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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA, LITERATURAS ESPANHOLA
E HISPANO-AMERICANA
PAULA RENATA DE ARAÚJO
CERVANTES E A NOVA ARTE DE NOVELAR
EM "RINCONETE Y CORTADILLO"
São Paulo
2010
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA, LITERATURAS ESPANHOLA
E HISPANO-AMERICANA
CERVANTES E A NOVA ARTE DE NOVELAR EM
"RINCONETE Y CORTADILLO"
Paula Renata de Araújo
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Língua Espanhola,
Literaturas Espanhola e Hispano-
americana, do Departamento de Letras
Modernas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Augusta da Costa Vieira
São Paulo
2010
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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste
trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins
de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
__________________________________________________________________
Araújo, Paula Renata de
Cervantes e a nova arte de novelar em “Rinconete y Cortadillo” / Paula
Renata de Araújo; orientadora Maria Augusta da Costa Vieira. -- São Paulo,
2010.
165 f.
Dissertação (Mestrado Programa de Pós-Graduação em Língua
Espanhola, Literaturas Espanhola e Hispano-americana) Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
1. Cervantes Saavedra, Miguel de, 1547-1616. 2. Literatura espanhola
Crítica e interpretação. 3. Literatura picaresca. 4. Teatro (literatura). I. Título.
II. Vieira, Maria Augusta da Costa
ARAÚJO, Paula Renata de. Cervantes e a nova arte de novelar em
"Rinconete y Cortadillo", 2010. Dissertação (mestrado). Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo.
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
em Língua Espanhola,
Literaturas Espanhola e
Hispano-americana, do
Departamento de Letras
Modernas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de
São Paulo, para obtenção do
título de Mestre em Letras.
Aprovada em: ______________________________________________________
Banca Examinadora
Prof.Dr. _______________________________________________________________
Instituição:___________________________________Assinatura:________________
Prof.Dr. _______________________________________________________________
Instituição:___________________________________Assinatura:________________
Prof.Dr. _______________________________________________________________
Instituição:___________________________________Assinatura:________________
Dedico este trabalho
à Maria Olga de Melo Binas,
minha avó que, de modo muito especial,
representa as mulheres incríveis
que me inspiraram nessa trajetória.
Agradecimentos
À professora Maria Augusta da Costa Vieira, por aceitar-me como sua
orientanda, pelo trabalho de orientação desta dissertação, mas, sobretudo, agradeço
pelos anos de convivência que me proporcionaram grande aprendizado e maturidade
acadêmica.
Aos professores María de la Concepción Piñero Valverde e Claúdio Bazzoni,
pelos valiosos comentários e sugestões no exame de Qualificação e também pela
atenção e disponibilidade em diversas ocasiões.
Ao professor Mario Miguel González, pelas orientações sobre a literatura
picaresca, pelos empréstimos de livros e pelo incentivo ao longo do Mestrado.
Ao professor Jorge García López, pela bibliografia sugerida na ocasião em que
escrevia meu projeto de Mestrado. Pelos livros e artigos enviados da Espanha, pelas
produtivas conversas nos corredores do congresso em Santiago, pelo incentivo e pela
confiança.
Aos professores Adma Fadul Muhana e João Adolfo Hansen, pela
disponibilidade em orientar-me sobre algumas questões deste trabalho, apontando
novos caminhos para a análise da novela.
Aos professores Ruth Fine, a Schwartz e José María Pozuelo Yvancos, pela
acolhida e atenção no “Curso de Jóvenes Hispanistas” em Madri e pelas
esclarecedoras conversas sobre "Rinconete y Cortadillo", a sátira e a picaresca.
Aos integrantes do Grupo de Estudos “Seminários Cervantes”, pela
enriquecedora convivência, especialmente à Ana Cruz, Cristina La Greca, Denise
Chammas, Rosângela Schardong e Silvia Massimini.
À COSEAS-USP, pela bolsa-moradia concedida nos anos da graduação e
início do Mestrado. A moradia do CRUSP me proporcionou a oportunidade de poder
me dedicar aos estudos de maneira integral, facilitando o meu acesso à universidade.
À Luiza Martins, pela amizade incondicional, pela presença cotidiana
indispensável. Por dividir comigo seu talento acadêmico, pela sinceridade de suas
palavras, pela leitura do trabalho, pelos abraços, pelas broncas, por ser inúmeras
vezes mais irmã que amiga. Não posso imaginar como teria sido sem ela. Por ser, por
esses e outros tantos motivos, uma inspiração para mim.
À Rose, pela sólida amizade que me acompanhou desde o início de nossa
convivência. Por dividir comigo, de maneira generosa, suas experiências, seus livros
sobre Cervantes e sua trajetória inspiradora. Pelas longas conversas telefônicas, pelo
otimismo inabalável, pela confiança e pelo jeito carinhoso de me fazer entender as
coisas. Por ainda estar aqui e continuar me inspirando, sempre.
Ao Ivan Gotardelo, meu irmão do coração, pessoa iluminada, fundamental na
minha trajetória acadêmica e na minha vida. Por me ensinar o valor da amizade nos
anos de convivência na graduação e no CRUSP. Por me incentivar sempre, por me
fazer rir, por cuidar de mim.
À Silvana Moreli Vicente Dias, pela revisão cuidadosa da dissertação, pela
leitura atenta e pelas valiosas opiniões na etapa de finalização, mas, sobretudo, pelos
incontáveis gestos de amizade e por seu carinho e generosidade. À Isabel pela doçura
inspiradora do seu sorriso.
À Cibelle Correia, pela valiosa amizade nascida nos anos de CRUSP e na
graduação. Pela presença generosa em diversos momentos, pela motivação, pelas
correções na redação final do trabalho e por ser uma inspiração para mim.
À Rosana Alves Dias, por ser a amiga de todas as horas, pela doçura de suas
palavras, pelo entusiasmo e apoio constantes.
À Nuria Carbó, pelos inúmeros gestos de amizade, pelo carinho e
preocupação. Pela convivência diária e motivação.
A minha amiga cervantista Giselle Migliari, pelo companheirismo e pela leitura
atenta de parte do trabalho.
À Regina de Souza, pela motivação e entusiasmo. Pelas carinhosas palavras
de incentivo, pela delicadeza de seus conselhos.
À Rosângela Dantas, pela amizade constante, pelos empréstimos de livros,
pelas conversas agradáveis na volta do colégio, pelos conselhos preciosos.
À Silvia Mera Ponce, à Macarena Cortes e à Ana Beatriz Ottoni, pela
convivência agradável, pelo carinho e pela torcida durante todo o processo.
À Andresa Guimarães, pela amizade e incentivo nos primeiros anos do
Mestrado. Por compartilhar tantos momentos importantes em minha trajetória.
À Arlete Oliveira e à Greice de Nóbrega e Sousa, pelos anos gostosos da
graduação, pelo apoio e pela amizade que não enfraquecem com a distância.
Ao Alfredo Cesar Melo, por estar presente de modo especial em minha
trajetória, por me ouvir, por me emprestar seu computador, por me acompanhar em
Madri, por ser uma referência acadêmica para mim, por, apesar da distância, ainda
estar presente de algum modo.
Ao Leandro de Assis e ao Amilkar Moura por, em diferentes momentos, terem
contribuído de algum modo para realização deste trabalho, seja pela amizade
carinhosa, seja pela leitura ou revisão de alguma parte do mesmo.
Ao Fábio Gondo, pelo companheirismo, pela leitura do meu projeto de
mestrado, pelas caronas para a USP, por estar em momentos decisivos.
Ao Martín Aguirre, que iluminou de maneira peculiar parte do processo de
construção deste trabalho.
À Maria Aparecida Nicoletti e à Débora Cristina Simetta, por me
acompanharem de maneira especial durante a realização do trabalho, pela
disponibilidade e pelo carinho.
Ao Márcio, ao Wagner e ao Carlos, pelos momentos agradáveis de conversa e
café na Padaria Nóbrega, por cuidarem de mim de algum modo.
Ao Dimas, ao Bira e ao Rodrigo, pelas mais diversas manifestações de apoio
durante minha trajetória acadêmica, pela amizade que o tempo não apaga.
À Dayane Pal, pelos delicados gestos de amizade, pela companhia e apoio em
momentos decisivos. Por ter me acolhido diversas vezes em sua casa, por cuidar da
Lóri, por me inspirar academicamente.
Ao Gabriel Medeiros, pelo carinho e apoio nos momentos finais desse
Mestrado. Pelo envolvimento e paciência. Pelos momentos de música ou cinema.
Ao Colégio Bandeirantes, por me conceder uma bolsa de estudos na
Universidade de Alcalá de Henares na Espanha no início do Mestrado, por facilitar o
meu acesso a congressos e por reconhecer o meu trabalho.
A minha tia Arlete O. Passos, por apoiar de maneira especial os meus estudos
desde muito cedo. Por ser amiga e generosa, por acreditar sempre em mim.
A minha avó Olga, as minhas tias e tios pelo afeto, pelos valores transmitidos
desde a infância, por, apesar da distância, estarem presentes de algum modo. Aos
meus primos queridos, por sempre torcerem por mim, especialmente à Walkiria Binas
Rêgo, pelo apoio e companheirismo.
Agradeço especialmente a minha família, pelo carinho e apoio incondicionais.
Aos meus irmãos Bruno e Maurício, pelas variadas formas de ajuda e carinho, e as
minhas cunhadas Danusa e Alessandra pela força. À Alê e ao Maurício agradeço
também a disponibilidade em revisar uma parte deste trabalho. Ao Martín pela alegria
e ternura dos últimos dois anos. Ao meu irmão caçula Gabriel, agradeço o
companheirismo e a presença constante durante todo o processo do Mestrado, por me
ajudar com a bibliografia, por simplesmente me esperar terminar a dissertação para
gente poder passear. Agradeço de modo especial a minha mãe, por ter me ensinado a
ser forte, a ter ética e dignidade, por me dar colo, por acreditar incondicionalmente na
minha vitória.
ARAÚJO, Paula Renata de. Cervantes e a nova arte de novelar em
"Rinconete y Cortadillo", 2010. Dissertação (mestrado). Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo.
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo contextualizar a novela exemplar
"Rinconete y Cortadillo" no conjunto da obra de Miguel de Cervantes, bem
como analisá-la estabelecendo o diálogo com alguns gêneros literários de sua
época, como a picaresca e o teatro. Será examinada a trajetória do texto desde
sua menção no Dom Quixote de 1605 até a sua publicação entre as Novelas
Exemplares em 1613. Serão estudados os diversos discursos presentes na
composição da obra, considerada a grande aproximação de Cervantes à
literatura picaresca. Ao incorporar elementos do gênero dramático à narrativa,
o autor realiza, com comicidade, uma interessante aproximação aos temas
cotidianos, assim como a comédia o fazia. Será possível observar como
"Rinconete y Cortadillo" expõe, de maneira cômica e satírica, algumas máculas
e vícios da sociedade sevilhana dos séculos XVI e XVII.
Palavras-Chave: Novelas Exemplares, literatura picaresca, teatralidade,
comicidade, literatura espanhola do século de ouro, Miguel de Cervantes.
ARAÚJO, Paula Renata de. Cervantes and the new art of writing novels in
"Rinconete y Cortadillo", 2010. Dissertação (mestrado). Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo.
Abstract
The objective of this work is to contextualize ‘Rinconete y Cortadillo’ exemplary
novel within the works of Miguel de Cervantes and analyze it by establishing a
dialogue with some of the literary genres of its time, namely the picaresque
novel and drama. This current dissertation examines how the text evolves since
it was first mentioned in Don Quixote (1605) until its publication among the
Exemplary Novels in 1613. I will analyze the several forms of speech pervading
the novel in light of Cervantes propinquity to the picaresque literature .By
incorporating into the narrative drama-related elements, the author brings his
work to deal more closely with everyday topics, as comedy has been used to.
Thereby one can notice how ‘Rinconete y Cortadillo’ displays, both comically
and satirically, certain vices and blemishes present in the 16th- and 17th-
century Sevillan society.
Key words: Exemplary Novels, picaresque literature, theatrical aspects, comic
aspects, Spanish literature from the Golden Age, Miguel de Cervantes.
ARAÚJO, Paula Renata de. Cervantes y el nuevo arte de novelar en
"Rinconete y Cortadillo", 2010. Dissertação (mestrado). Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo.
Resumen
Este trabajo tiene por objetivo contextualizar la novela ejemplar "Rinconete y
Cortadillo" en el conjunto de la obra de Miguel de Cervantes, así como
analizarla estableciendo el diálogo con algunos géneros literarios de su época,
la picaresca y el teatro. Seinvestigada la trayectoria del texto desde su cita
en el Quijote de 1605 hasta su publicación entre las Novelas Ejemplares en
1613. Serán estudiados los diversos discursos presentes en la composición de
la obra, considerada la gran aproximación de Cervantes a la literatura
picaresca. Al incorporar elementos del género dramático a la narrativa, el autor
realiza, con comicidad, un interesante acercamiento a los temas cotidianos,
como lo hacía la comedia. Asimismo, será posible observar cómo "Rinconete y
Cortadillo" exhibe, de modo cómico y satírico, algunas máculas y vicios de la
sociedad sevillana de los siglos XVI y XVII.
Palabras-Clave: Novelas Ejemplares, literatura picaresca, teatralidad,
comicidad, literatura española del Siglo de Oro, Miguel de Cervantes.
(Cena em que há um baile no Pátio de Monipodio.)
Manuel Rodríguez de Guzmán (1818-1867)
Rinconete y Cortadillo (1858)
[…] porque imagino que no sin misterio nos ha juntado aquí la
suerte, y pienso que habemos de ser, de éste hasta el último día de
nuestra vida, verdaderos amigos.
"Rinconete y Cortadillo"
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................. 15
1. "Rinconete y Cortadillo": uma novela exemplar
1.1 Cervantes y el arte nuevo de hacer novelas:
Panorama do nascimento de um gênero......................................... 18
1.2 Da história de "Rinconete y Cortadillo".................................. 31
1.2.1 En un lugar de la Mancha”… "Rinconete y Cortadillo" dentro
de Dom Quixote.......................................................................... 31
1.2.2 O manuscrito da novela..................................................... 34
1.3 Novelas Exemplares, a coleção ............................................. 37
1.4 "Rinconete y Cortadillo", novela exemplar............................. 45
2. Pedro del Rincón e Diego Cortado: personagens picarescos
2.1 A literatura picaresca................................................................. 49
2.2 De como pícaros já haviam aparecido no Dom Quixote
2.2.1 Rinconete, Cortadillo e Ginés de Pasamonte................. 57
2.2.2 De pícaros e cavaleiros.................................................. 64
2.3 "Rinconete y Cortadillo": novela de pícaros................................ 69
3. Narração teatral de um entremez
3.1 Espelho da vida humana: o teatro............................................ 89
3.1.1 O teatro breve............................................................... 91
3.2 Cervantes y el arte nuevo de hacer comedias............................ 92
3.3 A confraria e os ladrões ............................................................ 99
4. Castigat ridendo moris. Comicidade e tonalidade satírica em
"Rinconete y Cortadillo"………………………………….…………. 109
4.1 Da famosa cidade de Sevilla...................................................... 113
4.2. “Cada uno en su oficio puede alabar a Dios” .......................... 123
4.3 Da honestidade do orador: Monipodio conduz os seus fiéis..... 131
Considerações finais..................................................................... 149
Referências bibliográficas.................................................... 153
Introdução
I. De manuscrito esquecido a novela exemplar
m manuscrito esquecido em uma maleta na estalagem de Juan
Palomeque: assim se tem notícia pela primeira vez do texto de
"Rinconete y Cortadillo" no capítulo XLVII do Quixote de 1605,
quando o cavaleiro e seu escudeiro acabam se encontrando com outros
viajantes e passam por aventuras nada dignas em meio a lsamos e mal-
entendidos. É nesse contexto em que aparecem comentários sobre a história
dos jovens errantes Pedro del Rincón e Diego Cortado.
O texto não chega a ser lido pelos spedes da estalagem, como
acontece com a novela do “Curioso impertinente”. No entanto, os personagens
e o narrador se referem a ele de forma elogiosa, de modo que, mesmo sem ter
sido lido, o texto desperta a curiosidade do leitor.
Algum tempo depois, mais precisamente após oito anos, "Rinconete y
Cortadillo" reaparece como uma das narrativas do conjunto das Novelas
Ejemplares. A história dos dois personagens pícaros trata de uma jornada pela
cidade de Sevilha dos séculos XVI e XVII, e propicia ao leitor o privilégio de
desfrutar ao mesmo tempo do universo errante, próprio da novela picaresca e
da força e comicidade do teatro de entremezes da época.
II. O primeiro a novelar
Uma das máximas mais conhecidas de Cervantes é a que ele insere no
prólogo das Novelas Ejemplares, quando se refere à genealogia da novela
como forma narrativa na literatura espanhola: Yo soy el primero que he
novelado en lengua castellana”. Tal afirmação demonstra as profundas
U
16
transformações que sofriam as formas narrativas dentro da literatura espanhola
do Século de Ouro. A publicação do Quixote em 1605 e das Novelas
Ejemplares em 1613 concede a Cervantes um papel fundamental na trajetória
do gênero narrativo em língua espanhola, colocando-o no centro de um
movimento de ampliação e enriquecimento das técnicas de composição.
Surpreende principalmente o fato de que, sendo o primeiro a explorar o gênero,
o autor evidencia um amplo domínio das técnicas de composição, como se
pretende demonstrar ao longo deste trabalho.
III. Cervantes e a arte de novelar em "Rinconete y Cortadillo"
O trabalho tem como objetivo contextualizar a novela exemplar
"Rinconete y Cortadillo" no conjunto da obra de Miguel de Cervantes, bem
como analisá-la estabelecendo o diálogo com alguns gêneros literários de sua
época, entre eles, a picaresca e o teatro. Este trabalho concentrou-se, portanto,
na arte cervantina de novelar e levou-nos a tratar de um dos temas mais atuais
da crítica que estuda as obras de Cervantes: a relação do autor com a sátira e
a mentalidade cômica de seu tempo.
No primeiro capítulo, será examinada a trajetória do texto, desde sua
menção no Dom Quixote de 1605 até a sua publicação nas Novelas
Exemplares em 1613, bem como se traçará um panorama geral do recém
explorado gênero “novela”.
No segundo capítulo, se iniciará o estudo dos diversos discursos
presentes na composição da obra, considerada a grande aproximação de
Cervantes à literatura picaresca. Nesse capítulo, será tratada a aproximação da
narrativa aos temas do relato picaresco, buscando observar o modo como
Cervantes dialoga com o gênero e a que ponto é possível considerar
Rinconete e Cortadillo como personagens picarescos. Também se examinará o
diálogo existente entre a novela analisada e o episódio dos galeotes na
primeira parte do Quixote. Por fim, se tratará, de maneira geral, da relação que
a obra de Cervantes estabelece com a picaresca.
17
No terceiro capítulo, será abordada a presença de personagens, temas e
marcas teatrais ao longo da novela, sobretudo a partir do episódio do Pátio de
Monipodio. Ao incorporar elementos do gênero dramático à narrativa, o autor
realiza, com comicidade, uma interessante aproximação aos temas cotidianos,
assim como a comédia o fazia.
No quarto capítulo, o estudo se conclui com a retomada, sob outra
perspectiva, de alguns temas do segundo e do terceiro capítulos. Ao revisitar a
picaresca para tratar da falsa e teatral religiosidade dos delinqüentes, será
possível observar como "Rinconete y Cortadillo" expõe, de maneira cômica e
satírica, algumas máculas e cios da sociedade sevilhana dos séculos XVI e
XVII. A crítica esboçada pelo texto por meio da comicidade das deformidades
presentes na confraria de ladrões permitirá que o trabalho aborde questões
como a presença de uma tonalidade satírica no texto. Sepossível observar
que o texto, por mais comicidade que apresente, preserva a urbanidade
característica da prosa cervantina.
Ainda são escassos os estudos das obras cervantinas no Brasil, em
particular sobre as Novelas Ejemplares e o teatro, e o presente trabalho
pretende, de algum modo, contribuir para a abertura desse caminho que
começa a ser explorado.
1. "Rinconete y Cortadillo": uma novela exemplar
1.1 Cervantes e el arte nuevo de hacer novelas
á é sabida a importância que a prosa cervantina tem para a
literatura espanhola do Século de Ouro, sobretudo pela
publicação de Dom Quixote, o qual, ao abrir caminho para o
romance, deixa sua marca indelével no curso da literatura espanhola e
universal. Numa época em que se está concebendo a novela moderna e em
que uma multiplicidade de gêneros narrativos os quais muitas vezes se
entrecruzam, surge em língua espanhola, pela primeira vez, um gênero
também novo, o da novela corta.
Trata-se de um período privilegiado, em que uma infinidade de
formas narrativas, tais como: novela pastoril, novela morisca, novela bizantina,
novela dialogada de tradição celestinesca, novela picaresca, relatos de
sucesos, fantasias e contos morais
1
, além de uma quantidade de prosa sem
classificação precisa por se tratar muitas vezes de formas híbridas,
caracterizadas pelo entrecruzamento entre os módulos narrativos.
2
Até 1613, ano da publicação das Novelas Ejemplares, a literatura
espanhola ainda não possuía uma autêntica novela corta. Na época, os relatos
breves da coleção cervantina eram chamados de novelas; hoje em dia, em
língua espanhola, o termo que melhor corresponde seria o de novela corta.
Para fins deste trabalho se utilizará a denominação “novela”, que em português
1
REY HAZAS, A. Introducción a la novela del siglo de oro. In: EDAD de Oro. v.l. Madrid:
Universidad Autónoma de Madrid, 1982. p.65.
2
V. Infantes observa o problema da nomenclatura na prosa renascentista: No es éste lugar ni ocasión
(século XVII- Espanha) de desentrañar definiciones y propuestas denominativas: prosa, prosa de ficción,
novela, narrativa idealista, etc., que cada cual lleva en sus haldas su cada cual; en poco o en nada van a
cambiar los textos, pero de llamar la atención sobre las desatendidas rotulaciones de las propias
obras: libro, tractado, historia, vida, etc”. (INFANTES, V. La prosa ficción renacentista. In:ACTAS
del X Congreso de Asociación Internacional de Hispanistas, 1989. Disponível em:
cvc.cervantes.es/obref/aih/pdf/10/aih_10_1_053.pdf. Acesso em: 20/12/2009.).
J
19
preservou o significado de narrativa breve, maior do que um conto e menor do
que um romance, caracterizando-se também por apresentar uma concentração
temática e um número restrito de personagens.
3
O prólogo da coleção de novelas publicada em 1613 tem especial valor
na tarefa de esboçar uma genealogia deste gênero dentro da literatura
espanhola:
A esto se aplicó mi ingenio, por aquí me lleva mi inclinación, y
más que me doy a entender (y es así) que yo soy el primero que he
novelado en lengua castellana; que las muchas novelas que en ella
andan impresas todas son traducidas de lenguas extranjeras, y éstas
son mías propias, no imitadas ni hurtadas: mi ingenio las engendró y las
parió mi pluma, y van creciendo en los brazos de la estampa.
4
Se Cervantes afirma que é o primeiro a novelar em língua espanhola é
porque outros “haviam novelado” em outras línguas. Aqui mais precisamente
se deve levar em conta a literatura italiana, sobretudo o Decamerão de
Bocaccio, obra que traz um conjunto de novelas dentro de um marco
5
. Da
mesma maneira, quando Cervantes menciona que suas novelas não são
imitadas de outras literaturas, então se entende que o que se achava escrito
nesse formato em língua espanhola eram traduções ou adaptações de outras
literaturas. Assim sendo, para um leitor de prosa espanhola, o formato “novela”
não era completamente novo, porquanto relatos traduzidos ou inspirados em
literaturas estrangeiras já circulavam no contexto ibérico.
A multiplicidade de gêneros narrativos que se desenvolvem na Espanha
dos séculos XVI e XVII dificulta, em certa medida, uma adequada descrição de
alguns traços da construção do gênero. Porém, ao mesmo tempo, conduz ao
entendimento amplo de sua essência, pois uma das características principais
3
Cf. MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1997.
4
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid: Editorial
Crítica, 2001. p.19.
5
A palavra “marco” aparece neste trabalho com o sentido de moldura, segundo a acepção em língua
espanhola. Tendo como paralelo em língua portuguesa a expressão “marco teórico” incorporada ao
português, na presente dissertação será usada a expressão “marco narrativo” para referir-se à moldura na
qual estão inseridas as narrativas.
20
da novela, como se verá ao longo deste estudo, é sua pluralidade, sua abertura
para o contato com os mais variados gêneros narrativos ou não, o que a torna
um gênero quase tão popular quanto as comédias de seu tempo.
6
Cervantes refere-se às narrativas traduzidas ou imitadas das quais se
distancia: mas a que narrativas se remete? Na mais recente edição das
Novelas Exemplares, García López diz: “el género de referencia de la colección
lo constituye la novela corta italiana, y en menor medida el cuento medieval”
7
.
A questão nem sempre se restringiu a isso, posto que também houve a
tendência de vincular as Novelas Exemplares à tradição medieval dos
exempla
8
.
Dentro da mencionada multiplicidade de motivos literários pré-existentes
e coexistentes, Cervantes optou por nomear a sua coleção como Novelas
Exemplares, o que a vincula, não sem alguma ironia, à tradição de textos da
literatura didática:
Heles dado nombre de ejemplares, y, si bien lo miras, no hay
ninguna de quien no se pueda sacar algún ejemplo provechoso; y si no
fuera por no alargar este sujeto, quizá te mostrara el sabroso y honesto
fruto que se podría sacar, así de todas juntas, como de cada una de por
.
9
É possível levantar algumas hipóteses imediatas, mas a polêmica da
exemplaridade das novelas cervantinas continua vigente e, inclusive, este
trabalho se ocupará dela mais adiante. Ao nomear suas novelas como
exemplares, Cervantes desvia o leitor de uma possível classificação de suas
6
Há, entre outros exemplos, a clássica referência que faz Avellaneda no Quixote apócrifo de que
Cervantes escrevia comédias em prosa: Conténtese con su Galatea y comedias en prosa, que eso son las
más de sus novelas: no nos canse. Também Lope de Vega, em sua novela “El desdichado por la honra”,
faz uma analogia entre comédia e novela: Demás que yo he pensado que tienen las novelas los mismos
preceptos que las comedias, cuyo fin es haber dado su autor contento y gusto al pueblo, aunque se
ahorque el arte”. Informações formecidas por Melchora Romanos no curso Cervantes e Lope de Vega:
Poética, Retórica e consolidação dos gêneros literários, em 2006.
7
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p. LXI.
8
Há, por exemplo, o extenso trabalho de Walter Pabst, que aborda esse vínculo. (PABST, W. La novela
corta en la teoría y en la creación literaria. Madrid: Gredos, 1972. p.20-30).
9
Idem, p.18.
21
narrativas nos moldes das de Bocaccio, que eram vistas na época como
imorais, pelo seu conteúdo lascivo. Muitos escritores naquele período viam na
obra de arte a possibilidade de aliar valores morais e entretenimento, e isso
poderia ser atribuído a vários fatores. Um deles é uma espécie de cuidado com
as prescrições do Concílio de Trento, e inclusive, no próprio prólogo, Cervantes
diz, referindo-se à honestidade de seus relatos, que não tem idade para
burlarse con la otra vida”:
Una cosa me atreveré a decirte: que si por algún modo
alcanzara que la lección de estas novelas pudiera inducir a quien las
leyera a algún mal deseo o pensamiento, antes me cortara la mano con
que las escribí que sacarlas en público. Mi edad no está ya para
burlarse con la otra vida, que al cincuenta y cinco de los años gano por
nueve más y por la mano.
10
Ao mesmo tempo é preciso ter em conta que as idéias aristotélicas
interferem de modo considerável na Espanha do século XVI, além das de
outros autores clássicos como Horácio e Cícero, e com freqüência observa-se
uma preocupação moral presente na literatura que, por sua vez, baseia-se em
princípios clássicos de composição. As narrativas exemplares coincidem com a
preocupação moral que se aliava ao modo de narrar. Tudo fazia parte de um
conjunto no qual ética e estética se complementavam. É conhecido o preceito
horaciano de “deleitar aprovechando”:
Ou causar instrução, ou dar deleite,
Ou unir cousas uteis a jocundas
O poeta pretende.
11
10
Idem, p.19.
11
HORÁCIO. A Arte Poética de Horácio. Traduzida e ilustrada em português por Candido Lusitano.
Lisboa: Officina Rolandiana, 1788. p.155. Nesse verso, Horacio parece querer apontar os diversos fins
que podem ter os poetas em suas obras, embora pareça sugerir que o ideal é que a poesia deleite e ensine
ao mesmo tempo.
22
Ao vincular-se por meio do título e da moraleja à tradição de textos
didáticos, Cervantes aponta de alguma maneira em direção às bases, ao
surgimento da prosa em língua espanhola e, mais especificamente, parece
dialogar com uma obra muito importante dentro dessa tradição: El libro de
ejemplos del Conde Lucanor (1335). O livro é composto de relatos breves
chamados de exemplos, que bem poderiam ser apontados como um dos
precursores da novela.
Não é possível, segundo Pabst, precisar quando surge a novela como
gênero, que, na verdade, esta possuiu uma teoria própria
12
. Dessa maneira,
com tal escassez de referenciais teóricos, o modo mais indicado de aproximar-
se do que seria uma poética da novela é observar como os autores da época
lidaram com a construção desse gênero. Em relação a isso, o prólogo das
Novelas Exemplares é, neste momento, de grande valor, porque coloca o leitor
em contato com a experiência do autor que diz ser o primeiro a escrever
autênticas novelas em língua espanhola.
Com relação à possível dívida da novela com o exempla medieval, a
crítica mais recente aponta como problemática essa aproximação na época de
Cervantes. Blasco afirma:
Tanto Krömer como Pabst, al hacer la historia de la novela corta en la
tradición occidental, son capaces de percibir la originalidad de la fórmula
cervantina y la independencia de sus novelas respecto a la fórmula
italiana de la novella. Pero, a la hora de explicar tal independencia
insisten -la verdad que con razones no siempre convincentes en la
deuda de la narrativa breve española, en tiempos de Cervantes,
respecto a la tradición medieval de los exempla. Con suficiencia, M.
