotidiana.......................................................................183
3.4.12 Ec 11.7-10 A alegria da juventude e a responsabilidade diante de Deus........................188
3.4.13 Ec 12.1-7 – o destino final junto a Deus ..........................................................................192
CONCLUSÃO....................................................................................................................................205
1.
D
E LÁ PARA CÁ
.............................................................................................................................207
2.
R
EGIÕES INTERMEDIÁRIAS
...........................................................................................................208
3.
D
O LADO DE CÁ
............................................................................................................................209
4.
P
ERSPECTIVAS
..............................................................................................................................210
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................213
M
ÍDIA ELETRÔNICA
.............................................................................................................218
9
LISTA DE ABREVIATURAS
AT – Antigo Testamento
BHS – Biblia Hebraica Stuttgartensia
BU – Bewußtes und Unbewußtes (1953), obra de C. G. Jung
HS – O homem e seus símbolos (1987, ed. bras.), obra organizada por C. G. Jung
LXX – Septuaginta (tradução da Bíblia)
MSR – Memórias, sonhos, reflexões (2005, ed. bras.), obra de C. G. Jung
NT – Novo Testamento
PR – Psychologie und Religion (1940), obra de C. G. Jung
TM – texto massorético
10
INTRODUÇÃO
O tema central desta pesquisa é a releitura de alguns temas centrais do livro do Eclesi-
astes a morte e a fruição da vida e aspectos relacionados –, à luz da psicologia profunda se-
gundo Carl Gustav Jung. Essa idéia surgiu de duas constatações:
a) O livro do Eclesiastes é pouco estudado pela maioria das pessoas que têm contato
com a Bíblia, seja através de estudos bíblicos pessoais ou coletivos, seja como profissionais
nas diversas áreas de atuação das Igrejas. Isso acontece porque o livro do Eclesiastes é um
texto controvertido, até mesmo confuso, que parece não apresentar uma unidade lógica e uma
coesão interna, além de sua linguagem ser de interpretação bastante difícil. Esta primeira
constatação leva ao reconhecimento de um desafio de interpretação e análise teológico-
literária na área geral da exegese bíblica.
b) A leitura de Jung, no que se refere à sua teoria sobre o desenvolvimento da persona-
lidade (o chamado processo de individuação
1
), fez surgir a hipótese de que o autor do livro do
Eclesiastes possa ter passado por um processo de construção da personalidade semelhante ao
descrito por Jung em seus estudos psicanalíticos. Esse processo pode ser acompanhado no de-
senvolvimento da argumentação intratextual, conforme se verificará no capítulo deste tra-
balho.
A junção destas duas constatações forma a proposta central da tese: comprovar que o
texto do livro do Eclesiastes dispõe de uma coesão interna, o chamado fio condutor intratex-
tual, que reflete um crescimento pessoal de seu autor no sentido junguiano de desenvolvimen-
to psíquico. Assim se pretende oferecer uma nova leitura do livro, que possa levar a uma frui-
ção mais ampla e prazerosa de sua mensagem. Esse tipo de leitura sob a ótica da teoria psi-
canalítica junguiana – poderá, eventualmente, ajudar a esclarecer questões que instigam aque-
las pessoas que estão em busca de um crescimento interior efetivo e que, por isso, precisam
resolver uma série de conflitos psíquicos conscientes ou inconscientes.
1
Estes e outros termos serão estudados em detalhes no segundo capítulo deste trabalho.
11
A pesquisa apresentará, no primeiro capítulo, o livro do Eclesiastes em seus principais
aspectos teológicos e sócio-políticos, assim como o estado atual da pesquisa bíblica quanto
aos assuntos mais polêmicos nele tratados. O segundo capítulo apresentará termos-chave da
teoria junguiana, como a questão dos arquétipos e da relação entre consciente e inconsciente
pessoal e coletivo. Se estes elementos, fundamentais para entender a composição da psique
humana, tiverem alguma relação com o texto do livro do Eclesiastes como um todo, e se pu-
derem ser ligados à questão de como lidar com a morte e a fruição da vida, será possível bus-
car, por este viés hermenêutico, uma nova forma de compreensão do livro. Isso porque assun-
tos como estes são motivo de reflexão e, às vezes, angústia existencial para grande parte da
humanidade em qualquer tempo e espaço, tanto consciente quanto inconscientemente.
No terceiro capítulo analisar-se-á o livro do Eclesiastes em algumas perícopes selecio-
nadas a partir da perspectiva da psicanálise. Isso significa que haverá uma análise bíblico-
literária teórica segundo os padrões convencionais da pesquisa, e outra reflexão paralela sobre
os assuntos citados, calcada na tentativa de aplicação prática dos termos utilizados na propos-
ta junguiana de análise e interpretação. Todas as traduções destas perícopes são da própria au-
tora, assim como as traduções de todas as citações utilizadas no decorrer da pesquisa como
um todo.
Cabe esclarecer que não se trata de estabelecer paralelos ou comparações entre o que
Jung pensa sobre morte e fruição da vida e as idéias do Ec sobre o mesmo assunto. Não se
propõe aqui um estudo comparativo de concepções teológicas e psicanalíticas. Tornou-se ne-
cessário, no entanto, centralizar a argumentação em torno de determinados aspectos que cha-
mam a atenção numa leitura mais detalhada do livro do Eclesiastes, para não generalizar a a-
nálise. Por isso, e para ter subsídios concretos que fundamentem com clareza a proposta desta
tese como um todo, serão destacados, no livro do Eclesiastes, os assuntos morte e fruição da
vida, enquanto a teoria junguiana será integrada posteriormente, em seus aspectos mais gerais,
que dizem respeito à estrutura da psique humana.
Verificar-se-á, no decorrer do trabalho, que poderia haver pelo menos dois momentos
em que determinados assuntos se identificam entre si de uma forma que acabam por transcen-
der os limites da pesquisa original, baseada na leitura bíblica e no breve estudo da psicanálise:
a) paralela ao livro do Eclesiastes encontrar-se-ia a Epopéia de Gilgamesh, originária da Me-
sopotâmia; as reflexões do Ec repetem, em outras palavras, o que já dizia a copeira Siduri a
12
Gilgamesh, e o que diziam também os sábios egípcios muito tempo antes de ambos
2
. b) A
proposta de Jung encontraria seu eco na literatura de seu tempo. A leitura do escritor alemão
Hermann Hesse, concomitante à de Jung, parece corroborar as idéias deste último. Reforça-se
nela a necessidade que o ser humano tem de conhecer-se a si mesmo, aprender a lidar consigo
mesmo e construir novas formas de convívio com as outras pessoas, para que todos possam
beneficiar-se de uma real fruição da vida.
Por outro lado, não seria possível basear a pesquisa apenas nestes aparentes paralelos:
essa interpretação tipológica pode forçar a leitura e a subseqüente interpretação para certas
direções pretendidas, não deixando os textos falarem por si mesmos. Entre Jung e o Ec exis-
tem vários pontos divergentes, p.ex. no que se refere à busca pelo sentido da vida, a qual é
fundamental para o primeiro mas carece de importância para o segundo. Depois, Jung quer
“conhecer” Deus e entendê-lo, aproximando-se dele, enquanto o Ec Deus como alguém
distante, a quem se devem prestar contas, mas que abençoa a vida humana se esta se orientar
segundo os seus preceitos. Por fim, Jung não incita tanto a uma vida de fruição e alegria no
coletivo quanto o Ec, porque sua preocupação básica é com a psique do indivíduo, antes de di-
rigir-se ao grupo. Já o Ec destaca a solidariedade e a fruição da vida junto às pessoas amadas.
Outra grande diferença de enfoque entre o Ec e Jung é que o primeiro se prende mais à
questão da morte física. O Ec lamenta, primeiramente, que o ser humano seja frágil e tima
do desaparecimento físico e espiritual (embora, para ele, a morte esteja integrada no ciclo na-
tural da vida), e que sua memória se imediatamente com sua morte física, nada restando de
seus esforços em seu caminho terreno.
Por seu lado, Jung pensa nas chamadas mortes simbólicas, quais sejam ritos de passa-
gem, perdas de pessoas queridas, abandonos dos mais diversos. Ele se refere à necessidade de
trabalhar os sentimentos de perda, choque, depressão e pessimismo suscitados por situações
de transição, de conflito, de passagem sem volta. Superar os sentimentos de vazio, revolta e
dor causados por uma determinada perda é um dos principais objetivos na teoria junguiana de
construção e evolução da personalidade. Também Jung percebeu que a morte e a fruição da
vida são assuntos atemporais e universais, que ocupam a mente do ser humano desde sempre.
Em todas as épocas tentou-se encontrar respostas para as grandes perguntas: a morte é real-
2
A Epopéia de Gilgamesh será analisada em maiores detalhes no cap. 1 deste trabalho.
13
mente o fim de tudo? E por que o homem não pode ser imortal? Em decorrência disso, qual o
sentido da vida?
Essas e outras questões são tratadas por ele ao descrever o chamado processo de indi-
viduação o caminho rumo ao próprio inconsciente, no qual repousam os elementos forma-
dores da personalidade. Quando se conhecem estes elementos e se sabe trabalhá-los adequa-
damente, reconstruir seu próprio ser a partir do conhecimento de si mesmo pode ser uma tare-
fa prazerosa. O indivíduo em paz consigo mesmo pode também construir uma nova forma de
relacionar-se com o mundo ao seu redor. E a paz interior pode fazer com que as questões so-
bre morte e sentido da vida, apontadas acima, percam um pouco de seu poder atemorizante e
sejam colocadas em seu lugar natural no ciclo perene do viver e do morrer. A verdadeira sa-
bedoria, neste caso, não é ter respostas para tudo, e sim saber viver apesar de tudo, inclusive
da morte e da aparente falta de sentido da vida.
A razão última para a tentativa de associar Bíblia e psicologia profunda pode ser for-
mulada assim: “Podemos incluir a Bíblia nos nossos diálogos porque e na medida em que sua
mensagem é curadora para a pessoa com quem estamos lidando, e porque ela pode auxiliar na
superação de sua situação atual”
3
. A Bíblia pode ser curadora, antes de tudo, para a sensação
assustadora de vazio que a morte provoca na maioria das pessoas. A morte é o fim de uma (às
vezes) longa jornada e não permite que se vislumbre um fim conhecido, definido, claro. Não
se sabe para onde se vai quando se morre, embora haja, em muitas religiões, a crença de que
as almas das pessoas mortas continuam a viver, mesmo que numa forma diferente. O ser hu-
mano é o único em toda a criação que enterra seus mortos, e o ritual em torno desse fato desde
sempre existiu para garantir, entre outros aspectos, que os mortos não venham a prejudicar os
familiares que deixaram, e sim que os protejam e auxiliem
4
.
Não se sabe nem o que acontece no momento da morte, embora haja múltiplas pesqui-
sas a respeito. O vazio decorrente dessa falta de informação leva à angústia de não se saber
sequer se existe um Deus, ou qualquer outra força supraterrena, que possa auxiliar a enfrentar
esse momento. Além do vazio, associa-se a morte à escuridão: “Um dos horrores inimaginá-
3
„Wir nnen die Bibel ins Gespräch bringen, weil und sofern ihre Botschaft für unser Gegenüber heilsam und
zur Bewältigung seiner augenblicklichen Lage hilfreich ist“. Peter BUKOWSKI, Die Bibel ins Gespräch
bringen. Erwägungen zu einer Grundfrage der Seelsorge, p. 11.
4
Adolf KÖBERLE, Die Theologie der Gegenwart und das Leben nach dem Tod, in: Gerhard HILDMANN
(ed.), Jenseits des Todes. Beiträge zur Frage des Lebens nach dem Tod, p. 74.
14
veis da morte deve ser a escuridão […] de este dia não poder nascer”
5
. Busca-se, de todos
os modos, a superação da morte, para além de túmulos, enterros ritualísticos, memórias sem
sentido. A morte não pode nem deve ser o fim da existência humana
6
.
Também na área da terapia psicanalítica, a preocupação dos pacientes com a morte
tem sido discutida com acentuada freqüência. Jung afirma que os elementos que compõem a
psique humana comprovam sua universalidade na maneira como o ser humano reage à experi-
ência da morte:
Um bom exemplo que tem sido muito discutido recentemente é a experiência da morte
próxima. Parece que muitas pessoas, de vários panos-de-fundo culturais diversos, desco-
briram que têm vivências muito parecidas quando o recuperadas de um encontro pró-
ximo com a morte. Elas falam de deixar seus corpos, ver seus corpos e os acontecimentos
em torno com clareza, de ser empurradas através de um longo túnel em direção a uma luz
brilhante, de ver parentes falecidos ou figuras religiosas esperando por elas, e de sua de-
cepção por terem de abandonar essa cena feliz para voltar a seus corpos. Talvez nós todos
estejamos “configurados” para vivenciar a morte dessa forma
7
.
No segundo capítulo deste trabalho será possível verificar por que Jung faz questão de
acentuar a universalidade e atemporalidade das experiências humanas metafísicas (nascimen-
to, crescimento, morte, ritos de passagem etc.). Essas experiências configuram o chamado in-
consciente coletivo, que se forma a partir das diversas reações humanas instintivas. Essas rea-
ções, muitas vezes incompreensíveis, são reais e podem ser explicadas. A psicologia profunda
de Jung se propõe a trabalhar reações e atitudes desde um ponto de vista positivo e produtivo,
para um melhor aprendizado de si mesmo, que leve a pessoa a enfrentar o mundo em outro
nível de consciência.
Por seu turno, ainda num tempo remoto, o livro do Eclesiastes já demonstrava “a preo-
cupação com o sofrimento humano e a morte, que ameaçam subverter a confiança da sabedo-
5
“Uno de los inimaginables horrores de la muerte debe ser la oscuridad […]: no poder nacer ese día”. Entrevista
com o escritor argentino Adolfo Bioy CASARES, in: Agulha revista de cultura (Fortaleza/São Paulo). Dis-
ponível em http://www.revista.agulha.nom.br/agindice geral1.htm, acesso em 02 jul. 2005.
6
A. KÖBERLE, op. cit., p. 74.
7
“A nice example that has been greatly discussed recently is the near-death experience. It seems that many peo-
ple, of many different cultural backgrounds, find that they have very similar recollections when they are bro-
ught back from a close encounter with death. They speak of leaving their bodies, seeing their bodies and the
events surrounding them clearly, of being pulled through a long tunnel towards a bright light, of seeing
deceased relatives or religious figures waiting for them, and of their disappointment at having to leave this
happy scene to return to their bodies. Perhaps we are all ‘built’ to experience death in this fashion”. George
C. BOEREE, About C. G. JUNG. Disponível em www.studiocleo.com/librarie/jung/introboereemain.html,
acesso em 09 jun. 2005.
15
ria estabelecida”
8
aquela sabedoria tradicional que somente afirma coisas, e não ajuda a re-
fletir, crescer e superar medos e preocupações. Em contraposição a essa postura, o livro do
Eclesiastes constata que
[…] Deus deu a cada hora sua tarefa e assim está muito bem. Mas ao ser humano ele con-
cedeu o dom de “questionar para além da hora, buscar o passado e o futuro”; no entanto,
essa capacidade, quase que essa necessidade de pensar para além da hora presente, revela-
se como uma tarefa árdua. Pois o ser humano não consegue compreender a totalidade da
obra divina e o sentido da alternação das épocas. […] Tentando enxergar à distância ele
se torna cego, mesmo sendo sábio, para o perigo do momento, e cai na rede da mesma
forma que o peixe e o pássaro (Ec 9.11s.)
9
.
Mesmo assim, a exortação à alegria sob os auspícios de Deus, estruturada quase que
em forma de refrão no livro do Eclesiastes, dada a freqüência com que ela aparece, nada mais
é que a expressão máxima da esperança e da confiança no poder divino: o mesmo Deus que
pede contas e responsabilidade é o Deus que faz viver e morrer e que abençoa a humanidade e
a protege, envolvendo cada ser humano num ciclo natural de nascimento, desenvolvimento e
morte, em que todos os fenômenos têm seu tempo e seu espaço. Dessa forma, alternam-se as
preocupações e os questionamentos pelo sentido da vida às vezes numa busca vã pela sabe-
doria absoluta com as propostas de fruição da vida a partir de um amadurecimento emocio-
nal baseado na fé.
Mas, nos dias de hoje, uma mal compartilhada, mal trabalhada ou mesmo ainda
submersa no inconsciente, não consegue responder ao questionamento: se a morte é o mais
desconhecido fenômeno da existência de tudo o que vive, para que é que se vive? Qual o sen-
tido da vida em face de uma morte rumo à inexistência, ao eterno vazio, que apaga todas as
marcas que se crê deixar neste mundo, mais cedo ou mais tarde? A real angústia da atualida-
de, em que “tudo o que é sólido desmancha no ar”, é fruto de uma dúvida crucial: existe al-
guma religião que tenha o poder de tranqüilizar o ser humano ao responder, à sua maneira e
segundo suas convicções, a estas e outras perguntas? Na verdade, conforme disse Epíteto, “o
8
Daniel SCHIPANI, O caminho da sabedoria no Aconselhamento Pastoral, p. 50.
9
„Gott hat jeder Stunde ihr Geschäft zugeordnet und so ist es trefflich. Dem Menschen aber hat er die Gabe, ‚ü-
ber die Stunde hinaus zu fragen nach Vergangenheit und Zukunft’, zuteil werden lassen; diese Fähigkeit aber,
ja, dieser Trieb, weiter zu denken als an die gegenwärtige Stunde, erweist sich als schwere Mühsal. Denn das
Ganze des ttlichen Werkes und den Sinn des Wechsels der Zeiten kann der Mensch doch nicht begreifen.
[…] In die Ferne blinzelnd wird er auch als Weiser blind für die Gefahr des Augenblicks und geht ins Netz
wie Fisch und Vogel (9.11f.)“. Hans Walter WOLFF, Anthropologie des Alten Testaments, p. 138.
16
que perturba e assusta o ser humano não são as coisas, mas suas opiniões e fantasias sobre as
coisas”
10
. No mundo atual, isso se manifesta da seguinte forma:
O “ser humano unidimensional” (Herbert Marcuse) não consegue criar para si a dimensão
da transcendência e um “transcender sem transcendência” (Ernst Bloch) ou um “princípio
esperança”, que se esvazia quando carece de um fundamento e sentido últimos
11
.
Nesta citação de Hans Küng, Marcuse percebe o ser humano unidimensional como
aquele indivíduo destituído das ligações mais primárias e essenciais com o mundo que o cer-
ca; trata-se daquele indivíduo que é apenas vítima do momento e das circunstâncias, que não
se percebe como sujeito de sua própria história e não tem forças para viver sua integralidade
em plenitude. É o ser humano que teve de aprender a endeusar a técnica e a ciência, as quais
prometem comprovar fisicamente todas as formas de vida e retirar o véu de todas as dúvidas
ainda persistentes na mente humana acerca dos fenômenos que o cercam.
Por sua vez, o chamado “princípio esperança”, palavra-chave para Bloch, fundamenta-se
na questão de que a ciência chegou ao ponto de desconstruir sem propor alternativas, sem
oferecer compensações, anulando todas as tentativas metafísicas de vida humana: “Os ci-
entistas o lidam com a verdade; lidam com descrições limitadas e aproximadas da rea-
lidade”
12
. Reduzir a vida humana a átomos calculáveis e previsíveis é a tentativa desespe-
rada de destruir aquele Deus cujos desígnios não se conhecem e que, por isso, inspira me-
do e desconfiança. O ser humano, hoje, cerca-se de todas as garantias físicas possíveis pa-
ra não ter de encarar a si mesmo como simples parte de um universo que ele não domina,
e que transcende em muito a realidade visível.
Também Jung chama a atenção para o fato de que a modernidade desfaz o saber e o
conhecimento dos antigos como se fossem meras histórias “da Carochinha” – inclusive essa fé
em Deus que consola o Eclesiastes –, enquanto as pessoas da atualidade teriam alcançado o
verdadeiro saber que tudo resolveria
13
. Mas o ser humano “pós-moderno” não se conta de
que toda ciência e toda técnica não substituem a vida interior, afetivo-emocional e psicológi-
ca, religiosa e filosófica que atribui a cada pessoa sua característica mais individual, a posse
de si mesma e a capacidade de assumir-se como se é, inclusive como ser mortal e finito, por-
tanto frágil e indefeso:
A realidade é, sobretudo, eu mesmo que, sendo sujeito, posso transformar-me a mim
mesmo em objeto. Eu mesmo em corpo e alma, com meu caráter e comportamento, mi-
nhas forças e fraquezas. Em todo caso, não um ser humano ideal, mas um homem com
seus altos e baixos, com seu lado lúcido e seu lado obscuro, com tudo aquilo que C. G.
10
Ernst CASSIRER, Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana, p. 49.
11
Hans KÜNG, Teologia a caminho. Fundamentação para o diálogo ecumênico, p. 23.
12
Fritjof CAPRA, Sabedoria incomum, p. 55.
13
A. KÖBERLE, op. cit., p. 75.
17
Jung chama de “sombra” da pessoa e com tudo aquilo que o ser humano expulsou de si,
suprimiu ou reprimiu
14
.
Esta citação reúne em si aspectos tanto das reflexões do Ec quanto de Jung, no que se
refere às dificuldades do autoconhecimento e das dúvidas sobre o sentido da vida a partir da
consciência da própria fragilidade. O fato de se poder reconhecer traços do livro do Eclesias-
tes nestas reflexões demonstra que no Antigo Oriente Próximo havia registros acerca da
preocupação com a morte e a fruição da vida. O período que mais interessa a esta pesquisa
(séc. III a.C.) será apresentado no primeiro capítulo, em linhas bem gerais embora seja ne-
cessário iluminar alguns detalhes, importantes para a compreensão da época –, a partir dos
pressupostos seguintes:
a. Um dos principais objetos da presente pesquisa é a morte, mas com a ressalva de
que não existe morte sem ter havido vida anteriormente. É esse jogo de luzes e sombras, de a-
firmações e negações, de possibilidades e cortes, que será estudado a partir de determinados
textos do livro do Eclesiastes. Verificar-se-á quais as possibilidades de viver satisfatoriamente
mesmo em face da presença constante da morte, e qual é a importância da busca pelo sentido
da vida. A contribuição maior deste trabalho é a tentativa de (re)aproximar esses textos àque-
las pessoas que se dispõem a refletir sobre o assunto e a crescer e buscar alternativas positivas
para seu modo de viver e relacionar-se, inicialmente como indivíduos e, quando seu inconsci-
ente pessoal estiver equilibrado, como pessoas capazes de conviver em grupo. De certa forma,
essa idéia corresponde à proposta de que
[…] o aconselhamento pastoral tenha por objetivo despertar, estimular e desenvolver a in-
teligência espiritual e moral das pessoas sua habilidade de viver bem e sabiamente face
aos desafios e às dificuldades da vida
15
.
b. O mundo no qual se situa o principal “personagem” deste trabalho (o Eclesiastes) é
semelhante ao mundo do incipiente séc. XXI. Mesmo levando em conta as naturais variações
geográficas, históricas, sociais, políticas e culturais, o comportamento humano não se modifi-
ca em sua essência. Portanto, o que tampouco se modifica é a busca constante por melhora-
mentos na forma de viver, seja no plano material ou psíquico. Na época do Eclesiastes, a bus-
ca pela sabedoria andava de mãos dadas com a busca pelo “conhecimento do Senhor”:
14
H. KÜNG, op. cit., p. 195. – Grifo e aspas do autor.
15
D. SCHIPANI, op. cit., p. 12.
18
[…] a) a sabedoria hebraica faz a afirmação extraordinária de que o temor do Senhor é
indispensável para tornar-se sábio e é a orientação básica da sabedoria. […] b) o tema da
integridade humana prevalente na sabedoria está ligado à piedade bíblica (santidade) den-
tro do contexto da vida de Israel na aliança. A pessoa sábia tende a ser identificada com o
justo, e o insensato ou tolo, com o perverso. […] c) a sabedoria hebraica é experiência in-
terpretada teologicamente – uma forma alternativa de fazer teologia –, que implicitamente
afirma uma função reveladora normativa; portanto, podemos afirmar que os sábios de-
sempenham o papel de mediadores entre Javé e Israel
16
.
Essa sabedoria sempre primou por uma busca pela ética do convívio, seguindo normas
ditadas pela chamada “lei divina”, embora ela também tenha feito surgir o fenômeno do Tun-
Ergehen-Zusammenhang, ou seja, a relação automática entre os atos da pessoa e as conse-
qüências que advirão sobre ela mesma (“quem abre uma cova nela cairá” etc.), e segundo a
qual esses atos determinarão sua sorte – o justo será sempre salvo, o mau será sempre castiga-
do. Um aspecto importante é que essa sabedoria deriva, maiormente, da experiência de vida,
aliada à lei divina, o que lhe confere credibilidade e concretude, assegurando a preservação
tanto da espécie quanto de sistemas morais, políticos e sociais segundo os quais um grupo de
pessoas se orienta.
Nos desvãos e corredores desconhecidos do inconsciente coletivo permanecem, po-
rém, manifestações negativas, tais como o medo, a fome, o temor e a falta de confiança no
desconhecido: essas manifestações originaram, nos primórdios da humanidade, a ânsia pelo
poder, a busca pela riqueza que leva ao poder, a opressão daí resultante, a solidão, a tomada
do poder em terras estranhas e a destruição de tudo o que inspira desconfiança e temor. Estas
são expressões exteriores de determinadas facetas da psique, e que impulsionam o ser humano
na direção que ele mesmo escolhe para si, muitas vezes sem se deixar orientar pela lei divina.
O que mais parece atormentar o espírito humano é que jamais se poderá saber quem
ou o que, em última análise, representa a Força Criadora do universo. O mundo tal como se o
conhece hoje não se compõe apenas de fenômenos cósmicos e biológicos explicáveis, e sub-
siste a busca pela explicação daqueles fenômenos que não se enquadram nas ciências ditas
“exatas”. Por trás da destruição de povos estrangeiros, das lutas pelo poder, da selvageria in-
controlável de algumas ações humanas, está o medo, não daquele desconhecido, mas que pode
tornar-se visível, mas o medo cósmico. Um dos primeiros momentos de angústia declarada foi
quando se criou a consciência plena de quão pequenos são os seres vivos no conjunto do uni-
16
D. SCHIPANI, op. cit., p. 47.
19
verso, no qual tudo está vivo e se modifica constantemente. A consciência da própria peque-
nez e fragilidade causou um trauma dificilmente suplantado pelos que se seguiram depois, e
que levou às duas clássicas perguntas: por que tudo o que vive morre? E por que não se pode
conhecer Deus e ter o mesmo poder que ele?
c. Em função de todos esses desafios, o ser humano necessita de um “oposto”, de um
“parceiro de diálogo”, para conseguir sair de si mesmo e alcançar outros patamares da exis-
tência:
– Sem o “totalmente Outro”, sem “teologia”, sem a em Deus, não existe sentido na vi-
da que transcenda a mera autoconservação.
– Sem religião não se consegue encontrar uma distinção fundamentada entre verdadeiro e
falso amor e ódio, solidariedade e egoísmo, moral e imoral.
Sem o totalmente Outro”, o desejo de justiça plena seria irrealizável e o assassino fi-
nalmente triunfaria sobre a vítima inocente.
Sem uma primeira e última realidade realíssima, que chamaríamos Deus, […] nossa
“necessidade de consolo” ficaria insatisfeita no tempo e na eternidade. […] “A função de
consolar é totalmente diferente; é uma função religiosa”
17
.
Esse e outros processos mentais não estão presos a épocas e lugares; é certo que no
séc. XXI o medo assumiu bem outras formas, e não se reduz ao temor diante do ribombar
dos trovões ou do uivar dos ventos. Mas, inconscientemente, os sentimentos e as reações con-
tinuam sendo os mesmos. O ser humano ainda não aprendeu a “chegar a si”, no autêntico sen-
tido da expressão, e cultiva modos de vida que são fugas e artifícios para evitar o reconheci-
mento inegável de que nenhum ser humano é dono de sua própria morte, e muito menos dos
desígnios divinos. Essas duas constatações não se poder conhecer o dia e a forma de morrer
e não poder determinar o próprio destino, à semelhança do poder divino são as grandes bar-
reiras que impedem a fruição plena da vida e, ao mesmo tempo, as duas forças que impelem
ao abismo do próprio vazio, dado que não parece haver reais respostas a elas:
Graças à sua presença constante, emana da morte, como única possibilidade afirmada,
uma inquietação permanente sobre a vida. Mas, inversamente, a própria vida é a inquieta-
ção da morte. E é preciso considerar ambos os lados, sempre que for necessário responder
satisfatoriamente às perguntas provocadas pela morte
18
.
Vasconcelos complementa, citando Adam Schaff:
17
H. KÜNG, op. cit., p. 25. – A citação final entre aspas é de Emmanuel Lévinas.
18
„Vom Tode geht dank seiner beständigen Gegenwart als der einzig gewissen Möglichkeit eine dauernde Beun-
ruhigung auf das Leben aus. Aber umgekehrt ist das Leben selbst die Beunruhigung des Todes. Und beides
muß gesehen werden, wo zureichend auf die durch den Tod aufgeworfenen Fragen geantwortet werden soll“.
Otto KAISER, Eduard LOHSE, Tod und Leben, p. 27.
20
A problemática do indivíduo humano […] culmina com a pergunta do sentido da vida.
[…] A problemática a ele relacionada prende-se, por conseguinte, a um círculo, cujo iní-
cio é o nascimento e o fim é a morte. […] Seja como for, a morte é o impulso mais forte
das reflexões sobre a vida. […] O homem, com certeza, enlouqueceria […] se, de uma
forma constante, tivesse de viver com a consciência de sua inevitável e próxima morte.
(Adam Schaff, 1967: 260-1)
19
.
O caminho rumo ao próprio inconsciente é o mais difícil de ser encetado, uma vez que
ele lida com os aspectos citados acima. Esse processo implica assumir-se como elemento dos
mais frágeis de todo o universo, independentemente de todo o poder que se detenha por algum
tempo da vida, sobre as outras pessoas ou os outros elementos da criação. Implica confrontar-
se com a idéia de que a morte tudo anula e apaga, não preservando rastros de qualquer coisa
que se tenha feito durante a vida: “Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas quando bus-
cam seu curso encontram seu vazio”
20
. Implica perceber-se como apenas mais um entre bi-
lhões e, mesmo assim, aprender a cultivar-se como ser único e insubstituível, criando uma es-
fera de valores diferentes daqueles vividos até então.
O aprendizado do próprio Eu é doloroso porque não poupa a pessoa das perguntas
mais íntimas e perturbadoras acerca de seus sentimentos e de suas atitudes, em relação a si
mesma e às outras pessoas. Esse processo expõe e desmascara a pessoa, trazendo à tona tudo
aquilo que ela pretendia esconder ou esquecer, porque até então não dispunha de meios psico-
lógicos adequados para lidar consigo mesma:
A natureza do processo psíquico consiste numa alternação dialética entre pares de opos-
tos, principalmente entre o consciente e o inconsciente. […] O inconsciente tem, por as-
sim dizer, uma opinião diferente do consciente; ele é autônomo em relação ao conscien-
te
21
.
Somente quando se atinge o equilíbrio na relação entre o consciente e o inconsciente é
que se pode falar na chamada “paz de espírito”, o “estar bem consigo mesmo”, que leva à si-
tuação de poder interagir positivamente também com as outras pessoas, a partir de uma tran-
qüilidade interior que se propaga e irradia paz. Expresso em termos mais filosóficos: “O ser
19
Eduardo VASCONCELOS, Espiritualidade e cuidado em saúde. Disponível em www.rubedo.psc.br, acesso
em 20 jun. 2005.
20
Citação de Federico García Lorca, apud Claudio WILLER, Federico García Lorca, poeta e personagem, in:
Agulha revista de cultura, op. cit. Em todo o trabalho, as notas de rodapé que não indicarem páginas es-
pecíficas são aquelas retiradas de artigos publicados na Internet, onde aparecem sem paginação. (N. da A.)
21
„Die Natur des psychischen Prozesses besteht in einem dialektischen Wechselspiel zwischen Gegensatzpaa-
ren, besonders dem Bewußten und dem Unbewußten. […] Das Unbewußte ist sozusagen anderer Meinung
als das Bewußte; es ist dem Bewußtsein gegenüber autonom“. Carl G. JUNG, apud Christoph MORGEN-
THALER, Der religiöse Traum. Erfahrung und Deutung, p. 38.
21
humano rende o máximo de sua capacidade quando adquire plena consciência de suas cir-
cunstâncias. Por elas se comunica com o universo”
22
.
d. Como se viu até agora, uma personalidade madura, sadia, está preparada para en-
frentar os desafios mais diversos do mundo exterior e, antes de tudo, de dentro de si mesma.
Em decorrência disso, ela também estará preparada para encarar a morte com maior naturali-
dade. A urgência desse processo de reconstrução do Eu se dá porque vem crescendo, nos dias
atuais, o medo da morte. Embora o morrer tenha sido adiado ou, ao contrário, “facilitado” a-
través da medicina moderna, que eliminou (ou pelo menos controlou em grande parte) várias
epidemias e endemias, além de ter conseguido prolongar a expectativa de vida em boa parte
do planeta, morrer é hoje fonte de angústia porque o ser humano está cada vez mais solitário.
Se viver está cada vez mais difícil, quanto mais assusta o morrer!
As pessoas fazem coisas pensando em seu presente e projetando seu futuro, mas a
morte anula esses conceitos humanos de tempo. A busca pelo sucesso terreno tenta driblar a
perenidade do tempo do mundo, ignorando os ciclos eternos que estão presentes nas projeções
arquetípicas de todos os povos. O autor português José Saramago, em sua mais recente obra
As intermitências da morte, “brinca” com a morte e propõe um enredo em que a morte entra
em greve e ninguém morre mais. Duas passagens ilustram a opinião do autor sobre essa apa-
rente utopia:
Não digo que morrer seja melhor do que viver, mas, simplesmente, deveríamos ter outro
olhar em relação à morte, aceitá-la como uma conseqüência lógica da vida. […]
Imaginemos que a morte vai embora, que a morte nos deixe finalmente em paz depois de
nos ter atormentado a existência durante milênios, desde que o homem descobriu que era
um ser mortal. O que é que aconteceria? Num primeiro momento, uma euforia total […].
Ocorre que seria um caos
23
.
O caos que derivaria da imortalidade do ser humano é a barreira imposta pelos “deu-
ses” para controlar o tempo de vida (cf. Gn 6.3). Mas, ao mesmo tempo, é essa barreira que
traz o medo do desconhecido e dos poderes divinos ao ser humano. Esse medo tem ainda ou-
tra fundamentação bíblica: enquanto o ser humano estava em relação pacífica com Deus, o as-
sunto nem era presente; mas havia a constante “ameaça de morte” quando o assunto era a “ár-
vore do conhecimento do bem e do mal”: a ousadia do ser humano em querer tomar a si o co-
22
José ORTEGA Y GASSET, Meditações do Quixote, p. 47.
23
José SARAMAGO, em artigo de Rosângela Gil no periódico Brasil de Fato, segundo caderno, ano 3, n. 142, a
23 de novembro de 2005, p. 15.
22
nhecimento dos deuses atribuiu à morte o peso de um pecado inafiançável (Gn 2.16ss). Embo-
ra o AT se esforce em ressaltar a possibilidade de uma “reversão” da morte (nos casos dos
profetas Elias e Eliseu, p.ex.), as exceções formadas por essas narrativas apenas confirmam a
regra: tanto no ambiente mesopotâmico quanto no grego e no israelita, a morte é o destino
inelutável do ser humano, e isso se mostra em todas as produções culturais desse entorno his-
tórico e geográfico (desde a Epopéia de Gilgamesh na Mesopotâmia até as narrativas da Re-
volta dos Macabeus na Judéia). Essa constatação vai adquirindo contornos cada vez mais de-
primentes no decorrer da história, uma vez que a própria morte parece ficar cada vez mais
traumática.
É certo que, nos dias atuais, uma ínfima parte da população mundial tem acesso a tra-
tamentos caros e bons hospitais, mas isso nada muda no fato de que a morte carrega em si,
primordialmente, o espectro do medo e da solidão. Ter de enfrentar essa dupla solidão o a-
nonimato da vida atual, e a morte solitária em camas de hospitais moderníssimos, mas frios e
impessoais é tarefa quase impossível para o ser humano do c. XXI. A evolução dessa so-
lidão é relativamente recente:
[…] nas culturas tradicionais, inclusive a medieval, em que havia uma necessária presen-
ça real enraizada e excessiva [da morte] na vida cotidiana, exigindo inclusive um enorme
investimento dos indivíduos durante a vida. A morte se anunciava ao moribundo através
de sonhos e presságios e todos sabiam que iam morrer, arrumando sua vida, se preparan-
do para a morte, cuidando de seus santos, tomando suas providências, preparando seus ri-
tuais funerais, muitas vezes constituindo toda uma cultura fúnebre. A morte era vivida
familiarmente, com simplicidade e publicidade, em público, com o morto presidindo a
sua morte, em rituais que se iniciavam antes do suspiro final. Esta familiaridade com a
morte estava sem dúvida ligada à dependência e à aceitação incondicional da ordem da
natureza pelo homem da época, concepção que será gradualmente questionada no Ilumi-
nismo. Neste vasto período, variavam as atitudes com os mortos, desde a sua manuten-
ção longe das cidades, pela poluição e por uma veneração periódica que escondia o medo
de que voltassem, até o seu acolhimento perto e dentro das igrejas, que funcionaram du-
rante algum tempo como cemitérios
24
.
A morte já assumiu rostos horríveis na história; recordem-se a Peste Negra, a Guerra
dos 30 Anos, as mortes nas fogueiras da Inquisição, as destruições de povos inteiros pela cru-
eldade humana, que também trouxe consigo epidemias incontroláveis, e a morte em função de
desafios e desequilíbrios da natureza. Independentemente da progressão das ciências exatas e
de seus refinamentos, que levaram, por outro lado, a progressos espantosos na filosofia e na
política, a forma de olhar para a morte mudou muito mais do que todas as faces de horror que
24
E. VASCONCELOS, op. cit.
23
ela tem apresentado. Se antes a morte era algo quase que “familiar”, um “convidado” (mesmo
que quase nunca bem-vindo), agora ela passaria pelos estágios de um tipo de pensamento que
foi relegando-a a um esquecimento forçado, algo que se tem de evitar a todo custo.
As feições da morte agridem a suposta nobreza do ser: a concepção platônica de sepa-
rar corpo e alma foi sendo aceita e evoluiu até a dissociação total entre mente e corpo, e isso
fez com que a morte passasse a ser vista apenas como inimiga:
O moribundo é afastado da convivência, é mantido na ignorância de seu estado, é objeto
de um processo brutal de medicalização, no qual se torna um fenômeno técnico, mais um
“caso”, e a proximidade da morte no envelhecimento é colocada sob o olhar de especiali-
dades separadas do conjunto da medicina, a gerontologia e a geriatria. A solidão dos mo-
ribundos nos hospitais […] oferece uma proteção biológica e psíquica contra a angústia
associada à morte para a família e a sociedade, diminuindo o incômodo que produz na or-
ganização das rotinas da vida cotidiana, do trabalho e do sistema econômico, que não po-
dem parar. […] Se já começamos e nos embrenhar nesta temática das implicações históri-
cas e sociais do confronto com a morte, talvez seja o momento de avançarmos então mais
firmemente nesta direção, focando as práticas emancipatórias de resistência e de trans-
formação social e política, e sua relação com a morte e o morrer
25
.
No contexto de uma proteção mais humana do indivíduo em sofrimento chama a aten-
ção o último trecho, quando o autor se refere às questões de resistência e de transformação: as
implicações sociais e políticas da morte, tal como ela se dá atualmente, têm de ser reexamina-
das por outros ângulos, porque a morte e o morrer não se dão apenas em função de doença ou
envelhecimento. A questão crescente da violência, em todos os seus veis, é um componente
cada vez mais aterrador das circunstâncias de vida que levam à morte. Esta acaba tendo um
poder tão negativo que anula qualquer força de vida: “As pessoas têm respeito demais pela
morte, comparado ao pouco respeito que têm pela vida”
26
. Também a psiquiatria alternativa
constata isso:
Não acredito que uma pessoa que está doente possa viver nessa sociedade, porque essa
sociedade mata. Temos claro que, hoje em dia, a nossa tarefa é a de mudar essa socie-
dade, porque queremos viver e queremos que o doente viva
27
.
Por outro lado,
[…] a dor que oprime o ser humano, a angústia do dia-a-dia, a relação com os outros se-
res humanos […] esta angústia existencial que existe ligada ao ser humano é uma realida-
25
E. VASCONCELOS, op. cit.
26
„Die Menschen haben vor dem Tod zu viel Achtung, gemessen an der geringen Achtung, die sie vor dem Le-
ben haben“. Henry de Montherlant, apud Wolfgang ERK, An die Hinterbliebenen. Gedanken über Leben und
Weiterleben, p. 9.
27
Franco BASAGLIA, A psiquiatria alternativa. Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática, p. 24.
24
de e essa relação entre a ordem social e a vida existencial representa a contradição e a o-
posição que é a nossa vida. Não receita, nem ponto de vista político, nem mesmo boa
vontade que possam resolver essa contradição
28
.
É preciso tentar compreender, por meio das avaliações contidas nas citações acima,
como evoluiu a concepção de morte e violência, que faces diversas a morte e as chamadas
“doenças sociais” têm assumido, como os seres humanos estão lidando ou não com tudo
isso; é necessário reconhecer que, sendo a morte e o morrer enigmas insolúveis e desafiado-
res, faz-se urgente pensar em alternativas de como trabalhar esse assunto com um número ca-
da vez maior de pessoas:
Em algum lugar do mundo a história parou […] situações em que é impossível fazer
solução de compromissos, porque se o fizermos estamo-nos comprometendo com a morte
e com a morte não há solução de compromisso
29
.
e. Foi em vista das considerações anteriores que se optou por incluir um viés psicanalí-
tico na análise bíblico-literária do livro do Eclesiastes. A morte e a fruição da vida não serão
consideradas apenas do ponto de vista destes textos bíblicos em sua época, mas procurar-se-á
relevar sua atualidade e a importância de uma releitura e reflexão sobre as implicações destes
assuntos no mundo de hoje. Pois saber que se vai morrer e refletir conscientemente sobre esse
fato são duas coisas muito diferentes. Entre outros aspectos, o trabalho proposto por Jung pa-
receu adequado a essa tentativa por levar em conta o componente religioso do ser humano e
buscar integrá-lo no todo que compõe a psique do indivíduo. Neste contexto, sua compreen-
são de religiosidade difere bastante da de religião enquanto instituição, embora ele considere
fundamental estruturar a vida com a ajuda de experiências de cunho religioso. Não se trata, aí,
de ética ou moral no sentido estrito, e sim da vivência consciente enquanto indivíduo inserido
no todo da criação, experiência única e insubstituível.
f. A culminância da proposta de análise bíblica deste trabalho se encontra no terceiro
capítulo, em que serão enfocadas diversas perícopes do livro do Eclesiastes, alinhadas segun-
do critérios específicos ali detalhados, e que buscam evidenciar, na prática, a teoria segundo a
qual é possível ler o livro do Eclesiastes a partir de uma chave hermenêutica junguiana. Isso
se dá a partir da preocupação em desmistificar o livro do Eclesiastes dos preconceitos que pe-
sam sobre ele, recuperando a beleza extraordinária de sua poesia e a profundidade assombrosa
28
F. BASAGLIA, op. cit., p. 54.
29
Ibid., p. 136.
25
do relato de alguém que teve a coragem para não dizer, a audácia de dizer sim a si mesmo
e enfrentar-se num caminho rumo a si mesmo.
Pretende-se demonstrar, em suma, que o livro do Eclesiastes pode ser lido como o re-
lato de alguém que encetou a viagem em direção ao inconsciente e, com isso, ao crescimento
pessoal e ao desenvolvimento positivo e prazeroso do convívio com as outras pessoas, na bus-
ca por uma sociedade mais justa, humana e solidária, com a “preocupação dupla da sabedoria
com a integridade moral pessoal e a vida interior”
30
:
30
D. SCHIPANI, op. cit., p. 49.
26
I. O LIVRO DO ECLESIASTES
Considerações gerais
Na análise do livro do Eclesiastes, os dois principais assuntos a serem considerados
são a) a preocupação com a morte e o fato de que nada resta após ela, nem mesmo a memória
de quem morreu, e b) a correlação entre as reflexões sobre a morte e o incentivo para a fruição
da vida. Estes dois temas serão verificados em detalhes, no capítulo deste trabalho, a partir
de perícopes selecionadas segundo critérios da relação entre o questionamento (acerca da
morte) e a afirmação (o incentivo à fruição). Conforme Tilmann Zimmer,
[…] não se pode deixar de notar, nesse contexto, que dois assuntos têm um papel impor-
tante, a morte e a alegria. Eles não podem ser contrapostos um ao outro durante a exege-
se, como acentua, com razão, F. Kutschera: “Ali onde se enfatizam a morte e a vaidade,
facilmente se apaga [...] a alegria – da mesma forma como se apaga a morte onde se enfa-
tiza a alegria. Mas me parece que a importância do livro […] esjustamente na intensi-
dade da consciência da morte e da alegria de viver, e no fato de que ambas as coisas exis-
tem lado a lado e com o mesmo peso”
31
.
O que se acentua aqui o paralelismo entre a morte e a alegria de viver servirá de
Leitmotiv para este trabalho. Poder-se-ia falar ainda numa espécie de “paralelismo” relativo
aos problemas suscitados pelo conteúdo do livro do Eclesiastes. De certa forma, seu autor en-
frentou duas situações, na história e na teologia judaicas, com comentários e reflexões que
provocaram conflitos e dúvidas sobre sua canonicidade: a) o questionamento acerca da vali-
dade da sabedoria israelita tradicional, e b) o choque entre a vida cultural e religiosa judaica
em geral e o começo da preponderância do helenismo, testemunhado pelo autor do livro do
31 „Unübersehbar ist, daß dabei zwei Themen eine große Rolle spielen, der Tod und die Freude. Beide dürfen in
der Auslegung nicht gegeneinander ausgespielt werden, wie F. Kutschera zu Recht betont. ‚Wo Tod und
Nichtigkeit betont werden, verblaßt [...] leicht die Freude ebenso, wie der Tod verblaßt, wo die Freude
betont wird. Mir scheint der Rang des Buches (...) aber gerade in der Intensität des Todesbewußtseins wie der
Lebensfreude zu liegen, und darin, daß beides gleichgewichtig nebeneinander und zusammen besteht’“.
Tilmann ZIMMER, Zwischen Tod und Lebensglück, p. 1.
27
Eclesiastes
32
. As alternativas por ele propostas a essas duas situações foram vistas como um
desafio pelos integrantes das classes privilegiadas – notadamente os sumo-sacerdotes – de Je-
rusalém. Estes não conseguiram aceitar que alguém pudesse colocar em dúvida a sabedoria is-
raelita tradicional, e tampouco conseguisse adequar-se aos novos tempos de domínio helenis-
ta, e essa rejeição não pôde ser vencida.
A questão básica que se coloca, sobre como considerar o livro do Eclesiastes em sua
totalidade, pode ser formulada assim: é ele pessimista, desenganado, cínico, ou é um convite e
uma exortação à reflexão sobre vida e morte a partir de novos paradigmas?
Entre os cristãos, Thomas a Kempis considerou a primeira frase do livro vanitas va-
nitatum, omnia vanitascomo a exortação a desprezar todos os bens materiais e a dedicar-se
somente aos bens espirituais
33
. Outro importante pensador ocidental que se ocupou com a ma-
neira de como o Ec via a realidade da vida e do mundo foi Agostinho. Quando já se converte-
ra ao cristianismo, certo dia ele abriu a Bíblia ao acaso e encontrou uma citação de Paulo na 1ª
Carta aos Coríntios, em que o apóstolo argumenta que, se Cristo não ressuscitou, é vã a fé dos
cristãos; e ele conclui com as palavras: “Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos,
pois amanhã morreremos” (1Cor 15.32). Estas palavras aparecem no Proto-Isaías, no con-
texto da exortação contra a falsa alegria que reinava em Jerusalém (Is 22.13), mas normal-
mente são entendidas como uma citação de Ec 9.7-10. Ao -las, mesmo tendo compreendido
a argumentação de Paulo, Agostinho desgostou-se tanto com o fato de que alguém pudesse
colocar as coisas dessa maneira que durante o resto da sua vida desprezou o livro do Ec.
Comentaristas bíblicos mais atuais, como H. W. Hertzberg, afirmam que o livro do E-
clesiastes seria a “profecia messiânica mais abaladora” do AT, contendo algumas “verdades
tornadas inamovíveis”
34
. Talvez ele esteja pensando na Revolta dos Macabeus, que viria a o-
correr dois séculos após a data provável de redação do livro do Eclesiastes. Mas as ditas “ver-
dades inamovíveis” são aquelas que se pautam por sua atemporalidade e universalidade. Sen-
do assim, citem-se algumas impressões de filósofos modernos (séc. XIX e XX):
32
Ludger SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Das Buch Kohelet, in: Erich ZENGER, Einleitung in das Alte
Testament, p. 343.
33
Ibid., p. 1.
34
W. HERTZBERG, apud N. LOHFINK, Kohelet, p. 6.
28
O desespero derivado das conclusões do Eclesiastes é considerado, por vários pensadores
modernos, uma condição básica da vida consciente. Heidegger, Camus, Sartre, Tolstoi,
Nietzsche, Wallace Stevens e Mark Twain (em Cartas da terra), todos eles percebem a
tensão […] como inevitável e necessária. Schopenhauer pensa (como Twain) que, se o
mundo “fosse um paraíso e fácil de viver, nós todos morreríamos de tédio ou nos enforca-
ríamos” (citado em Crosby, 67). A angústia existencial, a miséria de Pascal, são nosso
destino. Mas o desespero é melhor que a monotonia, e “grandes sofredores jamais são a-
borrecidos” (Crosby, 67)
35
.
Esta e outras questões que animam a discussão sobre o livro do Ec ainda estão longe
de uma solução relativamente coesa. Ver-se-á a seguir quais os aspectos das áreas histórico-
geográfica e teológica nos quais se pauta este trabalho e que servem de base para sua argu-
mentação.
1. A denominação Eclesiastes
O nome Eclesiastes provém do grego
εκκλεσιαστης
, tradução aproximada da raiz he-
braica
lhq
(qāhāl), que significa “congregar”, “convocar”, “reunir
36
; em grego, uma reuni-
ão ou assembléia é uma
εκκλεσια
daí o nome “Eclesiastes” na LXX. O livro do Eclesiastes
recebeu, no cânon hebraico, o nome de
tl,h,qo
(qohēlēt), que é uma forma substanti-
vada do verbo no particípio feminino; pesquisas lingüísticas mostraram que esta forma era
bastante usada para designar profissões ou acentuar traços de personalidade. Ela também apa-
rece uma vez com o verbo no aformativo feminino
tl,h,qo hr\m\a\
( v
e
ama-
rah qohēlēt = “e disse a qohelet”) em Ec 7.27, como se a pessoa que ali falasse fosse outro
“personagem” que não o pressuposto autor do livro
37
. Na verdade, pode tratar-se de um erro
de cópia, conforme o aparato da BHS, que propõe
tl,hQooh; rm\a
\ (v
e
amar haq-
qohēlēt = e disse o qohelet), em concordância com a LXX; nesse caso, o artigo teria sido con-
fundido com o aformativo do verbo
38
.
35
“The misery that comes from Qoheleth’s realizations is seen, by many ‘modern’ thinkers, as a requisite
condition of conscious life. Heidegger, Camus, Sartre, Tolstoy, Nietzsche, Wallace Stevens, and Mark Twain
(in Letters from the Earth), all see the tension […] as both inevitable and necessary. Schopenhauer suggested
(like Twain) that if the world ‘were one of paradise and ease, we would all die of boredom or hang ourselves’
(quoted in Crosby 67). Existential anxiety, Pascal’s misery, are our lot. But misery is better than monotony,
and ‘great sufferers are never bored’ (Crosby 67)”. Colin WHYTE, Just for the Hebel of it Ecclesiastes and
the Absurd. Disponível em www.mala.bc.ca/www/ipp/whyte.htm, acesso em 30 out. 2005.
36
Luis ALONSO SCHÖKEL, verbete
lhq
, Dicionário Bíblico Hebraico-Português, p. 573.
37
Ludger SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Kohelet, p. 54.
38
Cf. Biblia Hebraica Stuttgartensia, p. 1347.
29
2. Questões de datação
As duas tendências na discussão sobre a autoria do livro do Eclesiastes são a) a defesa
da origem do livro na época salomônica e b) a defesa da origem na época pós-exílica. Os de-
fensores da origem na época pós-exílica ainda divergem quanto à época persa ou grega. Ar-
gumentos dos mais variados serão apresentados abaixo.
2.1 Datação na época salomônica
Atualmente, existem pelo menos duas fortes correntes que defendem autorias diversas
do livro do Eclesiastes: por um lado, afirma-se que seu autor seria Salomão, enquanto outros
buscam comprovar que o autor do livro não poderia ter vivido numa época tão remota, e o lo-
calizam no pós-exílio. A tradição sapiencial israelita e, mais tarde, as escolas rabínicas, sem-
pre consideraram o livro como sendo de autoria salomônica, com tudo o que isso implica, in-
clusive questões de canonicidade (conforme se verá mais adiante). Dizia-se que ele “sujava as
mãos” de quem o lesse (ou seja, era tão “perigoso” que poderia ser lido na sinagoga, por
pessoas especializadas nas Escrituras)
39
. Hoje em dia o livro do Eclesiastes é lido nas sinago-
gas por ocasião da Festa das Tendas, porque exorta à alegria de viver em várias passagens
(8.15, 9. 7-10 e outras)
40
.
A corrente que defende a autoria do rei Salomão se baseia no argumento de que o au-
tor se apresenta como “rei em Israel” logo nos primeiros versículos (Ec 1.1), além de descre-
ver as atividades típicas da realeza no cap. 2. Essas atividades mostrariam com bastante exati-
dão a vida do rei Salomão, principalmente no que se refere à questão da sabedoria, da riqueza
e da experiência de vida; no mesmo capítulo, o autor fala sobre a vaidade e a inutilidade de
suas obras, fazendo parecer que uma pessoa idosa, até então detentora de muito poder e rique-
za, estaria agora refletindo sobre sua vida no momento do envelhecimento e da morte próxi-
ma.
fontes rabínicas que afirmam ter sido também Salomão o autor do Cântico dos
Cânticos, por causa de seu acento no amor, durante a juventude; do livro dos Provérbios, com
sua ênfase nos problemas práticos, em sua maturidade; e do Eclesiastes, com suas constata-
ções melancólicas sobre a vaidade da vida, em sua velhice
41
. Assim, o livro do Eclesiastes a-
39
Norbert LOHFINK, op. cit., p. 6.
40
Ibid., p. 6.
41
Robert GORDIS, Koheleth – the man and his world, p. 39.
30
cabou sendo incluído na lista dos livros de autoria salomônica e, portanto, do cânon tam-
bém por causa do aparente conjunto formado com os livros dos Provérbios e do Cântico dos
Cânticos. Outra tradição judaica afirma, ao contrário, que o espírito santo não teria descido
sobre Salomão antes de sua velhice, quando então ele teria composto os três livros
42
.
Um argumento que parece desmentir os anteriores é que somente com o respaldo des-
se nome o livro do Eclesiastes acabou sendo aceito no cânon dos escritos sagrados judaicos
o seu conteúdo era considerado muito polêmico nas grandes escolas rabínicas. A discussão
central se estabeleceu por causa do desafio lançado pelo autor à sabedoria israelita ensinada
nas sinagogas, numa espécie de embate argumentativo entre a tradição e a novidade de pen-
samento e reflexão, que vinha sendo provocada pela situação vivida desde o domínio helenís-
tico. No cânon judaico, esse embate se estabeleceu entre o livro dos Provérbios, que trabalha
conforme a chamada “teologia da retribuição”, e os livros de Jó e do Ec.
O livro do Eclesiastes poderia ser interpretado como uma “releitura crítica do livro dos
Provérbios”
43
, ou como a base teórica do Cântico dos Cânticos, cujo conteúdo seria sua “apli-
cação prática”
44
, e foi isso que quase impediu sua aceitação no cânon. Assim, a tradição que
se refere ao “desenvolvimento psíquico” por qual teria passado Salomão se desfaz em função
desse conflito entre as formas de sabedoria defendidas por um e outro livro.
pesquisadores que defendem a linha salomônica em função de aspectos lingüísti-
cos. Gleason Archer, Jr. afirma que a ortografia do livro do Eclesiastes é mais conservadora
que a dos rolos e fragmentos encontrados em Qumran. Ali, o uso de matres lectionis internas
é muito comum, p.ex. na escrita plena da negação (
aOl awOl
)
45
: segundo sua análi-
se, praticamente não se encontram matres lectionis em Ec 12.1-7, no qual o advérbio de tem-
po “antes que”, por exemplo, é redigido
aOl rv,ea; da;
, portanto divergente da
escrita de Qumran. Com isto, ele quer dizer que a maneira de utilizar matres lectionis pelos
redatores de Qumran talvez ainda fosse desconhecida do Ec e que, portanto, o seu texto seria
anterior à época grega.
42
R. GORDIS, op. cit., p. 39.
43
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 44.
44
R. GORDIS, op. cit., p. 45.
45
Gleason ARCHER, Jr., apud Choon-Leong SEOW, Linguistic evidence and the dating of Koheleth, in:
Journal of Biblical Literature 115/4, p. 645.
31
A dificuldade de o livro do Eclesiastes ter sido aceito no cânon judaico pode ser de-
monstrada citando-se as contendas surgidas entre duas escolas judaicas clássicas de interpre-
tação dos escritos sagrados, a de Hillel e a de Shammai:
Assim, não é de se admirar que também a adoção de Eclesiastes no cânon sagrado da co-
munidade judaica não tenha acontecido sem discussões. O tratado Yadayim III4 da Mish-
nah transmite alguns aspectos da opinião das diversas autoridades. Se ali diz, entre outras
coisas: “O rabino Simon disse: Qohelet pertence às facilidades da escola de Shammai e às
complicações da escola de Hillel”, isso quer dizer que na época da existência das duas es-
colas de Hillel e Shammai, ou seja, na época de Jesus, a escola mais rígida de Shammai
considerava o Qohelet um livro profano, enquanto o mais tolerante Hillel via nele um li-
vro “que sujava as mãos”, ou seja, um livro que deveria ser contado entre as escrituras
sagradas. […] De qualquer forma, ainda o rabino Akiba […] conhece a contestação acer-
ca da canonicidade do Qohelet: “Que Deus nos proteja e nos guarde, ninguém em Israel
questiona se o Cântico dos Cânticos por acaso suja as mãos […], mas se existe alguma
discussão, é só por causa do Qohelet”
46
.
Por fim, o livro foi aceito no cânon sagrado, mas com severas restrições
47
. Gordis cita
contestações mais modernas a seu respeito: ele seria muito contraditório, ele consistiria ape-
nas de “ditos” e não poderia ser considerado Escritura, ele conteria a sabedoria de Salomão
mas não seria divino e, principalmente, ele conteria assuntos relacionados ao ceticismo e à
heresia
48
. Essa é a posição preponderante daqueles comentaristas que preferem não aprofundar
o estudo do livro do Eclesiastes em face de sua complexidade lingüística e de seu conteúdo
pouco “agradável” no contexto bíblico em geral: diferentemente do livro de Jó, no qual parece
haver um “final feliz” na relação ser humano-Deus, o livro do Eclesiastes prefere apresentar
soluções práticas e sugestões terrenas para problemas bem seculares, atribuindo a Deus um
46
„So ist es nicht verwunderlich, daß auch die Aufnahme des Buches Kohelet in den Schriftenkanon der jüdi-
schen Gemeinde nicht ohne Diskussionen erfolgt ist. Im Mischnatraktat Jadajim III 4 ist etwas von der
Stellungnahme der verschiedenen Autoritäten überliefert. Wenn es hier u.a. heißt: ‚Rabbi Simon sagte:
Kohelet gehört zu den Erleichterungen der Schule Schammais und den Erschwerungen der Schule Hillels’
so wird darin erkennbar, daß in den Tagen des Nebeneinanders der beiden Schulen von Hillel und Schammai,
d.h. in den Tagen Jesu, die strengere Schule Schammais Kohelet als profanes Buch betrachtete, hrend der
mildere Hillel in ihm ein Buch, das ‚die Hände verunreinigt’, d.h. ein den heiligen Schriften zuzurechnendes
Buch sah. […] Immerhin weiß noch Rabbi Akiba […] von der Bestreitung der Kanonizität Kohelets: ‚Behüte
und bewahre, niemand in Israel streitet über das Lied der Lieder, ob es nicht die nde unrein mache […]
Besteht aber ein Streit, so streiten sie nur über Kohelet’“. Walther ZIMMERLI, Helmer RINGGREN, Das
Alte Testament Deutsch – Sprüche/Prediger, 16/2, p. 140.
47
Costumava-se usar o chamado Concílio de mnia (90 d.C.) como referência para a finalização do cânon ju-
daico. Mas essa data se evidenciou como inválida para a argumentação histórica. Jâmnia nunca foi consi-
derado um concílio de caráter eminentemente autoritativo no que se refere ao cânon sagrado, analogamente
aos concílios da Igreja cristã. As discussões aconteciam preponderantemente nas escolas rabínicas, para defi-
nir se certos livros “sujavam as mãos”, ou seja, se eles eram realmente livros sagrados. Se não o fossem, não
poderiam ser lidos em público / para o público, mas nada impedia que fossem estudados em casa. Walter
HARRELSON, Interpreting the Old Testament, p. 15.
48
R. GORDIS, op. cit., p. 41.
32
papel mais distante e sério, nada paternalista ou protetor/salvador. Além disso, o livro do E-
clesiastes nomeia os problemas sem disfarces e fala de situações conflitivas com clareza,
mesmo usando uma linguagem difícil de ser compreendida.
No entanto, existem interpretações bem mais brandas de seu conteúdo, das quais me-
rece ser destacada a do rabino Louis Jacobs, quase que poética; ele lembra o fato de o livro do
Eclesiastes ser lido na festa das Tendas – sukkot –, que acontece no outono:
Uma explicação tradicional é que o Eclesiastes, que escreve no outono de sua vida, pode
ser comparado à colheita do outono. O outono recorda que o inverno está chegando, e
com ele a morte das plantas e árvores. As opiniões do Eclesiastes são as de um indivíduo
amadurecido, mais próximo do final da vida que de seu início, que poderia ser represen-
tado pelos brotos da primavera
49
.
2.2 Datação da época persa ou helenística
A linha que defende a origem do livro do Eclesiastes na época persa ou helenista ainda
não encontrou um ponto de consenso. Choon-Leong Seow, defensor da época persa, utiliza
argumentos lingüísticos e estilísticos para fundamentar sua opinião: o texto original conteria
várias expressões referentes ao universo econômico e político do domínio persa, além do uso
freqüente de matres lectionis, incomum antes dessa época. Quanto ao conteúdo, ele nega
qualquer influência grega; ou seja, o texto não poderia ter sido escrito após os persas terem si-
do dominados e expulsos da região, porque não existiriam características da língua e da filo-
sofia gregas no livro do Eclesiastes.
Arnaldo Momigliano sugere que o sentido da palavra persa pardes (= pomar), em Ec
2.5, tenha sido modificado pelos gregos para significar
παραδεισος
(= paraíso), e isso poderia
constituir uma pista para afirmar que o texto final do livro do Eclesiastes já teria estado pronto
na época persa, sendo aproveitado pelos gregos posteriormente. Por outro lado, pode ter ocor-
rido o inverso: foi a partir da cultura grega, que já conhecia o termo pardes e o utilizava como
παραδεισος
, que o Ec adotou esse significado em seu próprio texto
50
. De qualquer forma, a
49
“One traditional explanation is that Kohelet, who is writing in the autumn of his life, is comparable to the Fall
harvest. The autumn is a reminder of the winter to come, and the death of plants and trees. Kohelet’s views
are those of a mature individual, closer to the end of life than to the beginning which would be represented by
the buds of Spring”. Rabbi Louis JACOBS, Holidays: Kohelet/Ecclesiastes. A biblical book with a message
for Sukkot. The Jewish Religion: a companion. Disponível em http://www. Myjewishlearning.com/daily_life/
Prayer/TO_Synagogue/Rabbi/Modern_Rabbinate.htm, acesso em 24 mar. 04.
50
Arnaldo MOMIGLIANO, Os limites da helenização. A interação cultural das civilizações grega, romana, cél-
tica, judaica e persa, p. 75.
33
discussão parece se dar entre a época persa e a helenística, anulando os argumentos que sus-
tentam uma autoria anterior a estas duas épocas.
O Ec já conhecia os relatos javista e sacerdotal da criação; neste caso, ele teria diante
de si, provavelmente, a redação final do Pentateuco, o que lançaria o texto para uma época
tardia do pós-exílio
51
. Lohfink afirma:
Linguisticamente, deve-se datar o livro o mais tardiamente possível. Seu hebraico se
aproxima ao da Mishnah. Por outro lado, o livro Jesus Siraque pressupõe o livro do Ecle-
siastes. Sir pode ter sido redigido entre 190 e 180 a.C.
52
Também José Vílchez Líndez afirma que o hebraico utilizado pelo Ec seria de uma
época posterior, a partir de argumentos lingüísticos:
a) emprego de nomes terminados em -on e -ut, abstratos, raros no AT, mas de uso fre-
qüente no hebraico tardio rabínico; b) nomes com marca inequivocamente aramaica; c)
[...]o artigo não se elide depois de uma partícula; d) o pronome pessoal da primeira pes-
soa é sempre ani [...]; e) o pronome demonstrativo feminino em Qohélet é sempre zoh,
nunca o habitual zo’t; f) o pronome relativo
a
sher
aparece em Qohélet 89 vezes [...]; Qo-
hélet está a meio caminho entre os outros livros do AT e a Mishná; g) [...] confunde os
verbos lamed-he com os lamed-alef
53
.
Ambos os autores citados (cf. também a nota de rodapé n. 54) fazem referência ao he-
braico da Mishnah para localizar o livro do Eclesiastes numa determinada época. Fazendo
uma ponte com questões de conteúdo, é possível conferir em várias passagens a impossibili-
dade de localizar o livro do Eclesiastes na época de Salomão, mesmo se a questão entre a é-
poca persa ou helenística continuar indefinida: se em Ec 3.18-22 o autor questiona a acepção
de que “o alento do ser humano sobe para o céu e o alento dos animais baixa à terra”, certa-
mente esta não é uma colocação alocável na época monárquica israelita. Essa “divisão” entre
aspectos nobres e menos nobres do ser humano é típica da época de dominação grega na Pa-
lestina, influenciada pelas concepções platônicas. Platão († 348 a.C.) pode ter sido contempo-
râneo do Ec. Além disso, deve-se considerar que o autor do livro do Eclesiastes questiona a-
51
W. ZIMMERLI, op. cit., p. 128.
52
„Sprachlich muß man das Buch so spät wie möglich ansetzen. Sein Hebräisch nähert sich schon dem der Mi-
schna. Andererseits setzt das Buch Jesus Sirach das Buch Koh voraus. Sir dürfte zwischen 190 und 180
v.Chr. verfaßt worden sein“. N. LOHFINK, op. cit., p. 7. Também D. Michel concorda com esta posição,
constatando que grandes diferenças do hebraico do livro do Eclesiastes para o AT no que concerne ao vo-
cabulário e às formas gramaticais, mas que tanto maior é sua aproximação ao hebraico da Mishnah. Diethelm
MICHEL, Qohelet, p. 46. Ravasi denomina o processo de aproximação à Mishnah de “osmose e contami-
nação”, iniciado no séc. IV a.C. e atingindo seu ápice com o hebraico rabínico dos tratados da Mishnáh”.
Gianfranco RAVASI, Coélet, Pequeno Comentário Bíblico do AT, p. 14.
53
José Vílchez LÍNDEZ, Eclesiastes ou Qohelet, p. 65-66.
34
cepções da sabedoria tradicional judaica que vinham sendo cultivadas intensivamente após o
exílio babilônico, como forma de preservar a tradição israelita diante do poder dos dominado-
res estrangeiros.
Lohfink cita o livro de Jesus Siraque como tentativa de definição do terminus ante
quem. Zimmerli concorda com ele, adicionando outros dados:
Como limite posterior máximo da época provável de surgimento do livro do Eclesiastes
tem de ser considerado o livro de Jesus Sirac que conhece a sabedoria do Eclesiastes
(Gordis 45-49) – e a sua data de surgimento (cerca de 190 a.C.). Fragmentos de manuscri-
tos do livro do Eclesiastes, datados do século II, também foram encontrados no conjunto
de escritos de Qumran (Muilenburg,
BASOR
135, 1954, 20-28; Gross,
RB
63, 1956, 58)
54
.
O presente trabalho se inclina à teoria de que o livro do Eclesiastes tenha recebido sua
redação final na época grega. As observações de ordem política, social e religiosa contidas no
texto como um todo possibilitam afirmar que ele não pode ter sido redigido numa época tão
remota quanto o reinado de Salomão, em que os problemas sociais e políticos eram outros,
nem numa época de certa forma pacífica como o domínio persa na Palestina, em que não ha-
via tantos conflitos quanto durante o posterior domínio helenístico. Também George Robin-
son tenta argumentar com o conteúdo:
Ele [o Eclesiastes] escreve como um teísta-agnóstico, fornecendo em seu livro algumas
pistas sobre sua biografia. Tanto sua linguagem quanto suas idéias apontam para o perío-
do persa tardio, ou, mais provavelmente, para o período grego, antes da Revolta dos Ma-
cabeus. Ele não pode ter sido o próprio Salomão; porque ele nos relata que era, não que é,
rei em Jerusalém (1.12), que o governo é mau, que o rei é despótico, os juízes são corrup-
tos (3.16), a opressão reina (4.1-3), o suborno é geral (5.8), tudo é trapaça (1.15), e que a
sociedade em geral está num estado deplorável. […] Mas as alusões do autor às condições
locais são tão generalizadas e indefinidas que é impossível datar seu livro com absoluta
segurança; porém faz sentido concluir, a partir das pistas que temos, que ele só pode ter
sido composto muito tempo após o exílio, provavelmente pouco antes de 200 a.C. […]
55
.
54
Als untere Grenze der möglichen Entstehungszeit des Buches Kohelet muß das Buch Jesus Sirach, dem Ko-
helets Weisheit schon bekannt ist (Gordis 45-49), und sein Entstehungsdatum (um 190 v.Chr.) angesehen
werden. Fragmente von Kohelethandschriften, die ins 2. Jahrhundert datiert werden, haben sich nun auch im
Schrifttum von Qumran gefunden (Muilenburg,
BASOR
135, 1954, 20-28; Gross,
RB
63, 1956, 58)“. W. ZIM-
MERLI, op. cit., p. 128.
55
“He writes as a theistic-agnostic, giving in his book a bit of his own biography. Both his language and his
ideas point to the late Persian, or, more probably, to the Greek period, prior to the Maccabean uprising. He
could not have been Solomon himself; for he tells us that he was, not is, king in Jerusalem (1
12
), that the
government is bad, that the king is despotic, the judges are corrupt (3
16
), oppression reigns (4
1-3
), bribery is
rife (5
8
), everything is crooked (1
15
), and that society in general is in a deplorable state. (...) The author’s
allusions to local conditions, however, are all so general and indefinite, that it is impossible to date his book
with absolute certainty, but it is reasonable to conclude, from the hints we have, that it was not composed
until long after the Exile, probably shortly before 200 a.C. (...)”. George ROBINSON, Ecclesiastes, in:
Abingdon Bible Commentary, p. 614.
35
3. Um autor ou vários autores?
A maioria dos comentaristas recentes supõe que o chamado “Pregador” tenha sido um
professor de origem judaica que ensinava na Palestina, mais precisamente em Jerusalém.
duas concepções básicas a respeito da origem do livro: a base do texto teria sido oral
56
, ou en-
tão ele teria sido registrado por alguns alunos/discípulos desse suposto “pregador”, tendo so-
frido correções e a inclusão de glosas. Isso não necessariamente significa que a obra definitiva
tenha sido lançada post mortem; ela pode ter sido elaborada após os ensinamentos do Ec te-
rem se solidificado o suficiente para incentivar uma redação conscienciosa. Kurt Galling che-
ga à conclusão de que o texto parece ser desconexo e sem uma estrutura lógica, porque sua
redação primária teria sido uma coleção avulsa de sentenças, as quais teriam sido organizadas
numa redação secundária
57
.
Mas há autores que defendem a opinião de que todo o texto tenha sido redigido por um
só autor, e que ele estaria estruturado numa espécie de “discussão interna”:
[…] formas estilísticas do discurso sapiencial. […] No primeiro caso, o bio expõe as
experiências extraídas da vida, que não devem ser necessariamente experiências pessoais.
As sentenças do segundo tipo correspondem aos objetivos da doutrina sapiencial, sem que
tenha sido sempre preciso supor um discípulo especial
58
.
