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OBRAS
DE
JÚLIO DINIS
VOLUME I
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JÚLIO DINIS
OBRAS
DE
JULIO DINIS
VOLUME I
AS PUPILAS DO SR. REITORA MORGADINHA
DOS CANAVIAIS UMA FAMÍLIA INGLESA
OS FIDALGOS DA CASA MOURISCA
LELLO & IRMÃO —EDITORES
144. RUA DAS CARMELITAS —PORTO
A propriedade literária e artística
está garantida em todos os paises
que aderiram à Convenção de Berna.
Em Portugal, pela Lei de 18 de
Março de 1911. No Brasil, pela Lei
n.° 2 577 de 17 de Janeiro de 1912.
ARTES G R A F I C A S PORTO
que sobressai a figura máxima e aliciante dea de Queirós, com
os seus romances de crítica, mordaz e irónica, a certos meios lis-
boetas e provincianos.
*
Júlio Dinis perdeu os carinhos de sua mãe, aindao tinha S anos.
Vitimou-a uma terrível doença, a tuberculose pulmonar. Da mesma
doença viriam a morrer quase todos os seus irmãos.
Em 1855, tinha Júlio Dinis apenas 16 anos, faleceram dois dos
seus irmãos, Guilherme e José Joaquim Gomes Coelho, um já médico
e outro engenheiro ; vitimados ambos pela mesma doença. Muito devia
ter custado a Júlio Dinis, ao seu coração bondoso e impressionável, a
morte dos irmãos, especialmente a de José Joaquim! É que este seu
irmão foi quem o acompanhou sempre nos primeiros estudos, com
muito carinho e abnegação.
De suae é de crer que Júlio Dinis guardasse, para sempre,
uma saudade imensa, profunda, sentida. Essa saudade manifestou-a
bem na sua constante e reconhecida melancolia ; e também nalgumas
das suas mais adoráveis heroínas, que também cedo tinham perdido
os carinhos de mãe, carinhos insubstituíveis.
Por outro lado seu pai, que era um médico que gozava de muita
estima e consideração, tinha no entanto um carácter austero, frio, con-
centrado ; era de poucas palavras. Houve sempre, nas relações entre
pai e filho, um certo retraimento.
Sando Júlio Dinis descendente de ingleses, pelo lado materno,
o é de admirar que o seu laro fugisse muito às características,
às ambiências dum home da burguesia inglesa que mais tarde muito
lhe haviam de lembrar, ao descrever interiores, cenas e figuras do
romance uma Família Inglesa.
Talvez também devido à mesma ascendência, cedo Júlio Dinis
se dedicou à leitura de novelas e romances de escritores ingleses,
particularmente de Dickens e Tackerey. Decerto também leu e releu
algum Balzac. E manteve relações de amizade e convivência, desde
bastante novo, com o poeta portuense Soares de Passos, da escola
ultra-romântica.
Tudoo motivos, circunstâncias, cambiantes, pequenos nadas ou
grandes factos, que bem podem explicar e dar a conhecer, com certa
exactidão, com muita claridade, como se fez e explanou a educação e
a evolução artística e literária de Júlio Dinis.
Sendo filho de um cirurgião de larga clientela, especialmente
nos bairros ribeirinhos do Porto e de Vila Nova de Gaia, também diri-
giu os seus estudos para as ciências médicas. E frequentava o Z.° ano,
da então Escola Médico-cirúrgica do Porto, quando teve a primeira
hemoptise, primeiro anúncio da tuberculose pulmonar, que muito
o devia ter sucumbido. Ainda estaria viva a lembrança, dolorosa lem-
branca, da perda de suae e da morte recente de seus irmãos, todos
com a mesma doença.
Porém o seu espírito era forte. Era novo, tinha esperança em
melhores dias. Talvez acreditasse mesmo no milagre de uma cura.
Soube resistir e procurar, em obras literárias, certa distracção e con-
forto para o seu espírito triste e melancólico, cheio de ansiedades e
inquietações.
Compreende-se que as suas primeiras produções literárias fos-
sem versos. E foram. Poesias ou poemas geralmente simples, senti-
mentais, glosando temas momentâneos «impressões de momento» lhes
chamou Júlio Dinis. Mas de sentido, de plangências e de ritmos bas-
tante diferentes do sentimentalismo doentio usado pelo ultra-romântico
Soares de Passos, seu amigo e talvez, em parte, o seu inspirador. Depois,
pela vida adiante, pela vida fora, a musa sedutora jamais o deixou,
ora cantando anseios e inquietações, ora impressões e factos que feri-
ram a sua sensibilidade. Algumas das suas poesias,o sátiras deli-
ciosas ; outrasm uma orientação definida, foram aproveitadas para
amenizar e embelezar algumas páginas dos seus romances.
Talvez para procurar convívio e camaradagem intelectual, Júlio
Dinis pertenceu ao «Cenáculo» que foi, no Porto, uma espécie de ter-
túlia literária e, ao mesmo tempo, uma companhia de amadores de
teatro. Nela pontificava Augusto Luso, auxiliado por seus irmãos Eugê-
nio e Henrique Augusto da Silva. As representações começaram num
teatrinho construído numa casa da Rua do Bonjardim. Mais tarde pas-
saram para o teatro da antiga P.ua de Liceiras, hoje Rua de Alferes
Malheiro. Representaram-se originais de Henrique Augusto da Silva
e de outros autores, mas principalmente traduções de peças estran-
geiras, comédias ou dramas.
Sabe-se que Júlio Dinis representou, foi actor nesses teatros.
Parece que também representou em travesti. E num certo período de
temp"o, isto é, de 1856 a 1860, escreveu diversas peças teatrais, princi-
palmente comédias, que tudo leva a crer que foram representadas,
naqueles teatros, pelos componentes do «Cenáculo».
Foi um período fértil, para Júlio Dinis, em peças teatrais, peças
de costumes ou históricas. Pelas cópias que apareceram no seu espó-
lio literário, algumas delas foram escritas um tanto à pressa, sem revi-
o cuidada, talvez para serem entregues, em curto prazo, na «Caixa»
do teatro. É de crer que essas fossem representadas. Estão nesse caso
As Duas Cartas comédia em dois actos ; e Similia Similibus também
comédia, em um acto. Mas no período atrás referido, Júlio Dinis escre-
veu mais as seguintes peças teatrais, que seo sabe se algumas foram
representadas: O Casamento da Condessa de Amieira, que na pri-
meira cópia teve o titulo de O Casamento da Condessa de Vila Maior
comédia em dois actos ; o Bolo Quente, de que atés só chegou
o 2.º acto e este talvez incompleto ; O Último Baile do Sr. José da Cunha
comédia em um acto; Os Anéis ou Inconvenientes de amar às escu-
*
ras—comédia em um acto; O Rei Popular drama em dois actos;
um Segredo de Família comédia em três actos ; e A Educanda de
Odivelas comédia em dois actos. O escritor foi, na verdade, fértil
em peças teatrais, nesta primeira época da sua vida; e terminou,o
voltou a escrever para o teatro, quando deixou de pertencer ao célebre
«Cenáculo».o escreveria tanto teatro, podemos concluir, seo
tivesse o estímulo, que representava orgulho e satisfação, de ver à luz
da ribalta algumas, pelo menos, das suas comédias e dramas.
Se na época, com a sua produção teatral, Júlio Diniso conse-
guiu grande notoriedade, ganhou, pelo menos, muita facilidade e maior
naturalidade nos diálogos, o que constituiu óptima preparação para
mais tarde, nos seus romances, descrever as conversas ou diálogos
dos diversos personagens.
Dentro desse período de verdadeira euforia pelo Teatro, Júlio
Dinis também escreveu, parece que em 1858, esse romancezinho Jus-
tiça de Sua Majestade, que foi considerado a sua estreia literária, em
prosa, e bem auspiciosa por sinal. Maso teve a sorte de ver logo
a luz da publicidade. Só foi publicado muitos anos depois, já depois
do falecimento do escritor, na 3.* edição dos Serões da Provincia, pelo
editor Cruz Coutinho. É que o seu autor pensou em fazer uma segunda
revisão do original e iniciar, com ele, uma colecção de pequenos roman-
ces idéia que jamais realizou.
Pode-se dizer que Júlio Dinis continuava inédito. Só em 1860, com
a publicação de três poesias suas em A Grinalda, que era um «perió-
dico de poesias inéditas», usando pela primeira vez o pseudónimo de
Júlio Dinis, é que o mesmo começou a ser notado e conhecido. Mas
o verdadeiro nome do seu autor, Gomes Coelho, continuava desco-
nhecido. Dentro do periódico, apenas os seus redactores, Nogueira
de Lima e J. M. Barbosa Carneiro, sabiam qual era o nome verdadeiro
do autor.
Em 27 de Julho de 1867, termina Júlio Dinis o curso na Escola
Médico-cirúrgica do Porto, defendendo a sua dissertação inaugural,
em acto grande. Aindao tinha 22 anos !
Livre então das lides escolares e com pouca propensão, nem
mesmo compleição, visto ser um doente dos pulmões, para o exercício,
muitas vezes pesado e estafante, de clínico, isola-se bastante no seu
gabinete. Pensa dedicar-se antes ao professorado superior. E, entre-
tanto, vota-se entusiàsticamente, de alma e coração, às lides literárias,
procurando, no entanto, ocultar-se ou esconder-se sempre, sob um
modesto pseudônimo.
Parece que foi de 18S8 a 1862, que Júlio Dinis escreveu o seu
primeiro romance de vulto : uma Família de Ingleses. Só mais tarde,
porém, em 1867, é que foi divulgado no Jornal do Porto ; e ainda mais
tarde, em 1868, é que apareceu em volume, então já com o título de
uma Família Inglesa.o «cenas da vida do Porto», pintadas como
de mestre. Retrata ambientes, acções e personagens do maior interesse.
O fundo da acção é muito simples : a historia de uns amores que
nasceram de uma brincadeira passada no Carnaval e que acabam,
auspiciosamente, no casamento que vai ligar duas famílias de condições
um tanto desiguais. Os principais personagenso : de um lado Carlos,
um rapaz um tanto estouvado, mas de fundo sério, com bom coração,
filho de Mr. Richard Whitestone, rico e honrado comerciante de vinhos
da praça do Porto, de naturalidade e hábitos ingleses, assíduo leitor do
Times—um tanto a figura e o caracter do pai de Júlio Dinis; do outro
lado Cecília, filha única de Manuel Quintino, primeiro guarda-livros da
casa comercial de Mr. Whitestone, de vida mais modesta, mas igual-
mente muito escrupuloso, dedicado à casa e cumpridor. Há ainda
uma outra deliciosa figura, Jenny, irmã de Carlos e amiga de infância
de Cecília, que é bem «um anjo familiar» encantadora como filha,
como irmã, como medianeira nos momentos mais complicados e cru-
cian tes do romance.
Antes de os dois enamorados conseguirem entender-se e chega-
rem mesmo ao ajuste de casamento, que mundo de cenas, de episódios
e de situações, se desenrolam no velho burgo portuense ! Ficamos a
conhecer o que era no Carnaval, no Águia d'Ouro, restaurante famoso,
uma festa de estroinas, de boêmios e tresnoitados ; o viver familiar no
home do comerciante inglês e como se desenrolam algumas cenas
capitais entre o pai e o filho, quase sempre harmonizadas ou adoçadas
pela figura sempre gentil e boa de Jenny ; o que era uma noite de ópera
no teatro lírico ; o que se passava no lar mais simples do guarda-livros,
ondeo faltavam as figuras suavemente caricaturais de uma velha
criada e de um amigo dos diabos...; o que era a casa comercial do
negociante de vinhos, com toda a correspondência inglesa, os seus
caixeiros e moços de escritório, o trautear do hino da carta, por Manuel
Quintino, quando tinha um equívoco ou derramava um borrão de
tinta... ; e o que se passava na praça e na Bolsa portuense, com a sua
burguesia de barões capitalistas, grandes e pequenos comerciantes,
uns activos outros ociosos, especuladores, traficantes essa multidão
que labuta na vida de comércio. As figuras e sombraso todas focadas
com exactidão, magistrais traços característicos. Por fim, com o casa-
mento dos enamorados, tudo acaba em bem. E o romance é, afinal,
uma extraordinária, uma completa pintura, do viver e dos costumes
da velha cidade da Virgem — o Porto.
Em luta com a sua doença, Júlio Dinis deambula e demora-se em
várias terras ou lugares campesinos, onde tinha parentes ou amigos.
Esteve em Grijó, Fânzeres, Vila Nova de Famalicão e Ovar, além de
outros, em busca de melhores ares e alívios para a sua saúde com-
balida. Vai estudando os meios, os ambientes e as pessoas, as suas
conversas e atitudes, as suas possibilidades e ambições, os seus peque-
nos dramas. Do que vira e ouvira, do que decerto anotara, foi elabo-
rando algumas novelas ou pequenos romances, que foi publicando no
Jornal do Porto.
Saíram em primeiro lugar, em Março de 1862, As Apreensões
de uma Mãe, que tornava patente a ternura maternal, levada ao mais
elevado grau de abnegação. Seguiu-se, ainda nesse ano de 1862, a
publicação no Jornal do Porto de O Espólio do Sr. Cipriano, em que
se contrasta a avareza criminosa com a ingenuidade simples e con-
fiante. Já no princípio de 1863, publica no mesmo Jornal do Porto, mais
uma novela ou pequeno romance, Os Novelos da Tia Filomela, em que
se contam casos de bruxas e bruxedos e a renúncia de uma pobre
mulher que o povo acusava de feiticeira, depois de ter sido abandonada
pela sua única filha, que se enamorara e fugira com o filho de uma famí-
lia rica das proximidades. E sob o pseudônimo de Diana de Aveleda,
publica também, no Jornal do Porto, dois artigos sobre «Coisas Verda-
deiras», de resposta às «Coisas Inocentes», de Ramalho Ortigão.
E mais tarde publica ainda outras cartas sobre Impressões do
Campo e a novela uma Flor d'Entre o Gelo, assinada pela primeira e
talvez única vez, com os apelidos de Gomes Coelho e que reproduz a
sinceridade de um amor tardio, que leva à loucura.
Todos os pequenos romances a que nos referimos, foram depois
reunidos nos Serões da Província, que só vieram a lume, pela primeira
vez, em 1870, sendo só na 3.
a
edição, de 1879, que se lhe juntou também
Justiça de Sua Majestade — a estreia, em prosa, de Júlio Dinis.
Persistindo na idéia de seguir a carreira do professorado superior,
em 16 de Março, do ano de 1863, apresenta-se Júlio Dinis ao concurso para
demonstrador da Secção Médica, da Escola Médico-cirúrgica do Porto.
Decerto a preparação para o concurso tinha sido superior às suas forças
e possibilidades. Logo depois de tirar o ponto sobre veio-lhe nova
hemoptise, que o impossibilitou de continuar as provas. A conselho de
seu pai, foi então passar uma temporada a Ovar, em casa de uma sua
tia viúva, D. Rosa Zagalo Gomes Coelho. E aí escreveu, de Julho a Agosto,
grande parte de As Pupilas do Sr. Reitor, que depois terminou no
Porto, de Setembro a Outubro. O romance, porém, ficou na gaveta.
Passado mais algum tempo, já refeito de forças, Júlio Dinis con-
corre outra e outra vez ao cargo de demonstrador da Escola Médico-
-cirúrgica do Porto, sendo então classificado em primeiro lugar e
nomeado em 20 de Julho de 1865. Dois anos depois foi promovido a
lente da Secção Médica, sendo nomeado, passado um mês, Secretário
e Bibliotecário da Escola. Tinha realizado um dos seus maiores sonhos !
Entretanto Júlio Dinis tinha alterado e até ampliado bastante As
Pupilas do Sr. Reitor. Em 12 de Maio de 1866 aparece, no Jornal do
Porto, o primeiro folhetim deste romance, cuja publicação se prolongou
até 11 de Julho do mesmo ano. Foi um êxito! Especialmente no Porto,
o assunto das conversações era o bem equilibrado, apaixonante e
admirável romance.
Faziam-se perguntas, havia interrogações nas salas e nos cafés:
Quem é Júlio Dinis ? ! Ninguém sabia responder !
Conta-se que o próprio pai do escritor, falando à mesa no romance,
mostrou desconhecer quem era o seu feliz autor. Júlio Dinis fez-se
desentendido. Só passados alguns dias, quando o pai entrou no seu
quarto e viu bastantes tiras escritas por seu filho, é que ficou a saber
que era ele o talentoso autor de As Pupilas.
Mas qual a razão, quais os motivos do grande êxito que causara
a leitura de As Pupilas? Muito simples: era um romance diferente, um
romance verdadeiro, sem grandes dramas humanos, com personagens
simpáticas e boas, sentimentais e um tanto líricas, ou levemente carica-
turais, vivendo e convivendo em meios rústicos ou campesinos, enqua-
drados em paisagens ou interiores que parece conhecemos e nos
encantam. O seu autor chamou-lhe «Crônica da Aldeia», com muita
propriedade.
o foi só no grande público que o romance causou êxito.
Alexandre Heroulano, referindo-se à época da sua publicação, disse
que considerava Júlio Dinis «o primeiro talento da geração moderna»,
e o seu romance «o primeiro romance português» do «século». E outros
escritores, como Pinheiro Chagas, Visconde de Castilho, Guilherme
Braga, Sampaio Bruno, Faustino Xavier de Nováis, estes os mais dignos
de nota, falaram do romance com o maior alvoroço e elogio.
O romance desenrola-se ou desenvolve-se com interesse cons-
tante. As suas personagens são, quase sempre, adoráveis. Jamais esque-
cem as principais figuras femininas, Margarida, de gênio um tanto
melancólico, cheia de bondade e capaz dos maiores sacrifícios ; e Clara,
mais expansiva e alegre, que gostava de trautear a sua cantiga, talvez
um tanto estouvada. Depois a figura do reitor, «alma ingènua e sincera-
mente cristã», cheio de bondade e de conformismo, de idéias liberais,
dando sempre bons conselhos e sabendo ser áspero para as beatas
impostoras. José das Dornas, abastado lavrador, robusto, alegre, fol-
gazão, vendendo saúde ; e os seus dois filhos, Pedro, muito parecido
com o pai na robustez e também franco, sincero e um pouco rude como
ele, com boa disposição para a vida da lavoura ; e Daniel, já muito dife-
rente, um tanto estouvado e com vontade de seguir uma vida diferente
pelos estudos e que vem a formar-se em medicina. Por fim a figura
mais típica e curiosa, a do Senhor João Semana, clínico que se conten-
tava com a ciência antiga, mais usual e prática, mas sempre útil, per-
correndo a vila e as aldeias montado no seu cavalicoque, em benemérito
exercício da sua clínica, com muita bondade e abnegação, pois «muitas
vezes, nao que estendia ao pulso dos seus doentes, ia escondida
a esmola», tendo sempre uma resposta pronta e, para os amigos,
como o Senhor Prior, também engatilhada uma boa e pitoresca anedota.
Quando o romance, em Outubro de 1867, se publicou em volume,
esgotou-se nums !
A seguir a As Pupilas do Sr. Reitor, Júlio Dinis escreveu A Mor-
gadinha dos Canaviais, que começou a publicar, também em folhetins,
no Jornal do Porto, em 14 de Abril de 1868. É igualmente uma «crônica
da aldeia», mas com outros ambientes, outras figuras típicas e literárias
da nossa vida rural. Podemos começar por Henrique de Souselas, que
sendo um rapaz que se sentia neurastenizado na vida exaustiva da
cidade, veio encontrar na aldeia e no campo, em casa da sua tia Doro-
teia,o só a paz e o sossego caseiro, mas também a felicidade que
jamais sonhara. A tia Doroteia, um verdadeiro exemplo de senhora
antiga, com sentimentos de fidalga e cuidados de uma boa alma cristã.
A suao curiosa criada antiga, Maria de Jesus. E essas suaves figuras
femininas, Madalena, a morgadinha dos Canaviais, poética e carinhosa
dona e senhora, sempre sensata, misto de candura e de ironia ; e
Cristina, sua prima, «mais bonita que bela», tipo de mulher ideal,
« reflexo de bondade e candura ». Augusto, o mestre-escola, com as
suas pretensões justificadas. O herbanário, todo ancho da sua charla-
tanice médica. Bento Pertunhas, director do Correio, mestre de latini-
dade e regente e director da filarmònica da terra. Depois : os políticos
locais ; o fidalgo endividado, com certa popularidade, que se torna um
grande cacique eleitoral; as raparigas fanatizadas pelos missionários;
as velhas beatas afinal, todo um mundo de gente rústica, cheia de
crenças e superstições, que vive e murmura ao soalheiro com as suas
pequenas invejas, intrigas e maledicencias.
Neste romance faz-se bem a apologia da vida ao ar livre, da vida
no meio campesino e rural.
Júlio Dinis,o sentindo melhoras para a sua doença dos pulmões,
acolheu-se a Lisboa, ouve o Dr. May Figueira, professor de clínica
médica na Escola Médico-cirúrgica de Lisboa. Aconselhou-o a seguir
para a Madeira e ele assim fez, partindo a 5 de Março de 1869, hospe-
dando-se no Funchal. Al escreveu alguns capítulos do seu novo e último
romance, Os Fidalgos da Casa Mourisca ; mas passados três meses,
regressa ao Continente e ao Porto. Cinco meses depois, volta novamente
ao Funchal, completando então o romance. Ora este é igualmente, como
os dois romances anteriores, uma «Cronica da Aldeia». E o seu enredo
é simples, porque se debate nele um conflito, que já várias vezes foi
aproveitado para outras obras literárias : a luta entre a burguesia que
trabalha e um verdadeiro fidalgo, que se deixou arruinar. Por fim tudo
acaba em bem, porque os filhos do fidalgo, Jorge e Maurício, o pri-
meiro casa com Berta, filha do Tomé da Póvoa, que fora antigo criado
na Casa Mourisca, conseguira amealhar e era pessoa de fartos haveres ;
e o segundo casa com Gabriela, sua prima.
E com este romance terminou a produção literária do genial escri-
tor, que se ocultou sempre sob o pseudônimo de Júlio Dinis.
Para os anos que viveu, sempre sob a ameaça de uma doença
que o foi torturando e sucumbindo, pode-se dizer que a sua obra foi
vasta e sempre aliciante. E se assimo fosse, como se poderiam expli-
car tantas edições, parao astronômico número de leitores? E que
o escritor escreveu os seus romances numa linguagem simples e acessi-
vel, comovedora e apaixonante, em páginas imorredoiras, que jamais
deixarão de fazer vibrar a alma, o sentir e o coração dos seus leitores.
Il
NA VIDA E NA SOCIEDADE
PRINCIPAIS EFEMÉRIDES
1839 14 de Novembro Numa casa da Rua do Reguinho, da fre-
guesia de S. Nicolau e próximo da igreja paroquial de S. Nicolau,
da cidade do Porto, nasce Joaquim Guilherme Gomes Coelho
mais tarde consagrado como um grande escritor, sob o
pseudônimo de Júlio Dinis. Aquela referida casa jáo existe,
pois desapareceu com a abertura da Rua Nova da Alfândega.
Foram seus pais o cirurgião José Joaquim Gomes Coelho
e D. Maria Constança Potter Pereira Lopes.
Seu pai, formado pela Regia Escola de Cirurgia do Porto,
era facultativo efectivo do Hospital de S. Francisco, daquela
cidade ; e exercia clínica particular nas freguesias ribeirinhas
de S. Nicolau e de Miragaia, e em Vila Nova de Gaia ; era natu-
ral de Ovar, onde nasceu a 22 de Agosto de 1802 e onde também
tinham nascido os seus progenitores, José Gomes Coelho e
Rosa Rodrigues. Sua mãe, natural do Porto, nasceu na Rua de
Cima de Muro dos Banhos,o longe da Rua do Reguinho,
a 25 de Janeiro de 1801 e era filha de Antônio Pereira Lopes
e de Maria Potter, ambos portuenses e católicos ; porém Maria
Potter era filha de Tomás Potter, natural de Londres e de
Mary Potter, irlandesa.
Os pais de Júlio Dinis casaram no Porto a 20 de Agosto
de 1827. Do enlace houve nove filhos, sendo Júlio Dinis o
penúltimo. Tanto a mãe, que faleceu a 25 de Novembro de
1845, com 45 anos incompletos, como quase todos os seus
filhos, morreram vitimados pela tuberculose pulmonar.
18 de Novembro Júlio Dinis é baptizado na igreja de S. Nico-
lau pelo padre Faustino Gualberto Lopes, sendo seus padri-
nhos o irmão Guilherme Gomes Coelho e D. Rita de Cássia
Pinto Coelho. (No assento de baptismo, o nome da avó materna
está «Maria Pereira», em vez de «Maria Potter».
Júlio Dinis recebe o primeiro ensino na escola primária
de Miragaia, de que era professor Antônio Ventura Lopes.
Foi muito acompanhado, nos seus primeiros estudos, por seu
irmão, ainda estudante, José Joaquim Gomes Coelho nome
igual ao do pai e que nascera a 7 de Novembro de 1834 ; mais
tarde foi aluno laureado do curso matemático, da Academia
Politécnica do Porto, formando-se depois em engenharia civil.
Júlio Dinis é discípulo, em latim, do padre José Henriques
de Oliveira Martins, muito conhecido no Porto como grande
latinista. E estudou a língua francesa ainda com seu irmão José
Joaquim Gomes Coelho ; e inglês com o professor particular
Narciso José de Morais Júnior. Matriculou-se depois em lógica
nas «aulas da Graça», como então se chamavam os cursos
públicos do Liceu e da Academia Politécnica, que funcionavam
no mesmo edifício.
1853 Concluídos os preparatórios liceais, sem ter completado 14
anos de idade, Júlio Dinis matricula-se na Academia Politécnica,
que frequenta até 1856, obtendo prêmios em todas as cadei-
ras que cursou, dos preparatórios médicos.
Júlio Dinis estabelece relações de amizade com o poeta Soares de
Passos, que decerto grande influência exerceu no seu espírito,
desde novo bastante propenso às letras e especialmente à poesia.
1855 26 de Outubro Vitimado pela tuberculose pulmonar, falece
Guilherme Gomes Coelho, médico, com 27 anos, irmão de
Júlio Dinis.
30 de Dezembro Vitimado também pela tuberculose pulmo-
nar, falece outro irmão de Júlio Dinis José Joaquim Gomes
Coelho, que havia dois anos completara o curso de engenheiro
civil, onde fora premiado em diversas cadeiras, e que muito
o acompanhou nos primeiros estudos.
1856 20 de Outubro Júlio Dinis matricula-se na Escola Médico-
-cirúrgica do Porto, onde foi sempre um aluno distinto.
Tendo apenas 17 anos, Júlio Dinis pertence ao «Cenáculo»,
companhia de actores e autores dramáticos ; e escreve, nesse
ano de 1856, as suas primeiras peças teatrais, as comédias:
O Casamento da Condessa da Amieira em dois actos ; e
Boio Quente, de que apareceu apenas o 2.° acto, talvez
incompleto.
1857 Júlio Dinis escreve, neste ano, as comédias : O Último Baile
do Sr. José da Cunha em um acto ; e As Duas Cartas
em dois actos.
1858 Júlio Dinis frequentava o 2.º ano da Escola Médico-cirúrgica,
do Porto, quando teve a primeira hemoptise, que muito devia
ter abalado o seu espírito, já de si melancólico e triste, com-
pungido pelo falecimento de sua mãe, e de seus irmãos, com a
mesma grave doença — a tuberculose pulmonar.
Foi neste, ano que Júlio Dinis escreveu as comédias : Os Anéis
ou Inconvenientes de amar às escuras em um acto; e o
drama original, em dois actos O Rei Popular,
Júlio Dinis escreve o romancezinho Justiça de Sua Majestade
que foi a sua auspiciosa estreia literária em prosa, tendo ape-
nas 19 anos ; mas esse original só foi publicado na 3." edição
dos Serões da Província, em 1879, já depois do seu falecimento.
1860 8 de Novembro Morre o romântico e notável poeta por-
tuense Soares de Passos, com quem Júlio Dinis mantinha bas-
tante convivência de amizade.
No «periódico de poesias inéditas», A Grinalda, aparecem
os primeiros versos de Joaquim Guilherme Gomes Coelho
A J.», «Apparencias» e «O Despertar da Virgem»), usando
pela primeira vez o pseudônimo de Júlio Dinis.
Júlio Dinis escreve, neste ano, talvez nas férias do 4." para
o 5.° ano médico, as suas últimas peças de teatro, as duas
comédias : um Segredo de Família em três actos ; e A Edu-
canda de Odivelas em três actos ; e encerrou também a sua
actividade no «Cenáculo», do Grupo Cênico do Teatro de
Liceiras.
1861—27 de Julho Perante o corpo catedrático da Escola Médico-
-cirúrgica do Porto, Júlio Dinis defende a sua dissertação inau-
gural Da importância dos estudos meteorológicos para a medi-
cina e especialmente de suas aplicações ao ramo operatório,
obtendo plena aprovação e louvores do júri ; formou-se com
menos de 22 anos !
1861-1862- Já livre das lides escolares, e devido talvez à sua natural
melancolia e tendências literárias, juntas a uma fraca com-
pleição e pouca propensão para a vida trabalhosa e nem sempre
profícua de clínico, Júlio Dinis isola-se bastante no seu gabinete
e pôde então escrever o romance uma Família de Ingleses, que
foi o primeiro título de uma Família Inglesa. Mas só foi publi-
cado em 1867, em folhetins do Jornal do Porto.
1862 11 de Março No Jornal do Porto (n.° 57) sai o 1.° folhetim de
«As Apprehensões de uma mãe». A redacção do jornal pre-
cedeu a publicação de um intróito laudatòrio, em que classifica
o original de « mimoso romance » e diz « que delicadamente nos
foi offertado pelo cavalheiro que se embuça com o pseudo-
nymo de Julio Diniz».
1 de Abril Termina no Jornal do Porto (n.° 74), a publicação,
em folhetins, de «As apprehensões de uma mãe».
4 de Novembro Ainda sob o mesmo pseudônimo de Júlio
Dinis, sai no Jornal do Porto (n.» 252), oi." folhetim de «O espo-
lio do Senhor Cypriano».
8 de Novembro Termina no Jornal do Porto (n.° 256) a publi-
cação de « O espolio do Senhor Cypriano ».
Em A Grinalda, 4.° volume, Júlio Dinis publica mais duas poesias
A Noiva» e «Thereza»).
1863 22 de Janeiro Sai no Jornal do Porto (n.° 17), o 1." folhetim de
«Os novellos da tia Philomella», sob o pseudónimo de Júlio Dinis.
7 de Fevereiro Termina a publicação, no Jornal do Porto
(n.° 3D), de «Os novellos da tia Philomella».
25 e 26 de Fevereiro Sob o pseudônimo de Diana de Ave-
leda, Júlio Dinis publica no Jornal do Porto (n.
OE
44 e 45), dois
artigos sobre «Coisas Verdadeiras. Ao folhetinista do Jornal
do Porto», comentando o artigo «Coisas innocentes», de Rama-
lho Ortigão.
16 de Março Júlio Dinis apresenta-se a concurso para demons-
trador da secção médica, da Escola Médico-cirúrgica do Porto;
maso chegou a prestar provas, pois pouco depois de tirar
ponto, teve uma assustadora hemorragia, que o deixou bas-
tante abalado. A instâncias de seu pai, foi para Ovar, onde
permaneceu de Junho a Agosto, em casa de sua tia viúva,
D. Rosa Zagalo Gomes Coelho, no Largo de Campos, n.° 14.
Aí escreveu grande parte de As Pupilas do Senhor Reitor;
e terminou-as no Porto, em Setembro e Outubro conforme
escreveu num livro de apontamentos. Ficaram na gaveta até
1866, em que resolveu publicá-las, alterando e ampliando
então bastante o romance.
7 de Maio Data da primeira carta de Júlio Dinis a «Anitas»
sua sobrinha D. Ana C. Gomes Coelho.
11 de Maio Data da primeira carta de Júlio Dinis ao seu grande
amigo e confidente Custódio Passos, irmão do poeta Soares de
Passos, com quem manteve larga correspondência, quando
estava fora do Porto, pode-se dizer até ao fim da suao
curta vida.
14 de Maio Data da primeira carta de Júlio Dinis a «Ritinha»
a sua madrinha D. Rita de Cássia Pinto Coelho.
1864 18 de Janeiro Júlio Dinis concorre novamente ao lugar de
demonstrador da Escola Médico-cirúrgica do Porto, sendo
aprovado em mérito absoluto, por unanimidade. Mas foi pre-
ferido o outro concorrente, Dr. Pedro Augusto Dias, classifi-
cado em 1.» lugar, em mérito relativo.
28 e 30 de Maio Carta de Júlio Dinis ao Redactor do Jornal
do Porto, sob o pseudônimo de Diana de Aveleda, «acerca
de várias coisas», em que elogia Rodrigo Paganino e comenta
o seu belo livro Os Contos do Tio Joaquim.
1 de Agosto Ainda sob o mesmo pseudónimo, Júlio Dinis
publica no Jornal do Porto as «Impressões do Campo. A Ceci-
lia.
21 de Agosto Também sob o mesmo pseudónimo, publica
mais «Impressões do Campo. A Cecília II».
27 de Outubro Carta de Júlio Dinis ao seu amigo Eugênio
Luso.
29 de Novembro Sai no Jornal do Porto o primeiro folhetim
do pequeno romance «uma ñor d'entre o gelo», então assi-
nado, pela primeira vez, com os apelidos de Gomes Coelho.
7 de Dezembro Termina a publicação, no Jornal do Porto,
de «uma flor d'entre o gelo».
Em A Grinalda 5.° volume já assinadas com os seus ape-
lidos Gomes Coelho, publica mais três poesiasA intercessão
da Virgem», «No altar da pátria» e «A despedida da ama»).
1865 11 de Janeiro Sob o pseudônimo de Diana de Aveleda, Júlio
Dinis publica no Jornal do Porto novas «Impressões do Campo.
A Cecília —III.
6' de Junho Tira ponto e apresenta-se, pela 3.
a
vez, a con-
curso para demonstrador da Escola Médico-cirúrgica do Porto,
sendo então classificado em 1.» lugar.
20 de Julho Por decreto desta data é nomeado para o lugar
de demonstrador da Escola Médico-cirúrgica do Porto, de que
tomou posse em 8 de Agosto.
24 de Julho Data da carta de Júlio Dinis a seu pai, a comuni-
car-lhe que fora despachado professor da Escola Médico-cirúr-
gica do Porto ; foi considerada, por Sousa Viterbo, corno uma
«jóia das mais preciosas do escrínio epistolar português».
1866 12 de Maio Inicia-se a publicação em folhetins, no Jornal do
Porto (n.° 106), de As Pupilas do Sr. Reitor, que é considerado
o melhor romance de Júlio Dinis.
11 de Julho No mesmo Jornal do Porto (n.° 164), termina a
publicação do romance As Pupilas do Sr. Reitor.
1867 1 de Março Inicia-se a publicação em folhetins, no Jornal do
Porto (n.° 50), do romance de Júlio Dinis uma Família de Ingle-
ses. Só quando foi publicado em volume, em 1868, é que o
seu título passou a ser uma Família Inglesa.
7 de Abril Data da carta de Júlio Dinis a Alexandre Hercu-
lano, a agradeoer-lhe a apreciação,o honrosa, sobre As
Pupilas.
- 30 de Maio Termina a publicação em folhetins, no Jornal do
Porto (n.° 123), do romance uma Família de Ingleses.
7 de Julho Data da última carta (XIII), de Júlio Dinis a Anitas
D. Ana C. Gomes Coelho.
10 de Junho No semanário Mocidade escreve Júlio Dinis as
«Cartas à vontade. A Cecília Amas, mestres e maridos».
27 de Julho Por decreto desta data, Júlio Dinis é promovido
a lente substituto da Secção Médica, da Escola Médico-cirúr-
gica do Porto, tornando posse a 17 de Agosto.
27 de Agosto Júlio Dinis é nomeado Secretário e Bibliotecàrio
da Escola Médico-cirúrgica do Porto.
7 de Outubro Data da última carta de Júlio Dinis à sua sobri-
nha Anitas D. Ana C. Gomes Coelho.
20 de Outubro Data da 1.
a
carta de Júlio Dinis a seu primo
José Joaquim Pinto Coelho. Saiu neste dia o primeiro exem-
plar em volume, brochado, de As Pupilas do Sr. Reitor.
2 de Novembro Camilo Castelo Branco, numa carta ao Vis-
conde de Castilho, faz uma alusão um tanto irónica a Júlio
Dinis, que dizia ser «um sujeito doente e triste» e o autor das
Pupilas do Abade . . . Porém mais tarde, em 17 de Fevereiro
de 1869, em Lisboa, ao descer o Chiado, encontrando Júlio
Dinis, informou-se dos seus padecimentos, deu-lhe conselhos,
«sentiu do coração».que a sua doença oo deixasse escre-
ver e separaram-se como «grandes amigos depois dum íêíe-a-
-fêíe de um quarto de hora», como Júlio Dinis informa, um tanto
ironicamente, em carta ao seu grande amigo Custódio Passos.
23 de Dezembro Data de uma carta do poeta Faustino Xavier
de Nováis a Júlio Dinis, enviada do Rio de Janeiro, em que lhe
dá os parabéns pela publicação de As Pupilas do Sr. Reitor,
fazendo algumas considerações sobre as principais figuras do
romance.
1868 Fins de Março Data da carta que Júlio Dinis escreveu a seu
pai, dando-lhe conta do que se passou no Teatro da Trindade,
de Lisboa, e as homenagens e aplausos com que o vitoriaram,
quando assistia, incógnito, à representação de As Pupilas do
Sr. Reitor, na adaptação de Ernesto Biester.
23 de Março Data de nova carta do poeta Faustino Xavier
de Nováis a Júlio Dinis.
1 de Abril Data da 1.ª carta de Júlio Dinis ao Visconde de
Castilho (Júlio).
14 de Abril Inicia-se a publicação em folhetins, no Jornal
do Porto (n.° 84), do romance de Júlio Dinis A Morgadinha
dos Canaviais.
13 de Julho Carta de Antonio Feliciano de Castilho a Júlio
Dinis, acerca do romance uma Família Inglesa.
28 de Julho É enviada ao Ministro de Estado dos Negócios do
Reino, pelo Director da Escola Médico-cirúrgica do Porto,
Conselheiro Francisco de Assis Sousa Vaz, uma longa repre-
sentação, redigida por Júlio Dinis, sobre uma «deplorável ques-
o levantada pela Mesa da Santa Casa da Misericórdia» do Porto.
29 de Julho Termina a publicação em folhetins, no Jornal do
Porto (n.° 170), do romance A Morgadinha dos Canaviais.
6 de Setembro Sob o pseudónimo de Diana de Avoleda,
e dirigida a um amigo, Júlio Dinis escreve as « Cartas para
a minha Família».
1869 20 de Janeiro Data da 1.ª carta de. Júlio Dinis ao seu amigo
José Pedro da Costa Basto.
Princípios de Fevereiro Tendo-se agravado a sua doença,
Júlio Dinis foi a Lisboa e em carta de 10 de Fevereiro, ao seu
dedicado amigo Custódio Passos, dizia-lhe que se albergara
na Rua Direita da Graça, à Cruz dos Quatro Caminhos, n.° 35,
e queo sabia se estava melhor. Do Porto levava a idéia de
passar algum tempo no Lumiar ou em Benfica. O Dr. José Fru-
tuoso Aires de Gouveia Osório aconselhara-lhe uma estadia
em Setúbal ou Abrantes. Vacilava sobre a resolução a tomar;
consultando o Dr. Carlos May Figueira, professor de clínica
médica da Escola Médico-cirúrgica de Lisboa, ele aconse-
lhou-o a seguir para a Madeira.
5 de Março Júlio Dinis parte para a Madeira e no Funchal
foi hospedar-se em casa das Senhoras Pias (Romana e Josefina),
à Rua da Carreira. Aí começou a escrever Os Fidalgos da Casa
Mourisca, conseguindo elaborar os primeiros sete capítulos
e metade do oitavo.
Fins de Maio Júlio Dinis regressa ao Continente e ao Porto.
18 de Junho Data da última carta de Júlio Dinis ao Visconde
de Castilho (Júlio).
12 de Outubro Júlio Dinis volta ao Funchal e hospeda-se na
mesma casa, onde se conservou até Maio de 1870.
Em A Grinalda—6.º volume—Júlio Dinis publica mais duas
poesias («Os pais da noiva» e «A esmola do pobre»).
1870 Março Carta de Júlio Dinis a um amigo (?), escrita do Fun-
chal, em que descreve, como um verdadeiro apaixonado e em
«tom elegíaco» pois assim ele considera «a missiva» —as
suas impressões da viagem para a ilha da Madeira, da própria
ilha e da cidade do Funchal.
20 de Março Data da última carta (XLV) de Júlio Dinis ao seu
sempre dedicado e «velho amigo do coração», Custódio Passos.
11 de Abril Júlio Dinis conclui no Funchal Os Fidalgos da
Casa Mourisca.
19 de Abril Data da última carta (VIII) de Júlio Dinis à Ritinha
sua madrinha D. Rita de Cássia Pinto Coelho ainda escrita
no Funchal.
Maio Júlio Dinis deixa a Madeira e regressa ao Continente
e ao Porto.
26 de Junho Data da última carta (V) de Júlio Dinis a seu primo
José Joaquim Pinto Coelho.
15 de Outubro Júlio Diniz volta ao Funchal e para a mesma
casa.
1871 Janeiro Foi publicado em volume, no Rio de Janeiro, o drama
em 5 actos As Pupilas do Sr. Reitor, na adaptação do romance
de Júlio Dinis por Ernesto Biester.
19 de Março Data da última carta (VIE) de Júlio Dinis ao seu
amigo José Pedro da Costa Basto.
Em Maio Júlio Dinis regressa do Funchal ao Continente e ao
Porto, já bastante mal. Vai residir, com o seu primo José Joaquim
Pinto Coelho, na casa de Rua de Costa Cabral, que então tinha
o n.° 289 e mais tarde passou a ter o n.° 323 casa que depois
foi demolida, construindo-se no seu lugar um cinema, o
«Cinema Júlio Dinis».
Primeiros dias de Setembro Agravaram-se bastante os pade-
cimentos de Júlio Dinis. Revia provas de Os Fidalgos da Casa
Mourisca, mas já muito abatido e desanimado.
12 de Setembro Contando apenas 32 anos incompletos, e
depois de uma pequena crise e agonia, à uma hora da manhã
extinguiu-se para sempre esse belo e formoso espírito de
escritor, de poeta e de romancista, que se chamou Joaquim
Guilherme Gomes Coelho, e que o pseudônimo de Júlio Dinis
consagrou, para todo o sempre, no grande mundo das letras.
Foi sepultado no cemitério de Cedofeita.
13 de Setembro Sousa Viterbo, em artigo no Jornal do
Porto, diz caber a este jornal «o dever de derramar uma
lágrima de saudade sobre o túmulo do grande romancista»,
pois foi nas suas colunas « que o autor das Pupilas do Senhor
Reitor principiou a sua brilhante carreira literária».
Em Setembro Em As Farpas,a de Queirós dedica tam-
m umas sentidas palavras à memória de Júlio Dinis, pala-
vras que depois foram reproduzidas, embora um tanto modi-
ficadas, em uma Campanha Alegre.
1885 21 de Dezembro Morre em Lisboa, quase de repente, com
83 anos, em casa de sua sobrinha, D. Ana Gomes Coelho da
Silva, o pai de Júlio Dinis, Dr. José Joaquim Gomes Coelho.
Foi sepultado no Porto, também no cemitério de Cedofeita.
1888 Agosto—Os restos mortais de Júlio Dinis, de seu pai e de
seu irmão José foram trasladados para o jazigo n.° 58, do cemi-
tério privativo, em Agramonte, da Ordem Terceira de S. Fran-
cisco, por ter sido condenado e extinto o cemitério de
Cedofeita.
1926 1 de Dezembro Inaugura-se solenemente, no Porto, no largo
em frente do edifício onde então estava instalada a Faculdade
de Medicina, um monumento a Júlio Dinis, do notável estatuario
João da Silva, idéia do professor Doutor Alfredo de Magalhães
e obtido por subscrição pública de uma Comissão de Senhoras
do Porto. Falaram vários oradores e foi feita a entrega do monu-
mento à Câmara Municipal da cidade. À noite, promovido pela
Faculdade de Medicina do Porto, houve um sarau de gala no
Teatro de S. João, onde se ouviram números de música, coros
e canções populares, falando também diversos oradores. Dos
actos e cerimônias foi publicado um volume : Júlio Dinis. Home-
nagem da Faculdade de Medicina do Porto 1 de Dezembro
de 1926. Porto, 1927. Também foi cunhada uma medalha come-
morativa.
1939 13, 14 e 15 de Novembro A Câmara Municipal do Porto,
pelos seus Serviços Culturais, de colaboração com a Faculdade
de Medicina da mesma cidade, promove a comemoração do
1." Centenário do nascimento de Júlio Dinis.
No dia 13, pelas 16 horas, realizou-se a abertura, na
Biblioteca Pública Municipal do Porto, da «Exposição biblio-
-iconográfica de Júlio Dinis». Falaram : o director da Biblioteca,
Dr. Joaquim Costa; e o Presidente da Câmara Municipal,
Dr. Mendes Correia. À noite, nos «Estudos Portugueses», que
funcionavam no Palácio de Cristal, pronunciou uma conferência
o Dr. Joaquim Costa.
No dia 14, pelas 11 horas, efectuou-se uma romagem ao
túmulo de Júlio Dinis, proferindo um discurso o Dr. Mendes
Correia. Às 17 horas foi descerrada urna lápide na casa onde
faleceu Júlio Dinis, pronunciando Antero de Figueiredo algumas
palavras. Pelas 22 horas realizou-se, na Faculdade de Medi-
cina, um serão evocativo da vida e obra de Júlio Dinis, sendo
oradores os Srs. Prof
es
- Drs. Fernando Magano, Luis de Pina,
Hernâni Monteiro e Almeida Garrett.
No dia 15, pelas 16 horas, efectuou-se no Teatro de Carlos
Alberto uma Festa Infantil de homenagem a Júlio Dinis, promo-
vida pelos estabelecimentos de assistência e ensino da Câmara
Municipal do Porto. Estava marcada para a noite uma récita
de gala no Teatro Rivoli, mas por motivos de força maior teve
de ser adiada para o dia 2 de Dezembro, representando-se
então a peça extraída do romance de Júlio Dinis, Os Fidalgos
da Casa Mouhsca, sendo intérpretes senhoras e cavalheiros
da melhor sociedade do Porto.
O Boletim Cultural, da Câmara Municipal do Porto, dedi-
cou um fascículo (vol. II, fase. IV Dez. de 1939), às Comemo-
rações do Centenário.
III
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS E ARTÍSTICAS
Escreveu :
1861 Da importancia dos estu-
dos meteorológicos para a mé-
decins, e especialmente de suas
applicações ao ramo operatório.
Dissertação inaugural para acto
grande, seguida de seis propo-
sições apresentadas à Eschola
Médico-cirúrgica do Porto, para
ser defendida debaixo da pre-
sidencia do lente da oitava ca-
deira, o illustrissimo senhor An-
tonio Ferreira de Macedo Pinto,
pelo alumno da mesma Eschola
loaquim Guilherme Gomes Coe-
lho. Porto, Typographia de Se-
bastião José Pereira. In 4.° gr.
de 68 ps. 1 de «Erratas nota-
veis». (Edição única, de 100
exemplares).
1867 As Pupillas do Sr. Reitor.
Chronica da aldeia. Porto, Typ.
do Jornal do Porto, 1 vol. in 8.°
de 282 ps. (Este romance foi es-
crito em Ovar e Porto, de Julho
a Outubro de 1863 ; e publicado
primeiramente em folhetins, no
Jornal do Porto de 1866, inician-
do-se a publicação no n.° 106
e terminando no n.° 154) ; 2.° ed.,
1868; 3ª, 1869; 4.", 1875; 5.ª,
1882; 8.
a
, 1898; 15.ª, 1913; 17.ª,
1915; 18.ª, 1917; 20.», 1919; 22.»,
1921; 25.», 1924; 29.ª, 1933. (No
Rio de Janeiro, Brasil, publica-
ram-se duas contrafacções : uma
com a indicação de 3ª ed., na
Typ. Thevenet &, pelo edi-
tor A. R. da Cunha Coutinho,
da Livraria Popular ; e outra,
como sendo a 4.» ed., da Livra-
ria Fluminense, impressa na Typ.
Perseverança. Em Leipzig, Ale-
manha, em 1875, pela casa edi-
tora F. A. Brackhan, foi publi-
cada outra contrafacção em por-
tuguês, com uma «Carta ao Edi-
tor» de Augusto Soromenho,
datada de Lisboa, 1874. Há uma
«Grande Edição de luxo», desta
obra, com o retrato do Autor
e magníficas ilustrações de Ro-
que Gameiro, sendo 30 a cores.
Traz a «Carta ao Editor», de Au-
gusto Soromenho, da edição de
Leipzig, a servir de prólogo.
Lisboa, «A Editora», s. d. (1907).
In 4.° gr. de 9-433-1 ps. Há
também uma «Nova edição ilus-
trada», com 32 heliogravuras e
uma carta-prefáoio de Leitão de
Barros. Livraria Bertrand, s. d.
A carta-prefácio refere-se ao
filme «As Pupilas do Senhor Rei-
tor», planeado e dirigido por Lei-
o de Barros e produzido pela
Tobis Portuguesa, de Lisboa,
sendo as heliogravuras algumas
reproduções do mesmo filme.
1868 uma Familia Ingleza. Sce-
nas da vida do Porto por .
Porto, Typographia do Jornal do
Porto. In 8.° de 365 ps. (É consi-
derado o seu primeiro romance,
que possivelmente começou a
escrever aos 19 anos, segundo
a opinião do Dr. Egas Moniz,
seuo notável biógrafo. Foi
publicado primeiramente em fo-
lhetins, no Jornal do Porto de
1867, dos números 50 a 123, sob
o título de uma Familia de
Inglezes); 2.» ed., 1870;,
1875; 4.», 1885; 5.», 1894;
13.», s. d.; 14.», 1917; 17.»,
1919; 18.», 1921; 20.», 1924;
26.». 1932.
A Morgadinha dos Cannaviaes.
Chronica da aldeia por. Porto,
Typographia do Jornal do Porto.
um volume in 8.° de 423 ps.
(Este romance foi também publi-
cado primeiramente em folhe-
tins, no Jornal do Porto de 1868 ;
iniciou-se a publicação no n.° 84
e terminou no n.° 170); 2." ed.,
2 tomos in 8.°, de 252 e 264 ps.,
1872; 3ª, 1877; 4.», 1884; 11.»,
1911; 12.», 1913; 19.», 1921;
23.», 1924; 24.», 1926; 25.», 1927;
28.», 1933.
No Rio de Janeiro também saí-
ram duas edições ; uma por
conta do editor A. R. da Cruz
Coutinho, impressa na Typogra-
phia Thevenet & C.', 1868 —in
8.°, 2 tomos de 291-305 ps.; e
outra por conta da Typographia
Perseverança, no mesmo ano
in 8.», 2 tomos de 291-194 ps.
Esta edição, tendo sido composta
pelos folhetins do Jornal do
Porto, dela se venderam cen-
tenas de exemplares, no Brasil,
antes de sair a edição do Porto.
1870 Serões da Provincia. As
apprehensões de uma mãe. O
espolio do Senhor Cypriano. Os
novellos da tia Philomella. uma
flor d'entre o gelo. Porto, Viuva
Moré Editora. 1 vol. in 8.°, de
VII-286 ps. (com uma «Expli-
cação » do Editor, de ps. 1 a VU.
Os pequenos romances ou con-
tos que constituem este volume,
foram publicados pri.nitivamente
em folhetins, no Jornal do Porto,
de 1862 a 1864. No Brasil, tam-
m em 1870, apareceu uma
contrafacção em dois volumes,
compreendendo o primeiro só
as «Apprehensões de umae »
e « uma flor d'entre o gelo » ;
e o segundo «Os novellos da
tia Philomella», «O espolio do
Snr. Cypriano» e «Impressões
do Campo», antecedidas de
juizos críticos de Mendes Leal,
Pinheiro Chagas e Luciano Cor-
deiro, acerca de Júlio Dinis).
2.» ed., 1873;, 1879 (com mais
o romance inédito « Justiça de
sua Magestade » que foi a es-
treia literária de Júlio Dinis ; e
uma «Advertência» do Editor
A. R. da Cruz Coutinho) ; 6.»,
1891; 8.» e 10.», s. d.; 12.», 1916;
21.», 1920; 23.», 1922; 24.», 1924;
29.º, 1932 ; 30.ª, 193S. Foi publi-
cado um 2.° volume, adiante in-
dicado.
Obras póstumas:
1871 Os Fidalgos da Casa Mou-
risca. Chronica da aldeia por.
Porto, Typographia do Jornal do
Porto. 2 vols, in 8.° de 240 e
254-1 ps.; 2.» ed., 1872 (Acres-
centada com o esboço biogra-
phico do Auctor, por Alberto
Pimentel, de ps. V a XL) ;,
1878; 4.\ 1887; 7.» 1904; 11.»,
1913; 17.», 1920; 19.», 1923; 20.»,
1924; 21.», 1926; 23.», 1932.
1874 Poesias. Porto, Typogra-
phia do Jornal do Porto. 1 vol.
in 8." de 244-3 ps. (A obra está
dividida em 2 partes : Primeira
parte com 25 poesias ; se-
gunda parte com 42 poesias._
A Primeira é antecedida por
um excerto de Alfredo Musset,
das «Premières poésies». Em A
Grinalda, «periodico de poesias
inéditas», de que eram redac-
tores Nogueira de Lima e J. M.
Barbosa Carneiro, publicou Júlio
Dinis as suas primeiras poesias ;
são: «A J. », « Apparencias» e
«O despertar da virgem», no
3.° ano, 1850 ; «A noiva » e «The-
reza», no 4.° ano, 1862; «A in-
tercessão da virgem», «No al-
tar da pátria» e «A despedida
da ama», no 5.° ano, 1864; e
«Os pães da noiva» e «A es-
mola do pobre », no 6.° ano,
1869); 2.» ed., 1880, acrescen-
tada com uma poesia inédita;
«Desesperança» ;, s. d. ; 5.»,
1913; 6.», 1913, «Acrescentada
com o retrato do auctor, seu
elogio biographico, muitas poe-
sias inéditas, numerosas notas e
uma explicação prévia», sendo
o elogio biográfico de A. X.
Rodrigues Cordeiro, o qual fora
publicado, em 1876, no Alma-
nach de Lembranças Luso-Bra-
zileiro; 9.», 1920; 10.», 1924;
12.
a
, 1932. uma das últimas edi-
ções, da Livraria Civilização
Editora, s. d. (1946), insere ¡«Al-
gumas palavras do Dr. Egas
Moniz. Prefácio do Autor. Poe-
sias 1857 a 1865 por ordem cro-
nológica. Poesias sem data».
É de 101, o número de poe-
sias e poemas.
Si d. (1910) Inéditos e Esparsos.
Porto, Typ. «A Editora». In 8.°
de XXX1-427 ps., 2.» ed., 1919;
, s. d. Palavras preliminares
de Sousa Viterbo (de ps. V
a XXIX). Transcreve das Novas
Telas Literárias, do Visconde de
Castilho, uma Carta deste a Ju-
lio Dinis, acerca do seu romance
uma Família Inglesa. Publica
« Apontamentos biographicos »
do Editor; e «Notas colhidas de
um livro manuscripto », com
duas cartas do poeta portuense
Faustino Xavier de Nováis. Re-
produz, em papel acetinado :
o retrato do Autor; a casa da
Rua do Reguinho, do Porto, onde
ele nasceu; a Igreja de S. Ni-
colau, próximo dessa casa, onde
foi baptizado ; a casa em que
faleceu, na Rua de Costa Ca-
bral, n.» 323 Porto ; e o ja-
zigo, no Cemitério de Agra-
monte, também no Porto, onde
repousam os seus restos mor-
tais. 1 vol. in 8.° de XXXIV-
-427-3 ps.; 22.» ed., 1920; 23.»,
1921; 24.», 2 vols., 1924.
1946 Teatro Inédito. Pròlogo do
Dr. Egas Moniz. 1." volume. O
Casamento da Condessa de
Amieira. O Último Baile do
Sr. José da Cunha. Os Anéis ou os
Inconvenientes de Amar às Escu-
ras. Porto, Livraria Civilização
Editora. In 8.° gr. de 264 ps.
Teatro Inédito. Prefácio do Dr.
Egas Moniz. 2.° volume. As Duas
Cartas. Similia Similibus. um Rei
Popular. Porto, Livraria Civili-
zação Editora. In 8.° gr. de
360 ps.
1947 Teatro Inédito. Prefácio do
Dr. Egas Moniz. 3.º volume. um
Segredo de Família. A Educanda
de Odivelas. Porto, Livraria Ci-
vilização Editora. In 8.° gr. de
464 ps.
Serões da Província. Prólogo
do Dr. Egas Moniz. 2.° volume.
O Canto da Sereia. Trechos tira-
dos de dois manuscritos refe-
rentes aos romances « Pupilas »
e «Morgadinha» : D. Doroteia;
As Duas Manas ; A Chegada ;
Valentim; O Pequeno Ângelo;
Apresentação. Idéias que me
Ocorrem. O Bolo Quente. Jus-
tiça de .Sua Majestade. Porto,
Livraria Civilização Editora. In
8." gr. de 277-1 ps.
Cartas e Esboços Literários.
Prólogo do Dr. Egas Moniz. Car-
tas Familiares. Cartas de Júlio
Dinis sobre assuntos literários.
Cartas literárias. Cartas dirigi-
das a Júlio Dinis. Esboços Lite-
rários. Porto, Livraria Civilização
Editora. In 8.» gr. de 362-1 ps.
(Esta obra pode considerar-se
uma nova edição de Inéditos e
Esparsos, pois reproduz quase
todos os escritos desta obra,
embora com outra ordenação,
acréscimo de mais algumas car-
tas e omissão de «Idéias que
me ocorreram» e «Bolo Quente»,
que foram publicados no 2.° vo-
lume dos Serões da Província,
da mesma Livraria Civilização
Editora, tendo sido excluídas
também as «Palavras Prelimi-
nares» de Sousa Viterbo, a
« Carta » ao Visconde de Casti-
lho, os «Apontamentos biográ-
ficos» e as «Notas» que antece-
dem o volume dos Inéditos e
Esparsos.
A obra de Júlio Dinis no Teatro
e no Cinema:
o admira que a obra de
Júlio Dinis, cheia de figuraso
típicas e adoráveis, apaixonasse
muitos escritores e cineastas.
Daí a adaptação à cena nos
teatros ou nos estúdios cinema-
tográficos, das suas novelas ou
contos, ou dos seus romances
célebres, em dramas, comédias,
operetas ou filmes, que tiveram
a maior ou a mais restrita acei-
tação por parte do público. Ano-
temos as adaptações mais conhe-
cidas :
868 —As Pupilas do Sr. Reitor.
Ernesto Biester adaptou o ro-
mance deste título ao teatro,
num drama em 5 actos, que foi
representado no Teatro da Trin-
dade em 21 de Março de 1868 ;
e depois no Porto e no Rio de
Janeiro. Nesta antiga capital do
Brasil fez-se uma edição do
drama, que foi publicado em
Janeiro de 1871.
Antero de Figueiredo também
extraiu de As Pupilas do Sr.
Reitor uma peça teatral, que
PROLOGO
foi representada no Teatro de
D. Maria II, de Lisboa.
Leitão de Barros, das mesmas
Pupilas do Sr. Reitor, planeou,
extraiu e realizou um filme, que
foi produzido pela « Tobis Portu-
guesa». A Livraria Bertrand, de
Lisboa, publicou, na ocasião da
passagem do filme, uma nova edi-
ção, ilustrada, das Pupilas, com
uma carta-prefácio do realizador
e algumas reproduções do filme.
Ano? A Morgadinha dos Cana-
viais Do romance com este
titulo extraiu Carlos Borges um
drama; e Baptista Machado ou-
tro, em 5 actos, que foi repre-
sentado no Teatro de D. Maria II.
1877 Os Fidalgos da Casa Mou-
risca. Carlos Borges extraiu, do
romance de igual título, um
drama, em 4 actos, que foi re-
presentado em Junho no Teatro
do Ginásio, de Lisboa, por no-
táveis intérpretes : Pinto de Cam-
pos, Virgínia, Rosa Damasceno,
Eduardo Brasão, João Rosa, Au-
gusto Rosa, etc, e depois foi
representado no Porto.
Segundo Inocencio, Alberto
Estanislau extraiu de Os Figal-
gos outro drama, queo foi
representado; mas viu também
a luz da ribalta outro drama
com o mesmo título, de Luis
Caldeira, conforme informa o
Dr. Egas Moniz no «Prólogo»,
do 1.º volume, do Teatro Inédito
de Júlio Dinis.
com entrecho do mesmo ro-
mance foi também extraído e
realizado um filme, com música
original de Armando Leça.
1925 uma flor d'entre o gelo.
Do conto com este título e que
na obra de Júlio Dinis está in-
cluído nos Serões da Província
(I volume), Acúrsio Cardoso ex-
traiu uma peça num acto, que
foi publicada com o mesmo
título e uma Introdução de Se-
vero Portela.
Ano? As apreensões de uma
mãe. com o título de «A Lei-
teira de Entre Arroios», Filipe
Duarte extraiu uma opereta da-
quele pequeno romance de-
lio Dinis, que também faz parte
dos Serões da Província (I vo-
lume).
1939 Similia Similibus. O actor
Robles Monteiro, empresário,
com sua esposa, a actriz Amélia
Rey Colaço, do Teatro Nacional
de Lisboa, querendo associar-se,
muito louvàvelmente, às come-
morações que se realizaram em
' várias sociedades ou instituições
culturais, e principalmente no
Porto, por ocasião do centenário
do nascimento de Júlio Dinis,
abriu a época teatral de 1939-
-1940, por uma recita dedicada
ao escritor; depois de algumas
palavras de abertura, por aquele
actor, representaram-se : Similia
Similibus, comédia em 1 acto, na
ocasião ainda inédita, de Júlio
Dinis, que foi representada por ;
Amélia Rey Colaço, Lucilia
Simões, Vital dos Santos, Pedro
Lemos e Augusto Figueiredo ; e
Os Fidalgos da Casa Mourisca,
drama em 4 actos, adaptação do
romance por Carlos Borges e
que, pela primeira vez, se repre-
sentava no Teatro Nacional, com
os seguintes intérpretes, pela
ordem que vinham no pro-
grama : Palmira Bastos, Maria La-
lande, Maria Clementina, Samuel
Dinis, Raul de Carvalho, Virgílio
PRÓLOGO
Macieira, Robles Monteiro, Estê-
o Amarante, Mário Santos, Pe-
dro Lemos, João Vilaret, José
Cardoso e Henrique Santos.
A peça de teatro acima refe-
rida—Similia Similibus, também
foi representada mais tarde por
alunos do Liceu de Aveiro, cujo
reitor, Sr. Dr. José Tavares, foi
quem solicitou a cedência do
original, que ao tempo ainda se
conservava inédito.
KOL D'ALV ARENGA.
AS PUPILAS DO SENHOR REITOR
(CRÓNICA DA ALDEIA)
I
J
OSÉ DAS DORNAS era ura lavrador abastado, sadio e de uma feliz
disposição de gènio, que tudo levava a rir ; mas desse rir natural,
sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, eo do rir dos
Demócritos de todos os tempos rir céptico, forçado, desconsolador,
que é mil vezes pior do que o chorar.
Em negócios de lavoura dava, como se costuma dizer, sota e ¿s
ao mais pintado. Até o Sr. Morais Soares teria que aprender com ele.
Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e actividade
qualquer rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o
amanhecer jáo tinha para ele segredoso revelados. O sol encon-
trava-o sempre de, e em pé o deixava ao esconder-se.
Estas qualidades, juntas a uma longa experiência adquirida à custa
de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavra-
dor consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem
estorvo de malquerenças e murmurações.
Diz-se que quem mais faz menos merece, e que mais vale quem
Deus ajuda do que quem muito madruga, eo sei que mais; será
assim ; mas desta vez parecia que se desmentira o ditado ou pelo menos
que o facto das madrugadaso excluíra o auxílio providencial, porque
José das Dornas prosperava a olhos vistos. Ali por fins de Agosto era
um tal entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro!
S. Miguel mais farto poucos se gabavam de o ter. Que abundância por
aquela casa ! Ninguém era pobre com ele ; louvado Deus !
como homem de família,o havia também quer a boca em
José das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia vivera vinte anos
com sua mulher, e então, como depois que viuvara, manifestou sempre
pelos filhos uma solicitude,o revelada por meiguices que lheo
estavam no gènio mas que, nas ocasiões, se denunciava por sacrifí-
cios de fazerem hesitar os mais extremosos.
Eram dois estes filhos Pedro e Daniel. Pedro, que era o mais
velho,o podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele ; a
mesma expressão de franqueza no rosto, a mesma robustez de complei-
ção, a mesma excelência de musculatura, o mesmo tipo, apenas um
pouco mais elegante, porque a idadeo viera ainda exagerar a curva-
tura de certos contornos e ampliar-lhe as dimensões transversais, como
já no pai acontecia. Conservava-se ainda corredo aquele vivo exemplar
do Hércules escultural.
Pedro era, de facto, o tipo da beleza masculina, como a compreen-
diam os Antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece,
exigindo nos seus tipos de adopção o que quer que seja de franzino e
delicado, queo foi por certo o característico dos mais perfeitos
homens de outras eras.
A organização ta'hara Pedro para a vida de lavrador, e parecia
apontá-lo para suceder ao pai no amanho das terras e na direcção dos
trabalhos agrícolas
Assim o entendera José das Dornas, que foi amestrando o seu
primogénito e preparando-o para um dia abdicar nele a enxada, a foice,
a vara, a rabica, e confiar-lhe a chave do cabañal,o repleto em ocasiões
de colheita.
Daniel já tinha condições físicas e morais muito diferentes. Era
o avesso do irmão e por isso incapaz de tomar o mesmo rumo de vida.
Possuía uma constituição quase de mulher. Era alvo e louro, de
voz efeminada, mãos estreitas e saúde vacilante.
O sangue materno girava-lhe mais abundante nas veias, do que o
sangue cheio de força e vida, ao qual José das Dornas e Pedro deviam
aquela invejável construção.
Votar Daniel à vida dos campos seria sacrificá-lo. Apertava-se o
coração do pobre pai, ao lembrar-se que os sóis ardentes de Julho ou
os tufões regelados de Dezembro haviam de encontrar sem abrigo
aquela débil criança, que mais se dissera nascida e criada em berços
almofadados e sob cortinados de cambraia, do que no leito de pinho e
na grosseira enxerga aldeã.
E desde então, desde que pensou nisto, uma idéia fixa principiou
a laborar no cérebro daquele pai extremoso e a monopolizar-lhe as
poucas horas que o trabalhoo absorvia.
De vez em quando o encontravam os amigos deveras preocupado,
o que, sendo nele para estranhar, excitava curiosidades e receios e
desafiava interrogações.
O reitor foi um dos que mais se importou com a preocupação do
nosso homem.
Era este reitor um padre velho e dado, que há muito conseguira
na paróquia transformar em amigos todos os fregueses. Tinha o Evan-
gelho no coração o que vale muito mais ainda do que tê-lo na cabeça.
A qualidade de egressoo lhe tolhia o ser liberal de convicção.
Era-o como poucos.
Ó homem de Deus disse pois o reitor um dia, resolvido
deveras a sondar as profundezas daquele mistério que tens tu há
tempos a esta parte? Que empresa e essa em que me andas a cismar
há tantos dias?
Que quer, sr. padre Antônio? um homem de família tem sempre
em que cuidar ; tem a sua vida e tem a dos filhos.
.Foi a resposta que obteve.
Ora essa ! insistiu o padre. Bem alegre te via eu, em
tempos mais azados para tristezas, e bem alegres vejo muitos com bem
outras razões para o contrário. Mas tu! Que mais queres? Tens bons
haveres para deixares a teus filhos; mas, quando oso tivesses,
sempre eram dois rapazes ; e deixa, José ; um homem é outra coisa
queo é uma mulher ; onde quer se arranja ; toda a terra é sua ; em
toda a parte encontra que fazer, e qualquer trabalho lhe está bem.
Agora os pobres que vejo por aí com um rancho de raparigas, coita-
dinhas, que ficam mesmo ao desamparo de todo, se a sorte lhes roubar
o pai... esses sim, é queo sei como podem ter um momento de ale-
gria ; e contudo encontra-los nas festas que é um louvar a Deus.
É assim, sr. reitor, eu sei que os há por aí mais infelizes do que
eu, mas...
Mas então, quem tem saúde e a quem Deuso falta com o
o nosso quotidiano, só deve erguer as mãos aou para lhe tecer
louvores. Mareia tu a tua vida, que teus filhosoo nenhuns aleija-
dos para precisarem de pedir esmola.
Graças a Deus queo são, sr. reitor. O Pedro, sobretudo,o
me dá cuidados. O Senhor fê-lo robusto e fero ; é um homem para o
trabalho ; e quem pode trabalharo precisa de herança. Pelo trabalho,
e com a ajuda de Deus, fiz eu esta minha casa, queo é das piores,
vamos ; ele, com menos custo, a pode agora aumentar, se quiser. Mas
o Daniel jáo é assim. Aquilo é outrae o Senhor a chame. um
dia de ceifa é bastante para mo matar. É a sorte dele que me dá cuidado.
Então é só isso ? Ora valha-te Deus ! É verdade. O pequeno é
iraquito e decertoo pode com o trabalho do campo, mas... para que
queres tu o dinheiro, José? Acasoo terás alguns centos de mil-réis
ao canto da caixa parar o rapaz nos estudos?o podes fazer dele
um lavrador? Fá-lo padre, letrado ou médico, queo ficarás pobre
com a despesa.
José das Dornas, ao ouvir assim formulado o conselho do reitor,
sorriu com a visível satisfação que sempre experimentamos, vendo
que um dos nossos pensamentos favoritos merece a aprovação de
alguém, antes de lho revelarmos.
Nisso mesmo pensava eu. Já me lembrou mandá-lo estudar,
mas tinha cá certos escrúpulos.
Escrúpulos ! Valha-teo sei que diga ! Pois ainda és desses
tempos? Que escrúpulos podes 1er em mandar ensinar teus filhos?
Fazes-me lembrar um tio meu, que nunca permitiu que as filhas apren-
dessem a 1er ; como se pela leitura se perdesse mais gente do que
pela ignorância.
o é isso, sr. padre Antônio,o é isso o que eu quero dizer ;
mas custa-me dar a meus filhos uma educação desigual. Vê V. S.
a
?o
irmãos e, mais tarde, o que tomar melhor carreira e se elevar pelo
estudo há-de desprezar o que seguir a vida do pai, a ponto de que os
filhos de um e de outro quase nem se conhecerão : é o que mais vêzes
se.o é uma injustiça que faço a Pedro a educação que der a Daniel?
Homem de Deus,o há desigualdade verdadeira, senão a
que separa o homem honrado do criminoso e mau. Essa sim, que é
estabelecida por Deus, que na hora solene, extremará os eleitos dos
reprobos. Educa bem cs teus filhos em qualquer carreira que os enca-
minhes ; educa-os segundo os princípios da virtude e da honra, eo
os distanciarás, acredita: porque, cumprindo cada um com o seu dever,
serão ambos dignos um do outro e prontos apertarão as mãos onde
quer que se encontrem. E no sentido mundano, julgas tu que fazes mais
feliz Daniel, por o elevares a uma classe social acima da tua ! Ai, homem,
como vives enganado! O quinhão de dores e de provações foi indis-
tintamente repartido por todas as classes, sem privilégio de nenhuma.
Há infortúnios e misérias que causam o tormento dos grandes e pode-
rosos, e que os pobres e humildes nem experimentam, nem imaginam
sequer. Grande nau, grande tormenta: hás-de ter ouvido dizer.
Sabes que mais, José? concluiu o reitor manda-me o rapaz lá por
casa que eu lhe irei ensinando o pouco que sei do latim, e deixa-te de
malucar.
com estas e idênticas razões foi o bom do padre convencendo
José das Dornas, que nada mais veementemente desejava do que ser
convencido e, decorridos oito dias, via-se já Daniel passar, com os
livros debaixo do braço, caminho da casa do reitor.
n
/
Ó
ti'Tomásia dizia, ao vê-lo passar, uma velha, que, sentada
ao soalheiro, fiava, rezava padre-nossos e cabeceava com
sono o pequeno do José das Dornas anda agora
nos estudos?
Poiso sabe que o pai o querr a padre ? respondeu a
vizinha da porta de cima, ao passo que desenredava uma meada e fazia
soltar à dobadoura os mais inarmónicos gemidos.
Toma que te dou eu ! A coisa vai de grande então !
Bem se diz : mais anda quem tem bom vento, do que quem
muito rema. Verá você, ti'Custódia, que o Pedro, que se mata com tra-
balho, há-de ter sempre vida de galés, sem nunca levantar cabeça; e o
pelém do irmão é que há-de pimpar de senhor e dar as leis em casa.
uma coisa assim ! Já agora havia mister de um senhor abade
ou cónego na família ! Ora este mundo sempre está !
E então veja que padre aquele ! A mimo me engana a pinta.
É de boa raça.o tem dúvida nenhuma.
Sai ao lado da mãe, vizinha. Lembra-se do tio dele, o Joaquim
do Morgado ? Que menino !
A inflexão com que este que menino ! foi pronunciado, era
altamente significativa. É de crer que o referido Joaquim do Morgado,
cunhado de José das Dornas, deixasse indeléveis recordações entre
as mulheres da sua época.
Se me lembra ! Aquilo era uma coisa por maior. Bastava dar-lhe
um bocado de trela, que ele aí estava ! Nanja eu, comigo nunca ele fez
farinha.
E, dizendo isto, desviava a cara e abaixava-se para apanhar o
novelo que deixara cair, enquanto a vizinha fazia um gesto e resmo-
neava um aparte ininteligível que ambos pareciam contrariar a última
asserção da velha er em dúvida a sua apregoada isenção de outros
tempos.
Nem comigo, ti'Tomásia disse, em tom já elevado, esta do
aparte nem comigo, que ele bem sabia com quem se metia.
Desta vez, gesto e aparte pertenceram à outra interlocutora, e
tinham a mesma significação.
É certo porém que o Daniel ia andando com o seu latim, e, dentro
em pouco tempo, já papagueava os substantivos e os adjectivos com
incrível e surpreendente velocidade.
José das Dornas divertia-se excessivamente a ouvi-lo. As declina-
ções ditas pelo filho em voz alta «lálhe caíam no goto» como ele dizia;
e já procurava imitá-lo nas suas horas de bom humor, que, segundo já
afirmámos, eram numerosas.
Diz, rapaz, diz. Então como é? como é? Altrotoro,
altrotoro, altrotoro. Ó tranca, ó tranca, ó trinque, ai diabos, diabos, dia-
bos. Ah! ah! ah! Ora diz, rapaz, diz.
E Daniel principiava a repetir as lições, acompanhado das garga-
lhadas de José das Dornas, que, sem o saber, ia demonstrando com o
exemplo um grande preceito de instrução, tantas vezes recomendado :
o de vencer, pelo estímulo do agradável, o fastio que acompanha o
estudo. De facto, a facilidade com que Daniel retinha já as enfadonhas
lições da arte do padre Pereira era em parte devido à maneira por que
lhas amenizavam estes gracejos do pai ; quanto mais arrevesados eram
os nomes, com mais vontade os decorava Daniel, para despertar com
eles a estranheza e hilaridade paternas.
Que estrondosas gargalhadas seo deram na noite em que repe-
tia em voz alta a declinação do relativo Qui e seus compostos !
Ora essa ! dizia Jose das Dornas que vem cá a ser isso ?
Qui, qui, qui, qui... Ai que o sr. reitor quer ensinar-me ao filho a língua
dos cevados !
E toda a família desatava a rir, e Daniel mais que todos.
E assim prosseguiu o menino Daniel nos seus estudos com grande
aprazimento do reitor, que muita vez dizia ao pai, em tom confidencial:
Sabes que mais, José ? O rapaz é esperto, e era até um pecado
desviá-lo do estudo, para que tem tanta queda. Olha que me estudou
as linguagens em oito dias!
José das Dornaso podia avaliar ao certo o género e grau de
dificuldade que vencera o filho ; mas entendeu, lá de si para si, que
fora alguma coisa de heróico, e nesse dia nao pôde deixar de olhar
para o rapaz, como se ele tivesse no rosto o que quer que fosse estranho
a auréola dos predestinados para grandes coisas.
E então, sr. reitor perguntou ele um dia ao mestre o
pequeno vai bem?
Óptimamente. O Sulpício para ele é já como água de unto.
Qualquer dia passo-o para o Eutropio, e dentro em pouco para
o Cornelio.
Estas sucessivas passagens do Sulpício para o Eutropio e do Eutro-
pio para o Cornelio, impressionaram profundamente José das Dornas.
Lá lhe pareceu aquilo uma façanha ginástica admirável.
Faremos dele um padre, sr. reitor ?
Que dúvida ! E um padre às direitas.
Ora aqui é que o bom do pároco se enganava, como, pouco tempo
depois, ele próprio reconheceu.
Foi o caso que, aí por volta de um ano depois que Daniel princi-
piara os seus estudos tinha ele então doze para treze anos come-
çou o reitor a observar que o rapaz lhe vinha um pouco mais tarde para
a lição. Ao princípio, eram cinco, dez minutos, um quarto de hora de
diferença. Depois cresceu a demora a vinte, vinte e cinco minutos, meia
hora, e o padre pôs-se a parafusar:
Já meo vai parecendo bem a história. Dar-se-á caso que o
rapaz me ande por aí a garotar? Se eu o sei ! E então que iao bem !
Deixa-o vir, que eu sempre hei-de querer saber o que isto é. Nada,o
vamos assim à minha vontade. Deixa-o vir.
Se bem o pensou, melhor o fez. Chegou o pequeno todo ofegante
e suado, como quem viera às carreiras, e o reitor, fitando-o com olhar
severo e penetrante, disse-lhe antes de lhe dar as bênçãos, que ele,
de chapéu na mão, lhe pedia :
Olha, Daniel ; de onde vens tu a estas horas ?
O rapaz fez-se vermelho como um lacre, eo atinou com a res-
posta. Ficou-se a cocar na cabeça, a encolher-se, a enqolir em seco, a
rosnaro sei o quê, e... mais nada.
Anda que eu desconfio que me vais saindo garoto, e, se assim
é, tens que ver comigo. Grandessíssimo brejeiro! Teu pai manda-te
para o estudo ou para andares jogando a pedra com a outra
canalha ?
Euo andei jogando a pedra,o senhor ! exclamou Daniel
com umao eloquente vivacidade, que, sem possível ilusão, atestava
que ele nao mentia.
Então que fez vossemecê até estas horas ?
Nova confusão do rapaz.
Eu hei-de saber ; hei-de mandá-lo vigiar, e depois direi a
seu pai.
Nos quinze dias que se seguiram a esta cena, Daniel foi pontual
às horas da escola. O reitor estava satisfeito com a emenda do rapaz, e
lisonjeado, lá muito para si, com o seu poder persuasivo e a conver-
o que operara com uma simples admoestação.
Ao fim de duas semanas encontrou-se por acaso com José das
Dornas, e já seo lembrava até de lhe fazer queixa do filho, que assim
entrara obediente no bom caminho do dever. José das Dornas, porém,
é que se mostrava preocupado. Quanto mais o padre lhe gabava a habi-
lidade de Daniel, tanto mais o bom do homem parecia constrangido,
limitando-se a soltar uns ininteligíveis monossílabos em sinal de apro-
vação.
Que tens tu, José ? a modo que te estou estranhando ! excla-
mou o reitor, já um pouco impaciente.
É que, sr. padre Antônio, eu... a falar a verdade... queria dizer-
-lhe uma coisa.
Pois diz, homem, diz para. Então deste agora em fazer ceri-
mônias comigo?
Eu sei o grande favor que o sr. reitor me faz, ensinando o
pequeno...
Bem, bem, adiante. Deixemo-nos agora disso. Se eu o ensino, é
porque quero e gosto. O que estimo é que ele aproveite, como de facto
aproveita ; o maiso histórias.
Pois muito agradecido. Mas dizia eu... sim... custa-me a
explicar...
com S. Pedro! Fala, homem, diz lá o que tens a dizer.
É que o rapaz a modo que é fraquito, e então...
E então o quê ?
Tenho medo que, estudando de mais, me adoeça por al, e...
Mas ele estuda de mais ?
Não, senhor; mas... sim... queria eu dizer, que talvez fosse
bom que o sr. reitor o demorasse menos na aula. Digo eu isto, mas se
vir que...
Sim, sim, mas então... vamos a saber, então ele demora-se
muito ?
Nao digo que seja muito. Tudo é necessário. Bem sei; mas...
quero eu dizer... para quem é fraco como ele... como sai às duas horas
e vem só às trindades... e às vezes à noite fechada...