Laspéras demuestra que el exemplum y la novela tal y como Cervantes
la practica, constituyen tanto semántica como sintácticamente, formas
12
Así, de las manifestaciones tempranas de carácter teórico podemos extraer indicaciones y referencias
a ciertas tradiciones, pero no teorías sobre los géneros literarios, ni mucho menos criterios estéticos
para enjuiciar obras determinadas. Y sin embargo, estas manifestaciones nos permiten conclusiones que
excluyen de antemano la idea de una evolución genérica como sería por ejemplo la de una novela corta
primitiva hasta una de carácter literario refinado. (PABST, W. La novela corta en la teoría y en la
creación literaria. Madrid: Gredos, 1972. p.28).
23
tan alejadas que toda confluencia entre ellas resulta de difícil
justificación.
.13
Seria de certa forma natural aventar a hipótese de que a novela em
língua espanhola surge da evolução da narrativa dos exempla, com alguma
influência da literatura oral e das traduções da novella italiana. Seria
interessante pensar na narrativa cervantina como a de um autor que retoma
seus antecedentes literários, ao nomear a sua coleção de novelas, vinculando-
as de alguma maneira à tradição que gerou o Libro de ejemplos del Conde
Lucanor, três séculos antes. Seria pensar numa literatura que evolui de forma
linear em direção à modernização do relato curto que parte da literatura
didática, dos cuentecillos con moraleja, em direção à formação de uma novela
corta moderna culminando com os relatos da coleção cervantina.
14
Seria
aceitável deduzir esse vínculo, porém, por outro lado, é possível visualizar, ao
mesmo tempo, a distância que entre essas duas formas narrativas,
sobretudo pela força com que a novella italiana conquista o público espanhol.
É possível encontrar, por exemplo, na literatura italiana, narrativas reunidas sob
o título, em espanhol Historias trágicas y ejemplares de Matteo Bandello
15
(tradução para o espanhol de Pedro Lasso, 1589). Não poderia Cervantes
haver se inspirado no título da coleção italiana ao nomear as suas Novelas
Exemplares?
Em se tratando de um terreno onde a riqueza literária reside exatamente
na multiplicidade das formas narrativas que se encontram na formação de
novas poéticas e gêneros literários, torna-se uma tarefa delicada apontar de
que modo a novela se constituiu como gênero independente. Preferiu-se, neste
caso, usar a palavra “construção”, buscando apreender os recursos, as
ferramentas das quais se utiliza Cervantes para a formação de sua arte de
13
BLASCO, J. Estudio preliminar. In: CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de
Jorge García López. Madrid: Editorial Crítica, 2001. p.XX.
14
Pabst defende a teoria de que a novela espanhola deriva da tradição dos exempla e também de uma
literatura oral: Esta novela corta no escrita, apenas si estadocumentada o descrita en exposiciones
teóricas. Sin duda alguna los ‘exempla’ pueden ofrecer una primera ojeada sobre el campo de la novela
corta como género literario.” (PABST, W. La novela corta en la teoría y en la creación literaria.
Madrid: Gredos, 1972).
15
Referindo-se aos 14 episódios de Novelliere de Matteo Bandello (1485-1561), traduzidos da versão
francesa de Boistuau y Belleforest, que se publicaram na Espanha com o título de Historias trágicas
ejemplares em 1589.
24
hacer novelas. O estudo da variedade de gêneros que se encontram em
"Rinconete y Cortadillo" abrirá, desse modo, um caminho para um maior
entendimento da construção das novelas cervantinas.
Até o início do século XVII, não havia publicações de tratados com
teorias sobre a novela num sentido estrito, mesmo porque a novela não
possuía a consistência suficiente para tanto. O que se tem como material para
pensar em uma possível “poética” do gênero são as observações teóricas as
quais se encontram esparsas nas obras, nos prólogos e também nas
reescrituras dos tratados de poética. López Pinciano, com sua Philosophia
Antigua Poética, é considerado uma das fontes principais da teoria literária de
Cervantes.
16
A relação que há entre algumas reflexões cervantinas e o
pensamento de Pinciano é ilustrada, por exemplo, quando se destaca a
semelhança das observações teóricas que expõe o Canónigo de Toledo no
Quixote I e as que aparecem no tratado de Pinciano, as quais serão retomadas
mais adiante.
Dentro das preceptivas relacionadas com o gênero narrativo em
Pinciano, pode-se destacar uma modalidade que se denomina episodio e que
estaria mais próxima ao que Cervantes chama novela. Leia-se:
Assí es la verdad, respondió Vgo, mas yo no he dicho que toda
fábula tiene episodios. Agora lo digo; que las principales –que son
épica, trágica y cómica–, necessariamente los deuen tener; aquélla
largos, y éstas dos vltimas, breues; essotros poemas son estrechos, y
para su cumplimiento les basta fábula sola. Aduierto q[ue] quando digo
fábula, solamente entiendo el argumento –que por otro nombre dize
hipóthesi, o cuerpo de fábula–, y quando episodio, entiendo las
añadiduras de la fábula, que se pueden poner y quitar sin que la acción
esté sobrada o manca, y quando dixere la fábula toda, entiendo
argumento y episodios juntamente.
17
16
El inteligente y cido tratado de El Pinciano ha venido siendo considerado por la mayoría de los
críticos como la fuente principal de la teoría de Cervantes”. (RILEY, E. Teoría de la novela en
Cervantes. Madrid: Taurus, 1971. p.18).
17
LOPEZ PINCIANO, A. Philosophía antigua poética. Obras completas. Tomo 1. Ed. José
Rico Verdú. Madrid: Fundación José Antonio de Castro, 1998.
25
Dessa maneira, uma possível interpretação é a de que o episódio
(novela) estaria naturalmente inserido em uma fábula que lhe serve como
marco narrativo. Seria o caso de “El curioso impertinente” que aparece
intercalada no Quixote I, a novela dentro de um marco narrativo no interior do
qual possui alguma independência com relação ao mesmo.
As novelas de Boccaccio vêm inseridas dentro de um marco narrativo:
um círculo de pessoas conta histórias umas para as outras, e cada dia um
tema diferente escolhido por eles mesmos. O marco narrativo é uma estratégia
que mantém de maneira satisfatória os preceitos de unidade de ação, espaço e
tempo impostos pelo pensamento teórico. Era uma maneira de submeter um
conteúdo variado (diversas histórias) a uma ação geral e contínua que ao
mesmo tempo transcorre dentro de um âmbito temporal e em lugar
determinado.
18
Embora tenha sido uma fórmula repetida inúmeras vezes, é na própria
literatura italiana que começam a surgir algumas reações com relação à
obrigatoriedade do marco narrativo. Em o Novellino, de Masuccio Salernitano,
se encontra uma nova maneira de reunir as 50 histórias por meio de uma
espécie de dedicatória esordio e uma “conclusão”. O rompimento mais
enfático com o marco narrativo dá-se com Bandello, que substitui a moldura
por uma espécie de ficção ambiental da dedicatória, o que lhe permite
demarcar as circunstâncias concretas da narração e dedicar o seu relato a um
personagem
19
.
A partir desse momento, a novella italiana começa a trilhar um
caminho novo em direção à novela independente. Bandello desenvolve
algumas possibilidades, mas é da recepção de sua obra por outros que surgem
uma definitiva mudança e um rompimento com a obrigatoriedade do marco
narrativo:
Fueron, sin embargo, los traductores y refundidores de Bandello
los que dieron el impulso definitivo a la evolución del arte de la novella
18
PABST, W. La novela corta en la teoría y en la creación literaria. Madrid: Gredos, 1972. p.140.
19
PAREDE NUÑEZ, J. Novella. Un término y un género para la literatura románica. Revista de
Filología Románica, Madrid, Editorial de la Universidad Complutense de Madrid, 1986. p. 125.
26
terminando el proceso de una nueva forma narrativa que se cultivó de
manera particular en Francia y España.
20
Na Espanha, bons exemplos de novelas que aparecem inseridas
dentro de obras maiores, porém o foco nesse caso é outro. As novelas
aparecem como elemento secundário, e não é nelas exatamente que reside a
riqueza literária dessas obras, por exemplo, as novelas que incorporam
Montemayor em Diana ou Mateo Alemán em seu Guzmán de Alfarache. Essa
prática, como se sabe, é seguida por Cervantes, o qual, desde La Galatea,
intercala novelas em suas obras, culminando com a expressividade das que
são incorporadas no primeiro Quixote, pois, além de “El curioso impertinente”,
também se pode considerar como novelas curtas alguns episódios como a
história do Capitão Cativo, a história de Grisóstomo e da pastora Marcela, entre
outros.
21
Cervantes parece haver estado boa parte de sua trajetória como
prosista refletindo sobre a composição do gênero, e, para alguns como
Montero Reguera, a hipótese de que o Quixote houvesse sido pensado
primeiramente como uma novela curta, que pouco a pouco foi dialogando com
formas similares até se transformar ou compor um todo:
Independente das razões de maior ou menor peso que
discutidas a respeito, o fato de que Cervantes concebera originalmente
o Quixote como uma novela curta em relação ao que foi apontado:
provavelmente era o gênero que mais e melhor cultivara até o momento
e se tem notícia de algumas novelas curtas compostas nessa mesma
época ("Rinconete y Cortadillo" , “El celoso extremeño”, “Novela del
Curioso Impertinente“, “La tía fingida).
22
É interessante pensar que Cervantes parece haver tomado uma
importante decisão com respeito ao seu repertório de novelas ao escrever o
segundo Quixote, pois o leitor se depara com as seguintes declarações:
20
BLASCO, J. Estudio preliminar. In: CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed.
de Jorge García López. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. p.134.
21
MONTERO REGUERA. J. Miguel de Cervantes e o Quixote: de como surge o romance. In: VIEIRA,
M. A. da C. Dom Quixote a letra e os caminhos. São Paulo: EDUSP, 2006. p.19.
22
Idem, p. 21.
27
Dicen que en el propio original desta historia se lee que llegando
Cide Hamete a escribir este capítulo no le tradujo su intérprete como él
le había escrito, que fue un modo de queja que tuvo el moro de
mismo por haber tomado entre manos una historia tan seca y tan
limitada como esta de don Quijote, por parecerle que siempre había de
hablar dél y de Sancho, sin osar estenderse a otras digresiones y
episodios más graves y más entretenidos; y decía que el ir siempre
atenido el entendimiento, la mano y la pluma a escribir de un solo sujeto
y hablar por las bocas de pocas personas era un trabajo incomportable,
cuyo fruto no redundaba en el de su autor, y que por huir deste
inconveniente había usado en la primera parte del artificio de algunas
novelas, como fueron la del Curioso impertinente y la del Capitán
cautivo, que están como separadas de la historia, puesto que las demás
que allí se cuentan son casos sucedidos al mismo don Quijote, que no
podían dejar de escribirse. También pensó, como él dice, que muchos,
llevados de la atención que piden las hazañas de don Quijote, no la
darían a las novelas, y pasarían por ellas o con priesa o con enfado, sin
advertir la gala y artificio que en sí contienen, el cual se mostrara bien al
descubierto, cuando por solas, sin arrimarse a las locuras de don
Quijote ni a las sandeces de Sancho, salieran a luz.
23
Blasco
24
chama atenção para o fato de que, para Cervantes,
originalmente as novelas dependiam, sim, de um marco narrativo e que
depois o autor se liberta do mesmo, provavelmente pelas razões acima
expostas. No caso específico de algumas novelas, pela sua composição
anterior a 1605, não se pode afirmar se foram ou não escritas para ser
independentes ou parte de uma obra maior. Um caso muito especial é o de
"Rinconete y Cortadillo", que, tendo sido mencionada dentro do Quixote, por
estar na mesma maleta em que se encontrava o “Curioso Impertinente”, não
chega a ser incluído na obra e sale a la luz por si sola em 1613. A menção de
"Rinconete y Cortadillo" no Quixote e as possíveis hipóteses da sua não
23
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Ed. Martín de Riquer. Barcelona:
Editorial Planeta, 1998. p.876.
24
BLASCO, J. Estudio preliminar. In: CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed.
de Jorge García López. Madrid: Editorial Crítica, 2001. p.X.
28
inclusão são temas do capítulo 2.2. No entanto se pode pensar, de algum
modo, na possibilidade de a novela haver sido escrita originalmente para
pertencer a um marco narrativo, o Quixote.
A publicação de uma tradução francesa de “El curioso impertinente” fora
do Quixote em 1608
25
é um fato que deve ser levado em consideração ao se
analisarem as declarações presentes no capítulo XLIV da segunda parte.
Cervantes acabara por perceber que era o momento de valorizar toda a gala y
artifício presentes em suas novelas e estrategicamente as coloca em evidência
quando publica uma coleção para elas. Talvez simplesmente seguisse a
tendência natural do gênero, de tornar independentes os seus relatos.
Tendência essa que já se pronunciara muito antes, como visto na literatura
de Bandello e em seus prólogos
26
. O que é certa hesitação (incluir ou não
incluir "Rinconete y Cortadillo"), que culmina com a antológica passagem do
capítulo XLIV, no qual, ao que parece, uma espécie de remanejamento das
novelas do lugar que até então ocupavam de “episódios anexados à fábula”
para se tornarem um conjunto independente e serem então, desse modo,
melhor apreciadas pelo leitor, que estará atento a todo seu artifício. Essa
passagem poderia ser vista como um anúncio da publicação da coleção das
Novelas Exemplares.
Mesmo publicadas de forma independente, no prólogo das Novelas
Ejemplares há ainda um indício interessante, uma espécie de resquício do
marco narrativo, uma maneira sutil, mas muito curiosa, de colocá-las umas em
contato com as outras:
[…] y si bien lo miras, no hay ninguna de quien no se pueda sacar algún
ejemplo provechoso; y si no fuera por no alargar este sujeto, quizá te
mostrara el sabroso y honesto fruto que se podría sacar, así de todas
juntas como de cada una de por sí.
27
25
Cf. José Montero Reguera: “Em francês registra-se uma tradução dos capítulos 33, 34 e 35 (a Novela
do Curioso Impertinente) em 1608”. (MONTERO REGUERA. J. Miguel de Cervantes e o Quixote: de
como surge o romance. In: VIEIRA, M. A. da C. Dom Quixote a letra e os caminhos. São Paulo:
EDUSP, 2006. p.19).
26
Sobre os prólogos das novelas italianas, ver: PABST, W. La novela corta en la teoría y en la creación
literaria. Madrid: Gredos, 1972. p.82.
27
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid:
Editorial Crítica, 2001. p.18.
29
se tem conhecimento da polêmica que gera a declaração da
exemplaridade das novelas tema ao qual o trabalho se deterá mais adiante
—, posto que a novela em estudo contribuirá para o levantamento de algumas
questões. O que realmente interessa no fragmento citado é a questão da
unidade. De alguma maneira, Cervantes parece querer vê-las juntas pelo
menos com o mesmo propósito. Blasco destaca alguns indícios que apontariam
para uma possível unidade:
Pero las conexiones entre las distintas novelitas y las de todas ellas con
el prólogo no paran ahí, [no caso da unidade que entre “El
casamiento engañoso” e o Coloquio de los perros”] pues es posible
detectar en la colección toda una variada serie de elementos
recurrentes, cuya función no parece ser otra sino la de sugerir, en la
estructura profunda, una “unidad” hacia la que vendrían a converger la
totalidad de los relatos, tan diferentes y variados en la estructura
superficial del texto.
28
O binômio “unidade e variedade” com o qual se deparam os novelistas
desde Boccaccio tende a favorecer a criação de uma série de estratégias por
parte dos autores ao lidar com um gênero que é múltiplo em sua essência.
Essas estratégias acabam por colocá-los em contato, em maior o em menor
grau, com as questões referentes ao marco narrativo. Pinciano reflete sobre a
questão:
Dicho esto, dixo Vgo: Dicha la esse[n]cia y diuisió[n] d[e] la
fábula en especies genericas –q[ue] las especies son ta[n]tas como f
dicho d[e] los poetas– resta saber de las condiciones dellas; las quales
son tres pares co[n]trarios, porq[ue] la fábula deue ser: vna y varia,
perturbadora y quietadora de los ánimos, y admirable y verisímil.
28
BLASCO, J. Estudio preliminar. In: CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed.
de Jorge García López. Madrid: Editorial Crítica, 2001. p.XI.
30
Digamos, pues, del par primero, q[ue] co[n]tiene la unidad y variedad de
la fábula.
29
Para que se tenha uma fábula ideal (tendo em conta que a novela é o
episodio da fábula e que, como não há maiores discussões sobre a unidade do
episodio, analisamos as observações dirigidas à bula como correspondentes
às que devem abarcar os textos em prosa, como a novela), é necessário que
seu autor saiba dosar de forma equilibrada diversos pares de contrários. Entre
eles, propõe-se que, na fábula, são igualmente importantes a unidade e a
variedade. Mais adiante, explica mais detalhadamente esse par:
Acerca de lo primero, digo: q[ue] la fábula, en dotrina de
Aris[tóteles], es como vn animal perfecto y acabado, el qual ha d[e] ser
vno y simple, porq[ue] el q[ue] no lo fuera, sería mo[n]struoso; como si
digamos vn leó[n]: si tiene todas sus partes de leó[n], cabeça, pecho,
vientre y lo demás, es vn simple y perfeto; y si por ve[n]tura tuuiesse el
pecho o otro mie[m]bro qualquiera de otro qualquier animal, no se dirá
vno y simple, y q[ue] co[n]sta de vna sola naturaleza, sino mo[n]struo,
porq[ue] tiene más naturalezas.
30
No prólogo das Novelas Ejemplares, Cervantes curiosamente parece
dialogar com essa poética, quando mais uma vez expõe as suas expectativas
com relação à recepção do gênero:
Y así te digo otra vez, lector amable, que destas novelas que te ofrezco
en ningún modo podrás hacer pepitoria, porque no tienen pies, ni
cabeza, ni entrañas, ni cosa que les aparezca
31
.
29
LÓPEZ PINCIANO, A. Philosophía antigua poética. Obras completas. Ed. José Rico Verdú. Tomo
1. Madrid: Fundación José Antonio de Castro, 1998.
30
LÓPEZ PINCIANO, A. Philosophía antigua poética. Obras completas. Ed. José Rico Verdú. Tomo
1. Madrid: Fundación José Antonio de Castro, 1998.
31
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid:
Editorial Crítica, 2001. p. 17.
31
Parece que o leitor que buscar hacer pepitoria
32
, complicando a leitura
ao procurar todas as partes da “fábula”, nada encontrará. A impressão é de
que, de alguma maneira, Cervantes ironiza tais exigências poéticas, pelo modo
como elas são expostas e exemplificadas, por meio da metáfora do animal que
deve possuir todas as suas partes “normais”, não transgredindo nenhuma lei
natural. Poderia também referir-se à própria ausência da fábula em si, que
aqui há apenas os episodios (novelas) independentes, sem um marco narrativo
que lhes sirva de fábula.
De forma geral, não é possível afirmar se as Novelas Ejemplares foram
concebidas para ser novelas independentes ou intercaladas. O mais seguro é
pensar que cada uma em seu momento de composição, de alguma maneira,
tinha o seu destino traçado, ou quase isso. É o caso muito especial de
"Rinconete y Cortadillo", em que Cervantes ensaia a sua inclusão no Quixote
de 1605, mas só a publica, por si sola, oito anos depois no conjunto das
Novelas Ejemplares.
1.2 Da história do texto
1.2.1 En un lugar de la Mancha ... De como “Rinconete y Cortadillo”
aparece no Quixote
primeira vez que “Rinconete y Cortadillo” é mencionado no
Quixote I é quando é retirado de dentro de uma maleta na
estalagem de Juan Palomeque. Acompanhado de outros
manuscritos e obras, Cervantes o brinda com essa breve aparição no capítulo
XLVII, e não seria exagero pensar que talvez se tratasse de um destaque, ao
que tudo indica, ou até mesmo de uma estratégia de divulgação de uma novela
pela qual provavelmente guardava uma simpatia especial.
32
Hacer análisis, examen”. (Cf. CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge
García López. Madrid: Editorial Crítica, 2001. p.17).
A
32
Em meio às suas andanças, Dom Quixote e Sancho Pança decidem
fazer uma pausa e se hospedam na estalagem de Palomeque. Enquanto Dom
Quixote descansa, o dono da hospedaria se reúne com seus hóspedes e
familiares. O clima parece ser ideal para contar histórias ou discutir assuntos
diversos. Palomeque, então, menciona a existência de uma maleta repleta de
livros e textos deixados por algum hóspede e, nesse momento, havendo
hóspedes leitores, providencia uma sessão de leitura. E, como estão todos
curiosos para conhecer o conteúdo da maleta, Juan Palomeque decide buscá-
la:
Y entrando en su aposento, sacó dél una maletilla vieja, cerrada
con una cadenilla, y, abriéndola, halló en ella tres libros grandes y unos
papeles, de muy buena letra, escritos de mano. El primer libro que
abrió, vio que era Don Cirongilio de Tracia y el otro Felixmarte de
Hircania, y el otro La historia del Gran Capitán Gonzalo Hernández de
Córdoba, con la vida de Diego García de Paredes.
33
Os tais papéis de muy buena letra são duas novelas, sendo uma
delas a novela intitulada “El Curioso Impertinente”. Logo todos os spedes
se interessam pela leitura da mesma, que é realizada pelo “cura”,
provocando admiração e deleite em todos os ouvintes a partir da intrigante
história de Anselmo, Camila e Lotario.
A leitura ocupa os capítulos XXXII a XXXV e, no capítulo XLVII, a
maleta torna a aparecer:
El ventero se llegó al cura y le dio unos papeles, diciéndole que
los había hallado en un aforro de la maleta, donde se halló la Novela del
curioso impertinente, y que pues su dueño no había vuelto más por allí,
que se los llevase todos; que pues él no sabía leer, no los quería. El
cura se lo agradeció, y abriéndolos luego, vio que al principio del lo
escrito decía: Novela de Rinconete y Cortadillo, por donde entendió ser
alguna novela, y coligió que, pues la del Curioso Impertinente había sido
33
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Ed. de Martín de Riquer. Barcelona:
Editorial Planeta, 1998. p.341.
33
buena, que también lo sería aquella, pues podría ser fuesen todas de un
mesmo autor; y así, la guardó, con prosupuesto de leerla cuando
tuviese comodidad.
34
Aqui o leitor se depara com a primeira aparição de “Rinconete y
Cortadillo”, colocado pelo seu autor no mesmo estatuto da novela “El Curioso
Impertinente” e, por esta razão, vista pelos personagens do Quixote com certa
admiração. Se a novela “El Curioso Impertinente” havia deleitado a todos,
certamente a de Rinconete y Cortadillo” faria o mesmo sucesso, pois estava
escrita com a mesma pluma.
A menção da novela no Quixote I induz a pensar no momento de sua
redação, anterior a 1605, embora o texto somente seja publicado em 1613, no
conjunto das Novelas Exemplares. O que seria uma suposição logo se tornaria
uma certeza, pois, em 1788, foi encontrado por Dom Isidoro Bosarte um
manuscrito remoto da novela, um achado que ficou registrado no número IV de
seu Gabinete de Lectura Española, a ser comentado no capítulo seguinte.
Entretanto, é preciso deter-se com mais detalhe à maleta abandonada
na estalagem de Juan Palomeque e nos textos nela contidos: têm-se, então,
duas novelas de cavalaria, que são tachadas de ultrapassadas pela maioria
dos hóspedes, ao lado de duas criações inovadoras, recém escritas. Não seria
ilógico afirmar, segundo Riley
35
, que o dono misterioso da maleta poderia ser o
autor dos manuscritos, ou seja, o próprio Cervantes. Dessa maneira, este
estudo coincide com a idéia de Riley de que a maleta teria a faculdade de ser
um objeto transdimensional, na medida em que ocupa tanto a dimensão da
realidade Cervantes, escritor de manuscritos e leitor de livros de cavalaria, é,
sem dúvida, o dono do objeto quanto a dimensão da ficção, onde não passa
de um objeto esquecido na estalagem de Palomeque, de dono ignorado
36
.
34
Idem, p.497.
35
RILEY, E. La rara invención. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. p.118.
36
Américo Castro aprofunda-se um pouco mais na questão da suposta aparição de Cervantes dentro de
sua obra: Se introduce a mismo de manera incidental como el hombre que presenta al público la
ficción de Benengeli. A veces cita su propio nombre como si se tratara de un personaje cuya existencia
estuviese unida a la de los caracteres: como autor de La Galatea y amigo del cura; como el soldado
llamado tal de Saavedra, a quien el Cautivo conoció en Argel; e indirectamente, también se nos hace
recordarle como autor del Curioso impertinente, Rinconete y Cortadillo y La Numancia”. (CASTRO, A.
El Pensamiento de Cervantes. Nueva edición ampliada. Barcelona: Noguer, 1972. p. 74).
34
Pelo conteúdo da maleta, é possível vislumbrar o momento peculiar no
qual se encontrava a prosa espanhola, em finais do século XVI e começo do
XVII. Ali aparecem convivendo num mesmo espaço histórias de cavalaria e
dois manuscritos, duas novedosas criações recém escritas por Miguel de
Cervantes. O relato de “El Curioso Impertinente” intercalado às aventuras de
Dom Quixote na estalagem é, tendo em conta a poética do episodio dentro da
fábula
37
, de certa maneira, independente da ação principal; é uma novela, tal
qual as chamadas “exemplares” por Cervantes, em que se desenvolve um
conflito relacionado com um triângulo amoroso:
La novela El curioso impertinente desarrolla un conflicto que, con
elementos mágicos y caballerescos, se encuentra en el canto XLIII del
Orlando Furioso de Ludovico Ariosto, que a su vez aprovechó Cristóbal
de Villalón en su Crotalón.
38
A outra novela do manuscrito é “Rinconete y Cortadillo”, que traz à tona
a temática da picaresca, gênero o qual alcançava seu auge na época da
publicação do Quixote.
1.2.2 O manuscrito da novela
39
omo se mencionou anteriormente, há um manuscrito remoto de
“Rinconete y Cortadillo” com algumas variantes em relação ao
texto publicado em 1613. Em 30 de maio de 1788, Isidoro
Bosarte comunica, mediante uma “Carta sobre las novelas” enviada ao Diário
de Madrid, ter encontrado um manuscrito contendo várias novelas cervantinas
37
LÓPEZ PINCIANO, A. Philosophía antigua poética. Obras completas. Ed. José Rico Verdú. Tomo 1.
.Madrid: Fundación José Antonio de Castro, 1998.
38
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Ed. Martín de Riquer. Barcelona:
Editorial Planeta, 1998. p.345-346, nota “*”.
39
Fontes principais para a elaboração da história do texto: CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas
Ejemplares. Ed. Jorge García López. Madrid: Editorial Crítica, 2001; CERVANTES SAAVEDRA, M.
de. Novelas Ejemplares I. Ed. Harry Sieber. Madrid: Cátedra, 1997.
35
em uma redação ignota
40
, de modo que existem dois textos distintos da novela
"Rinconete y Cortadillo". O conjunto de textos havia sido compilado por
Francisco Porras de la Cámara, daí sua denominação mais conhecida como
“Manuscrito Porras de la Cámara”. Ao que parece, eram textos compilados
para entreter o Arcebispo de Sevilla, Don Fernando Niño de Guevara. Nessa
época, Sevilla possuía as chamadas “academias”, que eram centros de
estudos literários cujas atividades mais usuais eram os recitais de poesias e de
contos, além de tertúlias sobre questões artísticas.
É possível apontar a aparição no Quixote I e a descoberta do manuscrito
como indícios de uma redação de “Rinconete y Cortadillo” anterior a 1613. É
aceitável pensar numa elaboração pelo menos anterior a 1605, que seria
incerto apontar outras datas mais remotas. No manuscrito, o seguinte
subtítulo para a novela: famosos ladrones que hubo en Sevilla, la cual pasó así
en el año de 1569. A mesma data aparece no corpo do texto: un día de los
calurosos en el verano de 1569. As datas desaparecem na edição de 1613.
Esta data, hoje em dia, não pode ser confirmada, já que o Manuscrito de
Porras se perdeu em 1823 após passar pelas mãos de pelo menos mais três
estudiosos, além de Isidoro Bosarte. O cervantismo do século XIX, talvez
induzido pela presença da data no manuscrito, sempre buscou uma data muito
mais remota, algo entre 1588 e 1590; talvez não se tenha levado em
consideração que o relato, pela presença de marcantes características
picarescas, seria inconcebível sem a publicação de Guzmán de Alfarache, o
que ocorre em 1599. O mais acertado seria considerar que a novela
"Rinconete y Cortadillo" estava escrita, pelo menos numa primeira versão,
nos primeiros meses de 1605. Além de "Rinconete y Cortadillo" e “El celoso
extremeño”, também se inclui no manuscrito uma novela chamada “La tía
fingida”, cuja autoria, até os dias atuais, suscita inúmeras polêmicas.
41
No mesmo ano de 1788 (entre julho e setembro), foram publicadas as
“novas” versões das novelas exumadas que havia noticiado o Diário de Madrid
40
Transcrição da notícia: Pongo en la noticia de Vmd. Que han parecido las Novelas de Rinconete y
Cortadillo y del Zeloso estremeño, manuscritas en tiempo del mismo Cervantes. Yo las he visto, y Vmd.
las puede ver, pues se hallan dentro de Madrid”. (Diario de Madrid, 30/05/1788). (CERVANTES
SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid: Editorial Crítica, 2001.
p.C).
41
Para ampliar as informações sobre “La tía fingida” e a polêmica sobre sua autoria, remete-se o leitor à
edição crítica anotada por Jorge García López. (Idem, p.625).