Isso significa que todo o texto teria sido produção da mesma pessoa, ou como “diálogo
interno” (o autor consigo mesmo) ou como resultado de discussões com membros da sinagoga
(o autor com a elite cultural de Jerusalém). Há comentaristas que supõem três passos de estru-
turação do texto pelo autor: 1) ele apresenta ditos e provérbios correntes da sabedoria tradi-
cional israelita; 2) ele os analisa, e 3) ele lhes contrapõe sua própria opinião:
Acaba sendo esclarecedora e até certo ponto convincente a tese de Gordis, segundo a qual
as contradições aparentes em Qohélet podem explicar-se em parte pelo método de traba-
lho usado pelo autor, que, após citar alguma idéia ou aforismo convencional, passa em
continuação a refutá-los, motivo pelo qual o leitor tem a impressão da pluralidade de au-
tores
59
.
Conforme esta acepção, não houve, obrigatoriamente, a ação de glosadores no texto. O
que parece ser glosa seria, portanto, um comentário do próprio autor, que ele apresentaria co-
mo ponto de partida para chegar à sua opinião pessoal. Este método ver-se-á confirmado em
56
Cf. N. LOHFINK, op. cit., p. 11ss., R. GORDIS, op. cit., p. 59ss., e D. MICHEL, op. cit., p. 1ss.
57
Kurt GALLING, apud D. MICHEL, op. cit., p. 13.
58
Ernst SELLIN, Georg FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, v. 2, p. 504.
59
Víctor Morla ASENSIO, Livros sapienciais e outros escritos, p. 164. A referência a Gordis está em R.
GORDIS, op. cit., p. 95-108.
36
pelo menos uma perícope do livro do Eclesiastes (7.1-4), mas também a passagem misógina
de 7.26-29 parece ser apenas uma reprodução do que se dizia na época, sendo contestada em
9.7-10, em que o autor se refere à “mulher amada” como companhia essencial para a fruição
da vida
60
.
Associando-se à opinião de que o texto é produto de um autor, Lohfink propõe um
modelo de esquematização do conteúdo que divide o texto em cinco grandes partes, que rece-
bem títulos descritivos e demonstram a estrutura proposta por ele mesmo:
a. 1.2-11 – introdução (teses, perguntas, uma visão do cosmos como pano de fundo);
b. 1.12-3.15 – introdução narrativa à tese principal, de cunho antropológico;
c. 3.16-6.10 – aprofundamento através de entradas isoladas, a partir da experiência social;
d. 6.11-9.6 – defesa de opiniões contraditórias, principalmente da sabedoria mais antiga;
e. 9.7-12.8 aplicação prática através de indicações concretas para o comportamento do
mundo
61
.
Segundo esse modelo, parece que o texto final foi organizado para cumprir um deter-
minado fim, como se o autor do texto oral fosse também o do texto escrito. Na verdade, seria
bastante difícil alguém falar numa ou em várias assembléias sobre tantos assuntos, tendo todo
o conteúdo arrumado”, conforme o pretende Lohfink. E principalmente o item d, neste es-
quema, vai de encontro ao que afirmava Gordis, não correspondendo à teoria de que o Ec es-
taria discutindo com a sabedoria tradicional, ao invés de defendê-la, embora isso não impeça
que ambos concordem quanto à unicidade do autor. Além disso, Lohfink elide aqui totalmente
o aspecto divino, não se referindo ao papel e à importância de Deus para o autor do livro do
Eclesiastes em nenhum momento; essa “secularização” do texto não corresponde a seu conte-
údo, uma vez que o poder divino se manifesta nas diversas admoestações e estímulos sobre
como fruir a vida corretamente
62
.
Além desse esquema mais geral, Lohfink apresenta também uma estrutura detalhada
de todo o livro, a qual reúne em feixes concêntricos a argumentação do livro do Eclesiastes.
Essa estrutura abstrai um pouco mais os conteúdos apresentados no primeiro esquema, mas o
autor contradiz a si mesmo, p.ex., no item “crítica à ideologia”, ao apresentar as mesmas perí-
copes das quais ele afirmava serem “defesa” da sabedoria mais antiga:
60
Cf. cap. 3 deste trabalho.
61
N. LOHFINK, apud L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 48.
62
Cf. cap. 3 deste trabalho.
37
[Ec 1.1 Título]
Ec 1.2-3 Moldura
Ec 1.4-11 Cosmologia (poema)
Ec 1.12-3.15 Antropologia
Ec 3.16-4.16 Crítica social I
Ec 4.17-5.6 Crítica à religião (poema)
Ec 5.7-6.10 Crítica social II
Ec 6.11-9.6 Crítica à ideologia
Ec 9.7-12.7 Ética (poema no final)
Ec 12.8 Moldura
[Ec 12.9-14 Epílogo]
63
Segundo essa estrutura, os blocos iniciais contentam-se em tecer análises generaliza-
das sobre fenômenos sociais e sobre o funcionamento do mundo. Já a crítica social ocupa um
lugar privilegiado, além da crítica à religião, que se encontra no centro da argumentação. A-
gora, Lohfink procura comprovar que o Ec pretendia contrapor-se ao esquema da teologia da
retribuição. Apesar disso, a proposta de um agir ético aparece apenas nos últimos capítulos,
como se ela fosse a conclusão de todas as meditações anteriores. Revelam-se as dificulda-
des encontradas pelos pesquisadores em reconhecer no texto do livro do Eclesiastes, como um
todo, uma coesão interna.
Whybray também afirma que o livro foi escrito por um autor apenas, embora partindo
de outro argumento: para ele, o que chama a atenção é a intensidade do uso do pronome “eu”:
o autor escreve inteiramente na primeira pessoa, em 82 vezes. Os verbos utilizados dessa for-
ma (1ª pess sing) são freqüentemente acompanhados pelo pronome pessoal enfático “eu”. Mas
o nível de abstração da reflexão seria de tal forma desapaixonado e criticamente distanciado
que o autor parece um estranho até a si mesmo, o que contrasta com suas dicas de comporta-
mento prático: nada é dado por garantido, tudo é vaidade, há que aproveitar o dia de hoje
64
.
quem afirme ser o livro do Eclesiastes uma forma de narrativa autobiográfica, e
que o objetivo dessa narrativa seria tornar seu conteúdo convincente: as conclusões a que che-
gou o Ec são lições da própria vida, e não apenas teorias imaginárias
65
. Seja ele uma “figura
fictícia” ou uma pessoa real, os ensinamentos deste livro são autênticos dados pela realida-
de, e não moldados por teorias abstratas. Esses ensinamentos foram condensados numa “lista
63
N. LOHFINK, op. cit., p. 10.
64
Roger Norman WHYBRAY, Ecclesiastes, p. 20ss. – Grifo do autor.
65
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 55.
38
de conteúdos” organizada por um comentarista judaico, Mordecai Zer-Kavod, que cita 12 tó-
picos principais, seguindo os 12 capítulos do livro:
1. Introdução
2. A experiência do Qohelet lhe ensina que tudo é vaidade
3. A relação dos seres humanos com aspectos elevados ou comuns da vida
4. Defeitos na sociedade humana
5. Admoestações a um peregrino
6. A vergonha da corrida atrás do dinheiro
7. Uma coleção de comentários sábios
8. Recompensa e punição
9. O destino do ser humano está nas mãos de Deus, portanto que ele se alegre com sua
porção
10. Comentários de sabedoria organizados antiteticamente
11. Encorajamento ao trabalhador do solo
12. A alegria da juventude e a fragilidade da velhice
Conclusão, o Qohelet e sua mensagem
66
.
Zer-Kavod reconheceu o tema central em cada “bloco” de assuntos; mas sua lista não
reproduz a idéia de que existe, na realidade, um fio condutor que perpassa todos os capítulos:
a vida do ser humano está nas mãos de Deus, e suas duas grandes limitações são a mortalida-
de e a impossibilidade de desvendar o futuro e, portanto, de saber o que acontece após a morte
– ou seja, para o Ec não parece possível atribuir sentido a uma vida destituída do conhecimen-
to último. Essas questões serão vistas no cap. 3 deste trabalho.
Quanto à questão do meio social do Ec, vários pesquisadores afirmam ter ele pertenci-
do à chamada “elite cultural” de Jerusalém, e que por isso estaria tão a par das concepções di-
vergentes da sabedoria israelita e da filosofia grega. Um agricultor depauperado e expulso de
suas terras pelos novos colonos gregos não teria as condições de produzir o tipo de texto que
caracteriza o livro do Eclesiastes
67
:
[...] pressupondo que o lugar do Qohelet na sociedade judaica era seguramente entre os
ricos e famosos, [...] as idéias do Qohelet refletiam especificamente a crescente instabili-
dade da posição privilegiada e segura da “classe alta”
68
.
66
Mordecai Zer-Kavod , apud A. CORRÉ, op. cit.
67
N. LOHFINK, op. cit., p. 12; R. GORDIS, op. cit., p. 50ss.
68
“Assuming that Qohelet’s place in Judean society was safely among the rich and the famous, Crüsemann ar-
gued that Qohelet’s ideas specifically reflected the growing instability of the upper class’s position of pri-
vilege and security”. Frank CRÜSEMANN, apud C. Robert HARRISON, Jr., Qohelet among the sociolo-
gists, Biblical Interpretation v.5, p. 162 .
39
Se parece aceitável a idéia de que “a ética do Qohélet era burguesa”
69
, existiria a pos-
sibilidade de ele conseguir atingir a chamada “burguesia” com suas próprias armas, uma vez
que ele conhecia esse modo de pensar. Esta camada da população tinha acesso à linguagem
escrita, comunicava-se num estilo de “corte real” e conhecia, ao menos em parte, conteúdos
da sabedoria mesopotâmica e egípcia.
No segundo capítulo deste trabalho, confirmar-sea suspeita de que o autor do livro
do Eclesiastes pode ter sido uma pessoa mais idosa, uma vez que ele já adquirira todos esses
conhecimentos, privilégio de poucos cidadãos que dispunham de meios e de tempo para estu-
dar; não seria esse o caso de pessoas trabalhadoras humildes. Segundo a teoria de Jung, que
descreve a chamada crise da meia-idade com características tais como a reflexão sobre a vida
passada, a conformação com a morte próxima, a busca por sabedoria e modos de vida mais
salutares também no plano psíquico, o desprendimento de bens materiais etc. o Ec poderia es-
tar atravessando este tipo de crise quando surgiram seus escritos.
Nesse contexto, o Ec aproveitava seus conhecimentos para passar adiante sua mensa-
gem num estilo muito próprio, mas compreensível para aquela parte da população que preci-
sava ouvir e entender suas palavras e tirar lições delas; eram verdadeiras metáforas, lingua-
gem cifrada às vezes, parecendo preservar a discrição e a elegância, mas atingindo o alvo exa-
to:
A admoestação freqüentemente repetida de “comer, beber e aproveitar” o trabalho que
Deus deu para fazer indica que os ouvintes têm meios suficientes para alçá-los para além
do patamar mínimo de subsistência. Além disso, tanto o Qohelet quanto sua audiência pa-
recem ter tido preocupações quanto a “juntar e acumular” aquelas coisas que poderiam
ser passadas para seus herdeiros (2.18-21; 4.7-8; 4.13-17). Portanto, parece claro que o
Qohelet fala como se ele mesmo fosse um dos ricos, para aquelas outras pessoas cujos re-
cursos próprios excedem suas necessidades
70
.
Por outro lado, o autor do livro do Eclesiastes parece ter tido a preocupação de dirigir-
se a todas as camadas da população, independentemente de sua origem e formação, e talvez o
seu círculo de alunos / ouvintes nem tenha se restringido a pessoas que freqüentavam a sina-
69
Apud Airton José da SILVA, Judaísmo e Helenismo – encontro e conflito, in: Estudos Bíblicos v. 48, p. 16.
70
“The frequently repeated advice to ‘eat, drink, and enjoy’ the work God has given one to do indicates that the
listeners have enough resources to lift them above the minimum level needed to sustain life. Furthermore,
both Qohelet and his audience seem to have been concerned with ‘gathering and heaping’ (2.26) the kinds of
things which could be handed on to their heirs (2.18-21; 4.7-8; 4.13-17). Thus, it seems clear that Qohelet
speaks as one of the affluent to others whose resources exceed their needs”. Kathleen FARMER, Who knows
what is good?, p. 148.
40
goga em Jerusalém. Vê-se isso na amplitude de seus temas e na tentativa freqüente de apre-
sentar suas preocupações em forma de conselhos, com relação a problemas que aconteciam
dentro do próprio povo israelita e o estavam enfraquecendo interiormente (cf. Ec 4.1ss). Isso
confirmaria a hipótese de o Ec ter sido um pregador itinerante em toda a Palestina, e então
haveria a possibilidade de um grupo de alunos ter compilado suas sentenças e ensinamentos.
4. Gênero literário
Uma vez que o texto do livro do Eclesiastes não apresenta uma unidade de estilo, além
de problemas lingüísticos que põem em dúvida uma datação exata, é impossível definir um
gênero uniforme nos doze capítulos que o compõem. Víctor Morla Asensio oferece uma das
soluções mais práticas para esta controvertida discussão:
Embora se tenha discutido muito sobre o gênero literário básico de Eclesiastes, a grande
maioria dos especialistas pensa que, em suas características essenciais, aproxima-se do
chamado testamento real, que tem sua origem nas antigas instruções egípcias. Faraós e
vizires transmitiam de forma autobiográfica a própria visão do mundo e das coisas, como
legado intelectual do qual pudessem beneficiar-se os jovens de famílias patrícias que as-
piravam aos postos da administração do Estado. […] é fácil descobrir no livro provérbios
isolados e composições em forma de instrução, elementos literários típicos da sabedoria
escolar. Trata-se indubitavelmente de lições elaboradas pelo próprio autor para instruir
seus alunos
71
.
A instrução de filhos e filhas, alunos e alunas, discípulos e discípulas de grandes mes-
tres da sabedoria é um gênero literário típico do pós-exílio, como forma de relembrar, admo-
estar, insistir no cumprimento das leis e na preservação da identidade cultural e religiosa. Es-
sas características aparecem no livro dos Provérbios e, mais tarde, no livro da Sabedoria de
Salomão e no Sirácida. A alusão ao fato de que o texto apresenta um estilo semelhante ao
chamado “testamento real”, característico da cultura egípcia, poderia ser um argumento para
comprovar o conhecimento que o autor tinha das culturas do Antigo Oriente Médio, tendo tal-
vez até mesmo se inspirado nestes escritos para compor seu próprio estilo.
Alviero Niccacci formula a questão de outro modo:
O livro grande atenção à experiência própria do Coélet, expressa justamente pelo gê-
nero “confissões”, mas também considera a sabedoria tradicional dos mestres mais anti-
gos. Esta se encontra normalmente nas passagens que utilizam os gêneros tradicionais: a
“instrução” e também o dito”. O gênero novo e os tradicionais são usados, quando mui-
to, em forma dialética, para apresentar as verdades contrapostas da existência humana se-
71
V. M. ASENSIO, op. cit., p. 167.
41
gundo o modo característico de Coélet. O gênero “confissões” serve para apresentar o la-
do negativo; o gênero “instrução” e o gênero “dito” introduzem o positivo
72
.
Mas não é para apresentar o lado negativo que serve o gênero “confissões”. Basta
ler Ec 8.15 e 9.7-9, as duas clássicas passagens de elogio à fruição da vida e do convívio com
amigos e com as pessoas amadas. Da mesma forma, os chamados “ditos instrutivos” às vezes
parecem provir de experiências bastante amargas (Ec 7.26-29), lembrando, porém, que esta
passagem também pode ser considerada citação ou mesmo provocação.
Em toda a discussão sobre a autoria do livro do Eclesiastes aparece mais um compli-
cador: no Ec, é praticamente impossível distinguir claramente entre prosa ou poesia, a não ser
em poucos trechos, como p.ex. Ec 3.1-8 ou 12.1-7. Tampouco se encontraria, na opinião dos
comentaristas atuais, um “fio condutor” que perpasse o texto, razão pela qual a maioria deles
sugere ser a autoria múltipla. Também é difícil definir o estilo: seria o livro do Eclesiastes lí-
rico, dramático, irônico-crítico? O corpo do texto apresentaria as quatro estruturas do clássico
discurso antigo: propositio, explicatio, refutatio e applicatio
73
. Mas seriam esses elementos
suficientes para determinar que se trata de um típico “discurso à moda grega clássica”?
A inconsistência estilística apontada pela maioria dos pesquisadores pode advir da ten-
tativa de se comunicar com os dois lados opostos – a elite das sinagogas e o povo “comum”
da mesma sociedade. O conhecimento e a cultura adquiridos pelo autor do livro, no contexto
privilegiado da classe abastada, lhe abriram os olhos para se dar conta da fragilidade do tipo
de sabedoria cultivada no meio elitista, tradicionalista no sentido de manter e preservar os in-
teresses da ordem constituída, e que era cultivada no judaísmo: “Em resumo, poder-se-ia falar
de um protesto dolorido contra a definição dogmática de vida dentro da sabedoria que domi-
nava o ambiente judaico”
74
.
O livro do Eclesiastes poderia assemelhar-se a uma “narrativa” (Erzählung): um nar-
rador fala acerca das experiências, do desenvolvimento interior, das descobertas, observações
e dos conselhos de uma pessoa chamada Qohelet. Além disso, teoricamente ainda se poderia
72
Alviero NICCACCI, A casa da sabedoria. Vozes e rostos da sabedoria bíblica, p. 175.
73
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 48.
74
„In summa könnte man von einem schmerzlichen Protest gegen die dogmatische Lebenserklärung der herr-
schenden jüdischen Schulweisheit sprechen“. Fritz HUNGERLEIDER, Das Testament des Kohelet. Disponí-
vel em www.cubus.de/zentexte/kohelet.html, acesso em 16 mai. 2001. Também Ravasi concorda com esta
avaliação, afirmando: “Rebelde solitário, pensador excêntrico, desejoso de resposta global ao sentido da vida
e do ser contra toda explicação setorial, Coélet é visto como intelectual crítico que, embora use métodos e es-
truturas da sabedoria tradicional, revela sua insuficiência radical”. G. RAVASI, op. cit., p. 29.
42
diferenciar entre um autor e um narrador: o autor faria o narrador contar a sua história, dan-
do-lhe a ênfase principal em todo o texto
75
. Para fundamentar sua opinião, ele se apóia em
Longman, que conta o livro do Eclesiastes entre as obras da autobiografia sapiencial ficcio-
nal
76
. Este livro seria o resultado de uma reflexão profunda sobre a própria vida e as experiên-
cias acumuladas, e não apenas uma coletânea de ensinamentos. Essa avaliação remete ao que
Jung chama de processo de individuação
77
, o que torna instigante a possibilidade de ler o tex-
to do livro do Eclesiastes segundo a psicologia profunda.
5. Conteúdo sapiencial
Até agora, verificou-se que uma das principais tensões do texto do livro do Eclesiastes
está no embate entre a sabedoria israelita tradicional e os pontos de vista do autor. Como se
apontou, estes pontos de vista tinham como lastro os conhecimentos que o autor parecia ter da
filosofia grega, da literatura egípcia e da sabedoria mesopotâmica, sendo que a “imersão” for-
çada da Palestina na filosofia grega foi o que deflagrou os conflitos de pensamento e de Welt-
anschauung evidentes no texto.
Cabe integrar, neste momento, uma rápida digressão sobre as diferentes concepções de
ser humano no judaísmo e no helenismo. O Ec é fruto de seu tempo, ou seja, da influência he-
lenística sobre a religião e a judaicas. Ele teve contato próximo com a filosofia grega e, por
extensão, com os ensinamentos platônicos sobre a separação corpo-alma-espírito. Dessa for-
ma, passagens como Ec 3.18-22
78
podem servir de amostra para o conflito que o autor deste
livro encarou, e que de quando em quando deixava transparecer. O versículo central desta pe-
rícope (21) questiona: Quem sabe se o alento do homem sobe para o alto e se o alento do a-
nimal desce para baixo, para a terra?Uma variante dessa concepção existia no judaísmo de-
vido à idéia que se fazia do sheolao morrer, o corpo desce às profundezas eternas –, mas is-
so ainda não significava que o ser humano estaria dividido em corpo material e espiritual, e
muito menos que a parte espiritual tivesse primazia sobre a material, tal como sustentavam os
filósofos platonistas.
75
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 54.
76
Ibid., p. 54.
77
Cf. cap. 2 deste trabalho.
78
Cf. cap. 3 deste trabalho.
43
Para o judaísmo, o corpo “volta ao pó, de onde veio” (Ec 12.7) e o espírito volta à pre-
sença de Deus. Tanto é que o termo “espírito”, em hebraico
x:Wr
(ruach = sopro, vento,
espírito) se refere àquele sopro de vida concedido por Deus ao ser humano. Não se concebe,
portanto, nenhum tipo de preferência ou “nobreza de estado” quanto ao corpo ou ao espírito.
Isso faz com que, por um lado, o ser humano seja igual aos animais, quando morre (cf. Ec
3.18-21); por outro lado, o ser humano visto como unidade física, animada pelo espírito de
Deus, permanece “inteiro” também ao morrer (cf. Ec 12.1-7).
Para os gregos, essa idéia era insuportável: a essência da vida era o imaterial, o espiri-
tual, tudo o que parecesse elevar-se em direção às alturas dos deuses. O corpo físico era visto
como prisão para os ideais de ascensão e nobreza de pensamentos; a morte era, por um lado, a
libertação das amarras terrenas, mas, por outro lado, não se tinha a concepção de que a alma
entraria à presença dos deuses para ali permanecer eternamente. O que se desejava era a imor-
talidade, no sentido de libertação das circunstâncias físicas: “A teoria de Platão sobre o amor
define-o como um desejo de imortalidade. No amor, o ser humano esforça-se para romper as
cadeias de sua existência individual e efêmera”
79
. Essa famosa definição do “amor platônico
pode ser associada também, p.ex., à busca pela imortalidade em Gilgamesh, que sempre en-
contra em seu caminho pessoas que lhe inspiram sentimentos profundos e o fazem querer su-
perar-se a si mesmo. Faz sentido identificar a busca por imortalidade tanto na cultura mesopo-
tâmica quanto na filosofia grega; esta busca é um dos elementos que compõem o inconsciente
do ser humano desde os primórdios, e pode ser verificada nas manifestações culturais de mui-
tos povos, em todas as regiões do mundo. Mais adiante ver-se-á isso em detalhes.
5.1 Sabedoria e insensatez: questões de gênero e de polarizações
A sabedoria israelita tradicional se orientava conforme padrões retributivos bastante
simples, segundo os quais a vida mas também a memória positiva após a morte pertencia
aos justos, e a morte – junto com o esquecimento – era o castigo dos ímpios: quem agisse cor-
retamente seria recompensado, e as ações más fatalmente levariam ao infortúnio. Essa visão
de mundo, chamada de “teologia da retribuição” (o chamado Tun-Ergehen-Zusammenhang),
era considerada muito reducionista pelo Ec, que cedo percebeu sua inconsistência. Seria o Ec,
79
Ernst CASSIRER, Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana, p. 300.
44
talvez, um teólogo com ambições filosóficas
80
, quando se pôs a refletir sobre a tradição sapi-
encial israelita?
Niccacci descreve a sabedoria israelita tradicional a partir da característica de polari-
zação bem/mal, justo/injusto, sábio/insensato –, e indica uma questão de gênero subjacente
à concepção do que seria a sabedoria, nesse contexto:
É digno de nota que o caminho do bem e do mal seja tematizado respectivamente como
sabedoria e insensatez, e personificado em duas mulheres. A tematização é compreendida
facilmente: a sabedoria e o seu oposto, a insensatez, constituem a terminologia caracterís-
tica do movimento sapiencial. A personificação se explica pelo fato de que os dois termos
usados, “sabedoria” e “insensatez”, são femininos tanto em hebraico quanto em portu-
guês. Por outro lado, causa surpresa, se se considerar o caráter decididamente “masculi-
no” da sociedade israelita, em que tudo é baseado no homem
81
.
Iniciando a análise desta citação de Niccacci, pode-se afirmar que a sabedoria israelita
tradicional, por via de regra, contrapõe os atos sábios aos atos tolos (p.ex. o Livro dos Provér-
bios); espera-se dos pais que eduquem seus filhos a fim de que estes aprendam a ser sábios e
se afastem da insensatez. Essa concepção permanece até os tempos de Jesus e é reproduzida,
em parte, nos evangelhos sinóticos (Mt 5.22; 7.26; 23.17; 25.2; Lc 11.40; 24.25), que afirmam
que os “tolos, néscios, insensatos, ímpios” são aqueles que não seguem a Deus e não querem
se preparar para a vinda do Messias, sendo surpreendidos por sua vinda em hora inesperada
(cf. a parábola das virgens sensatas e néscias em Mt 25.1ss). Segundo essa concepção, ser sá-
bio é aprender as lições dadas pela vida, depois de analisar os fatos e deles tirar as conclusões
óbvias. Assim, a sabedoria está ligada à velhice, porque é depois de uma longa experiência
de vida que se está autorizado a expressar e confirmar as leis que deveriam reger o bom fun-
cionamento do mundo e o convívio entre as pessoas. As leis “divinas” que servem de substra-
to a esta concepção são, no caso de Israel, a solidariedade, o temor de Deus e a retribuição pe-
los próprios atos: o justo será abençoado, o mau será castigado.
O Ec busca fugir destas concepções tradicionais, embora, segundo Niccacci, a questão
de gênero possa aparecer como um problema em suas colocações, quando ele aponta a mulher
como a causadora de inúmeros males (Ec 7.26). Vários comentaristas consideram este trecho
uma glosa posterior masculina. Mas existe a dúvida: o Ec teria chegado à conclusão de que a
mulher é pior que a morte, ou ele apenas reproduz criticamente isto é, exagerando a descri-
80
Ernst HAAG, Das hellenistische Zeitalter, p. 113.
81
A. NICCACCI, op. cit., p. 10.
45
ção a acepção geral de que é assim? Ou seja, tratar-se-ia, aqui, de uma compreensão meta-
lingüística do conteúdo
82
? Nesse caso, ele estaria ironizando as pessoas que pensavam dessa
maneira. Talvez se trate de uma citação, o que vem a confirmar a hipótese dos três passos (o-
pinião alheia crítica alternativa própria), se bem que ele mesmo não apresente uma alter-
nativa a esse problema, a não ser em Ec 9.9 (“alegra-te com a mulher amada...”).
Aprofundando a leitura do livro, é quase natural imaginar seu autor como um ser hu-
mano que raciocina a partir de uma concepção masculina: como o mundo masculino inclu-
indo o Ec criou essa contradição referente ao papel da mulher? E, por outro lado, como era
possível projetar no elemento feminino tanto a sabedoria quanto a insensatez?
Na continuação de sua citação anterior, o próprio Niccacci responde:
Essa escolha de terminologia revela um aspecto importante do mundo ideal da sabedoria
bíblica: uma altíssima, embora ambivalente, consideração pela mulher. A mulher tem im-
portância decisiva na vida do homem (pois do ponto de vista do homem é formulado, não
obstante, o mundo ideal dos sábios), mas é ambivalente; é tesouro mais precioso e tam-
bém a maior desgraça; personifica a sabedoria e a insensatez, a vida e a morte
83
.
Niccacci insiste no termo “mundo ideal dos sábios/da sabedoria”, deixando, porém,
em aberto o que seria isso na época do Ec. Provavelmente, ele se refere à sabedoria israelita
tradicional, marcada pelo raciocínio masculino e de pouquíssima influência feminina. Lendo o
livro do Eclesiastes com atenção redobrada, pode-se perceber que os temas escolhidos para
sua reflexão ou são universais vida e morte, riqueza e pobreza, opressão e liberdade ou
sugerem atividades típicas do mundo masculino (5.7; 5.11; 8.2-4; 9.13-15; 10.1; 10.16-20);
raramente pode-se encontrar alguma passagem que identifique aspectos do mundo feminino.
5.2 O papel da lei e da transcendência e o sentido da vida nas reflexões do Eclesiastes
O Ec questiona uma sabedoria que traz em seu bojo o perigo da acomodação e da alie-
nação política e social. Pouco tempo antes dele, a história de introduzira a dúvida e a in-
certeza acerca do que parecia ser o fundamento da sociedade judaica da época pós-exílica.
Avaliando as ações de Alexandre Magno, com sua nova forma de dominar os territórios con-
quistados e as conseqüências disso para o povo judaico
84
, o Ec, além de refletir sobre assuntos
82
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 403.
83
A. NICCACCI, op. cit., p. 10.
84
Cf. item 7.2 deste capítulo.
46
universais e atemporais, também se dedica a denunciar problemas sérios dentro da própria so-
ciedade judaica da época, e não apenas lamenta a invasão helenística.
Foi a partir desse quadro de dominação helenística que o Ec desenvolveu sua forma de
pensar, chegando àquelas conclusões das quais Gordis afirma terem levado alguns estudiosos
a considerá-lo quase como um herético, devido à sua heterodoxia e seus contra-sensos. Na
busca pela verdade, num mundo tão conturbado e pressionado por constantes mudanças, outra
questão importante se refere ao papel da lei na vida do Eclesiastes:
As escolas de sabedoria afirmavam que era através da observância da Lei que se chegava
à felicidade. Mas o caminho de uma disciplina pessoal – seguir a Lei como meio para a
felicidade só provocou desilusão no Qohelet: de acordo com seu pensamento, privações e
sofrimentos não levavam a nada (cf. 4.8). O Qohelet às vezes relativiza a teologia da lei e
da retribuição; às vezes parece, embora de uma maneira tímida, que a aceita. Qohelet não
é um tratado de lógica. É uma visão sobre a realidade. E a realidade como ele a enxergava
era contraditória. Apoderíamos afirmar que é um texto de um teólogo conservador re-
voltado. De alguém que acreditava, porém a realidade não confirmava suas crenças. Isso
deixava nele algo de desilusão, algo de desesperança, algo de medo, algo de realismo.
Mas também dava a ele serenidade e paz. Ele deve ter tido o olhar de quem já não tem
falsas ilusões. E uma postura irreverente frente a seus colegas teólogos que ainda ensina-
vam aquilo que a realidade estava cansada de desmentir. Ele era sereno: no seu texto não
há desespero nem angústia
85
.
Dessa forma, o autor do livro do Eclesiastes distancia-se da tradição israelita, também
por sua concepção de que a lei, tal como cultivada até então, de pouco adianta, quando se trata
de buscar um sentido maior para as coisas que vão sucedendo aos seres humanos em sua curta
vida, repleta de “dias de vaidade”. Por outro lado, quando o autor mostra sua idéia do que se-
ria a transcendência divina, vê-se que ele cultiva a herança judaica, que o distingue em todos
os aspectos dos filósofos seculares gregos. Mesmo assim, a questão da transcendência divina
aparece em raros momentos, nas reflexões sobre tempo, vida e morte (caps. 3, 9 e 12).
Quanto à questão da morte, diferentemente de Jó, o qual faz a pergunta “Qual é o
sentido do sofrimento?”, o Ec centraliza a questão num tema muito mais amplo “Qual é o
sentido da vida?” –, englobando mais aspectos do questionamento humano diante de Deus e
da existência
86
. A morte não é vista, aqui, como castigo merecido para quem viveu de modo
ímpio. Ela é a conseqüência natural da velhice esta, sim, colocada sob a condição de se vi-
ver sempre lembrando do Criador, e na consciência de que de tudo se de prestar contas a
85
Jorge Luis Rodríguez GUTIÉRREZ, A lei, a fadiga e o vazio no livro de Eclesiastes. Disponível em http://
www2. metodista.br/biblica/biblistas/biblistas.htm, acesso em 26 mai. 04.
86
Dianne BERGANT, Job and Ecclesiastes, p. 228.
47
Deus em algum momento (cf. Ec 11.9-12.7). A morte é o fim do processo de envelhecimento,
mas ela não recebe uma valoração por si . Ela faz parte do ciclo natural de vida de todos os
seres criados por Deus, a quem ele dá e de quem ele tira o alento vital (cf. Ec 12.7). A pergun-
ta pelo sentido da vida adquire outra conotação, e sugere uma busca pela superação dos pro-
blemas mais sérios e profundos da existência – nos quais a morte não está necessariamente in-
cluída, e sim o modo de vida que leva a ela –, atribuindo à tristeza e à felicidade igual impor-
tância no conjunto dos fatores que fazem a vida ser vivida com dignidade.
Uma das linhas da filosofia grega denominada estoicismo tem sido apontada como ba-
se para o raciocínio do Ec com relação a essas questões de sentido, de vida e de morte:
A própria vida está mudando e flutuando, mas o verdadeiro valor da vida deve ser busca-
do em uma ordem eterna que não admite qualquer mudança. […] O juízo é o poder cen-
tral no ser humano, a fonte comum da verdade e da moralidade, pois é a única coisa em
que o ser humano depende inteiramente de si mesmo […]. O homem encontra-se em per-
feito equilíbrio com o universo, e sabe que este equilíbrio não deve ser perturbado por
nenhuma força externa
87
.
Embora não se possa reconhecer em sua totalidade essa concepção de vida no livro do
Eclesiastes, alguns elementos parecem importantes: a “ordem eterna que não admite mudan-
ças” e o equilíbrio baseado no juízo humano e na moralidade. O que distingue essas idéias do
judaísmo é a teoria de que tudo depende do ser humano, sem a interferência divina. Mas é
neste ponto que o Ec entra em conflito com toda a concepção helenista acerca do ser humano.
Estoicismo, cinismo, hedonismo são propostas que não bastam para conferir à vida humana a
verdadeira dignidade a que ela tem direito, a partir da convicção de que o ser humano é a cria-
tura de um Deus que lhe possibilitou viver neste mundo:
A religião […] nunca pretende esclarecer o mistério do ser humano. Ela confirma e apro-
funda esse mistério. O Deus de que ela fala é um Deus absconditus, um deus oculto. Lo-
go, até mesmo a sua imagem, o ser humano, não pode ser senão misterioso. O ser humano
também é um homo absconditus. A religião não é nenhuma “teoria” do Deus e do ser
humano e de sua relação mútua. […] Portanto, por assim dizer, a religião é uma lógica do
absurdo, pois assim pode apreender o absurdo, a contradição interna, o ser quimérico
do ser humano
88
.
Assim se poderia tentar entender a busca do Ec por uma explicação das contradições
existentes no universo, embora ele acabe admitindo que isso é impossível, e que é vão querer
produzir um sentido para a vida.
87
E. CASSIRER, op. cit., p. 19-20.
88
Ibid., p. 27.
48
5.3 Trabalho, esforço e vaidade no livro do Eclesiastes
A “relativização” do peso negativo que parecem assumir as coisas e os fenômenos
desta vida está relacionada à constatação da vaidade dos esforços para conquistar vantagens
materiais derivadas do trabalho.
vm,V,h; tx;T;
(tāhāt hašēmēš = “debaixo do
sol”) é a expressão recorrente no livro do Eclesiastes que evoca o esforço do trabalho árduo
designado ao homem, cf. se em Gn 3.19. Entretanto, não fica claro se, sempre que essa ex-
pressão é usada no texto como um todo, se trata de uma metáfora, ou se o autor pensa real-
mente no trabalho exaustivo, ao sol forte, a que se expunham as pessoas.
Storniolo indica aspectos bem concretos ao chamar a atenção para o fato de que, no li-
vro do Eclesiastes, se utilizam muito os termos
hf[
(‘āśâ = “fazer”, “fabricar”, “realizar”) e
lm[
(‘āmāl = “labuta, trabalho pesado, dificuldade”); essas palavras demonstram o trabalho
pesado do operário e do lavrador. Não se trataria, nesse caso, de metáforas, e sim da mais dura
realidade. Se uma parte do Ec se eleva para o âmbito da filosofia e da teologia, outra parte
medita sobre o cotidiano do trabalhador braçal, como se ele mesmo tivesse tido essa experiên-
cia:
[…] a obra de Coélet não teria nascido de cima para baixo, mas de baixo para cima, o tra-
balho de um intelectual orgânico que se posiciona do lado e para os interesses das bases
que produzem a riqueza e a cultura de um país […]. É a um tipo de povo como esse que
Coélet se dirigia, com a coragem de abordar a espinhosa questão: esse povo tem condi-
ções de viver feliz ou de imaginar a possibilidade da felicidade nessas condições?
89
A argumentação parece se basear na questão de que o trabalho árduo “debaixo do sol”
é mais honesto que as atividades das pessoas que vivem do trabalho de outras: se, por um la-
do, há pessoas que fazem de tudo para sobreviver com dignidade através do seu próprio traba-
lho, por outro lado aquelas que apenas correm atrás de bens e vantagens, sem respeitar as
outras pessoas nem se importar com a desonestidade. E essa reflexão é dirigida, em primeiro
lugar, ao povo de que o Ec faz parte:
O povo judeu tem a missão de familiarizar-se com a Torá e viver de acordo com seus pre-
ceitos. Não deve, entretanto, deixar de trabalhar para o seu sustento, para atender às suas
necessidades corporais. O mérito consiste em conciliar essa atividade com o estudo do
texto sagrado. […] ninguém tem o direito de deixar de trabalhar. Mesmo os ricos, quando
não precisam do trabalho para garantir seu sustento, devem, então, dedicar-se ao trabalho
89
Ivo STORNIOLO, Trabalho e felicidade: o livro do Eclesiastes, p. 17.
49
comunitário. […] É preciso conter-se […] para que o trabalho não se torne escravidão,
mas uma atividade útil e isenta de ambição e da vontade de poder
90
.
No final, evidencia-se que ambas as atitudes trabalho honesto e exploração levam
ao mesmo fim, porque o ser humano nada leva consigo quando morre. Mas o Ec faz questão
de ressaltar que cada pessoa terá de prestar contas a Deus (caps. 5 e 11); assim, o trabalho
digno tem sua importância e seu valor, porque antes da morte acontecem coisas na vida de ca-
da pessoa que a fazem perceber se sua existência faz sentido ou não, tanto para si quanto para
as outras pessoas com quem ela convive.
A conclusão dessa denúncia, advinda da constatação realista de fatos e acontecimen-
tos, leva o Ec a afirmar que “tudo é vaidade debaixo do sol”. Essa vaidade seria o resultado de
um trabalho árduo e em vão, porque ninguém – e muito menos quem se esgotou trabalhando –
se beneficia dele: todas as pessoas morrem da mesma forma. Mas essa relativização não apa-
rece em forma de prosa estilizada para descrever imagens abstratas; o termo hebraico
lb,h,
(hēbēl) se refere a “vapor, sopro, vaidade”, imagens concretas da fatuidade da vida:
(...) o autor afirma sua incapacidade de encontrar realização em seu trabalho, tanto por
não conseguir ser criativo quanto por não conseguir controlar o livre uso e o destino de
suas posses: isso é “vaidade”: 2.11, 19, 21, 23; 4.4, 8; 6.2 Depois vêm aqueles versículos
em que o autor luta com a idéia de que a conexão entre pecado e juízo, justiça e livramen-
to nem sempre é direta ou óbvia. Isso é uma anomalia da vida e é “vaidade”: 2.15; 6.7-9;
8.10-14. O significado de hebel aqui seria “sem sentido”. Por fim, aqueles versículos
em que o autor lamenta a brevidade da vida: isso também é “vaidade”: 3.19; 6.12; 11.8,
10. A vida, em sua qualidade, é “vazia” ou vacuidade” (e, portanto, insubstancial), e em
sua quantidade é “transitória”
91
.
Outro termo bastante utilizado pelo Ec, no contexto da crítica social interna, é
!wort.yI
(yitrōn) = “lucro”, “ganho”, “vantagem”:
[…] não se pode querer passar para os outros uma idéia de seu próprio valor mediante a
exibição de sua sabedoria ou retidão de modo que elas pareçam maiores do que realmente
são (Ec 7.16). Na verdade, a melhor vantagem pertence àquele que tem sabedoria (Ec
7.11). Ele emprega yitrōn no sentido de “vantagem”, “ganho” ou “lucro”. […] Esse escri-
tor também entende que a sabedoria tem vantagens ou benefícios em relação à loucura
(Ec 2.13). A sabedoria mostra ao homem como vencer um problema difícil, e o conheci-
mento permite que a sabedoria preserve a vida de quem o possui (Ec 7.12; 10.10). Pro-
vérbios assinala que o trabalho árduo tem vantagem sobre a preguiça (Pv 14.23). Mas E-
clesiastes examina mais profundamente ao indagar continuamente que vantagem tem al-
90
Ana SZPICZKOWSKI, Educação e Talmud uma releitura da Ética dos Pais, p. 56.
91
R. Laird HARRIS et al., verbete
lb,h
, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p.
335-336.
50
guém com o seu labor (Ec 1.3; 3.9). A resposta é nada, especialmente se a pessoa está a-
cumulando bens que não podem ser levados na morte (Ec 2.11; 5.15)
92
.
Hēbēl e yitrōn simbolizam uma linha de pensamento dominante no livro do Eclesias-
tes: o questionamento da validade da sabedoria israelita clássica, e da idéia de que o destino
de uma pessoa seria a conseqüência direta de seus atos. Além disso, ele considera o tempo to-
do a inutilidade do esforço em juntar bens materiais e guardá-los, sem se permitir fruir a vida
na companhia de outras pessoas, dividindo esses bens e ganhando, com isso, uma vida muito
mais realizada.
A partir daí, não parece mais tão difícil definir alguns dados básicos. Primeiro, a posi-
ção polêmica diante de fatos supostamente consumados do cotidiano, com tantas questões a
serem formuladas para os detentores do poder sagrado e político, fez com que o Ec represen-
tasse um revés duro de suportar no conjunto das obras consideradas sagradas do judaísmo, e
isso explica o conflito acerca de sua inclusão no cânon judaico. Em segundo lugar, parece ter
ficado claro que este conteúdo não pode ter sido produzido na época de Salomão, e muito me-
nos por ele mesmo. Foi na época helenística que as pessoas começaram a se questionar sobre
tudo o que englobam as expressões hēbēl e yitrōn, quando estavam, mais uma vez, sendo ví-
timas da opressão estrangeira e da destruição de seus valores mais sagrados.
5.4 Ética e responsabilidade social
Na esteira das afirmações sobre “cobrança” e “distanciamento” de Deus, pode-se ima-
ginar que esse posicionamento advenha de uma grande preocupação com atitudes éticas e que
preservem o grupo social diante das circunstâncias ameaçadoras de vida. A idéia de que Deus
possa vir a cobrar determinadas atitudes humanas é que o faz parecer um ser distante, bem di-
verso da imagem paterna às vezes associada a ele no AT.
Na concepção de ética derivada desse senso de responsabilidade diante de Deus, o Ec
sugere atos de solidariedade e cidadania, como em 11.1-6:
1
Joga teu pão sobre a água
porque após muitos dias o encontrarás.
2
Reparte com sete e mesmo com oito,
pois não sabes que desgraça pode vir sobre a terra.
[…]
4
Quem fica olhando o vento jamais semeará,
quem fica olhando as nuvens jamais ceifará.
92
R. Laird HARRIS et al., verbete
!wort.yI
, op. cit., p. 691.
51
[…]
6
De manhã semeia a tua semente,
e à tarde não repouses a mão,
pois não sabes qual delas irá prosperar:
se esta ou aquela, ou se ambas serão boas.
Nessa passagem, o Ec lança mão dos argumentos da ética social e do senso de cidada-
nia e dignidade: embora seja impossível conhecer a vontade divina, esse Deus existe, e exis-
tem também regras de convívio honesto. Essas regras se referem à solidariedade (vv. 1-2), ao
trabalho (vv. 4, 6) e às conseqüências da ação, seja ela individual ou coletiva (v. 6). São elas
que demonstram a verdadeira sabedoria do indivíduo que aprende a conviver em seu meio:
“[…] não pode haver sabedoria sem compaixão, o que […] significa que a ciência não tem va-
lor se não for acompanhada de preocupação social”
93
.
Ou seja: de nada adianta conhecer tudo e não utilizar esse conhecimento para um con-
vívio social ético e solidário. De acordo com esta posição, os versículos citados se referem
àquele Deus “a quem se devem prestar contas”, diante de quem se deve ser responsável, ho-
nesto e íntegro. Ainda conforme Ec 3.14, “[…] tudo o que Deus faz é para sempre. A isso na-
da se pode acrescentar, e disso nada se pode tirar. Deus faz assim para que o temam […]”, e,
logo após, “[…] ao justo e ao ímpio Deus os julgará, porque aqui um tempo para todo pro-
pósito e um lugar para cada ação” (Ec 3.17). Estas palavras alertam que uma vida na qual to-
dos os desejos são satisfeitos, e na qual não são necessárias responsabilidade, dignidade nem
ética, torna-se vazia e sem um verdadeiro objetivo:
A partir do momento em que, em todos os domínios da vida, existem tanto boas razões
para agir quanto para não agir, qualquer ação, positiva ou negativa, não convence verda-
deiramente. Se bem que, no fim das contas, para um espírito racional, diante desse absur-
do universal e sem solução, não reste mais que renunciar definitivamente a tudo, bater a
cabeça no muro, optando por um “suicídio filosófico”[…] Nada nos resta a não ser reco-
nhecer que, se aprendermos do destino a lição que ele pode nos dar, encontraremos ali o
guia de uma filosofia cética, desesperada e muito negativa: “a negação de todos os valo-
res”
94
.
93
Fritjof CAPRA, Sabedoria incomum, p. 29.
94
“Du moment que, dans tous les domaines de la vie, il existe d’aussi bonnes raisons d’agir que de ne pas agir,
aucune action, positive ou négative, ne s’impose véritablement. Si bien qu’en fin de compte, pour un esprit
logique, devant cette absurdité universelle et sans remède, il ne resterait plus qu’à renoncer définitivement à
tout, à se casser la tête contre les murs, à opter pour un ‘suicide philosophique’ (...). Il n’en reste pas moins
que si nous prenons de la sorte la leçon qu’il aurait voulu nous donner, nous trouverons ici el bréviaire d’une
philosophie sceptique, désespérée et fort noire: ‘la négation de toutes les valeurs’”. Jean BOTTÉRO, Méso-
potamie. L’écriture, la raison et les dieux, p. 310.
52
O Ec parece querer entregar-se a esse pessimismo quando constata a inutilidade final
de muitas ões encetadas pelo ser humano (cf. principalmente Ec 2.17ss.), como se também
ele desejasse muitas coisas e fosse alguém frustrado. Mas ele acaba se afastando do desejo de
ser e/ou possuir para a reflexão tranqüila e desapaixonada: “[…] enquanto o desejo apreende
imediatamente o seu objeto, a contemplação o remove para mais longe e o torna inalienavel-
mente seu, salvando-o da cobiça da paixão”
95
. É esta “cobiça da paixão” que o Ec parece ter
superado quando apresenta suas análises críticas e distantes; ele não está à procura de um ob-
jetivo imediato para a vida, nem de um sentido que preencha o vazio do desejo não cumprido.
A vida não precisa cumprir-se ao final de uma meta almejada, mas ela tem de ser vivida ple-
namente. Ao mesmo tempo, ele afirma que, no fim das contas, a solução é alegrar-se em Deus
e ao lado das pessoas amadas, lembrando que tudo vem das mãos de Deus (8.15; 9.7-10).
5.5 Um Deus distante e impessoal?
Ec 12.1 demonstra como o autor Deus: “Lembra-te do teu Criador nos dias da tua
mocidade, antes que venham os maus dias e os anos dos quais dirás: não tenho prazer neles”.
Da mesma forma, Ec 5.1b: “[…] porque Deus está no céu, e tu sobre a terra; portanto, que tu-
as palavras sejam pouco numerosas”, e 5.3-6, trecho que se refere à responsabilidade de cum-
prir promessas e não falar em vão, além de chamar ao temor de Deus, e ainda Ec 11.9: “[…]
considera, porém, que de tudo isto terás de prestar contas”.
Nessas passagens, o Deus do Ec está distante e não se pode negociar com ele: diante
de Deus, é preciso haver responsabilidade e seriedade na condução da vida. Chama a atenção
o fato de o autor utilizar o termo
~yhiloa,
(elohīm), que evoca mais a sensação de dis-
tanciamento, tal como no relato eloísta contido no Pentateuco, e não
hwhy
(Yahweh), o
Deus “protetor” do relato javista, e de uso corrente também nos livros históricos e proféticos:
O Eclesiastes usa o termo Elohim para referir-se a Deus 40 vezes em seu livro. O uso
desse nome para Deus tem a ver com seu papel de criador soberano, que é transcendente
de sua criação. Elohim é usado particularmente para centralizar sobre Deus a sua provi-
dência universal e a soberania sobre toda a criação, fazendo dele alguém que deve ser te-
mido e adorado. […] O nome pessoal do Deus que preserva a aliança com Israel não apa-
rece no Eclesiastes, não porque, como já se sugeriu, Israel tenha se afastado da necessida-
de de uma divindade estritamente nacionalista, nem porque o Eclesiastes teria sido afas-
tado de uma relação próxima com YHWH, mas por causa da natureza universal de seu ser
95
Friedrich Schiller, apud E. CASSIRER, op. cit., p. 271.
53
(“todo”, “sob o sol”). A partir de uma característica de aplicação geral a toda a humani-
dade, o uso do nome de Deus YHWH seria impróprio
96
.
Aarre Lauha interpreta esse “Deus do Eclesiastes” da seguinte forma:
Seu Deus não é o Deus da fé israelita: a relação do ser humano com Deus é diferente nele
[no Ec] do que em geral no Antigo Testamento. O Pregador não conhece aquele Deus que
é um “tu” para o ser humano, e com quem se pode conversar
97
.
Concordando com Lauha, Otto Kaiser diz que o Ec percebe que Deus não deixa o ser
humano “espiar suas cartas”. É preciso submeter-se à sua divindade, pois um Deus previsível
seria um autômato ou um ídolo morto
98
, do qual o ser humano faz seu objeto de manipulação.
Ec 8.1-8 é uma passagem que ilustra bem essas observações, quando alerta que o ser humano
não sabe a hora de sua morte e “não é senhor do vento para reter o vento”
99
. Num texto um
pouco mais moderno, Gutiérrez diz:
Como conseqüência de suas observações e reflexões sobre a vida, o Qohelet descobriu
algo […] que ele repetirá por 6 vezes no livro, que “não bem para o homem senão co-
mer e beber e desfrutar o produto de seu trabalho”. E não isso, mas, acima de tudo, is-
so também é dom de Elohim. Porém, é um dom que Elohim distribui um tanto quanto ar-
bitrariamente. O Qohelet está dentro de uma linha bastante semítica quando afirma que
ninguém pode beber ou comer sem que Elohim o permita (3.25). A soberania de Elohim
sobre o mundo era uma afirmação, por assim dizer, clássica – e até conservadora – da teo-
logia dos predecessores do Qohelet. Mas o que o Qohelet observava no dia a dia era que
esse Elohim às vezes se tornava arbitrário e imprevisível
100
.
Essa arbitrariedade e imprevisibilidade eram o que mais angustiava o autor do livro do
Eclesiastes. Ele percebeu que não adiantava procurar um sentido para a vida do ser humano,
porque esse sentido não é produzido pela pessoa, mas vem das mãos de Deus, cujas decisões
jamais podem ser conhecidas. Isso faz com que o futuro e a morte sejam uma incógnita eter-
na.
96
“Qoheleth uses the term Elohim to refer to God 40 times in the book. The use of this name for God looks at
his role as the sovereign creator who is transcendent over his creation. Elohim is employed particularly to
drive home the point of God’s universal providence and sovereignty over all creation, who is thus to be
feared and worshipped. […] The personal name of Israel’s covenant-keeping God does not appear in
Ecclesiastes, not because, as some have suggested, that Israel had passed beyond the need for a narrow
nationalistic deity, nor because Qoheleth was estranged from an intimate relationship with YHWH
(Yahweh), but because of the universal nature of his subject (“all,” “under the sun”). With a subject of
common application to all mankind, the use of God’s name YHWH in his special covenant role with Israel, is
inappropriate”. James SAWYER, The theology of Ecclesiastes. Disponível em
http://members.aol.com/mjsawyer/, acesso em 22 abr. 2005.
97
„(...) sein Gott ist nicht der Gott des israelitischen Glaubens: das Verhältnis des Menschen zu Gott ist bei ihm
anders als allgemein im Alten Testament. Kohelet kenn jenen Gott nicht, der für den Menschen ein ‘Du’ ist
und mit dem man ein Gespräch haben kann“. Aarre LAUHA, Kohelet, p. 17.
98
O. KAISER, op. cit., p. 109-142.
99
Cf. cap. 3 deste trabalho.
100
J. L. R. GUTIÉRREZ, op. cit.
54
Dessa maneira se compreende melhor a colocação de Lauha quanto à impossibilidade
de tornar Deus um parceiro de conversa para o Ec, e qual é o ponto em que este difere de Jó.
Na medida em que Jó se dirige diretamente a Deus, cobrando dele uma justificativa por atitu-
des e “castigos” inesperados, vindos de quem se consideraria um “amigo” ou “confidente pro-
tetor”, o Ec entra numa relação de distanciamento com Deus, porque percebeu que a igno-
rância acerca de seus desígnios jamais fará dele um parceiro de igual para igual com qualquer
ser humano. Porém, ele não oferece solução nem respostas prontas para esta ignorância do ser
humano:
Enquanto outras vozes no Antigo Testamento falam com certeza absoluta sobre o sentido
da vida, o Qohelet não pode fazê-lo e não o faz. Enquanto outros afirmam conhecer a
vontade de Deus, os desígnios de Deus para ele permanecem um quebra-cabeças insolú-
vel
101
.
Existem interpretações mais pessimistas do livro do Eclesiastes; alguns comentaristas
pensam que o autor chegou à conclusão de que “[...] a ignorância e impotência do ser humano
fazem dele uma vítima à mercê do controle arbitrário do Criador, o qual determina o destino
funesto de cada um”
102
. O ponto de partida dessa colocação é a constatação de que o Criador é
um agente ativo sobre a sorte do ser humano; isso faz com que ele se preocupe com o sentido
de sua existência na terra, já que ele nada consegue sozinho e tampouco nada compreende dos
desígnios divinos. Isso se mostra em Ec 7.14: “Em tempo de felicidade sê feliz, e no dia da
desgraça reflete: Deus fez tanto um como o outro, para que o homem nada encontre atrás de
si”.
Mas o outro lado da moeda é que, ao deixar de buscar o sentido da vida, o Ec parece
não sofrer tanto quanto Jó. Ele não se rebela, à maneira deste, e se sente mais livre dos questi-
onamentos que atormentam Jó. É verdade que o Ec sofre junto com as outras pessoas quando
percebe as duas grandes limitações do ser humano: a mortalidade e a impossibilidade de co-
nhecer o futuro e, por conseguinte, a morte. Mas ele consegue passar por cima disso e chegar
a outro nível de reflexão:
101
“While other voices in the Old Testament may speak with assured certainty about the meaning of life,
Kohelet cannot and does not. While others claim to know the will of God, God’s purpose for him remain an
insoluble puzzle”. Robert DAVIDSON, Ecclesiastes and the Song of Solomon, p. 9.
102
“[...] l’ignorance et l’impuissance de l’être humaine font de lui une victime livrée au contrôle arbitraire du
Créateur qui détermine le sort funeste de chacun”. Jean-Jacques LAVOIE, Temps et finitude humaine, in:
Vetus Testamentum XLVI n. 4, p. 447.
55
Não há pranto em seu livro; não há desespero. Há somente uma comprovação que lhe pa-
rece um peso de chumbo para a humanidade; e o que acontece é que nenhum sábio pode,
honestamente, dizer que conhece as voltas que dá este mundo dos seres humanos
103
.
Nesta constatação parece estar subjacente uma idéia consoladora: se a nenhum ser
humano é dado conhecer os desígnios divinos, nem mesmo ao maior sábio, então não existe a
possibilidade de exercer poder a partir do conhecimento. A morte a todos iguala, e ninguém
consegue dominar os seus semelhantes para sempre. Entretanto, a humanidade continua a
buscar o sentido da vida no exercício do poder e na disponibilidade econômica, ambos fatores
da maior importância para conferir aparente segurança.
Por outro lado, a maioria das pessoas demonstra, em suas angústias existenciais, viver
sob o “peso de chumbo” a que se refere a citação, amenizar esse peso parece ser uma das
principais preocupações do Ec:
[…] é evidente que o Eclesiastes crê em Deus. Como filho de Israel, para quem a palavra
da Torá, dos profetas e dos sábios era sua segunda natureza, o Eclesiastes não conseguiria
questionar a realidade de Deus nem por um segundo. Dizer que o mundo existe era o
mesmo que afirmar que Deus existe. Ele concretamente atribui poder e soberania ao Deus
de Israel (2.24-26; 3.10-15; 5.19; 7.13-14)
104
.
O que o Ec questiona é aquele tipo de fé superficial e ambígua, que se move conforme
interesses negociadores e chantagistas. A do Ec é a visão de mundo integral, um mundo no
qual têm espaço Deus, toda a criação e, dentro dela, o ser humano, mesmo que ele não seja
um “parceiro” real de Deus. Mas a isso não se pode chamar de “fé” no sentido tradicional. Es-
sa questão fica clara quando se percebe que o Ec não incentiva as pessoas a uma que acaba
se tornando vazia:
Dificilmente se achará um protesto e uma contestação mais forte contra todo e qualquer
tipo de fé, e dessa forma contra a moderna fé, em crescimento e progresso, que no livri-
nho do Pregador, o qual contrapõe sem o murchar ao crescer, a desilusão à ilusão
quanto ao progresso (p.ex. 4.13-16). O autor é desprezado por isso, freqüentemente, com
a etiqueta de “cético” ou “pessimista”. [...]; torna-se tanto mais admirável que mesmo
uma voz desse tipo possa se tornar ativa na Bíblia, lembrando que não se pode esperar
103
“No hay llanto en su libro; no hay desesperanza. Hay sólo una comprobación que le parece un peso de plomo
para la humanidad; y es que ningún sabio puede lealmente decir que sabe las vueltas que da este mundo de
los hombres”. André BARUCQ, Qoheleth, p. 29.
104
“It is clear that Qoheleth believes in God. As a son of Israel for whom the word of the Torah, the Prophets,
and the Sages were second nature, Qoheleth could not doubt the reality of God for an instant. To say that the
world exists is the same as saying that God exists. He consistently attributes power and sovereignty to the
God of Israel (2:24-26; 3:10-15; 5:19; 7:13-14)”. Rosemary DEWEY, Qoheleth and Job: Diverse Responses
to the Enigma of Evil, in: Spirituality Today, v. 37, p. 314-325. Disponível em www.spiritualitytoday.org/
spir2day/ 853743dewey.html, acesso em 08 mar. 04.
56
que a salvação do mundo esteja em progressos sociais, e muito menos em progressos na
ciência e na técnica
105
.
5.6 A falência do esquema ação-retribuição
A época em que viveu o Ec foi marcada pela crise da teologia da retribuição, e é por
isso que tanto ele quanto Jó questionam: o bem e o mal têm sua retribuição neste mundo?
[…] o Eclesiastes nega radicalmente a retribuição terrena de bem e mal. Essa é uma das
afirmativas mais importantes do livro de Eclesiastes: a experiência contesta as respostas
tradicionais (Ec 7.25-8.14). A felicidade é algo fugaz e se encontra consolo na fruição
daquelas alegrias simples que o cotidiano é capaz de fornecer (Ec 3.12-13; 8.15; 9.7-9).
Mas mesmo a fruição das alegrias cotidianas não consegue consolar o ser humano. Do
começo ao fim ele permanece insatisfeito (Ec 3.21; 9.10; 12.7). Com isso, o Eclesiastes
demonstra definitivamente que o esquema ação-retribuição não funciona mais. Mas o li-
vro não traz respostas novas. As seguranças tradicionais, as antigas respostas de Israel es-
tão abaladas, mas ainda não apareceu nada de novo em seu lugar
106
.
A citação se refere aqui à retribuição terrena de bem e mal. Nesse contexto, é claro
que “ainda não apareceu nada de novo em seu lugar”. Mas o Ec considera o fato de que tam-
bém a Deus se tem de prestar contas (Ec 11.1ss), e que existem outras formas de responsabili-
dade pelos próprios atos. Por outro lado, as afirmações de Sieger citadas acima demonstram
que a opinião geral sobre o Ec é que ele seria cínico e pessimista porque ele apenas coloca tu-
do em dúvida, sem oferecer soluções ou propostas concretas para todos os problemas que se
constatam. Ser cínico e pessimista significaria, nesse contexto, assumir uma postura tanto fria
e desinteressada quanto negativista e depressiva. O cinismo pode evoluir para uma Weltan-
schauung defendida diante de todo e qualquer fenômeno da existência. Seria esse o caso do
Ec?
105
„Schwerlich findet man einen gründlicheren Ein- und Widerspruch gegen jeglichen und so erst recht gegen
den heutigen Wachstums- und Fortschrittsglauben als gerade im Büchlein Kohelet, das dem Wachsen un-
erbittlich das Verwelken, der Fortschrittsillusion die Desillusionierung gegenüberstellt (z.B. 4,13 – 4,16). Der
Verfasser wird deswegen gerne mit dem Etikett ‘Skeptiker’ oder ‘Pessimist’ abgetan. [...] ist es nur umso
bemerkenswerter, daß selbst eine solche Stimme in der Bibel laut werden kann, daran erinnernd, daß das Heil
der Welt weder von gesellschaftlichen Entwicklungen noch gar von Fortschritten der Wissenschaft und der
Technik zu erhoffen ist“. Kurt MARTI, Nimm und lies der Prediger Salomo. Disponível em
www.stub.unibe.ch./extern/zeitschrift/schnaeggli.4.html, acesso em 10 abr. 2001.
106
„(...) leugnet Kohelet ganz radikal die irdische Vergeltung von gut und böse. Das ist eine der wichtigsten
Aussagen des Kohelet-Buches: Die Erfahrung widerspricht den überkommenen Antworten (Koh 7,25-8,14).
Das Glück ist etwas flüchtiges und man findet seinen Trost lediglich im Genießen jener bescheidenen
Freuden, die das Dasein zu geben vermag (Koh 3,12-13; 8,15; 9,7-9). Aber selbst das Genießen der Freuden
des Daseins kann den Menschen nicht trösten. Er bleibt von Anfang bis zum Ende unbefriedigt (Koh 3,21;
9,10; 12,7). Damit zeigt das Buch Kohelet endgültig, daß der Tun-Ergehen-Zusammenhang nicht mehr greift.
Aber das Buch bringt keine neue Antwort. Die traditionellen Sicherheiten, die alten Antworten Israels sind
erschüttert, aber an ihre Stelle ist noch nichts Neues getreten“. Jörg SIEGER, Kohelet. Disponível em http://
www.joerg-sieger.de/bibel.html, acesso em 18 mar. 04.
57
O Ec considera o universo como o conjunto da criação divina, dentro do qual o ser
humano é uma partícula ínfima; mas esse mesmo ser humano, tão limitado, conseguiu evoluir
de tal maneira que suas angústias, carências, alegrias e realizações fazem parte inerente do
cosmos, não podendo ser ignoradas pelo Criador. O ser humano busca respostas junto a Deus
para seus questionamentos, que de maneira alguma podem ser subestimados
107
.
Por outro lado, além de pensamentos sobre a teologia e a religião, o Ec lança mão da
antropologia para perguntar, não pelo sentido da vida, mas pelas saídas válidas para fazer com
que essa vida seja ao menos tolerável, mesmo que do ponto de vista apenas humano, de con-
vivência, solidariedade e tolerância:
Primeiro, o livro desenvolve um ensinamento sobre o cosmo; ele é o palco sobre o qual
vão e vêm as pessoas efêmeras. A esta parte se segue um trecho principal, o ensinamento
sobre o ser humano (antropologia): o livro do Pregador pergunta pelo ser humano, nem
mais e nem menos e ele pergunta como é possível viver o sentido e a alegria da vida,
apesar de todas as experiências contrárias
108
.
Aparecem as preocupações do Ec, que vão além daquilo que os outros seres huma-
nos também constatam, mas com as quais não se ocupam nessa profundidade, e que certos
textos bíblicos apenas reproduzem: os problemas existem, e os alvos das queixas se deixam
encontrar por todo lado, dependendo da situação. Às vezes são os dominadores estrangeiros,
às vezes os opressores que detêm o poder econômico mas poucas vezes se percebe uma ten-
tativa real de resolver as situações de conflito.
O livro dos Salmos mostra queixas amargas de seu autor sobre sua situação (p.ex. Sl 6,
7, 10, 12, 13 passim). O livro de mostra a revolta do ser humano contra os desígnios inson-
dáveis de Deus, mas também a final aceitação do seu poder incontestável. Mas o livro do E-
clesiastes tenta ir além disso tudo e propor alternativas concretas, que partem do temor a Deus
e de sua constante lembrança (cf. Ec 5.1-7 e 12.1-7). Essas propostas é que formam o chama-
do “fio vermelho” que tantos comentaristas procuram:
107
Ludger SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Kohelet. Disponível em ktf.uni-passau.de/iinstitutionen/
schwienhorst-schönberger/pubweb/html, acesso em 12 mar. 2005.
108
„Zunächst entwirft das Buch eine Lehre vom Kosmos; er ist die Bühne, auf der die vergänglichen Menschen
kommen und gehen. Daran schließt sich der Hauptteil, die Lehre vom Menschen (Anthropologie) an: Das
Buch Kohelet fragt nach dem Menschen, nicht mehr und nicht weniger und es fragt danach, wie trotz aller
gegenteiligen Erfahrungen Sinn und Freude erlebt werden kann“. Ibid.
58
Como um fio vermelho, o convite para entregar-se à alegria (dada por Deus) em face da
morte (Ec 2.24.26; 3.13.22; 5.17-19; 7.14f.; 8.15; 9.7) perpassa o livro do Eclesiastes. O
Sitz im Leben dessa temática é, na Antigüidade, a ceia festiva, o simpósio como “o lugar
em que a alegria não é apenas desejada ou pedida, mas vivenciada na mais profunda in-
tensidade, onde se festejava a vida” (Christoph Uehlinger). Dessas festas também faziam
parte canções […] e um discurso adequado sobre verdades breves e acertadas (cf. Sir
32.3-9), tal como elas apareceriam depois, no Ec, em ordem solta (cf. também o pano de
fundo da refeição coletiva em várias palavras de Jesus). Era então que os sábios judeus
discutiam posições contidas nas canções estrangeiras que eram cantadas nessas ocasiões.
Bastante próxima da sabedoria hebraica parecia estar a egípcia, como mostra […] um tre-
cho que pode ter surgido no séc. II a.C., no ambiente de comerciantes urbanos: „O senhor
sobre um milhão, que elogiara a poupança que fizera,/ não poderá levá-la em sua mão até
o monte (dos mortos). / […] Grande é o sofrimento para aqueles que deixaram o caminho
/ (e) tiveram de deixar o que guardaram para outro”
109
.
5.7 Uma reflexão pessimista e desenganada sobre morte e vida?
Não unanimidade quanto à real intenção do Ec ao revelar suas reflexões: seria ele
um “ensinador do prazer natural, ou da licenciosidade epicurista”? Ou então “um cínico ado-
rável, um misantropo amargurado?”
110
A questão do “cinismo” enquanto filosofia de vida é
uma constante em seus escritos, mas numa acepção bem diferente daquela que se costuma a-
tribuir a esse termo. Poder-se-ia interpretar o “cinismo” do Ec como um posicionamento di-
vergente da rebeldia e da insistência na própria justiça e retidão, tal como se encontra em Jó;
existe apenas a constatação de que as coisas o como são, e que isso deveria levar a uma
compreensão da vida como fruição das pequenas coisas boas, sem a espera de grandes mila-
gres. O Ec seria um “intelectual”, porém num sentido totalmente desconhecido em todo o AT:
por ter sofrido influências lingüísticas, culturais e filosóficas da cultura grega, sua produção se
orienta também por estas concepções:
109
„Wie ein roter Faden durchzieht das Buch Koh die Aufforderung, sich angesichts des Todes (gottgeschenk-
ter) Freude hinzugeben (Koh 2,24.26; 3,13.22; 5,17-19; 7,14f.; 8,15; 9,7). Sitz im Leben dieses Motivs ist in
der Antike das festliche Gelage, das Symposion ‚als Ort, wo die Freude nicht nur gewünscht oder erbeten,
sondern in höchster Intensität erfahrbar, das Leben gefeiert wurde’ (Christoph Uehlinger). Zu solchen Festen
gehörten auch Gesänge […] und der passende Vortrag knapper, treffender Weisheiten (vgl. Sir 32,3-9), wie
sie in Koh nun in locker geordneter Sammlung vorliegen (vgl. auch den Hintergrund des Gastmahls vieler Je-
susworte). Dabei setzten sich die jüdischen Weisen oftmals mit Positionen ausländischer Lieder auseinander,
die bei solchen Anlässen gesungen wurden. Recht nahe bei der hebräischen Weisheit schien die ägyptische
zu sein, wie ein […] Ausschnitt zeigt, der im 2. Jh. v. Chr. im Milieu städtischer Kaufleute entstanden sein
dürfte: ‚Der Herr über eine Million, der das Sparen gerühmt hat,/ wird sie nicht in seiner Hand auf den Berg
(der Toten) mitnehmen (können)./ [...] Groß ist das Leid für die, die den Weg verlassen haben/ (und) ihre Er-
sparnisse einem anderen hinterlassen (müssen)’“. Thomas STAUBLI, Kohelet im Spiegel symposiatischer
Weisheit, Schweizerische Kirchenzeitung 1988. Disponível em http:// www.kath.ch/skz/, acesso em 20 mai.
2005.
110
R. GORDIS, op. cit., p. 6. „[…] ein liebenswerter Zyniker, ein verbitterter Misanthrop […]“. Jonathan
MAGONET, Wie ein Rabbiner seine Bibel liest, p. 14.
59
Uma maneira de aproximação a seu pensamento é considerá-lo um teólogo, ou talvez
mesmo um apologista, que tentava encontrar um meio de reconciliar a judaica que ele
herdara com o mundo como ele o conhecia: um mundo moderno, submetido a rápidas
mudanças. As crenças tradicionais do judaísmo tinham de ser “atualizadas” em certos as-
pectos; e o Qohelet questionava radicalmente sua formulação tradicional quando julgava
necessário fazê-lo. Mas, ao tornar públicas as suas idéias, ele não tencionava produzir
uma nova geração de apóstatas; ao contrário, ele queria preparar seus discípulos para se-
rem crentes judaicos num mundo em que havia várias religiões e filosofias chamando a si
a posse da verdade […] e, ao mesmo tempo, ele estava procurando a verdade para ele
mesmo
111
.
Para ilustrar essa avaliação, tome-se o exemplo de Ec 9.1ss
112
: essa passagem está
construída de forma a que se possa ligar sua argumentação ao termo esperança: os vv. 1-4 fa-
lam da morte como aquela que tudo anula na vida do ser humano, terminando com a constata-
ção de que “um cão vivo é melhor que um leão morto”; segue-se uma observação de cunho
irônico sobre a vantagem dos vivos sobre os mortos, porque os vivos pelo menos sabem que
vão morrer, enquanto os mortos não sabem mais nada (v. 5). Porém, os versículos subseqüen-
tes (7-10) mostram claramente que o Ec também se refere a Deus e à esperança por uma vida
abençoada por ele quando o ser humano assume uma atitude de temor/respeito
113
.
A idéia de que, com a morte, tudo desaparece e este mesmo ser humano aceito por
Deus voltará a ser o que era antes de sua criação é reforçada pela menção ao sheol: nada
existe ali que possa preservar a memória do ser humano (cf. v. 10) não restando nada, por-
tanto, de todas as obras feitas “debaixo do sol”. Tal como em 7.7-10, o sheol é descrito
como um reino de silêncio e esquecimento, e o Ec parece concordar com essa imagem
114
. A
partir dessa compreensão, o sheol seria a expressão contrária do
vm,V,h; tx;T;
(tāhāt hašēmēš ):
111
“One way of approaching his thought is to see him as a theologian, or perhaps even as an apologist who was
trying to find a way of reconciling the Jewish faith which he had inherited with the world as he knew it: a
modern world which was undergoing rapid change. The traditional beliefs of Judaism had to be ‘brought up
to date’ at certain points; and Kohelet radically questioned their traditional formulation when he judged it
necessary to do so. But in putting forth his ideas he was not intending to prepare a new generation of
apostates; rather he was seeking to equip his pupils to be Jewish believers in a world where there were many
religions and philosophies claiming to possess the truth […]. And, at the same time, he was seeking truth for
himself”. R. N. WHYBRAY, apud Alan CORRÉ, Qohelet. Disponível em http:\corre@csd.uwm.edu., aces-
so em 20 abr. 05.
112
Cf. cap. 3 deste trabalho.
113
Walther ZIMMERLI, Der Mensch und seine Hoffnung im Alten Testament, p. 28-29.