O reitor ficou como se lhe caíra o coração aos pés, ficou...
diga-se a frase, visto que a autorizou quem podia—ficou desa-
pontado. Das duas horas às trindades, e à noite cerrada, às vezes,
quando ele lhe entrava em casa às três ou lhe saia pouco depois das
cinco ! Tinha assim o padre de modificar duplamente o seu juízo
enquanto ao rapaz e enquanto a si descrendo da conversão do pri-
meiro e do seu próprio poder de catequese. Este sacrifício, em dupli-
cado, custou-lhe e conservou-o por algum tempo mudo. Esteve para
contar ao pai a história toda, mas calou-se. Tinha um coração gene-
roso afinal de contas, e compreendeu que a revelação iria afligir o
velho.
Tens razão, homem limitou-se, pois, a dizer. Tens razão.
O rapaz há-de sair mais cedo. Eu olharei por isso. Mais alguns dias,
para chegar cá a um ponto que eu quero, e depois será como dizes.
E lá consigo dizia o bom do padre :
Deixa estar, meu Danielzinho, que eu hei-de saber para onde
tu me vais, depois que te mando embora. Deixa estar, deixa, que me
o tornas a enganar, meu menino.
E foi para casa com firme resolução de elucidar este negócio.
III
N
O dia seguinte deu Daniel a lição do costume, e às cinco horas
recebeu ordem de se retirar ordem, cuja execução, como
era natural,o se fez esperar muito.
Ele a voltar costas, e o reitor ar o chapéu na cabeça para lhe
ir na pista.
A tarefao era fácil ; basta lembrarmo-nos da agilidade de Daniel,
natural à sua idade, e compará-la com os já trôpegos movimentos do
velho padre, que com a pressa que levava, impelia adiante de si todas
as pedras soltas do caminho.
Foi seguindo direito pelas ruas que o conduziam a casa de José
das Dornas e perguntando a quantos conhecidos encontrava, sentados
pelas portas ou debruçados nas janelas, se tinham visto passar o pequeno.
Por muito tempo foram as respostas afirmativas, o que satisfazia o reitor.
pois indicavam-lhe que, até àquele ponto, o rapazo se havia extra-
viado, deixando de seguir o caminho de casa.
Chegou, porém, a um largo onde desembocavam diferentes ruas
e azinhagas, e as coisas mudaram então de face,
O reitor, continuando a seguir o seu sistema de indagação, tomou
a direcção que devia mais prontamente conduzir o pequeno Daniel aos
lares paternos.
À porta de uma casa térrea, que havia na esquina, dobava uma
velha, a qual, ao ver aproximar-se o reitor, ergueu-se, com toda a cor-
tesia, da cadeira em que estava sentada.
Muito boas tardes, tia Bernarda. Diga-me, viu passar por aqui
o pequenito do José das Dornas?
Nosso Senhor venha na companhia de V. S.
a
. Pois nada,o
senhor, sr. reitor. O rapazinho passava dantes por aqui todas as tar-
des ; mas haverá coisa de quinze dias, ou três semanas, que já oo
tenho visto.
O reitor pôs-se a cocar na orelha. O delito começava a fazer-se
evidente.
Esta agora ! murmurava ele deveras zangado, e depois acres-
centou mais alto : E eu que me esqueci de lhe dar um recado para
o pai ! Diacho !
Se V. S.* quer, eu mando lá a minha neta.
Nada,o ; obrigado. A coisa também tem tempo. Fique-se
com Deus, tia Bernarda, e agradecido.
Nanja por isso, meu senhor. E a velha fez reverencia.
Temos história dizia o reitor, franzindo o sobrolho e tomando
por outro dos caminhos que comunicavam com o largo. Perguntemos
aqui — e parou junto de um alpendre rústico, debaixo do qual estava
sentado um velho quase paralítico, que procurava nos raios do Sol o
calor que lhe escasseava nos membros, já regelados pela idade.
Boas tardes, tio Bonifácio disse o reitor, elevando a voz e
parando defronte dele.
Sr. padre Antônio, um criado de V. Rev.
ma
.
Sabe-me dizer, tio Bonifácio, se o pequeno do José das Dornas
passou há pouco tempo por aqui?
O velho, já meio surdo, fez repetir a pergunta em tom mais ele-
vado, e, depois de um momento de silêncio, durante o qual pareceu
interrogar a memória, já perra e enfraquecida :
Sim, senhor, vi respondeu, acenando afirmativamente com
a cabeça. Vi, sim, senhor. Passou aqui com os bois, há meia hora.
com os bois!... Ai, esse é o Pedro. Falo no pequeno, no Daniel.
. Ah!... nada... esse... ah! sim, sim, sim... um que anda nos
estudos ?
Esse mesmo.
Sim, pelos modos que... agora neste instante passou ele, a
correr, para o lado dos açudes.
Obrigado, tio Bonifácio.
O mafarrico do rapaz que terá que fazer para o lado dos açu-
des? dizia o padre cons
;
go, tomando a direcção indicada. Efectiva-
mente, pelo novo caminho que seguia, iam-lhe dando informações de
Daniel, acrescentando de mais a mais, que, havia coisa de duas sema-
nas. era ele certo por ali todas as tardes.
O reitor dava-se a perros, para atinar com o motivo de semelhante
rodeio.
Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo ! Para que virá
o rapaz dar esta esquisita volta?
De certo ponto por diante faltaram-lhe as informações, porque o
sítio tornava-se quase despovoado.
A tarde ainda estava longe do seu fim ; mas umas nèvoazitas come-
çavam a levantar-se dos campos e lameiros, e o reitor, que tinha o seu
reumático a atender, já ia perdendo grande parte daquele fogo com que
encetara a pesquisa.
No meio de um estreito e alagado caminho, que seguia tortuosa-
mente por entre dois campos de centeio, parou e entrou a reflectir:
O rapaz sumiu-se. Para o ir procurando assim à toa e a estas
horas do dia,o estou eu.o lá atrás do homem da capa preta. Quem
sabe onde o diabrete foi dar agora consigo ? O pai que o procure, que
tem obrigação disso. O melhor é retirar em boa ordem, antes que
venha o frio da noite.
Já se preparava para seguir o prudente conselho, que a si próprio
acabava de dar, quando lhe despertou a atenção um assobiar agudo e
vibrante, cujo timbre lhe erao conhecido como a toada da cantiga
que executava.
Olá ! disse o reitor, parando, equilibrado sobre duas alpon-
dras no meio do lamaçal do caminho. Moiro na costa, ou eu me
engano muito!
Pôs-se a escutar de novo, e cada vez mais parecia confirmar suas
suspeitas, acabando de se convencer de todo, quando, ao assobiar
sucedeu uma voz infantil, que ele logo reconheceu por a do discípulo,
cantando, ainda na mesma toada, que era de uma música popular, as
seguintes copias :
Morena, morena
Dos olhos castanhos,
Quem te deu, morena,
Encantos tamanhos?
Encantos tamanhos
o vi nunca assim,
Morena, morena,
Tem pena de mim.
Morena, morena
Dos olhos rasgados,
Teus olhos, morena,
Sao os meus pecados.
Sao os meus pecados
Uns olhos assim,
Morena, morena,
Tem pena de mim.
Morena, morena
Dos olhos galantes,
Teus olhos, morena,
o dois diamantes.
o deis diamantes
Olhando-me assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.
Morena, morena
Dos olhos morenos,
O olhar desses olhos
Concede-me ao menos.
Concede-me ao menos,
o sejas assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.
Temos o homem disse o reitor, depois de ouvir a cantiga,
e enfiou resoluto pela rua adiante. Mas, tendo dado alguns passos mais,
parou como se mudasse de tenção.
Nada, nao convém que me veja. E preciso espiá-lo sem que ele
dê por isso.
Feita esta reflexão, passou um rápido exame ao terreno e retro-
cedeu. Dobrou novamente a esquina da viela em que se introduzira;
costeou o campo do lado direito, até se lhe deparar uma cancela rús-
tica, queo lhe opôs a mínima resistência, e, oculto pelo centeio, cami-
nhou, o mais prudentemente que pôde, até ao lugar correspondente
àquele de onde partia a voz e daí por diante até descobrir a caça que
procurava.o levou muito tempo a realizar o seu intento.
Eis a cena que viu o reitor, acocorado entre o centeio, com a ben-
gala fixa no chão, mãos apoiadas na bengala, e queixo apoiado nas
mãos.
IV
D
EFRONTE do campo, de onde, com as melhores intenções deste
mundo, o reitor estava espionando, e separado apenas dele
pela estreita e húmida rua, de que já falámos, estendia-se um
tracto de terreno inculto, muito coberto de tojo e de giestas e dessa
espontânea vegetação alpestre, que, no nosso clima, enflora ainda os
montes mais áridos e bravios.
Dispersas por toda a extensão deste pasto, erravam as ovelhas
e cabras de um numeroso rebanho, de que eram únicos guardadores
um enorme e respeitávelo de pastor e uma rapariguita de, quando
muito, doze anos de idade.
Até aqui nada de notável para o reverendo pároco.
Mas o que o maravilhou foi o grupo que formavam, naquele
momento, a pequena zagala, oo e o nosso conhecido Daniel, por via
de quem o bom do padre empreenderao trabalhosa excursão.
A pequena, sentada junto de uma pedra informe e musgosa,
folheava com atenção um livro, dirigindo, de tempos a tempos, meigos
sorrisos para Daniel, que, deitado aoss dela, de bruços, com os coto-
velos fincados no chão e o queixo pousado nas mãos, parecia, ao con-
templar embevecido os olhos da engraçada criança, estar divisando
neles todos os dotes mencionados na canção da morena, que lhe ouvi-
mos cantar.
Jaziam ao lado dos dois uma roca espiada e os livros de Daniel.
Completava o grupo o cão, enroscado junto do pequeno estudante
com desassombrada familiaridade, e denunciando assim que o conhe-
cimento entre eles, e por conseguinte de Daniel com a pastora,o era
já de muito recente data.
Este grupo, apesar de toda a sua beleza artística, realçada peias
meias-tintas do crepúsculo e pelo fundo alaranjado do céu, sobre que
se desenhavam os rendados das árvores ao longe,o agradou de
maneira nenhuma ao reitor, que, com um franzir de sobrolho, mostrou
claramente a contrariedade que ele lhe fazia experimentar.
Esteve para surgir de entre o centeio e mostrar-se aos enlevados
personagens deste idilio infantil, severo e terrível, como o vulto gigante
do Adamastor, nas estâncias do grande épico.
Pôde, porém, conter-se e constrangeu-se a observar a cena, com
mal reprimido desagrado.
A pequena, que estiverà por muito tempo inclinada sobre o livro,
como a lutar com alguma dificuldade de leitura, que procurava vencer
por si, acabou por fazer um gesto de impaciência, e, apontando com o
dedo a palavra da dúvida, colocou a página diante dos olhos de Daniel,
perguntando-lhe :
Isto que quer dizer ?
Daniel olhou por algum tempo para o livro, e afinal respondeu:
Cataclismo.
E que vem a ser cataclismo ?
Daniel ficou embaraçado. A falar verdade, eleo sabia bem o que
era cataclismo.o teve coragem para o dizer francamente e titubeou :
—-Cataclismo... sim... cataclismo é... sim... eu sei o que é... agora
para to dizer é que... Cataclismo...
O reitor, apesar da posição critica em que estava,o deixou de
se zangar lá consigo, ao ver um discípulo seuo poder desenredar-se
de tais dificuldades filológicas.
Margarida, que era este o nome da pequena, adivinhou a causa
da hesitação de Daniel e delicadamente lhes fim, olhando outra vez
para o livro e continuando a estudar em silêncio.
Daí a pouco voltou, porém, a consultar o seu pequeno mestre.
E isto? como se?
Metempsicose foi a resposta de Daniel.
E o que vem a ser ?
Desta vez ainda o embaraço de Daniel era maior. Nunca ele sou-
bera o que fosse metempsicose, e, como pela segunda vez se via
pilhado em falso, perdeu a paciência. Saiu-se do aperto, como alguns
professores em casos análogos :
Ora ! isso é uma coisa que leva muito tempo a explicar.
Margarida resignou-se ao entender.
uma terceira interrogação. Desta vez foi a palavra pragmática
que a originou.
Daniel estava em maré de infelicidades. Esta acabou de o impa-
cientar. Tirando o livro comprometedor das mãos da discípula, disse
com certo despeito mal encoberto :
Deixa-te de estudar, Margarida ;o estou agora para isso.
Mas depois... amanhã...
Amanhã ! Que tem ? Sossega, queo te castigo. E demais
ainda tens muito tempo.os que eu só venho de tarde?
Mas...
Mas... agorao quero que estudes, quero que cantes.
Ora cantar ! Que hei-de eu cantar ?
A cantiga da morena.
Eu nao gosto dela.
Não?
Eu, não.
Então de qual gostas mais, Guida? perguntou Daniel, dando
à pergunta, e sobretudo àquela familiar alteração do nome de Mar-
garida, uma música de afectuoso galanteio, queo deixaria ficar
mal ninguém.
A da Cabre ira, é muito mais bonita.
Já meo lembra bem. Pois então canta a da Cabreira.
Agora não.
Agora sim; e porque ao hás-de cantar agora?
A minha irmã Clara é que a sabe cantar bem, eu não.
Ora adeus, ela é ainda uma criança disse Daniel com um
soberbo gesto de homem. Eu quero-a ouvir a ti.
Eu julgo que nem a sei.
Sabes, sabes, ora vamos a ver.
Olhe... eu canto, mas...
E Margarida pôs-se então a cantar e com a vozo sonora e agra-
davelmente infantil, que, se o reitor estivesse despreocupado, em uma
posição mais còmoda e disposto a julgar com imparcialidade, confes-
saria que era excelente. Mas, na ausência destas condições de juízo
desapaixonado, foi um crítico como quase todos.
Aí vai o que ela cantava, em uma dessas singelas e monótonas
melopéias de quase todas as nossas xácaras populares :
Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar,
Desde que rompia o dia
Ató a noi'.e fechar.
De pequenina nos montes
o tivera outro brincar,
Nas canseiras do trabalho
Seus dias vira passar.
Assim como tu disse Daniel.
Margarida sorriu, fazendo com a cabeça um movimento afirma-
tivo, e continuou:
Sentada no alto da serra,
Pôs-se a cabreira a chorar.
Porque chorava a cabreira
Ides agora escutar :
«Ai! que triste a sina minha,
Ai! que triste o meu penar,
Queo sei de pai nem mãe,
Nem de irmãos, a quem amar.
«De pequenina nos montes
Nunca tive outro brincar.
Nas canseiras do trabalho
Meus dias vejo passar. »
Mas, ao desviar os olhos,
Viu coisa que a fez pasmar.
uma cabra toda branca
Se lhe íora aoss deitar.
Assim, pouco mais ou menos disse Daniel, pousando a
cabeça nos braços encruzados sobre as urzes do chão.
Margarida prosseguiu:
Branca toda, como a neve,
Que nem se deixa fitar,
Coberta de finas sedas,
Que era coisa singular !
E, maliciosamente, com um sorriso de travessura infantil, passou
os dedos por entre os cabelos de Daniel,
Nunca a tinha visto antes
No seu rebanho a pastar,
E foi a íazer-lhe festa...
E foi para a afagar..,
E continuava a correr as mãos pela cabeça de seu jovem compa-
nheiro, que sorria.
Eis vai a cabra fugindo
Pelos vales sem parar;
Ia a cabreira atrás dela,
Mas nao a pôde alcançar.
E andaram assim três dias
E três noites sempre a andar !
Até que às portas de uns paços
Afinal foram parar.
Chorava o rei e a rainha
Há dez anos, sem cessar,
Que lhe roubaram a filha
Numa noite de luar.
E dez anoso passados
Sem mais dela ouvir falar.
Eis chega a cabreira à porta,
À porta se foi sentar.
«Ai que bonita cabreira...
E Margarida, ao cantar este verso,o pôde conservar-se séria,
vendo Daniel levantar os olhos para ela.
Que lá em baixo vejo estar I
E uma cabra toda branca,
Que nem se deixa fitar.
«Meus criados e escudeiros,
Ide a cabreira buscar.»
Isto dizia a rainha,
Este foi o seu mandar.
Foram buscar a cabreira
E a cabra de a acompanhar
Até às salas dos paços
Qnde o rei a viu chegar.
«Pela minha c'roa de ouro
Eu quero agora apostar,
Que é esta a filha roubada
Numa noite de luar. »
Milagre! quem tal diria!
Quem tal pudera contar !
A cabrinha toda branca
Ali ses a falar.
A seguinte quadra foi cantada também por Daniel, e sem ofensa
da harmonia:
«Esta é a filha roubada
Numa noite de luar,
Andou sete anos no monte
Quem nasceu para reinar ! »
O resultado da intervenção de Daniel foi acabarem os dois a rir,
corn grande risco de deixarem incompleta a cantiga.
A rogos do seu companheiro, Margarida, passados alguns momen-
tos, concluiu:
Que alegriaso nos paços,
E que festas sem cessar I
A filha há tanto perdida,
No trono os paiso sentar.
Em damas pra vesti-la,
Em damas pra calçar ;
E as mais prendadas de todas
Para as trancas Ih'enfeitar.
o procurar a cabrinha ...
Ninguém a pôde encontrar;
Mas...
Foi olhando para Daniel que a pequena Guida terminou:
Mas um anjo de asas brancas
Viram aos céus a voar.
E assim acabou a ultima quadra da xácara, e, por algum tempo,
as duas crianças se conservaram caladas, como se quisessem seguir
ainda, até às derradeiras vibrações, as notas melodiosas daquela voz,
ao desvanecerem-se no espaço.
Daniel foi o primeiro a romper o silêncio.
Entãos como a soubeste até ao fim ? E cantaste-ao bem !
Ora!
Mas é noite, Guida. Repara. Olha queo horas de tu ires jun-
tando o gado.
E acrescentou, suspirando melancólicamente:
Daqui a pouco estou eu de volta com o meu latim ! E que lição
tamanha me marcou o padre para amanhã !
Então de que tamanho é ?
Olha ; vai vendo disse Daniel, abrindo a Selecta e mostrando
a Margarida as folhas que o reitor lhe marcara para estudar. É esta
lauda... e esta... e esta, até aqui.
E então isso o que diz ?
Conta a vida lá de uns generais antigos, que fizeram guerras
e mortes e que quase sempre se matavam a si, quandoo os matavam
a eles.
E para que é preciso que saiba essas histórias quem quer ser
padre ?
Eu sei lá ! Mas que estás tu a dizer ? Padre ! padre !o me
fales em ser padre, Guida. Eles cuidam que eu quero mesmo ser padre.
Estou querendo.
Então?
Ora quando chegar a ocasião eu lhas cantarei. Ainda está por
nascer o barbeiro que me há-de abrir a coroa. O tio João das Bichas
disse-me no outro dia a rir, já se sabe que já tinha em casa uma
navalha afiada para isso; eu fui-lhe dizendo que bem deixava então
navalha para o barbearem em morto.
Mas o seu pai mata-o !...
Meu pai ? Deixa-te disso. Meu pai nao há-de querer fazer-me
padre à força.
Mas o sr. reitor ?
O sr. reitoro é cá chamado. Que se meta com a sua vida.
Ora é muito boa!
E porqueo quer ser padre, Danielzinho?
Olhem que pergunta !o quero ser padre, porqueo quero,
porque gosto de ti, e porque, afinal de contas, hei-de vir a casar contigo.
Ora!
Hei-de, sim. Verás.
E, dizendo isto, passou familiarmente o braço pelo pescoço da
pequena Guida, e pousou-lhe na fronte um beijo, que ainda nem sequer
a fazia corar.
O reitor estava escandalizado e estupefacto por quanto vira e
ouvira.
Tivesse assistido, em pessoa, ao aparecimento do Anticristo,
queo se maravilhara tanto.
Esta cena inofensiva, esta écloga entre duas crianças, parecia-lhe
mais abominável do que a outro qualquer as mais impúdicas aventu-
ras daquele herói, que Byron imortalizou com o nome de Dom João,
nome, já antes dele, de pouco austera memória.
Ao chegar a seus atónitos ouvidos a vibração sonora do beijo,
que terminou o diálogo, o padre estremeceu como se acabasse de
escutar um silvo de serpente cascavel, eo pôde reprimir uma inter-
jeição desaprovadora, bastante audível, para ser percebida por todas
as personagens da cena que descrevemos.
o ouviste, Guida? Que foi aquilo? disse Daniel, já meio
erguido, e olhando com certa inquietação em redor de si.
o é nada respondeu esta, com pouca mais frieza de ânimo.
Mas, neste tempo, já oo se havia levantado e ladrava furiosa-
mente na direcção do lugar onde o reitor estava escondido.
Aqui, Gigante, aqui !—bradava-lhe emo Margarida.
O que estará acolá no centeio, para oo ladrar assim ? per-
guntou Daniel já sem pinga de sangue.
E oo ladrava cada vez mais, e parecia pronto para arremeter
contra um inimigo oculto.
O reitor, como é de prever, começava a achar-se muito pouco à
vontade.
Aqui, Gigante continuava a pequena, já cansada de bradar..
Mas Daniel, assustado, valeu-se do cão, como instrumento de explo-
ração e defesa, e soltou uma palavra imprudente:
Busca, Gigante, pega !
o foi preciso mais nada.
O Gigante galgou de um salto o estreito caminho, que o separava
do campo onde o reitor cada vez suava mais com a iminência do perigo,
e rompendo por entre o centeio, veio pousar triunfantemente as patas
dianteiras sobre os ombros do pobre velho, que julgou ver a morte na
figura deste monstruoso cão.
como esses bonecos, que fazem as delícias dos pequenos feiran-
tes do S. Miguel e do S. Lázaro, no Porto, e que, ao abrir-se a caixa,
que os contém,o repentinamente expelidos por uma mola interior,
o pároco, ao toque mágico do agigantado quadrúpede, ergueu-se de
súbito sobre os calcanhares, e meio sufocado pelo susto, e com as faces
enfiadas, bradou para Daniel :
Chama este cão, rapaz endemoninhado ! Ele mata-me !
Daniel é queo lhe podia valer,o embasbacado ficou com a
inesperada aparição do mestre. A mulher de Loth por certoo se
conservouo imóvel, depois do fatal momento em que cedeu à sua
irresistível curiosidade.
A pequena Margarida é que salvou a situação como me parece
que se costuma dizer em política. Armou-se da maior severidade
que lhe era possível, e com a inflexão de voz imperiosa, pronunciou
um « aqui Gigante ! » que foi prontamente obedecido.
O reitor estava salvo, mas aindao senhor seu, e deveras chu-
fado com as circunstâncias ridículas que acompanharam a sua desco-
berta. Ora, como sempre acontece, estas circunstâncias inabilitavam-no
para assumir o carácter severo, grave e pedagógico, necessário a
quem se propõe a dar uma repreensão, ou a fazer uma prática de
moral.
com muito bom senso renunciou, pois, o reitor a este projecto, e,
sem dar palavra, virou costas e abandonou o lugar dessa aventura, inte-
riormente quaseo pouco satisfeito consigo como com o seu discípulo.
Daniel, passados alguns momentos mais de silencioso pasmo,
desatou a rir, a rir, a rir, desse expansivo e contagioso rir de criança,
queo tem outro igual. Esqueceu o que para eie havia de estranho
e sério em tudo aquilo, e as consequências que poderia ter, para só se
lembrar da carantonha que fazia o reitor a gritar que lhe acudissem,
do susto que apanhara, do aspecto sorumbático que levava ao partir,
e por isso ria a bandeiras despregadas.
Vejam lá se o padreo fez bem em adiar o sermão para ocasião
mais oportuna?
Porém Margarida? Essa é que seo ria. Certo instinto de delica-
deza, inato em quase todas as mulheres,o sei que vaga presciencia
de infortúnio, que algumas, de criança, possuem, parecia-lhe estar
dizendo que tudo aquilo, sem saber porquê, lhe poderia vir a ser
funesto.
E enquanto Daniel ria, ela, coitada,o se pôde conter, e começou
a chorar.
Que tens tu, Guida? Isso que é? perguntou-lhe Daniel, já
sèrio e meio sensibilizado.—Porque choras assim?
Deixe-me.o sei bem... mas sinto uma tristeza... e tama-
nha... tamanha! Vamos. É tarde, vou juntar o gado.
E eu ajudo-te.
Não. Vá para casa e corra bem, antes que o sr. reitor chegue
lá primeiro.
Pois ele irã?...
Ande... corra.
Foi então que Daniel reconheceu que Margarida podia ter alguma
razão emo levar o caso a rir, e queo devia ser para ele uma coisa
de todo insignificante a aparição do padre ali. Por isso disse adeus à
sua companheira, e deitou a correr para casa.
V
N
O dia seguinte, que era um domingo, vestia-se o reitor, na sacris-
tía, para celebrar a missa conventual. Entre as diversas pessoas
que assistiam ao acto, avistou ele o nosso conhecido José das
Dornas, e a lembrança do ocorrido na véspera surgiu-lhe outra vez ao
espírito, acompanhada de todas as circunstâncias desagradáveis que
se deram então. Durante a noite, havia o padre, as com o travesseiro,
tomado uma resolução. Foi, pensando nela, que no momento em que
José das Dornas se aproximou mais do lugar, em que ele se paramentava,
lhe disse:
Logo, depois da missa, espera-me, lá fora, no adro, que temos
que conversar.
José das Dornas fez um sinal de assentimento, e entrou para a
capela.
Nada ocorreu durante a missa, que exija especial referência.
Foi dita pelo reitor com todas as formalidades do rito, e escutada pelo
auditório, e principalmente por José das Dornas, com respeitosa atenção.
Acabada ela, formaram-se diferentes grupos pelo adro, do qual
uma frondosa alameda fazia, naquela época do ano, um dos lugares
mais apetecíveis da terra ; José das Dornas trocou meia dúzia de pala-
vras com alguns conhecidos seus. Falou no tempo, no aspecto das sea-
ras, nas mudanças da Lua, e, pouco a pouco, foi ficando cada vez mais
desacompanhado, porque os aldeãos iam dispersando, atraídos pela
lembrança do jantar que os esperava.
Finalmente achou-se de todo só e pôs-se, de mãos nos bolsos, a
passear no adro. No entretanto ia fazendo suas conjecturas sobre os
motivos que levariam o reitor a mandá-lo esperar e sobre a natureza da
conversação que ia ter com ele.
Estas conjecturas, porém,o lhe ofereciam solução que o satis-
fizesse, e, muito razoavelmente, acabou o homem por se decidir a espe-
rá-la do entretenimento queo podia tardar.
De factoo tardou. O reitor saiu finalmente da sacristía, e diri-
giu-se imediatamente para José das Dornas, que se descobriu ao
avistá-lo.
Está à vontade, José, está à vontade. Ora...s temos que
falar a respeito do teu pequeno.
Então é preciso comprar-lhe mais alguns livros ? O que V. S.
a
vir que...
Nada, nada. A coisa agora é muito diferente.
Então?
É que... Ora escuta, José. Lembras-te de que eu te disse, aqui
há tempos, que o rapaz havia de ser padre?
Se lembra? Muito bem. E eu disse...
Bem, bem. Pois... se queres que te fale a verdade... parece-me
que o melhor... é dar-lhe outra arrumação.
José das Dornas parou e pôs-se a olhar boquiaberto para o reitor.
Então... o pequeno nao tem memória para os estudos?
Tem, tem, e até de mais... Mas... ouve: esta vida de sacer-
dote quer vocações decididas. Nao as havendo, é um grande erro
abraçá-la, e um grande pecado constranger alguém a segui-la contra
vontade.
Credo ! Pois quem diz menos disso? Mas então, acha o sr. reitor
que o rapazo terá queda?...
Hum, hum... —murmurou o reitor. —Parece-me queo tem
grande queda, não.
Valha-me Deus, mas... porque julga V. S.
a
isso? e queira
perdoar se sou confiado em perguntar.
Cá por certas coisas.
E eu que até me parecia que b pequeno fora mesmo talhado
para a vida!
Também eu o julgava.
O seu gosto era ajudai à missa.
Olha lá se os agora?
Até pelos seus brinquedos. Olhe queo havia para ele como
o armar igrejinhas e pregar sermões.
Isso agora... enquanto a gostos e brinquedos... parece-me'
que houve sua mudança ùltimamente.
Então ?
O reitor hesitava em revelar a verdade inteira a José das Dornas ;
por isso, a esta pergunta, começou ainda a titubear, e respondeu evasi-
vamente :
Sim... creio que já seo entretém muito com igrejinhas...
Ah! pois sim... mas... é que agora tem já outras canseiras...
Os estudos...
Ah! os estudos... Ë o que me lembra.
Olhe, sr. reitor continuava José das Dornas, um tanto incré-
dulo a respeito da mudança de inclinação do filho eu, finalmente...
sim... como o outro que diz...o sei lá as razões que tem V. S.* para
pensar dessa forma... mas a mim está-me a parecer ave V. S.ª se
engana.
O reitor tinha atingido os limites da sua grande paciência. Esta
dúvida de José das Dornas, ainda que formulada a medo, acabou de
resolvê-lo a ser mais explícito.
E se eu te disser, José das Dornas exclamou ele, parando e
voltando-se para o seu interlocutor se eu te disser que teu filho
Daniel, apesar dos seus doze ou treze anos, que será a idade dele, tem
já na aldeia a sua conversada?
José das Dornas parou como fulminado.
O reitor continuou o seu caminho.
Que diz, sr. reitor?! exclamou afinal José das Dornas, atra-
sado já uns cinco ou seis passos, e na mesma posição em que o deixara
a revelação.
O que sei ! respondeu o reitor, com eloquente laconismo.
Em nome do Padre, do Filho, e do Espírito Santo ! Está o mundo
roto! Pois o rapaz... Ó sr. reitor, palavra, que se fosse outra pessoa
que mo dissesse, eu nao acreditava.
E se eu te afirmar que vi, com os meus olhos, o teu Daniel,
sentado no monte ao pé da rapariga, cantando juntos, lendo juntos, e
afirmando-lhe o rapaz que nunca havia de ser padre, pois queria casar
com ela?
Ora, ora, sr. reitor, essa é de mais. Há-de perdoar, mas essa...
E se eu te disser que ele lhe deu um beijo ! acrescentou o
padre, em tom confidencial.
um beijo !
E se eu te disser que ele, todos os dias, me sai da aula às cinco
horas, e passa o resto da santa tarde junto da pequena?
Ora o rapazinho !
Então jás queo convém fazê-lo padre. Para dar maus
exemplos, temos, infelizmente, bastantes. E quando o pano é assim
em amostra, que fará a peça inteira!
Mas que lhe havemos de fazer agora ?
Se te guiares pelos meus conselhos, aí tens um plano : dei-
xa-te de ordenar o rapaz. Pega nele e remete-mo quanto antes para
um colégio, onde lheo deixemr o pé em ramo verde. Fá-lo
depois médico... advogado... o que quiseres e que a ele nao
repugne...
Então quer dizer que o mande para Coimbra?
Para Coimbra?... Eu sei?... Homem, a falar a verdade, semente
desta em Coimbra, é para dar uns frutos por aí além. Para o Porto, onde
ele possa estar sob as vistas dos parentes que lá tens, vai muito melhor.
Põe-mo a cirurgião. Eles hoje, dizem, que saem de lá como de Coimbra,
e olha que é uma boa carreira. O nosso João Semana está velho, e, mor-
rendo ele,o temos por aqui mais ninguém. Mas é preciso tratar disso.
Impõe-me o rapaz daqui para fora, se queres fazer dele alguma coisa
de jeito.
Mas ó sr. reitor, e quem era a cachopa?
Isso agora é que jáo é da tua conta. Faz o que eu te digo, e
deixa o resto.
E, nestes termos, se separaram os dois, tomando cada um a direc-
ção de casa.
José das Dornas ainda esteve por algum tempo impressionado
com o que lhe acabara de dizer o reitor.
Há notícias de uma digestão demorada e laboriosa, como a de
certos alimentos.
Enquanto ela dura, o espíritoo se acha à vontade e como que
se agita sob a influência de uma incômoda sensação ; mas, pouco a
pouco, opera-se um íntimo trabalho assimilador, acalma-se a espécie
de febre digestiva, que acompanhara aquela elaboração mental, e tudo
entra na ordem. A notícia, que nos impressionara, perde enfim quanto
se nos havia figurado ter de estranho ; sentimo-nos mais livres e em mais
felizes disposições para encararmos os factos.
Assim aconteceu com José das Dornas : o que, ao princípio, lhe
avultara como calamidade, acabou por se transformar em uma coisa
naturalissima e engraçada até; o que lhe parecera desmoronamento
de um belo edifício em construção, convenceu-se em pouco tempo
queo passava de uma reforma preparatória para futuro melhor ;
e de carrancudo e pesaroso que ficara ao princípio, acabou por se
tornar prazenteiro e quase risonho.
O rapaz sai-me da pele do Diabo ! com que já tinha também
a sua conversada ! Havia mister ! Ah ! ah ! ah ! E o reitor atrapalhado !
Ah ! ah ! ah ! Agora é que eu lhe acho graça ! E como ele soube dizer
queo havia de ser padre, porque queria casar! Ora o rapazinho!
Esperto é ele! oh! Mas como diabo o ouviu o reitor? A falar
a verdade... o pequeno tem razão. Eu, queo bem me dei com aquela
santa, que está no Céu, como havia de obrigar um filho meu ao
gozar de uma felicidade como a minha? Deixar o rapaz... Quer
casar?... Faz ele muito bem. Deus lhe depare uma boa cachopa, que
seja mulher de casa... Mas quem seria a tal ? Isso e que o padreo
diz. Pois hei-de sabê-lo. Sempre mandarei o pequeno para o Porto...
E que dúvida! Nas terras grandes é que se fazem os homens...
Há-de ser cirurgião, se quiser. O reitor lá nisso diz bem. O João
Semana está acabado... Padreso faltam... e com a esperteza do
Daniel, era uma penao fazer dele outra coisa... Ai o rapazinho que
é os meus pecados ! Ah ! ah ! ah ! Sume-te ! Já tem o sangue na guelra.
Madruga !
E, com este monólogo e as mais fagueiras disposições de ânimo,
e que, sem cessar, as recordarão ; os que ficam antevêem que, longe
de tudo que possa falar-lhes delas, pouco a pouco se varrerão essas
promessas da memória do ausente, e, ao dizer o adeus da despedida,
um amargo pressentimento lhes segreda que dizem adeus a uma
ilusão.
Ora é preciso saber que Margarida se sentia triste, profunda
e inconsolàvelmente triste, sem que lhe acudisse à idéia tudo quanto
havemos dito. Porém, a nós, é-nos lícito analisar aquele tenro coração
de criança, afeiçoada para o sentimento, e dotada de delicadíssimos
instintos, como o de poucos. Alma votada à melancolia e que se habi-
tuara a sentir, sem se estudar ! nao há para mim mais simpática espécie
de sofredores ! Os mártires que se analisam, e nos fazem resenha e
inventário dos seus tormentos: esses, que, todos os dias, desenvolvem
em estilo imaginoso a fisiologia do próprio coração, indagam a teoria
do padecer, que, dizem eles, os tortura, e o fazem com uma profundeza
de vistas verdadeiramente filosófica... esses mártires... para falar ver-
dade,o creio muito neles. Quem sofre deveras, tenho eu para mim,
acha-se com pouca vontade de esquadrinhar os mistérios do sofrimento
eo see com grandes filosofias a esse respeito. Eu julgo mais natural
e sincero fazer como a pequena Margarida, depois da partida de Daniel :
subindo todas as tardes ao outeiro silvestre onde tantas vezes ele se
viera sentar também, sentia cerrar-se-lhe o coração de tristeza, e...
desatava a chorar.o sei que moda anda agora de se nao considerar
o choro como a mais eloquente expressão do pesar ! Eu, por mim, é dos
sinais em que deposito mais.
Era bem justificada esta saudade de Margarida. A curta biogra-
fia dela a fará compreender.
Guida era o único fruto do primeiro matrimônio de seu pai, cuja
morte recente acabara de a fazer órfã de todo. Entregue ao domínio
de uma madrasta, queo desmentia, pela sua parte, a fama que de
ordinário acompanha este pouco simpático nome, tivera a experimentar,
nos maus tratamentos recebidos e na frieza ou declarada aversão, com
que lhe dispensavam os poucos cuidados de que se via objecto, toda
a amargura de uma existência sem carinhosas afeições, esseo neces-
sário alimento ao coração das crianças. Arredada de propósito de casa,
e passando dias inteiros nos montes, a acompanhar o gado, habituou-se
de pequena à vida da solidãoe é sabido que hábitos de melancolia
se adquirem nesta escola. Foi, pouco a pouco, contraindo o carácter
triste e sombrio que é o traço indelével que fica de uma infância, à qual
se sufocaram as naturais expansões e folguedos, em que precisa de
trasbordar a vida exuberante dela. Por isso se afeiçoara a Daniel, o
único que a viera procurar à sua solidão e oferecer-se como o suspi-
rado companheiro das suas horas infantis. Vê-lo desaparecer agora,
era assistir ao desvanecimento da mais grata das ilusões, da mais intensa
das suas alegrias ; e a sensibilidade nascente da pobre criança recebia
uma nova tempera nesta separação dolorosa.
VII
M
AS deixemos as lágrimas, e as íntimas eo ostentosas tristezas
de Margarida, e vamos chamar ao primeiro plano da cena um
personagem que, contra os seus direitos de primogenitura,
temos até agora deixado oculto na penumbra dos bastidores.
Falamos de Pedro, o filho mais velho de José das Dornas.
Pedro, mais idoso que seu irmão cinco anos, teve uma infância
mais trabalhosa que a dele, mas bem menos digna de menção no
romance. Votado, como já disse, aos trabalhos da lavoura, as horas
que tinha de ociosidade empregava-as a dormir, sono que as fadigas
do dia faziam digno de inveja.
Por certo que os leitoreso quereriam que eu lhes referisse
aqui as pequenas diversões daquela vida de rapaz de aldeia. Seria uma
fastidiosa enumeração de jogos e de freqüentes lutas com os compa-
nheiros, por vários motivos pueris. Isto até quase aos dezassete anos.
Enquanto que Daniel estudava o latim e se distraía já da aridez das
regras da sintaxe, conversando as no monte com Margarida, Pedro
trabalhava, dormia, ou brincava no terreiro com os rapazes da sua
idade, sem sentir outras aspirações, e achando-se até pouco à vontade
junto das mulheres, com quem nem sabia conversar.
o eram, porém, definitivas estas disposições de espírito em
Pedro, como se vai já mostrar. Aos dezoito anos operou-se a revolução.
Istoo quer dizer que a febre da adolescência principiasse a
fazer circular nas veias do moço lavrador esse sangue inflamado, que
devora como uma oculta labareda; que ele tivesse dessas tristezas
súbitas, desses devaneios eo sei que fantasiar mal distintas felicida-
des, desses arroubamentos, desse amor ideal, sem objecto, que é o
mais puro e espontâneo culto do coração humano. Nada disso. A natu-
rezao afinara a alma de Pedro para as subtilíssimas vibrações desta
ordem. Esta quinta-essência da sensibilidadeo lhe fora concedida.
A gente da aldeiao conhece os prenúncios do amor, que os poetas
m apregoado no seu lirismo, a ponto de se acreditar por aí na uni-
versal realidade deles ; sendo forçoso confessar que muita gente,
que nunca na vida sentiu os tais vagos e erráticos sintomas, a que me
refiro, e que contudo amam ou amaram deveras. Se serão os bem, se
os mal organizados,o me atreverei a decidir, mas que os, isso
sustento eu. E Pedro era dos tais.
Querem saber como principiou nele a transformação a que aludo ?
Tudo veio naturalmente, sem aquela intensidade de fenómenos pre-
cursores, que, à imitação dos médicos, poderíamos talvez chamar
críticos.
um dia foi convidado para um serão. Aceitou contra vontade. Lá
divertiu-se mais do que julgou, e voltou contente, dormindo a
sono solto depois. Daí por dianteo faltava a nenhuma dessas
assembléias campestres : fiadas, esfolhadas, espadeladas, ripadas ;
lá ia a todas com a sua viola, traste indispensável aos dandis da
localidade.
Habituou-se por lá a conversar com as raparigas, e, dentro em
pouco, era mestre em trocadilhos e conceitos amorosos. Aventurou-se
uma vez a cantar ao desafio ; a musa auxiliou-o, e dali em diante foi-lhe
concedida a palma nesse género de certames.
com tais predicadoso lhe podiam escassear aventuras de amo-
res ; eo lhe escassearam.
Mas, em todo este tempo, e apesar de todas as ocorrências, con-
tinuava dormindo as suas noites plàcidamente e de um sono ; dando
assim uma excelente lição a esses amantes wertherianos, que, por as
mais pequenas coisas, perdem o sono e o apetite. Ele não. Os seus
arrufos, as suas contrariedadeso chegavam a esses excessos. com
o amor dá-se o mesmo que com o vinho. Perdoem-me as leitoras o
pouco delicado da confrontação ; mas bem vêem que ambos eles embria-
gam. É portanto lícito compará-los. Diz-se de certas pessoas que
têm o vinho alegre de outras que o têm triste estúpido
bulhento conforme dá a alguns a embriaguez para a hilaridade, a
outros para o sentimentalismo, a outros para a modorra ou para brigas.
Pois com o amor é o mesmo. Amantes há que celebram os seus amores,
e até as suas infelicidades amorosas, sempre em estilo de anacreón-
tica essesm o amor alegre; outros que, quando amam, embora
sejam ardentemente correspondidos, suspiram, procuram os bosques
solitários, que enchem de lamentos, e as praias desertas, onde carpem
com o alcião penas imagináriasm estes o amor sombrio ; a outros
serve-lhes o amor de pretexto para espancarem ou esfaquearem quan-
tas pessoas imaginam que podem ser-lhes rivais ou estorvos, e, nesses
acessos de fúria, chegam a espancar e a esfaquear o objecto amado
sao os do amor bulhento e intratável ; há-os que emudecem e embas-
bacam diante da mulher dos seus afectos, que em tudo lhe obedecem,
que a seguem como o rafeiro segue o dono, e experimentam um
prazer indefinível em adormecer-lhe aoss pertencem aos do amor
impertinente e estúpido. Poderia ir muito longe essa classificação,
se fosse aqui o lugar próprio para ela.
Basta, porém, que diga que o amor de Pedro das Dornas perten-
cia à primeira categoria ; tinha de facto ele o amor alegre.
Pedro cantava sempre ; tudo lhe servia de tema a uma série de
quadras improvisadas, de que fazia uso para alentar-se no trabalho.
É verdade que talvez isso fosse porque Pedroo tinha ainda encon-
trado o verdadeiro amor, aquele que, dizem, uma vez só na vida se
experimenta. Em todo o caso, era o que sucedia com ele.
Mas o reitor estava sempre a pregar-lhe :
Pedro, tu andas-me por aí muito à solta! Vê lá onde vais cair.
Ó sr. padre Antonio, a gente também precisa de se divertir
um bocado.
Pois sim, mas tudo se quer em termos e que nao venham depois
as lágrimas e os arrependimentos !
Euo hei-de fazer coisa que...
Sim, sim... Sabes o que eu te digo? O melhor, rapaz, é pro-
curares o que te faça arranjo, e então que seja deveras. Casa-te e dei-
xa-te de andar desnorteado, e nessa vida airada, que raro dá para bem.
Ora, sr. reitor, aindao novo, hei-de já tomar canseiras de
família ?
Queira Deus que, conservando-te assim como estás,o as
acarretes mais pesadas ainda.
o obstante os conselhos do reitor, Pedroo se sentia com
grande vocação matrimonial. Todas as suas afeições eram efémeras, e
daquelas, em cujo futuro o próprio que as senteo acredita, mas
lá vem uma vez que é de vez diz o ditado ; e, com Pedro,o estava
esta fórmula da sabedoria popular destinada a ser desmentida.
Vejamos como foi isto. Ia Pedro nos vinte e sete anos já era
então um rapaz vigoroso e sadio, de belas cores e músculos invejáveis.
Andava certa manhã ocupado a cortar milho em um campo, propriedade
da casa, o qual ficava situado na margem do pequeno rio, que atraves-
sava a aldeia em continuados meandros.
Próximo, havia uma ponte de pedra de dois arcos, construção
já antiga, mas bem conservada ainda; o rio era nesse lugar pouco
fundo, e deixava à flor da água as maiores das pedras espalhadas pelo
seu leito, permitindo assim passagem, a pé enxuto, de uma para outra
margem.
De joelhos sobre estas poldras, como por lá lhe chamam, desde
o arco até alguma extensão no sentido contrário ao da corrente, um
bando de lavadeiras molhava, batia, ensaboava, esfregava e torcia a
roupa, ao som de alegres cantigas, interrompidas às vezes por estre-
pitosas gargalhadas ; outras estendiam-na pelos coradouros vizinhos, e,
algumas, mais madrugadoras, principiavam a dobrar a que o sol da
manhã havia já secado.
Pedro, do campo onde trabalhava, via estas raparigas, conhecidas
suas quase todas, mas sem que o vê-las o distraísse da tarefa em que
andava empenhado.
À medida, porém, que, prosseguindo na ceifa, se aproximava
mais da beira do campo, imediato ao rio, como o adiantado do trabalho
lhe concedia mais vagares, pôs-se a reparar com atenção para uma das
avadeiras e a achar certo prazer na contemplação.
Era uma rapariga de cintura estreita, mãos pequenas, formas
arredondadas, vivacidade de lavandisca, digna efectivamente das
atenções de Pedro e até de outro qualquer mais exigente do que ele.
As mangas da camisa alvíssima, arregaçadas, deixavam ver uns
braços bem modelados, nos quais se fixavam os olhos com insistência
significativa. um largo chapéu de pano abrigava-a do ardor do sol e
fazia-lhe realçar o rosto oval e regular de maneira muito vantajosa.
De quando em quando, levantava ela a cabeça e sacudia, com
um movimento cheio de graça, a trança mais indomável, que, despren-
dendo-se-lhe do lenço escaríate que a retinha, parecia vir afagar-lhe
as faces animadas, beijar-lhe o canto dos lábios, efectivamente de tentar.
Em um destes movimentos freqüentes, reconheceu que era obser-
vada, se é que certo instinto, peculiar das mulheres bonitas, lhoo
fizera já adivinhar. Sabendo-se observada, conjecturou que era admi-
rada também conjectura que por mulher alguma é feita com indife-
rença e muito menos por Clara era o nome da rapariga porque,
diga-se o que é verdade, tinha um tanto ou quanto de vaidosa.
Lisonjeada, pois, com a descoberta, sentiu Clara desejos de se fazer
apreciar mais do que pelos olhos, de cujo conceito elao podia já
duvidar.
Elevou para isso a voz, e em uma toada conhecida, em uma dessas
eternas e popularíssimas músicas da nossa província, das que mais
espontaneamente entoam as lavadeiras nos ribeiros e as barqueiras
aos remos, cantou a seguinte quadra:
Ô rio das águas claras,
Que vais correndo prò mar.
Na pausa que, segundo as exigências da música, se faz ao fim dos
dois versos, Clara torceu a roupa que estava lavando, e lançou, com
disfarce, os olhos para o lugar, onde Pedro a escutava ; depois concluiu :
Os tormentos que eu padeço
Ai,o oss declarar.
Pedro efectivamente estava recebendo com prazer o timbre agra-
dável daquela voz feminina; sentiu em si uma comoção estranha, visi-
tou-o a musa rústica, e, atirando-se com vontade ao trabalho, elevou
também a voz, jáo conhecida por todos os freqüentadores de arraiais
e esfolhadas, e respondeu:
o declara, queo pode,
Eo tem que declarar.
Na pausa olhou também para o iado onde estava Clara, a qual
ria ocultamente com as companheiras, que eram todas ouvidos. A luva
fora levantada e principiava o certame. O momento era solene ! Pedro
terminou :
Pois quem, como tu, é bela,
o pode ter que penar.
um murmúrio de aprovação se levantou do conclave feminino,
A reputação de Pedroo fora desmentida desta vez ainda.
Mas Clara nao era menos repentista. Tinha fama de nunca haver
cedido o passo nestas pugnas incruentas, mas renhidas. É verdade
que, no caso presente, o contendor era de respeito; ela porém
aventurou-se eo fez esperar a resposta :
O que eu peno ninguém sabe,
Ninguém o pode saber;
Porque eu peno eo me queixo,
Em segredo sei sofrer.
Novos sinais de aprovação das mulheres, os quais estimularam a
emulação de Pedro. Ele respondeu:
Pois o sofrer em silêncio
É um dobrado sofrer:
Melhor é contarmos tudo
A quem nos possa entender.
Esta quadra ainda produziu mais efeito do que as precedentes
graças à insinuação que nela se fazia, e tendências que mostrava
para dar novo caracter ao desafio.
Clara aceitou a direcção que lhe era indicada assim, e respondeu :
A quem me possa entender
Tudo eu quisera contar ;
Mas os amigoso raros,
Nao sei onde os encontrar.
E logo Pedro :
Encontra-os a cada canto
Quem os quiser procurar ;
E um dos mais verdadeiros
Aqui te está a escutar.
Chegadas as coisas a este ponto, o combate prolongou-se por
bastante tempo, sustentado de parte a parte com igual denodo e perí-
cia. No entretanto a roupa ia-se lavando e o milho achava-se quase todo
ceifado. Os contendores, cada vez mais próximos, pareciam cada vez
mais de coração empenhados na luta. Mas tudo tem um fim neste mundo.
com as respectivas tarefas, terminou a justa, ficando ambos os
campeões vencidos um por o outro, pois ambos se reconheciam já
sèriamente apaixonados.
Pedro passou as canas de milho para o carro. Clara meteu a roupa
na canastra ; e puseram-se a caminho. Encontraram-se na ponte, e tra-
varam então um diálogo em prosa, que foi a confirmação de quanto, em
verso, tinham dito. E dai se originou uma afeição mútua, que, desde
o principio, assumiu em Pedro carácter mais grave e prometedor de
bons resultados, do que as antecedentes.
O reitor, que andava sempre com os olhos em cima do rapaz,
disse-lhe dias depois :
Lembra-te dos meus conselhos, Pedro.os mais longe.
Fica por onde estás, que nao ficas mal.
Pedro já lheo opôs os costumados argumentos antimatrimo-
niais. Calou-se. É que desta vez a coisa era mais séria ; e demais Pedro
ia nos vinte e sete anos, e por isso começava a sorrir-lhe mais afàvel-
mente o remanso do matrimônio.
Mas, para justificarmos a opinião do reitor a respeito da nova
inclinação de Pedro, digamos quem era esta Clara, que assim de
repente pusemos diante do leitor sem prévia apresentação.
. VIII
C
LARA era a filha do segundo matrimônio do pai daquela mesma
Margarida ou Guida, cujos amores infantis tanto haviam já dado
que entender ao reitor.
O pai de Margarida fora pela primeira vez casado com uma prima,
que nada mais lhe havia trazido em dote, além de uma afeição ilimitada
e de um coração excelente.
Durante a vida da primeira mulher viveu ele sempre, à custa de
muito trabalho, pelo ofício de carpinteiro,o podendo até mandar
aprender a 1er a filha, único fruto desta primeira união, pois que de
pequenina a teve de ocupar no trabalho.
Ae de Margarida morreu, porém, deixando-a de idade de
cinco anos. O pai, como já dissemos, deu-lhe em pouco tempo madrasta,
e, na opinião do mundo, fez um óptimo negócio o carpinteiro.
De facto, a segunda mulher trouxe-lhe um dote avultado, e, dentro
de alguns dias, viam-no abandonar a ferramenta do ofício e entre-
gar-se todo ao fabrico e administração das suas novas terras, tornan
do-se um dos mais considerados lavradores dos arredores. Mas a
próspera fortuna do recente lavrador converteu-se em tormento e des-
ventura para a desamparada criança.
A madrasta, em pouco tempoe de uma outra rapariga, ciosa de
toda a afeição e caricias paternas, que Margarida pudesse disputar a
sua filha, aborrecia-a e procurava sempre pretextos para a trazer por
longe.
Daí, a causa daquela solidão em que a fomos encontrar, quando
pela primeira vez nos apareceu. Margarida chorava sozinha ou abai-
xava a cabeça resignada. Tinha um carácter dócil e submisso, eo se
atrevia a protestar, nem sequer por uma daquelas espontâneas e irre-
flectidas revoltas,o próprias da infância atribulada.
com a morte do pai agravaram-se ainda mais estas tristes circuns-
tâncias. Livre da única repressão que podia coagir a completa má von-
tade que tinha à enteada, aquela mulher de gênio violento acabou por
desprezá-la de todo. A cada passo lhe lançava em rosto a pobreza de
condição em que nascera, clamando que oo que lhe dava a comer
era um roubo que fazia à sua própria filha.
Margarida ouvia ; humilhavam-na estas contínuas e injustas recri-
minações, mas até as lágrimas procurava ocultar, com medo que dessem
causa a novas iras. Limitava-se a rezar muito a Nossa Senhora, para
que a levasse para si.
A pobrezinha olhava para o futuro e via-o cerrado, sem um único
raio de luz em que fitasse os olhos, para atravessar com mais ânimo as
trevas completas do presente.
uma só compensação experimentava a triste e desarrimada
criança, em troca de tantas dores e constante suplício : era a amizade
de sua irmã.
Clarao herdara dae durezas de coração nem violências
de gênio. Afável no meio das suas alegrias de infância, compadecia-se
já pelo que via sofrer a irmã, e admirando aquela resignação de mártir,
que ela bem se conhecia incapaz de mostrar em ocasião alguma da
vida, principiou a olhar para Margarida com certo respeito, que, pouco
a pouco, degenerou em prestígio e lhe cultivou no coração uma vene
ração sem limites.
Muitas vezes as rudezas dae para com Margarida faziam-na
chorar também, e, a ocultas, vinha pedir perdão a esta de um trata-
mento, de que ela bem percebia ser a causa involuntária.
Margarida, da sua parte, sentia-se grata ao generoso afecto de
Clara, e em pouco tempo ficou sendo esse laço o único, pelo qual ela
parecia prender-se ainda ao mundo, queo despovoado destas sedu-
ções lhe andara sempre.
Pequenos episódios, na aparência insignificantes, corroboraram
em uma e outra estes sentimentos e influíram na sorte futura das
duas irmãs, que, ainda crianças, se diziam já amigas inseparáveis.
Em uma noite de Inverno, ae de Clara deitara-se às nove horas
com a filha ; e por um requinte de crueldade estúpida, obrigara Mar-
garida a conservar-se a pé serandando, até concluir certa tarefa que
he marcara; e, ao deixá-la, dirigiu-lhe estas palavras cheias de
Humilhação para a pobre rapariga:
Minha rica, quem veio a este mundo, sem meios de levar
melhor vida,o deve perder o costume de trabalhar, nem ganhar
outros, com que, ao depois,o possa. Fica a pé e tem-me essa obra
Margaridao tentou uma só queixa ou súplica, em seu favor.
Calou-se e obedeceu.
Era, como disse, no Inverno ; fazia um frio excessivo. A lareira
estava apagada já ; da parede defumada pendia uma candeia, cuja luz
bruxuleante era a única a iluminar o recinto. O vento assobiava nas
inúmeras fendas da porta da cozinha e entrava em correntes impetuo-
sas pelo tubo da chaminé, indo inteiriçar os membros regelados da
desditosa criança, que, só a custo, podia já suster a roca e torcer o fio,
para terminar o trabalho. O silêncio da noite era interrompido por mil
ruídos sinistros, próprios para amedrontar as imaginações supersti-
ciosas como sempre, mais ou menos,o as da gente do campo,
Margarida, naquele momento, sentiu mais amarga, que nunca,
a sua orfandade e o seu desamparo. Chorou, chorou a ponto de se
sufocar, e pediu à Virgem que se compadecesse dela.
Lembrou-se então de quando a mandavam sozinha para o monte,
e daquelas raras entreabertas de felicidade que lhe fizera sentir a com-
panhia do pequeno Daniel.
As saudades desses dias nunca mais a deixaram. com elas vivia
sempre, com elas se achava, quando, olhando para o passado, lhe
pedia uma recordação de prazer, em paga de tanta tristeza que, no
presente, lhe oferecia a vida, de tantas sombras, com que lhe vinha
o futuro.
Nesta noite pensou também em Daniel ; pensando nele, e naque-
les breves momentos que vivera, esquecida do infortúnio, na solidão
dos montes, chegou a iludir-se, a imaginar-se transportada lá ; e esque-
ceu o frio e o medonho da noite que um e outro lhos fizera desvane-
cer a vara mágica da fantasia ; e insensìvelmente parou-lhe ao
que fiava, descaíram-lhe os braços, vergou a cabeça melancólica, e o
pensamento perdeu-se em longa e abstracta contemplação, que, sem
transição apreciável, terminou em um sono profundo. Encontraram-se
e confundiram-se os últimos devaneios da vigília, com os primeiros
sonhos em que flutuavam ridentes as mesmas imagens, fantasiadas ou
recordadas naquela.
Clarao pudera, porém, adormecer com a idéia do sacrifício
imposto à irmã. Do leito, onde se deitara com a mãe, ouvia o som do
soluçar de Margarida, e isto era um martírio para ela. A boa rapariga
pedia a Deus que olhasse por a pobre desvalida da irmã, que jáo
tinha nenhum amparo, e, rezando assim, chorava ainda mais do que
ela. Cedo, porém, um alto e pausado respirar deu-lhe a certeza de que
ae havia já caído no sono.
Clarao hesitou mais.
com todas as precauções possíveis, deixou-se escorregar de
mansinho entre o leito e a parede, colocou sobre os ombros uma capa
de baeta que encontrou à mão, e, com muita cautela, passou-se para a
cozinha, onde Margarida ja tinha adormecido. Clarao a acordou.
Depois de a agasalhar com uma manta do leito, agachou-se ao lado
dela e tirando-lhe subtilmente a roca da cinta, pôs-se, por sua vez, a
trabalhar.
Eram duas horas da noite e a tarefa estava terminada. Margarida
dormia... sonhava ainda.
Neste instante, um som, que julgou partir da alcova, fez recear a
Clara que ae tivesse acordado ; por isso, mal teve tempo de correr
a meter-se no leito, procurandoo excitar a desconfiança materna,
eo pôde chamar a irmã, para a mandar deitar.
Passados alguns momentos, Margarida despertou. Ao lembrar-
-Ihe que adormecera com o trabalho mal principiado ainda, apertou-
-se-lhe o coração, e a pobre criança juntou as mãos de desesperada.
Mas que espanto ao ver espiada a roca e fiadas as estrigas que lhe
haviam dado por tarefa !
A sua primeira idéia foi que tinha sido aquilo um milagre da
Senhora, a quem se havia encomendado, e cujo auxílio fervorosamente
suplicara. Tinham-lhe contado a lenda daquela freira que, abandonando
um dia a ermida da Virgem, de quem era devota, cega por uma paixão
mundana, voltara mais tarde às portas do claustro, coberta de arrepen-
dimento e de vergonha ; e, quando esperava encontrar recriminações
e opróbrios, soube que ninguém lhe tinha dado pela falta, porque a
Senhora se compadecera dela, e revestindo a sua imagem, viera todos
os dias fazer o serviço da clausura.
Margarida acreditou em outro milagre desse género e com estas
idéias se foi deitar, rendendo expansivas acções de graças à Virgem,
poro miraculosa intercessão.
Mas, pouco a pouco, a verdade foi-lhe aparecendo mais di-tinta,
e pela madrugada acabaram de confirmá-la alguns vestígios evidentes
de Clara ter estado junto de si nessa noite, e enquanto ela dormia ; denun-
ciou-a um lenço que deixara cair na pressa com que voltara à alcova.
Nessa manhã, pois, Margarida aproximou-se da irmã, e beijou-a
com efusão.
Obrigada, Clarinha, Deus te há-de recompensar essa bondade.
Se achas que mereço alguma recompensa, porque mao
s tu mesma, Guida?
Eu, meu coração ? Que recompensas podes esperar de uma
pobre ?
Queo queiras muito mal a minhae por tanto que te mor-
tifica, e que... me tenhas um pouco de amizade.
Querer mal a tua mãe, doida ! e posso eu querer mal a quem
me dá o pão, de que me sustento, o tecto e os vestidos que me cobrem?
Que eu nada disto tenho, Clarinha.
o me digas isso.
A minha amizade, pedes-me tu ! e um pouco de amizade,
disseste ! E, ao ser a ti, a quem queres que eu vá dar toda esta que
Deus mes no coração para dar ? De tuae recebo eu a esmola do
o e do abrigo, agradeço-lha e rogo a Deus por ela ; a ti devo-te mais :
devo-te a esmola da consolação e do conforto ; por isso te estremeço
e quero, Clarinha. E tu duvida-lo?
Esmola ! esmola ! Que palavra ! De quem recebes tu esmola
em casa de teu pai, Guida? perguntou Clara, com uma viva expres-
o do nobre orgulho que lhe estava no carácter.
Margarida sorriu melancólicamente a esta exaltação da irmã, e
respondeu :
Esta casao é de meu pai, é de minha...
Ia a dizer madrasta, mas conteve-se, receando dar à palavra uma
entonação menos afectuosa.
Clara saltou-lhe ao pescoço, e, por um daqueles impulsos irresis-
tíveis da sua índole generosa e expansiva, exclamou, beijando-a nas
faces :
Guida, Guida, esta casa ainda há-de ser minha, e então vere-
mos se me fazes a desfeita de lhe nao chamares tua também.
De outra vez tinha ido Margarida vender fruta ao mercado. com
inacreditável exigencia havia-lhe a madrasta fixado, de antemão, qual
devia ser o preço da venda,o lhe permitindo baixá-lo, e obrigando
a pequena, ao mesmo tempo, ao voltar para casa sem a ter realizado.
Os maus tratos e ásperas repreensões esperavam infalivelmente
Margarida naquele dia, vista a exorbitância dos preços estabelecidos
e umao grande afluência de fruta na praça, que barateava o género.
A rapariga chorava e lamentava-se, enquanto os compradores sorriam
ao ouvir o preço excessivo que ela pedia pela fruta.
Nisto apareceu Clara, que, por acaso, atravessava a feira naquele
momento. Viu a irmã assim aflita, e aproximou-se dela.
Que é isso, Guida? Tu choraste?
E admiras-te ainda de me veres chorar, Clarinha ?
Mas... diz-me, porque foi isto?
Margarida contou-lhe tudo.
Clara ficou a olhar para o chão pensativa.
E de tanta gente rica que há por, ninguém terá alma de
pagar mais cara, alguns vinténs, esta fruta, para fazer bem a uma pobre
rapariga?
E, dizendo isto, Clara corria com os olhos a feira, como se a pro-
curar essa alma generosa para que apelava.
O acaso fez com que descobrisse um velho, que, naquele momento,
atravessava o lugar, fazendo provisão de fruta, e parecendoo rega-
tear muito.
Ai disse Clara, ao encarar com ele — o meu padrinho, o
sr. cónego Arouca ! Queres tu ver, Guida, como eu te vendo a fruta ?
Que vais fazer, Clarinha ?
Escuta.
E, imediatamente, arrebatando a canastra das mãos da irmã, Clara
correu a còlocar-se no caminho do velho cónego, quando este prosse-
guia no seu feirado.
Muito bons dias, meu padrinho, deite-me as suas bênçãos.
Tu por aqui, Clarita? Deus te abençoe, rapariga. Então que
fazes tu?
Sou muito pouco afortunada, meu padrinho. Sabe?
Sim, pequena. Então porquê?o encontraste noivo ainda?
Ora! Está a brincar. Nao é isso?
Então ?
Trago à feira uma canastra cheia de fruta, e aindao encon-
trei compradores.
E o defeito é da fruta, ou de quem a vende ?
Há-de ser de quem a vende, que lá a fruta... essa boa é.
Boa, sim; mas cara...
Ora essa ! meu padrinho.s cáo somos mais do que as
outras. Vendemos pelo mesmo preço que elas vendem.
Ora deixa cá ver a fruta. Então quanto queres tu por isso ? um
dinheirão !
Este exame era simplesmente por formalidade, pois o cónego
tinha resolvido, de si para si, ser o feirante de toda a fruta, embora fosse
dura como pedra, e cara como açafrão.
Se for para o meu padrinho, o que quiser respondeu Clara.
Está bom,o é má de todo. Passa-ma aí para a canastra do
criado, enquanto eu faço contas.
E, ao passo que a afilhada cumpria a ordem recebida, ele mexia
e remexia nos bolsos do colete, de onde tirouo sei que moeda em
ouro, que quadruplicava o preço da fruta, e passou-a para as mãos de
Clara, dizendo :
Aí tens ; o que crescer é para um lenço.
Então muito obrigada, meu padrinho. E deite-me as suas
bênçãos.
Vai com Deus, rapariga, e faz visitas à tua gente respondeu
o cónego, dando-lhe ao a beijar.
Clara voltou a correr para junto de Margarida, bradando-lhe :
,,o te aflijas. Fruta vendida, e uns créscimos para
tremoços.
Margarida agradeceu-lhe com um olhar, orvalhado de lágrimas
de gratidão.
Assim continuou este viver por muitos anos mais, até que ae
de Clara adoeceu. Durante a moléstia, foi Margarida desvelada e incan-
sável enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos
rudes e ásperos, expressões inequívocas da aversão que nunca deixava
de sentir por ela. A heróica raparigao afrouxava por isso na afec-
tuosa caridade com que a tratava.
A doença agravou-se, e a morte foi declarada inevitável.
Neste momento solene, como que se abrandou o coração e falou
a consciência da moribunda, mostrando-lhe a injustiça do seu procedi-
mento para com Margarida.
A hora da morte chamou-a junto de si, e, apertando-lhe as mãos,
disse-lhe entre soluços:
Guida pela primeira vez lhe deu este nome afectuoso
perdoa-me ! Deus alumiou-me o espírito. Só agora conheço a minha
maldade e as tuas virtudes. Perdoa-me, minha filha, e sê generosa até
ao fim. Clara fica, é ainda muito criança. Lembra-te que ela é tua
irmã, aconselha-a, e estima-a, olha-me por ela. Perdoa-lhe o ser filha
de tua madrasta.
Foram as derradeiras palavras que disse.
Margarida caiu, sufocada de choro, junto do leito da morta.o
lhe restava no coração a menor sombra de ressentimento contra aquela
que a fizerao infeliz. Eram sinceras, como poucas, as lágrimas
desta órfã.
Passado tempo, sentiu que um braço a levantava. Voltou-se ; era
o reitor, que olhava para ela comovido.
Muito bem, Guida, muito bem! exclamou o velho com entu-
siasmo. Essas lágrimaso generosas,o verdadeiras jóias da tua
boa alma. Elas devem ser de grande alívio para a daquela, cujo maior
pecado neste mundo foi o muito que te fez padecer.
E daí por diante ficou o reitor tendo em subido conceito a Mar-
garida.
IX
D
EPOIS da morte da madrasta, a sorte de Margarida tomou uma
feição mais favorável.
Vivendo na companhia da irmã, nunca mais teve de supor-
tar aquelas humilhações continuadas, que a faziam corar.
Antes, no modo por que era tratada em casa, parecia ser ela a
senhora de tudo, e Clara a que recebia o benefício ; contra estas apa-
rências só a sua modéstia protestava.
Clara possuía um coração excelente, mas faltava-lhe cabeça para
superintender nos negócios da casa; por isso pedira a Margarida que
os gerisse ela e lhe deixasse ir qozando a apetecida liberdade dos seus
dezoito anos.
O pároco, que ficara tutor das duas órfãs, sancionou e dirigiu com
os seus conselhos esta disposição de coisas.
Mas um tal sistema de vivero podia bastar por muito tempo a
Margarida. Havia no carácter desta rapariga um fundo de dignidade
pessoal que lheo deixava aceitar a vida plácida, que cordialmente
a irmã lhe talhara.
Habituara-se muito cedo ao trabalho e com ele contava.
Se o desprezo agora dizia ela a si mesma, pensando nisto
quem sabe se um dia, ao prccurá-lo, ele me fugirá?
Sentia-se jovem, com forças e coragem; envergonhava-se da
ociosidade. Entre os projectos, crue formou então, um lhe sorriu sempre
mais que todos.
Margarida tinha uma educação pouco vulgar para a sua condição.
Várias circunstâncias haviam gradualmente concorrido para lha aper-
feiçoar. Daniel fora, como sabemos, o seu primeiro mestre, e quando
outra razãoo houvesse, as saudades que a vista e a leitura dos livros
ainda lhe causavam, lembrando-lhe aquele tempo, levá-la-iam a pro-
curá-los com prazer. Seguira-se a Daniel o reitor, conforme ao que pro-
metera ao discípulo. Vendo o padre a inclinação da sua pupila para a
leitura, fazia-lhe, de quando em quando, alguns presentes de livros,
depois de os passar pela crítica dos seus rígidos princípios morais,
e julgá-los salutares. Margarida lia-os com ardor, e, pouco a pouco,
costumou-se a lê-los com reflexão também.o sendo muito abun-
dantes as bibliotecas da terra, era obrigada a reler, mais do que uma
vez, os mesmos livros — o que é sempre uma vantagem para a instru-
ção colhida neles.
Além do interesse crescente que ia encontrando na leitura, um
motivo mais oculto lhe alimentava esse ardor motivo que ela própria
quase ignorava, ou pelo menoso dizia a si. Como que desta forma
se aproximava de Daniel. Das duas inteligências de criança, que se
tinham visto a par, como duas aves que brincam na relva, uma levan-
tara voo e subira; que admirava que a outra, saudosa, ensaiasse as
forças para a acompanhar? para, ao menos, ao perder de vista de
todo? Há destes motivos ocultos das nossas acções, que passam des-
conhecidos.
O que é certo é que a sede de saber devorava Margarida. O hábito
da meditação, que adquirira, permitia à sua inteligência tirar grandes
riquezas da pequena mina em que trabalhava. Um acontecimento
favoreceu ainda estas tendências.
Um dia, acolheu-se à aldeia, a viver vida de privações e de misé-
ria, um destes desgraçados, a quem as ondas do mundo arrojam, náu-
fragos e quebrantados, à praia. Era um homem, que, saindo criança
ainda, daquela mesma aldeia, entrara, sob os sorrisos da sorte, na vida
das cidades. A instrução, a riqueza, as honras, tudo o rodeara do pres-
tígio que parece assegurar a felicidade. Se ele a sentiu então,o o
sei eu ; um dia, porém, como Job da Escritura, viu ao da des-
graça baixar sobre a sua cabeça, privá-lo das riquezas, das dignidades
e da família, e deixá-lo só ;, ao declinar a vida,, quando jáo há
no coração fogo para alimentar esperanças, vigor no braço para arro-
tear caminhos novos !
Este homem sacudiu então a poeira dos sapatos à porta das cida-
des, onde sonhara meio século, e veio, tendo por único arrimo a cons-
ciência, procurar o tecto que, nu, o abrigara na infância e quase o
recebia na velhice como de lá saíra tecto que nem já era seu.
É uma história vulgar a deste homem. Insistir nela seria contar
ao leitor coisas sabidas.
A quem reservará a sorte o privilégio de ignorar uma história assim?
Era, pois, um desgraçado. Isto bastava para que, ao seu lado,
visse, olhando-o compadecido, o rosto de Margarida e, animando-o,
os sorrisos de Clara.
O infortunio chamou, para junto do leito da miséria deste velho
desanimado, estas duas mulheres. Ao lado de todas as cruzes apare-
cem desses vultos compassivos.
com que havia de recompensar a devoção heróica de duas juven-
tudes à velhice empobrecida, quem nada tinha que dar?
o lhe exigiam elas a recompensa, é certo ; mas pedia-lha a alma.
Dos amigos, que tivera, só lhe restavam quatro ; e esses lhe
valeram. Eram quatro livros...
Talvez os leitores já estivessem imaginando que este homem trou-
xera ainda quatro amigos para a adversidade, sem serem livros.
Custa-me desenganá-los ; maso trouxe.
Foi nestes livros que Margarida encontrou novos alimentos para
a leitura. Nao sei bem ao certo quais eram eles.
Estas leituras, dirigidas agora pela crítica esclarecida e oo
juízo do pobre velho, valeram imenso a Margarida, que, dentro em
pouco, chegou a uma cultura intelectual, a que nunca tinha aspirado.
Por isso, na ocasião de formar projectos, para se dignificar aos
próprios olhos pelo trabalho, sorria-lhe principalmente a carreira do
ensino. Ensinar era aprender, ensinar era amar; e estas duas neces-
sidades daquele espírito generoso, aprender e amar, se satisfaziam
assim.
Cultivar inteligências e cultivar afeições !... que futuro ! A alma,
no íntimo apaixonada, de Margarida, exultava só com a idéia.
Restava obter o consentimento de Clara, e que tácticao seria
necessária para isso?
Clarinha disse-lhe pois um dia Margarida vou pedir-te
um favor!
É possível! exclamou Clara, sinceramente admirada. É esta
a Drimeira vez que me pedes um favor, Guida. Repara bem.
Tanto mais razão para mo concederes, filha ;o é verdade ?
Assim me pedisses mil, Guida, para todos te conceder também.
Ora diz.
Sabes? euo me dou com esta vida de senhora, em que tu
me tens. Que queres, minha filha? Isto de trabalhar é hábito que se
ganha de pequena eo se perde mais...
Mas, então? disse Clara, pondo-se séria como se suspei-
tasse vagamente o que a irmã lhe ia dizer:
Queria que me deixasses trabalhar.
Maso trabalhas tu tanto, mais do que eu, Guida? Podia eu,
sem ti, olhar por estas coisas de casa, de queo entendo, de que
o quero entender? Só se queres vir lavar ao ribeiro comigo. Ora!
Guida, essas mãos delgadas jáo foram feitas para isso.
O que dizes que eu tenho que fazer, Clarinha,o é trabalho
que ocupe muitas horas, como sabes. Resta-me ainda tanto tempo!...
Olha que os diaso muito grandes.
Mas que queres tu afinal ?
Sabes?... uma coisa que eu desejava... uma coisa que me
faria andar alegre até!...o desejas tu ver-me andar alegre?o me
ralhas tu pelas minhas tristezas?
Mas vamos a ver o que tu querias ; o que é que te daria essas
grandes alegrias? Alguma loucura grande também?
o é, não. Olha... se eu tivesse umas poucas de crianças para
ensinar...
Clarao a deixou continuar.
Tu, tu, minha irmã! ensinares tu as filhas dos outros?! Viveres
de educar os filhos alheios !
Ó orgulhosa! então isso é alguma vergonha? Anda, que se
o sr. reitor te ouvia...
Mas que se diria de mim, Guida? Sempre tens coisas! Repara
bem, que se diria de mim?
Que és uma boa alma, Clarinha, tu que repartes comigo a tua
casa, o teu...
Guida ! exclamou Clara, interrompendo-a com um tom de
repreensão.
E que se dirá de mim, se meo concederes o que te peço?
o que se terá dito?
Que és muito boa emo me abandonares, em me dares con-
selhos, em me perdoares as minhas doidices.
Maso é também por o que dirão, que eu te peço isto,o ;
é porque o coração me leva a pedir-to.
Guida, por amor de Deus! Perde essa idéia! É uma desfeita
que me fazes.
o é, minha filha, nao é. Pois bem, pergunte-se ao sr. reitor, e
se ele disser que...
Ora, o sr. reitor, sim ! Basta ser pedido teu para ele o aprovar.
Estás sendo muito má disse Margarida, afagando-a.
Depois de alguma luta, foi resolvido consultar o pároco, ficando
cada uma com a liberdade de pleitear a causa própria.
Clara tinha alguma razão em suspeitar da imparcialidade do juiz.
O pároco, tutor das duas raparigas, costumara-se a admirar o bom
senso e inteligência superior de Margarida a ponto de confiar mais
nela do que em si mesmo.
Decidiu pois a demanda em favor da irmã mais velha, excitando
contra si um amuo de Clara, que durou três dias. Era extensão excep-
cional nos despeitos da boa rapariga : mas é que desta vez sempre se
tratava de Margarida, e em tais assuntos Clara era intolerante.
Em resultado de tudo isto, passados dias, começou Margarida a
sua tarefa de educação, à qual se entregava com amor. As crianças
añuíam-lhe, atraídas por aquela suavidade de maneiras, que cons-
tituía um dos mais fortes atractivos do carácter dela.
Esta fase mais bonançosa da existência de Margarida jáo con-
seguiu porém modificar-lhe o carácter pensativo e suavemente melancó-
lico, que a infância oprimida lhe fizera contrair. Adquirira já o hábito
da tristeza e das lágrimas, e este, como todos os hábitos,o se
perde facilmente.
No meio, pois, das recentes felicidades da sua vida, ela própria,
por muitas vezes, se surpreendia a chorar.
—Não é isto uma ofensa a Deus? dizia então consigo. —Por-
que choro eu?o tenho a amizade de Clara, amizade extremosa,
como ainda ao recebi de ninguém? Eu devo estar alegre e bem-
-dizer ao Senhor, queo desvia de mim os seus olhares de misericórdia.
Em um momento de expansiva conversação, Clara disse-lhe um
dia, vendo-a assim triste :
o me dirás tu, Guida, o que hei-de fazer para te ver rir e
estar alegre?
Olha, Clarinha, a gente é como as flores, que umas nascem
com cores vermelhas que alegram, outras com cores escuras que
entristecem. Olha tu as violetas e os suspiros. Que te digam porque
nasceram assim e porque, crescendo na mesma terra e sendo alu-
miadas pelo mesmo Sol,om as cores brilhantes da rosa.
Bem respondido, sim, senhora ; daqui em diante hei-de cha-
mar-te sempre a minha violeta.
Criança ! E tu, Clarinha, nunca te sentes triste ?
Triste porquê? Que tenho eu a desejar para ser feliz de todo?
Tens razão. Tu... nada.
E tu? perguntou Clara, fitando os olhos na irmã.
Eu...
E Margarida sem responder ficava mais triste ainda do que até ali.
Clara impacientava-se.
Olha, Guida. Há muito que ando com vontade de te dizer uma
coisa; mas... como que até me chega vergonha de te falar nisto. Eu
o entendo nada destes enredos de justiça; mas... lembra-me, em
vida de minha mãe, ouvir-te dizer muitas vezes que... nada disto era
teu e... que dela recebias tu... a... a...
A esmola do agasalho, que me dava ; e era... e é assim.
E era e é assim ! Guida ! Euo sei lá como os homens fazem
essas coisas. Mas se eu sou agora, como dizes, a senhora de tudo,o
quero mais ouvir-te falar deste modo. Quero que olhes, como teu,
tudo o que me pertence ; que meo tornes a dizer essa palavrao
feia, que ainda agora te ouvi. De outro modo, fico de mal contigo ; isso
fico. Já o merecias, por te estares a cansar com trabalho, sem precisão.
Margarida sorriu.
E quando, para o futuro, vier alguém tomar parte contigo nestes
bens, pensará assim como tu?
Alguém !... como alguém ?
Sim; julgo queo estás para freira, Clarinha.
Ai, e pensas nisso? Pois bem, se assim for, hei-de escolher
quem seja digno de ser teu amigo, Guida, ou então...
Está bom, está bom. Dá cá um beijo, eo falemos mais nisso.
Farei tudo como dizes.
E a tristeza de Margaridao terminava ainda.
No entretanto o reitor ia-se afeiçoando todos os dias mais às
suas pupilas.
À mais velha dizia:
Toma-me conta da Clara. É rapariga e amiga de brincar. Faz
com que te confie todos os seus segredos. Serve-te do poder que tens
sobre ela para a guiares, minha filha. Dá-lhe parte do teu juízo.
E, por outro lado, dizia a Clara:
Olha, rapariga. Tu anda-me com juízo, ouviste? É bom rir
e estar alegre, mas em termos, em termos. Segue os conselhos de tua
irmã e faz por imitá-la.
E, consigo, dizia, ao lembrarem-lhe as duas:
Excelentes corações ! Deus lhes dê na Terra a felicidade, que
eu lhes desejo e de queo dignas. A Clarita bem está... Tem dos bens
da fortuna,o lhe faltarão arrumações; mas a pobre Margarida... Se
ao menos, por felicidade, tiver um cunhado que seja um homem de
bem?...
F
OI por isso que o reitor, ao perceber um dia a inclinação recí-
proca de Clara e de Pedro das Dornas, exultou com a des-
coberta.
Amigo das duas famílias, e conhecedor da boa índole de Clara e
dos sentimentos generosos de Pedro, ele só antevia venturas na pro-
jectada união.
Em relação aos dotes,o havia entre os noivos grande desigual-
dade, e, em vista disto,o era provável que, da parte de José das
Dornas, surgissem dificuldades sérias.
Por outro lado, a boa alma do noivo tranqüilizava o reitor, em
relação à sorte de Margarida : ele a saberia estimar como ela merecia.
Esta consideração, sobretudo, fazia o contentamento do padre. Daí,
aquele conselho dado a Pedro conselho que encontrou este em
muito boas disposições para o observar.
Passados dias, procurou o reitor o seu amigo José das Dornas
e comunicou-lhe que Pedro estava resolvido a casar, e lhe pedira para
servir de embaixador em solicitar o consentimento paterno.
como tinha conjecturado, o projecto passou sem oposição da
parte de José das Dornas, que antes ficou muito contente com a novi-
dade. Somente pediu o adiamento da época dos esponsais, para quando
chegasse do Porto Daniel, que devia, naquele ano, terminar a sua for-
matura na escola de medicina da cidade invicta.
Clara tinha, antes disso, respondido ao pároco, perguntando-lhe
este se aceitava o pedido de Pedro, que desejaria consultar a irmã.
Aproveitou o padre esta atenção del cada, e esperou-se pela resposta
de Margarida, de quemo havia grandes impedimentos a recear.