36
juntamente com o anúncio da publicação de “La tía fingida”. A partir daí, o
manuscrito circula pelas mãos de diversos estudiosos; no entanto, logo é dado
como perdido e, pouco depois, como reencontrado. O último estudioso que
teve acesso ao texto foi Bartolomé José Gallardo, que o perde definitivamente
em 1823. Nesses 40 anos em que o manuscrito esteve nas mãos dos
estudiosos da época, ninguém se interessou seriamente em descrever e
estudar a sua composição, de modo que a maioria dos comentários sobre a
novela foi elaborada posteriormente, a partir de depoimentos de quem teve a
oportunidade de manusear o achado. Ao que parece, tratava-se de um códice
de 241 fólios sem numeração, cujo conteúdo tentou reconstruir Foulché-
Delbosc
42
.
Muito se discutiu sobre a questão da autoria e da data do manuscrito.
Todavia, a conclusão mais segura parece ser a de que a versão de Porras de
la Cámara é inferior à da edição das novelas de 1613, chegando-se a cogitar
que o manuscrito seria uma pia não fidedigna da versão de 1613. De todo
modo, observa-se que, para uma boa parte da crítica, o manuscrito tem uma
importância secundária e um tanto limitada para os estudos cervantinos em
geral.
43
Levando-se em consideração todos os problemas e acidentes ocorridos
na trajetória da divulgação e do estudo do manuscrito, para este trabalho ele
tem alguma importância. Ao destacar as principais diferenças existentes entre
as duas versões (a de Porras de la Cámara e a de 1613 de Juan de la Cuesta),
chama atenção principalmente a existência, na versão de Porras de la Cámara,
de um título ou subtítulo que antecede o episódio no espaço do “Patio de
Monipodio”: “Casa de Monipodio, padre de ladrones en Sevilla”
44
. Como se
destacará mais adiante, no momento em que os protagonistas Rincón e
Cortado adentram o pátio da casa de Monipodio, uma alteração um tanto
brusca na narração das aventuras dos dois meninos. É como se Cervantes
quisesse, em alguma etapa da composição de seu relato, alertar o leitor para
42
As informações sobre o manuscrito da novela foram extraídas da edição crítica de Jorge García López.
(Idem, p..CI)
43
Idem, p.CII.
44
Para mais informações sobre o cotejo entre a versão de Porras e a de 1613, o leitor pode remeter-se à
edição crítica de Jorge García López.
37
uma mudança de espaço algo significativa na trajetória da narração, a qual se
estudará mais adiante.
Também chama atenção, na versão do manuscrito, a forma como a
novela termina. A questão da moraleja rota, que o narrador insere ao final da
narrativa dos pícaros, é tão polêmica quanto o título da coleção e, na versão de
Porras, a moral da história ainda é mais pronunciada e ganha um tom de
protesto ou denúncia com relação à delinqüência sevilhana. No quarto capítulo
deste trabalho, serão examinados o epílogo da obra e o seu carácter de
exemplaridade.
1.3 Novelas exemplares, a coleção
Las malas historias son novelas
las buenas novelas son historia.
Lope de Vega
nthony Close adverte que todas las narraciones cervantinas
deberían llevar la modesta advertencia, preliminar: Aquí
estamos de obras, perdonen las molestias.
45
Por meio da
seleção e aplicação de técnicas específicas de composição, Cervantes amplia
os horizontes da literatura de sua época, criando uma prosa que é fruto tanto
da aplicação de técnicas de composição presentes nos tratados de poética e
de retórica quanto do diálogo intertextual
46
com diversas obras do período.
Como costuma ser uma característica da obra cervantina, a riqueza literária,
não de "Rinconete y Cortadillo" como também das Novelas Exemplares de
modo geral, reside sobretudo no modo como Cervantes utiliza o gênero recém
45
Apud BLASCO, J. Estudio preliminar. In: CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares.
Ed. de Jorge García López. Madrid: Editorial Crítica, 2001. p. XII.
46
Para referir-se ao diálogo existente entre a novela estudada e demais textos da época, optou-se por
utilizar o termo “intertextualidade” com base em Julia Kristeva, que, embora pertença à teoria literária
moderna, expressa de maneira satisfatória os diálogos entre as representações artísticas. “O termo
intertextualidade designa ao mesmo tempo uma propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto
das relações explícitas e implícitas que um texto ou grupo determinado de textos mantém com outros
textos”. (CHARAUDEAU, P. Dicionário de análise do discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.
288-289.).
A
38
explorado para conferir variedade à sua prosa e estabelecer diálogos com
formas discursivas diversas.
Publicadas em 1613, as Novelas Exemplares são um conjunto de
narrativas que constituem o primeiro exemplo de relato curto da literatura
espanhola. Ler as Novelas Exemplares é uma aventura que conduz aos mais
diferentes universos literários. O leitor depara-se com temáticas variadas,
relatos com características da novela bizantina, cortesã, picaresca, entre
outras, de modo que se desfruta do privilégio de acompanhar todo um
processo de reflexão sobre a arte de narrar que prepara terreno para o
nascimento do romance. Na época de Cervantes, o termo novela, como se
destacou, não tinha o mesmo significado que tem hoje em dia. Mais
precisamente, era um vocábulo que não estava ainda bem definido, cujo
significado oscilava e era empregado para classificar muitas vezes os mais
diversos tipos de narrativa.
47
Quando se dirige ao Conde de Lemos, Cervantes
diz que lhe envia doce cuentos, outra nomenclatura possível na época que
também aparece no Quixote quando os personagens se referem ao “Curioso
Impertinente”, embora novela prevaleça na maioria dos casos. O mais
acertado, como se apontou, é pensar na novela da época como o gênero
dos relatos curtos, semelhante ao que hoje em dia chamamos de “conto”, ou,
então, adotar o significado que “novela” adquiriu em língua portuguesa:
“narrativa breve, maior do que um conto e menor do que um romance, e que se
caracteriza por apresentar uma espécie de concentração temática em torno de
um número restrito de personagens”
48
, embora, segundo Massaud Moisés, o
termo ainda não está completamente definido:
O vocábulo novela designa uma fôrma literária que ainda está à
espera de uma plena configuração, em grande parte devido ao critério
que continua a ser empregado por alguns estudiosos. No geral adotam
uma distinção mecânica, baseada no número de páginas ou de
palavras: a novela conteria de cem a duzentas páginas, ou mais de
47
El vocablo español se asemejaba entonces a una vasija vacía, que cualquiera podía llenar con un
contenido diferente, según su capricho. (PABST, W. La novela corta en la teoría y en la creación
literaria. Madrid: Gredos, 1972. p.217).
48
HOUAISS, A. ; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
39
vinte mil palavras, situa-se a meio caminho entre o romance e o conto,
menos extensa que o primeiro e mais longa que o segundo [...].
49
A coleção das 12 novelas segue a seguinte ordem: “La gitanilla”, “El
amante liberal”, “Rinconete y Cortadillo”, “La española inglesa”, “El licenciado
Vidriera”, “La fuerza de la sangre”, “El celoso extremeño”, “La ilustre fregona”,
“Las dos doncellas”, “La señora Cornelia”, “El casamiento engañoso” e “El
Coloquio de los perros”. É habitual que alguns editores incluam entre elas “La
tía fingida“, que foi descoberta em 1788 no “Manuscrito de Porras de la
Cámara”, mencionado anteriormente. As novelas do conjunto possuem alguma
afinidade com a novela “El curioso impertinente“, intercalada no Quixote I, a
qual obteve enorme êxito quando publicada separadamente pelo editor
parisiense Oudin (1608). O sucesso dessa publicação provavelmente
influenciou a decisão de Cervantes de publicar a coleção de novelas.
Nas Novelas Ejemplares, Cervantes parece esperar de seu leitor uma
atitude nova diante da matéria narrada; Cervantes:
[…] reivindica una realidad sustancialmente compleja, en donde las
fronteras entre el “ser ”y el “deber ser” ya no resultan diáfanas ni
infranqueables y donde las cosas están preñadas de sueños, o al revés;
una realidad que siempre ofrece al lector como algo inestable
problemático y, en consecuencia, susceptible de permanente
reinterpretación.
50
A coleção chama atenção pela diversidade de seu universo narrativo, o
que suscitou debates críticos desde sempre. Ortega y Gasset assinalava a
oscilação mais evidente dentro do conjunto: verossimilhança e invenção e
como essa oscilação algumas vezes pode ocorrer no interior de uma mesma
novela:
49
MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1997. p.320.
50
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. Jorge García López. Barcelona:
Crítica, 2001. p.XVII.
40
Yo hallo en esta (colección) dos series muy distintas de
composiciones, sin que sea decir que no interviene en la una algo del
espíritu de la otra. […] ¿Cómo es posible introducir dentro de un mismo
género El amante liberal, La española inglesa, La fuerza de la sangre,
Las dos doncellas, de un lado y Rinconete y El celoso extremeño, de
otro?
51
Costuma-se classificar as novelas em algumas categorias que, embora
não deixem de ser polêmicas, para efeito desse trabalho, podem resultar
esclarecedoras. A divisão mais aceita, proposta inicialmente por Valbuena Prat,
distingue três grupos: um idealista, em que prevalecem elementos de pura
invenção e que engloba as novelas de tipo "italianizante" como “El amante
liberal”, “Las dos doncellas”, “La señora Cornelia” e “La fuerza de la sangre”;
outro grupo seria o "ideorrealista", no qual os elementos fantásticos se
misturam em maior ou menor medida com o realismo, como “La gitanilla”, “La
ilustre fregona” e “El celoso extremeño”; e, por fim, um último grupo que é o
realista, no qual são incluídas novelas como “Rinconete y Cortadillo”, “El
casamiento engañoso”, “El coloquio de los perros”, “El licenciado Vidriera” e “La
tía fingida”, se admitirmos que esta é de autoria cervantina.
Riley propõe uma interessante releitura dessa classificação
52
, apontando
o termo romance como contraponto de novelesco, ambos aqui aplicados em
língua espanhola. Essa releitura surge para dissipar de alguma forma o halo de
certo desprezo que parece se formar ao redor das novelas nas quais
prevalecem os elementos de pura invenção:
Lo importante es reconocer y anotar la diferencia. No es necesario
contar con otra palabra, aunque obviamente es útil. Se hubieran evitado
muchos dolores de cabeza ocasionados por los supuestos gustos
inexplicables de Cervantes, así como muchos comentarios
desacertados (algunos de estudiosos eminentes), si sus romances
51
ORTEGA y GASSET, J. Meditaciones Del Quijote. Madrid: Alianza-Revista de Occidente, 1955.
p.144-145.Apud RILEY, E. La rara invención. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. p. 185.
52
RILEY, E. La rara invención. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. p.188.
41
hubieran sido reconocidos como tales, en lugar de ser tratados como
novelas fracasadas.
53
Para Riley, as novelas poderiam ser divididas em predominantemente
romance, isto é, com predominância do romanesco, ou predominantemente
novelescas, isto é com predominância da narrativa realista. Essa nomenclatura
parece de certo modo tentar evitar que se considerem “menos novela” as
narrativas que estão mais distantes do realismo
54
. O termo novela” bem
como novelesco”
se associaria sempre à prosa de ficção realista e o termo
romance, à prosa de ficção de caráter mais idealista. Deste modo, as novelas-
romance deixariam de ser vistas como fora dos padrões estabelecidos de uma
autêntica novela. É interessante mencionar essa releitura, pois, embora não se
pretenda adotar esses termos neste trabalho, por razões óbvias de total falta
de correspondência com os termos em língua portuguesa, ela aponta mais uma
vez em direção à problemática que gera a variedade característica do gênero
novela na época de Cervantes.
Segundo Riley, uma expectativa, criada pelo próprio Cervantes, com
o Quixote, considerado o antiromance, de que sua prosa então deveria evoluir
em direção à modernidade, ao novelesco. Dessa maneira, a prosa cervantina
estaria caminhando em direção oposta, pois o Persiles, tão anunciado e
aclamado em seus prólogos, fecha sua trajetória literária e é justamente o auge
de sua narrativa romance.
Na classificação proposta por Riley, as novelas ficariam organizadas da
seguinte maneira:
53
Idem, p.188.
54
Vale ressaltar que Marques de Santillana se referia, no século XV, aos romances como obras que
agradavam a la gente de baxa e servil condición”. (Apud REDONDO, A. Otra manera de leer el
"Quijote". Historia, tradiciones culturales y literatura. Madrid: Editorial Castalia, 1997. p.24).
42
Predominantemente romance Predominantemente novelesco
El amante liberal Rinconete y Cortadillo
La fuerza de la sangre El licenciado Vidriera
La española inglesa El celoso extremeño
Las doncellas El casamiento engañoso
La señora Cornelia El coloquio de los perros
Mixta
La gitanilla
La ilustre fregona
Embora "Rinconete y Cortadillo" seja sempre classificada dentro do
âmbito de novelas realistas — o conjunto sobre o qual a crítica mais se ateve e,
portanto, o de maior prestígio —, este estudo compartilha a teoria proposta por
Riley de que um ganho muito maior se se deixa de olhar as narrativas
idealistas como uma “recaída” do autor e, dessa maneira, considerar Cervantes
como um escritor que leu, escreveu e entendeu romances, sem rechaço, sem
condenação, e que conscientemente também jogou com o gênero, buscando
extrair novas formas de ficção.
Da vertente considerada mais realista, são as novelas mais estudadas
da coleção “Rinconete y Cortadillo” e El coloquio de los perros”, que, entre
outras características, m em comum a existência marcante de elementos da
literatura picaresca, também presentes em “La ilustre fregona”, que é
considerada mista, pois contém elementos dos dois grupos, guardando
inclusive uma interessante relação com o gênero picaresco.
Em “La ilustre fregona”, o personagem Diego de Carriazo,
adolescente de família nobre, que opta por levar uma vida de pícaro por puro
capricho e desejo de liberdade: En fin, en Carriazo vio el mundo un pícaro
virtuoso, limpio, bien criado y más que medianamente discreto”
55
. Como explica
o próprio narrador, Carriazo é um pícaro bem diferente do protótipo que
conhecido. É artificial, é pícaro pelo gosto e pela aventura, além de, como Dom
55
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid:
Editorial Crítica, 2001. p.374.
43
Quixote, deixar o seu lar em busca de uma nova vida. Na casa de seus pais,
não lhe faltava nada; contudo a agitada vida que levavam os vagabundos de
sua época o atraía bastante. Carriazo persuade seu amigo Avedaño a partir
com ele para a nova vida. Em Toledo, Avedaño apaixona-se pela “ilustre
lavadeira”, enquanto seu amigo perambula pela cidade levando uma vida
picaresca. A novela termina com o casamento dos jovens e o abandono da
vida errante. Casados com mulheres nobres, o retorno ao lar, ou seja, à sua
classe social de origem é inevitável.
Traços de picaresca encontram-se também nos dois relatos
entrelaçados de “El casamiento engañoso” e “El coloquio de los perros”. As
duas narrativas mantêm uma relação muito estreita, e alguns estudiosos as
consideram um único relato, pois “El casamiento” funciona como uma espécie
de prólogo que apresenta o inusitado diálogo mantido entre os cachorros
Cipión e Berganza, protagonistas de “El colóquio de los perros”.
“El casamiento engañoso” apresenta um episódio picaresco no qual o
Alferes Campuzano conta ao seu amigo, o licenciado Peralta, o seu desastroso
casamento com uma mulher que o engana, deixando-lhe como lembrança
apenas a sífilis contraída, a qual o leva a internar-se no Hospital da
Ressurreição. Por estar narrada em primeira pessoa e repleta de desventuras,
a novela aproxima-se do relato picaresco. Durante sua doença, Campuzano
ouvira numa noite, debaixo de sua janela, dois cachorros conversando, e é
desse acontecimento que nasce, então, ”El coloquio de los perros”. O diálogo
entre os cachorros Berganza e Cipión fora transcrito por Campuzano, que
agora o entrega a Peralta, como prova do sucedido no hospital. Nesse diálogo,
Berganza conta a Cipión a sua vida desde o nascimento. Cipión, às vezes,
intervém no relato, censurando Berganza quando este desvia demais do
assunto e começa a fazer reflexões ou a falar da vida alheia. Nota-se também
nesse colóquio a presença de vários elementos da picaresca, entre eles o
ponto de vista autobiográfico, marcado pelo relato em primeira pessoa feito
pelos cães, a idéia do criado que serve a muitos donos, castigando-os em sua
maioria e descobrindo o que de mais escuro em suas vidas. Apesar de
algumas semelhanças, as duas novelas incluem uma perspectiva inexistente
44
no relato picaresco, a do destinatário. Berganza e Campuzano têm
interlocutores que intervêm em sua história.
É importante ressaltar também outra interessante relação existente entre
“Rinconete y Cortadillo” e essa novela: trata-se da presença do personagem
Monipodio, que aparece rapidamente no “Coloquio de los perros” e tem
importância fundamental em “Rinconete y Cortadillo”, como se estudará mais
adiante. Além disso, um personagem na versão do “Manuscrito de Porras”
de "Rinconete y Cortadillo" que desaparece na publicação da novela em 1613
para reaparecer no “Colóquio”. Esse personagem, el bretón
56
, mantém relações
com a personagem Juliana Cariharta. O trecho em que Cariharta relata o
sucedido com esse personagem se transfere ao Colóquio. A personagem
Juliana Cariharta acaba permanecendo na última versão de "Rinconete y
Cortadillo".
As Novelas Exemplares, em sua maioria escritas entre 1604 e 1612, são
fruto de um período privilegiado da produção literária cervantina, representando
o momento mais rico e complexo da narrativa do autor, quando alcança um
equilíbrio artístico admirável. Cervantes coloca ao seu serviço, de forma
engenhosa, tanto as preceptivas poéticas vigentes quanto o universo literário
que o cercava. A seguir, o estudo prossegue, entrando agora no núcleo do
trabalho, momento em que, levados pelas linhas de "Rinconete y Cortadillo" ,
representante “exemplar” das novelas cervantinas, será possível entrar em
contato com prestigiados gêneros literários da época e, desse modo, desfrutar
do texto e do contexto literário.
56
Y ¿Por q pensáis, señores, qué me paró tal? Porque estando jugando, me envió a pedir treinta
reales con Culebrilla, su trainel, y no le envié más de veinte y dos, que la noche antes había ganado con
el mayor y más insufrible trabajo del mundo, porque vino a la Correoza, que todos conecéis, y me
puso galana a las mil maravillas, y me llevó a dormir con un bretón que hedía a vino y brea a tiro de
arcabuz, que lo que yo padecí con él aquella noche en discuento de mis pecados vaya. Y no ha dos días
que con los mismos vestidos me llevó a una casa de posadas a dormir con un perulero que vino de Indias,
haciéndole creer que era una moza recogida y encerrada, y me dio seis reales de a ocho, acabados de
sacar de la pieza, que aun no tenían bien enjuto el cuño, que parece que ahora los veo, y luego se los
puse en las manos descomungadas de aquel maligno, que ha ocho años que no se confiesa. Y esta
mañana, en pago de tan buenas obras me sacó al campo detrás de la Huerta del Rey, donde entre unos
olivares me desnudó y me ha puesto tal cual me veis. (Idem p..609).
45
1.4 “Rinconete y Cortadillo”, novela exemplar
El género será una condición, una vía de acceso, pero
nada más. El “Quijote” y el “Rinconete” necesitaron, para ser
posibles, una milenaria tradición, unas circunstancias históricas
hispánicas y extrahispánicas, un instrumento lingüístico; sin
duda es así. Cada una de esas obras es, sin embargo, un
“unicum”, algo inmanentizado en mismo como valía humana
también única.
Américo Castro. Hacia Cervantes .
57
omo costuma ser uma característica da obra cervantina,
"Rinconete y Cortadillo" traz à tona o diálogo com outros
gêneros literários. O momento de sua composição, comumente
situado na encruzilhada dos séculos XVI e XVII, a coloca no núcleo da
produção literária cervantina. Sua menção no Quixote de 1605 e sua
publicação posterior no conjunto das Novelas Ejemplares, podem ser
apontadas como dados fundamentais dentro da trajetória de Cervantes como
prosista, por ter sido, essa possivelmente, a única novela a ser originalmente
composta para pertencer a uma moldura narrativa e que, no entanto, é
publicada de forma independente na coleção das Novelas Ejemplares.
Riley, em seu conceituado estudo sobre teoria literária em Cervantes
58
,
aponta que o autor do Quixote realiza importantes reflexões acerca da literatura
no interior de suas obras. Essas reflexões, na maioria das vezes, vêm imersas
num rico universo narrativo onde é quase impossível dissociar o que poderia
ser considerado de cunho teórico e a riqueza própria do texto repleto de
reminiscências literárias:
57
CASTRO, Américo. Hacia Cervantes. Madrid: Taurus, 1967. p. 350.
58
RILEY, E. C. Teoría de la novela en Cervantes. Madrid: Taurus, 1971. (Colección. Persiles, 31)
46
Ocurre que su teoría y su labor creadora son, en ciertos aspectos,
literalmente inseparables. [...] Por otra parte, no conozco escritor que
diese tanta vida a los problemas de la crítica como él lo hizo.
59
Essa forma assistemática de expressar suas idéias soma-se ao seu
desinteresse em obter conclusões
60
. Dessa maneira, o que de fato poderia ser
considerado teoria literária muitas vezes não está claramente definido. Da
mesma maneira, um forte diálogo intertextual em suas obras, relacionado
com os gêneros literários, sobretudo os da época, que parecem desfilar ao
longo do texto. Um dos objetivos deste trabalho com "Rinconete y Cortadillo"
consiste em colocar em evidência tais gêneros, buscando, através desses
diálogos intertextuais, a esparsa porém consistente reflexão sobre os gêneros
literários de sua época. Nesse aspecto, a escolha da novela como gênero
corrobora para uma maior liberdade no que concerne à pluralidade de formas e
gêneros com os quais o texto se relaciona.
(Cervantes) transforma la novela de tradición italiana usándola como
una vasija donde sintetizar géneros diversos especialmente aquellos
populares en España y a otorgarles una profundidad sin precedentes.
61
Assim sendo, o presente trabalho tanto proporcionará um
aprofundamento no estudo dos mecanismos de composição da novela, quanto
servirá de pretexto para abordar alguns dos principais gêneros literários da
época.
"Rinconete y Cortadillo" pode ser apontada como uma das novelas mais
estudadas pela crítica. Possui um enredo simples, que poderia ser resumido
em duas ou três linhas, o que muito contrasta com a pluralidade do universo ali
retratado: o encontro ao acaso de dois jovens pícaros que se tornam amigos e
decidem seguir juntos os seus caminhos, quando então são “recrutados” por
uma peculiar organização criminosa. Isto é o que de principal acontece em
59
Idem, p.10-11.
60
Idem, p.12.
61
CLOSE, A. Cervantes y la mentalidad cómica de su tiempo. Alcalá de Henares: Biblioteca de estudios
cervantinos, 2007. p.49.
47
"Rinconete y Cortadillo" e, como diria M. Molho, aquí no pasa nada”. A
trajetória dos dois meninos costuma ser vinculada à trajetória dos protagonistas
da chamada literatura picaresca. O próprio narrador os rotula dessa maneira
logo no início da narrativa
62
. O modo como a literatura picaresca está presente
em toda a novela e, ao mesmo tempo, o claro movimento de distanciamento
em relação a algumas características deste gênero fizeram com que os
estudos sobre o texto se centrassem nessa problemática, deixando para uma
abordagem secundária outros aspectos talvez de igual repercussão dentro da
narrativa.
O diálogo com o gênero dramático, por exemplo, é percebido por
Américo Castro
63
, embora um estudo que abra esse caminho seja algo
posterior. Esses elementos do gênero dramático na novela, como se
constatará, são, por sua vez, reforçados pela presença de certos elementos da
própria picaresca, que, de alguma forma, também fazia parte da literatura dos
entremezes, o que acentuaria em alguma medida a atmosfera teatral.
Em geral, o debate sobre a vida da novela com a narrativa picaresca
caracteriza-se sobretudo pela escolha da crítica em centrar sua interpretação
principalmente no primeiro trecho da novela
64
no momento em que os dois
meninos se encontram e contam a história de suas vidas. Há, sem dúvida, uma
quebra de ritmo quando os meninos se encontram com a organização de
Monipodio, momento no qual deixam de ser agentes para passar a ser
pacientes da ação. É a ocasião em que também predominam as características
teatrais. Entende-se que essa é parte mais rica da novela, momento em que é
possível desfrutar da comicidade do texto, pois, além das características da
literatura picaresca, é possível encontrar muito do gênero dramático, ao lado de
uma interessante paródia das práticas religiosas, tanto por meio da linguagem
quanto pelo espaço criado por Monipodio: uma “confraria de delinqüentes”
organizada como se fosse uma instituição religiosa.
62
Y sin más detenerse, saltaron delante de las mulas y se fueron con ellos, dejando al arriero agraviado
y enojado, y a la ventera admirada de la buena crianza de los pícaros. (CERVANTES SAAVEDRA,
M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid: Editorial Crítica, 2001. p.169).
63
CASTRO, A. El Pensamiento de Cervantes. Nueva edición ampliada. Barcelona: Noguer, 1972.
p.235.
64
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid:
Editorial Crítica, 2001. p.793.
48
Dessa maneira, após entender a construção do gênero novela dentro da
prosa espanhola até a publicação das Novelas Exemplares, inicia-se o estudo
de "Rinconete y Cortadillo", com a conseqüente abordagem de diversos
gêneros e intertextos
65
.
65
Mangueneau define “intertexto” como conjunto de fragmentos convocados (alusão, citação, paródia)
em um corpus dado. (CHARAUDEAU, P. Dicionário de análise do discurso. 2.ed. São Paulo:
Contexto, 2006. p.288-289).
2. Pedro del Rincón e Diego Cortado: personagens picarescos
2.1 A literatura picaresca
¿Qué mayor pobreza que andar bebiendo los vientos,
echando trazas, acortando la vida y apresurando la muerte,
viviendo sin gusto con aquella insaciable hambre
y perpetua sed de buscar hacienda y honra.
Vicente Espinel. El pícaro Marcos de Obregón
proximar-se do conhecimento acerca da novela picaresca é
entrar em contato com um dos temas mais interessantes que
oferece a literatura espanhola, tanto por razões literárias quanto
por razões de ordem histórica, social e cultural. Na segunda metade do século
XVI e na primeira metade do século XVII, período em que apareceram os
primeiros romances picarescos, a sociedade espanhola vivia o auge da
monarquia absolutista, período do reinado de Carlos I, Felipe II, Felipe III e
Felipe IV. Durante este período, desenvolve-se um processo de unificação e de
centralização do poder que culmina com a queda do Reino de Granada (1492)
e a expulsão dos árabes, últimos “intrusos” em território espanhol. A coroa
espanhola chega ao seu apogeu, bem como as artes e as letras vivem um
período priviligiado.
Entretanto, dentro da esfera social, enormes desigualdades. As
camadas mais desfavorecidas ficam cada vez mais isoladas pelo abismo social
criado pela impossibilidade de ascensão.
Na literatura ainda permanece a popularidade dos livros de cavalaria.
Esses relatos giravam em torno de uma seqüência de aventuras heróicas do
cavaleiro andante, defensor dos fracos, das donzelas e da cristandade.
Protótipo do modo feudal de conquista, o cavaleiro era a garantia da
preservação da sociedade estamental medieval, cujo reconhecimento social
por meio do trabalho era inexistente.
A
50
Nesse contexto, o nascimento de uma tradição de textos que, de
alguma forma, reage à fantasia das narrativas em voga. São pseudo-
autobiografias de anti-heróis que contam suas vidas marginalizadas e sua luta
pela sobrevivência. O relato em primeira pessoa dos romances picarescos
coloca o leitor em contato com a experiência de um narrador personagem.
no prólogo de Lazarillo o convite a várias leituras, o que incita o leitor a
tomar uma postura mais ativa e interpretativa diante do narrado.
Embora o texto de "Rinconete y Cortadillo" esteja em terceira pessoa, a
passagem inicial da novela em que os protagonistas narram em primeira
pessoa sua vida imediatamente remete o leitor da época ao gênero picaresco.
Essas linhas de alguma maneira irmanam os clássicos pícaros Guzmán e
Lazarillo a Rincón e a Cortado.
A Vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades
1
sai
impressa em 1554 em Burgos, em Alcalá de Henares, em Antuérpia e em
Medina del Campo. razões para pensar que pode ter existido uma edição
anterior, por volta de 1553, porém não se conservou nenhum exemplar desta.
Supõe-se que sua composição tenha ocorrido entre 1525 e 1550 partindo de
alguns dados presentes no livro.
O nascimento da picaresca representa um rumo diferente para a prosa
espanhola. O tema do cotidiano aparecera na literatura, mas sempre em tom
burlesco, como nas comédias; todavia, com o surgimento da picaresca, a vida
cotidiana se transforma em matéria narrativa.
El Lazarillo, concebido como autobiografía miserable e irónica,
perfectamente construida, se distingue por su apariencia coloquial en el
manejo de materiales eruditos y tradicionales, aportando como novedad
dar la voz a personajes que, en su época, no son dignos de ser
escuchados ni nada tienen que decir que pudiera interesar a su
auditorio. Sin embargo, de su originalidad y vanguardia, no es tomado
más que el esquema, la estructura externa, su ‘realismo’, que contribuía
a romper el statu quo narrativo renacentista del decoro. Los pícaros
1
A edição de Medina del Campo foi descoberta em 1995 (LAZARILLO de Tormes. Ed. Bilíngüe.
São Paulo: Editora 34, 2005).
51
vinieron a deshacer la idealidad caballeresca, bucólica, pastoril y
cortesana, con la irrupción de ambientes y hablas coloquiales.
2
Lazarillo divulgou-se prontamente e foi reimpresso muitas vezes. Sua
popularidade estendeu-se além das fronteiras da Espanha, tendo sido
traduzido para vários idiomas.
A narrativa picaresca apresenta como personagem central o pícaro
3
,
cujo sentido, em língua portuguesa, equivaleria a uma espécie de anti-herói ou
malandro. Embora o vocábulo “pícaro” não apareça em Lazarillo uma única
vez, em Guzmán de Alfarache, o termo se consolida e, em "Rinconete y
Cortadillo", Cervantes já o utiliza para identificar seus personagens.