114
K. FARMER, op. cit., p. 204.
60
alguns indícios de que o Qohelet e sua audiência podem estar considerando novos
meios de interpretar as tradições antigas. Por exemplo, o uso freqüente do termo “debaixo
do sol” nesse livro parece mostrar que ou a audiência ou o pregador tinham começado a
especular sobre a vida após a morte como uma forma de resolver a dissonância entre as
tradicionais expectativas da retribuição e a realidade observada
115
.
Enquanto a expressão sheol passa a idéia do “nada”, o tāhāt hašēmēš representa a vida
diária, concreta, o trabalho visível e muitas vezes penoso. O Ec a impressão de que, da
mesma forma como o trabalho “debaixo do sol” é a parte visível da vida do ser humano, exis-
te outra esfera oculta, desconhecida – o sheol. Ele reflete sobre o dilema de ter de aceitar que,
após a morte física, o ser humano vá parar no sheol e com isso termine tudo. Mas o próprio Ec
se volta contra as conseqüências desse raciocínio, porque ele produz apatia e falta de interesse
pela vida.
Por outro lado, a saída para esse dilema também poderia ser a fuga para uma alegria
inconseqüente e infantil, que não se preocupa com nada, como forma de dissimular a angústia
da vida nessas circunstâncias:
[…] não se consegue encontrar uma relação causal entre o trabalho e o seu resultado, nem
entre o comportamento de alguém e a sua . O Eclesiastes propõe uma solução prática:
goze as coisas boas da vida, aprecie as pessoas com quem você convive, aprecie seu ali-
mento e o vinho. Mas isso não quer dizer que o Eclesiastes seja um pregador da alegria.
[…] A alegria não é um narcótico ou uma droga para manter o povo alienado. O Eclesias-
tes exorta o povo para a fruição porque não há lucro certo, nem ganho permanente. O fato
de você poder fruir de alguma coisa é sua porção na vida. Então, por favor, assuma essa
porção e aprecie-a
116
.
A importância dessa citação está no alerta de que a alegria não é um “narcótico”. De
fato, o que o Ec procura evitar é refugiar-se em soluções falsas e ilusórias. Partindo do não-
saber do futuro e da morte, o Ec propõe uma reflexão baseada na pergunta: “Quem sabe o que
é bom para o ser humano?” Esta pergunta está alicerçada sobre dois termos básicos: saber e
115
“There are some indications that Qohelet and his audience may be considering new ways to reinterpret the
old traditions. For instance the frequent use of the term under the sun’ in this book seems to indicate that
either the audience or the speaker had begun to speculate about life after death as a way of resolving the
dissonance between traditional retributive expectations and observed reality”. K. FARMER, op. cit., p. 150.
116
“(...) no causal relationship can be found between toil and result, nor between one’s behaviour and faith.
Qoheleth proposes a practical solution: enjoy the good things of life, appreciate the people you are living
with, enjoy your food and wine. But this does not mean that Qoheleth is a preacher of joy (...). Joy is not a
narcotic or drug, to keep people quiet. Qoheleth exhorts people to enjoy, because there is no steady profit, no
everlasting gain. The fact that you can enjoy something is your portion in life. So, please, take that portion
and appreciate it”. Ellen van WOLDE, in: Concilium 2000/4, Editorial. Disponível em http://www.itf.org.br
/index. php?pg= revistas2&id=3, acesso em 10 abr. 2004.
61
bom
117
: do cap. 1 ao 6 trabalha-se a questão do saber, enquanto a segunda metade do livro se
ocupa em identificar o que é bom para o ser humano. Ec 6.12 poderia ser o versículo central
que separa a maneira de perguntar do Ec em dois blocos argumentativos
118
: “a) Quem sabe o
que convém ao homem durante a sua vida, ao longo dos dias contados de sua vida de vaidade,
que passam como sombra? b) Quem anunciará ao homem o que vai acontecer depois dele de-
baixo do sol?”
A preocupação acerca do que acontecerá ao ser humano “depois dele” parece estar
sendo relativizada através desta subdivisão, embora esteja bastante presente. Chama a atenção
que, paralela a esta preocupação, aparece sempre a pergunta “quem anunciará...?”, como se o
ser humano necessitasse de constantes admoestações e advertências sobre o seu futuro. A
constatação que se faz aqui é que não ninguém mais qualificado que o próprio Deus para
levar a cabo este anúncio (Ec 1.1ss).
A questão do saber enquanto ciência retorna nessa discussão acerca do cap. 6 do livro
do Eclesiastes. Coloca-se em xeque a quem pertence a sabedoria última, ao perguntar: “quem
anunciará?” Pois, para anunciar, que se ter a plenitude do conhecimento. E quem tem a
plenitude do conhecimento, senão Deus? Dessa maneira, responde-se à pergunta eterna conti-
da nesse capítulo: não será o ser humano que satisfará a angústia causada pelas questões a-
temporais e universais. É necessário entrar numa outra esfera da existência para conhecer – ou
não, uma vez que ninguém sabe o que acontece quando se morre. Anulam-se assim todas as
conjeturas inúteis, na visão do Ec. E é a partir desse reconhecimento que a vida pode ser pra-
zerosa, uma vez que as preocupações básicas estão resolvidas por si mesmas, dada a impossi-
bilidade de sua resolução.
O teólogo Saadia Gaon resume assim os conteúdos do livro do Eclesiastes:
1. O ser humano foi criado somente como um morador temporário neste mundo.
2. Salomão acumulou mais riqueza e bens que qualquer outra pessoa poderia esperar para
si mesma e, apesar disso, no final teve de desistir de tudo. A humanidade tem de aprender
com isso, e não tentar acumular objetos inúteis, mas somente coisas boas, de forma que se
possa estar bem preparado para a última e decisiva viagem.
3. Há uma diferença entre sabedoria e insensatez, e é melhor escolher a sabedoria.
4. Deve-se temer a Deus e observar os mandamentos dados à humanidade através de seus
profetas.
117
K. FARMER, op. cit., p. 151.
118
Ibid., p. 151.
62
5. Nesse mundo, uma pessoa é recompensada pela honestidade, e isso garante uma boa
posição numa existência futura. Os pecadores também são parcialmente punidos nesse
mundo. Por isso, dever-se-ia levar deste mundo somente aquilo que supre as necessidades
mínimas, escolhendo, ao invés, tornar-se pleno do temor de Deus e dos caminhos divi-
nos
119
.
Pode-se notar, na argumentação de Gaon, que na verdade nem interessa quem foi o
verdadeiro autor do texto, no que se refere ao conteúdo de sua mensagem. A atribuição do
texto a Salomão, no item 2 acima, nada altera na seriedade da admoestação. No máximo, po-
der-se-ia discutir o item 5, que reproduz a concepção do Tun-Ergehen-Zusammenhang.
A pesquisadora Alrun Feurstein destaca três termos-chave que têm marcado a pesquisa
sobre o livro do Eclesiastes, e propõe uma desconstrução das pesquisas sobre o texto como
um todo: as acusações de ateísmo, pessimismo e fatalismo condensam toda a carga de precon-
ceitos existentes acerca deste livro. Essas acusações mais uma vez mostram o espírito que
dominava a sabedoria israelita tradicional na época do Ec. Na verdade, parece que o livro do
Eclesiastes atemoriza por suas verdades inevitáveis:
* O livro do Eclesiastes não é ateísta; ele justamente ensina como é sem sentido uma vida
sem Deus, e exorta ao temor de Deus.
* O livro do Eclesiastes não é pessimista; ele simplesmente avalia a vida sem Deus de
forma realista, mas depois sabe fruir essa vida com Deus.
* O livro do Eclesiastes não é fatalista. É certo que ele ensina inequivocamente que Deus
tem tudo em suas mãos, e que o ser humano não consegue entender sua vontade soberana,
mas somente pode aceitá-la. Mas o Eclesiastes chega à conclusão, por um lado, de que
devemos apreciar os dons de Deus e, por outro lado, ele ensina a grande responsabilidade
do ser humano diante de Deus, e instruções éticas diretas, tanto quanto provérbios é-
ticos
120
.
119
“1. Man was created only as a temporary resident of this world. 2. Solomon accumulated more wealth and be-
nefits than any other person can possibly hope for, yet ultimately he had to give all of it up. Let mankind
learn from this, and not seek to accumulate useless objects, but good deeds alone, so that he or she may have
proper provision for that long ultimate trip. 3. There is a difference between wisdom and folly, and it is better
to choose wisdom. 4. One should fear God and observe the laws conveyed to mankind by his prophets. 5. In
this world a person is rewarded for righteousness, and it stands us in good stead in a future existence. The wi-
cked get partially punished in this world too. Therefore one should take from the world only one’s necessities
choosing rather to fill oneself with the fear of God and godly ways”. Saadia GAON, Hovot Halevavot, apud
A. CORRÉ, op. cit.
120
„Das Buch Kohelet ist nicht atheistisch, sondern lehrt gerade wie sinnlos ein Leben ohne Gott ist und ruft zur
Gottesfurcht auf. · Das Buch Kohelet ist nicht pessimistisch, sondern schätzt das Leben ohne Gott nur rea-
listisch ein, um dann aber mit Gott das Leben zu genießen. · Das Buch Kohelet ist nicht fatalistisch. Es lehrt
zwar unmißverständlich, daß Gott alles in der Hand hat und wirkt und daß der Mensch Gottes souveränen
Willen nicht verstehen, sondern nur annehmen kann. Der Prediger folgt daraus aber einerseits, daß wir Got-
tes gute Gaben genießen sollen, und andererseits lehrt er die große Verantwortung des Menschen Gott ge-
genüber und gibt direkte, ethische Anweisungen ebenso wie ethische Sprichwörter“. Alrun FEURSTEIN,
Sinnsuche im Leben heutiger Menschen. Disponível em http://arche-gemeinde.de/predigt/predigt.html, acesso
em 04 mar. 04.
63
6. Das influências do Antigo Oriente Médio à vivência do processo de helenização na Pa-
lestina pós-exílica
6.1 O mundo do Antigo Oriente Médio
Avaliar-se-á agora a possibilidade de o Ec ter sido influenciado pela literatura do An-
tigo Oriente Médio em seu desenvolvimento cultural. É bastante provável que ele tenha tido
acesso também aos bens culturais gregos anteriores ao processo de helenização na Palestina; e
a sinagoga de Jerusalém, pelo menos, deve ter guardado respeitáveis coletâneas de obras da
região, conseguidas em intercâmbios através das muitas rotas comerciais das quais a cidade
era um dos pontos de maior importância. Se essa hipótese tiver algum fundamento, pode-se
afirmar que a discussão do Ec com a concepção grega de mundo já vinha de épocas anteriores
à influência direta do processo de helenização, e que ela atingiu seu ápice nessa época.
Para iniciar com o entorno das culturas do Antigo Oriente Médio, pode-se dizer que
havia certa semelhança de Weltanschauung entre elas, fazendo com que houvesse um “bloco”
relativamente homogêneo e distinto em relação ao mundo mediterrâneo ocidental. Isso se
mostra, p.ex., na acepção de “ordem universal”, que se pode encontrar na sabedoria mesopo-
tâmica, egípcia e israelita antiga com igual clareza e intensidade:
[…] a ordem primeva que dirige os deuses e o mundo é chamada pelos sumérios de ME,
pelos egípcios de Maat e pelos israelitas de S
e
dāqāh. A arte de viver sapiencial consiste
em reconhecer a ordem universal na consumação da vida e em fortalecê-la através da a-
ção em “justiça” (axioma: a justiça cria šālōm, “salvação, paz”)
121
.
Esses princípios se encontram registrados desde os documentos mais antigos de que se
tem notícia, como a Epopéia de Gilgamesh e o Código de Hamurábi, textos que buscaram
harmonizar a convivência entre as pessoas a partir de leis básicas que levavam em conta a sa-
bedoria popular, fruto da experiência de vida. Principalmente a sabedoria egípcia parece ter
sido bem aceita na experiência de vida espiritual de Israel:
A sabedoria da corte e da cidade em Israel é intercultural de uma forma específica. Ela es-
tuda e trabalha as tradições sapienciais dos países vizinhos, principalmente a sabedoria do
Egito; assim, p.ex., encontra-se no livro dos Provérbios um trecho mais longo (22.17-
23.11) que representa uma tradução do ensinamento sapiencial egípcio de Amenemope.
Podemos partir do fato de que na academia dos nobres e funcionários em Jerusalém eram
121
„[…] die Götter und die Welt steuernde Urordnung nennen die Sumerer ME, die Ägypter Maat und die
Israeliten S
e
dāqāh. Weisheitliche Lebenskunst besteht darin, die allumfassende Ordnung im Lebensvollzug
zu erkennen und durch das Tun von ‚Gerechtigkeitzu festigen (Axiom: Gerechtigkeit schafft šālōm, ‚Heil,
Frieden’)“. Erich ZENGER, Einleitung in das Alte Testament, p. 292.
64
traduzidas, lidas e ensinadas obras da sabedoria e da poesia egípcia, principalmente a líri-
ca amorosa egípcia
122
.
A religião egípcia, à maneira de outras religiões mediterrâneas conhecidas, era teísta,
ou seja, partia-se da existência de vários deuses e aceitava-se sua influência no mundo dos se-
res humanos. Característica dominante e diferenciadora das demais religiões era a representa-
ção muitas vezes zoomórfica destes deuses. Além deles, os egípcios conheciam também a en-
tidade Ma’at, que encontra correspondência na sabedoria personificada do sistema simbólico
israelita
123
. O termo Ma’at corresponde à descrição de uma vida “em equilíbrio”, ética e mo-
ralmente defensável diante dos deuses no momento do julgamento final. A Ma’at é a ordem
cósmica em sua essência: ela abrange o divino e a natureza, o reinado, a sociedade e as rela-
ções humanas. Encontram-se imagens dessa ordem cósmica em forma de balança o equilí-
brio ou em instrumentos musicais, que produzem a harmonia dos sons, ou ainda como pen-
dente no pescoço do juiz responsável por um julgamento justo
124
.
Alguns deuses egípcios são conhecidos por fazerem parte ativa do chamado juízo dos
mortos; realça-se o deus Toth como um dos grandes deuses que eram adorados também fora
do vale do Nilo até o fim da Idade Antiga, tal como o Hermes Trismegisto grego. Toth é o in-
ventor da escrita, e, como tal, deus protetor de todos os estudantes e escribas. Também no
mundo dos deuses ele é o escriba, o secretário dos deuses, o qual cria suas cartas e as que
chegam. Não somente a escrita, também a multiplicidade das nguas é derivada dele, e no a-
lém ele serve de tradutor àquelas pessoas que não falam egípcio, durante o juízo dos mortos.
O deus Toth é um dos poucos não representados em forma de animal.
Amon era o deus que representava o sopro divino, o alento de vida concedido ao ser
humano. O nome Amon parece significar “o oculto”, o que às vezes se interpreta como “aque-
le que oculta seu nome”. Seu elemento é o ar em movimento, o vento que se sente e se ouve,
mas que não se pode ver. Amon é o deus absconditus, ineffabilis et omnipraesens: ele age em
cada ser humano, vivifica o corpo de todos os seres viventes, e foi-lhe atribuída uma “alma
122
„Die höfisch-städtische Weisheit Israels ist in besonderer Weise interkulturell. Sie studiert und rezipiert die
Weisheitsüberlieferungen der Nachbarstaaten, insbesondere die Weisheit Ägyptens. So findet sich beispiels-
weise im Buch der Sprichwörter ein größerer Abschnitt (22,17-23,11), der eine Übersetzung der ägyptischen
Weisheitslehre des Amenemope darstellt. Wir können davon ausgehen, daß an der Jerusalemer Prinzen- und
Beamtenakademie ägyptische Weisheitsschriften und ägyptische Poesie, insbesondere ägyptische Liebesly-
rik, übersetzt, gelesen und gelehrt wurde“. E. ZENGER, op. cit., p. 293.
123
Silvia SCHROER, Die Weisheit hat ihr Haus gebaut, p. 14.
124
Ibid., p. 14-15.
65
universal”. Traços desse deus parecem se reproduzir na descrição de Javé quando do encontro
com Moisés na sarça ardente (Êx 3.2): um ente de quem nada se pode dizer e a quem não se
pode ver, mas que é onipresente e todo-poderoso, e portanto também senhor da vida e da mor-
te. Mas em diferenciação ao Deus israelita,
[…] Amon-Ra não é o soberano dos caminhos e destinos históricos do povo ou do coleti-
vo, mesmo que ele também possa ser invocado por auxílio enquanto deus do indivíduo.
Diferentemente, IHWH-Elohim” é o Deus que interfere na história da humanidade, que
centraliza radicalmente as esperanças humanas, que confere segurança e futuro segundo
seus próprios critérios apenas
125
.
6.1.1 O juízo dos mortos egípcio
Quanto ao conhecido juízo dos mortos, descrito no Livro dos Mortos egípcio, pode-se
observar alguns detalhes que remetem a certos relatos do AT (p.ex. a questão da balança que
pesa o coração do morto, cf. Dn 5.27). O processo de julgamento do morto se dava da seguin-
te forma: diante dos juízes havia uma balança; num dos pratos estava o coração do morto,
como sede da memória e das emoções. No outro prato havia, como contrapeso, um sinal escri-
to ou um símbolo da Ma’at, quase sempre uma pena levíssima. Osíris era o julgador máximo
nessa cerimônia e tinha um colegiado de 14 divindades assistentes; a Ma’at era sua protetora.
O falecido vinha até Osíris trazido por Anúbis e o secretário, o deus Toth, passava a registrar
todas as suas declarações. Enquanto a afirmação fornecida pelo morto correspondesse à ver-
dade, a balança permanecia em equilíbrio, mas qualquer incongruência em suas declarações
pesava mais no lado do coração e fazia subir o leve prato do contrapeso. Toth registrava em
sua prancheta cada declaração que fizesse o fiel da balança se desequilibrar. Se o morto fosse
considerado maldito, sua alma era devorada por um ser apavorante, o qual estava a postos
ao lado da balança, pronto para se atirar sobre a vítima. Mas se o morto fosse absolvido, podia
entrar no reino de Osíris. Havia, porém, atenuantes: o destino da vida encontrava compreen-
são, miséria ou morte precoce facilitavam o julgamento
126
.
O Livro dos Mortos egípcio é uma das provas mais importantes do papel que desem-
penhavam os deuses na vida e, antes de tudo, na morte das pessoas. Como mais um exemplo
125
„Doch ist Amun-Re keinesfalls der Souverän der geschichtlichen Wege und Schicksale des Volkes oder der
Gemeinschaft, wenngleich er auch als Gott des Einzelnen um Hilfe angerufen werden kann. JHWH-Elohim’
ist demgegenüber der in die Menschheitsgeschichte eingreifenden, die menschlichen Hoffnungen absolut bin-
dende Gott, der nach ureigenem Ermessen Sicherheit und Zukunft gewährt“. Manfred GÖRG, Die Beziehun-
gen zwischen dem alten Israel und Ägypten, p. 152.
126
Egon FRIEDELL, Ägyptische Totenbücher, in: Stephan WEHOWSKY, Die Welt der Religionen – ein
Lesebuch, p. 136.
66
de fonte literária extra-bíblica, o texto egípcio “Os ensinamentos para o rei Merikare” de-
monstra a Weltanschauung egípcia dentro do mesmo contexto de morte e juízo dos mortos:
[…] os juízes que julgam o angustiado,
tu sabes que eles não têm compaixão
naquele dia do juízo do oprimido,
na hora de se cumprir a lei.
É terrível aquele que acusa sabendo de tudo.
Não te fies na duração dos anos!
Eles consideram o tempo de viver como uma hora.
Se o ser humano sobreviver após “aportar”,
seus atos serão colocados a seu lado como resultado final.
A vida lá, porém, é eterna.
Tolo é aquele que faz o que eles reprovam.
Quem chega até eles sem transgressão,
será como um deus naquele lugar,
caminhando livremente, como os senhores da eternidade […] 127
Note-se que aqui não existe um Deus, como Javé para os israelitas, que é o único a de-
ter o poder de julgar as pessoas vivas e as que morreram. Ademais, para os egípcios o jul-
gamento não acontece no momento da morte, e sim o morto tem de atravessar vários obstácu-
los até chegar diante dos juízes “do além”, que estão prontos para julgar o morto com toda ri-
gidez necessária. Estes juízes pensam apenas no cumprimento das leis que deveriam ter orien-
tado o comportamento do morto. Não existe, neste trecho dos “Ensinamentos...”, a mais tênue
idéia de “misericórdia” ou atenuantes que possam aliviar o juízo acerca do morto, mesmo que
essas atenuantes às vezes acabem sendo aplicadas em outras circunstâncias (como se viu,
p.ex., no Livro dos Mortos).
Outro aspecto é o de que o juiz responsável pelo julgamento sempre sabe tudo e, por-
tanto, o chamado “processo de acusação” passa a ser mera farsa: cabe ao acusado assumir
seus atos – já que eles são previamente conhecidos do juiz – , e é isso que vai salvá-lo ou con-
dená-lo. A questão de assumir a culpa sempre é mais importante que a culpa em si, e se o a-
cusado falha nesse ponto pode até mesmo ser condenado por coisas que não fez: a culpa está
no fato de alguém querer eximir-se de sua responsabilidade.
127
„[…] Die Richter, die den Bedrängten richten, / du weißt, daß sie nicht milde sind / an jenem Tage des
Richtens des Bedrückten, / in der Stunde des Erfüllens der Vorschrift. / Schlimm ist er, der als ein Wissender
anklagt. Vertraue nicht auf die Länge der Jahre! / Sie sehen die Lebenszeit als eine Stunde an. / Wenn der
Mensch übrigbleibt nach dem ‘Landen’ / werden seine Taten neben ihn gelegt als Endbetrag. Das Dortsein
ist ewig. / Ein Tor, der tut, was sie tadeln. / Wer zu ihnen gelangt ohne Übertretung, / der wird dort sein als
ein Gott, / frei schreitend wie die Herren der Ewigkeit […]“. Aus der Lehre für nig Merikare, in: Sigrid
HODEL-HOENES, Leben und Tod im Alten Ägypten: thebanische Privatgräber des Neuen Reiches, p. 9.
67
Mas, ao contrário do livro do Eclesiastes, que se refere à morte como definitiva e anu-
ladora de todas as coisas terrenas, para os egípcios o túmulo não representa tanto a última
morada” quanto uma “morada para a eternidade”, sutil mas importante diferença; é certo que
o livro do Eclesiastes utiliza essa expressão em 12.5 (“ ... porque o homem está a caminho
da casa de sua eternidade =
wOml;wO[ tyBe-la
= al-bet olamō
,
), mas ali ela
não pode ser interpretada da mesma forma como o fazem os egípcios.
O papiro Chester-Beatty ressalta a concepção de “permanência no além” ou mesmo de
imortalidade conquistada por uma pessoa através de seus feitos, p.ex. através de livros por ela
redigidos. Os escribas eram muito conceituados na tradição egípcia:
O homem decai, seu corpo é pó;
todo o seu parentesco pereceu –
mas um livro faz com que ele seja lembrado
através da boca de quem o recita.
Um livro é bem melhor que uma casa bem-construída,
que uma capela funerária na necrópole;
melhor que uma sólida mansão,
que uma estela num templo!
128
Nestes versos aparece novamente a concepção generalizada da fragilidade do ser hu-
mano (cf. Gn 3.19). Também se verifica a inconsistência dos bens materiais diante do poder
espiritual que permanece; a figura do “mensageiro” é uma constante, assim como a impossibi-
lidade de saber a hora da morte:
É bom que te prepares; quando vier um mensageiro para buscar-te, que ele te encontre
pronto para ires ao teu lugar de descanso; então dirás: “Sim, eis que vai acompanhar-te
alguém que se preparou para ti”. Mas não digas: “Sou muito jovem para que me bus-
ques”. Tu não conheces a hora da tua morte! Quando a morte chegar, ela roubará a crian-
ça dos braços de sua mãe, assim como ela rouba aquele que alcançou uma idade avançada
[…]
129
.
Nesta passagem, dois aspectos chamam a atenção: o de que a morte tem um mensagei-
ro que vem buscar a pessoa, e que esta pessoa tem de estar preparada, porque ela não tem co-
128
Papiro Chester-Beatty IV, verso 2,5-3,11, citado segundo a tradução de Miriam Lichtheim em Ancient Egyp-
tian Literature, v. 2, p. 175-178, por Ciro Flamarion CARDOSO, Escrita, sistema canônico e literatura no
antigo Egito, in: Margaret Marchiori BAKOS, Katia Maria Paim POZZER (orgs.), III Jornada de estudos do
Oriente Antigo. Línguas, escritas e imaginários, p. 104-5.
129
„Es ist gut, dich zu sten; wenn dann ein Bote kommt, dich zu holen, so soll er dich bereit finden, an deinen
Ruheplatz zu gehen; dann sage: ‘Ja, hier kommt einer, der sich auf dich vorbereitet hat’. Sage aber nicht: ‘Ich
bin zu jung, als daß du mich holst’. Du kennst deinen Tod ja nicht! Wenn der Tod kommt, raubt er das Kind
aus den Armen seiner Mutter ebenso wie den, der ein hohes Alter erreicht hat […]“. Hellmut BRUNNER,
Lehre des Ani, in: Weisheit, p. 202, apud S. HODEL-HOENES, op. cit., p. 33.
68
mo saber quando a morte vem buscá-la. A questão do mensageiro não aparece, dessa forma,
nos escritos sagrados judaicos e cristãos, embora sempre esteja presente a preocupação com
os preparativos para uma “boa” morte.
Entre os povos mesopotâmicos, os sumérios são considerados os inventores da escrita;
a religiosidade do povo atribuiu sua fundação a uma divindade principal; além desta, havia
uma espécie de panteão que existia desde a criação do mundo. De forma semelhante aos egíp-
cios, os sumérios atribuíam aos deuses o poder mantenedor da harmonia no universo; para de-
finir esse poder, utilizavam o termo me’, que se referia às leis que regem as entidades cósmi-
cas e podia ser interpretado como percepção da sabedoria cósmica divina. Atribuía-se aos
deuses a supervisão da conduta ética e moral
130
. A deusa Inanna era a rainha do céu, e acabou
se tornando o símbolo mais importante de todas as divindades sumérias. Dela derivam as ins-
pirações para o surgimento de Ishtar/Astarte, a qual era considerada, entre os semitas, “mãe
do todos os viventes”.
No poema sumério que descreve a sedução de Enki por Inanna, um dos assuntos é a
morte. Além deste, o poema “Gilgamesh, Enkidu e os infernos” detalha informações sobre o
“mundo inferior”
131
. Os sumérios tinham desenvolvido uma “literatura sapiencial” compará-
vel, em muitos traços, à narrativa veterotestamentária de Jó, tanto que se fala num “Jó sumé-
rio”
132
. Outros autores preferem a versão “Jó babilônico”, porque a obra citada abaixo seria
uma reescrita babilônica de um texto muito antigo, mas totalmente retrabalhado na época cas-
sita:
O Justo Sofredor é uma das mais antigas obras que possuímos desta época. Embora vota-
do inteiramente à glória de Marduk, o texto desenvolve uma moral de um profundo pes-
simismo. A história é a de uma nobre e piedosa personagem abandonada pelo seu deus e
sobre a qual se abate todo o tipo de desgraças. Perde a confiança do rei e o respeito dos
que o rodeiam, torna-se miserável e cai doente. Mas através de três sonhos toma conhe-
cimento de que o deus lhe é favorável e, de fato, recupera a saúde, a riqueza e as hon-
ras
133
.
Este “antepassado” de se delonga da mesma maneira como o autor bíblico sobre a
relação do ser humano com Deus, sobre abandono e perseguição, a perda de todos os bens e a
130
Samuel Noah KRAMER, Os sumérios: sua história, cultura e caráter, p. 137ss.
131
Ibid., p. 156 e 182.
132
Walter BEYERLIN, Religionsgeschichtliches Textbuch zum Alten Testament, p. 164.
133
Pierre LÉVÊQUE, As primeiras civilizações, v. 2 – A Mesopotâmia / os hititas, p. 133.
69
busca por uma nova vida; no final, ele recebe tudo que perdera de volta e é obrigado a reco-
nhecer o poder superior de Deus.
6.1.2 A Epopéia de Gilgamesh
Como exemplo de fonte literária extra-bíblica, a Epopéia de Gilgamesh é um texto in-
teressante para ser verificado neste trabalho, porque ele lida não apenas com a busca da imor-
talidade, mas também com as questões de sentido da vida e da morte para o ser humano. As
poesias sumérias avulsas que cantavam o rei Gilgamesh receberam uma estruturação poética:
a Epopéia de Gilgamesh tem como pano de fundo um personagem histórico real, que pode ter
vivido na época do rei acádico de Kish, (En-)Mebaragesi. É-lhe atribuída a construção do mu-
ro de Uruk, datado do século XXVII a.C. A tradição que cultua Gilgamesh continua na época
babilônica antiga (entre os séculos XIX e XVII a.C.). O nome Gilgamesh pode ser traduzido
como “o homem velho que voltou a ser jovem”
134
.
O épico de Gilgamesh é a criação literária mais importante da Mesopotâmia e a pri-
meira obra literária escrita de toda a humanidade. Antes de ser unificada num bloco, ela se
achava dividida em cinco épicos sumérios menores: Gilgamesh e o mundo dos vivos, Gilga-
mesh e o touro celeste, Gilgamesh e Akka de Kish, Gilgamesh, Enkidu e o mundo inferior, A
morte de Gilgamesh. Após 2000 a.C., sob o governo acádico, as tradições sumérias sobre Gil-
gamesh foram retrabalhadas em acádico numa versão babilônia primitiva, da qual pouco se
conhece até hoje. No séc. XII a.C., um escriba ou poeta de nome Sin-leqe-unnini criou uma
versão de Gilgamesh que acabou se tornando o referencial para a pesquisa atual, e no qual se
baseiam todas as traduções e versões do épico. Essa seria então a chamada versão ninivita,
dado ter sido encontrada na antiga cidade de Nínive.
De um modo geral, pode-se subdividir os grandes temas que orientam o épico de Gil-
gamesh em dois aspectos: a) a importância da sabedoria para vencer os desafios da vida e b) a
temática da morte. Logo no início do poema se diz que “a sabedoria o cobria como um man-
to, e que habitava junto com a Existência em Harmonia...”
135
. A sabedoria orienta principal-
mente para a fruição da vida e a satisfação com o que se tem, tanto que se fala na busca infru-
tífera da imortalidade.
134
Karl HECKER, Weisheitstexte, Mythen und Epen, p. 646.
135
“He, to whom wisdom clung like cloak, and who dwelt together with Existence in Harmony”. Robert TEM-
PLE, Epic of Gilgamesh, versão resumida. Disponível em http://www.angelfire.com/tx/gatestobabylon
/temple1.html, acesso em 20 abr. 2005.
70
Um dos textos que deixam bem claro o papel preponderante da sabedoria
136
, para os
povos mesopotâmicos, é o que se encontra na tábua Meissner-Millard. Ela apresenta um tre-
cho em que Gilgamesh chora a morte de seu amigo Enkidu diante de sua copeira Siduri, e su-
as infrutíferas tentativas de encontrar a vida eterna para escapar da morte que alcançou Enki-
du. Siduri lhe responde da seguinte forma:
Gilgamesh, para onde vais?
A vida que tanto procuras não vais encontrar!
Quando os deuses criaram a humanidade,
fizeram os seres humanos mortais,
tomaram a vida em suas próprias mãos.
Gilgamesh, saciado esteja teu estômago,
dia e noite sê contente!
Diariamente faze festas de alegria,
dia e noite dança e toca!
Que estejam limpas tuas vestes,
que teu cabelo esteja lavado e tu, banhado em água!
Olha a criança que segura tua mão,
que a esposa se alegre no teu regaço!
Tal é o fazer (dos seres humanos)
137
.
É necessária aqui uma rápida comparação entre a fala da copeira Siduri e o texto de Ec
9.7-10. Siduri alerta para o fato de que os deuses determinaram que os seres humanos fossem
mortais, e que somente eles mesmos teriam a vida humana em suas mãos. Não se fala em
“cobranças” ou num juízo final, apenas ela insta Gilgamesh que ele não perca mais tempo
numa busca e sem sentido. Gilgamesh sabe que é impossível escapar da morte, e isso lhe
parece injusto e cruel. Mas na versão babilônia do épico de Gilgamesh recomenda-se fruir a
vida por causa disso. É isso o que quer dizer a copeira Siduri
138
. Além disso, pessoas que
querem ser felizes com Gilgamesh (a mulher e o filho), assim como o Ec se refere à “mulher
amada” como companhia nos momentos de fruição da vida.
136
Na Tábua I se encontra a seguinte fala da sacerdotisa a Enkidu: “Você tem sabedoria, Enkidu. Agora você é
como um deus”. (“You have wisdom, Enkidu. Now you are as a god”). Ibid.
137
„Gilgamesh, wohin läufst du? / Das Leben, das du suchst, wirst du nicht finden! / Als die Götter die Mensch-
heit erschufen, / wiesen sie der Menschheit den Tod zu, / nahmen das Leben in ihre eigene Hand. / Du,
Gilgamesh, voll sei dein Bauch, / Tag und Nacht sei andauernd froh, du! / Täglich mache ein Freudenfest, /
Tag und Nacht tanze und spiele! / Gereinigt seien deine Kleider, / dein Haupt sei gewaschen (und) du mit
Wasser gebadet! / Sieh auf das Kind, das deine Hand gefaßt hält, / die Gattin freue sich auf (deinem) Schoß! /
So ist das Tun (der Menschen)“. K. HECKER, op. cit., p. 666.
138
Uma versão atualizada dessa admoestação se encontra em Hermann Hesse: “A vida passa como um relâmpa-
go, / Cujo brilho dura o instante de ser visto, / Enquanto o céu e a terra estão eternamente imóveis. / A vi-
da passa rápida e mutável pelo rosto do homem. / Ó tu, que estás ao lado da taça cheia sem beber, / Dize-me,
que é que estás esperando?” Hermann HESSE, O último verão de Klingsor, p. 132.
71
Tanto Gilgamesh quanto o Ec se referem às vestes limpas e à higiene corporal como
formas de expressar o sentido festivo que a vida deveria ter também no cotidiano: viver é fes-
tejar que se está vivo e, no caso do Ec, sob a proteção e na lembrança de Deus. A copeira Si-
duri é tanto mais enfática em sua admoestação a Gilgamesh quanto mais claramente ela per-
cebe que este pode estar “perdendo-se” em sua busca desesperada, deixando para trás o coti-
diano e desprezando a vida tal como ela se apresenta. O herói da Epopéia não deve ficar cego
para as potencialidades do cotidiano, que é o espaço em que a vida real se desenrola.
Nos tempos modernos, o uso da roupa branca e de perfumes continua sendo um refe-
rencial obrigatório para a deferência devida aos deuses, e esse tipo de manifestação ocorre em
muitas culturas, embora na atualidade esteja restrita a determinados dias de festa. Isso ocorre
por várias razões, mas também se deveria atentar para o verdadeiro valor do cotidiano. O
poema abaixo, da cultura brasileira, ressalta um dia típico de festa:
[…] tua pompa
tanta festa
tanta roupa
na cesta
cheia
de sexta-feira
oxalá estejam limpas
as roupas brancas de sexta
oxalá teu dia de festa
139
O outro aspecto da Epopéia é a morte dos seres humanos, tormenta inominável para
Gilgamesh. A tábua X, completada a partir dos fragmentos de Kuyunçik, redigidos em escrita
cuneiforme, descreve o encontro de Gilgamesh com Utnapishtim, em que o herói busca o
conselho do sábio, na expectativa de que este lhe revele o segredo da imortalidade que ele
mesmo alcançou. Mas o que ele ouve é um longo discurso sobre o sentido da vida:
O nome dos seres humanos foi cortado como uma haste de junco,
o belo jovem, a moça formosa,
o he[rói, todos se tornam vítima] da morte.
Ninguém vê a morte,
ninguém olha [a morte] nos olhos!
Ninguém [ouve] a voz da morte;
a terrível morte é o ceifador do ser humano!
Em algum momento construímos uma casa,
em algum momento instalamos uma moradia.
139
Paulo LEMINSKI, Caprichos e relaxos, p. 12.
72
Em algum momento os irmãos dividem a herança,
em algum momento o ódio reina no país!
Em algum momento o rio subiu e trouxe a enchente,
(então) as libélulas são levadas pelo rio.
Seu rosto olha o rosto do sol,
e logo depois nada mais resta.
O adormecido e o morto, como eles se parecem!
Eles não retratam a imagem da morte.
O ser humano primevo foi um homem jovem!
Quando eles tinham me abençoado,
os Anunaki, os grandes deuses, se reuniram.
Mametum, aquela que cria o destino, determina junto com eles o destino:
eles instalaram morte e vida.
Eles não determinaram os dias da morte,
eles determinaram os dias da vida
140
!
As constatações de Gilgamesh sobre a morte inevitável e a ligação intrínseca a um
destino predeterminado pelos deuses, além da impossibilidade de se saber qualquer coisa so-
bre a morte em si, remetem outra vez a Ec 8.6-8. Mas, diferentemente do Ec, Gilgamesh con-
sidera a morte algo “terrível”, que tudo anula e faz desaparecer:
Dessa forma, o protagonista não abandona a condição de herói, mas se conscientiza de
seus limites, revelando que, se de um lado o poema narra a origem e o aparecimento da
raça humana, de outro conta seu fim, alertando igualmente para suas limitações
141
.
Essa conclusão parece advir da ação dos deuses tal como ela aparece na última linha:
os dias de vida dos seres humanos são predeterminados pelos deuses, mas a morte chega sem
um aviso compreensível por eles, surpreendendo-os em meio às suas atividades. As libélulas,
pequenos e frágeis animais, são o símbolo da transitoriedade do ser humano, resultado dessa
indeterminação do dia da morte. Dessa forma, dois aspectos que perturbam os seres huma-
nos no que concerne a sua própria existência: eles sabem que fatalmente morrerão ou seja,
140
„Der Menschen Name ist abgeschnitten wie ein Rohr des hrichts, / der schöne Jüngling, das schöne
Mädchen, / der He[ld, alle werden eine Beute] des Todes. / Niemand sieht den Tod, / niemand sieht [dem
Tod] ins Antlitz! / Niemand [hört] die Stimme des Todes; / der grimme Tod ist der Schnitter der Menschen! /
Irgendwann bauen wir ein Haus, / irgendwann legen wir eine Wohnstätte an. / Irgendwann teilen die Brüder
das Erbe, / irgendwann herrscht Haß im Lande! / Irgendwann stieg der Fluß und brachte Hochflut, / (dann)
treiben Libellen im Fluß. / Ihr Antlitz schaut das Antlitz der Sonne, / gleich danach gibt es gar nichts mehr. /
Der Schlafende und der Tote, wie sind sie sich ähnlich! / Des Todes Bild zeichnen sie nicht. / Der uranfäng-
liche Mensch war ein junger Mann! / Als sie den Segen über mich gesprochen hatten, / saßen die Anunnaki,
die großen Götter, zusammen. / Mammetum, die das Schicksal schafft, bestimmt mit ihnen das Schicksal: /
sie richteten Tod und Leben ein. / Des Todes Tage bezeichneten sie nicht, / die des Lebens bezeichneten sie!“
K. HECKER, op. cit., p. 727-728.
141
Regina ZILBERMAN, Nos princípios da epopéia: Gilgamesh, in: BAKOS, M. M., POZZER, K. M. P.
(orgs.), op. cit., p. 67.
73
jamais terão acesso à tão almejada imortalidade que os igualaria aos deuses e, ao mesmo
tempo, não têm domínio sobre a hora de sua morte (tal como em Ec 8.7-8).
6.2 O mundo helenístico
Esta parte se propõe a apresentar o quadro histórico, social e político do séc. III a.C. na
Palestina e em seu entorno. Parte-se do princípio de que o livro do Eclesiastes reflete os con-
flitos sociais e políticos pelos quais passava o povo judeu desde o processo de helenização do
Antigo Oriente Médio, e que culminaram, um século e meio após, na deflagração da Revolta
dos Macabeus. A conquista de grande parte do Oriente Asiático forma o pano de fundo que
encerra um ciclo importante da história judaica:
[…] é uma parte de sua história que foi marcada histórica e politicamente, em primeiro
lugar, pelos conflitos com os governos dos diádocos ptolomeus e selêucidas, e teologica-
mente pela confrontação da javista com a espiritualidade do helenismo. Para Israel, a
era helenística se encerrou com a sujeição dos países do Oriente Próximo pelos romanos e
com a inclusão da Judéia em seu incipiente reino mundial
142
.
Note-se a oposição entre javista e espiritualidade helenista nesta citação. Os deta-
lhes deste confronto serão apresentados logo adiante. Um dos problemas maiores no contexto
da dominação helenística sobre o Antigo Oriente Médio foi a morte precoce de Alexandre
Magno, o que permitiu uma sucessão fragmentada e marcada por conflitos internos entre os
novos dominadores. Essa sucessão organizou-se da seguinte maneira:
[…] o Egito, a Palestina e a Fenícia ficaram com Ptolomeu I, que deu início à dinastia dos
Lágidas, e a Síria e a Mesopotâmia ficaram com Seleuco I, a partir do qual formou-se a
dinastia dos Selêucidas. A Palestina, situada no corredor entre o Egito e a Síria, sempre
ficou como joguete entre uma e outra potência. Até 200 a.C., permaneceu sob o domínio
do Egito e dos Lágidas, e depois passou para o domínio dos Selêucidas
143
.
Isso não significa que, através de Alexandre Magno, toda a cultura existente nas re-
giões dominadas tenha desaparecido para dar lugar ao helenismo. Sob o governo das dinastias
acima citadas, o modo de vida grego infiltrou-se no cotidiano judeu. Jerusalém, naquela épo-
ca, era a capital e o centro tanto secular quanto espiritual da província da Judéia, baseada no
poder local do templo de Jerusalém. Após a conquista de Alexandre Magno, a cidade tornou-
se parte da província Síria e Fenícia e passou a pertencer ao grande reino ptolomaico, cuja
142
„(...) ein Abschnitt seiner Geschichte, der historisch und politisch hauptsächlich durch die Auseinander-
setzung mit den Diadochenreichen der Ptolemäer und Seleukiden und theologisch durch die Konfrontation
des Jahweglaubens mit der Geistigkeit des Hellenismus geprägt war. Abgeschlossen wurde für Israel das
hellenistische Zeitalter mit der Unterwerfung der Länder des Vorderen Orients durch die Römer und mit der
Eingliederung Judäas in deren neu entstehendes Weltreich“. Ernst HAAG, Das hellenistische Zeitalter, p. 33.
143
I. STORNIOLO, op. cit., p. 18.
74
capital era Alexandria. Apesar disso, a província judaica tinha certa autonomia. Com a ampli-
ação do poder ptolomaico sobre a região da Palestina, o judaísmo se viu confrontado com si-
tuações de vida totalmente novas.
De fato, pela primeira vez os judeus se viram diante de uma situação de dominação
não apenas militar (os dominadores anteriores, tais como babilônios e persas, ficavam como
que “do lado de fora dos muros”), e sim cultural, religiosa e política: apoiados pelos egípcios,
os gregos tinham chegado para ficar. A maioria da população judaica urbana, principalmente
as pessoas de posses, preferiu se orientar pelo que parecia mais fácil e garantido, não fazendo
questão de lutar pela preservação de sua essência religiosa e cultural:
[…] a adoção do grego como língua da Bíblia, da liturgia, da prédica na sinagoga e da li-
teratura religiosa trouxe consigo o fato de que visões de mundo e ideais helenísticos en-
traram e moldaram de modo radicalmente novo todo o mundo do pensamento judaico ve-
terotestamentário. Afirmações teológicas judaicas eram vistas agora como “filosofia”. Os
livros da Bíblia se tornaram escritos de compreensão filosófica e religiosa, os quais, tal
como os escritos de Homero, podiam ser interpretados de forma alegórica. O relato da
criação se tornou cosmogonia; ritos religiosos como a circuncisão e o Shabat podiam ser
reinterpretados de forma espiritualística e simbólica nova
144
.
A dominação promovida pelo helenismo não necessitou, portanto, de grande violência
militar e da destruição de terras cultivadas, das propriedades urbanas e das cidades. Ao con-
trário, os gregos estavam interessados em manter as estruturas pré-existentes para sobre elas
construírem seu novo projeto imperialista. Thomas Staubli descreve o ambiente de então:
[…] a helenização da Palestina na época ptolomaica, quando a escola do templo em Jeru-
salém recebeu a concorrência de um ginásio grego e os pequenos agricultores da Judéia
começaram a sentir a pressão dos impostos alexandrinos e foram parar no redemoinho do
latifúndio dominante. Nesse “novo mundo”, muitas coisas estavam erradas. A sabedoria
tradicional da Palestina conseguia mais dar conselhos inúteis com relação às circuns-
tâncias modificadas. A concepção helenística de mundo, que tinha passado por proces-
sos semelhantes, parecia ser superior às concepções próprias. Nessa época, na qual em Je-
rusalém se falava aramaico, se fazia política em grego, se orava e se maldizia em hebraico
[…] certamente não é possível imaginar os destinatários do discurso culto e cheio de en-
trelinhas [do Eclesiastes] como sendo pequenos agricultores depauperados, mendigos e
144
„ Die Übernahme des Griechischen als Sprache der Bibel, der Liturgie, der Synagogenpredigt und der religiö-
sen Literatur brachte gleichzeitig mit sich, daß hellenistische Ansichten und Vorstellungen eindrangen und
die alttestamentliche Vorstellungswelt von Grund auf neu prägten. Theologische Aussagen erschienen nun
als ‚Philosophie’. Die Bücher der Bibel wurden zu Schriften philosophischer und religiöser Einsicht, die wie
die Schriften Homers allegorisch interpretiert werden konnten. Die Schöpfungsgeschichte wurde zu einer
Kosmologie; religiöse Riten wie die Beschneidung und der Sabbat konnten spiritualistisch und symbolisch
neu verstanden werden“. Helmut KÖSTER, Einführung in das Neue Testament, p. 231.
75
escravos, mas, antes, os representantes do ambiente de mercadores novos-ricos das cida-
des e da aristocracia
145
.
Enquanto sob o domínio persa o Estado judeu preservara certa autonomia, os gregos
fizeram questão de dominar também a terra, através da exploração do lado mais fraco, no caso
os pequenos agricultores judeus. A “confusão de línguas” descrita acima ilustra bem o que se
passava em Jerusalém e seus arredores. Aliás, o próprio abandono do hebraico em favor do
aramaico como lingua franca, a partir do domínio persa, e a rápida adoção do grego contribuí-
ram mais ainda para destituir o povo judeu de sua identidade, mais que qualquer domínio mi-
litar até então.
A implantação do helenismo na Palestina teve efeitos imediatos: grupos sociais per-
tencentes a uma chamada classe média comerciantes e membros do alto clero começaram
a temer pela continuação de seus negócios e, ao mesmo tempo, a perceber uma ótima oportu-
nidade para ampliar seus lucros. Agia-se conforme a máxima “se não puder vencer o inimigo,
alie-se a ele”. Assim também fizeram os sumo-sacerdotes no templo de Jerusalém, apoiando,
a partir deste momento, os detentores estrangeiros do poder. Dessa forma, as pessoas começa-
ram a reavaliar suas possibilidades de sobrevivência, dividindo-se entre uma feroz defesa de
suas tradições, por um lado, e o desespero de ter de preservar seus bens materiais e seu status
social a todo custo, por outro, mesmo que isso significasse alienação cultural e política:
No séc. III a.C. […] as divisões eram sobretudo de cunho econômico, cultural e social. Os
que começavam a ser chamados de “helenistas”, isto é, aqueles que falavam grego, eram
ricos e até muito ricos. Constituíam a aristocracia dos grandes proprietários, capazes de
comercializar seus excedentes. Queriam abrir o país, concluir acordos com os povos vizi-
nhos, desenvolver o comércio de animais de corte, o que representava um risco para as
regras alimentares judaicas e as práticas separatistas. O desenvolvimento econômico le-
vou à assimilação cultural e, freqüentemente, até mesmo à adoção exterior de certas fór-
mulas politeístas. Desse modo, durante o período dos Lágidas alargou-se um abismo entre
145
„(...) die Hellenisierung Palästinas in ptolemäischer Zeit, als die hebräische Tempelschule in Jerusalem
Konkurrenz durch ein griechisches Gymnasium erhielt und die Kleinbauern Judas den alexandrinischen
Steuerdruck zu spüren bekamen und in den Sog des um sich greifenden Großgrundbesitzes gerieten. In dieser
‚neuen’ Welt war vieles verkehrt. Die traditionelle Weisheit Palästinas gab in bezug auf die veränderten
Verhältnisse unzulängliche Ratschläge. Die hellenistische Sinnwelt, die ähnliche Prozesse schon reflektiert
hatte, schien der eigenen überlegen. In dieser Zeit, da in Jerusalem aramäisch gesprochen, griechisch politi-
siert, hebräisch gebetet und geflucht wurde, (...) als Adressaten der gebildeten, anspielungsreichen Worte
wird man sich allerdings nicht verarmte Kleinbauern, Bettler und Sklaven vorstellen dürfen, sondern eher
Vertreter des neureichen Händlermilieus der Städte und der Aristokratie“. Thomas STAUBLI, Windhauch-
Stimmung. Schweizerische Kirchenzeitung, 1999. Disponível em http:// www.kath.ch/skz/, acesso em 10 abr.
2004.
76
uma pequena elite e a grande massa dos camponeses, abismo que aparecera desde o re-
torno do exílio na Babilônia
146
.
Esse abismo abria-se na medida em que os judeus urbanos, comerciantes mais ricos e
representantes da classe sacerdotal, e os pequenos agricultores passavam a representar interes-
ses opostos. Por essa descrição, pode-se deduzir que para alguns membros das classes privile-
giadas em Jerusalém não seria mau abrir o país ao comércio internacional e deixar de se limi-
tar à estreiteza das regras cultuais e rituais em geral. Os resultados da campanha de Alexandre
Magno na Palestina são descritos de forma bastante informal, mas esclarecedora, por Rafael
Rodrigues da Silva:
A resistência do povo ao projeto econômico-cultural dos gregos encontramos no livro de
Qohelet e na literatura apocalíptica. O livro de Qohelet, escrito em tempos da dominação
grega, lança o seu olhar sobre os sinais de destruição, sobretudo aqueles relacionados com
a perda dos grandes valores, tais como trabalho, justiça, amor e solidariedade. Qohelet é a
grande palavra irônica “do que sabe que não sabe”. É a palavra crítica diante da situação
de opressão que brota do cotidiano, das dores, dos choros, do cansaço e do suor. É a sa-
bedoria dos destituídos e apresentados na sociedade como os que não sabem e não são.
Sabedoria dos desfigurados. Sabedoria das coisas corriqueiras da vida
147
.
Quando o modo de governar dos gregos passou a determinar os acontecimentos na re-
gião, com sua concepção de religiosidade bem distante da concepção religiosa dos judeus,
começaram a ocorrer mudanças que caracterizaram bem estas divergências: construiu-se, por
exemplo, um ginásio (
γυµνασιον
) em plena Jerusalém para a educação dos jovens gregos,
mas que era aberto também aos jovens judeus; grupos de ambas as etnias conviviam nos mes-
mos moldes de educação e formação, embora os jovens judeus continuassem a freqüentar a
sinagoga. Os filhos e as filhas dos judeus abastados, porém, passaram a receber nomes gregos,
como forma de demonstrar boa vontade à adaptação, e começaram a ir também ao
γυµνασιον
;
se praticavam exercícios físicos que deveriam preparar os jovens para as batalhas e desen-
volver o seu senso estético de culto ao corpo e à forma física, além de se cultivarem outras
formas de convívio desconhecidas para os jovens judeus. “Herdeiro da tradição aristocrática,
[o ginásio] era, ao mesmo tempo, centro de formação militar, de educação em geral, meio so-
146
I. STORNIOLO, op. cit., p. 23.
147
Rafael Rodrigues da SILVA, “Uma reflexão acerca das medidas econômicas dos impérios e a resistência do
povo nos tempos bíblicos, como luz para o ‘Não Latino-Americanoao Projeto da ALCA”. Disponível em
http:// www.metodista.br/biblica n. 2 – out/nov.2002, acesso em 18 mar. 2004.
77
cial e sede das irmandades religiosas”
148
. Para parte dos judeus, essa forma de educação era
motivo de escândalo:
[…] os judeus ortodoxos sentiam horror diante desses exercícios, nos quais era preciso
expor o corpo nu, e a criação de um ginásio em Jerusalém, desejada por aqueles que pre-
tendiam helenizar-se, parecia-lhes o cúmulo do sacrilégio e o sinal vergonhoso da heleni-
zação
149
.
Um dos motivos mais sérios desse horror era o fato de que os homens judeus viam na
sua circuncisão o símbolo exterior de sua pertença à religião judaica, o que fez com que mui-
tos lançassem mão de uma cirurgia corretiva, para deixarem de ser estigmatizados pelo pre-
conceito
150
. Apesar desse conflito, a proximidade física e o investimento numa cultura comum
aos jovens que tomavam parte nos exercícios contribuíram para a simbiose de judeus e gre-
gos, fazendo desaparecer aos poucos a identidade religiosa do povo judeu: sua constituição
em doze tribos, a proibição de fazer imagens de Deus, a rejeição do antropomorfismo, a uni-
versalidade de um deus cósmico e único, o caráter insólito de seus ritos e costumes e a pre-
ponderância dos sacerdotes, que eram ao mesmo tempo juízes das causas importantes e repre-
sentantes das leis e dos costumes
151
.
As causas do conflito religioso-filosófico entre judeus e gregos devem ser procuradas
nessas práticas religiosas, divergentes da cultura grega. A tradição judaica não poderia con-
viver com os princípios da filosofia grega por uma série de razões: a concepção triangular
Deus-povo-terra prometida era algo desconhecido dos gregos, começando pela monolatria e
seguindo pela reivindicação da centralidade de culto. Além disso, a tradição sapiencial judaica
conhecia outras concepções de convívio entre os seres humanos, advindas da época em que os
israelitas se organizavam em tribos e tentavam seguir o que se chamava de “sabedoria tribal”
(“sabedoria popular”):
Do ponto de vista da história da cultura, a sabedoria tribal não é apenas a tradição sapien-
cial mais antiga de Israel, e que alcança até a época pré-monárquica; ela também perma-
neceu por todos esses séculos a guardiã crítica-sensível dos ideais de solidariedade e jus-
tiça para todos, quando nas cidades, e principalmente a partir das capitais Samaria e Jeru-
148
“Heredero de la tradición aristocrática, era, a un tiempo, centro de formación militar, de educación general,
medio social y sede de las cofradías religiosas”. Claire PRÉAUX, El mundo helenístico Grecia y Oriente,
tomo segundo, p. 339.
149
“(...) los judíos ortodoxos sentían horror ante esos ejercicios en los que había que exponer el cuerpo desnudo,
y la creación de un gimnasio en Jerusalén, que deseaban aquellos que pretendían helenizarse, les parecía el
cúmulo del sacrilegio y el signo vergonzoso de la helenización”. Ibid., p. 339.
150
E. HAAG, op. cit., p. 18.
151
Ibid., p. 18.
78
salém, começou a desenvolver-se uma sociedade de classes, nas quais os ideais da solida-
riedade familiar se desfaziam mais e mais. A crítica profética de um Amós e de um Mi-
quéias, mas também os mandamentos sociais resumidos no Decálogo, têm suas raízes no
ethos da sabedoria tribal
152
.
A citação acima confirma a realidade de conflito interno do judaísmo que começou a
delinear-se quando os gregos se impuseram com suas concepções que feriam a idéia de unici-
dade do culto javístico, do ser humano e da vida em conjunto. A sociedade de classes a que
alude a citação esqueceu rapidamente que vinha de um contexto tribal de solidariedade. A
concepção grega, por outro lado, desconhecia a monolatria e “leis de inspiração divina” de
qualquer espécie, e não compreendia a idéia de que o ser humano pudesse ser único, integral,
um ser vivente a quem Deus doara a vida diretamente (Gn 2).
Por outro lado, há quem afirme que os gregos tinham uma concepção bastante clara do
que seria Deus, e isso de maneira até mais refinada que os próprios israelitas:
Em certo sentido, Platão e seus seguidores tinham uma concepção mais elevada, ou mais
refinada, do espírito e da natureza divina que os hebreus. Estes últimos pensavam o espí-
rito como uma substância etérea, uma forma atenuada de matéria, e atribuíam a Deus uma
natureza semi-material. Platão, por seu lado, introduziu a idéia de uma forma “imaterial”
de existência e aplicou-a a Deus. Isso representava claramente uma concepção mais ele-
vada e “espiritual” da natureza divina a partir do ponto de vista filosófico
153
.
Essa concepção mais filosófica do que seria Deus nada tem a ver com a teologia judai-
ca, porque o nível de “elevação” pretendida pelos gregos ao mesmo tempo justifica uma outra
posição, rejeitada em Israel: o distanciamento de um Deus que “enfeita o céu” e serve de mo-
tivo a meras digressões mentais.
Em outras palavras: os filósofos helenistas achavam que o ser humano conseguiria vi-
ver de maneira adequada, buscando sua felicidade, apenas através do esforço próprio, despre-
zando o que ele não poderia controlar, ou seja, o poder de Deus. Sua filosofia era considerada
152
„Kulturgeschichtlich gesehen ist die Sippenweisheit nicht nur die älteste Weisheitsüberlieferung Israels, die
bis in die vorstaatliche Zeit zurückreicht, sie blieb auch über die Jahrhunderte hinweg die kritisch-sensible
Hüterin der Ideale Solidarität und Gerechtigkeit für alle, als sich in den Städten und insbesondere von den
Hauptstädten Samaria und Jerusalem aus eine Klassengesellschaft entwickelte, in der die Ideale der familiä-
ren Solidarität mehr und mehr zerbrachen. Die prophetische Kritik eines Amos und Micha, aber auch die im
Dekalog gebündelten Sozialgebote wurzeln im Ethos der Sippenweisheit“. E. ZENGER, op. cit., p. 293.
153
“In one respect Plato and his followers had a higher or more refined conception of spirit and of the divine
nature than did the Hebrews. The latter thought of spirit as an ethereal substance, an attenuated form of
matter, and so adscribed to God a semimaterial nature. Plato, on the other hand, introduced the idea of an
‘immaterial’ form of existence and applied it to God. This manifestly represented a higher and more
‘spiritual’ conception of the divine nature from the philosophical point of view”. Dean A. C. KNUDSON,
The Old Testament conception of God, in: Frederick Carl EISELEN et al. (orgs.), The Abingdon Bible com-
mentary, p. 164.
79
um “ensaio” ou preparação para a felicidade, partindo sempre do ser humano e de suas capa-
cidades, sem se basear ou confiar em algum poder espiritual ou divino. Com isso, eles procu-
ravam evitar que se jogasse a possibilidade de ser feliz para o “além”, buscando a satisfação
de todos os desejos e necessidades possíveis já neste mundo
154
.
Foi desta concepção que logo brotaram as idéias hedonísticas e epicuristas, que defen-
diam a fruição da vida partindo do carpe diemconcepção que pode ser definida como sendo
estritamente antropocêntrica. A afirmação de Ec em 2.24, de que o ser humano não pode vi-
venciar a partir de si mesmo a felicidade, mas que ela é dom de Deus, parece contrapor a teo-
logia da criação com a eudemonologia helenista: a felicidade é, no fim das contas, uma dádi-
va, e não uma conquista do ser humano apenas por si mesmo
155
.
Mesmo assim, também os gregos respeitavam seus mortos: eles lhes prestavam culto e
tinham uma espécie de crença no além, que permaneceria também durante o helenismo. O que
diferenciava esta concepção das idéias judaicas era o tratamento baseado em rituais, não na fé
em um Deus que faz viver e morrer segundo seus próprios critérios. Em relação ao que acon-
tecia com o falecido depois do enterro do corpo físico, o pranto e os sacrifícios junto ao túmu-
lo (libações de leite, mel, óleo e mesmo água para o banho, em intervalos regulares) eram a
exigência mínima para contentar o seu espírito, que poderia irar-se e ter um efeito maléfico
sobre sua família. Havia todo um imaginário acerca do juízo dos mortos. Os helenistas assu-
miram a concepção de “nobreza das coisas do espírito”, vinda de Platão, o qual propagara a
doutrina da imortalidade da alma mas não a possibilidade de ressurreição do corpo –, en-
quanto os epicuristas e estóicos negavam a hipótese de uma continuação da vida do indivíduo
em forma física. Existiam círculos que queriam transformar todo e qualquer morto em herói,
buscando uma razão que justificasse a morte do indivíduo e lhe desse sentido, o que se mostra
na construção de túmulos e mausoléus imensos, não só para reis e generais de exército mortos
em batalha, mas também para cidadãos ricos.
154
Embora o platonismo tenha tido objetivos a serem levados a sério: “a teoria das idéias e a preocupação com
os temas éticos, visando toda a meditação filosófica ao conhecimento do Bem, conhecimento este que se su-
põe suficiente para a implantação da justiça entre os Estados e entre os homens”. Dicionário Eletrônico Auré-
lio, ed. 2005 em CD-ROM.
155
E. ZENGER, op. cit., p. 343.
80
Os conflitos que se originaram de concepções tão diferentes sobre os aspectos impor-
tantes da vida fizeram surgir uma reação que pode ser chamada de “antijudaísmo” entre o po-
vo grego, em função do choque cultural e religioso-filosófico entre as duas culturas:
Os judeus eram xingados de leprosos e destruidores bárbaros da cultura e da religião […]
os apologetas judeus logo passaram a fazer o mesmo, e, mais tarde, os apologetas cristãos
não ficaram atrás, em sua competição com os antecessores judeus […]. A polêmica anti-
judaica demonstra com o que as pessoas se incomodavam: costumes esquisitos como a
circuncisão e o descanso do Shabat; a negativa judaica de adorar os deuses; a falta de uma
imagem cúltica no Templo […] Mas eles queriam ser membros helênicos da sociedade
burguesa urbana, enquanto que, ao mesmo tempo, desprezavam os deuses destas cida-
des
156
.
A idéia de dominação totalitária derivou da concepção de poder que os gregos atribuí-
am a seus deuses. Por maior que fosse sua convicção de que a capacidade de administrar a vi-
da estivesse nas mãos dos próprios seres humanos, os gregos se consideravam meros joguetes
nas mãos de seres inalcançáveis e dotados de poderes incontroláveis, embora muitos desses
deuses tivessem feições e características bastante humanas. Mas a principal diferença entre os
seres humanos e os deuses estava na capacidade de exercer um poder absoluto sobre todo o
universo. Por tudo o que se conhece de Alexandre Magno, sua megalomania foi inspirada na
existência desses deuses e na tentativa de imitá-los. Ele passou a seus súditos, desde o mais
humilde soldado até os grandes generais, essa mesma idéia; durante o domínio dos diádocos
e, mais tarde, dos Lágidas, ela encontrou seu primeiro obstáculo na Palestina, diante da obsti-
nação judaica em preservar suas tradições religiosas.
Este, portanto, era o pano-de-fundo sobre o qual se desenvolveu boa parte da educação
formal do pressuposto autor do livro do Eclesiastes. A ponte para o próximo capítulo se dará a
partir da idéia de que a produção literária pode refletir tanto conflitos exteriores quanto interi-
ores, de maneira mais ou menos inconsciente, quando seu autor/sua autora reflete sobre seu
papel no mundo e busca com honestidade uma alternativa real para esses conflitos. Como se
dá essa expressão em nível inconsciente é o que demonstrará Carl G. Jung.
156
„Die Juden wurden als Aussätzige und barbarische Kultur- und Religionsschänder verunglimpft […]. Die jü-
dischen Apologeten, die bald zum Gegenangriff übergingen, machten es ebenso, und später standen ihnen die
christlichen Apologeten im Wettstreit mit ihren jüdischen Vorgängern in nichts nach […] Die antijüdische
Polemik zeigt, woran man sich stieß: eigenartige Gebräuche wie die Beschneidung und die Einhaltung der
Sabbatruhe; die jüdische Weigerung, die tter zu verehren; das Fehlen eines Kultbildes im Tempel […].
Aber sie wollten hellenisierte Mitglieder der bürgerlichen Gesellschaft der Städte sein, während sie
gleichzeitig die Götter dieser Städte verachteten“. H. KÖSTER, op. cit., p. 235.
81
II. CARL GUSTAV JUNG E A PSICOLOGIA PROFUNDA: UMA INTRODUÇÃO
1. Considerações gerais
A proposta de entender o livro do Eclesiastes segundo alguns aspectos da psicologia
profunda de Carl Gustav Jung surgiu da constatação de que existe uma semelhança surpreen-
dente entre certos temas abordados por ambos os autores e a respectiva maneira de refletir so-
bre eles. A leitura concomitante do livro do Eclesiastes e da teoria junguiana faz surgir coin-
cidências importantes entre as áreas da psicologia e da religiosidade humanas. Através de tan-
tos séculos, cruzam-se pontos de vista e experiências, comuns a ambos, que valem a pena ser
comparados, visando um enriquecimento da análise literária, psicanalítica e teológica. Dentre
todos os questionamentos que o livro do Eclesiastes suscita, levanta-se mais um desafio: o que
tem a ver a experiência pessoal do Ec com a psicologia profunda, proposta de trabalho de
Jung?
O próprio Jung é quem fornece a pista para compreender a inter-relação entre teologia
e psicanálise, reportando-se ao fato de que a religiosidade inerente ao ser humano não é um
fator a ser aprendido, e sim muitas vezes necessita apenas do incentivo correto para poder ex-
pressar-se mais livremente, com vistas ao crescimento espiritual do indivíduo:
Uma vez que a religião é, indiscutivelmente, uma das expressões mais antigas e gerais da
alma humana, parece evidente que qualquer tipo de psicologia concernente à estrutura
psíquica da personalidade humana não pode se escapar de perceber ao menos o fato de
que a religião não é apenas um fenômeno sociológico ou histórico, mas que ela também
representa, para um grande número de pessoas, um assunto pessoal muito importante
157
.
157
„Da die Religion unstreitig eine der frühesten und allgemeinsten Äußerungen der menschlichen Seele ist, ver-
steht es sich von selbst, daß jede Art von Psychologie, welche sich mit der psychologischen Struktur der
menschlichen Persönlichkeit befaßt, nicht darum herumkommt, wenigstens die Tatsache zu beachten, daß
Religion nicht nur ein soziologisches oder historisches Phänomen ist, sondern für eine große Anzahl Men-
schen auch eine wichtige persönliche Angelegenheit bedeutet“. Carl Gustav JUNG, Psychologie und Religi-
on, p. 9.
82
Nesse sentido, a abordagem psicanalítica segundo a proposta de Jung é resgatar a rela-
ção do indivíduo consigo mesmo, também e intensivamente a partir de sua vivência religiosa,
com vistas a “curá-lo” progressivamente de suas psicoses, latentes ou expressas, até que se a-
tinja um ponto confortável de vida psíquica e espiritual. Isso acontece através da chamada
psicologia profunda, que parte do princípio de que existe um inconsciente pessoal e outro co-
letivo que moldam cada pessoa, provocando atitudes e reações muitas vezes inesperadas e in-
compreensíveis, mas que são expressões de todo um mundo desconhecido ao consciente, seja
através de repressão ou “esquecimento”. Quando se aprende a identificar as motivações in-
conscientes para esta ou aquela atitude, fica mais fácil lidar com seu mundo interior, resol-
vendo medos, conflitos e agressões.
Como esta terapia se volta ao indivíduo em sua relação intrapessoal, o processo de au-
toconhecimento que ela desencadeia foi denominado por Jung de processo de individuação
158
.
E esta foi a razão de se trabalhar o livro do Eclesiastes sob o viés da psicologia profunda: o li-
vro do Eclesiastes fala sobre assuntos atemporais e universais, tais como morte e vida, riqueza
e pobreza, opressão e liberdade, sabedoria e insensatez. Ele se ocupa destes assuntos de uma
forma abrangente e, ao mesmo tempo, pessoal; podem-se ler suas reflexões tanto no plano ge-
ral da história quanto num nível bem particular.
A partir dessa proposta, Jung passou a considerar insuficiente a teoria de Freud, se-
gundo a qual todos os problemas psíquicos manifestos nas pessoas poderiam ser reduzidos ao
aspecto da sexualidade: esta seria a força básica, o impulso primordial presente no inconscien-
te humano mas, para Jung, essa avaliação pareceu sempre muito limitante. Este é um dos
aspectos mais importantes da teoria aqui tratada; foi esta a causa de Jung ter se afastado radi-
calmente de Freud, mesmo tendo sido seu discípulo e sucessor na prática da psicanálise até
então, embora não se deva entender equivocadamente o que Freud denominava de sexualida-
de, e que é bastante diverso do que muitas vezes se interpreta como sendo somente uma espé-
cie de genitalidade. As críticas a Freud afirmam que ele ter-se-ia deixado dominar por vivên-
cias muito pessoais em sua terapia, empobrecendo dessa forma a proposta de trabalho. Um
outro aspecto é que Freud se interessava muito mais pelo relacionamento do paciente com as
outras pessoas: na psicanálise freudiana, o paciente resolve seus conflitos com pais, irmãos,
158
As expressões em itálico usadas até aqui serão estudadas em detalhes a seguir, neste mesmo capítulo.
83
parceiros etc., e tem de revelar suas histórias e seus segredos mais pessoais para chegar ao
âmago da questão.
Jung, por sua vez, percebeu que mais elementos que compõem a psique humana, e
que é necessário buscar a integralidade do ser, ao invés de separá-lo em compartimentos defi-
nidos e estanques. Para Jung, tais elementos podem referir-se, p.ex., ao aspecto da fé e da re-
ligião na vida de cada pessoa, e a outras facetas do convívio humano que projetam o ser para
dentro de seu mundo, sem que haja uma conexão entre essas facetas que sempre reverta às
questões mal-resolvidas da sexualidade. Jung esclarece que a religião é identificada pela mai-
oria das pessoas como uma confissão denominacional, o que causa certa confusão na correta
acepção do termo. Para este trabalho, será utilizada a compreensão de religião de Jung nos se-
guintes termos: “Religião designa a especial visão de mundo de um consciente que foi modi-
ficado através da experiência do numinoso”
159
. Sua definição de confissão religiosa seria:
Confissões são formas codificadas e dogmatizadas de experiências religiosas originais.
Os conteúdos da experiência foram sacralizados e, por via de regra, petrificados dentro de
uma inflexível, freqüentemente complicada construção intelectual
160
.
A experiência do numinoso não pode se prender a padrões denominacionais, mas quer
ser vivenciada como parte intrínseca da psique do indivíduo, e é assim que será tratada de ora
em diante. Em outros termos, “a verdadeira história do espírito não se encontra bem guardada
em livros eruditos, mas está presente no organismo vivo, espiritual de cada pessoa”
161
.
Jung também derivou sua proposta de avaliação psicanalítica de problemas pessoais,
mesmo que partindo de bem outro ponto: Jung tratava de pacientes psicóticos, enquanto Freud
se ocupava de neuróticos. Jung não apostava nos relacionamentos interpessoais do paciente
para tratá-lo, e sim se baseava em sua psique sonhos, visões, experiências do divino e ou-
tras. Essas experiências, e a questão da em si, perturbaram Jung de forma muito séria. Vê-
se isso, p.ex., quando ele analisa a atitude religiosa de seu pai, que fora pastor da Igreja Re-
formada suíça:
159
„Religion bezeichnet die besondere Einstellung eines Bewußtseins, welches durch die Erfahrung des Numi-
nosum verändert worden ist“. C. G. JUNG, PR, p. 15. – Vide lista de abreviações das obras de Jung no início
deste trabalho.
160
„Konfessionen sind kodifizierte und dogmatisierte Formen ursprünglicher religiöser Erfahrungen. Die Inhalte
der Erfahrung sind geheiligt und in der Regel starr geworden in einem unbeugsamen, oft komplizierten Ge-
dankengebäude“. Ibid., p. 16.
161
„Die wahre Geschichte des Geistes ist nicht in gelehrten Büchern aufbewahrt, sondern in dem lebenden, see-
lischen Organismus jedes Einzelnen“. Ibid., p. 64-65.
84
(Ele) tomara por regra de conduta os mandamentos da Bíblia, acreditando em Deus como
a Bíblia exige e como os seus pais o haviam ensinado. Mas não conhecia o Deus vivo,
imediato, que se mantém livre e onipotente, acima da Bíblia e da Igreja, que chama o ser
humano à sua liberdade e que também pode obrigá-lo a renunciar às próprias opiniões e
convicções, a fim de cumprir sem reservas a Sua vontade
162
.
Ao contrário da experiência negativa do pai, foi esse “Deus vivo” que Jung identificou
em si mesmo, em vários momentos de sua vida, e que fê-lo buscar uma maneira de poder co-
nhecer-se melhor, de conhecer o mundo e entender Deus, o seu maior desafio: “[…] impossí-
vel ceder, porém, antes de haver compreendido qual seria a vontade de Deus e a sua inten-
ção”
163
. Isso porque ele sempre vivera a religião como um sistema fechado e dogmatizado:
[…] uma prova enviada por Deus para mostrar-lhe que cumprir Seu desejo pode fazer
com que a pessoa contra a Igreja e contra as mais sagradas tradições. Daí em diante,
Jung sentiu-se distanciar da devoção convencional de seu pai e de seus parentes religio-
sos. Ele viu como a maioria das pessoas se afasta de uma experiência religiosa direta,
permanecendo limitada pela letra de convenção da Igreja ao invés de considerar seria-
mente o espírito de Deus como uma realidade viva
164
.