Estava Margarida a 1er, quando Clara foi ter com ela.
Era já então uma simpática figura de mulher a de Margarida.o
se podia dizer um tipo de be.eza irrepreensível, mas havia em toda
aquela fisionomia um ar de afabilidade e de meiguice tal, que nem
avultavam essas pequenas incorrecções, só reveladas a exame minu-
cioso e indiferente ; mas a primeira, a grande, a invencível dificuldade
era conservar esta precisa indiferença ao vê-la. Os olhos, sobretudo,
negros como poucos, sabiam fixar-se com tanta penetração e bondade,
que, só a contemplá-los, esquecia-se tudo o mais.o possuía um desses
tipos fascinantes que atraem as vistas ; era fácil até passar por ela, desa-
tendem o-a ; n as fitada uma vez, o olhar deixava-a com pena, e a memó-
ria conservava-a com amor. A boca tomava-lhe naturalmente uma expres-
o de triste meditar, entreabrindo-se-lhe, de quando em quando, os
lábios por uma dessas mais profundas inspirações que dissimulam um
suspiro.
Clara aproximou-se da irmã sem ser pressentida e sentou-se
junto dela.
O grupo gracioso, que ambas formavam assim, tent .ria qualquer
artista que o visse.
A aparência jovial de Clara fazia realçar, pelo contraste, o vulto
melancólico de Margarida. Naquela, tudo eram reflexos de desanu-
viada alegria interior, nesta difundia-se incessantemente uma dessas
meias sombras, como as que produzem as pequenas nuvens brancas
que, sem ofuscar inteiramente a luz do Sol, lhe mitigam contudo um
pouco o resplendor dos raios.
Clara tomou as mãos da irmã, sem romper o silêncio.
Que tens tu, Clara? perguntou-lhe Margarida.—Não sei
que te leio hoje nos olhos. Desconfio que me vais d;zer alguma coisa.
E vou.
E parece ser de importância, ao que vejo; estáso séria!
acrescentou Margarida, sorrindo.
É que é deveras sério e muito sério o que te vou dizer.
Então ?
Querem-me casar.
Ah!
E olha, Guida, eu julgo que o meu noivo é um bom rapaz...
mas... sempre queria saber o que tu pensas dele, e se merece a tua
aprovação.
A minha!? E também te é precisa, filha?
É, sim; pudera não. Já o disse ao sr. reitor e ele concordou.
Sois todos muito bons para comigo. Mas que te hei-de eu dizer?
Que te diz o coração ?
Ora, o coração...
O coração, sim. Porqueo ? Quando é bom, como é o leu,
deve-se sempre ouvir; e... quer-me parecer que já o consultaste, antes
de mim.
Falo a verdade : 6 certo que ia.
E que te disse ele ?
Aconselha-me a... que sim.
Que mais queres ?
Que também me aconselhes.
O mesmo que o coração, já se sabe.
Não, senhora, com franqueza, aquilo que pensares.
E quem é o noivo ?
O Pedro do José das Dornas.
Ah !... Por certo que é um bom casamento. Conquanto pouco
conheça ainda esse rapaz, ouço dizer que é honrado, trabalhador,
e... de mais a mais está bem.
Então aprovas ?
Se te fosse necessária a minha aprovação, dir-te-ia que estimo
até muito que se faça esse casamento, e que sejas feliz.
Clara abraçou-a com efusão, e correu a dar parte ao reitor do
resultado da entrevista.
Margarida ficou.
O que acabara de ouvir da boca da irmã, deixara-a pensativa.
A idéia de que à vida de Clara em breve se ia associar a de uma pessoa
estranha,o podia deixar de lhe fazer sentir graves preocupações
pelo destino dela e seu.
Era um problema proposto à solução do futuro, e Deus só sabia
como o futuro o teria de resolver. Clara ia entrar na vida de família;
ia cedo transformar em amor de esposa e dee todos aqueles tesou-
ros de sentimento que, até então, a ela só confiara, a ela, Margarida,
à desvalida da sorte, à órfã e esquecida sempre, e talvez que, dali em
diante, ainda mais esquecida e mais desamparada de afectos! Ao pen-
sar nisso,o podia evitar certas angústias de coração. Era mais uma
afeição que lhe roubavam ! Pois nem esta lhe pertencia? E depois, como
seria considerada pelo marido de Clara? Humilhações, pudera-as
suportar de sua madrasta, mas receavao ter já resignação bastante
(
para as receber de mais ninguém.
É certo que o bom nome de Pedro a tranqüilizava; mas quantas
decepções sobre os melhores caracteres humanos nos prepara uma
intima convivência com eles? quantos defeitos ocultos, ignorados do
mundo, a vida de família faz evidentes, a ponto de tornar inevitáveis
discórdias, que aos olhos do vulgo nunca se justificam?
A corrente destes pensamentos tomou, porém, de uma maneira
gradual, diverso curso. O nome da família de Pedroo era desconhe-
cido para Margarida.
Andava-lhe associada a mais grata recordação da amargurada
infancia da órfã. Quem emo pequeno número contava os corações
que haviam simpatizado com o seu, que muito era se recordasse com
saudade do pequeno estudante de latim que, deo longe, vinha sen-
tar-se ao pé dela e falar-lhe com um afecto que até então desconhecera ?
Desde que as apreensões do reitor haviam ocasionado a partida
de Daniel, nunca mais Margarida lhe falara. Via-o todos os anos, quando
ele vinha passar as férias à aldeia, eo podia ocultar a si própria a
afectuosa atenção com que ainda então o observava.
Mas, pelos seus novos hábitos de vida, Daniel distanciara-se
daquela que conhecera em criança ; nem dela talvez se lembrasse.
Margarida pensava agora no caso, que os aproximava assim, eo
podia, sem uma vaga inquietação de espirito, ver, no futuro, a possi-
bilidade de uma entrevista com ele.
Os caracteres concentrados, como o de Margarida, alimentam-se
ordinariamente de uma idéia fixa... —quantas vezes de uma ilusão?
que forma o segredo inviolável da sua existência inteira. Abre-lhes
ela as portas de um mundo imaginário, para onde se refugiam dos
embates do mundo real, que impressionam dolorosamente a sua deli-
cada sensibilidade. Quando os encontramos sós, estes melancólicos
devaneadores, acreditemos que lhes povoam a so'idao formas invisí-
veis, criadas à poderosa evocação da sua fantasia ; o silêncio em que
os virmos cair, dissimula-lhes os misteriosos diálogos na linguagem
desconhecida e intraduzível desse fantástico mundo. É uma singular
loucura procurar distraí-los, chamando-os à consideração das coisas
reais. A mais doce consolação, a mais festiva alegria daquelas almas, é
aquilo mesmo que se nos afigura tristeza.
Deixem-nos assim.o queiram erguer-lhes a fronte que invo-
luntariamente se inclina;o tentem iluminar-lhes com sorrisos a fisio-
nomia, sobre a qual se derrama uma serena gravidade ;o se esfor-
cem por lhes tirar dos lábios comprimidos uma palavra qualquer; o
fogo de vida, que parece tê-los abandonado, deixou somente a super-
fície para mais intenso se lhes concentrar no coração.
Margarida tinha também o seu pensamento secreto, que, em
momentos assim, acariciava com amor.
Este pensamento de longe lhe viera; há muito lhe era compa-
nheiro. Assim como nas trevas da noite os olhos involuntária e quase
irresistivelmente se fixam no mais pequenino ponto luminoso, que lhes
surja do seio da obscuridade, assim se voltava o pensamento de Mar-
garida para o último raio, que lhe luzira débil de entre as sombras da
existência passada. A cândida afeição de Daniel era este raio; através
das diversas fases da sua vida a acompanhara sempre a imagem dele,
modificando-se conforme a natureza dos sonhos em cada uma. Aos
vinte e dois anos, que Margarida contava agora, recebera essa imagem
toda a vida, de que um coração juvenil anima as suas criações mais
queridas.
De facto,o fora sem certa comoção de suspeitosa natureza,
que a imagem de Daniel adolescente viera, por mal percebidas grada-
ções, afugentar das reminiscências da boa rapariga a do pequeno
Daniel, que ela conhecera outróra;o foi sem íntimas turbações de
ânimo que, de envolta com as memórias suaves desse curto passado,
a fantasia lhe começou a misturar vagas aspirações para um futuro que,
agradavelmente e melancólicamente também, agitava o coração da
ingênua cismadora.
Era bem triste, depois de sonhos assim, acordar na amarga reali-
dade do presente desencantado ; mas era inevitável. O destino decidira
de outra sorte.
Vamos dizia Margarida a si mesma. Que mulher sou eu ?
Quando precisava de dobrada força para o trabalho, ainda me ponho
a pensar...o sei em quê. Pensar!... É um luxo, com queo podem
os pobres acrescentava sorrindo amargamente. É um prazer de
ricos e ociosos. A nós, sai-nos muito caro cada minuto desperdiçado
a pensar assim.
Clara vai casar cismava ela depois. E forçoso que me separe
dela. Bendito seja Deus, que me inspirou esta divina idéia de viver
pelo trabalho ; dele só e com ele deve ser agora principalmente o meu
viver. É custoso, porque queria deveras a esta pobre criança, mas é
necessário. um dia podia vir a causar-lhe involuntariamente mal, se
ficasse. Hei-de partir.
XI
P
ROCEDIA-SE com toda a actividade aos preparativos do casa-
mento contratado.
José das Dornaso cabia em si de contente. A formatura
de um dos seus filhos, e a perspectiva do vantajoso casamento de outro
eram para isso motivos de sobejo.
Acrescentem agora que o ano tinha sido fértil, que o enxofra-
mento das suas vinhas prometia excelentes resultados, e poderão
julgar se tinha ouo razão o robusto lavrador para andar satisfeito
e para cantar, a miúdo, a sua cantiga favorita :
Papagaio, pena verde,
o venhas ao meu jardim;
Todas as penas se acabam,
Só as minhasom fim.
Depois de haver superintendido em todos os aprestos que se
faziam na casa, para receber o novo adepto da ciência hipocrática,
José das Dornas, cedendo àquela irresistível necessidade,o geral
em todos nós, de transmitir aos outros parte das nossas alegrias,
comunicando-lhes a narração delas, saiu e transportou-se à loja do
Sr. João da Esquina, ponto de reunião da mais escolhida sociedade
da terra.
Ora viva o Sr. José das Dornas ; passasse muito bem, é o que
estimo disse o merceeiro do fundo da loja, onde, em pé sobre um
banco de pau, se ocupava a despendurar velas de sebo, para satisfa-
zer a requisição de um freguês.
—Deus seja aqui respondeu José das Dornas, sentando-se
familiarmente em um dos bancos, que havia por fora do mostrador.
Muito calor, Sr. José observou o merceeiro, adiantando-se.
De morrer acrescentou o lavrador, tirando o chapéu e pas-
sando o lenço pela cabeça escalvada.
Então que se diz de novo? perguntou o outro, pagando-se
da importância do género gue acabava de aviar.
Que se há-de dizer? Que se vive, como Deus quer, e cada um
pode. Os velhos, como eu, com os seus achaques. Tal foi a resposta
de José das Dornas, morto já por encontrar uma transição natural para
falar do filho, sem quebra de modéstia paterna.
Então já sabe que o padre Custóias é quem prega este ano o
sermão da Senhora do Amparo?—disse João da Esquina, quesempreque
perguntava o que ia de novo, é porque tinha alguma coisa a responder.
Sim? exclamou com afectada admiração José das Dornas,
a quem naquele momento a notícia importava muito mediocremente.
É verdade. E a filarmónica é que vai tocar.
Então a festa é de espavento !
A confraria tem no cofre perto de cem mil-réis.
Está feito!
E, diga-me, Sr. José, que lhe parece da pega do nosso reitor
com os do Amparo?o acha que é um despotismo?
Eu sei? Olhadas as coisas de certo modo, o homemo deixa
de ter alguma razão.
O quê, senhor, o quê? exclamou indignado o merceeiro.
o tem razão nenhuma.o me diga isso. Ora... pois fale a verdade.
De quem é a cera das promessas, que fazem à Senhora?o é dela?
A quem compete então o direito de a vender? A confraria, que é a
sua procuradora. Isso é claro como água.
Pois sim...o digo menos disso... mas... os direitos paroquiais...
enfim,o sei, nao sei murmurava José das Dornas, ansioso por dar
deo ao assunto, sobredelicado para ele, que tinha amizades nos
dois partidos, muito fora do seu propósito naquela ocasião.
Que direitos, que direitos? Tortos lhe chamo eu. Eu bem sei
o que aquilo é... Lembra-se do que o reitor de Cisnande fez aos do
Mártir? pois temos outra aqui.
Homem insistia José das Dornas, deveras impaciente por
o ver aproximar-se a conversa do tópico desejado, antes afastando-se
cada vez mais dele.o diga isso do padre Antônio ; você bem sabe
que o quinhão do nosso reitor é o quinhão dos pobres. Mas... eu dessas
coisaso entendo, nem quero entender; parece-me contudo que era
bom que andassem nisso com prudência e aconselhados por quem
possa dizer alguma coisa a tal respeito.
Então o juiz da confraria é algum tolo ? Olhe que o João Semana
é homem para fazer frente ao reitor se...
como já tivemos ocasião de dizer, João Semana era, por aquele
tempo, o único facultativo da freguesia, e lisonjeiramente conceituado
na opinião pública da terra.
Desde que José das Dornas ouviu pronunciar o nome do velho
cirurgião, alegrou-se por he parecer preparar-se a índole da con-
versa em sentido favorável ao assunto, que ele mais pretendia tratar ;
por isso, logo se apressou em observar :
João Semana é homem fino, bem sei. Mas é também amigo
velho do reitor ;o amigos de tu e por isso duvido que queira deixar
ir as coisas ao mal. De mais a mais, está velho e...
A conjunção devia ser a ponte de passagem para o assunto sus-
pirado ; mas o merceeiro cortou-lha no princípio.
Velho, sim, mas robusto como poucos rapazes. Olhe vosse-
mecê que aquela alminha já às cinco horas da manhã tem visitado
mais de sete ou oito doentes.
José das Dornas julgou ainda este terreno favorável para lançar
os alicerces da ponte que queria construir.
Isso lá é assim ; bem precisa quem o ajude ; e dentro em pouco...
João da Esquina ainda desta vez lhe baldou a tentativa.
Mas diz você que ele é amigo do reitor ? também eu sou ; mas
issoo quer dizer nada, o que é de direito...
Pois sim; euo digo menos disso; mas enfim... um cirurgião
tem o tempoo ocupado... ainda se meu filho...
uma quarta de açúcar bradou uma rapariga, que nesta oca-
sião entrava na loja, e por esta forma, uma vez mais, impediu que José
das Dornas realizasse o seu intento.
Quando a freguesa se retirou, ele prosseguiu com constância
digna de melhor sorte :
Mas ainda se meu filho...
O tendeiro, porém, que com a transacção que operara, tinha
deixado escapar o fio da conversa, julgou que se tratava de Pedro e
perguntou :
Então quando casa ele com a Clarita do Meadas ?
Veremos ; provavelmente breve ; chegando do Porto o outro
rapaz.
Olhe que foi bem bom arranjo, Sr. Zé continuou o tendeiro
com impertinente falta de percepção. Só o campo dos Bajuncos é
uma tal peça de lavra!
E sobretudo é boa cachopa a rapariga ; lá isso é. Pois... quando
vier o outro... teimava o lavrador.
De novo um feirante veio interromper o discurso ao pobre do
pai, que se vingou mandando-o interiormente ao Diabo. Já ia desespe-
rando de conseguir a realização do seu inocente propósito, quando o
reitor, passando por a porta da loja, lhe perguntou :
Então vem hoje o homem ouo ?
Eu espero que sim, sr. reitor disse José das Dornas, levan-
tando-se e descobrindo-se. Pelo menoso recebi notícias em con-
trário.
Vê se me mandas avisar, logo que chegue, que o hei-de querer
ir ver.
o há-de haver dúvida.
Adeus.
E o padre continuou o seu caminho, cortejando amàvelmente,
com um movimento de bengala, João da Esquina, que apesar de par-
tidário dos do Amparo,o acolheu friamente a saudação. Mas afinal,
graças às palavras do padre, tomou a conversa o rumo desejado de
José das Dornas.
com que então, temos cirurgião novo cá na terra? Ora Deus
o ajude disse João da Esquina.
Enquanto o João Semana viver, há-de custar a afreguesar-se
o rapaz observou o pai, traindo no gesto porém convencimentos
contrários aos que em palavras exprimia.
Deixe. Há gente para ambos. A terra já vai dando para dois,
graças a Deus. E o rapazinho saiu esperto.
Lá isso diga-se o que é verdade,o é agora por ser meu
filho, mas todos o confessaram. Criança era ele ainda, e já o reitor se
espantava da memória do rapaz. E se você visse, Sr. João, o livro que
ele escreveu? Chamam-lhe lá tese, ouo sei quê. Pelos modos, sem
escrever aquilo,o podem ter as cartas de examina. Eu tenho um, que
ele me mandou. como sabe, eu daquilo nada entendo, mas bem vejo que
é obra acabada e bem feita. Deixe estar que lho hei-de trazer, para ver.
Eu disso pouco sei dizer,o é a minha especialidade.
o estamos habilitados para declarar aqui qual fosse a especiali-
dade do Sr. João da Esquina.
Ì Pois sim, bem sei continuou o pai ; mas sempre há-de
encontrar coisa que perceba. O João Semana também tem um que o
Daniel lhe mandou e disse-me que está coisa asseada ; e o sr. reitor
afirmou-me que bem se conhece que o rapazo se esqueceu do latim,
porque em... geografia, parece-me que foi geografia que ele disse,
nisto que ensina a escrever com letras dobradas,o tem nada que se
lhe note.
Bom é isso —replicou o tendeiro, já um pouco distraído a
somar as parcelas do seu livro de assentos.
José das Dornas continuou:
Quer saber, Sr. João? Olhe que, pelos modos, o rapaz até lá
provou... Já sei que se vai admirar, mas olhe que é facto, assim o leu
no fim do livro o sr. reitor, até lá provou... queo há doenças.
João da Esquina interrompeu efectivamente a sua tarefa, para
fitar no seu interlocutor uns olhos espantados.
Queo há doenças ? !
É verdade respondeu o lavrador, saboreando em delícias
a estupefacção do seu vizinho.
Essa agora ! dizia este ainda no mesmo tom de espanto
mas como se entende isso?
Assim como eu digo.
O Sr.-José das Dornas, então que é este reumatismo que me
o deixa mexer?
o sei. Diz ele que é outra coisa ; lá lhe dá um nome, mas é
o arrevesado, que meo ficou.
Queo há doenças ! Essa lá me custa a engolir ! Então para
que andou o rapaz a estudar, e o que vem fazer para, seo há
doenças? Faz favor de me dizer?
Eleo disse que...
Mas João da Esquina estava muito ofendido nas suas crenças,
para o deixar continuar:
Queo há doenças ! Sempre é uma, a falar a verdade ! Não,
o há ! Que diabo viu ele então lá no hospital ? Ora essa ! E que dis-
seram os... os mestres a isso?
É o que eu estou morto por lhe perguntar. Mas o Sr. João admi-
ra-se ? e então se eu lhe disser que ele provou também que um homem
ó a mesma coisa que um macaco?
João da Esquina fechou com impetuosidade o livro dos assentos.
Irra ! Está a caçoar comigo, Sr. José ? Ele podia lá dizer seme-
lhante coisa!
Pergunte-o ao sr. reitor, que assim o explicou ; pergunte, se
o acredita.
Eu não, pois... Macaco ! Então eu sou macaco ? Então vossemecê
é macaco? Então ele é macaco? Entãos somos... Ora, issoo
pode ser.
Você, Sr. João, cuida que eles entendem as coisas assim como
nós. Isso tem lá outro sentido.
Outro sentido ! Que diabo de sentido há-de ter ? Todos sabem
o que é um homem, todos sabem o que é um macaco.o vejo que
outro sentido seja. Macaco !... Irra ! Não, essa agora é que meo entra.
Ele, salvo seja observou José das Dornas, rindo aque-
les diabos parecem às vezes mesmo gente, lá isso parecem; o
Sr. João nunca os viu?
Vi, vi; tenho visto muitos.
Olhe que fazem coisas! que, fora a alma, já se sabe...
Pois sim; mas o... —mas a cauda?
Ah! lá isso...—respondeu o lavrador embaraçado.
Ora então, ai tem disse João da Esquina com um ar triun-
fante, capaz de fulminar Lamarck.
Deixe ver se me lembro de outras que ele provou..,
o ; essa já nao é má ! Mas. ó Sr. José, deveras ele disse ?
Ora essa, vizinho ! Palavra, que sim.
Macacos ! o rapaz nao estava em si decerto. Macacos ! Mas
então que queria ele dizer afinal? Poiss somos macacos, Sr. José?
ora diga?
o sei. Eles lá o lêem, lá o entendem.
o para o Diabo. Bem me importa a mim o que eles lêem e o
que eles entendem.o está má essa ! Macacos !
Durante este solilòquio de João da Esquina, fazia José das Dornas
por lembrar-se de mais outra das proposições, que publicamente sus-
tentara seu filho, perante o júri escolar.
Ah ! é verdade exclamou afinal. Esta também lhe vai fazer
mossa. Já estou vendo... Diz que sustentou lá também que a gente,
verdadeiramente, devia andar com as mãos pelo chão.
O gesto do tendeiro foio violento, que José das Dornas acres-
centou, como correctivo :
Eleo diz isto bem assim, mas lá por umas outras palavras,
que euo tinha entendido, mas que o sr. reitor explicou.
João da Esquina conservava sobre José das Dornas um olhai
desconfiado.
Vai-me parecendo que o Sr. José tem estado mas é a caçoai
comigo.
Ó homem ! com a verdade com que eu falo, assim Deus salve
a minha alma.
Então com que havemos de andar a quatro como, com sua
licença, as cavalgaduras ?
o ; ele tantoo quer dizer.
o quer? mas se ele diz...
Sim, mas ele nao diz...
E os dois olhavam-se embaraçados, José das Dornaso podia
resignar-se a tirar a conseqüência, um tanto dura, formulada pelo ten-
deiro ; mas tambémo lhe ocorria escápula razoável. João da Esquina
aguardava emo a resposta,
Afinal José das Dornas saiu-se de entre as duas pontas dilemá-
ticas deste « diz eo diz », graças à evasiva costumada em casos tais :
Homem, eles lá sabem o que querem dizer na sua.
Eu julgo queo é necessário ser grande doutor para entender
isso. Mas que ande quem quiser com as mãos pelo chão, que eu por
mim...
Outra continuava José das Dornas.—Disse que há muito
pouca diferença entre um... um alimento ou elemento, diz que é a
comida que a gente come, e um veneno.
João da Esquina jáo podia espantar-se mais; limitou-se a
observar com ironia :
Pois, quando ele vier, cozinhe-lhe vossemecê um guisado de
cabeças de fósforos com rosalgar, a ver comò ele se. Se é a mesma
coisa... Sempre ao que ouço! Estes médicos de agora!
Enfim, mostrou muita outra coisa o rapaz e de que eu agora
me nao lembro. Pelos modos deixou-os todos maravilhados.
Se lhe parece queo !... sendo todas desse jaez.
Para os leitores, alheios a certas noções de ciência e que se sintam
tentados, como o Sr. João da Esquina, a duvidar da veracidade de
quanto José das Dornas referira, devo eu, em bem do carácter sisudo
do honrado lavrador, acrescentar aqui, à maneira de nota elucidativa,
que, informando-me com pessoa competente, soube que as proposi-
ções que tanto impressionaram o tendeiro tinham seus fundamentos
em várias opiniões e teorias filosóficas mais ou menos à moda.
Daniel, com o amor do extravagante, natural a quem deixa aos
vinte anos os bancos das escolas, afeiçoara-se àquelas proposições
que formuladas, pudessem aparentar-se mais paradoxais,o hesi-
tando em levar às últimas consequências os princípios sistemáticos
de algumas escolas e seitas.
Esta vulgar tentação da juventudeo lhe granjeou grandes cré-
ditos no conceito de João da Esquina, a cujo bom senso repugnavam
as asserções, que, pelo relatório de José das Dornas, lhe vieram assim,
nuas e cruas, ao conhecimento.
Assim que o lavrador voltou costas, João da Esquina murmurou
com os seus botões :
Nada, para mimo serve o doutor. Se ele diz queo há
doenças, que há-de cá vir fazer? E depois pode pôr-me em dieta de
vidro moído e cebola albarrã ou outras coisas assim, e mandar-me
correr a quatro pelos montes. Nada. Quero-me com o João Semana,
que é homem sério, eo tem destas esquisitices da moda.
XII
A
O deixar José das Dornas, na tenda do seu vizinho da esquina,
o reitor, apoiado na grossa bengala de cana, companheira fiel
das fadigas de muitos anos, foi seguindo pelos caminhos pouco
cómodos da sua paróquia, e entrando nas casas mais pobres, onde
levava a esmola e o conforto de doutrinas evangélicas queo sin-
gelamente sabia pregar.
Era esta para ele tarefa habitual.
Sentava-se com familiaridade à cabeceira do jornaleiro doente,
ele próprio lhe arrefecia os caldos, lhe temperava os remédios e lhos
ajudava a tomar ; guiava com os conselhos e ensinava com o exemplo
os enfermeiros, que, entre a gente pobre dos campos, sao quase
sempre os mais pequenos da família, aqueles que, pela idade, repre-
sentam ainda uma parte pouco produtiva de receita ; porque os outros
reclamam-nos as exigências imperiosas do trabalho.
No cumprimento desta obra de misericórdia, atravessou o reitor
quase toda a aldeia, e, com o coração apertado pelos infortúnios que
vira, e desafogada a consciência pelo bem que fizera, continuava plàci-
damente a sua tarefa abençoada.
Depois de muito andar e de muito consolar misérias, parou algum
tempo por debaixo das faias, que assombravam um largo terreiro,
e sentou-se com o fim de ganhar forças para prosseguir.
Enquanto descansava foi dar balanço às algibeiras, que trouxera
bem providas de casa. Este balanço foi desanimador para os projectos
ulteriores do velho. A esmola, essa sublime gastadora, que nunca aban-
donava a direita do pároco nestas visitas pastorais, havia-lhe esgotado
o capital, sem que ele desse por isso.
O reitor mostrou-se mortificado ;o que lamentasse o dinheiro,
gasto assim, mas porque estava longe de casa, e tinha ainda mais infe-
lizes a socorrer.
Poucas cogitações financeiras de um ministro de estado, perante
um défice do orçamento, valem as do pároco naquela ocasião. Aper-
tando entre o indicador e o pólex o lábio inferior e com o olhar imóvel
próprio das profundas abstracções de espírito, conservou-se por bas-
tante tempo irresoluto, entre o prosseguir a sua visita com as mãos
vazias, e o transferir para outra vez o complemento dela.
Nem um nem outro alvitre lhe agradavam porém.
De vez em quando tornava a procurar nas algibeiras, a ver se
lhe passara despercebida alguma pequena moeda, que o tirasse de
maiores dificuldades. Mas de nada lhe valia a pesquisa.
Enfim, levantou-se ; radia va-lhe a fisionomia com um ar de reso-
lução como se afinal lhe ocorrera o pensamento desejado ; e foi já
com andar firme e decidido que continuou o seu caminho, murmu-
rando consigo mesmoo sei que palavras pouco perceptíveis, acom-
panhadas às vezes de certa mímica de mãos.
Depois de trezentos passos, pouco mais ou menos, dados assim,
achou-se o reitor defronte de uma casa branca, cujas funções eram
bem indicadas pelo ramo de loureiro que pendia à porta e pelo coro
de vozes, e ruído de gargalhadas e juras, que vinham do interior dela.
O padre tomou a direcção desta casa.
o o surpreendeu o espectáculo que presenciou, porque o
esperava.
Alguns lavradores e homens de ofício, sentados à volta de uma
banca de madeira, todos formidàvelmente munidos de grandes copos
de vinho, estavam recebendo ali simultâneas as comoções da beber-
ronia e do jogo de parar. Cada um deles seguia de olhos atentos as
evoluções do baralho de cartas, moído e sebento, que um banqueiro,
igualmente dotado desta última qualidade, executava com a prestidi-
gitação de consumado artista ; o ardor do ganho, e a recíproca descon-
fiança que os animava, rompiam, ainda através dos densos nevoeiros
que pareciam toldar aquelas vistas avinhadas.
Havia um considerável monte de cobre e alguma prata no meio
da mesa, e montes parciais, mais ou menos bem providos, ao lado de
cada jogador. A cada sorte, que se decidia entre um silêncio e ansie-
dade de suspender quase a respiração, seguia-se um vozear infernal, com-
posto de exclamações de júbilo dos felizes e de pragas dos sacrificados.
O reitor assomou ao limiar da porta, em um desses momentos de
tumulto. Discutia-se, quaseo desordenadamente como nas mais impor-
tantes sessões dos nossos parlamentos, a legalidade e inteireza dao
última de jogo.
A correr parelhas com a pouca moderação das palavras, só a das
libações do vinho. Os copos vazavam-se e enchiam-se com rapidez
pasmosa, e o taberneiro a cada um que se despejava assim, traçava
um sinal a giz na porta vermelha da cozinha.
O aparecimento do reitor causou sensação.
O primeiro movimento dos circunstantes ao darem por ele, foi
o de esconderem as cartas e o dinheiro ; mas, na impossibilidade de
o fazer a tempo, levantaram-se, e com ar de embaraço tiraram o
chapéu e abaixaram os olhos.
Houve um momento de silêncio, empregado por o reitor em
reconhecer os delinqüentes, e durante o qual esteso ousaram levan-
tar os olhos.
o é o regedor, sosseguem disse enfim o reitor ainda do
limiar da porta — e pena é que oo seja, para vos meter a todos na
cadeia. E, adianando-se na taberna, continuou:—Santa vida esta!
Assim é que é ganhar o reino dou ! Sim, senhores ! Aqui estão uns
poucos de santos varões, que empregam bem o seu tempo ! Respei-
táveis e exemplares patriarcas, de quem muito se pode esperar como
educadores da família! Sim, senhores! E, mudando para tom mais
severo : Vossas mulheres estafam-se com trabalho, para dar um
pouco deo negro aos filhos e as esta vida regalada,o é assim?
Ainda agora encontrei o teu pequeno, Manuel, que pedia esmola pela
porta dos vizinhos;o tens vergonha? Tua mulher, Francisco,
estava há pouco de cama e teve de mandar à cidade a filha mais nova
com uma canastra de hortaliça, com que ela mal podia; ia a vergar, a
pobre pequena! Achas isto bonito? Teu irmão. João, aindao há
três dias que foi pedir emprestado, chorando, ao José das Dornas.
dinheiro para pagar ao mestre da fábrica, em que traz o filho na cidade ;
talvez tuo tivesses para lho emprestares ?o há muito que o
pobre José Maia se me queixou a mim, de que tu, Damião, ainda lhe
o tinhas pago por inteiro o preço daqueles bois que lhe compraste.
Mas que impor am essas pequenas coisas? Que importa lá a miséria
que vai por casa, seo falta o dinheiro para o vinho e para o jogo !
Isso é o que se quer ! E tu acrescentou voltando-se para o taber-
neiro, que, de trás do mostrador, assistia calado a toda esta cena tu
vais engordando à custa destas misérias todas. Passam fome as mulhe-
res e as crianças, para te encher as gavetas e a barriga ! Oh Santo Deus !
e tanta desgraça, que por ai vai, e tanta gente semo para comer !
Essa é boa ! o meu oficio é vender vinho, vendo-o ; faço o meu
dever resmungou o taberneiro despeitado.
Fazes também o teu dever, enchendo com outro tanto de água
as pipas de vinho que vendes? e permitindo em tua casa estes
costumes proibidos pelos homens e amaldiçoados de Deus ? estes
jogos infernais, quem levado tantas cabeças à forca, e tantas almas
ao Inferno? É esse também o teu ofício? Pois deixa estar que eu avisa-
rei o regedor, para que te dê a recompensa, por o bem que o cumpres.
O taberneiroo redarguiu.
O reitor voltou-se de novo para os jogadores, ainda silenciosos :
Chego ao meio des com as mãos e algibeiras vazias. Vede.
O dinheiro, com que saí de casa, ficou-me por esses caminhos,
algum nas casas de muitos dos que vejo agora aqui. A esseso estou
disposto a perdoar a dívida, pois vejo queo precisavam da esmola,
que eu lhes dei ; os outros, quem para perder no pecado, também
hão-de ter para a obra de misericórdia, ou tisnada trazem já a alma
pelo fogo do Inferno. Tenho ainda muitos pobres para ver, eo
trago já dinheiro comigo. Peço esmola para os pobres prosseguiu
o reitor em voz alta, e aproximando-se da mesa quemo dará aqui
esmola para os pobres? Amanhã, continuandos nesta vida, eu
pedirei também esmola para vós. Lembrai-vos disso.
E a um por um estendia o chapéu, fitando-os com um gesto de
nobre e composta severidade.
O respeito que lhes impunha a figura do ancião, pedindo desin-
teressadamente para a pobreza, e em muitos, a voz da consciência, coroa-
ram do melhor êxito a inspiração do pároco.
Kouve quem lhe despejasse no chapéu todo o dinheiro que tinha
diante de si.
um sóo correspondia ao pedido.
O reitor fitou-o com semblante austero.
E tu?
o tenho nada respondeu este homem com ar abatido
perdi e devo.
o tens nada ! redarguiu o padre com amargura tens,
sim ; tens cinco filhos e uma velha moribunda.
O homem cobriu o rosto, para ocultar as lágrimas.
A que vem esse choro, agora? Pois julgavas tu que matarías
a fome à tua família por esta maneira? Para que te deu Deus os braços
robustos, homem, e o peito valente, se os negas ao trabalho? E vol-
tando-se para os jogadores que sabia mais abastados, prosseguiu com
maior veemência : Es tivestes alma para vos entregardes a este
jogo danado com um homem, que punha em cima da mesa oo e o
sangue de seus filhos e de suae ! Vergonha e desgraça sobre vós,
miseráveis, se dentro de um dia nao compensardes o mal que fizestes,
abrindo por vossas mãos a este pai e filho desnaturado a carreira do
trabalho, que é a da honra igualmente dentro de um dia, como podeis
e deveis. Eu vos forçarei a isso. Homens, queo bem servis para
perder, servi um dia ao menos para salvar. Nao podes pagar...?
Alguém pagará a tua parte.
Nao pode pagar,o confirmou o taberneiro que a mim
me deve ele uma conta, eo pequena, de vinho.
Ah, sim? disse o reitor, voltando-se para o da observação.
Pois hás-de ser tu que pagarás a parte dele. Aindao deste nada.
Dá-me a sua dívida.
Mas, sr. reitor... balbuciou o taberneiro.
Consideras-te mais que os outros ! Só se for por seres o mais
culpado.
Não, senhor... De boa vontade lha perdôo; lá por isso...e
acrescentou, falando consigo, o taberneiro :o cedo grande coisa,
que perdida a tinha eu há muito.
Depois desta abundante colheita, o reitor continuou:
Compensem ao menos com esta boa acção o pensamento dia-
bólico, que vos juntou aqui. E agora ide para vossas casas e para o tra-
balho. Lembrai-vos que mal vai à familia e à fazenda do que se esquece
na taberna assim; e retenha-vos essa lembrança, se aindao tendes
endurecido de todo o coração. O que entra rico nestas casas, sai a
pedir ; se entrar pobre, sai criminoso. Ide. Fugi às tentações destes ini-
migos—isto dizia tomando as cartas da mesa—e fazei como eu quando
as tiverdes à mão. E, com um rápido movimento do braço, fez voar
todo o baralho até ao fogo, que em pouco tempo o reduziu a cinzas.
E pondo outra vez o chapéu na cabeça, saiu da sala.
Após ele, foram saindo também os joviais consocios da taberna,
queo se sentiam com alma de continuar ali.
Para alguns tinha de ser a última tentação.
O que menos contrito se mostrou foi o dono do estabelecimento
que deu ao diabo a intervenção do pároco na pacífica diversão de
meia dúzia de fregueses honestos e tementes a Deus. No entretanto o
reitor ia prosseguindo a sua visita e distribuindo pelos necessitados
o dinheiro dos ociosos. Sorria de satisfação o velho, ao fazê-lo.
As grandes ventanias monologava eieo também um
mal para o lavrador, porque lhe derrubam as searas, mas... como se
o podem evitar... que se faz? levantam-se nos montes as asas de uns
moinhos, e elas aí estão aproveitadas. Aproveitemos pois também da
loucura má destes perdulários, já que aindao pude acabar com
ela de todo. Se a água é muita nas presas,o de deixa extravasar à
toa, abre-se um regueiro, que a leve onde ela seja precisa. Oh Santo
Deus ! e então que há por ai terraso sequinhas de água ! Doer-me-ia
a consciência se tivesse enchido a bolsa com as esmolas dos laboriosos
e poupados; mas com as destes... ora... folgo e orgulho-me.
XIII
A
O chegar a um largo todo plantado de sovereiros, quase secu-
lares, que havia no centro da aldeia, ainda o bom do pároco
levava as algibeiras bem fornecidas.
A tarde aproximava-se do fim, estendiam-se já as sombras muito
mais para o oriente, e coloriam-se de vermelho afogueado as vidraças
voltadas ao ocaso.
O reitor encaminhou-se para uma das casas de mais miserável
aparência que havia naquele lugar.
Terminemos por este dizia o velho consigo.
Empurrou adiante de si a porta desta casa, e ia a entrar, quando
deu de rosto com Margarida, que saía.
Os olhos vermelhos da sua pupila, a expressão de dor que trazia
no semblante, chamaram a atenção do reitor.
Que tens. Margarida? perguntou ele com solicitude. Esses
olhoso de quem chorou.
É que despedaça o coração ouvi-lo.
Então está mais doente ?
Está muito mal.
E onde ias tu ?
A casa. O boticário quer o dinheiro dos remédios...
Queo vá arruinar-se o homem. Deixa que tem de me ouvir.
É pior que o pior dos seus cáusticos. Porémo tem dúvida, que
eu venho bem provido. Entra, mas antes alegra-me esse rosto.
Vamos.
E os dois entraram na sala. O interior da casao contradizia
o aspecto de fora.
Era a casa de um pobre.
com a cabeça encostada às mãos e os cocovelos apoiados na
mesa, estava um homem encanecido e pálidoo absorto, que nem
deu pela chegada do reitor, o qual se aproximou dele lentamente.
Este homem era o infeliz, que servira de mestre a Margarida.
O pároco ficou por algum tempo a observá-lo em silêncio ; vendo
porém queo era sentido, dirigiu-lhe a palavra:
Que grande dormir é esse, Sr. Alvaro, que nem dá pela che-
gada de um amigo?
O velho levantou finalmente a cabeça, como sobressaltado por
aquela voz.
Ah! é o sr. reitor ?o dormia, não...
Então ?
Pensava.
Em quê ?
Em quê ! E falta-me em que pensar ? Na minha vida passada
e na futura, que está próxima.
O passado disse o reitor, sentando-se do outro lado da
mesa e sem desviar os olhos do velho Álvaro é um sonho, que se
sonhou. E quando dele, felizmente,o ficaram remorsos, que peçam
reparações, arrependimentos ou... penitências, perde-se muito tempo
a pensar nele assim. Da vida futura... bom é ter nela sempre o pensa-
mento, decerto ; mas quem sabe lá quando nos está próxima ?
Sei-o eu. Há dois dias que me sinto fraco, muito fraco. Nem já
pude sair para, como costumava, ir ver or do Sol lá acima, dos
degraus da capela do Calvário.
Isso lá... todoss temos dessas fraquezas, sem causa. Há dias
assim. E então desanima por isso?
Desanimar ! replicou o velho, sorrindo tristemente. E que
ânimo tenho ainda para perder? Há muito que ele me falta na vida.
Bem vê continuou, apontando para Margarida que tenho preci-
sado de um braço para me sustentar.
Grande ânimo tem o que sai das grandes provações com a
cabeça levantada. Para que se faz cobarde diante de quem lhe conhece
e admira a coragem? A Cristo, também houve uma mulher, que lhe
limpou o suor da fronte vergada; e mais era um ânimo divino, aquele.
Não, euo sou forte continuou o velho doente. Colo-
cado, como estou, entre a morte e a vida, receio-me de ambas. Des-
falece-me o alento diante das provações continuadas de uma; assus-
ta-me a incerteza, o desconhecimento da outra. O meu coração é muito
da Terra, para poder ser forte. Os meus olhos ainda seo secaram
para as lágrimas...
Bem-aventurados os que choram ! redarguiu o reitor.
como meo há-de assustar a vida, se há muito que, onde
busco a consolação, encontro só o desespero? continuou o enfermo.
Ao findar o dia, gostava eu de me ir sentar lá fora, a ver descer o Sol ;
mas, dentro em pouco, tomava-me de uma tristeza profunda e rompia
em lágrimas, queo podia estancar. Aquele descimento do Sol lem-
brava-me outros ocasos. Eu tenho visto tantos! um dia, em volta de
mim, apagaram-se-me os esplendores da riqueza. O meu coração era
de homem... padeceu ; mas Deus sabe queo foi para ele esta a prova
mais terrível. Outro dia apagou-se a luz da vida no olhar de uma esposa
adorada; outro, nos rostos de duas crianças inocentes, que, ainda a
morrer me sorriam; então sim, fez-se a noite em minha alma... Era
isto que me recordavam aqueles ocasos...
Mas então para que procurava essas ocasiões de tristeza, diga?
perguntou Margarida com afabilidade e quase sorrindo. Olhe, se
às mesmas horas se voltasse para o outro lado, para aquele, onde o
Sol nunca se vai esconder, nem as estrelas, havia muitas vezes de avis-
tar a Lua que subia, a Lua queo deixava que a sua noite fosse escura
de todo. Também ela o afligiria assim?
Também eia. As vêzes a vi. Lembrava-me então que, para
mim igualmente, ao apagarem-se as mais ardentes afeições do meu
coração, nasceu a luz do teu afecto, melancólica e suave como a dela,
Margarida; entristecia-me com a lembrança.
Porquê ? perguntou Margarida.
Porque tentando descobrir a força misteriosa que te aproxi-
mava da minha desventurada velhice, a ti, a quem, pela idade, só ale-
grias deviam atrair, encontrava apenas a explicá-la a tristeza dessa
alma, tristeza que é o segredo do teu coração, que a ninguém revelas,
e que Deus queira queo acabe por te devorar um dia.
Margarida desviou os olhos da vista fixa e penetrante do velho,
e respondeu, fingindo sorrir:
Pois então, dessa vez, meu bom amigo, era bem sem razão
que se entristecia.
Prouvera a Deus que o fosse... que o seja. Mas, bem vêem,
havia em mim muita amargura, para me ser suportável a vida. Se o
travor nos está nos lábios,o há doçura de mel que o disfarce. Ver-
gava pois sob o peso da existência. Pedia fervorosamente a Deus que
me tirasse deste martírio, e era sincera a prece, era ! Persuadia-me
eu que, ao ouvir bater a minha última hora, a saudaria com júbilo; e
agora que bem sinto que chegou... e chamam-me forte ainda! agora,
ao ouvi-la, assusto-me, estremeço... Está próximo a revelar-se o mis-
tério... e que segredos me descobrirá? Que verá minha alma ao ras-
gar-se a nuvem, que caminha diante dela? Que verá minha alma depois
do túmulo? Que verá minha alma no dia de amanhã?
A glória eterna, a bem-aventurança dou ! respondeu o
reitor com a firme convicção da.
O velho Álvaro fitou nele um olhar demorado e perscrutador,
e, depois, escondendo o rosto entre as mãos, exclamou quase soluçando :
Senhor ! Senhor ! porque me negáis o bálsamo de uma crença
como esta!
O reitor contemplava-o com olhos de piedade. Para a sua alma,
ingènua e sinceramente cristã, era desconhecida e quase inconcebível
esta excitação febril, a que certa ordem de meditações arrebata alguns
espíritos ilustrados. A dúvida, esse demônio inquietador, nunca diri-
gira às 3uas crenças piedosas a interrogação fria e implacável, que as
faz estremecer. Elas protegiam-lhe ainda, como dantes, a cabeceira
do leito contra os maus sonhos dos filósofos, e, alumiado pela sua luz,
achava-se também o bondoso pároco no fim da viagem da vida, sem
se lembrar de perguntar a que porto chegaria. Sabia-o de pequeno;
desde então lhe repetia o nome de continuo. como que já aspirava as
auras desse país, e às vezes quase se iludia a ponto de o julgar entrever.
Era feliz na sua.
Contudo o reitor era destes homens, que tem coração para se
compadecer de todos os infortúnios, daqueles mesmos que a sua inte-
ligênciao compreende bem.
A solicitude, com que se aproximava dos infelizes,o podia
comparar-se à do médico, que procura sondar e conhecer o mal, para
o debelar apropriadamente ; era antes como a da mãe, que responde
a todos os gritos do filho estremecido com beijos e com lágrimas, e se
o cura assim a causa da dor, porque a desconhece, mitiga-a, por as
simpatias que revela.
As palavras cheias de resignação cristã, que o reitor dirigiu ao
atribulado enfermo, serenaram a este um pouco as amarguras do espí-
rito, que o espinho da dúvida pungia; e foi com verdadeira gratidão,
que apertou as mãos do padre, quando este se preparava para retirar-se.
uma das razões, que o levaram assim a resumir a sua visita, foi o
parecer-lhe ter ouvido o rumor de altercação um pouco viva, travada
à porta da casa, entre Margarida, que momentos antes deixara a sala,
e outra pessoa, cuja voz parecia vir da rua.
Ao aproximar-se o reitor percebeu melhor que a sua pupila
falava em tom suplicante, e o interlocutor, senão com aspereza, com
menos cordura, do que o pároco desejaria. Isto obrigou-o a apressar
o passo.
Mas, por amor de Deus, fale mais baixo queo vá ele ouvir.
Eu lhe prometo que tudo se lhe pagará dizia Margarida, quando o
reitor chegava junto deles.
Que é? perguntou este com modo desabrido, saindo para
a rua e fechando atrás de si as portas da casa.
O personagem que falava com Margarida baixou logo de tom ao
reconhecer o reitor, e respondeu com certa timidez:
Era uma continha que trazia ; mas uma vez que aqui a menina
se responsabiliza... Eu sou o senhorio. Sim, porque V. S." bem vê que,
se eu estivesse no caso de poder fazer esmolas, de boa vontade...
Quem lhas pede ? disse ásperamente o velho padre, tomando
o papel das mãos do credor, que falara assim. Para pagar aos vam-
piros como você, é que se pedem esmolas aos outros ; aos quem
coração. Aluguer de dois meses. Olhem a grande coisa ! Então é o
que se lhe deve ? Aí tem acrescentou, contando-lhe o dinheiro.
o repare o ir quase todo em cobre ; mas é dinheiro de esmolas, e
poucas se realizam em prata cá na terra.
Mas, sr. reitor, euo exijo de V. S.*... Eu confio...
Leve isso daqui, homem ! e saia você também, que me está
inquietando o espírito.
O senhorio foi embolsando o dinheiro, insignificante preço de
dois meses de aluguer daquele miserável casebre, e retirou-se com
uma alegria profunda.
Restam cento e dez disse o pároco, vendo o dinheiro que
lhe ficara. Chegará para os remédios? perguntou olhando para
Margarida.
Esta fez um gesto de dúvida.
Nesse caso, eu vou falar com o boticário, queo é mau sujeito
afinal, e hei-de resolvê-lo a esperar até amanhã. E de caminho, irei
também visitar o filho do José das Dornas, que deve já ter chegado.
Estas últimas palavraso foram escutadas com indiferença por
Margarida.
O Sr.... Daniel chega hoje? perguntou ela.
Pelo menos o pai espera-o.
E acrescentou como para consigo:
Agora para aí vem estabelecer-se o rapaz. Deus queira que
ele sossegue daquela cabeça, que, segundo me informam,o tem
sido lá das mais assentes. Vai tu para casa também, Margarida. O teu
mestre fica mais sossegado e espero que dormirá. O que é preciso
é mandar recado ao João Semana que o venha ver. Acho-o muito aba-
tido e mudado nos modos. Aquiloo está bom, não. Adeus. Eu vou
avisar a Maria do Caleiro que venha tratar do doente. É uma esmola
que se faz também à pobre mulher.
E o reitor saiu para realizar estes diversos intentos. Margarida,
depois de se despedir do seu velho mestre, que de facto parecia mais
sossegado, partiu também para casa.
Entre os pensamentos que a dominavam na volta, um dos mais
persistentes era o que a anunciada vinda de Daniel lhe sugerira ; e con-
tudo nada de extraordinário havia no facto. Se quiséssemos dizer quanto
lhe ocorria a este respeito, ver-nos-íamos embaraçados.oo vagas,
o difíceis de apreender, as idéias, que evoca ems a lembrança de
uma pessoa querida !
XIV
O
grande acontecimento do dia realizara-se enfim.
Pelas cinco horas da tarde, parava à porta de José das
Dornas a mais vigorosa e anafada das suas éguas, e dela se
desmontava Daniel, em trajos de jornada e com a clássica caixa de lata
a tiracolo, sinal evidente de formatura completa.
A vizinhança toda afluiu curiosa às portas e às janelas para ver
o facultativo novo e julgar dele pelas primeiras impressões. Era uma
colecção de olhos arregalados e bocas abertas, a convidar o lápis de
um artista.
Ainda éo novinho ! dizia uma mulher.
o sei o que me parece um cirurgião sem barba observava
um velho filosoficamente. Parece um estrangeiro.
Lá bonito é ele notava uma rapariga.
Olhem que boniteza ! um homem quer-se um homem redar-
guiu um alentado rapagão ao ouvi-la.
Neste tempo, porém, já Daniel estava rodeado pelo pai, irmão
e criados de um e de outro sexo, em cujos semblantes luziam naquela
ocasião sorrisos de júbiloo afectado.
Daniel era agora um esbelto rapaz de vinte e três anos, de aspecto
mais varonil, mas conservando ainda a mesma delicadeza de organi-
sação, que o caracterizara na infância, e que tantas apreensões fizera
conceber ao pai.
No meio daqueles homens do campo distinguia-se singularmente
o seu tipo quase setentrional, e com grande vantagem para ele no
conceito das mulheres, que umas e outras faziam baixinho esta mesma
observação, traída, porém, pelos olhares que lhe lançavam.
Trocaram-se cordiais abraços, baratearam-se parabéns e cruza-
ram-se perguntas, às quais era quase impossível responder de pronto,
tantas eo simultaneamente se faziam.
Enfim entraram para a sala.
O leitor concordará comigo, decerto, em que será melhor deixai
passar estes momentos de expansões e retirarmo-nos, discretamente,
como hóspedes importunos sempre nestas cenas de santa alegna
doméstica. Deixemos Daniel gozar-se à vontade dos abraços da famí-
lia, e preparar-se para sofrer, como puder, os apertos deo oficio-
sos de amigos e conhecidos, queo tardarão a vir cumprimentar o
zelador de suas importantíssimas saúdes.
Entremos, pois, com estes, que é a companhia que melhor nos
convém. Entre os primeiros encontramos logo o reitor.
O bom pároco caminhou para Daniel com os braços abertos e
lágrimas de alegria a bailarem-lhe nos olhos. Ficara com afeição ao
rapaz, desde que o tivera por discípulo.
Falou-lhe desses tempos com saudade e perguntou-lhe ainda
se se lembrava do latim.
Daniel, em resposta, declinou-lhe, sorrindo, hora horae, até ao
ablativo do singular, com grande satisfação do velho que, em paga,
terminou por uma prática sobre os deveres do médico na sociedade,
recheada de preceitos de excelente moral. Daniel escutou-o com
fisionomia atenta; mas diga-se o que é verdade, com o espirito um
pouco distraído.
Veio também João Semana João Semana, o velho cirurgião,
de quem já temos falado, homem rude, franco, jovial, que apertou a
o de Daniel, pondo em exercício uns músculos de oitenta anos, que
fariam a vergonha dos nossos rapazes de vinte.
Apesar dos seus muitos anos, tinha ainda João Semana hábitos
de actividade, a queo sabia fugir.
Erguia-se com estrelas, almoçava com luz e montava a cavalo,
para começar o giro clínico, que lhe tomava o dia quase todo, e nunca
reprimia a velocidade da sua pacífica e bem intencionada azémola,
para gozar por mais tempo de um ponto de vista pitoresco, para escutar
o gorjeio de alguma ave oculta na folhagem, nem para cortar a flor
desabrochada à borda dos caminhos, ou de entre a relva dos campos.
Nada disso ; se abrandava o trote da égua, era nos sítios mais azados
a quedas, se parava, era à porta dos doentes ou a ouvir alguma consulta,
à qual até a cavalo, respondia, e nos mais lacónicos termos possíveis.
Dava-se nele uma necessidade de movimento e de agitação, à
qual emo fora resistir. Quem o quisesse ver morto, era condená-lo
à inacção, privá-lo daqueles sóis ardentíssimos e chuvas excessivas,
a qua, havia mais de meio século, andava sujeito.
Viam-no sempre alegre, da mesma alegria de José das Dornas,
a alegria sem sombras.
Era perdido por anedotas, das quais podia dizer-se um repositório
vivo. Os frades eram ordinariamente os seus heróis preferidos ; contra
eles tinha sempre um gracejo aparelhado e pronto a correr caminho.
Esta bossa anedótica é sempre de grande valor para o faculta-
tivo que aspira à vida clínica. uma história contada a tempo, e com
graçi, vale bem três recipes, pelo menos.
Cirurgião dos pobres, por encargo oficial, era o João Semana
também, e sê-lo-ia sempre, por impulsos do coração, que lheo dei-
xava presenciar um infortúnio qualquer, sem simpatizar com o que
sofria, e sem empregar os meios para o aliviar.
Muitas vezes, na mão, que estendia ao pulso dos seus doentes,
ia escondida a esmola, que manifestamente se envergonhava de dar,
por aquela repugnância a ostentações de todo o género, que consti-
tuía um dos distintivos do seu carácter.
A conversa de João Semana com Daniel,o entendida, e por
isso admirada pelos circunstantes, versou sobre medicina. As exalta-
das crenças teóricas de Daniel, e a casuística inflexível e fria do velho
prático acharam-se em conflito.
João Semana era céptico em relação à ciência moderna. Quando
Daniel lhe citava um autor em voga, ou se referia a uma descoberta
notável, ou a um medicamento novo, João Semana encolhia os ombros,
sorrindo.
Tudo isso é muito bonito dizia ele, com poucas contempla-
ções para com a impaciência do seu jovem colega maso me serve
para nada. Era o que me faltava se eu, que mal tenho tempo para dormir,
me punha agora a 1er essas coisas todas. Que nomes ! que moléstias
que eu nunca vi, em sessenta anos de prática! Sabe você, Daniel?-
Eu penso que lá por fora, nessas terras grandes, há fábricas de molés-
tias novas, que felizmente por lá se gastam também; cá à aldeiao
chegam ; é o que lhe sei dizer. Você para cá virá, você para cá virá.
Há-de ver que na prática a coisa reduz-se a muito pouco ; mais gástricas
e menos gástricas, e disse.
Daniel falou em mil assuntos : nos aperfeiçoamentos da análise
médica, no microscópio, na electricidade, na química, na anatomia pato-
lógica, com um ardor de proselitismo, próprio da idade ; chegou a
persuadir-se que a sua eloqüência conseguiria, enfim, vencer o indi-
ferentismo teórico do clínico.
...tudo abrigado daquele sol canicular por a enorme umbela de paninho
vermelho,...
Recebeu, portanto, uma impressão desagradável, quando, ao
terminar um bem elaborado período em honra da ciência moderna,
obteve em resposta a frase do costume :
Isso tudo é muito bonito, mas você para cá virá, você para cá
virá, e então falaremos.
Nesta parte, tornava-se, pois, impossível a conciliação. Era o anta-
gonismo permanente entre a teoria e a prática revelado em uma das
suas multiplicadíssimas manifestações.
Mais arrojado do que o empirismo de João Semana, era, sem
dúvida, o sistema médico do barbeiro, que também tinha uma clínica
na aldeia, à qual, para maior exemplo de observância à lei, pertenciam
duas autoridades: o regedor e o presidente da câmara.
O barbeiro entrou risonho, cerimoniático, afável, modesto,
penteado, felino perfeita personificação do ideal do barbeiro,
todo mesuras, todo senhorias, todo humildades, todo delicadezas
velhacas.
E quantos estavam na sala o rodearam de atenções, e o próprio
João Semana, com grande espanto de Daniel, o interrogou com refe-
rência a uma doente, de quem tratavam juntos.
com audacia, mal encoberta por transparente modéstia, o bar-
beiro expôs assim a sua opinião :
Enquanto a mim, e até onde chegam as minhas fracas luzes,
aquilo é o flato que lhe subiu ao coração. Por isso a doentinha tem
aqueles pasmos, que se vêem. Ora os sinapismos, puxando-ihe os humo-
res para os pés, algum bem lhe podem fazer Mas eu por mim, Sr. João
Semana, penso que nestas doenças de retrocesso, a matéria reimosa
o sai sem sedenho. E que ali há matéria reimosa e fel, que é ainda
pior isso é que. Já vê então... mas isto digo eu ; agora lá os senho-
res que estudaram...—acrescentou humi demente, mas obliquando
para Daniel um olhar, de quem estava satisfeito de si.
Daniel ¡ratou senhorilmente este colega de contrabando, e na
ocasião em que ele se entranhava, mais entusiasmado, na exposição
de uma teoria sua, na qual ferviam o humores, os flatos, as matérias
reimosas, os postemas eo sei que mais, em indigesta caldeirada,
interrompeu-o, perguntando-lhe secamente :
Teve hoje muito que fazer, mestre ?
O barbeiro acolheu a perguma com um sorriso e uma mesura,
Está feito. Apenas fiz três visitas.
E quantas barbas ?
O mestre mordeu os beiços antes de responder:
Nenhuma.
Este colega do célebre Oliveiro — o gamoo gostava que
le falassem na única das coisas em que era eminente.
É uma fraqueza esta mais comum à humanidade, do que talvez
e julga.
João Semana reparara nesta curta cena, e tomando de parte
Daniel, aconselhou-o a que poupasse o barbeiro, e o aceitasse como
colega, sob pena de indispor contra si a primeira gente da terra.
Meu caro amigo concluía ele quem quiser viver bem
neste mundo, faz a vista grossa a muita coisa. Está bom, está !
E, como parao perder um hábito antigo, acrescentou:
Você quer saber? Quando eu andei no Porto, conheci lá um
frade, que era pregador de nomeada. Poiso havia outro passa-culpas
como aquele ;o gostava de meter medo a ninguém com as penas
do Inferno. O prior do convento chegou um dia a dizer-lhe que ralhasse
m lis contra o pecado, queo fosseo bom de contentar; respon-
deu-lhe o frade : «Não que, reverendissimo padre, é preciso tento ;
nem o Diabo se deve tratar muito mal, porque ele tem por aí muitos
amigos». Ora pense nisto, e adeus, que vou à minha vida.
E saiu.
O resultado de tudo foi uma grande depressão no entusiasmo
de Daniel, pelo modo de vida que adoptara.
Finalmente retiraram-se as visitas.
o quase trindades ; a família toda, incluindo os criados, que
na aldeia fazem quase parte dela, está reunida em conclave na eira, a
experimentar cada qual, como à porfía, a sagacidade e ciência do novo
facultativo, interrogando-o sobre todos os pequenos incómodos sen-
tidos, de que a memoria lhes pode sugerir ainda noticia. É esta a prova
tremenda, que espera o estudante de medicina em tempo de férias,
ou ao terminar a formatura prova mil vezes mais decisiva para o
seu futuro, do que quantos diplomas lhe possa dispensar a douta cor-
poração, da qual recebe os títulos profissionais.
um perguntava a Daniel se a grama era mais fresca do que a
cevada; outro qual a razão por que os pimentos de conserva nunca
lhe faziam mal, enquanto a salada de alface lhe causava uma irritação
de estômago infalível; vinha outro que desejava saber se seria melhor
purgar-se no quarto crescente, se no minguante da Lua ; queixava-se-
-lhe um de uns arrepios, que sentia ao deitar-se na cama, e principal-
mente no Inverno, outro do muito que suava no Verão ; um velho criado
da casa, viúvo inconsolável, fez-lhe a história circunstanciada da doença,
de que morrera a mulher, havia dez anos, pedindo a Daniel que a diag-
nosticasse, e lhe expusesse o tratamento que a devia ter salvo ; em con-
traste com esta medicina retrospectiva, vinha uma rapariga perguntar,
muito ingènuamente, se lhe poderia fazer mal o ir a uma romaria dai
a oito dias ; José das Dornas também quis saber se o caldo de abóbora
era melhor para a saúde do que o de nabos. uma velha interrogou
Daniel sobre a doença das galinhas, e o
i
próprio Pedro, tentado por
este exemplo, fez algumas perguntas sobre a dos perdigueiros.
Daniel via-se em talas para satisfazer a tantas exigências, que
o timbravam de racionais, e procurava deslindar-se airosamente
delas com aquele desculpável grau de charlatanismo, mais ou menos
correcto e disfarçado, que todas as sociedades do mundo, rústicas e
urbanas, sao as primeiras a exigir aos médicos. Querem elas que se
lhes responda sempre, e com desafogada segurança, às suas interro-
gações absurdas, preferindo serem iludidas a ficarem sem resposta,
a qual muitas vezes, em consciência, medicina alguma do mundo lhes
poderia dar
Peço, portanto, um « bill » de indemnidade para Daniel.
XV
P
EDRO foi quem, ao cerrar da noite,s fim a este interrogatório,
que levava jeitos de eternizar-se.
Vem daí dar um passeio, Daniel; e de caminho hei-de
mostrar-te a minha mulher... a que há-de ser.
Ah !... é verdade que estás para casar. Estimo que mes
ocasião de tomar desde já conhecimento com a que dentro em pouco
chamarei irmã. Espero encontrá-la digna de ti. Vamos.
Ide, ide, rapazes observou José das Dornas. Vais ver
uma guapa cachopa. Daniel. Mas tu conhece-la... É uma filha do Meadas.
Ah!... sim... tenho uma idéia.
Cumpre-me confessar que Danielo tinha tal idéia das filhas
do Meadas. Enquanto esteve no Porto, e até nos curtos intervalos de
férias que passara na terra, vivera ele muito estranho à vida do
campo, para se recordar ainda das alcunhas, peias quais, na aldeia,
mais geralmenteo conhecidas as famílias, do que ainda por os ver-
dadeiros nomes e sobrenomes.
José das Dornas é que tinha uma idéia ao dizer aquilo ; era a de
fazer lembrar ao filho o episódio da infância, que decidira da sua vida
inteira.
Mas, ainda que sob o risco de indispor o ânimo das leitoras contra
uma das principais personagens desta singelíssima história, farei aqui
a desagradável, mas conscienciosa declaração, de que a imagem de
Margarida andava, por aquele tempo,o desvanecida já na memória
de Daniel, que nem o nome, pelo qual fora sempre designada na :erra
a família da rapariga, lhe pôde avivar os traços.
Havia muitos anos que Daniel observava um sistema de vida,
que de todo o trazia desafeito dos hábitos campestres e indiferente às
coisas e pessoas da localidade que o vira nascer.
Encarnara-se intimamente nele o espírito das cidades. As momen-
tosas questões que ocupavam as cabeças sérias da aldeia, faziam-no
sorrir ; as distracções que entretinham as mais levianas, obrigavam-no
a bocejar.
Danielo deixara mentir o prognóstico que aquelas duas boas
velhas, das quaiso sei se o leitor ainda se lembrará, tinham feito do
jovem estudante de latim, ao verem-no passar, sobraçando os livros,
para casa do reitor. Durante os seus anos de estudo fora efectivamente
o filho de José das Dornas herói de numerosas aventuras de amor, de
mui diverso carácter.
Deixando-se impressionar de circunstâncias insignificantes, que
outro espírito, menos exaltado, receberia com indiferença, andava
ele quase de continuo sob o império, fértil em deleitosas sensações,
de uma paixão nascente.
Este coração, eminentemente acessível e irritável,o tivera
quase, até ali, um instante de sossego.
Eu disse este coração quase me estou arrependendo de me ter
servido da palavra.
Entraria de facto, comò elemento destas paixões efémeras,o
instantâneas como a combustão da pólvora, essa víscera simpática,
que, a despeito dos médicos e da medicina, eu julgo o sacrano augusto
dos sublimes e duradouros sentimentos que constituem o dote mais
valioso do nosso patrimônio moral?o sei; antes me quer parecer
que não.
Daniel amava de imaginação ; nem eu vejo bem como pudesse
amar de outra maneira quem, por vêzes, se deixou levar por futilidades
quase ridículas.
O coraçãoo éo sujeito a fraquezas desta ordem ; ou eu ando
muito enganado.
Houve, por exemplo, uma mulher que, durante alguns meses,
conseguiu assenhorear-se dos pensamentos do nosso herói pela maneira
individualíssima e inimitável, com que sabia dizer aquele gracioso agora
minhoto,o levianamente criticado pela gente da capital.
Ora digam-me se é este um fenômeno do coração, eo antes
um como desvario da cabeça, mais azada a tais singularidades ?
Mas o que é certo é que, fosse pela cabeça, fosse pelo coração,
Daniel achara-se, em todas as ocasiões em que viera a férias, suficiente-
mente apaixonado para escapar à influência das formosas da sua terra.
Envolvia-o uma como que atmosfera de isolamento para me servir
de uma frase da língua científica e nesse ambienteo floresciam
os amores bucólicos.
Raras vezes mostrou recordar-se daquelas suas afeições de
criança, que tantas lágrimas lhe tinham ¡á feito verter
Só um dia em que, passeando nos campos, chegara por acaso
ao pequeno outeiro, onde sucedera a inocente cena de idilio,o mal
encarada pelo reitor, foi que lhe veio à idéia essa passagem da infân-
cia, já quase esquecida ; e a imaginação lhe representou então o vulto,
suave e meigo, da pequena Guida, corno uma visão momentânea,
rodeada pelo brando perfume da poesia e da saudade.
Lembrou-se dessa vez de perguntar por ela. Disseram-lhe que
tendo ficado órfã de pai e mãe, vivia só com a irmã e que ensinava
meninas tarefa que raras vezes lhe permitia sair de casa.
Daniel nunca mais renovou a pergunta.
Fora isto talvez dois anos antes da sua vinda definitiva para a
aldeia. Nao admira, pois, que com estas disposições mentais estivesse
muito longe de pensar em Margarida, quando, com segunda intenção,
o pai pronunciou o apelido de família da noiva de seu irmão.
Foi como por demais que Daniel disse ter uma idéia deste apelido,
o qual lhe soara quase como novo.
Acompanhando Pedro, levava ele, portanto, o espírito inteira-
mente despreocupado e somente um pouco movido de curiosidade
de ver a destinada esposa de seu irmão mais velho.
Tinha-sa por conhecedor em belezas femininas, e agradava-lhe
sempre a análise, aplicada a esta especialidade estética.
Àquela hora do diao os caminhos da aldeia muito freqüentados
pela gente que regressa do trabalho a casa.
Os dois irmãos a cada passo se encontravam com vários grupos
de aldeãos homens, mulheres e crianças que todos os saudavam
com as fórmulas sabidas : « guarde-os Deus » — e « louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo» às quais ambos correspondiam com
outras análogas.
Subiam eles a encosta de uma pequena colina, no alto da qual,
sob o fundo magnífico dou ainda iluminado pelos últimos rubores
do crepúsculo, se delineava o vulto negro de uma cruz de granito,
quando lhes chegou aos ouvidos o som de vozes longínquas, cantando
concertadas ; simultaneamente pararam a escutá-las.
Pouco a pouco, a música tornava-se nr.is distinta, e cedo, ao lado
do cruzeiro, desenharam-se também as figuras graciosas de um bando
de raparigas, que voltavam à aldeia, entoando em coro uma saudação
à Virgem Maria — a predilecta da piedade popular. Harmonizavam-se
o bem aquelas vozes frescas e juvenis ; combinava-seo admiràvel-
mente a poética melancolia do lugar e da hora com a daquela toada
singelíssima, que Daniel sentiu-se comovido.
Os dois irmãos puse;am-se de lado para deixar passar as rapa-
rigas ; e nem o mais estouvado deles teve coragem de interromper
com a menor frase de galanteio o coro piedoso que elas, sem inter-
rupção, continuaram cantando ; e até de todo se perderem as vozes
pela distância, conservaram-se ambos silenciosos e imóveis.
Como se esta cena reconciliasse Daniel com a vida do campo,
ogo que prosseguiram o caminho, ele exclamou, mais para si talvez
do que para o irmão:
Digam o que quiserem, há na aldeia belezas magníficas. A cena
é inexcedível — e isto dizia, correndo com a vista o horizonte vasto
que o rodeava e as personagens, às vezes,o bem dignas de
atenção !
As raparigas do coro tinham-lhe ensinado a apreciar um género
de beleza, a que, até então, fora indiferente.
Preciso é também que se diga que desta vez, trazia Daniel, por
excepção, o coração, ou como quiserem, a cabeça em disponibilidade
circunstância queo pouco concorreu para o efeito produzido.
Chegaram enfim a casa das duas irmãs.
Era uma pequena, modesta, mas graciosa habitação, um pouco
fora já do centro do povoado.
A solidão em que ela ficava, propria a fomentar saudades, sem
quebrantar com desalentos, agradaria aos menos poetas. Havia tanto
sussurrar de folhagens, tanta pureza de ares, tanto desafogo de hori-
zontes em volta dela, que uma íntima serenidade se insinuava na alma
do que parava ali. A ténue claridade daquela ameníssima noite de
Estio mais realçava ainda a poesia do lugar.
A casa era toda caiada de branco; abria para a rua duas largas
janelas envidraçadas, que alguns pequenos vasos de flores adornavam.
De um e de outro lado prolongava-se um lanço de muro de sólida alve-
naria, igualmente caiado, e que a folhagem do pomar interior sobrepu-
java, caindo para o caminho as balsaminas em festões verdes e floridos.
Foi à porta deste muro que Pedro bateu familiarmente, dizendo
para Daniel, que estava saboreando o prazer daquela perspectiva:
É aqui.
uma voz de mulher correspondeu ao sinal de Pedro.
Era a de Margarida.
Sou eu, Margaridinha, abra—disse Pedro.—Sou eu e uma visita.
Passados alguns momentos, a porta girou nos gonzos, abrindo
passagem para um vasto pátio ou quinteiro, assombrado de rama-
das, o qual, naquele momento, atravessavam ainda algumas aves
domésticas, retardadas, a procurarem o abrigo das capoeiras.
Margarida, que fora a que abrira a porta, ao ver Daniel, retirou-se
sobressaltada para a quase obscuridade, que interiormente projectava
a ombreira.
o se assuste, Margarida disse Pedro sorrindo, ao per-
ceber-lhe o movimento.o se assuste ; é tudo gente de casa. Este
é o meu irmão Daniel, o nosso cirurgião novo. Esta minha cunhada,
que já assim lhe posso chamar acrescentou, voltando-se para o
irmão é muito acanhada, e por issoo repares...
Daniel dirigiu um cumprimento distraído a Margarida, cujas
feiçõeso pôde distinguir pela pouca luz que as iluminava. Demais
eram estas feições, como já atrás dissemos, daquelas que exigem um
exame demorado para se lhes sentir toda a suave beleza.
Podia dizer-se delas o mesmo que destas óperas, privadas de com-
binações brilhantes, queo deixam impressão em quem uma só vez as
escuta ; mas acabam por patentear segredos em harmonia aos ouvidos
que repetidamente as recebem, segredos que nunca mais se esquecem.
Onde está a Clara?—perguntou Pedro, entrando, seguido
do irmão.
No poço, julgo eu respondeu Margarida, com a voz ainda
trémula de comoção.
E, muito tempo depois de os ver passar, ali se conservou imóvel,
com o olhar vago, a fronte inclinada e o seio inquieto. O que ia neste
momento por o coração da pobre rapariga? Adivinha-o decerto a
leitora, se já pensou na delicada sensibilidade deste carácter de mulher.
A indiferença, com que Daniel passara por ela, o modo por que
a saudara, a frieza com que lhe ouvira o nome... tudo lhe mostrou que
ao conhecia.
Dolorosa descoberta para aquela alma, tanto mais amorável, quanto
mais se encobria de manifestar os seus tesouros de afectos !
Foi com certa revolta de delicadeza feminina, com uma quase
má vontade contra si própria, que ela, sondando o íntimo do coração,
reconheceu o sentimento que o inquietava assim.
como que se interrogava com a severidade do mentor para com
o discípulo mal encaminhado.
Que loucura é esta, mulher? Pois ainda tens dessas criancices,
doida? Que pensavas tu? Que esperavas? Era acaso possível que ele
se lembrasse de ti?... E para quê?...o foi melhor que se esque-
cesse? Diz.
Em situações como esta, opera-se ems uma espécie de sepa-
ração em duas entidades de sentir contrário.
Arvora-se uma em juiz, interroga da maneira que vimos, fala
em nome da razão, julga, repreende, condena; a outra quando, sob o
severo exame da primeira, mais subjugada parece, conserva, na sua
humiliação, intacto o espírito de independência ; assim como, curvada
a cabeça às admoestações da preceptora, a pequena discípula sente
em si o instinto de rebelião, que mal pode reprimir.
Em Margarida também se dava este antagonismo. Falava-lhe a
razão, como dissemos ; mais baixo, como a medo, murmurava-lhe
outra coisao sei que voz mais atendida por ela.
Podias segredava-lhe essa voz podias e dévias esperar
que ele se lembrasse, sim. Acaso o esqueceste tu?
Diga-se a verdade. Até àquele momento, Margarida conservava uma
ilusão, muito escondida dos outros e de si, mas nunca de todo extinta.
Avaliando, por os seus, os sentimentos dos mais,o podia con-
vencer-se de que, em Daniel, estivessem inteiramente apagados os
vestígios daquela infância, gozada em comum por ambos. Pensava que
ele a reconheceria logo, ao vê-la, que lheo ouviria pronunciar o nome,
sem que a memória o repercutisse ; que o primeiro olhar seria fértil
em recordações, que bastariam só para ressuscitar o passado inteiro.
Enganara-se : conheceu que se enganara, agora que o vira passar
assim ; e apesar de toda a força da sua razão, Margarida sentiu ene-
voarem-se-lhe os olhos de lágrimas, e a alma de melancolias.
Afinal de contas a boa da rapariga tinha um coração de mulher.
Perdoem-lhe esta fraqueza.o há carácter humano que aso
tenha iguais ; assim fora possível sujeitá-las à rigorosa análise de seus
mais recônditos mistérios.
XVI
O
S dois irmãos dirigiram-se ao lugar, onde segundo as indica-
ções de Margarida, deviam encontrar Clara.
O ranger da bomba do poço, e a voz da alegre rapa-
riga, que cantava—-pois nela dir-se-ia ser o canto, como nas aves, a
mais natural expressão serviram-lhes de guia.
Tomando por uma rua extensa, revestida de limoeiros, através
de cuja espessura coava, a custo, a claridade nascente do luar, con-
seguiram aproximar-se, sem que fossem percebidos.
Clara cantava:
Vem livrar-me com teus olhos,
Que eu por eles me perdi ;
Dá-me a vida com leus beijos,
]á que por beijos morri.
Porém, ao voltar naturalmente a cabeça, descobriu Pedro na
companhia do irmão ; vendo-se surpreendida assim, interrompeu de
súbito o trabalho e o canto, e meia confusa, saudou-os com os olhos
baixos e a voz embaraçada.
Foi curta a apresentação, e em nada cerimoniática. Pedro odiava
etiquetas, ou antes, ignorava-as.
A figura de Clara, inundada pelos raios da Lua, que já se levan-
tava esplêndida no horizonte, fez conceber a Daniel uma subida opinião
do bom gosto de seu irmão.
o era Daniel homem para se coibir, por acanhamentos, em
observação que tanto o deleitava. Sem disfarces nem precauções, ana-
lisava, feição por feição, aquela fisionomia simpática, e como que lhe
delineava com a vista o perfil, onde se continuavam graciosamente,
por suaves inflexões, as mais elegantes curvas.
Clara, adivinhando-se objecto daquela inspecção minuciosa de
conhecedor e entusiasta,o ousava erguer os olhos. Dir-se-ia que,
màgicamente condensados, os raios visuais, que a envolviam daquela
maneira, lhe tomavam os movimentos até mal a deixarem respirar.
Pedro sentia certo desvanecimento, lendo a tácita aprovação da
sua escolha, na expressão do olhar do irmão.
Clara conseguiu afinal dominar o enleio dos primeiros instantes,
e dirigindo-se a Pedro:
Então isto faz-se ? disse ela, aindao de todo serenada
da primeira confusão, e descendo e apertando nos punhos as mangas
da camisa, que tinha arregaçadas. Trazer assim uma visita, sem dizer
nada à gente !
É meu irmão dizia Pedro, sorrindo.
Que tem que seja?o é para assim vir ter com uma pessoa,
que anda cá no seu trabalho. E sem fazer barulho, então ! Ora sempre !
Ora sempre ! E, ao dizer isto, lançava para o noivo um olhar que,
tentando ser de repreensão, só conseguiu enlevá-lo.
Olhe, Clarinha disse Daniel, adiantando-se e dando às pala-
vras o tom de amigável familiaridade. O culpado fui eu. Mas que
quer? é costume antigo que tomei. Quando era rapaz, gostava já muito
de ouvir os rouxinóis que cantavam nos laranjais da nossa casa; mas
eles, percebendo-me, calavam-se. Sabe o que eu fazia então? ia-me
devagarinho, pé ante, onde eles estavam, e lá me ficava a ouvi-los
cantar horas e horas. Foi o que fiz agora.
A lisonjao desagradou de todo a Clara, que respondeu gra-
cejando :
Os rouxinóis jáo cantam neste tempo.
Mas cantam outras vozeso sonoras como as deles e mais
felizes ainda ; pois nem as fazem calar as neves do Inverno, nem os
ardores do Estio. Era uma dessas ques paramos a ouvir.
Clara, sentindo-se pouco à vontade para responder ao galanteio,
disfarçou, afastando-se como para regar as flores de um alegrete vizinho.
Pedro aproximou-se dela.
Nunca mais murmurou-lhe a rapariga ao ouvido tornes
a fazer uma destas, Pedro. Tambémo sei como a Guida vos deixou
entrar assim. Eu lho direi.
Ora vamos, Clara disse Pedro, auxiliando-a na tarefa da
regaos agora ralhar com a Margarida, que mais embaraçada
ficou ela do que tu.
Sim?! Pois aí está, vês?o tinha razão para isso. A Marga-
rida é outra coisa. O Sr. Daniel nao falou ainda com a Margarida?
continuou Clara, já mais senhora sua e fazendo uso desimpedido do
olhar, que fitou no interpelado. Ela é que saberia responder bem.
Quando quer, sabe dizer coisas... Até o sr. reitor, muitas vêzes,o
tem que lhe responda. O Pedro que o diga.
Pedro fez um sinal de assentimento.
Este duo em honra de Margaridao causou grande impressão
em Daniel, que continuava a fitar Clara com persistente atenção, encan-
tado pelo timbre daquela voz, por aqueles movimentos, cheios de
graça e vida, e pela inimitável expressão do olhar, meio de bondade e
meio de malícia, que ainda a branca claridade da Lua fazia realçar o
seu fulgor.
A conversa tomou, pouco a pouco, familiar e jovial carácter de
intimidade., alguma vez, uma frase mais cortesa de Daniel vinha
tirar a Clara a frieza de ânimo necessária à resposta isto com grande
estranheza sua, poiso se tinha por demasiado tímida.
Pobre João Semana ! dizia Clara em um dos seus momentos
de malícia. Quem mais o chamará agora, depois de haver na terra
médico novo?
Está enganada respondeu Daniel ; quando mais ninguém
o chamasse, teria por si a melhor de todas as freguesias, a das rapa-
rigas,
Agora ! E então porque o haviam de querer ?
Porque os médicos novosm o mau costume de desejarem
saber das doenças do coração, e dessaso se querem elas tratar.
o sei porqueo ; poisooo perigosas ? Eu sempre
ouvi dizer que se morria disso.
Se se morre ? Morre-se a todo o momento até. Mas, pelos modos,
é um morrer de que se gosta.
Deixe; sempre é morte,o pode ser muito boa.
Ora ! Morre-se a cantar :
Dá-me a vida com teus beijos,
Já que por beijos morri.
o era assim que dizia?
Clarao pôde suster o riso, e Pedro fez coro com ela.
Ora, responda: se o médico tomasse a receita a sério, e qui-
sesse dar vida à sua doente?
Isso mais devagar.
Aí tem ; é por esse motivo queo é bom consultar os médicos
novos. O João Semana é queo é capaz dessas atenções, julgo eu...
E que as tivesse...
Tal foi a feição predominante do resto do diálogo, que só termi-
nou quando a Lua ia já alta no firmamento, com toda a pompa de um
desanuviado plenilúnio.
Sabes tu dizia Daniel ao irmão, quando juntos se retiravam
queo podias escolher mais galante noiva ? Em toda a aldeiao
há outra decerto que se lhe ponha a par.
Isto foi já na rua, mas próximo da porta do quintal, onde se demo-
rara Clara, a cujos ouvidos chegaram distintamente estas palavras
de Daniel.