O protagonista do primeiro romance é Lázaro de Tormes, que conta a
sua vida sem qualquer excepcionalidade. Nasce à beira do rio Tormes, perto
de Salamanca. É filho de um moleiro ladrão que morre sem glória numa
expedição militar e de uma viúva que se une a um homem que rouba para
sustentá-los. Logo, a e de Lázaro o entrega a um cego para servir como
guia e criado. Lázaro passa fome por conta da avareza do cego e tem que se
valer da astúcia para sobreviver. Essa relação termina com uma brutal
vingança de Lázaro, que escapa em busca de outros amos. Todo o passado de
Lázaro é filtrado por seu presente, na medida em que guarda certa visão crítica
dos fatos, que seus olhos não são os mesmos da juventude e que narra os
acontecimentos de uma perspectiva de aparente estabilidade, la cumbre de la
existencia, segundo ele mesmo.
A preocupação maior da trajetória de Lázaro está em matar a sua fome,
uma espécie de leit motiv do relato. Começando sem ter nada e contando
apenas com sua astúcia, o pícaro ao final de sua vida consegue subir os
degraus inferiores de uma classe que desfruta de certa estabilidade.
2
REDONDO, R. L. Lázaro de Tormes y el valentón cervantino. Revista de lenguas y literaturas
ibéricas y latinoamericanas, n.1, 2002. Disponível em:
<http://www.cisi.unito.it/artifara/rivista1/testi/Valenton.asp>.
3
A origem da palavra “pícaro” é um tanto controversa. Chandler afirma que, em sua acepção original, a
palavra designaria um tipo de empregado de cozinha. Isto não é uma unanimidade entre os críticos, e,
embora a condição servil seja algo comum entre os pícaros espanhóis, a origem do nome “pícaro”
remonta, segundo Molho (1968), à região da Picardia na Itália. Os picardos eram acusados de se tornarem
bandidos ou saqueadores nas estradas e não gozavam de boa fama entre os europeus nessa época. Logo,
na Espanha, a palavra passou a ser atribuída a toda classe de indivíduos miseráveis, mendigos, ladrões e
ajudantes de cozinha.
52
Diferentemente de Rincón e Cortado, que pouco evoluem em sua trajetória
picaresca na novela cervantina, Lázaro aprende com as suas desventuras,
alcançando alguma maturidade”, que inclusive lhe permite narrar sua trajetória
com certo distanciamento crítico.
Mesmo sendo incluído em 1559 no Index de livros proibidos,
continuaram em voga edições de Lazarillo que chegavam do estrangeiro, e, em
1573, uma vez extraídas as partes censuradas (tratados IV e V, bem como
algumas frases do restante da obra), autoriza-se sua edição, porém a mesma
retorna completa em 1834. Tal popularidade fez com que aparecesse uma
continuação, também anônima, em 1555. Contudo, é necessário um intervalo
de quase 50 anos para que surja uma obra a qual, seguindo a mesma poética
do Lazarillo, faça com que se torne evidente o nascimento de uma nova
tradição literária. Com a publicação de Guzmán de Alfarache de Mateo Alemán
em 1599, que alcança enorme sucesso, fica delineado o gênero picaresco, pois
a obra consolida, definitivamente, as características de forma e conteúdo
presentes no Lazarillo. Isto ocorre efetivamente a partir do momento em que o
leitor percebe algo em comum entre as duas obras e passa a classificá-las
como narrativas do mesmo tipo ou gênero. Guzmán, como se mencionou, é
o primeiro a receber o tulo de caro, dado por seu próprio criador,
denominação esta que não figura no título, mas na aprobación, o que faz com
que, logo depois da sua publicação, a obra passe a ser conhecida,
simplesmente, como “El pícaro”.
Sintomas talvez da mudança histórica ocorrida no decorrer dos quase 50
anos que separam a publicação das duas obras, Guzmán de Alfarache
apresenta significativas diferenças. A mais perceptível entre elas é a inserção
na narrativa de numerosas digressões morais. Essas reflexões morais do
narrador/personagem superam em extensão os fragmentos narrativos e tratam,
em geral, da condição humana a honra, a riqueza, a aparência etc. com
certo tom bíblico e estóico. Essa inserção talvez contribua para que haja outras
diferenças: o relato se tornara mais extenso e o personagem, muito mais
crítico.
A aventura de Guzmán é mais extensa que a de Lazarillo e inclui
viagens mais longas. Seu destino nas galeras parece menos vantajoso,
53
embora o pícaro aproveite esse período de trabalho forçado para refletir e
escrever o seu relato. A segunda parte de Guzmán de Alfarache é publicada
em 1604, em resposta a uma edição apócrifa publicada por Mateo Luján de
Sayavedra na mesma época. Também, no mesmo período, entre 1603 e 1604,
começam a circular alguns manuscritos de El Buscón de Quevedo, que seria
impresso mais adiante, em 1626. La Pícara Justina, de Francisco pez de
Úbeda, surge em 1605, e assim sucessivamente vão aparecendo relatos
picarescos por toda a Espanha, confirmando o nascimento de uma importante
tradição literária.
Nunca é demais destacar a importância da picaresca na formação do
romance moderno ocidental. Essa importância deve ser sempre lembrada
principalmente por seu caráter universal, que o romance picaresco, além de
se expandir por toda a Espanha, em sua época alcançou inclusive o resto da
Europa. Na Alemanha, por exemplo, por volta de 1669, surge em Nuremberg O
aventureiro Simplícimus e A vivandeira Courasche, ambos de autoria de Hans
Grimmelshausen (1621? - 1676), sendo que o segundo tem como protagonista
uma pícara. Entre 1665 e 1671, na Inglaterra de Richard Head e Francis
Kirkman, surge a obra The English Rogue, considerada de pouco valor literário,
apoiada na poética da picaresca espanhola. No entanto, o texto que na
literatura inglesa dessa época melhor se aproxima é Moll Flanders, de Daniel
Defoe (1660-1731), publicado em 1772, ao lado de Coronel Jack, do mesmo
autor.
Essa expansão fez com que esse tipo de relato fosse aos poucos
adquirindo contornos mais definidos, de modo a constituir uma forma narrativa
reconhecida como romance picaresco, que também encontrou ecos na
literatura latino-americana. O primeiro romance dessa etapa mais moderna a
ser apontado como pícaro foi El periquillo Sarniento (1816), de JoJoaquim
Fernández de Lizardi, na literatura mexicana. A picaresca e a neopicaresca
4
foram objetos de estudos recentes, como o de M. González, que encontra na
literatura brasileira marcas da picaresca clássica espanhola.
4
Cf. GONZALEZ, M. M. A Saga do Anti-Herói. Estudo sobre romance picaresco espanhol e algumas
de suas correspondências na literatura brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
54
No entanto ainda hoje certa dificuldade em classificar prontamente se
uma obra é ou não picaresca. Embora essa dificuldade seja inerente à quase
qualquer tipo de catalogação de obras literárias dentro de determinados
cânones, no caso do relato picaresco é preciso deter-se um pouco na questão,
que inclusive a obra em estudo costuma ser incluída num certo tipo de
picaresca. Desse modo, para este estudo é fundamental observar como os
primeiros relatos picarescos se articulam dentro da tradição. E, apesar de
poder haver muitas picarescas gravitando em torno de Lazarillo de Tormes, a
picaresca que interessa para fins deste trabalho é a que foi contemporânea a
Cervantes.
Os estudos críticos, na maior parte das vezes, optaram por segmentar a
picaresca, tentando de algum modo determinar com certo rigor os contornos do
gênero iniciado por Lazarillo e Guzmán. Foram surgindo inúmeras sugestões
de classificação por tema, conteúdo, com digressão moral, sem digressão
moral, com ou sem narração autobiográfica etc.
5
Aqui não se pretende
esmiuçar essas classificações, posto que foge do escopo deste trabalho, mas é
preciso ao menos deixar claro que a picaresca conhecida por Cervantes foi
sobretudo a de Lazarrillo e a de Guzmán, ambas obras mencionadas pelo autor
do Quixote
6
. É muito provável que tenha tido contato também com a
continuação anônima de Lazarillo de Tormes (1555) ou, ainda, com os
primeiros manuscritos de El Buscón (que circulariam entre 1603 e 1604).
Mesmo em se tratando de um conjunto de obras tão pequeno aquele
que Cervantes conheceu, algumas divergências nesse campo, pois o
um acordo sobre a origem da literatura picaresca. Alguns afirmam que está na
publicação de Lazarillo de Tormes, outros, em Guzmán de Alfarache. Rico
7
defende que a matriz do gênero picaresco não está nem em uma nem em
outra, mas, sim, nasce da dialética que entre as duas, pois: En esa
5
Se ha intentado caracterizarlo desde perspectivas morales, psicológicas, sociales y hasta con distingos
de código penal, y siempre se topa con excepciones que, desde otra perspectiva, no lo serían. Se discute,
o se niega incluso, el valor distintivo de su característica formal más constante: el relato en primera
persona [...]. (LÁZARO CARRETER, F. “Lazarillo de Tormes” en la picaresca. 2.ed. Barcelona:
Ariel, 1983. p.195).
6
Guzmán de AIfarache é mencionado de forma indireta, mas com clareza em La ilustre fregona, quando
se afirma que Carriazo, um dos jovens protagonistas da novela, pudiera leer tedra y dar maravillosas
liciones en la facultad al famoso de Alfarache”. Lazarillo de Tormes é mencionado no Quixote no
episódio dos galeotes, cap. XXII..
7
RICO, F. La novela picaresca y el punto de vista. 3.ed. Barcelona: Seix Barral, 1982.
55
superposición el uno enriquecía el otro [...] en una dialética de influjos
recíprocos”. Para o crítico, Guzmán tinha que primeiro seguir os passos de
Lazarillo para que se tornasse evidente para os escritores e leitores da época o
surgimento de uma tradição de textos, bem como se hiciera manifiesta la
fórmula elemental de la novela picaresca”. Dessa forma, Rico defende para
Lazarillo de Tormes e Guzmán de Alfarache o título de iniciadores do gênero
picaresco.
Parker
8
, num trabalho que causou polêmica, coloca Lazarillo de Tormes
como um precursor do gênero. Segundo ele, Lázaro não seria um pícaro, pois
não é assim denominado dentro da obra. O primeiro pícaro para Parker seria
Guzmán, o que gerou inúmeros debates entre os estudiosos de picaresca.
Carreter dedicou um apêndice inteiro de seu trabalho Lazarillo de Tormes en la
picaresca para discutir a posição de Parker:
La calidad de modelo o cabeza de género corresponde
indubitablemente al “Lazarillo”, cuyo autor realizó una de las
mayores proezas conocidas en la invención de un nuevo tipo de
relato.
9
Para o desenvolvimento desta dissertação, entende-se, como Francisco
Rico, que, do denominador comum existente entre Lazarillo de Tormes e
Guzmán de Alfarache, surge a matriz do gênero que atraiu a atenção de
Cervantes.
Lázaro Carreter destaca que, curiosamente, um dos primeiros leitores de
que se tem conhecimento a perceber que Lazarillo e Guzmán pertenciam ao
mesmo tipo de literatura foi Cervantes, que, no Quixote I, capítulo 22, no
famoso episódio dos galeotes, faz uma importante alusão ao gênero picaresco:
Es tan Bueno que mal año para Lazarillo de Tormes y para todos cuantos de
aquel género se han escrito o escribieren.”
10
Desse modo, a partir desse
8
PARKER, A. Los pícaros en la literatura. Madrid: Biblioteca Románica Hispánica. Gredos, 1975.
9
LÁZARO CARRETER, F. “Lazarillo de Tormes” en la picaresca. 2 ed. Barcelona: Ariel, 1983.
10
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.224.
56
momento, o trabalho passa a abordar as relações existentes entre esse
episódio do Quixote e a novela "Rinconete y Cortadillo".
2.2 De como pícaros já haviam aparecido no Quixote
2.2.1 Rinconete y Cortadillo e Ginés de Pasamonte
ão é em 1613, com a publicação das Novelas Ejemplares, que
o público se depara pela primeira vez com um pícaro na obra
cervantina.
11
No capítulo XXII, o próprio Dom Quixote havia
cruzado com alguns pícaros condenados às galeras. O cavaleiro, em suas
andanças com Sancho, depara-se com um grupo de prisioneiros que ia
escoltado para executar trabalhos forçados. Trata-se do famoso episódio dos
galeotes
12
. Dom Quixote, indignado por ver pessoas caminharem acorrentadas,
quer conhecer um pouco mais da vida desses desafortunados e resolve
interrogá-los para saber o motivo de sua desgraça e que crimes cometeram
para merecer tal castigo. Entre os prisioneiros, um que é considerado o
mais perigoso: Ginés de Pasamonte. Este galeote tem todas as atenções
voltadas para si quando anuncia, com certo orgulho, que está escrevendo sua
autobiografia, como já o fizeram outros conhecidos pícaros, aludindo ao gênero
picaresco: Es tan Bueno que mal o para Lazarillo de Tormes y para todos
cuantos de aquel género se han escrito o escribieren.”
13
O que se pode deduzir da fala de Ginés de Pasamonte (no que se refere
à palavra “gênero”) é a existência de um grupo de textos com características
semelhantes e o exatamente uma referência aos gêneros literários.
sabemos que, nessa época, não existia a noção que temos hoje de “picaresca”.
11
Tendo em conta que o Manuscrito de Porras é anterior à publicação do Quixote de 1605.
12
Galeotes são prisioneiros que se dirigem às galeras para trabalhos forçados.
13
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición revisada, introducción y
notas de Martín de Riquer. Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.224.
N
57
A denominação “novela picaresca”, ou “gênero picaresco”, passa a ser utilizada
bem mais tarde, no século XVIII
14
, quando a forma narrativa será conceituada.
O episódio dos “galeotes” e “Rinconete y Cortadillo” são considerados os
textos cervantinos mais próximos do gênero picaresco e, curiosamente, há
muitas relações entre eles, demonstrando que têm muito mais em comum do
que somente a temática da picaresca. Uma questão fundamental desses textos
é a do narrador. Enquanto as narrativas picarescas da época possuem uma
estrutura mais ou menos fixa, em que um narrador em primeira pessoa conta
sua história e, ao final de sua vida, realiza uma espécie de balanço de sua
trajetória, nos textos cervantinos encontramos muitas discrepâncias. Dom
Quixote, ao saber que Ginés de Pasamonte está escrevendo sua autobiografia,
imediatamente pergunta se a obra está acabada. O galeote, demonstrando
muita surpresa, responde: “– ¿Cómo puede estar acabado, si aún no está
acabada mi vida?”. Ginés aponta a impossibilidade de contar sua própria vida e
terminar o relato antes de sua morte. O que parece estar em jogo nesse
fragmento do Quixote não é tanto o caráter aristotélico da verdade histórica na
representação da realidade, e, sim, a questão da verossimilhança e a
problemática da existência de um autor que é ao mesmo tempo personagem
do que escreve e, portanto, deve existir em dois planos, tanto no físico quando
no ficcional, fazendo parte da história.
Riley
15
, em uma abordagem que segue uma linha distinta, levanta uma
questão curiosa: chama atenção para a validade do pensamento e da intuição
de Cervantes que se antecipa, de alguma forma, aos pensadores do século
XX. O autor cita Walter Benjamin, por exemplo, quando trata da ficção narrativa
e, em específico, da natureza do conto. Benjamin
16
afirma que a vida de um
homem alcança, pela primeira vez, o momento ideal de transmissão no instante
de sua morte, de modo que o significado da vida de um personagem se
expressa totalmente neste momento, pois, enquanto a vida continua, sempre
14
Cf. RICO, Francisco. La Novela Picaresca y el Punto de Vista. Barcelona: Seix Barral, 1982. p.106.
15
RILEY, E. La Rara Invención. Trad. Mari Carmen Llerena. Barcelona: Ed. Crítica, 2001.
16
BENJAMIN, W. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _____. Magia e
técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
p.197-221.
58
a possibilidade de mudanças. O personagem de Cervantes parece perceber
o mesmo problema, só que há quatro séculos.
Quando trata da autobiografia em sua Estética da Criação Verbal,
Bakhtin também problematiza a questão da coincidência entre personagem e
autor e esclarece que, no Renascimento, não existia uma diferença precisa
entre biografia e autobiografia, pois, quando se trata de narrar a própria vida, a
relação consigo mesmo (eu-para-si) não é elemento organizador constitutivo da
forma:
17
Vamos examinar a forma biografia apenas naqueles sentidos em que
ela pode servir para a auto-objetivação, isto é, ser autobiografia, ou
seja, do ponto de vista de uma eventual coincidência entre a
personagem e o autor nela, ou melhor o autor é elemento do todo
artístico e como tal não pode coincidir dentro desse todo com a
personagem, outro elemento seu. A coincidência pessoal ‘na vida’ da
pessoa de quem se fala com a pessoa que fala não elimina a diferença
entre esses elementos no interior do todo artístico.
18
Com relação a essa consciência autobiográfica, segundo Bakhtin,
poderíamos acomodar as autobiografias picarescas no que o autor nomeia
como “de tipo aventuresco ou heróico”, cujo relato se baseia na vontade do
protagonista em ser alguém, em adquirir importância no mundo. Bakhtin estuda
com minúcia os vários tipos de narração autobiográfica e seus diversos
matizes. Não se trata de algo simples e, assim como o personagem cervantino
apontava, muito que se discutir sobre a coexistência do autor nos dois
planos (na vida “real” e na história que está sendo contada).
Mais adiante, na mesma obra, na tipologia histórica do romance
proposta por Bakhtin, o relato picaresco é classificado como “romance de
viagem”, o qual está caracterizado pela existência de um protagonista (herói)
que deambula em torno de diferentes espaços, personagens e situações.
17
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
p.139.
18
Idem, ibidem.
59
Em geral, o pícaro tradicional narra sua trajetória no momento de
maturidade, com uma postura resignada segundo a qual nada mais pode ser
mudado, ao passo que os personagens cervantinos se afastam disso. Tanto
Rinconete e Cortadillo quanto Ginés de Pasamonte se encontram em pleno
auge da vida e têm, ao que parece, muita aventura pela frente. No caso de
Ginés, ele reaparecerá mais três vezes no Quixote, fantasiado de cigano ou
disfarçado na pele do titiritero
19
Maese Pedro. Rincón e Cortado estão em
plena adolescência, desfrutando do livre arbítrio em relação aos seus
caminhos.
Outros fatores que se relacionam com a matéria narrativa levam este
trabalho a aproximar o episódio dos galeotes e “Rinconete y Cortadillo”. A
linguagem e a coexistência de certos personagens apontam para uma espécie
de irmandade entre episódio e novela.
A linguagem utilizada pelos galeotes para falar com Dom Quixote é uma
linguagem muito particular, de uso entre esses criminosos. A chamada lengua
de germanía confunde e deixa Dom Quixote sem entender muito bem o que se
passa.
– ¿Qué son gurapas? Preguntó don Quijote.
– Gurapas son galeras – respondió el galeote
[...]
– Este señor va por canario, digo, por músico y cantor.
Pues ¿cómo? repitió don Quijote ¿Por músicos y
cantantes van también a las galeras?
Sí, señor respondió el galeote que no hay peor cosa que
cantar en el ansia.
Antes he yo oído decir dijo don Quijote que quien canta,
sus males espanta.
Acá es al revés dijo el galeote –; que quien canta una vez,
llora toda su vida.
– No lo entiendo – dio don Quijote.
Mas una de las guardas dijo:
19
Operador de títeres.
60
Señor caballero, cantar en el ansia se dice entre esta gente
non santa confesar en el tormento.
20
Esta linguagem de germanía, que parece muito estranha a Dom Quixote,
diz respeito a uma espécie de código usado entre delinqüentes
“qualificados”. No caso de Rincón e Cortado, eles ainda são iniciantes na vida
pícara e, deste modo, também não compreendem a linguagem utilizada pelos
pícaros do pátio de Monipodio:
¡Y cómo es calificado, hábil y suficiente! respondió el mozo
Eslo tanto que en cuatro años que ha que tiene el cargo de ser nuestro
mayor y padre, no han padecido sino cuatro en el finibusterrae, y obra
de treinta envesados y de setenta y dos en gurapas.
En verdad, señor dijo Rincón, que así entendemos esos
nombres como volar.
Comencemos a andar y yo os iré declamando por el camino
respondió el mozo con otros algunos que así les conviene saberlos
como el pan de la boca.
Y así, les fue diciendo y declarando otros nombres de los que
ellos llaman germanescos o de la germanía, en el discurso de su
plática, que no fue corta, porque el camino era largo.
21
O vocábulo germanía provém da voz germano, que quer dizer hermano,
e inicialmente foi utilizado na região de Valência para designar alguns grupos
sociais marginalizados. As dúvidas que apresentam Rincón e Cortado são
praticamente as mesmas que apresenta Dom Quixote em relação à linguagem
empregada pelos delinqüentes. Além disso, mais adiante, os fragmentos que
tratam de explicar o que é cantar en el ansia (confessar um delito sob tortura)
são muito semelhantes nos dois textos, pois, tanto no episódio de “Dom
20
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.219-220.
21
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.178-179.
61
Quixote” quanto em “Rinconete y Cortadillo”, se menciona: que tantas letras
tiene un sí como un no”
22,
na hora de se confessar ou não um delito.
Esse tipo de linguagem estava bastante difundido social e literariamente.
em Guzmán de Alfarache o uso da língua de germanía na linguagem
empregada entre os pícaros, bem como em algumas comédias. Quiñones de
Benavente, em sua Jácara de doña Isabel la ladrona, que azotaron y cortaron
las orejas en Madrid, parece querer iniciar o leitor no vocabulário germanesco:
Cisne llama al que confiesa,
que para morirse canta;
al potro, confesionario,
donde sus culpas relata;
postillón, al pregonero;
papel blanco, a las espaldas;
al verdugo, sello real;
a la penca, lacre llama;
terror, a los alguaciles […].
23
Chaves em Relación de la cárcel de Sevilla comenta a linguagem usada
entre os pícaros:
No hay cosa creada en este mundo, a que no tengan puesto los
germanos otro nombre diferente; que es entre ellos afrenta nombrar las
cosas por su propio nombre.
24
Outra aproximação importante entre as duas narrativas é também a
presença de um personagem praticamente comum. Trata-se de um pícaro que
roubara uma cesta de roupa engomada. É como se os delinqüentes do pátio de
Monipodio estivessem de repente naquele rol de criminosos que ia rumo às
22
Idem p. 189. e CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de
Riquer. Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.220.
23
DELEITO Y PIÑUELA. La mala vida en España de Felipe IV. Madrid: Alianza, 1998. p.115.
24
Idem, p.113.
62
galeras e que encontra Dom Quixote. O pícaro que confessa a Dom Quixote o
roubo da cesta de roupa poderia ser o mesmo que deixa esta mesma cesta na
casa de Pipota, personagem de “Rinconete y Cortadillo”:
[…] a lo que he venido dice Pipota es que anoche el Renegado y el
Centiopés, llevaron a mi casa una canasta de colar algo mayor que la
presente, llena de ropa blanca, y en Dios y en mi ánima que venía con
su cernada y todo.
25
Por um lado, a menção de “Rinconete y Cortadillo” no capítulo 47 suscita
a possibilidade de ter sido incluída em “Dom Quixote” com um estatuto muito
semelhante ao do “Curioso Impertinente”. Por outro, o episódio dos galeotes
compartilha muitos detalhes e ressonâncias literárias com “Rinconete y
Cortadillo”, o que indica, segundo García López (1999), que sua inclusão
poderia ter sido ensaiada por Cervantes justamente neste episódio. Mas como
ser ao mesmo tempo uma “novela” e um episódio?
Eso es lo que nos viene a decir Cervantes: que no ha incluido el
Rinconete literalmente porque no ha querido. Una sospecha que vale
por una certeza si podemos hallarle ubicación. Y esa no podía ser otra
que la cadena de galeotes. Es el único lugar del Quijote donde
podríamos esperar encontrarlo.
26
Ginés, tal qual Guzmán de Alfarache, também pretendia escrever sua
autobiografia na prisão. Provavelmente não o fará, antes se libertado por
Dom Quixote. Ao libertar Ginés de Pasamonte, Dom Quixote de certo modo o
libera de sua intenção. Segundo Riley, a não finalização e a total inexistência
de qualquer fragmento da obra de Ginés de Pasamonte automaticamente o
liberam do risco de escrever uma novela picaresca ou uma paródia dela. O
reencontro com Ginés, disfarçado agora de Maese Pedro, na segunda parte do
25
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid:
Editorial Crítica, 2001. p.193.
26
GARCÍA LÓPEZ, Jorge. Rinconete y Cortadillo y la novela picaresca. Cervantes, Bulletin of the
Cervantes Society of América, 1999. Disponível em: www.h-net.org/~cervantes/csa/articf99/garcia.htm.
63
Quixote, nos confirma que o personagem ganhara novas características e
descobrira no teatro uma nova forma de ganhar a vida, deixando de lado sua
autobiografia.
Observar a proximidade existente entre “episódio” e “novela”, bem como
o modo como Cervantes entra no submundo dos personagens pícaros nos dois
textos, coloca em evidência os engenhosos desvios que o autor realiza em
relação à picaresca tradicional. “Rinconete y Cortadillo” e o episódio dos
galeotes são os textos de Cervantes que se aproximam de modo mais direto do
gênero picaresco e, mesmo assim, guardam uma espécie de distanciamento
estratégico em relação à poética desse gênero, o qual acabava de nascer e
magnetizou leitores e escritores da época, criando uma verdadeira tradição
narrativa.
2.2.2 Dom Quixote: outras aproximações ao relato picaresco
De pícaros e cavaleiros
xiste uma velha hipótese segundo a qual a picaresca haveria
surgido como uma paródia dos livros de cavalaria
27
. Os relatos
de pícaros surgidos em meados do século XVI seriam, tal como
foi o Quixote, uma reação à enorme popularidade dos livros de aventuras de
cavaleiros. De fato, algumas características presentes em Lazarillo de
Tormes que podem ser lidas como paródicas, principalmente se pensamos
num cavaleiro como Amadis de Gaula, por exemplo, na questão do berço
um é filho de pais nobres e honrados, o outro tem origem miserável e pais sem
honra; um chama-se Lázaro de Tormes (pois nasce à beira do rio Tormes), o
outro, Doncel del Mar; ambos estão predestinados, mas em sentidos
completamente opostos.
27
REY HAZAS, A. La novela picaresca. Madrid: Anaya, 1990. p.49.
E
64
Mesmo que existam algumas características que possam ser apontadas
como paródicas, não é possível afirmar que o relato picaresco surja com o
intuito principal de parodiar os livros de cavalaria
28
, tal como explicitou
Cervantes no prólogo do Quixote. Intenções muito diferentes moviam o autor
de Lazarillo e Cervantes, mas algo muito importante também os unia: o
contexto literário. Em uma época de importantes e irreversíveis
transformações, a prosa espanhola passava por momentos decisivos e os
livros de cavalaria estavam, de maneiras diferentes, no horizonte dos escritores
da época, que deveriam escolher o seu grau de aproximação ou
distanciamento.
Não é objetivo deste trabalho analisar com profundidade a questão das
relações existentes entre o Quixote e a literatura picaresca, entretanto é
importante levar em conta alguns aspectos relevantes, tais como a relação que
Cervantes estabelecia com o gênero picaresco e as coincidências existentes
entre os personagens do episódio dos galeotes” (Quixote I, cap. 22) e os da
novela em estudo. Muito provavelmente "Rinconete y Cortadillo" não foi
incluída no Quixote por alguma razão que poderia estar relacionada com
essas questões e, ao levantar algumas questões sobre sua não inclusão,
inevitavelmente o trabalho percorrerá esse terreno.
García Lopez aventa algumas hipóteses com relação à
presença/ausência da novela na obra maestra de Cervantes. O crítico como
principal motivo para a não inclusão de "Rinconete y Cortadillo" no Quixote a
proximidade existente entre a novela e o episódio dos galeotes”. Se a novela
tivesse um lugar no Quixote, seria mais aceitável pensar que esse lugar estaria
no episódio dos galeotes. As várias “coincidências” literárias entre o episódio e
novela contribuiriam em parte para a não inclusão, assim como seria difícil
delimitar os estatutos da narrativa, que não poderia ser ao mesmo tempo
episódio e novela.
Dentro da gama de personagens que povoa o Quixote, sabe-se também
que os galeotes” não são os únicos exemplares que podem ser vinculados à
28
En cambio, si es admisible que la picaresca fuera, en parte, una reacción literaria contra la épica, en
general, y contra los libros de caballería, en particular, porque si es cierto que no existe intención
paródica, no lo es menos que hay un evidente deseo de oponer el mundo de la carencia de ideales, el
deshonor y la cobardía, al mundo épico caballeresco del amor sublimado, el honor y el valor”. (Idem,
p.49).
65
picaresca. Riley chama atenção também para a conversa que ocorre entre o
ventero e Dom Quixote no capítulo 3 da primeira parte. O crítico sugere que
tanto o episódio dos galeotes” quanto o da conversa com o ventero são mais
que mera paródia da picaresca, constituindo, a seu ver, dos casos de
confrontación genérica que probablemente tiene importância histórica.”
29
A conversa do ventero com Dom Quixote é interessante sobretudo pelo
recurso que faz com que pícaros e cavaleiros estejam por alguns instantes
equiparados:
[…] y así, le dijo que andaba muy acertado en lo que deseaba y pedía, y
que tal prosupuesto era propio y natural de los caballeros tan principales
como él parecía y como su gallarda presencia mostraba; y que él,
ansimesmo, en los años de su mocedad, se había dado a aquel
honroso ejercicio, andando por diversas partes del mundo buscando sus
aventuras, sin que hubiese dejado los Percheles de Málaga, Islas de
Riarán, Compás de Sevilla, Azoguejo de Segovia, la Olivera de
Valencia, Rondilla de Granada, Playa de Sanlúcar, Potro de Córdoba y
las Ventillas de Toledo y otras diversas partes, donde había ejercitado la
ligereza de sus pies, sutileza de sus manos, haciendo muchos tuertos,
recuestando muchas viudas, deshaciendo algunas doncellas y
engañando a algunos pupilos, y, finalmente, dándose a conocer por
cuantas audiencias y tribunales hay casi en toda España; y que, a lo
último, se había venido a recoger a aquel su castillo, donde vivía con su
hacienda y con las ajenas, recogiendo en él a todos los caballeros
andantes, de cualquiera calidad y condición que fuesen, sólo por la
mucha afición que les tenía y porque partiesen con él de sus haberes,
en pago de su buen deseo.