Essa luta por tentar entender Deus estender-se-ia por muitos anos, e Jung acabou cons-
tatando que a teologia e a filosofia de sua época não lhe dariam respostas satisfatórias, ao pas-
so que a vida real, manifestação de todas as vivências psíquicas, físicas e espirituais, revelava
muito mais sobre o ser humano que o poderiam todas as enciclopédias. Ao mesmo tempo, o
pai de Jung estudara muito sobre história oriental, e isso influenciou o jovem em sua jornada
de estudos; ele chegou a cogitar uma carreira de arqueólogo. Mas ele não conseguia encontrar
qualquer pista concreta sobre quem seria o Deus que ele buscava:
Minha “religião” não supunha qualquer relação humana com Deus, considerando a im-
possibilidade de situar-me diante de algo tão deficientemente conhecido. Seria necessário
instruir-me melhor acerca d’Ele, a fim de tornar possível essa relação
165
.
Ao mesmo tempo, seus conflitos quanto à questão de como considerar Deus, a e a
religião tinham como base a indestrutível, não intermediada por outras pessoas, naquele
Deus que ele experimentava na esfera mais pessoal, e que lhe colocava tanto desafios quanto
certezas da existência:
162
C. G. JUNG, Memórias, sonhos, reflexões, p. 48.
163
Ibid., p. 47.
164
J. FADIMAN, R. FRAGER, op. cit., p. 43.
165
C. G. JUNG, MSR, p. 61.
85
Ninguém conseguiu demover-me da certeza de que estava no mundo para fazer o que
Deus queria e não o que eu queria. Em todas as circunstâncias decisivas isto sempre me
deu a impressão de não estar entre os homens, mas de estar a sós com Deus. Sempre que
estava “lá” e, portanto, não mais a sós, me sentia fora do tempo, nos séculos, e Aquele
que me respondia era O que sempre foi e que sempre será. Este diálogo com o “Outro”
constituiu minha mais profunda vivência: por um lado, luta sangrenta e, por outro, su-
premo arrebatamento
166
.
Estas e outras experiências de natureza psíquico-religiosa acabaram por canalizar seu
interesse para o estudo da medicina e, particularmente, da psicanálise, área na qual ele come-
çou a trabalhar até criar um método terapêutico próprio, que foi denominado por ele de psico-
logia profunda (Tiefenpsychologie). Esse método busca resgatar as raízes da vivência psíquica
e religiosa do indivíduo para além de sistemas sociais, políticos e filosófico-religiosos:
O psicólogo não pode […] tomar em conta a reivindicação de todas as confissões de se-
rem a única e eterna verdade. Ele tem de prestar atenção ao lado humano do problema re-
ligioso, uma vez que ele se ocupa da experiência religiosa original, totalmente indepen-
dente do que as confissões fizeram dela
167
.
A psicologia profunda parte do princípio de que todos os indivíduos trazem dentro de
si determinadas reações e comportamentos diante do desafio de elementos universais e intem-
porais, tais como o medo, a fome, a religiosidade, o instinto de sobrevivência, a preservação
da espécie e outros. Esses comportamentos repousam no que Jung chama de inconsciente co-
letivo e, dentro deste, eles são manifestações dos chamados arquétipos, “modelos” que aju-
dam a formar a psique e que têm características inatas e gerais presentes em todas as pessoas.
Apesar de cada pessoa ser, em primeiro lugar, um indivíduo e ter, portanto, um inconsciente
pessoal, o qual orienta suas ações mais particulares, esse inconsciente é apenas uma variação
dentre o grande conjunto coletivo de reações e manifestações psíquicas:
Podemos pensar durante toda a vida que seguimos nossas próprias idéias, sem descobrir
que fomos os comparsas essenciais no palco do teatro universal. Pois fatos que igno-
ramos e que, entretanto, influenciam poderosamente nossa vida por serem inconscien-
tes
168
.
Por isso, cada vez mais pessoas buscam conhecer-se a si mesmas, tentando também
encontrar o elo de ligação com o divino, através dos mais diversos caminhos que buscam a i-
dentificação com o suprapessoal, a idéia do absoluto, eterno, indestrutível. A pessoa que per-
166
C. G. JUNG, MSR, p. 54.
167
„Der Psychologe darf […] den Anspruch eines jeden Bekenntnisses, die einzige und ewige Wahrheit zu sein,
nicht berücksichtigen. Er muß sein Augenmerk auf die menschliche Seite des religiösen Problems richten, da
er sich mit der ursprünglichen religiösen Erfahrung befaßt, ganz abgesehen davon, was die Bekenntnisse da-
raus gemacht haben“. C. G. JUNG, PR, p. 17.
168
C. G. JUNG, MSR, p. 88.
86
corre o caminho de autoconhecimento rumo a si mesma e a seu inconsciente pessoal, preten-
dendo conhecer-se e identificar-se em suas ações, reações e comportamentos, experiencia o
que Jung chama de processo de individuação, ou seja, ela vem a tornar-se “indivíduo” no sen-
tido pleno do termo. Segundo Jung, todo indivíduo tem a tendência ao autodesenvolvimento,
em sua linguagem chamado de individuação por tratar-se do processo de “tornar-se si mes-
mo” ou “realizar-se a si mesmo”:
A individuação requer primeiramente uma diferenciação no campo intrapsíquico, de um
encontro gradativo da consciência com os conteúdos do inconsciente, com as imagens e
energias vitais e coletivas de renovação psicológica, no sentido de abarcar a totalidade da
psique. No plano intersubjetivo, exige uma penosa diferenciação eu - mundo, de valoriza-
ção da individualidade em relação às normas e identidades estabelecidas, nas relações
com os outros mais significativos, com os grupos sociais e a sociedade em geral, sem que
se rompam os vínculos indispensáveis à convivência e sobrevivência social, apesar das
diferenças que se vão constituindo. Da mesma forma, a individuação […] não implica ca-
ir no escapismo, no individualismo cultural ou na aceitação passiva da realidade social de
opressão, já que significa também o resgate de valores universais preservados pela cultura
num plano mais avançado, na descoberta de uma dimensão profundamente ética, mas di-
ferenciada e mais autônoma, que estes valores deverão ser vividos de forma mais sin-
gular e inconfundível
169
.
A partir desse processo de integração das várias partes da psique em direção à totali-
dade do ser, a pessoa se torna mais apta a conviver consigo mesma, porque estará mais segura
de si e em paz interior. Esse ponto se atinge após muitas lutas interiores para aprender a
conviver com os próprios problemas, tentando encontrar alternativas saudáveis de comporta-
mento e atitudes:
[…] acima de tudo, esta capacidade depende fundamentalmente de nossa própria vivência
pessoal e de nossa própria coragem de enfrentar estas angústias em cada um de nós, em
nosso processo pessoal de individuação, e que vai inclusive muito além das respostas
prontas oferecidas pelos sistemas institucionalizados de crenças religiosas ou a-religio-
sas
170
.
Durante o processo de individuação, o inconsciente pessoal pode se beneficiar dos
conteúdos do inconsciente coletivo para explicar determinados comportamentos pessoais an-
tes incompreensíveis. Jung descobriu que é no inconsciente coletivo que está a resposta para
muitas atitudes até então consideradas inexplicáveis e, por isso, incuráveis do ponto de vista
da terapia tradicional, porque não se ia além de um determinado estágio da análise:
169
Eduardo VASCONCELOS, Espiritualidade e cuidado em saúde. Disponível em www.rubedo.psc.br, acesso
em 20 jun. 2005.
170
C. G. JUNG, MSR, p. 88.
87
[…] a alma é muito mais complexa e inacessível que o corpo. Poder-se-ia dizer que é essa
metade do mundo não existente senão na medida em que dela se toma consciência. As-
sim, pois, a alma não é só um problema pessoal, mas um problema do mundo inteiro, e é
a esse mundo inteiro que o psiquiatra deve se referir
171
.
No entanto, embora a pessoa deseje, realmente, conhecer-se a si mesma para conseguir
lidar melhor com seus problemas e ter mais tranqüilidade para enfrentar o mundo, esse pro-
cesso é doloroso e pode levar a certos tipos de “fuga”, p.ex. para dentro de um tipo de religio-
sidade confessional, que nada tem a ver com as genuínas experiências do numinoso. Religere,
a raiz do termo religião, significa, entre outras coisas, “considerar e observar cuidadosamen-
te”. A maioria das religiões contenta-se em “ficar de fora” da experiência com o numinoso, a-
tribuindo-a a expoentes como Jesus ou Buda, e apenas “observa cuidadosamente”. Jung cons-
tata que as pessoas preferem eximir-se durante o processo de autoconhecimento quando sur-
gem as primeiras dúvidas; encontrar-se a si mesmas em sua totalidade causaria pânico verda-
deiro. É assim que se explica
[…] porque as pessoas temem tornar-se conscientes de si mesmas. Poderia haver mesmo
algo por trás da cortina nunca se pode saber e por isso é preferível considerar e ob-
servar cuidadosamente” fatores que se encontram fora do consciente
172
.
Essa dualidade entre a busca e o desconforto causado pela possível descoberta de coi-
sas acerca de si mesmo forma uma polaridade na psique humana. Por um lado, quer-se viven-
ciar a “cura psíquicapara elevar a qualidade de vida interior e, em última análise, também a
vida física; por outro, encontrar-se significa aceitar-se em sua totalidade, em seus aspectos po-
sitivos e negativos, e isso é o mais difícil para a maioria das pessoas: “Para além de toda timi-
dez natural, de todo sentimento de pudor e de tato, existe um temor secreto dos ‘perils of the
soul’, os perigos da alma”
173
.
Jung esclarece que essa polaridade é o resultado de fenômenos que são confirmações
de vivências comuns a todos os seres humanos, em todas as épocas e todos os lugares, mani-
festando-se tanto no inconsciente pessoal quanto no coletivo:
171
C. G. JUNG, MSR, p. 121.
172
„[…] warum die Menschen sich fürchten, ihrer selbst bewußt zu werden. Es könnte ja wirklich etwas hinter
dem Vorhang sein man kann nie wissen und deshalb zieht man es vor, Faktoren aerhalb des Bewußt-
seins ‚zu berücksichtigen und sorgfältig zu beachten’“. C. G. JUNG, PR, p. 25.
173
„Über alle menschliche Scheu, alles Scham- und Taktgefühl hinaus gibt es eine geheime Furcht vor den
‚perils of the soul’, den Gefahren der Seele“. Ibid., p. 25.
88
De que maneira poderia ter ocorrido ao ser humano dividir o cosmo, a partir da analogia
de dia e noite, verão e inverno, num mundo diurno resplandecente e outro mundo noturno
escuro, habitado por monstros fabulosos, se ele não tivesse o protótipo dessa divisão em
si mesmo, na polaridade entre a consciência e a invisível e incognoscível inconsciên-
cia?
174
A explicação para a existência dessas polaridades é que todo ser humano é composto
de luz e sombra, do elemento feminino e masculino, de aspectos terrenos e divinos. Não se
deve tentar suprimir ou reprimir esses contrastes; ao contrário, deve-se buscar a integralidade
da psique para chegar à melhor forma possível de vida psíquica:
De acordo com Jung, é a oposição que faz surgir o poder (ou libido) da psique. É como os
dois pólos de uma pilha, ou a fissura de um átomo. É o contraste que fornece a energia, de
forma que um contraste forte produz energia forte, e um contraste frágil produz energia
frágil
175
.
Por outro lado, o raciocínio que divide tudo em polaridades corre um sério risco. Jung
identifica a polarização extrema como uma dissociação entre o consciente e o inconsciente,
um dos níveis mais patológicos da psique humana. Ele cita exemplos do mundo artístico, co-
mo a narrativa de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, ou casos reais de verdadeiras neuroses em pessoas
que simplesmente não sabem mais quem são, parecendo ter duas ou mais personalidades
176
.
Também uma das mais famosas obras de Hermann Hesse, O lobo da estepe, lida com
os conflitos interiores entre o “lobo”, ou seja, os elementos desconhecidos que dominam o in-
consciente, e o ser humano aparentemente “domesticado” e apto a viver em sociedade
177
: o
personagem principal, Harry Haller, é um homem de 50 anos, burguês alienado, deprimido e
autodestrutivo. Ele tenta equilibrar-se, mesmo estando à beira do abismo, e acaba isolando-se
de tudo e de todos até encontrar Hermínia, uma mulher comum. Ela fica com pena de Harry e
o reaproxima do mundo. Este seria um caso característico de um ser humano iniciando o ca-
174
“How else could it have occurred to man to divide the cosmos, on the analogy of day and night, summer and
winter, into a bright day-world and a dark night-world peopled with fabulous monsters, unless he had the
prototype of such a division in himself, in the polarity between the conscious and the invisible and
unknowable unconscious? (_CW_ 9i: 187). Favourite quotations of C. G. Jung. Disponível em
http://en.thinkexist. com/quotes/carl_gustav_jung/, acesso em 20 jun. 2005.
175
“According to Jung, it is the opposition that creates the power (or libido) of the psyche. It is like the two poles
of a battery, or the splitting of an atom. It is the contrast that gives energy, so that a strong contrast gives
strong energy, and a weak contrast gives weak energy”. George C. BOEREE, About Carl G. Jung. Disponí-
vel em www.studiocleo.com/librarie/jung/introboereemain.html, acesso em 09 jun. 2005.
176
C. G. JUNG (org.), HS, p. 23ss.
177
“[…] o lobo da estepe crê levar […] em seu peito duas almas (lobo e homem) e por isto sente o peito demasi-
adamente oprimido e estreito. O peito, o corpo, é sempre uno, mas as almas que nele residem não são nem
duas, nem cinco, mas incontáveis, o homem é um bulbo formado por cem folhas, um tecido urdido com mui-
tos fios. Os antigos asiáticos sabiam disto muito bem, e encontraram na ioga búdica uma técnica precisa para
descobrir a ilusão da personalidade”. Hermann HESSE, O lobo da estepe, p. 65.
89
minho de construção de sua personalidade, mesmo tendo de ir contra si mesmo, em plena
meia-idade.
Também James Fowler destaca que a meia-idade é a fase da vida em que o indivíduo
se desprende aos poucos do coletivo para começar a encarar o seu “eu”, em busca de um au-
toconhecimento que oriente seus passos daí por diante. Ele considera a fé um processo evolu-
tivo em vários estágios, dos quais serão destacados os seguintes:
Fé individuativa / projetiva
O quarto estágio, para aqueles que o desenvolvem, é um tempo em que a pessoa é retira-
da, ou sai por si, do círculo de relações interpessoais que sustentara sua vida até então.
Agora surge o peso da reflexão acerca de si mesmo, separado dos grupos e do mundo
compartilhado que define a vida de cada pessoa. Às vezes eu cito Santayana, que disse
que nós não sabemos quem descobriu a água, mas sabemos que não foi um peixe. A pes-
soa que se encontra num estágio anterior é como o peixe suspenso pela água. Para pene-
trar no próximo estágio é preciso saltar para fora do açude e começar a refletir sobre a á-
gua. Muitas pessoas não completam essa transição, mas se encontram presas entre o está-
gio três e o quatro. […]O estágio quatro tem a ver com fronteiras: onde eu paro e você
começa; onde o grupo ao qual eu posso pertencer com convicção e autenticidade termina
e outro grupo começa. Tem muito a ver com autenticidade e um jogo entre a maneira
própria como eu me sinto num grupo e os compromissos ideológicos aos quais eu me sin-
to preso.
Fé conjuntiva
Em torno dos 35 ou 40 anos algumas pessoas vivem uma mudança para aquilo que cha-
mamos de conjuntiva, que é um tipo de caminho intermediário de viver a fé. […]
Quando alguém entra no estágio cinco ele começa a perceber que o “eu” consciente não é
sua totalidade. Eu tenho um inconsciente. Muito do meu comportamento e das reações às
coisas é determinado por dimensões do “eu” que eu não consigo perceber totalmente. […]
O estágio cinco é um período no qual a pessoa está vivendo em paradoxos. Compreende-
se que a verdade tem várias dimensões, que têm de ser relacionadas numa tensão parado-
xal.
Estágio seis: fé universalizante
Encontramos muito poucas pessoas rumo ao estágio seis, o qual chamamos de univer-
salizante. Em certo sentido, creio que podemos descrever este estágio como aquele em
que a pessoa começa radicalmente a viver como se aquilo que cristãos e judeus chamam
de “reino de Deus” fosse realmente um fato. […] Elas se sentem felizes com o que eu de-
nomino de união do ser. Observamos essas pessoas, por um lado, como sendo mais lúci-
das e simples do que nós somos, e, por outro lado, como pessoas intensamente libertado-
ras, às vezes mesmo subversivas em suas características libertadoras. Penso em Martin
Luther King Jr. em seus últimos anos de vida. Penso em Thomas Merton. Penso em Ma-
dre Teresa de Calcutá. Penso em Dag Hammerskjøld e Dietrich Bonhoeffer em seus últi-
mos anos de prisão. São pessoas que, em certo sentido, negaram seu “eu” em favor da a-
90
firmação de Deus. Mas mesmo afirmando Deus elas se tornaram vibrantes e poderosas
em si mesmas, tal como nós as vemos
178
.
Esta citação bastante longa de Fowler é importante para se compreender que a fé é um
processo em contínuo desenvolvimento, além de evidenciar que existem várias “camadas” de
percepção no consciente e no inconsciente de cada indivíduo. Nesse ponto ele concorda com
Jung, que ressalta o impacto da busca pelo autoconhecimento a partir da meia-idade. Atingir a
integralidade do ser torna-se, por causa disso, um objetivo tanto mais sério e importante, na
medida em que, antes de esse processo ter seu início, o ser humano ainda se encontrar frag-
mentado psiquicamente:
[…] este processo psicológico revela, então, um registro inconsciente do tipo “tudo na-
da” que, no nosso caso concreto, se por meio de três operações simultâneas que pode-
ríamos chamar de “dissociação imaginária totalizante”:
a) pela reafirmação implícita ou explícita do princípio romântico de que o homem – ou a
herança do gênero humano é fundamentalmente bom, e de que todas as limitações e
problemas humanos constituem mera facticidade histórica, superáveis pela eliminação
dos entraves sociais e históricos (identificáveis desde já por uma consciência humana pri-
vilegiada capaz de vislumbrar todo o futuro) que impedem a realização de sua humanida-
de total e reconciliada, ou que bloqueiam o processo de realização da plena racionalidade
nas relações sociais de forma concreta na história;
b) pela dissociação totalizante e maciça que coloca todas as características negativas hu-
manas em um dos pólos, o dos inimigos históricos concretos, no modo de produção, nas
178
“Individuative/Projective Faith – Stage Four, for those who develop it, is a time in which the person is pushed
out of, or steps out of, the circle of interpersonal relationships that have sustained his life to that point. Now
comes the burden of reflecting upon the self as separate from the groups and the shared world that defines
one’s life. I sometimes quote Santayana who said that we don’t know who discovered water but we know it
wasn’t fish. The person in Stage Three is like the fish sustained by the water. To enter Stage Four means to
spring out of the fish tank and to begin to reflect upon the water. Many people don’t complete this transition,
but get caught between three and four. […] Stage Four is concerned about boundaries: where I stop and you
begin; where the group that I can belong to with conviction and authenticity ends and other groups begin. It’s
very much concerned about authenticity and a fit between the self I feel myself to be in a group and the
ideological commitments that I’m attached to. […] Stage Five: Conjunctive Faith Sometime around 35 or
40 or beyond some people undergo a change to what we call conjunctive faith, which is a kind of midlife way
of being in faith. […] As one moves into Stage Five one begins to recognize that the conscious self is not all
there is of me. I have an unconscious. Much of my behavior and response to things is shaped by dimensions
of self that I’m not fully aware of. […] Stage Five is a period when one is alive to paradox. One understands
that truth has many dimensions which have to be held together in paradoxical tension. […]Stage Six:
Universalizing Faith Some few persons we find move into Stage Six, which we call universalizing faith. In
a sense I think we can describe this stage as one in which persons begin radically to live as though what
Christians and Jews call the ‘kingdom of God’ were already a fact. […] They’re at home with what I call a
commonwealth of being. We experience these people on the one hand as being more lucid and simple than
we are, and on the other hand as intensely liberating people, sometimes even subversive in their liberating
qualities. I think of Martin Luther King, Jr. in the last years of his life. I think of Thomas Merton. I think of
Mother Teresa of Calcutta. I think of Dag Hammerskjold and Dietrich Bonhoeffer in the last years of his
imprisonment. These are persons who in a sense have negated the self for the sake of affirming God. And yet
in affirming God they became vibrant and powerful selves in our experience. ”. James FOWLER, em
entrevista para Harold Kent Straughn: “His search for a faith development theory began in a trash can”. Dis-
ponível em www.lifespirals.com/TheMindSpiral/Fowler/fowler.html, acesso em 21 jan. 06.01.
91
classes dominantes, na propriedade privada, na exploração do trabalho ou na fetichização
da mercadoria;
c) pela dissociação também totalizante que atribui toda a herança positiva do gênero hu-
mano ao pólo oposto, o do agente histórico revolucionário, como portador do processo de
reconciliação ou racionalização plena do homem
179
.
A citação e os exemplos de Vasconcelos se referem a aspectos específicos da vivência
política e histórica do ser humano, mas à guisa de explicação se adaptam a esta problemática.
O importante é ver que também ele ressalta o aspecto das polaridades que organizam a vida
psíquica humana – ou pelo menos deveriam organizá-la – e o perigo que surge quando um dos
lados predomina e faz surgir carências e mesmo traumas do lado oposto. Essa dissociação é o
que impede uma vivência integrada do ser humano num mundo cada vez mais compartimen-
tado: “Ao fantástico desenvolvimento da ciência e da técnica corresponde, por sua vez, uma
assustadora falta de sabedoria e introspecção”
180
. As polarizações excessivas tendem a produ-
zir não apenas preconceitos sociais, senão idealizações das outras pessoas a partir da avalia-
ção “tudo-nada”, ou então “perfeito-desprezível”, o que pode dificultar sobremaneira o conví-
vio harmonioso.
Estas são as premissas que orientam a análise das perícopes do livro do Eclesiastes no
terceiro capítulo deste trabalho. Embora ambos os autores (Jung e o Ec) se movimentem em
planos diversos, tanto no campo psíquico quanto físico, existem surpreendentes coincidências
em seu modo de pensar e ver o mundo. A trajetória do autor do livro do Eclesiastes, visível
em suas colocações sobre a morte e a fruição da vida, refletem o esforço de compreender-se
como um indivíduo que tem uma história, está inserido no cotidiano presente e se prepara pa-
ra um futuro, desconhecido mas factível de cuidados e reflexões antecipatórias:
[…] a arte de interpretar o passado está na tentativa de […] encontrar o presente ao mes-
mo tempo em si mesmo e no outro da história. Em outras palavras, compreende-se o as-
pecto histórico somente quando se comprova seu retorno dentro do presente, e portanto
sua relevância para o presente, e inversamente: apenas se compreende o aspecto histórico
quando se descobre a si mesmo nas conformações do passado
181
.
179
E. VASCONCELOS, op. cit.
180
„Die großartige Entwicklung von Wissenschaft und Technik wird auf der anderen Seite aufgewogen durch
einen erschreckenden Mangel an Weisheit und Introspektion“. C. G. JUNG, PR, p. 30.
181
„Die Kunst der Interpretation der Vergangenheit liegt […] darin, [das] Gegenwärtige zugleich in sich selbst
und in dem anderen der Geschichte aufzufinden. Man versteht m.a.W. das Historische nur, wenn man seine
Wiederkehr in der Gegenwart, mithin seine Relevanz für die Gegenwart aufweist, und ungekehrt: man ver-
steht das Historische nur, wenn man sich selbst in den Gestaltungen der Vergangenheit wiederentdeckt“.
Eugen DREWERMANN, Tiefenpsychologie und Exegese, p. 58.
92
Partindo da mútua compreensão de passado e presente pode-se preparar melhor o futu-
ro, ou seja, aprender a perceber a vida de maneira nova, não para se arrepender do passado e
tentar reparar erros, mas para construir uma personalidade que consiga lidar consigo mesma,
com seus medos e angústias, mas, antes de tudo, com todas suas potencialidades em desen-
volvimento. A isso se pode chamar de “re”-nascimento, na medida em que o ser humano dei-
xa para trás um tipo de existência que não lhe convém para entrar em outro universo de vi-
vências próprias e convívio. Todo processo de nascimento é doloroso, tal como o é o nasci-
mento em seus aspectos biológicos: deixam-se para trás a proteção, a sensação de calor e o
conforto do ventre materno para viver num mundo novo e hostil. Mas esse processo é funda-
mental para a evolução humana, também no aspecto psíquico:
Nascimento significa desunião do todo, limitação, afastamento de Deus, penosa reencar-
nação. Volta ao todo, anulação da dolorosa individualidade, chegar a ser Deus, quer dizer:
ter dilatado a alma de tal forma que se torne possível voltar a conter novamente o todo
182
.
Cabe ainda esclarecer que Jung privilegia o tratamento e a análise de pessoas mais
maduras, do ponto de vista da idade biológica, estabelecidas financeira e profissionalmente, e
muitas vezes em plena “crise da meia-idade” em função de conflitos pessoais não resolvidos
até então: fé mal vivida, psique em desequilíbrio, busca de realização e sentido da vida são al-
gumas questões bastante angustiantes para as pessoas nessa fase. Jung constata que, para atin-
gir serenidade e harmonia em si mesma, a pessoa precisa voltar-se aos aspectos negligencia-
dos até esse momento. A culminância do processo de individuação é, portanto, a integração, o
tornar-se “inteiro”.
A partir da meia-idade começa a jornada rumo à morte, e então é necessário fazer um
balanço muito sério dos valores cultivados e das expectativas que permanecem: tal como o
Ec, que acabou desistindo dos bens materiais e da busca pela “sabedoria absoluta” em favor
de uma vida realizada do ponto de vista espiritual, agora é o momento de desistir do “ego
mundano” e aceitar a vida tal como ela é um estágio que pode ser denominado de despren-
dimento do mundo terreno com seus valores materiais. É neste ponto que Jung e o Ec coinci-
dem da maneira mais clara, mesmo partindo de direções opostas: conforme se verificou no
primeiro capítulo deste trabalho, o Ec parece ser uma pessoa que já está além da meia-idade, e
reflete sobre sua experiência de vida a partir de certa tranqüilidade interior. Jung trata de pes-
182
H. HESSE, op. cit., p. 69.
93
soas que ainda estão numa fase anterior, intermediária, talvez no centro de sua crise pessoal, e
precisam de auxílio para superá-la e alcançar maior qualidade de vida. Para que tudo isso a-
conteça de forma satisfatória, é preciso muita firmeza e força interior: a capacidade de olhar
para si mesmo é uma das exigências mais extenuantes desse processo, porque se obtém
êxito na terapia através da mais absoluta sinceridade consigo mesmo. Ver-se-ão detalhes des-
sa jornada no item que trata da sombra.
2. A importância dos sonhos
Uma das principais diferenças entre as vias de acesso do Ec e de Jung ao conhecimen-
to de si mesmo consiste no fato de que o Ec tece suas considerações partindo da realidade
palpável, concreta, observável: são aqueles comportamentos, atitudes, reações a fatos do coti-
diano que vão moldando a pessoa com maior ou menor intensidade, incluindo-se as influ-
ências de campos como a política, da cultura e da religião. Jung, por sua vez, privilegia a vida
interior do indivíduo tal como ela se manifesta em seus sonhos; ele confere um poder todo es-
pecial aos sonhos, na medida em que eles podem ser mensagens claras e inequívocas a respei-
to de atitudes e comportamentos que estejam causando problemas à própria pessoa ou às ou-
tras, mesmo que ela por si só não esteja se dando conta disso:
[…] o perigo que nos ameaça a todos não vem da natureza, mas dos seres humanos, da
alma do indivíduo e de todos. O perigo reside na alteração psíquica do ser humano. Tudo
depende do bom ou do mau funcionamento da nossa psique. Se hoje em dia certas pesso-
as perderem a cabeça, poderão explodir uma bomba de hidrogênio
183
.
Um exemplo simples e freqüente para evidenciar a importância do sonho, em tal esta-
do de perturbação psíquica, é aquela pessoa que sonha muito estar voando, ou tentando voar,
escalar, lançar-se no espaço: essa pessoa pode estar apresentando atitudes de arrogância ou de
querer “ser mais”, ostentar, dar passos maiores que as pernas etc. Então, esse tipo de sonho
aparece para preveni-la de que nem tudo em sua vida “real”, consciente, está em ordem, e que
ela precisa repensar suas emoções mais profundas. Também sonhos em que a pessoa tem
de atravessar rios ou lagos: quase sempre atravessar a água significa encarar uma mudança
radical na vida, principalmente nas atitudes diárias do consciente
184
. Esse tipo de interpretação
está baseado nos símbolos que codificam a comunicação humana, tal como no exemplo aci-
ma: a água e a forma como ela aparece em sonhos desempenha um determinado papel sobre a
183
C. G. JUNG (org.), HS, p. 23ss.
184
Marie-Louise von FRANZ, O processo de individuação, in: C. G. JUNG (org.), HS, p. 199.
94
psique, assim como os mais variados objetos (muitas vezes sagrados ou ritualísticos), deter-
minadas construções (obeliscos, dolmens, torres etc.), cores e formas, conhecidas da maioria
das pessoas e detentoras de significados profundos
185
.
É interessante anotar os próprios sonhos e começar a refletir sobre eles, para descobrir
se eles contêm alguma mensagem que o consciente não está querendo “entender”, por ela ser
muito perturbadora. Conforme a análise de sonhos feita por Jung, a maioria das pessoas tem,
em algum momento de suas vidas, pesadelos cheios de mensagens contraditórias e assustado-
ras, e é então que elas buscam a psicologia profunda para esclarecer o que está havendo com
seu inconsciente. Nada impede que sonhos positivos, alegres, também contenham mensagens
a serem levadas a sério; mas a função primordial dos sonhos é, paradoxalmente, “despertar” a
pessoa para uma nova tomada de consciência, e isso quase sempre só é possível através de um
“chacoalhão” sério: “[…] um choque de natureza emocional é muitas vezes necessário para
que as pessoas acordem e se dêem conta da maneira que estão agindo”
186
. De certa forma, esse
choque é mais bem aceito quando provém dos próprios sonhos, e não quando são outras pes-
soas que acusam ou criticam atitudes e reações, uma vez que a tendência é projetar para fora
de si o que não agrada: as críticas que se fazem às outras pessoas normalmente são o reflexo
daquilo que se localiza no próprio inconsciente e desagrada ou perturba. A imagem do “espe-
lho interior” é bastante útil para descrever o que acontece com a pessoa nesse momento:
[…] Ele suspeita e teme a possibilidade de um encontro consigo mesmo, e está cônscio da
existência daquele espelho no qual tem uma necessidade tão amarga de olhar-se e no qual
teme mortalmente ver-se refletido
187
.
Os sonhos contêm manifestações arquetípicas, guardadas no inconsciente tanto pessoal
quanto coletivo. Os arquétipos, conforme se verá adiante, são determinados “personagens”
que ficam na memória quando se acorda – um velho sábio, uma feiticeira, a mãe protetora etc.
– e que querem enviar mensagens do inconsciente para o consciente, para que a pessoa reaja e
modifique atitudes que podem estar prejudicando-a. É importante saber interpretar essas men-
sagens, mesmo que incompreensíveis e misteriosas, à primeira vista, para tirar o máximo de
proveito da “lição de vida” que está sendo dada.
185
Nos limites desta pesquisa, não foi possível estender-se sobre a importância e o papel dos símbolos nos so-
nhos segundo a teoria de Jung. Pode-se consultar sua obra O homem e seus símbolos para tanto, ou Mircea
Eliade, Mefistófeles e o andrógino, que falam sobre a simbologia religiosa.
186
C. G. JUNG, op. cit., p. 76.
187
H. HESSE, op. cit., p. 61.
95
A seguir, apresentar-se-ão em detalhes alguns dos elementos citados anteriormente – o
inconsciente pessoal e coletivo e os arquétipos –, para realçar sua importância na psicologia
profunda quando se trata de reler, interpretar e compreender determinados textos que expres-
sam perturbações inerentes a todos os seres humanos, tal como acontece no texto do livro do
Eclesiastes como um todo.
3. O consciente – persona e ego
Antes de chegar à questão do inconsciente propriamente dito, far-se-á uma rápida di-
gressão acerca dos elementos que compõem o consciente, a persona e o ego. Estes elementos
são os que mais facilmente se atinge no início da terapia, dado que a pessoa tem livre acesso a
eles e pode, de certa forma, controlá-los; dir-se-ia que a persona é aquela parte de si mesmo
que se “exibe” aos outros, e o ego é a expressão real de si mesmo, embora apenas em seus as-
pectos superficiais.
A persona representa nossa imagem pública. O termo está obviamente relacionado às pa-
lavras pessoa e personalidade, e vem de uma expressão latina para máscara. Assim, a
persona é a máscara que se coloca antes de mostrar-se para o mundo exterior. […] ela é a
parte de nós mais distante do inconsciente coletivo. No máximo se pode dizer que ela é a
“boa impressão” que todos nós queremos deixar quando cumprimos os papéis sociais que
se exigem de nós. Mas, obviamente, ela pode ser também a “falsa impressão” que usamos
para manipular a opinião e os comportamentos das pessoas. E, em seu pior aspecto, ela
pode ser mal interpretada, mesmo por nós próprios, como sendo nossa verdadeira nature-
za: às vezes acreditamos que somos realmente o que pretendemos ser!
188
Essa função da persona é bem particular, porque as motivações de cada indivíduo para
se mostrar desta ou daquela maneira ao “público” são ditadas por experiências intransferíveis
de uma pessoa para outra. O que deve acontecer, durante o processo de individuação, é que se
desfaça a atitude “falseante” da persona, para que ela consiga re-conhecer-se e chegar a seu
verdadeiro ser interior, “se compreendermos o Eu como subordinado ou contido num self su-
perior, o centro da personalidade psíquica inteira, ilimitada e indescritível
189
. A persona é a
primeira camada que forma a personalidade de cada indivíduo: ela é quase que uma “couraça
188
“The persona represents your public image. The word is, obviously, related to the word person and
personality, and comes from a Latin word for mask. So the persona is the mask you put on before you show
yourself to the outside world. Although it begins as an archetype, by the time we are finished realizing it, it is
the part of us most distant from the collective unconscious. At its best, it is just the “good impression” we all
wish to present as we fill the roles society requires of us. But, of course, it can also be the “false impression”
we use to manipulate people’s opinions and behaviors. And, at its worst, it can be mistaken, even by
ourselves, for our true nature: Sometimes we believe we really are what we pretend to be!”. G. C. BOEREE,
op. cit.
189
„[…] wenn wir das Ich auffassen als untergeordnet oder enthalten in einem übergeordneten Selbst als dem
Zentrum der ganzen, unbegrenzten und undefinierbaren psychischen Persönlichkeit“. C. G. JUNG, PR, p. 75.
96
protetora” diante do mundo exterior, usada pelas pessoas para ocultar sua essência e passar
adiante uma determinada imagem, antes que elas penetrem em seu inconsciente e descubram
seus verdadeiros aspectos, quase sempre reprimidos e, por isso, causadores de sofrimentos de
origem desconhecida. No entanto, isso não equivale a dizer que a persona seria somente o la-
do falso, artificial das pessoas. Usam-se máscaras todo o tempo para sobreviver na sociedade:
os pais que estão em crise mas fingem ser maravilhosos diante dos filhos que eles não querem
ver sofrer; os professores em sala de aula que não podem permitir-se expor suas fragilidades
diante da massa de alunos; o operário submisso, que finge obedecer ao patrão opressor e ex-
plorador para não ser despedido etc. De certa forma, a persona protege e reforça o ego diante
dos ataques do mundo exterior.
Um passo além da persona, ainda no nível consciente, está o ego. Este seria a confor-
mação psíquica que a cada pessoa sua característica própria; é a expressão do que se é, de
fato, terminado o processo de construção da personalidade (em torno dos oito a nove anos de
idade). A personalidade, uma vez determinada, não muda; o que pode – e muitas vezes deve –
mudar são as formas de sua expressão e de como a pessoa a usa para interagir com o mundo
exterior. Fala-se, p.ex., em “ego dominante”, ou “ego inferiorizado”, quando se percebem dis-
torções no comportamento que não dependem da reação de outras pessoas, mas que refletem
uma personalidade que sofreu determinados prejuízos na época de sua “construção interior”.
O esquema abaixo demonstra, em traços muito simples, a estrutura da psique humana apenas
a partir do critério consciente/inconsciente, ainda sem se aprofundar nas nuanças de cada re-
gião:
fig. 1
190
190
Adaptado de Eric PETTIFOR, Process of individuation. Disponível em http://pandc.ca/?cat=carljung&page
=majorarchetypesandindividuation, acesso em 20 jun. 2005.
97
Por este esquema, pode-se perceber que a área reservada para o consciente pessoal é
bem mais restrita do que toda a área que engloba o inconsciente, cujas manifestações podem
ocorrer tanto em vel pessoal quanto coletivo. A manifestação mais pessoal é, sem dúvida, o
self, vivência almejada por todas as pessoas em processo de autoconhecimento e que esperam
encontrar ali a chave para a resolução de seus conflitos e psicoses, rumo a uma integralização
de sua personalidade. Verificar-se-á a seguir como se manifestam os outros elementos: sha-
dow – a sombra, anima e animus.
4. O inconsciente pessoal e coletivo
Os elementos contidos no próximo esquema, por Thomas Parker, mostram a estrutura
“bidimensional” o consciente e o inconsciente da psique; na verdade, o inconsciente cole-
tivo é a base de toda essa estrutura, que se afunila até sua expressão mais exterior e superfici-
al, a persona. Dentro do inconsciente coletivo, a energia psíquica e os arquétipos fornecem a
matriz para a compreensão do inconsciente pessoal, que deles se alimenta. Sem o conheci-
mento da atuação da energia psíquica e dos arquétipos sobre a área inconsciente do indivíduo,
qualquer terapia nos moldes de Jung estaria fadada ao fracasso, dado que ela teria de restrin-
gir-se às manifestações superficiais e exteriores da psique. Ao mesmo tempo, o inconsciente
pessoal é a via de acesso mais imediata a esta última camada de vivência psíquica, e por isso
tem de ser trabalhado para permitir a expressão de seus conteúdos mais recônditos, e que têm
de ser resgatados com vistas à integralização da psique.
Persona
Ego
___________________________________________________________
CONSCIENTE
____________
Sombra
INCONSCIENTE
Anima ou Animus
Self
Inconsciente coletivo
Energia psíquica Arquétipos
fig.2
191
191
Adaptado de Thomas Parker, apud J. FADIMAN, R. FRAGER, op. cit., p. 83.
98
Em ambos os esquemas, há que se ressaltar que
[…] qualquer representação bidimensional da teoria junguiana pode ser enganosa ou até
incorreta. O self, por exemplo, é mais profundamente inconsciente que as outras estrutu-
ras da personalidade, mas ao mesmo tempo é também o centro da personalidade total
192
.
Assim também, quando se fala em esquema “espiral” de construção da psique, deve-se
atentar para o fato de que, na verdade, esse movimento espiral se desloca verticalmente, por-
tanto de forma helicoidal, fazendo jus ao termo exato. É importante fazer esta diferenciação
porque a expressão, ou imagem, de uma espiral horizontal pode levar à falsa impressão de que
o processo de individuação gira somente “em torno do próprio ego” da pessoa, que é justa-
mente o que se pretende evitar.
4.1 O inconsciente pessoal
Fala-se de um inconsciente pessoal quando essas experiências dizem respeito somente
a um determinado indivíduo, p.ex. perdas e o luto subseqüente reprimido, traumas de infância
não resolvidos etc. O inconsciente pessoal está submetido ao inconsciente coletivo, na medida
em que esses traumas aparecem de uma ou outra forma em qualquer pessoa que vivencie al-
gum tipo de experiência que possa atingi-la em sua essência mais profunda. O “pessoal” disso
é a forma como esse sofrimento se manifesta em cada indivíduo; portanto, não existem regras
gerais que possam determinar quais manifestações psíquicas estão ativas no inconsciente pes-
soal:
Podemos partir do princípio de que a personalidade humana é constituída de dois aspec-
tos: primeiramente do consciente e de tudo o que este engloba; segundo, da terra incogni-
ta indefinível e ampla de uma psique inconsciente. A personalidade consciente pode ser,
até certo ponto, definida e delimitada com clareza; mas quando se trata do todo da perso-
nalidade humana, é preciso admitir a impossibilidade de uma descrição completa. […] Os
fatores desconhecidos formam aquilo que chamamos de parte inconsciente da personali-
dade
193
.
Também são estes “fatores desconhecidos” que fazem com que, dificilmente, as pes-
soas percebam o que é que orienta suas ações e reações diante de determinadas situações; elas
tampouco sabem por que organizam suas vidas desta ou daquela maneira. Por isso é tão ne-
192
Thomas Parker, apud J. FADIMAN, R. FRAGER, op. cit., p. 83.
193
„Wir können annehmen, daß die menschliche Persönlichkeit aus zweierlei besteht: erstens aus dem Bewußt-
ein und allem, was dieses umfaßt, und zweitens aus einem umbestimmbar großen Hinterland unbewußter
Psyche. Die bewußte Persönlichkeit kann mehr oder weniger klar bestimmt und abgegrenzt werden; wenn es
sich aber um die Gesamtheit der menschlichen Persönlichkeit handelt, muß die Unmöglichkeit einer vollstän-
digen Beschreibung zugegeben werden. […] Die unbekannten Faktoren bilden das, was wir als den unbe-
wußten Anteil der Persönlichkeit verzeichnen“. C. G. JUNG, PR, p. 74.
99
cessário que se criem vias de acesso à psique que tragam à tona toda e qualquer manifestação
do inconsciente pessoal; estas manifestações, por sua vez, serão o reflexo do inconsciente co-
letivo, embora não se possa, com base nesta constatação, generalizar a análise e a terapia pos-
teriores. Cada indivíduo continua trabalhando suas questões mais pessoais; mas talvez seja re-
confortante saber que não se está sozinho em suas angústias e medos:
Os estudos comparativos dos diversos sistemas míticos nas várias culturas revelam con-
vergências temáticas e motivos recorrentes relacionados a “situações-limite” comuns, a-
cumuladas durante a longa sedimentação da história de nossa espécie. Assim, para Jung,
o inconsciente coletivo está marcado por vários temas nodais: o desamparo do confronto
com os riscos naturais, com a dor, a doença e a morte; os paradoxos dos vínculos huma-
nos, nas relações de amor, sexualidade, investimento nos filhos, traição e opressão; dos
grandes confrontos de poder e da coragem heróica de enfrentar situações novas e de in-
justiça; do processo de inserção da criança na vida humana e social e seus sacrifícios; da
busca de respostas sobre a nossa origem, sobre o sentido da vida, sobre o que acontecerá
conosco após a morte, etc
194
.
4.2 O inconsciente coletivo
Com base na citação anterior, e após esclarecer do que trata o inconsciente pessoal em
rápidos traços, interessa agora chegar ao aspecto que englobará todos os demais elementos a
serem discutidos ainda neste capítulo: o inconsciente coletivo.
Uma camada de certa forma superficial do inconsciente é, sem dúvida, pessoal. Nós a de-
nominamos de inconsciente pessoal. Este, porém, se apóia sobre uma camada mais pro-
funda, a qual não mais deriva da experiência e da aquisição pessoal, mas é inata. Essa
camada mais profunda é o chamado inconsciente coletivo. Escolhi a expressão “coletivo”
porque esse inconsciente não é de natureza individual mas coletiva, i.e. em contraste com
a psique individual ele apresenta conteúdos e comportamentos que se encontram cum
grano salis em todos os lugares e em todos os indivíduos. Em outras palavras, ele é idên-
tico em si mesmo, em todas as pessoas, e forma, assim, uma base espiritual geral que se
encontra em qualquer indivíduo, e que é de natureza suprapessoal
195
.
Jung diferencia o inconsciente pessoal do coletivo ao atribuir ao primeiro os chamados
complexos emocionais (tal como o complexo materno, p.ex.), que definem a intimidade pes-
soal da vida espiritual, enquanto o segundo se refere aos arquétipos
196
. “Os complexos habitu-
194
E. VASCONCELOS, op. cit.
195
„Eine gewissermaßen oberflächliche Schicht des Unbewußten ist zweifellos persönlich. Wir nennen sie das
persönliche Unbewußte. Dieses ruht aber auf einer tieferen Schicht, welche nicht mehr persönlicher Erfah-
rung und Erwerbung entstammt, sondern angeboren ist. Diese tiefere Schicht ist das sogenannte kollektive
Unbewußte. Ich habe den Ausdruck ‚kollektiv’ gewählt, weil dieses Unbewußte nicht individueller, sondern
allgemeiner Natur ist, d.h. es hat im Gegensatz zur persönlichen Psyche Inhalte und Verhaltensweisen, wel-
che überall und in allen Individuen cum grano salis dieselben sind. Es ist, mit anderen Worten, in allen Men-
schen sich selbst identisch und bildet damit eine in jedermann vorhandene, allgemeine seelische Grundlage
überpersönlicher Natur“. C. G. JUNG, BU, p. 11s.
196
Ibid., p. 11s.
100
ais do indivíduo são pontos sensíveis da psique que reagem mais rapidamente aos estímulos
ou perturbações externas”
197
. Assim, não se pode supor que todos os indivíduos possuam os
mesmos elementos psíquicos e espirituais, ou que reajam exatamente da mesma forma à ação
da energia psíquica armazenada no inconsciente coletivo. Além disso,
[…] diferentemente do inconsciente pessoal, que é um elemento relativamente frágil loca-
lizado imediatamente após o limiar da consciência, o inconsciente coletivo não demonstra
nenhuma tendência a tornar-se consciente em condições normais, e nem pode ser recupe-
rado por qualquer técnica analítica, uma vez que ele nunca foi reprimido ou esquecido
198
.
O trecho em itálico na citação acima é uma das principais diferenças entre o inconsci-
ente pessoal ou coletivo. No primeiro caso, a pessoa tem a “liberdade” (ainda que fictícia) de
reprimir conteúdos desagradáveis em sua mente; mas o que é de vivência coletiva não se pode
reprimir ou esquecer individualmente. A psicanálise não pode prescindir do conceito de in-
consciente coletivo pelas seguintes razões:
Parece-me ser um equívoco desastroso considerar a psique humana como um assunto me-
ramente pessoal, e explicá-la exclusivamente a partir de um ponto de vista pessoal. Uma
explicação desse tipo se pode aplicar ao indivíduo em suas ocupações e relações nor-
mais e cotidianas. Mas quando se dá uma ligeira perturbação, p.ex. na forma de um acon-
tecimento imprevisto e relativamente raro, entram em ação imediatamente forças instinti-
vas que aparecem de maneira totalmente inesperada, nova e até mesmo estranha. Elas
não podem ser explicadas através de motivações pessoais, porque são comparáveis antes
a acontecimentos primitivos, como p.ex. um pânico diante de um eclipse solar ou algo pa-
recido
199
.
Esses elementos do inconsciente coletivo, além de serem inatos, dizem respeito tam-
bém a mitos e símbolos, presentes em todas as culturas e expressos das mais variadas formas.
Os mitos e os símbolos surgiram para canalizar experiências inexplicáveis do ponto de vista
científico, seja porque não se conhecia a origem de determinado fenômeno, seja porque tal fe-
nômeno de fato transcendia uma experiência fisicamente comprovável.
197
C. G. JUNG (org.), HS, p. 28.
198
“In contrast to the personal unconscious, which is a relatively thin layer immediately below the threshold of
consciousness, the collective unconscious shows no tendency to become conscious under normal conditions,
nor can it be brought back to recollection by any analytical technique, since it was never repressed or
forgotten”. C. G. JUNG, The spirit in man, art and literature: on the relation of analytical psychology to
poetry, cf. Excurso no final deste capítulo. – Grifo nosso.
199
„Es scheint mir ein unheilvolles Mißverständnis zu sein, die menschliche Psyche als eine bloß persönliche
Angelegenheit zu betrachten und sie ausschließlich von einem persönlichen Gesichtspunkt aus zu erklären.
Eine derartige Erklärung ist lediglich anwendbar auf das Individuum in seinen gewöhnlichen alltäglichen Be-
schäftigungen und Beziehungen. Wenn jedoch eine leichte Störung auftritt, etwa in der Form einer unvor-
hergesehenen und einigermaßen ungewöhlichen Begebenheit, so treten sofort instinktive Kräfte auf, welche
völlig unerwartet, neu und sogar seltsam erscheinen. Sie können nicht mehr durch persönliche Motive erklärt
werden, denn sie sind eher primitiven Ereignissen, wie einer Panik bei Sonnenfinsternis oder ähnlichem, ver-
gleichbar“. C. G. JUNG, PR, p. 27.
101
Além disso, pode-se reconhecer manifestações do inconsciente coletivo nas artes, na
literatura e nas expressões religiosas, uma vez que todos os povos têm uma estrutura, por mí-
nima que seja, que transcende o cotidiano da sobrevivência física:
É o reservatório de nossas experiências enquanto espécie, um tipo de conhecimento com
o qual todos nascemos. E mesmo assim jamais conseguimos percebê-lo de forma direta-
mente consciente. Ele influencia todas as nossas experiências e comportamentos, especi-
almente os emocionais, mas nós sabemos disso apenas indiretamente, observando essas
influências. algumas experiências que mostram os efeitos do inconsciente coletivo
mais claramente que outras: as experiências do amor à primeira vista, do déjà vu (a sen-
sação de ter estado aqui antes), e o reconhecimento imediato de certos símbolos e do
significado de determinados mitos […]
200
.
O exemplo dos símbolos é muito adequado para tentar explicar o que seria o inconsci-
ente coletivo: ao se pensar nas cores, p.ex. o vermelho, logo vêm à tona associações como a
do perigo, da atenção, ou então sentimentos afetivos intensos, tais como o amor e a paixão. O
negro quase sempre remete à noite, mas também ao negativo, ao obscuro e assustador:
O negro é, para algumas pessoas, a imagem arquetípica da “criatura primitiva e sombria”,
portanto uma personificação de certos conteúdos do inconsciente. Talvez seja esta uma
das razões por que o negro é, tantas vezes, rejeitado e temido pela gente branca. Nele o
ser humano branco vê, diante de si, a sua contrapartida viva, o seu lado secreto e tenebro-
so (exatamente o que as pessoas tentam sempre evitar, o que elas ignoram e reprimem).
Os brancos projetam no ser humano negro os impulsos primitivos, as forças arcaicas, os
instintos incontrolados que se recusam a admitir em si próprios, de que estão inconscien-
tes e que imputam, conseqüentemente, a outros
201
.
Da mesma forma, existem algumas narrativas míticas universais, tais como aquelas
que se referem à criação do mundo e ao dilúvio subseqüente. A origem desses mitos é facil-
mente explicável, uma vez que toda pessoa deseja conhecer tanto a origem do mundo quanto
o seu futuro; o dilúvio universal é a representação mnemônica do fim da Era Glacial, do desa-
parecimento dos dinossauros e do surgimento dos animais menores etc. Essas são quase que
“obviedades” no aparato mítico de todos os povos, embora as sucessivas gerações não guar-
dem uma lembrança consciente desses fatos e apenas repitam o que lhes foi narrado. Mas a
vivência original continua armazenada no inconsciente coletivo dos povos que viveram esses
200
“It is the reservoir of our experiences as a species, a kind of knowledge we are all born with. And yet we can
never be directly conscious of it. It influences all of our experiences and behaviors, most especially the
emotional ones, but we only know about it indirectly, by looking at those influences. There are some
experiences that show the effects of the collective unconscious more clearly than others: The experiences of
love at first sight, of deja vu (the feeling that you’ve been here before), and the immediate recognition of
certain symbols and the meanings of certain myths […]”
.
G. C. BOEREE, op. cit.
201
Jolande JACOBI, Símbolos em uma análise individual, in: C. G. JUNG (org.), HS, p. 300.
102
fatos, revelando-se pouco a pouco na psique individual e fazendo surgir as grandes perguntas
acerca do mundo e de si mesmo:
Nas primeiras explicações mitológicas do universo encontramos sempre uma antropolo-
gia primitiva lado a lado com uma cosmologia primitiva. A questão da origem do mundo
está inextricavelmente entrelaçada com a questão da origem do ser humano. A religião
não destrói essas primeiras explicações mitológicas. Ao contrário, preserva a cosmologia
e a antropologia mitológicas dando-lhes nova forma e nova profundidade. A partir de en-
tão, o autoconhecimento não é mais concebido como um interesse meramente teórico.
Deixa de ser apenas um tema de curiosidade ou especulação; é declarado como a obriga-
ção fundamental do ser humano
202
.
A história da humanidade é, ao mesmo tempo, a história de cada indivíduo, e os fatos
vividos vão marcando atitudes e reações de maneiras que não se podem fixar em tempo e
espaço definidos. O conjunto de manifestações inconscientes em cada indivíduo é que forma
o que se costuma chamar de reações coletivas, ou reações em massa ou em cadeia. Elas pare-
cem ser “contagiosas”, porque estão latentes em todas as pessoas e vêm à tona em determina-
dos momentos de crise.
Cria-se então um jogo de opostos entre a esfera pessoal e a esfera coletiva, na medida
em que ninguém consegue viver totalmente isolado das demais pessoas. Mas também é neces-
sário identificar e preservar o que faz de um ser humano com instintos gregários e coletivos
um indivíduo. Esse “próprio” de cada pessoa não está oposto a ela, ou mesmo reprimido,
quando o instinto gregário fala mais alto, mesmo que a consciência não perceba isso.
Outra questão é a importância dos mitos e símbolos na teoria junguiana. Mitos ou nar-
rativas simbólicas não aparecem nos textos do livro do Eclesiastes; em compensação, ele lida
com elementos simbólicos esparsos que codificam experiências universais em linguagem me-
tafórica, e cuja interpretação remete a outros mitos universais que procuram explicar o acon-
tecido (cf. cap. 3 deste trabalho, perícope Ec 12.1-7). Quanto à função dos mitos em Jung,
Vasconcelos explicita:
[…] os mitos constituem uma expressão cifrada e indireta dos símbolos e enigmas fun-
damentais da vida, que não poderiam ser expressos diretamente pela linguagem conscien-
te. Revelam a longa sedimentação de experiências ou fraturas radicais que todos os seres
humanos foram vivenciando nos seus desafios mais significativos de vida individual e co-
letiva, nos quais a consciência humana só pode mergulhar de forma indireta e metafórica.
A esta herança sedimentada na história humana, Jung chamou de inconsciente coletivo.
Quando cada indivíduo, grupo ou coletivo humano é chamado a percorrer situações simi-
lares no presente, os desafios e conflitos são vividos tanto no campo das relações inter-
202
Ernst CASSIRER, Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana, p. 13.
103
pessoais e sociais concretas, com todas as suas implicações éticas e políticas conscientes,
quanto no campo subjetivo e inconsciente. O caráter subjetivo se também porque estas
situações mobilizam os ecos, em termos de imagens e energia psíquica, destas experiên-
cias de fraturas radicais que ficaram marcadas no inconsciente coletivo. Os mitos, então,
expressam em linguagem simbólica as vicissitudes do enfrentamento destas experiências
nodais que cada pessoa ou coletivo é chamado a percorrer novamente
203
.
Resumindo, a existência do inconsciente coletivo pode ser comprovada no ser humano
normal, entre outras pistas, a partir dos traços de imagens mitológicas em seus sonhos. Essas
imagens não estão registradas previamente no consciente pessoal. Pode ser complicado de-
monstrar que o conhecimento prévio de imagens mitológicas universais exista em cada in-
consciente pessoal, sem a interferência do consciente, mas parece haver, p.ex. em certas for-
mas de desordenamento mental, um desenvolvimento espantoso de imagens mitológicas que
jamais poderiam ser atribuídas somente à experiência pessoal do indivíduo.
5. Os arquétipos
Dentro do aspecto geral do inconsciente coletivo, existem várias formas concretas pe-
las quais os conteúdos mitológicos se manifestam, e Jung as denomina de arquétipos. O termo
“arquétipo” vem de
αρχε
(arché = começo, início, origem) e
τυπος
(typos = modelo, molde).
Arquétipos psicológicos são os primeiros modelos que ajudam a formar a estrutura da perso-
nalidade humana. Eles existem no inconsciente coletivo da humanidade, e se repetem milhões
de vezes nas vidas psíquicas das pessoas, determinando como elas percebem o mundo e se
comportam. Pode-se acessá-los aprofundando a vivência de sonhos e/ou fantasias, ou também
analisando em detalhes os mitos, as lendas, a literatura e a religião que organizam a vida espi-
ritual dos povos:
Um arquétipo é uma tendência não-aprendida de experienciar coisas de uma determinada
maneira. O arquétipo não tem uma forma em si mesma, mas ele age como um ‘princípio
organizativo’ sobre as coisas que vemos ou fazemos
204
.
E ainda:
[…] como estruturas do elemento psíquico presentes na humanidade em geral, os arqué-
tipos […] não devem pertencer à psique individual, e sim temos de imaginar algo como
uma psique coletiva comum à humanidade, cuja existência se expressa essencialmente na
forma desse mesmo ‘arquétipo’. Por outro lado, os arquétipos não podem ser objeto de
203
E. VASCONCELOS, op. cit.
204
An archetype is an unlearned tendency to experience things in a certain way. The archetype has no form of
its own, but it acts as an ‘organizing principle’ on the things we see or do”. G. C. BOEREE, op. cit.
104
produção social; eles nem mesmo podem ser incluídos na esfera do Eu, do consciente, do
saber e planejar racionais […]
205
.
Essa descrição é bastante parecida com o que se falava sobre o inconsciente coletivo.
De fato, os arquétipos são a expressão mais “concreta” ou “visível” desse inconsciente, e eles
estão definidos em diversos termos específicos. Esses termos visam facilitar a compreensão
do que acontece quando os arquétipos se manifestam, ou melhor, eles ajudam a identificar
certos acontecimentos como manifestações arquetípicas, seja através de sonhos estranhos ou
reações inesperadas. Isso quer dizer que, embora o arquétipo seja de natureza geral e incons-
ciente, sua manifestação dependerá sempre da ação consciente do indivíduo, e é então que ele
assume traços particulares e pessoais. Através da experiência da manifestação arquetípica o
inconsciente é trazido até o consciente. Nesse momento acontece um encontro do indivíduo
consigo mesmo, como se uma espécie de túnel se abrisse entre sua percepção de mundo cons-
ciente e seu inconsciente reprimido.
Conforme Jung, esse encontro não deve ser evitado, mesmo que conhecer a si mesmo
signifique reconhecer elementos da personalidade que se gostaria de “esquecerou não admi-
tir: “O encontro consigo mesmo significa, em primeiro lugar, o encontro com a própria som-
bra. […] É necessário, porém, conhecer-se a si mesmo, para se saber quem se é”
206
. Deve-se
acompanhar esse processo de autoconhecimento com cuidado e tolerância, porque “a consci-
ência resiste, naturalmente, a tudo que é inconsciente e desconhecido”
207
. Dessa forma, o pro-
cesso que pode levar à individuação muitas vezes é doloroso, porque revela esses lados des-
conhecidos e que se gostaria de ocultar principalmente de si mesmo: “[…] Qualquer avanço
psíquico do ser humano emerge do sofrimento da alma […]
208
. Não obstante, “apenas num
205
„Als allgemeinmenschliche Strukturen des Psychischen dürfen die Archetypen […] nicht der Individualpsy-
che angehören, vielmehr müssen wir so etwas wie eine menschheitliche Kollektivpsyche annehmen, deren E-
xistenz sich wesentlich in Form eben dieses Archetypen’ kundtut. Zum anderen können die Archetypen
nicht ein Gegenstand sozialer Hervorbringung sein, ja sie dürfen nicht überhaupt nicht der Sphäre des Ichs,
des Bewußtseins, des rationalen Wissens und Planens […] zugerechnet werden“. E. DREWERMANN, op.
cit., p. 67.
206
„Die Begegnung mit sich selbst bedeutet zunächst die Begenung mit dem eigenen Schatten. […] Man muß
aber sich selbst kennenlernen, damit man weiß, wer man ist“. C. G. JUNG, BU, p. 30s.
207
C. G. JUNG (org.), HS, p. 31.
208
“… every psychic advance of man arises from the suffering of the soul… .” (“Psychotherapists or the Clergy”
[_CW_ 11: 497]). Favourite quotations..., op. cit.
105
estado de abandono e solidão completos vivenciamos as forças curativas de nossa própria na-
tureza”
209
.
É fato que o inconsciente é considerado por via de regra como uma espécie de intimidade
pessoal fechada numa redoma, aquilo que a Bíblia, p.ex., chama de “coração” e compre-
ende, entre outros aspectos, como o local de origem de todos os maus pensamentos. Nas
câmaras do coração habitam os espíritos sanguinários maus, a ira irrefreável e a sensuali-
dade. Assim se parece o inconsciente quando observado a partir do consciente
210
.
Atingir o inconsciente pessoal representa talvez a mais difícil “viagem interior” para o
ser humano, e é necessário admitir que existem problemas insolúveis por meios próprios. Em
sua essência, o ser humano é indefeso e fraco e vive isso eternamente, e nunca acabam suas
perguntas, embora haja uma resposta para elas também eterna, sem a qual a humanidade já te-
ria sucumbido
211
. Para ajudar o ser humano nessa viagem é que se devem desvelar os arquéti-
pos que estejam se manifestando a ele via sonhos ou fantasias diurnas, visões e sensações di-
ferentes, como um alerta para situações interiores não registradas conscientemente.
Os arquétipos não são “coisas” ou “figuras” visíveis e tangíveis, nem mesmo símbo-
los. Eles se manifestam através de sonhos, mitos e símbolos comuns à maior parcela da hu-
manidade, ou eles aparecem travestidos em determinados personagens, individuais ou múlti-
plos; Jung alerta:
O termo “arquétipo” é muitas vezes mal compreendido, julgando-se que expressa certas
imagens ou motivos mitológicos definidos. Mas estes nada mais são que representações
conscientes: seria absurdo supor que representações tão variadas pudessem ser transmiti-
das hereditariamente. O arquétipo é uma tendência para formar estas mesmas representa-
ções de um motivo […] sem perder sua configuração original. […] O arquétipo é, na rea-
lidade, uma tendência instintiva […]
212
.
Importante aqui é a diferenciação que Jung faz entre os aspectos psíquicos e os físicos
do ser humano: de fato, uma representação consciente, se for transmitida hereditariamente,
não passará de um conteúdo aprendido e registrado sob uma forma visível e concreta, fazendo
parte da bagagem genética do indivíduo. O inexplicável e indefinido do arquétipo é, porém,
sua existência apenas na psique humana, e dentro desta apenas no lado inconsciente. Não
209
“It is, moreover, only in the state of complete abandonment and loneliness that we experience the helpful
powers of our own natures.” Favourite quotations..., op. cit.
210
„Das Unbewußte nun gilt gemeiniglich als eine Art von abgekapselter persönlicher Intimität, was die Bibel
etwa als ‚Herz’ bezeichnet und u.a. als den Ursprungsort aller bösen Gedanken auffaßt. In den Kammern des
Herzens wohnen die schlimmen Blutgeister, rascher Zorn und sinnliche Schwäche. So sieht das Unbewußte
aus, wenn vom Bewußtsein betrachtet“. C. G. JUNG, BU, p. 29.
211
Ibid., p. 30.
212
C. G. JUNG (org.), HS, p. 69.
106
como acessá-lo de forma consciente sem o auxílio de determinadas manifestações, e muitas
vezes ainda com a ajuda de especialistas na área da análise profunda. Dito de outra forma,
A imagem primordial, ou arquétipo, é uma figura seja ela um demônio, um ser humano
ou um processo – que retorna constantemente no curso da história e aparece sempre que a
fantasia criativa se expressa livremente. Ela é, essencialmente, por isso, uma figura mito-
lógica […]. Em cada uma dessas imagens há uma pequena fração da psicologia humana e
do destino humano, um resto das alegrias e dos sofrimentos que têm sido repetidos incon-
táveis vezes em nossa história ancestral […]
213
.
É necessário reforçar a idéia de que os arquétipos são de natureza essencialmente cole-
tiva, embora a maneira como eles se manifestam seja pessoal. Mesmo assim, existem traços
que se repetem ad infinitum em quase todas as pessoas, e é por isso que se pode pressupor
uma vivência psíquica coletiva, ou uma psique coletiva:
Pois somente nos arquétipos e nos sentimentos encontra-se aquilo que une e interliga as
culturas e as religiões de todos os tempos e regiões, enquanto a linguagem, a ratio, as va-
lorações de cunho moral se evidenciam como sendo muito dependentes de cada época e
criadores de distanciamentos […]. Em todas as pessoas vive um conhecimento inconsci-
ente acerca de um absoluto que está presente em todas as pessoas e do qual emana tudo o
que é consciente, e só nesse nível do arquetípico é possível pensar uma ligação hermenêu-
tica para além da distância temporal de milênios. No nível dos arquétipos somente é que
se mostra, tal como numa lingua franca de todas as pessoas, a característica comum a to-
dos os sentimentos fortes de alegria e tristeza, as experiências de nascimento e morte, ju-
ventude e velhice, doença e cura, as sensações de pudor e nojo, amor e carinho, a tendên-
cia para conflitos de poder e defesa de território, a multiplicidade de reações preformadas
em situações de emergência etc.
214
.
213
“The primordial image, or archetype, is a figure be it a daemon, a human being, or a process that
constantly recurs in the course of history and appears wherever creative fantasy is freely expressed.
Essentially, therefore, it is a mythological figure… . In each of these images there is a little piece of human
psychology and human fate, a remnant of the joys and sorrows that have been repeated countless times in our
ancestral history… .” (“On the Relation of Analytical Psychology to Poetry” [_CW_ 15: 127]). Favourite
quotations..., op. cit.
214
Denn nur in den Archetypen und in den Gefühlen liegt das Einende und Verbindende zwischen den Kulturen
und Religionen aller Zeiten und Zonen, während die Sprache, die ratio, die moralischen Wertsetzungen sich
als sehr zeitgebunden und voneinander trennend erweisen […]. In allen Menschen lebt ein unbewußtes Wis-
sen um ein Absolutes, das in allen Menschen gegenwärtig ist und aus dem alles Bewußte hervorgeht, und nur
auf dieser Ebene des Archetypischen ist eine hermeneutische Verbindung über die zeitliche Distanz von Jahr-
tausenden hinweg denkbar und möglich. Auf der Ebene der Archetypen allein zeigt sich, wie in einer lingua
franca aller Menschen, die Gemeinsamkeit aller starken Gefühle von Freude und Traurigkeit, die Erfahrung
von Geburt und Tod, Jugend und Alter, Krankheit und Heilung, die Empfindungen von Scham und Ekel, Lie-
be und Zärtlichkeit, die Tendenz zu Rangdemonstrationen und Revierverteidigung, die Vielfalt präformierter
Reaktionen in Notfallsituationen usw. “. E. DREWERMANN, op. cit., p. 70-71. Grifo do autor. Precisa-
mente acerca desta colocação sobre a relação entre psicologia profunda e exegese existe uma discussão entre
o autor citado e Gerhard Lohfink / Rudolf Pesch, os quais questionam as colocações anteriores. Nesta pesqui-
sa, uma vez que se optou por incluir a psicologia profunda como viés hermenêutico, essa discussão não pode
ser aprofundada. Vejam-se detalhes em Gerhard LOHFINK, Rudolf PESCH, Tiefenpsychologie und keine
Exegese. Eine Auseinandersetzung mit Eugen Drewermann, p. 27ss.
107
Assim se pode compreender que aquilo que está guardado no inconsciente não pode
ser acessado diretamente, sob critérios próprios e, portanto, não pode ser aprendido” ou “es-
tudado” para fazer parte ativa de uma personalidade que acaba se transmitindo pelas gerações.
O que aparece no decorrer da história é aquilo que sempre fez parte de toda a humanidade,
em função de processos, vivências e experiências comuns a todos os seres humanos:
[…] o psicólogo sabe que só conseguirá compreender uma situação individual e só poderá
ajudar seu paciente a curar-se se for capaz de desvendar uma estrutura na sintomatologia
particular, se for capaz de reconhecer, na originalidade de uma história individual, as li-
nhas gerais da história da psique
215
.
5.1 A sombra
O termo sombra adquire um significado próprio na linguagem junguiana. Ele é dife-
rente, p.ex., da expressão bíblica “pelos vales da sombra da morte” (Sl 23.4), em que se con-
cebe a morte como uma sombra a rondar a pessoa, ou como a escuridão desconhecida e assus-
tadora atribuída à morte. Jung prefere usar o termo na acepção seguinte:
A sexualidade e os instintos vitais em geral estão representados, é claro, em algum lugar
do sistema junguiano. Eles fazem parte de um arquétipo chamado sombra. Este deriva de
nosso passado pré-humano, animal, quando nossos interesses estavam limitados à sobre-
vivência e à reprodução, e quando não éramos autoconscientes. Ela [a sombra] é o “lado
negro” do ego, e o mal de que freqüentemente somos capazes está guardado aqui. Na rea-
lidade, a sombra é amoral – nem boa nem má, exatamente como os animais. Um animal é
capaz tanto de cuidar de seus filhotes quanto de matar cruelmente por comida, mas ele
não escolhe qual dos dois fazer. Ele simplesmente faz o que faz. Ele é “inocente”. Mas a
partir da nossa perspectiva humana, o mundo animal parece, ao contrário, brutal e desu-
mano, e assim a sombra adquire algo de lixeira para aqueles aspectos de nós que não con-
seguimos admitir. Símbolos da sombra incluem a serpente (tal como no jardim do Éden),
o dragão, monstros e demônios. Ela freqüentemente guarda a entrada de uma caverna ou
um poço de água, que são o inconsciente coletivo. Na próxima vez em que você sonhar
que está lutando contra o demônio, pode ser apenas que você esteja lutando contra você
mesmo
216
!
215
Mircea ELIADE, Mefistófeles e o andrógino, p. 216. – Grifo nosso.
216
“Sex and the life instincts in general are, of course, represented somewhere in Jung’s system. They are a part
of an archetype called the shadow. It derives from our prehuman, animal past, when our concerns were
limited to survival and reproduction, and when we weren’t self-conscious. It is the ‘dark side’ of the ego, and
the evil that we are capable of is often stored there. Actually, the shadow is amoral neither good nor bad,
just like animals. An animal is capable of tender care for its young and vicious killing for food, but it doesn’t
choose to do either. It just does what it does. It is ‘innocent’. But from our human perspective, the animal
world looks rather brutal, inhuman, so the shadow becomes something of a garbage can for the parts of
ourselves that we can’t quite admit to. Symbols of the shadow include the snake (as in the garden of Eden),
the dragon, monsters, and demons. It often guards the entrance to a cave or a pool of water, which is the
collective unconscious. Next time you dream about wrestling with the devil, it may only be yourself you are
wrest-ling with!” G. C. BOEREE, op. cit.
108
Esta longa citação de Boeree é a mais simples para explicitar o que é a sombra en-
quanto manifestação arquetípica no ser humano. Ela configura o primeiro estágio do processo
de individuação segundo Jung
217
: a fase mais instintiva, em que tudo ainda está em processo
de construção e, por isso, imerso numa espécie de caos. O inconsciente registra apenas que
não pode deixar vir à tona determinados sentimentos considerados “maus” e que, teoricamen-
te, se encontrariam no mesmo nível dos animais, embora estes não façam um “juízo de valor”.
Dessa forma, a sombra é a representação de tudo o que faz mal à vivência consciente do ser
humano, e por isso fica retido na verdade, reprimido nas profundezas de sua psique. Mas
ela pode vir à tona, através de sonhos ou visões de todo tipo:
É por isto que objetos ou idéias comuns podem adquirir uma significação psíquica tão
poderosa que acordamos seriamente perturbados, apesar de termos sonhado coisas abso-
lutamente banais – como uma porta fechada ou um trem que se perdeu
218
.
Quando acontece o encontro da pessoa com sua sombra, ela tem duas alternativas: en-
carar a si mesma e aprender a crescer em sua personalidade, ou fugir dessa realidade e seguir
insistindo em sua autodestruição interior. Mas normalmente o choque desse encontro é tão
poderoso que o desejo de resolver a vida interior predomina, e então se colocam as bases de
uma mudança real, em todos os níveis:
Mesmo que a pessoa esteja em condições de ver a própria sombra e de suportar o conhe-
cimento acerca dela, resolveu-se apenas uma pequena parte da tarefa: pelo menos se des-
velou o inconsciente pessoal. Mas a sombra é parte viva da personalidade e, por isso,
quer conviver de alguma forma. Não se pode extirpá-la de qualquer maneira nem forçá-la
à inocência através da razão. […] Quando se fez tudo o que podia ser feito, sobra somente
aquilo que se faria se se soubesse como fazê-lo. Mas quanto o ser humano sabe de si
mesmo?