Se elas lhe poderiam ser indiferentes, pergunto eu às leitoras
bonitas? Sendo sinceras comigo,o se atreverão a condenar este
sentimento de vaidade, que moveu o coração de Clara. Se a vaidade
constituísse pecado capital, talvez que certa particularidade do paraíso
muçulmano tivesse sua razão de ser.
Clara era pouco reservada.
Tudo quanto sentia, fossem tristezas, fossem alegrias, vinha-Lhe
do coração aos lábios, por um movimento de expansão irreprimível.
Procurando, pois, a irmã, contou-lhe tudo quanto lhe dissera Daniel,
o que ela lhe respondera, e, finalmente, as ultimas palavras, que lhe
havia escutado.
Margaridao foi senhora do seu coração a ponto deo sentir
certa amargura, ao comparar a intensidade da impressão, produzida
por sua irmã no ânimo de Daniel, que pela primeira vez a via, à indi-
ferença com que ela fora desatendida ela, por quem deviam falar
tantas memórias do passado.
Eu já disse que Margaridao era de naturezao superior, que
o tivesse destas desculpáveis fraquezas. Muito para apreciar é já a
placidez nas acções, se como nela seo desmente nunca; seria exi-
gência demasiada e um excessivo querer apurar a natureza humana
ao grau da perfeição quase divina, pretender que, no mundo oculto
dos pensamentos e dos afectos, reine também a inalterável serenidade,
que só pode ser de anjos, e nunca de criaturas, a quem de continuo
os vendavais das paixões sílteiam.
O que posso assegurar a respeito de Margarida e jáo é
pouco assegurar é que este movimento de ciúme nem eu sei se
tal nome lhe posso daro se envenenou, convertendo-se em
má vontade contra o objecto que lho desafiara.
Margaridao sentiu, para com a irmã, nenhum desses òdio-
zinhos feminis, que em tantas tempestades se desencadeiam às vezes.
Calou-se, sorriu até, e pensou consigo:
E de que me serviria que fosse de outra sorte ? Melhor é que a
memória lhe seja sempre infiel ; melhor, muito melhor para o sossego
do meu espírito. Ainda bem.
Era ainda a razão que falava ; mas o coração ? Ai, o coração !...
É inevitável a luta, sempre que a um espírito vigoroso e lúcido
anda associado um coração que sente, que se comove sob a influência
dos estímulos naturais dos afectos humanos.
Quando o coração é de gelo, a razão dirige desafogada, imper-
turbável, em linha recta, o caminho da vida; quando a razão abdica e
o coração domina, o movimento é irregular, mas livre ; caprichoso,
mas resoluto ; funesto, mas incessante ; porém se o coração e a cabeça
medem forças iguais, a cada momento param para lutar, como atletas
destemidos. De qualquer lado que tenha de se decidir a vitória, será
disputada, até ao último instante, pelo contendor vencido ; a pausa terá
sido inevitável ; a reacção enérgica ; e a crise violenta.
Podem passar ignoradas de todo as peripécias desse combate
Íntimo; mas a aparente tranqüilidade exterior mais lhe exacerbará
a crueza.
Margarida escutou por muito tempo a irmã, sem saber como
acolher aquelas ingênuas confidencias ; afinal lembrou-lhe, sorrindo,
que devia ser menos sensível à opinião de estranhos quem, dentro
emo pouco tempo, ia ligar o seu destino ao destino de outro.
Clara possuía um gênio, com o qual seo davam as apreensões.
o calculava consequências. A vida para ela era o presente. Raras
vezes lhe lembrava o passado ; o futuroo lhe tomava muitos momen-
tos de meditação também. As palavras e os actos irreflectidos eram nela
freqüentes. De nada suspeitava. A sua confiança em todos e em tudo
ohegava a ser perigosa. um inesgotável fundo de generosidade, ele-
mento principal daquele carácter simpático, levava-a ao cepticismo
AS PUPILAS DO SENHOR REITOR
em relação à malevolencia e à má fé que outros possuíssem. Parecia
muitas vezes afrontar a opinião do mundo, eo era por a desprezar,
mas porqueo pensava nela.
Quem possui um carácter assim, se seo perde, se seo perde
inocentemente, é porque tem a defendê-lo a Providência, porque o
abrigam as asas do seu anjo da guarda.
Ouvindo pois a observação da irmã, Clara desatou a rir
Que me estás aí a dizer, Guida? que me estás tu aí a dizer?
Então, por eu me casar, devo deixar de fazer gosto de mim? Olha, eu
o me quero com gente muito sisuda. A ti perdoo-te, porque...
enfim... és muito boa também, mas ainda assim,o perdias se...
E, mudando subitamente de tom, acrescentou com um pouco de malicia
na voz e no olhar:
Ora diz-me cá uma coisa, Guida, com toda essa tua seriedade,
o gostarias também que um rapaz, assim como Daniel, dissesse de
ti o mesmo? Anda, confessa.
Doida !
Tu és mais velha, bem sei, mas eu sou dentro em pouco mulher
casada, e por isso posso fazer-te destas perguntas. Anda, responde.
Esta jovialidade de Clarao foi recebida pela irmã sem confusão.
Em vez de responder, limitou-se a apertá-la nos braços, dizen-
do-lhe quase ao ouvido:
Então, Clara ! É preciso ser menos criança. Quem está para
o cedo tomar canseiras de família... A falar a verdade...
E cuidas tu que me hão-de tirar esta alegria as tais canseiras ?
Ai, Guida, isso é que não. como assim... Olha, eu jáo nasci para
tristezas.
E talvez seja melhor disse Margarida, respondendo a Clara,
e pode ser que, em parte, a seus próprios pensamentos.
XVII
E
RA meio-dia, um meio-dia de Verão, ardente, asfixiante, calci-
nador, a hora em que tudo repousa, em que as aves se escondem
na folhagem, as plantas inclinam as sumidades, desfalecidas de
seiva, e os ribeiros quase nem murmuram, de débeis e de exaustos
que vão.
Nem uma ténue viração fazia sussurrar as alamedas e os soutos
nos vales ou os pinheirais nos montes.
Apenas pelas sarças volteavam, como em danças caprichosas,
enxames de insectos alados, sendo o seu zumbido importuno, ou o
cantar longínquo dos gaios, os únicos sons a interromperem o silêncio
daquela hora.
Os caminhos e os campos estavam desertos ; povoadas e fume-
gantes as cozinhas, onde a familia do lavrador se renne para a refeição
principal do dia.
Mas quem estendesse a vista pelo extenso lanço de estrada a
macadame, que corta em linha recta apovoação, onde, naquele momento,
o sol batia em cheio, sem ser impedido pela menor folha de árvore,
ou beira de telhado, descobriria o vulto de um cavaleiro, caminhando
a trote e envolto na densa nuvem de poeira, levantada peloss da
cavalgadura.
Este cavaleiro era João Semana.
Trajava com toda a singeleza o velho cirurgião. um fato completo
de linho cru, botas amarelas de solidez de construção, à prova de
todo o tempo, chapéu de palha, de abas descomunais, tudo abrigado
daquele sol canicular por a enorme umbela de paninho vermelho,
rival em dimensões de uma tenda de campanha, eis o vestido caracte-
rístico do nosso homem.
As rédeas flutuavam à solta, sinal evidente da distracção do cava-
leiro e dos admiráveis instintos e superior discrição da alimária, que
1 mostrava conhecer a palmos o caminho de casa e para ela se dirigia
mais apressada que de costume.
Causava dó olhar para a fisionomia de João Semana naquela oca-
sião. As faces de vermelhas, que naturalmente eram, quase se lhe
haviam feito negras ; o suor corria-lhe, como lágrimas, pelas faces
abaixo.
Mas o heróico octogenárioo desanimava. Sorvia filosoficamente
a sua pitada, assoava-se com ruído, e soltando depois um desses ahs,
bem guturais el quentíssima expressão das delícias que o olfacto
pode proporcionar a um mortal dava mostras de consolado.
De caminho, ia João Semana lançando um olhar de comiseração
para o milho dos campos adjacentes à estrada, algum do qual o
calor e a escassez das águas tinham definhado ; e ao contemplá-lo
parecia mais sentir por ele
r
do que por si, a insuportável temperatura
daquele ambiente.
João Semana era também proprietário rural, e portanto apaixo-
nado pela lavoura, conhecedor das leis de cultura, e experiente prognos-
ticador do futuro das novidades agrícolas ; por isso, examinando com
profunda curiosidade o aspecto dos campos, cujos donos pela maior
parte conhecia, quase chegara a esquecer-se de que um ardentíssimo
sol lhe dardejava sobre a cabeça raios ameaçadores, tentando emo
exercer naquela robusta constituição a sua influência maligna.
A égua é que seo esquecia assim fàcilmente disso, e, cada vez
mais rápida, procurava furtar-se ao incômodo calor, e ao seu ine-
vitável cortejo de moscas, que a traziam impaciente,o obstante os
folhudos ramos de carvalho, com os quais João Semana lhe enfeitara o
pescoço.
Depois de cinco minutos mais de trote acelerado, tomou o pobre
animal, com manifesta ansiedade e sem esperar sinal do cavaleiro,
por uma rua estreita, que, abrindo-se ao lado esquerdo da estrada,
seguia, sob espesso toldo de verdura, por entre duas quintas fron-
teiras.
Era um oásis, depois do deserto.
João Semana, porém, pareciao indiferente ao vantajoso da
mudança, como o fora à desagradabilíssima influência dos raios do Sol,
em campo descoberto.
Daí por diante começavam a ser mais freqüentes as habitações,
e, ao barulho que fazia a égua sobre o terreno sólido e nas pedras
soltas do caminho, assomava a cada janela uma cabeça, e João Semana
recebia um cumprimento e um convite para jantar, a ambos os quais
ele correspondia com benevolente familiaridade e às vezes com gra-
cejos, sempre bem recebidos e festejados.
Logo ao principio, foi um velho, em mangas de camisa, e de
cabeça já despovoada de cãs, que, segurando uma enorme tigela de
caldo de tronchuda e vagens coroada por uma pirâmide de boroa
esmigalhada, apareceu à porta da cozinha, e disse, com a boca meia
ocupada por mantimentos, e sorrindo:
É servido do meu jantar, Sr. João Semana? É pobre, sim, mas
dado com a melhor vontade.
Obrigado, tio José das Bicas, vou ver se lá em casa a Joana
tem também o meu caldo em bom andamento.
Então vá com a graça do Senhor,, que o caloro se
sofre.
Está picante, está. E, andando sempre e falando, já com as
costas voltadas, perguntou : E comoo os seus milhos, Sr. José ?
Ora !... nem me fale nisso ! A sequeira é muita.
Veremos se para a Lua nova haverá mudança de tempo.
Deus o queira.
Há-de querer.
E prosseguiu no seu caminho.
Mais adiante, foi uma mulher idosa, que espreitou do postigo de
uma casa meia arruinada.
João Semana desta vez foi o primeiro a saudar.
Bons dia, tia Rosa. Então como vai lá o seu velho? Fero e rijo,
hem?
Muito agradecida a V. S.'. Está fraquinho ainda, e por
isso...
Pois que saia, que saia. É preciso também trabalhar por deitar
fora as moléstias ;so podemos fazer tudo. Que passeie, diga-lhe
que passeie. O mais que lhe pode acontecer, é que dêem com ele as
moças ; mas dissoo se morre.
Jáo está em idade para tanto, sr. doutor.
Fie-se nele, fie-se nele; olhe queo os piores.
E, dando uma gargalhada, dobrou a esquina e tomou por outra rua.
Do interior de um pardieiro saiu-lhe ao encontro uma rapariga
do povo, magra, remendada e com rosto que denotava aflição.
Muito boas tardes, Sr. João Semana disse a pobre rapariga
com voz chorosa.
Que temos, Maria? alguma novidade?
É que... —dizia ela, hesitando e baixando os olhos.
Fala ; despacha-te, que vou com pressa.
É que me esqueci do que me disse daquele remédio para
minha mãe..
- Então onde diabo tinhas tu o juízo, galo doido ? Ai que vocês
andam-me com essas cabecinhaso sei porque terras, e eu que
vos ature depois. Aposto que te lembras melhor do que te disse
ontem o teu conversado?
Ora, o Sr. João Semana tem coisas ! É queo sei se o remédio
era todo para uma vez, ou.
É o que eu digo ; é o que eu digo. Estouvada ! cabeça no ar !
Quantas vezes te repeti que era para três porções? Cuidas queo
tenho mais que fazer, do que andar sempre a cantar a mesma cantiga
por esse mundo de Cristo ? Ora vamos !
E há-de ser distante das comidas, que?...
Que diabo aprendeste tu então de tudo o que eu te recomen-
dei, fazes favor de me dizer? Pois nao te expliquei, cabeça de bogalho,
que era para lho dares meia hora depois das comidas? Que tinhas tu
nos ouvidos?
Muito agradecida, Sr. João Semana; e perdoe por as almas, mas...
a gente tem tanta coisa na cabeça...
Valha-te uma figa.
E quando a rapariga se ia já a retirar, ele acrescentou, mudando
de tom:
Olha, ó Maria. Ouves?
A rapariga voltou-se. Levava os olhos vermelhos de chorar.
Então que diabo é isso? Porque choras tu?
Nada, Sr. João Semana : é cá da nossa vida.
Quanto te levou o boticário pelo remédio ?
Seis vinténs.
E... diz-me... E mataste hoje a galinha para tua mãe?
Dei-lhe o resto da de ontem.
E para amanhã?
Para amanhã...
E a rapariga calava-se, embaraçada e triste.
João Semana tossiu para desimpedir a laringe de um pigarro
importuno, e pôs-se a olhar atentamente para um tronco de árvore
que lhe ficava à direita, como se lhe achasse o que quer que fosse de
extravagante.
Durante este tempo, mexia nos bolsos do colete e depois nas
algibeiras das calças ; em seguida, olhando em roda, como se receasse
ser observado, curvou-se sobre o pescoço da égua e introduziu uma
moeda de prata nao da pobre rapariga, dizendo-lhe com modo
rápido e desabrido:
Toma. Olha agora se te pões por aí a dar à língua, como cos-
tumas. Aflige bem tua mãe, aflige !
A raparigao teve uma só palavra com que lhe agradecer.
Quis-lhe tomar as mãos para beijá-las ; João Semana furtou-lhas rapi-
damente, dizendo-lhe com simulada aspereza:
Larga, larga.o me venhas cá com essas imposturas, que eu
o sou para isso.
O melhor dos agradecimentos tinha-o ele nas lágrimas, que des-
ciam pelas faces da pobre, na expressão de entranhado afecto, que
lhe animava o olhar.
O velho cirurgião sabia compreender estas coisas, apesar das
aparências de homem endurecido, de que fazia ostentação.
Ao afastar-se do lugar da cena que descrevemos, dizia ele para si :
Excelente vida! lucrativa clínica! Rendeu-me esta consulta,
na verdade ! Quemo há-de fazer casa assim ?
Estava o bom homem a fingir de interesseiro consigo mesmo !
Dentro em pouco tinha-se esquecido do que praticara.
Mais adiante, esperava-o um lavrador robusto, sentado na soleira
da porta, a comer uma fêvera de bacalhau. Assim que João Semana
se aproximou, levantou-se o homem e tirando o barrete :
Nosso Senhor venha em sua companhia.
Bons dias ; então que há ?
Queria que vossemecê me dissesse se minha mulher pode
comer uma sardinha assada.
Pode, mas de caminho avisa o padre que a venha sacramentar.
Credo! mas então...
Adeus, minhas encomendas. A perguntas tolaso se dá res-
postas. Forte descoco !
E, sem mais palavra, estimulou o passo da égua.
O consultante sentou-se de novo, e voltando-se para dentro,
disse :
Ouviste-o ? Ora aí tens.
Respondeu-lhe um suspiro.
Aindao pararam aqui as consultas. Ao passar por uma azenha,
o moleiro, vindo à porta, anunciou ao velho facultativo que a mulher
o queria tomar remédio algum.
Está no seu direito respondeu João Semana ; e que queres
que eu lhe faça?
Mas, sendo precisos?
Sabes que mais, Francisco? eu, se meo casei,o foi para
agora andar a aturar as impertinencias das mulheres do meu próximo.
Atura-a, atura-a, rapaz, queo ossos do ofício.
E continuou cavalgando, e deixou o moleiro embasbacado. Depois
de se ter afastado, acrescentou, elevando a voz, mas sem se voltar
para trás.
Olha lá ; sempre lhe vai dizendo que se amanhão a encontrar
melhor, prego-lhe um cáustico nas costas, que lhe há-de fazer ver as
estrelas ao meio-dia. Ora anda.
Enfim, em um largo assombrado de castanheiros, foram duas
crianças as que lhe interromperam a passagem ; assim que o avista-
ram, ergueram-se do chão, onde estavam sentadas, tirando o chapéu,
e pondo-se a cocar na cabeça.
Que temos nós, pequenada? perguntou João Semana.
um dos pequenos foi o relator da comissão.
O nosso Luis está doente, e ae manda pedir ao sr. doutor
para o ir ver.
Está bom ; lá irei de tarde ; e como está tuae ?
Ae diz que está melhor, mas ela chora tanto !
Tens razão, Manuel, em duvidar da saúde do que chora. Pois
eu verei isso.; ide jantar e fazer rir vossa mãe, que é meia cura ja.
Por tal forma ia sendo o bondoso João Semana cumprimentado,
interrogado e consultado, e ele a responder a tudo com a máxima expe-
dição possível, que já lheo sofriam delongas as reclamações impe-
riosas do estômago.
Chegou assim ao largo da igreja da freguesia, e atravessou-o
sor diante da residência do reitor. Deitou de soslaio os olhos para as
janelas da casa paroquial, e, como as visse fechadas, picou a égua,
sara ver se escapava, sem vir à fala, e evitava novos empecilhos.
o conseguiu, porém, o seu intento.
uma das vidraças correu-se repentinamente, e o reitor apareceu
à janela animado de sorrisos, e com um guardanapo na mão.
Ó João Semana ! Ó homem ! Ó velhote ! Psiu ! bradava ele.
João Semana foi obrigado a voltar-se.
Que é?
Espera; fala à gente.
Vou com pressa.
Então andas por fora com um calor destes ? Isso é de criar
malignas, homem.
Que queres tu, abade? Meu pai caiu na patetice de me arran-
ar este modo de vida. Se lhe tivesse dado na mania fazer-me padre,
outro galo me cantara.
Cuidas então queo temos canseiras ?
Ai, dão-te muito que fazer as tuas ovelhas ; estou vendo.
Eoo pouco.
Só a cardá-las com as congruas e derramas ! Por isso estás
magro. Para vos sustentar suamoss outros.
O reitor sorria, sem a menor sombra de ofensa.
Vamos a saber? Queres provar do meu arroz?
Eu?! Jao tenho estômago criado para comidas de padres.
Padre, abade e egresso de mais a mais ! Safa ! Morria de indigestão
esta noite.
Anda, anda; aindao perdoaste aos frades. Morres
impenitente.
como queres tu que eu lhes perdoe o terem gozado sem mim
aquela santa vida de convento?
Santa, sim; porém sem mortificações, não.
Oh! decerto que não. Os melhores cozinheirosm às vezes
os seus descuidos, e os paladares de V. Rev.
mas
, lá de quando em quando,
aturam o esturro no arroz, sal de mais na sopa, pimenta de menos no
guisado, ou outra coisa assim, lá isso...
Valha-teo sei que diga. A vida é para ti, homem, que, com
oitenta, estás fero e robusto, e levas jeito de assistir ao nascimento do
século vinte.
É para veres de que fêveras eu sou. Se tivesse a tua vida, vive-
ria como Noé. Mas tu estás de palanque e à fresca, e eu aqui estatelado
a dar-te trela. Adeus, meu amigo.
Olha, espera, homem. Então nem um cálice do meu bas-
tardo, hem? Olha que é do que tu gostas.
Prefiro uma garrafa em minha casa.
Lá franco no pedir és tu ! Mas do que ninguém se gaba é de
saber o gosto ao teu moscatel.
Querías talvez que eu te mandasse um presente de vinho?!
Era o que me faltava ! Presentes de vinho ! E a um frade !...
E, dizendo isto, pôs-se a caminho, achando-se, dentro em pouco,
a distância já considerável da residência.
De repente, como se lhe ocorresse uma lembrança, cuja comuni-
caçãoo podia sofrer demoras, voltou de novo atrás, e elevando
a voz:
O abade, tuo sabes a história daquele frade franciscano
que...?
o sei,o ; ora conta, João Semana, conta disse o reitor,
debruçando-se no peitoril da janela, e já com aspecto risonho.
Havia lá no convento principiou João Semana uma pintura
muito grande, representando a ceia de Cristo ; e era esta pintura a que
mais atraía as meditações piedosas do tal reverendo, o qual, de olhos
fitos naquele quadro, passava horas e horas esquecido de tudo o mais.
Outro frade, que tinha notado isto,o pôde tero em si que lheo
perguntasse com aquela voz de lamúria de franciscano manhoso ; « Em
que pensais vós, irmão, quando com tanta atenção olhais para este
quadro?» «Nos tormentos que pors padeceu o Salvador» res-
pondeu-lhe o tal. « E longos foram na verdade ! » continuou o primeiro.
«Mas porque esta pintura mais do que as outras, vos trazo santas
idéias?o tendes na sacristia a do Descimento da Cruz e aquela do
Senhor preso à coluna?» «É verdade, irmão diz-lhe então o francis-
cano com cara de mortificação é verdade, mas olhai queo menor
tormento era este de ter doze pessoas à mesa, eo pouco de comer
em cima dela».
E João Semana, dizendo isto, roçou as esporas pela barriga da
égua, e partiu, acompanhado de uma grande gargalhada do prior,
que era perdido por as anedotas de João Semana.
Onde diabo vai este homem buscar estas coisas ! dizia o
reitor, chorando de tanto que se ria.
E João Semana ia quase a dobrar a esquina, quando de novo o
suspendeu a voz do padre, bradando-lhe :
Ó João Semana, olha!
Que é ? respondeu o facultativo, já com certo mau humor.
Tu queres que eu fique hoje sem jantar ?
Ê só uma pergunta.
Diz.
o sabes que chegou ontem o Danielzinho do Dornas ?
comoo sei? Pois nao estive eu já com ele?
Ah, sim? E então que te parece o homem?
Que me há-de parecer ? Bem. E depois acrescentou :
Bem e mal.
como é isso ? Bem e mal !
Sim, o rapaz é talentoso, e nas cidades talvez fizesse figura ;
a aquio serve.
Ah! João Semana!... Ciúmes...
Estás doido? Tomara eu que ele me descarregasse de parte
desta tarefa, mas... diz-me lá tu se aquele corpo franzino, aquela pele
de mulher pode aturar metade, a quarta parte, a décima parte do que
eu tenho aturado?
Lá isso...
Está de ver que não. Mas lá talentoso é ele ;o há dúvida
nenhuma.
E, dizendo isto, sempre conseguiu dobrar a esquina.
O reitor fechou a janela e foi jantar. Sentado à mesa ainda sorria
de quando em quando, repetindo a meia voz :
Doze pessoas à mesa, eo pouco de comer em cima dela !
Ora o diacho do homem...
XVIII
E
NFIM chegou João Semana ao lugar, onde se erguiam os seus
solares.
A égua saudou a aparição dos telhados domésticos com
a mais melodiosa das suas emissões de voz.
O próprio João Semanao foi insensível à perspectiva, que o
dobrar do último cotovelo de uma rua tortuosa lhe patenteou, porque
o seu estómago tinha também necessidades, que, como todos os outros,
manifestava. Ao aproximar-se, recebeu, porem, uma desagradável
impressão.
Avistou encostado à porta da casa o criado de uma freguesa sua,
o qual provavelmente vinha requisitar-lhe a assistência e talvez com
toda a pressa. Tais estorvos, à hora do jantar, eram da maior imper-
tinencia para João Semana. Doente, que lhe quisesse fazer a vontade,
o devia adoecer a horao crítica.
O seu pressentimento saiu verdadeiro. Ainda ele seo desmon-
tara, e já o criado, que o esperava, lhe dizia, com grande impaciência
do facultativo:
A Sr.' D. Leocadia mandou-me esperar aqui por V. S.
a
para
lhe pedir o favor de ir, logo que chegasse, a casa dela.
Quem está lá doente ?
o sei dizer a V. S.
a
.
Pelo costume, é toda a gente. Todos se queixam, pelo menos
quando eu lá vou. E... vamos a saber, e é depressa?
Julgo que sim, senhor, visto que me mandaram esperar.
Issoo tira. Seria para se verem livres de ti, e parece-me
quem razão.
Ora, isso é graça.
Ê graça, é, mas... Vamos lá ver o que me quer a Sr." D. Leoca-
dia. A falar verdade... a esta hora... Valha-me Deus, valha.—E vol-
tando-se para o criado pequeno, que viera ajudá-lo a desmontar, con-
tinuou, suspirando :
Deixa estar, Miguel, deixa estar. Eu... como assim,o me
desmonto. Torno a sair.
Mal acabara de dizer estas palavras, correu-se uma vidraça do
andar superior, e a cabeça de uma velha criada, convenientemente
armada de largo pente de tartaruga, assomou à janela. Esta aparição
foi logo seguida das seguintes palavras, muito açucaradas:
Ouviu, Sr. João Semana?o, sem primeiro subir.
Pois que?
Tenho que lhe dizer.
Diga então daí.
Ora essa!o é maneira de falar a que diz. Suba, se faz favor,
suba primeiro.
Mas esta senhora que espera?
É um instante.
Valha-a Deus ! disse João Semana, apeando-se e preparan-
do-se para obedecer à criada. Já do portal, voltou-se para o mensa-
geiro do recado, dizendo-lhe :
Espere um bocadinho, que eu vou.
Nada, nada acudiu de cima a criada. Pode estar fazendo
falta às senhoras. É melhor ir, que o Sr. João Semana vai já também.
Mas...—quis objectai- o criado.
,. Basta o tempo que se demorou já aqui, e sem precisão,
jorque eu cá daria o recado. Diga em casa que o Sr. João está lá num
momento.
Isto foi dito com certo tom intimativo, ao qual o criado, habituado
a obedecer,o pôde resistir. Partiu.
Logo em seguida, a expedita velha disse, em tom mais baixo,
maso menos imperioso, para o rapaz, que ficou a segurar as
rédeas da égua:
Miguel, avia-te, meu pasmado ; mete essa cavalgadura na cava-
ariça, e anda para cima.
Mas o patrão...
Anda, papalvo, faz o que eu te digo.
E Miguel assim o fez.
Quando João Semana entrou na sala, onde era esperado pela
criada, e ia a perguntar a noticia prometida, ficou surpreendido, achando
a mesa posta e uma enorme malga de sopa, exalando odoríferos e
apetitosos vapores.
Que é isto ? Que foi fazer ? disse o velho cirurgião, olhando
para a criada, a qual procedia azafamada aos mais preparativos para
o jantar. Então tirou a sopa, e eu tenho de sair ainda !
Que sair ? que sair ? Era o que faltava.o basta o calor que
tem apanhado? Ande, ande, que, enquantoo cair deveras
doente,o há-de escarmentar, já vejo.
Mas, mulher,o viu o que eu disse àquele criado?
Deixe. Daqui até casa tem ele de parar em mais de quatro
tabernas e de se demorar meia hora em cada uma, pelo menos. Verá
que há-de ainda chegar primeiro do que ele. Vamos, vamos. É jantar.
Se eu nem mandei desaparelhar a égua !
Alguém teve esse cuidado. Ande, que o caldo arrefece.
E aquelas senhoras quem pressa?
Ora adeus ! Aindao conhece aquela gente ? Fervem em
pouca água. Sempre assim foram. Afinal verá queo há-de passar
de uma enxaqueca de D. Leocadia, algum flato da pequena, ou uma
indigestão do procurador ; e ainda acredita naquilo !
Evidentemente, João Semana ia-se deixando convencer. Aproxi-
mara-se pouco a pouco da cadeira, hesitando ainda na aparência, mas
no íntimo resolvido.
Ia enfim a sentar-se, quando a criada o interpelou de novo,
exclamando :
Então que é isso? Assim mesmo como está? Nem muda
de fato?
Para quê...?o estou com tantos vagares...
Não, então, se é para comer de afogadilho, mais vale fazer
primeiro a visita. Assim nem lhe presta o que come. Eu guardo o jantar
então, visto isso.
Joana era o nome da criada bem sabia que tal propostao
podia já ser recebida por João Semana, cujo apetite se irritara com as
exalações da sopa; foi a razão pela qual ela se mostrouo pronta em
reunir a acção às palavras, retirando da mesa o serviço.
O êxito desta táctica foi completo.
João Semana impediu-a, dizendo:
Deixe ficar, já agora deixe ficar. Também para me vestiro
é preciso muito tempo.
E, depois destas palavras, descalçou-se, enfiou oss em umas
chinelas, que tinham sido botas, pôs-se sem cerimônia em mangas de
camisa, sentou-se à mesa, 0 rompeu um ataque em forma contra a volu-
mosa e apetrechada tigela, que tinha defronte de si.
A cozinha de João Semana era de um carácter portuguesíssimo,
e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma leitora
elegante, francamente declaro aqui que, para mim, a cozinha portu-
guesa é das melhores cozinhas do mundo.
Dou razão nisto a João Semana.
As combinações extravagantes das cozinhas estrangeiras os
galicismos culinários, por exemplo repugnavam-lhe tanto ao estô-
mago, como aos ouvidos, mais pechosamente sensíveis dos nossos
severos puritanos, a outra qualidade de galicismos.
Queria-se ele com a carne de porco bem assada e o arroz de
forno açafroado esses dois importantes elementos de gozo para os
paladares portugueses ; queria-se com o prato clássico da orelheira
de porco, e até com aquele outro pratoo castiço como qualquer
período de Fr. Luis de Sousa prato, que valeu aos portuenses um
epíteto gloriosamente burlesco ; queria-se com todas estas iguarias,
quase desterradas das mesas modernas, de preferência aos manjares
exóticos, cuja nomenclatura tem a propriedade de fazer ignorar ao
conviva o que lheo a comer.
Por isso João Semana, nas raras vezes que vinha ao Porto, era
freguês certo nas mesas do Rainha, as únicas que mantêm, sem mescla
de estrangeirices, as velhas tradições nacionais.
Em Portugal, terra de lhaneza um pouco rude, maso afectada,
o dono da casao costumava dantes experimentar a imaginação dos
seus convidados com enigmas culinários.
o havia cá a usança de se dar a qualquer pastel ou empada o
nome de um general do exército ; a qualquer acorda o de um ministro
célebre ; a qualquer doce balofo e insípido o de um poeta da moda.
Este costume, graças ao qual parece que os modernos vatéis
misturam às vêzes aos ingredientes dos seus tachos e caçarolas um
pouco de sal da sátira, era desconhecido entre nós.
Menos espirituosa, porém mais filosófica do que a nomenclatura
culinária da moda, a nossa, a tradicional, realizava o desiderato a
que todas as nomenclaturas aspiram o de valerem por definições.
Se um conviva tinha a curiosidade de perguntar ao seu anfitrião
o que continha este ou aquele prato, uma só resposta o satisfazia: era
um frango guisado, um peru recheado, uma língua de vaca afogada...
coisas que Ioda a gente entendia logo. Hoje, a primeira resposta ó
um nome francês bárbaro, absurdo, que, contra as promessas da gra-
mática,o dá a conhecer a coisa, nem as suas propriedades ; por
sso uma segunda pergunta é inevitável ; ao querer cada qual resig-
nar-se a comer o queo sabe o que é tormento insuportável.
Hoje, época de programas, inventaram-se os programas dos
antares à imitação dos dos concertos, dos deputados e dos ministros.
üom oito dias de antecipação publica-se o elenco de um banquete,
jara que cada qual procure decifrar o que vai comer, e estude a
maneira como se come.
João Semana é que nisto, como em tudo o mais,o queria saber
de modas.
E seo vejam-no desta vez esgotar a tigela avolumada de subs-
tancial caldo de abóbora, aviar a formidável posta de carne cozida,
com presunto, acompanhando-a com o indispensável arroz, salada de
alface e azeitonas ; atacar, com igual denodo, urna porção de rosbife,
o revendo sangue sob a faca, à moda inglesa, mas portuguêsmente
assado, e como estou convencido assavam os seus carneiros aqueles
íeróis da Iliada; tudo isto acompanhado de excelente vinho palhete,
o qual ele ingeria aos copos de meio quartilho ; em seguida uma carre-
gação de peras de amorim, sem conta, peso, nem medida...
Durante o jantaro estivera calado João Semana.
Cada prato suscitara-lhe uma reflexão crítica, um discurso lauda-
ório, ou uma anedota, que fazia rebentar de riso a Sr.ª Joana.
Ao descobrir o prato da carne assada, exclamou João Semana,
em tom de satisfação manifesta:
Que tentação me desperta este terceiro inimigo da alma !
A criada riu-se, mas observou :
o diga isso , Santo Antônio !
O quê? Então vocêo sabe o que disse aquele frade, quando
estavam a jantar? Nos conventos era costume, enquanto se comia...
Ó Joana, deixe-me ver esse limão ocupar-se algum frade com
leituras devotas. E vá-me deitando aí mais vinho. um dia, a comu-
nidade escutava de um desses reverendos...—O diabo desta faca
o corta nada... um sermão sobre os perigos, aos quais os viventes
andam sujeitos neste vale de lágrimas. Olhe, chegue para aqui essas
azeitonas. Vede, irmãos, dizia o tal frade...—Este ano as batatas
o foram grande coisa...—vede como é difícil fugirmos às tenta-
ções dos três grandes inimigos da alma. Ó Joana, o padeiro está
servindo mal :o tem senão côdea o pão. O. mundo e seus encantos
Derigosos ; o Diabo e seus poderes maléficos, e a carne, ai, meus
irmãos... e a carne e suas tentações mágicas. Chegado a este ponto,
o frade pousa o livro, suspira, estende o prato ao seu vizinho fronteiro,
dizendo: «Tão fortes são, que nem lhes resisto eu, pobre pecador;
uma posta desse terceiro inimigo, queo bem assado está».
Gargalhada da criada, e vitória formal de João Semana sobre o
inimigo em questão.
À sobremesa o mesmo sistema. A péra de amorim atraiu um
elogio do facultativo e mereceu as honras de um caso.
Excelente fruta ! disse João Semana, ao comer a duodécima.
Tinha razão aquele frade, que do púlpito dizia: «Ó meus amados
ouvintes, que miserável é a condição humana ! Vede como a desgraça
do mundo veio de uma má tentação ! Eva perdeu-nos por uma maçã !
Se ao menos fosse por uma péra, meus fiéis ouvintes, ainda se poderia
desculpar, mas por uma maçã ! !»
Ora! Essa é sua, Sr. João Semana disse Joana, rindo.
O frade havia de dizer semelhante coisa! Pois olhe, aqui está quem
se perderia mais depressa por a maçã acrescentou ela, pouco depois,
e preparando o café.
Bem! disse João Semana, ao concluir a sua refeição. Estou
como um abade ! O pior é ter agora de sair para ir visitar a
Sr." D. Leocadia.
Sair, já ! Isso tem tempo acudiu a criada.
como ? Pois ainda havia de as fazer esperar mais ?
Descanse ao menos um bocado. Está costumado a passar pelo
sono, e, se oo faz, fica doente para todo o dia.
Que remédio senão ter paciência !
É um bocadito mais.
Nada, nada,o pode ser. Vou sair já insistiu João Semana,
procurando porém uma posição mais cómoda, com grave risco da
resolução que exprimia. Joana percebeu este movimento e previu o
que sucederia, se conseguisse entreter o amo cinco minutos mais.
o hesitou:
Ainda se fosse para outra parte,o digo queo ; mas para
casa da D. Leocadia!... Eu já sei o que querem dizer aquelas pressas.
A D. Leocadia esta manhã, provavelmente, abriu a boca três vezes ou
espirrou duas, e por isso imagina já que está a morrer. Louvado seja
Deus, nunca vi quem tenha mais medo de adoecer ! uma coisa assim !
o é senhora de meter um bocado deo na boca, sem perguntar
ao cirurgião se lhe poderá fazer mal. Poiso se lembra daquela vez
que o mandou chamar, porque tinha deixado de noite, por esqueci-
mento, uma açucena no quarto, e pela manhã julgou que estava enve-
nenada?
É verdade dizia João Semana, fechando os olhos e boce-
jando.o era açucena, era uma bela...!! hã!...—isto foi
um bocejo que o interrompeu, e com voz já mal percebida concluiu
depois : era uma bela-dona.
Ou isso.
Joana, espiando, como médico atento, estes sintomas, prosseguiu:
Esta gente parece de vidro. A filòzinha da pequena é outra
que tal. É uma pena que qualquer ventinho leva. E dizem bonita aquilo !
Lá na minha terra chamava-se bonito a quem era sadio e de boas
cores.
Você está agora como... aquele... frade que... —tentou dizer
João Semana, maso concluiu. Tomou-o sono profundo, denunciado,
dentro em pouco tempo, por um ruidoso ressonar. Joana, escutando-o,
aproximou-se nos bicos dos pés, examinou-lhe os olhos, e vendo-os
cerrados, sorriu, dizendo a meia voz:
Sempre caiu ! Agora tem para uma hora, pelo menos.
E, fechando as janelas, deixou o amo ressonando na mesma cadeira
de braços em que adormecera.
XIX
QUANDO a Sr.ª Joana chegou à sala imediata, achou-se na presença
de uma visita inesperada. Era Daniel, que, de braços abertos,
caminhou para ela, chamando-lhe «a sua boa Joana».
Por muito tempo fora Daniel o querido da velha criada do cirur-
gião, a qualo se cansava de apregoar por toda a parte queo havia
ai menina de rosto mais galante e modos mais bonitos, do que o filho
mais novo do José das Dornas. Quando a idade veio imprimir cunho
mais varonil àquela beleza, Joana, como mulher que era afinal,o
foi insensível à perfeição do tipo masculino, que tantas atenções tinha
¡á merecido ao seu afeiçoado, durante a sua vida de cidade.
Ùltimamente, porém, um pequeno azedume de má vontade viera
misturar-se à simpatia da boa mulher. Em Daniel via um futuro rival
de João Semana, e a dedicação fanática, que votara ao amo,o a dei-
xava encarar desassombrada a probabilidade dessa luta e, sem algum
despeito, o novo atleta, que aparecia na arena, de encontro ao velho
colosso.
Joana bem se fingia tranquila, dizendo às suas conhecidas e coma-
dres que, enquanto João Semana fosse vivo, ninguém havia de poder
fazer-lhe sombra; mas, lá no fundo,o estava satisfeita.
Ainda assim tal é o poder das antigas afeições ao ver Daniel
vir para elao abertamente amável, esqueceram-lhe todas ass
prevenções, que contra ele tinha, e recebeu-o nos braços com
expansão igual.
Jesus ! que mocetão ! Ora quem há-de dizer que é este o menino
a quem eu dava biscoitos, e que trepava, como um gato, pela pereira
acima do quintal ! ? E então como gostava daquelas peras ainda rijas,
que nem pedras ! Sempre o tempo corre ! Eu benzo-me !
E quando o seu patrão tinha uns quatro pêssegos muito grandes,
que destinava para o vigário da vara, e eu lhos furtei, inventando depois
s ambos uma história muito comprida de ratoneiros, a qualo deu
pouco que fazer ao regedor?
Sempre foi uma essa ! E o vigário foi quem mais se zangou
com a graga. E daquela vez que o menino entornou o tmteiro por cima
do Iivro dos assentos do Sr. João Semana?
Ai, é verdade. Por sinal que você depois lhe disse que foi
o gato.
E coitado, foi ele o que pagou. Levou uma sova mestra ! O pobre
bichanoo podia imaginar porquê.
É provável que eleo perdesse muito tempo a investigar a
razão do facto. Foi bem mais razoável, fugindo.
O menino era um traquinas ! Era uma coisa por maior.
Há-de lembrar-me sempre com saudades, Joana, de quando
se cozia oo em casa, e eu vinha ao sair da aula buscar o bolo, que
você me guardava no forno. Lembra-se?
Ora, como se fosse hoje. E daquela tarde em que o menino
foi beber água fria logo por cima? Ai, nem quero que me lembre!
Sempre teve uma eólica ! O meu amo parecia que me matava.
Que bons tempos esses, Joana !
Se eram ! Agora já o meninoo quer da nossa fruta, nem do
nosso bolo. Quem sabe se no-lo comerá por outra forma?
como?!
Recebendo algumas das medidas e avengas que, até agora,
eram só do Sr. João Semana disse a criada, com ciúme renascente.
Está doida, Joana? Nem seu amo tem receios de que eu lhe
faça mal, nem eu vontade de lho fazer. Graças a Deus, euo preciso
para comer de andar a furtar oo daquele que tantas vezes e deo
boa vontade mo oferecia. Para o ajudar, isso sim, estou pronto, que
o é pouco pesada a cruz que ele traz.
o é, não, menino ! exclamou já sensibilizada e reconciliada
de todo com Daniel, a velha criada. E, suspirando, continuou: —Aquilo
é um negro de trabalho. Ai, se ele faltasse o que seria dos pobres !
Eu bem sei que o menino há-de fazer o que puder, que tem bom cora-
ção, isso tem ; mas quem lhe deu as forças dele ? Aquele corpo é de
ferro. Nao faz idéia. Desde pela manhã, até à noite,o tem aquele
pobre de Cristo um momento de sossego.
Ele está?
Está agora a passar pelo sono. E mais tinha um recado com
pressa. Foi preciso eu usar de malícia para o fazer descansar. É que
esta genteo atende a nada.
Pois, Joana, eu vinha para agradecer-lhe a visita que me fez,
mas deixe-o dormir.
Ele há-de gostar de o ver ; que olhe que é muito seu amigo,
Danielzinho. Ele tem aqueles modos assim secos, mas... Ainda ontem
aqui esteve a dizer que o menino há-de vir a ser coisa grande.
Não, agora jáo cresço mais.
Ora ! bem sabe o que eu quero dizer. Está a rir.
Eu lhe digo, Joana. Eu que vim meter-me nesta terra, é porque
tenho ambições. Lá isso tenho. A si, digo-lhe baixinho, o meu grande
desejo é vir a ser...
O quê? perguntou Joana, com curiosidade feminina.
Nada menos que regedor cá na aldeia.
Ora... fala sério?
Pois isso é coisa lá com que se brinque ?
Então para que quer ser regedor ?
Eo é uma posiçãoo bonita ?
o digo que não. Pois olhe, com o tempo issoo será difícil.
O Sr. João Semana já esteve para o ser ; ele é queo quis. Mas o que
é, é que o menino está aqui, está casado.
Porque diz isso ?
Ora ! o pai há-de arranjar-lhe noiva rica.
E então há por cá muito desse género ?
Se? Boa ! Olhe ; aí tem a filha do morgado da Cova do Frade,
que é uma moça bonita.
Ai, muito bonita ! Parece mesmo uma dàlia vermelha.
Que está a dizer ? É uma rapariga escarolada e sadia.
Lá escarolada será, e então tem muito dinheiro?
Para cima de vinte mil cruzados.
Di ! que dinheirão !
Então acha pouco ?
Está claro. Mulher com menos de quarenta contos, Joana,o
me serve.
Quarenta contos ! Quanto é quarenta contos ?
o cem mil cruzados.
Credo ! O que aí vai ! Entãoo casa decerto, também lhe digo.
Se a nao encontrar, trago mulher da cidade. Olhe queo
mais bonitas. uma senhora, que saiba tocar piano, que saiba cantar,
que ande à moda.
Sume-te ! Sempre as tais modas ! É no que eles pensam. Ora
que graça acham àquelas coisas?
Vocêo sabe o que diz, Joana. Ainda hei-de vê-la andar à
moda, a si também.
A mim ?
A si, sim, minha senhora, e então porque não?
Alguma estará nesse dia para suceder.
Mas olhe, Joana, e quando você me vir passear de braço
dado com minha senhora, ela com vestido de seda a arrastar pelo
chão...
Isso ! Olhe que há-de ficar em bom estado. Passeie pelo tojo
e verá.
um pé muito pequenino ; eu gosto doss muito pequeninos,
Joana.
Também muito pequenos de maiso servem para andar.
Querem-se em termos.
Nada, quero-os muito pequeninos; e depois uma vozinha que
mal se perceba.
Ora essa ! Entãoo se há-de ouvir o que ela diz ?
Vocês cáom nada disso.
Isso não. O pé mais pequeno que eu conheço... é o da filha
do Mateus, que teve, salvo seja, um raminho em criança e ficou aleija-
dinha..., e agora voz que seo perceba... olhe, tem a ti'Ana do rege-
dor, que, desde que lhe caiu aquela constipação no peito, ninguém
lhe entende palavra.
Neste ponto do diálogo, entrou o Miguel, rapaz do serviço da
casa, com um bilhete na mão.
Sr." Joana disse ele vieram entregar este bilhete para
o patrão.
Temos mais alguma impertinencia. Está bom, deixa ficar.
É que esperam pela resposta, Sr.
a
Joana.
Pois que esperem, Sr. Miguel. O patrão está a dormir, e eu
o o vou agora acordar por causa disso. Do mando de quem vem?
Diz que das do Meadas.
Ai, então é a pedir por algum pobre.o fazem outra coisa
as raparigas.m vagar. Destas fortunas é que nos aparecem. Mas
a cartao vem fechada... Ó menino, então leia-a.
Porém...—ia a observar Daniel.
o tem dúvida, pode 1er. Istoo é de segredo.
Obedecendo às instâncias de Joana, Daniel abriu a carta e leu:
«Meu bom Sr. João Semana:
Isso!—anotou a criada.—Façam-lhe a boca doce.
Daniel continuou lendo:
«O nosso pobre doente está mal, muito mal. Corta o coração vê-lo
padecer assim. Seo for possível salvá-lo, ao menos que seo veja
desamparado ao morrer. Éo compadecido o seu coração, Sr. João
Semana, abre-seo depressa à caridade, que me atrevo a pedir-lhe
que venha ver este desgraçado. A consciência lho pagará.
«Da sua respeitosa amiga,
Margarida.»
Bonitas palavras disse Joanao tem dúvida nenhuma ;
o pior é que seo aduba o caldo com elas.
De quem é esta carta? perguntou Daniel. Eu iá ouvi este
nome de...
Olhem quem o pergunta ! Pois de quem é ela, homem de Deus,
senão da irmã de sua cunhada, da que há-de seri
Ah! bem me parecia. Mas... da irmã! e ela escreve assim?
continuou Daniel, admirado da boa ortografia e singeleza de frase da
carta, que tinha ainda na mão, e para a qual tornou a olhar.
Pois que julga que é essa rapariga ? Bem digo eu que o menino
já se esqueceu de todo da sua terra. Então saiba queo há aí quem
se ponha ao lado de Margarida, em falar e escrever. Esse homem por
quem elas pedem...—e, interrompendo-se: É verdade, ó Miguel
disse para o criado vai dizer que ficou entregue, anda.
Depois do Miguel se retirar, Joana continuou:
Esse homem por quem pedem, foi mestre delas. Pelos modos
era pessoa que teve de seu ; mas hoje está quase a pedir. Para aí veio,
e aí tem vivido. As raparigas do Meadas, queo dois corações de
anjos lá issoo têm-no socorrido sempre. Coitadas ! Não, eu devo
dizer o que é verdade, o seu Pedro leva uma mulher como se quer ;
mas olhe, quem levar a Margarida,o vai mais mal servido. Este pobre
homem tem-lhe ensinado, em paga, a 1er e a escrever, que é um pri-
mor, segundo dizem. A Margarida, principalmente ; porque, pelos
modos, a Clarita tem menos paciência. Mas a Margarida!... até cá o
Sr. João Semana o diz, pode-se ouvir. Agora até ela dá lição em casa.
o sabia? Pois. Ora, o tal pobre de Cristo está a morrer, e, segundo
diz o patrão,o deita os fora. As raparigas então, credo! isso é
um cuidado por aí além, nem que fossem filhas. Mas o que euo sei
é se o Sr. João lá irá hoje. Fica-lheo longe do seu giro!
Mas há-de deixar o homem assim ?
Então ? Cada um faz aquilo que pode, que a maiso é obri-
gado. Olhe... sabe o que me lembra? Porqueo vai o menino?
o diz que quer ajudar o Sr. João Semana? Pois aí tem.
Para você me ficar depois com zanga.
Credo! Zanga, não; eu só dizia que... Demais, isso nao lhe
rende cinco réis. Bem vê o que ela diz: A consciência é que paga.
Ora eu bem sei que as pequenas quiseram pagar, quiseram ; cá o patrão
é queo deixou.o sei se fez bem, porque afinal... elasm por
onde paguem. Mas,. Além de que...
Eu por mim vou ;o me custa ; mas se o seu amo se ofende ?
Não,o ofende ; amanhã lá irá. Demais, as raparigaso agora
quase da família do menino; é natural que o procurem primeiro.
Pois então nem espero que ele acorde. Você diz-lhe...
Sim, sim; nao tenha dúvida; eu cá lhe digo.
E, chamando outra vez Daniel, que ia a retirar-se, continuou:
E então, olhe. Também pode fazer-nos ainda outro favor. Eu
tenho, desde esta manhã, um recado para o Sr. João Semana ir a casa
do João da Esquina, lá do seu vizinho da tenda.o lho dei, porque
enfim... hoje ficava-lhe bastante longe, e, aqui para nós,o andam
muito em dia as contas com o tendeiro ; como ao menino lhe fica perto
de casa, seo lhe custasse, ia por.
Também irei, o ponto está que o homem me queira.
Seo quiser, que mande fazer um de encomenda. Era o que
faltava ! Já vê que euo tenho nenhuma má vontade contra o menino,
até lhe dou freguesia.
Daniel agradeceu os dois fregueses, que a velha Joana lhe cedera,
com poucos auspícios de lucros, e saiu sem esperar que o seu velho
colega acordasse.
A pressa com que Daniel saiu, e a facilidade em aceder à pro-
posta de Joana, tinha um motivo. E aí estamos nós, para o explicar, a
referirmo-nos outra vez ao carácter do nosso herói.
A carta de Margarida falara-lhe à imaginação. Achou-ao singu-
lar, na sua simplicidade, por ser escrita por uma rapariga da aldeia,
queo pôde eximir-se de fantasiar um tipo de romance, o qual logo
suspirou por conhecer.
Seguindo as instruções de Joana, Daniel pôde, dentro de um
quarto de hora, achar-se à cabeceira do enfermo, para quem se pedira
o socorro de João Semana.
Mas, contrariamente ao que esperava, foi Clara eo Margarida
quem ele encontrou ali.
XX
A
O princípio, a substituição desagradou a Daniel, por lhe dissipar
umas vagas fantasias, com que tinha vindo ; mas Clarao era
mulher junto de quem se pudesse sentir por muito tempo a
falta de outra.
Daniel, passados alguns minutos, achava-se conformado.
Clara recebeu com um gracejo o novo clínico.
Olhem quem nos vem ! Bem dizia eu ontem : dentro em pouco,
ninguém quer já saber do João Semana.
Devo lembrar-lhe, Clarinha, que é à força, quase, que eu venho
aqui, porqueo houve quem tivesse a idéia de me mandar chamar
replicou Daniel, sorrindo.o lhe disse eu que as raparigas
seriam fiéis ao João Semana? Veja: nem a Clarinha nem a mana se
lembraram de mim, sendo eu da família quase.
Bem vê que pouco se lhe podia prometer respondeu Clara,
lançando para a humilde mobília do quarto um olhar expressivo.
Nem a recompensa da consciência, que sua irmã prometia a
João Semana?
com franqueza lho digo ; eu por mim tinha-me lembrado de
o chamar, tinha; mas a Guida é queo quis.
E porqueo quis sua irmã?
Eu sei? Eu jáo estou costumada a perguntar a razão poi-
que ela diz isto ou aquilo. Para quê? Afinal de contas,o sei fazê-la
mudar de tenção.
Então é assim teimosa ?
Teimosa? Nao, credo; mas é que depois de falar com ela...
o sei como isto é... eu sou que mudo sempre. Mas, já que veio, entre ;
aqui tem o nosso doente.
E, dando ao gesto a expressão da desesperança, acrescentou,
baixando a voz e suspirando :
Isto!... Coitado!
O doente era o velho, que já conhecemos, agora de todo pros-
trado por uma caquexia, infalìvelmente mortal.
Realizara-se o seu pressentimento. Vida... só lhe restava para
agradecer com o olhar, mais já do que com palavras, os cuidados,
quase filiais, de que as duas raparigas o rodeavam.
A idade e os padecimentos morais deste homem haviam-se tor-
nado elementos, quase invencíveis, do mal que lentamente lhe minara
as forças.
O único alívio, no seu leito de dor, era a vista das duas irmãs.
Faziam-lhe bem os sorrisos de Clara, e as lágrimas de Margarida
duas expressões diversas de uma mesma simpatia.
Daniel aproximou-se do leito do enfermo; do outro lado fica-
va-lhe Clara.
A luz era escassa na alcova. As feições de Clara tinham tomado uma
expressão de melancolia, a qual aquelas sombras pareciam aumentar.
Junto à cabeceira de um enfermo é onde mais pronta e natural-
mente se estabelece entre duas pessoas um trato familiar.
A etiqueta e as reservas do costume sentem-se mal colocadas
e intempestivas ali.
Se é sincera a compaixão por o que padece, perde-se a frieza
necessária à estrita observância das insignificantes convenções sociais.
oo possíveis as afectações nem os constrangimentos, quando a
mesma generosa simpatia domina o pulsar de dois corações.
Por isso, entre Daniel, como médico, e Clara, como enfermeira,
cresceu ràpidamente certa familiaridade, a qualo pouco concorreu
para fazer demorado o exame do doente, cuja moléstia era de uma
evidência e de uma fatalidade de êxito, que deviam facilitar a tarefa
do seu estudo.
Depois... nunca éo cheia de atractivos a mulher, como ao velar
solícita por o doente que estima. As mais levianas revela-se-lhes então
a grandeza e sublimidade da sua missão na Terra. O coração, que as
vaidades podiam trazer abafado, estremece e acorda ao primeiro grito
de dor ; o instinto feminino revive com toda a espontaneidade de abne-
gação ; dá-lhes à voz inflexões de ternura, ao olhar requebros de
meiguice, e aquela deliciosa fraqueza de ânimo, que nos pedia pro-
tecção e amparo, transforma-se em coragem heróica, diante da qual
nós, os que nos supúnhamos fortes, cedemos subjugados.
um momento destes, na vida da mulher, absolve-a de todos os
pequenos defeitos, que temos por costume censurar nela.
Quando o império do amor e de piedade deve reger a vida,
aceita então de nós, com sorrisos de brandura, o ceptro de soberana.
E nessas ocasiões bem conhece que o prestígio, que exerce, é
absoluto ; perde então a timidez habitual e olha-nos desassombrada.
Sucedia isto com Clara. Achava-se à vontade ali ; fitava, sem cons-
trangimento, os expressivos olhos negros no rosto de Daniel, como
se para nele espiar o passar das idéias, que o exame do doente lhe
fosse sugerindo.
Se ela soubesse que, enquanto o fitava assim, mal na doença o
deixava pensar !
O enleado agora era Daniel. com os olhos no rosto cadavérico
do enfermo, comprimindo-lhe ainda o pulso abatido e descarnado,
quaseo tinha consciência do que fazia.
Sem olhar, sentia que a vista de Clara se fixava nele porque
há fenómenos assim — e sentindo-o desgraçada natureza a sua !
em vez do médico impassível e atento, que devera ser, jáo era senão
o estudante de vinte anos, com toda a sua ardente imaginação.
Enfim terminou aquele exame longo, mas distraído, e, depois
de algumas perguntas feitas ao doente, Daniel voltou à sala para receitar.
Clara acompanhou-o e encostou-se familiarmente às costas da
cadeira, na qual Daniel se sentara.
Era o bastante para tirar a este toda a tranqüilidade.
A seu pesar, ao tremia-lhe ao escrever.
Clara pôs-se a rir.
De que se ri?!—perguntou Daniel, voltando-se.
Está-me a lembrar, ao ver tremer-lhe ao assim, que o João
Semana costuma dizer, quando assina uma receita, que assina uma
sentença de morte.
Daniel sorriu também, ou simulou sorrir.
Isto é nervoso disse ele, levantando-se.
Nervoso ! Então também é nervoso ! Eu cuidei que isso era
só das senhoras da cidade.
Enganava-se.
Então que é ser nervoso ?
É... por exemplo,o ter firmeza nao ao escrever, quando
nos seguem os movimentos uns olhos... assim como os seus, Clarinha.
Ah ! Deve ser então bem má doença, que obriga os outros a
andarem com os olhos fechados redarguiu Clara, com certo tom
de zombaria.
Daniel ia a replicar, quando um gemido do enfermo chamou
Clara à alcova.
Enfim, passados alguns segundos, Daniel, muito a custo, prepara-
va-se para sair.
Clara voltou, trazendo-lhe água para as mãos ; acto naturalissimo
e sem significação porém Daniel era destes homens, para quem
quaseo há actos sem significação.
Lavando-se, e enquanto Clara lhe sustentava a bacia, aven-
turou um olhar para a gentil rapariga, a qual o recebeu com
firmeza.
como este olhar se prolongasse, Clara disse com um sorriso de
ironia aparente através do gesto de ingenuidade de que o acompanhou :
Estáo distraído, a pensar... no seu doente talvez, que nem
repara que se está a lavar em seco.
Daniel baixou os olhos e abreviou a operação.
Quando ia a retirar-se, ouviu Clara, que lhe dizia grace-
jando :
Quanto se lhe deve pela visita, sr. doutor?
A esta pergunta, esteve iminente a sair da boca de Daniel um
galanteio, que ele susteve a tempo, poro sei que pressentimento,
que lhe dizia que esse jogo podia ter seus perigos. Limitou-se, pois,
a responder:
Deve-se-me um pouco de afeição pela boa vontade, quando
por maiso seja.
—Já vejo que é fácil de contentar.
Acha então de pouco valor a afeição ?
comoo pede muita...
É que receio que jáo tenha muita para dar.
o pobre me faz disso ?
Poiso dispôs já da melhor?
A afeição de que dispus,o lhe podia servir.
Acha?
Esta pergunta, ou mais do que ela, a inflexão de voz com que
oi dita, o olhar de que foi acompanhada, era imprudente.
Clara desviou a vista diante desse olhar de Daniel.
Ouça disse ela, mais séria já do que até ali. A gente tem
sempre no coração duas afeições diferentes, penso eu: uma, que se
dá toda a uma pessoa, e julgo que uma vez só na vida ; outra, que se
dá às porções, mais a uns, menos a outros, mas que nunca se acaba.
Para querer a este pobre velho, que ali está dentro e quero-lhe
deveras nada tive de tirar à afeição grande que tinha a Margarida.
Conte por isso que ainda tenho afeição dessa para lhe dar. A Guida
o terá que sofrer com isso... nem os outros.
Havia uma delicada correcção nestas palavras de Clara, que
produziu efeito no ânimo de Daniel. Inclinou-se, e com sorrisoo
constrangido, replicou, estendendo-lhe a mão:
Agradecido, Clarinha. Essa mesma é a que me deve ; pois
nao seremos dentro em pouco tempo irmãos?
Clara, já outra vez risonha, correspondeu ao cumprimento do
irmão do seu noivo, sem a menor reserva desfavorável.
E separaram-se.
Que diabo de homem sou eu ? dizia Daniel consigo. Pois
o ia principiando a apaixonar-me por a mulher de meu irmão?
Quando terei eu força para me vencer nestas coisas? Mas é que tem
uns olhos esta rapariga, e umas maneiras !...
E, sob o dominio destas novas impressões, a impressão que da
carta de Margarida havia recebido, desvanecera-se de todo.
o era, porém, esta a única mudança que se tinha de operar nele
aquele dia.
XXI
C
UMPRINDO a promessa, que tinha feito a Joana, foi o novo clínico
fazer a sua segunda visita.
O leitor deve estar lembrado de que o doente era o nosso
já conhecido João da Esquina, ou, pelo menos, alguém da sua respeitável
família.
Ao apresentar-se, em lugar de João Semana, Daniel foi recebido
com uma visagem, pouco lisonjeira, do dono da casa, impressionado
ainda talvez com as revolucionárias, e em nada tranquilizadoras, opi-
niões médicas, que conhecia no seu vizinho.
Então como é isto? É o senhor que vem?... dizia o homem,
meio desconfiado, e como hesitando em entregar-se aos cuidados da
medicina nova.
É verdade ; sou eu respondeu Daniel. O João Semana nao
podia hoje vir para estes sítios e, como me lembrou que talvez fosse
de pressa a doença...
um sorriso encrespou os lábios do tendeiro.
A doença? Ah!...—Entãos sempre temos doenças?!
perguntou o João da Esquina, com certo ar de finura triunfante.
Pois que dúvida ? disse Daniel, muito longe de suspeitar o
sentido oculto da interrogação.o mandou chamar um médico ?
É provável queo seja para o consultar sobre alguma demanda.
João da Esquina meneava a cabeça com ar de satisfação.
Portanto, segue-se que temos doenças? Bem, bem.
Mal, mal emendou Daniel, sorrindo.
Eu cá me entendo. Afinal há-de vir para o bom caminho, e no
mais também, se Deus quiser.
No mais ? repetia Daniel, sem entender o anfiguri.
No mais, sim, no mais. Ora diga-me—continuou ele, tomando
Daniel de parte e falando-lhe quase ao ouvido - parece-lhe que eu
sou algum macaco?
O filho de José das Dornas olhou espantado para o seu interlocutor,
e principiou a suspeitar que a moléstia, que exigia os cuidados do
médico, era desarranjo intelectual.
Macaco ? O Sr. João da Esquina macaco ? ! Essa agora ! como
quer que eu suponha tal absurdo?
Absurdo ? ! exclamou jubiloso o merceeiro. É o que eu
digo. Assim, assim é que eu gosto de os ver.
Esquisita monomania ! comentava para si Daniel.
João da Esquina continuou no mesmo tom, meio irónico, meio
confidencial :
E acha que me ficaria muito Cem, se me pusesse a andar por
aí com as mãos pelo chão?
Daniel, muito fora, naquele momento, das razões que motivavam
estas perguntas, achava-aso extravagantes, que sentia agravarem-se-
-lhe cada vez mais as apreensões, relativamente ao estado intelectual
do tendeiro.
Decerto queo seria exemplo muito para tentar respon-
deu Daniel,o podendo outra vez disfarçar um sorriso.
Ah ! Então parece-lhe isso ?
Acaso as íntimas convicções do Sr. João da Esquina repelirão
esta maneira de pensar?
O senhor é que parece ter mudado de idéias.
Lembrou-se então Daniel que talvez tivesse alguma vez pronun-
ciado, diante de indiscretos, uma ou outra frase, menos favorável em
relação a João da Esquina, a qual, tendo-lhe sido transmitida, desse
por tal forma motivo a esta desconfiança.
Estou supondo que o Sr. João da Esquina temo sei que pre-
venção contra mim. Pode ser que lhe viessem referir algumas palavras
minhas, as quais julgue ofensivas à sua dignidade; mas creia queo menos
verdadeiras. As coisas alteram-se sempre ao passar de boca em boca.
Então dá o dito poro dito ?
Tudo o que lhe for injurioso, creia que oo disse eu res-
pondeu Daniel.
O tendeiro, mais tranquilo a respeito do novo médico, o qual ele
via assim abjurar solenemente as suas teorias subversivas do estado
regular das coisas na sociedade e no mundo,o duvidou encetar os
estiradíssimos capítulos da sua longa história mórbida.
Pouparei ao leitor o ouvi-los. Imaginem uma interminável expo-
sição de todos os incómodos sentidos há vinte anos, e cortada de varia-
dos episódios, alheios ao assunto principal, ou mantendo com ele laços
imaginários.
A propósito da moléstia, veio, por exemplo, a campo, a história
minuciosa de uma demanda sobre uma pensão de duas frangas, o rela-
tório das despesas feitas com os melhoramentos em uma propriedade
sua, e as desavenças entre ele, tesoureiro da confraria do Sacramento,
e o secretário da mesma.
Daniel escutava-o distraído.
No fim, fundando-se em uma ou outra circunstância, que lhe
ïcara de todo o arrazoado, fez o diagnóstico, e formulou alguns pre-
ceitos médicos, mencionando, entre outros medicamentos que acon-
selhou, as preparações do arsénico.
Lembrança imprudente !
À palavra arsénico, João da Esquina estremeceu, e de novo se
lhe assombrou o olhar de desconfiança.
A quarta das opiniões teóricas de Daniel, as quais lhe tinham
sido referidas por José das Dornas, aparecia-lhe agora de novo com
toda a sua aparência sinistra e homicida.
Arsénico ? exclamou ele com voz quase rouca de susto e
de indignação. — O senhor quer que eu tome arsénico ? !
Que dúvida? respondeu Daniel.—É um medicamento
heróico, prodigioso em muitos casos.
Eu tenho conhecido os prodígios que ele obra. Vale por dois
gatos !
Ora adeus ! A questão está na maneira de o tomar.
Arsémco ! Mas que idéia ! Estao esperava eu ! Arsénico !
Está enganado. O arsémco até...
Engorda também,o é verdade? perguntou o tendeiro,
com amarga ironia na voz.
E ainda que lhe pareça que não...
Para o senhor vale tanto como o toucinho. Eu já cá sabia.
Mas ouça. Olhe... Na Áustria... na Áustria os cavalos de boa
raça recebem sempre na aveia uma porção de arsénico, o qual lhes
dá um aspecto luzente, elegante, vigoroso e inexcedível.
O exemplo beliscou o amor-próprio do Sr. João da Esquina, que
redarguiu com despeito:
Muito obrigado pela notícia. Isso talvez anime a gente da
Áustria, ou certos doutores que eu conheço, e que pensam que um
homem é como qualquer animalejo dos tais, e que pode andar a quatro
como eles também. Eu por mim...
Mas aí tem outro exemplo continuou Daniel. Em certas
partes da Alemanha há povoações inteiras, nas quais o arsénico e comido
com um prazer excessivo.
Pois que se regalem.
Mas olhe que é facto.o verdadeiros toxicófagos esses povos.
Eu logo vi que haviam de ser assim uma coisa ; homens é
que...
E então as pessoas novas, e, ainda mais, as raparigaso as
que usam dele com avidez, e o que é certo é que conservam ainda um
ar de mocidade, uma frescura, uma nutrição e uma força que, segundo
a frase dos autores, parece que lhes permite voar.
Para o outro mundo?
Não, senhor. É verdade isto que eu lhe digo.
Eu já sei, eu já sei que, para o senhor,o e arsénico deve
ser tudo a mesma coisa. Mas eu por mim...
Porém, sossegue, euo quero obrigar o meu amigo a jantar
arsénico; aplico-lho apenas como medicamento e com as devidas
precauções...
Escusa de se dar a esse trabalho. Disso o dispenso eu. É coisa
que meo há-de entrar na boca. Arsénico ! Que tal está !
Mas esse receio é indigno de um homem de coragem, per-
mita-me que lhe diga.
Nesse tempo tinha entrado na loja, onde se passara o diálogo, a
cara-metade do Sr. João da Esquina, a Sr.* Teresa de Jesus, gorda e
rubicunda matrona, que saudou Daniel com sorrisos amáveis, e disse
para o marido, com a voz mais melodiosa deste mundo:
Toma arsénico, menino, toma. E porqueo hás-de tomar
arsènico ?
O Sr. João da Esquina fitou na mulher um olhar sombrio.
Dir-se-ia que estava vendo nela uma nova Clitemnestra, de conju-
gicida memória.
Toma-o tu, se gostas foi a resposta que lhe deu, em tom de
voz cheio de amargas exprobrações.
Ê que meo será preciso a mim redarguiu a senhora,
suspirando.
Este suspiro foi o prelúdio da história dos seus complicados males.
A crónicao foi menos longa, nem menos fértil em episódios,
do que a do marido. Os nervos, já se sabe, representavam um papel
importantíssimo na série de catástrofes, que a organização da
Sr.' Teresa vira cair sobre si durante os quarenta e nove anos da sua
existência.
Daniel foi miraculoso de paciência na atenção que lhe deu, e
sublime de sisudez e compostura nos conselhos que em seguida reco-
mendou.
O pobre rapaz olhava com saudades para a porta da rua, sem
ver probabilidades de a transporo cedo.
Enfim, quando julgava haver terminado a sua missão, e tomava
jeitos de retirar-se, as seguintes palavras da Sr.* Teresa vieram aper-
tar-lhe o coração.
Maso é tanto pors que mandámos chamar facultativo.
A doença principal da casa é outra. Aos nossos achaques já nos vamos
costumando. Foi por causa da pequena. Quer ter o incômodo de subir ?
Danielo pôde reter um suspiro de impaciência. Se aquelas
tinham sido as doenças de segunda ordem, que monstruosa história
patológica lhe estava reservada ainda?
Os dois cônjuges fizeram-no subir adiante de si.
Pelas escadas, Daniel, apesar do seu mau humor,o pôde deixar
de sorrir, ouvindo a Sr.* Teresa, a qual fechava o cortejo, dizer para
o marido :
Toma arsénico, João. Ora porque nao hás-de tu tomar arsénico?
o me digas isso, mulher ! respondia João da Esquina,
quase alterado.
Dentro em pouco, estavam na presença da menina Francisca,
filha única deste bem talhado par.
Se os amáveis sorrisos da esposa tinham já procurado a Daniel
compensação ao menos cordial acolhimento feito pelo tendeiro, o
sobressalto e confusão, com que a menina estendeu para ele um
pulso, sofrivelmente modelado, conseguiram mais eficazmente esse
mesmo resultado.
Era esta menina trigueira, a mais trigueira de toda a aldeia. Ingrata
para com esta cor maravilhosa, que, tingindo certos tipos fisionômicos,
como o dela, é de efeitos surpreendentes, tinha, porém, a fraqueza
indesculpável de se afligir poro ser corada.
Era idéia fixa na menina Francisca ; uma conversação de quarto
de hora, que se tivesse com ela, bastava para a fazer avultar.
Debalde protestava contra tal injustiça o brilho esplêndido de
uns olhos que, naquela tez, realçavam como poucos. Dera-lhe para
se reputar infeliz por aquilo, eo havia distraí-la.
A doença, que actualmente molestava esta progénie dos senhores
da Esquina, era uma impertinencia nervosa, dessas para as quais se
receitam banhos de mar.
Danielo deixou de os aconselhar ; maso terminou a visita
com o conselho.
Os tais olhos pretos sobre aquelas faces, esquisitamente triguei-
ras, davam-lhe deveras que pensar.
Agorao tinha ele pressa de se ir embora.
Por onde andaria a imagem de Clara?
Prolongando-se a visita, era inevitável a descoberta da corda
sensível da enferma. Mais cedo ou mais tarde, um queixume indiscreto
a poria em relevo. Assim aconteceu. Daniel ficou sabendo que mal
oculto entenebrecía aquele coração, e preparou-se para ser eloquente
na apologia da cor trigueira.
João da Esquina tinha saído da sala. O pobre homem jáo podia
suportar a sua cara-metade, a qual, pela décima vez, lhe repetia:
Toma arsénico, filho, toma.o posso saber porqueo hás-de
tomar arsénico.
, na presença das duas senhoras, deitou Daniel ombros à
empresa de distrair a menina Francisca.
Entre outras muitas coisas, afirmou, por sua conta e risco, que
as belezas célebres, essas que inspiraram os grandes poetas, os
grandes artistas e os grandes amores, tinham sido trigueiras, e, espe-
cificando, citou: Dido, Natércia, Cleopatra, Beatriz, Fornarina, Laura,
Inés de Castro, etc., etc. Desta gente toda, a Sr.» Teresa e sua filha
só conheciam Inés de Castro, porque havia meses que tinham visto
representar uma obra dramática, produção inédita deo sei que
Shakespeare rústico, na qual entrava esta senhora, mais maltratada
ainda das mãos do trágico, que das dos « brutos matadores ».
Ae fez notar à filha que de factoo era das mais alvas a
moçoila que desempenhou a parte da heroína daquela vez.
Além destes argumentos histórico-apologéticos, a respeito da cor
trigueira, Daniel, aproveitando uma curta ausência da Sr.* Teresa,
segredou à menina algumas amabilidades de efeito salutar. Ela teve
a condescendência de sorrir.
Diga-se a verdade : nunca até então escutara também mais gentil
conforto contra o motivo das suas penas.
Dai até ao fim da entrevista foi toda sorrisos.
Daniel, quando saiu, ia muito bem conceituado pela parte femi-
nina da família, e prometeu voltar.
João da Esquina conservava-se ainda um pouco frio.
De mais a mais. quando Daniel passou pela loja, a Sr." Teresa,
que era para ele de uma amabilidade monstruosa, disse para o marido :
Toma arsénico, João ; que teima a tua emo tomar arsénico.
Esta insistência produziu calafrios na espinha dorsal do tendeiro.
Ó mulher,o me digas isso ! Que cisma ! exclamou ele
irritado.
Na noite desse dia, pela primeira vez, deixou a menina Francisca
de lavar o rosto com uma água misteriosa que o barbeiro lhe vendera
por bom preço, afirmando-lhe possuir a virtude de tornar brancas,
com o tempo, as mais escuras africanas.
XXII
N
O dia seguinte, Daniel voltou. A familia Esquina, até sem excep-
ção do elemento masculino, sorriu-lhe cordialmente.
O que fizera esquecer assim ao tendeiro as suas negras
apreensões, e abrira em sorrisos aqueles sobrecenhos da véspera?
O leitor, que toma a peito decerto, a varonil rijeza de caracter
do tesoureiro da confraria do Sacramento,o me perdoaria se euo
explicasse o fenómeno.
Foi o caso que, na véspera, depois que Daniel se retirou, a menina
Francisca, ainda pensativa e enleada, veio à janela para o ver passar,
e, ao perdê-lo de vista, retirou-se suspirando.
Este suspiro entrou pelos ouvidos da mãe, a qual chegava à sala
naquela ocasião.
A Sr ' Teresa teve uma idéia.
Este fenómeno dava-se, de vez em quando, na esposa do Sr. João
da Esquina.
Tem umas maneiras muito bonitas este rapaz disse ela,
fixando na filha o olhar mais investigador que tinha à sua disposição.
Tem —respondeu esta secamente.
Ou ele ou o João Semana, a quem ninguém pode tirar da boca
uma palavra delicada. Este é coisa mais fina.
É replicou a outra.
Bem mostra que tem vivido entre gente polida e educada.
Bem continuava a menina.
Eo lhe hão-de faltar bons casamentos a este rapaz.
o dizia a filha.
Isso há-de ser bonito agora. Todas as raparigas da terra a
enfeitarem-se para lhe agradar. Há-de ter que ver.
Há-de.
A Sr.
1
Teresa principiava a impacientar-se com o laconismo da filha.
Mas acham-se muito enganadas continuou ela um rapaz
assimo cai facilmente. Estas nossas raparigaso umas estúpidas.
Louvado seja Deus !o sabem dizer duas palavras. E desembaraço
e o que se quer.
É...
E porqueo o hás-de tu ter, menina ? acrescentou ela.
em tom mais baixo e insinuante.
Eu?
Tu, sim, porque não? Para que gastou teu pai contigo a
mandar-te aprender os verbos, senão para poderes agora mostrar o
que és, e diferençar-te das outras?
A menina desta vez nem um monossílabo pronunciou. Encolheu
os ombros.
Bem se viu que o Sr. Daniel logo conheceu com quem lidava,
Cuidas tu que ele se gastava assim com qualquer Maria do monte ? Diz-
-lhe que sim. Ele bem sabe que seria deitar pérolas a porcos. Por isso.
menina,o deixes perder a ocasião. Acredita que darás muito gosto
a teus pais, se...
A Sr.' Teresa vacilou ao principiar a condicional, em que ela
queria conservar a conveniente dignidade materna.
Se?...—perguntou a filha, e foi este de todos os monossíla-
bos, que ate ali tinha soltado, o mais embaraçoso para a mãe.
Se... sim... quero eu dizer, que eu e teu paio levaríamos
a mal se... um dia, o Sr. Daniel nos viesse pedir a tua mão.
O ar de satisfação que se desenhou no rosto da esposa do
Sr. João da Esquina, mostrou que ela estava contente consigo pela cons-
trução final da frase.
A menina, ao ouvi-la, baixou os olhos ; devia ver-se corar, se
tal fenômeno fosse de possível observação nas faces dela. Enquanto
a palavras, limitou-se a balbuciar um «Ora!» eloquente de graciosa
confusão.
A Sr." Teresa passou à loja, onde estava o marido.
Ó João, olha ques temos que conversar disse-lhe ela,
sentando-se ao pé do mostrador.
Vens falar-me no arsénico outra vez ? perguntou o marido,
inquieto.
o ! ainda que, para dizer a verdade,o sei porque oo
hás-de tomar.
E a dar-lhe !
Mas ouve. Esta visita do Daniel do Dornaso te deu que
pensar ?
Deu-me que pensar, deu. E vou já mandar dizer-lhe que escusa
de cá voltar, porque...
o sejas tolo, homem ! Abre os olhos e vê exclamou a
Sr.' Teresa, com ar de mistério.
O quê ? perguntou João da Esquina,o podendo deixar
de abrir instintivamente os olhos.
Que idade tem o Daniel ?
Eu sei lá !
Vinte e tantos anos,. E que idade tem a Chica?
Ela nasceu logo depois do cerco...
Faz vinte e um anos para Setembro.
E daí?
E dal? E quanto virá a herdar o Daniel por morte do pai?
Eu te digo... para cima de trinta mil cruzados,o falando
em...
E ainda perguntas : « E daí ?»
João da Esquina olhou para a mulher significativamente, eo
deu palavra. Tinham-se compreendido os dois.
Passados momentos, murmurou o homem:
Olha queo era mau, se...
Vê lá então agora...
O pior é...
Pois sim, euo digo que...
Mas ele já...? sim...
Não, porém...
Então quem sabe se...
Isto é... até certo ponto...
É verdade que também...
Sim, pois está claro, e...
E mau era que já...
com certeza... demais...
Agora o que é preciso, é...
Isso com o tempo... bems que...
o sei se o leitor penetrou bem o sentido deste diálogo cortado
de expressivas reticências, e ao qual falta, para o interpretar, a elo-
qüência do olhar e de gestos, que os dois cônjuges trocavam entre si.
É certo que eles se compreenderam assim, e largas horas ficaram
discutindo os teres e haveres de Daniel, e as probabilidades e vanta-
gens de uma união entre a casa dos Esquinas e a dos Dornas, as quais,
com os anos, podiam fornecer sofríveis elementos para a confecção
de um brasão heráldico.
A Sr.
a
Teresa foi encarregada por o marido de excitar na menina
o ardor pela conquista, e industriada em dirigir o negócio de maneira
a « prender o melro por a asa » foi a frase imaginosa, da qual João
da Esquina se serviu.
O pior há-de ser o pai ; mas segura-me tu o rapaz, que eu
depois tomarei a meu cargo a empresa dizia ele.
Conspirados assim os dois, sentiam-se radiosos de esperanças
no futuro.
João da Esquina estava deo condescendente disposição de
espírito, que a sua cara-metade aventurou um pedido :
Agora para seres bonito, João, dévias tomar arsénico.
O tendeiro deu um murro no mostrador.
o te calarás com isso, Teresa ? !
Aí ficam expostas as razões dos sorrisos, com que o próprio João
da Esquina recebeu Daniel, à segunda visita.
Ae conduziu-o aos aposentos da menina, e teve o discreto
cuidado de se distrair à janela, enquanto Daniel interrogava a doente.
O sistema de tratamento encetado continuou, e com igual êxito.
Daniel desta vez ao retirar-se, levava já a autorização para continuar
por escrito as consolações principiadas vocalmente.
A Sr." Teresao deixou sair Daniel sem que ele visse todas as
obras de croché das industriosas mãos da menina, e os modelos cali-
gráficos, que escrevera na mestra. De passagem, disse-lhe também
que ela havia aprendido os verbos, coisas que pouca gente sabia na
terra.
A Sr.* Teresa possuía, quase supersticiosa, nesta ciência dos
verbos.
João da Esquina quis obrigar Daniel a beber um cálice de vinho,
do que ele a muito custo conseguiu dispensar-se.
Da rua, Daniel voltou-se para cima, e, vendo à janela a descen-
dente dos Esquinas, cortejou-a com um sorriso cheio de amabilidade.
um cotovelão da Sr." Teresa fez notar ao marido esta circuns-
tância. O homem conseguiu arranjar um gesto de finura, e recomen-
dou gravidade.
Naquela tarde, Daniel, escrevendo a um seu antigo condiscípulo,
dizia, entre outras coisas, o seguinte:
«Participo-te que se está desenvolvendo em mim o gosto pelo
género campestre. Principio a achar mais dignas do pincel do artista
estas formosuras expressivas e, quase direi, enérgicas da aldeia, do
que as sempre monòtonamente lánguidas maravilhas da cidade. Pena
é que o reconhecesse um tanto tarde. Resta-me já pouco alento para
empresas de rapaz, e, demais, a minha nova posição social obriga-me
a uma seriedade que me tolhe a acção. Agora só devo aspirar às doçu-
ras emolientes do lar conjugai.o obstante, andam-me a tentar uns
olhos pretos, e euo sei se sustentarei o equilíbrio por muito tempo.
Encomenda a todos os santos a manutenção da minha sisudez, seo
queres ver perdida a fama do teu amigo, no ninho seu paterno.»
As visitas de Daniel a casa do João da Esquina continuaram.