30
O ventero, ao deparar-se com tão estranha figura como Dom Quixote,
resolve entreter-se com a loucura do cavaleiro, dizendo que também ele fora
um homem de muitas aventuras e que havia estado naquele honroso ejercicio.
Em seguida, vem a enumeração dos lugares, que foi apontada pela crítica
29
RILEY, E. La rara invención. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. p.203.
30
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.50.
66
como mapa picaresco de Espanha”
31
. O fragmento também parodia a
linguagem tanto dos livros cavalaria quanto do próprio Quixote (“haciendo
muchos tuertos, recuestando a muchas viudas, deshaciendo a algunas
doncellas, engañando a algunos pupilos”
32
). Riley também destaca alguns
fatos: nenhum dos personagens é, em verdade, um representante ideal do
gênero com o qual os associamos, Dom Quixote não é um cavaleiro andante
genuíno e o ventero é um pícaro aposentado.
Juan Diego Vila, em seu artigo “Lo que el cura ha dejado de leer:
Rinconete y Cortadillo, cifra borrada del Quijote”, trata especificamente dos
numerosos pontos de contato entre "Rinconete y Cortadillo" e o Quixote como
um todo, e não somente entre os episódios mais claramente com traços
picarescos. Discute em especial o fato de que ambas as fábulas se constroem
ao redor da existência de una pareja protagónica que o possui
necessariamente trajetórias paralelas como no estilo los dos amigos (Anselmo
e Lotario / Don Fernando e Cardenio) e, sim, sua relação está mais para
complementar: Dom Quixote e Sancho, Rincón e Cortado se completam,
necessitam imperiosamente um do outro”.
33
Ao mesmo tempo, a presença
de uma hierarquia simbólica entre os personagens que Vila classifica como
redutível ao eixo paterno-filial” (amo escudero / pícaro mais velho pícaro
mais jovem).
A temática do abandono do lar também aparece em ambas as
trajetórias, assim como o rompimento com os vínculos sociais, pois o desejo de
liberdade e o anseio por uma vida promissora “fora do lar” de alguma maneira
fazem com que renunciem até mesmo ao seu próprio nome. Vila adverte que
três dos quatro personagens mudam de nome ao abraçar sua nova vida:
Alonso Quijano passa a ser Dom Quixote e a dupla Pedro del Rincón e Diego
Cortado passam a ser Rinconete y Cortadillo. Do mesmo modo tanto Alonso
Quijano quanto Pedro e Diego querem metamorfosear-se em algo para o qual
não possuem necessariamente os pré-requisitos exigidos. Alonso Quijano não
31
Idem, p.50, nota 3.
32
Idem p. 50.
33
VILA, J. D. Lo que el cura ha dejado de leer: Rinconete y Cortadillo cifra borrada del Quijote. In:
PARA LEER a Cervantes: estudios de literatura española Siglo de Oro. v.1. Coord. Melchora Romanos.
Ed. Alicia Parodi e Juan Diego Vila. Buenos Aires: Eudeba; Instituto de Filología y Literaturas
Hispánicas "Dr.Amado Alonso", Universidad de Buenos Aires, 1999. p.174.
67
pode simplesmente apoderar-se do título de cavaleiro porque assim o deseja e
a dupla de meninos parece ter se lançado na vida picaresca mais por gosto
que por necessidade, já que abandona sua família sem muitos motivos e
escolhe para si a vida errante. As metamorfoses de Dom Quixote e Rinconete y
Cortadillo não se legitimam pelos seus passados.
34
De todas as aproximações expostas, para este estudo interessa
principalmente destacar o fato de que as duas duplas de personagens almejam
um destino alternativo ao que lhe foi socialmente determinado, o que faz com
que inevitavelmente perambulem por espaços destinados à gente passageira
como as ventas e com que cruzem com personagens igualmente instáveis,
tornando os cenários das aventuras de Dom Quixote e de Rinconete y
Cortadillo muito próximos. Sua passagem por esses lugares freqüentados por
gente duvidosa, o encontro “casual” com personagens picarescos o de certa
forma inevitáveis à medida que suas trajetórias avançam. As vidas errantes de
Dom Quixote Sancho e Rinconete — Cortadillo não poderiam caminhar
impunemente paralelas e, caso a novela fosse incluída no Quixote, haveria o
perigo iminente de uma ofuscar a singularidade da outra. Tais trajetórias
estariam mais para um encontro de passagem numa dessas ventas; no
entanto, para que isso ocorresse, "Rinconete y Cortadillo" não poderia ser uma
novela intercalada, enovamente o dilema proposto por García-López: como
ser novela e episódio ao mesmo tempo? Por acaso é possível imaginar o
encontro dos quatro personagens num cenário comum, todos inseridos em
algum episódio, contudo há dificuldade em pensar na novela "Rinconete y
Cortadillo" sendo lida pelo cura e, ao final, os personagens que haviam
acompanhado a tal leitura tentando interpretar aquela moraleja que fecha a
novela:
34
O leitor que queira aprofundar-se no tema da picaresca em Dom Quixote pode também consultar o
artigo de J.D. Vila “Aunque claramente sepa que soy hijo de un azacán”: Sueños, verdades calladas y
linaje en el delírio caballeresco de Don Quijote”. Nesse estudo, o autor trata, entre outros temas, do
episodio em que Dom Quixote se declara filho de um “aguador”, profissão típica de pícaros, como de
Lazarillo em um determinado momento. (VILA, Juan Diego. Lo que el cura ha dejado de leer: Rinconete
y Cortadillo cifra borrada del Quijote. In: PARA LEER a Cervantes: estudios de literatura española Siglo
de Oro. v.1. Coord. Melchora Romanos. Ed. Alicia Parodi e Juan Diego Vila. Buenos Aires: Eudeba;
Instituto de Filología y Literaturas Hispánicas "Dr.Amado Alonso", Universidad de Buenos Aires, 1999.
68
[…] y así, se deja para otra ocasión contar su vida y milagros,
con los de su maestro Monipodio, y otros sucesos de aquéllos de
la infame academia, que todos serán de grande consideración y
que podrán servir de ejemplo y aviso a los que las leyeren.
35
É importante, nesse momento, pensar que a leitura da história de
Anselmo, Camila e Lotario em alguma medida trouxe reflexões aos
personagens que a acompanharam por seu caráter exemplificador. Não
podemos ignorar o fato de que os perigos de uma leitura de conteúdo nocivo
eram tema de manuais de educação, principalmente porque estamos dentro do
contexto da história de Dom Quixote, cujo juízo se perdera entre as páginas
dos livros de cavalaria. Dessa forma, as aventuras de Rinconete e Cortadillo
talvez trouxessem os ecos das aventuras do Cavaleiro da Triste Figura, além
da apresentação do tema infame e de exemplaridade questionável da
picaresca.
2.3 "Rinconete y Cortadillo": Novela de pícaros
“¡Oh pícaros de cocina, sucios, gordos y lucios, pobres
fingidos, falsos, cicateruelos de Zocodover y de la plaza
de Madrid, vistosos oracioneros, esportilleros de Sevilla,
mandilejos de la hampa, con toda la caterva
innumerable que se encierra debajo deste nombre
pícaro!”
“La ilustre fregona.” Novelas ejemplares.
ela presença peculiar de elementos da picaresca tanto em
"Rinconete y Cortadillo" quanto em outras obras cervantinas
como o Quixote (episódio dos galeotes, entre outros) e no
teatro (a peça “Pedro de Urdemalas”), é possível afirmar que literatura
picaresca inquietava de algum modo Cervantes. Como é uma característica de
sua literatura o diálogo com outras formas literárias, as referências a aspectos
35
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. Jorge García López, Barcelona: Crítica,
2001. p.215.
P
69
dos relatos picarescos não demoram a surgir em suas obras. A primeira
referência à picaresca está no texto de "Rinconete y Cortadillo", em sua
primeira versão no manuscrito de Porras de la mara. O manuscrito é datado
como contemporâneo à publicação da primeira parte de Guzmán de Alfarache,
ou seja, no auge da consolidação da picaresca como módulo literário. A
menção de "Rinconete y Cortadillo" na primeira parte do Quixote é no mínimo
curiosa e, como se discutiu anteriormente, levanta algumas hipóteses, entre
elas a de que existiu a possibilidade de se incluir a narrativa entre as aventuras
do cavaleiro. Entretanto Dom Quixote não se encontra com Rinconete e
Cortadillo, tampouco com qualquer pícaro que se assemelhe a eles. O encontro
com os galeotes está mais focado no alarde que causa a autobiografia de
Gines de Pasamonte, e os pícaros acorrentados estão em uma situação de
privação, não fazendo parte, naquele momento, da vida picaresca
propriamente dita, que estão afastados de suas “aventuras”. O auge da vida
pícara do ventero é uma recordação divertida de tempos errantes. As duas
principais referências à picaresca que aparecem no Quixote não colocam seu
protagonista em contato direto com tal tipo de vida que, como se pôde perceber
no diálogo com o ventero, de alguma maneira se aproxima da vida também
errante de um cavaleiro. Cervantes teve este cuidado, tanto que Dom Quixote,
prudente, também não deseja visitar Sevilha, cidade de Rinconete e Cortadillo
e da infame academia de Monipodio. No final do episódio de Grisóstomo e
Marcela, Vivaldo e seus amigos querem que Dom Quixote:
[...] se viniese con ellos a Sevilla, por ser lugar tan acomodado a hallar
aventuras, que en cada calle y tras cada esquina se ofrecen más que en
otro alguno. Don Quijote les agradeció el aviso y el ánimo que
mostraban de hacerle merced, y dijo que por entonces no quería ni
debía ir a Sevilla, hasta que hubiese despejado todas aquellas sierras
de ladrones malandrines, de quien era fama que todas estaban llenas.
36
Dom Quixote recusa o convite para ir a Sevilha, uma terra, como dizem,
repleta de aventuras, as quais o cavaleiro prefere evitar. Como se sabe, a
36
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.145.
70
cidade de Sevilha, nessa época, era conhecida pela criminalidade, tanto que a
maioria dos pícaros literários cedo ou tarde passava por ali. É curioso que tanto
Vivaldo quanto o ventero tentam convencer Dom Quixote de que também a
vida picaresca é repleta de aventuras, tal como a vida de cavaleiro andante. Na
conversa com o ventero, Dom Quixote parece não conseguir interpretar a
comparação feita entre os dois tipos de “vida errante” e, no caso de Vivaldo, o
cavaleiro deixa muito claro que não pretende ir à Sevilha, pois não está
buscando o tipo de aventura na qual teria que se deparar com ladrones
malandrines. Ir à Sevilla seria inevitavelmente encontrar-se com Rinconetes,
Monipodios, Chiquiznaques, pícaros em pleno auge de suas trajetórias. Ao
evitar a viagem a Sevilla, Dom Quixote evita cruzar sua trajetória de cavaleiro
com a de um pícaro típico e, neste ponto, é possível ensaiar uma resposta à
pergunta proposta inicialmente: Por que Cervantes não inclui as aventuras de
Rincón e Cortado no Quixote? "Rinconete y Cortadillo" não poderia ser incluída
no Quixote como novela intercalada principalmente pela coincidência existente
entre a vida errante das duplas protagônicas de ambas narrativas, o que
poderia ofuscar a vivacidade e a singularidade de uma ou de outra trajetória.
Também não poderia ser incluída como episódio, que Cervantes deixa claro,
por meio da atitude do próprio Dom Quixote, o seu cuidado em não misturar
indistintamente pícaros e cavaleiros. Cervantes demonstra ao leitor atento que
está consciente das possíveis aproximações e distanciamentos entre os dois
tipos personagens e, que leve-se sempre em conta tanto Dom Quixote
quanto os pícaros em geral têm em seu horizonte as narrativas fantásticas dos
livros de cavalaria. Ao mesmo tempo o autor sugere com grande força,
segundo Riley, um confronto entre dois tipos de prosa: a picaresca e a prosa
de Dom Quixote.
37
De qualquer forma, Rinconete, Cortadillo e Dom Quixote são
personagens que mudaram de vida, optando por vivenciar aventuras, e, como
se discutirá mais adiante, no caso de "Rinconete y Cortadillo", também houve
uma opção de vida, que eles não foram simplesmente predestinados a ser
pícaros, como ocorre na picaresca tradicional. É curioso como Cervantes se
vale de um recurso literário o qual permite que um personagem comum, por
37
RILEY, E. C. La rara invención. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. p.213.
71
opção “própria”, mude sua categoria literária, passando de fidalgo a cavaleiro,
de adolescente comum a pícaro de quadrilha, e trazendo conseqüentemente
consigo todo um universo literário. Dom Quixote ao se tornar um cavaleiro
andante ressuscita, mesmo que de maneira improvisada, parte do universo dos
cavaleiros andantes, o que faz com que os personagens e espaços ao seu
redor algumas vezes se adaptem a esse universo. Recurso semelhante é
adotado em “La ilustre fregona” quando os personagens decidem abrir mão de
seu status social para se tornarem caros e, como se verá, o mesmo ocorre
em "Rinconete y Cortadillo". Tal como não quis escrever um livro de cavalarias,
Cervantes tampouco tencionou escrever uma novela picaresca, de modo que
transfere de alguma maneira aos seus personagens a “responsabilidade” de se
tornarem pícaros, abandonando seu lar original.
Se Dom Quixote não quer ver suas aventuras cavalheirescas misturadas
às aventuras dos pícaros sevilhanos, Carriazo, personagem de “La ilustre
fregona”, e Rinconete e Cortadillo têm como destino a cidade de Sevilha,
considerada na época a cidade picaresca por excelência.
Carriazo, jovem de origem nobre, decide de repente mudar de vida,
entregando-se à vida picaresca:
Trece años, o poco más, tendría Carriazo cuando, llevado de una
inclinación picaresca, sin forzarle a ello algún mal tratamiento que sus
padres le hiciesen, sólo por su gusto y antojo, se desgarró, como dicen
los muchachos, de casa de sus padres, y se fue por ese mundo
adelante, tan contento de la vida libre, que, en la mitad de las
incomodidades y miserias que trae consigo, no echaba menos la
abundancia de la casa de su padre, ni el andar a pie le cansaba, ni el
frío le ofendía, ni el calor le enfadaba. Para él todos los tiempos del año
le eran dulce y templada primavera; tan bien dormía en parvas como en
colchones; con tanto gusto se soterraba en un pajar de un mesón, como
si se acostara entre dos sábanas de holanda. Finalmente, él saltan
bien con el asunto de pícaro, que pudiera leer cátedra en la facultad al
famoso de Alfarache.
38
38
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. Jorge García López, Barcelona: Crítica,
2001. p.372-373.
72
Tal como o mencionado Alfarache, o pícaro tradicional é um
personagem que tem o seu destino predeterminado e o contato com a vida
picaresca começa cedo e de maneira áspera e involuntária. Não escolha
para o pícaro e ele deve enfrentar diariamente as cruéis dificuldades de uma
vida errante que não o poupa de momentos de fome, sofrimento e solidão. No
caso de Carriazo, assim como no de Dom Quixote, há uma escolha, isto é,
Carriazo decide apoderar-se de um estatuto: o de pícaro. O jovem tem origem
nobre, é culto e discreto, mesmo assim se adapta facilmente à vida de pícaro
que, apesar de trazer consigo muitas misérias, trazia também algo que
Carriazo buscava: a liberdade. Contento de la vida libre”, Carriazo vai
freqüentar os espaços dos pícaros e, mais uma vez, Cervantes parece brindar
o leitor com um mapa picaresco de Espanha”
39
, tal como no capítulo 3 do
Quixote.
Como a escrita de “La ilustre fregona” é considerada posterior à de
"Rinconete y Cortadillo"
40
, não seria desacertado pensar que o que Cervantes
realiza no personagem de Carriazo havia sido ensaiado em alguma medida
com Rinconete e Cortadillo, personagens que, de algum modo, viam na
picaresca não uma condição degradante à qual estavam destinados como
estavam Lazarillo ou Guzmán, mas uma opção de vida, que se, por um lado, os
condenava à miséria, por outro lado, lhes aportava uma importante vantagem:
a liberdade. Nesse ponto, então, é possível iniciar o entendimento de uma
das primeiras razões pelas quais "Rinconete y Cortadillo" mantém uma relação
de aproximação e também de distanciamento com o gênero picaresco. A
aproximação dá-se sobretudo através dos personagens que, desde as
primeiras linhas, se revelam pícaros sem rodeios, e o distanciamento ocorre
principalmente pelo tipo de narrativa que parece querer manter uma cuidadosa
39
¡Oh pícaros de cocina, sucios, gordos y lucios; pobres fingidos, tullidos falsos, cicateruelos de
Zocodover y de la plaza de Madrid, vistosos oracioneros, esportilleros de Sevilla, mandilejos de la
hampa, con toda la caterva inumerable que se encierra debajo deste nombre pícaro!, bajad el toldo,
amainad el brío, no os llaméis pícaros si no habéis cursado dos cursos en la academia de la pesca de los
atunes. ¡Allí, allí, que está en su centro el trabajo junto con la poltronería! (CERVANTES
SAAVEDRA, M. de. La ilustre fregona. In: _____. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López.
Madrid: Editorial Crítica, 2001. p.375.).
40
Cf. CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. Jorge García López. Barcelona:
Crítica, 2001. p. LIX.
73
distância da, por assim dizer, “poética do gênero picaresco”. A narração em
terceira pessoa de "Rinconete y Cortadillo" é um indício desse distanciamento,
que os relatos picarescos dessa época eram escritos em primeira pessoa,
em forma de autobiografia, recurso que proporciona uma visão unilateral da
vida do pícaro. A narração em terceira pessoa propicia ao mesmo tempo uma
visão mais dinâmica da matéria narrada e também contribui para a ausência de
julgamentos e reflexões por parte dos pícaros com relação às suas próprias
vidas. Nem a dupla de meninos nem o narrador demonstram um
aprofundamento em qualquer tipo de reflexão moral ou didática, nem mesmo o
relato passa pelo filtro de um letrado que conta sua vida de maneira resignada,
como ocorre na picaresca tradicional, sobretudo em Guzmán de Alfarache.
Cervantes afasta-se do tipo de prosa característico do relato picaresco, e
a crítica, desde cedo, esteve atenta para o fato de que Cervantes nunca
escreveu uma narrativa nesses moldes. Lázaro Carreter pontua de forma clara
esse afastamento:
[...] está en el ámbito del género mientras cuenta con su poética,
mientras la aprovecha para su propia creación.. Sólo no lo es cuando
sale de su poética o cuando desdeña visiblemente de su materia o de
su forma. [...] Cervantes trató de pícaros, pero no escribió picaresca
porque se opuso a su poética punto por punto [...]
41
.
Ménendez Pelayo em 1905 trata com cautela a questão, afirmando
que Cervantes não imita a picaresca em nenhum momento e que há um
abismo entre sua escrita e a de Mateo Alemán. Américo Castro
42
, após refutar
a postura de autores, como Rodriguez Marin, que defendiam o rótulo
“picaresco” para "Rinconete y Cortadillo" e contrapor-se a outros que
defendiam a idéia de que Cervantes era um “seguidor de modas”, conclui que
roçar a picaresca ou apresentar motivos picarescos não tem a ver em absoluto
com escrever uma “novela picaresca” dentro de todos os moldes e pré-
41
LÁZARO CARRETER, F. “Lazarillo de Tormes” en la picaresca. 2.ed. Barcelona: Ariel, 1983.
p.227.
42
CASTRO, A. El Pensamiento de Cervantes. Nueva edición ampliada. Barcelona: Noguer, 1972.
74
requisitos que ela exige. Segundo Castro, era típico de Cervantes não se
vincular dogmaticamente a nenhuma moda ou posição pré-estabelecida.
43
Casalduero, no conhecido trabalho Sentido y forma de las “Novelas
Ejemplares”, também trata com cautela da presença do mundo picaresco no
relato cervantino, chamando atenção, sobretudo, para a postura dos
protagonistas que são mais agentes do que pacientes nas ações, o que, a seu
ver, se opõe à postura usual do personagem pícaro.
Maurice Molho
44
aponta como principal discrepância entre "Rinconete y
Cortadillo" e as novelas picarescas em voga na época o fato de que, na novela
cervantina, não acontece nada, ou seja, o um processo, não
aprendizagem. São apenas dois pícaros que se encontram e, juntamente com
os outros personagens, se esfumam na narrativa em acontecimentos
desprovidos de significado. Molho aponta o arbitrário como a antítese do
picaresco, pois no picaresco não efeito sem causa, nada é arbitrário. O
pícaro possui uma falsa liberdade.
Desde o início houve uma justificada tendência em tratar da
aproximação da novela à narrativa picaresca
45
. O fato é que, curiosamente,
Cervantes é (talvez incidentalmente) o primeiro crítico do gênero, quando, no
episódio dos galeotes” do Quixote I, refere-se ao “gênero picaresco” de
maneira crítica, como vimos anteriormente. Cervantes é um dos primeiros
leitores, de que se tem conhecimento, a perceber que Lazarillo e Guzmán
pertenciam ao mesmo tipo de literatura, ao referir-se aos relatos como
pertencentes ao mesmo “gênero”. No caso de "Rinconete y Cortadillo", não
a referência direta às obras picarescas, como no Quixote ou em “La ilustre
fregona”, em que se mencionam respectivamente Lazarillo e Guzmán, e as
aproximações à picaresca tradicional dão-se sobretudo no primeiro trecho da
novela, o que, de alguma maneira, contribuiu para que, durante muito tempo,
se estudasse o texto tendo em conta principalmente esta primeira parte
46
, onde
43
Idem, p.239.
44
MOLHO, M. Introducción al pensamiento picaresco. Salamanca: Anaya, 1968.
45
Maria Esther Silberman Cywiner aponta os diversos estudos que se detiveram a esse tema.
(SILBERMAN DE CYWINER, M. E. El Rinconete y Cortadillo en la encrucijada de dos siglos.
Tucumán: Universidad Nacional de Tucumán, 1981).
46
El debate sobre su definición genológica se ha centrado con frecuencia en la interpretación del
primer trecho de la narración, siguiendo, en la bibliografía clásica, el camino trazado por Blanco
75
Rinconete e Cortadillo se conhecem e falam de suas origens e de suas
habilidades picarescas.
Antes que se estabeleça o primeiro diálogo entre os dois jovens, o
narrador os descreve de maneira pormenorizada, o que, possivelmente, para o
leitor da época, cause um efeito de reconhecimento do tipo de personagem que
se apresenta. Fragmento lido como um verdadeiro “relato realista”, a crítica
47
,
por vezes, considerou o que seria a conjunção de certas técnicas da retórica
utilizadas para mover os afetos, como a evidentia
48
, como sendo apenas o
empenho por parte do autor em “descrever a realidade”, tomando tal excerto
como a descrição de um pícaro “real”, não literário.
[…] un día de los calurosos del verano, se hallaron en ella [en la venta]
acaso dos muchachos de hasta edad de catorce a quince años: el uno
ni el otro no pasaban de diez y siete; ambos de buena gracia, pero muy
descosidos, rotos y maltratados; capa, no la tenían; los calzones eran
de lienzo y las medias de carne. Bien es verdad que lo enmendaban los
zapatos, porque los del uno eran alpargates, tan traídos como llevados,
y los del otro picados y sin suelas, de manera que más le servían de
cormas que de zapatos. Traía el uno montera verde de cazador, el otro
un sombrero sin toquilla, bajo de copa y ancho de falda. A la espalda y
ceñida por los pechos, traía el uno una camisa de color de camuza,
encerrada y recogida toda en una manga; el otro venía escueto y sin
alforjas, puesto que en el seno se le parecía un gran bulto, que, a lo que
después pareció, era un cuello de los que llaman valones, almidonado
con grasa, y tan deshilado de roto, que todo parecía hilachas. Venían en
él envueltos y guardados unos naipes de figura ovada, porque de
Aguinaga [1957]. (CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García
López. Madrid: Editorial Crítica, 2001. p.793).
47
Estudos como os de Silberman Cywiner (1981), Ortega y Gasset (1963), Blasco (2005), maso
Alonso (1965), entre outros, utilizam termos como “costumbrista”, “realista”, para referir-se ao artifício
presente nas descrições de cenários e personagens da novela: Cervantes usa con bastante frecuencia un
arte detallista. [...] esos detalles que ya no tienen que ver con la estética del Renacimiento (nada más
lejos), ni tampoco directamente con la acción. Parece que Cervantes los introducía para crear una
atmósfera más que de ‘realismo’, si se puede decir ‘realidad’. Se diría una técnica basada en el reportaje
[…]”. (ALONSO, D. La novela española y su contribución a la novela realista moderna. Cuadernos del
idioma, Año I, n.1, Buenos Aires, 1965).
48
“[...] eso que la crítica del siglo XX ha llamado ‘realismo’ literario del Siglo de Oro, no es más que la
conjunción de ciertas técnicas de la retórica que se fundamentan en el uso de una figura de pensamiento
destinada a “mover los afetos” del destinatario del discurso: la ‘evidentia’”. (LÓPEZ GRIGERA, L. La
retórica en la España del siglo de oro. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1994. p.11).
76
ejercitarlos se les habían gastado las puntas, y porque durasen más se
las cercenaron y los dejaron de aquel talle. Estaban los dos quemados
del sol, las uñas caireladas y las manos no muy limpias; el uno tenía
una media espada, y el otro un cuchillo de cachas amarillas, que los
suelen llamar vaqueros.
49
O provável reconhecimento imediato do pícaro por parte do leitor da
época é possível porque o narrador se utiliza de recursos poéticos que
descrevem com tanta platicidade o cenário e os personagens que parecem
colocar a matéria narrada diante dos olhos do leitor, criando o efeito de
realidade. Prática comum entre os escritores do período, esses recursos nada
mais o que a aplicação de técnicas relacionadas ao ut pictura poesis
50
, em
que se ressalta, na atividade poética, a relevância das imagens, com efeito de
visualização.
51
A imagem dos pícaros descansando na entrada da pousada é rica em
plasticidade; cada detalhe parece colocar a cena diante dos olhos do leitor. No
entanto é preciso levar em conta que não se trata do “realismodo relato. É
preciso antes examinar como essa descrição se articula dentro de técnicas
retóricas como a evidentia
52
, por exemplo, cujo fim é mover os afetos. A
escritura dá-se como se fosse “una pintura de las cosas hecha con expresiones
tan vivas, que más parece que se percibe con los ojos que con los oídos”.
53
49
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. Jorge García López, Barcelona: Crítica,
2001.p.163.
50
Cf. HORÁCIO. A Arte Poética de Horacio. Traduzida e ilustrada em português por Candido Lusitano.
Lisboa: Officina Rolandiana, 1788.
51
HANSEN, A.; PÉCORA, A. Letras seiscentistas na Bahia. (artigo inédito).
52
Aunque no aparece entre las figuras ni en el Ad Herenium ni en Cicerón, en tiempos de Quintiliano
parece que había alcanzado una excepcional importancia [...] {Quintiliano} agrega que los griegos la
llaman hypotíposis. Luisa López Grigera também cita o fragmento do De Ratione Dicendi (1548) de
Alfonso García Matamoros, bastante elucidativo porque também menciona que a técnica pode acentuar a
atmosfera cômica: Para mover los afectos se presta maravillosamente la demostración a la que
significativamente los griegos llamaron hypotíposis, porque a la cosa la pone delante de tal modo como
si fuera vista, contemplada, en lugar de narrada. Es muy útil para la evidencia —claridad— de la
oración y para mover los afectos. Además agrega no poca jocundidad si el asunto es cómico. Esta figura
usamos si no narramos simplemente lo que sucede, sino también lo que ha precedido, el negocio que
sucede inesperadamente, y lo que sucede notoriamente. (LÓPEZ GRIGERA, L. Sobre el realismo
literario del Siglo de Oro. In: ACTAS del VIII Congreso de la AIH. Disponível em:
<http://cvc.cervantes.es/obref/aih/pdf/08/aih_08_2_026.pdf>.).
53
QUINTILIANO, IX, II, 40: “Illa vero, ut Cicero sub oculos subiectio tum fieri solet, cum res
non gesta indicatur, sed ut sit gesta ostenditur, nec universa, sed per partes. [...] ab aliis újtoxtjjttoaij
77
Embora não seja o objetivo direto desse trabalho estudar a fundo a
aplicação de técnicas poéticas e retóricas na composição da novela, é preciso
sempre ter no horizonte da pesquisa o fato de que a novela não se ocupa da
descrição de matérias empíricas. Não é narrativa “realista” ou um ”retrato de
costumes”, sendo necessária certa cautela ao analisar a presença de artifícios
que parecem plasmar o contexto social da época, sob o risco de cair em uma
classificação um tanto dedutiva e talvez pouco precisa.
Dessa forma, importa destacar que a presença da descrição física
pormenorizada do pícaro é um recurso ausente na literatura picaresca, que,
ao longo dessas narrativas, não uma auto-descrição física por parte da
narração, que está em primeira pessoa, e, no caso de "Rinconete y Cortadillo",
essa descrição é possível, pois o relato está em terceira pessoa, não se
tratando necessariamente de um avanço em direção ao “realismo”, à
modernização do relato picaresco, e, sim, da aplicação de regras distintas de
composição.
A história de Rincón e Cortado começa ao “acaso”, como diz o narrador.
O cenário la venta del Molinillo
54
é um lugar de gente passageira que busca,
nessa hora do dia, descansar a sesta. Além da vestimenta maltrapilha, os
objetos que cada um carrega em seus alforjes denunciam sua condição
marginal: os naipes gastados, o facão e a meia espada. São muito jovens,
mas, pela sua descrição, parecem levar uma vida de abandono algum
tempo, pelo bronzeado do sol e também pelo estado dos naipes gastados.