219
É esta a questão: o problema da sombra não se resolve enquanto o indivíduo tiver me-
do de si mesmo e de seus conteúdos reprimidos e esquecidos. A sombra ganha força e ameaça
217
O termo “estágio”, na teoria psicanalítica junguiana, é esclarecido como segue: “[…] embora seja possível
descrever a individuação em termos de estágios, o processo de individuação é bem mais complexo do que a
simples progressão aqui delineada. Todos os passos mencionados sobrepõem-se, e as pessoas voltam conti-
nuamente a problemas e temas antigos (espera-se que de uma perspectiva diferente). A individuação poderia
ser apresentada como uma espiral na qual os indivíduos permanecem se confrontando com as mesmas ques-
tões básicas, de forma cada vez mais refinada”. J. FADIMAN, R. FRAGER, op. cit., p. 58.
218
C. G. JUNG (org.), HS, p. 43.
219
„Ist man imstande, den eigenen Schatten zu sehen und das Wissen um ihn zu ertragen, so ist erst ein kleiner
Teil der Aufgabe gelöst: man hat wenigstens das persönliche Unbewußte aufgehoben. Der Schatten aber ist
ein lebendiger Teil der Persönlichkeit und will darum in irgendeiner Form mitleben. Man kann ihn nicht
wegbeweisen oder in Harmlosigkeit umvernünfteln. […] Wenn man alles getan hat, was man tun konnte,
dann bleibt nur noch jenes übrig, das man noch tun könnte, wenn man es wüßte. Wieviel weiß aber der
Mensch von sich selber?“ C. G. JUNG, BU, p. 30.
109
a pessoa de dentro para fora, minando sua resistência psíquica e fazendo-a presa de si mesma:
“mesmo as tendências que poderiam, em certas circunstâncias, exercer uma influência benéfi-
ca, são transformadas em demônios quando reprimidas”
220
. Nesses casos, a única coisa que
parece dar algum resultado é “voltar-se para as trevas que se aproximam, sem nenhum pre-
conceito e com a maior singeleza, e tentar descobrir qual o seu objetivo secreto e o que vêm
solicitar do indivíduo”
221
. E mais:
Algumas vezes aparece, inicialmente, uma série de dolorosas constatações do que existe
de errado em nós e em nossas atitudes conscientes. Temos então de dar início a este pro-
cesso engolindo toda a sorte de verdades amargas
222
.
Mas é importante ressaltar o aspecto “benéfico” ou “curador” da admissão da presença
da sombra na vida da pessoa. Uma vez que ela fornece o impulso primeiro para que tenha lu-
gar o processo de crescimento da psique através do autoconhecimento, ela pode tornar-se até
mesmo uma aliada”, na medida em que ela instiga a pessoa a tentar compreender-se melhor,
a conviver com seus problemas e a tentar, se não solucioná-los, ao menos superar a angústia
que eles provocam: “a sombra se torna hostil quando é ignorada ou incompreendida”
223
.
Em outras palavras,
[…] O ser humano que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera. Elas se
mudam para a casa vizinha e poderão atear o fogo que atingirá sua casa sem que ele perceba.
Se abandonarmos, deixarmos de lado, e de algum modo esquecermo-nos excessivamente de
algo, correremos o risco de vê-lo reaparecer com uma violência redobrada
224
.
que se destacar, na descrição geral da sombra, que ela vem acompanhada de uma
forte dissociação positivo/negativo, ou mesmo de componentes dramáticos, como na citação
acima: uma vez que se considera a sombra como sendo a representação dos aspectos que estão
perturbando o inconsciente, cria-se um sentimento de perseguição, medo e culpa quando ela
se manifesta. Jung observa, em seus anos de trabalho com os mais diversos pacientes, que os
casos mais perigosos são aqueles nos quais domina o medo, mais que outros em que imperam
a ira ou o ódio
225
. Isso porque o medo é um sentimento próprio da pessoa, nem sempre provo-
cado por agentes externos, tal como acontece com a raiva e a revolta, e freqüentemente está
relacionado ao inconsciente. A dissociação entre o consciente que busca controlar esse medo
220
C. G. JUNG (org.), HS, p. 93.
221
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 167.
222
Ibid., p. 167.
223
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 173.
224
C. G. JUNG, MSR, p. 243.
225
C. G. JUNG, PR, p. 89.
110
e o inconsciente que ameaça vir à tona e colocar a pessoa contra a parede é característica da
cultura ocidental, que estabelece parâmetros de comportamento baseados nesse conflito intra-
pessoal.
No mundo oriental, a busca pela harmonia e pelo equilíbrio domina todas as formas de
terapia e/ou exercícios propostos às pessoas; as filosofias de vida orientais partem do princí-
pio de que, antes do conhecimento do mundo exterior e da capacidade de reflexão gica, são
necessários o autoconhecimento e a capacidade de lidar consigo mesmo, trabalhando as disso-
ciações psíquicas existentes com o objetivo de atingir um estado de paz interior.
5.2 A anima
A anima é o segundo elemento a ser identificado no caminho interior de desenvolvi-
mento da psique humana. Enquanto a sombra era algo difuso, indescritível, mas de qualquer
forma aterrador, a anima tem contornos e definições mais claras. Ela está ligada mais à psique
masculina, representando o lado oposto de sua configuração psíquica: enquanto o consciente
do homem age segundo padrões masculinos de comportamento, a anima é o seu “lado femini-
no”, partindo-se sempre do princípio de que todo ser humano contém em si ambos os elemen-
tos, o feminino e o masculino:
[…] a “mulher desconhecida” […] que desempenha um papel muito importante nos so-
nhos masculinos leva a designação técnica de anima, tendo em vista o fato de que o ser
humano, tempos imemoriais, sempre expressou em seus mitos a idéia da coexistência
de um Masculino e um Feminino no mesmo corpo. Essas intuições psicológicas quase
sempre eram projetadas na forma da Syzygia divina, do casal divino, ou na idéia da natu-
reza hermafrodita do Criador
226
.
Outro aspecto bem mais claro da anima é que ela
[…] pode ser personificada como uma garota, muito espontânea e intuitiva, ou como uma
feiticeira, ou como a terra mãe. Associam-se a ela uma profunda emocionalidade e a pró-
pria força vital
227
.
226
„[…] die unbekannte Frau’, […] die in den Träumen von Männern eine große Rolle spielt, trägt die tech-
nische Bezeichnung Anima’, im Hinblick auf die Tatsache, daß der Mensch seit undenklichen Zeiten in sei-
nen Mythen immer die Idee der Coëxistenz eines nnlichen und eines Weiblichen in demselben rper
ausgedrückt hat. Solche psychologischen Intuitionen waren meistens projiziert in der Form der göttlichen Sy-
zygie, des göttlichen Paares, oder in der Idee der hermaphroditischen Natur des Schöpfers“. C. G. JUNG, PR,
p. 52.
227
“The anima may be personified as a young girl, very spontaneous and intuitive, or as a witch, or as the earth
mother. It is likely to be associated with deep emotionality and the force of life itself”. G. C. BOEREE, op.
cit.
111
A anima tem lados tanto positivos quanto negativos. Essa divisão parece ter suas raí-
zes, entre outras, na concepção oriental de yin e yang, respectivamente as energias masculina
e feminina do universo; segundo essa concepção, o yin é luminoso, guerreiro, forte, arrojado,
conquistador, enquanto o yang é passivo, obscuro, suave, nutridor e assegurador. Mas Jung ci-
ta também a Idade Média para comprovar o quão antiga é a acepção dualista de gêneros. Con-
forme suas observações,
[…] Na Idade Média […] dizia-se que “todo homem traz dentro de si uma mulher”. É a
este elemento feminino que há em todo homem que chamei “anima”. Este aspecto “femi-
nino” é, essencialmente, uma certa maneira, inferior, que tem o homem de se relacionar
com o seu ambiente e sobretudo com as mulheres, e que ele esconde tanto das outras pes-
soas quanto dele mesmo. Em outras palavras, apesar de a personalidade visível do indiví-
duo parecer normal, ele poderá estar escondendo dos outros e mesmo dele próprio a
deplorável condição da sua “mulher interior”
228
.
Jung explicita ainda o que entende por “mulher interior em condições deploráveis”: ele
cita comportamentos que, de fato, se constatam em algumas mulheres, tais como a fofoca, as
observações rancorosas, venenosas e mesquinhas que a tudo desfazem, a visão de mundo ne-
gativa e depressiva, a imagem da mãe dominadora e autoritária etc. Também o aspecto erótico
se manifesta, às vezes, de maneira agressiva e negativa, como na impulsão para consumir ar-
tigos pornográficos ou criar “triângulos amorosos”
229
.
Esse tipo de comportamento aparece freqüentemente em homens que não estão em paz
consigo mesmos, em parte por não estarem conseguindo uma integração de sua personalidade;
eles acabam acessando seu inconsciente até onde repousa o oposto feminino:
Podemos notar o efeito destes seus estratagemas [da anima] em todos os diálogos neuró-
ticos e pseudointelectuais que impedem o contato direto do homem com a vida e suas ver-
dadeiras definições. Ele pensa tanto a respeito da vida que não consegue vivê-la e perde
toda a espontaneidade e faculdade de comunicação
230
.
A definição de anima dada por Jung nada tem a ver com a definição platônica de ani-
ma = alma, que, ao menos para os gregos, representa tudo o que é elevado, nobre e puro den-
tro do ser humano. A anima enquanto arquétipo formador da personalidade humana não é
uma anima rationalis (compreensão filosófica do termo), e sim um arquétipo natural, o a pri-
ori de emoções, sentimentos, reações, impulsos. Embora, por um lado, ela pareça afastar o
homem da verdadeira vida, por outro lado ela o faz crer em coisas impossíveis, levando-o a
228
C. G. JUNG (org.), HS, p. 31.
229
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 177ss.
230
Ibid., p. 179.
112
um tipo de vida que o tira desse distanciamento neurótico, mas então sob a forma de compor-
tamentos estranhos e, muitas vezes, submissos a mulheres reais (a mãe, a mulher amada
etc.)
231
. Conforme assinala Jung, “uma vez que a anima pretende a vida, ela pretende o bem e
o mal”
232
, já que a vida mesma se compõe do bem e do mal em igual intensidade. Isso signifi-
ca que o homem dominado por sua anima vai apresentar comportamentos que ou o distanciam
doentiamente da realidade, ou o fazem perpetrar ações aparentemente irracionais ou mesqui-
nhas, sem que ele se conta disso e, muito menos, saiba o que está provocando essas atitu-
des. A causa desse problema é a falta de equilíbrio interior entre o bem e o mal, que a anima
revela e pretende fazer vir à tona. Mas nem tudo são espinhos quando se fala em anima. Ela
tem um lado poderosamente positivo:
A vida sem sentido e desregrada, que não se satisfaz a si mesma em sua própria plenitude,
é objeto de pavor e rejeição para o ser humano enquadrado em sua civilização e não se
pode discordar dele, porque essa vida é também a mãe de toda irracionalidade e de toda
tragédia. Por isso, desde o início o ser humano terreno, através de seu saudável instinto
animal, desfecha uma luta com sua alma e o elemento demoníaco contido nela. Se este e-
lemento fosse inequivocamente mau, o caso seria simples. Infelizmente não é este o caso,
pois a mesma anima pode aparecer como um anjo de luz, um psicopompo, e levar o ser
humano à plenitude do ser, tal como o comprova Fausto
233
.
Pode-se constatar, através disso, que o ser humano tem em si a capacidade de perceber
todos os lados de sua personalidade, inclusive aqueles sobre os quais ele não tem um controle
consciente: tal como no item sobre a sombra, olhar para si mesmo e então encetar essa “luta”
da qual fala a citação acima é tarefa das mais difíceis. Essa luta pode até não ser evidente, e
muitas vezes se transveste em comportamentos regidos por leis “morais” ou “éticas”, sem que
a pessoa se conta ou consiga explicar porque age desta ou daquela maneira para crescer in-
teriormente ou não se deixar levar por seu lado “desregrado”.
Apesar disso, caberia aqui a ressalva de que é cada cultura que estabelece padrões de
comportamento segundo uma ética própria, e a luta de cada pessoa para chegar até seu in-
231
C. G. JUNG, BU, p. 36. M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 179. Ela como exemplo deste tipo de comporta-
mento o professor do filme “Anjo Azul”, que se submete até mesmo a aparecer vestido de palhaço no cabaré
da cantora por qual está apaixonado.
232
„Indem die Anima das Leben will, will sie Gutes und Böses“. C. G. JUNG, BU, p. 38.
233
„Das sinn- und regellose Leben, das sich selbst an seiner eigenen Fülle nicht genug tut, ist ein Gegenstand des
Schreckens und der Abwehr für den in seiner Zivilisation eingeordneten Menschen – und man kann ihm nicht
unrecht geben, denn es ist auch die Mutter alles Unsinns und aller Tragik. Darum steht seit Anbeginn der erd-
geborene Mensch mit seinem heilsamen Tierinstinkt im Kampfe mit seiner Seele und deren monie. Wäre
letztere eindeutig finster, so läge der Fall einfach. Dem ist leider nicht so, denn dieselbe Anima kann auch als
ein Engel des Lichts, als Psychopompos, erscheinen und zum höchsten Sinne führen, wie der Faust aus-
weist“. C. G. JUNG, BU, p. 39.
113
consciente e reconstruí-lo também depende daquilo que ela aprendeu, a partir de seu próprio
entorno, como sendo lícito ou não. Mais uma vez se mostra que a presença dos arquétipos
que são universais – se manifesta de maneira diferenciada no inconsciente pessoal de cada in-
divíduo.
O processo de individuação poderia ser visto como um desenvolvimento da psique
humana, passando por várias fases que representam, inicialmente, a ação da anima como algo
assustador e ameaçador; mas quando o ser humano consegue alcançar outros patamares em
sua personalidade, vai deixando para trás esse lado negativo de sua anima para se beneficiar
do lado de “luz”, que o leva à fruição de uma vida mais plena e tranqüila. Segundo Jung, em
seus aspectos positivos a anima se compõe de quatro estágios de desenvolvimento psíquico:
O primeiro está bem simbolizado na figura de Eva, que representa o relacionamento pu-
ramente instintivo e biológico; o segundo pode ser representado pela Helena de Fausto:
ela personifica um nível romântico e estético que, no entanto, é também caracterizado por
elementos sexuais. O terceiro estágio poderia ser exemplificado pela Virgem Maria – uma
figura que eleva o amor (eros) à grandeza da devoção espiritual. O quarto estágio é sim-
bolizado pela Sapiência, a sabedoria que transcende até mesmo a pureza e a santidade,
como a Sulamita dos Cânticos de Salomão
234
.
Não deixa de causar surpresa a menção à Sulamita, e poder-se-ia perguntar se é possí-
vel construir uma ponte até o livro do Eclesiastes pelo viés do tipo de sabedoria que este pre-
tende alcançar: conforme a própria narrativa do Ec, enquanto rei ele se satisfazia ao nível
mais básico dos instintos, tanto sexuais quanto de fruição materialista. Mas durante sua vida
ele percebeu que “tudo é vaidade e correr atrás do vento”, e começou uma busca por um nível
de espiritualidade mais profundo (o terceiro estágio da anima). E até parece que o objetivo úl-
timo de suas reflexões seria esse estágio da Sulamita, a sabedoria em seu ápice, ao qual ele
sabe que não vai ter acesso. Inclusive seu constante questionamento acerca da impossibilidade
de se conhecer os desígnios divinos e o futuro têm seus reflexos na anima:
Esse aspecto se mostra àquele que enfrenta a anima. Só através desse trabalho custoso
é que se consegue perceber que por trás de todo esse jogo cruel com o destino humano e-
xiste algo como uma intenção secreta, derivada de um conhecimento superior das leis da
vida. Justamente aquilo que a princípio parece inesperado, o caos assustador, é que revela
um sentido profundo
235
.
234
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 185.
235
„Dieser Aspekt erscheint nur dem, der sich mit der Anima auseinandersetzt. Erst diese schwere Arbeit läßt in
zunehmendem Maße erkennen, dhinter all dem grausamen Spiel mit menschlichem Schicksal etwas steckt
wie geheime Absicht, die einer überlegenen Kenntnis der Lebensgesetze zu entsprechen scheint. Gerade das
zunächst Unerwartete, das beängstigend Chaotische enthüllt tiefen Sinn“. C. G. JUNG, BU, p. 41.
114
Em suas quatro fases de desenvolvimento, a anima acaba por assumir o papel de guia
interior do ser humano, fazendo com que ele conheça a si mesmo e desça até a profundidade
de seu inconsciente, sem, no entanto, viver os mesmos terrores de quando ele estava sob o po-
der da sombra. Agora, essa viagem ao encontro de si mesmo começa a render frutos. Jung
constata:
Quando todos os apoios e todas as muletas se quebraram e nem a mínima segurança pro-
mete proteção em qualquer lugar, somente então existe a possibilidade de vivenciar um
arquétipo que, até este momento, estava oculto na significativa falta de sentido da anima.
É o arquétipo do sentido, tal como a anima representa o arquétipo da vida mesma
236
.
Ele explicita o significado profundo desse posicionamento da seguinte forma:
Se o ser humano não encontrar mais qualquer sentido em sua vida, não lhe faz maior dife-
rença dissipá-la sob um regime comunista ou capitalista. se ele puder usar a sua liber-
dade para criar algo significativo é que vai valer a pena obter esta liberdade. É por isto
que encontrar o sentido profundo da vida é mais importante para um indivíduo que tudo o
mais, e é por este motivo que o processo de individuação deve ter prioridade
237
.
O que Jung propõe é que a busca pelo sentido da vida deveria servir para iniciar o pro-
cesso de individuação, entendendo que a pessoa não pode se deixar anular pelo coletivo, seja
de que forma for que ela se obrigue a (sobre)viver. Se a morte anula e relativiza tudo, tornan-
do-se o elemento mais desconhecido da existência humana, tal não pode acontecer com a vi-
da: é importante a ressalva de Jung na segunda citação, quanto à fruição plena da liberdade de
viver.
Na esteira do questionamento pelo sentido da vida, a pessoa pode ver-se defrontada
com uma série de perguntas que vão perturbá-la numa medida aparentemente além do supor-
tável. Mas o que muitas vezes não se vislumbra é que esse questionamento é o deflagrador da
verdadeira busca num caminho real, possível: “O sujeito perde a harmonia desejada, mas, em
compensação, sua vida ganha o sentido, ou seja, a direção que aponta para o objeto. Toda re-
conquista é uma retomada do sentido […]”
238
. É esta aparente falta de harmonia que impulsi-
ona a pessoa a buscar aquele algo mais de que ela carece, mesmo que não seja a solução para
seus problemas; mas, pelo menos, encontra-se a “direção que leva do sujeito ao objeto”.
236
„Wenn alle Stützen und Krücken gebrochen sind, und auch nicht die leiseste Rückversicherung irgendwo
noch Deckung verspricht, dann erst ist die glichkeit gegeben zum Erlebnis eines Archetypus, der sich
bisher in der bedeutungsschweren Sinnlosigkeit der Anima verborgen gehalten hatte. Es ist der Archetypus
des Sinnes, wie die Anima den Archetypus des Lebens schlechthin darstellt“. C. G. JUNG, BU, p. 43.Grifo
do autor.
237
C. G. JUNG (org.), HS, p. 224.
238
Luiz TATIT, Análise semiótica através das letras, p. 33.
115
No entanto, mesmo isso não significa, para Jung, que o ser humano possa dar um sen-
tido à sua vida, como se isso fosse uma opção individual ou ditada pelo momento da existên-
cia. Haveria um pensar pré-existente a cada pessoa, e que faria parte do inconsciente coletivo.
Essa concepção vem de tempos muito remotos: Platão tentava descobrir a origem da idéia,
e os alquimistas buscavam a essência da energia. É por isso que Jung fala em encontrar, e não
em produzir sentido. O caminho em direção a si mesmo pode ser o primeiro passo para des-
cobrir as potencialidades de uma vida independente de coerções moralistas advindas da socie-
dade, ou mesmo de si próprio quando o espírito não está em paz (autojulgamentos e puni-
ções). São as potencialidades para viver a liberdade que cada pessoa traz em si, e que muitas
vezes está soterrada sob o peso de parâmetros de comportamento social, de expectativas cria-
das por outras pessoas de comportamento dominador etc. A aparente falácia de que é possível
sentir-se livre interiormente, mesmo quando as condições externas parecem negá-lo, torna-se
então uma possibilidade.
Mas, de qualquer forma, o “pensar sobre”, a reflexão, seriam marcados, predominante-
mente, pelo próximo elemento formador do inconsciente, que é o aspecto masculino em cada
ser humano a clássica fórmula da razão contra o sentimento. E não se conseguirá chegar à
essência última da existência enquanto o “pai”, ou o “rei”, dominarem a vida interior, seja de
homens ou de mulheres, porque o ser humano é integral, reunindo em si ambas as faces da e-
xistência. Portanto, tampouco se chegará a perceber que a vida fará sentido se a razão e a
emoção trabalharem juntas, mesmo que, às vezes, uma predomine sobre a outra. O processo
de individuação, para ser efetivo, necessita passar pela vivência dos conflitos originados das
polaridades que compõem a psique, trazendo ordem ao caos interior. Ver-se-á a seguir como
se manifesta o lado masculino especificamente na mulher, e que recebe o nome de animus.
5.3 O animus
O animus representa a fase da evolução do ser humano que tem a ver mais diretamente
com a mulher. Ele é o lado oposto ao feminino, ou seja, a porção masculina contida no in-
consciente da mulher.
Também o animus apresenta duas faces – a negativa e a positiva –, e cabe à mulher a-
prender a lidar com ele para desenvolver as potencialidades deste seu “lado oposto”. Aspectos
negativos do animus aparecem quando a mulher se comporta de maneira autoritária, arrogante
116
e antipática, afirmando coisas sem admitir discussões e usando, inclusive, de violência para
convencer as outras pessoas:
Quando uma mulher anuncia tal convicção com voz forte, masculina e insistente, ou a
impõe às outras pessoas por meio de cenas violentas reconhece-se, facilmente, a sua mas-
culinidade encoberta. No entanto, mesmo em uma mulher que exteriormente se revele
muito feminina o animus pode também ter uma força igualmente firme e inexorável. De
repente podemos nos deparar com algo de obstinado, frio e totalmente inacessível em
uma mulher
239
.
Para Jung, também o aspecto masculino da personalidade tem comportamentos questi-
onáveis, do ponto de vista da sociabilidade. Ele resgata aqueles aspectos problemáticos que
aparecem no comportamento da mulher como sendo “tipicamente masculinos”; estas atitudes
de quando em quando aparecem em mulheres que não estão em paz interior consigo mesmas.
As mulheres dominadas pelo animus se vêem destituídas da compreensão básica de sua per-
sonalidade:
Assim como o caráter da anima masculina é moldado pela mãe, o animus é basicamente
influenciado pelo pai da mulher. É o pai que dá ao animus da filha convicções incontesta-
velmente “verdadeiras”, irretrucáveis e de um colorido todo especial convicções que
nunca têm nada a ver com a pessoa real que é aquela mulher. Por isso o animus, tal como
a anima, pode, algumas vezes, tornar-se o demônio da morte. […] Uma estranha passivi-
dade, uma paralisação de todos os sentimentos ou uma profunda insegurança que pode
levar a uma sensação de nulidade e vazio é, às vezes, o resultado de uma opinião incons-
ciente do animus
240
.
Pode-se entender agora por que, freqüentemente, homens e mulheres não conseguem
relacionar-se com o respectivo gênero oposto, uma vez que seus moldes de comportamento,
ditados pelo domínio do animus ou da anima, estão impedindo-os de chegarem à compreen-
são de seu próprio lado complementar. Nesses casos é necessário tomar o caminho até o in-
consciente para descobrir o por quê de determinadas reações ou atitudes; entendendo-se a si
mesmo fica mais fácil entender o comportamento da pessoa com quem se está convivendo,
porque é uma compreensão que vem de dentro do próprio indivíduo.
Em seus aspectos positivos, o animus pode ser personificado como um velho sábio,
um feiticeiro, às vezes como um grupo de homens, e tende a sergico, freqüentemente racio-
nalista, até mesmo argumentativo. Ele contrapõe o lado excessivamente emocional e descon-
trolado que pode dominar a mulher, conferindo-lhe um equilíbrio saudável em seu raciocínio
239
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 189.
240
Ibid., p. 189ss.
117
e na construção de seus argumentos. Ela passa a não ter de lutar mais contra o “pai” ou o “rei”
para encontrar-se, e tira partido dos aspectos realistas e maduros que caracterizam o sábio e o
feiticeiro:
O animus, tal como a anima, apresenta quatro estágios de desenvolvimento: o primeiro é
uma simples personificação da força física por exemplo, um atleta ou “homem muscu-
loso”. No estágio seguinte, o animus possui iniciativa e capacidade de planejamento; no
terceiro torna-se o “verbo”, aparecendo muitas vezes como professor ou clérigo; final-
mente, na sua quarta manifestação o animus é a encarnação do “pensamento”. Nesta fase
superior torna-se (como a anima) o mediador de uma experiência religiosa através da qual
a vida adquire novo sentido
241
.
Interessante é notar que os estágios de desenvolvimento do animus partem do nível
mais elementar da existência, como se Jung visse refletida neles a mesma teoria que já fora
defendida por Platão: o nível biológico é sempre o mais “primitivo”, enquanto a personifica-
ção da anima pode ser uma mulher perfeita como a Sulamita, e a personificação do animus
carrega em si o poder de “transformar” uma pessoa, notadamente uma mulher. Essa concep-
ção já fora questionada pelo Ec
242
, e esse é mais um ponto de divergência entre as duas visões
de mundo ora analisadas.
De qualquer forma, tanto a anima quanto o animus se manifestam na psique humana
dentro de um determinado progresso de desenvolvimento da personalidade; este progresso é
melhor observado durante o processo de individuação, que consiste em se fazer o caminho in-
terior até o próprio inconsciente, aprendendo a reconhecer esses estágios e aperfeiçoando as
atitudes do consciente, rumo a uma integralização psíquica. Cabe ressaltar que, para Jung, o
sentido último do processo de individuação está em que a pessoa percorra um “processo que
se desenvolve através dos relacionamentos com outras pessoas”:
Como ninguém pode tornar-se consciente de sua individualidade a menos que esteja ínti-
ma e responsavelmente relacionado a seu próximo, ele não está se retirando para um de-
serto egoísta quando tenta se encontrar. Ele pode descobrir-se quando está ligado de
forma profunda e incondicional a alguém e, em geral, relacionado a muitos indivíduos
com quem ele pode comparar-se e através dos quais ele é capaz de discriminar a si mes-
mo
243
.
Isso significa, na prática, que o processo de individuação, cujo ápice é o self, terá
tido verdadeiro sucesso quando a integralização do indivíduo ocorrer também na relação dia-
241
C. G. JUNG, PR, p. 194.
242
Cf. Ec 3.16-22, no cap. 3 deste trabalho.
243
J. FADIMAN, R. FRAGER, op. cit., p. 60.
118
lética com as outras pessoas, e é por isso que o self é a totalidade tanto da psique consciente
quanto do inconsciente. Ver-se-ão a seguir os detalhes dessa culminância.
5.4 O self
O centro organizador do qual emana esta ação reguladora [o processo de individuação]
parece ser uma espécie de “núcleo atômico” do nosso sistema psíquico. Poder-se-ia de-
nominá-lo também de inventor, organizador ou fonte das imagens oníricas. Jung chamou
a este centro o self e o descreveu como a totalidade absoluta da psique, para diferenciá-lo
do ego, que constitui apenas uma pequena parte da psique
244
.
Após as descrições da sombra, da anima e do animus chega-se agora ao estágio do
self, segundo Jung a fase mais avançada e produtiva do processo de individuação. Seria o es-
tágio mais ambicionado pelo ser humano que deseja realmente conhecer-se, reconhecer-se e
crescer, para enfrentar de uma nova forma os desafios não de sua psique, mas, principal-
mente, deste mundo que lhe impõe os mais diversos empecilhos antes que lhe seja facultado
“chegar a si mesmo”.
O objetivo da vida é realizar o self. O self é um arquétipo que representa a transcendência
de todas as oposições, de forma que cada aspecto de sua personalidade esteja expresso
com igual intensidade. Então, você já não é mais masculino ou feminino, e mesmo assim
é ambos, não é mais ego ou sombra, mas ambos, o é mais bom ou mau, mas ambos,
não é mais consciente ou inconsciente, mas ambos, não é mais indivíduo ou o todo da cri-
ação, mas ambos. E assim, através da anulação das oposições, não existe energia, e você
pára de agir. É evidente que você já não precisa mais agir
245
.
Nessa conjunção/anulação de oposições, o self adquire, afinal, a forma inconsciente
correspondente à mulher ou ao homem, após a “luta interior” com o animus ou a anima. Ou
seja: o self na mulher adquirirá a forma de um personagem feminino, enquanto no homem ele
assumirá traços masculinos. Isso significa que, se antes o inconsciente da pessoa estava agin-
do, em sonhos ou de outra forma, para alertá-la ou até mesmo para entrar em conflito aberto
com o consciente, o estado do self é o da harmonia com esse inconsciente, assumido como
forma mais essencial da vivência psíquica. A partir deste momento, é possível trilhar um ca-
minho de segurança interior sob os auspícios protetores do inconsciente, que existirão não
mais para desassossegar, e sim para tranqüilizar e orientar o consciente:
244
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 161.
245
“The goal of life is to realize the self. The self is an archetype that represents the transcendence of all
opposites, so that every aspect of your personality is expressed equally. You are then neither and both male
and female, neither and both ego and shadow, neither and both good and bad, neither and both conscious and
unconscious, neither and both an individual and the whole of creation. And yet, with no oppositions, there is
no energy, and you cease to act. Of course, you no longer need to act”. G. C. BOEREE, op. .cit.
119
[…] o inconsciente muda o seu caráter dominante e aparece numa forma simbólica, re-
presentada pelo self, o núcleo mais profundo da psique. Nos sonhos da mulher este núcleo
em geral é personificado por uma figura feminina superior uma sacerdotisa, uma feiti-
ceira, uma mãe-terra, ou uma deusa da natureza ou do amor. No caso do homem, mani-
festa-se como um iniciador masculino ou um guardião (o guru, dos hindus), um velho sá-
bio, um espírito da natureza e assim por diante
246
.
Uma imagem universal que representa o self é o Grande Homem, ou o Homem Cós-
mico, a essência mesma do elemento humano presente em cada pessoa: “[…] pode ser defini-
do como um fator de orientação íntima, diferente da personalidade consciente, e que pode
ser apreendido através da investigação dos sonhos de cada um”
247
. Note-se aqui a diferencia-
ção entre fator de orientação íntima” e “personalidade consciente”. Ao primeiro tem-se atri-
buído freqüentemente a capacidade de agir segundo uma “lei divina”, o que inclui formas de
comportamento destinadas ao convívio, à sobrevivência, à preservação da espécie e outras,
sem que se saiba realmente qual a origem destes “instintos”. Da mesma forma, o Grande Ho-
mem pode auxiliar a pessoa em questões de desenvolvimento e amadurecimento da personali-
dade:
Por vezes, sentimos que o inconsciente nos está guiando de acordo com um desígnio se-
creto. É como se algo nos estivesse olhando, algo que não vemos mas que nos a nós
talvez o Grande Homem que vive em nosso coração e que, através dos sonhos, nos vem
dizer o que pensa a nosso respeito
248
.
Esta não é a descrição que normalmente se faria da “consciência moral ou ética” da
qual se pressupõe que a maioria das pessoas disponha. Essa “consciência” é per definitionem
fruto do consciente e resultado das influências sociais, enquanto o chamado Grande Homem é
anterior às elaborações psíquicas que o ser humano consiga fazer de si e do mundo.
Para se vivenciar o Grande Homem com vistas ao processo de individuação, é neces-
sário primeiro ter passado as etapas de reconhecimento da sombra e da anima resp. do ani-
mus, para então começar a dirigir-se ao centro da própria personalidade. Nesse momento, o
ego (expressão consciente) deve se desfazer dos embaraços e das ambições contidos em seus
próprios projetos de vida, desfazendo ilusões e planos acerca de si mesmo, para então tentar
“abrir a porta do inconsciente”
249
. Esse é o momento crucial do encontro consigo mesmo, do
246
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 196.
247
Ibid., p. 162.
248
Ibid., p. 162.
249
Ibid., p. 162.
120
reconhecimento das potencialidades e dos impedimentos, e do alcance de uma vida muito
mais espiritualizada e integral, que permita a experiência total dos conteúdos inconscientes.
O processo de individuação recebeu este nome em parte porque diz respeito ao indiví-
duo – não é possível comparar trajetórias de vida nem, muito menos, querer imitar determina-
das atitudes e reações que pareçam interessantes, com vistas a chegar ao mesmo estágio em
que se encontram outras pessoas. Cada indivíduo é único, e quando tiver se realizado no ponto
de estar em paz consigo mesmo é que estará em condições de compartilhar-se; é somente nes-
se estágio que a pessoa consegue viver em harmonia com os seus semelhantes, uma vez que
ninguém que esteja em conflito consigo mesmo pode transmitir paz e tranqüilidade para as
outras pessoas.
O que se pretende, em resumo, é encontrar o que o pintor Alfred Manessier chamou de
“peso da realidade perdida”: “O que temos de reconquistar é o peso da realidade perdida. Pre-
cisamos fazer para nós mesmos um novo coração, um novo espírito, uma nova alma, na exata
medida do homem
250
. E Jean Bazaine complementa: “Mas uma forma que consiga reconcili-
ar o ser humano com o seu ambiente é uma ‘arte de comunhão’, através da qual, a qualquer
momento, ele poderá reconhecer no mundo o seu próprio semblante informe”
251
.
Mas isso não significa que seja necessário “afogar-se na multidão” para compartilhar
uma vivência de cunho mais solidário e coletivo. Aparentemente, grupos pequenos de 10 a 15
pessoas “funcionam” melhor quanto à fruição do bem-estar físico, da saúde mental e da frui-
ção cultural:
Tanto quanto compreendemos hoje o processo de individuação, o self tende, aparente-
mente, a produzir estes pequenos grupos criando, ao mesmo tempo, laços afetivos bem
definidos entre certos indivíduos e um sentimento de solidariedade geral. Só quando estas
conexões são criadas pelo self é que se pode ter alguma certeza de que o grupo não será
dissolvido pela inveja, pelo ciúme, por lutas e toda sorte de projeções negativas. Assim, a
devoção incondicional ao nosso processo de individuação traz também melhor adaptação
social
252
.
Esses elementos, presentes tanto no inconsciente quanto no consciente, fazem com que
a pessoa encontre seu “centro psíquico” e passe a trabalhar seu equilíbrio interior, o que fa-
talmente se demonstrará em suas atitudes, ações e reações diante das outras pessoas e do
250
Alfred Manessier, apud W. Haftmann, Malerei im 20. Jahrhundert, p. 464, in: J. JACOBI, op. cit., p. 268.
251
Jean Bazaine, Notes sur la peinture d’aujourd’hui, p. 126, apud J. JACOBI, ibid.
252
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 223.
121
mundo: “levar o inconsciente a sério é, afinal de contas, uma questão de coragem pessoal e in-
tegridade”
253
. O que não se deve esquecer, porém, é a idéia que Jung faz do self como o cum-
primento radical de toda a existência humana:
O arquétipo mais importante de todos é o self. O self é a unidade ultimativa da personali-
dade e vem simbolizado pelo círculo, pela cruz e pelas figuras em forma de mandala que
Jung se descobriu desenhando. A mandala é um desenho usado na meditação, porque ela
tende a dirigir seu foco de volta ao centro, e ela pode ser tão simples quanto uma figura
geométrica ou tão complicada quanto uma janela de vidro colorido. As personificações
que melhor representam o self são Cristo e Buda, duas pessoas que muita gente crê terem
atingido a perfeição. Mas Jung percebeu que a perfeição da personalidade é atingida ape-
nas na morte
254
.
Em outras palavras, para Jung a morte parece ser o cumprimento final do processo de
individuação; é apenas nessa fase crucial do ciclo de vida que a evolução de cada personali-
dade atinge seu ápice, embora toda a vida seja um caminho composto de incontáveis degraus,
fases e estágios rumo à completude do ser. É aqui que ele se diferencia do Ec, o qual conside-
rava a morte a anulação de todas as coisas e de todos os esforços do ser humano em sua vida
terrena. Ambos, porém, têm em comum que a morte não deva ser encarada com medo e de-
pressão, e sim como um desafio (Jung) e como uma volta a Deus (Eclesiastes).
Excurso: sobre a relação da psicologia analítica com a poesia
255
Jung parte do princípio de que existe uma relação entre a psicologia e a poesia, uma vez que
fazer arte é também expressão da vida interior e, portanto, dos fenômenos psíquicos que compõem es-
sa vida interior. Sabe-se hoje que várias enfermidades na área psíquica são trabalhadas através da arte,
sendo que a produção própria dos pacientes é submetida a várias análises e se pode chegar a informa-
ções bastante precisas sobre a situação mental da pessoa. Apesar disso, ambas as grandezas – a arte e a
psicologia não são comparáveis em níveis iguais; o que pode acontecer é que elementos de uma se
fazem visíveis na outra, e podem fornecer dados importantes sobre a vida interior da pessoa que pro-
duziu determinada forma de expressão artística:
Essas conexões surgem do fato de que a prática da arte é uma atividade psicológica e, como tal,
pode ser analisada a partir de um ângulo psicológico. Considerada dessa forma, a arte, tal como
253
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 226.
254
“The most important archetype of all is the self. The self is the ultimate unity of the personality and is
symbolized by the circle, the cross, and the mandala figures that Jung was fond of painting. A mandala is a
drawing that is used in meditation because it tends to draw your focus back to the center, and it can be as
simple as a geometric figure or as complicated as a stained glass window. The personifications that best
represent self are Christ and Buddha, two people who many believe achieved perfection. But Jung felt that
perfection of the personality is only truly achieved in death”. G. C. BOEREE, op. cit.
255
Bsaeado num ensaio extraído de: C. G. JUNG, The Spirit in Man, Art and Literature, 4. ed., Princeton,
University Press, 1978.
122
qualquer outra atividade humana derivada de motivos psíquicos, é um assunto adequado para a
psicologia
256
.
Na obra O homem e seus símbolos, que Jung ajudou a organizar, sua colaboradora Aniela Jaffé
se debruça sobre o mesmo assunto, analisando o simbolismo nas artes plásticas durante os séculos
(p.ex. trabalhos em pedra desde Karnak até Max Ernst). Ela identifica elementos básicos como a pe-
dra, o animal e o círculo como expressões recorrentes na produção artística na área da pintura, da es-
cultura e outras
257
. Jung começa por esclarecer uma diferença fundamental entre o conceito arte e suas
manifestações:
Somente aquele aspecto da arte que consiste no processo de criação artística pode ser objeto de es-
tudos psicológicos, mas não aquilo que constitui sua natureza essencial. A pergunta acerca do que
é a arte em si mesma jamais pode ser respondida pelo psicólogo, e sim tem de ser trabalhada pela
estética
258
.
Isso significa que, para a psicologia, é de menor importância discutir o fenômeno artístico em
si; muito mais importantes são as manifestações surgidas do impulso artístico inato a qualquer pessoa.
Desta maneira evitam-se também juízos de valor sobre os resultados da experiência artística, privilegi-
ando-se a expressão do inconsciente contida nesses resultados. A estética seria, nesse caso, um empe-
cilho no caminho aas verdadeiras pistas que a pessoa deixa em seu trabalho artístico. Dito de outra
forma, “se a essência da religião e da arte pudesse ser demonstrada, então ambas se tornariam meras
subdivisões da psicologia”
259
.
Outro problema desse tipo de análise, segundo Jung, é que não se podem reduzir todas as ma-
nifestações artísticas ao mesmo quociente, como p.ex. a psicologia tradicional freudiana, que se con-
tentou em atribuir toda a sorte de distúrbios mentais à relação do paciente com seus pais ou com sua
sexualidade perturbada: “Se uma obra de arte for explicada da mesma forma como uma neurose, então
ou essa obra de arte é uma neurose, ou a neurose é uma obra de arte”
260
. Dessa maneira perdem-se as
peculiaridades que fazem da obra de arte a expressão única e irrepetível do inconsciente do respectivo
artista, empobrecendo a fruição artística ao nível dos preconceitos mais básicos que fazem parte da so-
ciedade de consumo:
256
“These connections arise from the fact that the practice of art is a psychological activity and, as such, can be
approached from a psychological angle. Considered in this light, art, like any other human activity deriving
from psychic motives, is a proper subject for psychology”. C. G. JUNG, op. cit.
257
Aniela JAFFÉ, O simbolismo nas artes plásticas, in: C. G. JUNG (org.), HS, p. 232ss.
258
“Only that aspect of art which consists in the process of artistic creation can be a subject for psychological
study, but not that which constitutes its essential nature. The question of what art is in itself can never be ans-
wered by the psychologist, but must be approached from the side of aesthetics”. C. G. JUNG, The Spirit
259
“If the essence of religion and art could be explained, then both of them would become mere subdivisions of
psychology”. Ibid.
260
“If a work of art is explained in the same way as a neurosis, then either the work of art is a neurosis or a
neurosis is a work of art”. Ibid.
123
[…] o processo criativo, tanto quanto podemos acompanhá-lo, consiste na ativação inconsciente de
uma imagem arquetípica, e na elaboração e estruturação dessa imagem dentro da obra finalizada.
Dando-lhe forma, o artista a traduz para a linguagem do tempo presente, e assim nos possibilita
encontrar o caminho de volta às fontes mais ocultas da vida
261
.
O livro do Eclesiastes chama a atenção quando se começa a lê-lo para além dos limites do mé-
todo histórico-crítico, deixando um pouco de lado as pré-classificações para se dedicar às manifesta-
ções psíquicas nele contidas e raramente observadas mais de perto: poucos comentaristas dos citados
neste trabalho perceberam, p.ex., a possibilidade de explorar o texto como um todo como o reflexo de
um caminho de crescimento interior percorrido pelo suposto autor do livro, embora uma leitura alter-
nativa demonstre uma progressão no nível de auto-análise e reflexão sobre os temas universais dos
quais ele se ocupa.
Quando Jung começou a busca por uma forma mais enriquecedora e produtiva de análise psi-
cológica, a qual acabou por separá-lo radicalmente da concepção analítica de Freud, ele foi enfático
em seus exemplos:
Os resultados são interessantes, sem dúvida, e talvez tenham o mesmo tipo de valor científico co-
mo, p.ex., um exame post-mortem do cérebro de Nietzsche, que pode, provavelmente, mostrar-nos
a forma particularmente atípica da paralisia da qual ele morreu. Mas o que isso tem a ver com Za-
ratustra?
262
Essa metáfora acerca dos resultados da pesquisa na área das ciências exatas tem de ser levada
a sério também na pesquisa blica: o que se descobriu até hoje sobre o livro do Eclesiastes não pode
se exaurir nas questões temporais e espaciais, pretendendo que, com esses dados, metade do texto
estaria esclarecido de antemão. No momento em que se têm os meios para acessar esse texto, e se co-
meçam a identificar determinadas características, é necessário atentar para a clareza e a precisão dos
conceitos. Nesse contexto, é necessário muito cuidado ao “classificar” formas, gêneros, estilos e tudo
o que ajuda a tornar um texto único ou, pelo menos, minimamente original. Tem-se falado muito,
p.ex., que a linguagem do livro do Eclesiastes seria “simbólica”. O que isso significa, de fato, é bem
outra coisa na ótica junguiana:
O verdadeiro símbolo […] deveria ser entendido como a expressão de uma idéia intuitiva que,
mesmo assim, não pode ser formulada de outra ou melhor forma. Quando Platão, p.ex., demonstra
todo o problema da teoria do conhecimento em sua parábola da caverna, ou quando Cristo expres-
261
“The creative process, so far as we are able to follow it at all, consists in the unconscious activation of an
archetypal image, and in elaborating and shaping this image into the finished work. By giving it shape, the
artist translates it into the language of the present, and so makes it possible for us to find our way back to the
deepest springs of life”. C. G. JUNG, op. cit.
262
“The results are no doubt very interesting and may perhaps have the same kind of scientific value as, for
instance, a post–mortem examination of the brain of Nietzsche, which might conceivably show us the
particular atypical form of paralysis from which he died. But what would this have to do with Zarathustra?”.
Ibid.
124
sa a idéia do Reino dos Céus em parábolas, esses são símbolos genuínos e verdadeiros, tentativas
de expressar algo para o qual ainda não existe um conceito verbal
263
.
Por isso é preciso muito cuidado quanto à pretensa “simbologia” do livro do Eclesiastes,
quando se quer dizer com isso que ela é de difícil acesso. De fato, o Ec lança mão de pouquíssimos
símbolos –, o que torna sua linguagem por assim dizer “hermética” é o fato de que ele usa substantivos
e verbos, dispensando os adjetivos em dois terços do texto como um todo.
Tudo aquilo que obriga a pessoa a usar sua fantasia para qualificar o objeto de sua análise faz
com que este objeto acabe adquirindo facetas polissêmicas e, por isso, abertas a muitas interpretações.
E é esta abertura que vai, paradoxalmente, “fechando” o texto à fácil compreensão superficial e ilusó-
ria das pessoas em geral, criando essa aura de desconfiança e quase crítica em relação ao que se pro-
duziu.
Usar metáforas não significa, portanto, utilizar símbolos para expressar-se, e isso também não
pode ser confundido em outras formas de manifestação artística. Jung chama a atenção para o fato de
que “o símbolo autêntico só aparece quando há necessidade de expressar aquilo que o pensamento não
consegue formular ou que é apenas adivinhado ou pressentido”
264
, porque “um símbolo é a intimação
de um significado para além do nível de nossa capacidade atual de compreensão”
265
. Talvez também o
Ec tenha preferido expressar-se através de uma linguagem metafórica porque ela reproduzia melhor o
nível de suas reflexões, as quais mostravam o caminho interior do aperfeiçoamento intelectual, religio-
so e emocional de seu autor. A reação das pessoas a esse tipo de produção textual difere bastante da-
quela demonstrada diante do discurso “aberto”, óbvio, inequívoco:
Um símbolo permanece sendo um desafio constante para nossos pensamentos e sentimentos. Isso
provavelmente explica por que uma obra simbólica é tão estimulante, por que ela nos perturba tão
intensamente, mas também por que ela raramente nos proporciona uma fruição puramente estética.
Uma obra que é declaradamente não simbólica apela muito mais à nossa sensibilidade estética
porque ela é completa em si mesma e cumpre seu objetivo
266
.
Jung avalia que duas formas básicas de fazer arte a tradicional”, ou seja, aquela em que
o artista é o “criador” da obra: ele analisa o decorrer da produção, acrescenta ou subtrai coisas, substi-
263
“The true symbol […] should be understood as an expression of an intuitive idea that cannot yet be
formulated in any other or better way. When Plato, for instance, puts the whole problem of the theory of
knowledge in his parable of the cave, or when Christ expresses the idea of the Kingdom of Heaven in
parables, these are genuine and true symbols, that is, attempts to express something for which no verbal
concept yet exists”. C. G. JUNG, op. cit.
264
A. JAFFÉ, op. cit., p. 249.
265
‘For a symbol is the intimation of a meaning beyond the level of our present powers of comprehension”. C.
G. JUNG, op. cit.
266
“A symbol remains a perpetual challenge to our thoughts and feelings. That probably explains why a
symbolic work is so stimulating, why it grips us so intensely, but also why it seldom affords us a purely
aesthetic enjoyment. A work that is manifestly not symbolic appeals much more to our aesthetic sensibility
because it is complete in itself and fulfills its purpose”. Ibid.
125
tui detalhes etc. A obra não pode subsistir sem sua interferência direta e denotadora de autoridade so-
bre ela. Esta é a maneira pela qual a maioria dos artistas age, e quase ninguém se conta disso por-
que é o consciente que está em primeiro plano, registrando e trabalhando apenas aqueles aspectos do
cotidiano que chamam a atenção o suficiente para que se crie uma nova obra de arte. Mas existe uma
outra forma, mais instigante e inesperada, através da qual pode surgir uma produção artística: repenti-
namente, o artista
[…] se dominado por uma torrente de pensamentos e imagens que ele nunca pretendera criar, e
que sua vontade própria jamais teria conseguido trazer à tona. Mas, mesmo não querendo, ele é o-
brigado a admitir que este é o seu próprio self falando, sua própria natureza interior revelando-o a
si mesmo e provocando coisas que ele não confiaria à sua própria língua. Ele pode apenas obede-
cer ao impulso aparentemente estranho dentro de si e segui-lo por onde ele for, sentindo que sua
obra é maior que ele mesmo, e que ela detém um poder que não é dele e que ele não consegue co-
mandar
267
.
Essa é a causa do efeito freqüentemente assustador, ou pelo menos surpreendente, que alguns
quadros, filmes, livros podem suscitar em quem os está apreciando. Normalmente, o fruidor da arte
pensa saber que tipo de pessoa é o artista através de sua produção questões de estilo e forma, quase
sempre, o os argumentos determinantes para tal classificação. Quando não é este o caso, ou seja,
quando o próprio artista “deixa-se” ver em sua obra, podem aparecer coisas diferentes, surpreendentes
também para ele mesmo. Na área da pintura isso é bastante comum, tanto que acabou se batizando um
determinado estilo de “pintura espontânea”; mesmo na literatura há exemplos de produção textual qua-
se que “ao acaso”. Mas “o artista não é, como parece, tão livre na sua criação quanto acredita ser”
268
.
Seu fazer artístico é dominado pelo seu inconsciente, ou seja, pelas leis que governam sua psique, e
sobre as quais ele não tem controle consciente:
[…] no caso de obras desse tipo deveríamos estar preparados para algo suprapessoal que transcen-
de nossa compreensão, da mesma forma que a consciência do autor estava ausente durante o pro-
cesso de criação
269
.
Apesar disso, essas produções têm, freqüentemente, mais valor em si que aquelas controladas,
“acadêmicas” (ou mesmo academicistas), nas quais o autor da obra de fato detém o poder interpretati-
vo sobre ela: são obras que expressam muito mais que a “fachada”, embora isso possa não convir ao
267
“ […] he is overwhelmed by a flood of thoughts and images which he never intended to create and which his
own will could never have brought into being. Yet in spite of himself he is forced to admit that it is his own
self speaking, his own inner nature revealing itself and uttering things which he could never have entrusted to
his tongue. He can only obey the apparently alien impulse within him and follow where it leads, sensing that
his work is greater than himself, and wields a power which is not his and which he cannot command”. C. G.
JUNG, op. cit.
268
A. JAFFÉ, op. cit., p. 267.
269
“But with works of the other class we would have to be prepared for something suprapersonal that transcends
our understanding to the same degree that the author’s consciousness was in abeyance during the process of
creation”. C. G. JUNG, op. cit.
126
seu autor neste caso, este seria antes um canal de transmissão do inconsciente que um produtor que
age com o consciente. Valéry Kandinsky afirmava:
O olho do artista deveria estar sempre voltado pa-
ra a sua vida íntima, e seu ouvido sempre alerta à voz da necessidade interior. É o único meio para dar
expressão ao que a visão mística comanda”
270
. Paulo Leminski coloca isso em linguagem poética:
eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
quem está por fora
não segura
um olhar que demora
de dentro do meu centro
meu poema me olha
271
Por outro lado, essa forma de fazer arte pode trazer problemas sérios ao artista se ele não con-
seguir canalizar seu mundo interior adequadamente:
Na raiz desta angústia interior está a derrota (ou melhor, o recuo) da consciência. No estuário da
experiência mística, tudo o que já ligou o homem ao universo humano, à terra, ao tempo e ao espa-
ço, à matéria e à vida natural, foi rejeitado ou destruído. Mas se a inconsciência não for contraba-
lançada pela experiência consciente, ela vai manifestar, implacavelmente, o seu aspecto desfavo-
rável ou negativo. A riqueza do som criador que fez a harmonia das esferas ou os maravilhosos
mistérios da natureza original foram substituídos pela destruição e pelo desespero. Em mais de um
caso o artista tornou-se uma vítima passiva do seu inconsciente
272
.
Caberia perguntar agora de que tipo seria o livro do Eclesiastes: produção consciente ou in-
consciente, ou um misto dos dois aspectos com predomínio pendular de um e outro? Poderia ser essa
uma das causas de o livro parecer tão incongruente ou desconexo, e apesar disso evidenciar um fio
condutor que o perpassa de ponta a ponta? E qual seria a função dos refrães? Essas perguntas podem
ser respondidas em parte no próximo capítulo, com o auxílio do que se estudou até agora sobre a fun-
ção do inconsciente e dos arquétipos segundo Jung.
270
Valéry Kandisky, Über die Formfrage, apud A. JAFFÉ, op. cit., p. 263.
271
Paulo LEMINSKI, Caprichos e relaxos, p. 13.
272
A. JAFFÉ, op. cit., p. 265.
127
II. MORTE E FRUIÇÃO DE VIDA EM ECLESIASTES
Considerações gerais
O primeiro capítulo deste trabalho procurou situar o livro do Eclesiastes em seu con-
texto histórico, político e cultural, ressaltando também os aspectos teológicos e filosóficos que
fundamentam suas reflexões sobre a existência humana. A situação histórico-política do Ec
foi, mais que o pano-de-fundo, a base sobre a qual ele desenvolveu seu raciocínio:
O livro começa e termina com o comentário de que tudo é vão e totalmente frustrante. Em
linguagem atualizada, tudo é obsceno. Tudo é vão. Esse é o comentário do Eclesiastes
quando ele contempla “o novo” de seu século, na mudança do comércio de troca para o
dinheiro. Os economistas da Antigüidade falavam de uma época de grandes descobertas e
progressos técnicos inesperados, eficiência espantosa, uma nova forma de trabalho, uma
explosão financeira e comercial e novas formas de domínio militar e econômico sobre as
províncias
273
.
É diante dessa situação que se desenvolve o texto do Ec, em busca de uma alternativa
de sobrevivência psíquica mais razoável que os novos detentores do poder podem oferecer.
Como tantos outros, também ele não consegue manter-se à parte de todas as novidades que
avassalam o território da Palestina, e as contradições que permeiam seus escritos refletem o
estado emocional em que se encontra a maioria da população.
No primeiro capítulo, destacaram-se aspectos culturais do entorno da Palestina antes e
ao tempo do Ec, como argumento para a hipótese de que o autor possa ter conhecido muito
material literário desse entorno o Egito e a Mesopotâmia, principalmente e que esse co-
273
“The book begins and ends with the comment that everything is vain and completely frustrated. In
contemporary language, everything is an obscenity. Everything is vain. This is Kohelet’s commentary when
he contemplates “the new” of his century in changing from the exchange trade to money. The economists of
antiquity spoke of a time of great discoveries and unexpected technical advances, astonishing effectiveness, a
new form of business, a financial and commercial boom and new forms of military and economic rule over
the provinces”. Elsa TAMEZ, Living Wisely in the Midst of Absurdity. Disponível em www.truefresco.com
/bookshop/uk/product/15707531X.htm, acesso em 08 jun. 2005.
128
nhecimento se mostraria em suas próprias reflexões, o que iria inseri-lo ativamente na vivên-
cia cultural da época.
O segundo capítulo ocupou-se da proposta de psicologia profunda de Carl Gustav
Jung, com especial ênfase na questão dos arquétipos e suas diversas manifestações no incons-
ciente pessoal e coletivo, durante o processo de individuação. Outros pontos centrais da teoria
de Jung, tais como a importância da análise dos sonhos e a polarização da personalidade em
elementos extrovertidos e introvertidos (aspecto nem discutido aqui) não são tão aparentes no
texto do livro do Eclesiastes como um todo; este parece mostrar, antes, os passos necessários
ao desenvolvimento de uma personalidade em direção à plenitude e à sabedoria de vida, obje-
tivos comuns também a Jung.
Ver-se-á agora se é possível aplicar a teoria apresentada à prática exegética, através de
uma metodologia que reúna elementos do método histórico-crítico e da análise inspirada em
determinados referenciais junguianos de interpretação. Os critérios para a seleção das períco-
pes a serem analisadas foram definidos pela referência aos assuntos morte e fruição da vida;
além disso, procurou-se estabelecer possíveis pontos de contato e identificação entre uma e
outra visão de mundo: a do Eclesiastes e a de Jung.
Buscar-se-á comprovar a tese de que a) a leitura do livro do Eclesiastes pode ser facili-
tada a partir da idéia de que seu conteúdo representa uma espécie de processo de individua-
ção, tal como fora definido por Jung (cf. cap. 2 deste trabalho), e que b) o texto como um todo
se compõe, na verdade, de diversas “camadas” textuais: aquilo que se à primeira vista e a-
quilo que se oculta nas entrelinhas e que não se refere somente a aspectos relativos ao entorno
histórico-geográfico do Ec, mas parece ser universal e atemporal
274
.
274
Fernando Casás cita o termo sincronicidade, usado por Jung quando este se refere à atemporalidade: “Na cul-
tura oriental o universo é entendido como basicamente potencial, onde um processo ininterrupto e constante
de mutação favorece acontecimentos que se desenvolvem num tempo cósmico, não existindo o que conhe-
cemos como presente, passado ou futuro. Esta situação está incluída no que Jung chama de sincronicidade,
onde a coincidência significa mais que mero acaso: na realidade subjacente ao I Ching, as condições psíqui-
cas que se inscrevem na totalidade da situação momentânea estão entrelaçadas entre si; assim, o simples ob-
servar qualquer ocorrência na natureza é observar e participar do espaço-tempo, do fluir da energia, do estru-
turar da realidade”. Fernando CASÁS, Reflexões em torno à natureza, in: Agulha revista de cultura (Forta-
leza/São Paulo). Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/agindice geral1.htm, acesso em 02 jul.
2005.
129
Possibilidades transdisciplinares
Até o momento, verificou-se o uso de várias fontes e citações extra-bíblicas do passa-
do e da atualidade, para corroborar a proposta de trabalhar em várias “frentes argumentativas”
no que tange à inclusão da psicologia profunda na exegese bíblica. Embora, nesta tese, uma
das fontes de inspiração tenha sido o trabalho de Drewermann (cf. cap. 2), existem várias ou-
tras formas de tornar visível a atuação da psicanálise sobre textos literários de todo tipo de
gênero. Apresentaram-se, p.ex., citações de Hesse e Leminski, além de um excurso sobre a in-
fluência do conhecimento de si mesmo e do inconsciente no âmbito da poesia e, não por últi-
mo, de todas as artes (cfe. Keith Jarrett, cap. 2).
Como se dá, na prática, a aplicação dos conhecimentos da psicanálise na exegese bí-
blica? Em primeiro lugar, é necessário fazer uma diferenciação de enfoques: a exegese bíblica
que trabalha com o método histórico-crítico privilegia questões como as levantadas no cap. 1
desta pesquisa: autoria, datação, gênero, formas, estilos, teologia etc. Estes são dados facil-
mente deriváveis do próprio texto e do contexto histórico-geográfico, além das implicações
políticas e sociais que complementam o ambiente de surgimento desse texto. Ficam de fora,
nesse tipo de análise, aspectos não mensuráveis do ponto de vista científico ou teológico: en-
tre outros, aqueles elementos formadores da psique humana que levam a determinadas mani-
festações, por vezes desconhecidas e/ou indescritíveis, mas que fazem parte intrínseca do pro-
cesso de formação desse mesmo texto.
No entanto, todo tipo de texto tem uma origem psíquica anterior à sua produção e for-
mulação final. Essa origem se divide em consciente e inconsciente, e este novamente em in-
consciente pessoal e coletivo, como visto. Se se tomar em conta o caráter universal e atem-
poral dos vários elementos que compõem o inconsciente coletivo, pode-se até mesmo dizer
que, na verdade, a questão da autoria passa para um segundo plano quando se trata de analisar
as entrelinhas, as contradições e os opostos tal como o faz a leitura semiótica subjacentes
a qualquer texto. Isso porque, nesse tipo de análise, o que interessa é o que não está dito com
todas as letras, o processo de formação do texto, a maneira como ele foi concebido e recebeu
sua forma. Esses são dados diferentes de datação e autoria, na medida em que tempo e espaço
limitam as possibilidades inerentes à capacidade de produção da mente humana.
O exemplo mais prático é o desta própria pesquisa: definiu-se que os textos a serem
analisados procedem de um determinado espaço Palestina e de uma determinada época
130
cerca de 250 a.C. Isto ajuda, sem dúvida, a entender o conteúdo em seu contexto histórico, so-
cial e político. Mas os assuntos nele tratados não se limitam a esse entorno, nem a forma da
argumentação é exclusiva, e grande parte da dificuldade em localizar esses textos em algum
ponto advém exatamente dessas limitações. A inclusão da psicologia profunda, nos moldes de
Jung e Drewermann, busca responder as questões em aberto: além de o autor ser, possivel-
mente, um professor itinerante na Palestina do séc. III a.C., em que medida isto afeta o conte-
údo de seus escritos? Ou seja: como se podem explicar suas reflexões e a complexidade do
processo de formação de seus textos a partir dos elementos psíquicos presentes em sua formu-
lação, não mensuráveis e classificáveis do ponto de vista histórico-geográfico?
Drewermann considera que a psicanálise não é um meio para analisar autores, reações
de leitores ou estruturas textuais, e sim ela seria um veículo para descobrir “camadas” eternas
e divinas na alma humana, que podem ser sensibilizadas pelo texto religioso
275
. Analisar um
texto do ponto de vista psicanalítico significa deixá-lo falar por si mesmo, no sentido de que
seu conteúdo se desprende de determinadas premissas limitantes e limitadas a critérios apenas
denotativos. não se pode enquadrá-lo em expectativas, nem ele vai decepcionar o leitor/a
leitora quando não oferecer respostas que pareceriam óbvias. No que tange ao texto bíblico,
esse cuidado é tanto mais sério. Este trabalho comenta a dificuldade e o perigo da manipula-
ção do texto bíblico (cf. Conclusão). O que a psicanálise pretende fazer com este tipo de texto
é libertá-lo de seus contornos até então claramente definidos, e abrir espaço para o ambiente
psíquico e espiritual de seu surgimento:
Deveria ser decisivo (…) trazer à luz o que tem validade eterna, para além das épocas his-
tóricas, por trás das variações e modificações através dos respectivos fatores sociais e
culturais
276
.
A importância da inclusão da psicanálise na exegese bíblica encontra-se, assim, no fa-
to de que o ser humano como um todo é percebido e admitido em sua produção textual. Dre-
wermann reencontra sua idéia de “tipologia apriorística do elemento psíquico” em Jung
277
, ra-
zão pela qual se optou em incluí-lo nesta pesquisa, ao menos no aspecto teórico da proposta
em si. Nessa avaliação, o texto passa a ser reflexo da vida interior, e não apenas comprovação
275
Hartmut RAGUSE, Psychoanalyse und biblische Interpretation eine Auseinandersetzung mit Eugen
Drewermanns Auslegung der Johannes-Apokalypse, p. 18.
276
„Entscheidend ßte es dagegen sein, ‚dieses Ewig-Gültige, Überzeitliche hinter den Variationen und Modi-
fizierungen durch die jeweiligen sozialen und kulturellen Faktoren selbst herauszuarbeiten“. Eugen DRE-
WERMANN, ap. H. RAGUSE, op. cit., p. 19.
277
Ibid., p. 20.
131
exterior de tempo e espaço. O indivíduo livre em sua psique colocará em seu texto a marca da
espontaneidade, mas também da seriedade e da profundidade de uma reflexão que criou raízes
numa psique em busca de si mesma, de sua auto-realização. Para Drewermann, a psicologia
profunda é uma ciência profana, que não fala diretamente de Deus, mas das imagens que se
faz dele, demonstrando, porém, que essas imagens não são transmitidas de fora, através de
acontecimentos históricos, e sim de dentro do indivíduo; são imagens que fazem parte da psi-
que, que revelam a verdade interior das afirmações religiosas
278
.
Essas posições aproximam-se bastante do que afirmava Jung em suas explicitações a-
cerca dos arquétipos e de seu papel na psique humana; nesse sentido, a proposta de Drewer-
mann não é novidade, na medida em que Jung colocava a questão da religiosidade inata ao
ser humano como um dos grandes problemas de compreensão do mundo e de Deus mesmo.
Aqui, Drewermann corre o risco de ser tão ou mais reducionista que os semioticistas, para
quem tampouco interessavam os fatos concretos que participam da criação textual (história,
política, sociedade, geografia etc.), e de supervalorizar elementos da psique que nem para os
psicanalistas estão totalmente esclarecidos em suas funções e influências sobre o comporta-
mento humano.
Mesmo assim, um aspecto interessante da teoria de Drewermann, baseada ou não em
Jung, é a questão do modelo espiral de interpretação textual, que será comentado a seguir.
1. A visão do Eclesiastes
Partindo das colocações anteriores, é possível reportar-se agora àquilo que Eugen Dre-
wermann chama de “narrativa arquetípica como processo de individuação numa estrutura es-
piral”, e que pode ser reconhecida numa análise detalhada do desenvolvimento de um texto ou
da construção de uma personalidade:
Uma observação mais acurada evidencia que as seqüências de imagens não são aleatórias,
mas circulam em forma espiral em torno de um cerne específico de assuntos e, através de
símbolos variados, tentam articular a mesma oposição resp. o mesmo conflito psíquico, a
cada vez em um novo degrau
279
.
278
E. DREWERMANN, op. cit., p. 20-21.
279
„Eine genauere Betrachtung lehrt nun, daß die Bilderfolgen nicht beliebig angeordnet sind, sondern spiralen-
förmig um einen spezifischen Problemkern kreisen und in variierenden Symbolen auf einer jeweils neuen
Stufe denselben psychischen Gegensatz bzw. Konfliktfall zu artikulieren versuchen“. E. DREWERMANN,
Tiefenpsychologie und Exegese, p. 188.
132
Em outras palavras, existem no texto do livro do Eclesiastes determinados elementos
aparentemente apenas repetidos, ou mesmo frases inteiras que parecem refrães inalterados. No
entanto, as perícopes selecionadas demonstrarão que se revela, no texto como um todo, essa
progressão em espiral a que se refere Drewermann na citação acima, e que organiza esses e-
lementos repetidos acrescentando constantemente novos elementos à forma básica: se no co-
meço se falava apenas em “comer e beber”, até o final do livro exaltam-se o comer e o beber,
a alegria do convívio, o trabalho honesto e mais uma série de fatores importantes da vida hu-
mana.
Isso faz com que o texto do livro do Eclesiastes possa ser reconhecido como uma “nar-
rativa arquetípica”, ou seja, o seu processo de construção é paralelo à estrutura da psique hu-
mana em seu processo de desenvolvimento através dos arquétipos que a formam. Reconhece-
se neste processo a “lei da repetição do que é igual nos diferentes degraus do desenvolvimento
interior”
280
. Esta é uma das marcas registradas do autor para estruturar sua argumentação, do
começo ao fim dos doze capítulos que compõem seu livro. A questão é perceber que esse mo-
vimento circular na narrativa recebe sua força e função “meditativa” através da ligação com
determinadas regras do inconsciente, o qual desafia a lógica racional e traz à tona esses ele-
mentos ocultos no discurso consciente
281
.
Essa espiral também serve para representar o processo de individuação, esboçado na
segunda coluna do quadro acima: a ação negativa da sombra, localizada no início do processo,
perde sua força à medida que o inconsciente vai crescendo rumo ao consciente, fortalecendo a
psique como um todo na tentativa de integralização da pessoa. Assim, a proposta da psicanáli-
se junguiana, neste trabalho, auxiliará para refletir a evolução interior do autor do livro do E-
clesiastes, na medida em que a) ela permite reconhecer o processo de individuação a que este
autor esteve sujeito e b) ajuda na compreensão de que a seqüência das perícopes selecionadas
reflete este processo. Nem sempre isso acontecerá com clareza inequívoca. Mas a característi-
ca do movimento espiral é o ir e vir pendular avanços e retrocessos constantes, sempre
num degrau a mais, visando o objetivo maior que está num plano superior e configura a colu-
na central do processo.
280
„Das Gesetz der Wiederholung des Gleichen auf den unterschiedlichen Stufen der inneren Entwicklung“. E.
DREWERMANN, op. cit., p. 188.
281
Drewermann sugere que essa “lei da repetiçãoseja a conformação arquetípica do parallelismus membrorum
semítico, o qual seria muito mais que um mero recurso estilístico fechado em si mesmo. Ibid., p. 190.
133
Neste terceiro capítulo serão apresentados os dois caminhos o caminho interior e o
caminho literário que o Ec trilhou para organizar seu discurso, através das perícopes sele-
cionadas a partir desse critério da espiralidade (entre outros), e que estão interrelacionadas
num jogo de questionamentos e respostas. Ver-se-á que o equilíbrio buscado surge da técnica
tese-antítese-síntese (cf. cap. 1 deste trabalho) aplicada às polaridades expressas no texto. A
análise bíblico-teológica é imprescindível para preservar o texto em sua intencionalidade ori-
ginal, uma vez que o perigo de se utilizar o texto bíblico equivocadamente, ainda mais num
contexto tão personalista, está sempre presente, e é preciso ter em conta as armadilhas lingüís-
ticas e a possibilidade de interpretações errôneas.
A partir da junção destas duas formas de análise a bíblico-teológica e a junguiana
pode-se comprovar, finalmente, a existência do chamado “fio condutor”, que organiza o ra-
ciocínio do autor do livro do Eclesiastes do começo ao fim. Esse fio condutor é a já constata-
da linearidade da argumentação em torno dos assuntos morte e fruição da vida. A cada perí-
cope selecionada vão sendo acrescentados novos elementos, sempre segundo o esquema “es-
piral”, para enriquecer o discurso e torná-lo mais convincente. Observam-se avanços e retro-
cessos de ordem emocional, mas aos poucos a argumentação vai se estruturando e afunilando
para privilegiar a grande polaridade morte fruição da vida. Elementos importantes nessa e-
volução são os temas do trabalho, da solidariedade, da oposição entre justiça e injustiça, en-
tre sabedoria e insensatez, entre riqueza e pobreza, entre luz e sombra. O texto vai se constru-
indo sobre essas oposições ou polaridades, na linguagem junguiana num crescendo que
culmina nas perícopes de Ec 11.9 e Ec 12.7, com a descrição da juventude e da velhice, atra-
vés de metáforas que resumem todos os argumentos anteriores.
O recurso da polarização é fundamental para demonstrar a essência do ser humano E-
clesiastes:
Aqui lemos a filosofia prática de um homem que percebeu os dois lados, ou as duas face-
tas contrastantes, da vida: a existência de Deus e do Maligno, do materialismo e da gran-
deza espiritual da vida humana, os diversos estados de alma do ser humano – sua inclina-
ção a seguir o convencimento e as tolices somente em função da diversão, e sua busca por
moral. Descobrimos o pêndulo que balança no ser humano mesmo, seus próprios confli-
tos. Ele é pessimista e otimista, moralista e hedonista. O livro reflete a tensão constante
entre essas duas inclinações, o bem e o mal se confrontam no campo de batalha que é o
ser humano. Mesmo que se alterem suas circunstâncias, seu julgamento permanece está-
134
vel. Ele tenta se convencer, com tranqüilidade, que existe bem no mal e que, por outro la-
do, existem complicações em todas as coisas que o ser humano mais deseja
282
.
O autor do livro do Eclesiastes se revela, dessa forma, como alguém que aprendeu a
assumir-se tal como é, e que tenta conviver consigo mesmo, encarando todos os desafios pos-
síveis para chegar a uma vida satisfatória no plano psíquico e espiritual. Ao final de cada perí-
cope haverá uma breve avaliação dessa evolução, segundo os princípios do processo de indi-
viduação.
2. A visão de Carl Gustav Jung
A psicologia profunda se distanciou da psicanálise freudiana no momento em que per-
cebeu que não era suficiente reduzir todas as manifestações psíquicas e psicossomáticas à
questão da sexualidade. Há muito mais a ser trabalhado na mente humana, e uma das questões
mais latentes, e talvez mais desafiadoras, é a religiosidade inerente a cada pessoa. A religiosi-
dade é a expressão mais clara de quanto o ser humano é, em primeiro lugar, indivíduo, antes
de ser parte do coletivo. É por isso que Jung destaca a diferença entre o inconsciente pessoal e
o coletivo.