O mulherio da vizinhança falava.
A Sr.* Teresa deixava falar o mulherio. Se isso entrava até nos
seus planos !
Uma vizinha, comadre e muito íntima da Sr." Teresa uma, só
ocultava à outra o mal que dela dizia pelas costas falando-lhe um dia,
aludiu a Daniel e às suas visitas.
Então, comadre? Pelos modos, o nosso cirurgião novo gosta
muito destes sítios.
Cada um vai para onde mais lhe agrada, comadre.
Isso lá é assim. E quem sabe o que será ?
Que será o quê?
Sim, comadre, eleo é de raça queo seja a sua filha.
Decerto queo é, não.
—Pois então...
O futuro só Deus o sabe.
É verdade. O ponto está que a sua pequena... Se ainda lhe
o passou aquela cisma que teve para o Chico sapateiro...
O Chico sapateiro ! exclamou indignada a Sr.
a
Teresa.
Não, que minha filha é cabedal muito fino, para ir às mãos de um remen-
o daqueles.
Nisso tem razão. Ainda se fosse com o Joaquim sacristão...
Qual sacristão, nem meio sacristão ? A comadre pensa que
uma criatura se sustenta com aparas de hóstias e com escorralhas de
galhetas ?
A comadre aplaudiu com uma gargalhada o dito, e observou:
O das estradas é que... está feito... Já era assim mais jeitoso esse.
Pássaro de arribação! Olhe, enfimo sei o que será. Esta
pequena é muito difícil de contentar. Que quer? está estragada de
mimo... Mas, se ela oo enjeitar... que tem agora ocasião de fazer
um bom casamento, isso tem.
E ele?
Ele ? Poiso vê como o rapaz noso larga a porta ?
Mas, será... com boas idéias?
Ora essa, comadre! Então julga ques somos?...
o digo isso. Mas... Dizem que ele foi um estroina dos meus
pecados...
Pois sim ; mas isso é com gente de pouco mais ou menos ;
mass cá...
Neste estado estavam as coisas, e assim duraram alguns dias mais.
Chegou a ocasião da Sr.* Teresa julgar ter obtido grande alavanca,
para fazer caminhar o negócio.
Houve nesse dia longa conferência entre os cônjuges.
Ficou demonstrado para eles que o « melro estava preso pela asa» .
João da Esquina, levantando a sessão, disse com modo solene :
É ocasião de dar o grande passo !
E, enfiando a sua roupa dos domingos, preparou-se para sair.
Agitava-o certa comoção interior, própria das grandes ocasiões.
Queixou-se disto à mulher ; esta observou-lhe :
O culpado és tu.
Então ? perguntou o marido.
Se tomasses o..
João da Esquinao ouviu o resto. Saiu impetuosamente.
A Sr.
a
Teresa, vindo à janela para o ver, dizia consigo:
Mas porqueo há-de este homem tomar arsénico ?
Que circunstância tinha convocado o conciliábulo conjugal, e o
que fo: fazer o Sr. João da Esquina assim ataviado?
Vê-lo-emos no capítulo seguinte.
XXIII
T
OMANDO certos ares de gravidade e de importância, em grande
parte devidos a uns estupendos colarinhos engomados, aces-
sório daquele vestuário tipico, dobrou o Sr. João da Esquina
a esquina, de onde lhe vinha o nome, e, atravessando a rua adjacente,
caminhou em direcção à casa de José das Dornas.
Ao entrar o portão do lavrador, deu o tendeiro ao rosto um jeito
de indignação, e procurou simular em seus movimentos uma impe-
tuosidade e impaciência, contra as quais estava protestando aquele
todo bonacheirão.
Diga ao Sr. José das Dornas que está aqui o João da Esquina
que lhe quer duas palavras foi como, em tom desabrido, que ele
se mandou anunciar pelo primeiro criado que viu.
José das Dornas, que acabara de dormir uma sesta refociladora,
veio ter com o seu vizinho, com rosto alegre e cantarolando:
Ai, la ri lo le Ia,
Eu vou pela mansidão,
Olá ! bradou o jovial lavrador, vendo o tendeiro. Viva o
Sr. João ! Ditosos olhos que o vêem ! como vai essa bizarria ? Sente-se ;
esteja a seu gosto. Vai um copito do rascante?
Muito obrigado respondeu secamente João da Esquina.
Pois mal sabe o que perde; é daquele de esfolar ou da
boca. Então que milagre o traz por esta sua casa?
um negócio muito sério.
Temos empréstimo disse, em aparte, José das Dornas ; e
alto : Muito sério ? ! O caso é que você traz cara de fuñera . Ah ! ah !...
Tenho pouca vontade de rir, Sr. José.
Mau é isso. Então que diabo o aflige? Desembuche para.
Olhe que eu sou homem para as ocasiões. A sua filha está pior?
A minha filha está boa—replicou, com certo mau modo, o tendeiro.
Boa! com que então... logo à primeira... hem? O meu Daniel
saiu-se como um homem !
Saiu-se óptimamente disse João da Esquina, de uma maneira
que procurou fazer notável.
Olhe que me tem esquecido emprestar-lhe o livro do rapaz
continuou José das Dornas, queo notara a tal maneira ; aquele
em que lhe falei; mas espere, que eu vou...
Ia a levantar-se, porém um gesto do seu interlocutor fê-lo parar.
o tenha incómodo. É de outra obra de seu filho que eu
quero falar.
De outra !
E José das Dornas principiou a dar mais atenção aos modos esqui-
sitos do tendeiro.
Homem, você hojeo sei que tem consigo !o o entendo,
Em vez de responder, João da Esquina pôs-se a mexer nos bolsos,
e tirou de lá um papel cor-de-rosa, pequeno, elegante, lustroso e aro-
matizado ; desdobrou-o, e pondo-o diante dos olhos do lavrador, disse-
-lhe simplesmente:
Ora faça favor de 1er isto.
Mas isto o que é ?
Leia e verá.
Era fácil dizer: «leia»; maso de pequena dificuldade para
José das Dornas a tarefa, que com essas palavras lhe impunham.
Homem, é melhor que você me diga o que é isto, do que...
Nada,o senhor. Leia.
Valha-o Deus disse o bom do lavrador, afastando o papel
dos olhos quatro palmos, para o poder 1er ;o o conseguindo, tirou
do bolso umas cangalhas, das quais armou o nariz, depois de ter lan-
çado para o interlocutor um olhar, que valia um recurso, para tribunal
de última instância, contra uma sentença de morte.
«Trigueira» leu ele, logo no topo da página, e voltou para
o tendeiro olhos de espanto.
Trigueira ! Que quer dizer isto ?
Homem, leia, leia, que o saberá.
José das Dornas continuou, já se imagina como. Eu evitarei ao
leitor o assistir às verberações que ele aplicou a prosódia portuguesa.
Eis o que leu :
Trigueira ! que tem ! ? Mais feia
com essa cor te imaginas?
Feia ! tu, que assim fascinas
com um só olhar dos teusl
Que ciúmes tens da alvura
Desses semblantes de neve!
Ai, pobre cabeça leve I
Que teo castigue Deus.
No fim desta primeira estância, José das Dornas, como atordoado,
levantou os olhos para João da Esquina ; mas viu-oo sério, que
continuou :
Trigueira ! Se tu soubesses
O que é ser assim trigueira I
Dessa ardilosa maneira
Por que tu o sabes ser,
o virias lamentar-te,
toda sentida e chorosa,
Tendo inveja à cor da rosa,
Sem motivos para a ter.
Ó vizinho, mas isto... —ia a dizer José das Dornas, que prin-
cipiava a suar.
um gesto do tendeiro obrigou-o a prosseguir:
Trigueira ! Porque és trigueira,
É que eu assim te quis tanto.
Repare, Sr. José observou do lado João da Esquina. «E que
eu assim te quis tanto». Vá reparando.
José das Dornas abriu muito os olhos para reparar, e continuou :
Daí provém todo o encanto,
Em que me traz este amor.
«Este amor», repare, vizinho, «este amor!» tornou a dizer
João da Esquina, e José das Dornas tornou a abrir muito os olhos, repe-
tindo, sem saber para quê:
«Este amor...», é verdade... «este amor...». Cá está.
E prosseguiu:
E suspiras e murmuras!
É peta ! notou João da Esquina.
Palavra de honra, que está aqui. «E suspiras e murmuras»,
Sr. João. Ora faça favor de ver.
o nego; quero eu dizer que... mas adiante, adiante.
José das Dornas continuou:
E suspiras e murmuras !
Oue mais desejavas inda!
Pois serias tu mais linda,
Se tivesses outra cor?
José das Dornas começou a lançar para o vizinho um olhar inquieto ;
estava sèriamente pensando que o homem endoidecera.
Continue disse-lhe o tendeiro.
E o lavrador continuou, suando cada vez mais:
Trigueira ! Onde mais realça
O brilhar duns olhos pretos,
Sempre húmidos, sempre inquietos,
Do que numa cor assim?
Onde o correr duma lágrima
Mais encantos apresenta?
E um sorriso, um, nos tenta,
como me tentou a mim?
« como me tentou a mim » repetiu João da Esquina.
Vá vendo.
Homem ! exclamou José das Dornas, estafado bastará de
leituras.
Pouco falta. Está a acabar respondeu o outro.
José das Dornas resignou-se e prosseguiu:
TrigueiraI E choras por isso!
Choras, quando outras te invejam
Essa cor, e emo forcejam
Por como tu fascinar?
Ó louca, nunca mais digas,
Nunca mais, que és desditosa,
Invejar a cor da rosa,
Em ti, é quase pecar.
Ó Sr. João ! Eu nao posso mais ! exclamou José das Dornas,
com acento lastimoso.
Ë só um agora ; e acabou.
Mas..
E, ficando na reticência, José das Dornas tomou fôlego para 1er
ainda :
Trigueira 1 Vamos, esconde-me
Esse choro de criança.
Ai, que falta de confiança I
Que graciosa timidez I
Enxuga os bonitos olhos,
Então,o chores, trigueira,
E nunca dessa maneira
Te lamentes outra vez.
Buff! bradou Jose das Dornas, ao terminar a 'eitura e lim-
pando o suor, que o banhava.
Leu? perguntou o tendeiro.
Sim, senhor. Estão bonitos,o seus, Sr. João?
Meus?! exclamou o tendeiro, escandalizado quase. Isto
é mas é uma receita do nosso médico novo.
Hem! disse José das Dornas, parecendo-lhe queo tinha
ouvido bem diz vossemecê que é ?
Outra das embranças do senhor seu filho.
Do... do meu... do Daniel?!...
Sim. senhor. Do Daniel.
Pois o rapaz fez isto ? !
Era com essas e outras, que ele andava a tratar a minha filha.
O culpado fui eu, que lhe dei entrada em casa.
José das Dornas esteve a deixar escapar uma gargalhada, mas
conteve-se prudentemente.
Ó vizinho, por quem é,o ande por aí a dizer essas coisas,
que me desacredita o rapaz. Olhem se o João Semana o sabe ! um médico
poeta! Para que diabo lhe havia de dar..
Que faça versos à Lua e ao Sol, se quiser dizia João da Esquina
o há-de tirar disso grande proveito, mas que os faça, que os faça;
agora andar a inquietar famílias e...
Tem razão, vizinho, tem razão, e eu lhe prometo...
Abusar da confiança de um homem como eu !
Tem muita razão, vizinho.
Fazer andar à roda a cabeça de uma rapariga de juízo !
Neste ponto, José das Dornas engoliu em seco, maso deixou
de repetir :
Tem toda a razão, vizinho...
É um desaforo !
o o nego, Sr. João,o o nego.
Nao é homem em quem a gente se fie.
A falar a verdade...o é, não,o é.
Enfim, Sr. José continuou o tendeiro com ar resoluto, e,
depois de uma pausa, concluiu: É forçosa uma salisfação!
Eu lhe prometo que o rapazo volta.
João da Esquina fez um gesto de quemo se lisonjeava com
a promessa.
o é isso que eu digo.
Então?
O vizinho sabe o queo bocas do mundo ?
Sim; e depois?
O queo línguas chocalheiras ?
Sim; e daí?
O que são...
Vamos ; adiante.
Pois bem; para as fazer calar, é preciso...
É preciso o quê ?
É necessário...
É necessário o quê ?
É indispensável...
O quê? Sr. João, o quê? exclamou o lavrador, já impaciente.
O que é necessário ?
Que seu filho...
Que meu filho ?
Case...
com sua filha, não?
Está bem de ver.
com grande escândalo do tendeiro, o José das Dornas pôs-se
a cantarolar :
Ai, Ja ri lo le la,
Eu vou pela mansidão.
E foi para isso que teve o trabalho de vir aqui? Ora olhe,
Sr. João:s somos conhecidos antigos, e eu macaco velho, como deve
saber, que já meo deixo levar por essas. Aqui para nós, porque
o tapou o vizinho da mesma forma as bocas ao mundo, que tanto
falou do derriço da sua filha com o filho do sineiro? Porque se lhe
o deu que elas tagarelassem, por ocasião da festa do Coração de
Jesus, quando o Bento do padeiroo tirou os olhos dela, e ela dele,
durante toda a santa festa? Porque fez ouvidos de mercador, quando
o sr. padre Antônio lhe disse que casasse a rapariga com o Chico sapa-
teiro parao dar que fa
1
ar a cegueira em que ela andava com ele?
Ai, então nao quis ; nem lhe importaram as línguas chocalheiras ? Che-
garam-lhe agora as febres, Pois veio bater a má porta. Sossegue.o
tenha susto. Homens, que fazem versos,oo os piores. Conten-
tam-se com isso. Sabe que mais ? Meta a viola no saco ; retese a corda
à cachopa, e deixe correr.
Issoo é resposta que se, Sr. José exclamou o tendeiro,
que via prestes a fugir-lhe uma óptima ocasião de negócio.
o se zangue, Sr. João. Amigos como dantes. Pensemos em
ra coisa. Está um tempo muito criador...
Sr. José, istoo vai assim.
o me mortifique, Sr. João, para queo vá pior. Os milhos...
Sr. José!
o berre, vizinho.
Eu quero ver...
Pois abra os olhos. Mas...
Quero ver se é capaz...
Sr. João, vá para casa.
Sr. José das Dornas ! veja o que faz.
Estou vendo.
Repare bem para mim.
Estou reparando.
Saiba que eu sou...
o pôde dizer o quê. Interrompeu-lhe o discurso o reitor, que
entrou na sala. Vendo o aspecto dos dois interlocutores, e a vivacidade
do gesto do tendeiro o padre quis saber a razão da contenda.
João da Esquina desanimou em presença do reitor. Agoirou mal
da intervenção.
Depois de ouvir as queixas do tendeiro, o reitor perguntou-lhe,
com rosto severo, se o casamento da filha com o empreiteiro das estra-
daso viria reparar mais fallías na inteireza da sua boa fama doméstica.
João da Esquina sentiu-se derrotado, e já procurava uma saída airosa.
Bem; eu retiro-me, que sou prudente. Levo a consciência de
que fiz o meu dever. Mas o mundo saberá...
O resto da oração pronunciou-o fora da porta. Esta circunstância
impossibilita-me de informar o leitor sobre o que o mundo tem de vir
a saber a respeito do tendeiro.
Que lhe parece esta, sr. reitor? disse José das Dornas, mal
o viu sair. Havia o meu Daniel de...
O teu Daniel é um doido; e se isto assim continua, há-de vir
a fazer a tua desgraça.
Mas uns versos que mal fazem ? e então àquele cata-vento da
Chica do tendeiro, que é mesmo... O Senhor me perdoe.
Homem : a coisao está nos versos. O que eu digo é que
Daniel tem devereso sagrados, entrando no seio das famílias, como
s os párocos. E se as mãos, que devem levar o remédio, espalham
a peçonha, a maldição de Deus desce sobre elas. Quem abrirá as por-
las da alcova, onde padeça uma filha, uma esposa ou uma irmã, ao
médico queo tem força para sufocar as paixõess do seu cora-
ção? Fá-lo-ias tu? Não, nem eu. Quanto mais santa é uma missão neste
mundo, José, mais se rebaixa e avilta quem a aceita sem lhe ter com-
preendido o alcance. O mau padre é o pior dos homens; e parece-te
que será muito melhor o médico imoral? Pensa nisto, e diz-me se
Daniel merece grandes desculpas.
As palavras do reitor tinham o poder de calar no ânimo de José
das Dornas, como as de ninguém.
O lavrador baixou a cabeça, e perguntou humildemente :
Então acha V. S." que Daniel deve casar com a...
o digo tanto ! respondeu com vivacidade o reitor. Ali
houve cálculo neles, conheço-os há muito ; e espero que da parte de
Daniel nada mais se deu além da loucura dos versos, queo vale
nada afinal. Mas que lhe sirva isto de aviso.
Se o sr. reitor lhe fosse ralhar...
Onde está ele ?
Deve estar lá dentro no quarto.
O padre foi ter com Daniel.
XXIV
A
vida que, por aquele tempo, Daniel passava na aldeia era de
uma monotonia capaz até de saciar as exigências do homem
mais indolente e ocioso.
Vejamos em que se ocupava o nosso herói, enquanto, sem o sus-
peitar, estava sendo objecto do momentoso diálogo, do qual, no capí-
tulo antecedente, nos aventurámos a ser cronista.
Para isso tomemos a dianteira ao reitor e entremos, antes dele,
no quarto de Daniel.
o sei se é a voz da consciência a que me está a bradar que vou
cometer uma indiscrição.
A ociosidade absoluta imprime de ordinário aos actos do homem
certa feição pueril, que ele procura sempre ocultar aos olhos
estranhos.
As pessoas mais sisudas e gravesm momentos na vida, durante
os quais, as consigo, se entregam a distracções de criança.
É possivel, pois, irmos encontrar Daniel em um dos tais momentos ;
e talvez que o possamos, por essa forma, prejudicar no conceito dos
eitores. Mas, por quem são, lembrem-se que, em horas de ócio e
enfado, ouso eu afirmá-lo,om sido também demasiado escrupu-
osos na escolha de passatempos; e essa consideração decerto os
àrá indulgentes.
Àquela hora do dia, Daniel sentia-se morrer de tédio, debaixo
[os telhados paternais.
O caloro o deixara sair.
Quis 1er ; faltaram-lhe porém os livros. Os seus aindao tinham
chegado da cidade
Revistando os cantos e escanmhos da casa, apenas encontrou
três repertórios dos anos findos uma cartilha de doutrina cristã, uma
tábua de pesos, medidas e dinheiros, e, em género mais ameno, o
Testamento do galo, a Confissão do marujo Vicente e a Vida milagrosa
deo sei que santo padroeiro da freguesia.
Ainda assim, tudo issa leu Daniel, por um motivo análogo ao que
levou os náufragos da nau Catrineo a «deitarem sola de molho para
o outro dia jantar».
Esgotado este pecúlio literário, lembrou-se Daniel de escrever
cartas. Encontrou porém o tinteiro muito pobre de tinta; essa, amarela
e bolorenta; e, pior que tudo, uma pena de pato de tantos caprichos,
que lhe fez perder logo a paciência.
Veio para a janela ; e, durante algum tempo, divertiu-se a atirar
biscoitos a um cão, que andava solto pela quinta. As galinhas, patos,
pombos e perus, que havia em abundância na casa, corriam tumultuosa-
mente a disputar ao quadrúpede as migalhas, as quais ele defendia com
unhas e dentes.
Este jogo de circo, em miniatura, encantava Daniel. Afinal can-
sou-se dele também e fê-lo cessar.
Vendo então um gato em pachorrento repouso, no alto de uma
ramada distante, tomou um espelho, e, por meio dele, fez cair sobre a
cabeça do sonolento animal os raios ofuscadores daquele sol de Agosto.
O gato, assim despertado, abriu os olhos, mas fechou-os logo, e
desviou a cabeça para se furtar àquela pouco agradável impressão.
Depois de vários movimentos, sentindo-se sempre perseguido por o
mesmo reflexo, ergueu-se, espreguiçou-se, aguçou as unhas na madeira
da ramada, e, voltando-se para o outro lado, ajeitou-se com o manifesto
intento de concluir o sono interrompido.
Impossibilitado, por esta evolução do gato, de continuar a incomo-
dá-lo da mesma forma que até ali, Daniel fez-lhe pontaria com uma
maçã verde, eo certeira que o projéctil foi bater em cheio nas costas
do animal, que num salto desapareceu.
Terminou para Daniel mais este divertimento.
No peitoril da janela, descobriu, porém, uma formiga. uma for-
miga ! Que valioso achado naquelas alturas !
A providência dos desocupados velava decerto por ele.
Procurou logo uma migalha deo e pô-la na passagem do labo-
rioso insecto.
A formiga parou, tenteou com as antenas o estorvo, assim
de repente lançado no seu caminho, examinou-o de todos os lados,
depois, talvez por capricho porque até os insectos têm, a meu
ver, seus caprichos deu-lhe para desprezar o alimento e deitou a
fugir.
Daniel insistiu, colocando-lhe outra vez oo na passagem; o
mesmo exame da parte da formiga, e a mesma rejeição final. Nova
tentativa de Daniel foi ainda seguida do mesmo resultado. Era de mais
para a sua paciência; com um sopro fez voar migalha e formiga pela
janela fora.
E, mais uma vez, ficou sem entretenimento.
Pôs-se a passear no quarto : primeiro, descrevendo ziguezagues ;
depois, procurando conservar oss na linha de juntura de duas tábuas
do soalho ; em seguida, medindo escrupulosamente a passos regulares
o comprimento e a largura do rectángulo do aposento; e, feita esta
última operação, multiplicou os resultados obtidos, como se tomasse
muito a peito o cálculo daquela área.
Completa esta tarefa, e, depois de alguns bocejos expressivos
de enfado, procedeu ao trabalho,o menos importante, de equilibrar
na ponta do dedo mínimo uma vara de marmeleiro.
Cansou-o cedo a violência do exercício, no qual de mais a mais
o foi muito lêliz ; este mau êxito desgostou-o como se naquilo tivera
posto a sua reputação.
Acendeu um cigarro comprado no único e mal fornecido estanco
da terra. O papel parecia, porém, apostado a impacientá-lo, era incom-
bustível ; o tabaco tinha crepitações, que aos ouvidos de Daniel, soavam
como risadas de mofa ; e os lumes prontos, aqueles perfeitos e elegantes
lumes prontos de pau, primitivos modelos da indústria nacional, bem
conhecidos des todos, perdiam a cabeça à primeira tentativa feita
para os inflamar... faziam-na perder também a Daniel, diria eu, se se
usassem ainda os trocadilhos.
Chegou a despejar uma caixa para acender o cigarro, e este
ardia-lhe só de um lado. Afinalo fumou.
Para desabafar a sua impaciência, trauteou toda a música italiana
que a memória lhe armazenava, e acabou por cantar em voz alta a ária
de Gennaro na Lucrecia:
Di pescator ignobile
Esser figliuolo credei.
Nisto, chegando à janela, viu que os moços da lavoura estavam
todos a olhar para cima, boquiabertos, admirando aquele acesso de
fúria musical.
Bom pensou Daniel.—Estou dando escândalo, e a arriscar
a minha reputação de homem sisudo.
E calou-se, tocando com os dedos um rufo no peitoril da janela.
Depois passeou, sentou-se, erguèu-se de novo, e tornou a passear.
Achando por acaso uma pedra de giz, escreveu distraído, na
porta da janela, as seguintes palavras:
Coge-Çofar Sumatra Telescópio Manon Lescaut.
O oculto fio lógico, que encadeava estas quatro palavras na mente
de Daniel, é um mistério que euo sei decifrar.
O giz gastou-se.
O doce vida de aldeia ! exclamou por fim Daniel com amar-
gura. — Ó sonho dourado dos poetas de geórgicas e idilios, como eu
me estou deliciando em ti ! Eis a secura quies, os otia in latis fundis e os
molles somni, de que fala o poeta. É isto! Ora eu sempre queria que
aquele bom do Virgílio me dissesse o que se há-de fazer no campo a
estas horas do dia? Que vida! que vida esta, meu Deus! Que vida!
e que futuro !
Ao dizer isto, lançou casualmente os olhos para o leito, e, como
se este lhe desse a resposta ao que ele queria perguntar ao cantor de
Eneias, deitou-se.
Deitou-se de costas, e pôs-se então a contar as tábuas do tecto.
Contou dezassete.
Dezassete, noves fora, oito disse insensivelmente Daniel.
Depois reparou que eram oito os vidros da janela, e admirou lá
consigo muito esta, na verdade admirável, coincidência.
um resultadoo curioso animou-o a prosseguir em observações
análogas.
Preparava-se agora a contar as cabeças dos pregos, que via
pelo tecto, porém uma mosca importuna, teimando em pousar-lhe na
testa, veio perturbá-lo neste ponderoso exame, e obrigou-o a desistir.
Por acaso, fitou então os olhos em uma espécie de mancha escura,
que estava na parede fronteira. Ao princípio, olhou-a distraído, mas
pouco a pouco, a atenção empenhara-se naquilo, como se em objecto
de grande monta.
A distânciao lhe permitia distinguir o que fosse.
É uma nódoa de humidade decerto disse Daniel consigo
ou não... é um insecto talvez... Maso se move?... Seja o que for...
E desviou os olhos.
Daí a pouco estava outra vez a olhar para.
É um insecto, é... maso imóvel!...
o pôde deixar de soprar-lhe, ainda que sem probabilidade
nenhuma de o atingir, pela distância a que lhe ficava.
A mancha negrao se moveu.
o é insecto pensou Daniel.
E outra vez retirou a vista daquele ponto, para, passados instantes.
a levar de novo.
Mas a forma é de insecto...
E ergueu meio corpo e estendeu a cabeça para o sítio. Nao
pôde distinguir ainda o que fosse aquilo.
Tornou a deitar-se, simulando a resolução de seo importar
mais com o problema.
Mas a curiosidade irritada subiu a ponto de o constranger a levan-
tar-se. Aproximou-se então da mancha da parede, e viu que era uma
mariposa escura, em um daqueles estados de imobilidade, em que
por tanto tempo se conservam às vezes. Danielo resistiu à tentação
de lhe tocar ao de leve nas asas ; a mariposa fugiu.
Perseguindo-a, chegou até à janela.
Neste momento passava no pátio um dos mais velhos criados da
quinta. Daniel chamou-o e mandou-o subir.
Daí a instantes, entrava-lhe o homem no quarto.
Daniel deitou-se e disse-lhe que falasse.
O criadoo sabia em quê.
No que quiseres ; mas fala-me para ai.
O velho olhou para a janela, olhou para o ar, e disse :
Temos vento ; aquelas nuvens brancas costumam dar nisso.
Tu sabes o que é o vento? disse Daniel, espreguiçando-se.
O vento? O vento é assim uma coisa... como um... assopro
respondeu o homem.
És um asno. O vento é uma corrente de ar, produzida pela
desigual distribuição da temperatura na atmosfera.
E Daniel, dizendo isto, entre dois bocejos, olhou para o criado,
divertindo-se em estudar-lhe no rosto o efeito da definição científica.
O homem abriu a boca, sorrindo de dúvida.
Mas aposto que o meninoo me sabe dizer uma coisa?
O quê? perguntou Daniel, que estava a achar sabor ao
diálogo.
De onde vem o vento e para onde vai ?
Esta pergunta, análoga a outra que, aindao há muito, se fez em
lugar mais sério, embaraçou algum tanto Daniel.
E tu sabes, Antônio?
Eu ? !o que nem nenhum matemático. E diga-me, sabe
também o queo estes sinais que aparecem às vezes, como a semana
passada ?
Que sinais ?
Poiso viu aquela noite da semana passada a Lua a sumir-se,
que era uma coisa de estarrecer?
Ai, isso era um eclipse.
um ecus ? Pois seria um edis, seria. Mas o que é que faz aquilo ?
É a Terra.
Terra !
A Terra, a Terra, a sombra da Terra, do Mundo.
A sombra! Então...s estamos de baixo e a Lua de cima, como
lhe havemos de fazer sombra? Essao é!
Daniel, para se distrair, quis experimentar até que ponto podia
fazer compreender a este homem a idéia do fenômeno físico em questão.
Alguma coisa se há-de tentar na aldeia, em uma longa tarde de Estio.
Imagina tu aquela janela, o So. ; eu a Lua ; tu a Terra. Ora bem ;
põe-te a andar para a esquerda.
Mas se a janela é que é o Sol, que ande a janela.
o há tal ; pois a Terra é que anda.
como ! Então o Solo é que anda?
Não, homem. O Sol está parado.
O criado deu uma risada.
Muito obrigado. Para ver o Sol andar, olhe queo é preciso
ir ao Porto. Vê-se mesmo de.
O passatempo principiava já a enfastiar Daniel.
Veio interrompê-lo a propósito uma criança de nove anos, filha
do seu interlocutor, a qual, tendo ouvido a voz do pai, entrou, sem
cerimônia, pelo quarto dentro. Ao ver, porém, Daniel, parou como
hesitando.
Vem, pequena, vem cá bradou-lhe Daniel, que naquele
momento recebia com prazer toda a qualidade de diversão.o
tenhas vergonha, vem. Toma um biscoito.
A pequena ganhou ânimo com a oferta, e dentro em pouco estava
a comer biscoitos, familiarmente sentada junto de Daniel.
Então como se diz? perguntou o pai; e, como elao res-
pondesse, respondeu ele próprio : Muito obrigada, Sr. Daniel.
Tu como te chamas, pequena? perguntou Daniel
Rosa.
uma criada de V. S.
a
emendou o pai.
A pequena dispensou-se de repetir.
Olha continuou Daniel, tomando-a ao colo diz-me uma
coisa, que é da tua mãe?
Está em casa.
E tu gostas dela?
Gosto.
Gosto, sim, senhor emendou o pai.
E de teu pai?
A criança olhou para o pai e pôs-se a rir.
Diz assim disse-lhe este : Também gosto, sim, senhor.
Também gosto repetiu a pequena, suprimindo, como uma
inútil excrescencia, o resto da frase.
Mas o teu pai é um tratante.
A criança sorriu.
Diz:o é, não, senhor ensinou-lhe o pai.
o é repetiu a criança.
, é..
o é; vossemecê é que...
Ah ! atalhou o velho. Feia ! issoo se diz.
Tu sabes adivinhas, Rosa? perguntou Daniel, rindo.
Sei.
Sim, senhor corrigiu ainda outra vez o velho.
Ora vamos lá a uma adivinha.
A pequenao se fez rogar.
Então diga lá o que é esta :
Altos castelos
Verdes e amarelos?
Isso é decerto a casa de um brasileiro respondeu Daniel.
A criança pregou-lhe uma risada, e, toda satisfeita, exclamou:
Boa ! É uma laranjeira.
Ah ! Ninguém havia de dizer, Vá lá outra.
Que é, que é, que
Alto está, e alto mora,
Todos o vêem, e ninguém o adora?
Daniel ergueu a cabeça, a fingir que meditava no enigma; viu
que o pai da pequena lhe faziao sei que sinal com o dedo. Seguindo
a direcção, que lhe pareceu indicada assim, Daniel parou a vista em um
pinheiro longínquo, e disse :
É um pinheiro.
Pai e filha deram uma risada.
É um sino disse a pequena.
Pois nem viu que eu apontava para a torre ?
E esta ? continuou a criança :
Mil marinhinhos, mil marinhões,
Dois parafítas. e quatro chamões?
Isso agora é que tem mais que se lhe diga ! Que língua vem
a ser essa? Marinhinhos e marinhões, e que mais? que mais?...
É um boi, é um boi respondeu a rapariga, a quem faltava
a paciência para ver estar a pensar muito tempo.
um boi! sempre quero saber como é que isso è um boi. Mil
marinhinhos, um boi?
Mil marinhinhos,o os pêlos.
Ah !... E mil marinhões ?
o os pêlos maiores respondeu o pai.
Dois parafítaso as gaitas continuou a filha.
E então, provavelmente, os quatro chantões...—ia a dizer
Daniel.
o as pernas concluíram pai e filha.
Pois essa, de todas é a mais bonita disse Daniel, que efecti-
vamente, no estado de espírito em que se achava, encontrou certo
sainete de originalidade no disparatado enigma,o popular no Minho.
Neste tempo entrou Pedro no quarto ; o criado velho retirou-se,
levando a filha consigo, e os dois irmãos ficaram sós.
XXV
P
EDRO era caçador e dos apaixonados. Dizendo eu isto¿ já o leitor,
seo é um homem fadado por Deus para felicidades excep-
cionais cá na Terra, deve imaginar em qual assunto falaria ao
irmão o primogénito de José das Dornas.
De facto, quem haverá aí que, por mais de uma vez,o tenha
visto irem-se-lhe duas horas seguidas, pelo menos, duas horas de
tempo precioso, a escutar uma dessas intermináveis descrições de
episódios de caça, de astucias de galgos e perdigueiros, de singula
ridades de tiros ; de manhas de lebres, galinholas, garças e perdizes,
com que Nenrods desapiedados fazem cair sobre seus irmãos em
Adão todo o peso da sua paixão venatoria?
Ao princípio acolheu Daniel de bom grado a nova diversão que
lhe oferecia o assunto, ao qualo era de todo adverso também. As
duas primeiras aventuras de caça escutou-as com atençãoo afectada.
Tratava-se de uma caçada de lebres, na qual Pedro obrara mara-
vilhas, com a coadjuvação de um cão, de que ainda agora sentia
saudades.
Era um longo romance, que daria para muitos capítulos. Permi-
tam-me que lhes registe aqui ao menos o argumento, o qual, mutatis
mutandis, serve para todos os do mesmo género.
De como se originou o projecto de caçada O que se disse por
essa ocasião Escolha da época Princípios gerais que devem
guiar o caçador nessa escolha Descrição da partida Enumeração
e descrição dos caçadores Apreciação filosófica de suas qualidades
venatorias Divagação sobre os dotes indispensáveis ao bom caçador
Condições meteorológicas da madrugada, no dia da surtida Refle-
xões sobre a influência delas nos destinos prováveis da empresa
Esboço topográfico do campo da acção Impaciência dos cães Sinais
característicos de umo de boa raça Projecto inédito do narrador
sobre educação canina Algumas considerações sobre a melhor
qualidade de espingardas, de pólvora e vestuário mais acomodado
ao género de caça em questão Exame do problema : « se é prefe-
rível almoçar antes de partir ou no campo » Primeiros indícios de
caça Alvitres dos caçadores Análise crítica de cada um dos alvi-
tres, concluindo pela demonstração da vantagem do narrador, o qual
prevalece sempre O primeiro tiro e a primeira lebre morta
O autor atribui, com a possível modéstia, a glória de ambos a si próprio
Novos episódios, alguns lances felizes dos companheiros e muitos
mais desastrados De como o autor deu, em certo caso, prova de
grande prudência, contemporizando, e em outro soube ser arrojado,
como devia Notável contraste nisto com todos os companheiros
Descrição de um aguaceiro, trovoada ou vadeação de um rio, e efeitos
próximos e remotos que teve sobre os caçadores De como se jantou
Amarguras estomacais e provações musculares Campanha da
tarde Bom emprego do último tiro Dificuldades que trouxe a
noite Confusão dos companheiros e frieza de ânimo no autor
Considerações sobre a maneira de se orientar no caminho um caça-
dor perdido Algumas palavras sobre o melhor sistema de cozi-
nhar a caça Preceitos do regimen alimentar doo Recapitu-
lação de tudo quanto se disse Peroração em honra da caça em
geral e da caça da lebre em particular Transição para outra
história.
Todos estes capítulos, difusamente desenvolvidos, ouviu portanto
Daniel, com mostras de curiosidade. A terceira história, porém, já o
encontrou mais indiferente ; a quarta recebeu-a com bocejos, a modo
de comentários ; a quinta com impaciência manifesta ; a sexta com inquie-
tação ; a sétima com horror horror que foi crescendo gradualmente
até à duodecima.
Pedro fazia então o elogio fúnebre do perdigueiro, que, havia
um mês, lhe tinha morrido.
Olha que era um animal aquele, Daniel, que parecia que enten-
dia uma pessoa ! Eu nunca vi bicho mais fino ! Se tu o visses no monte !
Aquilo era um azougue. um dia, tinha ido eu, o Luis do mestre-escola
e o Francisco do alferes...
Isto que horas serão ? perguntou Daniel, a ver se desviava
de si a história iminente.
Vai nas três respondeu Pedro, e continuou : Mas íamos
s todos... ai, é verdade, ia também o Domingos Cabo-mor... oh!...
mas esseo mata um pardal. Tem aquele diabo um costume...
Que insuportável calor ! bradava Daniel,o pouco à von-
tade no leito, como se fora de Procustes.
Hoje está quente, está concordou o irmão, e continuou:
Mas tem aquele diabo um costume, que, por mais que eu lhe diga,
o é capaz de perder.
Daniel colocou a almofada do travesseiro sobre os ouvidos, para
o ouvir.
O costume é o seguinte : tu sabes que no tempo das perdizes...
Foi neste momento que entrou o reitor no quarto.
No tempo das perdizes, no tempo das perdizes, tanto mentes,
quanto dizes. É manha velha de caçador. Gabo-te os vagares, Pedro !
Nem que um homem viesse a este mundo para andar de arma ao ombro
e polvorinho a tiracolo, por montes e vales, tiro aqui, tiro acolá, vida
de galgo atrás da lebre ; e a casa por aí sabe Deus como !
Isto era para conversar um bocado disse Pedro, sorrindo
a esta objurgatória do padre.
Daniel ia a erguer-se ; o reitoro lho permitiu.
À vontade, à vontade ; quem acabou de ouvir uma ladainha
a Santo Huberto, como eu imagino... ainda se fosse só imaginar!
como eu, infelizmente, sei por experiência tambémo deve sen-
tir-se com grandes forças para se ter em.
Daniel sorriu.
Mas veja, Daniel continuou o padre veja você este
seu irmão. Que homem de casa aqui se está preparando! Esquecido
a taramelar, e o trabalho na eira entregue aos criados que, quando
eu passei, bem pouco se cansavam com ele. Tudo vai ao deus-dará
nesta casa, depois que o maldito vício da caça virou a cabeça a este
homem! Olha que um chefe de família, Pedro,o é só responsável
por si, mas também por toda a sua gente parentes e criados.
Ele é que deve dar o exemplo. E eu, para te dizer a verdade,o gos-
tei nada de ver aquela doida da Maria, lá em baixo, com os meliantes
dos teus criados, que só sabem tanger violas e dançar, como ainda
agora o faziam. Eu, apesar da coisao ser comigo, que nao sou dono
da casa, sempre lhes fui ralhando, para de todoo perder o tempo.
Agora tu...
Pois os vadios estavam a cantar, e com o trabalho por fazer?
Boa dúvida ! Onde o patrão dorme, ressonam os criados. E fazem
muito bem.
Ora eu lhes vou dar já a cantiga.
E, distraído da sua paixão favorita, Pedro saiu do quarto, com
direcção à eira.
É um bom rapaz ! disse o reitor ao vê-lo sair.
Isso é. Pedro há-de vir a dar um excelente pai de família
acrescentou Daniel.
Para isso, basta-lhe o grande fundo de moralidade daquela
alma ! replicou o padre, indo buscar uma cadeira que aproximou
da cabeceira do leito, no qual Daniel, a instâncias dele, se conservava
ainda.
Daniel seguia com a vista os movimentos e gestos do padre, e
suspeitava que ele tinha alguma coisa a dizer-lhe.
A moralidade continuava este é a primeira condição para
a felicidade do homem. como pode querer que o respeitem, o que
nao sabe respeitar os outros, nem respeitar-se a si próprio?
Temos sermão pensava Daniel. Onde quer ele chegar?
De repente o reitor, como se lhe acudirá urna idéia imprevista,
disse, fitando os olhos em Daniel e em tom que procurou fazer natural :
É verdade, ó Daniel, então você tem casamento contratado, e
o dá parte à gente?
Eu?!... Casamento!...—exclamou Daniel, deveras admirado,
e sentando-se no leito.
Casamento, sim. Ainda agora mo asseguraram.
E quem é a noiva que me destinam?
uma vizinha sua. É aqui a filha do João da Esquina.
Ah ! isso sim disse Daniel, sorrindo-se e deitando-se outra vez.
Isso sim ?o leve o caso a rir, que o negócio é muito sério.
Porventurao haverá fundamentos para a notícia que me deram?
Eu tenho ido a casa dela, é verdade.
Ah!
Mas... como médico...
o está má medicina a sua ! Então que tratamento lhe
aconselhou ?
Confortativo respondeu Daniel, gracejando.
Ah ! e o boticário entenderia as receitas que escreveu ?
Nem todos os conselhos medicos precisam do auxílio do boti-
cário. Os banhos do mar, os passeios, os leites de jumenta, e as dife-
rentes prescrições do tratamento moral, por exemplo.
Estou vendo que foi um tratamento moral o que fez.
Exactamente.
Olhem que cegueira a do João da Esquina, e a de seu pai,
e a minha até, queo vimos que era uma carta de guia para bom
caminho, uns mandamentos para a salvação do corpo, e nao sei se
da alma também, o que ainda há pouco lemos !
O quê? Pois leram?...—perguntou Daniel com vivacidade,
e erguendo-se outra vez.
Lemos, sim. Maso entendemos. Veja : a mim pareceu-me
aquilo uma coisa desaforada; e ao João da Esquina, então? Esseo
descansou enquantoo teve des a promessa solene de que o obli-
garíamos, a si, a uma reparação.
Daniel tinha já oss no pavimento.
uma reparação! Porquê?... A quem?...
Olhem que inocência ! Precisa talvez que eu lhe responda ?
E que espécie de reparação hei-de eu...?
A única devida a uma rapariga, a quem...
A quem...?
Cuja boa fama se perdeu !
Então acusam-me de ter perdido a boa fama daquela menina,
e querem-me constranger talvez a casar com ela ! exclamou Daniel
sobressaltado, e pondo-se a pé num ímpeto, como se o picasse uma
víbora.
Quem mais o constrangerá, há-de ser a consciência, se ainda
o emudeceu de todo em si.
o constrange, nao.o me julgo moralmente obrigado a
reparação de qualidade alguma. A menina Francisca... tem uma cabeça...
bonita, na verdade, realmente bonita...
Está bom, está bom. Que tenho eu com essas bonitezas? Isso
o vem agora a nada.
Bonita, digo eu, mas leve, leve como uma bola de sabão
continuou Daniel.
É defeito de muita gente.
Achei-a triste,o triste por ser trigueira... veja que doidice
aquela!.., que entendi...o entraria isso nos meus deveres de
médico ? entendi que a devia curar. Ora, pensando que para esse
efeito valeria mais um galanteio do que todas as drogas medicinais...
Então, então...—disse o reitor, um pouco despeitado com o
tom leviano de Daniel deu agora em gracejar comigo?
o gracejo. É que realmente o meu procedimento...o
digo que fosse de uma sisudez exemplar, mas nao merece as cores
negras com que lho pintaram, nem reclama as medidas extremas e
violentas que me propõem. Um casamento impossível!
Impossível ! O que ai vai !o o faziao fidalgo ! Com que
então...
Olhe, sr. reitor disse Daniel, tomando um ar mais sério
vou falar-lhe com tôda a sinceridade. Eu sou bastante leviano ; conheço
que o sou. De ordinário,o me canso muito a calcular consequên-
cias, antes de dar um passo qualquer. Caminho de olhos fechados em
muios actos da vida, e sobretudo quando só eu lhes posso vir a sentir
os efeitos maus. Mas há uma coisa em queo me costumo a pensar
levianamente. É no casamento. Se um dia me vir casado...
Rezarei a todos os santos por sua mulher ! Estou certo que
será bem preciso.
Se um dia me vir casado, suponha que encontrei uma mulher,
por quem sinto alguma coisa mais além do amor, por quem sinto o
respeito e a confiança que se devem a umae de família.o tenho
sido muito escrupuloso em contrair certa ordem de ligações, é verdade ;
porém nunca me lembrei de fazer dessas mulheres que amei, nem
quando a paixão me cegava mais, os anjos familiares a quem entre-
gamos o nosso futuro inteiro. Neste sentido tem-me espantado o arrojo
de muitos. Eo é isto tenção formada em mim contra o casamento ;
mas é que acho muito grave a missão de esposa e de mãe, para a entre-
gar assim levianamente em quaisquer bonitas mãos, só porqueo
bonitas.
Isso lá é verdade disse o reitor, queo previa que nestas
palavras aprovadoras assinava a sua capitulação.
Daniel, ainda que tivesse sido sincero no que dizia,o desesti-
mou ver assim o reitor quase voltado para o seu lado, e prosseguiu
com mais ardor:
Ora quem quiser que tente fazer daquela menina, que sabe
os verbos, uma boae de família ; eu por mim é queo farei a
experiência. Era uma tremenda responsabilidade que tomava para
com meus futuros filhos.
Não,o vamos também agora a fazer da pequena pior do
que ela é observou o reitor. A cabeça é um pouco estouvada,
sim, mas o fundo é bom, e passados anos... Mas, homem dos meus
pecados, se você pensa assim e nissoo serei eu que lhe diga
que pensa mal para que se mete nestes enredos ? Para que dá oca-
sião a que os outros se julguem com direito a...
Tem razão, sr. reitor. Euo me quero apresentar como ino-
cente. Digo humildemente: peccavi. Mas que quer? Onde se encon-
tram facilidades... nem todosm força para se vencer. E depois, olhe
que nos faz falta deveras a capa egípcia de José, para a sacudir dos
ombros em ocasiões de aperto.
Adeus ! Aí torna com as suas ! disse o reitor, custando-lhe
a disfarçar um sorriso.
O certo é, porém, que o padre estava aplacado. Tranqüilizou
Daniel, contando-lhe tudo o que tinha sucedido. Fez-lhe um longo ser-
o de moral, afirmando-lhe no fim que, seo fosse por saber a famí-
lia Esquina « useira e vezeira » nestas tentativas de especular casamen-
tos de vantagem, e nem sempre por meios justificáveis, seria menos
indulgente.
Daniel fez voto de emenda, e protestou ser aquela a sua última
rapaziada.
Graças, porém, à loquacidade da Sr.* Teresa, a história dos versos
transpirou e causou escândalo na aldeia.o se falou em outra coisa,
durante algumas semanas. Os pais olharam Daniel com desconfiança;
os rapazes, com ciúme ; as raparigas, com curiosidade. O trio de lín-
guas da casa dos Esquinas cantou a palinodia a respeito de Daniel,
e com valentiao menor do que a empregada nas loas, com que pri-
meiro o tinham celebrado.
Por todos os lados da aldeia ressoaram os coros. O nível da repu-
tação de João Semana subiu no conceito público. Daniel confirmou a
sua reputação de libertino e de homem perigoso. Ele é que era indi-
ferente a isso tudo. Dava-lhe poucos cuidados o futuro da sua vida
clínica assimo ameaçado. Continuava gozando, com resignação, senão
com prazer, os ócios daquele viver de morgado. As suas maiores dis-
tracções eram o passeio, a caça e a pesca.
Na menina Francisca jáo pensava. Desprestigiou-a de todo
aquela conspiração matrimonial. Do ódio, com o qual daí em diante o
honraram os progenitores da menina, nunca ele se lembrou.
XXVI
Q
UANDO contaram a João Semana o que se passara entre Daniel
e a família dos Esquinas, o velho cirurgiãoo o quis acreditar.
Teve, porém, de ceder à unanimidade das opiniões, e
entãoo se fartou o nosso bom homem de benzer-se de espantado.
João Semana era intolerante em coisas de moral, e principalmente
médica. Para bons ditos, anedotas e contos, ainda que às vezes tem-
perados com o sal de Bocácio, de La Fontaine e da rainha de Navarra,
tinha grande indulgência o velho clínico, que, por toda a parte, os
contava também, sem escolha de auditório, nem de ocasião ; mas a
menor aventura que de longe sequer, se aproximasse do género das
de que ele fazia crónica deo boa vontade, dificilmente encontraria
remissão no seu tribunal. Se ou era um colega, crescia então de ponto
a austeridade. Por isso o procedimento de Daniel encontrou nele um
severíssimo juiz.
Forçoso é, porém, dizer que uma circunstância havia em todo
aquele episódio, que, mais que nenhuma, o escandalizara. De facto,
conquanto manifestamente oo dissesse, o que em extremo o irri-
tava era ter Daniel caído na fragilidade de fazer versos. João Semana
o tinha em grande conta de coisa séria a poesia; e então poesia
daquela ! Ainda se fosse um soneto,. O soneto tem um aspecto sério,
grave e discreto, queo derroga a dignidade de ninguém. Qualquer
desembargador, cónego, ministro de estado honorário, ou lente jubi-
lado quatro das mais sérias entidades sociais pode fazer um soneto,
sem agravo da sisudez oficial; mas aquela poesia travessa, ligeira,
folgazã, de Daniel, poesia de um género novo para João Semana, poesia
sem musas nem Apoio, fê-lo sair fora de si.
Joana teve que o ouvir naquele dia.
Aí está o que você faz, aí está dizia ele por sua causa,
pela desastrada lembrança que teve de mandar aquele doido em meu
lugar, é que tudo isto sucedeu. Sempre tem lembranças !
Deixe, Sr. João, olhem a grande coisa! respondia a criada.
Ora ! afinal de contas,o passa de uma brincadeira. Fosse a rapa-
riga sèriazinha, eo tivesse aquela cabeça ques todos sabemos,
que já nada disso acontecia.
Elao é que tem a culpa.
o tem? Pois quem? Ele?o que ele é rapaz, Nada lhe
fica mal.
Que diz você ? Nada lhe fica mal ? Então um cirurgião ou um
médico pode lá ter essas liberdades? Onde é que se viu um homem
da nossa posição fazer versos?o tem vergonha.
Ora adeus !o rapazes.
E a dar-lhe !o rapazes,o rapazes, e acabou-se. Boa des-
culpa ! Essas e outras e que deitam a perder a classe.
Mas que perde o Sr. João Semana com isso?
Que perco ? !
O facultativo, por mais que fez,o conseguiu efectivamente
dizer o que perdia; por isso, passado algum tempo, continuou:
o é bonito aquilo, não;o é.
Pois sim,o digo que seja ; mas com os anos passa-lhe o
fogo. Verá.
Em geral, nos tribunais femininos, os delitos da natureza daqueles
de que João Semana acusava Daniel,o julgados como Joana acabava
de julgar este. Grande magnanimidade para com o homem e severo
rigor para com a mulher. Entrem lá na explicação do facto os que o
tiverem estudado. Eu, por mim, registo-o apenas.
Houve longa discussão entre a criada e o amo, a este respeito,
discussão queo deu em resultado a vitória a nenhum dos conten-
dores facto vulgar em quase todas as discussões. Ela suscitou,
porem, em Joana o desejo de se informar melhor das particularidades
do delito e da extensão dele.
Em cumprimento deste desejo, tomou a criada de João Semana
a sua capa de pano e partiu, logo que pôde, a colher noções.
Depois de muito andar, de muito perguntar e ouvir, e de muito
ralhar, em defesa de Daniel, ainda que de si para si a lisonjeasse um
pouco a comparação, que todos estabeleciam entre ele e João Semana
em grande proveito do último, deu consigo a Sr." Joana... aonde? Em
casa das duas pupilas do reitor.
Foi Margarida quem lhe falou. Passados os usuais cumprimentos,
e depois de tentar recusar o oferecimento do cálice de vinho que Mar-
garida lhe fazia, e que afinal sempre aceitou, trouxe a Sr.* Joana à con-
versa o assunto que a preocupava.
Então, diga-me cá uma coisa, menina. Que lhe parece o nosso
cirurgião novo?
Margarida fitou os olhos em Joana, como para adivinhar-lhe nas
feições o sentido da imprevista pergunta.
Que me parece? Que me há-de parecer?
Sim;o acha que está um bonito médico para uma rapariga
doente o mandar chamar? continuou Joana, sorrindo.
Ignorando ao que a velha criada de João Semana queria aludir
a pupila do reitor, a seu pesar, sobressaltou-se com esta interrogação.
Mas... porque me pergunta você isso?
Poiso sabe ? ! Ora a menina, que há-de andar sempre tora
deste mundo ! Aposto queo sabe o que por aí vai com o Daniel ?
o respondeu Margarida, sem já poder disfarçar a sua
curiosidade, à qual certa inquietação, por ela mesma mal explicada.
se vinha misturar.
É o que eu digo ! tornava Joana.
Mas então que há ?
A Sr." Joana com a melhor vontade informou Margarida da his-
ria da menina Francisca: já se sabe que com muita severidade de
comentários para ela, e a costumada indulgência para com Daniel.
Aquela bandeira de torre dizia ela volta-se para onde
lhe sopram. Louvado seja Deus !o há olhos para que seo enfeite.
E ainda o acusam a ele ! Faz muito bem ; é rapaz. Eu sei que para cirur-
gião devia ter mais juízo, devia; mas, ora!... hoje em dia já seo
repara nessas coisas. E depois, ele é uma criança, e se a Chica lhe
o desse trela... estou que seo atreveria a... Em todo o caso, menina,
sempre é bom trazê-lo de olho. Aquela cabeça, benza-a Deus,o
vale grande coisa, não. Sempre assim foi. como a Clarita lhe casa agora
na família, é natural que ele venha por aqui. Cautela, menina! Eu bem
sei que com certa genteo faz ele farinha, mas..
Margarida forcejou por sorrir às recomendações de Joana, mas
conseguiu-o mal. Aquelas palavras atravessavam-lhe o coração.
Afligia-a a leviandade de Daniel.
Estava-lhe, pois, destinada a cruel provação de um desengano
destes ?
As almas delicadas, como a dela, sofrem intensamente, sempre
que vêem projectar-se uma sombra na imagem daqueles a quem as
suas afeições iluminavam de ideal. Ver abaixar-se à região das pai-
xões menos elevadas e nobres o coração que se tinham costumado
a fantasiar, palpitando só de generosos instintos, é para as ferir de
desalento ou para as atormentar de desespero.
Joana continuava:
A menina ri-se ! É o que eu lhe digo.o lhe dêem muita con-
fiança.o que ele tenha mau coração. Credo ! Conheço-o de pequeno.
Aquiloo faz mal a uma pomba, mas enquanto ao mais... O padre
Santo Antônio nos acuda! Eu digo, que se eu fosse rapariga... Mas...
que tem, que estáo falta de cor, menina?o está boa?... que sente?
Nada respondeu Margarida, procurando mostrar-se tran-
quila.o tenho nada. É que está aqui muito abafado...
E, levantando-se, caminhou para a janela, a disfarçar a sua per-
turbação e a respirar o ar mais livre, que chegava dali, batido pela
folhagem das árvores.
o que olhe que sempre hoje está um calor ! disse Joana.
Mas isso também há-de ser debilidade. A menina foi sempre de
pouco comer. Beba uma água de caldo, que isso passa-lhe. Ou serão
vertigens ? Olhe queo é outra coisa. Eu também as tenho e daquelas !
Às vezes parece que se me parte a cabeça. É como se me tropitasse cá
dentro um regimento de cavalaria. O que é muito bom para isso... sabe?...
o se pode calcular para que longa enumeração de receitas
tomava fôlego a Sr." Joana, cujos conhecimentos terapêuticos a convi-
vência com João Semana enriquecera, se Margarida ao interrom-
pesse, dizendo-lhe da janela:
Mas quern sabe lá se a inclinação do Sr. Daniel por essa rapa-
riga é sincera?
E, ao dizer isto, passava ao pela fronte, como se de facto a
tivesse tomado uma vertigem.
Boa ! exclamou Joana. Sempre tem coisas ! A menina então
o sabe nem quem é o Daniel, nem a Chica do Esquina.
Então ele é assim incapaz de gostar de alguém ? perguntou
Margarida, com afectada indiferença.
Ele? Ele gosta de todas. Lá por isso... Vá perguntar ao sobri-
nho do regedor, que viveu com ele quando andou lá no Porto a estu-
dar para padre... e olhe que também saiu um padre!... de se lhe tirar
o chapéu ;o tem dúvida nehuma... mas vá-lhe perguntar quem é o
menino. Gostar da Chica !...
Neste ponto, a Sr.* Joana fez um gesto, muito seu: fungou ruido-
samente, torcendo o nariz, fechando o olho esquerdo e prolongando
o lábio inferior—conjunto de sinais fisionômicos que valia um discurso.
Em seguida continuou :
Olhe que ele soube-me muito bem dizer, no outro dia, que
só lhe fazia conta mulher que tivesse cem mil cruzados e que a queria
da cidade. E ia agora gostar da Chica? estava indo! A menina
está a ver.
Esta conversa torturava Margarida. Joana, sem o saber, era
de uma crueldade inquisitorial. A sua loquacidade prometia longa
duração, se as badaladas do meio-dia, na torre da igreja paroquial,
ao viessemr em sustos de chegar a casa depois de seu amo.
Ai, meio-dia já ! Senhor me dê paciência exclamou ela, jun-
tando as mãos. — E eu que tenho o jantaro atrasado! Adeus, menina,
adeus, sem mais.
E tomando, toda açodada, a capa que tinha pousado, e ajeitando
à pressa o lenço engomado que trazia na cabeça, ia a sair, rosnando
a oração meridiana :
Bendita e louvada seja a hora em que meu Deus, Nosso Senhor
Jesus Cristo, padeceu e...
Mas ao transpor o limiar da porta achou-se inesperadamente em
frente de Clara, que a obrigou a parar.
Segundo o costume, vinham radiantes de alegria as simpáticas
feições da irmã de Margarida.
Ao ver Joana, saiu-lhe dos lábios uma exclamação de prazer:
Viva! Jáo há quem a veja, Sr." Joana! Eu até principiei a
rezar-lhe todas as noites por alma um padre-nosso e uma ave-maria.
Joana, a quem tanto quadrava este gênio folgazão e descuidado
de Clara, tinha por costume fingir, na presença dela, que oo podia
sofrer ; mas o jeito que, a seu pesar, lhe tomava a boca, inutilizava-lhe
a dissimulação.
Olhem os meus pecados ! disse ela, voltando para a sala.
Ainda mais esta ! Boa te vai ! Estou bem aviada !...
Clara pusera-se a olhá-la com atenção e espanto afectado.
Então que tafularia é esta?! Lenço novo de cassa! Já reparaste,
Guida ? E arrecadas ! Ai ! Estou para morrer ! O mundo perde-se !
.gora é que eu o digo.
É para que veja disse Joana, custando-lhe a manter a
seriedade.
Ó Joana, você irá casar-se?
Olhem, olhem... ela ai vem com as suas tolices! Tenha juizo.
Não, mas... sério, isto tem que se lhe diga... E penteada! Ai,
e penteada!
Que penteada? que penteada? Cuida que todaso como
ela. Sempre está uma mulher casada!
Ainda não, se faz favor.
Pobre do homem! Melhor sorte merecia aquele Pedro, que
o bom mocinho era... e é.
Ah! como ela diz isto? Querem ver que... Queres tu ver, Guida,
que... Pois será com ele? Veja o que faz, Joana, olhe que eu...
Adeus ! Sabe o que mais ?o estou para a aturar. Deixe-me
r embora, ande.
Embora? Isso é queo vai daquio cedo.
Ih Jesus, Senhor ! deixe-me ir, que é meio-dia, e faz-se-me
arde. O meu amo está à espera... Valha-me Deus! Ora o que me
havia de aparecer?
O seu amo ? Ainda há pouco ele ia para a banda dos
Casais.
Num momento põe-se em casa. Deixe-me ir, menina.
o vai.
Olhem que praga ! Então ? Istoo tem graça nenhuma.o
ê ali a Margaridinha como tem juízo?
Venha-me com isso a ver se me mete em brios.
Ai, cuida que eu tenho os seus cuidados? Menina, deixe-me ir
embora. Que seca !
Deixa-a ir, Clara, que pode fazer falta—disse por fim Marga-
da, que as estiverà escutando, distraída.
Vá lá ; em atenção à Guida. Mas há-de vir então pelo quintal,
que lhe quero dar um ramo para o Sr. João Semana. -
o que ele está agora mesmo à espera dos seus ramos ; nem
orme com a lembrança.
Há-de levar-lhe um ramo do meu mando. Já disse. Amores
antigoso esquecem.
Olhe, deixe antes isso para o cirurgião novo, que esse é que
o lho enjeita.
Quem? o Sr. Daniel? Ai, é verdade... Tu sabes, Guida?
disse Clara, rindo. — A Chica do tendeiro...
Sei, sei—respondeu Margarida, erguendo-se com vivacidade.
Sempre tem uma cabecinha o tal senhor meu cunhado ! Mas
eu por mim sou ainda pelo João Semana. Olhe, Joana, diz-lhe você
que me faça uns versos também? Assim como os do outro.
Ai, vai já fazê-los ; pode esperar por isso.
Uns versos como os tais da... trigueira...o eram da trigueira?
Sim, sim ; tudo se há-de arranjar.
É verdade, que eu já sei uns que serviam.
E, saindo com Joana para o quintal, Clara pôs-se a cantar :
Morena, morena,
Dos olhos rasgados,
Teus olhos, morena,
Sao os meus pecados.
XXVII
M
ARGARIDA ficou só na sala.
Viera aumentar-lhe a turbação, em que estava, esta
cantiga de Clara.
Andava-lhe muito ligada a idéias do passado, para a poder escu-
tar com indiferença.
Aquela toada era para Margarida como as palavras misteriosas
que, em certos contos de fadas, se diz terem o condão de evocar dos
páramos mais agrestes, jardins, florestas e palácios encantados ;
povoara-se-lhe a imaginação ao ouvi-la, um pouco de recordações
ao princípio, e depois, muito de fantasias.
Encostada ao peitoril da janela, e apoiado o rosto nas mãos,
assim ficou por muito tempo com o olhar vago e o pensamento mais
vago do que o olhar ainda.
Se o espírito, ao sair dessas exaltadas abstracções, se volta de
súbito para a realidade do presente, o desencantamento é fatal e amargo.
Entra-nos então no coração um profundo desgosto da vida, e como
que se nos quebram as forças para continuar a acção.
Estava passando por um desses estados o espírito de Margarida.
As vozes joviais da irmã e os risos de Joana chegavam-lhe aos
ouvidos ; e afligiam-na aqueles sinais de alegria.
As vivas cores das rosas e dos cravos atraíam-lhe, a seu pesar,
as vistas para os alegretes do jardim, e impacientavam-na ; quase lhes
queria mal por aquele aspecto festivo.
Quando, em épocas de provação para a alma, as com os nossos
pesares e as nossas lágrimas, escutamos lá fora o ruído ou divisamos
o esplendor das festas, alguma coisa estremece dolorosamente em nós.
Sentia-o Margarida naquele instante, e tanto lhe crescia o mal
que, para fugir-lhe, ergueu-se e passeou com agitação por algum
tempo na sala.
E porque nao hei-de eu também distrair-me, como se distrai
a Clara? pensava ela. Virão já de nascimento estes gênios
assim? Mas como se há-de acreditar que o Senhor queira fazer cair
sobre a criatura, que ainda oo ofendeu, este grande castigo de uma
tristeza tamanha? Não,o pode ser. Antes creio... isso sim, que
o gênio de cada um toma a feição da vida que em criança se teve...
Uma pessoa, afinal, é como uma árvore ; enquanto nova, é que se
pode dobrar, que depois... Ali estão aqueles cedros que, de pequenos,
Clara vergou em arco ; ganharam essa forma, e hoje jáo se erguem
direitos como os outros. É assim. Quem abriu os olhos, e começou
a pensar, sem ver grandes alegrias em volta de si, pode lá aprender
a sorrir? As crianças então, que tudo aprendem dos outros, a falar,
a andar, a brincar... comoo aprenderiam também a alegria ou a
tristeza?
Nisto fizeram-na ir à janela algumas vozes infantis.
Eram quatro crianças, quase nuas, que rodeavam uma pobre
mulher, coberta de andrajos e macilenta. E elas, apesar da sua nudez
e dos seus rostos pálidos, riam e brincavam em redor da mãe, que
nem tinhao para lhes dar.
À porta das duas irmãs estava sempre sentada a caridade.o
se fechou vazia ainda desta vez ao da indigencia, aberta a implorar
ali. A pobree chorava de gratidão ao retirar-se ; as crianças brin-
cavam ainda.
Mas aío essas, que riem e brincam pensava Margarida,
vendo-as partir.—E que alegriasm elas em volta de si?... Alegrias!
antes prantos e dores. Nunca eu senti o que elas sentem: a fome, o
frio e naquela idade, meu Deus! E riem! Então sempre é certo que é
do berço que nos vem este fadário da tristeza...
E calou-se por algum tempo ; depois prosseguiu a meia voz :
Pois sim, mas há uma riqueza que elasm e euo
tive. Aquele olhar da mãe.o vi eu sorrir-lhes a mãe? Coitada! no
meio da sua desgraça aindao desaprendeu a sorrir; precisa de
risos para os filhos. É ver como eles olhavam para ela. É isso... deve
ser isso...
E tornava a passear no quarto ; depois, parando junto da janela
do lado do quintal, continuou como antes:
Deve ser isso, sim. No meio da pobreza, no meio da miséria,
pode nascer ainda a alegria ; mas é preciso que haja um olhar de afei-
ção para a criar... um olhar de mãe, sobretudo. Ai, um olhar dee
deve ser para a gente quase como um raio de sol para as flores. É ver
aquela rosa, que nasceu acolá, à sombra do muro. Como é desmaiada !
Enquanto que as outras... Bem faltas de cuidado cresceram por entre
a horta aquelas papoilas vermelhas ; quem pensava nelas ? Mas lá ia
o sol animá-las... Clara teve umae que a estremecia, teve o seu
raio de sol... eu, de bem pequena, perdi a minha... Quemo cedo
se viu órfã, como há-de ser para alegrias?
Neste ponto, entrou na sala uma rapariga, que as servia, trazendo
um ramo de ñores na mão.
Veja, menina disse ela veja o bonito ramo que eu
trouxe do campo de baixo. Vou já já daqui pô-lo ao Santo Antônio, lá
dentro.
Pois vai, vai, Maria.
E a rapariga, que era uma exposta, saiu cantando alegremente.
E esta então continuou pensando Margarida, quando ela
se retirou. Quee teve esta para lhe semear a alegria, que nunca
perde ? A pobre nem família conhece ; a gente, que a criou,o a tra-
tava com carinhos. E como ela vive! e como ri!o há dúvida pois;
o há dúvida que se vem ao mundo assim. Então eu... Oh Senhor!
Mas istoo pode ser. Que condenação, meu Deus !
E como se procurasse convencer-se de outra solução menos
desconsoladora, do problema em que meditava, prosseguiu pouco
depois :
Mas quem me diz que é isto uma condenação ? Porqueo
hei-de ver se posso tirar de mim estas idéias negras ? Olhando-se bem
claro dentro des mesmos, talvez... Vejamos: estou hoje triste; é
verdade. E porquê? Esta manhão o estava. Lembra-me que até
me ri com a Clara... Parece que é mau agouro esta alegria que sen-
timos às vezes ao acordar! Depois... Há pouco... foi depois que veio
aquela mulher... E que me disse ela? Tudo que lhe ouvio era
para isto. Não, decerto. Afinal que tenho eu com...
Aqui, o pensamento quebrou o jugo que o constrangera a seguir
o caminho estreito da reflexão, e entregou-se insofrido à mais extrava-
gante carreira.
Na posição e nos gestos de Margarida nada acusava a revolução
mental que se operara; mas, instantes depois, ela murmurava já :
Quem sabe se aquela rapariga?... Mas não,o pode ser...
E ele ? Que mudança traz o tempo ! Euo sei comoo certas memó-
rias também... Mas que admira? A vida de cidade... Quem havia de
pensar?... Parece-me que ainda o estou a ver, quando ele era criança
e vinha... Dez anos!
Absorvida em pensamentos desta ordem a veio encontrar o reitor,
que raro deixava de visitar as suas pupilas.
Em que cismas tu, rapariga? disse-lhe o padre. Santo
nome de Jesus !o posso atinar o que tanto tens para cismar. Nem
que te pesassem aos ombros grandes canseiras de família! Deita o
coração ao largo.os a Clarita? Faz assim como ela. Lembra-te
que tens vinte e três anos. Aos sessenta é que é natural pensar assim.
Margarida beijou-lhe a mão, dizendo-lhe :
Isto julgo que nem é pensar. É quase um esquecimento de
tudo, e des mesmos, em que às vezes se cai. Mas faz bem em ralhar
comigo, sr. reitor, faz muito bem. Este costume é mau. É quase uma
doença, da qual hei-de ver se me curo.
E tens juizo. Olha, minha filha, isto de pensar muito... Enfim,
o Senhor para isso nos deu a razão, mas... Queres tu saber? um dia,
veio aqui um homem, que, pelos modos, é um grande sábio, um desses
filósofos da cidade. Era domingo, e eu tinha de fazer a minha prática.
O tal sujeito foi para a igreja. Quando o vi lá fiquei assustado. Enfim...
com esta boa gente daqui, entendo-me eu bem, mas, pobre cura de
aldeia que sou há vinte anos, o que queres tu que eu possa dizer diante
de gente instruída e ilustrada, como era o tal? Estive para desanimar,
Margarida, olha que estive ; mas disse comigo : «Não, senhor, euo
devo recear.o tenho lido muitos livros, é verdade ; mas os Evan-
gelhos leio-os todos os dias. Eles me ajudarão. Poiso tenho eu lá
aquele sermão da montanha?» E fui para a igreja, e abri o S. Mateus,
e li: «Amai a vossos inimigos, bendizei aos que vos maldizem, fazei
bem aos que vosm ódio, e orai pelos que vos maltratam e vos per-
seguem». Bastou-me isto, e pus-me a falar, assim como te falo agora,
Margarida. Achava-me à vontade. Pois sabes? que é ao que eu
trouxe isto — o tal homem, de que eu me receava, foi ter comigo à
sacristía para me abraçar, e disse-me: «Gostei de o ouvir; deram-me
as suas palavras, por algum tempo, maiss consolações do que as
minhas noites de estudo». Ficou-me este dito do homem, e pareceu-me
que ele tinha consigo grande coisa a afligi-lo. Pensava de mais talvez.
Corre-se até o risco de endoidecer. Nada,o tem jeito.
Margarida sorriu, assegurou ao reitor que evitaria esse perigo,
fazendo por se distrair.
No decurso da conversa ulterior, falou-se em Daniel. O padre
aludiu à entrevista que tinha tido com ele, e procurou atenuar a culpa
do rapaz, expondo as idéias que lhe ouvira em relação ao casamento
e à escolha de uma esposa.
O resultado de tudo quanto disse foi deixar Margarida mais pen-
sativa do que antes.
XXVIII
P
ASSOU todo os de Agosto e parte do de Setembro, sem que
se celebrasse o casamento de Pedro e de Clara.
Pequenos estorvos, os quais será inútil referir aqui, bal-
daram a diligência com que andara o reitor em obter os papéis neces-
sários às duas partes contraentes.
O padre estava ansioso por proclamar, à missa conventual, os
primeiros banhos, eo cessava de interrogar o lavrador sobre o anda-
mento em que iam os preparativos domésticos para as bodas do filho.
José das Dornas dava a entender que depois do S. Miguel era a
ocasião mais favorável para a solenidade, visto que a cobrança das
rendas lhe permitiria então fazê-la com o esplendor devido.
A ansiedade na aldeia era imensa, porque todos conjecturavam
já quanto teriam de memoráveis umas bodas em casa do abastado e
liberal lavrador.
Achava-se terminada a principal colheita de milho, eo se fixara
ainda o dia em queo falada e prometedora festa deveria realizar-se.
Em conseqüência de tais delongas, à primeira esfolhada em casa
de José das Dornas assistiu ainda Pedro como rapaz solteiro.
Esta circunstânciao foi sem influência na sucessão dos aconteci-
mentos que temos para narrar.
Concorramoss também a este serão campestre, que assim
nos é necessário.
Julgo que pequeno será o número dos leitores queo tenham
assistido a uma esfolhada na aldeia, ou que, pelo menos de tradição,
o saibam a índole folgazã e traquinas deste género de trabalho, do
qual ninguém procura eximir-se ; pois antes espontaneamente correm
de toda a parte a oferecer-lhe os braços.
Eo há outros serões mais divertidos' também.
Ali todos riem, todos cantam, todos se abraçam, e se beijam até ;
e fala-se ao ouvido, e graceja-se e dança-se, e com franqueza se apon-
tam defeitos, e sem ofensa se recebem censuras, e atéo mal acolhidas
as lisonjas ; e tudo isto então, toda esta apetecível desordem, todo este
abandono de etiqueta, à vista da porção sisuda da companhia, à qual
a tolerância fecha desta vez excepcionalmente os olhos; e, a alumiar
uma tal azáfama, meio festiva, meio laboriosa, apenas a luz mortiça de
um modesto lampião, pendurado de uma trave do tecto, ou, ainda
melhor, a suave claridade do luar em campo descoberto !
Aquelas liberdades todaso permitidas, ordenadas até, pelo
código das esfolhadas.
Cada espiga vermelha, cada espiga de milhorei—como por lá
lhe chamam é a sentença promulgada contra o feliz, a cujas mãos
ela chegou.
Cabe-lhe distribuir por toda a assembléia, ou receber de toda
ela, um abraço, mais ou menos apertado ; sentença que ele de boa
vontade cumpre, principalmente quando, entre tantos abraços, há um,
pelo qual emo suspira nas outras épocas do ano.
Esta lei, digna das ordenações daquelas joviais «cortes de amor»
da Idade Média, é a alma das esfolhadas.
Dela provêm os risos, os arrufos, as recusas, as insistências, as
queixas, as acusações, os despeitos, e os ciúmes, que, ao mesmo tempo,
desordenam o serão, excitam os trabalhadores e adiantam a tarefa.
Quando um dia a máquina agrícola fizer ouvir nas aldeias portu-
guesas o silvo estridente do vapor ; quando a força prodigiosa de suas
alavancas, o movimento de suas rodas gigantes e complicadas articu-
lações dispensar o concurso de tantos braços nestes trabalhos rurais ;
quando a musa pastoril, resignada, trocar as vestes primitivas por a
blouse do artista, e esquecer as antigas cantilenas, para aprender a
canção das fábricas ; lembrar-se-ão com saudades das esfolhadas os
felizes que as puderam ainda gozar.
A onda económica adianta-se rápida ; dentro em pouco inundará
os campos. Dêem-se pressa os que ainda quiserem conhecer as velhas
usanças, para as quais está já a soar a derradeira hora.
De há muito gozavam de apregoada fama as esfolhadas em casa
de José das Dornas.
A impulsos do seu gênio prazenteiro, o velho lavrador pusera
em costume o observar-se pontualmente o rito destas festividades
campestres.
o havia ali isentar-se ninguém de cumprir a sentença a que a
sorte o sujeitasse, sob pena de ignominiosa expulsão do grêmio e
perpétua exclusão de festas semelhantes.
Homens e mulheres, crianças e velhos, amos e criados, todos
fraternizavam, todos se nivelavam aquela noite para se abraçarem ou
beijarem e até dançarem por fim.
Quemo gostava disso era o reitor, o qual todos os anos, por
este tempo, mimoseava com uma longa pregação o seu amigo José
das Dornas, mas sempre sem nada conseguir.
Os costumes populares, as práticas tradicionais encontravam no
lavrador um apego, quase igual ao que tinha para as crenças religiosas.
Parecia-lhe um sacrilégio o infringi-los.
Debalde o reitor lhe dizia:
Acaba-me com essas folganças, José. Isso é a perdição de
muita gente.o sei como tu, homem sisudo, te pões assim a brincar
com as crianças e com os moços, em termos de te perderem o
respeito.
José das Dornas limitava-se a responder-lhe:
Ó sr. reitor, deixe. uma vezoo vezes. Beijos e abraços,
quanto mais às claras, menos perigosos são. Daqueles que seo às
escondidas, é que é o ter medo. Enquanto ao respeito, sossegue, que
quando for preciso, eu sei comoi ele se faz ter aos atrevidos. E depois,
que quer ? Eu fui criado nisto.
Este último argumento é sempre o mais irresistível da lógica do
nosso homem dos campos.
Qual dos dois velhos tinha razão? Eu sei? A falar a verdade,
o acredito demasiado na inocência daqueles abraços e beijos, e
muito menos na de alguns, que, por motivos particulares, seo mais
do coração e mais tempo se prolongam; mas é também certo que,
evitando as esfolhadas, muitas ocasiões se oferecem ainda de uma
pessoa se perder, e alguma razão tinha José das Dornas ao dizer que
estas coisas, na presença de espectadores, se despojam de grande
parte da sua gravidade.
Desta vez deviam ser as esfolhadas em casa da família Dornas,
dignas da sua tradicional nomeada.
A pedido de Pedro, foi convidada muita gente. Encarregou-se
ele mesmo de formar a lista, a qual naturalmente abriu com o nome
de Clara.
Clara recebia sempre com alegria convites da natureza deste.
Margarida quis dissuadi-la de aceitar.
Que vais fazer, Clarinha? disse-lhe ela. Olha, eu, se fosse
a ti,o ia. Afinal, por mais que digam, sempre nessas esfolhadas há
liberdades e costumes, que... que...
Sabes, Guida? respondeu-lhe Clara se todos se fossem
a levar por os teus conselhos, e a dar atenção aos teus medos, podia
ser que o mundo andasse muito bem guiado e andava decerto
porém morria-se de aborrecimento por ai. É ver que nem me queres
deixar ir à esfolhada em casa de meu marido, e quando é ele mesmo
que me convida!
E quem sabe se mais estimaria queo fosses ?
Qual? Estás enganada. Supõe-lo como tu. Eu bem o digo ! Olha,
minha Guida, tuo servias para casada. Fazias-te ainda mais sisuda
do que és, sisuda e séria que nem uma abadessa de convento, e depois
havias de querer que o teu homem fosse sisudo e sério como tu.
Vai, vai, Clarinha; nem eu to posso impedir. Mas, se queres
que te fale a verdade, fico sempre a tremer, quando te vejo sair para
estes serões. As vezes há por lá desordens, rixas...
Ai, sossega. Eu te prometo queo me meterei em nenhuma.
Promete-me também queo darás causa a nenhuma tornou
Margarida sorrindo.
como queres que eu dê causa a uma desordem, doida?
como há-de ser ! Eu digo-to, maso te arrenegues. Tu tens
um bocadinho de ruindade, confessa; e, às vezes, para te divertires,
gostas de fazer perder a paciência aos outros. Ora, Pedro tem um gênio
assomado e...
Deixa-te disso. O Pedroo é homem para se finar por ciúmes
só por ver receber ou dar um abraço em noite de esfolhada ! Era o
que me faltava também!
Pois Deus vá contigo, filha; mas lembra-te que dentro em
pouco és mulher casada, e que o teu noivo está ao pé de ti.
Está descansada. E depois, sabes o que o Pedro me disse em
segredo? O irmão também faz tenção de ir à esfolhada.
Quem? O Sr. Daniel?!
É verdade. Que graça! Mas o Pedroo quer que isto se saiba
para queo lhe faltem as raparigas, com medo ou com vergonha.
Estou morta por ver como elas ficam, assim que o virem. Ora diz
tu se isto se podia perder !
Ainda pior.
Que dizes ? Ainda pior ! Pois também és das que o pensam
excomungado ? Pobre rapaz ! Quem ouvir falar a essa gente por,
há-de fazer dele uma idéia !... Poiso tem nada do que dizem. É amigo
de rir, isso sim, mas também sabe falar sério quando é preciso. Eo
ouves o que muitas vêzes o sr. reitor tem dito a respeito dele? Que
é um excelente coração, afinal.
Nem eu digo o contrário, mas...
Mas és uma medrosa, é o que tu és ; uma medrosa, que me
andas por aí sempre a sonhar sonhos negros. um dia hei-de fazer-te
falar com ele, e veras...
Ai, não,o exclamou Margarida, quase assustada.
E como dizes isso ! Que medos ! Estás como a outra gente, já
vejo. Pois admira-me em ti, queo és dessas coisas. É uma cisma
que te hei-de fazer perder, assim como tu me fizeste perder a das
bruxas, que eu dantes tinha. Lembras-te?
Horas depois, Clara despedia-se da irmã, dizendo-lhe :
Então, Guida, até logo. Eu bem queria que viesses, mas fizeste
voto...
Bem sabes que nunca sinto alegria nessas festas.
como hás-de tu senti-la, se nunca vais?
E Clara partiu, e pula va-lhe o coração de contente, quando ia
pelo caminho.
O gênio de Clara pedia-lhe isto. Eram uma necessidade para
ela as alegrias e as festas.
o se lhe coadunavam com a índole as melancolías de Margarida.
Quando, saía-lhe dos lábioso depressa o canto, como os
suspiros do seio da irmã.
E a alegria de uma, como a tristeza de outra, nem sempre tinham
motivo definido.
Vinham-lhes do coração, que parecia espontaneamente exalá-las.
Na natureza há fenómenos assim. O canto de algumas aves parece
uma lamentação, repassada de profunda melancolia; o de outras soa
brilhante, como hino festivo, nos coros da criação; e nem sempre as
primeirasm pesares de que se carpirem, nem estas júbilos a celebrar.
O canto sai-lhes assim modulado por uma disposição natural;
pois quase de igual forma, acudiam os sorrisos aos lábios de Clara e
as lágrimas aos olhos de Margarida.
XXIX
A esfolhada fez-se na eira espaçosa e desafogada de José das Dornas
e por formosíssima noite de luar claro como o dia.
O ser alumiado pelo luar é uma circunstância que redobra
o valor da festa.