Talvez pela idade que aparentam ou por possível simpatia pelos personagens,
o narrador diz que ambos possuem buena gracia, o que significa “tener donaire
y agrado”
55
. Pouco a pouco se percebe que um é o espelho do outro e que o
encontro entre eles será provavelmente inevitável. O contato visual entre os
dicitur proposita quaedam forma rerum ita expressa verbis, ut cerní potius videatur quam audiri”.
(QUINTILIANO apud LÓPEZ GRIGERA, L. Sobre el realismo literario del Siglo de Oro. In: ACTAS
del VIII Congreso de la AIH. Disponível em:
http://cvc.cervantes.es/obref/aih/pdf/08/aih_08_2_026.pdf.).
54
A venta del Molinillo existiu historicamente e se situava a uns 20 quilômetros de Almodóvar del
Campo (Ciudad Real), perto de Toledo e Córdoba. (CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas
Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid: Editorial Crítica, 2001. p.161).
55
COVARRUBIAS, S. Tesoro de la Lengua Castellana o Española. Barcelona: Horta, 1943.
78
dois é especular, que se sentam frontero uno del otro”
56
e, desse modo,
prontamente se dão conta, como se vê no diálogo estabelecido adiante, de sua
condição marginal.
Rincón, o mais velho e também o mais experiente entre os dois, dá início
ao colóquio que lhes a oportunidade de relatar suas vidas e o modo como
vieram a dar com a vida picaresca. Esse procedimento faz com que ocorra o
momento mais “picaresco” da novela, quando, em primeira pessoa, os jovens
contam parte de suas vidas, suas origens, tal como Lazarillo ou Guzmán o
fizeram. O tom da conversação é formal; a forma de tratamento, vuesa merced
(alteração de vuestra merced); e não o uso de linguagem germanesca. A
formalidade presente no discurso dos muito jovens e maltrapilhos personagens
causa um efeito de comicidade pela quebra do decoro.
Segundo o conceito de decoro da retórica clássica, o estilo do discurso
deve estar adequado aos personagens que os produzem. Os caracteres dos
personagens expressam-se através de seu estilo e este se manifesta através
de suas falas. É justamente que o desencontro: personagens inferiores
utilizando um estilo elevado, o que desencadeia o efeito de comicidade na
narrativa: pícaros que se tratam como cavaleiros.
É nesse momento também em que, antes que se revelem seus nomes, o
mais novo entre eles diz que la corta suerte le tiene arrinconado, um claro
jogo de palavras com os nomes dos personagens: Diego Cortado e Pedro del
Rincón. Cortado provavelmente deriva da profissão do pai de Diego, que é
alfaiate, ao passo que o sobrenome “Rincón” parece realmente relacionar-se
com o sentido proposto pelo jogo de palavras arrinconado, abandonado.
Rincón tenta persuadir Cortado a contar sua história, mas o pequeno se
mostra esquivo e desconfiado e deixa claro que não tem intenção de revelar
detalhes sobre sua origem. O mais velho capta o seu receio e decide então
propor o que se segue:
Pues yo le decir que soy uno de los más secretos mozos
que en gran parte se puedan hallar; y, para obligar a vuesa merced que
56
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. Jorge García López. Barcelona:Crítica,
2001. p.164.
79
descubra su pecho y descanse conmigo, le quiero obligar con
descubrirle el mío primero; porque imagino que no sin misterio nos ha
juntado aquí la suerte, y pienso que habemos de ser, déste hasta el
último día de nuestra vida, verdaderos amigos. Yo, señor hidalgo, soy
natural de la Fuenfrida […].
57
O trecho aproxima-se de modo curioso a uma situação em que Guzmán
de Alfarache, numa fuga a Toledo, encontra-se com outro pícaro na mesma
condição
58
:
Ya nos habíamos de antes hablado y tratado, pidiéndonos
cuenta de nuestros viajes, de dónde y quién éramos. Él me lo negó, yo
no se lo confesé, que por mis mentiras conocí que me las decía: con
esto nos pagamos. Lo que más pude sacarle fue descubrirme su
necesidad. […] En el punto entendí, como se estuviera en él, y para
reducirlo a buen concepto le dije:
– Sabed, señor mancebo, que soy tan bueno y hijo de tan
buenos padres como vos. Hasta agora no he querido daros cuenta de
mí, mas porque perdáis el recelo, pienso dárosla. Mi tierra es Burgos,
della salí […].
59
Márquez Villanueva chama atenção para o diálogo que há entre a novela
"Rinconete y Cortadillo" e Guzmán de Alfarache. Mesmo que o haja
referências diretas à obra de Mateo Alemán, a narrativa cervantina parece tê-la
em seu horizonte, algo que pudesse ser facilmente identificado pelo leitor de
novelas picarescas da época. O crítico afirma que a novela não poderia ter sido
escrita “sin la previa puesta en pie del universo picaresco de Guzmán de
Alfarache”, destacando a atenção para os trechos acima, entre outros. O
estudioso evidencia a amplitude do mundo poético de Cervantes em
comparação com a rígida estreiteza de Mateo Alemán.
57
Idem, p.165-166.
58
Aproximação já apontada por: MÁRQUEZ VILLANUEVA, F. Trabajos y días cervantinos. Alcalá de
Henares: Centro de Estudios Cervantinos, 1995. p.288.
59
ALEMAN, M. Guzmán de Alfarache. Madrid: Cátedra, 1997. p.338.
80
Ocorre que, na narrativa de Alemán, os personagens, dominados pelos
seus receios, se separam e não voltam a se encontrar. Ambos desconfiam,
temem, não querem dividir suas trajetórias, ao passo que a narrativa cervantina
caminha em outra direção. Rincón e Cortado atuam de maneira diferente, o
que faz com que seu encontro casual se transforme numa amizade, selada por
um terno e apertado abraço:
Sea así respondió Diego Cortado, que así dijo el menor que
se llamaba-; y, pues nuestra amistad, como vuesa merced, señor
Rincón, ha dicho, ha de ser perpetua, comencémosla con santas y
loables ceremonias.
Y, levantándose, Diego Cortado abrazó a Rincón y Rincón a él
tierna y estrechamente, y luego se pusieron los dos a jugar a la
veintiuna.
60
O momento mais picaresco da novela é o relato de Rincón, em primeira
pessoa, sobre a sua origem e, em seguida, o de Cortado, o que permite ao
leitor reconhecer prontamente a estrutura do relato picaresco.
Yo, señor hidalgo, soy natural de la Fuenfrida, lugar conocido y
famoso por los ilustres pasajeros que por él de contino pasan; mi
nombre es Pedro del Rincón; mi padre es persona de calidad, porque es
ministro de la Santa Cruzada: quiero decir que es bulero, o buldero,
como los llama el vulgo. Algunos días le acompañé en el oficio, y le
aprendí de manera, que no daría ventaja en echar las bulas al que más
presumiese en ello. Pero, habiéndome un día aficionado más al dinero
de las bulas que a las mismas bulas, me abracé con un talego y di
conmigo y con él en Madrid […].
Sea en buen hora – dijo el otro –, y en merced muy grande tengo
la que vuesa merced me ha hecho en darme cuenta de su vida, con que
me ha obligado a que yo no le encubra la mía, que, diciéndola más
breve, es ésta: yo nací en el piadoso lugar puesto entre Salamanca y
60
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. Jorge García López. Barcelona:
Crítica, 2001. p.168.
81
Medina del Campo; mi padre es sastre, enseñóme su oficio, y de corte
de tisera, con mi buen ingenio, salté a cortar bolsas.
61
Ao contrário do que ocorre em Guzmán de Alfarache, os jovens deixam
de lado o receio inicial e contam com detalhes a sua origem, o que faz com que
haja a confirmação, tanto para o leitor quanto para eles mesmos, de que suas
histórias eram muito parecidas, o que proporciona o desejo de seguirem juntos.
Decididos a compartilhar suas existências, os pícaros decidem trilhar o mesmo
caminho. Na obra de Alemán, o simples fato de encontrar pelo caminho um
pícaro semelhante (de su talle) cria em Guzmán e, ao que parece, em qualquer
pícaro, muita desconfiança: Esta imaginación fue mia que le debió de pasar al
outro y que debía de ser algún ladroncillo que lo queria burlar [...] que de mi
talle no se podia esperar ni sospechar cosa buena”
62
.
A narração das origens de Rincón e Cortado recorda muito as primeiras
linhas de Lazarillo de Tormes, inclusive pelo tom formal que ambos mantêm
com seus interlocutores
63
. A origem de Rincón é a mais curiosa, que o fato
de ter acompanhado seu pai por algum tempo num ofício religioso lhe aportou
algum conhecimento nesse campo, o que será fundamental como um
contraponto na segunda parte da novela, quando os jovens se deparam com a
peculiar religiosidade da quadrilha de Monipodio.
Nenhum dos pícaros teve um berço nobre como Carriazo e Avedaño,
personagens de “La ilustre fregona”. Entretanto, não possuem uma origem
degradante, não são filhos de prostitutas e ladrões como costumam ser os
pícaros em geral. Rincón é filho de um ministro da Santa Cruzada que,
segundo ele, é uma persona de calidad, quem, ao parecer, não lhe ensina a
roubar, e Cortado é filho de um alfaiate de quem aprende o ofício, mas,
segundo ele, a vida tediosa em sua aldeia e os maus-tratos da madrasta o
fazem cair na vida marginal.
61
Idem p 166-167.
62
ALEMAN, M. Guzmán de Alfarache. Ed. José Maria Micó. Madrid: Cátedra, 1992. p. 339.
63
Pues sepa Vuestra Merced, ante todas cosas, que a me llaman Lázaro de Tormes, hijo de Tomé
González y de Antona Pérez, naturales de Tejares, aldea de Salamanca […] mi padre que Dios perdone,
tenía cargo de proveer una molienda de una aceña que está ribera de aquel río. LAZARILLO de
Tormes. Ed. Bilíngüe. São Paulo: Editora 34, 2005.
82
Cervantes parece criar certa ambigüidade na origem de Cortado, que
os alfaiates nessa época tinham fama de ladrões. No próprio Quixote, o alfaiate
que aparece para ser julgado por Sancho na ilha Barataria diz que seu freguês
o quis prejudicar fundándose en su malicia y en la mala opinión de los
sastres
64
. Ou seja, tanto existia a fama
65
como Cervantes estava
consciente dela e acaba, de algum modo, colocando em prática tal “inclinação”
ao aplicá-la ao personagem de Cortado que, de aprendiz de alfaiate, se torna
ladrão. O fato é que, do pai alfaiate, não se sabe se era ou não ladrão; sabe-se
apenas que o menino tinha uma madrasta a qual não o tratava bem e que a
vida era tediosa em sua aldeia, razões para ele suficientes para buscar outra
vida, e, estando em um ofício que, se não era completamente desonesto,
proporcionara-lhe a habilidade de “cortar bolsas”, se encontrava,
inegavelmente, na metade do caminho.
Ainda tratando das autobiografias picarescas, durante a conversa de
Dom Quixote com os criminosos que caminhavam acorrentados rumo às
galeras, os mesmos lhe contam suas desgraças ao cavaleiro; contudo o fazem
em tom de burla e ironia, de modo que esses fragmentos autobiográficos
acabam sendo de escasso valor e pouquíssimo confiáveis. Além do mais, ao
libertar Ginés, Dom Quixote o impede de dirigir-se às galeras, de maneira que
sua autobiografia acaba situando-se definitivamente no campo da hipótese. Se
tivesse escrito, seria talvez uma paródia, mas não se sabe se escreve. Na
segunda parte do Quixote, quando o narrador revela a verdadeira identidade de
Maese Pedro, que é na verdade Ginés de Pasamonte, também revela que o
personagem cometera muitos delitos e que escreveu um relato contando suas
bellaquerías
66
. Aqui, pela voz do narrador, já não se trata de uma autobiografia,
e, sim, de um relato de suas baixezas. Cervantes então parece deixar claro a
sua crítica à estrutura autobiográfica das novelas picarescas:
64
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.888.
65
Em La pícara Justina há também um alfaiate corrupto.
66
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.764.
83
Cervantes nunca empleó en sus obras de ficción la narración en
primera persona sin antes enmarcarla; es decir, sin presentar primero
en tercera persona al futuro narrador.
67
Como se assinalou, o momento e as razões pelas quais Rincón e
Cortado iniciam uma vida picaresca são importantes para depreender o grau de
aproximação da narrativa com os relatos picarescos tradicionais. Dois fatores,
nesse caso, são de extrema importância nesse momento da narrativa: o
primeiro é a escolha que ambos, em alguma medida, fazem ao optarem pela
vida picaresca que os faz abandonar o seu lar de origem. O pícaro tradicional
não tem escolha. Em nenhum momento, no início de sua trajetória, se pergunta
se deve optar pela vida picaresca. Ele é de certo modo conduzido, para não
dizer obrigado, a segui-la, que se apresenta como única alternativa. Lazarillo
é entregue por sua mãe ao cego, e Guzmán, depois de ficar órfão, diante da
situação de extrema pobreza em que se encontrava, resolve probar la mano
para salir de la miséria”, iniciando assim sua trajetória de pícaro. Rincón e
Cortado poderiam ter permanecido no ofício de seus pais, mas o primeiro alega
que sua fixação pelo dinheiro das bulas não o permite exercer a profissão e o
segundo se entediava em sua aldeia e tinha uma madrasta que o “tratava como
enteado”. Mais adiante, quando compõe os personagens Carriazo e Avedaño,
Cervantes deixará mais explícito o que ensaiara em "Rinconete y Cortadillo", o
pícaro por opção.
O segundo fator é a amizade que surge com santas y loables
ceremoniasentre os pícaros. Seria apenas mais um indício de que Cervantes
se contrapõe à picaresca tradicional, eliminando o fato de o pícaro ser um
personagem solitário, mas não se trata somente disso. Muñoz Sánchez, em
seu artigo “La amistad como motivo recurrente en las Novelas Ejemplares de
Cervantes”, trata do tema da amizade vista como um recurso poético o qual,
em cada uma das novelas em que está presente, tem uma função dentro da
narrativa. Sete novelas da coleção apresentam o tema dos dois amigos.
Casalduero já havia chamado atenção para a recorrência do motivo em Sentido
y forma de las Novelas Exemplares, onde afirma que, em todas as novelas,
67
RILEY, E. C. La rara invención. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. p.214.
84
com exceção de “El celoso extremeño”, é possível encontrar uma dupla de
personagens. Em "Rinconete y Cortadillo", Muñoz nchez destaca o fato de
que é a única novela da coleção em que a descrição detalhada do
surgimento da amizade, desde o momento em que os personagens se vêem
pela primeira vez até o instante, em que selam seu pacto. Sua importância,
então, como recurso poético seria também bastante relevante:
De nuevo la amistad se presenta como un recurso poético, ya que
nuestros antihéroes serán los encargados de abrimos el mundo secreto
de la cofradía de ladrones de Monipodio y presentamos el extraño modo
de vida en que viven. Además, «Cervantes necesitaba no sólo abrir con
verosimilitud un ámbito necesariamente oculto para el resto de la
sociedad, sino también contemplarlo y juzgarlo desde una perspectiva
distinta y superior: de ahí que Rincón y Cortado sean conscientes de
sus actos, sepan perfectamente cuál es su posición social y moral, y no
se engañan nunca, para que así puedan percibir de inmediato el engaño
en que viven los ladrones de la cofradía […].
68
García López também aponta a importância do pacto realizado entre os
pícaros nas primeiras ginas da novela, que poderia ter uma função
semelhante a uma moldura narrativa dos acontecimentos que viriam à tona no
Patio de Monipodio.
Dessa maneira, poder-se-ia pensar que Rinconete e Cortadillo atuam
como mediadores entre os dois mundos: um mais e outro menos degradado.
Por outro lado, o espetáculo que ocorre no Pátio ganha novas projeções
quando visto pelos olhos dos dois jovens pícaros iniciantes:
De entre toda la ficción cervantina esta novela es la que con más
fuerza proclama el principio esse est percipi” todo el espectáculo está
dirigido a los ojos y a los oídos de las personas que más cualificadas se
68
MUÑOZ SÁNCHEZ, J. R. La amistad como motivo recurrente en las novelas de Cervantes. In: EPOS.
Revista de Filologia. XVII (2001), p.141-163. Disponível em http://e-
spacio.uned.es/fez/eserv.php?pid=bibliuned:Epos-AE87385F-B7AD-2467-A904-
7E2AC97A3DA3&dsID=PDF
85
encuentran para interpretarlo, atestiguar su existencia, apreciar su
rareza y, finalmente aprender de él
69
.
Mesmo sendo considerada a parte mais picaresca da novela, o encontro
dos dois jovens, sua apresentação e a decisão de aprofundar seus laços e
seguirem juntos têm, talvez, mais distanciamentos que aproximações com a
trajetória normal de um pícaro tradicional.
unidos pela amizade, os jovens experimentaram, de forma crescente,
uma série de episódios picarescos que vão culminar na experiência máxima da
delinqüência sevilhana, que é o encontro com Monipodio. Antes disso, porém,
ocorrerão três aventuras picarescas que seguem um crescente: a trapaça do
arriero, o roubo da bagagem dos viajantes franceses e o furto da bolsa do
sacristão.
A primeira delas apresenta um delito, leve, que dois meninos
conseguem enganar no jogo de naipes um homem muito mais velho que eles.
Mais uma vez uma quebra no decoro, que os personagens mais jovens
se mostram mais sábios que outro mais velho e teoricamente mais experiente.
O tom cômico da cena e do narrador parece amenizar o delito; o arriero, de tão
nervoso, arranca as próprias barbas, e os meninos, por sua vez, são
defendidos pelos viajantes franceses que passam por ali e se indignam ao ver
um homem daquele tamanho agredindo duas crianças.
A segunda aventura já não pode ser considerada tão leve, pois Rincón e
Cortado roubam parte da bagagem daqueles que até o momento só lhes
haviam ajudado. O próprio narrador salienta este fato e os personagens
hesitam antes de cometer o delito, roubando mesmo só na hora de despedir-se
da comitiva. Já em Sevilha, como esportilleros, Cortado vai aproveitar-se de um
momento de distração de seu primeiro cliente para roubar-lhe a bolsa onde
levava todo o dinheiro. Esse terceiro delito é o mais grave entre os três, pois o
estudante, também sacristão, fiado na buena gracia do pícaro, o trata com
bastante consideração e, inclusive, lhe oferece um emprego. Além disso, o
69
CLOSE, A. Cervantes y la mentalidad cómica de su tiempo. Alcalá de Henares: Biblioteca de
Estudios Cervantinos., 2007. p.215.
86
dinheiro da bolsa pertencia à igreja e, quando o sacristão retorna à praça, aflito
pela perda do objeto, é roubado pela segunda vez, pois lhe tomam um lenço.
Pouco a pouco a dupla de personagens passa a submergir no mundo
picaresco, seja pelos delitos que vão cometendo, seja pela “profissão” que
escolhem ao chegar a Sevilha. O ofício de esportillero era, além de ofício típico
de pícaros, usado geralmente como fachada para encobrir ladrões, como
aparece na própria novela:
No les pareció mal a los dos amigos la relación del asturianillo, ni
les descontentó el oficio, por parecerles que venía como de molde para
poder usar el suyo con cubierta y seguridad, por la comodidad que
ofrecía de entrar en todas las casas; [...].
70
A narrativa, nesse passo, parece caminhar cada vez mais em direção à
delinqüência. A cidade, os ofícios, os companheiros de aventura, tudo parece
convergir para a corrupção. É nesse momento que aparece um importante
personagem, um personagem “intermediário” que, ao presenciar o último roubo
cometido pelos meninos na praça, decide tomar satisfações, que em Sevilha
não se pode roubar livremente:
– Díganme, señores galanes: ¿voacedes son de mala entrada, o no?
– No entendemos esa razón, señor galán – respondió Rincón.
– ¿Qué no entrevan, señores murcios? – respondió el otro.
– Ni somos de Teba ni de Murcia – dijo Cortado –. Si otra cosa quiere,
dígala; si no, váyase con Dios.
¿No lo entienden? – dijo el mozo–. Pues yo se lo daré a entender, y
a beber, con una cuchara de plata; quiero decir, señores, si son vuesas
mercedes ladrones. Mas no sé para qué les pregunto esto, pues sé ya que
lo son; mas díganme: ¿cómo no han ido a la aduana del señor
Monipodio?
71
70
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. Jorge García López. Barcelona:
Crítica, 2001. p.171.
71
Idem, p.177.
87
Membro de uma espécie de associação de ladrões, o jovem esportillero
vai ser a ponte entre Rincón e Cortado, de um lado, e um mundo oculto no
Pátio de Monipodio, de outro. É um momento crucial na narrativa, pois uma
clara mudança no tom, que transforma os protagonistas, ao lado do leitor, em
espectadores dos acontecimentos que ocorrerão a seguir ao se adentrar o
espaço de Patio.
É um momento fundamental também porque estarão contrapostos, pela
primeira vez em uma narrativa, dois tipos de picaresca. Rincón e Cortado,
personagens picarescos, como se viu, próximos a pícaros como Lazarillo e
Guzmán, de repente estarão frente a frente com outro tipo de personagem
delinqüente, mais vinculado ao teatro, sobretudo aos entremezes.
Francisco Rico destaca que varios estudiosos han advertido
certeramente la coincidencia de la novela picaresca con el teatro prelopista y el
entremés del Siglo de Oro a próposito de innumerables tipos y motivos. Os
entremezes, por exemplo, estão povoados de ladrões, estudantes fingidos,
damas sem honra, rufiões e todo um elenco de delinqüentes que de fato
também está presente nas aventuras dos pícaros. São, sem vida, o mesmo
tipo de gente, só que com uma única ausência: a do pícaro
72
.
No capítulo seguinte se estudará o modo como Cervantes se aproveita
de alguma forma do tema da picaresca, presente em seu relato, para incluir em
sua prosa personagens típicos do teatro. Sem o desenvolvimento, nem a
perspectiva, nem a pré-história, o caro do teatro se dissolve em mil facetas
diante da agilidade do entremez, não deixando espaço para a presença de um
personagem mais elaborado como o pícaro de Guzmán de Alfarache.
Um dos aspectos que ressaltam a originalidade de "Rinconete y
Cortadillo" reside nesse contraponto: pícaros de diferentes linhagens e gêneros
literários combinando-se para criar uma atmosfera sem precedentes, onde se
combina o melhor da prosa cervantina com a leveza e a agilidade do gênero
dramático dos entremezes.
72
RICO, F. La novela picaresca y el punto de vista. 3.ed. Barcelona: Seix Barral, 1982. p.114.
3. Narração teatral de um entremez
3.1 Espelho da vida humana: o teatro
mbora os gêneros mencionados (a picaresca, a novela corta)
anteriormente gozassem de grande prestígio entre o público, o
gênero dramático configurou-se, sem dúvida, como a produção
literária mais popular do Século de Ouro espanhol.
O objetivo deste capítulo é tratar de algumas aproximações entre o texto
de "Rinconete y Cortadillo" e o teatro da época. Sendo a recém explorada
“novela” um gênero híbrido por natureza, Cervantes insere em sua composição
alguns elementos que brindam sua prosa com uma maior agilidade e
comicidade, o que de algum modo torna possível associá-la a algumas obras
dramáticas específicas. Além disso, no caso de "Rinconete y Cortadillo", a
inserção de aspectos entremesiles vida à narrativa cervantina, permitindo
um maior alcance de suas características cômicas.
Antes de tudo, porém, é preciso pontuar que o trabalho se refere
sobretudo ao significado adjetivo do gênero “dramático”, o qual se remete a
traços estilísticos que uma obra pode conter em maior ou menor grau
1
. A
novela, como grande parte dos gêneros em alguma medida, não é um gênero
puro e, por isso, está na maior parte do tempo dialogando com diversos tipos
de discurso. Como se mencionou antes, era freqüente encontrar, esparsos,
comentários de diversos autores que aproximam a novela da comédia, por
exemplo, especialmente pela variedade de temas, pela finalidade de deleitar o
leitor e pela popularidade alcançada em seu momento.
O desenvolvimento definitivo do gênero dramático na Espanha, a partir
de 1600, coincide com o fim, por ordem de Felipe III, da proibição, desde 1582,
1
ROSENFELD, A. O teatro épico. São Paulo: Buriti, 1965. p. 6-7.
E
89
de montar espetáculos teatrais. As obras dramáticas, chamadas genericamente
comédias, eram de três tipos: a tragédia no sentido de ação catastrófica,
escassamente representada e escrita —, o drama e a comédia propriamente
dita. A estrutura das obras apresentava três jornadas ou atos. Durante o
primeiro intervalo entre os atos, representava-se um entremez e, no segundo,
cantava-se uma jácara. Logo esses intervalos musicais seriam incorporados ao
teatro definitivamente por Lope, como prelúdio e fundo ou como parte da ação.
O drama espanhol dessa época consolidou seu atributo de dependência
direta em relação ao vulgo do qual surge; como diria Cervantes, citanto Cícero,
o teatro é “espelho da vida humana”
2
. Tal característica, própria da comédia,
estende-se a todos os autores do culo XVII: trata-se de um teatro que, além
de estar arraigado na sociedade espanhola do momento, justifica sua própria
época ao idealizá-la nos palcos.
O teatro espanhol do Século de Ouro surpreende pela sua pluralidade e
sua diversidade: qualquer aspecto da vida material serve aos autores para
oferecer uma visão dramática em sentido cômico da vida espanhola. Para este
estudo, referido aspecto é de especial interesse, uma vez que os entremezes
cervantinos trazem para a cena aspectos dessa sociedade e desse modo de
compor obras de teatro. A sociedade, por sua vez, se voltava, cheia de
expectativas, à arte dramática, lotando os corrales, fazendo com que o gênero
se popularizasse inevitavelmente. Assim sendo, não haveria de ser estranho
que o teatro interferisse em outros gêneros e que marcas teatrais aparecessem
em textos em prosa como ocorre em “Rinconete y Cortadillo”. O conhecido
talento cervantino em dialogar com outras formas literárias não poderia deixar
de ater-se ao espetáculo mais popular da época.
2
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Ed. Martín de Riquer. Barcelona:
Editorial Planeta, 1998. p.507.
90
3.1.2 O teatro breve
teatro de peças de curta duração apresentava uma enorme
variedade de gêneros que, por vezes, se fundiam-se criando
peças híbridas. Eram jácaras, mojigangas, loas, bailes e, claro,
os entremezes, que se entrecruzavam dando origem a bailes entremezados,
entremezes cantados, mojigangas dramáticas etc.
3
Menos vinculados à música e ao baile estão os entremezes, que
passaram a fazer parte dos espetáculos das comédias a partir do século XVI. O
próprio Cervantes menciona-os em seu prólogo a Ocho comedias y ocho
entremeses:
Las comedias eran unos coloquios, como églogas, entre dos o tres
pastores y alguna pastora; aderezábanlas y dilatábanlas con dos o tres
entremeses, ya de negra, ya de rufián, ya de bobo y ya de vizcaíno: que
todas estas cuatro figuras y otras muchas hacía el tal Lope [de Rueda]
con la mayor excelencia y propiedad que pudiera imaginarse.
4
Cervantes, como escritor de entremezes, enobrece o gênero, elevando-
o, segundo Eugênio Ascencio, à altura da comédia e equiparando-o a gêneros
maiores da literatura espanhola. Mesmo não sendo representados, mas
somente lidos, autores posteriores incorporaram em grande parte suas
características, seus personagens e procedimentos cênicos. O prólogo de
Ocho comedias y ocho entremeses nunca antes representados é, sem dúvida,
de grande contribuição para recompor a história do teatro espanhol e
demonstra a força do vínculo cervantino com o gênero dramático, vínculo que
se manifesta de maneiras diversas por toda sua obra, quer através da crítica
por parte de algum personagem, como no caso de algumas passagens do
Quixote ou da comédia El rufián dichoso, quer pela incorporação de recursos
próprios do teatro em sua prosa, como é o caso de "Rinconete y Cortadillo".
3
REY HAZAS, A. Teatro breve del siglo de oro. Madrid: Alianza Editorial, 2002. p.13.
4
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Teatro Completo. Edición e Introducción F. Sevilla Arroyo y A.
Rey Hazas. Barcelona: Planeta, 2003. p.8.
O
91
3.2 Cervantes y el arte nuevo de hacer comedias
á o se faz necessária uma defesa da qualidade da produção
dramática cervantina. Um número considerável de estudos surge
no século XX
5
e a tendência das correntes atuais é tão favorável
para o seu reconhecimento que alguns já nem mencionam o antigo descaso.
Quase tão estudadas quanto as suas peças são as reflexões que o autor
realiza, ao longo de sua produção literária, com relação ao teatro da época.
Embora essas observações refletissem em muito o fascínio que o autor tinha
pela arte dramática, refletir sobre o teatro da época não era uma exclusividade
da literatura cervantina:
La historia del teatro español cuenta con todo un magnífico catálogo de
testemonios que han reflexionado sobre su situación en la historia
literaria, que han expresado anhelos de cambios en cuanto a la práctica
dramática y que han proyectado en muchas ocasiones, su propio ideal
estético.
6
Ao mesmo tempo, não é possível estudar essas reflexões cervantinas
acerca do teatro sem levar em conta a exitosa produção dramática de Lope de
Vega e a sua preceptiva: El arte nuevo de hacer comedias. No prólogo de
Ocho comedias y ocho entremezes, Cervantes comenta a própria produção
dramática, a de seus antecessores e, é claro, a obra de seu contemporâneo, el
monstruo de la naturaleza Lope de Vega. Cervantes realiza nesse prólogo uma
“pequena história do teatro espanhol”, situando a sua obra dramática e
reconhecendo alguns autores como fundamentais em sua trajetória como
dramaturgo. Cervantes diz haver tido uma conversação com alguns amigos
sobre as comédias e sobre quem teria sido o primeiro grande comediógrafo:
5
Cf S. Zimic: Salvo esporádicas expresiones admirativas, comúnmente reservadas para aspectos
parciales de algunas piezas, valoración crítica del teatro de Cervantes comienza sólo bien entrado este
siglo.” (ZIMIC, S. El Teatro de Cervantes. Madrid: Editorial Castalia, 1992).
6
SANTO-TOMÁS, H.G. Introducción. In: LOPE DE VEGA. El arte nuevo de hacer comedias.