Dentro da questão da religiosidade, a morte é um aspecto quase que primordial que
ocupa a mente humana. É ela que faz o indivíduo questionar-se sobre o sentido da vida, sobre
o que vem depois da vida, sobre o futuro e os caminhos traçados para cada pessoa. Embora
Jung não tenha feito desse assunto uma de suas referências principais ao menos no que tan-
ge a morte física –, ele sempre o acompanha, p.ex., em suas análises de sonhos, durante as
quais as pessoas falam sobre os sentimentos que a morte provoca e sobre como elas lidam, ou
não, com isso. O que Jung sugere é uma tentativa de superação do problema através do pro-
cesso de individuação, a “viagem interior” até si mesmo, encontrando equilíbrio, maturidade e
harmonia para conceber a morte como algo integrado no ciclo da vida. Na avaliação de Ro-
282
„Hier lesen wir die praktische Philosophie eines Mannes, der die zwei Seiten oder kontrastierenden Facetten
des Lebens erkannt hat: die Existenz Gottes und des Büsen, des Materialismus und der spirituellen Größe des
menschlichen Lebens, die abwechselnden Zustünde des Menschen – seine Neigung, den Eitelkeiten und Tor-
heiten um des Vergnügens willen zu folgen und sein Streben nach Moral. Wir entdecken das Pendel, das im
Autor selbst hin- und herschwingt, seine eigenen Konflikte. Er ist Pessimist und Optimist, Moralist und Ge-
nußmensch. Das Buch reflektiert die konstante Spannung zwischen diesen beiden Inklinationen, das Gute
und das Böse stehen einander auf dem Schlachtfeld Mensch gegenüber. Obwohl sich seine Zustände ändern,
bleibt sein Urteil stabil. Er versucht sich mit Gleichmut einzuprägen, daß es Gutes im sen gibt und, ande-
rerseits, die Erschwernisse bei allen Dingen, nach denen es den Menschen am meisten gelüstet“. Dr. Motti
FRIEDMAN. Disponível em http://arche-gemeinde.de/predigt/predigt.htm, acesso em 11 jul. 2005.
135
bert Frager e James Fadiman, essa proposta de Jung tem certo parentesco com a concepção do
Ec, no seguinte sentido:
Em suas pesquisas e escritos, Jung de maneira alguma ignorou o lado negativo, mal ajus-
tado da natureza humana. Entretanto, seus maiores esforços foram devotados à investiga-
ção das metas mais distantes da aspiração e da realização humanas. Um dos principais
conceitos de Jung é o de “individuação”, termo que usa para um processo de desenvolvi-
mento pessoal que envolve o estabelecimento de uma conexão entre o ego, centro da
consciência, e o self, centro da psique total, o qual, por sua vez, inclui tanto a ciência
quanto o inconsciente, e os dois não são sistemas separados, mas dois aspectos de um ú-
nico sistema. A psicologia junguiana está basicamente interessada no equilíbrio entre os
processos conscientes e inconscientes e no aperfeiçoamento do intercâmbio dinâmico en-
tre eles
283
.
Nesse caso, é importante não confundir o self com o ego: o ego seria o centro do cons-
ciente, do controle da realidade, do julgamento emocional e intelectual, enquanto o self repre-
senta a unidade de consciente e inconsciente, embora essa unidade não possa ser compreendi-
da empiricamente e se necessitem símbolos para expressá-la
284
. Isso significa que o equilíbrio
almejado por Jung não depende, e não pode depender, de elementos racionais e lógicos que
organizem a vida psíquica com fins de controle mental, afetivo, emocional e intelectual. O
que se pretende é tornar a vida melhor, aparelhando a psique de forças interiores que a habili-
tem a trabalhar assuntos problemáticos e mesmo penosos, tais como a morte e a sensação de
perda e vazio daí decorrente.
A forma de lidar com a própria psique e descobrir as potencialidades latentes em cada
pessoa tem a ver também com a forma de lidar com o fenômeno religioso em si, e essa era
uma preocupação central para Jung (cf. também o cap. 2 deste trabalho). Mesmo que Jung não
tenha desenvolvido uma sugestão de como lidar com os sentimentos quase sempre negativos
que acompanham a morte física, ele também nesse campo busca o equilíbrio emocional; esse
equilíbrio é que pode fornecer ao ser humano a força interior para lidar com os sentimentos
inspirados pela morte, e que as religiões tradicionais não conseguem transmitir a cada indiví-
duo com suficiente poder de cura espiritual:
[…] ele criticava enfaticamente os sistemas fechados de crenças religiosas, principalmen-
te as religiões monoteístas, com suas pretensões de revelações definitivas e exclusivistas,
oriundas de deuses únicos, oniscientes, perfeitos, acabados, exclusivamente masculinos,
marcados apenas pelo bem. Para ele, estas representações típicas constituem apenas ex-
pressões parciais de aspectos deste inconsciente coletivo mais geral projetado em todas as
283
Robert FRAGER, James FADIMAN, Teorias da personalidade, p. 42.
284
E. DREWERMANN, op. cit., p. 192.
136
mitologias. Além disso, estes sistemas passam por um processo de institucionalização his-
tórica, de privilegiamento dos interesses e funções eclesiásticas […], de enrijecimento dos
dogmas e revelações, como também dos ritos. A ritualização é necessária e vital, pois visa
diferenciar e induzir a entrada das pessoas no espaço e na esfera do sagrado, bem como a
proteção de seus adeptos, em um contato mais cuidadoso e resguardado com a experiên-
cia do desamparo e com as imagens psiquicamente carregadas do inconsciente
285
.
Resumindo o que foi apresentado até aqui, podem-se verificar no quadro abaixo as
principais coincidências e divergências entre a visão de mundo do Ec e a teoria psicanalítica
de Jung. As coincidências nortearão em grande parte a análise dos textos bíblicos contida nes-
te capítulo, enquanto as divergências servirão para destacar restrições e limites que poderão
aparecer em seu decorrer. Este esquema mostra os critérios de aplicabilidade da tese em ques-
tão às diversas perícopes selecionadas.
Visualização esquemática das coincidências e divergências entre Jung e o Ec
coincidências divergências
* ambos partem do princípio de que o crescimen-
to interior beneficia em primeiro lugar o indiví-
duo, e a iniciativa de encarar o processo tem de
partir dele, em humildade e no reconhecimento
das próprias falhas e problemas
* o Ec vive uma crise pessoal que surge inespe-
radamente, mas que ele aproveita para tentar mu-
dar e qualificar sua vida; Jung se utiliza da inter-
pretação de sonhos, visões e fantasias que estari-
am revelando essa crise antecipadamente
* para ambos, a espiritualidade pessoal é mais
importante que a religião institucionalizada
* o Ec não se preocupa com a questão da
Deus existe; para Jung, existe a necessidade de
“compreender” Deus e torná-lo próximo do ser
humano
* ambos procuram entender a morte como ele-
mento natural do ciclo de vida do ser humano e
de toda a criação
* apesar de sua fé, o Ec parte do questionamento
acerca da mortalidade humana, e constata a fragi-
lidade e fugacidade da vida como um todo; Jung
encara a morte como um problema ligado à sen-
sação de perda pessoal e luto interno
* ambos consideram que o encontro consigo
mesmo se na segunda metade da vida, embora
partindo de pólos opostos
* o Ec é uma pessoa idosa que se volta ao passa-
do para analisar o que foi e tirar suas conclu-
sões, à guisa de autobiografia; Jung propõe a te-
rapia no momento da crise da meia-idade, acom-
panhando a pessoa daí em diante
* ambos admoestam para o desprendimento de
bens materiais e de honrarias terrenas, colocando
a paz interior e os valores espirituais em primeiro
lugar
* o Ec questiona fortemente a vaidade de todo e
qualquer esforço humano em ajuntar bens mate-
riais e “correr atrás do vento”, desdenhando todas
as conquistas das pessoas; Jung considera impor-
tantes essas conquistas, mas somente enquanto
meios de sobrevivência para possibilitar uma vi-
da mais qualificada também no plano espiritual:
se as necessidades básicas estão supridas, pode-
se tratar dos outros aspectos
285
Eduardo VASCONCELOS, Espiritualidade e cuidado em saúde. Disponível em www.rubedo.psc.br, acesso
em 20 jun. 2005.
137
* ambos percebem o Ec em si mesmo que e-
xiste um processo de desenvolvimento da psique
que busca a otimização das vivências espirituais
e afetivas
* o Ec pensa como indivíduo no início do proces-
so, mas vai se dirigindo à fruição da vida no gru-
po; Jung privilegia o indivíduo durante todo o
processo
* ambos procuram a solução dos problemas em si
mesmos, independentemente da influência de fa-
tores externos
* o Ec analisa os fenômenos do mundo exterior e
apresenta sua reação a eles (“detesto a vida...”
etc.); Jung parte sempre do mundo interior
Vê-se, assim que elementos como o questionamento eterno do ser humano acerca de
sua mortalidade e da impossibilidade de conhecer os desígnios divinos não são exclusivos do
Ec, mas compõem o pano de fundo de suas análises numa espécie de fio condutor que vai ex-
perimentando um crescendo em sua argumentação. Esse crescendo foi outro critério de sele-
ção das perícopes abaixo, por demonstrar que existem uma estrutura e uma coerência interna
no livro todo.
Conforme se pode verificar no quadro abaixo, esta seqüência tem um crescendo para-
lelo na teoria junguiana de desenvolvimento da personalidade, ou seja, no processo de indivi-
duação:
Livro do Eclesiastes
C. G. Jung
Ec 2.14-16 a vaidade dos poderes humanos di-
ante da morte
a sombra predomina, em sua função de alerta
Ec 2.24-26 a dádiva de Deus para quem vive
em seu agrado
o primeiro passo para a percepção de que é pos-
sível melhorar a qualidade de vida interior
Ec 3.1-8 – o tempo certo para viver e morrer
a colocação do problema de forma consciente
Ec 3.9-15 a eternidade e o poder de Deus sobre
a vida e a morte
a constatação de que fatos inelutáveis na vida
humana – o começo de uma visão de mundo mais
sábia e madura
Ec 3.16-22 os seres humanos e os animais são
iguais diante da morte
a resignação aparente uma possível volta à
sombra, com seus medos universais e atemporais
Ec 5.17-19 o direito de ser feliz com o próprio
trabalho
a realização proveniente da relação sadia entre
consciente e inconsciente função da anima/do
animus
Ec 7.1-6 a morte como motivo de reflexão so-
bre o sentido da vida
uma tomada de posição mais madura, que vai ti-
rando da sombra o seu poder
Ec 8.8-10 a impossibilidade de conhecer o dia
da morte
a conformação sábia diante de poderes não con-
troláveis e previsíveis
Ec 8.15-17 – a exaltação máxima da alegria
a transição entre a estabilização da função da a-
nima/do animus e o início da vivência do self
Ec 9.3-6 – saber-se vivo sempre é melhor que en-
carar o poder anulador da morte
a ampliação da consciência da própria vida, tanto
no plano físico quanto no plano espiritual
Ec 9.7-10 – a exaltação da vida cotidiana
o trabalho do self para equilibrar as emoções do
caminho percorrido
Ec 11.7-10 a alegria da juventude e a responsa-
bilidade diante de Deus
a conformação final de uma forma de vida ética e
responsável, e, apesar disso, prazerosa e solidária
Ec 12.1-7 – o destino final junto a Deus
a aceitação e a preparação para o rito de passa-
gem final
138
3. Perícopes do livro do Eclesiastes relativas à morte e à fruição da vida
De acordo com o quadro acima, proceder-se-á agora à verificação, na prática, das
premissas ali apontadas, e que constituem o foco central desta tese. Esta verificação não se
pretende exaustiva, mesmo porque os textos selecionados se referem somente à questão mor-
te/fruição da vida. Possivelmente, se o livro do Eclesiastes tivesse sido examinado sob outro
ângulo, o chamado processo de individuação não ocorreria, ou não seria visível dessa forma.
3.4.1 Ec 2.14-16 – a vaidade dos poderes humanos diante da morte
14
O sábio tem seus olhos em sua cabeça, mas o insensato caminha na escuridão. Mas
também eu compreendi o que acontecerá: uma sorte tocará a todos.
15
E eu disse em
meu coração: também eu terei a sorte do insensato. Para quê adquiri então minha sabedo-
ria? E disse (isto) em meu coração: também isto é vaidade.
16
Pois não lembrança para
o sábio nem para o insensato na eternidade. Porque tudo será esquecido nos dias que vi-
rão e – oh! – o sábio morrerá, tal como o insensato.
Começando a leitura do livro do Eclesiastes, esta é a primeira passagem um pouco
mais longa, após Ec 1.4 e 1.11, em que se toca no assunto morte. E a morte é apresentada co-
mo o poder que faz tudo parecer em vão, que desfaz aparentes vantagens e conquistas, sejam
estas de cunho material ou memorial as pessoas nada levarão consigo, nem serão lembradas
após morrer. O autor se intitula sábio, mas percebe que não lhe adiantade nada ter adquiri-
do sabedoria e conhecimento, mais que muitas outras pessoas. Pois também a sabedoria mais
profunda e refinada tem de calar-se diante do grande mistério que é a morte.
A técnica argumentativa nesta passagem é a polarização entre as figuras do sábio e do
insensato, para evidenciar que a morte atinge realmente todas as pessoas. Os termos sábio e
insensato correspondem, aqui, à luz e à escuridão, mas também à vida e à morte
286
. A consta-
tação da inutilidade da sabedoria será realçada em outras passagens (Ec 5.7-9, 7.17ss.), mas
também a insensatez sempre é motivo de severa crítica. Ao lançar mão desta polarização, o
autor utiliza um dito popular corrente para introduzir a reflexão sobre o problema da vaidade
da sabedoria (excessiva?) e a sensação de frustração ao ver que, diante da morte, tudo se des-
faz: não há vantagem em ser sábio, ou em pretender sê-lo
287
. Anula-se a concepção dos clássi-
286
Ludger SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, Kohelet, p. 224.
287
“Queres elogiar os reis, ou os sábios? Tanto faz se são sábios ou ricos, olha seus túmulos: na morte, todos eles
são iguais”. Menandro, filósofo grego, apud Norbert LOHFINK, Kohelet, p. 29.
139
cos ensinamentos sapienciais de que entre a sabedoria e a insensatez exista uma diferença
fundamental, tal como entre a vida e a morte
288
.
Por outro lado, a sabedoria tem o seu valor para o Ec (cf. 4.13; 5.2; 8.1 e outras), e é
preciso achar um equilíbrio entre a busca pela sabedoria inútil e a insensatez que nada
produz. De fato, o livro do Ec se baseia numa discussão que se estrutura toda ela em polarida-
des, à busca de uma solução razoável: “[…] a ‘solução intermediária’ tem um papel importan-
te em sua sabedoria”
289
. Mas também o questionamento acerca das próprias conquistas é im-
portante: faz parte das reflexões do Ec não apenas analisar a atitude e o posicionamento ético
diante da vida das outras pessoas, mas também duvidar dos méritos pessoais (2.15).
Em termos estilísticos, o que chama a atenção é a linguagem deste trecho: não se usam
adjetivos, e a expressão “tem seus olhos em sua cabeça” é uma imagem bem concreta para
descrever a pessoa alerta, prática e de discernimento, tal como a escuridão representa a falta
de percepção. Assim, embora freqüentemente a sabedoria faça parte das “vaidades desta vi-
da”, é ela que ilumina e anima a vida das pessoas. A oposição luz/trevas demonstra a impor-
tância de ter a sabedoria guiando os caminhos da vida, em contraposição à insensatez que não
leva a lugar algum.
A outra idéia, de que nunca mais haverá lembrança de nenhuma pessoa (“pela eterni-
dade”) é de uma tristeza indescritível, e o pequeno suspiro no final expressa melhor que qual-
quer adjetivo a desolação do autor. A tristeza dessa constatação não está relacionada à morte
em si – antes ela parece surgir por causa do rápido esquecimento a que estão sujeitas as pesso-
as mortas: o ciclo da vida compõe-se de nascer, crescer, viver em plenitude e então morrer, e
nem sempre as pessoas são lembradas como mereceriam. A morte se torna triste quando é
motivo de esquecimento e abandono, e quando se é obrigado a perceber que de nada vale
“correr atrás do vento”, esperando preservar a sabedoria adquirida ou os bens ajuntados. E
mais triste ainda é perceber que nem mesmo o sábio será lembrado eternamente:
288
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 225.
289
Albert STROBEL, Die Weisheit Israels, p. 62.
140
Não apenas o tempo não garante a capitalização do saber mais; tal como as ondas que
vêm destruir o castelo de areia quando batem na beira do mar, ele elimina da própria me-
mória aqueles que foram mestres de sabedoria
290
.
Conforme Robert Gordis, esta passagem
[…] não é a glosa de um comentarista piedoso, mas o autêntico grito de Qohelet de pro-
testo e angústia ao descobrir que a sabedoria é vã e impermanente. Numa passagem como
essa, e em 4.1, a pose de um cínico, de estudada indiferença, cai por terra, e o espírito a-
paixonado de Qohelet, o buscador idealista da verdade e da justiça, revela-se
291
.
Aqui aparece pela primeira vez o termo
tWm
(mut = morrer). O livro do Eclesiastes
apresenta, nesse caso, semelhanças com o livro da Sabedoria (7.1-6), no qual o – suposto – rei
Salomão constata sua mortalidade e o fato de que todos são iguais diante da morte, e de que
nada haverá depois. Essa primeira constatação parece desencadear uma espécie de choque, ou
uma primeira crise interior, quando o Ec percebe que a morte é igual para todos os seres vi-
vos, sejam eles de origem nobre ou não, e que todos serão esquecidos da mesma forma.
Embora o início desta pesquisa se paute na afirmação de que o livro do Ec não deva
ser lido do ponto de vista do pessimismo desenganado, fica difícil evitar uma sensação de de-
cepção e amargura subjacente a esses versículos, ainda mais se lidos à luz da continuação
“Detesto a vida...” (Ec 2.17). Neste ponto de seu raciocínio, o Ec ainda coloca a inevitabilida-
de da morte e o esquecimento como problemas sem solução e que, por isso, inspiram tristeza:
pelo resto do tempo
~l\A[l.
(l
e
olām) não haverá lembrança nem para o sábio, nem
para o insensato, e muito menos para o rei, apesar de toda sua sabedoria.
Em termos junguianos, poder-se-ia dizer que começa aqui o processo de individuação
do Ec: ele ainda está imerso na imagem da Königstravestie
292
e considera as coisas do ponto
de vista da realeza quando percebe que “detesta a vida” (v. 17). Os dois primeiros capítulos
290
« Non seulement le temps ne garantit pas la capitalisation du savoir mais, tel les vagues qui viennent détruire
le château de sable qu’on vient de bâtir sur le rivage, il efface la mémoire même de ceux qui furent maîtres en
sagesse ». Jean Michel POIRIER, Qohélet ou la joie de vivre extrait de Sur les pistes du bonheur Domuni.
Disponível em © Eds Apostolat de la Prière / Source de Vie, 2000, acesso em 27 jun. 2005.
291
“(...) is not the gloss of a pious commentator, but Koheleth’s authentic cry of protest and anguish at the disco-
very that wisdom is unavailing and impermanent. In a passage such as this, and in 4.1, the cynic’s pose of
studied indifference falls away and the impassioned spirit of Koheleth, the idealistic seeker of truth and
justice, is revealed”. Robert GORDIS, Koheleth – the man and his world, p. 213.
292
Königstravestie: termo técnico (= “fantasia” real) para descrever o papel que o Ec representa no início de seus
escritos, quando ele se apresenta como “rei em Jerusalém”. Essa técnica é antiga e tem paralelos anteriores na
tradição egípcia, em que se costumava dar maior crédito a determinados registros orais e escritos se eles fos-
sem atribuídos a um personagem real que gozasse de autoridade inconteste. Adotou-se essa tradição no livro
do Eclesiastes, provavelmente para permitir sua inclusão no cânon judaico.
141
do livro do Eclesiastes descrevem todas as vantagens, riquezas e poderes que o suposto autor
teria tido à disposição: muitas mulheres, bens materiais, jardins e pomares, sabedoria infinita
etc., bem aos moldes do rei Salomão, personagem que serve de “pano de fundo argumentati-
vo” para introduzir as reflexões seguintes: nem todo o poder, nem toda sabedoria, nem toda a
riqueza deste mundo salvam o ser humano de duas constatações básicas: não se podem co-
nhecer os desígnios divinos, e nenhum ser humano é imortal. Em decorrência disso, repenti-
namente tudo parece ser vão e inútil, sem sentido e vazio. A constatação da vaidade de todas
as coisas e de todos os esforços deste mundo é o elemento detonador de uma crise espiritual
que, de ora em diante, se manifestará através dos refrães “tudo é vaidade” e “não existe nada
de novo debaixo do sol”.
O reconhecimento de que a sabedoria tradicional nos moldes de Salomão não resolve
esse tipo de crise é o primeiro passo para o Ec assumir que dentro dele existe uma sombra.
Esta sombra está alertando para o fato de que algo em sua vida não vai bem: a sabedoria que o
Ec conheceu até agora não vai ajudá-lo porque parte do princípio de que ela não pode redun-
dar em fracasso. Dessa forma, ela acaba se voltando contra o indivíduo em crise, ao invés de
ajudá-lo a superar suas fragilidades. O Ec resolve encarar o aviso da sombra e iniciar um ca-
minho em busca do verdadeiro crescimento interior. O perigo que ele pode correr aqui, como
reação natural à angústia provocada pela crise vivida neste momento, é o de querer identifi-
car-se com o papel do sábio, assumindo uma postura de arrogância que o desviará desse ca-
minho. O que deverá acontecer é uma conscientização acerca das limitações de todas as coi-
sas e de todos os seres humanos, portanto também de riqueza e sabedoria. De outra forma, o
Ec, em seu papel de “sábio definitivo”, estaria negando essas limitações e, com isso, sua pró-
pria humanidade.
Não se sabe até que ponto a crise demonstrada na perícope acima é consciente e real-
mente marca uma posição clara e assumida, nem por que motivo ela acontece. De qualquer
forma, o Ec percebeu que não conseguiria reconhecer seus reais problemas enquanto não ti-
vesse uma visão realista de como estava conduzindo sua vida.
Que problemas seriam esses? E por que insistir na contraposição entre o sábio e o in-
sensato? Este tipo de argumentação remete tanto às polaridades indicadas por Jung quanto ao
estilo argumentativo do Tun-Ergehen-Zusammenhang. O Ec parece encontrar-se numa pri-
meira grande encruzilhada de sua vida, vendo-se obrigado a optar por um determinado cami-
142
nho – em seu caso, a sabedoria. Mas como ele sabe, ao mesmo tempo, que mesmo a maior sa-
bedoria do mundo é inútil diante de Deus e da morte, ele acaba buscando a si mesmo, sem de-
pender de fatores externos para sentir-se assegurado nessa busca. O processo de individuação
é a construção do eu, que apenas numa segunda fase dirigir-se-á ao mundo exterior. Por ora,
parece que o Ec está tentando identificar-se e encontrar seu lugar no mundo, embora isso lhe
custe a amarga experiência do auto-reconhecimento como ser humano tão falho quanto todos
os demais que o cercam (e que ele chama de insensatos): mesmo a maior sabedoria não lhe se-
de ajuda agora, visto que ele precisa de humildade para conhecer-se e, por extensão, acei-
tar-se a si mesmo.
3.4.2 Ec 2.24-26 – a dádiva de Deus para quem vive em seu agrado
24
Não há bem para o ser humano (que) comer e beber e (fazer) desfrutar sua alma do bem
de seu trabalho; e vi que também isto (é) da mão de Deus.
25
Pois quem comerá e beberá
sem contar com ele?
26
Pois ao ser humano (que é) bom diante dele ele sabedoria, co-
nhecimento e alegria, mas ao pecador a tarefa de ajuntar e acumular para dar àquele
(que é) bom diante de Deus. Isso também é vaidade e pastar o vento.
Os dois primeiros versículos desta perícope ressaltam que comer, beber e alegrar-se
são dom de Deus. O Ec ainda fala sobre o assunto como se fosse o personagem “rei em Jeru-
salém”, como se chegasse a uma conclusão sobre suas próprias ações e sobre sua relação com
Deus, depois de uma longa vida devotada à busca pelo prazer e pela sabedoria apenas pelas
próprias mãos. Agora, ele constata: “também isto vem da mão de Deus”. Recordando as afir-
mações sobre a perícope anterior, aqui esta constatação adquire tanto mais importância na
medida em que o “rei” auto-suficiente entrega seu poder a alguém mais poderoso que ele,
admitindo que, sem Deus, não é possível fruir da vida verdadeiramente.
Essa entrega, que necessita de uma boa dose de humildade para ser verdadeira, de-
monstra, em termos junguianos, a atuação da anima na pessoa. O Ec parece estar se preparan-
do para o reconhecimento de que não depende dele a determinação de seu destino, e, mais
importante que isso, que não adianta querer rebelar-se contra forças maiores e desconhecidas.
A função da anima seria, então, incentivar esse reconhecimento e desconstruir o medo do des-
conhecido, base de todas as atitudes de busca pelo poder. O “rei” de Jerusalém já não necessi-
ta desse tipo de poder, porque as coisas terrenas não têm mais a importância que tinham até
então. E o “caos” que se descortina no primeiro momento dessa percepção abre a mente para
novas experiências:
143
Esse aspecto se mostra àquela pessoa que enfrenta a existência da anima. Apenas essa
difícil tarefa faz ver, de maneira crescente, que por trás de todo esse jogo cruel com o des-
tino humano existe algo como uma intenção secreta, que parece corresponder a um co-
nhecimento superior das leis da vida. Justamente aquilo que à primeira vista parece ines-
perado, o caos que assusta, é que revela um sentido profundo
293
.
Além dos elementos “comer e beber e alegrar-se”, alerta-se que nada disso é possível
“... sem contar com ele”. O questionamento sobre uma vida que não foi vivida em consonân-
cia com Deus está claro aqui, e isso poderia ser interpretado como uma crítica inicial do Ecle-
siastes ao hedonismo helenístico. Foi essa idéia subjacente da inconseqüência e do prazer
momentâneo que os romanos, mais tarde, denominaram de carpe diem: aproveita o dia! A
contraposição do Ec, formulada na argumentação do “quem pode... sem contar com ele” rea-
parece em outras passagens, de formas mais ou menos sutis, e tem sua culminância em Ec
12.1. É a idéia recorrente do Ec: é preciso viver cultivando noções mínimas de responsabili-
dade e seriedade, para não prejudicar a si mesmo e, com isso, as outras pessoas. Aparece aqui
a idéia daquele Deus “a quem se tem de prestar contas” (cf. A. Lauha no cap. 1 deste traba-
lho):
Uma das primeiras coisas que há de se afirmar a este respeito é que o Qohélet não era um
utópico. Qualquer que seja o significado que hoje se a esse termo. A própria palavra
era desconhecida na sua época. Também não ficava imaginando como poderia ser o futu-
ro e fazendo projetos, como fizeram alguns profetas. No livro não se vislumbra nenhum
projeto social claro. Talvez seu projeto tenha sido não ter projetos. Ele não criava ideolo-
gias. Nem pretendia suavizar a realidade. Não era otimista nem pessimista. Ele simples-
mente olhava o mundo, concluía alguma coisa e colocava o na estrada: vivia. Porém,
sabia que a vida era “névoa-nada” e “fadiga”. Sabia que o trabalho era inútil. Que a vida
carecia de sentido. Que tudo era hebel, “acaso” e “fadiga”. Mas nada disso o paralisava.
Muito pelo contrário, tudo isso era um verdadeiro convite para a vida. Ele sabia que Elo-
him estava no controle do mundo. Nunca ele nega a existência desse Elohim, nem nega
seu poder. Porém, também sabia que esse Elohim era um tanto imprevisível
294
.
Com relação à idéia do que seria “bom” para o ser humano, existem divergências acer-
ca da tradução do v. 24a: como se deveria interpretar
~d\a\.B. bAj-!yae
(‘en-
tov b
e
‘adam)? Lohfink propõe “A felicidade não está fundamentada no ser humano”, argu-
mentando que essa passagem demonstra a convicção do Ec de que o ser humano não é o res-
293
„Dieser Aspekt erscheint nur dem, der sich mit der Anima auseinandersetzt. Erst diese schwere Arbeit läßt in
zunehmendem Maße erkennen, dhinter all dem grausamen Spiel mit menschlichem Schicksal etwas steckt
wie geheime Absicht, die einer überlegenen Kenntnis der Lebensgesetze zu entsprechen scheint. Gerade das
zunächst Unerwartete, das beängstigend Chaotische enthüllt tiefen Sinn“. Carl Gustav JUNG, Bewußtes und
Unbewußtes, p. 41.
294
Jorge Luis Rodríguez GUTIÉRREZ, A lei, a fadiga e o vazio no Livro de Eclesiastes. Disponível em http://
sites.uol.com.br/jorgelrg/jorgelrg/eclesiastes/qohelet.htm, acesso em 08 jun. 2005.
144
ponsável pela própria felicidade: não se “comprova” Deus a partir da história do ser humano,
e sim se afirma a historicidade de Deus em seu agir sobre a humanidade
295
. Ou seja, não é a
pessoa que tem o direito de determinar se Deus age em sua vida ou não – cabe-lhe reconhecer
o poder irrestrito de Deus na condução de sua vida e perceber sua interferência nas mais di-
versas ocasiões. As pessoas têm de estar conscientes da origem de sua felicidade, que não está
nelas mesmas, mas provém de Deus.
Mas o que é a felicidade, então? Para o Ec, aparentemente, tudo se resume nos termos
que ainda repetir-se-ão várias vezes: comer, beber, alegrar-se com as pessoas amadas, fruir do
fruto de seu trabalho. Esses são dons de Deus, é a parte que cabe ao ser humano em sua pas-
sagem pela terra. Aqui termina a aparente arrogância do personagem “rei de Jerusalém”, que
julgava ter adquirido a sabedoria máxima segundo os preceitos de sua época. Resumindo tu-
do, ele percebe que nada mais a fazer que reconhecer a fruição da vida nestas coisas sim-
ples, mas que vêm de Deus
296
:
Para o Qohélet, a vida era uma mistura de muitas coisas: absurdo, felicidade, fadiga, vi-
nho, comida, trabalho, amor... Enfim, coisas boas e más. Ele sabia que nenhuma felicida-
de duraria para sempre, mas também que nenhuma tristeza duraria para sempre. Comer,
beber, amar não formavam parte de um projeto elaborado pelo Qohélet para vencer o he-
bel da vida. Nem para vencer a morte. Elas simplesmente eram algumas das muitas coisas
que a vida oferece e que, no máximo, faziam um pouco mais tolerável o hebel e o amal
da vida. Eram oásis
297
.
Thomas Krüger sintetiza várias traduções e opiniões a respeito do mesmo assunto: de
fato, a idéia central parece ser a de que não está no ser humano a capacidade de conquistar o
bem que lhe acontece durante os dias de sua vida, e sim que tudo vem das mãos de Deus. Ele
propõe, entre outras possibilidades, a seguinte tradução: “Não é melhor comer, beber e ale-
grar-se, e fazer desfrutar sua alma do bem de seu trabalho?”, como se fora uma proposição,
um convite à fruição
298
.
A conclusão, porém, sempre é a mesma e está na continuação do mesmo versículo:
“Vi que também isto vem da mão de Deus”. Ou seja, o ser humano não está apenas à mercê
de um destino incognoscível, sendo vítima de sua própria mortalidade, que limita seu tempo
295
„Nicht im Menschen gründet das Glück“. Título de artigo de N. LOHFINK sobre este trecho, in: Ibid.,
Kohelet im Spannungsfeld von jüdischer Weisheit und hellenistischer Philosophie, p. 30.
296
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 239.
297
J. L. R. GUTIÉRREZ, op. cit.
298
„Ist es nicht besser, zu essen und zu trinken...!?“ Thomas KRÜGER, Kohelet, p. 128.
145
de existência neste mundo; ele também é presenteado por Deus com a alegria e a satisfação
honesta com as coisas terrenas. O rei Qohelet” se decepcionado mas, ao mesmo tempo,
libertado: a ilusão que o fazia crer que tudo vem da pessoa deu lugar à convicção de que tudo
vem das mãos de Deus
299
. Em outras palavras: o Ec já consegue discordar da idéia de que a
vida do ser humano seja uma tragédia (recorde-se de Ec 1.17),que ele está à mercê do livre
arbítrio de Deus e todos os seus esforços são vãos. O que ele pretende é mostrar um caminho
para uma vida sem ilusões: dentro dos limites do conhecimento, do saber e, não por último, da
vida mesma. O pressuposto decisivo, aqui, é de ordem teológica: admitir os limites natural-
mente impostos é viver em verdadeira liberdade, uma vez que a aceitação dos próprios limites
leva a novas descobertas do que é possível fazer, dentro de tudo o que esses limites abarcam.
Ec 2.24 é uma das passagens em que se reconhece que “também isto vem da mão de
Deus”, ou seja, a mão de Deus concede coisas que o Ec viu, percebeu, intuiu de onde vêm;
quais coisas? Comer, beber, fazer a alma gozar o bem do seu trabalho. Interpretando isso:
comer e beber é repor as energias gastas no trabalho, no produzir; é, além disso, a diversão, a
satisfação das necessidades básicas, é saciar-se; é não passar fome e sede, e que seja usufruído
aquilo que o trabalho produziu: que se possa gostar do que é o trabalho, que o trabalho não
ofenda (mental, espiritual e fisicamente tal como a escravidão nos sistemas coloniais de to-
do o mundo e suas funestas conseqüências). Estas são coisas que advêm da mão de Deus, e
não da misteriosa mão invisível do mercado.
O final desta perícope contrapõe o “ser humano bom” ao pecador (v. 26); mas o que
significa ser “bom diante de Deus”? Quais são os critérios divinos de avaliação das atitudes
humanas? E, além disso, esta colocação não reproduz novamente o esquema do Tun-Ergehen-
Zusammenhang?
Certamente não há uma resposta cabível para o ser humano no que se refere aos desíg-
nios que Deus tem para cada pessoa; mas a questão teológica da “retribuição”, à qual o Ec pa-
rece aludir aqui, teria de ser examinada mais de perto. Ele afirma que o ser humano “bom di-
ante de Deus” recebe sabedoria, conhecimento e alegria. Estes são valores espirituais, inde-
pendentes de qualquer condição material – a alegria de viver parece ser a conseqüência da real
299
Infelizmente, não é possível traduzir o jogo de palavras: “Ent-täuschung” = decepção / “Täuschung” = ilusão.
A ilusão dá lugar à decepção mas, ao mesmo tempo, ao despertar para uma nova consciência. L. SCHWIEN-
HORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 239.
146
sabedoria que leva ao conhecimento pleno: a pessoa sábia conhece o mundo e as pessoas, re-
conhece os limites e as potencialidades contidas nos seres humanos e nas coisas do mundo e
as oportunidades para fruir a vida com qualidade. Ou seja, aqui a “retribuição” se nos
moldes tradicionais: a sabedoria, o conhecimento e a alegria são a “recompensa” natural de
quem age de acordo com os princípios divinos, sem sempre usufruir de riquezas materiais.
O contraponto é o pecador: sua tarefa é “juntar para dar àquele que é bom diante de
Deus”. Como entender isso? Juntar e acumular parecem ser termos que se referem a bens ma-
teriais. Será que o castigo do pecador seria ter de entregar os bens materiais que ele juntou em
“vaidade e pastar o vento”, para que lhe seja mostrado que a riqueza sozinha de nada vale?
Mas então o “bom diante de Deus” seria agraciado não apenas com valores espirituais, e sim
também com bens materiais. Pode-se dizer, assim, que o Ec não consegue sempre “saltar por
cima da própria sombra”, na medida em que, mesmo de forma inconsciente, ele reproduz o
sistema do qual ele se originou e que moldou sua forma de pensar, por mais que ele tente as-
sumir uma postura crítica diante disso.
Krüger desenvolve um raciocínio que se dirige não à questão da retribuição em si, mas
da indisponibilidade da felicidade e do aparente “livre arbítrio” de Deus: a felicidade não está
à disposição do ser humano como uma mercadoria ou como uma conquista. Ela é dom de
Deus. Por outro lado, a figura do “pecador” não tem contornos claros nesta passagem (Ec
2.26), porque apenas Deus tem a liberdade para decidir quem é pecador e segundo quais crité-
rios. De nada adianta ao ser humano ele mesmo querer determinar quem é sábio e quem é in-
sensato tudo depende de Deus, segundo sua avaliação. É por isso que o Ec termina o versí-
culo com a repetição de que “tudo é vaidade e pastar o vento”
300
, desfazendo a impressão de
que estaria sendo conivente com o esquema de pensamento da sabedoria tradicional, segundo
a qual o que determina o sucesso é a própria habilidade.
O processo de individuação prossegue quando o indivíduo consegue enfrentar a som-
bra e reconhecer seus conflitos interiores, admitindo que ela realmente faz parte de seu in-
consciente. A sombra pode revelar aspectos que evidenciam comportamentos de gênero opos-
tos ao da pessoa em questão, mesmo que esses elementos (anima / animus) ainda estejam re-
primidos e/ou se manifestem de forma até mesmo chocante, por vezes (cf. Ec 7.26ss.). Nesse
300
T. KRÜGER, op. cit., p. 149ss.
147
caso, o Ec primeiramente reage, propondo a fruição da vida ainda num nível bastante básico –
a alegria do comer e do beber. A percepção de que a vida, apesar de “detestável”, pode ser
fruída com prazeres simples, certamente é um dos progressos mais significativos na Weltans-
chauung do Ec.
Um elemento importante é a questão do “contar com ele”, no caso Deus. Enquanto
Jung argumenta que a sombra tem o papel de alertar o ser humano sobre coisas que possam
estar erradas com ele, quem faz esse papel, na visão do Ec, é Deus – o mesmo a quem se terá
de prestar contas algum dia. Ao mesmo tempo, a presença de Deus parece ser, agora, assegu-
radora e tranqüilizadora, dando liberdade à pessoa para ela fruir a vida, alegrando-se com coi-
sas simples, mas verdadeiras, e dando os primeiros passos para uma reestruturação de si
mesma. “Quem poderá fazer estas coisas sem contar com ele?” é a constatação de que o ser
humano nada pode sozinho. Em outras palavras: se na perícope anterior havia o reconheci-
mento da fragilidade do ser humano, colocando-o sozinho diante de um mundo hostil e cheio
de esforços vãos e inúteis, aqui se percebe que o Ec encontrou a chave que vai fazer com
que o seu processo de crescimento interno comece a fazer efeito: admitindo o poder maior de
Deus, a pessoa se coloca num plano de humildade autêntica, o que a leva a desistir de bom
grado dos bens materiais e das satisfações superficiais para buscar conteúdos mais consisten-
tes para sua vida. Por isso, agora a fruição dos prazeres simples funciona.
Do ponto de vista junguiano, assumir uma postura mais humilde diante da vida, das
coisas e das outras pessoas é essencial para encontrar-se em si mesmo e admitir que a sombra
existe. Apenas quando a pessoa reconhece seus problemas com a maior sinceridade possível é
que se torna efetivo um processo de reconstrução do eu. Além disso, ou mesmo antes disso, é
necessário admitir que se precisa de ajuda e não se é todo-poderoso, querendo imitar Deus.
3.4.3 Ec 3.1-8 – o tempo certo para viver e morrer
1
(Há) tempo determinado para tudo,
e tempo para todo propósito debaixo do céu.
2
Tempo para nascer e tempo para morrer;
tempo para plantar e tempo para arrancar;
3
tempo para matar e tempo para curar;
tempo para destruir e tempo para construir.
4
Tempo de chorar, e tempo de rir;
tempo de gemer, e tempo de bailar.
5
Tempo de atirar pedras, e tempo de recolher pedras;
tempo de abraçar, e tempo de se separar.
6
Tempo de buscar, e tempo de perder;
tempo de guardar, e tempo de jogar fora.
148
7
Tempo de rasgar, e tempo de costurar;
tempo de calar, e tempo de falar.
8
Tempo de amar, e tempo de odiar;
tempo de guerra, e tempo de paz.
Este poema é uma das passagens mais conhecidas do Ec. Sua estrutura é característica
da poesia hebraica, não por último em função do chamado parallelismus membrorum. Essa
técnica é uma das marcas registradas do livro do Eclesiastes e de toda a produção literária de-
rivada da sabedoria israelita, conforme já se constatou neste trabalho (cf. cap. 1).
O uso que o Ec faz do termo
tae
(et = tempo) se eleva para além dessa técnica, fa-
zendo o tempo pairar sobre as contradições e os opostos que marcam a vida humana; isso evi-
dencia sua percepção de que o tempo é uma força própria no universo, que não se rege segun-
do as leis humanas e está além do poder humano. Embora o tempo seja uma força relativiza-
dora do impacto das ações humanas, ele tem muito mais importância na vida de cada pessoa
do que comumente se imagina; ele carrega em si a idéia de eternidade e de constância, mas
também de regularidade de ritmos e acontecimentos sobre os quais ninguém tem controle:
(...) o Eclesiastes quer deixar claro que a vida é instável e provoca todas as situações pos-
síveis. Ele dá essa impressão pela maneira de enumerar somente os extremos, sem citar os
degraus intermediários, transmitindo, portanto, uma visão integral da vida. Para isso, a
palavra “tempo” fornece o ritmo constante e regular. Esse ritmo deve servir para gravar
que a época certa determina o valor vital de cada ação. Portanto, a vida se desenrola num
ritmo de contrastes que permanentemente se substituem
301
.
São esses contrastes que fazem com que seja mais fácil para o Ec relativizar o poder
da morte; sua percepção dos ciclos universais leva a conclusões que não podem ser tomadas
como pessimistas ou cínicas. O Ec não foge dos fatos da vida, mas tenta compreendê-los co-
mo partes fundamentais de um todo integrado e único, no qual o sofrimento e a alegria têm de
ter, necessariamente, o mesmo espaço. Neste contexto, a conhecida passagem de Heráclito
poderia demonstrar que o Ec de fato “bebeu na fonte” da filosofia grega, refletindo p.ex. nesta
perícope o modo de pensar grego anterior a ele:
Nós entramos nos mesmos rios, e mesmo assim não o fazemos. Não se consegue entrar
duas vezes no mesmo rio. Tudo flui, nada repousa. Tudo passa, nada permanece. O que é
301
„Kohelet will klarmachen, daß das Leben wechselhaft ist und alle möglichen Situationen heraufbeschwört. Er
weckt diesen Eindruck, indem er, ohne die Zwischenstufen zu nennen, nur die Extreme aufzählt, also eine
ganzheitliche Schau des Lebens übermittelt. Dabei gibt das Wort ‚Zeit’ den steten gleichmäßigen Rhythmus.
Dieser Rhythmus soll einprägen, daß die richtige Zeit den Lebenswert der einzelnen Handlungen bestimmt.
Das Leben spielt sich also ab in einem Rhythmus von Gegensätzen, die einander immer wieder ablösen“. A.
STROBEL, op. cit., p. 25.
149
frio se aquece, o que é quente esfria, o que é úmido seca, e o seco se umedece. Por existir
doença, a saúde é bela, por existir o mal, o bem se torna bom, por existir fome também
saciedade, por existir esforço também descanso. Estar vivo ou morto, dormindo ou a-
cordado, ser jovem ou velho tudo é uma só coisa. Um fenômeno passa a ser o seu con-
trário, e vice-versa – numa mudança rápida e inesperada. Tudo acontece a seu tempo
302
.
Por outro lado, merece destaque o fato de que, nas 14 orações do poema citado acima,
aparecem quatro termos relacionados à morte: morrer (3.2), arrancar (3.2), matar (3.3) e des-
truir (3.3). O primeiro termo morrer se refere à característica mais elementar de todos os
seres vivos, tal como o nascer e o crescer. É algo que independe da vontade do ser. O ser hu-
mano tem de morrer, tal como toda a criação (Gn 6.3, Sl 39.5-7). Mesmo assim, para o Ec, a
morte não necessariamente aproxima o ser humano de Deus: apesar de a pessoa gozar da bên-
ção e proteção de Deus se andar em seus caminhos, este mesmo Deus pode ser alguém distan-
te e impessoal (cf. cap. 1 deste trabalho); por outro lado, o ser humano está em estreito víncu-
lo com Deus por causa do espírito vital dado por ele (Ec 12.7). Morrer é “romper o fio de pra-
ta e quebrar o copo de ouro” (Ec 12.6), ou seja, interromper esse vínculo com o divino.
O Ec atribui o poder sobre a morte a um Deus que ele chama de
~yhiOla,
(elo-
him): não é o Deus
hwhy
(Iahweh), o Deus nacional do povo de Israel. E é então que, para
aliviar o sofrimento muitas vezes incompreensível, uma vez que vindo das mãos de
~yhiOla
, cujos desígnios também ele desconhece, ele afirma que “há tempo para tudo”:
a vida não pode ser programada por mentes humanas, e é tão imensa e plena de potencialida-
des que tudo tem espaço no decorrer de uma existência. Tempo para tudo quer dizer, para o
jogo de opostos do Ec, que a própria vida é uma contradição, um contra-senso, um paradoxo –
embora este paradoxo também deva ser aceito como natural –, e cabe ao ser humano aprender
a lidar com essa contradição e localizar-se em seu mundo
303
.
302
„Wir steigen in dieselben Flüsse und tun es doch nicht. Man kann nicht zweimal in denselben Fluß steigen.
Alles fließt, nichts ruht. Alles vergeht, nichts dauert. Kaltes wird warm, Warmes wird kalt, Feuchtes trocknet
und Trockenes wird feucht. Durch Krankheit wird Gesundheit schön, durch das Schlechte wird das Gute gut,
durch Hunger Sättigung, durch Mühe Schlaf. Lebendig oder tot sein, schlafend oder wach, jung oder alt al-
les ist eins. Das eine schlägt jeweils ins andere um, und umgekehrt – mit einer schnellen, unverhofften Wen-
dung. Alles kommt zu seiner Zeit“. Citação do pensador grego Heráclito, apud Peter LAUSTER, Lebens-
kunst: Wege zur inneren Freiheit, p. 98. – Grifo nosso.
303
Gordis aponta para uma possível interpretação a mais desta passagem: “a futilidade do esforço humano” dian-
te do tempo “adequado” determinado pelos desígnios divinos. Já que tudo tem sua hora, de nada adianta o ser
humano querer alterar o fluxo da existência por meios próprios. R. GORDIS, op. cit., p. 144.
150
O Diálogo de um pessimista, originário da Mesopotâmia e muito anterior ao livro do
Eclesiastes, é um opúsculo que se dedica a analisar a vida e os fenômenos que regem os seres
humanos, e recebeu este título por chegar à conclusão, mais radical que o livro do Eclesiastes,
de que tudo é vão e inútil sobre a face da terra. Ele apresenta uma argumentação semelhante a
este último, principalmente no que se refere à vaidade do esforço humano para controlar os
acontecimentos da vida, e ao fato de que “cada coisa acontece a seu tempo”, sendo portanto
inútil o ser humano querer determinar prazos e momentos para que as coisas aconteçam como
e quando ele gostaria. Jean Bottéro avalia essa semelhança do seguinte modo:
[…] E, antes de tudo, é preciso reconhecer que os primeiros comentaristas fizeram bem
ao comparar nosso opúsculo ao Eclesiastes, ao Qohelet de nossa Bíblia, o qual passa, ele
também, por muito desencantado e muito pessimista. […] uma passagem (Ec 3.1-9) que
parece um resumo e uma transposição das lições essenciais derivadas de nosso Diálogo
[…]. “Cada coisa a seu tempo”; isso quer mostrar que as ações humanas sobre o mesmo
objeto se sucedem e se anulam, mesmo que no final nada reste e que a ação pareça, por-
tanto, inútil. É este o tema principal “sério” de nosso Diálogo
304
.
O que faz a diferença entre o Diálogo de um pessimista e o livro do Eclesiastes é que
este último iressaltar, diante do esforço vão e da aparente inutilidade das ações humanas, a
força da vida, da fruição e da solidariedade. Talvez seja essa sua idéia nessa passagem: se e-
xiste tempo para tudo “debaixo do sol”, é porque existe tempo também para o bem, a alegria
e, nesse caso, também para a ação salvadora de Deus, que nem sempre é apenas um Deus dis-
tante, mas pode e deve ser visto como aquele que a vida e abençoa a quem se lembrar dele
(cf. novamente Ec 12.1-7).
Se o morrer independe da vontade do ser humano, tal não acontece com o matar e o
destruir. Essas são ações autônomas, embora por vezes parecendo irracionais. Matar e destru-
ir são expressões que supõem intencionalidade – é isso o que revela o texto hebraico ao usar o
termo
#p,xe
(hēfes = “para todo propósito”, 3.1). O fato de o Ec relativizar também ações
como matar e destruir, simplesmente contrapondo-as ao curar e ao construir, pode parecer de
um cinismo imperdoável. Por outro lado, se a morte faz parte integral da vida, é preciso cons-
304
“[…] Et tout. d’abord il faut reconnaître que les premiers commentateurs avaient bien vu quand ils compara-
ient notre opuscule à l’Écclesiaste, au Qohéleth de notre Bible, lequel passe lui aussi pour si désenchanté et si
noir. […] un passage (Ec 3.1-9), qui semble comme un résumé et une transposition des leçons essentielles
émanant de notre Dialogue […] ‘Chaque chose en son temps’; il veut montrer que les actions humaines, à
l’occasion du même objet, se suivent et s’annulent, si bien qu’il ne reste finalement rien et que l’action sem-
ble donc inutile. C’est le propre thème ‘sérieux’ de notre Dialogue. Jean BOTTÉRO, Mésopotamie: l’écri-
ture, la raison, les dieux, p. 315.
151
cientizar-se de que ações intencionais como estas também têm seu espaço entre os seres hu-
manos, e não são estes que têm o poder de evitá-las ou determinar seus efeitos. Para o Ec, pa-
rece até mesmo que não se deve perguntar pelo sentido nem pela origem da morte, como tam-
pouco adianta perguntar pelo sentido da vida. Mesmo que a morte apareça de maneira muitas
vezes cruel e inesperada, ela não deveria ser vista como uma interrupção absurda do fluxo da
vida: Ec 3.1-8 não cansa de realçar que os aparentes opostos de vida e morte são complemen-
tos que fazem da existência da criação sua totalidade. Não existe vida sem morte, não existe
morte sem que se recrie a vida. Certamente isso tudo não anula o problema que representa a
morte vinda através da violência gratuita; mas o que o Ec propõe é que se encare também essa
dor como parte do todo que compõe a vida e o mundo, não permitindo que tudo pare nesse
ponto sem possibilidade de recuperação e avanço espiritual. É preciso pairar sempre um pou-
co acima das coisas deste mundo, para não se deixar absorver pelo peso do mal.
Voltando ao que se afirmava acerca dos arquétipos da teoria junguiana, note-se que os
itens apontados pelo Ec, em sua lista de oposições, não se referem a nenhuma ação específica
ou restrita a algum grupo humano definido, nem se prendem a espaço e tempo: em outras pa-
lavras, o poema de Ec 3.1-8 trabalha com fenômenos universais e perenes, presentes em mui-
tos lugares e no consciente/inconsciente coletivo. A maneira de o autor contrapô-los poderia
ser uma forma de mostrar que as pessoas têm em si, sempre, ambas as tendências: agir para o
bem ou para o mal, dependendo dos incentivos, das circunstâncias e das influências externas.
Essa existência “dupla” é o que Jung chama de twins: é como se cada pessoa se consti-
tuísse de gêmeos”, um bom e outro mau, que alternadamente vão dirigindo as atitudes e rea-
ções do inconsciente. Reconhecer que se está sendo vítima da ação destes twins é básico para
sair desse círculo vicioso e se sobrepor ao conflito interior de oposições. Existe, nesse ponto,
certa “suspeita” de que as coisas poderiam ser diferentes, que a vida seria melhor se a pessoa
não se sentisse tão dividida (expressão que reflete fielmente o fenômeno). Portanto, as oposi-
ções a que se refere o Ec não têm nada a ver com o artifício maniqueísta usado pela teologia
da retribuição, e sim com os componentes opostos entre si que formam o ser humano. Tam-
bém Jung parte de outro princípio, o da sabedoria chinesa, que trabalha com os conceitos yin e
yang, resp. o masculino e o feminino, cada qual com suas características específicas, mas que
152
se complementam e se constroem um no outro, formando um ser vivo completo e integrado
com o restante dos seres e todo o universo
305
.
A partir dessa percepção de que são os opostos que regem o funcionamento do mundo
e dos seres humanos, parece que a sombra está sendo gradualmente trabalhada e superada: sa-
ber que, neste mundo, tempo para tudo, e que todas as coisas e todos os acontecimentos
têm o seu lugar e o seu espaço, sem que o ser humano possa controlar isso, é reflexo de um
exercício de maturidade dos mais avançados. Segundo Jung, e partindo do pressuposto de que
o autor do Ec seria realmente um ser humano masculino, poder-se-ia imaginar, então, que a-
gora a sua anima passa a entrar em ação, em sua forma positiva: o Ec já se encontra no quarto
estágio de desenvolvimento da anima, a encarnação da Sabedoria, e de agora em diante essa
vivência orientará suas reflexões posteriores. Nesse quarto estágio, o medo inspirado pela
sombra está sendo vencido. O primeiro passo em direção a si mesmo foi dado: existe a-
gora a coragem de admitir erros e fragilidades, ao mesmo tempo investindo com novo ânimo
em si mesmo. Adquire-se a percepção do que é realmente vital para a fruição da vida e o con-
vívio com o fato da morte, e descartam-se elementos superficiais ou mesmo imbuídos de um
peso negativo muito grande sobre a psique. Já não se trata de reprimir ou esquecer esses con-
teúdos, mas de saber que eles existem e, mesmo assim, construir uma energia interior que te-
nha o poder de arrancar a psique do estado em que se encontrava. Se o processo de individua-
ção acontece corretamente, a partir desse ponto a pessoa começa a se sentir mais leve, mais
livre, mais feliz e confiante.
3.4.4 Ec 3.9-15 – a eternidade e o poder de Deus sobre a vida e a morte
9
Que proveito tem o trabalhador com o que se afadiga?
10
Vi a tarefa que Deus deu aos fi-
lhos do homem para se ocuparem dela:
11
tudo o que ele fez é formoso a seu tempo. Até
mesmo colocou a eternidade em seu coração, sem que o ser humano reconheça a obra que
Deus fez do começo até o fim.
12
E compreendi que não há felicidade para os seres humanos a não ser alegrar-se e fazer o
bem em sua vida.
13
E também é dom de Deus para o ser humano comer e beber e aprovei-
tar todo seu trabalho.
14
Compreendi que tudo o que Deus faz é para a eternidade.
Nada há nisso para acrescentar, e nada há para tirar.
Deus faz isso para que tremam diante dele.
15
O que existe é o que já existia, e Deus buscará o perseguido.
305
“Apesar de os Twins serem considerados filhos do Sol, eles são essencialmente humanos e, juntos, vêm a
constituir-se numa pessoa. Unidos originalmente no ventre materno, foram separados ao nascer. No entan-
to, são parte integrante um do outro e é necessário, apesar de extremamente difícil, reuni-los”. Joseph Hen-
derson, Os mitos antigos e o homem moderno, in: C. G. JUNG, (org.), HS, p. 113.
153
Esta perícope volta a questionar o proveito (
!Art.yi
= yitron, vantagem, lucro,
ganho) que o ser humano não consegue tirar de seu trabalho, tal como em Ec 1.3; 1.13; 1.18;
2.18 e 2.22. Mas o v. 11 afirma que Deus faz as coisas funcionarem a seu tempo, e que por is-
so tudo pode ser bom: “tudo é formoso a seu tempo” – formoso aqui no sentido de “bom, ade-
quado”. Talvez não haja um ganho material sempre visível no que o ser humano faz; mas, se
tudo acontece a seu tempo, também isto é bom e faz parte dos desígnios divinos para cada
pessoa. Essa seria uma resposta razoável aos questionamentos de 1.13b
306
.
Por outro lado, é de se questionar se realmente tudo o que existe é “bom, formoso, a-
dequado”: de onde, então, teria vindo o mal no mundo? Ou: como se pode coadunar o mal no
mundo com a graça de Deus? Essa pergunta parece perpassar a história da teologia como um
fio vermelho, e isso desde o relato da criação. No livro do Eclesiastes, a escolha do termo
hpey;
(yafeh = belo) no sentido de adequado, ligado à expressão
wOt[eb.
(b
e
etō =
a seu tempo), parece refletir essa discussão de uma forma contemporizadora: é verdade que
existe o mal no mundo, mas também é verdade que Deus criou tudo o que existe e continua
agindo. Não adianta, mais uma vez, perguntar pelo sentido de determinados acontecimentos
ou fenômenos vivenciados como negativos: Deus fez tudo a seu tempo, e ele conhece o
sentido e o significado de tudo o que acontece
307
. A seu tempo, todas as coisas fazem sentido,
mesmo que este seja desvendado somente muito depois de elas terem acontecido:
Conforme ele [o Eclesiastes] vivenciou enquanto “rei” e observou enquanto “mestre de
sabedoria”, o motivo para a infelicidade dos seres humanos tem de ser procurado freqüen-
temente neles mesmos, a partir de um falso comportamento exterior ou de um posiciona-
mento interior equivocado
308
.
Dessa forma, não é possível atribuir a Deus a responsabilidade por tudo o que aconte-
ce no mundo, mesmo que seja ele o criador de todas as coisas. O próprio Ec percebeu que o
mundo “errado” era o seu mundo de rei e sábio absoluto (Ec 2.1ss.), e não o universo de
Deus. Mas os dias negativos podem ser tolerados a partir da consciência de que tudo é relativo
e serve para a reflexão e o crescimento (cf. Ec 7.14).
306
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 262.
307
Ibid., p. 265.
308
„Wie er als ‚Königerfahren und als Weisheitslehrer’ beobachtet hat, liegt der Grund für das Unglück der
Menschen oft bei ihnen selbst, in einem falschen äußeren Verhalten oder in einer falschen inneren Einstel-
lung“. Ibid., p. 267.
154
A “eternidade” a que se refere o v. 11b é a vida que existe no espírito divino doado à
criação: Deus é eterno, então a vida é eterna, mesmo que o ser humano não saiba o que acon-
tecerá com sua vida e para quê, afinal, ele vive. A resposta pelo sentido da vida está aqui: en-
quanto houver Deus haverá vida, mas não cabe ao ser humano desvendar o seu próprio desti-
no ele é criação, não criador. Mas, ao mesmo tempo, ele tem participação em tudo o que
acontece debaixo do sol, e esta é a real porção que lhe cabe, junto à eternidade de Deus
309
.
No entanto, a “eternidade de Deus” não se refere a um tempo primevo, ultrapassado, a
creatio prima; ao contrário, retomando a idéia básica contida em Ec 3.1-8, o “tempo” a que se
alude aqui se refere à adequação de cada tarefa, ou trabalho, também do ser humano: a creatio
continua de Deus é tudo aquilo que acontece agora e sempre voltará a acontecer e isso é o
que Deus “fez formoso a seu tempo”
310
.
Até se poderia dizer que, neste trecho, a compreensão do termo eternidade está em
oposição com o termo tempo, porque a eternidade de Deus é incomensurável, enquanto o tem-
po tem determinados limites que até o ser humano lhe pode impor: somente o tempo sem co-
meço nem fim é chamado de “eternidade”. E essa eternidade, embora inalcançável para o ser
humano, lhe foi dada por Deus: para que ele perceba que, embora faça parte dela, ele não con-
segue abarcá-la em sua totalidade nem integrar-se nela. É mais um sinal de Deus para que o
ser humano reconheça suas limitações de criatura
311
. Ou, como assinala Gianfranco Ravasi:
[…] o termo exprime simbolicamente o conceito de eternidade, conceito difícil de ser
formulado no contexto cultural semítico. Ôlam é o tempo supremo de Deus e engloba e
supera o conceito dos “tempos” experimentáveis. Não é sem motivo que nesse versículo
Coélet o põe em contraponto com et, “tempo” próprio de cada obra. […] Nesse versícu-
lo, história, eternidade, cosmo e criação estão entrelaçados
312
.
Outro aspecto importante, para o Ec, é a questão do “fazer o bem”. No v. 12, essa ex-
pressão não se refere a nenhum aspecto específico, nem parece sugerir qualquer tipo de moral
social. Existem pelo menos duas interpretações possíveis, uma vez que o Ec busca tanto o
crescimento interior quanto uma melhora no seu convívio social, antes dependente apenas de
relações de poder político e econômico. Diante das novas premissas, tentando equilibrar sua
personalidade numa nova forma de vida, o que seria “fazer o bem” para o Ec?
309
Cf. também N. LOHFINK, op. cit., p. 32.
310
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 263.
311
Ibid., p. 268.
312
Gianfranco RAVASI, Coélet, p. 112.
155
[…] o Eclesiastes insiste em afirmar que aquilo que, para o ser humano, parece valer a
pena, realmente é o que importa: “alegrar-se e fazer o bem em sua vida”. Mas, sendo pre-
sente de Deus, essa felicidade não está naturalmente à disposição. O ser humano tampou-
co consegue alcançá-la totalmente independente das condições externas do momento, mas
ele precisa dispor pelo menos dos meios que lhe permitam “comer, beber e fruir de coisas
boas”. […] E, afinal, o ser humano tem mais chances de alcançar a felicidade indisponí-
vel se ele tentar isso, não sozinho e “sem qualquer ajuda”, mas em comunhão solidária,
“de camaradagem” com outros (4.9-12)
313
.
Krüger ressalta aqui a idéia da felicidade derivada da comunhão e da vida vivida em
solidariedade. Embora não se deva intuir isso muito rapidamente apenas em função da expres-
são “fazer o bem”, de qualquer forma a idéia vai contra a idéia helenística da fruição indivi-
dualista, a qual recomenda que se busque, em primeiro lugar, a satisfação das próprias neces-
sidades, e isso apenas no plano terreno e sem a ajuda de ninguém
314
. Pode-se detectar também
aqui uma discussão com o helenismo dominante na Palestina da época do Eclesiastes.
Por seu turno, vários outros comentários (p.ex. de Delitzsch, Levy, Lauha, Zimmerli,
Lohfink etc.) argumentam que a expressão em hebraico
bAj tAf[l;
(l
a
asrōt tov)
englobaria a idéia de “fazer algo de bom para si mesmo”, ou seja, alegrar-se, festejar, fruir a
vida. Isso estaria mais de acordo com a intenção real do texto, que seria a de ressaltar o incen-
tivo à alegria e à satisfação pessoais mesmo sem conhecer os desígnios divinos, e estando à
mercê da eternidade de Deus. Não haveria, nessa passagem, “a exigência moral de realizar al-
go bom”
315
.
Poder-se-ia estabelecer, agora, uma discussão acerca desses dois pontos de vista: tam-
bém Ivo Storniolo
316
pensa como Krüger, querendo ver mais a questão da solidariedade que
leva à alegria. Os outros comentaristas ressaltam, porém, o individualismo, não no sentido de
egoísmo e autoprojeção, mas como se o autor do livro do Eclesiastes sempre se referisse ape-
nas à pessoa, e não pensasse no gênero humano como um todo. De fato, estabelece-se um
313
„[…] hält Koh 3,12f.22 daran fest, daß das, was dem Menschen erstrebenswert erscheint, auch erstrebenswert
ist: ‘sich zu freuen und Gutes zu tun in seinem Leben’. Dieses Glück ist aber als ‘Geschenk Gottes’ für den
Menschen nicht zuverlässig verfügbar. Er kann es auch nicht völlig unabhängig von den jeweiligen, zeit-
bedingten Gegebenheiten der Außenwelt erreichen, sondern muß wenigstens über die notwendigen Mittel
verfügen, um ‘essen, trinken und etwas Gutes genießen’ zu können. […] Und schließlich hat der Mensch grö-
ßere Chancen, das unverfügbare Glück zu erlangen, wenn er es nicht für sich allein und ‚ohne jede fremde
Hilfe’ zu erreichen versucht, sondern in solidarischer, ‚genossenschaftlicher’ Gemeinschaft mit anderen (4,
9-12)“. T. KRÜGER, op. cit., p. 193.
314
Ibid., p. 193.
315
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 269.
316
Ivo STORNIOLO, Trabalho e felicidade: o livro do Eclesiastes, p. 34ss.
156
ponto de tensão em toda a análise, que pode partir destes dois pólos opostos: era o Ec mais
voltado ao indivíduo, ou ele conseguia pensar coletivamente?
Voltando ao esquema das coincidências e divergências do início deste capítulo, é pos-
sível ver aqui um encontro com Jung, na medida em que parece melhor “fazer o bem” primei-
ramente a si mesmo, ou seja, investindo na própria qualidade de vida psíquica, para então ter
condições de conviver com as outras pessoas. Esta seria uma das conseqüências de um pro-
cesso de individuação bem conduzido. Por outro lado, “fazer o bem” também pode supor um
objetivo fora de si mesmo: sem pensar numa espécie de moral social, faz parte da fruição da
vida saber conduzir-se coletivamente, porque neste mundo não é possível sobreviver isolada-
mente, ignorando os prazeres e as necessidades das outras pessoas.
A questão da fruição da vida, o comer, beber e alegrar-se com a pessoa amada, recebe,
na filosofia grega, a designação eudemonismo (
ευδαιµονια
= felicidade); não se questiona di-
retamente, porém, até que ponto a ética deveria ser inerente às atitudes do ser humano, embo-
ra Aristóteles, p.ex., conjugue o “bem viver” com o “bem agir”
317
. E Sócrates considera que
“[…] pela faculdade de dar uma resposta a si mesmo e aos outros é que o ser humano se torna
um ser ‘responsável’, um sujeito moral”
318
. No texto do livro do Eclesiastes como um todo,
esses termos (ética, moral etc.) não aparecem; talvez a expressão “fazer o bem” esteja repre-
sentando-os.
Pode-se imaginar, nessas perícopes que incentivam a fruição da vida, um diálogo do
Ec com a filosofia grega, sendo que ele procura inserir elementos de ética e de em atitudes
normalmente consideradas óbvias demais para serem discutidas: o eudemonismo era um pres-
suposto tão normal em toda a Antigüidade grega que nem constituía assunto especial de dis-
cussão
319
. O eudemonismo evoluiu depois para o conceito romano de carpe diem, e é para es-
sa acepção que o Ec procura uma alternativa. Além disso, a constatação, no final do v. 13, que
a fruição da vida é dom de Deus, pode ser avaliada como uma “revisão crítica da máscara re-
al”, segundo a qual, em Ec 2.1ss., o ser humano tentou ser feliz somente a partir de si mesmo:
o Ec teve de admitir que a felicidade vem somente das mãos de Deus
320
.
317
Apud L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 270.
318
Apud Ernst CASSIRER, Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana, p. 17.
319
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 270.
320
Ibid., p. 271.
157
A conclusão dessas reflexões está no v. 13: a vida em si não é má, pelo contrário. O
fruto do esforço humano, embora vão, tampouco é mau: trata-se de saber viver com satisfa-
ção, dentro dos limites impostos pela mortalidade e pela ignorância acerca do futuro e dos
caminhos de Deus. Deus concede o dom da alegria ao ser humano (p.ex. Sl 2.11; 9.2; 16.9;
31.7; 32.11; 97.12 passim), e este dom tem de ser vivido: “A alegria deve ser saboreada quan-
do ela acontece, porque, tal como o maná no deserto, não se pode guardá-la para o dia seguin-
te (cf. Ex 16)”
321
. Krüger ainda sugere que o v. 13 pode estar se referindo à ação de Deus que
engloba toda a humanidade, segundo a narrativa do Gênesis: todas as pessoas deveriam ter a
possibilidade de “comer e beber e fruir de coisas boas em todo seu esforço e trabalho”, e cita,
na comparação, Gn 1.29; 2.16s. e 3.17-19
322
, que se referem ao cuidado de Deus com o ser
humano.
Os vv. 14-15 finalizam a reflexão insistindo mais uma vez na questão da eternidade:
Deus é eterno, portanto também o que ele fez, faz e fará será eterno. Essa é uma constatação
irrefutável, à qual “nada para acrescentar” e da qual nada “para tirar”. A idéia tinha
sido apresentada em Ec 1.9-10 em termos bem gerais, e agora é repetida após uma digressão
sobre os vários problemas que afligem o ser humano e o fazem questionar o sentido da vida.
Isso tem a ver com o “temor de Deus”, no sentido de que a eternidade divina é o ele-
mento norteador e limitador para o ser humano: no momento em que ele percebe que não é e-
terno, que é somente criatura, instalam-se o respeito e a honra devidos ao seu Criador. “Para
que o temam” é a expressão clara da intencionalidade de Deus, percebida pelo Ec, e que colo-
ca o ser humano em seu devido lugar. Não se trata de medo ou temor na acepção negativa do
termo. Pelo contrário, o temor é um sentimento natural e inerente, derivado do reconhecimen-
to da totalidade divina. Ravasi relembra a concepção de Deus que tinha o Ec:
Coélet, reafirmando seu “frio” conceito de Deus, apresenta-o em sua função de dispensa-
dor de bens, de improviso e sem justificação, como soberano absoluto. O homem recolhe
essas alegrias dispersas, porém não consegue formulá-las a si mesmo como solução para
a vida nem inseri-las em hipotético ôlam, em desígnio eterno, que pode também exis-
tir
323
.
321
« La joie est à savourer quand elle passe car, comme la manne au sert, on ne peut la mettre en réserve pour
le lendemain (cf. Ex 16) ». J. M. POIRIER, op. cit.
322
T. KRÜGER, op. cit., p. 177.
323
G. RAVASI, op. cit., p. 113.
158
Outra questão que se coloca aqui é como entender o último trecho da perícope, em Ec
3.15: a quem se refere o “perseguido”? A raiz do verbo é
@dr
(radaf) = “perseguir, acossar,
ir ao encalço, ir à procura”. Schökel entende que se deva traduzir Ec 3.15 como “o que fo-
ge”
324
, sendo a forma verbal um part Nif’al. Krüger pensa que Deus busca “o que foge” no
sentido de que tudo se relaciona tanto “a seu tempo” quanto “à eternidade”: Deus cria coisas
semelhantes, que vão se repetindo e “fugindo”, mas acabam retornando no ciclo perene da
criação
325
. Em outras palavras: o ser humano “persegue” aquilo que foge, o tempo, a eternida-
de, os ciclos naturais. Ele se prende ao passado e projeta o futuro como se o tivesse nas
mãos. Deus, porém, busca “o que foge”, mantendo o equilíbrio entre o passado e o futuro e
dando, com isso, um tempo presente ao ser humano, que este pode aproveitar para estruturar
sua vida
326
. Por outro lado, a idéia de realmente haver um “perseguido” por Deus (segundo a
LXX) poderia ser entendida como a realização de uma “justiça equilibradora” na mudança
dos tempos: Deus acaba encontrando de qualquer maneira aquele que foge de seu juízo.
Storniolo sugere uma interpretação semelhante:
“Aquilo que passa” (literalmente, “aquilo que é perseguido” ou “aquilo que foge”) é o
próprio presente, a dimensão fugitiva da vida, a dimensão extremamente efêmera. Toda-
via, é neste efêmero e fugitivo momento que Deus está presente, e em movimento: a eter-
nidade toda está junto de nós, incidindo nesse ponto zero em que tempo e espaço se cru-
zam, formando o tão buscado êxtase do tudo no nada. Deus esteve no passado e também
estará no futuro, mas, concretamente, aqui e agora ele se encontra neste momento, pas-
sando por este presente fugitivo. Se deixarmos de lado este presente, arriscaremos a nos
perder na saudade ou na mera expectativa, deixando escapar pelo vão dos dedos o lugar e
o tempo teológico por excelência, o presente no qual Deus se encontra
327
.
Bem diferente é a interpretação do Midrash Qohelet Rabba’: o “perseguido” seria o
“fraco”, preferido por Deus e, por isso, buscado por ele
328
: poder-se-ia entender que, apesar de
o ciclo da vida ser imutável e eterno, e de todas as coisas e eventos terem o seu lugar e seu
tempo adequado para acontecerem (Ec 3.1-8), Deus se inclina mais para o lado dos injustiça-
dos: a expressão “perseguido” deveria ser entendida, então, em relação direta com as pessoas
oprimidas e exploradas.
324
Luis ALONSO SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 607s.
325
T. KRÜGER, op. cit., p. 179.
326
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 274. Krüger cita ainda Sir 5.3 H
A
: “Não digas: ‘Quem
pode enfrentar sua força?’ Pois o Senhor busca (os) perseguidos”, baseado na opinião de P. W. Skehan e A.
A. DiLella, The wisdom of Ben Sira (AncB 39, 1987), segundo os quais Sir 5.3 H
A
oferece um “texto retraba-
lhado segundo Ec 3.15” (pp. 180 e 182). T. KRÜGER, op. cit., p. 179.
327
I. STORNIOLO, op. cit., p. 60.
328
Bíblia Sagrada ed. Jerusalém, p. 1170.
159
É possível dizer que a admoestação do autor do livro do Eclesiastes, aqui, é para que
se atente aos seguintes fatos: a eternidade está em Deus e também no ser humano – mas a este
não é dado conhecer os desígnios divinos nem o seu próprio futuro. Deus é quem dá alegria e
fruição de vida ao ser humano, e isso não deve ser desprezado ou esquecido em função da an-
gústia pela procura do sentido da vida. O ser humano não é imortal como Deus; mas tem os
dias de sua vida para aproveitar tudo o que Deus lhe doa o trabalho e o seu fruto, a alegria e
a vida solidária, “fazer o bem”:
O segredo, sem dúvida, é este: agir segundo a sabedoria, porque tal é nosso dever; não pa-
ra reivindicar uma recompensa que nos será dada, mas para fruir da alegria como um dom
de Deus sempre que ela aparece no caminho
329
.