Eu creio nas influências planetárias perdoem-me a fragilidade
astrológica os homens da ciência positiva. Bem sei que passou já de
moda esta crençao arreigada nos mais severos espíritos de outros
tempos ; mas, por mim, ainda meo pude resolver a romper com
ela de todo.
Penso eu que o moral e o físico da humanidade andam sob o
império de forças multiplicadíssimas, muitas das quais ainda estão por
descobrir ou estudar, eo vejo que se possa desde já excluir do
rol delas a luz desse planeta pálido,o querido de amantes e de poetas.
Digam-me, por exemplo, se uma esfolhada ao meio-dia pode ter
nunca a índole jovial das que se fazem à claridade da Lua? se nela
se concedem beijos e abraços como poucos escrúpulos? se a
gente se ri com igual vontade e franqueza? Eo me venham explicar
isto só pelo efeito da meia obscuridade, que serena as repugnancias
dos tímidos, e excita a audácia dos arrojados ; porque nunca vi eleva-
rem-se ao mesmo grau de intensidade essas ruidosas alegrias e fol-
guedos, quando a luz, ainda menos limpa de sombras, de uma só lâm-
pada ilumina o lugar do serão.
Forçosamente tem a Lua parte nisso.o sei o que há na atmosfera
em uma noite assim!
O espírito mais embotado para as suaves comoções da poesia,
parece receber então um raio de lucidez e acreditar vagamente na
existência de alguma coisa, acima dos prosaicos interesses da vida
positiva; os corações, mais fechados a arroubamentos de amor, sen-
tem-se embrandecer, e mais de um consta haver infringido, em noites
dessas, velhos e porfiados protestos de isenção.
E negam a influência da Lua ? ! No coração dão-se fluxos e refluxos
de sentimento, cuja teoria pode ter alguma coisa de comum com a do
fluxo e do refluxo dos mares. É uma vaga crença esta que me leva
a supor a Lua favorável ao amor e indispensável à alegria das esfolhadas.
E do meu lado encontro José das Dornas, que esperou por uma
noite de Lua cheia para celebrar a sua festa.
O velho lavrador tinha dedo para dispor as coisas conveniente-
mente.
um enorme monte de espigas ocupava o meio da eira. Abertas
de par em par, as portas do cabañal aguardavam as amplas canastras,
para onde se iam lançando as espigas esfolhadas.
Sentados em círculo, à volta daquela alta pirâmide, trabalhavam,
azafamados, parentes, criados, vizinhos, amigos e conhecidos, que
sempre anuem aos serões desta natureza, ainda quandoo convidados.
o havia lugares de distinção ali. Cada qual se sentava ao acaso,
ou, quando muito, conforme as suas secretas preferências.
A mais completa igualdade se estabelecera na companhia, desde
o princípio dos trabalhos.
José das Dornas, que sabia, como ninguém, manter, nas ocasiões
devidas, a sua dignidade de chefe de família, dava desta vez o exemplo
da sem-cerimónia, praticando jovialmente, até com o mais novo dos
seus criados ; e estes usavam para ele de liberdades que fora do tempo,
lhes sairiam caras. Pedro, rapaz sempre atencioso e grave no seu trato
para com os velhos, naquela noite, tendo por vizinha uma séria e madura
matrona de aldeia, requebrava-se em galanteios para com ela, e afec-
tava rendidos extremos, com grande riso dos circunstantes e de Clara,
a qual, pela sua parte, fingia uns ciúmes igualmente aplaudidos da
assembléia.
Uma velha, querendo aproveitar o seu tempo, tentou regular ali
as suas contas com Nossa Senhora, rezando uma das muitas coroas, de
que lhe estava em dívida; e, a cada passo, rompia em vociferações
contra duas raparigas entre as quais ficara e cuja contínua palestra a
fazia perder na fieira de padre-nossos e ave-marias da sua intermi-
nável reza.
Os arrufos da velha eram novo estímulo para risadas.
Às vezes saltava ao meio do círculo uma criança com grandes
bigodes, feitos de barbas de milho, e a idéia era logo apoiada e imitada
por todas as outras, com grandes embaraços ao bom e pronto anda-
mento da tarefa do serão. As mães ralhavam, rindo ; os pais faziam o
mesmo; e, disfarçadamente, punham, ao alcance dos pequenos, novos
instrumentos para idênticos delitos.
As raparigas e rapazes atiravam uns aos outros o gorgulho, que
por acaso encontravam nas espigas, o que introduzia grande alvoroço
na assembléia, e enchia os ares de gritos e de vozearias atordoadoras.
E ia assim animado o serão, quando uma circunstância, para quase
odos inesperada, veio subitamente esfriar esta fervura.
Esta circunstância foi a chegada de Daniel.
Eram nove horas quando ele apareceu na eira, ainda em trajos
de jornada, pois voltava, naquele momento, de uma excursão distante.
Saudando alegremente a companhia, Daniel pediu para si um
lugar no círculo dos serandeiros.
José das Dornas, Pedro e Clara, que havia já muito o aguardavam
com impaciência, sorriam entre si, ao verem o embaraço em que todos
ficaram com aquele reforço.
A reputação que Daniel adquirirao era de facto para lhe pre-
parar um lisonjeira acolhimento.
Os homens franziam as sobrancelhas e exprimiam, em rosnados
apartes, o seu desagrado; as mulheres de idade fitavam no recém-
-chegado um olhar, como o que lhes merecia um lobisomem ; as rapari-
gas acotovelavam-se, cochichavam umas com as outras, sufocavam os
risos e olhavam às furtadelas para Daniel; porémo houve quem se
afastasse para dar lugar ; antes se apertavam uns contra os outros, como
para lhe evitarem a vizinhança.
Daniel repetiu a reclamação, e ao mesmo tempo, corria com os
olhos as diferentes figuras, ali reunidas, como a procurar aquela cuja
proximidade mais agradável lhe pudesse ser.
O tácito indeferimento do seu pedido continuou porém. Os risi-
nhos mal abafados, as murmurações a meia voz e o som do esfolhar
das espigas, tarefa em que todos pareciam com dobrada vontade empe-
nhados, era o que se ouvia, em seguida à requisição que ele pela
segunda vez fizera.
Então que é isso? dizia José das Dornas, meio a rir, meio
despeitado. Que diabo!o haverá aí lugar para mais um? Olhem
que o rapazo está empestado.
Houve um movimento geral, como para conceder o lugar requerido,
movimento simulado porém, que, longe de abrir brecha no círculo,
ainda mais o estreitou.
Daniel principiava a preparar-se para conquistar o terreno, que
lhe negavam, e com esse intuito fitava já um espaço entre duas galantes
raparigas, que naquele momento falavam ao ouvido e riam, quando
escutou a voz de Clara, que lhe dizia do outro lado da eira:
Venha para aqui, Sr. Daniel, se lhe agrada a companhia.
E, arredando-se de uma velha meia mouca e cega, que tinha à
direita, Clara ofereceu a Daniel o lugar que ele pedia.
A esteo desagradou a colocação, e apressou-se a tomar assento
junto de sua futura cunhada.
uma tal solução foi para todos satisfatória ao termos de
exceptuar talvez muitas das raparigas, que mais repugnância tinham
mostrado em conceder junto de si o lugar pedido, mas queo desesti-
mariam vê-lo usurpado contradições de natureza essencialmente
feminina.
Daniel compreendeu a necessidade de angariar simpatias na
assembléia, que o olhava desconfiada.
Principiou por distribuir cigarros por alguns dos circunstantes,
que fumavam, e, chamando-os a cada um pelos seus nomes para o
que interrogava primeiro disfarçadamente Clara a todos dirigiu um
cumprimento, que algum tanto os abrandou.
As velhas ofereceu uma animada descrição vocal da procissão
de Cinzas, no Porto; descrição modelo, emborao primasse em exac-
tidão, nem no número dos andores, nem na designação dos santos.
No fogo do seu raptus inventivo, chegou a falar em um certo S. Macario,
bispo, com grande espanto de uma velha, cujas reminiscências da
procissão dos franciscanos nada lhe diziam de tal santo. Daniel inven-
tou-lhe uma biografia, digna de Ribadeneyra. As velhas abrandaram a
acrimonia dos seus olhares.
E os rapazes? Para com estes experimentou Daniel a receita de
Orfeu para abrandar as pedras; tentou a música.
Achou ào uma viola, e tirou alguns harpejos e executou umas
variações sobre motivos da Cana-Verde, que atraíram a si as simpatias
dos que tinham no coração verdadeiros instintos artísticos.
Para as raparigaso procurou arte de se fazer valer, porque
estava ele persuadidoo sei se com fundamento que, quaisquer
que fossem as aparências,o lhe deviam elas ter muito má vontade,
sabendo-o um dos mais entusiastas admiradores do sexo.
Apesar de tudo,o se animava o serão. Reinava ainda certo
Desde que rompia o dia
Ató a noite lechar.
constrangimento, a conversa fazia-se por grupos, e em voz quase baixa,
e mantinha-se, por assim dizer, desencadeada.
Os únicos a falarem alto, além de Daniel, que por muito tempo
z, como costuma dizer-se, a despesa da conversação, eram, às vezes,
Pedro, José das Dornas e Clara.
Esta ria ao ver a dificuldade com que Daniel conseguia esfolhar
uma espiga, enquanto ela aviava meia dúzia.
Que desastrado ! dizia Clara. Nesse andar tem que fazer.
Então como é que se arranja esta coisa ?
Assim, ora repare. Pega-se num prego...
Mas que é do prego ?
Entãoo sabia pedi-lo ? Aí tem um. Mas pega-se num prego,
e atravessa-se o folhelho assim, e depois...
A execução substituiu o resto do preceito. Em um momento estava
a espiga esfolhada e na canastra.
Está pronto acrescentou Clara.
Vamos a ver se eu sei disse Daniel. Seguro o prego ;
jronto... Atravesso o folhedo, ou tolhido, ou lá o que é... Até aqui vai
>em. E depois... e depois... e depois...
Esta repetição era devida à dificuldade que ele encontrou em
executar a última parte da operação.
Clarao se fartava de rir, e as outras raparigas riam também
com ela. Algumas faziam ouvir o seu epigrama, com menos rebuços.
Ainda assim,o se declarara abertamente a confiança, nem se
generalizara a conversa. O que cada um tinha a dizer, comunicava-o
o vizinho mais próximo ; este, se julgava a coisa digna de referência,
transmitia-a ao imediato, de maneira que todos vinham a saber, mas
sucessivamente, e pouco a pouco ; cada qual ria por sua vez, e sem
aquelas súbitas, unânimes e estrepitosas manifestações de alacridade,
desafiadas por um bom dito, ao soar imprevista e simultaneamente
os ouvidos de uma assembléia inteira.
Havia em todos vontade de modificar esta feição séria e retraída
o serão ; mas ninguém tinha coragem de empreender a revolta.
De mais a mais, nem uma só espiga vermelha aparecia a oferecer
retexto à realização deste desejo tácito de todos.
Clara foi a única, nestas condições, a quem sobraram ânimos
ara fazer alguma coisa decisiva. Levantando a voz argentina e sonora,
que todos os presentes conheciam bem, principiou a cantar:
Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar,
Tôdas as vozes de raparigas, como por impulso comum, junta-
ram-se em coro, e terminaram na mesma toada a quadra:
Clara continuou:
De pequenina nos montes
E prosseguiu o coro:
Nao tivera outro brincar,
Nas canseiras do trabalho
Seus dias vira passar.
A letra e a música desta cantiga ou xácara popular comoveram
intimamente Daniel, despertando-lhe memórias amortecidas, avivan-
do-lhe imagens quase apagadas, entre as quais uma, mais suave que
todas, o enlevava. Era a da pequena Guida, da sua companheira de
infância, a quem tantas vezes ouvira aquela simples canção, que falava
também de uma guardadora de rebanhos, como ela era. Na voz de
Clara alguma coisa julgou Daniel descobrir da inocente criança que
recebera então as primicias do seu coração infantil, mas apaixonado
. Esta primeira analogia fez-lhe notar que no olhar também, no gesto
e no rir a havia igualmente, e isto obrigava Daniel a fitar em Clara
olhos mais observadores que nunca.
Dentro em pouco esqueceu-se do que primeiro o levara à
contemplação, e, sem já pensar na pequena guardadora de
rebanhos, continuava a olhar para Clara com uma atençãoo
encoberta.
No entretanto Clara continuava cantando :
Sentada no alto da serra,
Pòs-se a cabreira a chorar.
E as raparigas todas seguiam:
Porque chorava a cabreira
Agora haveis de...
Milho-rei ! milho-rei ! milho-rei ! rompeu de um lado uma
voz, e esta tríplice exclamação tudos em desordem; interrompeu
o canto, e arrebatou Daniel à doce contemplação em que se
deixara cair.
Aquele grito partira de José das Dornas, que fora o primeiro a
cujas mãos concedera a sorte, enfim, uma espiga vermelha.
A festa mudou súbita e completamente de caracter.
À exclamação do lavrador respondeu grande alarido na assem-
bléia. De todos os lados se pedia o cumprimento da lei das esfolhadas.
Cabia pois a José das Dornas fazer a primeira distribuição de abraços.
O alegre lavradoro se fez rogar.
Seguiu-se então um espectáculo eminentemente cómico. José das
Dornas ergueu-se do lugar onde estava, para correr, um por um, todos
os outros, e, com profusão de abraços, dar o exemplo de observância
à lei reguladora da festa.
Todo este cerimonial foi acompanhado das gargalhadas dos espec-
tadores, e entremeado de observações jocosas do oficiante, o qual
fazia valer sobremaneira o acto, graças ao genio folgazão que Deus
lhe dera.
A cada rapariga que abraçava, José das Dornas, prolongando
mais o abraço, dizia com visagens e gestos, que faziam estalar de riso
os circunstantes :
Na minha idade, aos sessenta anos, só o milho-rei me podia
dar destas fortunas ! Ainda bem que a sorte mo trouxe às mãos.
Ao abraçar os homens, exclamava ele, com certo ar de descon-
solação, còmicamente expressivo:
Que belo abraço desperdicei agora !
Passando pelos filhos, abraçou-os também, dizendo-lhes :
Rapazes, tenham paciência. Eu sei queoo destes abraços
ques queréis. Mas é lei, ó lei. Os outros virão a seu tempo.
A um criado disse, meneando a cabeça:
Ah ! maroto ! Ser obrigado a abraçar-te, quando tanta vontade
tinha de te apalpar de outra maneira as costas ! Ora, que talvez te
o gabes de outra.
O certo é que, depois disso, começou a animar-se a esfolhada.
As espigas vermelhas, como se atraídas pelo bom acolhimento feito
à primeira, apareceram sucessivamente a diferentes mãos, e cada uma,
que aparecia, dava lugar a episódios graciosos e a prolongada
hilaridade.
Às vezes era uma rapariga timida e acanhada, queo queria
cumprir a sentença ; e então todas as vozes se reuniam a exigi-la ; e ela
a recusar-se, e os vizinhos a empurrá-la, e todos a aplaudirem, e a
rapariga, sorrindo e enleada de confusão, a correr a roda, e alta vozea-
ria a celebrar com ovações a vitória sobre a rebelde ; outras, era um
velho ou velha, a que faziam tropeçar, ao abaixar-se para dar o abraço,
e que depois cobriam desapiedadamente de montes de folhelho, com
aprovação e coadjuvação geral da parte jovem dos serandeiros ; outras,
um rapaz destemido, que, pela terceira vez, reclamava abraços, e
contra o qual se tramava uma conspiração mulheril, a contestar-lhe a
legalidade das pretensões, acusando-o de fraude e de trazer de casa
as espigas vermelhas, de que se valia; animava-se então a discussão,
mas afinal sempre se davam os abraços.
Todos porém aceitavam as excepcionais liberdades desta noite
de tradicional folgança, com a consciência de queo poderiam nunca
fazê-las valer a justificar ulteriores e mais arrojadas aspirações.
Havia porém um espectador e actor destas cenas nocturnas que,
por circunstâncias, fáceis de prever,o estava muito de ânimo a
receber com a mesma frieza as concessões do estilo.
Esse era Daniel.
Havia muitos anos que eleo tomara parte nestes serões, de
forma que, ao participar dos privilégios que, só em ocasiões tais, lhe
podiam ser concedidos,o conservava no mesmo grau que os seus
companheiros a tranqüilidade de espírito e a frieza de ânimo, com
que os outros contavam, ao sair dali, dormir um sono sossegado e livre
de pesadelos.
Todos poderiam receber de uma rapariga um abraço e esque-
cê-lo logo depois ; Daniel é que dificilmente conseguiria afazer-se a isso.
Além de que, a noite era de luar ; daquele luar de que falei,
magnético, inebriante, que exalta a imaginação, que a inquieta, e nos
predispõe a sonhar ! E então uma imaginação como a de Daniel !
Havia de mais a mais outra circunstância, que concorria para
produzir nele estes efeitos excepcionais.
As raparigaso lhe concediam os abraços, marcados pelos
estatutos da festa, com a mesma pronta familiaridade com que outros
os obtinham.o obstante ter cessado já o constrangimento do princípio
da noite, eo pesarem em ninguém as primeiras prevenções contra
o cantor das trigueiras, contudo, na ocasião crítica, no momento do
abraço, havia nas menos tímidas um ar de pudica hesitação, nas faces
adivinhava-se-lhes um rubor, no baixar dos olhos uma eloqüência,
que centuplicavam o valor dos tais abraços, e, forçoso é confessá-lo,
alteravam-lhe também um pouco a significação.
Quando se concede ou recebe um abraço, corando, é porque
palpita o coração ; e cada palpitação do coração é um fenómeno cheio
de grandes mistérios, que perturbam o pensamento de quem neles
considera.
O de Danielo estava muito sereno, quando chegou a vez
a Clara de cumprir a sentença também.
Levantou-se imediatamente a irmã de Margarida, e, com o desem-
baraço que lhe era próprio, começou pela esquerda a sua «via-sacra»,
como ela, rindo, lhe chamou. Pela ordem que levava, devia ser Daniel
o último, a quem tinha de abraçar. Ao chegar junto dele, parte da natu-
ral audácia a abandonou.
Já antes notara ela alguma coisa de particular nos olhares e nas
maneiras do irmão do seu noivo, que tinha diminuído a familiaridade,
com que ao princípio o acolhera, e diminuído na proporção em que
nas outras crescia.
Foi quase a tremer que ela o abraçou.
Daniel percebeu-lhe a agitação, e sorriu.
Clara, sentando-se outra vez junto dele, sentia-se constrangida,
eo ousava erguer os olhos.
Daniel achava deliciosa aquela súbita timidez, e começou logo
a formar castelos no ar, quase esquecido de que era a prometida esposa
de seu irmão a mulher, de quem nunca mais desviou os olhos, nem
distraiu as atenções.
Apareceu afinal, a ele também, uma espiga de milho vermelho.
Daniel mostrou-a, sorrindo, a Clara.
Visitou-me enfim a ventura disse-lhe ele. Graças a Deus !
porém mais feliz seria se me fosse permitido cumprir da sentença só
aquela parte que meo obriga a levantar.
Clara quis responder-lhe, mas nada lhe ocorreu que dissesse.
Nisto, uma criança, que estava próxima deles, denunciou à assem-
bléia que o Sr. Daniel tinha achado um milho-rei.
Agora, já todos foram unânimes a exigir em grandes brados,
que pagasse ele também o tributo estabelecido.
Danielo procurou eximir-se ; abraçou porém a todos à pressa
e distraídamente, até chegar a Clara. A essa, apertou-a ao peito de
maneira a redobrar o enleio em que se achava já a rapariga.
Desse momento por diante, Daniel ficou inteiramente dominado
por a sua irreprimível imaginação.
Felizmente as atenções de todos estavam atraídas pelas peripécias
da esfolhada, que, ao ser isso, teriam dado que falar as maneiras
do estouvado rapaz em todo o resto da noite.
Clara sentia um acanhamento nela pouco habitual, procurava
vencê-lo, para refrear a imprudente exaltação do seu vizinho, mas
todos os seus esforços eram baldados. Nem parecia a mesma, de tímida
que estava.
Daniel, por mais de uma vez, serviu-se das fraudes usadas por
os serandeiros e freqüentadores de esfolhadas, para renovar os abra-
ços ; e isto sem procurar ocultar-se de Clara.
Esta,o lhe denunciando o artifício, deixava assim imprudente-
mente estabelecer-se, entre ambos, certa cumplicidade, que estimu-
lava Daniel.
A isto sucederam-se frases de galanteio, ditas a meia voz, e olha-
res que ao deixavam ; por acaso, encontravam-se-lhe às vezes as
mãos, e Clara sentia que Daniel lhas apertava nas suas.
A pobre rapariga, inquieta, irresoluta, senão fascinada, nem ten-
tava fugir-lhe nem ousava repreendé-lo ; sentia-se triste, no meio de
uma festa em que todos riam. Triste, ela!
Pela meia-noite terminou a esfolhada. Seguiram-se as danças.
Clarao quis dançar ; veio sentar-se junto de José das Dornas. Daniel
sentou-se outra vez junto dela.
Dentro em pouco, o lavrador dormia. Daniel falava. Falou sem
cessar, mas ele próprio dificilmente poderia dizer em quê. Clara escu-
tava-o em silêncio, quase atordoada pelas comoções da noite.
Aquela maneira de conversar, o que ele lhe dizia, e as palavras
de que usava, tudo lhe era desconhecido ; impressionavam-na e agra-
davam-lhe, como uma novidade. Ela mal poderia explicar o estado do
seu espírito naquele momento.
Alguma coisa a obrigava a escutar Daniel, enquanto outra a man-
dava desconfiar daquelas palavras, que lhe soavam bem, como música
melodiosa.
Mas, Clarinha, repare que aindao teve uma palavra que
me dissesse ! segredou-lhe Daniel, por fim, com afectuosa inflexão
de voz.
E que quer que eu lhe diga?
Poiso se lembra de nada?
De nada. A minha cabeçao tem neste momento muito para
me dar.
Oh ! maso lhe peça nada também, peça antes ao coração.
Que posso eu pedir ao coração que lhe sirva ? perguntou
Clara, procurando sorrir, mas com visível constrangimento.
Se eleo tiver que dar, que se dê a si próprio respondeu
Daniel em voz mais baixa.
Sr. Daniel! exclamou Clara, conseguindo, enfim, por um
maior esforço, vencer o seu enleio, e pondo-se sùbitamente em.
Pedro, que lhe escutara a voz, aproximou-se dos dois.
A vista do irmão fez cair Daniel em si, e alentou-lhe a razão no
eterno combate que sustentava com a fantasia.
Curvou a cabeça e sentiu quase uns assomos de remorsos por o
seu estouvado procedimento naquela noite.
Que tens, Clarinha? perguntava neste tempo Pedro à sua
noiva. Parece-me que te ouvi...
Clara, ainda agitada, apertou o braço de Pedro, como se a pro-
curar protecção, talvez contra si mesma.
Que tens? diz? continuou Pedro, já mais inquieto.
o é nada.
Mas tu gritaste.
Não; é que... a falar a verdade,o sei o que sinto.
A inquietação de Pedro aumentava.
Mas então... Dói-te alguma coisa?
Não... Olha, sabes? queria-me ver em casa. Se soubesse nem
tinha vindo.
Neste caso vamos acompanhar-te.
Daniel aproximou-se.
Está doente, Clarinha?
A vista de Daniel exacerbou o estado nervoso em que se achava
Clara.
Por amor de Deus ! Deixem-me exclamou ela, com um grito,
cheio de impaciência, quase febril.
Este grito chamou as atenções.
Todos se aproximaram dela.
Que é ?
Que foi ?
Deu-lhe alguma coisa ?
Está mal?
Ó Clara, então isso que é ?
Que tens, filha?
E cada qual perguntava a seu modo, e cada qual a seu modo res-
pondia e dava um conselho e fazia uma conjectura.
Amigas obsequiosas preparavam-se para desapertá-la. Houve
algumas que a quiseram obrigar a beber água fria ; outras esforçavam-se
por lhe untar as fontes com vinagre.
Aquiloo bichas dizia uma velha muito entendida em
diagnósticos.
É flato sustentava, em divergência com esta, outra colega.
com vinagre passa-lhe dizia a primeira.
um golo de chá de cidreira, e é um instante emendava
a segunda.
Clara sentia-se deveras mortificada, e tanto que a viram chorar.
O melhor é acompanharmo-la a casa disse José das Dornas.
Issoo há-de valer nada. Seo puder ir por seu, o João que
vá aparelhar a ruça.
A primeira parte do alvitre foi posta em execução.
Clara partiu, servindo-lhe de escolta Pedro, Daniel e um moço
da casa.
E a festa da esfolhada acabou assim.
XXX
A
o voltar a casa, na companhia de Pedro e de Daniel, Clara cami-
nhava silenciosa e triste. Os dois irmãoso se achavam com
mais ânimo do que ela para tentar conversa.
Pedro ia pensativo e desassossegado com o súbito incómodo da
sua noiva; e Daniel, ainda sob o domínio das comoções recebidas
aquela noite, que entre memórias agradáveis, lhe deixara alguma coisa
do amargor dos remorsos.
Sem terem trocado uma só palavra, chegaram assim à porta das
duas irmãs. uma luz no quarto de Margarida era sinal de que elao
dormia ainda.
Clara, erguendo para ali os olhos, suspirou. Parecia estar inve-
jando o sossego daquela vigília, a paz da consciência que velava assim.
Ao despedir-se de Clara, Pedro disse-lhe afectuosamente :
Boas noites, Clarinha; amanhã espero encontrar-te melhor.
Daniel aproximou-se dela também.
Sossegue disse-lhe.o se assuste. Tenha confiança em
mim; asseguro-lhe que pode estar tranquila.
E, como visse que a rapariga o fitava com um gesto de estranheza
e de interrogação, acrescentou:
Sim ; entãoo vê que sou médico ? Afirmo-lhe que pode estar
descansada ; adeus.
E separaram-se.
De todos três posso assegurar que nenhum teve um bom sono.
Pedro toda a noite lidou com o receio de que o incômodo de
Clara fosse de gravidade ; vieram-lhe à imaginação as mais negras
apreensões a respeito do futuro do seu amor ; a cada momento levan-
tava a cabeça do travesseiro para espreitar se, através das frestas da
janela, já aparecia a primeira luz do alvorecer. Em Daniel foi uma luta
do senso intimo que oo deixou repousar. Odiava-se e acusava-se
com severidade, por haver, de alguma sorte, abusado deslealmente
da confiança de seu irmão; mas, cedo, deixava de ouvir esta voz da
consciência, como se distraído por um espírito maligno, que lhe recor-
dava os encantos de Clara ; e, a seu pesar, sentia-se às vezes quase
desvanecido com esperanças, às quais ele próprio tentava cerrar o
coração.
Alguma coisa semelhante perturbava também naquele momento
o espírito de Clara. A cada passo se esquecia a pensar nos diversos
episódios do serão e em tudo quanto Daniel lhe dissera; e logo se
arrependia e acusava, como de uma traição feita a Pedro, da ter assim
escutado e recordar agora as falas apaixonadas daquele louco
imprudente.
Margarida, antes de deitar-se, veio ter com ela.
Então, divertiste-te ? perguntou-lhe.
Não.
E porquê?
Por quem és, Guida,o me perguntes hoje nada, se és minha
amiga. Estou doente.
Margarida assustou-se pela maneira como foram ditas estas
palavras.
Doente ! exclamou ela com verdadeira inquietação ; e apal-
pando-lhe a fronte, que escaldava ; E tens febre, Clarinha ! Bem me
dizia o coração; anteso fosses!
E antes ! disse Clara, suspirando. E calou-se, fingindo que
adormecia.
Margaridao conseguiu mais serenar a turbação que lhe pro-
duzira o estado da irmã.
Que sucederia? perguntava ela a si mesma.
Foi mais uma queo dormiu aquela noite. Levou-a toda a cismar
e a escutar se algum rumor chegava do quarto de Clara.
A madrugada, porém, opera milagres.o há luz como a da
manhã para dissipar as visões de uma imaginação preocupada. como
esses vultos sinistros, que os sentidos alucinados das crianças medrosas
descobrem em cada canto escuro de um quarto de dormir, as criações
do espírito aflito desvanecem-se aos primeiros raios da aurora.
Rimo-nos então das nossas apreensões da véspera, nem compreen-
demos os nossos terrores. As sombras de uma floresta, que a noite
nos representa pavorosas, tomam ao amanhecer um aspecto festivo,
e mostram-se-nos recamadas de flores ; é também a essa hora que
uma transformação análoga parece operar-se nas sombras do nosso
futuro ; temos mais esperança na vida então ; aclara-se-nos a nuvem
cerrada que caminha diante de nós, quando ouvimos cantar alvoradas
às aves, que o dia desperta.
Este fenómeno íntimo do nosso espírito realizava-se em Daniel
e em Clara.
O desgosto de si, os vagos remorsos da véspera, as inquietações
mal definidas, dissipou-as o surgir da manhã.
Clara olhou para a irmã, que lhe espiava o despertar, com os
olhos expressives de desassombrada alegria.
D niel vestiu-se, cantando jovialmente ; e, sem vislumbres de
pensamentos negros, prepirou-se para sair.
Os acontacimentos da noite anterior eram já sem a menor impor-
tância aos olhos de ambos. E que importância podia ter uma noite de
esfolhada? Quem se lembraria de atribuir valor às liberdades con-
sentidas então ?
Clara perguntava a si própria as causas daqueles seus excessivos
terrores, eo os podia justificar.
Quando Margarida, ainda cheia de cuidados, e olhando-a com
solicitude, lhe falou nisso, Clara pôs-se a rir.
Que queres tu que te diga? Nem eu mesma já sei o que me
afligia ontem.o te sucede às vezes isto?
Em ti é que me admira. Éo pouco do teu gênio ! respondeu
Margarida, olhando-a fixamente.
E também te prometo que nunca mais me tornarás a ver assim.
Deus o queira.
Margarida disse isto, como quem seo dava por satisfeita com
a explicação ou com as palavras evasivas de Clara. Ela suspeitava
ainda que alguma coisa se tinha passado durante a esfolhada, que a
irmã lheo queria revelar.
Mas Clara conservouo bem, em todo o dia, a jovialidade do
costume, que as apreensões de Margarida acabaram por dissipar-se
de todo.
Correram alguns dias depois destes acontecimentos. Persistindo
ainda os mesmos estorvos ao projectado e decidido casamento de Pedro,
passava este o tempo em trabalhos campestres, e Clara, ocupando-se
na feitura do enxoval, em que era ajudada pela irmã.
Daniel, ainda sem cuidados de clínica, prosseguia nas excursões
venatorias pelos arredores. Havia, porém, muitas ocasiões em que ele
voltava a casa sem ter disparado um tiro, o queo o afligia demasia-
damente.
Pedro renovava então as suas prelecções sobre a caça, e instruía
Daniel a respeito dos lugares da aldeia mais abundantes nela.
Do que Danielo se esquecia era de passar todos os dias à porta
das duas irmãs, que ambas o viam, e, pode-se até dizer, o esperavam
. Margarida ocultava-se, porém, mal o sentia; Clara, pelo contrário,
inclinava-se no peitoril, e, sorrindo, correspondia à saudação do caçador.
Era mais outra inconsideração de Clara. Conseguiu persuadir-se
esta boa rapariga que era obrigada àquilo. Para compensar a demasiada
severidade, com a qual, no seu entender, tratara Daniel na noite da
esfolhada, e sem se lembrar queo obstante o seu próximo paren-
tesco com ele justificar estas familiaridades, a má reputação que Daniel
gozava na aldeia, e a fértil imaginação dos noveleiros locais as faziam
um pouco imprudentes.
De facto, já nos círculos da terra constava da predilecção de Daniel
pela rua em que moravam as duas raparigas; e falava-se disto com
certos olhares, com certas reticências e sorrisos, mais malignamente
eloqüentes do que murmurações explícitas.
Escusado será dizer que na loja do Sr. João da Esquina encon-
travam estas meias vozes um eco admirável.
Daniel concorreu para exacerbar esses vagos rumores populares.
um dia, em que se entretivera meia hora conversando da rua
para Clara, passou, ao retirar-se, por um jornaleiro, que trabalhava
a pouca distância dali. Este homem, com aquele ar de simpleza velhaca,
o vulgar na gente do campo, pôs-se a cantar;
Caçador que vais à caça,
Muito bem armado vaia ;
Os olhos levas por armas,
E, em vez de tiros,s ais.
Ora esta era uma das vezes, em que Daniel voltava a casa sem
uma vítima da sua espingarda, que nem chegara a descarregar.
A cantiga do aldeão irritou-o, pareceu-lhe que era uma alusão
insolente ; mas teve a prudência de seo dar por entendido e passou
sem dizer nada.
No dia seguinte, porém, reproduziu-se o facto.
Voltando outra vez, e à mesma hora, de uma caçada, igualmente
incruenta, ouviu de novo o jornaleiro cantar:
Singular caçada a tua,
Arrojado caçador,
Que, em lugar de penas de aves.
Só trazes penas de amor.
Era demasiada a ousadia, para que Daniel a sofresse. Parou, e
olhando para o homem, o qual, de atento que estava na tarefa, nem
parecia dar por ele, dirigiu-lhe a palavra:
Ó maroto !
O jornaleiro fingiu reparar então pela primeira vez em Daniel,
e, levando ao ao chapéu, disse, cortejando:
Nosso Senhor lhe dê muito boas tardes, O patrão quer
alguma coisa?
Quero avisar-te de que andarás com juizo se deres outro jeito
às tuas cantigas quando eu passar por aqui.
Então que cantava eu? já nem me lembra, se quer que lhe
fale a verdade.
Pois, se terceira vez te escutar, eu te prometo que to gravarei
melhor na memória.
E, dizendo isto, prosseguiu Daniel no seu caminho.
A prudência do homem aconselhou-o a queo cantasse mais ;
porém, em compensação, foi daí em diante um dos mais atendidos
oradores dos diferentes círculos, onde a vida de Daniel era discutida
com aquele ardor de curiosidade e de bisbilhotice, próprio da aldeia.
A Margaridao dava também pouco que pensar a freqüência
com que Daniel lhe passava à porta. Sabia já que ele tinha tomado parte
na esfolhada, e quase tudo o que sucedera então. O resto talvez que
o adivinhasse, conhecendo, como conhecia, o carácter de Clara e os
actos irreflectidos que por vezes a prejudicavam. Além disso, certos
indícios, queo escapam à perspicácia de vistas de uma mulher que
observa outra, começavam a dar-lhe canseira. E tinha razão para esses
receios. Mais alguém os concebera.
um dia, o reitor, voltando para casa, encontrou Daniel, a cavalo,
debaixo das janelas de Clara, e conversando animadamente com ela.
O padreo gostou muito disto; e logo lhe veio à idéia a primeira e
as sucessivas proezas do seu antigo discípulo. Cortejou-os, e passou
para diante sem dizer palavra.
Encontrando-se, porém, as com Clara, pouco tempo depois,
foi-lhe dizendo, com diplomático ar de naturalidade, estas palavras
ambíguas :
Escuta, ó Clarita ; olha que um enxoval é uma coisa séria. Todos
os cuidados e atençõeso poucos, quando se está trabalhando nisso ;
e tu, minha filha, distrais-te algum tanto. Se eu estivesse no teu lugar,
nem trabalhava à janela. Éo fácil a distracção!
Clara respondeu de um modo galhofeiro, como costumava. Era-
-lhe difícil tomar alguma coisa a sério.
O padre procurou depois Margarida, e disse-lhe:
Lembras-te do que te recomendei há tempos, Margarida?o
tires as vistas de Clara. É uma espionagem necessária e para bem
dela; por issoo deves ter escrúpulos em fazê-la.
E porque me repete agora outra vez essa recomendação,
sr. reitor ?
Eu cá me entendo. Faz o que eu te digo, Margarida.
E ao retirar-se, dizia consigo o bondoso pároco:
Tambémo sei que demoraso estas com o tal casamento !
É preciso dar aviamento a isto!
As palavras do reitor aumentaram a preocupação de Margarida,
parecendo vir justificá-la. Mas como aconselhar a irmã, se ela lhe fur-
tava todos os ensejos de confidencias? Margarida fez o que o padre
lhe ordenara. Pôs-se a espiar Clara. Foi uma amarga prova para aquele
carácter feminino, e por dois motivos diversos repugnava-lhe o
papel que se julgou obrigada a desempenhar, e depois a execução
dele a cada instante lhe estava valendo descobertas, que dolorosamente
lhe rasgavam o coração.
Ela percebeu que em Clara se passava alguma coisa singular.
Ao aparecer Daniel, ou quando ao longe lhe soavam os passos,
já os olhos de Margarida viam espalhar-se, pelas faces da irmã, uma
turbação pouco discreta ; era com vivacidadeo disfarçada que se
curvava para o ver passar e com voz alterada de sobressalto que lhe
respondia e conversava com ele.
Todas estas observações inquietavam Margarida. Padecia pela
felicidade de Clara, que via ameaçada assim, e por si, cujas antigas
ilusões, cujo sonho oculto, que, apesar deo ter confiança na sua
realização, ela acalentava ainda, se iam pouco a pouco desvanecendo
e em que desprestigiosa realidade !
XXXI
Uma tarde, estavam as duas irmãs sentadas a trabalhar à janela
do lado da rua.
A luz do Sol apenas dourava já os cimos dos montes mais
elevados e longínquos. Aproximavam-se as horas, às quais Daniel
costumava passar ali.
Já por mais de uma vez dirigira Clara a vista pelo caminho que
ele ordinàriamente seguia; era uma vereda íngreme e tortuosa que
vinha do alto da colina à pianura, onde estava situada a casa, e daí
descia ao vale centro principal do povoado.
Porém, sempre que os olhares de Clara tomavam aquela direc-
ção, encontravam-se com os da irmã, e instintivamente se abaixa-
vam logo.
Margaridao estava também tranquila naquela tarde. Em toda
a fisionomia dela, em todos os gestos e palavras, denunciava-se, por
sinais evidentes, um violento desassossego interior.
De quando em quando, voltava-se para Clara, como se resolvida
a falar-lhe, a comunicar-lhe alguma coisa que a preocupava ; mas, num
momento, parecia abandoná-la a resolução e permanecia silenciosa.
O estado de espírito de uma e de outra mal lhes permitia susten-
tar a conversa, a qual prosseguira frouxa e interrompida, a todo o
instante, por freqüentes pausas.
De uma vez, porém, a impaciência de Clara, ao observar o cami-
nho, por onde era de esperar Daniel, desenhou-se-lheo expressiva
na fisionomia, que isto deu ânimo a Margarida para vencer a hesitação
com a qual lutara até ali. Fixando a vista na costura em que trabalhava,
principiou dizendo, em tom de gracejo:'
É na verdade uma pena, Clara, que tu, que tenso bonitos
olhos, teimes em os trazer assim fechados.
Fechados! Que queres tu dizer, Guida?
Que os fechas para muita coisa, que é sempre perigosoo
ver, filha.
o te entendo disse Clara, sorrindo.
Margarida prosseguiu:
Mas isso é gênio teu. Tu andas no mundo, como de noite pelos
caminhos da aldeia.o te lembras, quando, no outro dia, saímos mais
tarde de casa do nosso pobre mestre ? Fazia muito escuro. Eu, a cada
passo, estava a parar; parecia-me por toda a parte ver fojos e barran-
cos, e tu rias-te de mim, e seguias sempre para diante, com uma con-
fiança naquela escuridade, como se realmente tudo fosse estrada direita.
E olha queo cai ! acudiu intencionalmente Clara, que
julgou principiar a compreender o sentido das palavras da irmã.
o ; é certo que não. Parece que há uma estrela que protege
quem é assim animoso ; como se todo esse ânimoo fosse outra coisa
senão ao do anjo da guarda a guiá-lo, sem se mostrar. Mas olha:
lembras-te quando uma vez, voltando assim de noite a casa, e sem
escolher caminho, vieste dar aos lameiros dos Casais? Viste-te obri-
gada a tornar para trás, e, como se adiantava a noite, tiveste de ir ficar
a casa de tua madrinha, nos Cabeços. Que susto que eu tive, santo
Deus! se eram já altas horas, e tu sem chegares?
É verdade. E por sinal que me mandaste procurar.
Mandei. Imagina lá como eu fiquei, como ficámoss todos,
quando, sendo já madrugada, nos voltaram a casa com uma das tuas
argolas das orelhas, que tinham encontrado meia enterrada nos lameiros.
Tinha-me caído, tinha.
Julgámos-te perdida, morta. Aindao havia muito que lá
morrera afogado aquele pobre cabreiro. Hás-de estar certa ! Que noite
passei, Nossa Senhora! E tu...
E eu a dormir muito descansada em casa de minha madrinha.
Pudera não. Imagina tu que eu tinha andado... léguas talvez.
Mas aí está como, sabendo-te salva como dessa vez te sabias,
os outros, por alguns sinais mentirosos como aquele, te podem julgar...
perdida, "f
E Margarida calou-se, depois de fazer esta observação.
Clara olhou algum tempo para a irmã, sem dizer palavra; em
seguida replicou, parando de trabalhar:
Fala-me claro, Guida. Diz o que me tens a dizer. Que precisão
tinhas de vir com isso, para me dares um conselho? Alguma coisa
fiz eu que te desagradou. Vamos, diz o que é. Acaso já deixei de
escutar-te alguma vez como tu mereces?
Tens razão, Clarinha. Eu devia ter mais ânimo para te falar,..
para te dizer certas coisas, vendo como tu me atendes sempre... Mas,
que queres? ao mesmo tempo, tenho tanta confiança em ti, que pergunto
a mim mesma, se valerá a pena estar a mortificar-te assim...
Mas então que mal tenho eu feito ?
Ora ! que te responda a tua consciência, Clarinha ; pergunta-lho.
Nao sei...—disse Clara, um pouco perturbada.
o é de nenhum pecado mortal que ela te acusará, de nenhum
crime muito negro; sossega. Mas de uma culpazita... de uma fraqueza
dessa cabeça, um pouco mais leve, do que para uma noiva se queria.
Bom. É o sermão do costume. Já vejo disse, sorrindo, Clara.
Sabes ao que acho graça? É ao ser o Pedro que o prega. Esse
tinha mais desculpa. Mas então que fiz eu assim de maior?
Ora vamos. Para que precisas que eu to diga? Ia afirmar que,
agora mesmo, o estás a dizer baixinho a ti própria.
Hou e um pequeno silêncio entre as duas.
No fim dele, Clara ergueu a cabeça, dizendo:
Sim ; parece-me que sei o que é. O sr. reitor já no outro dia
me deu a entender o mesmo. É por eu falar com o Sr. Daniel quando
ele passa por aqui ? Santo nome de Maria ! como há-de ser isto então ?
o me dirás, Guida? —continuava Clara jovialmente. como hei-de
eu, depois de casada, deixar de conversar com o irmão de meu marido ?
Que idéia fazem de mim, tu, o sr. reitor e todos os que nisso reparam?
Bem vês, Clarinha, queo é de ti que eu receio. Conheço-te.
Mas, tu bem sabes, o Sr. Daniel é... dizem dele... passa por...
E Margarida hesitava, ao procurar exprimir a opinião pública a
respeito de Daniel, porque todas as frases lhe pareciam demasiada-
mente duras e severas para o carácter dele.
Nem sei o que me parece ouvir-te dizer isso. Ainda que ele
fosse o que por aí dizem, conserve-se uma pessoa no seu lugar, que
nada pode temer. Querias talvez que eu fizesse como aquela gente,
no outro dia, na esfolhada, que toda se encolhia quando ele chegou?
Na esfolhada? disse Margarida, ainda sem olhar para a
irmã. Ora que tu ainda meo contaste nada do que se passou lá
nessa noite !
Esta alusão embaraçou manifestamente Clara, que se apressou a
dizer, como se ao tivesse ouvido:
E demais,o tens tu escutado todas ou quase todas as conversas
do Sr. Daniel comigo? Ai tens estado, por dentro da janela, e sem que
ele o saiba. De que o ouves falar? Diz-me alguma coisa que euo
deva ouvir? Conta-me o que viu na cidade, o que leu, histórias, versos...
e como conta bem ! e queres que eu meo entretenha a ouvi-lo,
quando tu mesma, às vezes, sim, que eu bem tenho reparado, deixas
de trabalhar, e ficas quieta a escutá-lo também! Então que há nisto
de mal?
Mas então? Já se fala... Que se lhe há-de fazer? O mundo tem
maldades, 9s vivemos no mundo... Há gente deos tenções,
que, só pelo gosto de fazer mal, pode ir às vêzes inquietar o espírito
de Pedro com histórias mentirosas, e daí sabe Deus...
O ruído de um cavalo a trote, que vinha do lado dos montes, inter-
rompeu o diálogo. Clara dirigiu para lá os olhos, e viu um cavaleiro
que se aproximava, saudando-a de longe.
Era Daniel.
Olha; falai no ruim... disse ela para Margarida, que ins-
tintivamente retirou a cadeira da janela.
Vais ver prosseguiu Clara como eu sou amiga de fazer
vontades. Vou acabar com isto, já que assim o querem... isto é, já que
assim o queres ; pois dos outros bem me importava a mim.
O melhor é... ia a dizer Margarida, quando a voz de Daniel,
falando da rua para a janela, a obrigou a calar.
Muito boas tardes, Clarinha dizia ele. Receava nao a ver
já hoje ; por isso obriguei este pobre animal a um trote por estes cami-
nhos de cabras abaixo, que muito pouco lhe agradou.
Então tinha que me dizer ?
Nada. Era parao perder o meu dia. Quando vi fechadas
as folhas da mimosa da Quinta da Freira, temi vir encontrar já fechada
também a sua janela, Clarinha.
Era pena ! disse Clara, sorrindo ; e depois, debrucando-se
ao peitoril, acrescentou, lançando com disfarce um olhar para a irmã:
Tenho a pedir-lhe um favor, Sr. Daniel.
Que felicidade para mim ! Diga.
Quando, de hoje em diante, voltar para casa,o há-de vir
por este sítio.
Clara ! disse Margarida em voz baixa, puxando pelo vestido
da irmã.
Clarao a atendeu.
Porque me faz esse pedido? perguntou Daniel, admirado.
Porque, segundo me dizem, deram-lhe para reparar por aí
nestes seus passeios, e então, parao inquietar o mundo...
Clarinha, que estás a dizer ! murmurava Margarida, escon-
dendo-se por detrás da irmã.
Clara fingiao ouvi-la.
Tenho-a ofendido por acaso alguma vez ? perguntou Daniel.
Em coisa nenhuma. Bem vê que eu digo que é pelo mundo...
Então, deixe falar o mundo.
o é tanto assim. Talvez o fizesse, seo fosse noiva.
Parece-me até que o fazia; mas assim...
Esta vida da aldeia!... exclamou Daniel, num tom de supremo
enfado. Esta vida de mexericos e de maledicencias velhacas ! Praga
maldita das terras pequenas, onde faltam coisas sérias em que pensar!
Ora vejam no que esta gente se ocupa ! Em saber o que eu faço, como
vivo, para onde vou, com quem converso ; e isto entretém-na ! Então
repararam já em eu passar por aqui? como seo fosse coisa 'muito
natural conversar consigo, Clarinha, Poiso somoss parentes
quase ?
Isso dizia eu à...
um sinal de Margarida obrigou-a a interromper-se. Limitou-se a
dizer, mutilando a frase e mudando de inflexão :
Isso dizia eu.
Afinal,o há como viver na cidade continuava Daniel.
Lá pode um homem conversar com uma senhora apertar-lhe ao
até, que ninguém repara nisso. Aqui andam a espiar tudo o que se
faz e a tomar tudo a mal. Que costumes estes !
E Daniel prosseguiu numa longa imprecação contra a vida cam-
pestre, exaltando a urbana, o que demorou, ainda por muito tempo,
a conversa
No fim dela, renovou Clara o pedido, e conseguiu que Daniel,
depois de alguma resistência, lhe dissesse a sorrir:
Pois bem ; esteja certa de que eu farei com queo falem de
mim.o me hão-de ver mais aqui.
E partiu.
Estás satisfeita? perguntou Clara, voltando-se para a irmã,
logo que o perdeu de vista.
o respondeu esta.
Porque não?
Queria que fosses tu a que deixasses de aparecer, eo lhe
falasses assim.
Por outra tornou Clara, levemente despeitada querias que
eu fosse grosseira.
o respondeu Margarida, abraçando-a queria que fos-
ses prudente.
XXXII
D
ANIEL cumpriu a promessa que fizera.
No dia seguinte, à hora costumada,o passou por casa
das duas raparigas.
Era para admirar nele esta pronta condescendência às opiniões
do público.
A própria Clarao tinha esperado encontrá-loo dócil;o
ousamos dizer que também oo tinha desejado, ainda que dos fre-
qüentes olhares que dirigia para o sitio, de onde todos os dias costu-
mava vê-lo aparecer, alguém tiraria talvez essa ilação.
Cerrava-se a noite. Havia muito tempo que o toque das ave-
-marias tinha ido perder-se nas mais distantes serras, que limi-
tavam o horizonte. O fumo das choças e das herdades difundira-se
sobre a aldeia. O zumbido dos ralos, essa incómoda sinfonia,
com que rompem no Estio as harmonias do crepúsculo, era ator-
doador.
Principiavam a cintilar as estrelas no céu; apenas, muito para o
ocidente, uma estreita faixa luminosa restava ainda do dia que fenecera.
Clara saiu de casa, em direcção a uma pequena fonte que havia
nas proximidades dela, e ao fim da estreita rua que acompanhava o
muro do quintal.
De dia, era esta fonte muito procurada, em virtude da excelência
das águas, gabadas de tempos imemoriais, pelos químicos da locali-
dade, quase como milagrosas em infinitos casos de doenças,o obs-
tante a absoluta carência de princípios medicinaiso justificar
a nomeada.
Depois das trindades, porém, o solitário e sombrio do lugar afu-
aentava a gente supersticiosa do campo.
Clara, criada de pequena por aqueles sítios, e desde então, cos-
tumada ao os temer, de propósito escolhia estas horas para mais
à vontade fazer a sua provisão de água, e demorava-se ali sem a menor
sombra de terror, antes cantando sempre, com ânimo desafogado.
como o leitor decerto prevê,o era nenhum monumento arqui-
tectónico a fonte de que falamos.
Imagine-se uma boca de mina, aberta na base de um pequeno
outeiro, que, todo assombrado de pinheirais, se prolongava a distância,
na direcção do norte da aldeia; uma telha, meia quebrada, servindo
de bica ; e a receber o abundante e inesgotável jorro de água límpida,
uma bacia natural por ele mesmo cavada, e onde à vontade vegetavam
os agriões, ávidos de humidade.
Do pinhal sobranceiro descia-se à fonte por alguns degraus gros-
seiramente abertos, havia muito tempo, no terreno saibroso do outeiro,
e aperfeiçoados pelo trilho quotidiano dos que se serviam dos atalhos
do monte com o fim de encurtar distâncias dali a diversos pontos
da aldeia.
Ao lado, e separado alguns passos da fonte, abria-se um desses
enormes barrancos, rasgados pelas torrentes de sucessivos invernos,
e cuja entrada quase disfarçavam os troncos robustos dos fetos e das
giestas, que, crescendo livremente, haviam atingido proporções quase
tropicais.
Quando Clara chegou à fonte,o havia lá ninguém.
A cantar, aproximou-se dela, e, ajoelhando, principiou a encher
o cântaro de barro que trazia.
A água caiu ao princípio ressonante no interior do vaso; depois
amorteceu gradualmente o som, à medida que subia o nível do líquido ;
este dentro em pouco trasbordava.
Clara ia levantar-se. Na posição em que estava, tinha voltadas
as costas para a entrada do barranco. Neste momento pareceu-lhe
ouvir algum rumor daquele lado.
o foi superior a um vago sentimento de susto. Voltou-se inquieta.
Deu com os olhos numa forma escura, e em breve reconheceu mais
claramente ser um vulto de homem, que se aproximava dela.
Soltando um grito, Clara ergueu-se de súbito para fugir.
Segurou-a a tempo um braço e falou-lhe uma voz conhecida :
Que vai fazer ?o se assuste. Sou eu.
Era a voz de Daniel.
Santo nome de Jesus ! exclamou Clara ao reconhecê-lo, e
ainda tomada de susto. O que faz por aqui ?
Vim vê-la respondeu Daniel, com a maior naturalidade.
Então é assim que cumpre o que ontem me prometeu ?
Pois que prometi eu, senão fazer com que meo vissem?
É o que faço, vindo agora só e aqui.
É pior, muito pior isto disse Clara, lançando em volta de
si olhares de inquietação.
o é continuou Daniel. —Poiso me disse queo des-
confiava de mim?o foi só por condescender com os reparos tolos
de meia dúzia de curiosos e de velhacos que me pediu... que exigiu
de mim queo viesse? Falando-me assim, neste sitio e a esta hora,
o pode recear de ninguém. Lembra-se de me haver dito que o povo
tinha medo de passar de noite por aqui?
Mas... apesar disso... Jesus, meu Deus!—continuava Clara,
sobressaltada. E para que havia de procurar falar-me? que tem
que me dizer ?
Daniel sorriu.
Que pergunta a sua, Clara ! Imagina lá a minha vida na aldeia ?
Devoram-me desejos de conversar. Maso tenho com quem. Privan-
do-me de a ver, Clarinha, afastava-me da única pessoa, das que até
agora tenho encontrado, com quem se pode sustentar uma conversa
seguida e agradável. Veja seo seria crueldade proibir-me...
o diga isso respondeu Clara. Eu entendo-o às vezes,
sim ; mas é quando todos o entendem também ; quando a sua conversa-
ção mais me entretém, tenho notado que muitos o escutam como eu,
com atenção. Mas de outras vezes...
Neste ponto Clara reteve-se, como se receasse terminar.
De outras vezes?... repetiu Daniel, sorrindo.
De outras vezeso o entendo, e é sobretudo quando fala só
para mim.
o me entende? perguntou Daniel, com uma inflexão de
voz que fez estremecer Clara.
Não,o o entendo, porqueo posso... porqueo quero...
porqueo devo acreditar na verdade do que me parece entender.
E quando lhe falei eu assim, diz-me ?
um dia, começava a falar-me desse modo em casa daquele
doente que foi ver. De outra vez... Oh ! e dessa !... foi naquela noite da
esfolhada, em casa de seu pai.
Eo me entendeu nessa noite ?
uma tarde estavam as duas irmãs sentadas a trabalhar..
E queria que o entendesse ?
Poiso deve ser o desejo de quem fala? perguntou Daniel,
e um modo jovial.
Eu oiço dizer que há muitas pessoas que falam a dormir ;
quanto dariam esses poro serem entendidos então?
Mas eu nunca fui sonámbulo, Clarinha.
Tanto pior para si.
Porquê ?
Porque então é mau.
Mau!
Mau, sim. Euo sei de maior maldade do que a daqueles
que andam por aí a inquietar o sossego das famílias, a alegria dos cora-
ões, e só por gosto de fazer infelizes.
Então eu...
Basta, Sr. Daniel. Se é homem de bem, retire-se ou deixe-me
etirar disse Clara, com um ar de seriedade e nobreza que o
impressionou.
Dando também às suas palavras mais grave tom, Daniel respondeu :
Escute, Clara. Acredite queo fala com um homem de senti-
mentos perdidos ; escute-me, e tranquilize-se. Eu reconheço em mim
um princípio mau, é verdade ; mas creia que lheo andoo sujeito,
que nem compreenda já a força dos meus deveres. Conceda-me ainda
um pouco de consciência. Às vezes, muitas vezes até, deixo-me arras-
ar por esta força, que me leva a loucuras, que chega talvez a aproxi-
mar-se de uma vileza... mas, ao chegar, até hoje tenho resistido e
espero... Perdoem-me isto, por quem são. Cedo me verão arrependido.
Cedo ! e quando é cedo ou tarde ? sabe-o lá ? Quem lhe há-de
dizer que é cedo? Cedo para si, poderá ser; e para os outros também?
lá poucos dias, que todos por aí falavam de uma pobre rapariga, a
quem, por divertimento, o Sr. Daniel trazia quase doida. Está arrepen-
tido,o é verdade? Mas arrependeu-se cedo para ela? Amanhã
poderiam dizer de mim...
Que hão-de dizer, Clarinha? Essa rapariga de que fala, nao
fui eu que a fiz doida ; engana-se ; encontrei-a já assim. Euo traba-
iei para a perder ; também se engana ; os seus é que se esforçaram
por a darem por perdida. A Clarinha esquece que a si todos a res-
leitam, e que...
o é assim. Em que sou eu mais do que as outras? Ninguém
está acima das vozes do mundo. E se até agora tinha razão parao
me importar com elas, por meo julgar culpada, teria de as temer,
se continuasse a ouvi-lo aqui. Adeus.
Vejo que me enganava ainda ontem, dizendo-me que tinha
onfiança em mim. Esses receios...
Enganaria ; mas enganava-me a mim mesma também. Euo
ei mentir. E a prova é, que sinceramente lhe digo agora que desconfio.
De mim ? !
De si, sim, porque não? As suas acçõesoo leais. Vê que,
vindo procurar-me aqui, me pode perder, eo se importa fazê-lo;
peço-lhe que se retire, e teima em ficar ; peço-lhe que me deixe retirar,
e impede-mo. Brinca assim com a minha reputação, sem se lembrar
que sou quase já a mulher de seu irmão, quase a filha de seu pai, quase
sua irmã também. Diz que sabe quaiso os seus deveres... e como
é que os cumpre então? Se Pedro passasse por si, neste momento, e
lhe abrisse os braços, como a irmão que é, teria valor para o abraçar,
diga?o fugiria antes dele como um criminoso? Fale.
Daniel curvava a cabeça, sem coragem para responder.
Clara prosseguiu:
Peço-lhe, pela alma de sua mãe, que nunca mais me procure
aqui, que nunca mais me procure em parte nenhuma. Ontem ainda
me ri eu dos avisos que recebia para me acautelar; hoje, jáo sinto
vontade de me rir. Tinham razão eles, tinham ; agora o vejo ; e este
meu gênio é que me podia perder. Se por mimo é bastante pedir-
-lhe, peço-lhe por seu irmão, por seu pai, por si mesmo, que assim
anda a perder o crédito de um nome, que nenhum dos seus nunca
deixou de honrar.
Está sendo muito cruel para mim, Clara. Concordo que fui
imprudente, inconsiderado, mas... Confesso-lhe que a impressão que
me causou e que me causa...
Sr. Daniel, euo quero saber os seus segredos. Deixe-me
retirar.
Pois bem, será esta a última vez que a procuro, que lhe falo
até, que a vejo, se tanto exigir de mim; mas ao menos desta vez há-de
escutar-me.
Mas para que preciso eu escutá-lo? dizia Clara, assustada
pelo tom de exaltação em que ele lhe falava.
Daniel continuou :
Todos sóm palavras para me censurar, e ninguém há-de
ver um dia claro no meu coração ? Ninguém, melhor do que eu, conhece
a fraqueza ingénita deste carácter, queo sabe lutar ; mas o que eu
o sei, o que eu peço que me digam é o remédio para este mal. Clara,
o procure fugir sem ouvir-me. Retirar-se-ia, supondo-me pior do
que sou, como todos que me conhecem. Eu quero que ao menos uma
pessoa saiba a verdade a meu respeito. Escute.
E, ao dizer isto, segurava no braço de Clara, que tremia de
inquietação.
Neste momento, os passos de uma cavalgadura a trote rasgado
soaram próximos, no caminho que vinha terminar defronte do lugar
onde esta cena se passava.
Clarao pôde reprimir um grito de susto.
Jesus, que estou perdida ! exclamou ela ; e soltando o braço
que Daniel lhe segurava ainda, fugiu na direcção de casa.
Antes, porém, de transpor a esquina que a devia ocultar às vistas
de quem quer que era que se aproximava, e de conseguir fugir pela
porta do quintal, o cavaleiro, tendo-a avistado e conhecido, bradava rijo :
Ó Clara ! Clarita ! Rapariga ! 0 pequena ! Psiu ! Eh ! Onde
vais com essas pressas?oo os Franceses, sossega.
O homem que bradava assim, era João Semana, que voltava de
uma visita distante. Vendo Clara a fugiro apressada, conjecturou
que ela se assustara, supondo-o algum facinoroso ou mal-intencionado,
e por isso berrava para lhe fazer perder o medo.
Mas, ao aproximar-se da fonte, o velho cirurgião descobriu alguma
coisa, que lhe pareceu procurava ocultar-se dele.
Hum ! murmurou consigo o velho. Pelos modos, o susto
da rapariga era de outra espécie... Há-de ser o Pedro.
E acrescentou em voz alta :
Olá,o fujas, rapaz;o é crime nenhum vir falar assim com
uma noiva ; ainda que, para dizer a verdade, escusava de ser tanto
às escondidas, escusava.
E com isto foi dirigindo o cavalo para aquele vulto, que parara,
desde que viu queo podia fugir sem ser percebido. A medida que
se aproximava, João Semana principiou a duvidar que fosse Pedro o
homem da entrevista nocturna.
Parecia-lhe menos corpulento do que o primogénito de José
das Dornas.
A esta suspeita, sulcou uma ruga profunda ao longo da fronte
do honesto celibatàrio, que decidiu consigo averiguar aquele mistério.
XXXIII
IENDO formado esta resolução, João Semana picou de esporas
a sua égua, a qual, estranhando a insólita amabilidade, de um
salto o apresentou junto de Daniel, que era, como o leitor sabe
a, o vulto em questão.
Daniel, vendo-se descoberto, julgou que o melhor partido era
entrar em jogo rasgado.
Boas noites, colega disse ele em tom prazenteiro, e cami-
nhando para João Semana.
Este deu um estremeção na sela, ao reconhecer o seu jovem
confrade. Oo muito favorável conceito que ultimamente formava
dele, em relação a certas qualidades morais, fê-lo agourar mal da sua
presença naquele lugar.
Ah ! Ah ! Você por aqui ! Anda a fazer versos ?
Ou a inspirar-me para isso.
o é mau o sítio, não. E ao mesmo tempo pode dar-se a estu-
dos de química também; a água dessa fonte...
Já me disseram que era medicinal.
É excelente.
Para que moléstias ?
Para muitas. Agora o que nao sei é se para certos esvaimentos
de cabeça também servirá. Bom era que sim, que anda por aí muito disso.
Daniel fingiuo entender a alusão, e observou com modo natural :
Está aqui muito agradável.
Ai, o sítio é bom, lá isso é. E para caça?!o gosta de caçar?
Alguma coisa.
Pois por estes montes há caça famosa. Ainda agora, quando
eu vinha, fugiu daqui uma... lebre, e com uma pressa admirável.o
a viu?
Não,
o vi.
O que é ser poeta !o se vê coisa nenhuma. com os meus
oitenta anos vejo eu melhor. Pois é verdade ; atravessou neste mesmo
instante por esta rua e... ia jurar até que se escondeu ali, no quintal;
pareceu-me vê-la escapar através daquela porta.
Tens boa vista, João ; masoo boa, que teo passe por
alto um amigo velho.
A voz, que dissera estas palavras, parecia vir do ar.
João Semana levantou a cabeça e deu com os olhos no reitor,
muito pachorrentamente estabelecido sobre o tronco de um pinheiro
derrubado, no topo das escadas que desciam do outeiro.
João Semana ficou espantado com tal descoberta, e só isso o impe-
diu de notar que Daniel oo ficara menos. Quando, porém, desviou
para este os olhos, encontrou-o já sem sinal de perturbação, e até
anediando os cabelos, com toda a naturalidade.
As suspeitas, vagamente concebidas pelo cirurgião, desfizeram-se.
—Que diabo fazeiss ambos aqui? e tu então de poleiro,
abade?!
É que isso aí em baixo é húmido como um charco, e euo
quero dar-te que fazer com o meu reumatismo, João. Mas eu desço,
eu desço.
Não, não, deixa-te lá estar, deixa. Lá por isso...
Não, queo sendo horas também de me chegar até casa.
Pois é verdade continuava o pároco, apoiando-se na bengala, e
descendo, com vagar e cautelosamente, os pouco suaves degraus,
cavados no saibro do monte pois é verdade ; estávamoss aqui,
eu com o Daniel e a Clarita, a conversar...
Ah ! bem me pareceu que era ela.
Era ela, sim. Então que dúvida? Olha que sempre fizeste uma
descoberta !
Mas para que diabo fugia a rapariga, então?
Diz antes porque diachoo fugimos nós? Mas o meu reu-
matismo é que meo deixou. Quando me hás-de tu dar um remédio
para isto, homem?
E pregar com os ossos nas Caldas, querendo. Mas, dizias tu,
fugir ! Para que haviam de fugir de mim ?
De todos. Quando se conspira...
Então vocês?...
Conspirávamos, sim, senhor. Aqui mesmo onde nos vês, está-
vamos a combinar uma coisa...
Que diabo era o que combinavam ?
Combinávamos...
O reitor achava-se um pouco embaraçado por nada lhe ocorrer
a propósito; por isso exclamou, para contemporizar:
Que maldito costume que tu tens, João, de estar sempre com
o nome do inimigo na boca! Perde-me esse jeito.
Pois sim, sim ; hei-de fazer por isso, apesar de que já vou um
pouco tarde. Eu digo agora como aquele franciscano, a quem repreen-
diam por, já de idade avançada, cair ainda na fraqueza, em que Noé
caiu : « Já agora hei-de morrer com isto, dizia ele ; porque de duas uma :
ou já estou condenado, e entãoo sei que lhe faça:o vale a pena
a emenda; ouo estou, e quem pode perdoar uma bebedeira de
quarenta anos,o dever dúvida em perdoar a de meia dúzia mais».
Mas então o que combinavam vocês ?
A renovação da pergunta, depois da referência do caso, fez perder
ao reitor as esperanças de eximir-se a responder. Quando João Semana
conservava uma idéia fixa, através da narração de qualquer anedota
de frades, era para dificilmente a deixar.
Conhecendo isto por experiência, o reitor resignou-se, e, ainda
sem saber o que dizia, principiou a responder:
Combinávamos...
E, fingindo arrepender-se, exclamou:
Mas é boa essa!o há senão perguntar. Tu não_deves entrar
no segredo. A coisa é entres três.
Homem, diz lá o que é. Que diabo...
um gesto do pároco obrigou João Semana a corrigir-se.
Que S. Pedro de escrúpuloso esses agora?
A substituição do nome do espírito maligno pelo do apóstoloo
lhe valeu a resposta que pedia, e que o reitor de boa vontade lhe dera,
se a tivesse para dar.
E a teimar ! dizia o padre, ganhando tempo. Sempre és
um curioso !
Daniel interveio enfim.
Olhe, Sr. João Semana, basta que saiba, e depoiso pergunte
mais nada, que estávamos preparando uma surpresa a meu irmão
Pedro, para o dia do casamento dele.
O reitor franziu as sobrancelhas, ao ouvir Daniel. Apesar do auxí-
io que ele lhe viera dar, desgostou-o a presença de espírito que mos-
trava, quando devia estar enleado de confusão e de vergonha; foi por
isso que acrescentou com um evidente tom de severidade e irritação :
Casamento que, se Deus quiser, hei-de brevemente abençoar.
Estás agora satisfeito, João Semana? Pois é verdade. Daniel meditava
grandes novidades para o dia do casamento do irmão, grandes festas
por casa dele e da noiva, etcetera, etcetera. Mas o seu projecto
o mereceu, nem merece, a minha aprovação.
Daniel baixou os olhos, ao ouvir aquelas palavras do padre.
Este prosseguiu:
Clara pensa como eu, mas este homem é obstinado, e, através
de tudo, teima em seguir a sua vontade; mas eu protesto que...
Vejo queo me entendeu, sr. reitor disse Daniel, com
vivacidade.
Entendi, entendi, homem. E julgo queo acha a propósito
entrar agora em maiores explicações.
Daniel guardou silêncio.
Mas entãoo podiam tratar disso em casa ? teimou João
Semana, queo largava assim fàcilmente uma idéia, de que se tivesse
apossado.
E a dar-lhe !o há que se lhe faça ! dizia o reitor. Homem,
so queríamos que a Margarida soubesse nada disto, porque...
porque... Mas tu vais a cavalo, es a. Segue o teu caminho, e
apressa-te, que a Joana já há-de estar com cuidado pela tua demora.
E eu com vontade à ceia.
Então porque esperas ? Vai com Deus, homem.
Até amanhã, abade. Adeus, Daniel. Olhe lá você como se porta,
rapaz. Juizinho!... senão está mal servido com a sua vida. Lembre-se
daquele frade...
Ai, se pegas a contar histórias,o chegas a casa à meia-
-noite.
Pois jáo conto.
E, fustigando a égua, desapareceu cedo da vista dos dois.
Logo que ele se afastou, Daniel ia a dirigir-se ao padre.
Sr. reitor, foi providencial a sua vinda. Acredite, porém...
O gesto, cheio de severidade, com que o reitor o acolheu,o
ô deixou continuar.
Basta.o quero escutá-lo. Explicaçõeso as preciso, por-
que ouvi tudo; justificaçõeso as tem, nao as pode ter, para dar.
Boas noites.
E, colocando-se diante da porta das suas pupilas, à frente da
qual haviam chegado, afastou-se para deixar passar Daniel.
Mas...—ia este a dizer.
Boas noites repetiu secamente o reitor, eo secamente,
que fez perder a Daniel a coragem para insistir. Curvando-se com
respeito diante do velho, retirou-se dali.
O reitor, ficando, entrou em casa das raparigas.
Depois de trocar algumas palavras com Margarida, chamou de
paxte Clara, e em tom um pouco desabrido, disse-lhe:
Julgo que recebeste hoje um aviso do teu anjo da guarda,
Clara. Olha agora se o aproveitas.
Quando a rapariga, levantando para ele os olhos, ia a interro-
gá-lo, o padre afastou-se, dizendo-lhe simplesmente :
Adeus.
Dissera bem o reitor.
Clara ouvira de facto o seu anjo da guarda.
Aquela noite, conheceu o perigo do caminho que seguira, a sor-
rir; e resolveu fugir-lhe. E iria já a tempo? pensava ela.
Da involuntária entrevista, que tivera com Daniel, sairia salva
de todo? de todo livre de suspeitas?
A voz de João Semana, chamando-a de longe, mostrava-lhe que
ela fora reconhecida. Mas que se passara depois? O reitor parecia tam-
m estar informado do sucedido. como o teria suspeitado ou previsto?
Mas, por outro lado, o tom moderado das palavras que lhe dissera
levou-a a crer que ele conhecia a verdadeira extensão da sua culpa,
eo a exagerava.
No meio desta corrente de pensamentos, Clara às vezes estremecia.
Se no dia seguinte, lembrava-se então, se levantasse contra si
um desses boatos surdos, rápidos a propagar-se, prodigiosos a crescer,
que infamam, que mancham de lodo as mais firmes reputações, e ino-
cularli seu veneno subtil numa existência inteira?
A esta lembrança, Clara erguia as mãos com terror.
Aoss de uma imagem da Virgem, pedia então misericórdia,
e prometia evitar, dali em diante, todas as ocasiões de novos perigos.
Daquela condenação, cuja lembrança bastava só para a assustar
assim, a salvara um acaso... ou antes a Providência.
O reitor, a cujos ouvidos continuavam a chegar todos os dias vozes
desfavoráveis a respeito de Daniel, andava inquieto por causa da assidui-
dade com que o vira frequentar as proximidades da casa das suas pupilas.
Aquelas prolongadas palestras, da rua para a janela, podiam dar
que falar, receava ele ; e cedo viu que efectivamente iam já dando.
Qualo foi, pois, o seu desassossego, quando de casa de um
pobre enfermo que fora confessar, viu às trindades daquele dia, passar
furtivamente, e meio disfarçado, um homem, que, apesar de todo o
disfarce, o reitor logo conheceu ser Daniel!
Deu-lhe uma pancada o coração, e, mal que pôde desobrigar-se
da sua santa tarefa, saiu apressado, e correu a casa de Margarida,
a quem perguntou pela irmã.
Sabendo que naquele momento tinha ela saído para a fonte, para
ali se dirigiu também o velho, mas por outro caminho, que o levou
ao próximo pinheiral.
Chegou ali justamente quando Daniel aparecia a Clara; e pôde,
sem. ser visto, assistir a todo o diálogo entre os dois.
Foi por esta forma que o reitor, a quem muitas vezes estava con-
fiado o papel de Providência na sua paróquia, conseguiu salvar opor-
tunamente a boa fama de Clara, no conceito de João Semana e, prova-
velmente, na opinião geral da terra.
Se as recordações desta noite agitavam o espírito de Clara,o
deixavam mais indiferente e tranquilo o de Daniel.
Cruzando a passos largos o pavimento do quarto, velou grande
parte da noite.
Poucas provações mais amargas há para os caracteres humanos
do que a de se sentirem desprezados pela própria consciência.
Experimentava-o Daniel então.
m razão os que desconfiam de mim pensava ele conhe-
cem-me melhor do que eu próprio. Que subtis distinções ando eu a
marcar por, entre o meu proceder e o de muitos miseráveis, que
me causam tédio e desprezo? Que ridículas lamentações de homem
o compreendidoo as minhas? É no que se vingam sempre aqueles,
cujos sentimentos inspiram aversão geral... Clamam que aindao
encontraram espírito ou coração de harmonia com o seu. Vejamos.
Poiso é infame o meu procedimento ? Que lhe falta para ser comple-
tamente infame? Que espero eu de Clara? Para que a persigo? Para
que a procurei hoje?o hesitei em dar estes passos, que, na apa-
rência, a podem perder... E hesitaria em perdê-la na realidade ? Quem
mo assegura? Tenho acaso certeza disso?
E, passeando mais agitado ainda, conservou-se por muito tempo
sob o domínio desta idéia. Depois continuou com mais exaltação :
Tenho, sim.o rebaixemos também a tal ponto os nossos
sentimentos. Eu sou volúvel, imprudente, inconsiderado ; conheço-o,
e odeio-me, quando me vejo assim ; porém,o sou perverso ; porém,
o sou capaz de uma traição infame... Queria que me acusassem de
tudo, mas queo me suspeitassem disso, e muito menos Clara, essa
generosa rapariga, e muito menos o reitor, esse homem honrado...
Mas que importam as minhas intenções, se dou lugar a que se diga,
a que se possa pensar uma calúnia ! Seo fosse hoje o reitor, a quem
a Providência parece haver inspirado, que se diria amanhã nesta mexe-
riqueira terra? De mim, digam lá o que quiserem; mas daquela
rapariga...—É tempo de me fazer outro homem. E poderei conse-
gui-lo ? Este meu temperamento é de uma mobilidade ! Pequenas causas
fazem-lhe perder o equilíbrio, que por momentos a razão consegue
dar-lhe. Será pois isto em mim um mal incurável? É verdade que os
médicos falam de certos estados nervosos, que pequenas impressões
sustentam e exacerbam, e que, muitas vezes, uma profunda comoção
consegue serenar, dando a esses temperamentos a estabilidade que
o tinham. O estado do meu coração é assim. Talvez ainda,o experi-
mentasse a tempera, que tem de o fortificar ; talvez. Em todo o caso
devo lutar comigo mesmo. Mas poderei resignar-me à má opinião
que de mim conserva aquela rapariga ?o ; preciso falar-lhe uma
vez ainda, para que me perdoe e me restitua a sua confiança; serei
depois para ela um amigo sincero, um verdadeiro irmão. Hei-de falar-lhe.
XXXIV
Uma noite, depois de dormido o primeiro sono, ergueu-se Pedro,
como solícito proprietário, para ir rondar um pinhal, distante
de casa, onde, segundo informações recebidas, se tinham ulti-
mamente praticado alguns roubos de pinheiros.
Ao vê-lo sair, o criado mais velho da casa, o mesmo ao qual vimos
Daniel disposto a fazer compreender a teoria dos eclipses, quis acom-
panhá-lo,
Deixe-me ir consigo, Sr. Pedrinho.
Vai-te daí, homem ; euo sou nenhuma criança para precisar
de companhia.
Mas...
Deita-te ; já te aisse.
E o noivo de Clara saiu, de espingarda ao ombro, assobiando
uma toada popular.
Apesar da quase certeza que tinha de seo encontrar àquela
hora com o principal e constante objecto dos seus mais gratos pensa-
mentos, dirigiu o itinerário, com prejuízo da economia de tempo, pela
rua em que morava Clara.
É que é já um prazer contemplar os muros, a cujo abrigo se sabe
repousar a mulher que se ama; prazer inocente, entre os que mais
o são, e que, desde tempos imemoriais, os amantes saboreiam.
Fique a leitora, sabendo que, muitas vezes, enquanto dorme, se
lhe estão fixando nas janelas, desapiedadamente cerradas e obscuras,
os olhos amorosos de alguns desses tresnoitados passeadores.
A medida que se aproximava do lugar, que o obrigara a este
rodeio, ia diminuindo Pedro a velocidade da marcha.
Chegou perto do muro do quintal, e insensìvelmente parou, Lem-
brou-lhe que bem podia ser que, apesar do adiantado da hora, Clara
estivesse acordada, pensando nele talvez. Que amante deixaria de
fazer, nas mesmas circunstâncias, iguais suposições?
como meio de verificação, pôs-se a cantar:
Meia-noite, tudo dorme :
Só euo posso dormir;
Poiso me deixa este amor,
Que me fizeste sentir.
Depois de pequena pausa, continuou:
Este amor que ô minha vida,
Vida do meu coração,
Atrás do qual meus ..
A interrupção foi devida a certo rumor, que Pedro julgou ouvir
dentro do quintal. Calou-se por isso, e pôs-se a escutar.
Tudo caiu em silêncio.
Aplicando porém o ouvido à fechadura, pareceu-lhe perceber
o murmúrio de vozes abafadas.
Quem anda aí dentro?! perguntou em voz alta Pedro,
batendo à porta.
Ninguém lhe respondeu.
Continuou a escutar, e de novo julgou distinguir o mesmo som,
Ia interrogar outra vez. mas. reflectindo, mudou de plano.
Continuou o seu caminho, cantando:
Este amor, que é minha vida,
Vida do meu coração,
Atrás do qual meus suspiros
E meus pensamentos vão.
E seguiu, cantando assim, até certa distância da casa; depois,
retrocedendo, voltou, com todas as cautelas, para junto da porta de
onde viera o rumor que o estava inquietando.
—Se fossem ladrões pensava Pedro que haviam de fazer
as pobres raparigas, neste sítio solitário, e sem braço de homem em
casa para as defender?
E este pensamento decidiu-o ao sair dali sem averiguar aquilo.
O seu estratagema prometia produzir efeito. Desta vezo era
possível a ilusão. As vozes percebiam-se distintamente, e como em
conversa acalorada, e entre elas, Pedro julgou reconhecer uma de
mulher.
Então, sentiu ele um doloroso confrangimento de coração. uma
idéia .terrível, súbita e sinistra, como a luz do relâmpago, lhe iluminou
o espírito, e, pela primeira vez, concebeu suspeitas que o fizeram
estremecer.
Se Clara...—murmurou, subjugado por aquela idéia. E um
tremor convulso passou-lhe pelos membros com tal violência, que o
constrangeu a apoiar-se à ombreira da porta parao cair. Naquele
estado, a pulsação febril das artérias das fontes impediu-o de escutar
mais nada; o coração palpitava-lheo agitado que o ouvia bater.
O som das vozes tornava-se mais audível, como se se aproximas-
sem da porta as pessoas que assim conversavam.
Pedro levou maquinalmente ao ao gatilho da espingarda, e
ficou à espera com a vista fixa e a respiração reprimida. Era terrível
o seu olhar naquele momento !
Ouviu-se o voltar da chave na fechadura, a porta abriu-se lenta-
mente, e um diálogo, travado a meia voz, chegou aos ouvidos de Pedro ;
mas a energia da vertigem, que lhe tomara os sentidos,o lho dei-
xava perceber, senão de maneira confusa.
Foi para lhe dizer isto, só para lhe dizer isto, que consenti
em ouvi-lo aqui dizia uma voz feminina. Bem vê que seria uma
loucura se continuasse ; mais do que uma loucura, seria um pecado
até. Agora espero que cumpra a sua promessa. Mostre que é homem
de bem. Adeus.
Adeus respondia-lhe outra voz. E perdoe-me seo posso
ainda dizer friamente esta palavra. Mas verá se saberei emendar-me.
Obrigado pela confiança que teve em mim. Adeus.
E, depois disto, um homem, todo envolvido numa capa comprida,
saiu da porta do quintal, tendo antes apertado a mão, que se lhe esten-
dia de dentro.
Pedro mal tinha ouvido, e mal conseguiu ver tudo aquilo ; passa-
va-lhe pelos olhos como que uma nuvem de fogo. Correu para este
visitador nocturno com a impetuosidade, de que o animava a raiva,
e, apontando-lhe ao peito a espingarda, gritou com um rugido aterrador :
Alto, miserável ! Pára, ou estás morto !
O homem ficou imóvel.
Dentro do quintal ouviu-se então um grito dilacerante, e a porta,
violentamente impelida, veio fechar-se de encontro aos batentes.
Pedro rompeu para o desconhecido, que recuou diante dele.
Quem és ? Quero conhecer-te antes de te matar, infame !
E como o embuçado cada vez procurasse ocultar-se mais, Pedro
lançou-lhe a mão, e, com um movimento rápido, descobriu-lhe o rosto,
arrojando ao chão a capa em que se envolvia. O luar bateu em cheio
nas faces do outro.
Reconheceu Daniel.
É inexprimível em linguagem conhecida o que neste momento
se passou no coração do pobre rapaz.