Madrid: Cátedra, 2006. p.13.
J
92
Tratóse también de quién fue el primero que en España las sacó de
mantillas, y las puso en toldo y vistió de gala y apariencia; yo, como el
más viejo que allí estaba, dije que me acordaba de haber visto
representar al gran Lope de Rueda, varón insigne en la representación y
en el entendimiento.
7
Tal qual previne no início do prólogo, Cervantes também comenta, com
pouca modéstia, algumas inovações realizadas por ele próprio na arte
dramática, como o fato de haver reduzido de cinco para três as jornadas da
comédia. Leia-se:
Y esto es verdad que no se me puede contradecir, y aquí entra el salir
yo de los límites de mi llaneza: que se vieron en los teatros de Madrid
representar Los tratos de Argel, que yo compuse; La destrución de
Numancia y La batalla naval, donde me atreví a reducir las comedias a
tres jornadas, de cinco que tenían; mostré, o, por mejor decir, fui el
primero que representase las imaginaciones y los pensamientos
escondidos del alma, sacando figuras morales al teatro, con general y
gustoso aplauso de los oyentes; […].
8
Embora haja algumas controvérsias com relação a estas inovações a
redução de jornadas, por exemplo, é atribuída por Lope de Vega a Cristóbal de
Virués em El arte nuevo de hacer comedias —, o mais certo é que Cervantes
tenha realmente pensado nessas novidades sem saber que outros o faziam
paralelamente
9
. O mais importante é que essas informações documentam de
alguma maneira a evolução do teatro da época.
Seguindo a lista que realiza Cervantes das principais personalidades do
teatro espanhol, Lope de Rueda é o primeiro grande dramaturgo a aparecer. A
obra do dramaturgo sevilhano representa o triunfo da influência italiana no
teatro espanhol e Cervantes destaca principalmente a importância de seus
7
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Teatro Completo. Edición e Introducción F. Sevilla Arroyo y A.
Rey Hazas. Barcelona: Planeta, 2003. p.7.
8
Idem, p.7.
9
Idem, p. XXV-XXVI.
93
Pasos. Também destaca o talento de Lope para lidar com os aparatos cênicos
tão precários naquela época, além de elogiar as comédias de Lope de Rueda
por prescindirem de tais recursos o que parecia o ocorrer com as
comédias da “nova geração” —, que seu trabalho se sustentava
principalmente pela qualidade de seu texto e pelo talento dos atores.
Além da menção no prólogo, a admiração de Cervantes pelo dramaturgo
estende-se para as linhas de "Rinconete y Cortadillo". García López menciona
a incorporação de alguns elementos de seus Pasos. Em seu artigo “Lope de
Rueda en las Novelas Ejemplares”, o autor aponta como uma das fontes de
"Rinconete y Cortadillo" o entremez “Los lacayos ladrones”, no qual aparece
dramatizada a temática da picaresca religiosa. Também são apontados
elementos desse entremez nas outras novelas do Manuscrito Porras de
Cámara que parecem ter recebido uma notável influência do dramaturgo
sevilhano:
Ya es muy llamativo que las três narraciones donde los trazos del
sevillano son más remarcados Rinconete, Celoso y también la Tía
fingida pertenezcan a fechas muy próximas, formaran parte del
manuscrito Porras y ehxiban muy claras huellas de Rueda.
10
Cervantes segue enumerando em seu prólogo diversos dramaturgos,
alguns com maior destaque, como Navarro, de Toledo, outros apenas são
citados por ele, como don Ramón (Fray Alonso Ramón, de la Orden de la
Merced), Miguel Sánchez, Mira de Amescua, Guillén de Castro, Luis Vélez de
Guevara, entre outros. Entretanto, ao justificar sua própria ausência nos
tablados, menciona o personagem chave, o dramaturgo mais importante desse
período:
Tuve otras cosas en que ocuparme; dejé la pluma y las comedias, y
entró luego el monstruo de naturaleza, el gran Lope de Vega, y alzóse
con la monarquía cómica; avasalló y puso debajo de su juridición a
10
GARCÍA LÓPEZ, J. Lope de Rueda en las Novelas Ejemplares. In: ANUARIO de estudios
cervantinos IV. Vigo: Editorial Academia del Hispanismo, 2008. p.185.
94
todos los farsantes; llenó el mundo de comedias proprias, felices y bien
razonadas [...].
11
O prólogo é de 1615, momento do auge do sucesso das comédias
lopescas, que detinham o domínio absoluto dos tablados espanhóis. No
entanto, embora predomine no texto certo tom de desencanto sobretudo
pela declaração inicial de que suas comédias nunca haviam sido representadas
—, Cervantes parece de algum modo reconhecer a supremacia e o talento de
Lope de Vega.
A relação de Cervantes com a obra de Lope de Vega reflete de fato a
relação que o mesmo tinha com o que considera o antes e o depois do teatro
espanhol. Isso fica bastante claro no prólogo e nas declarações esparsas ao
longo de sua obra, por exemplo, na Adjunta al Parnaso: Yo con estilo en parte
razonable, he compuesto Comedia que en su tiempo tuvieron de lo grave y de
lo afable
12
.
A nova fórmula dramática de Lope e sua escola rompem
deliberadamente com os moldes aristotélicos da preceptiva italiana,
provocando uma espécie de duelo entre partidários e adversários da comédia
nova
13
. Autor da mais famosa preceptiva de teatro da época, El arte nuevo de
hacer comedias, Lope pretendia mesmo difundir com paixão a sua tão bem
sucedida rmula de fazer teatro que mobilizava a sociedade espanhola.
Cervantes desde o início parece manifestar-se contra o caráter excessivamente
popular e contra o desprezo às preceptivas clássicas característicos da nova
fórmula. No Quixote de 1605, quase uma década anterior à publicação de
Ocho comedias y ocho entremezes, é possível encontrar, através da
conversação entre dois personagens, o Cura e o Canónigo, algumas
importantes reflexões sobre a moda recém surgida:
11
Idem, p.XII.
12
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Viaje del Parnaso. Edición Vicente Gaos. Madrid: Castalia,
2005. p.179.
13
CANAVAGGIO, J. Pinciano y la estética literaria de Cervantes en el “Quijote”. In: ANALES
Cervantinos 7. Madrid: CSIC, 1958. p.49.
95
Si estas comedias que ahora se usan, así las imaginadas como las de
historia, todas o las más son conocidos disparates, y cosas que no
llevan ni pies ni cabeza, y con todo eso el vulgo las oye con gusto, y las
tiene y las aprueba por buenas, estando tan lejos de serlo, y los autores
que las componen y los actores que las representan dicen que así han
de ser, porque así las quiere el vulgo y no de otra manera, y que las
que llevan traza y siguen la fábula como el arte pide, no sirven sino para
cuatro discretos que las entienden.
14
Mais adiante, o personagem discute aspectos mais pontuais, como a
falta de unidade de ação e de tempo e de espaço (essa última, nem o próprio
Aristóteles fazia questão), colocando-se em uma convicta posição crítica.
Não é possível ignorar que certa incongruência entre essas
observações publicadas no Quixote, de 1605, e as do prólogo de Ocho
comedias y ocho entremeses, de 1615. Embora essas sejam reflexões
advindas de contextos diferentes uma provém da esfera narrativa do
Quixote e é fruto do discurso de um personagem, a outra é a voz do autor em
seu prólogo — é possível compará-las de algum modo.
Ainda que no prólogo seja perceptível o tom de desencanto de
Cervantes diante do reconhecimento e da repercussão de suas obras
dramáticas, ele parece ao mesmo tempo conformado com a situação atual da
comédia e de certa forma “elogia” as comédias de Lope de Vega como felices y
bien razonadas, bem como chega a incorporar, inclusive, várias dessas
“inovações” ao longo de sua nova coleção.
Pero es Cervantes, en esta obra clásica (Ocho comedias y ocho
entremeses) donde saca partido de los géneros más diversos
comedia devota, clásica, intriga de amor , aventura novelesca, entremés
se ha decidido a dejar en paz a Aristóteles y a ponerse de acuerdo
con el sentir del día y de Lope. […] Mientras el Cura criticaba la falta de
decoro “el rey ganapán y la princesa fregona”, “Pedro de Urdemalas”
14
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.508.
96
nos muestra un rey enamorado de una gitana que es en realidad una
princesa de sangre real.
15
O mais curioso e, sem dúvida, o mais rico no sentido de tentar
reconstruir os caminhos que percorriam os dramaturgos da época para criarem
seu próprio critério dramático é quando se encontram explícitas, em uma das
Ocho comedias, El Rufián dichoso, as inquietações de Cervantes com relação
à arte de fazer comédias. Questionada pelo personagem Curiosidad sobre as
mudanças impressas em sua arte, a Comedia responde:
COMEDIA: Los tiempos mudan las cosas
y perficionan las artes,
y añadir a lo inventado
no es dificultad notable.
Buena fui pasados tiempos,
y en éstos, si los mirares,
no soy mala, aunque desdigo
de aquellos preceptos graves
que me dieron y dejaron
en sus obras admirables
Séneca, Terencio y Plauto,
y otros griegos que tú sabes.
He dejado parte dellos,
y he también guardado parte,
porque lo quiere así el uso,
que no se sujeta al arte.
16
15
CANAVAGGIO, J. Pinciano y la estética literaria de Cervantes en el “Quijote”. In: ANALES
Cervantinos 7. Madrid: CSIC, 1958. p.66.
16
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Teatro Completo. Edición e Introducción F. Sevilla Arroyo y A.
Rey Hazas. Barcelona: Planeta, 2003. p.136.
97
Rey Hazas chama atenção para o fato de que não necessariamente
um abandono, por parte de Cervantes, do seu próprio critério dramático, nem
uma evolução linear de seu teatro do clássico para o moderno:
No creemos que los pasajes en cuestión jalonen una trayectoria teórica
que evoluciona de lo clásico a lo moderno, ni tampoco resulta viable
disimular la evidente distancia doctrinal detectable entre ellos. […] son
claramente disímiles en materia de preceptiva, pero sin que ello
implique declarada militancia en una u otra escuela dramática.
17
As reflexões expostas por meio do personagem de Rufián dichoso não
revelariam um acatamento, por parte de Cervantes, das preceptivas dramáticas
impostas pela nova comedia, mas talvez demonstrem, de algum modo, o seu
interesse em refletir sobre seu critério dramático, assim como evidenciam que o
autor estava ciente de que houvera uma mudança no modo de fazer teatro.
Cervantes, nesse caso, reflete simplesmente a favor da arte, do que ele
acredita ser uma boa comédia, com mais ou menos recursos clássicos ou
modernos. O fato de ver emergir com tanta força uma nova corrente, uma nova
escola dramática, o faz refletir sobre a pouca expressividade de seu teatro
dentro dessa nova estética. Desafortunadamente, não obteve o êxito que
desejara. Inclusive seria possível estender a discussão sobre os motivos de tal
fracasso, culpando a conhecida rigidez com a qual Cervantes toma a poética
clássica que versa sobre o teatro. Entretanto o que realmente interessa para
este trabalho é o fato de que Cervantes, embora não tenha tido muito êxito com
o público, realizou valiosas reflexões sobre a evolução do teatro na Espanha,
bem como incorporou à sua prosa marcantes características teatrais.
Pouco à vontade com a excessiva popularização da comédia e, ao
mesmo tempo, extremamente atraído pela arte dramática, Cervantes nunca
deixou de acompanhar as mudanças que surgiam no teatro da época. Embora
seu teatro, pelo menos nas primeiras obras (das que foram preservadas), La
Numancia e Los tratos de Argel, pertencesse a uma estética distinta, o autor de
17
REY HAZAS, A. Introducción. In: CERVANTES, M. de. Teatro Completo. Edición e Introducción
F. Sevilla Arroyo y A. Rey Hazas. Barcelona: Planeta, 2003. p.8.
98
fato nunca se desconecta do teatro. A prova maior disso é a presença das
marcas teatrais, dos comentários críticos e até mesmo a inclusão de uma
narrativa teatralizada ao longo do Quixote, em particular da segunda parte.
Impossibilitado, de alguma maneira, de realizar-se como dramaturgo,
Cervantes parece desenvolver uma nova forma de “fazer teatro” através de sua
prosa, incorporando uma quantidade considerável de marcas teatrais em seus
textos, proporcionando, dessa maneira, à sua prosa, algumas características
que enriquecem a qualidade de suas composições, oferecendo maior
agilidade à matéria narrativa. É o caso de "Rinconete y Cortadillo", que já
chegou a ser classificado como Rincomés, la novela
18
por sua aproximação
ao entremezes — ou como Apunte para una recreación dramática
19
.
Dessa maneira, no próximo capítulo se abordará o modo como
Cervantes traz algumas reminiscências de seu genuíno interesse pelo teatro
para a prosa de "Rinconete y Cortadillo", que, de alguma maneira, se via
“impossibilitado” pelo seu contexto literário de produzir obras dramáticas de
acordo com seus preceitos, com o que ele acreditava ser um “bom teatro”.
3.3 A confraria e os ladrões
Em cena: Os delinqüentes de Monipodio
egundo o dicionário da “Real Academia Española”, Monipodio é
uma alteração de monopolio, que significaria: Convenio de
personas que se asocian y confabulan para fines ilícitos”.
Contudo um equívoco ao se acreditar que essa é uma acepção moderna da
palavra. no primeiro dicionário acadêmico que data do século 18, o
18
YNDURAIN, D. Rincomés a novela. Boletín de la Real Academia Española, XLVI, 1966.
19
SALCEDO, Hugo. Rinconete y Cortadillo: Apunte para una recreación dramática. In: VOLVER a
Cervantes: Actas del IV Congreso Internacional de la Asociación de Cervantistas. v.2. Lepanto:
Asociación de Cervantistas, 2000-2001. p.847-850.
S
99
Diccionario de Autoridades
20
, encontra-se monipodio como: Convenio ú
contráto de algunas personas, que unidas tratan algun fin malo. Es corrupcion
de Monopolio”.
Cenário de delinqüentes e prostitutas, o Patio de Monipodio caracteriza-
se como uma espécie de palco onde desfilam diversos tipos sociais.
Espectadores atônitos deste espetáculo, Rinconete e Cortadillo surpreendem-
se com a variedade de formas e disfarces que o crime pode ganhar. Como se
mencionou anteriormente no manuscrito de Porras de la Cámara, a novela
trazia um subtítulo que foi suprimido na publicação de 1613: “Casa de
Monipodio, padre de ladrones en Sevilla”.
É interessante observar que Cervantes cogitou subdividir a novela em
duas partes, uma que se passa fora e outra que se passa dentro do espaço da
casa de Monipodio, e, de fato, grandes diferenças entre ambas. A partir da
chegada de Rinconete e Cortadillo ao pátio de Monipodio, é possível notar a
intersecção do cênico com o narrativo. Os diálogos entre os personagens
passam para um primeiro plano e o narrador se ocupa em descrever os
detalhes de cada “cena”, colocando diante dos olhos do leitor cada minúcia do
espaço, cada detalhe do vestuário dos personagens, como se quisesse
preencher dessa forma o vazio causado pela ausência da representação teatral
propriamente dita. A chegada repentina do policial, o caso amoroso de Juliana
e Repolido, a velha Pipota, tudo é bastante dramático. É como se, de repente,
pudéssemos visualizar a entrada e a saída de cada personagem do palco, um
por vez, ocupando a cena.
Estando en esto, entraron en la dos mozos de hasta veinte años cada
uno, vestidos de estudiantes, y de allí a poco, dos de la esportilla y un
ciego; y sin hablar palabra ninguna, se comenzaron a pasear por el
patio. No tardó mucho, cuando entraron dos viejos de bayeta, con
antojos que los hacían graves y dignos de ser respetados, con sendos
rosarios de sonadoras cuentas en las manos. Tras entró una vieja
halduda, y, sin decir nada fue a la sala, y habiendo tomado agua
bendita, con grandísima devoción se puso de rodillas ante la imagen, y
20
TOMO QUARTO, 1734. Disponível em: <www.rae.es>.
100
a cabo de una buena pieza, habiendo primero besado el suelo y
levantado los brazos y los ojos al cielo otras tantas, se levantó y echó su
limosna en la esportilla, y se salió con los demás al patio. En resolución,
en poco espacio se juntaron en el patio hasta catorce personas de
diferentes trajes y oficios.
21
uma espécie de transe que domina os espectadores, Rinconete e
Cortadillo, que observam a chegada silenciosa e esquiva dos delinqüentes
disfarçados dos mais variados tipos sociais. Cada qual se apresenta com seu
ofício e devidamente vestido e caracterizado.
No fragmento destacado, podemos observar como se opera a passagem
do narrativo épico para um narrativo mais dramático. Para apreender de forma
mais abrangente como se a marcação cênica, ressaltam-se as seguintes
características decorrentes da teatralidade:
• Indicações cênicas pouco breves, tais como
22
:
a. descrição pormenorizada dos personagens na cena (roupas,
comportamento etc.);
b. descrição do cenário;
c. indicações de silêncio e tom de voz;
d. utilização freqüente de verbos de ação que descrevem
comportamentos;
e. Indicações espaciais dos personagens.
Com a presença desses elementos no relato, ocorre então um tipo de
escritura dramática, tal qual define Pavis
23
em seu dicionário de teatro: é o
21
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid:
Editorial Crítica, 2001. p.182-183.
22
Para estabelecer os critérios que indicam marcação cênica, foram consultados trabalhos que analisam
marcas teatrais em textos em prosa. Não se tem conhecimento sobre uma bibliografia específica sobre
este tipo de análise. Ressaltamos especificamente a contribuição das seguintes dissertações de mestrado:
RIBEIRO, M. A. O teatro oculto na ficção narrativa de Machado de Assis. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 1981. (Dissertação de mestrado); SIMIONI, A. R. Marcas teatrais em Machado de Assis.
São Paulo: Universidade de São Paulo, 1998. (Dissertação de mestrado)
101
universo teatral tal como é inserido no texto pelo autor e recebido pelo leitor. O
drama concebe-se como uma estrutura literária que se baseia em alguns
princípios dramatúrgicos: separação dos papéis, diálogos, tensão dramática,
ação das personagens etc. A seguir, destacam-se esses efeitos no trecho
citado:
Descrição pormenorizada dos personagens: “[...] dos mozos de
hasta veinte años cada uno, vestidos de estudiantes / dos viejos
de bayeta, con antojos que los hacían graves y dignos de ser
respetados, con sendos rosarios de sonadoras cuentas en las
manos.
Indicações de ruído ou silêncio: “[...] y sin hablar palabra ninguna /
sin decir nada / sonadoras cuentas […].”
Ações dos personagens: “[...] se comenzaron a pasear por el
patio./ y habiendo tomado agua bendita, […] se puso de rodillas
ante la imagen, y […], se levantó y echó su limosna […].”
Indicações de localização espacial dos personagens: “[...] se salió
con los demás al patio.
Descrição gestual: “[...] con grandísima devoción [...] habiendo
primero besado el suelo y levantado los brazos y los ojos al cielo
otras tantas [...].”
A descrição pormenorizada ao lado das ações da vieja halduda Pipota
forma uma imagem plástica que faz com que o leitor visualize a cena. O efeito
cômico causado pela quebra do decoro acentua a atmosfera teatral, pois
Pipota, que se encontra num espaço de picaresca, age como se fosse uma
beata, sendo, como se constatará mais adiante, uma ladra. Não se sabe muito
bem se a mesma é uma beata atuando como ladra ou uma ladra atuando como
beata. A presença desse elemento religioso é indispensável para uma maior
teatralização da personagem. Todos ali aparentam algo que na verdade não o
são, usando disfarces para ocultar sua verdadeira condição de criminosos de
23
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1999.
102
quadrilha. Há, portanto, a narração de um teatro. É o teatro dos delinqüentes
que, disfarçados de pessoas de bem, dominam o crime de Sevilha.
A entrada da velha em cena surpreende pela comicidade: a sua
aparência acima de qualquer suspeita contrasta enormemente com o espaço
em que a mesma se encontra, condizendo menos ainda com todos aqueles
gestos de devoção, como se ela estivesse mesmo dentro de uma “cofradia
religiosa”.
Américo Castro já observa a presença de uma rica atmosfera literária em
que Cervantes costuma situar seus personagens ditos “pícaros”; personagens
são, na maioria das vezes, objetos de las manipulaciones artísticas del autor
que los maneja como figuras de retablo”.
24
O crítico fora o primeiro a notar
paralelismos entre "Rinconete y Cortadillo" e o teatro.
O surgimento de uma a uma daquelas figuras silenciosas no Pátio cria
um clima de expectativa, que culmina com a entrada de Monipodio, seguida de
descrição pormenorizada de seu traje bizarro. O exagero com que se descreve
a sua figura faz com que se torne um personagem grotesco. Os péso
juanetudos, o peito é um “bosque” de pêlos, os dedos das os são gordos e
as unhas manchadas. A cena vai se tornando cada vez mais densa, e logo
teremos toda uma cerimônia de ingresso de Rinconete e Cortadillo na
congregação, que culminará com as palavras de aprovação de Monipodio: “[...]
Digo que sola esta razón, me convence, me obliga, me persuade y me fuerza a
que desde luego asentéis como cofrades mayores y que se os sobrelleve el
año del noviciado.” A solenidade da cerimônia e a seriedade com que os
delinqüentes a levam a sério paralisam o leitor que espera, ao lado dos
pícaros, a decisão de Monipodio. Os meninos Rincón e Cortado recebem
novos nomes para poderem atuar dentro da organização, tornando-se, então,
Rinconete e Cortadillo.
A entrada das mulheres Escalanta e Gananciosa, que trazem comida e
vinho, início a um animado banquete, em que novamente a velha Pipota
toma conta da cena: primeiro diz que se sente mal, para em seguida beber
uma quantidade enorme de vinho, diante de todos. A descrição das ações é
bem exagerada:
24
CASTRO, A. El Pensamiento de Cervantes. Nueva edición ampliada. Barcelona: Noguer, 1972.
103
El narrador, aun desplegando un mayor desarrollo, se limita casi
exclusivamente a ser un acotador de las voces de los personajes y a
situar el tablado escénico en donde sucede una acción entremesil.
25
Outro recurso importante é a criação de uma atmosfera de suspense
para a entrada dos personagens. Este recurso que acentua a teatralidade
aparecia em alguns episódios do Quixote e está de alguma maneira
incorporado à escrita cervantina. A existência de um espaço onde o desfile
de personagens das mais variadas procedências pode ser comparada a um
dos episódios da “Venta de Juan Palomeque” no Quixote 1. No capítulo XXXVI,
Dom Quixote e Sancho estão hospedados numa estalagem que Dom Quixote
acredita ser um castelo. Nesse lugar também estão hospedados outros
personagens de diversas procedências, entre eles: Cardenio, um apaixonado
que perdeu sua amada, Luscinda, para um amigo, Don Fernando; Dorotea, a
qual, fantasiada de princesa, pretendia enganar Dom Quixote etc. Estes
personagens serão surpreendidos com a chegada de uma misteriosa tropa de
huéspedes”:
Cuatro hombres respondió el ventero vienen a caballo, a la
jineta, con lanzas y adargas, y todos con antifaces negros; y junto con
ellos viene una mujer vestida de blanco, en un sillón, ansimesmo
cubierto el rostro, y otros dos mozos de a pie.
26
A entrada também é silenciosa, o que reforça a expectativa: “[...] que
gente era aquella que con traje y tal silencio estaba […]”. Os efeitos teatrais
são reforçados também pela descrição dos trajes, assim como em “Rinconete y
Cortadillo”. A estalagem então logo irá transformar-se em cenário de
reencontro de amores perdidos, e os casais irão expor a sua intimidade, para
deleite da platéia, e os intricados caminhos que percorreram para chegar até
25
SÁNCHEZ, F. J. Lectura y Representación: Análisis Cultural de las Novelas Ejemplares de
Cervantes. New York: Ed. Peter Lang, 1993. p.107.
26
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.391.
104
ali. Como ocorre com o casal Juliana e Repolido no Pátio de Monipodio, o
centro das atenções passa a ser os problemas amorosos dos casais, e o foco
narrativo se detém por um instante no desfecho daquelas “dores de amores”.
Em “Rinconete y Cortadillo”, o desfecho dos problemas amorosos de
Juliana Cariharta e Repolido não poderia ser mais dramático. Juliana, após
acusar seu amado de agredi-la, depois de chorar e mostrar as marcas da
violência recebida, esconde-se num quarto para não encontrá-lo.
Posteriormente, com alguma insistência de Repolido e com seu pedido de
desculpas, os dois fazem as pazes
27
:
Todos voacedes han hablado como buenos amigos, y como tales
amigos se den las manos de amigos.
Diéronselas luego, y la Escalanta, quitándose un chapín, comenzó a
tañer en él como en un pandero; la Gananciosa tomó una escoba de palma
nueva, que allí se halló acaso, y, rascándola, hizo un son que, aunque ronco y
áspero, se concertaba con el del chapín. Monipodio rompió un plato y hizo dos
tejoletas, que, puestas entre los dedos y repicadas con gran ligereza, llevaba el
contrapunto al chapín y a la escoba.
28
Aqui começa o baile para comemorar a paz entre os pícaros, quando
todos cantam, alguns dançam. A descrição das ações da improvisação dos
instrumentos musicais um tom de festa bastante teatral. A diversão não tem
hora para acabar, até que, de repente, o sentinela de plantão avista algum
membro da justiça que se aproxima da casa. Todos se assustam e
novamente o efeito de suspense, para logo descobrir-se que o homem se
dirigia a outro lugar.
O tom cômico, a linguagem dos delinqüentes, as cenas que se
encadeiam uma após a outra dão à narrativa o tom de entremez.
27
Nesse trecho, é importante destacar a repetição da palavra “amigo”, que, além de reforçar a teatralidade
do diálogo, também chama atenção para o tema da amizade, o qual, como se mencionou, tem grande
importância na novela.
28
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid:
Editorial Crítica, 2001. p.204.
105
“Entremez” é um vocábulo que vem do espanhol entremés, o qual
originalmente significava “todo manjar de poca consistencia que se servía en el
intermedio de los platos de un copioso banquete”. Logo passou a significar
piezas cortas de caracter jocoso y burlesco, escritas en prosa o en verso, que
se representaban entre las jornadas de una comedia para divertir el público”;
normalmente essas peças poderiam vir acompanhadas de canções ou danças.
Enquanto a comédia podia apresentar características de exemplaridade
moral, o entremez tinha mais uma função de entretenimento, o que não excluía
o seu caráter por vezes crítico em forma de sátira ou paródia. Os entremezes
cervantinos foram publicados pela primeira vez em Ocho comedias y ocho
entremeses nunca representados, em 1615, e concebem significativas
inovações na arte dessas peças curtas. Os personagens ganham maior
desenvolvimento, os temas são revestidos de ironia e muitas vezes
apresentam aspectos satíricos
29
e paródicos dos males de sua época. A ironia
já se nota nos títulos:
El juez de los divórcios (que se niega a concederlos); La guarda
cuidadosa (frustrada, a pesar de tan cuidada guarda); La elección de los
alcaldes de Daganzo (que concluye sin elegir alcalde); El retablo de las
maravillas (y no hay nada); La cueva de Salamanca (eufemismo por la
universidad y no hay instrucción, ni ciencia, sino embuste).
30
Stanislav Zimic em “El teatro de Cervantes” compara a vida que leva
Juliana Cariharta com a vida que levou Pericona, a prostituta falecida do
entremez “El Rufián Viudo”, de Cervantes. Nesse entremez, é possível
estabelecer inúmeras associações com a novela, entre elas a religiosidade
fingida dos delinqüentes chama atenção, que, em ambos os casos, não
uma coerência com as ações dos personagens, os quais se dizem devotos,
mas cometem muitos delitos. Tudo isso aparece no entremez e na novela de
29
O termo empregado aqui se refere de forma adjetiva à crítica presente nesses textos. Segundo Coronel
Ramos, desde a Idade Média é possível encontrar o adjetivo “satírico” como sinônimo de crítico”.
(CORONEL RAMOS, M. A. Estructuras satíricas en los relatos picarescos. In: ESTUDIOS sobre la
sátira española en el siglo de oro. Org. Carlos Vaíllo e Ramón Valdés. Madrid: Castalia, 2006. p.38).
30
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Entremeses. Edición de Alberto Castilla. Madrid: Akal, 1997.
p.14.
106
forma leve, porém com alguma crítica implícita. Nesse entremez, encontramos
o rufião Trampagos, que perdeu sua amante Pericona e, com palavras solenes,
lamenta a sua morte. O seu pranto cessa com a chegada de várias candidatas
a substituta de Pericona, que alegram o ambiente e ao mesmo tempo criam um
efeito de contraste: o pranto cheio de palavras solenes com a chegada alegre e
escandalosa das mulheres. Este entremez é considerado um dos mais ricos
literariamente e que apresenta uma maior polifonia.
31
Como muy bien ha estudiado Asensio, «El rufián viudo descuella entre
los demás entremeses cervantinos por su literalidad, es decir, por su
saturación de parodias y citas de poemas y géneros en boga. Es [...]
una pieza polifónica, una especie de diálogo con diferentes obras
poéticas del tiempo». Y, entre ellas, se encuentran algunas del propio
Cervantes, pues las conexiones de este mundo rufianesco sevillano con
Rinconete y Cortadillo, son evidentes [...].
32
uma cena em particular que é praticamente idêntica ao trecho do
“alarme falso” sobre a chegada da polícia:
Entra uno muy alborotado
Juan Claros ¡la justicia! la justicia!
El alguacil de la justicia viene
La calle abajo.
Em seguida, como o faz Monipodio, Trampagos tenta acalmar a todos,
os quais se assustam, dizendo que é um conhecido seu. Em seguida,
descobre-se tratar de um alarme falso. O baile também acontece
animadamente no entremez, contagiando a todos. O tom religioso e a
lamentação do começo esfumam-se. Novamente estamos diante de pícaros
31
Idem, ibidem.