Em certo sentido, poder-se-ia incluir o temor de Deus nos arquétipos citados por Jung,
porque esse sentimento aparece em todas as culturas. Temor de Deus significaria, aqui, adap-
tar-se às “normas” divinas, conformar-se com os desígnios divinos, numa espécie de prática
da humildade. O reconhecimento desses aspectos é básico como exercício de autoconheci-
mento e mergulho no próprio inconsciente. Também este é um passo importante na terapia
junguiana: aprender a retirar das palavras e dos conceitos seus valores preconcebidos e dar-
lhes novos significados, na tentativa de reconstruir o mundo através de formas alternativas e
positivas de comunicação. No texto do livro do Eclesiastes, p.ex., chama a atenção o pouco
uso de adjetivos e o uso intenso de palavras com valor semântico múltiplo, que sugere várias
interpretações possíveis, mas não contraditórias ou mutuamente excludentes. Se, por um lado,
a linguagem oral e escrita pode ser a maior fonte de equívocos na comunicação humana,
por outro lado ela serve para codificar os sentimentos, as reações e as sensibilidades psíquicas
que povoam as mentes dos seres humanos. Saber utilizá-la para fazer-se entender e estruturar
seu mundo interior é um dos grandes desafios, com ou sem terapia auxiliar.
A ação da anima sobre o Ec pode ser considerada como psychopompos, o “anjo de
luz” a que se refere Jung, fazendo com que o Ec tenha uma espécie de “visão” momentânea
da eternidade divina: tudo o que Deus faz é eterno e imutável, embora possa adquirir várias
facetas e alternativas no decorrer do tempo terreno. Falando novamente em linguagem, deve-
se cuidar com a interpretação do termo “visão”, aqui, que difere do sentido corrente no AT: o
329
« Le secret est sans doute là: agir selon la sagesse, car tel est notre devoir; non pour revendiquer une récom-
pense qui nous serait due, mais pour goûter la joie comme un don de Dieu lorsqu’elle apparaît sur la route ».
J. M. POIRIER, op. cit.
160
Ec não se refere em nenhum momento a qualquer experiência metafísica, nem com relação ao
divino. O que se pode dizer é que a anima lhe possibilitou um insight acerca de sua condição
e da situação do mundo em que ele vivia, e foi esse insight que o levou a aprofundar suas re-
flexões e a buscar saídas para sua crise.
A percepção mais importante do Ec é que nada do que se faz tem sentido se for apenas
orientado pelo esforço humano, o qual, de resto, não leva a lugar algum. Novamente, o me-
lhor a fazer é continuar seu caminho interior, buscando a espiritualidade mais profunda, para
ter condições reais de conviver com a idéia da eternidade de Deus e da mortalidade do ser
humano, fazendo de cada dia uma pequena/grande festa, tanto pessoal quanto coletiva, no par-
tilhar com as pessoas amadas.
Essa idéia aparece repetidamente, e é por isso que se destacou, no início deste capítu-
lo, o aspecto espiral (ou helicoidal) de sua argumentação: quem e tenta traduzir o texto co-
mo um todo, depara-se com uma grande quantidade de vocábulos repetidos, e muitas vezes de
frases inteiras repetidas. Mas essas repetições se dão num crescendo, na medida em que vão
incluindo novos termos e ampliando os argumentos preexistentes, de forma a criar um conjun-
to de idéias que acaba por demonstrar a evolução interior de seu autor.
3.4.5 Ec 3.16-22 – os seres humanos e os animais são iguais diante da morte
16
Vi ainda debaixo do sol que ao invés do juízo reinava a maldade, e ao invés da justiça,
maldade ainda.
17
Então, disse comigo: Deus julgará o justo e o perverso; pois tempo
para todo propósito e para toda obra.
18
Eu disse em meu coração, acerca dos filhos do homem: Deus testa e mostra-lhes que e-
les (são) animais; pois a sorte dos filhos do homem e a sorte dos animais é uma (para
eles).
19
Como morre este, assim morre outro, e o espírito (é) um para todos, e o ser
humano não tem vantagem sobre o animal, pois tudo é vaidade.
20
Tudo caminha para um só lugar:
tudo surge do pó
e volta ao pó.
21
Quem sabe se o espírito dos filhos do homem será elevado (para cima), e o espírito dos
animais será baixado para a terra (para baixo)?
22
Observo que não há felicidade para o homem a não ser alegrar-se com suas obras; essa é
a sua porção; pois quem lhe mostrará o que vai acontecer depois dele?
Aqui, o Ec constata pela primeira vez a radical igualdade entre os seres humanos e os
animais. Essa igualdade faz com que a aparente liberdade de ação esteja presa à circunstância
de que os seres humanos são tão criaturas quanto os animais, não lhes cabendo autonomia pa-
ra decidirem o caminho de suas vidas como se fossem criadores. o relato eloísta da criação
161
afirma que os seres humanos têm o tempo de vida limitado (Gn 6.3) e não podem conhecer os
desígnios divinos (Gn 2.16-17).
Não fica claro por que o autor usa aqui a expressão “testar” (v. 18). Talvez ele queira
dizer que Deus quer mostrar aos seres humanos que eles não são mais que os animais, os
quais, segundo Gn 1, eles foram incumbidos de dominar. Agora não se fala mais em dife-
renças entre os seres humanos em si – justos e injustos etc. –, mas separa-se a espécie humana
em seu conjunto do restante dos animais criados por Deus. Com isso, o Ec chama a atenção
para o fato de que o ser humano não é a “coroa da criação”, como talvez se pudesse inferir de
Gn 1-2.25.
Surge então a pergunta principal: quem pode saber se o espírito, o sopro divino que
habita o ser humano, sobe aos céus, e o que vida aos animais desce à terra? O livro do E-
clesiastes vem para questionar a concepção platoniana de que o ser humano seja superior aos
animais e, mais ainda, de que o ser humano esteja dividido em partes mais ou menos nobres,
quais sejam a “alma
ψυχη
(psiquê) e o corpo físico:
σωµα
(soma). A morte, para os gre-
gos, significava uma separação entre corpo e alma, algo bem diferente do que se conhecia en-
tre os judeus.
Além disso, entre os gregos, diferenciavam-se os seres humanos dos animais, dizendo
que os seres humanos teriam algo como um “alento de vida” pessoal, que ficaria preservado
após a morte física
330
. Mas também na história do judaísmo começavam a desenhar-se os pri-
meiros impulsos para uma concepção de vida após a morte e um juízo no outro mundo. O E-
clesiastes parece rejeitar tanto a concepção grega de divisão psiquê / soma quanto a concep-
ção judaica de vida e juízo após a morte, e é o que ele expressa neste questionamento acerca
do “para cima” (seres humanos) e do “para baixo” (animais; cf. v. 21)
331
.
O autor chega, portanto, à formulação da pergunta: o que faz o ser humano pensar que
é diferente dos animais, se a sua morte parece ser igual à deles? Por que o ser humano pensa
que está acima de qualquer outro ser da criação, se também ele é apenas criatura, e não cria-
dor? É preciso deter-se na maneira como o autor expressa sua dúvida: “quem sabe...?”
330
W. ZIMMERLI, op. cit., p. 184.
331
R. GORDIS, op. cit., p. 225.
162
Se for considerada a hipótese de que o Ec polemizava com o seu meio, pode-se enten-
der a dúvida colocada em 3.21 como um desafio ao pensamento helenista, que estabelecera a
noção dualista de ser humano e, com isso, se opunha à acepção de ser humano integral que
norteava o judaísmo
332
. Este versículo parece confirmar a tese de que o livro do Ec não pode
ter sido redigido antes da época helenista, porque nenhuma tradição oriental se baseia na dou-
trina platônica da divisão entre psiquê e soma. De certa maneira, a pergunta lançada “quem
sabe?” – pode ser considerada retórica, porque a resposta está clara. Se o sopro divino contido
no ser humano volta a Deus, por que tal não poderia acontecer com os animais
333
?
Por outro lado, parece não haver uma crítica explícita à acepção generalizada de que,
de qualquer forma, o espírito “subiria” até Deus, do qual viera. De fato, em outras passagens
(3.11; 12.7) o Ec parece concordar com a opinião corrente de que o sopro divino dado ao ser
humano volta a Deus, e o invólucro terreno volta a ser pó. O que se questiona é por que o es-
pírito humano seria diferente daquele dos animais, se todos eles vieram do mesmo lugar: o pó,
e voltam ao mesmo lugar: a terra.
A última pergunta novamente se refere à impossibilidade de prever o futuro e de saber
o que acontece após a morte: o v. 22 afirma que ninguém pode fazê-lo, partindo da convicção
de que nada vem depois que se morre e que o futuro está somente nas mãos de Deus um
Deus que não permite que se descubram seus planos para os seres humanos. Acentua-se, com
isso, a questão da aparente falta de sentido para a vida humana. Na verdade, o Ec nem se pre-
ocupa com a questão do pós-morte, assunto que surgirá na esteira do apocalipsismo e da
Revolta dos Macabeus, bem posteriores a ele. Para o Ec, a pergunta subjacente a todos esses
textos é: de que adianta nascer, crescer, viver e morrer, se nada disso permanece e o ser hu-
mano não muda jamais em sua essência? Por que vive o ser humano?
A constatação de que todos os seres vivos estão no mesmo patamar, principalmente o
ser humano junto aos animais, leva a mais um passo em direção ao processo de individuação:
depois de todas as concessões feitas no âmbito humano, é necessária muita coragem e, antes
de tudo, humildade para admitir que se é apenas um elemento a mais da criação divina no
332
W. ZIMMERLI, op. cit., p. 178.
333
A ruach hebraica não é a mesma coisa que a psiquê grega: para a tradição israelita, o que anima o ser humano
é o espírito divino, que junta em si todas as características que possibilitam a vida; a psiquê grega refere-se
somente às habilidades humanas de sobrevivência entre seus semelhantes, sem estar vinculada a qualquer e-
lemento divino ou espiritual.
163
mesmo patamar dos animais –, e reconhecer, apesar disso, que a sabedoria pode levar a mente
humana a níveis inimagináveis de reflexão e crescimento interior. Aqui, a anima assume um
papel quase que denunciador de todas as fragilidades do ser humano, que o colocam no mes-
mo degrau com todos os seres vivos. Isso pode ser e quase sempre é muito perturbador,
levando a crises de confiança e consciência. Mas é necessário passar também desse ponto para
prosseguir no caminho do autoconhecimento, pois somente a pessoa despida de quaisquer ar-
rogâncias e expectativas quanto ao mundo exterior, e mesmo interior, pode conhecer-se, reco-
nhecer-se e adquirir paz espiritual verdadeira.
Novamente manifesta-se o aspecto espiral que caracteriza a evolução da psique, dessa
vez quanto às experiências psíquicas: embora haja um crescimento perceptível em direção ao
objetivo definido, é necessário contar com crises de cansaço e desânimo interior, e dar-lhes o
espaço necessário para que se manifestem, fazendo com que o impulso vital repouse por al-
gum tempo. Uma espiral sempre tensionada acaba por romper-se, e é sua conformação que
lhe garante elasticidade permanente.
Nestes momentos de crise, a palavra-chave é reconhecer, no sentido de compreender,
que existem leis no universo que ninguém conhece, mas que existem para organizar o caos”
(e, em última análise, a sombra dentro da psique humana). O ser humano não sabe se é amado
ou desprezado por Deus, porque ele não pode controlar as reações divinas diante das ações
humanas. Mas ele pode sentir a ação de Deus na “luz” (= anima positiva) que esta vida adqui-
re com suas compensações e alegrias; por outro lado, a reflexão sobre a vida inclui a percep-
ção da morte e de seus limites, e isso leva, por sua vez, ao temor de Deus. A pessoa se torna
capaz de viver corretamente quando aproveita as lições dessa percepção – mas fazem parte da
vida “capacitada” também a festa e a fruição da vida, junto com o trabalho ativo e honesto.
Aqui tudo isso se encontra ainda num nível bem básico, que satisfaz os instintos meramente
“humanos”, aquém de qualquer espiritualidade mais profunda. Mas são esses instintos básicos
que têm de ser integrados, aos poucos, na totalidade da pessoa, fazendo com que ela se perce-
ba em sua fragilidade e se dispa de quaisquer pretensões a “rei” ou “sábio”, aprendendo a
conviver consigo mesma tal qual ela é.
Nesse sentido, esta perícope não representa, necessariamente, um degrau a mais na
evolução do raciocínio do Ec. Mas se uma espiral é formada de avanços e retrocessos rumo ao
objetivo maior, pode-se notar que as reflexões do autor se movimentam não em círculos ou ao
164
redor de si mesmo, mas sempre “para cima”, na tentativa de encontrar chão debaixo dos pés e
firmar suas concepções. Às vezes, esses movimentos são rápidos e de grande alcance; outras
vezes é preciso deixar-lhe tempo para respirar e tomar novo fôlego para a próxima etapa.
3.4.6 Ec 5.17-19 – o direito de ser feliz com o próprio trabalho
17
Eis o que observo: a felicidade que convém é comer e beber e encontrar o bem em todo
o esforço que se faz debaixo do sol; pois esta é a porção que Deus lhe deu nos dias de sua
vida.
18
Também toda a pessoa a quem Deus deu riquezas e recursos que a façam capaz de
sustentar-se e receber sua porção e alegrar-se com o seu trabalho, isto é dádiva de Deus;
19
ela não se lembrará muito dos dias que viveu, pois Deus enche seu coração de alegria.
Esta perícope é diferente das outras analisadas, uma vez que nela não se fala de
morte nem se elogia a vida; fala-se, isto sim, do trabalho e de suas bênçãos. Mas observando
bem, e lembrando de duas perícopes anteriores (Ec 2.24-26; 3.9-15), ver-se-á que aqui acon-
tece uma ampliação do que significa “felicidade” para o Ec: é algo que convém, ou seja, é líci-
to alegrar-se comendo e bebendo; isto é o direito de toda a pessoa que trabalha, porque o ali-
mento e a bebida são o resultado de seu esforço e a recompensa devida a quem trabalha: “[…]
a idéia de que o prêmio pelo trabalho concluído é o aproveitamento ilimitado de suas conquis-
tas”
334
. Este trecho também se insere no esquema “espiral”, mostrando a progressão de argu-
mentos do livro do Eclesiastes como um todo. Mas o trabalho adquire aqui ainda outro signi-
ficado: trata-se da atividade que possibilita à pessoa o seu sustento e a sua porção na vida.
Quer dizer: fala-se do trabalho honesto, digno, acompanhado da fruição da vida saudável. “Is-
to é dom de Deus” uma pequena observação que parece “quebrar” o versículo, do ponto de
vista gramatical, mas que bem explica o que se pretende dizer: coma e beba, você tem direito!
Mas trabalhe honestamente...
Lançando um olhar mais de perto sobre o texto hebraico, alguns comentaristas consi-
deram que ele poderia ter recebido influências platônicas, cujas idéias colocam “bom” junto a
“belo” (
αγαθον οτι καλον
, paralelo a
bAj
[tov] = bom, belo)
335
. A forma de interpretar esse
versículo seria, então, de que tudo o que é belo é bom, e vice-versa: o que convém é comer e
beber, e porque isto é belo, então também é bom. O aspecto em que o Ec se diferencia tanto
dos platônicos quanto dos romanos é a sua concepção de trabalho: Deus dá a cada pessoa as
334
Luiz TATIT, Análise semiótica através das letras, p. 87.
335
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 339.
165
condições de trabalhar e prover o seu sustento, e isso faz parte da vida – mas é apenas o traba-
lho honesto que possibilita uma fruição de vida verdadeira.
Como em outras passagens do livro do Eclesiastes, “comer e beber” quase sempre
pressupõem riqueza material. A questão é saber avaliar o valor do trabalho que produziu essa
riqueza: o trabalho honesto deveria produzir coisas “boas / bonitas” (
bAj
), e é isso que con-
vém ao ser humano
336
:
É a primeira vez que Coélet fala da riqueza de modo positivo. Todavia, lembra que, se a
vida e os bens são dons de Deus, a conseqüência lógica é que esses dons devem ser repar-
tidos entre todos, e não açambarcados para se acumularem nas mãos de poucos, enquanto
a maioria fica sem nada
337
.
É esta a importância do assunto trabalho nesta seleção de perícopes, na medida em que
é ele um dos grandes divisores de águas na sociedade humana. As relações sociais, políticas e
econômicas advindas da divisão da sociedade em empregadores e empregados atribuem pode-
res e formas de controle a determinadas pessoas ou instituições. O Ec não cansa de insistir no
aspecto da dignidade do trabalho que não explora nem oprime (cf. cap. 4 do livro do Eclesias-
tes, p.ex.), e que pode transformar-se numa fonte de prazer e fruição da vida, se estiver fun-
damentado numa ética de convivência. Essa ética parte do princípio de que não se pode calar
diante da opressão, como se esta fosse natural na sociedade:
Faz parte da própria natureza e do caráter do pensamento ético o não poder jamais con-
descender a aceitar “o dado”. O mundo ético nunca é dado; está sempre em processo de
ser feito. “Viver no mundo ideal”, disse Goethe, “é tratar o impossível como se fosse pos-
sível”
338
.
De fato, o Ec recusa-se a aceitar o inaceitável, e é isso que o distingue do cinismo e do
estoicismo. Embora ele não proponha um programa revolucionário de conduta humana, suas
reflexões com seus refrães constantes sobre a vaidade da vida inútil e o esforço vão em ajun-
tar bens através de um tipo de trabalho explorador e opressor mostram que este é um assunto
que o preocupa muito, até porque é o que acontece dentro de seu próprio povo. Dessa forma,
através de uma conduta irresponsável, esse povo se torna frágil internamente, perdendo sua
capacidade de resistência diante de inimigos externos.
336
Ibid., p. 339.
337
I. STORNIOLO, op. cit., p. 83.
338
E. CASSIRER, op. cit., p. 103.
166
Resumindo o v. 18, “Deus não só é o doador de todos os bens, mas também aquele que
possibilita a fruição desses bens”
339
. Esta perícope tem o seu lugar no conjunto das demais
porque ressalta o papel decisivo de Deus na vida de cada pessoa, tal como em Ec 12.1-7. Esta
também é a importância do v. 19: a pessoa que sempre procura viver conforme a “lei divina”
não terá tempo de ficar pensando sobre sua vida, sobre o que poderia ter sido feito e não foi,
sobre coisas perdidas etc., porque ela é feliz, ou pelo menos tem mais motivos para alegrar-se
do que para cultivar a tristeza.
Por outro lado, os dias parecem passar mais depressa e os anos fogem, anulando so-
nhos e projetos, quando não se pára de tempos em tempos para refletir e reorganizar os cami-
nhos da mente e do coração; mas o que o Ec quer dizer aqui é que não vale a pena perder
tempo com elucubrações inúteis sobre coisas más e tristes, quando a vida deveria oferecer o-
portunidades suficientes para inspirar meditações maduras, sábias e felizes. Estas é que po-
dem trazer resultados visíveis, demonstrando a constante tentativa do ser humano de melhorar
sua condição interior e fazer evoluir sua qualidade de vida.
Mas é necessário atentar mais uma vez aos elementos que compõem essa argumenta-
ção: comer, beber e alegrar-se com as pessoas amadas não seriam satisfações simples demais?
Será que a vida inteira se resume a alegrias tão pequenas? Na realidade, o que o Ec propõe é
profundamente solidário, inteiro, grande: a fruição da vida jamais é assunto de uma pessoa só.
Fruir a vida significa viver em comunhão: o indivíduo enquanto tal tem de estar bem consigo
mesmo, para conseguir interagir no grupo em que convive – e a recíproca também é verdadei-
ra: quem só maltrata as outras pessoas jamais consegue fazer o bem a si mesmo.
A exaltação da honestidade e da fruição da vida através do trabalho digno, suficiente
para o sustento e não desvirtuado como meio de manobra para opressão e exploração, poderia
ser interpretada como uma das manifestações inspiradas pela anima quando esta assume o pa-
pel de guia interior: uma espécie de orientação ética, não pré-determinada pela sociedade em
que se vive, mas sim uma tentativa de se viver de forma cada vez mais consciente o processo
de individuação. A organização do caos em que se localiza a sombra leva, em decorrência, a
uma organização interna do inconsciente, e pode levar, se não à perfeição, pelo menos a um
ambiente possível de convívio, depois que “viver consigo mesmo” deixou de ser um fardo e
339
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 339.
167
se transformou numa aventura gratificante. O reconhecimento de que o trabalho também pode
servir como instrumento de autodesenvolvimento psíquico pode auxiliar em muito a compre-
ensão de si mesmo e das reações que determinam o comportamento cotidiano. Quem trabalha
honestamente e aprende a fruir a vida com dignidade está em pleno caminho de sua integrali-
zação, de sua integração no cosmo enquanto ser vivo em toda sua plenitude, mais que sim-
plesmente ser humano.
3.4.7 Ec 7.1-6 – a morte como motivo de reflexão sobre o sentido da vida
1
Melhor o bom nome que o bom perfume,
o dia da morte que o dia do nascimento.
2
Melhor ir a uma casa em luto
que ir a uma casa em festa,
porque este é o fim de todo ser humano:
e quem está vivo refletirá.
3
Melhor a tristeza que o riso,
pois alguém pode ter a face triste e o coração alegre.
4
O coração dos sábios está na casa em luto,
o coração dos insensatos está na casa em festa.
Esta perícope é objeto de controvérsias em sua interpretação; vários comentaristas to-
mam-na literalmente, considerando que o Ec pretenda alertar para o perigo da insensatez e das
coisas superficiais, em relação aos verdadeiros valores da vida “bom nome”, reflexão, serie-
dade, sabedoria
340
. Por um lado, esse alerta parece bem pertinente se se pensar que o Ec opõe
a sabedoria à insensatez e prega a valorização dos bens espirituais ou, pelo menos, denuncia a
opressão causada pela avidez e pelo poder do dinheiro (cf. cap. 5.1ss.), entre outros aspectos
da vida material.
Por outro lado, causa certa estranheza a polarização entre luto e festa de uma maneira
tão radical, envolvendo inclusive assuntos tão sérios quanto a morte e a reputação, junto com
a afirmação de que o verdadeiro sábio é aquele que se mantém sério e concentrado na reflexão
sobre vida e morte. As perícopes analisadas até aqui exaltam a alegria e a fruição da vida a-
través do comer e do beber, além do trabalho honesto e do companheirismo ou seja, a “pe-
quena festa diária” para lembrar que se vive sob a proteção de Deus.
comentaristas que percebem uma incongruência principalmente em torno do v. 9.
Neste, afirma-se: “Não fiques irritado depressa, pois a irritação mora no peito dos insensatos”,
e seguem-se várias admoestações quanto à ira inútil e à amargura que não se deve cultivar.
340
R. GORDIS, op. cit., p. 256ss., além de Whybray e outros citados por ele.
168
Partindo desta incongruência entre os vv. 3-4 e o v. 9, pode-se argumentar que os primeiros
versículos da perícope sejam uma citação da sabedoria israelita tradicional, seguindo o princí-
pio do Tun-Ergehen-Zusammenhang: o sábio se diferencia do tolo porque não perde tempo
com alegria fútil e coisas inúteis; a morte é séria e inspira o luto, e a festa é superficial e coisa
de insensatos. O que o Ec pretende é contrapor essa posição com sua própria opinião acerca
de luto e festa; ele critica o pessimismo subjacente às colocações dos vv. 3-4 a partir dos vv.
6-7, nos quais fica claro que, na realidade, também ele sabe o que é ser sábio ou insensato,
mas não a partir dos mesmos pressupostos colocados pela sabedoria tradicional. Essa interpre-
tação parece ter sido compreendida por seu/s epiloguista/s em 12.9: “Ele corrigiu muitos pro-
vérbios, depois de tê-los ouvido e analisado”
341
. Essa correção é que a impressão de que o
texto estaria cheio de glosas; mas pode tratar-se de alterações feitas pelo próprio autor do
livro, segundo sua técnica, já comentada, da argumentação em três etapas
342
.
De qualquer forma, parece estar claro que, para a sabedoria em geral, e também para o
Ec, existe uma associação entre bom nome/perfume e morte/luto/sabedoria em oposição a fes-
ta/alegria/insensatez. O bom nome dá o direito de usar um bom perfume para fruir a vida (cf.
Ec 9.7-10); por outro lado, que fruição de vida é esta, que considera insensatez entrar numa
casa em festa? Além disso, não se usam perfumes em situações de luto, embora houvesse a
tradição de se ungir o morto antes de enterrá-lo (cf. Mc 16.1; Lc 23.56). Olhando as coisas por
este ângulo, percebe-se que há uma contradição interna na argumentação, e essa contradição é
que sugere tratar-se de mera citação para depois apresentar uma nova opinião.
Segundo Lohfink:
A vida tem de ser pensada a partir da morte. E outra vez o leitor do livro sabe, ao mesmo tem-
po, que o Qohelet não ficaria de cara amarrada mas, em face da morte, incentivaria para a ale-
gria. Tudo está correto e errado ao mesmo tempo. Mas o Qohelet continuará com esse jogo di-
alético
343
.
Pode-se chegar à conclusão de que a reflexão sobre a morte e a dedicação à seriedade,
quando não ao luto, não devem levar à depressão e ao pessimismo; a preocupação do Ec pare-
ce ser a de alertar para o fato de que tudo tem seu lugar e sua hora na vida, e que as pessoas
341
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 368ss.
342
Cf. cap. 1 deste trabalho.
343
“Das Leben muß vom Tod her durchdacht werden. Und abermals weiß der Leser des bisherigen Buchs zu-
gleich, daß Kohelet nicht bei vergrämtem Gesicht verbleiben, sondern angesichts des Todes zur Freude auf-
fordern würde. Alles ist richtig und falsch zugleich. Kohelet aber wird dies dialektische Spiel weiterspielen”.
Norbert Lohfink, apud L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 369.
169
têm de aprender a colocar as coisas em seu devido tempo e em certos limites, para não acon-
tecer o que se diz no v. 9, e para evitar que a insensatez tome conta dos pensamentos.
A anima tem o papel de perturbar o inconsciente e denunciar o que se passa na vida
interior da pessoa. A perturbação se quando a pessoa se conta de muitos lados negati-
vos, que ela preferiria esquecer, mas que estão exigindo uma mudança de postura imediata e
profunda. A denúncia dessa situação do inconsciente se dá através de sonhos, visões ou
quaisquer outros meios de expressão que consigam trazer ao consciente o que está acontecen-
do no inconsciente. Neste breve texto, podem-se notar os problemas que afligiam o Ec quanto
à visão de mundo que se tinha em sua época sobre morte e vida, seriedade e tolice, festa e lu-
to. Canalizando essas preocupações através de citações alheias, ele deixa claro de antemão
que não concorda com estas citações, de uma forma muito discreta, permitindo-se a si mesmo
contrapô-las com aquilo que ele já aprendeu até aqui.
Parece que, neste momento, está havendo uma situação de crescimento interior real, na
medida em que ele consegue perceber o mundo ao seu redor e se tornar independente dele,
formando e fortalecendo sua visão de mundo com a autoridade própria de quem está seria-
mente convicto e trabalhando em si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, esse trabalho em si mes-
mo evidencia as polaridades presentes em todo ser humano, e que se revelam também nas a-
valiações que o Ec faz da validade da festa e do luto: apesar da sabedoria tradicional e de seu
Tun-Ergehen-Zusammenhang, que atribuem a cada pessoa um lugar fixo na sociedade e de-
terminam o seu destino segundo leis rígidas e imutáveis, o Ec procura ver uma possibilidade
de harmonização dos pólos opostos.
Assim, também a morte não é o oposto da vida, nem impede a real fruição da vida, e
sim representa sua complementação no ciclo natural dos acontecimentos que envolvem o ser
humano em sua plenitude: o Ec quer agora encontrar o caminho em direção à verdadeira sa-
bedoria, e por isso lhe parece urgente questionar o que afirma a tradição israelita em seus pro-
vérbios, que, para o Ec, cada vez mais vão perdendo a validade. Se for verdade que a sabedo-
ria provém da experiência de vida, essa constatação não pode parar neste ponto: a experiência
de vida tem de ser analisada criticamente e avaliada a partir de seu valor real para o cresci-
mento do indivíduo. É nisto que consiste a verdadeira sabedoria.
Outra percepção que pode levar à verdadeira sabedoria é a questão do “bom nome” e
do “perfume”. Não somente se destaca, nesta perícope, a tentativa de relativizar a importância
170
social do luto e da imagem exaltada do pretenso “sábio”, como também se questiona a valida-
de de elementos tão fugazes quanto a honra e a fama atribuídas por seres humanos a seus i-
guais. Em todo o livro do Eclesiastes, está presente a queixa sobre a vaidade que se alimenta
apenas da valoração humana, deixando Deus de fora de todas as relações sociais. Dessa for-
ma, esta perícope não pode representar o verdadeiro pensar do Ec; a última coisa que ele ain-
da pretende é estar ligado ao mundo terreno e seus bens materiais.
3.4.8 Ec 8.8-10 – a impossibilidade de conhecer o dia da morte
8
Não (há) ser humano senhor do vento
para reter o vento;
e não (há) soberano sobre o dia da morte,
nem dispensa na guerra;
e nem a maldade salva quem a possui.
9
Vi tudo isso e dei o meu coração a tudo o que é feito debaixo do sol,
num tempo em que um homem domina sobre outro para levá-lo ao mal.
10
E, assim, vi maus sendo sepultados, e eles entram e saem do lugar santo;
mas serão esquecidos na cidade aqueles que agiam corretamente.
Isto também é vaidade.
Este trecho é um dos que mais suscita polêmicas em sua interpretação. Os dois primei-
ros versos são simples de se entender: não existe ninguém que possa ser o sábio e profundo
conhecedor de todas as coisas para dominar fenômenos da natureza, tais como o vento sím-
bolo de tudo o que é fugaz, passageiro, mas também do que é violento e destruidor: conforme
Jz 8.3, Pv 29.11, Ez 3.14 e outras,
x;Wr
(ruach) pode significar “ira” ou “irritação”, a qual
ninguém consegue controlar, principalmente quando vinda de um superior (cf. Ec 10.4)
344
.
Por outro lado, “vento” pode ser entendido aqui também como o “sopro de vida”, o a-
lento vital doado por Deus. Não há ser humano que possa controlar a doação e a revogação da
vida, pois somente Deus tem esse poder. O pensamento que norteia essa colocação é o de que
não se pode jamais prever aquilo sobre o que não se tem poder e que vem de outro lugar (ou,
no final das contas, de Deus): a imprevisibilidade do futuro é, essencialmente, a imprevisibi-
lidade da chegada da própria morte”
345
.
Também da guerra não escapatória. Ela exige a participação ativa de todos os seres
humanos masculinos, jovens e fortes, embora haja dispensa em alguns casos específicos (Dt
20.5-8). Não se sabe qual é a associação que o Ec faz aqui, ou se o termo é generalizado para
344
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 420.
345
N. LOHFINK, op. cit., p. 61.
171
referir qualquer tipo de conflito. De qualquer forma, parece haver sempre poderes mais fortes
que o ser humano: a natureza, os conflitos, a morte, Deus. Ele sempre tentará escapar de al-
guma forma, e o argumento do Ec é que isso de nada adiantará, pois os desígnios de Deus são
anteriores e mais poderosos que a vontade do ser humano.
Mas a maneira como ele diz isso não é clara: na última frase desta perícope, o autor
usa o termo
[v;r,
(resha’ = maldade), expressando a idéia de que nem toda maldade des-
te mundo salvará algum “esperto” de seu destino. Mas essa palavra não combina com
w-
yl|[|B.
(b
e
ala’v = possuidor): ninguém “possui” maldade como se possui um bem ma-
terial. O aparato crítico da BHS propõe a leitura
rv,[o
(‘osher = riqueza, fortuna), ao in-
vés de “maldade”, modificando o significado para “e nem a riqueza salva quem a possui”
346
.
Mesmo se considerando que se trate de uma mera metáfora, é preciso deter-se nesse uso da
expressão. Talvez a crítica do Ec volte-se aqui, mais uma vez, contra os poderosos que abu-
sam de atitudes opressoras e usam a “lei e sabedoria” para dominar o povo “inculto”
347
. Como
uma certa classe detinha todos os poderes religioso, econômico, político e, por isso, de or-
ganização e classificação social –, poder-se-ia entender o uso do verbo “possuir” dessa forma.
Em todos os casos, a idéia parece ser a de que não é um tipo de esperteza ou habilidade espe-
cial que salva o ser humano de seu destino, nem lhe confere poderes especiais que o protege-
riam do juízo divino:
Antes, parece haver uma indireta em direção à hegemonia histórica do discurso da “or-
todoxia”. Era preciso, em primeiro lugar, desfazer essa hegemonia ortodoxa. Suas exi-
gências, que não coincidiam com a experiência, tinham de ser desconstruídas, para que se
libertasse o olhar para a realidade das coisas
348
.
A direção principal da crítica do Ec vai contra um ensinamento sapiencial e teológico
que pretende ter poderes de determinar quem será salvo da infelicidade e do juízo. Seria essa,
novamente, a questão da teologia da retribuição, segundo a qual a pessoa que seguisse os
mandamentos pré-determinados pelos chamados “detentores da sabedoria” estaria automati-
camente salva o que não era o caso. Kurt Marti destaca ainda o aspecto atemporal e, portan-
346
Biblia Hebraica Stuttgartensia, p. 1348.
347
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 420.
348
(...) ergibt sich daraus eher ein Hinweis auf die historische Diskurshegemonie der “Orthodoxie”. Sie galt es
zunächst aufzubrechen. Ihre Ansprüche, die sich mit der Erfahrung nicht deckten, mußten zunächst dekons-
truiert werden, um den Blick frei zu bekommen für die Wahrheit der Dinge”. Ibid., p. 241.
172
to, muito atual, da crítica do Ec no que se refere à dominação política e econômica dentro do
próprio povo (Ec 8.9): o autor do livro do Eclesiastes parece ser quase que um predecessor da
concepção político-econômica de teóricos do séc. XIX, como Bakunin e Marx, quando ele
denuncia o estado de opressão e exploração “de um ser humano sobre o outro”, derivado do
poder criado pelo dinheiro
349
.
Whybray identifica os elementos citados até aqui vento, morte, guerra, rique-
za/maldade como uma lista quádrupla de exemplos que mostram a incapacidade do ser hu-
mano de prever sua vida e seu destino. Quando esse tipo de lista se configura em provérbio,
ela recebe o nome de “dito numérico”, em função do jogo entre quantidade e significado dos
elementos envolvidos (cf. Pv 30.4, 11-14, 18-19 e 21-31)
350
. O objetivo deste recurso estilísti-
co é o de ressaltar a idéia principal através de diversas metáforas, sempre baseadas em deter-
minados números simbólicos para a tradição israelita: o quatro, o sete, o doze etc. Neste caso,
usando-se os quatro elementos citados acima, destacam-se a fragilidade e a fugacidade da vi-
da do ser humano, que sempre estará à mercê de forças mais poderosas que ele, e sobre as
quais ele não tem controle: o vento, a morte, a guerra e a maldade são elementos que podem
estar inter-relacionados numa conjugação de energias negativas, que limitam o poder de vida
do ser humano.
O que mais aparece nesse texto é o princípio de que Deus não é alguém com quem se
possa negociar (cf. Ec 5.3-5). Esta admoestação corrobora a opinião de Lauha e Kaiser sobre
a indisponibilidade de Deus (cf. cap. 1 deste trabalho): nem a maldade nem a riqueza salvarão
quem as possui (talvez através de violência e opressão)? De qualquer forma, resumindo estes
versículos, pode-se afirmar que a principal intenção da crítica do Ec é dirigir-se contra a atitu-
de daquelas pessoas que pensam que podem tudo e detêm o poder sobre tudo inclusive so-
bre a morte e o juízo divino: os “donos do templo e da sinagoga”.
Quanto ao v. 10, será necessária uma pequena digressão, em vista das dificuldades em
traduzi-lo adequadamente. A tentativa de tradução aqui apresentada (“E, assim, vi maus sendo
sepultados, e eles entram e saem do lugar santo; mas serão esquecidos na cidade aqueles que
agiam corretamente”) diverge das sugestões abaixo, começando por Krüger:
349
Kurt MARTI, Notizen und Details. Nimm und lies: Prediger Salomo. Weder Prediger, noch Salomo. Dispo-
nível em www.stub.unibe.ch./extern/zeitschrift/schnaeggli.4.html, acesso em 16 mai. 2001.
350
R. N. WHYBRAY, op. cit., p. 133.
173
Além disso, eu vi como os ímpios eram enterrados e entravam no lugar de descanso; mas
os que tinham agido corretamente, tinham de retirar-se de um lugar sagrado e foram es-
quecidos na cidade
351
.
Zimmerli sugere: “[…]vi pessoas más enterradas (com honra) ‘e que entravam’ no lu-
gar santo, enquanto saem as que serão esquecidas na cidade […]
352
. Lohfink, por sua vez,
amplia o TM da seguinte forma:
E observei que as pessoas que transgrediram a lei receberam um enterro, enquanto outras,
que tinham agido corretamente, chegavam e logo saíam do lugar do santuário, e em pou-
co tempo serão esquecidas na cidade. Também isso é vaidade
353
.
Schwienhorst-Schönberger, por fim, traduz:
Além disso, eu vi: ímpios eram enterrados e entravam (no descanso, i.e., junto aos seus
pais nos túmulos). Mas aqueles que vêm do lugar santo e agiram corretamente, serão es-
quecidos na cidade
354
.
A dúvida maior está no que se refere ao lugar e às pessoas que “entravam e saíam do
lugar santo”: seria este um cemitério? Ou a parte do templo em que se faziam sacrifícios? E
quem seriam as pessoas que entravam, parecendo ímpios que recebiam enterros faustosos? A
reflexão do Ec parece contrapor aqui os ímpios no sentido da prática religiosa no templo
aos “piedosos”, que observam os ritos sagrados, mas cuja atuação correta logo é esquecida.
Ou seja, ele lamenta que o Tun-Ergehen-Zusammenhang não funcione, e essa argumentação
se estende até o v. 14, num jogo de afirmações próprias e citações alheias:
10-12a observação que refuta o postulado do Tun-Ergehen-Zusammenhang
12b.13 citação que insiste na validade do Tun-Ergehen-Zusammenhang
14 observação que refuta o postulado do Tun-Ergehen-Zusammenhang
355
Também o Ec se preocupa com o aspecto “oficial” da morte; não apenas existe uma
memória afetiva entre o povo, mas a representação externa em homenagem à pessoa falecida
deverá demonstrar a honra a ela atribuída. Isso também se refere aos ímpios a que alude o Ec:
351
„Sodann sah ich, wie Frevler begraben wurden und zur Ruhe eingingen; die aber Recht getan hatten, mußten
von einer heiligen Stätte weichen und wurden in der Stadt vergessen“. T. KRÜGER, op. cit., p. 285ss.
352
„[…] sah ich Gottlose, die (mit Ehren) begraben wurden ‚und eingingen’ an den heiligen Ort, während
davongehen, die in der Stadt vergessen werden […]“. Walther ZIMMERLI, Das Alte Testament Deutsch
Prediger, p. 219.
353
„Dabei habe ich beobachtet, wie Menschen, die das Gesetz übertreten hatten, ein Begräbnis erhielten, wäh-
rend andere, die recht getan hatten, ankamen und vom Ort des Heiligtums wieder weggehen und bald in der
Stadt vergessen sein werden. Auch das ist Windhauch“. N. LOHFINK, op. cit., p. 62.
354
„Sodann sah ich: Frevler wurden begraben und gingen (zur Ruhe, d.h. zu ihren Vätern in die Gräber) ein.
Jene aber, die von heiliger Stätte kommen und recht gehandelt haben, wurden in der Stadt vergessen“. L.
SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 422ss.
355
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 422ss.
174
qualquer pessoa merece um enterro digno, por mais simples que seja. No entanto, aqui apare-
ce o problema: ao contrário do que deveria acontecer, não se fazem túmulos duradouros para
os justos são os injustos que merecem enterros dignos; e isso provoca a situação de que os
bons também têm de ceder seu espaço no templo, ou na sinagoga (o “lugar santo”), sendo es-
quecidos rapidamente em função dos maus que dominam o ambiente
356
.
Lohfink interpreta essa passagem como uma indireta do Ec contra determinadas pes-
soas bem conhecidas na sociedade da época, o que tornaria suas palavras compreensíveis para
seus ouvintes: seria uma mensagem sutil para aqueles que se faziam honrar mesmo após a
morte, e isso parece ter sido comum entre os judeus ricos helenizados
357
. Whybray nova-
mente uma polarização entre o tratamento dado aos injustos e o aparente desprezo sofrido pe-
los justos, praticamente concordando com a tradução de Krüger
358
. Este destaca que a justiça
da ordem mundial e social é ameaçada de dentro, quando até mesmo num “lugar santo” não se
incentiva mais o agir correto, e sim se dá prioridade aos injustos e ímpios
359
; essa parece ser a
conclusão também do Ec, que contrapõe não apenas o ímpio e o piedoso, mas também o rico e
o pobre, numa crítica social, além da religiosa. Marti inclui aqui ainda a questão da teodicéia
(como se administra a discrepância entre o poder de justiça de Deus e as injustiças e desigual-
dades do mundo?), que o Ec poderia estar discutindo nesta passagem
360
.
Mas a finalização disso tudo “também isso é vaidade” pode ser entendida de duas
formas: a inconsistência assinalada pela falha do Tun-Ergehen-Zusammenhang seria o triste
final de tudo, mas também o correr atrás de bens materiais, por parte dos ricos e ímpios, é
vão, porque a morte anula tudo. O Ec relativiza sua própria angústia: não motivo para de-
sespero, porque os ricos e ímpios também desaparecem
361
.
O mais lógico parece ser que se leia o texto de Ec 8.8-10 como mais um dos vários e-
xercícios de argumentação contidos no livro do Eclesiastes como um todo, tentando descons-
truir a estrutura da clássica sabedoria israelita para abrir os olhos das pessoas contemporâneas
para a realidade: os ímpios valem mais que os justos, mesmo na morte e também após a
356
Rainer BRAUN, Kohelet und die frühhellenistische Popularphilosophie, p. 169.
357
N. LOHFINK, op. cit., p. 62.
358
R. N. WHYBRAY, op. cit., p. 135-136.
359
T. KRÜGER, op. cit., p. 285ss.
360
K. MARTI, op. cit.
361
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 428.
175
morte, em seus portentosos túmulos. Mas isso não deve levar ao pessimismo e ao desânimo.
O ser humano nada ganha em revoltar-se enquanto não souber contra quem ou o quê, afinal,
está se revoltando, e sem saber como pode ou deve mudar as coisas. Aqui, mais uma vez, o Ec
se diferencia de Jó, para quem esse tipo de tratamento dado às pessoas é um dos maiores pro-
blemas, e que ele atribui a uma injustiça inelutável, querendo mesmo enfrentar Deus em seu
questionamento acerca do problema. O Ec, por sua vez, tenta colocar-se além e acima dessas
circunstâncias:
Na sociedade ocidental, tendemos a olhar para os sentimentos como se estivéssemos nu-
ma novela (soap opera). Tudo é tão melodramático. Não espaço para a contemplação
calma da emoção. Salomão realmente simplificou as coisas. Basicamente, ele disse que
temos de viver no momento, e mais intensivamente
362
.
De fato, no texto do livro do Eclesiastes como um todo nada há de melodramático. Ao
contrário, como se constatou, a vantagem que o Ec parece ter adquirido em relação aos de-
mais textos bíblicos é esse distanciamento, que nada tem de conformado, mas tampouco se
perde em lamentações e pensamentos negativistas que não vêem saída para nada. Se ele apa-
renta ser pessimista, isso se deve apenas ao fato de que ele não se entrega a um tipo perigoso
de otimismo ufanista que logo descamba em depressão quando as expectativas não corres-
pondem à realidade. A vida simplesmente é como é, diz o Pregador:
É quando ele [o Ec] renuncia ao seu projeto do conhecimento total, quando ele aceita não
ser mais que um servidor agindo de maneira desinteressada, que ele pode enfim chegar à
verdadeira alegria, recebida como um dom e não tolerada como uma obrigação, nem con-
siderada um benefício
363
.
A anima tem também um lado muito positivo quando se lhe permite a ação efetiva so-
bre o inconsciente. Este é o momento em que o Ec começa a viver sob essa orientação positi-
va da anima, que vai assumindo, cada vez mais claramente, o papel de Grande Mãe, revelan-
do-se no arquétipo da “feiticeira” (no bom sentido). A morte está perdendo seu poder assusta-
dor, e a preocupação é muito mais com a paz, a calma e o repouso de que a pessoa morta ne-
cessita. O uso da linguagem no v. 10 deixa claro que as pessoas simples não tinham direito a
362
“In Western society, we tend to look at emotions as though we were in a soap opera. Everything is so
melodramatic. There’s no room for quiet contemplation of emotion. Solomon really simplified things.
Basically, he said we need to live in the moment more.” Rami SHAPIRO, The Way of Solomon: Finding Joy
and Contentment in the Wisdom of Ecclesiastes. Disponível em
http://www.spiritualityhealth.com/newsh/items/book-review/ item_2123.html, acesso em 03 abr. 2005.
363
« C’est quand il renonce à ce projet de toute-puissance, quand il accepte de n’être qu’un serviteur agissant de
manière désintéressée, qu’il peut enfin accéder à la vraie joie, reçue comme un don et non pas saisie comme
un dû, ni attendue comme un bénéfice ». J. M. POIRIER, op. cit.
176
um túmulo protegido e firme, sendo freqüentemente enterradas em valas comuns, enquanto os
grandes mausoléus eram reservados para os ricos. Essa falta de paz mesmo após a morte é
considerada uma agressão à pessoa em seu direito mais privado. Ao mesmo tempo, a anima
lhe recomenda que ele não perca tempo demais em “melodramas” (cf. citação acima), “porque
tudo isso é vaidade”; quer dizer, também os mausoléus não salvarão a pessoa de encontrar-se
consigo mesma e com Deus, mesmo que esse encontro se dê somente após a morte.
Por outro lado, a falta de um “túmulo”, se analisada segundo o significado arquetípico
desse tipo de símbolo, põe em risco a segurança afetiva e emocional da pessoa: o túmulo é o
outro extremo da sensação protetora conferida, p.ex., pelo ventre materno. Esse sentimento de
proteção, anterior ao nascimento, no qual se vivia em segurança e do qual se foi “expulso” pa-
ra o mundo, encontra agora um vácuo – falta a finalização, não se fecha o círculo de harmonia
que deveria cercar a vida humana. Portanto, a expectativa, ao morrer, é retomar essa harmoni-
a, e a busca por ela pode ser, de fato, simbolizada por um túmulo. Não é por acaso que quase
todos os povos do mundo dão especial atenção às várias formas de enterrar e honrar seus mor-
tos.
A ação da anima como feiticeira, aliada à preocupação com o destino pós-morte, suge-
re que o personagem do processo de individuação esteja aprendendo a colocar-se sob a orien-
tação de seu inconsciente, o que lhe facilitará o trato com o medo da morte e o qualificará, de
uma forma mais consistente, para a fruição da vida. Nesse caso específico, a fruição da vida
advém da consciência de que além da morte ainda existe Deus – o mesmo Deus que abençoa a
vida. Assim se fecha o rculo de nascimento, vida e morte do ser humano. E essa vida se en-
contra agora num nível bem mais adiantado de reflexão, amadurecimento e crescimento espi-
ritual. Em breve, a ira contra a injustiça (representada aqui nos mausoléus dos ímpios) dará
lugar a uma serenidade natural e à capacidade de sobrepor-se às adversidades.
3.4.9 Ec 8.15-17 – a exaltação máxima da alegria
15
E eu louvo a alegria, porque não há bem para o ser humano debaixo do sol senão comer
e beber e alegrar-se, e isto o acompanha em seu trabalho nos dias de vida que Deus lhe
deu debaixo do sol.
16
Quando, pois, dei meu coração para conhecer a sabedoria e obser-
var a tarefa que é feita sobre a terra – pois durante o dia e à noite não há descanso para os
olhos,
17
vi toda a obra de Deus que o ser humano não consegue compreender; para des-
cobrir toda a obra que é feita debaixo do sol, por mais que o ser humano trabalhe, não a
descobrirá, e também o sábio, se disser que a conhecerá, não a conseguirá descobrir.
Esta é uma das passagens em que o Ec mais claramente se manifesta com relação à
fruição da vida, como reação a todas aquelas coisas que o ser humano não pode considerar
177
como sendo de seu domínio e conhecimento: o dia da morte, o decorrer da guerra, o futuro, os
ciclos da natureza (cf. perícope anterior). Os aspectos dessa fruição da vida repetem-se: co-
mer, beber e alegrar-se; mas, neste trecho, aparece a expressão “isso o acompanhará no seu
trabalho...”. Como se pode entender o uso desse verbo aqui?
Diferentemente da passagem de Ec 9.7-10, o trabalho e seu fruto ainda não são consi-
derados partes inerentes à fruição da vida. Por ora, o Ec contenta-se em perceber que existe
algo mais que o trabalho “vão” na vida do ser humano: o comer e o beber, que deveriam levar
ao alegrar-se. No entanto, aqui novamente tudo isso está enfeixado na expressão “os dias da
vida que Deus lhe debaixo do sol” ressalta-se a idéia de que a vida não existe por acaso,
mas que é dom de Deus, e por isso merece ser festejada. O trabalho que acompanha essa festa
é o complemento natural e necessário, mesmo que quase sempre seja a condição essencial pa-
ra a sobrevivência. Mas as pessoas não deveriam anular-se em função da “vaidade” do traba-
lho, e sim fazer dele um elemento a mais no conjunto da vida. A função do verbo
hwl
(lōh
= acompanhar) é a de fornecer a idéia de constância, associada à expressão repetida “todos os
dias da vida”: a alegria não deve ser pontual, momentânea, provocada apenas por um fenôme-
no ou acontecimento específico: nesta perícope, o Ec afirma pela primeira vez, com clareza,
que a alegria é o componente básico de todos os dias de vida
364
.
Ao mesmo tempo, o v. 17 ressalta a impossibilidade de conhecer os desígnios divinos
logo após exaltar a alegria e a fruição da vida, junto com o trabalho e a admoestação para
que a alegria seja parte inerente do cotidiano: isso não parece uma provocação, ou uma incon-
gruência? O Ec destaca, dessa forma, que são a alegria e a fruição da vida cotidiana que trans-
portam o ser humano para além de preocupações sem resolução e de questionamentos acerca
de fenômenos que ele jamais vai administrar: ninguém é senhor do dia da morte (Ec 8.10) e
ninguém conhece o futuro.
É interessante observar, aqui, o uso dos verbos
[dy
(yada’ = conhecer) e
a[m
(ma’a = descobrir). Nesta perícope, o autor insiste mais na idéia de que o ser humano não
consegue “descobrir” a razão e o sentido das ações de Deus e dos acontecimentos sobre a ter-
ra. Nem o sábio, por mais que se esforce e mesmo apregoe sua própria sabedoria, não passa
de um determinado ponto. Pode-se “conhecer” ou “reconhecer” muitas coisas, mas o que se
364
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 432.
178
quer dizer com “descobrir”, nesta perícope, diz respeito à apreensão completa, ao conheci-
mento último de tudo o que acontece “debaixo do sol”. E a principal dificuldade nisso é que,
ao fim e ao cabo, tudo é “obra de Deus”
365
e a obra de Deus é incognoscível per definitio-
nem. O Ec relembra o que constatava em 1.17b: todo o esforço humano “...é vaidade e pas-
tar o vento”.
O que chama a atenção no raciocínio do Qohelet, nesta perícope, é que ele primeiro
exalta a alegria e a fruição da vida como se nada houvesse de mais importante a fazer. Mas
quando ele segue argumentando que as obras de Deus são incompreensíveis até para o mais
sábio dos sábios, e que nenhum ser humano conseguirá descobrir as intenções divinas, ele in-
centiva a alegria diária e o prazer nas coisas do cotidiano para deixar claro que a vida não de-
ve ser gasta em conjeturas inúteis e sem sentido. A busca pelo sentido da vida é que evidencia
a vaidade de todos os esforços humanos e só traz angústias vãs:
O ser humano não consegue apreender totalmente o que acontece debaixo do sol. Essa in-
cognoscibilidade última da realidade se baseia no fato de que ela é obra de Deus. No fun-
do, a crítica sapiencial do Qohelet tem um fundamento na teologia da criação. Ele refuta a
arrogância inerente à sabedoria porque pensa grande de Deus e de sua realidade. Com is-
so, ele não se encontra à margem, mas no centro da tradição bíblica
366
.
A expressão “ele pensa grande de Deus e de sua realidade” é fundamental nesta cita-
ção. De fato, o que o Ec mais deplora em seus escritos é a mesquinharia diária, a opressão en-
tre irmãos, a vaidade e a futilidade exacerbadas. É preciso, sim, “pensar grande”, não de
Deus, mas também de si mesmo, analisar os próprios objetivos, o modo de viver, atentar não
para o sentido da vida, porque este não existe, mas para o valor da vida, para a preciosidade
do tempo que se tem para viver.
Será possível imaginar que o Ec estaria no limite último de penetrar na esfera do
self, a partir desta perícope? O que lhe falta ainda para evoluir para além da quarta fase da a-
nima, a Sabedoria encarnada na Sulamita? Ou esta fase já é tão avançada que parece suficien-
te para uma pessoa alcançá-la e nela permanecer? De certa maneira, esta perícope parece con-
figurar a centralidade de tudo o que o Ec tem a dizer, tanto a si mesmo quanto ao mundo em
365
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 435.
366
„Der Mensch kann das Geschehen unter der Sonne nicht vollständig erfassen. Diese letzte Unfaßbarkeit der
Wirklichkeit gründet darin, daß sie ein Werk Gottes ist. Kohelets Weisheitskritik ist letztlich schöpfungs-
theologisch begründet. Er weist überzogene Erkenntnisansprüche zurück, weil er groß von Gott und seiner
Wirklichkeit denkt. Damit steht er nicht am Rande, sondern im Zentrum der biblischen Tradition“. Ibid., p.
436.
179
que vive. O que havia até então era uma sucessão de queixas e acusações, pontuada por bre-
ves reações positivas que tentavam estruturar uma nova forma de vida. Agora, parece que o
“trabalho de Sísifo” está chegando a seu término, e o que segue será uma série de comentários
e considerações quase que “acessórias”, visto que o caminho está quase completo. A impor-
tância deste trecho está no fato de que o Ec percebeu o que é que faz a diferença: é fundamen-
tal ter um trabalho digno e honesto para fruir das coisas boas da vida, mas o que confere ale-
gria é saber quais coisas boas são essas: é possível comer e beber sozinho, mas alegrar-se so-
zinho não é assim tão fácil. Os argumentos do Ec estão centrados, portanto, numa vida solidá-
ria, coletiva, voltada para ações éticas e positivas que encorajem uma convivência segundo a
proposta da lei de Deus. Anulam-se os pensamentos mesquinhos da teologia da retribuição
para buscarem-se objetivos maiores e mais permanentes, que apóiam a vida do começo ao fim
e levam a uma morte digna e abençoada.
Mas também é preciso atentar para o risco que corre o próprio Ec, e que estava pre-
sente no início do processo: querer identificar-se com a imagem do sábio cujo conhecimento
ele pretende alcançar. Sua consciência o alerta de que também sua própria busca pela sabedo-
ria absoluta é em vão, e tanto mais ele se frustrará quanto quiser insistir nesse equívoco. Essa
passagem chama a atenção para as coisas simples da vida exatamente para fazer perceber que
não faz sentido investir energia positiva em alvos inatingíveis e tocados por arrogância. Mais
uma vez, a espiral suas voltas, mas agora num degrau acima, como se o inconsciente esti-
vesse numa constante vigília sobre o consciente, para evitar danos à personalidade através de
atos insensatos. Agora o Ec já sabe o que é melhor para ele; mas esta percepção é que lhe exi-
girá maior firmeza espiritual para permanecer em seus propósitos de crescimento e encontro
consigo mesmo. Na próxima perícope, ver-se-á a que ponto já chegou sua satisfação com o
simples fato de estar vivo e, por isso, saber-se pleno de potencialidades novas. Ao mesmo
tempo, o esquema espiral demonstrará uma volta às colocações negativistas e tristes do autor,
alternando satisfação com angústia num estilo típico.
3.4.10 Ec 9.3-6 – saber-se vivo sempre é melhor que encarar o poder anulador da morte
3
Este é o mal que há em tudo quanto se faz debaixo do sol: a todos sucede o mesmo; tam-
bém o coração dos homens está cheio de maldade, nele há desvarios enquanto vivem; de-
pois, rumo aos mortos.
4
Enquanto alguém pertencer a todos os seres vivos existe esperan-
ça; porque o cão vivo é melhor que o leão morto.
5
Pois os vivos sabem que morrerão, mas
os mortos nada mais conhecem, e não há mais recompensa para eles, porque sua memória
será esquecida.
6
Seu amor e seu ódio pereceram, e não mais participação para eles
por toda a eternidade, em tudo o que se faz debaixo do sol.
180
O Ec constata que o mal deste mundo se deve ao fato de que os seres humanos pare-
cem sofrer todos o mesmo destino: agem movidos pela maldade e são vítimas de si mesmos e
da maldade dos outros, e isso acontece durante toda a vida. A morte é apenas o fim de tanta
maldade. Mas, além disso, a morte acaba sendo o grande “nivelador” de todas as injustiças
cometidas, e de todos os esforços envidados em vão; aqui, o livro do Eclesiastes não se refere
somente a formas de agir (correto/injusto), mas sim à morte como o aspecto mais definitivo e
inevitável para os seres humanos
367
. Mesmo assim, pode-se perguntar se o Ec encara a morte
como conseqüência do pecado; a constatação de que ninguém está livre do pecado teria para-
lelos em outras passagens bíblicas, tais como em Gn 8.11, 1Rs 8.46, Sl 51.7, e Pv 20.9
368
.
Dessa forma, a morte seria, também para o Ec, o juízo que atinge todas as pessoas, e não so-
mente aquelas que pecaram claramente aos olhos do mundo: quem saberá se pecou ou não di-
ante de Deus? É possível considerar que este seria mais um “recurso argumentativo” do Ec
contra textos normativos da tradição: opiniões tradicionalistas são relativizadas ou mesmo re-
futadas
369
.
Mas, de qualquer forma, a idéia central deste trecho parece ser, contra todo o negati-
vismo dessa percepção, a de que o ser humano deve ter esperança enquanto estiver vivo, por
mais difícil que seja sua situação: o “cão vivo” equivale àquela pessoa que se encontra em
circunstâncias muito adversas, enquanto o “leão morto” é a pessoa que teve uma vida melhor,
mas que de nada mais pode usufruir, por ter morrido:
É um manifesto contra o martírio, contra a morte inútil, contra um desespero vazio e sem
sentido. Para Qohélet, a vida tinha de ser preservada. Um cachorro vivo pode mais contra
os invasores que um leão morto. A vida era sinônimo de esperança. Por isso não adianta-
va morrer; o sacrifício sem esperança tornava-se inútil e absurdo
370
.
Semanticamente falando, a expressão “pertencer aos vivos” tem, no mínimo, duas in-
terpretações possíveis: a primeira refere-se àquele grupo social no qual o indivíduo está inse-
rido. A segunda interpretação remete à concepção de “morte social” imposta à pessoa excluí-
da do grupo por alguma ação desaprovada. Não fica claro até que ponto também o Ec pensou
nessa diferenciação, ou se ele se refere apenas à morte física. De qualquer forma, as imagens
contrastivas “cão vivo”/“leão morto” podem sugerir uma valoração moral ou ética que vai a-
367
R. N. WHYBRAY, op. cit., p. 140.
368
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 448.
369
Ibid., p. 448.
370
J. L. R. GUTIÉRREZ, op. cit.
181
lém da corporeidade, dada sua simbologia: cães muitas vezes representam instintos inferiores
do ser humano, enquanto o leão incorpora a “nobreza” dentre os animais. Os cães não mere-
cem maior destaque no conjunto dos seres vivos, andam em bando e não têm características
muito louváveis
371
. Formam a “massa” diante da imagem isolada do leão, individualista e soli-
tário. Embora o leão possa ser respeitado por todos os componentes do bando, ele não partici-
pa da vida social: ele se projeta para além dos limites de convivência. Isso pode ser positivo
até certo ponto, porque todo grupo precisa de indivíduos que ousem coisas novas. Por outro
lado, o autor parece indicar que, mesmo assim, não vale a pena investir tempo e energia de-
mais nesse tipo de comportamento, porque “também isso é vaidade e correr atrás do vento”. A
ânsia por poder e, na esteira disso, pela acumulação de bens, por poder e prestígio, leva a pes-
soa à falta de consciência acerca de si mesma, além do que anula a convivência solidária.
Voltando à fama negativa dos cães, o ditado popular que aparece em 9.4b considera as
pessoas ainda vivas i.e. os “cães vivos” como portadoras de pecado: elas não são puras,
não estão livres de culpa. Mas elas ainda têm vida, e, por isso, ainda têm a chance de se arre-
penderem e receberem perdão, melhorando sua situação
372
. O outro aspecto dessa argumenta-
ção é o de que o autor do livro do Eclesiastes atribui às pessoas vivas algo que não diz res-
peito aos mortos: o conhecimento e que nada mais é que o conhecimento acerca da própria
morte. Ele ressalta os limites do ser humano; esse raciocínio elimina a idéia de que poderia
haver uma vida após a morte para os “sábios” e os “justos”, conforme se argumentava na teo-
logia da apocalíptica.
A colocação de que as pessoas vivas pelo menos ainda têm esperança está relacionada
a esse conhecimento no sentido de que, sabendo que se vai morrer, pode-se aproveitar melhor
o tempo de vida que se tem. Isso será reforçado em Ec 9.10 (“pois no Sheol, para onde vais,
não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento, nem sabedoria”)
373
. Quem morre não tem
mais parte no convívio humano: as pessoas vivas ainda têm consciência de si e do mundo
374
,
têm a possibilidade de participar de um trabalho solidário e coletivo, e dessa maneira são hon-
371
Ao contrário: em Israel, cães eram considerados especialmente imundos e execráveis, e eram colocados no
mesmo rol das prostitutas e dos prostitutos (cf. Dt 23.19). L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit.,
p. 449.
372
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 449.
373
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 449ss.
374
W. ZIMMERLI, op. cit., p. 226.
182
radas e lembradas; as pessoas mortas não participam do grupo e, portanto, não estão mais
inseridas na memória coletiva.
Ao mesmo tempo, para o Ec, o que acontece após a morte da pessoa não precisa mais
preocupar ninguém, porque, ao morrer o corpo, vai-se também o espírito que deu vida ao ser,
a ruach. Isso não significa, porém, que a morte seja a destruição radical de tudo, uma vez que
a ruach acaba voltando a Deus, que a deu (cf. Ec 12.7).
Portanto, percebe-se mais uma vez que esse tipo de reflexão se volta contra o Tun-
Ergehen-Zusammenhang, ao relativizar, ou nivelar, o destino de pessoas boas e más diante da
morte: as ações humanas deixam de ter valor e não importam na “prestação de contas” diante
do poder divino. A diferença entre agir bem ou mal acaba sendo tão anulada, no momento da
morte, quanto a ameaça de sofrer as conseqüências do próprio agir. As pessoas vivas sempre
terão vantagens em relação às pessoas mortas, pelo simples fato de estarem vivas. As conse-
qüências desse reconhecimento acabam envolvendo, muitas vezes, o campo da ética, fazendo
com que as pessoas orientem suas ações para uma vida em fruição digna diante do Criador.
Além disso, o próprio Ec lembra que a velhice pode ser mais bem vivida se, na juventude, a
vida se orientou segundo a memória do Criador (12.7).
Poderia haver uma conotação política neste trecho: uma vez que Judá tinha por símbo-
lo o leão (cf. a expressão “leão de Judá”), o leão morto poderia ser a província da Judéia,
“morta” após a ação de tantos dominadores estrangeiros e, portanto, inútil como projeção de
Estado ou nação, conforme a tradição israelita que ainda se aferrava ao antigo sonho da Terra
Prometida. O povo se vê, agora, reduzido a um “bando de cachorros”, no sentido da subservi-
ência e falta de independência, do desprezo e da falta de dignidade que estes animais muitas
vezes evocam. Apesar disso, o povo está vivo – e é o povo que está vivo de fato, não os pode-
rosos “leões” que se locupletaram em suas novas posições, iludidos acerca de seu pretenso
poder.
Nessa circunvolução em seu crescimento espiritual, o Ec percebe que também ele está
passando da condição de “leão” (rei em Jerusalém) para a de “cachorro” (sábio mas idoso,
chegando ao fim de sua vida e, portanto, perdendo seu antigo poder), mas ele consegue ver as
vantagens dessa nova situação. Ele se alegra com o simples fato de ainda estar vivo e não
sente inveja daquelas pessoas que se encontram em situação melhor que ele. Também este é
183
um grande passo no caminho interior rumo à sabedoria e ao crescimento intelectual. Em ou-
tras palavras:
A situação até esse momento é um pouco mais drástica que as de praxe. A quebra do e-
quilíbrio comunitário ou individual […] decorre sempre de processos de privação que
provocam no sujeito o sentimento de falta. […] o sujeito perde o equilíbrio que har-
monia à sua vida, mas, em contrapartida, recobra as direções que dão sentido à existência
do ser humano
375
.
A questão desta perícope é a do equilíbrio posto em xeque. Poucos leões, muitos ca-
chorros, morte (heróica) contra vida (oprimida e explorada): se, antes, o Ec gostava de des-
crever-se como “rei em Jerusalém”, agora ele percebe o quão pouco lhe valeram esse título e
todas as aparentes vantagens materiais dele advindas. Os “leões” morrem antes e de nada mais
sabem, enquanto os “cachorros” pelo menos sabem que estão vivos e que vão morrer mas
esta é a chance que lhes é dada: o breve espaço de tempo que eles ainda têm, antes de morre-
rem, pode ser aproveitado em direção a novos conteúdos de vida espiritual.
Do ponto de vista junguiano, essa “volta” à lamentação, com sua subseqüente consola-
ção, é o efeito da ação da anima, que agora se está sobrepondo ao poder destrutivo da som-
bra. Os problemas continuam existindo, mas se revela uma maior capacidade de enfrentá-
los realisticamente e, com isso, desenvolver-se rumo a uma personalidade mais segura e inte-
grada.
3.4.11 Ec 9.7-10 – a exaltação da vida cotidiana
7
Vai, come teu pão com alegria
e bebe teu vinho com o coração contente,
porque Deus já aceitou tuas obras.
8
Sejam brancas as tuas vestes em todo o tempo
e nunca falte óleo sobre a tua cabeça.
9
Desfruta a vida com a mulher que amas
em todos os dias da vida de vaidade que Deus te deu debaixo do sol,
todos os teus dias de vaidade,
porque esta é a tua parte na vida
e no teu trabalho com que te cansas debaixo do sol.
10
Tudo aquilo que te chegar à tua mão para fazer,
faze-o conforme a tua capacidade,
pois não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento e nem sabedoria no Sheol,
que é para onde tu vais.
375
L. TATIT, op. cit., p. 101.
184
Esta perícope é a continuação da anterior, em que se falava do “cão vivo” e do “leão
morto” (Ec 9.3-6), e que terminava com a constatação de que todos os esforços humanos de
nada mais valem quando se morre. Na seqüência da argumentação, porém, o incentivo inicial
desta perícope é que se goze a vida através dos elementos simbólicos pão e vinho: embora o
correr atrás de bens e prestígio seja esforço vão, há motivos para alegrar-se. Os símbolos cita-
dos podem estar sendo utilizados como metáforas para representar aquele lado da vida que
permite certa abastança, ou pelo menos a garantia de uma sobrevivência tranqüila. Estes ele-
mentos têm sido citados por vários comentaristas tradicionais para comprovar que o Ec per-
tencia à classe alta.
Por outro lado, um comentarista mais moderno, Thomas Krüger, afirma que justamen-
te o pão e o vinho seriam meios de subsistência facilmente adquiríveis pela maioria das pes-
soas: “Pão e vinho representam as demandas da vida cotidiana”
376
. Essa discussão não será re-
tomada aqui – mas talvez o autor do livro do Eclesiastes tenha tentado dizer que o ser humano
tem o direito de fruir a vida em outro sentido que simplesmente vegetar num cotidiano monó-
tono e desesperançado; para isso, o vinho serve de “mensageiro da alegria”
377
. Schwienhorst-
Schönberger ainda comenta que a alegria do comer e do beber representa uma alteração da
maldição imposta no Gênesis: o castigo do “(...) comerás o pão no suor do teu rosto” estaria
sendo, agora, redimido para a verdadeira fruição da vida através da boa alimentação, dessa
vez abençoada por Deus
378
.
Outro aspecto importante da vida da pessoa que sabe viver bem é o cuidado também
com o corpo. Crenshaw e Luz destacam a importância das roupas claras no calor desértico, e
do óleo para evitar o ressecamento dos cabelos e da pele
379
. A aparência agradável, junto com
a boa alimentação, constitui um elemento a mais para que se cultive o respeito por si mesmo,
o que, em última análise, leva também ao respeito pelas outras pessoas. O óleo ou perfume
também representa um elemento de valor, porque era extraído a muito custo e se vendia
em pequenos frascos, também eles preciosos.
376
„Brot und Wein stehen stellvertretend für alltägliche Lebensbedürfnisse“. Citação de A. Lauha, apud T.
KRÜGER, op. cit., p. 307.
377
Ibid., p. 307.
378
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 458.
379
Apud T. KRÜGER, op. cit., p. 307.
185
Os elementos citados até agora oscilam entre aqueles que sugerem a alegria cotidiana
do viver (comer e beber) e aqueles que incentivam a festa (óleo, roupas brancas), para além
daquela alegria que se deveria ter todos os dias: o amor da pessoa amada
380
. Também a ex-
pressão “em todo o tempo” tem sua importância aqui. O Ec quer dizer com isso que o aspecto
festivo pode e deve estar sempre presente, não importando quais as posses ou condições
econômicas para tanto: a fruição da vida em si já é uma festa, principalmente se a perícope for
lida a partir do v. 9 com sua insistência em “todos os dias da tua vida”.
Por isso, é necessário ressaltar que não há, na citação destes elementos de fruição e
cuidado, arrogância ou exibicionismo de bens. Pelo contrário, parece haver aí um estímulo pa-
ra que o dinheiro acumulado não “apodreça” em cofres bem-guardados, e sim sirva para ale-
grar a vida enquanto há tempo.
Questões moralistas relativas à fruição da vida não podem ser consideradas aqui: o que
poderia haver de mal em usar aquilo que se juntou com tanto esforço? Por outro lado, Lohfink
alerta para que não se interprete essa passagem, por um lado, como um simples elogio dos
“pequenos prazeres diários, como o pretendem alguns moralistas: o Ec também gosta de
grandes festas e diversões”
381
. Apesar disso, o autor do livro do Eclesiastes se deu conta de
que é necessário preservar a consciência e a responsabilidade diante de Deus, que é quem
tudo isso ao ser humano (“porque Deus já aceitou tuas obras”, Ec 9.7b).
Ec 9.9 reforça o estímulo à fruição da vida através da convivência com as pessoas a-
madas. Embora vários comentaristas queiram ver nesse versículo certa menção à (possível)
esposa do autor do livro do Eclesiastes, a questão da “mulher amada” dilui-se no aspecto mais
geral da convivência saudável e amorosa com todas as pessoas. Krüger chama a atenção para
o fato de que existe uma contraposição entre vivos e mortos nos vv. 4-6, que é rememorada
aqui: “Por não haver ‘participação’ para o ser humano após a vida, ele deverá fruir da sua
‘participação’ na vida enquanto estiver vivo”
382
.
O v. 9 apresenta três dos principais elementos em torno dos quais gira a argumentação
central de todo o livro: a fragilidade da vida (“todos os dias da tua vaidade”), a fruição da vi-
380
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 458.
381
N. LOHFINK, op. cit., p. 70.
382
„Weil es nach dem Leben für den Menschen keinen ‚Anteil“ mehr gibt, soll er im Leben seinen ‚Anteil’
genießen“. T. KRÜGER, op. cit., p. 307.
186
da (“come e bebe e alegra-te”) e a dependência constante de Deus (“os dias que Deus te
deu”)
383
. A insistência para que todos os dias sejam aproveitados dá a entender que, apesar da
vaidade do esforço humano, a pessoa tem o direito de fruir diariamente do que conquistou. A
fruição e o esforço não são mutuamente excludentes, e fazem esquecer um pouco a fragilida-
de, a inconsistência e a aparente falta de sentido da vida
384
.