Daniel ! bradou ele, sufocado pela intensidade da comoção
que recebera.
Daniel conservava-se mudo e abatido. Dir-se-ia fulminado.
Houve um longo espaço de silêncio.
Pedro sentiu que se lhe formava no coração uma tempestade
medonha ; um raio de razão, que lhe luzia ainda, inspirou-o para dizer
em voz, já cava e abafada:
Por alma de nossa mãe, Daniel, por alma de nossa mãe, sai
daqui, seo queres que suceda alguma desgraça.
Ouve-me, Pedro, escuta-me tentou dizer Daniel ; mas as
palavras a custo se lhe articulavam, e a voz prendia-se-lhe na garganta.
Daniel, foge, foge daqui, se meo queres perder! foge,
irmão ! bradava Pedro ; e, como que já sem consciência, contraíam-
-se-lhe espasmòdicamente os dedos sobre o gatilho da espingarda.
Daniel ia a falar-lhe ainda, quando sentiu umao pousar-se-lhe
no ombro, e, em seguida, um homem que, durante o ocorrido, se apro-
ximara do lugar, veio interpor-se entre ele e o irmão.
Retire-se exclamou este homem com voz severa, voltan-
do-se para Daniel. Eu tinha previsto esta desgraça !
Era o reitor.
Ia a dirigir-se depois a Pedro, mas jáo o encontrou ali.
O padre estremeceu.
Meu Deus, é preciso evitar algum crime. O rapaz vai louco.
Pedro batia violentamente com a coronha da espingarda na porta
do quintal, que pouco lhe poderia resistir.
Daniel, vendo-o, ia correr em defesa da mulher, cujo futuro per-
dera talvez irremediavelmente.
O padre susteve-o com energia, pouco de esperar daquela idade
avançada.
Retire-se bradou com voz vibrante e exaltada.o está
ainda satisfeito com a sua obra? Quer acabar de perder aquela pobre
rapariga ?
Mas ele vai matá-la !
Estou eu aqui para velar por ela. Cabe-me esse direito, que
me foi conferido por suae no leito, onde agonizava. Retire-se !
O reitor naquele momento transformara-se ; sublimara-se a ponto
de exercer um império completo na vontade de Daniel ; no olhar do
velho parecia havero sei que influxo magnético, que obrigou Daniel
a baixar a cabeça e a retirar-se, constrangido por irresistível impulso.
Pedro tinha arremetido contra a porta do quintal com verdadeira
desesperação. um pensamento sinistro o dominava; a raiva do ciúme
e da vingança perturbava-lhe a razão.
Afinal a porta cedeu. Pedro penetrou no quintal como verda-
deiro louco ; empeceu-lhe, porém, os passos uma mulher, que lhe
caiu aos pés, bradando:
Pedro, Pedro,o cause,o queira causar a minha perdição !
Este grito fê-lo recuar. A voz desta mulher, que o implorava assim,
Pedro passou da agitação do delírio à imobilidade do letargo.
Que é isto? bradou, enfim, como ao acordar de um mau
sonho. Margarida aqui?!
Era efectivamente Margarida a mulher que, de joelhos e mãos
erguidas, lhe jazia aos pés.
Desenhava-se no rosto da simpática irmã de Clara o mais vio-
lento desespero ; e quem sabe o que lhe ia no coração !
Era pois Margarida a que tivera a entrevista com Daniel? aben-
çoada suspeita iluminou pela primeira vez as trevas do espírito atri-
bulado do pobre Pedro ! Abençoada lhe chamei, pelo conforto que
gerou ; porque, na horrível tortura de coração daquele desgraçado,
foi um bálsamo consolador.
Margarida disse-lhe ele, trémulo de incerteza e de espe-
rança fale-me a verdade. Em nome de Deus, diga-me : quem estava
aqui com Daniel? 'Diga-me, diga-me tudo, pelo Salvador.
Houve um momento de silêncio. Margarida parecia hesitar; por
fora da porta apareciam -já alguns rostos de curiosos, que chegavam
atraídos pelo ruído.
AS PUPILAS DO SENHOR REITOR
Quem estava aqui com Daniel? repetiu Pedro.
Na alma de Margarida alguma coisa se passou de terrivelmente
doloroso, que quase a fez desfalecer.
Fechando os olhos, como quem adopta uma resolução desesperada,
como quem se despenha num abismo, respondeu com a voz trémula,
'mas perfeitamente inteligível :
Era eu !
A turbação, em que estava,o lhe impediu de perceber o sus-
surro de vozes, que, de fora da porta, acolheu esta resposta.
Pedro, alheio a tudo o que o rodeava, ergueu as mãos para o
u ; e rebentando-lhe as lágrimas dos olhos, exclamou :
Bendito seja Deus! Sirva de remissão dos meus pecados o
tormento destes poucos instantes !
Quando o pároco chegou, encontrou-os nesta posição.
Caminhou com rosto severo para a mulher que via ajoelhada,
mas recuou também, espantado, ao reconhecer Margarida.
Margarida! Pois era...? O reitor suspendeu-se, antes de
concluir, como se um pensamento súbito lhe ocorrera.o pode
ser,o pode ser. E aproximando-se de Margarida, tomou-lhe o
braço com energia, bradando-lhe: Que quer dizer isto, minha filha?
Que fazes tu aqui?
Margarida juntou as mãos, e, olhando para o reitor com uma
expressão particular, respondeu:
Peço misericórdia!
Para que culpa, minha filha?!—perguntou o padre, queo
tirava os olhos dela.
Para a minha...
Para a... Entendo ! disse ele, como falando para si. E devo
eu consentir que?... Talvez que tenhas razão continuou, fitando em
Margarida um olhar de bondade e quase de respeito ; e acrescentou
a meia voz:—Seja como quiseste, como Deus to inspirou decerto.
Depois, voltando-se para Pedro : E que tens mais que ver aqui,
homem ?
Tenho que pedir perdão a todos.
O reitor empurrou-o amigavelmente pelos ombros, dizendo-lhe :
Vai, vai. Deixa isso para outra vez.o temos agora vagar
para justificações.
Mas, sr. reitor...
Então! Vai para a tua vida, Pedro. Eo me andes mais de
espingardas, queos companhias.
Dando depois com os olhos nos poucos espectadores desta cena,
que se conservavam boquiabertos à porta, exclamou, todo irritado :
E vocês que fazem, pasmados? Quem vos chamou?o
soiso prontos para o trabalho. Andar ! e ter cautela com a língua.
Ouviram ?
Pedro saiu cabisbaixo. Os grupos dispersaram-se.
Logo que os viu retirar, o padre levantou Margarida, que se
conservava de joelhos e quase exánime, e disse-lhe comovido:
Foi um sacrifício heróico, Margarida, para o qual poucas teriam
fortaleza.
um sacrifício ? !...
Sim,o é a mim que iludiste, filha, que te conheço bem e
há muito. Vai ter com a verdadeira culpada e...
o a condene, sr. reitor ; o seu anjo bomo a abandonou
ainda desta vez.
Bem sei respondeu o reitor. Poiso te vejo eu aqui ?
Mas vai, e acaba a tua obra abençoada, confortando-a e chamando-a
ao caminho do arrependimento. Eu também tenho a minha tarefa. E dou
graças a Deus por ter permitido que os meus deveres paroquiais me
conservassem por fora até estas horas. Até amanhã, minha filha.
E o reitor saiu, mas em vez de tomar o caminho de casa, voltou
em direcção oposta.
XXXV
cena a que, um tanto imprevistamente, fizemos, no último capítulo,
assistir o leitor, exige des algumas palavras de explicação.
Releve-se-nos, portanto, a rápida digressão retrospectiva, em
que vamos entrar.
Daniel, como tínhamos dito, prometera a si próprio falar, uma
vez ainda, a Clara, para atenuar a má impressão que a sua última entre-
vista pudesse ter deixado no espírito da rapariga, e inspirar-lhe de
novo a confiança perdida.
Parecerá talvez um meio singular este de corrigir os efeitos de
um passo imprudente por outro mais imprudente ainda; mas a razão
humana, sofismando com a maior candura do mundo, concebe muitas
vezes projectos assim.
Em Daniel, sobretudo, eram freqüentes estas resoluções irreflec-
tidas. Inspirava-lhas um sentimento de mal fundado brio; mas nem
sempre era bastante a força do seu carácter para briosamente as sus-
tentar até ao fim.
o aprendera ainda a desconfiar de si, a ponto de fugir, como
devia, a essas ocasiões de tentação.
Foi por isso que, esquecido já das suas promessas a Clara, reno-
vou outra vez os antigos passeios pelas circunvizinhanças da casa dela,
sempre com esperança de obter a entrevista, que imaginara neces-
sária à reivindicação do seu crédito.
Clara evitava porém todos os ensejos de se encontrar com ele;
constrangendo-se até para isso a uma estreita reclusão.
Depois da cena da fonte, prometera ela a sua irmã e ao reitor
o falar com Daniel, até estar efectuado o casamento, que o pároco,
mais que nunca, procurou acelerar.
Assim, todas as tentativas de Daniel para vê-la e falar-lhe, ou na
rua ou na janela, saíam-lhe baldadas.
Longe de o desanimar este mau êxito, antes o estimulou, e irri-
tado pelas dificuldades que encontrava, formou resolução mais audaz.
um dia, entrando no quarto, Clara encontrou no chão e próximo
da janela, que deixara aberta, um papel dobrado.
Abriu-o e leu. Era um bilhete de Daniel a pedir-lhe, nos termos
mais respeitosos, uma entrevista — a última. Alegava em favor da sua
pretensão, oo poder resignar-se à desconsoladora idéia de ser mal
conceituado de Clara ; prometia e jurava respeitá-la como irmã, pois
como tal a considerava já ; e acrescentava queo deixaria de a per-
seguir, até que ela condescendesse a escutá-lo. Se receava, dizia ele
no fim, que essa entrevista desse lugar a interpretações injuriosas,
regulasse e impusesse ela as condições debaixo das quais a con-
cederia.
Esta carta, queo primava em laconismo, parecia, em boa lógica,
dispensar a entrevista requerida e na qual pouco mais restaria a fazer
do que desenvolver o tema, jáo extensamente assim parafraseado
por escrito. Mas a lógicao domina de ordinário situações daquelas.
Clarao respondeu ao bilhete, e continuou, mais que nunca, a
evitar Daniel.
Da parte deste continuaram pois as imprudências, às quais servia
de novo estimulo o despeito, esse poderoso fermento de paixões nas
almas mais sujeitas a elas.
Outro bilhete, recebido por Clara da mesma maneira, instava
ainda com maior veemência pela entrevista pedida.
Clara estava para referir tudo a Margarida, mas faltou-lhe o ânimo.
Este estado de coisas continuou por algum tempo mais ; até que
um dia Clara, animada da confiança em si, queo perdia nunca, e da
boa, que depositava nas promessas dos outros, resolveu consentir
em escutar Daniel.
o lhe prometia ele ser essa a condição indispensável parao
a perseguir de novo ! ?
Acabe-se pois este constrangimento em que vivo dizia
ela. Que posso eu recear ? a minha boa estrelao me abandonará.
Formada esta resolução, seguia-se regular a maneira de a levar
a efeito.
A curiosidade pública trazia muito vigiada a casa das duas irmãs ;
era pois difícil iludi-la. Demais, a promessa feita ao reitor e a Margarida
embaraçava Clara. Dai, diversos expedientes lembrados, pesados e
postos de lado, até enfim terminar pela adopção do pior de todos.
O excesso de prudência e de cautelas conduz muitas vezes a impru-
dências mais perigosas.
Clara comunicou a sua resolução a Daniel ; este, exultando pela
confiança que nela via transluzir, agradeceu-lha com efusão, e pro-
meteu a Clara, e a si próprio, mostrar-se digno dela.
Assim se preparava a entrevista, cujos resultados o leitor conhece.
Margarida porém que, observando as recomendações do pároco,
continuara a espiar a irmã,o era de todo alheia ao que se passava.
Naquele dia sobretudo julgou perceber nos modos de Clara
certa preocupação, que a fez mais vigilante.
Eram trindades quando Margarida ia, como costumava, fechar
por suas próprias mãos a porta do quintal. Clarao lho permitiu ; e
com tal instância teimou em se encarregar desse cuidado, aquela
noite, que Margarida teve pressentimento do que se estava prepa-
rando. Isto obrigou-a a ficar a, depois de se recolher ao quarto.
Apagou a luz, para que lheo suspeitassem a vigília, e nao aban-
donou a janela.
Passado tempo, viu e com que amargor de alma ! confirma-
das as suas suspeitas. Clara saía furtivamente de casa. Margaridao
hesitou ; e com passos incertos e o coração oprimido de tristeza, seguiu-a,
sem ser sentida. Valeu-lhe para isso a espessura das árvores que orla-
vam os arruados do quintal.
Naquele momento, a mais comovida das duaso era decerto
Clara.
Enfim, ouviu-se o ruído de passos na rua exterior ; a porta abriu-se,
e Daniel apareceu.
A impressão, que neste momento experimentou Margarida, foi
tal, que quase a fez sucumbir.
Cedo, porém, a reacção daquela vontade enérgica, apesar de
feminil, dominou a luta. Margarida continuou a observar.
Daniel, ao princípio, foi grave, e mostrou-se fiel à promessa que
fizera; mas, pouco a pouco, influíram nele as condições singulares
daquela entrevista. As palavras ganharam fogo, e. em breve, animava-as
já o entusiasmo impetuoso dos vinte anos. Esquecia-se que viera para
justificar-se, e ia agravando a culpa.
Clara, escutando-o,o conseguiu disfarçar completamente a
turbação que a dominava ; mas foram sempre dignas da noiva de Pedro
as palavras com que lhe respondia; assim ao traísse o tremor da
voz, a ânsia de respirar, e, mais que tudo, o facto de se achar ali,
àquela hora da noite, embora lhe atenuasse o delito o pensamento de
generosidade, que a animara a cometê-lo.
Mas os instintos nobres de Daniel só por momentos se deixavam
adormecer com as insidiosas caricias da fantasia ; pouco bastava para
os acordar vigorosos.
Desta vez produziu esse efeito salutar a cantiga de Pedro.
Escutando-a, ambos se sentiram arrependidos de se acharem
ali. Viram claro toda a futilidade de motivos que, momentos antes,
para eles justificavam de sobra este passo irreflectido, e curvaram a
cabeça.
É meu irmão murmurou Daniel ; que fará por aqui a
estas horas?
Trazido talvez pelao de Deus para... —disse, quase para
si, Clara, no mesmo tom de voz.
Adeus, Clara ; perdoe-me e esqueça mais esta imprudência
minha. Prometo-lhe que será a última. E de hoje em diante...
Adeus.
Foi neste momento que Pedro os interrompeu pela primeira vez.
O resto já é sabido.
Quando, no momento em que Daniel saía, Clara reconheceu
a voz do noivo, soltou um grito de terror, e, fechando instintivamente
a porta, caiu desfalecida na rua do quintal.
Foi então que Margarida correu, que a arrastou nos braços para
longe daquele sítio, e depois, sacrificando a sua reputação ao futuro
da irmã, veio cair aoss de Pedro como a verdadeira culpada.
O conceito que Pedro formava do carácter de Margaridao o
tinha deixado imaginar sequer que pudesse ser ela a que aceitara
a entrevista com o irmão. Apesar de todo o seu amor por Clara, era
maior ainda a confiança que depositava em Margarida.
O que viu depois espantou-o, mas deu-lhe grande alívio.
Clara ignorou tudo quanto ùltimamente se passara, pois, durante
todo esse tempo,o recuperara os sentidos. A noite tôda levou-a
num quase delírio, no qual imaginava ver Pedro e Daniel, travando
uma luta fratricida.
Margarida, velando à cabeceira da doente, torcia as mãos de
desespero.
Meu Deus ! meu Deus ! dizia ela. Se lheo passa este
delírio, tudo está perdido. Pedro saberá a verdade.
Pela madrugada, porém, Clara sossegou ; um sono reparador
acalmou-lhe a febre, e, após ele, só lhe ficou o abatimento e uma pali-
dez geral, que denunciava a crise terrivel que tinha vencido.
Margarida, ao despertar de um sono, também inquieto, por que
mal passara, encontrou-a acordada e já aparentemente tranquila.
Receando renovar-lhe a crise em nada lhe falou. Clara olhava-a em
silêncio, mas como queo ousava também interrogá-la.
Afinal fez um esforço, fitou na irmã os olhos, arrasados de lágrimas,
e disse com desalento :
Tudo está acabado ! De hoje em diante, todos me apontarão
ao dedo e me chamarão uma rapariga perdida.
Margaridao pôde também reprimir as lágrimas.
Que estás a dizer, Clarinha? Foi mau o passo que deste, foi;
mas sossega. Eu, que te ouvi, sei que estás inocente.
Ouviste ?
Tudo... Eu sabia... Suspeitava a verdade.
Mas ele...
Ele... Pedro? Nada sabe ainda.
Nada sabe? Queres enganar-me, Margarida? Poiso sur-
preendeu ele o... outro quando...
Mas ignora que fosses tu...
Então quem julga que era?
Margarida calou-se embaraçada, e desviou a vista do olhar fixo
da irmã.
Nao sei, mas... tenho a certeza de que eleo suspeita já de
ti... E sabes? é preciso fazer agora por te levantares, e alegrares-te,
para que, se ele vier por,o conheça, ao ver o estado em que estás,
a verdade, ou suspeite mais do que a verdade, que é ainda muito pior.
Vamos, veste-te ; foi uma nuvem a de ontem ; uma nuvem que passou.
Hoje está um solo vivo acrescentou, abrindo as portas das janelas
que dá força e alegria.. Ora anda, levanta-te.
Enquanto Margarida assim falava, Clara parecia engolfada em
profunda abstracção. Afinal, como se nada tivesse percebido de quanto
ùltimamente Margarida lhe dissera, exclamou com vivacidade :
Guida, eu quero saber como isto é. Pedro soube que estava
uma mulher ontem à noite no jardim. Se, como dizes, eleo suspeita
de mim, de quem pode pois suspeitar?
Margaridao respondeu, e abaixou os olhos, perturbada.
Guida, diz-me a verdade continuou Clara, mais inquieta
. Pedro julga-me inocente ?
Julga.
Quem é pois a seus olhos a culpada ?
A confusão de Margarida serviu de resposta.
De pálidas que estavam, tingiram-se então de um rubor de indig-
nação as faces de Clara. Meia erguida no leito, os olhos animados, os
lábios trémulos, exclamou :
Ele suspeita de ti ! de ti ! Margarida ? Pedro suspeitar de ti ?
E pôde ter um pensamento... e pôde imaginar que tu serias... Atre-
veu-se a acusar-te! Ele? Pedro? Mas diz-me, Guida, diz-me. como
fez ele isso? Quem lhe deu esse direito?
Fui eu.
Tu!
Sim, fui eu.o lho poderei eu dar?—acrescentou Marga-
rida, quase sorrindo, e afastando os cabelos desordenados que cobriam
a fronte da irmã.
Entendo. Perdeste-te para me salvar. Limpaste com os teus ves-
tidos a lama dos meus, para me apresentares pura aos olhos do meu
noivo, que com razão me supunha culpada ! Entendo. Viste-me perdida,
e fizeste como aquela criança que, há tempos, se afogou para livrar
um irmão da corrente ; salvaste-me, mas afundando-te. E havia eu de
consentir isto, Margarida?o má idéia fazias tu de mim, para imagi-
nares que eu te aceitaria nunca o sacrifício? Ó Guida, de mim aceita-
rías tu um sacrificio igual ?o : quero que Pedro saiba tudo ; que me
perdoe ou que me despreze depois ; a uma ou outra coisa me sujei-
tarei ; mas sacudir sobre a tua cabeça a vergonha que chamei sobre
mim, oh! isso...
Margarida tomou-lhe afectuosamente as mãos, e em tom persua-
sivo pôs-se a dizer-lhe :
Ora escuta, Clarinha. Hás-de primeiro ouvir-me com muito
sossego e muito juízo e depois dirás se eu tenho razão. Queres contar
a verdade a Pedro, dizes tu. Que fazes com isso ? Torná-lo infeliz, fazes
com que entre ele e o irmão exista sempre, daí por diante, um motivo
para aversão ; e a ti, que amas Pedro, apesar de uma leviandade de
momentos e a mim, que te amo, e as ambas, e a todos, a todos vais
fazer infelizes. Eu que posso perder em que Pedro continue na mesma
suspeita? Se ninguém mais a tem? forçou-se ela a dizer, mas bai-
xando os olhos, porque bem sabia que mentia. Eleo é capaz de a
divulgar. E depois, olha, Clarinha, quem nunca pensou em grandes
futuros,o tem que ter saudades de projectos desfeitos. Eu jáo formo
projectos há muito ; acredita. Cansei-me. Hoje recebo tudo da mesma
maneira. E olha continuou sorrindo que, dentro em pouco, chego
o diferençar o que é bem do que é mal. Tenho-me feito assim.
Que lhe hei-de eu fazer ? Mas tu, minha pobre irmã, que ainda fazes tantos
projectos,o te custaria a perder o mais risonho de todos? De mais
a mais, eu tenho uma dívida antiga a pagar-te, eo sossego enquanto
ao pago. Lembras-te quando me vinhas ajudar nas tarefas, e repar-
tías comigo a tua ração de merenda ?o serviços que nunca mais esque-
cem. Deixa-me pagar-tos da maneira que posso. Se soubesses como é
uma consolação para os pobres achar um meio de saldar as suas dívidas !
Então, vamos, prometeso dizer nada?
Guida, Guida ! O que me pedes é impossível. Seria um grande
pecado, se eu deixasse assim a outra expiar a falta que é toda minha.
Clarinha, naos que, de outra sorte, causas a desgraça de
tantos ?
Clara levou as mãos às faces, e calou-se.
Neste tempo o reitor entrara de mansinho na sala. Pousara o
chapéu e a bengala, e pusera-se a contemplar as duas irmãs, que lhe
nao sentiram a entrada.
Passado algum tempo de silêncio, Clara levantou de novo a cabeça,
e com voz lacrimosa, exclamou :
Pois deverei aceitar este sacrifício, meu Deus?
Deves respondeu o reitor, adiantando-se. É necessá-
rio respeitar inspirações dos anjos como este ! e apontava para Mar-
garida. Eu também hesitei ao princípio, mas, depois que julguei
melhor, resolvi obedecer-lhe. Minha filha, o que se passou na noite
de ontem, tem-no por um aviso do Céu. Dá graças a Deus por teo
haver abandonado a tua boa estrela, e faz por nunca mais incorrer
em um perigo daqueles. Mas aceita;o é só a tua felicidade que
recebes do sacrifício de tua irmã, é a de Pedro e a de uma família inteira,
é a da própria sacrificada, poiso é assim, Margarida?
Se for preciso que lho peça de joelhos... respondeu a bon-
dosa rapariga.
o há-de ser. Agora vou procurar Daniel. A Pedro já eu
confortei. Consegui dissuadi-lo de vir aqui, porque suspeitei que a
sua vinda podia ser funesta, enquanto se nao desvanecessem daqueles
olhos todos os sinais de lágrimas. Danielo o pude encontrar ainda.
O pobre rapaz errou toda a noite por esses caminhos, e Deus queira...
Jesus, meu Deus! exclamou Margarida, fazendo-se pálida.
Acaso receia que ele...?
Tenho fé que nenhuma desgraça sucederá ; mas é mister olhar
por isto. Adeus.
XXXVI
A
S vagas apreensões do reitor, em relação a Daniel, comuni-
caram-se a Margarida, e nela adquiriram maior intensidade.
As afeições arreigavam-se profundamente naquele bom coração ;
baldado era impedir que viessem à luz e florescessem ; a cada momento,
recebiam elas uma vida nova, e desenvolviam-se, como estas árvores
que, cortadas, todos os anos, rebentam a cada Primavera, brotando
jovens renovos.
o lá cobrir de gelo um coração assim. Tem vida de sobra para
todo o fundir em lágrimas, e inflamar-se depois ainda.
Tendo salvado a irmã, a generosa rapariga só tinha, agora, ora-
ções para pedir ao Senhor a salvação de Daniel. De si esquecera-se!
Sublime esquecimento !
Cumprindo o que dissera, pusera-se o reitor a caminho, a pro-
curar Daniel. Levava o coração apertado o bom do pároco, ao atra-
vessar lugares, onde, segundo os seus cálculos, mais provável seria
encontrá-lo.
Muitos desses lugares eram os mesmos que, havia anos, seguira
com uma intenção análoga — a de espiar os passos do seu pequeno
discípulo, que já então mostrava o que viria a ser.
Lembrava-se agora o reitor daquele dia, e de como fora encon-
trar o rapaz, no mais remoto sítio da aldeia, em diálogo pueril com a
pequena pastora, que hoje, por notável coincidência,o intimamente
se achava ligada outra vez ao seu destino.
o sei que idéias associadas estas trouxeram consigo, que,
muito contra o que era de esperar, o reitor pôs-se a sorrir.
Dir-se-ia que estava entrevendo um desenlace feliz a todo este
enredo, e que, a pensar naquilo, se esquecera das críticas circuns-
tâncias presentes.
Mas as idéias negras voltaram cedo a assombrar-lhe o semblante.
Que será feito do rapaz ? dizia o padre consigo. Esta
gente da cidade éo sujeita a loucuras ! É ver aquele infeliz, de quem
falaram as folhas do Porto, que,o sei por que histórias de amores,
se atirou das Virtudes abaixo. Quem me diz a mim que Daniel... em
um momento de desespero... Nossa Senhora nos valha! Mas tem-se
visto coisas!... Que gênio aquele! A quem sairá este rapaz? A mãe,
urna santa mulher, o Senhor a tenha em glória ; o pai, um homem sério...
Mas, na verdade, dá-me que pensar este desaparecimento ! Eleo
dormiu em casa...o teve ânimo de se encontrar com o irmão talvez...
Santo Antônio nos acuda ! Quem sabe se iria para o Porto ? Pode ser.
Antes fosse.
Ia pensando nisto o velho pároco, quando ao tomar por a ponte
de madeira, que atravessava um despenhadeiro, de cujo fundo pedre-
goso chegava aos ouvidos o fragor medonho de uma torrente, se encon-
trou, face a face, com o objecto da sua pesquisa.
Passou um calafrio pelo reitor ao ver Daniel naquele lugar, e ao
reparar-lhe para as feições.
Daniel estava excessivamente pálido e com o rosto desfigurado
pela vigília, e mais ainda pelas angústias de espírito que naquela noite
o torturaram.
Olhava com a vista espantada, e numa espécie de fascinação, o
abismo, a que ficava sobranceiro, e parecia atento a uma voz interior,
que o impelia ao suicídio.
O reitor parou, fixando nele um olhar perscrutador.
Que faz aqui ? perguntou-lhe, segurando-o com força pelo
braço, como se pretendesse desviá-lo do precipício.
Daniel levantou para o padre os olhos entorpecidos, e em seguida.
baixando-os de novo para o fundo do despenhadeiro, respo deu com
uma frieza, que fez estremecer o velho:
Estava a fazer contas comigo mesmo ; assistia ao meu julga-
mento e...
Ora vamos.o seja criança. Deixe-se de loucuras. Venha-se
embora.o queira fazer a infelicidade dos mais, dos que o estimam,
já que a sua lhe mereceo pouca importância. Lembre-se de seu pai,
e veja lá se quer pagar-lhe assim os sacrifícios que tem feito por si.
Venha comigo.
Sr. reitor,o se ocupe de mim. Repare que está falando com
um miserável.o creia que me pode regenerar pelo arrependimento,
Eu sou relapso. A minha alma fraca sabe sentir mas nao sabe vencer-se.
Sabe sentir, disse eu? Nem isso. Em mim já se apagou todo o senti-
mento moral.
o diga blasfêmias, filho,o descreía assim. A, é o pri-
meiro passo para a regeneração de que fala.
A? Agora?... Tenho-a na quietação da morte. E outra vez
fitou a vista na torrente.
Chama quietação à morte ? Engana-se ; depois dela é que prin-
cipia muitas vezes o maior movimento, o movimento sem fim, sem
remissão, o eterno. Mas oiça, Daniel ; eu concebo o desespero do seu
coração neste momento. Pesa-lhe o que tez? Tanto melhor.o o qui-
sera vero endurecido, que dormisse tranquilo depois das cenas
desta noite. Sente doloroso o pungir dos remorsos ; pois é essa a porta
aberta à expiação.
Remorsos ! E daqueles que só acabarão, quando este amal-
diçoado coração deixar de bater.
Que durem como preservativo de novas loucuras, eo virá
mal daí. Mas escute : julga haver destruído o futuro de seu irmão, ima-
gina que lhe espremeu a esponja de fel no copo que o pobre moço
preparava para levar aos lábios ? E assim esteve para ser ; e, se fosse,
também euo sei que vida se prepararia para esse seu coração incor-
rigível. Mas tranquilize-se: Deus foi misericordioso; enviou um dos
seus anjos protectores. Tudo está salvo.
Salvo ? ! Que salvação pode haver ? como desviar a desgraça
iminente sobre as cabeças deles?
Entãoo lho estou eu a dizer? Esquece-se das asas do anjo?
Clara foi protegida por elas. Pedro ignora que fosse a noiva dele a
que esteve no jardim a noite passada.
o queira iludir-me; Pedro surpreendeu-me quando...
Bem sei. Maso a viu.
o se precipitou ele contra mim, com a raiva do ciúme ?
A estas horas, está arrependido.
Arrependido !o o vi eu ainda correr, cego de paixão, para
o quintal? Diga-me o que sucedeu depois. Clara?...
Jáo estava, quando ele entrou.
—Pedro?.
Retirou-se passado tempo, manso e pesaroso.
Mas...
Em uma palavra, Pedro julga haver-se enganado.
Enganado ? E como podia enganar-se ?
Sendo outra a mulher da entrevista.
E quem mais podia ser?
Margarida, a irmã mais velha de Clara.
Mas ela pugnará pela sua inocência !
Pelo contrário. Foi ela quem se acusou.
Ela ? ! E levou-a a isso ?
A felicidade da irmã leviana, maso criminosa, cujo futuro
viu ameaçado.
E existem ainda anjos assim neste mundo, sr. reitor?
Existem, existem, homem descrente e desalentado, existem
respondeu o padre com gesto severo e sirva-lhe esse exemplo
heróico, para lhe dar crença e fortaleza.
E há quem lhe aceite a abnegação?!
Assim é preciso. Ninguém a pode recusar sem sacrificar alguma
coisa, além da própria felicidade.
Daniel calou-se. Olhou mais uma vez para a espuma da torrente ;
mas eram já menos poderosas as seduções do abismo. Levantou depois
os olhos ao Céu, e, a meia voz, disse, quase só para si:
como me sinto pequeno e miserável, diante daquele exemplo !
E há quem julgue em decadência moral o mundo ao qual descem ainda
almas assim!
E calou-se outra vez.
O reitor observava-o.
Depois de algum tempo de silêncio, o padre, pousando ao
no ombro de Daniel, disse-lhe afavelmente:
E porqueo pede a essa alma, que admira tanto, um pouco da
sua angélica fortaleza? porqueo procura purificar a natureza, dema-
siado terrena, do seu malfadado coração, na abençoada influência dela?
E ser-me-á concedido?
É ; siga-me respondeu o reitor, nao disfarçando o seu con-
tentamento. E, dirigindo o caminho, prosseguiu: Talvez que, ven-
do-a, tenha memórias a avivar. Mas oiça, Daniel ; se, como diz, des-
confia do coração e tem razão para isso faça por o subjugar, e
deixe dominar a consciência, a consciência, que ontem mesmo, atra-
s da loucura que foi loucura decerto aquilo que ontem mesmo
lhe devia estar exprobrando o seu mau proceder. Agora veja também
como se apresenta a seu irmão. Olhe que é necessário que ele viva
na crença em que está, ou morre para a felicidade. Veja o que faz.
Vamos.
Daniel, com a cabeça inclinada sobre o peito, seguiu maquinal-
mente o velho reitor.
XXXVII
P
ELAS dez horas da manhã desse dia, estava Margarida na sala,
onde ordinariamente trabalhava, tendo, à volta de si, uma
turba de rapariguinhas, ocupadas em diversos trabalhos de
costura.
Em, junto dela, dava uma destas lição de leitura. Margarida
seguia o texto, olhando por cima dos ombros da criança, corrigindo-
-lhe os erros, às vezes com um sorriso de afabilidade, outras com uma
inflexão de voz maternalmente severa.
Era nos Evangelhos que a pequena lia.
O reitor recomendara o livro a Margarida, dizendo-lhe que o
ensinasse às discípulas, que era guia seguro.
A criança lia naquele momento a parábola do filho pródigo, em
S. Lucas.
«E o filho lhe disse: Pai, pequei contra ou e diante de ti;
e daqui em dianteo sou digno de ser chamado teu filho.
«Disse, porém, o pai aos seus servos: Tirai o melhor vestido e
vesti-lho, e metei-lhe um anel no dedo e os sapatos nos pés.
« E trazei o bezerro gordo, e matai-o, e comamos e alegre-
mo-nos.
« Porque este meu filho era morto e reviveu, e tinha-se perdido
e achou-se. E começaram a alegrar-se.»
O reitor, queo usava cerimônias em casa de suas pupilas,
entrou neste momento, com Daniel, na sala imediata. Percebendo que
Margarida ainda estava ocupada com a tarefa, queo de boa von-
tade tomara sobre si, disse a Daniel, convidando-o com um gesto a
sentar-se e fazendo-lhe ao mesmo tempo sinal para queo interrom-
pesse a lição:
Esperemos.o perto de onze horas. Deve estar a acabar.
E acrescentou, suspirando : Que rapariga esta, meu Deus ! Depois
do que se passou ontem, já hoje a cumprir as suas obrigações, com
aquela serenidade do costume! É admirável, na verdade!E depois
continuou ele, falando ainda a meia voz se soubesse, Daniel, como
nobremente se votou ao trabalho, ela, a quem a irmã franqueava tudo
quanto possuía? Outra que fosse... mas aquele coração é de um
quilate ! E que penetração de espirito, que luz de inteligência aquela !
Fez quase só por si a sua educação.
E foi esta a que se sacrificou ? perguntou Daniel.
Foi.
Ambos de novo se calaram.
A criança concluía neste momento o texto bíblico :
«Ele, porém, lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas
as minhas coisaso tuas.
« Convinha-nos, porém, alegrar-nos e folgar ; porque este teu irmão
era morto e reviveu, e tinha-se perdido e achou-se.»
um beijo, que o reitor e Daniel ouviram distintamente, foi a recom-
pensa concedida por Margarida à discípula, ao terminar a leitura, que
ela fizera com inteligência e numa quase expressiva melopéia, perfeita-
mente adequada à poesia dos versículos.
Depois foi a voz de Margarida, que lhes chegou aos ouvidos;
sonora, suave, melancólica, cheia de sentimento e bondade, ecoou
saudosamente no coração de Daniel, que ma podia explicar a natu-
reza da comoção que experimentava ao ouvi-la.
Olha, Ermelinda dizia ela hás-de ver se decoras, para
que nunca te esqueçam, aquelas palavras de Cristo: «Há mais alegria
nou sobre um só pecador, que se arrepende, do que sobre noventa
e nove justos, queo necessitam do arrependimento». Diz isto mesmo
a história que leste. Jesus Cristo falava ao povo de maneira que o povo
todo o entendesse ; por isso lhe contou a história do filho pródigo.
Ou é também a casa do pai, onde se recebem com festas e alegrias,
os pecadores arrependidos, esses filhos pródigos do Senhor. É uma
grande consolação o saber queo há pecados, que uma contrição
sincera nao possa remir; almao perdida do mal, queo possa ainda
voltar-se com esperança para o Céu.
O reitor trocou neste momento um olhar significativo com Daniel,
que parecia recolher com avidez todas as palavras de Margarida.
Estavam elas exercendo no seu coração o efeito de um bàlsamo
salutar.
Margarida, depois de breve pausa, prosseguiu, como deixando-se
levar pela corrente dos seus pensamentos, e falando mais para si, do
que ainda para as crianças que a escutavam:
Cada alma perdida, que se arrepende, é uma vitória do nosso
anjo da guarda sobre o espírito do mal. A paixão, que nos trazia cega,
deixa-nos enfim, e calcamo-la então aos pés, como aquela Nossa Senhora
da Conceição faz à serpente tentadora. E nunca é tarde para o arre-
pendimento. Quem caminhasse com os olhos tapados para um despe-
nhadeiro, podia salvar-se ainda, abrindo-os junto da borda. Junto?
às vezes até um ramo, a que nos seguremos na queda, nos pode salvar.
A fé na misericórdia de Deus é como este ramo. Seja o arrependimento
sincero, e um olhar do Senhor nos amparará. uma oração bem sentida,
bem da alma, à borda do túmulo, pode chamar sobre uma vida inteira
de pecados a luz do perdão divino.
Margarida dissera estas palavras, pausada, serenamente e com
tanta unção religiosa, que Daniel sentiu-se comovido. Olhou para o
reitor, viu-o atento, imóvel; o padre parecia estar escutando ainda
aquela voz, que o prendia, como se pregasse uma doutrina nova e
diversa da que tantas vezes ele próprio proclamara do altar à leitura
dos Evangelhos.
Daí a alguns instantes, Margarida despedia-se das suas pequenas
discípulas com um beijo, e uma palavra afectuosa para cada uma.
Seguiu-se o rumor que elas faziam ao saírem tumultuosamente,
e depois o silêncio.
Margarida ficara.
Agora chegou a nossa vez de sermos doutrinados disse
o reitor para Daniel. — E esteja certo que é sã a doutrina que vier
daquela boca.
Aproximando-se da porta de comunicação entre as duas salas,
abriu-a de mansinho, e disse, metendo a cabeça pela abertura:
Licença para dois.
Margarida, que estava sentada, com a cabeça entre as mãos,
e absorta em profundo meditar, ergueu-se, de súbito, à voz do reitor,
e caminhou para ele, repetindo:
Licença para dois ? Pois quem nos traz consigo ?
Mas antes de receber resposta divisou por entre a porta, meia
aberta, o rosto pálido de Daniel.
Ao reconhecê-lo, Margarida estremeceu, e voltou para o reitor
o olhar interrogativo e inquieto.
O padre entrara já na sala.
Que foi fazer? disse-lhe Margarida, a meia voz e quase
assustada.
Deixa-me. Fiz o que entendia respondeu o pároco ; e vol-
tando-se para Daniel, que hesitava em entrar, acrescentou : Entre,
Daniel, entre. Aqui tem a santa, a corajosa rapariga que ..
Senhor!... exclamou Margarida, erguendo para ele as mãos,
como a implorar piedade.
Daniel deu alguns passos na sala.
O que há-de dizer o irmão ingrato e perverso, à irmã sublime
e generosa? disse ele, fixando em Margarida um olhar de simpatia
e de respeito, que a obrigou a desviar o seu.
Seguiu-se um silêncio constrangedor para ambos.
Foi ela a que primeiro sentiu a necessidade der termo a esta
situação.
Para isso era-lhe preciso um esforço poderoso, enérgico, que
rompesse todas as peias daquela timidez que a enleava.
o a abandonou ainda desta vez a força, com que sabia domi-
nar-se. Foi já com aparente firmeza que, dentro em pouco, conseguiu
responder :
Sr. Daniel, esses cumprimentosoo de ocasião, nem eu
sou para eles. Coisas mais sérias nos devem agora ocupar. A felici-
dade de duas pessoas está-nos confiada; está de alguma sorte nas
nossas mãos. uma palavra só a pode perder; bem o sabe. E preciso
ques todos três tratemos de segurar-lha. Por mim, fiz o que estava
ao meu alcance. Maso dê ao sacrifício mais valor, do que o que ele
tem. Eu pouco tinha a sacrificar, além da paz da consciência. Essa, já
vê que a conservei; o mais..
A paz da consciência ! Foi essa mesma que eu perdi e perdi-a
para sempre ! disse Daniel com abatimento.
o diga isso continuou Margarida, com a presença de
espírito que, passada a primeira turbação, pudera readquirir.o
diga isso. Pedro ignora tudo. É o principal. Clara está arrependida da
sua imprudência. Mais alguns dias, para esquecer de todo o abalo da
noite de ontem, e tornará a ser alegre como dantes. Sossegue, pois.
O Sr. Daniel há-de continuar a gozar da estima de todos, dos que mais
ama, e... ninguém haverá sacrificado.
Esqueceu-se de si, Margarida. E julga que a devem ou que
a podem esquecer os outros?
Os outros? Quando eu meo queixo, ninguém tem o direito
de me lamentar.
Estas palavras saíram-lhe dos lábios como irresistivelmente, e
com uma amargura, que o reitor julgou perceber.
Ai, Margarida, filha disse o velho, meneando a cabeça com
um modo expressivo, e sorrindo entre afável e descontente olha
que até aos infelizes, até na desventura, é um pecado o orgulho, sabes?
Orgulho, sr. reitor? ai, creia queo o sinto. Orgulho de quê?
Mas é que de facto eu pouco tinha a sacrificar, e pouco sacrifiquei.
As vozes do mundo... será orgulho isto, será mas é certo que
o penso no que dirão. Além de que, quando me fosse mil vezes mais
custoso o sacrifício, como havia de evitá-lo? Achava melhor que a
sacrificasse a ela, que tem mais a perder? a ela, por quem prometi
velar, quando, às portas da morte, mo pediu, chorando, sua mãe?
Bem vê que não.
O reitor, de olhos no chão, alisava com a manga do casaco o
chapéu, sem atinar palavras que respondesse.
Maso falemos em mim continuou Margarida, de um modo
cada vez mais sereno. Clara está melhor ; temo porém ainda que
o possa receber com firmeza e a sangue-frio a visita de Pedro. Será
possível, sem causar desconfianças nele, adiar para mais tarde essa
primeira visita?
É possível, é respondeu o reitor, enquanto que Daniel
folheando maquinalmente um livro, parecia nem atentar no que se
estava dizendo. O pobre rapaz está com remorsos de ter suspei-
tado de Clara, e treme só com a lembrança de a ver.
É necessário que se lhe faça acreditar que minha irmã ignora
e deve ignorar sempre tudo o que se passou, ou pelo menos que nada
sabe das suspeitas que Pedro...
Mas...—ia o reitor a dizer.
Margarida interrompeu-o, continuando:
É indispensável. Eu conheço muito bem Clara; pode sujeitar-se
a tudo, menos a ouvir Pedro, cheio de arrependimento, pedir-lhe per-
dão, a ela, que é... que se julga ser a verdadeira culpada.
Tens razão, Margarida disse o reitor, depois de ter estado
por algum tempo a ponderar o caso tens razão. E assim é melhor,
até porque se evitam explicações, queo poderiam ter muito bons
resultados. Mas...
E agora permitem-me que vá ver Clara, sim?
Pois vai; mas...—insistiu o reitor, sèriamente embaraçado
com alguma coisa, que ele queria dizer, sem encontrar maneira con-
veniente.
Que é ? perguntou-lhe Margarida, percebendo aquela hesi-
tação ; e acompanhava a pergunta com um sorriso de habitual tranqüi-
lidade.
Mas... isto como assimo me pode sair da idéia continuava
o padre.
O quê?
Sim, a falar a verdade... tu, minha filha...
Eu... que tenho?
Tu... assim... Valha-me Deus!o se pode fazer nada...
Por quem é, sr. reitor,o torne a falar nisso.o vê que
pouco se me importa?o lho disse já tantas vezes?
Porém, Margarida, eu sou teu tutor, assim como de Clara;
quero-te como pai, e nao posso,o devo consentir que o castigo caia
sobre a cabeça inocente, sobre a tua cabeça, filha. É contra a justiça,
é contra a religião.
Inocente ! redarguiu Margarida, a sorrir. Que está a dizer,
sr. reitor? Quem é inocente neste mundo? Deixe, deixe cair em mim
isso, que chama castigo, que encontrará pecados a remir ; e quisesse
Deus que mos remisse todos.
Ainda assim... Eu nem sei o que faça... Valha-me Nossa Senhora,
valha! Sempre é uma esta!
E, ao dizer isto, o reitor olhava para Daniel, como que a ver se
lhe viria auxílio dali.
Daniel, de braços cruzados e a cabeça inclinada, parecia alheio
ao diálogo dos dois.
Margarida aproximou-se do reitor.
o sabe o que há-de fazer? Digo-lho eu. Siga o seu primeiro
pensamento ; foi o de ajudar-me. Porque há-de desconfiar agora daquilo,
que parecia aceitar com tamanha fé esta manhã?o tinha desculpa,
se assim me deixava só a salvar Clara. Mas é tempo de ir ter com ela.
Adeus.
E, dizendo isto, tomou-lhe a mão, que respeitosamente beijou,
e ia a retirar-se.
Diante da porta encontrou Daniel, que a fez parar.
Margarida disse-lhe ele, com profunda agitação manifes-
tada na voz e no gesto essa resoluçãoo éo unicamente de sua
responsabilidade, como diz; sacrifica-se a sorrir, maso repara que
mais alguém pode sentir o sacrifício.
Quem?
Eu.
como ?
Que se dirá de mim, do meu carácter, vendo destruída por
minha culpa a sua reputação, Margarida, e eu ocioso, descuidado...
feliz?
E que se diria, se se soubesse a verdade ? Qual acha de pre-
ferir?
Pois bem. Oculte-se muito embora a verdade.o quer sacri-
ficar sua irmã? Compreendo e admiro a nobreza dessa resolução,
creia. Maso posso consentir que uma indesculpável leviandade da
minha parte seja a causa desse imenso sacrifício, sem que...
Já lhe disse queo era imenso ; mas que fosse, como queria
evitá-lo ?
O reitor repetia a interrogação com os olhos.
—Poiso vê que a única maneira, Margarida, é... Eu sei que
sou indigno de aspirar a tanto, mas perdoe-me, a única maneira éo
me recusar à reparação que lhe devo: permita-me que reúna ao seu
o meu destino, já que a Providência...
Bravo! atalhou o padre, batendo com a bengala no chão.
Isso mesmo é que eu tinha aqui dentro a pesar-me ; até que enfim
respiro !
Margarida estremeceu ao ouvir Daniel, e instintivamente levou
as mãos ao coração, como se fora ferida. Em poucos instantes, as
faces, de ordinário pálidas, passaram-lhe por cambiantes rápidas de
cor. Trémula de ansiedade, sentiu vergarem-se-lhe os joelhos e ene-
voar-se-lhe a vista. Valeu-lhe o apoio de um móvel próximo parao
cair. Por algum tempo tentou emo responder ; a vozo lhe saía
da garganta.
Daniel olhava-a ansioso. O padre esfregava as mãos, exultando
de júbilo.
Afinal, vencendo esta violenta comoção, e assumindo outra vez
a placidez habitual, respondeu com uma voz, onde sem dificuldade
se podia descobrir ainda um indiscreto tremor:
Obrigada. É generoso o oferecimento... maso posso
aceitá-lo.
Que diz?-—exclamou Daniel.
O padre passou do júbilo à estupefacção.
Pois queria que aceitasse ? Aceitá-lo-ia, se estivesse no meu
lugar? diga. Qual será maior martírio: sofrer as murmurações, as
injúrias, os desprezos até, de milhares de pessoas, que, afinal de con-
tas, noso indiferentes, ou aceitar a compaixão de quem nos é... de
quem nos devia ser tudo no mundo? daquele, a quem teremos de
dar todos os afectos, todos os cuidados, todos os pensamentos? Ima-
gina bem essa tortura?
Mas, Margarida, quem lhe disse que é por compaixão que eu
lhe faço o oferecimento ? Se o aceitar, creia que o agradecido serei eu.
Se essas palavras fossem sinceras, Sr. Daniel, era bem certo
então que possuía um desgraçado carácter ! Receie sempre de si,
desses primeiros movimentos, a que obedeceo depressa. Já que
éo fácil em mudar, ao menos faça por ser mais forte contra si mesmo.
Vença-se.o está ainda vendo o mal que pode fazer assim?
Tem razão em duvidar de mim. O meu passado condena-me,
porém talvez seja injusta de mais para comigo. Julga-me capaz de...
Perdão;o julgo,o tenho direito para julgar, bem sei. Em
todo o caso,o posso aceitar.
Margarida ! disseram a um tempo o padre e Daniel.
Não,o posso aceitar repetiu Margarida, já com maior
veemência. Nunca me julgaria mais desonrada e perdida, do que
quando aceitasse uma proposta como essa, feita por outro qualquer
motivo, queo fosse a força do coração.
Mas se eu lhe juro que o meu coração...
Oh,o diga mais ! disse Margarida, interrompendo-o.
Até me faz mal ouvir-lhe esses juramentos ; lembra-me os que ainda
ontem faüia a Clara. Repare no que ia a dizer; assim abre o coração,
a quem, momentos antes, nem conhecia sequer?
o há tal disse o reitor ; diz tu que desde criança já
te conhece ele, e até...
Oh ! por quem é ! atalhou Margarida, que previu logo onde
o reitor queria chegar. Por quem é ! O que ia a dizer?
Margarida continuou Daniel perdoe, se a consciência
das minhas culpas... e acredite que a estou sentindo bem amarga, mas
perdoe-me, se ela meo constrange ainda ao silêncio. Eu vejo que
tem razão para duvidar de mim ; mas será só isso ? Porque nao confessa
também que recusa, porque, sentindo insensível o coração, desconfia
dele igualmente?
Desconfiar do meu coração ! disse Margarida, com uma
leve inflexão de ironia na voz, a qual os doiso perceberam, e con-
tinuou: Mas... é queo desconfio.
Então ?
Conheço-o ; e o que sei dele, como o que aprendi do seu,
Sr. Daniel, levam-me a recusar.
Quer dizer que me nao pode amar ?
Sim... julgo que sim. Eu desconfio que nem tenho coração!
Eu sei!o o sinto bater, pelo menos. Bem vê queo devo acei-
tar. Adeus.
E, com um singular sorriso nos lábios, saiu da sala, onde ficaram
os dois, atónitos e silenciosos.
Quem, naquele momento, pousasse ao no coração de Marga-
rida, como veria desmentidas as suas últimas palavras!
XXXVIII
C
HEGOU talvez para mim o momento do castigo murmurou
Daniel, passado algum tempo, depois de Margarida se retirar.
Que está a dizer? perguntou o reitor, olhan-
do-o admirado.
Que talvez àquelas mãos, das quais até hoje só tem saído o
bem, vá Deus confiar a arma de uma vingança cruel.
De que maneira ?
Poiso ouviu a firmeza daquela resposta ?
E então?
E então? É que eu tenho o pressentimento de que, se um dia
se atear em mim uma paixão violenta e fatal, e tiver de ser repelida
assim, sucumbirá com ela este coração que...
Ora adeus ! Sabe os objectos que se partem, batendo de encon-
tro às rochas?o os fortes e rijos; porque os outros, os moles, o
mais que podem é tomar nova forma ; quebrar é queo quebram ; e
o seu coração é de umas branduras !
Reconheço que o meu passado meo dá o direito de ofen-
er-me da ironia; custa-me até entrar de novo em justificações, que
ó me valem sorrisos, mas...
Mas, ainda assim, sempre vai tentar mais uma vez disse o
reitor, sorrindo. Ora ande.
Oiça-me. É uma triste confissão para o meu orgulho, a que
ou fazer, mas é verdadeira. Há muito que tenho este pensamento ;
é no tempo em que mais procurava evitá-lo, ele me acudia. É por
erto arriscado para qualquer mulher confiar de mim o seu amor, menos
m um caso, que até aqui seo dera ainda comigo.
Então qual é esse caso ?
É se ela conseguir dominar-me ; se a meus olhos se conservar
sempre à altura, que dê à paixão, que me inspirar, a natureza de um
culto. Há caracteres, para os quais é isto necessidade. De ordinário,
dos os meus esforçoso despojar desse prestígio, que me enleia,
mulher a quem amo; porém, desde que o consigo, jáo respondo
or mim. Sei-o por experiência. Mas, previa-o há muito tempo, se me
encontrar com uma destas naturezas superiores, para as quais nunca
e extingue o resplendor que as rodeia, há-de fixar-se este coração
solúvel, eo haverá para elas o risco, de que das minhas afeições
lhes possam resultar lágrimas.
E conclui daí ? perguntou o padre, no mesmo tom, quase
zombeteiro, em que sustentava o diálogo.
Que Margarida nada podia recear do meu amor. Eu, que duvi-
ava já que viesse a amar sèriamente, porque me julguei superior a
do o predomínio, hoje...
Hoje, mudou de opinião.
E mudei, creia-o. Nunca me conheci assim. Ainda antes de a
ver, quando na sala imediata a estivemos escutando,o sei porquê,
sentia, ao ouvi-la, reviver todo o meu passado, a parte mais pura dele.
Sei eu resmoneou para si o reitor.
Depois que a vi, foram sensações novas para mim, as que
experimentei. Eu, que, por tantas vezes, e a sorrir, tenho dado passos
na vida, que fazem recear os mais audazes ; eu, que, para ser arrojado,
nao careci nunca do forte impulso de uma paixão, pois me bastava o
simples estímulo de um capricho, hesitei há pouco, como viu, ao
fazer a proposta a que o dever e o coração me impeliam, hesitei de
timidez, como se fosse um sacrilégio da minha parte. Depois, ao rece-
ber aquela recusa, pareceu-me sentir escurecer-se-me o futuro, e,
pela primeira vez na minha vida, senti-me desalentado com este mau
êxito, em lugar de encontrar nele incitamento para persistir, como
tantas vezes o tinha encontrado.
Desconfie dessas impressões súbitas e violentas, desconfie.
Margarida tem razão. Eu próprio já meo atreveria a aconselhar-lhe o
contrário. É melhor deixarmo-nos guiar pelas inspirações daquela
na de anjo.
Mas se eu a amo ?
Paixão de quinze dias ! disse o reitor, encolhendo os ombros.
Ai, não, não. Sinto-me seguro desta vez a jurar-lhe...
o jure atalhou o padreo jure nada, homem de
Deus, que almas de outra tempera, que nao é a sua,m falhado, depois
de jurarem. Lembre-se do que diz o Evangelho : « Seja o vosso falar :
sim, sim, não, não. Porque tudo o que daqui passa, procede do mal».
Seo perder a idéia desse amor, trabalhe por merecê-lo ; mas
o faça juras. Que, se alcançar aquele coração, grande riqueza gran-
jeia, isso lhe afirmo eu. Eo tenha escrúpulos de se deixar dominar,
que melhor é a cabeça de Margarida do que... Mas que fazemos ainda
aqui?, vá ter com seu irmão. E veja como se porta.o entre em
grandes explicações. Abrevie-as, quanto puder, que é o mais pru-
dente. E até logo.
Daniel saiu da sala vagaroso e triste. O reitor ficando, conser-
vou-se por algum tempo pensativo.
Esta tácita meditação acabou-a ele, murmurandoo sei que
mal distintas palavras, e depois, em tom mais perceptível :
Contudo é pena. Remediava-se este enredo assim, e bem.
Seria talvez uma providência para o rapaz. E eu iria mais descansado
deste mundo, a dar contas da minha tutela no outro aos pais das rapa-
rigas. Mas lá se Margarida tem os seus escrúpulos... e a falar a verdade,
com alguma razão ; e depois, o que é mais e muito mais, se elao
se sente com inclinação para? Aquilo é uma santa. Coração possui
ela, mas para caridade, queo para amores. Paciência!
E, falando assim, caminhava lentamente o reitor de sala em sala,
de corredor em corredor, até se encontrar, quase sem saber de que
maneirao distraído ia junto do quarto de Margarida cuja porta
viu meia aberta. Entrou.
Ao rumor de seus passos, ergueu-se, de súbito, uma mulher, que
estava de joelhos no chão, e debruçada sobre o leito como em um
genuflexório.
Era Margarida.
Colhida de improviso,o teve tempo de enxugar as lágrimas,
que em fio lhe corriam pelas faces descoradas. Emo se esforçava
por desvanecer com sorrisos o efeito daquelas lágrimas e da expres-
o de tristeza, que tinha profundamente gravada no semblante.
O reitor surpreendeu-a assim e olhou para ela inquieto.
Que é isto? Lágrimas? choros? exclamou ele, levantándo-
le a fronte, que Margarida inclinava, para esconder dos olhos do
seu velho amigo aquele indiscreto pranto. Ai, filha, filha, que me
dizias tu há pouco? Era então mentira a indiferença que asseguravas?
Eu logo vi... Mas... valha-me... Deus... neste caso... para que fui eu?...
Então, Margarida! então! então?... Nossa Senhora te valha, filha!
o chores, olha queo sou teu amigo. Mas para que dizias tu?...
Pois está bem de ver, sempre custa... Vamos, sossega, mais vale dizer
verdade. Isto assimo tem jeito. Sossega. Vá o mal a quem toca.
em todos podem ser santos. Os santos?... Os santos estão nos altares,
ra adeus. Há coisas queo superiores às forças humanas.o chores,
ha ; isto até é uma vergonha. Pedro é bom e perdoará a Clara, e, per-
oando ele, quem tem direito de condenar? E seo perdoar... nao
ei que lhe faça. Quem mal a cama faz, nela se deita ; ora é muito boa !
quanto ao mundo... adeus, minha vida, o mundo é o mundo; importa
á o mundo ! Era o que faltava se por causa dele te ias agora sacrificar.
a verdade, que valia a pena! Deixa estar, que tudo se há-de arranjar.
Veras. Maso chores ; pareces-me uma criança ! Então, então Mar-
arida ? E aí estás chorando mais !
E o bom homem quase chorava também.
Efectivamente, como a todoss sucede, quando, dominados
pela tristeza, encontramos um coração compadecido, uma voz meiga
pretender consolar-nos, quando reconhecemos verdadeira simpatia
as palavras de conforto que nos dirigem ; cada vez era mais violenta
explosão de sentimento em Margarida, mais abundantes as lágrimas,
ais sufocadores os soluços.
Então, Margarida, filha, então?... —dizia o reitor, deveras aflito,
tentando todos os meios de acalmar aquela dor, acrescentou, contra
seu costume:
Guida, Guida! isso nao é bonito.
Só passados alguns momentos é que Margarida conseguiu falar,
ainda com a voz entrecortada de soluços, disse para o reitor:
Perdoe-me, perdoe-me, por quem é. Maso pude,o posso
ais.o julgue que me arrependo do que fiz, que me lembro de
recuar. Creia-me, pouco me importa o mundo, o que dizem, o que
virão a dizer. Pouco me importa.
Mas então este choro?
Nem sei porque choro, eu mesmao o sei. Mas faz-me bem
chorar. Deixe-me, deixe-me por piedade.
Mas, minha orgulhosa, porqueo aceitaste tu a proposta
e Daniel?
Isso é que nunca ! exclamou com impetuosidade Margarida ;
de novo lhe saltaram as lágrimas dos olhos.
E aí estás a chorar cada vez mais ! Mas istoo deve ficar
sim. É preciso dar-lhe remédio. Tua irmão pode querer...
Mas se eu lhe juro queo choro por isso ! Se eu lhe afianço
que pouco me importa o mundo !
Mas, então, ó Virgem Santa, então porque choras tu? Eu endoi-
deço ainda hoje... endoideço. Sacrificas a tua reputação, para salvar
de Clara, eo choras por isso ; tiveste na tuao o meio de remediar
do, aceitando o leal oferecimento de Daniel, e que afinal o pobre
rapaz fazia do coração, recusaste sorrindo. E agora venho encontrar-te
neste estado, e dizes-me, e juras queo é nada ! Recusas confiar-me
a causa ! Margarida, é preciso saber, quero saber porque choras assim !
Agorao posso, nao sei até dizer-lho. Se me estima, se me
quer, como diz,o me pergunte nada, não? Deixe-me, peço-lho por
favor, por alma de minha mãe. Logo volte, e, quando voltar, verá que
me há-de achar contente, prometo-lho. Que mais quer? Os abalos da
noite passada causaram-me isto.o sei que tenho., peço-lhe que
. Entãoo vai?
O padre olhou por muito tempo para ela, e depois, tomando o
chapéu, saiu sem dar palavra, mas limpando uma lágrima também.
Margarida, vendo-o sair, deixou-se cair outra vez de joelhos
sufocada pelo choro.
Fraca ! fraca ! dizia entre soluços queo tive forças para
me sustentar até ao fim!,, acabem de correr por uma vez estas
lágrimas ; e que sejam as últimas ; que ninguém mas veja mais nos olhos.
A causa... a causa... oh! essa, ninguém a há-de adivinhar.
Enganas-te, Guida. Adivinhei-a eu.
Margarida ergueu-se de repente, ao escutar estas palavras, que
lhe foram ditas quase ao ouvido. Voltou-se. Era Clara.
Que dizes, Clara, que estás a dizer, filha?
No rosto de Clara, onde uma pouca costumada tristeza se dese-
nhava ainda, havia um ligeiro sorriso de malícia, da que se poderá
chamar angelical, se alguma vez for licito associar estas duas palavras.
Digo que te adivinhei, Guida. Que mais queres? Estás desco-
berta, minha reservada.o tinhas confiança em tua irmã, e assim te
perdias por uma pessoa de quem desconfiavas ! É acção de santa, é ;
mas eu te prometo que istoo há-de ficar assim.
Clara, tuo sabes o que dizes.
Escuta. Que promessas, que oferecimentos eram aqueles
do... do Sr. Daniel? e porqueo os aceitaste tu?
Clarinha !
Vamos. Eu ouvi tudo o que disse agora o sr. reitor.o mo
queres dizer? Digo-to eu. Daniel propôs-te...
Basta, Clara, basta. Bem sabes queo aceitei.
E porquê ? Isso mesmo é o que eu mais quero saber.
Porque...o devia aceitar.
o dévias ?
Não,o devia. És tu a que me vens dizer que se pode, que
se deve aceitar um esposo a quem...
A quem? interrogou Clara, fitando na irmã um olhar inqui-
sitorial.
A quem não... amamos?
E então é certo queo amas o Sr. Daniel? perguntou Clara,
conservando em Margarida o mesmo olhar, e demorando intencional-
mente a articulação de cada sílaba.
Que pergunta ! disse Margarida, baixando os olhos confusa.
E aindao queres que te ralhe? Ora ouve, Guida. Desde
hoje que o desconfio. Passaste a noite à minha cabeceira. Eram três
oras quando dormías, e eu estava acordada então. Ora tu também
tinhas febre, também sonhaste em voz alta, e alguma coisa disseste.
Que disse eu? perguntou Margarida, com perturbação.
Alguma coisa, algumas palavras soltas, certo nome, de que eu
o princípio fiz pouco ou nenhum caso, mas em que depois me deu
para cismar. E tanto cismei, e tanto cismei, que afinal descobri, minha
sobre Guida.
O quê?
Que esse teu coraçãoo era, por fim, o que se supunha ;o
era o que eu e o que todos supúnhamos. E olha que mais te quis por
isso; porque eu gosto de quem tenha coração.
Mas, enfim, que queres tu dizer?
Quero dizer que tu amas, que tu amavas, e, há muito, o
r. Daniel.
Estás louca, filha?
o o negues, ou ficamos de mal. Eu depois recordei-me do
que dizia o sr. reitor, de que Daniel fora em pequeno o teu conversado.
Muitas vezes te vi corar ainda, quando o sr. reitor, a rir, te caçoava
com isso. Ora eu sei como tu és... isto é, hoje é que me lembrei que
tens um gênio singular, tu. Eu podia esquecer-me da minha afeição
de criança. Tu não, que tudo tomas a sério. É teu costume. Eu sei. Depois,
certa maneira de falar... certo acanhamento... e as lágrimas de há
pouco... e as palavras de agora... e essa má vontade com que me
estás... e esse olhar que seo atreve a levantar-se para mim... é certo,
ama-lo ; e por isso pergunto : porque recusaste o seu oferecimento ?
Margarida conservou-se por algum tempo silenciosa. Depois,
por uma destas resoluções, queo raras em caracteres como o dela,
mas enérgicas quando chegam a formar-se, disse com uma espécie
de desespero, revelado nas palavras, no gesto, nos movimentos, e
tomando com ímpeto as mãos da irmã, que apertou convulsivamente
nas suas:
Porquê? Queres sabê-lo? Porque o amo. Entendeste agora?
Nao respondeu Clara, que, surpreendida por aquela exal-
tação,o podia desviar os olhos do rosto de Margarida.
Poiso vês, criança continuou estao vês, louca, que
seria um martírio horrível, um tormento, que nem se imagina, aceitar
a compaixão do homem a quem se ama? Saber que só para generosa-
mente nos salvar a reputação, só para isso, ele nos fez o sacrifício do
seu futuro, das suas ambições ; que se abaixou, condoído, para do chão
nos levantar até si ! Há lá nada mais doloroso ? Diz, desejas-me esse
martírio? Conheces o coração de tua irmã, dizes tu; e pensas que ele
o estalaria de angústias? E depois, se fosse só isso! mas, quem sabe?
um dia talvez entraria uma suspeita naquela aima; se a delicadeza
fechasse os lábios, lá estava o olhar a revelar-lhe o pensamento secreto
de que tudo isto em mim fora um propósito, interesseiro e vil, de
abusar dos seus brios... Ai, Clara, e cuidas que se resistiria a esta
idéia? Cuidas que eu teria coragem para... Oh! deixa-me, deixa-me;
fizeste-me já dizer o que eu nem a mim mesma dissera ainda. Nunca
mais me ouvirás falar nisto, e, se és minha amiga, nunca mais me tala-
s também.
E, dizendo estas palavras, saiu arrebatadamente do quarto.
XXXIX
O abrir as janelas do seu quarto de dormir, e ao franquear os
pulmões ao ar fresco da madrugada, a Sr.* Teresa, a fiel esposa
do nosso conhecido João da Esquina, recebera, de mistura com
o perfume das flores, que andava nos ares,o sei que cheiro de escân-
dalo de lhe desafiar a curiosidade.
Para estas coisas tinha inquestionavelmente a Sr." Teresa um sexto
sentido, apurado como nenhum dos outros.
Segundo era seu costume, quando percebia em si tais manifesta-
ções, pegou na cesta da meia, e veio tomar assento por detrás do mos-
trador, e entre as sacas de arroz da loja de seu marido.
A menina Francisca, aquela mesma trigueira celebrada em octos-
sílabos por Daniel, viera sentar-se também ao lado de sua mãe. Era
a primeira vez que tal sucedia, depois dos episódios que terminaram
as visitas do estouvado clínico.
com os seus olhos travessos, e o sorriso malicioso já de volta
aos bem talhados lábios, valeu naquele dia aos pais uma afluência maior
de fregueses à loja.
A cada nova personagem que entrava, a Sr." Teresa dirigia, com
um sorriso de afabilidade, a pergunta sacramental:
Então que se diz de novo ?
E de cada vez esperava achar justificada a voz do instinto de
escândalo, que, naquela manhã,o alto berrava em si.
Por muito tempo foram, porém, malogradas estas esperanças.
Mas, aí pelas nove horas, entrou na loja o sacristão da freguesia, a
comprar cigarros porque o Sr. João da Esquina, como é costume nas
terras pequenas, vendia tudo, desde o doce de chá, até à vela de sebo;
e os cigarros entravam também na lista dos objectos do seu negócio.
Era este sacristão um rapaz de cara rapada, e tipo de velhacaria,
sempre em olhares e suspiros diante da menina Francisca, em quem
estes sintomas de afecto nao encontravam demasiado agrado.
Ora aqui vem quem nos traz novidades fresquinhas excla-
mou, ao vê-lo entrar, a Sr.
a
Teresa, que, apesar da opinião que lhe
ouvimos sobre o poder nutritivo das aparas de hóstias e escorralhas
de galhetas,o era, ùltimamente, de todo desfavorável às pretensões
do sacristão.
A Sr.* Teresa é que mas devia dar disse este pois está
mais perto do sítio onde elas hoje ferveram.
o te entendo, Joaquim, então que? perguntou, já ralada
de curiosidade, e pousando a meia, a esposa do Sr. João; e os olhos
aquela família toda convergiram para os lábios do homem.
Este sentiu-se lisonjeado com as atenções, e muito principalmente
com as da menina Francisca, cujo olhar fixo por pouco lhe fazia perder
a frieza de ânimo.
Então deveraso sabem o escândalo desta noite ?
Não; que houve?... Conta lá isso, Joaquim, conta.
E o Sr. João da Esquina, no ardor da curiosidade, e para fazer
a boca doce ao orador, trouxe-lhe uma mão-cheia de figos secos de
uma seira encetada e rejeitada por freguês pechoso ; e a Sr.* Teresa
esfregou as mãos, e ajeitou-se para ouvir melhor; e a menina Francisca
luxou a cadeira, em que estava, para junto do mostrador.
O sacristão principiou:
O filho aqui do seu vizinho... o doutor novo...
Neste ponto, despediu um olhar certeiro à menina Francisca, a
quem um acesso de tosse acometeu ; a Sr.* Teresa espirrou, e o
r. João deixou cairo sei o quê, e abaixou-se para apanhar o que
deixou cair. O orador prosseguiu:
Pois o tal sr. doutorzinho... esteve para o levar o diabo esta
noite.
Que me dizes, homem? perguntou a Sr.* Teresa, já debru-
çada no mostrador.
É verdade.
Mas como foi isso ?
Foi o irmão, o Pedro, que esteve para o matar.
Ora, contos ! disse o Sr. João da Esquina, encolhendo os
ombros, a afectar uns ares de dúvida, mas dando um pau de canela
o sacristão, que era perdido por gulodices.
É o que eu lhe digo insistiu este, chupando a casca aromática.
Mas então porquê ?
A mim contou-me esta manhã a tia Brásia, à missa primeira,
que o Pedro pilhou o irmão a sair de casa das do Meadas, e disparou
contra ele a espingarda. A tia Brásia afirmou-me que tinha ouvido
tiro.
Agora me lembro que também ouvi um tiro esta noite disse
Sr.* Teresa ; e acrescentou, com a maior fleuma do mundo :
E matou-o?
Não,o o matou ; mas julgo que o feriu.
o se perde nada disse lacònicamente o Sr. João da Esquina.
E é de perigo ? perguntou, um tanto inquieta, a menina
Francisca.
Sossegue, menina respondeu o sacristão, despeitado pelo
m de voz em que ela dissera isto. Sossegue, que, ainda que lhe
tirasse um olho, ficava-lhe outro para ver as raparigas da terra, que
todas lhe fazem conta.
A petulância foi repelida por a menina com um gesto de sobe-
rano desdém.
Mas então... continuou ae diz-me, então o Daniel
tinha assim entrada em casa das do Meadas? como se entende isso?
Ora, como se entende isso ? Poiso conhece ainda aquele melro ?
Mas era com a Clarita, então ?
Pelos modos, era com a Margarida, ao que dizem, mas... eu
por mim, inclino-me a que era com ambas respondeu o sacristão,
com a firmeza do historiador crítico, que decide eclécticamente entre
duas versões de um facto controvertido.
com a Margarida?! exclamou João da Esquina. Pois com
aquela cara de Nossa Senhora da Soledade... aqueles ares de santa...
Eu sempre vejo coisas !
o as piores sentenciou a esposa. Bem me fio eu em
santidades.
o sei como se pode gostar daquilo disse desdenhosa-
mente a menina Francisca.
Deixe, menina notou com ironia o sacristão, ainda des-
peitado. A Margaridao é para desprezar assim. É trigueirinha,
mass todos sabemos que Danielo desgosta delas, ainda mais
trigueiras.
Francisca mordeu os beiços ao escutar a alusão, e espetou a agu-
lha no novelo das linhas ; o pai lançou ao sacristão um olhar furibundo,
e descarregou com o martelo uma forte pancada nos pintos falsos, que,
para escarmenta de velhacos, tinha cravados no mostrador ; e a pró-
pria Sr.° Teresa, armou-se de um sorriso constrangido, pouco animador
para o sacristão, e ao mesmo tempo apertou nervosamente uma ore-
lha ao gato-maltês, que dormitava acocorado junto dela, sobre uma
saca de arroz.
Muda, mas expressiva linguagem simbólica, que se podia tra-
duzir assim:
A menina Francisca : Tinha alma de te atravessar o coração
com esta agulha, maldito.
O Sr. João da Esquina :o sei o que me contém que teo
quebre com este martelo quantos dentes tens na boca, brejeiro.
A Sr.» Teresa : O que tu merecías era um puxão de orelhas,
bem puxado, maroto.
No entretanto, o sacristão prosseguiu imperturbàvelmente :
A tia Brásia disse-me que havia muito que o Danielo largava
a porta das do Meadas. E isso é facto. Pelos modos, o Pedro soube-o,
e ontem, se lhoo tiravam das mãos, dava cabo dele.
Mas então sempre havia alguma coisa com a Clara também?
insistiu a Sr.* Teresa, a quem a opinião crítica do narrador agradava,
por mais escandalosa.
Pois isso para mim é de fé disse o sacristão.
Por este tempo tinha entrado na loja um jornaleiro, o qual, tendo
ouvido as últimas palavras do diálogo, percebeu logo do que se tratava.
Houve mosquitos por cordas esta noite lá para as minhas ban-
das, houve disse o homem, com sorriso malicioso.
Ah ! também já sabe ? perguntou o sacristão.
Ora se já sei! Pois euo estive?
Ai, pois viu?
E os quatro, que em comum fizeram esta pergunta, fitaram àvida-
mente os olhos no jornaleiro.
Eu lhe digo disse o homem, tirando o chapéu e cocando
na cabeça. Eu tinha chegado de fora, havia meia hora. Tinha sido
rogado para uns trabalhos aí para longe. Por sinal que me pagaram
como a cara deles. Sempre lhe digo, Sr. João, que isto de jornais está
uma pouca-vergonha. Deu o que tinha a dar. Eu lembro-me dantes...
Mas, vamos ao caso, eu chegara a casa, e tinha dito lá à minha patroa...
que, coitada, tambémo tem andado lá essas coisas,o mas
tinha-lhe eu dito que me fritasse uns ovos com presunto e deixe-me
dizer, que os ovos este ano tambémo uma peste. Parece que deu o
arejo nas galinhas. Diabos as levem. Daqui a pouco, da maneira que
isto vai, ficamos sem ter que comer e a fazer cruzes na boca. Mas estava
lá a minha patroa a fritar-me os ovos... É verdade, ó Sr. João, que diabo
de azeite me deu vossemecê o outro dia, que nem ào de deus-padre
se pode levar?
Homem, pois ninguém mais se me tem queixado dele. É você
o primeiro.
As mulheres e o sacristão começavam a impacientar-se.
Euo sei o que lhe acho, sabe-me a chapéu velho, o maldito.
Mas estava lá a minha Quitéria ao lume, eis senão quando eu oiço uns
gritos de «Aqui d'el-rei».
Então eles gritaram «Aqui d'el-rei?»
Que os ouvi eu, sim, senhor, tal qual. Pus-me logo na rua. Por-
que eu cá sou assim. Olhe o Sr. João, quando foi daquela espera, que
fizeram ao escrivão da fazenda, eu lá estava.
Na espera? perguntou o sacristão, em tom de zombaria.
o que euo sou desses respondeu o jornaleiro, carre-
gando a sobrancelha ; quando quero fazer mal a alguémo me
escondo. Vou ter com ele, esteja aonde estiver, na sacristia que seja.
Ora fique sabendo, que pode ser que lhe sirva.
Então acaba ouo acaba a sua história, Sr. Manuel? disse
a Sr.* Teresa, desfazendo a altercação nascente.
Salto para a rua continuou o jornaleiro e, como o baru-
lho vinha do lado dos Juncais, tomei por. Vi-me em calças pardas.
o fazem idéia como está aquilo nos Juncais. uma coisa é ver, e outra
é dizer. Sempre temos uma Câmara, louvado seja Deus ! Deixa estar
aquele mar nos Juncais... porque é um mar, sem tirar nem pôr. Eu
queria que a Sr." Teresa passasse por lá de noite, corno eu, que sempre
havia de dar ao diabo a cardada.
Mas depois que viu ? perguntou a Sr." Teresa, exausta de
paciência com as intermináveis oigressões do orador; e acrescentou
baixinho:—Sume-te, demo mau!
Quando cheguei perto da casa das do Meadas, passou por
mim um homem, e eu meti-me num canto, para, se fosse preciso,
agarrá-lo...
Deixá-lo fugir concluiu impenitentemente o sacristão, sor-
rindo.
O Manuel do Alpendre, que era a graça do jornaleiro, nem se
dignou responder ; continuou :
Vi que era o Daniel ou o Diabo por ele, mas pareceu-me que
levava alguma coisa quebrada, ia assim como a mancar. Olhe que
sempre se vai saindo o tal menino! Eu digo, que se ele escapa de tan-
tas que faz ! Mas há gente assim. Uns a cavars de burro por esse
mundo, outros então a levar a vida com uma perna às costas. Este é
um dos que parece ter nascido em um fole, o tal Sr. Daniel... Bem fez
cá o Sr. João, em lhe fechar a porta na cara, er termo às visitas que
ele fazia por aqui; já se sabe porquê, sim, já à boca cheia se dizia...
Vamos ao caso, vamos ao caso interrompeu a Sr.ª Teresa.
Você que fez depois ?
Eu ? Segui o caminho e cheguei à porta das raparigas. Estava
lá já o Pedro do abade, o João das Pontes, o tio Gaudêncio das Luzes...
por sinal que anda escangalhado o velho. Perdigão perdeu a pena,
o há mal que lheo venha.o sei que diabo aquilo é. Eu ponho
as mãos numas Horas, se o homem deita o ano fora. Quem viver, verá.
Mas vai, chego-me a ele... «Ó ti'Gaudêncio, digo-lhe eu, que é isto
aqui?» Olha, diz-me ele. E vai, eu olho, e vejo o Pedro das Dor-
nas com uma espingarda na mão, e o sr. reitor ao pé dele, e no chão
uma mulher...
Morta? perguntou com vivacidade a Sr." Teresa.
Morta não, senhora. A menina estava viva.
Mas o tiro que ele deu ?
Eu lá dissoo sei... Pois ele deu algum tiro?
Pois euo ouvi um tiro? disse a Sr." Teresa. Eo fui
eu só ; houve mais quem ouvisse.
Que ele tinha a espingarda, isso lá tinha.
E deu o tiro;o tem dúvida que deu. Mas então era a Clara?
Nada,o era; era a irmã, a mestra. Eu bem a vi. E vai depois,
o sr. reitoro sei que disse e tal, sim senhores, e pega e vai ao Pedro
e manda-o embora, e volta-se para o povo, que por ali estava, e manda-o
também embora, dizendo queo dessem à língua ; e com razão, por-
que a rapariga é bem afamada, e, se se principiasse agora por ai a
falar... Sempre me há-de lembrar que quando minha mulher...
Mas o Pedro o que disse à saída?
o disse nada. Parecia nem dar por a gente. Ia assim a moda
¿e estarrecido. Se lhe parece ! Sempre um homem às vezes se encon-
tra nelas boas! uma ocasião tinha eu ido...
Mas então está bem certo que era a Margarida a que...
Ora se era ! Pois euo conheço a Margarida ? Ainda o pai
era vivo, que eu, indo um dia com ele a uma patuscada... ques
dávamo-nos muito; aí está que, faz pelo S. Martinho doze anos... Dan-
tes é que o S. Martinho era S. Martinho... Lembra-se, Sr. João, daquela
vez ques fomos todos?... que tempo! Ainda era vivo o tio André
de Murtosa... Que homemo divertido! Aquilo era uma coisa por
maior... pois quando ele ia de serandeiro às esfolhadas ! Dantes sim,
é que se faziam esfolhadas!... Agora já seo fazem que prestem...
Aí está que eu fui no outro dia à do Damião... pois, senhores, pare-
cia-me um enterro... Ele também teve fraco S. Miguel este ano...
0 homemo sabe dar amanho às terras... As terras querem-se bem
tratadas,o há que ver... É como uma pessoa ; quemo tem o sustento
precisoo pode medrar. Olhem aquela rapariga, filha do João ferreiro...
Quem a viu, e quem a vê...
E, de incidente em incidente, corria à vela cheia o pensamento
do Manuel do Alpendre pelo vasto mar das suas recordações, afas-
tando-se cada vez mais do assunto primitivo, e cada vez desesperando
mais a curiosidade do auditório.
O sacristão cortou o fio da digressão.
Mas aí vem quem nos pode dar informações exactas disse
ele, vendo entrar na loja nova personagem.
Era uma mulher cor de cera, muito macilenta, de olhos meio
fechados, e sorriso de beatitude nos lábios. Usava o cabelo curto pen-
teado para diante da testa, a qual ficava coberta por ele até às sobran-
celhas ; cingia-lhe a cabeça um lenço branco, posto à maneira de bar-
rete ; sobre o primeiro, outro de cor escura, atado por baixo da barba,
e puxando para diante, até deixar-lhe o rosto como no fundo de uma
gruta, e, ainda por cima, a capa de baeta, sem cabeção.
Das mãos pendia-lhe constantemente um comprido rosário.
Era enfim um desses tipos de beata, comuns nas nossas aldeias :
mulheres cuja vida se passa em devoções contínuas, em novenas e
vias-sacras, e em perene confissão ; obra dos gordos missionários,
que deixam a outros o cuidado de desbravar a gentilidade das nossas
possessões, para andar na tarefa mais cômoda de tolher o trabalho
e a actividade na casa do lavrador.
Imbuindo o espírito das mulheres de preceitos de devoção absurda,
afastam-nas do berço dos filhos, de cabeceira do marido enfermo, do
lar doméstico, para as tra:;er ajoelhadas pelos confessionários e sacris-
tías ; com uma brava eloqüência, perigosa para quemo tiver o senso
preciso para a achar ridicula, incutem-lhes falsas doutrinas, desmen-
tidas e condenadas em cada página do Evangelho,o severo sempre
contra fariseus e hipócritas.