Ec 9.10 incentiva a ação segundo a capacidade de cada pessoa e, mais que isso, admo-
esta para que se trabalhe com boa vontade ainda nesta vida – depois nada haverá que lembre o
esforço encetado. Os termos usados nesse versículo (obra, reflexão, conhecimento e sabedori-
a) refletem o que o Ec considerava importante: a obra realizada deve ter como fundamento a
reflexão sábia, que demonstre conhecimento e habilidade. Mesmo que não haja nada após a
morte que possa durar para sempre, e que a memória acerca da pessoa se esvaia quando ela
morre, deve-se trabalhar bem, com seriedade e afinco. Isso porque, de alguma forma, as obras
dos seres humanos permanecem, e não se pode evitar que elas continuem influenciando as ge-
rações posteriores. O que o Ec está querendo relativizar é a importância momentânea de todo
esforço, não sua validade real.
O termo vaidade, usado nesse caso, significaria atribuir às próprias obras mais impor-
tância do que elas têm mas, mesmo assim, os que vêm depois dos que morrem ainda apro-
veitam o que foi feito anteriormente; portanto, o trabalho deve ser feito “conforme a própria
capacidade”, nem mais (expressão da vaidade) nem menos (expressão do descaso): “a brevi-
dade da vida é que dá à ação seu valor e sua urgência: ‘Um homem capaz de falar assim não é
um pessimista moroso nem um libertino mimado’”
385
.
Otto Kaiser acrescenta que esta perícope não pretende incentivar uma desistência en-
fadada, um quietismo apático
386
, e sim ela desenvolve seu raciocínio diante do pano de fundo
da fugacidade do dia de hoje: é necessário aproveitar cada dia, porque é nele que se vive, e ao
mesmo tempo é necessário festejar todos os dias, porque são fugazes, e porque o tempo dado
ao ser humano não permanece infinitamente à sua disposição:
383
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 462.
384
T. KRÜGER, op. cit., p. 307.
385
„Gerade die Kürze des Lebens gibt dem Handeln Wert und Dringlichkeit: ‘Ein Mann, der so spricht, ist kein
moroser Pessimist und auch kein verweichlichter Genußmensch’“. Ludwig Levy, Kohelet, p. 119, apud L.
SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 464.
386
Otto KAISER, Aus den Blättern des Predigers Salomo, in: Ibid., Ideologie und Glaube: eine Gefährdung
christlichen Glaubens am Alten Testament aufgezeigt, p. 134.
187
Quantas reclamações, quantos comportamentos que estragam o nosso próprio dia com de-
talhes inúteis, e o dia das outras pessoas com queixas tolas, poderíamos evitar se estivés-
semos conscientes da fugacidade dos nossos dias e disso tirássemos a conseqüência de
que é melhor festejá-los juntos, ao invés de nos esforçarmos para dificultá-los uns aos ou-
tros e estragarmos mutuamente a alegria de viver. Quem nada espera de uma vida futura,
poderá concordar com as conclusões do Qohelet; e quem espera por uma vida futura, fará
bem, apesar disso, em seguir o conselho de aproveitar bem a vida presente
387
.
Contrapondo esta perícope àquela de Ec 9.3-6, a conclusão é que o “cão vivo” vale
mais que o “leão morto” se souber viver mesmo em face da morte, porque ele conhece a vai-
dade humana e sabe que nada sobrará após a morte; mas, por isso mesmo, o cotidiano bem vi-
vido vale mais que o heroísmo vão, o qual busca por um sentido de vida impossível de desco-
brir ou de determinar. Finalizando esta análise, cite-se uma máxima do Rabbi Matiá ben He-
resch: “Sê o primeiro em saudar com paz todos os homens, e sê a cauda de leões e não a cabe-
ça de raposas”
388
. Lembrando as palavras do Ec em relação aos leões e aos cães, a humildade
sempre prevalecerá diante da pretensa esperteza que leva à arrogância.
Esta perícope se localiza no mesmo nível daquela em 8.15-17, ressaltando novamente
o aspecto da solidariedade e do coletivo: o caminho interior está sendo firmado, e agora o Ec
já pode pensar em voltar-se às pessoas que ele ama e que são importantes para ele. Esse passo
é fundamental para encontrar-se no mundo: quando a pessoa está “pronta” em si mesma, tam-
bém consegue conviver de forma cada vez melhor com as outras pessoas, em função de suas
atitudes éticas, honestas e agradáveis, que promovem o bem-estar tanto para si mesmo quanto
para quem está junto.
O tom predominante de conselho amigável mas não paternalista a entender que
o Ec encontrou, em seu inconsciente, o acesso àquela parte que pode ser simbolizada por
um velho sábio, e que ele soube apreender os ensinamentos desse ente. Embora a figura do
“velho sábio” seja mais característica do animus, portanto presente no universo inconsciente
das mulheres, quando ele se faz notar nos homens sua importância é tanto maior e mais posi-
tiva. Nota-se, p.ex., uma progressiva firmeza nas palavras do Ec, e agora ele prefere antepor a
387
„Wieviel Quängeleien, wieviel sich den Tag mit Kleinigkeiten und dem anderen mit Kleinigkeiten verder-
bendes Gehabe unterbliebe, wenn wir uns deutlicher der Flüchtigkeit unserer Tage bewußt wären und aus ihr
die Folgerung zögen, sie miteinander als ein Fest zu begehen, statt sie uns wechselseitig möglichst schwerzu-
machen und einander die Lebensfreude zu vergällen. Wer kein weiteres Leben erwartet, wird Kohelets
Schlußfolgerungen grundsätzlich zustimmen; und wer auf ein kommendes Leben hofft, ist trotzdem gut be-
raten, das ihm jetzt gegebene zu nutzen“.
Ibid., p. 136.
388
Rabbi Matiá ben Heresch, terceira geração de Tanaítas, período de 120 a 140 d.C., apud Ana SZPICZ-
KOWSKI, Educação e Talmud – uma releitura da Ética dos Pais, p. 125.
188
fruição da vida aos problemas advindos da morte. A constatação de que após a morte nada
resta já não representa um drama, como nas perícopes iniciais. Ao contrário, parece servir-lhe
de estímulo para aproveitar o lado bom da vida, antes que seja tarde. Para tanto, existem ele-
mentos significativos: as roupas “brancas e limpas”, o perfume, as pessoas amadas, tudo isso
remete até mesmo a um ambiente de certa religiosidade; em todos os casos, o convite à frui-
ção da vida inclui também um modo de vida mais profundo e refletido, em que as coisas sim-
ples adquirem uma dimensão metafísica muito importante.
3.4.12 Ec 11.7-10 A alegria da juventude e a responsabilidade diante de Deus
7
Doce é a luz,
e agradável aos olhos ver o sol;
8
ainda que o ser humano viva muitos anos,
alegre-se com eles todos,
mas lembre-se de que os dias de trevas serão muitos.
Tudo o que acontece é vaidade.
9
Alegra-te, jovem, com tua juventude,
sê feliz nos dias da tua mocidade,
segue os caminhos do teu coração e os desejos dos teus olhos;
sabe, porém, que sobre estas coisas todas Deus te pedirá contas.
10
Afasta do teu coração o desgosto,
e o sofrimento do teu corpo,
pois juventude e cabelos negros são vaidade.
Esta perícope parece dar um “salto” na argumentação do Ec, na medida em que ela an-
tecipa e conclui o que se discutirá em Ec 12.1-7, em relação à questão da “prestação de con-
tas” (cf. Ec 11.9 e 12.1). Ela sintetiza o que se pretendeu afirmar até agora sobre a forma de
pensar do Ec acerca de fruição da vida, hedonismo e carpe diem. Recorde-se que os conceitos
de hedonismo e carpe diem são idênticos no que diz respeito ao cultivo do prazer, do viver co-
tidiano e da busca diária pela alegria, o que em si não bastaria para que se associe a esses ter-
mos algo de pejorativo. O problema de ambas as propostas é que elas partem do ser humano e
terminam nele, sem se preocuparem com objetivos de vida maiores, sem se questionarem so-
bre nada, apenas se dedicando ao mais fácil, àquelas atividades que dão a sensação mesmo
que ilusória – de liberdade e desvinculação de compromissos. É evidente que a idéia do carpe
diem encerra em si outros aspectos: não se deve perder tempo com elucubrações desnecessá-
rias e angustiantes sobre as grandes questões do universo, nem se deve viver somente em di-
reção à morte e sob o peso da “pequena missão diária cumprida” diante de pessoas mais pode-
rosas e controladoras. Mas o que falta nisso tudo é o que o Ec aponta na perícope 11.7-10, que
será analisada a seguir.
189
O v. 7 inicia com a constatação metafórica de que a luz é “doce”, e que faz bem estar
ao sol. Esta é a clássica associação entre luz e vida, escuridão e morte. O v. 8 começa a falar
da idade do ser humano de forma um pouco “solta”, sem que se saiba o que motiva o autor a
passar do assunto “doce luz” para a primeira admoestação que aparece agora: todos os dias do
ser humano devem ser vividos em alegria, mesmo que sejam muitos mas a morte é eterna:
“os dias de trevas serão muitos”. Poder-se-ia considerar o v. 7, então, uma introdução para o
assunto discutido a partir do v. 8? Pois aqui se opõem a luz e as trevas no sentido de vida lon-
ga / morte eterna. Não se podem delimitar os dias de trevas, assim como se podem contar os
anos de vida de uma pessoa.
Pode-se ler a expressão “ver a luz” como equivalente a “viver”, tal como em Ec 6.5;
7.11 e 3.4-20
389
. E, embora se diga logo após que os dias de trevas devem ser lembrados
sempre, isso não chega a formar um contraste sem solução: ao contrário, discute-se nestes
dois versículos a proposta do hedonismo e do carpe diem, contrapondo a essas concepções a
idéia de que é possível, sim, alegrar-se e ser feliz mesmo tendo em conta que os dias de trevas
chegarão: como esta perícope é uma antecipação de Ec 12.1-7, o arco que estrutura esta ar-
gumentação se completa em Ec 12.7: “... e o espírito volte a Deus, que o deu”. Ou seja: os di-
as de vida da pessoa podem ser muitos, mas fatalmente chegará a morte (os dias de trevas).
Mesmo assim, o ser humano não permanece nas trevas, e sim seu espírito, ao voltar a Deus,
reencontra a luz.
É esse aspecto que não aparece na proposta do hedonismo: aqui nem sequer se pensa
em trevas; busca-se esquecê-las e anestesiar os pensamentos tristes e negativos através da ale-
gria inconseqüente, que não tem forças para encarar o fato inelutável da morte. No entanto, “o
objetivo principal do ser humano não é comer, beber, etc., mas ser humano
390
, com todas as
implicações desse termo discutidas até aqui. Isso significa que aquela pessoa que sabe que
após a morte existe a possibilidade de voltar à luz de Deus também sabe viver na luz terrena,
diante do pano de fundo das trevas (a morte).
Outro aspecto importante, nesta perícope, é que ela não se dirige somente aos jovens:
embora o autor diga, em Ec 11.9: “alegra-te, jovem...”, a admoestação é para que a pessoa
cultive a alegria em todos os dias de sua vida. Nesse contexto, deve-se atentar para o uso que
389
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 518.
390
C. G. JUNG (org.), O homem e seus símbolos, p. 202.
190
o autor faz dos termos dias e anos: o ser humano vive “muitos anos”, enquanto os “dias de
trevas” serão muitos (Ec 11.7-8). Também em Ec 12.1ss. acontecerá isso, mas de maneira o-
posta: os “dias da juventude” dão lugar aos “anos dos quais se dirá: não tenho neles prazer”.
Observando bem, nota-se que, em Ec 11.7-8, a alegria e a luz estão associadas a anos, en-
quanto as trevas se sucedem em dias; em Ec 12.1ss., a velhice é metaforicamente denominada
dias da desgraça. Qual seria o sentido mais profundo desse jogo de palavras? Segundo Luis
Alonso Schökel, o termo
~Ay
(yom = dia) não se refere apenas ao dia claro, ou a uma de-
terminada quantidade de horas: “serve para formar múltiplas expressões temporais que signi-
ficam anterioridade ou posterioridade ou simultaneidade; duração absoluta ou em relação a
um limite...”
391
. Ou seja: os “dias da desgraça, das trevas” não podem ser entendidos como um
período de tempo finito. Esse tempo pode se estender o quanto necessário, até que “o espírito
volte a Deus”.
Por seu turno, o termo
hn\v\
(shanah = ano) é utilizado para definir literalmente
os anos passados, quer dizer, aquele período de tempo que o ser humano pode “medir” e cal-
cular
392
. O que o Ec pretende demonstrar com sua argumentação é que os anos de vida do ser
humano são finitos, enquanto os dias que se sucedem no universo são eternos. Na associação
entre os anos vividos à luz da alegria e os dias de trevas prevalece, portanto, o alerta de que a
morte é eterna, e sempre maior que a vida. Isso faz com que a vida tenha de ser tanto mais a-
preciada e cultivada, pois ela é mais breve e mais rara que a morte: a vida é dom divino, en-
quanto a morte é a anulação de tudo e a volta do sopro divino a quem o concedera (Ec 12.7).
A partir do v. 9, parece haver um pequeno discurso, dirigido principalmente às pessoas
jovens: fala-se em juventude e mocidade, e estimulam-se a intuição, a espontaneidade, a con-
dução de uma vida livre. Ao mesmo tempo, porém, reaparece a concepção teológica do Ec:
“de todas estas coisas Deus te pedirá contas”. Esta concepção é a que mais claramente desafia
o hedonismo grego e o carpe diem romano o autor do livro do Eclesiastes não admite uma
vida sem ser sob a lembrança do Criador e a responsabilidade e a seriedade daí decorrentes.
Seu recado é claro: faz o que tu queres, tudo parece ser permitido. Mas terás de assumir as
391
Luis ALONSO SCHÖKEL, verbete
~A
, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 271ss.
392
Ibid., verbete
hn\v\
, p. 685.
191
conseqüências mesmo que perante Deus –, quando chegarem “os anos maus”. Ou, como
se expressa a Ética dos Pais:
Mais carne, mais vermes; mais propriedades, mais cuidados; mais mulheres, mais feitiços,
mais concubinas, mais impudor; mais empregados, mais roubo. Mais Torá, mais vida; mais es-
tudo, mais sabedoria; mais indagação, mais discernimento; mais justiça, mais paz [...]
393
.
O v. 10 parece conter mais uma contradição ao usar a preposição
yKi
(ki’ = pois).
Mas essa contradição é esclarecida quando se interpreta a admoestação da seguinte forma: i-
nevitavelmente, o ser humano envelhece, e sua aparência jovem e bela se desfaz. Muitas pre-
ocupações e desgostos tornam a vida amarga. Um coração imerso em trevas chegamais -
pido a seu destino final, que pode não ser o que se imaginava. Então, que se afastem as trevas
do coração e se relativize a importância de parecer jovem e belo: tudo isso é vaidade, e mais
vale cultivar a alegria e o reconhecimento de que a vida está em Deus.
Agora, sim, o Ec está pronto para enfrentar sua maior aventura: começar a conscienti-
zar-se de que sua vida não é eterna, de que ele não sabe o que Deus tem reservado para ele e
de que o fim da vida está chegando. Embora o texto do livro do Eclesiastes não evidencie
perguntas co-mo: o que vem após a morte? Por que acaba a juventude? Por que é necessário
prestar contas a Deus? Como e quando vou morrer?, tem-se a impressão de que ele as fez a si
mesmo e agora as encara conscientemente, preparando-se para enfrentar o fim inevitável. Se-
gundo a ótica junguiana, esse passo no processo de individuação configura o sentido mais
profundo de todo o esforço investido no encontro do inconsciente com o consciente, embora
não necessariamente ele tenha de se dar somente ao final da vida, tal como acontece no livro
do Eclesiastes.
Com algum cuidado, poder-se-ia imaginar agora que o Ec está a um passo de encon-
trar o seu self; não somente porque o livro está chegando ao seu final (ao menos da maneira
como foi arranjado), mas porque é perceptível a evolução em seus pensamentos sobre vida e
morte, juventude e velhice, vaidade e profundidade das coisas. As duas admoestações mais
sérias desta passagem os dias de treva e a prestação de contas a Deus antecipam o que ele
realmente pensa do fim da vida e da morte. Mas não se encontram lamentos nem negati-
393
A. SZPICZKOWSKI, op. cit., p. 10 da Apresentação (por Izidoro Blikstein). Foi interessante descobrir que
o Pirkei Avot foi redigido entre 300 a.C. e 200 d.C., portanto numa época em que o Ec poderia ter tido co-
nhecimento dos fundamentos deste conjunto de ditos e sentenças que faz parte da chamada Lei Oral. Sua
proposta de ética parece combinar bastante bem com o que os “pais” de Israel defendiam afinal, o Ec não
combateu a totalidade das concepções de vida de sua época, e sim propôs alternativas mais realistas.
192
vismo nestas colocações: ao contrário, ele incentiva a fruição da vida especialmente no v. 9
e alerta para que não se perca tempo com buscas infrutíferas e elucubrações desnecessárias.
É preciso apenas saber viver, para estar preparado para morrer. E, como não se pode determi-
nar isso, é preciso estar preparado sempre. O segredo é este: a angústia existencial perde seu
poder se a vida for vivida de acordo com o que se espera num contexto de ética, responsabili-
dade e solidariedade.
No fundo, encontrar o self seria a culminância desse processo todo, não em nível
inconsciente/consciente, mas também no que diz respeito à vida diária. A pessoa que encon-
trou a si mesma e está pronta a conviver consigo mesma, encarando todas suas potencialida-
des e fraquezas, integrou sua psique. Com isso, ela naturalmente passa a conviver com as ou-
tras pessoas de uma nova forma, trazendo inúmeros benefícios ao seu entorno e provocando o
surgimento de um novo ambiente de paz e energia positiva. O self teria encontrado seu lugar
de manifestação, nesse caso, no último terço do livro do Eclesiastes, em que as considerações
sobre a morte vão perdendo espaço para a exaltação da vida e as admoestações sobre como
bem viver antes que seja tarde.
3.4.13 Ec 12.1-7 – o destino final junto a Deus
1
Lembra-te do teu Criador nos dias de tua juventude,
antes que venham dias maus,
e cheguem anos dos quais dirás: “não há para mim prazer neles”.
2
Antes que escureçam a luz e o sol, a lua e as estrelas,
e voltem as nuvens após a chuva;
3
no dia em que tremerem os guardas da casa e se curvarem os homens de força,
e pararem as moleiras porque são poucas, e escurecerem as que olham pelas janelas;
4
e se fecharem as portas da rua, ao diminuir a voz do moinho;
e alguém se levantar com o canto do pássaro, e emudecerem todas as filhas da canção;
5
também quando alguém temer alturas e levar sustos pelo caminho;
e florescer a amendoeira, e se arrastar o gafanhoto, e explodir a alcaparra;
6
porque o ser humano vai à casa de sua eternidade, e pranteadores circulam pelas ruas;
antes que seja retirado o fio de prata e se parta o copo de ouro,
e se quebre o jarro junto à fonte e se desfaça a roldana junto ao poço,
7
e o pó volte à terra de onde veio,
e o espírito volte a Deus que o deu.
Este poema sobre o envelhecimento e a morte inicia com a clássica admoestação refe-
rente à memória do Criador, “antes que venham os maus dias”. Para falar sobre estes dias, o
Ec se vale de uma série de metáforas
394
para descrever o processo de envelhecimento do corpo
394
“Tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto que ela
designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado;
193
humano, até chegar ao momento da morte, a qual, para ele, representa o rompimento da rela-
ção com Deus (Ec 12.6). É preciso analisar esta perícope passo a passo, para apreender todo
seu significado e seu potencial poético.
O v. 1 começa com o alerta “Lembra-te do teu Criador...”. Lembrar pressupõe uma
ação concreta, traduzida no cotidiano em atos positivos e de fruição da vida, para que a velhi-
ce não seja feita de “dias maus”, e sim de dias bons e abençoados. A palavra
^ya,r>AB
(bore’kha = teu Criador) oferece, porém, algumas dificuldades de interpretação. Conforme
Choon-Leong Seow, as vocalizações podem ser variadas, mudando o significado para “cister-
na” ou “fonte”; sua sugestão de leitura seria: lembra-te da fonte de tua juventude
395
. Mas falta
a expressão “nos dias de...”, o que já o afasta bastante do TM. Étienne Glasser propõe a
versão “cova”, derivada de
rAB
/
ra;B
(bôr / bār). O trecho teria então uma outra versão
e, com isso, outra interpretação: “Pensa em tua cova nos dias da tua mocidade...”, ou seja, é
recomendável que se tenha consciência do final da vida desde cedo, para que a morte não
seja assustadora e pareça vir no tempo errado
396
. Todo o versículo gira em torno da lembrança
do Criador, e chega-se à conclusão de que o “rei Qohelet” (Ec 1.1ss.) lamenta a fragilidade de
um projeto de vida que não levou Deus em consideração: a felicidade que ele busca, tal como
todas as pessoas, não pode ser concebida sem Deus
397
.
As variações sugeridas pelos outros comentaristas carecem de um nexo lógico com o
restante da perícope, uma vez que a temática central está na velhice como conseqüência de
translação. [Por metáfora, chama-se raposa a uma pessoa astuta, ou se designa a juventude primavera da vi-
da.]”. Dicionário Aurélio séc. XXI, CD-ROM, ed. 2004. Metáforas nesta passagem do Ec seriam, p.ex.,
“dias maus” para velhice, “portas da rua” para ouvidos etc., conforme se verá a seguir em detalhes. Esclare-
ce-se o uso do termo aqui para diferenciá-lo das expressões “símbolo”, ou “imagens simbólicas”, usadas por
muitos comentaristas; no entanto, esta expressão não é adequada para descrever as metáforas utilizadas pelo
autor do livro do Eclesiastes. Os símbolos “fornecem os meios através dos quais os conteúdos do inconscien-
te podem penetrar no consciente e são também, eles próprios, uma expressão ativa destes conteúdos”. Nor-
malmente, os símbolos têm a ver com imagens arquetípicas: o velho sábio, a bruxa, a roda, a cruz, o fogo etc.
Assim, não é possível encontrar, nesta perícope, algum símbolo no sentido junguiano, e sim a linguagem está
sendo usada metaforicamente para descrever objetos e imagens concretas. John HENDERSON, Os mitos
antigos e o homem moderno, in: C. G. JUNG (org.), op. cit., p. 151.
395
Choon-Leong SEOW, Ecclesiastes, p. 348.
396
Étienne GLASSER, O processo da felicidade por Coélet, p. 210-217. Por sua vez, Whybray sugere que se
poderia tratar de uma confusão, no momento da redação, entre verbos Lamed He e Lamed Aleph, tratando-se
simplesmente de um erro ortográfico. R.WHYBRAY, op. cit., p. 163.
397
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 531ss. Mesmo assim, o autor citado compartilha as o-
piniões acerca do possível jogo de palavras entre teu Criador”, “túmulo” e “cova”, no sentido de que se de-
va, sim, pensar na própria mortalidade enquanto se tenta fruir a vida.
194
uma vida plena, e não como antecipação da morte; a versão “Criador”
398
parece mais adequa-
da. De certa maneira, pode-se dizer que o ato de criação da vida, por Deus, foi metaforizado
nesta perícope como “fonte de vida”; este ato, aqui, é visto como primeiro, reportando à nar-
rativa do Gênesis (cf. Gn 1.1-24a); ele é considerado exclusivo e irrepetível, por ter organiza-
do o mundo a partir do “caos” (
Whbow| Whto
= tohu v
a
vohu: “sem ordem e vazio”).
Deus é o único ser que consegue criar a partir do caos, e por isso o verbo
ar|B|
(barā =
criar, Gn 1.1) é a raiz de “Criador”: criar cabe somente a Deus.
Os vv. 2-6 formam um bloco coeso, que descreve metaforicamente a degeneração do
corpo humano durante o envelhecimento. Além de mudanças no organismo, também são co-
mentados problemas de ordem psicológica: medo da altura e “sustos pelo caminho”, deriva-
dos das dificuldades de orientação e locomoção (v. 5).
A metáfora que lança mão dos corpos celestes para descrever o que acontece durante o
envelhecimento (v. 2) utiliza separadamente os termos “luz” e “sol”, e alerta para o mau tem-
po constante (a volta das nuvens após ter chovido
399
). Seow destaca que “luz” não é equiva-
lente a “sol”; já se diferencia dessa forma em Gn 1.4, em que a luz é chamada de “dia”, antes
da criação do sol
400
. O processo de envelhecer faz com que os dias pareçam mais “escuros”,
quando dentro do ser humano se apaga sua luz (tanto física quanto espiritualmente). Manfred
Lurker lembra que, para o AT, a escuridão não era apenas ausência de luz, mas sim algo ma-
terial e físico, tendo sido criada tal como fora criada a luz (Is 45.7: “Eu formo a luz e crio as
trevas...”)
401
. É por causa disso que a escuridão pode ser considerada também uma clara opo-
sição ao dia, e não somente o seu complemento natural, como se fosse a noite.
Por outro lado, sendo criação divina, a escuridão não pode se evadir do poder de Deus:
segundo 34.22; Sl 139.11ss e Is 29.15, ela não consegue ocultar nada diante de Deus, ape-
398
R. GORDIS (op. cit., p. 330) e James Crenshaw partilham da mesma opinião; este último cita a tripla inter-
pretação do Rabbi Aqiba: “Saiba de onde você vem (b’rk, sua fonte), para onde está indo (bwrk, seu túmulo)
e para quem você prestará contas (bwr’yk, seu Criador)”. James L. CRENSHAW, Ecclesiastes a commen-
tary, p. 185.
399
Cf. também Is 5.30. L. Schwienhorst-Schönberger destaca que o autor do livro do Eclesiastes não fala,
p.ex., em “pôr-do-sol” como imagem da escuridão noturna que normalmente se segue à claridade do dia: a
“volta das nuvens após a chuva” independe do momento do dia. L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER,
op. cit., p. 532.
400
C. L. SEOW, op. cit., p. 353.
401
Manfred LURKER, Wörterbuch biblischer Bilder und Symbole, p. 97.
195
sar de ele mesmo permanecer no “escuro”, ou seja, oculto
402
. O próprio Ec antecipa o v. 12.2
em 11.8: “[...] ainda que o ser humano viva muitos anos, que os desfrute todos, mas lembre-se
dos dias escuros, que serão muitos”. A escuridão também é o tema central na idéia das nuvens
que voltam após a chuva: não haverá dias “de sol” no fim da vida, se o ser humano não cuidar
de sua relação com Deus antes de envelhecer.
O último período do v. 3 é mais uma imagem que se refere à luz dos olhos: “as que o-
lham pelas janelas” parecem ser as habitantes de uma casa, que por algum motivo desapare-
cem do olhar de quem passa pela rua. Pensando no ser humano, a expressão “janelas do ros-
to/da alma” representa bem os olhos, e quando estas janelas se fecham, ficaria caracterizada a
crescente dificuldade de ver, quando não a cegueira, freqüente em pessoas de idade avançada.
A expressão “as portas da rua” (v. 12.4) também poderia ser incluída aqui, embora alguns
comentaristas sugiram que esta se refira aos ouvidos.
No v. 3, a questão da “greve das moleiras” também é digna de observações. A expres-
são utilizada é
Wj[emi yKi tAnx]Joh; Wlj.b|W
(ubat’lū hattohenot ki’
mi’
e
tū) = “... e cessarem as moleiras, porque são poucas”. Schökel traduz
lj;B\
como
“folgar, declarar-se em greve
403
”. O motivo aparente vem logo após: “porque são poucas”
404
.
Martin Luther prefere “moleiros”, trabalhadores que “estão ociosos por terem se tornado tão
poucos”
405
. A questão é saber por que alguém estaria ocioso por ficar sem companheiros para
trabalhar, quando, na verdade, seu serviço estaria acumulado. A idéia central parece ser ape-
nas a de que os dentes já não vencem a tarefa de mastigar alimento resistente, e assim acabam
caindo ou nem sendo mais usados como deveriam: outra característica do envelhecimento.
No v. 12.4, volta-se a falar no moinho =
hn|x]J;
(tahanah)
,
termo que, segundo
Schökel e também Baumgarten, é um hapax legomenon. Ele está diretamente ligado ao part
fem pl que define as/os “moleiras/os” (“as/os que moem”), porque a raiz de ambos os termos
402
Werner SCHMIDT, Gerhard DELLING, Wörterbuch zur Bibel, p. 131.
403
L. A. SCHÖKEL, op. cit., p. 98.
404
A Vulgata traduz como “... et otiosae erunt molentes inminuto numero”. Esta versão equivale à tradução do
latim do verbete “otiosa” por “sem trabalho, calmo, em paz, repousado, sossegado...”. Francisco TORRI-
NHA, verbete otiosa, Dicionário Latino-Português, p. 596.
405
“...und müßig stehen die Müller, weil ihrer so wenig geworden sind...”. Martin LUTHER, Die Bibel oder die
ganze Heilige Schrift, p. 653.
196
é
!xj
(tahan = moer, maçar, macetar, triturar)
406
. A menção repetida do moinho e dos ruí-
dos por ele provocados sugere que também a função auditiva é importante para o Eclesiastes,
e não do ponto de vista físico; nesta perícope várias menções à surdez crescente durante
o envelhecimento. Conforme Werner H. Schmidt e Gerhard Delling, saber ouvir é muito im-
portante para a sabedoria veterotestamentária, e ouvir corretamente pode até mesmo modificar
uma pessoa; por isso, é mais importante ouvir a admoestação dos sábios que o canto dos tolos,
conforme Ec 7.5
407
. As metáforas sobre o ouvir em Ec 12.1-7 têm a função de resgatar a im-
portância do ouvir “bem”, tanto no sentido físico da capacidade auditiva quanto no sentido
espiritual da sabedoria e da compreensão.
O v. 12.4 termina com “... e emudecerem todas as filhas da canção”. Esta bela metáfo-
ra para a surdez se refere ao aspecto físico, porém é possível interpretá-la também no sentido
da ausência da relacionalidade entre o ser humano e o mundo que o cerca. A surdez interrom-
pe a comunicação normal entre as pessoas e pode levar a mal-entendidos, levando o indivíduo
idoso à solidão. Por outro lado, a ausência de música, de diálogo, portanto de troca entre as
pessoas, poderia ser uma referência à ausência de Deus quando ele retira o sopro de vida.
Nesse caso, também a música, tal como a luz, seria um símbolo de vida abençoada
408
.
No v. 12.5, o termo
dqeV|
(shakked = “amendoeira”) pode ter associado o uso de
suas consoantes a outro vocábulo que significa explodir” (
dq;v;
), segundo Ludwig Koe-
hler e Walter Baumgartner
409
. Michael Zohary parte desta interpretação para referir-se à a-
mendoeira como “a primeira árvore que começa a florescer antes do final do inverno – por is-
so era considerada símbolo de pressa e precipitação”
410
. O tempo de floração seria de cerca de
um mês, quando a árvore se cobre de flores brancas que, ao longe, parecem nuvens brancas na
406
L. A. SCHÖKEL, op. cit., p. 258.
407
W. SCHMIDT, G. DELLING, op. cit., p. 302. Também na literatura egípcia registros, segundo A. Ba-
rucq: “Escúchame. ¿Ves? Bueno es para el hombre el escuchar. Obedece a la generosa luz y olvida los cuida-
dos”. André BARUCQ, Eclesiastés – Qohelet, p. 46. Esta versão do Diálogo de um desesperado com sua al-
ma, citada por Barucq em espanhol, foi retirada da tradução do egípcio para o francês de P. Gilbert, em 1949.
408
Edo OSTERLOH, Hans ENGELLAND, Biblisch-theologisches Handwörterbuch, p. 392.
409
Ludwig KOEHLER, Walter BAUMGARTNER, Lexicon in Veteris Testamenti Libros, p. 1007.
410
Michael ZOHARY, Die Pflanzen der Bibel, p. 66.
197
paisagem. Após este breve tempo, a árvore perde suas flores e aparecem os frutos castanhos,
fazendo com que a mesma paisagem, antes iluminada, se modifique
411
.
Além disso, as flores da amendoeira são tão brancas quanto os cabelos brancos da pes-
soa idosa. Assim se poderia entender o por quê da analogia: o tempo de floração é belo, claro,
anunciador de uma nova época, mas quando passa deixa atrás de si a escuridão. As flores
brancas aparecem e sugerem os cabelos brancos da pessoa idosa, e quando elas desaparecem,
o ambiente “escurece”. Os cabelos brancos podem ser o sinal de que a morte se aproxima,
uma vez que tudo o que vem depois deles representa escuridão.
No mesmo versículo, o termo
bg\x\
(hagav = “gafanhoto”) também é apresentado
como hapax legomenon. Vários comentaristas se referem à complexidade de seu uso neste
contexto, sugerindo a interpretação de membrum virile, ou do ato sexual que se torna um “pe-
so” para a pessoa envelhecida. Conforme Gordis, o Eclesiastes tinha plena consciência da im-
portância deste aspecto da vida, e certamente o deixaria de incluí-lo em sua descrição da
degeneração física
412
.
Por seu lado, Lurker afirma que o termo “gafanhoto” normalmente é um símbolo de
medo, terror, ameaça, como no caso da praga dos gafanhotos no Egito (Êx 10.12-15) ou na vi-
são apocalíptica dos gafanhotos (Ap 9.3-9). Além disso, dada a pequenez do animal, dizer que
ele é um fardo pode sugerir que até mesmo o menor esforço causa cansaço e tristeza ao anci-
ão. A imagem do gafanhoto pode evocar sentimentos contraditórios: quando se envelhece, e
muitas coisas se tornam difíceis de realizar, devido ao enfraquecimento geral do organismo.
Na seqüência, tem-se o termo
hn\AYbia]
(‘aviyonah
=
alcaparra). A sua tradu-
ção não é clara, uma vez que se trata de mais um hapax legomenon. Zohary diz que muitos es-
tudiosos traduzem aviyonah como capparis (arbusto da alcaparra), sem, no entanto, aprofun-
dar sua função ou seu significado nesta perícope. Por seu turno, Gordis e Whybray falam da
“baga do desejo”, a qual aparece em algumas versões da Bíblia inglesa; em português, temos
as traduções na forma de “comida que perde seu sabor”, “tempero que perde o gosto” etc.,
porque os botões de flor da alcaparra eram conservados em vinagre para temperarem a comi-
411
Ibid., p. 66.
412
Existe uma interpretação freudiana do gafanhoto enquanto símbolo fálico, “relacionado no contexto com o
enfraquecimento das atividades viris (um ‘peso’ para o ancião)”. R. GORDIS, op. cit., p. 336.
198
da. A alcaparra também era referida como afrodisíaco entre os povos do Antigo Oriente Pró-
ximo. Parece haver uma associação entre o “gafanhoto” e a “alcaparra” que expressa o cessa-
mento do desejo sexual na velhice: a pessoa idosa não tem mais energia para vivências no
aspecto da sexualidade, mesmo que seja animada através de meios diversos. Também nos en-
sinamentos sapienciais egípcios do Papiro Insinger encontram-se observações que associam a
alimentação à sexualidade nesta fase da vida:
Aquele para quem 60 anos passaram, para este tudo passou. Se o seu coração ama o vinho
– ele não consegue mais beber até a embriaguez. Se ele ama a comida ele já não conse-
gue mais comer como costumava. Se o seu coração deseja uma mulher já não (mais)
haverá um momento para ela
413
.
Schwienhorst-Schönberger sugere uma interpretação bem diferente do v. 5: o que se
apresenta é uma descrição referente a acontecimentos na natureza, durante a primavera e o ve-
rão, que não têm a ver diretamente com o corpo humano: a amendoeira floresce, o gafanhoto
se enche de comida e mais consegue arrastar-se, a alcaparra “explode” quando está madu-
ra. Essas imagens são o contraste vivo do que acontece no outono e no inverno (cf. v. 2). Des-
creve-se o ciclo natural da vida, que não é, porém, idêntico ao do ser humano: se a natureza
“morre” para refazer-se, a vida do ser humano se rompe em determinado momento, e lhe
resta entrar em sua “casa da eternidade” (v. 6)
414
. Esta interpretação reúne em si todos os ele-
mentos da comparação entre a natureza e a vida do ser humano, tirando um pouco do peso de
cada aspecto: ao invés de tornar símbolos a amendoeira, o gafanhoto e a alcaparra, ele se uti-
liza deles para incluir o ser humano no ciclo perene da vida. Mas, com isso, ele consegue de-
monstrar a fragilidade do ser humano diante da natureza e, não por último, diante de Deus.
No final deste versículo aparece a expressão
Aml[o tyBe
(be’t ‘olamō =
“casa
de sua eternidade”). Aqui destaca-se a múltipla interpretação do termo
ml;[o
(‘olam):
ele pode significar “longo tempo, duração, todo o tempo (vindouro) mas não no sentido filo-
sófico”, tal como “há muito tempo atrás, na antigüidade, desde sempre”
415
. L. A. Schökel am-
plia essa tradução, falando em “tempo ou duração indefinida ou incalculável, no passado ou
413
„Der, für den 60 Jahre vorbei sind, für den ist alles vorbei. Wenn sein Herz den Wein liebt er kann nicht
mehr bis zur Trunkenheit trinken. Wenn er das Essen liebt – er kann nicht mehr so essen, wie gewohnt. Wenn
sein Herz eine Frau wünscht – der Augenblick für sie kommt nicht (mehr)“. Citação do Papiro Insinger, apud
Willy SCHOTTROFF, Alter als soziales Problem in der hebräischen Bibel, in: Frank CRÜSEMANN et al.,
Was ist der Mensch...? Beiträge zur Anthropologie des Alten Testaments, p. 64.
414
L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., 534.
415
L. KOEHLER, W. BAUMGARTNER, op. cit., p. 688.
199
no futuro (...) ancestral, de antanho, vitalício, definitivo”
416
. Segundo o Midrash Rabbah, “a
palavra ‘olam significa mundo, idade, tempo distante [...] algo básico, algo no coração das
coisas, que Deus fez do começo até o fim”. O ser humano “não pode apoderar-se de ‘olam,
mesmo que este se encontre dentro dele”
417
.
A insistência em toda a gama de significados desta listagem extensa quer demonstrar a
importância do tempo, enquanto fenômeno que não se deixa colocar nos estreitos limites do
controle humano, da mesma forma como não se podem controlar os desígnios divinos: Deus,
o mundo e o tempo são elementos inalcançáveis para o ser humano, e por isso a morte é o
“caminho para a morada eterna”: ninguém sabe o que acontece depois de que se morre, mas
todo mundo sabe que a morte é um caminho sem volta, para um lugar desconhecido, num
tempo desconhecido.
A respeito da idéia de que a vida humana estava ligada a Deus pelo frágil “fio” do so-
pro divino, Marie-Louise von Franz cita uma antiga lenda judaica, na qual se relata a criação
de Adão, o primeiro ser humano, e sua relação com o cosmo:
[...] Deus, ao criar Adão, apanhou, inicialmente, dos quatro cantos do mundo, verme-
lho, preto, branco e amarelo, e assim Adão “se estendia de uma ponta à outra da terra”.
Quando se inclinava, sua cabeça ficava no leste e os pés no oeste. De acordo com uma
outra tradição judaica, a humanidade inteira estava contida, desde o seu início, em Adão,
o que significa que nele se encontravam todas as almas por nascer. A alma de Adão, por-
tanto, era “como o pavio de uma lamparina, composto de incontáveis fios”. Neste símbo-
lo está claramente expressa a idéia de uma unidade total da existência humana, além de
qualquer unidade individual
418
.
A idéia do ser humano como “pavio de uma lamparina” lembra a metáfora utilizada
pelo Ec, embora este se refira a um “fio de prata” (para segurar a lâmpada). Mas o valor de
um metal precioso como a prata pode ser comparado ao valor do poder da luz emanado de
uma lamparina
419
. De qualquer forma, parece estar claro que a idéia-base de ambas as metáfo-
ras está calcada na ligação com Deus pelo sopro divino. Quando esta ligação se rompe, o ser
humano morre. Crenshaw ainda anota que também Pv 13.9 utiliza esta metáfora para descre-
ver a morte do ser humano (no caso, o ser humano mau): “A palavra gullat [...] é usada em Pv
416
L. A. SCHÖKEL, op. cit., p. 483.
417
Robert ALTER, Frank KERMODE, Guia Literário da Bíblia, p. 303.
418
M.-L. von FRANZ, op. cit., p. 200.
419
Pode se tratar, talvez, da lâmpada de uma casa rica (cf. os elementos citados nos vv. 3-5), uma vez que lam-
parinas normalmente eram de argila, mais barata. L. SCHWIENHORST-SCHÖNBERGER, op. cit., p. 536.
200
13.9 como imagem de uma lâmpada que se apaga por causa da morte (w
e
nēr r
e
šā‘îm yid‘āk):
‘mas a lamparina do mau será extinta’”
420
. A mesma imagem se repete em Pv 24.20 e Jó 18.6.
Quanto à taça de ouro, é possível imaginá-la como o símbolo para a vida plena en-
quanto cheia; quando ela se rompe e seu conteúdo se derrama, é como se a vida se esvaísse do
corpo do ser humano. Manfred Lurker explica o objeto simbólico “bacia de ouro”, que apare-
ce também em outros contextos culturais do Antigo Oriente Médio, como “recipiente” que
apenas cumpre sua função quando está cheio; ao mesmo tempo, um recipiente pode ser sím-
bolo de geração (ou criação) de vida
421
, ou mesmo da proximidade de Deus
422
:
(...) o copo e a taça são recipientes com os quais o ser humano ingere o líquido necessário
à vida. Assim, o recipiente para beber se torna um meio de comunicação no sentido sim-
bólico: transmissor de vida, pelo fato de oferecer a cada ser humano a água (ou o sumo)
da vida segundo a sua medida
423
.
O autor do livro do Eclesiastes faz uso, neste versículo, de dois dos metais mais pre-
ciosos que se conhecia: a prata e o ouro. Na relação entre os dois, o ouro é mais valioso, e
dessa maneira é também associado a Deus (o recipiente que contém a vida), enquanto a prata
está mais próxima do ser humano (fio de ligação com o Criador). O restante do versículo cita
a roldana, que serve para erguer o balde de dentro do poço, e o jarro, que contém a água ti-
rada. A morte é representada quase que de uma forma trágica para o ser humano: quebrando-
se a roldana e o jarro, esvai-se a vida, por desfazer-se a possibilidade de buscar água na fonte,
ou seja, de preservar a vida. Com estas imagens, o v. 6 resume todas as perdas do ser humano
quando ele morre.
Em Ec 12.6 mais um termo de tradução controvertida: o verbo
qxer\ye
(ye-
raheq). Ambos os dicionários consultados sugerem a raiz
qxr
(rhq = tirar, eliminar, retirar).
A forma que aparece em Ec 12.6 seria um impf Nif’al 3
a
masc sing: “ser tirado, eliminado, re-
tirado”. Os dois dicionários indicam esta forma como hapax legomenon. Mas não é nada disso
que as versões em português consultadas
424
apresentam: sempre se traduz a forma verbal co-
420
“The word gullat occurs [...] in Proverbs 13.9 as the image of an extinguished lamp for death (w
e
nēr r
e
šā’îm
yid’āk), ‘but the lamp of the wicked will be extinguished’ “. J. CRENSHAW, op. cit., p. 188.
421
M. LURKER, op. cit., p. 116.
422
Marianne OESTERREICHER-MOLLWO (org.), verbete Becher, in: Herder Lexikon – Symbole, p. 25.
423
M. LURKER, op. cit., p. 42.
424
Bíblia de Jerusalém (BJ), Bíblia Pastoral (BP), Bíblia ed.rev. e atual. Almeida (ARA), Bíblia na Linguagem
de Hoje (BLH).
201
mo “romper” ou “rasgar”. Segundo Whybray, o texto massorético sugere um Qere com outras
consoantes: yerateq, que significaria “quebrar” ou “amassar”
425
. Gordis sugere a tradução “es-
destruído”
426
. De qualquer forma, o que se sugere aqui é que a relação com Deus se rompe
quando se morre – ou seja, após a morte nada mais espera o ser humano.
No v. 7, o uso que se faz da palavra
rp\[,
(‘afar = pó) reproduz a radicalidade do
relato da transitoriedade do ser humano (Gn 3.19: “pois tu és pó e ao pó tornarás”). Segundo o
Ec, o pó “tornará à terra de onde veio, enquanto o sopro divino voltará a Deus, que o deu” (Ec
12.7). O ser humano é novamente lembrado de sua fragilidade, e de que nada de todas as suas
obras permanecerá. E, mais que isso, além de ver que todo seu esforço terá sido em vão, o ser
humano deve perceber que ele mesmo é o elemento mais frágil de todo o conjunto da criação:
não há bens materiais suficientes que evitem o envelhecimento e a morte.
Crenshaw interpreta a “volta ao pó” como ausência de consolo. Para ele, a volta ao
é a expressão do pior que pode acontecer ao ser humano, porque o julgamento celeste não
permite defesas nem argumentos, diante de um Deus distante e dotado de poder para dar e ti-
rar vida
427
. No entanto, este é apenas um aspecto do morrer. O versículo finaliza com a pro-
messa de que o espírito voltará a Deus, que o deu – portanto, com o pó vão-se as vaidades ma-
teriais do ser humano, mas o espírito de vida terá seu lugar na “casa da eternidade” (v. 6), que
é o que de melhor poderia acontecer quando se morre:
Ao morrer, o pó volta à terra (cf. Gn 3.19) e o espírito vital (impessoal!) volta ao seu cria-
dor (cf. 12.1a). Para o indivíduo, a morte significa, portanto, o fim definitivo, enquanto
que, para a humanidade, a possibilidade do surgimento de uma nova vida (cf. 1.4)
428
.
Krüger entendeu um dos principais objetivos do Ec nesta perícope: se, inicialmente,
sua análise era bem pessoal (“eu era rei em Jerusalém”), o texto foi evoluindo até alcançar a
humanidade como um todo, sem privilegiar qualquer diferença entre as pessoas. Ao mesmo
tempo, esta última passagem é uma descrição tão realista que se diria autobiográfica, portanto
extremamente pessoal, voltada a si mesmo enquanto indivíduo. Acontece aqui uma dupla per-
cepção: o indivíduo está sozinho no mundo, mas, ao mesmo tempo, pode identificar-se com o
425
R. WHYBRAY, op. cit., p. 167.
426
R. GORDIS, op. cit., p. 337.
427
J. L. CRENSHAW, op. cit., p. 24.
428
„Im Tod kehrt der Staub zur Erde (vgl. Gen 3,19) und der (unpersönliche!) Lebensgeist zu seinem Schöpfer
(vgl. 12,1a) zurück. Für den einzelnen Menschen bedeutet der Tod deshalb das definitive Ende, für die
Menschheit die Möglichkeit der Entstehung neuen Lebens (vgl. 1,4)“. T. KRÜGER, op. cit., p. 356.
202
todo da criação. Sua morte é a morte de todas as pessoas, mas seu espírito voltará a Deus, e
este é o momento em que cumprirá seu caminho.
Finalizando a análise desta perícope, cabem as palavras de Hermann Hesse:
Qualquer um sabe que a idade avançada traz dificuldades e que em seu final se encontra a
morte. A cada ano a mais é preciso render sacrifícios e desistir de muitas coisas. É preciso
aprender a desconfiar de seus sentidos e de suas forças. O caminho que pouco parecia
um passeiozinho se torna longo e penoso, e chega o dia em que não se pode mais andar
por ele. Já não se pode mais apreciar a refeição que sempre fora a preferida. As alegrias e
fruições físicas se tornam mais raras e m de ser pagas cada vez mais caro. E mais todas
as doenças e enfermidades, o enfraquecimento dos sentidos, a paralisia dos órgãos, as
muitas dores, principalmente durante as noites, tantas vezes longas e sofridas – não se po-
de negar tudo isso, é a amarga realidade. Mas seria pobre e triste entregar-se unicamente a
esse processo da decadência e não reconhecer que também a idade avançada tem seu lado
bom, suas vantagens, suas fontes de consolo e alegrias. Quando duas pessoas idosas se
encontram, elas não deveriam ficar falando apenas de sua maldita gota, dos membros en-
rijecidos e da falta de ar ao subir escadas, elas não deveriam compartilhar apenas seus so-
frimentos e amarguras, mas também seus acontecimentos e suas experiências divertidas e
consoladoras. E há muitas delas
429
.
Do ponto de vista da análise junguiana, esta perícope parece ser, de fato, o ponto de
culminância de todo o livro do Eclesiastes, embora a maioria dos pesquisadores bíblicos prefi-
ra não se ater por demais a ela, colocando vários empecilhos à frente de sua interpretação. A
quantidade de metáforas, de leitura múltipla, cria divergências e inseguranças acerca de como
compreender este poema.
Percebe-se, no entanto, que o Ec chegou ao ponto que esperava, após a longa cami-
nhada de uma vida intensa e cheia de conflitos e reflexões por vezes amargas. E, embora o
fim da vida possa ser escuro e difícil, pontuado por todos os incômodos listados, existe uma
certeza: o espírito volta a Deus, que o deu. Para alguém que começou sua viagem interior des-
crevendo-se como sábio e rei em Jerusalém, detentor da maior sabedoria do mundo, conquis-
429
„Jeder weiß, daß das Greisenalter Beschwerden bringt und daß an seinem Ende der Tod steht. Man muß Jahr
um Jahr Opfer bringen und Verzichte leisten. Man muß seinen Sinnen und Kräften mißtrauen lernen. Der
Weg, der vor kurzem noch ein kleines Spaziergängchen war, wird lang und mühsam, und eines Tages können
wir ihn nicht mehr gehen. Auf die Speise, die wir zeitlebens so gern gegessen haben, müssen wir verzichten.
Die körperlichen Freuden und Genüsse werden seltener und müssen immer teurer bezahlt werden. Und dann
alle Gebrechen und Krankheiten, das Schwachwerden der Sinne, das Erlahmen der Organe, die vielen
Schmerzen, zumal in den oft so langen und bangen Nächten all das ist nicht wegzuleugnen, es ist bittere
Wirklichkeit. Aber ärmlich und traurig wäre es, sich einzig diesem Prozeß des Verfalls hinzugeben und nicht
zu sehen, dauch das Greisenalter sein Gutes, seine Vorzüge, seine Trostquellen und Freuden hat. Wenn
zwei alte Leute einander treffen, sollten sie nicht bloß von der verfluchten Gicht, von den steifen Gliedern
und der Atemnot beim Treppensteigen sprechen, sie sollten nicht bloß ihre Leiden und Ärgernisse
austauschen, sondern auch ihre heiteren und tröstlichen Erlebnisse und Erfahrungen. Und deren gibt es
viele“. Hermann HESSE, Lebenszeiten, p. 226.
203
tador de todos os bens imagináveis, adorado por mulheres e súditos, pareceria impossível ter-
minar sua vida com a simples constatação de que Deus existe e está presente até mesmo
quando tudo se rompe. O “fio de prata”, a “taça de ouro”, a “roldana junto ao poço”: estas me-
táforas ganham seu pleno significado no discurso final do Ec. Agora, nada mais faz dife-
rença; após os esforços vãos da velhice, representados na falta de ação do gafanhoto e na falta
de efeito da alcaparra, e após os lamentos das carpideiras, resta a tranqüilidade de voltar à ori-
gem. Não será esse o verdadeiro sonho oculto de cada indivíduo, simbolizado em tantas for-
mas por todo o mundo afora? A derradeira viagem rumo ao túmulo definitivo representa tam-
bém um grande alívio, embora seja tão temida enquanto não se está preparado para ela. O Ec,
por sua vez, parece estar preparado mas porque ele sabe que, no final, Deus estará espe-
rando.
Na ótica de Jung, o importante não é somente saber que alguém (no caso, Deus) está
acolhendo a pessoa que morre, ou ter a tranqüilidade de que, em algum lugar, haverá “paz e-
terna” ou seja o que for, para quem morre. A morte pode também ser simbólica, quando, do
ponto de vista psíquico, encerra-se um determinado modo de vida e abre-se espaço para uma
nova alternativa. Isso pode se dar no nível do inconsciente, quando a pessoa percebe quem ela
era até então, e decide iniciar o processo de individuação, com vistas à integração plena de
sua psique. Mas também as perdas por ela sofridas desde a morte de pessoas queridas, a
perda de um projeto de vida muito importante, ou do emprego, ou outras situações de luto
profundo representam rupturas que têm um peso sobre a psique equivalente à dor causada
pela passagem da morte. É a partir destes fatos que a pessoa tem de aprender a reestruturar-se,
para, finalmente, dirigir sua vida rumo a novas possibilidades de paz espiritual, tanto consigo
mesma quanto com as outras pessoas.
No caso do Ec, não fica claro qual o desfecho de seu processo de construção da perso-
nalidade. A descrição que ele faz da velhice e a antecipação da morte deixam entrever que, no
fundo, ele continua inquieto e sem saber como será sua própria morte; ou melhor, se sua mor-
te será tão tranqüila e abençoada quanto ele desejaria. Talvez seja importante perceber que a
admoestação do v. 1 é o ponto de partida para sua reflexão como um todo: a morte pode per-
der boa parte de seu terror se a vida for bem vivida. Não há sustos na ida ao desconhecido
quando se tem a certeza da acolhida. E é possível alcançar isso quando se toma a decisão de
conduzir a vida segundo padrões éticos, solidários e com a base na consciência de que, por
trás de tudo o que acontece, está o Criador, a quem se tem de prestar contas, mas que também
204
abençoa e protege. Em termos junguianos, poderia ser este o alvo maior do processo de indi-
viduação: a verdadeira sabedoria está em ser humilde diante de morte e vida e em saber viver
cada dia com sua própria alegria e dignidade.
205
CONCLUSÃO
A Introdução deste trabalho teve a intenção de preparar o tema principal da tese: uma
releitura do livro do Eclesiastes com o auxílio da psicologia profunda nos moldes de Carl G.
Jung, apresentando uma discussão sobre a problemática da morte e as diversas formas que o
ser humano criou para lidar com o assunto. Através dos tempos, várias foram as tentativas de
suprimir os sentimentos negativos inspirados pela morte, desde a proposta clássica do carpe
diem romano e do hedonismo grego, com relação à fruição da vida, até as modernas alternati-
vas oferecidas por uma mídia a serviço da comunicação de massa e da superficialidade, exal-
tando a vida imediata e fugaz. Tudo isso para que o ser humano esqueça de sua mortalidade
inelutável e de seu sofrimento, cuja intensidade advém do fato de ele não saber por que nem
quando vai morrer. Um dos elementos mais firmemente ancorados na psique humana é a pre-
ocupação com a morte, acompanhada pela busca do sentido da vida e pela pergunta acerca do
que acontecerá “depois”. Depois de tudo o quese estudou a respeito, parece que nada resta,
por um lado, senão um conformismo apático; por outro lado bem mais difícil –, coloca-se
como alternativa a busca da construção de uma personalidade que não dependa da solução
desses problemas para sentir-se realizada, no convívio saudável com as pessoas e na em
Deus, sem que isso tome ares de alienação e distanciamento irreal do mundo.
Estas seriam soluções simples, à primeira vista, não existisse o desafio inevitável,
constante, da violência que causa a morte estúpida e injustificada. A violência parece ser mais
cruel ainda quando consegue assumir rostos diversos e disfarçados, de forma que muitas ve-
zes não é identificável: agressão verbal, visual, auditiva via mídias de todos os tipos, ideologi-
zação do aparente livre-pensar, alienação mesmo através dos costumes diários (formas de a-
limentar-se, de trabalhar, de passar o tempo livre etc.).
As citações de autores e autoras de tempos modernos, apresentadas na Introdução, pre-
tenderam mostrar que essas questões não têm solução nem mesmo num mundo tão esclareci-
do e tecnicamente administrável como o de hoje, porque não se encontrou ainda uma resposta
razoável e satisfatória para elas. Na estruturação deste trabalho, percebeu-se que a discussão
se esgotaria em si mesma se não houvesse um enriquecimento do diálogo entre a Bíblia e o
206
mundo secular, mostrando potencialidades inesperadas que pudessem atingir mais pessoas e
familiarizá-las de uma nova maneira com o estilo e os conteúdos bíblicos. Ressalte-se nova-
mente a preocupação em evitar associações improváveis e muito soltas para comprovar de-
terminadas intenções. Mas é fato que muitas pessoas na atualidade estão se reaproximando de
conteúdos bíblicos em busca de auxílio para seus problemas individuais, ou mesmo para rein-
terpretá-los numa nova ótica até mesmo no campo da fruição artística. Vejam-se os exemplos
abaixo:
o novo
não me choca mais
nada de novo
sob o sol
apenas o mesmo
ovo de sempre
choca o mesmo novo
430
Este primeiro texto está localizado no final do séc. XX e evidencia a postura de seu
autor diante da vida: parafraseando o texto bíblico e mesmo ironizando-o, ele joga com dois
elementos opostos o ovo e o mesmo. Isso porque o ovo é uma das fontes de vida, portanto
criador de algo novo, concretização da expectativa da novidade. Mas, para este autor, o
“mesmo ovo” choca apenas o “mesmo novo”, constatação similar à dos dois primeiros capítu-
los do livro do Eclesiastes. Em outras palavras, neste mundo não novidade digna de ser as-
sim considerada: “uma geração vai, outra geração vem” (Ec 1.4), e há que se conviver com is-
so. Também outro jogo de palavras com o verbo “chocar”, em duas acepções bem diferen-
tes, que mostram essa posição do autor. Este é também um dos principais temas do livro do
Eclesiastes como um todo.
O segundo texto é anterior ao primeiro em cerca de trinta anos; ele reflete outro aspec-
to importante do livro do Eclesiastes: a busca pelo sentido da vida.
Sidarta, filho de um brâmane, descobre Buda, mas não se contenta em apenas servi-lo
como discípulo: precisa encontrar um destino para si mesmo. Para alcançar esse propósi-
to, segue um caminho tortuoso que o leva, através de um sensual caso amoroso com uma
cortesã, da tentação do sucesso e das riquezas e de um conflito emocional com seu pró-
prio filho, à renúncia final e à autocompreensão
431
.
430
Paulo LEMINSKI, Caprichos e relaxos, p. 34. – O grifo é da autora do trabalho.
431
Hermann HESSE, Sidarta, nota da contracapa 4.
207
Esta resenha sobre o livro Sidarta, de Hesse, repete quase que fielmente o caminho
percorrido pelo autor do livro do Eclesiastes (guardadas as devidas proporções). De fato, Si-
darta é a descrição da construção de uma personalidade, tal como sugere Jung, e tal como a-
conteceu com o suposto autor do livro do Eclesiastes. Talvez o termo mais importante nesta
citação seja a “autocompreensão”, básica para se aprender a lidar consigo mesmo e começar a
re-construir-se em direção a novos propósitos de vida e a uma integralização do ser.
Metodologicamente, a Introdução teve o intuito de organizar a discussão na seqüência
dos três capítulos que compõem a tese: a apresentação do Eclesiastes enquanto pressuposto
autor do livro, a psicologia profunda, tal como proposta por Carl G. Jung, e a prática exegéti-
ca, como passos para compreender e interpretar os textos bíblicos escolhidos. Entre o primeiro
e o terceiro capítulos, a psicologia profunda serviu de ponte entre a contextualização históri-
co-geográfica do texto estudado e sua análise segundo os métodos tradicionais da pesquisa bí-
blica. A seguir, demonstrar-se-ão as conclusões a que se chegou em cada uma das etapas.
1. De lá para cá
Para chegar a um nível adequado na profundidade da interpretação e da análise, basea-
das no método histórico-crítico e na psicologia profunda, foi necessário contextualizar os tex-
tos bíblicos selecionados em sua época e seu lugar de surgimento. Então se constataram vários
matizes dignos de serem revistos: na área social, o livro do Eclesiastes mostra situações que
remetem constantemente ao mundo atual, dadas as características imutáveis dos fenômenos de
convivência humana, tanto os positivos quanto os negativos. A opressão, a dominação, a ex-
ploração, a propensão à morte apenas adquirem outra roupagem, intensidades variadas, níveis
diversos de gravidade, mas são partes inerentes ao comportamento humano. Tanto no séc. III
a.C. quanto no séc. XXI d.C., os desafios à convivência são os mesmos. Apesar disso, existem
também as pequenas alegrias diárias: o comer e o beber e o alegrar-se com as pessoas amadas,
principalmente quando a fruição de tudo isso é o resultado de uma mente livre, tranqüila e e-
quilibrada.
As duas questões que perpassam o livro do Eclesiastes foram tomando corpo através
dos tempos: a morte e a busca pelo sentido da vida precisam de uma solução. O que o Ec pro-
põe é a fruição da vida, num modo de viver que não se reja somente pelos objetivos terrenos
de prazer (carpe diem / hedonismo), mas que procure preservar a relação com o Deus Elohim.
Nestes escritos, trata-se Deus por esta designação para evidenciar que essa relação não é, ne-
208
cessariamente, a de um “pai” para com os seus “filhos” ou com o seu “povo” o que seria o
caso do uso do termo Yhwh; trata-se de uma relação entre sujeitos independentes, numa dis-
tância saudável e nada paternalista, em que o ser humano tem o direito de viver como bem lhe
aprouver, mas tendo em mente que “de tudo isto Deus pedirá contas” (Ec 11.9). Em termos
bem gerais, chegou-se à conclusão de que o livro do Eclesiastes não prega o pessimismo e o
desengano, embora faça de seus questionamentos a linha-mestra de sua argumentação. Ele
busca a real satisfação das necessidades vitais cotidianas, extraindo delas também algum pra-
zer mais espiritual, de solidariedade, convívio e fruição a partir da memória do Criador, cons-
tante em seu viver. Jörg Sieger resume assim seus estudos sobre o livro do Eclesiastes:
Para não chegar a conclusões equivocadas acerca deste livro, é preciso considerar, em to-
dos os casos, que o livro do Eclesiastes como um todo tem o caráter de uma obra de tran-
sição. Ele forma apenas um degrau no desenvolvimento religioso de Israel e, por isso, não
pode ser avaliado sem a ligação com o precedente e com o que se segue a ele. Pelo fato
de o Ec ressaltar a insuficiência do imaginário antigo e forçar uma discussão sobre os as-
pectos misteriosos do ser humano, ele persiste na busca por uma resposta. E se ele ensina
que o ser humano não deve se entregar aos bens terrenos, e que agarrar-se às coisas deste
mundo não vale a pena, ele já se aproxima bastante da resposta que será formulada mais
tarde. A crença numa retribuição para além da realidade terrena já se encontra palpável
aqui. Ela ainda não está expressa no livro do Eclesiastes. Esse passo o autor do livro ain-
da o consegue dar. Esta resposta será formulada apenas na reflexão teológica posterior
do judaísmo e, principalmente, no Novo Testamento
432
.
2. Regiões intermediárias
O segundo capítulo da tese ocupou-se das características da psicologia profunda e suas
possibilidades de aplicação na vida cotidiana do indivíduo, segundo a proposta do psiquiatra
suíço Carl G. Jung. Verificou-se que o mérito desta proposta consiste em ampliar o foco das
atenções sobre o inconsciente humano, libertando-o das limitações impostas pela considera-
ção exclusiva da sexualidade e trabalhando, entre outros componentes da psique humana, os
sonhos do indivíduo, segundo uma ótica que levasse em conta todos os aspectos de manifesta-
432
„Um aus diesem Buch keine falschen Schlußfolgerungen zu ziehen, muß man auf jeden Fall berücksichtigen,
daß das Kohelet-Buch insgesamt den Charakter eines Übergangswerkes trägt. Es bildet nur eine Stufe in der
religiösen Entwicklung Israels und darf daher nicht losgelöst vom Vorhergehenden und Nachfolgenden be-
urteilt werden. Dadurch, dKohelet das Ungenügen der alten Vorstellungen hervorhebt und zu einer Aus-
einandersetzung mit der Rätselhaftigkeit des Menschseins zwingt, treibt er das Suchen nach einer Antwort
weiter. Und wenn er lehrt, dder Mensch den irdischen Gütern nicht verfallen soll, und daß sich Klammern
an die Dinge dieser Welt nicht lohnt, dann ist er von der Antwort, die später formuliert wird, gar nicht mehr
weit entfernt. Der Glaube an eine Vergeltung jenseits der irdischen Wirklichkeit ist hier schon zum Greifen
nahe. Ausgesprochen wird er im Buch Kohelet noch nicht. Diesen Schritt vermag der Autor des Buches noch
nicht zu gehen. Formuliert wird diese Antwort erst in der nachfolgenden theologischen Reflexion des Ju-
dentums und dann vor allem im Neuen Testament“. Jörg SIEGER, Spezielle Einleitung in das Alte Testa-
ment. Disponível em http://www.joergsieger.de /bibel.html, acesso em 18 mar. 2004.
209
ção do inconsciente (neste caso, foram apresentados três arquétipos essenciais: a sombra, o
animus/a anima e o self). Para o presente trabalho, a questão dos sonhos não foi fundamental,
visto que os três arquétipos pesquisados eram suficientes para representarem o caminho de
construção da personalidade, ou o chamado processo de individuação. Tampouco se estudou a
conhecida classificação junguiana das personalidades extrovertidas e introvertidas, com todos
os seus matizes, uma vez que, para compreender o Eclesiastes, esse conhecimento não seria
imprescindível. Ressaltaram-se a semelhança encontrada entre a visão de Deus que era com-
partilhada por Jung e pelo Eclesiastes, assim como a preocupação com as questões éticas e de
convívio humano e solidário. Neste capítulo também puderam-se constatar semelhanças entre
a proposta de Jung e uma determinada corrente da produção literária européia do pós-guerra,
p.ex. nas obras do escritor alemão Hermann Hesse, várias vezes citado a partir deste estágio
da pesquisa.
O assunto em si – morte e fruição da vida – é tão presente na história do ser humano e,
por conseguinte, no inconsciente coletivo, que uma mera pesquisa bibliográfica, sem um apor-
te prático da área da psicanálise, não lançaria novas luzes sobre todas as preocupações que ele
provoca. O que se buscou apresentar de novidade, aqui, foram as alternativas propostas por
duas fontes espacial e temporalmente muito distintas, mas de certa maneira semelhantes em
sua profundidade. Além disso, buscou-se trazer uma nova proposta de como lidar com o texto
bíblico, inserindo-o no rol da literatura geral e levantando um pouco o u do “sagrado e nu-
minoso”, sem com isso desmerecer-lhe a definição de “palavra sagrada, inspirada por Deus”.
Essa proposta firma-se na constatação de que, em todas as épocas, muitas pessoas utilizaram
os versos analisados para expressarem, à sua maneira, as manifestações dos elementos básicos
da psique humana. De certa forma, isso confirma a suspeita de Jung de que há um inconscien-
te coletivo, que é sensível ao mesmo tipo de fenômeno afetivo-emocional e de provocação ex-
terna dos sentidos e das sensibilidades em todas as pessoas. Assim, também o Ec estaria mani-
festando expressões desse inconsciente, de uma maneira que se procurou confirmar na análise
de determinadas perícopes de sua autoria.
3. Do lado de cá
O lado de da ponte em construção está alicerçado em duas bases: a confirmação da
hipótese de que o livro do Eclesiastes tem um fio condutor que organiza sua argumentação, e
a suspeita de que seu autor tenha passado por um processo de individuação, ainda que em ní-
vel inconsciente, ou ao menos não pretendido conscientemente. Para verificar ambas – hipóte-
210
se e suspeita é que se selecionaram algumas perícopes que estariam demonstrando essa teo-
ria. O simples fato de as perícopes selecionadas aparecerem exatamente na ordem do texto
como um todo deixou entrever que o fio condutor de fato existe: elas começam falando so-
bre a morte que faz tudo parecer vaidade e esforço vão, e alegrias tão simples quanto o comer
e o beber são pequenos consolos para a aparente falta de perspectiva.
No entanto, existe um crescendo no livro como um todo: a proposta de comer e beber
vai incluindo mais elementos, como a fruição da companhia de pessoas amadas e o prazer no
trabalho digno, além do convite à festa diária. Tudo isso culmina com a preocupação por uma
velhice digna, à luz da lembrança do Criador, e que pode levar a uma morte tranqüila e aben-
çoada, se o ser humano se der conta que tem de prestar contas a Deus e viver uma vida ética e
agradável aos seus olhos.
Por outro lado, também a idéia da morte vã vai perdendo seu terror e seu pessimismo:
os seres humanos são mortais e ninguém conhece os desígnios divinos. Mas isso não pode le-
var a um desengano apático e sem energia. A vida tem de ser aproveitada diariamente, mesmo
e principalmente em face da morte. Não se sabe o que acontece após a morte, e nem o Ec se
preocupa com isso. Basta saber que “o espírito volta a Deus, que o deu” (Ec 12.7).
A força interior demonstrada pelo autor do livro do Eclesiastes na evolução de seus
textos reflete a teoria junguiana acerca da capacidade que todo ser humano tem de investir na
construção de sua personalidade, às vezes até na reconstrução, conforme seu tipo de conflito
interior. Assim como o Ec se debruça sobre seu passado, apresentando-se à guisa de autobio-
grafia até chegar à velhice, Jung propõe o resgate da pessoa em meio à chamada crise da
meia-idade, quando vão surgindo todas as perguntas que também o Ec se coloca. Dessa for-
ma, a releitura do livro do Eclesiastes a partir do viés hermenêutico junguiano abre muitas
portas para uma interpretação facilitada e compreensível, o que incentiva a fruição da leitura
do texto bíblico como um todo.
4. Perspectivas
O terceiro capítulo do trabalho pretendeu ser a culminância de todos os caminhos que
levaram até este ponto. O objetivo era demonstrar que o autor do livro do Eclesiastes pode ter
passado por um processo de individuação de maneira mais ou menos consciente, na medida
em que ele buscava a verdadeira sabedoria para enfrentar melhor a vida e encarar a velhice
com mais serenidade. Buscou-se uma resposta para esta questão nos moldes de “um método
211
interpretativo que, em função das conclusões a que se chegou neste ponto da pesquisa, […]
possibilite e intente uma nova autocompreensão do leitor a partir do texto”
433
, ou seja: que o
leitor se torne outro, evoluindo e aprendendo a conhecer-se através do texto ao perceber seme-
lhanças e desafios com relação à sua própria história de vida.
Se esse tiver sido o caso, é possível reler o livro do Eclesiastes sob outra ótica, fazendo
dele um auxiliar em terapias psicanalíticas e mesmo em trabalhos de grupos que se dispõem a
ler a Bíblia e dela extrair seu apoio e sua ajuda para a resolução de muitos problemas. A Bí-
blia é, além de palavra inspirada por Deus, obra de seres humanos, portanto obra literária, his-
tórica, geográfica, religiosa, filosófica e, não por último, psicanalítica. Não se trata de ler “pa-
ra dentro dela” todos esses aspectos, e sim de reconhecer todas as suas potencialidades, para
além de um tipo de texto que parece ser relegado, na maioria das vezes, ao uso interno em ce-
lebrações religiosas ou encontros centrados nas atividades da Igreja, seja qual for sua confis-
são.
Esta pesquisa pretendeu, ao contrário, propor uma inserção do texto bíblico em todos
os âmbitos da vida, tornando sua leitura prazerosa e acessível, fazendo com que as pessoas
consigam identificar-se com sua mensagem e percam o medo de manuseá-la e lê-la sistemati-
camente. O problema da tradução e interpretação da Bíblia ainda está longe de ser resolvido, o
que provam os múltiplos grupos religiosos das mais diversas denominações, que usam e abu-
sam do texto bíblico das formas mais irresponsáveis para chamar a si novos adeptos. Isso se
consegue jogando com a sensibilidade, a fragilidade e o medo das pessoas. Por isso, o aspecto
do medo da morte e do morrer foi tão destacado na Introdução deste trabalho. Quando esse
medo perde seu poder, também perdem o poder aquelas pessoas que pretendem saber mais do
que a Bíblia diz e do que as outras pessoas realmente necessitam.
Libertar as pessoas do medo é algo impossível. Mas é possível atenuar o sofrimento, a
solidão, o vazio e o desespero. Existem muitas alternativas válidas, importantes e genuínas
para tanto. A proposta do presente trabalho foi a de tornar o texto bíblico acessível com o au-
xílio da psicanálise e de uma pesquisa literária, estilística e teológica consistente, que dê valor
ao texto em si e confira segurança a quem o lê. Com isso, tentou-se integrar o passado e o pre-
sente, o antigo e o moderno, o religioso e o secular, rumo a uma integralização do ser humano
433
„[…] eine Methode der Auslegung, die […] ein neues Selbstverständnis des Lesers vom Text her ermöglicht
und beabsichtigt […]“. Eugen DREWERMANN, Tiefenpsychologie und Exegese, v. 1, p. 59.
212
que transcenda suas limitações naturais e, mais ainda, aquelas impostas por uma sociedade
cada vez mais fragilizada e enferma. A Bíblia em sua totalidade serve para qualquer pessoa,
em todos os tempos e todas as situações, e freqüentemente é o único apoio válido, dada sua
consistência e sua característica primordial, que é a de atingir a essência mesma do ser.
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