Numa localidade,o muito distante do Porto, ainda há pouco
um desses apóstolos, que andam por aí reformando escandalosamente
a moral dos povos, pregou do púlpito «que a salvação de um homem
casado erao difícil, como o aparecimento de um corvo branco».
É triste e desconsolador o aspecto da terra, onde esta praga
farisaica tem feito maiores estragos. A alegria do povo, esse reflexo
da alegria das mulheres, porque das mães se reflecte nos filhos, das
esposas nos maridos, das raparigas nos amantes, desaparece pouco
a pouco.
com os trajos escuros, os cabelos cortados, os olhos baixos, as
mulheresm por pecado o rir ; o cantar como um crime ; ou se can-
tam,o umas certas cantigas ao Divino, ensinadas pelo missionário,
nas quais a austeridade do conceito nem sempre é mais respeitada
do que a eufonia da forma. Algumas ouvi eu, em que a vinda dos mis-
sionários era saudada com um vigor de imagens quase oriental ; eram
arremedos grosseiros do Cântico dos Cânticos, que fariam rir, se se
lheso percebessem piores intenções.
E, no meio destas ostentações de ascetismo, quantas vezes se
esconde folgada a devassidão, queo duvida ornar o pescoço de
camándulas e bentinhos, e vê na excitação nervosa, produzida pelos
jejuns, um alimento a favorecê-la?
O horror ao escândalo, eis o que caracteriza esta moral de Tar-
tufo. Salvem-se as aparências, rezem-se as devoções todas, e a culpa
será atenuada.
Traz-se, por exemplo, o pulso cingido por uma cadeia deo
benzida de certa forma distintivo das escravas de Nossa Senhora
cadeia milagrosa, que, asseguram os missionários por, tem a
propriedade de se alargar ou apertar de per si, de modo a andar sem-
pre justa ao braço, quer este engorde, quer emagreça ; pois já o Diabo
o se atreve contra quem use desse talismã.
Ora digam se, quandoo seja senão para aperrear o Diabo,
o dá logo vontade de experimentar a eficácia da cadeia, cometendo
um delito?
Era pois a Sr." Josefa da Graça a mais famigerada vergôntea deste
viveiro de aspirantas a santas, que se estava organizando na aldeia.
O reitor, queo era para imposturas, tratava-as a todas com aspereza,
o queo lhe granjeava muitas simpatias neste beato congresso.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo disse ao entrar na
loja, e com voz dolentemente melodiosa, a santa de que falamos.
Para sempre seja o Senhor louvado respondeu-lhe menos
beatamente a Sr.» Teresa.
Faz-me o favor de me vender duas velinhas de cera para uma
promessa que fiz ao Divino Coração de Maria, Sr. João, e que seja pelas
divinas Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.
João da Esquina satisfez prontamente a requisição, mas, enquanto
o fazia, perguntou:
Então que houve esta noite lá pelas suas vizinhanças, ti'Zefa?
Eu sei, filho ? Eu de portas para fora nada posso dizer. Jáo
é pouco tratar cada um da sua alma, e dirigi-la no caminho do Céu.
O padre José ainda ontem o disse.
Pois sim ; mas, quando se faz muito barulho na rua, sempre
se abre um cantinho da janela disse João da Esquina, piscando o
olho para o sacristão, que lhe sorriu em resposta.
Abrir a janela? Para que há-de uma pessoa abrir a janela?
Para se meter em trabalhos?o que eu, filho, todas as noites rezo
ao meu devoto padre Santo Antônio, para que me livre de perigos e
de trabalhos, de maus vizinhos de ao pé da porta, e de ferros de el-rei.
Mas pelos modos o santoo a tem ouvido, porque enquanto
a maus vizinhos...
Nem por isso a deixam dormir, nao é assim, ti'Zefa? per-
guntou a Sr.
a
Teresa, entrando na conversa.
Vizinhos... o que se diz vizinhos,o tenho eu; a casa mais
perto é a das pequenas do Meadas, e dessa à minha ainda é um
bocadinho.
Mas ouvia-se de lá o barulho ? perguntou o sacristão.
A beata fez um gesto afirmativo e acrescentou:
Olhe, Sr. Joaquim, pecados deste mundo, sabe?
Vamos. A ti'Zefa sempre tem inclinação pelas raparigas.
o suas conhecidas há muito tempo, e por isso...
Eu?! Olhe, ainda esta manhã o disse ao padre José, aquilo
o tentações do Demônio ; sabe o Sr. João da Esquina o queo ten-
ações do Demônio? pois é aquilo.o que dizem queo vale nada
er escrava de Nossa Senhora. Não,o vale. Já se está a ver. As coisas
estão a saltar aos olhos.
Mas, afinal, que houve? O caso foi com a Clara ou com a irmã?
A pergunta era feita pelo sacristão, por quem a beata tinha suas
contemplações, e por isso respondeu:
Foi com a Margarida, Sr. Joaquim. Aquilo estava de ver ! Então
admirou-se? Pois olhe, eu... A genteo deve murmurar do seu pró-
ximo, mas enfim... isto é por conversar eo passa daqui. Aquela
rapariga vai mal ; ainda hoje mo disse o padre José ; tirando lá a sua
missa ao domingo, já ninguém a vê mais na igreja. Olhe a Sr.* Teresa
que. ali onde a,o quis pertencer à confraria do Sagrado Coração
de Maria! Já viram? Mas, como disse o sr. padre José, e é assim, a
culpao é dela.
O nosso reitor é quem a aconselha insinuou João da Esquina.
Julgo que sim, Sr. João, e... Enfim, cada um sabe de si, e Deus
e todos, mas a falar a verdade...—istoo é agora por dizer mal
o sr. reitor, que é muito boa pessoa, assimo fosse aquela zanga
que ele tem ao padre José e à confraria ; mas que eleo as traz bem
guiadas, issoo traz...
Mas vamos a saber disse, ìnterrompendo-a, a Sr.ª Teresa,
e tornando um tom de íntima familiaridade, que provou admiràvelmente
em soltar a língua à beata mas se o caso era com a Margarida
, como é então que o Pedro quis matar o irmão ? Que tinha o Pedro
com isso?
Pelos modos disse o jornaleiro, que estiverà calado ele
julgou ao princípio que era a Clara, e... Faz-me lembrar quando, há-de
fazer três anos..
Nada, não, senhor,o foi isso emendou a beata. O que
me disseram foi que a Margarida quis lançar as culpas à Clara, e que
foi então que o Pedro espetou a navalha no irmão.
Então ele espetou-lhe alguma navalha? perguntou a menina
Francisca.
Poiso espetou? E diz que, por pouco, lhe chegava ao
coração...
Santo nome de Jesus ! Isso é crime de degredo, pelo menos.
E, dizendo isto, a Sr.» Teresa parecia satisfeita por o escândalo
ir assumindo maiores proporções.
O jornaleiro notou do lado :
Ó ti'Zefa, isso é que me nao parece verdade. Eu julgo que
ele nem o feriu.
Pois eu nao vi, Sr. Manuel?
com as janelas fechadas, ti'Zefa?!
A beata mordeu os beiços.
Vi esta manhã o sangue, é o que eu queria dizer. E por sinal
queo erao pouco.
Quem havia de dizer caie aquela sonsinha da Margarida...
observou o tendeiro.
Neste ponto entraram na loja mais alguns fregueses que, já infor-
mados do que se passara, prestaram logo ouvidos à conversa.
Entre eles achava-se também a criada de João Semana, a qual
viera comprar arroz para o jantar de seu amo.
o foi de todo o auditório a menos atenta esta nossa conhecida ;
mas uma contracção de lábios e sobrancelhas, e o olhar que fixou na
beata, mostravam queo era de ânimo satisfeito que ela escutava
os boatos daquela manhã.
A confessada do padre José continuava:
Olhe, Sr. João da Esquina, isto de viver assim ao deus-dará,
o é lá grande coisa. Aquilo naquela casa é uma república, sabe?
Falta ali uma pessoa de juízo e de temor de Deus. O sr. reitor... enfim,
euo quero dizer mais nada.
Pois é pena resmungou a Sr.' Joana.
É assim, ti'Zefa, é assim. O sr. reitor dá toda a liberdade àque-
las raparigas. Aquilo, mais tarde ou mais cedo, estava para suceder
disse a Sr.* Teresa.
Melhor tu olhasses por o que te vai por casa continuava
a resmonear Joana.
Olhem que mestra de crianças ! observou uma gorda oleira,
que viera comprar uma quarta de sabão. Não, filha minhao man-
dava eu.
Deixa estar, que contigo havia de aprender boas prendas
comentava ainda Joana.
o há-de ser a minha que há-de lá voltar.
Nem a minha disseram algumas das mulheres presentes.
A Sr." Joana principiou a ser acometida de uma tosse seca,o
significativa, que desviou para ela as atenções.
Mas a Sr." Joana, na qualidade de governanta do velho cirurgião,
era na terra uma potência, com que poucos se atreviam a arrostar.
Fizeram-se por isso desentendidos.
E quem vê aquilo então ! disse João da Esquina. toda
de mantos de seda, toda Santo Antoninho onde te porei.
Tentações do inimigo mau, sabem? tentações do inimigo mau,
e é o que é. Não, que dizem queo serve de nada confessar-se a
gente a miúdo, e rezar as orações dos missionários.
Ai, serve para livrar de maleitas depois da morte respon-
deu, já em voz mais alta, a Sr.ª Joana, preparando-se para sair.
A beata, fingindoo entender, continuou:
Ainda esta manhã o padre José...
Oh! disse expressivamente a criada de João Semana, já
a porta.
A beata fitou nela uns olhos chamejantes de cólera. Aquela inter-
ação irritara-lhe os nervos.
A Sr.ª Joana tem alguma coisa que dizer do sr. padre José ?
E você que lhe importa? retorquiu-lhe Joana embespinhada,
voltando para dentro.
Eu sempre queria saber...
Ora, meta-se com a sua vida, queo é de muitas canseiras,
eo tome tanto fogo pelo que se passa nas casas alheias.o está
mau o descoco? Olhem agora o estafermo!
o se zangue, Sr." Joana; lembre-se de que a ira é o quarto
pecado mortal.
Dê conselhos a quem lhos pedir, que eu, quando precisar
deles, sempre hei-de ter, graças a Deus, outras barbas melhores que
as suas para mos dar.
Presunção e água benta, cada qual toma a que quer disse
a beata, com um sorriso de sarcasmo.
O nariz da Sr.ª Joana afogueou-se de vermelhidão, sinal de bor-
rasca iminente.
Ó Sr.ª Zefa da Graça, repare bem com quem se mete. Olhe
que euo sou das da sua igualha, para tomar comigo esses ares de
confiança. Veja que lhe pode sair caro o risinho.
Ninguém falava com a Sr.ª Joana. Quemo quer ouvir as
coisas...
Então, então, issoo vale nada —disse, intervindo pacifica-
mente, a mulher de João da Esquina.
Queo vale nada, sei eu continuou Joana porque teníio
bastante juízo para receber as coisas, como dao de quem vêm.
Mas na verdade que lá custa a uma pessoa estar a ouvir semiscarún-
fias destas a porem a baba na fama de uma rapariga, de quem um só
cabelo da cabeça vale por todas as beatas fingidas desta terra, por
todas de cambalhota, e por o tal padre também.
Veja o que diz ! depoiso se queixe de ouvir...
Que hei-de eu ouvir, sua desavergonhada, sua papa-novenas,
que hei-de eu ouvir ? exclamava já de punhos cerrados e olhar
cintilante, a irascível Joana. Euo tenho medo das verdades, e
para as mentiras tenho estas mãos desempeñadas, graças a Deus. Diga
o que sabe, diga para. Não, minha amiga, a mimo me engana
você. Cuida que o rosário é fieira de alcatruzes que a há-de levar ao
Céu? Está servida.
Quem chega à missa depois do Credo...o pode falar...
murmurou, já intimidada, a beata.
E você, sua rata de sacristía, tem alguma coisa com isso? Que
lhe importa se eu chego tarde ou cedo? Não, que euo tenho a sua
vida, sabe? Deus, que lê nos corações, bem conhece queo é
de propósito que eu... Mas vejam esta santinha com que atenção está
à missa, que repara para quem entra e quem sai.o todas assim. Estas
e outras coisas é que elaso dizer ao confessor. E há-de ser isto que
há-der a boca em Margarida?
Então julga que é peta o que toda a gente sabe por aí?
Não, a verdade deve dizer-se observou João da Esquina.
É facto que esta noite...
Histórias ! issoo há-de ser tanto como dizem. Sabem que
mais? Eu só lhes desejo, aos que tiverem filhas, que Deus lhes dê a
elas um bocadinho do juízo da Guida do Meadas. Adeus.
E a Sr.ª Joana ia a retirar-se.
Espere, espere exclamou a Sr." Teresa, ofendida isso
que quer dizer?
o posso estar a taramelar das vidas alheias, que tenho a
olhar por a minha.
E saiu.
o lhe ficaram fazendo muito boas ausências as mulheres que
se conservavam na loja.
A beata sobretudo espalhou todo o seu fel em palavras acerbas,
apesar da costumada doçura de pronúncia, com que lhe saíam dos
lábios.
Afinal retirou-se também da loja, para ir contar a outra parte o
escândalo da noite passada, já mais ampliado talvez.
Dentro em poucoo se falava em outra coisa na aldeia. Cada
imaginação se encarregava de variar o boato...
Houve quem desse Daniel quase morto, e o irmão fugido ; outros
que pelo contrário ungiam Pedro e desterravam Daniel.
De Margarida dizia-se que tinha querido sacrificar a irmã, e que
esta a punha fora de casa, deixando-a assim a pedir esmola ; e mil outras
variantes, que o leitor pode conjecturar.
Este rapazo acaba bem. Ora verão concluiu, no fim de
tudo isto, o Sr. João da Esquina.
A Sr.' Teresa apenas observou:
Mas como lhe deu para olhar para aquela rapariga? Veiam
agora as grandes bonitezas !
A menina Francisca, inclinada sobre o mostrador da loja, escrevia
nele distraídamente, com um gancho do cabelo, diferentes palavras
sem nexo, e no fim suspirou.
XL
tarde desse dia empregou-a o reitor em casa de José das Dornas,
onde, com a sua diplomacia, conseguiu evitar as dificuldades
da primeira entrevista entre os dois irmãos.
Pedro, cheio de remorsos, abraçava Daniel, e este, que com
mais razão os estava sentindo, a custo podia suportar essas provas de
arrependimento de uma culpa imaginária.
Repugnava-lhe afectar maneiras de quem perdoa, quando força
interior o impelia a ajoelhar e a confessar-se culpado. Por mais de
uma vez esteve para revelar tudo; susteve-o o olhar, que o reitor,
jressentindo essa tentação, nunca dele desviava.
Mas dizia Pedro, já em ponto adiantado da entrevista se tu
ostas de Margarida, porqueo hás-de casar com ela?
E julgas que ela o consentiria ? perguntou Daniel.
Porque não?o te estima também? Eu julgo que bem claro
o mostrou ainda ontem.
Daniel achava-se embaraçado. A observação do irmão era, na
parência,o razoável, que eleo sabia o que havia de responder.
Valeu aqui a táctica do reitor.
Ora que sabes tu dos outros, Pedro? disse ele. Tem
raça! Cada um sabe de si, e é quando Deus quer, que, às vezes, nem
es sabemos também. O melhor é falarmos de outra coisa, ou tratar
cada qual da sua vida.
Daniel da melhor vontade seguiu o conselho do reitor e a con-
ferência terminou.
Porém, quando o padre ia para transpor o limiar da porta da
rua, Daniel aproximou-se dele.
E Margarida ? perguntou-lhe com certa ansiedade.
Margarida? Margarida está boa...
-—Falou-lhe depois que hoje nos apartamos?
Falei.
E persiste na sua resolução ?
Que resolução?... Na de salvar a irmã?... Pois está de ver
que sim.
o falo disso.
Então ? perguntou o reitor, com afectada simplicidade.
Na recusa que esta manhã...
Ah !... já nem me lembrava...o se falou mais em tal.
Daniel baixou a cabeça. O reitor julgou perceber-lhe no rosto
sinaiso simulados de tristeza, e condoeu-se dele.
Es cá disse, batendo-lhe no ombro como vamos?
A que paixão se traz agora aforado o coração? Aí nunca pode medrar
coisa que preste ; é um terreno movediço como o das areias.
As plantas de fundas raízes também as sabem prender.
Mas levam um tempo!... E nem sempre vingam. Aí está que
bem antiga foi a primeira sementeira dessa, que traz agora no coração,
se é que a traz, maso vingou dessa vez, ao que parece.
Que quer dizer? perguntou Daniel, olhando para o reitor,
a quemo entendia.
Homens que naom sempre presentes os tempos de criança,
os mais felizes e mais inocentes tempos da vida... Deus me livre deles.
Há-de haver dez anos...—E de repente, parecendo interromper o
pensamento, que ia exprimir, o reitor saiu, e, já da rua, cantou a meia
voz, e afastando-se lentamente :
Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar
Desde que rompia o dia
Até a noite fechar.
Ah! exclamou Daniel, como se naquele instante lhe ocorrera
um pensamento inesperado.
O reitor tinha já desaparecido.
Aquela exclamação abriu no espírito do antigo companheiro de
Guida uma longa sucessão de memórias e de pensamentos, aos quais
o deixaremos entregue.
Às dez horas da manhã do dia seguinte, o pároco, passando por
casa de Margarida, resolveu entrar,o obstante saber serem aquelas
horas de ocupação para a sua pupila.
O reitor muitas vezes gostava de assistir às lições das crianças,
e até de auxiliar Margarida, tomando algumas também.
com esse projecto subiu vagarosamente as escadas; ao subi-las
estranhou o silêncio que havia em casa, de ordinário, àquela hora,
ruidosa de vozes infantis.
—Isto será mais tarde do que eu supunha? disse o reitor,
parando no patamar e consultando o relógio. Dez horas. Só se o
relógio se atrasou; mas esta manhã ainda...
As pancadas sonoras da campainha de um pequeno relógio de
sala interromperam-lhe o monólogo.
Quatro, cinco, seis ;o dez,o há que ver dizia o reitor,
contando-as sete, oito... é isso; nove e dez.o dez horas, são. Mas
então...
E subia, mais apressado, um segundo lanço de escadas.
Margarida estará doente? Porém se fosse de cuidado, tinha-me
mandado parte ; eo sendo,o era ela a que por qualquer
coisa...
E entrou na primeira sala. Escutou o mesmo silêncio.
Oh ! Estou admirado !
Desta sala passou à do trabalho.
Estava deserta, postas de lado as pequenas cadeiras das crianças,
arrumados os cestos de costura e os livros, e na sala aquele ar de tris-
teza, que parecem ter, quando desertos, todos os lugares ordinaria-
mente concorridos.
Sentiu esta impressão o reitor; foi agitado de secreto receio que
atravessou os corredores e abriu a porta do quarto de Margarida.
Encontrou-a sentada, a 1er, com a fronte encostada à mão, o
semblante sereno, mas abatido, e nos olhos vestígios de lágrimas,
enxugadas de pouco.
Que significa isto ? disse o reitor, dando às suas palavras
um tom jocoso, mas conservando no olhar a mesma inquietação.
É hoje dia de sueto?
Margarida fechou o livro, ergueu-se para beijar ao ao reitor,
e com uma voz onde, quem estivesse exercitado a estudá-la, podia
perceber ainda um desvanecido tremor, respondeu:
As mães das minhas discípulas quiseram dar-me tempo para
o arrependimento e para a penitência. Dispensaram os meus serviços.
E eu... aproveitei o conselho, que me deram, assim. Veja.
E mostrou o livro que lia. Era o dos Salmos.
O reitor bateu impetuosamente com a bengala no chão.
Mas isso é indigno! isso é... é... Ora deixa estar que eu lhes
vou falar...
o. Eu já esperava por isto. De que se admira? Porque
as censura? Entãoo era da sua obrigação fazer o que fizeram?
Margarida, isto é de mais ! É preciso dar-lhe algum remédio
ou então...
E aí voltamos à nossa demanda disse Margarida, sorrindo.
o sabe já queo há melhor remédio a dar-lhe ?
Há-de haver ; isso é que há-de haver por força, que to digo
eu. Tu estás a obrigar o teu coração a coisas queoo para cora-
ções humanos. Hás-de acabar por o esmagar. Sabe Deus o que ele
padece!
Ora diga, quando o coração padece, pode-se estar a sorrir,
como eu??
E Margarida obrigava-se a sorrir.
E as lágrimas de ontem ? prosseguiu o reitor. E as de
hoje? Terás coragem para, olhando bem para mim, me afirmares que
ainda hojeo choraste, quando eu tas estou a ver nos olhos?
É certo. Chorei.
Ah!
Mas de saudade. Cerrou-se-me o coração de tristeza ao pensar
que me separavam daquelas crianças, que todas me queriam, que eu
via crescer, que eu ensinava a falar. Mas... paciência! A tudo se
costuma o pensamento, e dentro em pouco...
Nada, nada continuou o reitoro entendo isso de tal
forma. Tudo tem seus limites. Isso agora bole-me com a consciência,
Eu vou perguntar a essa gente...
O que lhe vai perguntar ?
O que significa este desaforo ! Quero lançar-lhe em rosto os
seus escrúpulos patetas e estúpidos. Olhem as presumidas !
o faça isso.
Margarida, é um pecado levar as coisaso longe. E cuidas
que tua irmã, sabendo disto...
Clarao o saberá. Para que o há-de saber ? Tinha saído,
quando eu recebi o recado dessa pobre gente. Eu lhe direi...
Que lhe hás-de tu dizer ?
Qualquer coisa... o que me lembrar. Dir-lhe-ei que estou
cansada desta vida afinal: que lhe dou agora razão... e que aceitarei...
a caridade... de minha irmã.
E a estas palavras a comoção dominava outra vez Margarida.
A caridade ! Quem fala de receber caridades ? Tu, que foste
pródiga em benefícios ? tu, que te despojaste da tua capa para cobrires
com ela os ombros nus de tua irmã? Ai, Margarida, que é isso menos
abnegação que orgulho. Não, desta vezo cederei. Vem, filha,
vem comigo.
Eu?! Aonde?...
Vem ; encosta-te ao meu braço. Quero ver agora quem se
atreve a murmurar daquela que passa apoiada ao braço do seu reitor.
Sempre quero ver.
o me obrigue a...
Vem, Margarida ; tens os pobres do costume a visitar, e entre
eles... e até, se queres ainda despedir-te do teu mestre,o deves
adiar a tua visita, porque...
Pois está pior?!
Está próximo a obter o alívio de todos os seus males. Ora
então vem, e veremos se elas também... se essa pobre gente, que socor-
res, recusa a esmola que lhe ofereces, as consolações que lhe sabes dar.
Mas... Jesus, meu Deus !o sei se terei forças agora...
Pede-as à consciência. Ela tas dará. Nao me recuses o que
e peço, Margarida; ou então Clara saberá tudo. Eu prometo que isto
o fica assim como está.
O pároco mostrou-se desta vez exigente. Margarida cedeu às
reiteradas insistências dele.
Passados momentos, iam ambos silenciosos pelos caminhos
da aldeia.
A apreensão de que se possuíra Margarida, fazia-lhe vacilar os pas-
sos. Teve de segurar-Se por isso ao braço do seu velho amigo e protector.
Chegaram assim ao largo, onde morava o enfermo.
À sombra das árvores brincava, a saltar e a dançar, um bando
de crianças, a cujas vozes joviais respondiam da copa da alameda os
gorjeios das aves escondidas.
As crianças, ao verem aproximar-se Margarida, mestra de quase
odas, correram, soltando gritos de alegria, a beijar-lhe a mão.
As mães, porém, que estavam sentadas, fiando e conversando,
nas soleiras das casas, que circundavam o largo, obrigaram-nas a parar
a meio caminho.
Vem, Luisa ! bradou uma delas.
Ó Maria, onde vais? Para aqui,; corre! exclamava
outra.
Ó Ana, ó Ana ! então isso é o que eu te disse ! Salte para casa.
Ande!
Ò Ermelinda, tuo ouves?o ouves, Ermelinda? Olha se
queres que eu vá lá !
E no mesmo sentido partiram de todos os lados vozes, que cons-
trangeram as crianças a pararem irresolutas.
A significação injuriosa daquelas palavras, daquelas ordens mater-
nas, foi logo compreendida por Margarida e por o reitor.
Aquela tremeu, e instintivamente apertou o braço do seu velho
tutor ; este tremia também, mas de indignação.
Olá ! bradou ele,o lhe sofrendo o ânimo mais reservas
olá, Luisa, Maria, Ermelinda, Ana; aqui,, todas aqui! Então,o
ouvem ?
As crianças aproximaram-se tímidas. Ele continuou, com voz
rija e alterada pela cólera;
Já que as vossas mães vos ensinam a ser desobedientes e mal-
criadas, aqui estou eu para vos dar a educação. Beijem ao à sua
mestra,. Ouvem-me?
Senhor ! murmurou Margarida.
Deixa-me respondeu o reitor, desabridamente. Então,
vamos !
As crianças tomaram ao de Margarida e beijaram-na com timi-
dez. Margarida abraçou-as soluçando.
E vocês? continuou o padre, dirigindo-se às mães.
Tudo a pé ! Que modoso esses de estar diante do seu reitor ? !
As mulheres levantaram-se, respeitosas e mudas.
Agora aproximem-se, e venham aqui pedir por favor a esta
rapariga, à minha pupila, entendem? à minha pupila; venham pedir-
-lhe que lhes abençoe as filhas. Vamos !
O orgulho feminino revoltou-se contra a intimação.
Essa agora !
Era o que me faltava !
Olhem os meus pecados !
Não, que eleo há mais...
Disso o livrará o Senhor.
o há-de ser a filha de meu pai.
Para longe a tentação...
Que é ? que é ? que é lá isso ? exclamou o reitor, interrom-
pendo este zunzum de má vontade e insubordinação. Que virtuo-
síssimas criaturas soiss todas ! Olhem lá queo manchem os lábios
a pedir !o vos custa manchá-los a jurar emo o santo nome de
Deus,o se vos importa manchá-los a assoalhar as vidas alheias, a calu-
niar as amigas, a insultar as vizinhas ; mas fazeis escrúpulos de os
empregar a pedir a bênção para vossas filhas, a quem, mais e melhor
do que vocês todas juntas, lha pode e deve dar.
Ora ! disseram algumas vozes.
Ora! Ora o quê? Saibam então que todas, todas vocês, nem
o dignas de lhe beijarem as bordas dos vestidos. O que sabéis é
engrolar padre-nossos, e roçar com a testa pelo chão das igrejas ; mas
o tendes coração para a doutrina do Senhor, não. Vós, as santas cria-
turas, envergonhais-vos de pedir como se vos desonrásseis com isso?
Pois euo me reconheçoo puro ; sou um pobre pecador, e por
issoo devo ter essas soberbas de bem-aventurados.
E o padre, dominado pela exaltação que se lhe apoderara do
espírito irritado, curvou-se, descobrindo-se ; e, tomando ao de Mar-
garida, levou-a respeitosamente aos lábios, apesar dos esforços daquela.
A assembléia feminina baixou toda os olhos de confusão.
As crianças rodearam a sua jovem mestra, e desta vez espon-
taneamente lhe cobriram de beijos as mãos.
Margarida, banhada de lágrimas, baixou-se, e uma por uma as
apertou ao seio, sem poder falar de comovida.
Bem, minhas filhas, bem disse o reitor. Dais assim um
nobre e belo exemplo às vossas mães ; é decerto ao de Deus, que
vos tocou os corações. Quem se recusará a imitá-las?
Euo disse uma voz por detrás do reitor.
Este voltou-se e viu José das Dornas, que se aproximara havia
alquns momentos, e assistira à cena que descrevemos.
O velho lavrador, depois de responder assim ao pároco, aproxi-
mou-se também de Margarida, e, pegando-lhe na mão, disse :
Minha filha, eu tenho setenta anos. Desde que minhae
morreu... há cinqüenta anos quase, nunca mais beijei ao a ninguém.
Pois digo-lhe que o faço agora, ainda com mais respeito, do que o
fazia então.
E o rude, mas generoso lavrador, baldando a resistência de Mar-
garida, imprimiu-lhe nao um beijo, em que ia toda a franqueza e
lealdade daquele carácter.
Ao endireitar-se, achou-se nos braços do reitor.
Bravo, José! bravo, meu homem! Isso esperava eu de ti, que
e conheço há muito. Bravo! bravo!—dizia ele, entusiasmado até às
lágrimas.
O exemplo obrigava. Algumas mulheres aproximavam-se já de
Margarida, e houve uma que lhe segurou a mão.
Margarida porém retirou-lha, e, esquecida da injúria passada,
Recebeu-a nos braços.
As outras, livres assim da acção, que mais lhes magoava o orgulho
e mulher, correram já de boa vontade a abraçarem a pupila do reitor.
Enquanto se passava esta cena, o padre, chamando à parte José
as Dornas, perguntara-lhe :
Então soubeste?...
Esta manhã foi que mo disseram. Creia, sr. reitor, queo
>uss suspeitas na rapariga. Eu sei de que diamante é feito aquele
coração. Corri a procurá-la, para lhe dizer isto mesmo; soube que
tinha saído com o sr. reitor, vim-lhes na pista...
E então que pensas tu de tudo isto, José ?
O que penso ? Já o tenho dito por. Euo sei lá como as
coisas se passaram, porque, segundo o costume, cada um conta a his-
ria a seu modo ; mas que a culpa é tôda de Daniel, isso para mim é
e fe. Tem diabo o rapaz! Já vejo que é impossível deixá-lo ficar aqui
a terra. Lá me custa, que sempre é filho; maso há outro remédio.
Que vá para o Brasil.
Estas palavras chegaram aos ouvidos de Margarida, e fizeram-na
estremecer.
Para o Brasil ? disse o reitor, abanando com a cabeça em
sinal de desaprovação. Então que há-de ir o rapaz fazer parao
longe ?
Pode enriquecer por, que é terra para isso. Que dúvida?
E pelo menos escusa de andar por aqui a desacreditar as raparigas
da aldeia. É sestro queo perde, ao que estou vendo. Escuso de me
arriscar a mais desgostos.
Mas..,
Para que diabo lhe havia de dar ! Logo então esta, a mais sisuda,
a mais santa das nossas raparigas !
E se os casássemos ? disse em voz baixa o padre a José
das Dornas.
O quê?—perguntou este, espantado com o alvitre.
Sim, que dúvida? Pois que melhor noiva podes querer para
teu filho, do que aquela, a quem já pensaste poder beijar ao ?
Decerto, mas...o conhece o rapaz, sr. reitor ! Aquilo casado!
O santo nome ! E então com esta !... Pobre rapariga !
Enfim pensaremos e conversaremos. Olha que a dificuldade
parece-me ainda mais dela do que dele.
Que diz ? !
Apesar do elevado conceito em que José das Dornas tinha o
carácter de Margarida,o podia conceber como fossem possíveis
as repugnancias, da parte dela, para um casamentoo vantajoso.
Então que queres? disse o reitor orgulhos de pobres...
o compreendes isto?
E tomando o braço do lavrador, como quem tinha a comunicar-
-lhe alguma coisa importante, afastou-se com ele um pouco para o lado.
,Depois de darem assim juntos alguns passos, voltou-se de novo
o reitor, e dirigindo-se a Margarida, disse-lhe:
Olha lá ! se queres, vai agora visitar o teu mestre enquanto
eu converso aqui com o José das Dornas. Quando saíres, vem ter
connosco à alameda, que lá andamos.
E, caminhando na direcção da alameda indicada, prosseguiu na
sua conversa com o lavrador:
Pois é o que te digo, José. Eu tenho pensado neste negócio,
eo embrulhado o vejo, que nao sei de outra saída melhor, do que
essa que te disse. Mas enfim, pensa tu, e se te lembrares de alguma
preferível...
Nao obstante as tolerantes disposições de espírito, de que fazia
assim ostentação, o reitor estava preparado para achar péssima toda
a solução, queo concordasse com a sua.
Deixando-os no passeio da alameda, e na conferência,o pro-
metedora de importantes resultados, que iam encetar, seguiremos
antes Margarida, a qual, ainda sob o domínio das ultimas e violentas
impressões recebidas, entrou em casa do seu mestre.
XLI
H
AVIA na sala grande obscuridade e um silêncio profundo.
Parando, até habituar a vista àquela pouca luz, Margarida
chamou, a meia voz, a mulher, a quem ela e sua irmã pagavam
para tratar do doente.
Ninguém lhe respondeu.
Pois teria a crueldade de o deixar assim, neste estado ! pensou
Margarida.
E apertava-se-lhe o coração só com a lembrança de tal abandono.
Maria ! repetiu, elevando a voz.
O mesmo silêncio em resposta.
! coitado!...! Que coração o desta gente, meu Deus!
E, com as lágrimas nos olhos, encaminhou-se para a alcova.
Guiava-a o respirar ansioso do enfermo. Mais acostumada já
à obscuridade da sala, conseguiu Margarida aproximar-se do leito,
em que ele jazia.
com a solicitude de uma filha, inclinou-se a observar o estado do
pobre velho ; e dando às suas palavras aquela inflexão carinhosa, que
é o segredo sabido das mulheres ao velarem por um doente estreme-
cido, disse-lhe, unindo quase o rosto ao rosto macilento do moribundo :
Deixaram-no aqui? como se sente? Dormia talvez, e eu
vim acordá-lo.
E, ao examinar-lhe assim de perto as feições, estremecia de susto.
Naquela palidez, naquele olhar, nos movimentos dos lábios entrea-
bertos, havia de facto urna significação de assustar.
Entãoo se acha melhor ? repetiu Margarida no mesmo
tom de voz, e limpando-lhe compassiva a fronte, da qual um suor frio
corria em abundância.
O velho volveu para ela um olhar, que, apesar de amortecido,
reflectia ainda bem evidente a mais viva expressão do seu entranhado
afecto, e, por um movimento de cabeça, respondeu negativamente à
pergunta.
Coitado!—prosseguiu Margarida, ajeitando-lhe a roupa do
leito. Padece muito,o padece ?
O doente moveu os lábios como para articular algumas palavras,
maso sumido lhe saía já o som, queo se podia distinguir de um
suspiro.
Margarida apalpou-lhe as mãos ; estavam frias, dessa frialdade
de cadáver, que desperta ems repulsão instintiva. Apesar de toda
a sua corajosa afeição a este velho, a compadecida rapariga, ao sen-
ti-las assim, ia a retirar as suas ; mas impediu-a a contracção violenta
com que lhas segurou o agonizante.
Por pouco rompia um grito do seio de Margarida. Figurou-se-
-lhe, no primeiro momento, que um cadáver a ia prender ao sepulcro.
Venceu-se porém, e deixando a suao entre as mãos geladas
do velho, e com a outra arredando-lhe da fronte os cabelos brancos,
que em desordem a cobriam, continuou:
Jesus, que soube o que é padecer, há-de ter compaixão de si.
Ele lhe dará o alivio.
O velho fez um esforço, e fitando em Margarida um olhar, ao
mesmc tempo de dor e de saudade, murmurou a custo e em voz cor-
tada pela respiração :
Sim... alívio na morte.
Nao diga isso replicou Margarida, procurando sorrir, mas
tremendo-lhe os lábios de compaixão. como perdeu assim a espe-
rança? Poiso se lembra de, ainda há dias, combinarmos dar uns
passeios, que lhe hão-de fazer muito bem? Havemos de ir breve; vou
eu, a Clara, e o sr. reitor também vai, que já mo prometeu. Há-de ser
à ermida da Senhora da Saúde. Se soubesse como lá é bonito! A vista
segue, segue por cima de campos, de devesas, de aldeias, eo longe,
o longe, que só pára no mar.o se pode estar doente ali ; verá.
um sorriso, sorriso de gratidão e de amargura também, se dese-
nhou nos lábios descorados do velho, sorriso como pode ser o dos
agonizantes triste, desalentado, desconsolador.
Então parece-lhe queo há-de gostar do passeio? pros-
seguiu Margarida, a quem fazia mal vê-lo sorrir assim. Que medos
o esses agora? Quantas vezes tem já estado, como está hoje, senão
pior ainda ; e depois melhora. Olhe, vou dizer-lhe uma coisa. Está para
poucos dias o casamento de Clara. É preciso pôr-se bom para esse
tempo.
O doente tomou uma expressão e agitou os lábios, como pro-
curando falar.
Margarida inclinou o ouvido atenta, para conseguir percebê-lo.
Entendeu-lhe estas palavras mal distintas :
Não, nunca senti isto...
Que o aflige então ? perguntou Margarida.
o sei... é aqui...—e com dificuldade elevou ao ao
peito ; depois acrescentou : É a morte.
E, dizendo isto, fechou os olhos, como se extenuado pelo esforço.
Bem sei também do que há-de ser isso prosseguiu Marga-
rida, depois de pequena pausa. É de estar assimo sumido pela
cama abaixo. Quer que o levante?
O velho fez um sinal de assentimento.
Margarida segurou então por baixo dos braços aquele corpo
enfraquecido e descarnado ; e suavemente, com cuidado de mãe, com
a arte instintiva na mulher, elevou-o para a cabeceira. Mas o aspecto
eme iam tomando as feições do doente, à medida que ela o levantava
assim, intimidou-a e tanto, que precisou de fechar os olhos com medo
de que lhe falhassem em meio as forças, a que a piedade dera alento.
A palidez aumentava naquele rosto desfigurado ; afastavam-se-
-lhe os lábios para respirar ; cada expiração era acompanhada de um
gemido.
Está pior? dizia Margarida, sobressaltada com a mudança.
Sente-se mais mal? Fale. Porque está assim aflito? Estava melhor
na posição que tinha? Quer que o ajude outra vez a descer?
E inquieta, aterrada por aquela agonia silenciosa, Margarida jun-
tava as mãos, irresoluta no que devia fazer.
O moribundo parecia que ao escutava. Caiu pouco a pouco
num abatimento extremo. A mão, que Margarida lhe tomara entre as
suas, jáo dava sinal de movimento, nem de vida.
Dissera-se, ao vê-lo agora desfalecer gradualmente, que a morte
se aproximaria lenta, suave, sem paroxismos, como um adormecer,
que seo pressente.
De súbito, porém, alterou-se esta placidez enganosa.
Animado de uma energia, que contrastava com a depressão que,
momentos antes, lhe paralisava os membros, tocados pelo dedo da
morte, afastou impaciente a roupa, e, elevando as mãos, cruzou-as
sobre o peito, ao mesmo tempo que inclinava para trás a cabeça, como
em espasmo violento.
Margarida julgou-o morto.
Apoderou-se então dela um terror súbito e profundo. Assustou-a
aquela escuridade, aquele silêncio, aquela agonia, e, soltando um
grito, correu à porta para pedir socorro.
Ao abri-la, achou-se inesperadamente em face de Daniel, que,
sor acaso, entrava ali também naquele momento.
Estava muito agitado o espírito de Margarida, para que a pre-
sença de Daniel produzisse nela a impressão, que, em outras quais-
quer circunstâncias, produziria.
No homem, que mais pudera influir-lhe no coração, ela só viu,
naquele momento, o médico, o socorro, que lhe enviava talvez a Pro-
vidência; e, com as lágrimas nos olhos e as mãos juntas, caminhou
>ara ele, sem hesitação, sem timidez, cheia de confiança.
Por amor de Deus, Sr. Daniel, acuda a este infeliz, que morre !
dizia ela comovida.
Daniel, surpreendido ao princípio pelo inesperado aparecimento
de Margarida, num instante recebeu o contagio abençoado da gene-
rosidade daquela alma.
A mais leviana cabeça curva-se diante da manifestação sincera de
uma dor assim ; o coração mais volúvel deixa-se penetrar do influxo mis-
terioso da simpatia e cerra-se a outros motores menos desinteressados.
Daniel compreendeu toda a nobreza daquele sentimento, e sen-
iu-se arrastado por ela.
Que aconteceu, Margarida? perguntou ele, olhando com
atenção para aquelas feições que se recordava ter conhecido na infân-
cia, e agora duplamente realçadas pela poesia dos vinte e três anos
e pela poesia da tristeza. O que a assusta assim?
Venha, venha respondeu Margarida ; foi Deus que o
trouxe aqui ! E tomando-lhe ao por um movimento, ao qual a
menor vacilação de suspeitao alterava a firmeza, conduziu-o à cabe-
ceira do moribundo.
Veja ! disse ela então, deixando ao de Daniel e salve-o,
se puder.
A agonia da morte, com que naquele momento lutava o ancião,
o permitia conceber esperanças : um simples olhar revelou a Daniel
oda a verdade.
Salvá-lo ? ! murmurou, sorrindo tristemente e apalpando-lhe
o pulso, quase sumido.
Aliviá-lo ao menos ! disse Margarida. Poiso haverá
nada que lhe diminua esta ânsia?
As suas orações, talvez, Margarida. Tente.
Margarida caiu logo de joelhos, e com as mãos erguidas, e os
olhos, de onde lhe corriam as lágrimas, fitos no rosto do agonizante,
murmurou uma prece fervorosa.
Daniel, em, do outro lado do leito, contemplava-a com afecto.
o havia muito tempo que, naquele mesmo lugar, ele tinha visto
Clara ; mas que diversa e mais profunda era a sensação que recebia
agora !
A dor, a compaixão, a, pareciam transfigurar o melancólico
vulto de Margarida ; dar vida àquelas feições, de ordinário serenas ;
fulgor àqueles olhos, lânguidamente cismadores ; e movimento aos
lábios, que de costume a meditação contraía.
A vida latente dessa natureza delicada e sensível revelava-se
em ocasiões destas. como que um raio de luz divina descia então sobre
aquela beleza, que a luz da terra iluminava mal.
Sentia-se vontade de ajoelhar diante dela ; a alma toda ia nesta
contemplação, quase extática. Nunca mais se apagava da memória a
imagem da simpática rapariga,vista uma vez sobo prestigioso aspecto.
Lutando entre a paixão e o respeito, entre o amor que sentia
nascer em si, veemente como nunca, e um vago enleio de timidez,
novo para ele, Danielo podia tirar os olhos daquela saudosa figura
de virgem em oração, que lhe parecia quase sobrenatural.
A agonia do velho acalmou, como se por efeito das preces de
Margarida. Foi, pouco a pouco, decaindo da ansiedade num profundo
abatimento ; a respiração fazia-se a custo e com grandes intervalos ;
a cabeça pendia-lhe desfalecida. Depois os olhos, já embaciados, vol-
taram-se lentamente para o lugar, onde Margarida rezava ainda: agi-
taram-se-lhe os lábios como a balbuciarem um nome — o dela ; um
sorriso de suave placidez cobriu aquelas feições como do reflexo
da felicidade suprema, e uma lágrima, a última, rolou-lhe pelas faces,
vagarosa, solitária.
Veja, veja disse em voz baixa Margarida para Daniel, sem
desviar o olhar do rosto do velho, onde estas mudanças se sucediam
rápidas.
Daniel inclinou-se sobre o peito do moribundo, e conservou-se
por algum tempo assim.
Ao erguer de novo a cabeça, apenas disse :
Está morto.
Ao ouvir esta fatal palavra, Margarida, sufocada de pranto, apo-
derou-se dao do seu velho amigo, cadáver, e cobriu-a de beijos
e lágrimas.
Reinou por algum tempo o silêncio no quarto. Interrompia-o
apenas o soluçar da afectuosa rapariga.
Margarida disse-lhe enfim Daniel, que estiverà presenciando
mudo aquela dor generosa — é diante deste cadáver que lhe vou
falar agora. Foi Deus que me trouxe a esta casa. Disse-o há pouco,
o disse ? E foi ; creia agora que foi. O lugar é para mimo sagrado,
como o interior de um santuario.o é verdade que ninguém teria
coragem para mentir aqui, Margarida?o é verdade que ninguém
pode recear do seu coração, quando o interroga em momentos como
este, e o sente forte? É pois aqui, é neste momento, que eu lhe repito,
que eu venho jurar que a amo, Margarida.
Oh! cale-se, cale-se! exclamou sobressaltada Margarida,
sem levantar o rosto para ele.
Para que me manda calar ? Levaráo longe a sua descon-
fiança, que possa acreditar que até neste momento lhe minto, que
nem a promessa, feita sobre este leito, para mim consagrado pela sua
generosidade, que nem essa saberei respeitar?
Por compaixão, por misericórdia, cale-se dizia, com maior
veemência Margarida, elevando agora para ele as mãos juntas e os
olhos banhados de lágrimas.
Margarida ! repetia Daniel.
o vê que é um sacrilégio quase, isso que está a dizer?
Repare, veja onde está; olhe o que nos separa. Oh! cale-se !
É a solenidade do lugar e do momento, que me anima a falar-
-lhe.o duvide de mim, Margarida. Será preciso que lhe lembre o
tempo passado? será preciso que lhe fale da infância, Guida? da infân-
cia que passámos juntos?
A mim ? Serei eu a que preciso de avivar lembranças ? disse
involuntariamente Margarida, num tom quase de amarga exprobração ;
mas, reprimindo este movimento, que nao soube disfarçar a tempo,
acrescentou com desespero : Que quer de mim ?
A sua confiança, a sua estima : juro-lhe que a mereço. Pela
primeira vez faço, sem hesitar, este juramento. Alguma coisa se passou
no meu coração, que me fez outro homem. Acabou o louco sonho de
dez anos, que andei sonhando. Despertei ontem. Agora sou o mesmo
Daniel, que daqui partiu, deixando na aldeia alguém, que do alto dos
montes olhava com tristeza para a estrada que o constrangeram a
seguir, estrada que, ele também, regou com lágrimas de saudades.
Guida,o me perdoará as loucuras deste sonho mau ?o mas per-
doará em nome do passado? Fale.
Margaridao respondia.
Diga, que devo eu fazer para adquirir de novo essa estima
que perdi ? Peça-me sacrifícios, peça-me provas ; maso me feche
assim de todo o coração. Ê generosa para com todos, e só para mim...
Que quer ? — disse Margarida, afastando com as mãos tré-
mulas os longos cabelos negros, que se lhe haviam desprendido pelos
ombros. Que me vem pedir aqui? Para que vem lembrar-me o
passado, que, primeiro do que eu, deixou esquecer? Deseja a minha
estima, a minha confiança... Confiança em quê? No seu carácter?...
bem sabe queo desconfio da nobreza dele ; no seu coração ? e a
voz tremia-lhe ao acrescentar: ai, do seu coração... para que deseja
que eu me ocupe do seu coração, Daniel? Por piedade, nao me fale
assim! Se soubesse o mal que me faz, se soubesse... Oh meu Deus!
eu a dizer isto, e este cadáver a pedir-nos orações ! Daniel... Sr. Daniel,
peço-lhe que me deixe rezar.
E vai rezar com a alma cerrada aos sentimentos de piedade,
Guida?
Daniel ! repetiu Margarida, quase suplicante.
Naquela posição, com aquele olhar, pronunciando-lhe assim o
nome,o sentida e singelamente, a simpática pupila do reitor acabou
por dominar de todo o coração de Daniel.
Margarida ! exclamava eleo vê que essa desconfiança
me mata ? Por piedade !
Margarida julgou percebero sei quê de sentido e de apaixo-
nado na voz e no gesto, que a imploravam assim.
Olhou algum tempo para Daniel, irresoluta ; ia talvez estender-lhe
a mão, ia revelar enfim o seu segredo de tantos anos ; o mesmo pen-
samento, porém, que a obrigara a guardá-lo até ali, fê-la recuar mais
uma vez.
Mas Daniel tinha-lhe percebido já a hesitação ; bastou-lhe um
tastante para convencer-se de queo era com a indiferença que teria
a lutar. Alentou-o esta idéia. Enquanto que Margarida recuava, ele,
cada vez mais próximo, ia de novo repetir a súplica.
Neste momento, as mãos, que o velho Álvaro conservava ainda
cruzadas sobre o peito, desunidas agora pela morte, vieram cair iner-
tes no leito, de cada lado do corpo.
A esta aparência de animação no cadáver, a este movimento
inesperado como para separá-los, Daniel recuou, estremecendo, e
Margarida soltou um grito ocultando o rosto com terror.
Neste tempo abria-se com violência a porta do quarto, e apare-
cia no limiar a figura do pároco.
Que é isto? perguntou ele, ouvindo o grito de Margarida
e alternando o olhar inquieto entre ela, ajoelhada ainda, e Daniel,
pálido e em, do outro lado do leito.
É uma vida de tormentos que findou respondeu Daniel, indi-
cando o cadáver do velho.
Então o padre caminhou lentamente até junto do leito, onde um
feixe de luz, entrando pela porta, que ficara aberta, vinha iluminar a
cabeça do morto ; contemplou-a por algum tempo com tristeza ; depois,
ergueu os olhos e as mãos para o Céu, e começou com voz pausada
e clara a recitar:
Requiem aeternam donne ei, Domine ! Lux perpetua luceat ei.
Requiescant in pace. Amen.
Cedendo a influência da voz, do gesto e da sincera compunção
do reitor, ao recitar a oração mortuària, Daniel ajoelhara.
O reitor continuou por algum tempo rezando ainda em voz baixa.
Depois baixou melancólicamente os olhos outra vez para a fisionomia
serena do morto; consolou-o aquele reflexo de felicidade que julgou
perceber nela. Em seguida, voltando-os para Daniel e Margarida, que
se conservavam ainda ajoelhados, suspirou.
Cedo porém veio um sorriso desanuviar as feições do pároco.
Ergueu novamente as mãos, como a invocar a influência do Céu, e
sem que os dois o pressentissem, cobriu-os com a sua bênção.
Quando, passado algum tempo, saiu com a sua pupila da casa em
que estas cenas se passaram, ia a sorrir de satisfeito o reitor. E que
lá lhe parecia que tinha sido inspiração divina aquela bênção dada
ali, e queo podia deixar de ser eficaz para o que ele meditava.
XLII
UITO antes da hora, à qual o reitor viera encontrar Margarida
abandonada das suas discípulas, e possuído de indignação, a
constrangera a acompanhá-lo em passeio pelos caminhos da
aldeia saiu Clara do cemitério paroquial, onde fora visitar a sepultura
de sua mãe. Caminhava, vagarosa e pensativa, a irmã de Margarida,
por a alameda contígua, eo distraída ia que, ao passar pela porta
lateral da igreja,o reparou que uma sua conhecida, e nossa também,
a estava observando de.
Era a Sr." Joana, que, achando-se com vagar aquela manhã, resol-
vera cumprir uma antiga promessa a Santa Luzia, que a livrara, havia
meses, de impertinente doença de olhos. Outra causa porém além
desta, e menos piedosa, a impelira a devoçãoo matinal.
Depois da altercação, que valentemente sustentara na véspera
com a tia Josefa da Graça, a criada de João Semana, de volta aos lares
domésticos, lembrou-se de muita coisa, que lhe podia ter dito, e que
na ocasiãoo lhe ocorrera.
Isto, que sucedeu a Joana, quer-me parecer que há-de ter já suce-
dido também ao leitor ; quase sempre as grandes, as boas lembranças,
os argumentos mais felizes para fazer emudecer adversários, vêm-nos
extemporâneos, quando a discussão findou ; saiteiam-nos à mesa do
jantar, visitam-nos à cabeceira do leito, luminosos, mas tardios.
A Sr.' Joana ganhou pois vontade de ter novo encontro com a
sua contendora, para a mimosear com a formidável adenda de amabi-
lidades, que lhe estavam ocorrendo, a todo o instante, e cada vez mais
preciosas.
Frustrou-se porém este plano, porque a beata tinha sido chamada
aquela manhã por suas devoções a uma outra igreja.
Joana ia já a retirar-se desconsolada, quando avistou Clara na
alameda.
Vendo queo era percebida por ela, chamou-a.
Fale à gente. Então que modoso esses agora? Passa por
uma pessoa, comoo por vinha vindimada!
Nao a tinha visto disse Clara, parando à espera dela.
E ambas continuaram depois por o mesmo caminho.
Então que doidices foram aquelas lá por casa? perguntou
Joana, queo era para rodeios, e ia logo direita ao fim que tinha em
vista.—Aquilo é coisa que se faça? Ainda se fosse consigo,o me
admirava eu tanto, mas com a Guida!
Clara ficou surpreendida com o que ouviu a Joana. Margarida
para acalmar à irmã os escrúpulos em aceitar o sacrifício, dera-lhe a
entender que, à excepção de Pedro, ninguém mais na aldeia suspei-
tava a cena do quintal. Agora adquiriu ela a certeza do contrário.
Então você sabe?...—perguntou timidamente,o ousando
olhar para Joana.
Se eu sei ! E quem oo há-de saber, filha, se por aío se
fala em outra coisa?
Que diz, Joana?!
Pois que cuidava? Ai, está bom, está! é o que eu digo! Aí
tem que ontem... Mas a mim ainda me custa a crer!... pois a Guida?...
Joana! por quem é,o fale dessa maneira. Se soubesse...
Poiso falo, não... Ainda que de eu falaro é que vem o
mal. Assimo andassem por aí outras línguas danadas...
Então dizem ? Oh meu Deus ! meu Deus !
Dizem tudo, e mais alguma coisa ; é o costume. Pois ainda aí
está ! Bem o digo eu !
Jesus Senhor. ! E falam da Guida ? !
Que dúvida ! Há lá manjar mais doce para essas boquinhas
cá da terra, do que uma novidade daquelas? Falam dela, e de modo,
que já me fizeram ferver o sangue. Olhe que estive para obrigar uma
das tais a engolir a língua peçonhenta, a ver se a envenenava com ela.
Ora imagine a Zefa da Graça a contar a história, e veja lá o queo
diria !
Clara ocultou o rosto com as mãos ; a dor e a desesperação esta-
vam-na torturando.
E então o pioro é isso continuava Joana. O pior é que
a essas desalmadas meteu-se-lhes em cabeça que as filhas corriam
perigo, continuando a ser ensinadas por a sua irmã ; e é de crer que já
hoje... Mas veja aquelas tolas, que o mais que sabem é estragar os
filhos com maus exemplos e coms palavras, a fazerem-se agora
de escrúpulos ! Impostoras !
Oh ! isto é de mais ! bradou Clara, tremendo de indignação.
A Rosa alfaiate, por exemplo prosseguiu Joana. Ora
digam seo è mesmo de uma pessoa perder a paciência ouvir aquela
desbocada com medos de que lhe estraguem a filha? a filha, que se
o sair das que nem o Demônio quer,o há-de ser por falta de dili-
gências que faça ae para isso.
Clara nao podia já reter as lágrimas.
E a Joaquina do Moleiro ? Poiso querem ver aquela senhora
também com delicadezas ? Ora isto ! Isto é de uma pessoa morrer com
riso. A Joaquina do Moleiro, que eu conheci... Cala-te, boca.
E por esta forma continuou a Sr.
a
Joana fazendo a severa crítica
das suas escrupulosas patrícias, e aumentando, sem o saber, a grande
aflição em que estava Clara.
Ao separar-se da velha governanta de João Semana, ia Clara
com uma resolução formada, a qual se lhe podia adivinhar na firmeza
do olhar e na expressão do semblante.
É de mais ! murmurava ela vou procurar Pedro ; vou
dizer-lhe tudo; quero que todos saibam...
Ia pensando nisto, quando se achou em frente dos dois irmãos,
que se aproximavam, conversando afectuosamente. Daniel vinha pálido ;
voltava naquele momento da entrevista que inesperadamente tivera
com Margarida.
Ao vê-los assim de súbito, faltou a Clara a coragem para cumprir
o que tinha resolvido.
Só com Pedro, teria ânimo para a confissão, mas, diante de
ambos !... Era de mais para as suas forças. Calou-se.
Passadas algumas horas, voltou ela a casa, e entrou na sala em
que estava já Margarida, o reitor e José das Dornas.
Este último tinha ares meditabundos, como se estivesse ponde-
rando idéias graves eo sei que misteriosos planos.
Clara foi direita à irmã. Trazia ainda no rosto toda a indignação
causada por o que tinha ouvido a Joana e depois vira confirmado.
Tinham-lhe contado a ofensa que a irmã recebera aquela manhã,o
lhe aparecendo discípulas ; conservando ainda vermelhos os olhos,
de tanto que, por isso, havia chorado.
Chamando Margarida à parte, disse-lhe com voz trémula de
raiva :
Margarida, estou resolvida a acabar com isto.o devo,o
posso,o hei-de consentir que assim te percas por mim. Vou dizer
tudo. Se tu és forte, eu também tenho forças; menos para isto, para
te ver assim insultar, Guida, minha pobre Guida !
E as lágrimas saltavam-lhe dos olhos, ao abraçar a irmã.
Cala-te, cala-te,o digas loucuras. Se soubesses?... Olha,
á estou de bem com essa gente toda, essa pobre gente, que é boa no
undo, afinal, coitada. Ainda agora...
E Margarida contou, com sorrisos, toda a cena do largo.
Pois sim disse Clara, depois de ouvi-la mas ficarão sus-
>eitosos ; ouvirás ditos, viveras debaixo das desconfianças desses,
que, todos juntos, teo valem, Guida; e isso nao me deixaria sosse-
gar. Ora diz-me se, por alguma coisa do mundo, aceitarías de mim
um sacrifício tamanho?
Quem sabe? disse Margarida, fazendo por sorrir; e depois
acrescentou : Outra coisa me aflige neste momento mais, bem mais
que tudo isso.o sabes que morreu o nosso pobre amigo?
Sei ; soube-o de Daniel, que vinha de.
Pois falaste-lhe ? perguntou Margarida baixando os olhos,
por se lembrar da cena que no capítulo antecedente descrevemos.
Falei. Foi ele quem me disse que tinha morrido aquele infeliz.
Fui-lhe rezar junto do leito. E, outra vez, aconselhou-me Deus que
o abandonasse a minha idéia.
Então que idéia tiveste tu ? perguntou Margarida.
Clara continuou:
Guida, agora isto em mim é decidido. Ou tu aceitas o ofereci-
mento de Daniel, ou eu digo tudo.
Doida ; nem me fales nisso.
Agora, juro-te, pela salvação da minha alma, que é tenção
firme, e teo darei ouvidos, Guida.
Clara!
Juro-to.
Queres fazer-me desgraçada?
Quero fazer-te feliz.
Matavas-me.
À morte te estás tu a dar com esse teu gènio, Guida. Esse teu
bom coração consome-se assim. Queres fingir-te mais forte do que
és. Escondeste-te para chorar. E olha, quando seo chora, parece
que as lágrimas nos caem todas cá dentro e queimam; e o padeci-
mento é então de morte.
Estás enganada, Clara ; a gente costuma-se afinal a tudo, até
à tristeza.
Para que estás tu a mentir-me assim? Aprendi mais de
ti nestes dois dias, do que em tantos anos que te conheço. Dantes eu
dizia, como todos : Esta minha irmã é feliz no meio das suas tristezas ;
vai tanto sossego naquela alma, que a vida para ela deve ser como um
dormir de criança, em que seo fazem sonhos maus; mas ontem,
ó Guida, como te vi ontem ! Eu que tenho este gènio forte, nunca me
senti assim. Imaginei o que ia pelo teu coração naquele momento,
minha boa irmã, e assustei-me. Mas ainda issoo era nada. Que horas
terão havido na tua vida de vinte e três anos, minha pobre Guida?
o que terá ido lá por dentro, nesse coração, queo abres a ninguém ? !
Nem a mim, Guida, que precisei de adivinhar-to, se quis. É malfeito.
Mas cada vez que penso nisto, cada vez que me lembro de quanto
terás chorado, escondida, de quanto terás penado, calada, sinto quase
que terror.o era sem causa essa distracção, em que tantas vezes
caias, e que me fazia rir. Que cega, que eu era, e que, sem o querer
ser, ao rir assim! Quantas vezes estarias tu sofrendo, como eu nem
penso que se sofra, e eu a rir-me ! Perdoa-me, Guida, perdoa-me
aquela maldade ; mas bems que euo te conhecia bem. Não, tu
o és de gelo, como dizias. Quem sabia perdoar, como tu, e desde
bem pequena principiaste a fazê-lo ! quem sabia, como tu, estimar e
proteger uma irmã, podia lá ter fechado o coração para o mais? para
o amor? E que amor que lá guardas, há tanto ! e que ainda agora queres
abafar; como julgas que o hás-de fazer, doida? Que hás-der tu no
lugar dele?
A tua amizade, Clara redarguiu Margarida, beijando-a sen-
sibilizada. Essa me bastará. Amava-te já muito, minha filha, mas agora
sinto que ainda hei-de vir a amar-te mais. Até aqui, estremecia-te como
a uma criança bonita, meiga, carinhosa, e acrescentou, com um
leve sorriso com suas perrices também. Tudo que nos agrada, que
nos enfeitiça nas crianças, agradava-me, enfeitiçava-me em ti. Mas
agora, Clara, apareces-me outra. como se aquele momento de dor,
que passaste, te fizesse de repente mulher, falas-me, como ainda te
o ouvira, sentes, pensas, e... adivinhas até, como julguei que nunca
o farias. Agora sim ; vejo que terminou a minha tarefa de protectora,
a tarefa de que tuae me encarregou. Estás uma mulher, Clarinha.
Agora posso tomar-te por confidente, e conselheira até. Tens direito
a sê-lo, tu, a única pessoa que me adivinhou. É teu o meu segredo...
porque mo roubaste, vamos., que já meo envergonho de dizer-te
que me adivinhaste. Sim, é certo que este... esta loucura viveu comigo,
cresceu comigo, e quem sabe até se comigo morrerá? é uma compa-
nhia a que me afiz, mas nunca deixei de a conhecer pelo que ela é,
uma loucura. Estou como aquela viúva do Outeiro, que rodeia de cui-
dados e amor o filho doido que tem. E queres agora que vá assim
arriscar o meu futuro, o futuro do meu coração, que é o que eu mais
prezo, para satisfazer esta loucura? Diz: não, tuo hás-de exigir isso
de mim. Promete-me sempre a tua amizade de irmã, e eu serei...
feliz...
o serás ; nunca o foste. Agora sou eu que devo ordenar.
A minha tenção é firme.
Então, Clara !
Escolhe.o sejas má contigo e com ele.
com ele ! repetiu Margarida, sorrindo amargamente.
com ele, sim, que te ama.
Para que afirmas o que sabes que é mentira ?
o é. Há pouco vi-os, como te disse ; vi-os, a Pedro e Daniel ;
encontrei-os por acaso. Ai, Guida, que momento aquele ! Se soubesses
como tremia ! Eu a ver Pedro constrangido diante de mim ! sem poder
dizer-me uma palavra; ai, como me custou fingir!o sei o que me
ão deixou lançar-me aoss dele e pedir-lhe perdão. Depois o Pedro
retirou-se para o lado. Daniel então falou-me de ti, disse que viera
conversando com o irmão a teu respeito. Pedro teimava com ele para
que casasse contigo ; e Daniel respondia-lhe comovido, que seria para
seu coração grande ventura, mas que tu recusaras. Que ele via agora
razão por que,o de repente, te amara assim.
Deve ser uma razão, bem conhecida dele, que tantas vezes
a tem sentido com outras observou Margarida, com a mesma expres-
o de amargura.
o digas isso,. Daniel recordava-se de tu teres sido a
sua companheira em criança ; lembrava-se que fora quem te ensinara
a 1er, quando te ia procurar ao monte, onde, sozinha, passavas os teus
dias a guardar os rebanhos de nossa casa.
Margarida suspirou, a ver assim avivadas as imagens daquele
tempo.
De tudo se lembrava Daniel, e tudo me repetia, o que cantavas,
o que lhe dizias, os vossos projectos, e até os vossos arrufos. E afligia-se
o pobre rapaz tanto, que se o visses, Guida, se o visses... Depois,
quando se recordava da maneira por que respondeste ao seu pedido,
e de como havia pouco, dizia ele, o tinhas outra vez rejeitado ; quando
pensava em que oo amavas, ficavao triste que metia pena.
E eu então disse-lhe...
O quê, meu Deus?
Disse-lhe... que o amavas.
Ó Clara ! que foste fazer ? exclamou Margarida, juntando
as mãos.
O que devia. De que servem esses fingimentos ? Poiso o
amas tu deveras?
Ai, Clara, Clara;o te perdôo isso, não.
Nem eu quero que mo perdoes ; hás-de agradecer-mo. Se
visses como ele ficou, quando eu lhe contei tudo. O teu choro de ontem
de manhã, como eu te fui achar, o que te disse, o que me respondeste,
tudo enfim. Parecia-me um louco, o rapaz; abraçava-me, na... Depois
eu propus-lhe que viessem, ele e o irmão...
Que viessem?...
Que viessem comigo.
Aonde ?
Aqui.
Aqui? e então...
E então vieram. Estão naquela sala esperando.
Ó Clara!
Poiso fiz bem? Agora vais dizer que sim, quando ele de
novo te propuser...
Não, nunca o direi.
como quiseres. Mas lembra-te do que eu te jurei.
Clara !... Clara !... minha irmã !... minha amiga !... repara ao
que me queres obrigar. Pois força-se alguém a uma coisa assim ! Diz :
queres que eu me abaixe a...
Neste ponto foram interrompidas por José das Dornas e pelo
reitor, que, depois de muito conferenciarem, se aproximaram delas.
Vocês perdoem, se lhes interrompo a conversa, raparigas;
mas é que tenho que falar a Margarida disse José das Dornas, afa-
gando com as mãos a copa do chapéu, e dando mostras de embaraçado.
As duas irmãs olharam atentas para o velho lavrador, que pros-
seguiu :
Margarida, o meu filho Daniel é um estouvado.
Margarida desviou os olhos, perturbada.
José das Dornas, vendo isto, julgou que teria principiado mal,
e dirigiu ao reitor uma interrogação muda. O padre fez-lhe sinal que
continuasse, e ele continuou:
Desde criança o conheci assim. A quem saiu é que euo posso
saber. Lá que com os seus estouvamentos e as suas estroinices desse
cabo da saúde e da legítima materna, era uma pena, mas enfim...
acrescentou, encolhendo os ombros entre Deus e ele se decidisse
esse negócio. Mas agora, que venha perder e inquietar os outros com
as suas asneiras, isso é que é muito feio ; e euo estou resolvido a
sofrer-lho. Muito menos então, quando essa outra pessoa é a pérola cá
da nossa terra... Todos o dizem. Escusa a menina de fazer esse sinal
com a cabeça ; queo se precisa cá do seu consentimento para nada.
E, ao dizer isto, José das Dornas olhava, sorrindo, para o reitor,
em cujo semblante havia também um sorriso de satisfação.
O lavrador prosseguiu:
Ora muito bem. Mas o rapaz é queo entendeu assim, e
pelos modos...
Bem, bem ; adiante. O que aconteceu todoss sabemos,
vamos adiante atalhou o reitor, que vira formar-se na fronte de
Clara uma ruga, que ele julgou prudente alisar a tempo.
É verdade ; pois agora de duas uma, ou ele, para remediar
o mal que fez, lhe vem aqui pedir para a menina o aceitar por marido,
e, se a menina lhe quiser fazer esse favor, tudo se remedeia, e eu recebo
por filhas, logo de uma assentada, as duas melhores moças da terra,
ou então... ou então, ao poder que eu possa, parte-me já o rapaz para
o Brasil, ou para fora daqui pelo menos ; porque jáo estou para ver,
por causa dele, alguma desgraça cá na terra.
Clara inclinou-se ao ouvido da irmã para lhe dizer:
E lembra-te de que o culpado, que tens de sentenciar,o
está longe daqui.
Ora é preciso que se saiba acrescentou o lavrador que
istoo é só lembrança minha; não, senhores, Deus me livre de lhe
querer dar à força um noivo, que ao estimasse, como merece ;
mas, pelos modos, o rapaz tem sua inclinação para a menina, porque
enfim... e aproveitou esta reticência para um sorriso benevolente
foi jeito que tomou em pequeno. Amores antigos... Lembra-se,
sr. reitor, que por causa desta é que o rapazo nos canta hoje missa ?
porque dizia ele, já então, que havia de casar com a menina.
É verdade, é verdade respondeu o reitor em tom igual-
mente jovial ; tinha coisas o rapaz !
E os dois velhos desataram a rir, com todas as veras do coração.
Pois enfim disse em seguida o lavrador às vezeso
coisas talhadas por Deus. Deixe. O casamento e a mortalha... lá diz
o rifão. Eu cá tenho o meu palpite, que, se a menina aceitar, o rapaz
toma emenda, o que para ele era uma felicidade, porque, a Margari-
dinha bem o sabe, isto de cirurgiões e médicos quer-se gente séria,
ouo fazem nada. Por isso, resta saber se a menina aceita, porque
se não, adeus ! faço uma figa ao amor de pai, eo descanso semr
o rapaz fora daqui. Pense nisto a menina, e quando Daniel voltar...
Nada de pensar mais tempo exclamou Clara,o podendo
já reprimir a alegria que lhe tinham causado as palavras do lavrador.
As coisas querem-se decididas depressa ; também é mau pensar
de mais. Vêm-nos de Deus às vezes certas lembranças, que se perdem,
se pensamos muito... Eu vou buscar o noivo.
E aproximando os lábios do ouvido de Margarida, a qual se con-
servava ainda calada e com os olhos fitos no chão, disse-lhe :
Vê lá agora o que vais fazer ; olha que tu a dizeres que não,
e eu a contar tudo como foi. Ouviste?
E, sem esperar resposta, correu à porta, e fez sinal para dentro
da sala imediata.
Daí a pouco tempo entraram Pedro e Daniel.
Ah! estavam aí?! Pois melhor!...—disse José das Dornas,
ao vê-los.
O reitor sorria de esperanças.
Daniel aproximou-se de Margarida, que tremia sobressaltada.
Margarida disse Daniel, com timidez venho renovar
um pedido, que ontem lhe fiz aqui mesmo, e que já hoje lhe repeti ;
peço-lhe...
Ai, pois ele já...? disse José das Dornas para o reitor.
, já ; mas cala-te, homem respondeu este, ansioso por
ouvir a resposta da sua pupila.
Durante esta interlocução dos dois, havia Daniel acabado de
formular o seu pedido.
Margarida ficou por algum tempo silenciosa. Ergueu lentamente
os olhos para Clara, viu-a pálida, e notou-lhe no rosto um ar de firmeza,
que a assustou. Conheceu que era inabalável a resolução que ela for-
mara. Margarida dirigiu-lhe ainda um gesto de súplica ; Clara respon-
deu-lhe com um movimento de recusa, amboso rápidos eo subtis,
que só por ambas podiam ser percebidos.
Então... minha filha? disse, quase a medo, o reitor, já pouco
tranquilo com a hesitação de Margarida.
Enfim, com voz trémula e mal percebida, ela respondeu:
Que direito tenho eu de recusar uma proposta... tão... gene-
rosa? Aceito.
Na maneira de dizer aquele generosa ia toda a censura.
Ainda bem ! exclamaram os presentes, menos Daniel, porque
este apoderara-se dao de Margarida, e, apertando-a na sua, bei-
jou-a com paixão.
Margarida estremeceu e...o lá agora acreditar na firmeza
do coração humano, quando jura cerrar-se às branduras do sentimento
e às explosões da paixão ! e, por um desses movimentos irresistí-
veis, por uma dessas resoluções, com que se dá no amor o passo tre-
mendo e decisivo das confidencias, correspondeu a Daniel, apertan-
do-lhe também a mão.
Neste momento passou na rua uma rapariga, cantando:
De pequenina nos montes
Nunca tive outro brincar,
Nas canseiras do trabalho
Meus dias via passar.
Daniel olhou para Margarida, que desta vezo desviou também
o olhar.
E agora como que o passado inteiro, aquele passado de ambos,
lhe apareceu com o prestígio da saudade, e dourou-se-lhe o futuro
com o fulgor das esperanças.
Estes pensamentos trouxeram-lhe o sorriso aos lábios, e a con-
fiança ao coração.
Margarida, alvoroçada com as novas sensações recebidas, vol-
tou-se para a irmã, que sorria, porque lhe estava a 1er na alma.
Margarida corou, e, retirando a sua dao de Daniel, foi escon-
der a fronte entre os braços de Clara.
- Então ? disse-lhe esta ao ouvido devo pedir perdão, ou
alvíssaras, minha teimosa? Ora diz-me se o que sentes agora no cora-
ção te causa qrande dor, e se te obriga a querer-me muito mal por
o que fiz?
Margarida respondeu-lhe, apertando-a ao seio.
Era feliz naquele momento.
Nisto ouviu-se uma voz, que bradava da rua:
Ó reitor ! ó abade ! Ouves ? Ó padre Antônio ! Ó homem !
O reitor chegou à janela, a verificar quem era ; conquanto tivesse
, pelo estilo, quase conhecido o homem.
Ah! és tu, João Semana? Sobe.
Nada, nada; desce tu, que tenho que te falar.
E João Semana dizia isto com a voz sobressaltada e o gesto assom-
brado de inquietação.
E eu digo-te que subas.
o subo tal ; o que tenho a contar-teo se pode con-
tar.
Ah! já vejo que ouviste também a história do dia!—disse o
reitor, que suspeitou do que se tratava.
Ouvi, ouvi, e o que me parece é que tu ao sabes tôda,
abade ; se a soubesses,o estavas aí com tantas pachorras.
Achas? Pois euo me sinto hoje de maré para me afadigar.
Sobe, João Semana, sobe.
E se eu te disser, que enquanto tu aí estás, muito descansado,
talvez esteja a correr sangue...
Então deixaste alguma sangria mal vedada, João Semana ?
Ah! ah!...
E o reitor achava deliciosa a mortificação em que via o seu velho
amigo.
uma figa para a graça ! disse o cirurgião contrariado.
Estás hoje muito contente da vida !
Que queres ! Deu-me para aqui.
Talvezo leves assim o dia todo. Queres saber o que,
ouo queres?
Quero, mas sobe.
Pois, com os diabos, eu subo, e se a notícia estourar aí dentro
como uma bomba, a culpa é tua.
E, dizendo isto, enfiou pelo portal dentro.
Enquanto ele sobe as escadas, direi ao leitor o motivo do desas-
sossego, em que nos aparece o velho clínico.
João Semana só aquela manhã soubera do acontecido no quintal
das duas irmãs, na noite da antevéspera.
No dia antecedente andara o cirurgião por longes, aonde a fama
aindao tinha levado a notícia do escândalo. De volta a casa, Joana,
mortificando o desejo que sentia de falar, foi de uma discrição admi-
rável a esse respeito. Duas causas a moveram a isto : primeira, oo
saber ainda como poderia contar o facto, sem grande prejuízo do seu
afeiçoado Daniel; depois, parecendo-lhe quase impossível que João
Semanao soubesse já alguma coisa, deu-lhe para tomar à má parte
o silêncio que o via guardar, e resolveu, despeitada,o ser mais
expansiva do que ele.
O resultado foi sair João Semana, no dia seguinte, ainaa em com-
pleta ignorância do ocorrido. Ficou portanto surpreendido ao rece-
ber à queima-roupa, em casa de um cliente, a notícia, e sob uma das
feições mais pavorosas, que ela havia revestido.
Falaram-lhe em projectos sanguinários da parte de Pedro, na
fuga de Daniel, no desespero de Clara, sobre cuja culpabilidade havia
ainda grandes dúvidas na mente do narrador.
João Semana acreditou tudo aquilo, e correu a casa de José das
Dornas. Perguntou pelo lavrador, tinha saído; perguntou por Daniel,
e depois por Pedro, obteve a mesma resposta.
Pareceu-lhe também ver nos criados um ar de susto e de pertur-
bação, que acabou de lhe fazer perder a frieza de ânimo. Corria, em
vista disso, a casa do reitor ; também oo encontrou. Calculou que
estaria em casa das pupilas, e dirigiu-se para.
Imagine-se pois se oo irritaria a presença de espírito, o ar
de gracejo, com que lhe respondeu o reitor ! Subiu as escadas, dis-
posto ar de parte todas as cautelas, e a dar a novidade sem lhe
importar com as consequências.
Ao entrar na sala ficou imóvel de admiração com o que viu.
José das Dornas, sentado, limpava uma lágrima de satisfação;
a uma janela, Pedro e Clara entretinham-se, conversando amigavel-
mente ; a outra, Margarida, escutava Daniel, que lhe estava falando de
passado e do futuro, da maneira desordenada por que se fala em oca-
siões assim.
O velho cirurgião olhava boquiaberto para uns e para outros,
sem saber o que pensar daquilo tudo : afinal olhou para o reitor, que
lhe pregou uma risada.
Isto que quer dizer ? perguntou João Semana, conseguindo
enfim fazer uso da língua.
Quer dizer que estás convidado, desde, para duas bodas
respondeu o reitor, designando com os olhos os dois grupos, tais como
os últimos acontecimentos os tinham formado.
Então, que diabo me tinham dito?...
Ora ! e tu dessa idade ainda a engolir todas as pílulas que te
impingem ! É bem feito, que também às vezes as receitas de calibre
de granada... Então contaram-te coisas horrorosas? Eu logo vi. Estava
a ler-tas na cara; pois agora conta tu o resto da história a essa gente,
e que façam o favor de se calarem por uma vez com isso.
Melhor foi assim disse João Semana, um pouco envergo-
nhado da sua çredulidade ; já vejo queo faço nada aqui ; adeus !
E ia a retirar-se.
Espera, onde vais tu com tantas pressas ? Entãoo se te alegra
o coração com estes espectáculos?
Alegra, alegra... mas os meus oitenta anos é queo de mais
para a alegria dos noivos. Eu, tu e José das Dornas devíamo-nos retirar,
porque eles estão agora persuadidos que nunca envelhecem nem mor-
rem, es estamos aqui a bradar-lhes com os nossos cabelos brancos :
Memento... etcetera, etcetera. Diz tu o resto do latim se quiseres.
—Isso era bom se eles se lembrassem de nós, mas parece-me que
nem deram por ti ainda. Demora-te, pois, João, demora, que me hás-de
acompanhar, e mais ão José das Dornas, em uma saúde aos noivos.
Pois vá lá respondeu João Semana ainda que saúdes
aos noivos, feitas por velhos... Sabes o que dizia o prior de S. Domingos ?
Nao podemos saber o que era, porque João Semana disse-o só
ao ouvido do reitor,, o qualo pôde suster o riso, ainda que, com um
gesto de má vontade, observou ao jovial clínico :
Valha-te Deus, homem... quando te deixarás dessas histórias?
E o reitor, usando da familiaridade que tinha em casa, foi ele
próprio buscar a garrafa e os copos, para a saúde combinada.
Neste ponto, ouviram-se passos apressados na escada, e à porta
da sala assomou a figura ofegante da Sr.ª Joana, a quemo sofreu o
ânimo queo viesse procurar Margarida.
Encontrando tanta gente na sala, e o seu amo incluído no número,
a boa mulher parou embasbacada.
Aí vinha outra às vozes, como tu disse o reitor a João Semana.
Você que faz por aqui, mulher ? perguntou este à criada.
Eu?
E Joanao sabia o que dissesse.
Esturro tenho eu hoje no arroz disse João Semana, rindo.
o há-de ter, se Deus quiser.
Clara correu a Joana, e abraçando-a com alegria, disse-lhe :
Fez bem em vir. A Margarida vai ser feliz: olhe.
Joana olhou e compreendeu tudo.
Ora, sim, senhor, teve juizo, uma vez, aquela cabeça disse
ela, referindo-se a Daniel, de quem se aproximou ; e depois, em tom
de familiaridade, perguntou-lhe : Então a tal senhora, que havia de
mandar vir da cidade, de vestido a arrastar, eo sei que mais? Olhe
que estao tem os cem mil cruzados que queria.
Maso vale mais que todas as outras, Joana?
Ora, boa pergunta ! A falar a verdadeo a merecia muito, não.
E afastando-se um pouco de Daniel e Margarida, pôs-se Joana
a olhar para eles ambos, com ar de contentamento, dizendo depois
em voz alta:
o que parece que foram mesmo talhadinhos um para o outro.
Os três velhos e Pedro, Clara e Daniel riram da observação de
Joana ; Margarida sorriu também, mas corando.
E a saúde projectada entre o reitor, João Semana e José das Dornas,
fez-se, conforme o estilo, tomando também parte nela Joana, cujo toast
o foi o menos eloquente.
Nunca fiz um casamento com tanta vontade ! disse o padre,
esfregando as mãos.
E fica tudo numa família observou José das Dornas, todo
satisfeito.
Isso é que é o diabo, se as duas meo agora as avenças de
uma só ! resmungou João Semana, de maneira que todos o ouvissem,
fingindo-se apreensivo com isto.
José das Dornas, conquanto bem conhecesse que era aquilo um
gracejo do cirurgião, assegurou-o que as avenças redobrariam.
Pedro, achando-se perto de Daniel, abraçou-o com expansão
de alegria.
Ou a noite de antes de ontem, ou o dia de hoje, irmão dizia
ele, quase lagrimejando.
Agora sim ! —exclamava o reitor, vendo aqueles contentamentos.
Agora, quando Deus me chamar a si, posso dar contas limpas aos pais
destas raparigas. Estou certo que deixo felizes as minhas duas pupilas.
O leitor concordará por certo em que devemos fechar por aqui
a narração.
As suaves alegrias das nupcias imaginem-nas, pelo que sentiram,
os felizes, que na vida as gozaram; os outros fantaáiem-nas, pelo que
tantas vezes sonham, ao pensarem no futuro.
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