32
REY HAZAS, A. Cervantes se rescribe: el teatro y las novelas ejemplares. Criticon, n.76,1999, p.119-
164. Disponível em: <www.cervantesvirtual.com>.
107
falsamente religiosos e, através da tonalidade satírica presente nesse
entremez, é possível entrever uma crítica à banalização dos rituais e assuntos
religiosos. Tal crítica aparecerá de forma mais evidente em “Rinconete y
Cortadillo”.
Anteriormente se mencionou que Rincón e Cortado são pícaros que se
aproximam mais da tradição dos relatos picarescos e os delinqüente de
Monipodio se aproximam mais dos personagens dos entremezes. Essa
constatação é possível tanto pela comparação entre personagens do pátio e
personagens de entremezes, como já se viu, como também pela marcada
diferença presente no discurso dos mesmos.
O discurso dos personagens do Pátio distingue-se do discurso de
Rincón e Cortado principalmente pela falta de urbanidade:
Y ¿con sólo eso que hacen, dicen esos señores dijo
Cortadillo
33
que su vida es santa y buena?
Pues ¿qué tiene de malo? replicó el mozo . ¿No es peor ser
hereje o renegado, o matar a su padre y madre, o ser solomico?
Sodomita querrá decir vuesa merced respondió Rincón.
Eso digo dijo el mozo.
Todo es malo replicó Cortado . Pero, pues nuestra suerte ha
querido que entremos en esta cofradía, vuesa merced alargue el paso,
que muero por verme con el señor Monipodio, de quien tantas virtudes
se cuentan.
34
Levando em conta que os caracteres dos personagens se expressam
através de seu estilo e esse estilo se manifesta através de suas
prosopopéias
35
, é possível notar, dessa forma, o abismo que separa tais
personagens. No capítulo seguinte desta dissertação, será possível tratar com
mais profundidade do contraponto existente entre esses dois estilos.
33
Cervantes aqui utiliza o nome “Cortadillo” dado posteriormente por Monipodio ao personagem.
34
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.181.
35
LÓPEZ GRIGERA, L. La retórica en la España del siglo de oro. Salamanca: Ediciones Universidad
de Salamanca, 1994. p.170.
108
Mecanismo diferente ocorre, no entanto, quando, em sua comédia Pedro
de Urdemalas, Cervantes inclui um pícaro mais próximo à tradição das novelas
picarescas. É possível identificar o tipo de personagem prontamente, pelo seu
estilo, com a presença de um longo e pouco teatral monólogo, recurso que,
além de outorgar mais profundidade ao personagem, o vincula de algum modo
à estirpe dos pícaros da prosa.
Outra forma de aproximar as cenas ocorridas no pátio de Monipodio do
gênero dramático é pensar que, muitas vezes, os entremezes apresentados no
intervalo das jornadas das comédias colocavam em cena uma paródia da
própria comédia que era representada. Dessa forma, também é possível
reconhecer vestígios da estrutura da comédia que são parodiados pela novela,
sobretudo pela caracterização dos personagens:
A figura soberana e poderosa do rei: Monipodio;
O velho conselheiro respeitado por todos: velha Pipota;
O drama amoroso que contagia a todos : Juliana e Repolido;
O personagem masculino do “valentão”: Repolido;
A figura do “gracioso”: nesse caso cumprida pelos jovens pícaros Rincón
e Cortado, caracterizados sobretudo pelas agudezas jocosas que
imprimem nos diálogos da novela
Essa estrutura teatralizada de “Rinconete y Cortadillo” inspirou, segundo
Rey Hazas
36
, o anônimo “Famoso entremés de Masalquiví”, tendo o
personagem Masalquiví algumas dívidas importantes para com o Monipodio
cervantino. Um pouco mais adiante, em 1632, Castillo Solórzano incorpora, de
fato, um entremés ao seu relato picaresco, Teresa de Manzanares,
confirmando de maneira mais direta a importância da literatura dos entremezes
também para o gênero épico.
36
REY HAZAS, A. Teatro breve del Siglo de Oro. Madrid: Alianza, 2002. p.46.
4. Castigat ridendo mores. Comicidade e tonalidade satírica em
"Rinconete y Cortadillo"
studando o modo como a novela Rinconete y Cortadillo constrói
a sua originalidade com a combinação de elementos de
diversos gêneros (picaresca, teatro, novella italiana), é possível
observar a capacidade que tem a literatura cervantina de dialogar com seu
contexto literário de maneira singular, aportando ao leitor o privilégio de poder
reconstruir a cada leitura um pouco da história da literária espanhola.
Se as Novelas Exemplares em seu conjunto são um universo repleto de
reminiscências literárias, culturais e sociais, a novela "Rinconete y Cortadillo"
torna-se, desse modo, uma representante “exemplar” de como todo um
universo literário se reflete nas linhas desta pequena obra.
Anteriormente se mencionou a aproximação entre novela e comédia
atinada por alguns escritores contemporâneos a Cervantes. Tanto Lope de
Vega quanto o autor de Quixote apócrifo apontam essa analogia de maneira
muito direta. O segundo, por exemplo, não se refere às novelas cervantinas
como comédias em prosa, como também as considera “más satíricas que
ejemplares:”. Ao utilizar o termo “satíricas”, provavelmente Avellaneda se refere
à censura e à crítica à sociedade sevilhana e ao seu sistema judiciário,
presente tanto em "Rinconete y Cortadillo" quanto em “Coloquio de los
Perros”
1
. Nesse caso, é possível perceber a aplicação do termo “satírico” com
sentido adjetivo, acepção que, segundo Coronel Ramos, era comum nessa
época. Seu estudo levanta, por exemplo, o uso desta função adjetiva do termo
presente em uma obra como El discreto de Gracián: Esto concuerda con la
significación general que desde el medievo se dará al adjetivo satírico
convertido en sinónimo de crítico.
2
1
CLOSE, A. Cervantes y la mentalidad cómica de su tiempo. Alcalá de Henares: Biblioteca de estudios
cervantinos, 2007. p.194.
2
CORONEL RAMOS, M. A. Estructuras satíricas en los relatos picarescos. In: ESTUDIOS sobre la
sátira española en el siglo de oro. Org. Carlos Vaíllo e Ramón Valdés. Madrid: Castalia, 2006. p.38.
E
110
De fato, é possível pensar, por exemplo, na sociedade às avessas do
Pátio de Monipodio como uma espécie de sátira à sociedade sevilhana. No
entanto, é preciso esclarecer que o termo aqui empregado implica uma
tonalidade crítica que pode estar presente em qualquer gênero literário,
podendo um texto ser satírico sem que esta seja a sua modalidade principal. O
estudo “La sátira en el Siglo de Oro: notas sobre de un concepto controvertido”,
de Rodrigo Cacho Casal, pontua a existência nos estudos que se ocupam em
alguma medida da sátira. Leia-se:
Pocos conceptos como el de la sátira han gozado de mayor
predicamento en la tradición literaria de Occidente y, al mismo tiempo,
pocos han ocasionado mayor confusión y opiniones encontradas sobre
su real significado. Bajo el término sátira se pueden agrupar elementos
de naturaleza a veces muy diferente, y esta polivalencia se refleja con
claridad en los estudios que se han ocupado de ella.
3
Mais adiante, Rodrigo Cacho ressalta que as posturas com relação à
sátira costumam oscilar entre considerá-la um gênero concreto ou uma atitude
passível de ser encontrada em qualquer texto. A segunda postura parece
aproximar-se mais do objetivo desta parte do trabalho com "Rinconete y
Cortadillo".
Estudos sobre a sátira nos culos XVI e XVII ibéricos não abundam e
demoram a aparecer. Os organizadores da obra que foi fruto do primeiro
Colóquio sobre sátira na Espanha, em 2005, apontam que a sátira “sigue
padeciendo hoy en dia cierto grado de marginalidad en la atención que
mereceria recibir de la crítica”.
4
Desse modo, é preciso pontuar com clareza
qualquer estudo que envolva aspectos da sátira.
Tendo em conta principalmente que o objetivo deste trabalho não é
designar nenhuma etiqueta genérica, principalmente em se tratando de uma
obra tão plural como "Rinconete y Cortadillo", é possível tratar da tonalidade
3
CACHO CASAL, R. La sátira en el Siglo de Oro: notas sobre de un concepto controvertido.
Neophilologus, n.88, Netherlands, Kluwer Academic Publishers, p.61, 2003.
4
VAILLO, C.; VALDÉS, R. (Org.). Estudios sobre la sátira española en el siglo de oro. Carlos Vaíllo e
Ramón Valdés. Madrid: Castalia, 2006. p.7.
111
satírica que, como artifício literário associado ao cômico, está presente na
narrativa.
A definição proposta por Massaud Moisés em seu Dicionário de termos
literários demonstra de modo eficaz a acepção com a qual se está trabalhando:
Modalidade literária ou tom narrativo, consiste na crítica das instituições
ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos indivíduos.
Vizinha da comédia, do humor, do burlesco, da paródia, da ironia e
cognatos [...].
5
Motivos satíricos são comuns às comédias e aos entremezes, e as
narrativas cômicas cervantinas conservam, de alguma maneira, muitas das
características do gênero dramático, sobretudo de sua expressão mais popular:
a comédia.
Ao se observar o tema da segunda parte da novela, a sociedade
paralela criada por Monipodio para servir ao crime, a tonalidade satírica
denuncia alguns males da sociedade, exagerando-os por vezes com o objetivo
de mover os afetos e propor a correção dos vícios. A crítica esboçada pelo
texto através da comicidade das deformidades presentes na confraria de
ladrões pode ser lida como uma tonalidade satírica da obra, principalmente
porque há, no final da novela, o epílogo que propõe, de algum modo, a
correção dos males: castigat ridendo mores, ou seja, rindo se castigam os
males.
No capítulo 48 do Quixote, durante a antológica conversa entre o Cura e
o Canónigo acerca das comédias, Cervantes por boca do primeiro menciona
uma sentença de Cicero: “[...] porque habiendo de ser la comedia, según le
parece a Tulio, espejo de la vida humana, ejemplo de las costumbres y imagen
de la verdad [...]”
6
. As palavras do personagem provavelmente se aproximam
da visão que teria Cervantes sobre o gênero dramático e, conseqüentemente,
sobre o gênero cômico. Ao incorporar elementos do gênero dramático às suas
obras em prosa, o autor abre espaço também para criar, com a comicidade,
5
MOISÉS, M. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1997. p.412.
6
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.505.
112
uma interessante aproximação aos temas cotidianos, assim como a comédia o
fazia.
Para Close, o famoso diálogo entre o Cura e o Canónigo trata-se de uma
espécie de mini-manifesto, não só com relação ao gênero dramático, mas
também com relação à sua prosa de caráter cômico
7
. Tais reflexões estão
inclusive muito arraigadas aos preceitos aristotélicos com relação à comédia
nova e à velha
8
, de modo que sua preferência pelo humor comedido da
comédia nova se estende em direção à sua prosa cômica. Desse modo, os
aspectos satíricos da novela não apresentariam a mordacidade tradicional da
sátira de Juvenal, por exemplo, e sim estariam mais próximos a Horacio:
Para el humanismo renacentista, Horacio era la sobresaliente
encarnación de este tipo de urbanidad, para Márquez Torres [autor de
uma das aprobaciones que precedem a segunda parte de Dom
Quixote.], Cervantes es, sin duda, un Horacio cristiano. Elogio que sin
duda apreciaría puesto que ese era el ideal al cual aspiraba como
escritor satírico.
9
Dessa forma, o trabalho compartilha da posição de Close, de que
Cervantes concebia su ficción en modo cómico o humilde principalmente como
uma extensión de la comedia, del género dramático [...]
10
, de modo que se
torna clara a relação entre o critério dramático cervantino e as técnicas
utilizadas na composição de suas novelas.
Tendo em conta as reflexões expostas anteriormente acerca da relação
de Cervantes com o teatro da época e as preceptivas aristotélicas e
horacianas, é possível, então, já nesse primeiro momento, observar que o
7
CLOSE, A. Cervantes y la mentalidad cómica de su tiempo. Alcalá de Henares: Biblioteca de estudios
cervantinos, 2007. p.22.
8
A edição de Candido Lusitano da Poética de Horácio aponta a distinção entre os tipos de comédia: 1. A
Comédia velha: representavam-se os vícios dos cidadãos e, portanto, reinava a maledicência; 2. Comédia
Média: há o início da atenuação da maledicência; 3. Comédia Nova: Não se declara mais o nome das
pessoas, sendo somente possível tratar dos vícios em comum e das desordens do público de forma geral.
Os temas eram fingidos e tencionavam instruir e não infamar. (HORÁCIO. A Arte Poética de Horacio.
Traduzida e ilustrada em português por Candido Lusitano. Lisboa: Officina Rolandiana, 1788. p.X.).
9
CLOSE, A. Cervantes y la mentalidad cómica de su tiempo. Alcalá de Henares: Biblioteca de estudios
cervantinos, 2007. p.46.
10
Idem, p.22.
113
humor e a sátira presentes em "Rinconete y Cortadillo" têm como característica
a ausência de temas de conteúdo mais lascivo e de formas degradantes de
vitupério:
A comédia é, como já dissemos, imitação de maus costumes, não
contudo de toda sorte de vícios, mas aquela parte do ignomioso que
é ridículo. O ridículo reside num defeito e numa tara que não
apresentam caráter doloroso ou corruptor.
11
Como se expôs anteriormente, uma das características da literatura dos
entremezes é a presença do humor que se manifesta através de sátiras e
paródias da sociedade contemporânea. Sobretudo nos entremezes
cervantinos, é possível perceber, na maioria das vezes, uma tonalidade crítica
que ataca, de maneira sutil, certos usos e costumes sociais.
"Rinconete y Cortadillo", conhecida sobretudo pela pluralidade de formas
discursivas com as quais dialoga, insere-se portanto dentro do gênero cômico.
E, tal qual expõe em suas reflexões acerca da comédia, Cervantes incorpora à
sua prosa um tipo de humor comedido, nos moldes da comédia nova, que,
além de deleitar, de acordo com o princípio horaciano, também ensina, em
alguma medida.
4.1 Da famosa cidade de Sevilha
presente estudo, nesse momento, se volta à análise do modo
como o autor, através das deformidades e distorções típicas
do cômico inseridas em seu relato, se aproxima de seu
contexto sócio-cultural e satiriza certos males da sociedade hispalense do
Século de Ouro.
O humor pueril que permeia toda a novela parece acentuar-se à medida
que os delinqüentes do Patio se apropriam da narrativa, criando no espaço da
11
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. São Paulo: Garnier, 2000. p. 269.
O
114
confraria de ladrões uma espécie de centro da novela. Tudo de repente passa
a girar em torno daquela pequena sociedade secreta, imune às leis e aos
costumes sociais vigentes na cidade de Sevilha. Monipodio reinventa as leis
sociais e religiosas através do estatuto que impõe aos integrantes de sua
congregação. O riso presente nessa parte da novela parece não querer
somente divertir o leitor; também, de alguma maneira, parece querer ensinar
algo, chamando atenção para algumas mazelas da sociedade.
Estando diante de um quadro como esse, onde a criminalidade atinge
um grau de organização semelhante ao das instituições oficiais e se situa no
coração de uma cidade, sob o olhar das autoridades, o leitor logo se conta
de que está diante de alguns dos males da sociedade sevilhana. Leiam-se
algumas das últimas linhas da novela:
No menos le suspendía la obediencia y respecto que todos tenían a
Monipodio, siendo un hombre bárbaro, rústico y desalmado.
Consideraba lo que había leído en su libro de memoria y los ejercicios
en que todos se ocupaban. Finalmente, exageraba cuán descuidada
justicia había en aquella tan famosa ciudad de Sevilla, pues casi al
descubierto vivía en ella gente tan perniciosa y tan contraria a la misma
naturaleza; y propuso en de aconsejar a su compañero no durasen
mucho en aquella vida tan perdida y tan mala, tan inquieta, y tan libre y
disoluta.
12
fora do recinto de Monipodio, o narrador traz à tona os pensamentos
de Rincón, agora Rinconete, com relação ao que acabara de presenciar. Há,
sem dúvida, a consciência de que há algo errado com a justiça da cidade.
Mesmo sendo um pícaro, o jovem classifica a associação de Monipodio como
gente tan perniciosa y tan contraria a la misma naturaleza. Mesmo advindo de
um contexto em que convive com a criminalidade e comete delitos, o
personagem nos delinqüentes do Patio algo que ultrapassa qualquer
tolerância. Chama atenção também o modo como se refere à cidade como
12
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid:
Editorial Crítica, 2001. p.215.
115
sendo “tan famosa, o que destaca o status de Sevilha como uma cidade
singular nesse período.
O espetáculo repleto de picardia e impunidade que, atônito, o leitor
presencia ao lado de Rinconete e Cortadillo no Patio de Monipodio se trata de
um retrato deformado da sociedade sevilhana da época. Como se
mencionou, a cidade de Sevilha, que causa tanto receio em Dom Quixote, era
então conhecida como “paraíso del hampa”, ao que se soma a existência
documentada, em finais do século XVI e no XVII, de organizações criminosas
como a da Monipodio.
En Sevilla dicen que hay cofradía de ladrones, con su prior y cónsules,
como mercaderes. Hay depositario entre ellos, en cuya casa se recogen
los hurtos, y arca de tres llaves, donde se hecha lo que se hurta y lo que
se vende, y sacan de allí para el gasto y para cohechar lo que pueden
con su remedio cuando se ven en aprieto. Son muy recatados en reçibir
que sean hombres esforçados y ligeros, cristianos viejos. No acogen
sino a criados de hombres poderosos y favorecidos en la ciudad [y]
ministros de justicia. Y lo primero que juran es esto: que aunque los
hagan cuartos, pasarán su trabajo, mas no descubrirán los compañeros.
Y ansí cuando entre gente de una casa falta algo, que dicen que el
diablo lo llevó, levántanselo al diablo, que no lo llevo sino uno de estos.
Y de haber cofradía es cierto, y duramucho más que la señoría de
Veneçia, porque aunque la justicia entresaca algunos desdichados
nunca ha llegado al cabo de la hebra.
13
O texto extraído da Miscelanea de Luis Zapata, datado entre 1592–1595,
foi, segundo Rey Hazas
14
, “descoberto” por Pellicer (1797), cervantista do
século XVIII, e desde então atrai a atenção dos estudiosos, adquirindo a
dimensão de uma prova irrefutável do naturalismo da narrativa
15
. A Miscelánea
faz parte de um gênero pertencente à didática, que poderia ser apontado como
um dos precursores do ensaio. Também conhecida como Silva de casos
13
Citado com base em: REY HAZAS, A. Poética de la libertad y otras claves cervantinas. Madrid:
Eneida, 2005. p.179.
14
Idem, ibidem.
15
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Madrid:
Editorial Crítica, 2001. p.791.
116
curiosos, é uma coleção de ditos e cenas da vida política, social e literária de
seu tempo. Muitos escritores encontravam nesse tipo de texto inspiração e
temas para obras maiores.
Também é preciso destacar que, nas Ordenanzas Reales, a legislação
da época, é mencionada a proibição de qualquer ayuntamiento, bando, liga o
cofradía” que não estejam dedicados a causas pias e espirituais
16
:
Ley XII
D. Enrique IV, en Toledo año de 1462 [...]
Revocación y prohibición de cofradías y cabildos, no siendo para
causas pias y con Real licencia
Porque muchas personas de malos deseos, deseando hacer daño á sus
vecinos o por executar la malquerencia que contra algunos tienen,
juntan cofradías, y para colorar su mal propósito, toman advocación y
apellido de algun Santo ó Santa, y llegan así otras muchas personas
conformes á ellos en los deseos, y hacen sus ligas y juramentos para se
ayudar; y algunas veces hacen sus estatutos honestos para mostrar en
público, diciendo que para la execución de aquellos hacen las tales
cofradías, pero en sus hablas secretas y consejos, tiran á otras cosas
que tienden en mal de sus próximos [...] revocamos todas y qualesquier
cofradías [...] salvo las que han sido hechas solamente para causas pias
y espirituales, [...].
17
Condensando em breves linhas, alguns dos traços fundamentais da
novela, tanto o texto da Miscelânea quanto a legislação, são, sobretudo,
documentos históricos que denunciam a situação do avanço da criminalidade
em Sevilha. Surpreende o modo como a novela se apropria das características
da organização criminosa descrita no texto legislativo, a começar pela
nomenclatura cofradía, também utilizada na Miscelânea, que alude à instituição
religiosa. A existência de “estatutos” que pregam, entre outras coisas, a divisão
16
Para mais detalhes sobre os trabalhos que discutem a legislação na literatura cervantina, remetemos o
leitor aos estudos de Susan Byrne, entre eles: Cervantes ´Don Quijote` as Legal Commentary. Bulletin of
Cervantes Society of America. Disponível em: <www.h-net.org/~cervantes/csa/articf07/byrnef07.pdf>.
17
NOVÍSIMA Recopilación de las leyes de España. Dividida en XII libros. Edição facsimilar disponível
em: <http://bib.us.es/derecho/recursos/pixelegis/areas/codigos-ides-idweb.html>.
117
de tudo o que é roubado e a preservação dos companheiros (“guardan los unos
a los otros e impedem la execución de nuestra justicia
18
) também está
dramatizada na novela.
Após analisar-se dentro da composição da novela a presença dos
gêneros picaresco e dramático, é possível, nesse momento, observar o modo
como se opera, tal como no teatro de entremezes, um retrato satírico da
sociedade hispalense nas linhas do relato.
Entendendo a sátira como conceito associado ao cômico, é preciso,
antes de tudo, pontuar que existiam na época graus de deformidade e
mordacidade com relação aos temas e às críticas que são tratados dentro da
esfera cômica.
Para pontuar melhor esses aspectos satíricos, é preciso ter em conta o
histórico e algumas características da sátira como gênero independente. A
origem da sátira é latina segundo Quintiliano, que, no livro X de Institución
Oratória, escreve:
La sátira es toda nuestra, en la cual el primero que consiguió
insigne alabanza fue Lucilio, el que tiene todavía algunos tan
apasionados que no dudan en darle preferencia, no sólo a los escritores
de la misma materia, sino también a todos los poetas.
19
E, em seguida, o autor cita Lucilio e Horacio como iniciadores do gênero.
Reatualização da catarse aristotélica como dirigismo pedagógico, a
sátira fere para curar, propondo a correção dos males
20
. Ao dramatizarem-se e
exagerarem-se os vícios, movem-se os afetos, persuadindo, dessa forma, o
auditório.
Segundo el Tesoro de Covarrubias, a sátira es un género de verso
picante, el cual reprehende los vicios y desórdenes de los hombres; y poetas
18
Idem, ibidem.
19
QUINTILIANO. Institución Oratória, libro 10. Disponível em:
<http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/24616141101038942754491/index.htm>. Acesso
em:
20
HANSEN, J. A. A sátira e o Engenho. São Paulo: Ateliê, 2004. p.48.
118
satíricos los que escribieron el tal verso, como Lucilio, Horacio, Juvenal
21
.
Assim sendo, ao satirizar um determinado aspecto social, são denunciados e
repreendidos os vícios. a origem da palavra se explica por uma motivação
etimológica do termo latino satura, que retoma o grego satyros; ambos
significam mistura, satura sendo mistura de discursos e satyros, mistura de
homem e bode. O gênero é, conseqüentemente, híbrido em sua essência.
Como o satyros que tem duas naturezas formando assim uma terceira, o
gênero não possui a unidade prescrita como em outros gêneros: “é mista,
como mescla de alto e de baixo, grave e livre, trágico e cômico, sério e
burlesco”
22
.
Por ser a sátira, por vezes, de natureza mais picante e mordaz, como a
sátira de Juvenal, é preciso pontuar que certas características cômicas da
novela podem ser lidas como “horacianamente” satíricas, em seu sentido mais
adjetival. Entendendo a sátira como uma tonalidade inserida em outros
gêneros, é possível encontrar a presença de diversos elementos característicos
da sátira, gênero literário
23
na segunda parte da novela. A presença da sátira
como tonalidade em textos do século XVI já foi estudada por K.Scholberg:
En cualquier época, [...] hay siempre el revés de la medalla, el
otro lado del cuadro que lleva ocultas las máculas de las gentes, sus
debilidades y pecados. Es este lado el que nos revela los escritores
satíricos, en denuestos, invenctivas, vejámenes, burlas, ironías,
calumnias, mofas y todos los otros términos con los que son conocidos
tales escritos. La verdad es que los críticos jamás se han puesto de
acuerdo sobre lo que es la sátira, aunque casi todos convienen en que
más que un género literario formal, la sátira es, o presenta, una actitud,
21
COVARRUBIAS, S. de. Tesoro de la Lengua Castellana o Española. Barcelona: Horta, 1943.
22
HANSEN, J. A. A sátira e o Engenho. São Paulo: Ateliê, 2004. p.292.
23
Da mesma forma, Antonio Rey Hazas estudou a presença de sátira em novelas picarescas em seu
trabalho Deslindes de la novela picaresca . Leia-se: “[...] antedicho que se trata además de un relato
onde observou por exemplo que El libro de entretenimiento de la pícara Justina é satírico entendendo a
sátira como tonalidade inserida en otros géneros”. (REY HAZAS, A. Deslindes de la novela picaresca.
Malaga: Servicio de publicaciones de la Universidad de Málaga, 2003. p.245).
119
que puede expresarse en cualquier forma literaria, y que una obra
puede ser satírica en parte, sin que esta sea su modalidad principal
24
.
Essa noção de “sátira” como recurso literário presente de modo
predominante ou não em outros gêneros corrobora o já exposto anteriormente:
que a sátira é um gênero híbrido, que prescinde de unidade.
muito se estudou sobre a presença da sátira em obras como Lazarillo
de Tormes, em que se satirizam a corrupção e a hipocrisia do clero. No entanto
a tonalidade satírica da novela cervantina se distancia desse modelo de prosa
cômica, segundo Close:
Esta cita marca la diferencia entre Cervantes y los novelistas picarescos
de su época. Para simplificar, Cervantes transforma la ficción cómica,
bien purgando su materia tradicional ingeniosas seducciones llevadas
a cabo por frailes mujeriegos, astutos engaños, equivocaciones de
camas o parejas en habitaciones oscuras, desgracias ridículas en
excusados o bien presentándola desde una perspectiva medular que,
aunque cómica, es instrinsecamente lúcida u honorable.
25
Ainda segundo Close, para Cervantes havia um claro limite com relação
aos tipos de sátira e vitupério. Na mesma obra citada anteriormente, o crítico
explora as observações acerca da sátira esparsas tanto na obra cervantina
26
quanto em observações em prólogos e fragmentos escritos por autores
contemporâneos a Cervantes, evidenciando a atitude do autor em optar por um
tipo de sátira em que estão ausentes formas degradantes de vitupério.
Cervantes parece distinguir dois tipos de sátira: uma “legítima”, em que se
exclui a maledicência, e outra “ilegítima”, mais virulenta e ofensiva. Leia-se:
24
SCHOLBERG, K. Algunos Aspectos de la sátira en el siglo XVI. Berne Frankfurt Las Vegas: Peter
Lang, 1979. p.9.
25
CLOSE, A. Cervantes y la mentalidad cómica de su tiempo. Alcalá de Henares: Biblioteca de estudios
cervantinos, 2007. p.98.
26
Analisa principalmente algumas observações presentes em Viaje Del Parnaso, no Quijote e no
Coloquio de los perros. (CLOSE, A. Cervantes y la mentalidad cómica de su tiempo. Alcalá de Henares:
Biblioteca de estudios cervantinos, 2007. p.44).
120
Riña vuesa merced a su hijo si hiciere sátiras que perjudiquen las
honras ajenas, y castíguele, y rómpaselas, pero si hiciere sermones al
modo de Horacio, donde reprehenda los vicios en general, como tan
elegantemente él lo hizo, alábele […].
27
No Tratado do Ridículo, Tesauro faz uma distinção semelhante à que
realiza Cervantes, entre sátira deformidade maledicente de Ridículo
deformidade sem prejuízo —, embora defenda também que ambas as
categorias do cômico podem cruzar-se:
[…] às vezes o Tema Ridículo pela matéria tornar-se-á Satírico pela
maneira: se se caçoa de maneira que se contamine a reputação de
outros, e por isso agora não se pode chamar Deformitas sine dolore,
ferindo o vivo. E ao contrário, a Matéria Satírica e Mordaz, torna-se às
vezes Ridícula; se se caçoa de maneira que o pareça morder, mas
brincar.
28
Uma das características da tonalidade satírica presente na novela é a
justaposição de elementos díspares; por exemplo, estão justapostos bando
criminoso com estatutos de instituição religiosa (confraria), delinqüentes, mas
que praticam rituais religiosos. Ao abordar dessa maneira a realidade da
delinqüência sevilhana, Cervantes teatraliza seus vícios, inflando, exagerando
seus males através de uma atmosfera festiva onde reinam a alegria e a
liberdade, assim como o descaso pelas regras sociais que são reinventadas. É
o tema do mundo às avessas que, ao lado de outros, como “misoginia,
glutoneria, usura, luxúria, etc. formavam o elenco de lugares comuns mais ou
menos petrificados das tópicas de invenção poética”
29
.
A tópica do mundo al revés aparece de modo interessante num poema
de Torres Naharro incluído em sua obra Sátyras, que, ao criticar a sociedade
romana, parece referir-se à Sevilha de Monipodio:
27
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.675.
28
TESAURO, E. Tratado dos Ridículos. Campinas: CEDAE, 1992. p.39.
29
HANSEN, J. A. A sátira e o Engenho. São Paulo: Ateliê, 2004. p.52.
121
[...] huyendo virtudes, seguiendo locuras,
loando lo malo, tachando lo bueno [...]
Las cosas más feas traemos en palmas;
triunphan los cuerpos, mas; guay de las almas
[...]
Quien sabe mentir s[a]brá triumphar;
quien vsa bondad la cuelgue del cuello
quien fuere el que deue, que muera por ello [...].
30
O mundo de Monipodio, cheio de regras e valores, onde criminosos
estão sob as ordens de um chefe e cumprem a risca rígidos estatutos,
contrasta com a falta de cumprimento de regras sociais básicas por parte da
justiça oficial que negligencia seu trabalho, apoiando o crime organizado. Em
comum, entre essas sociedades paralelas presentes na novela, um
esvaziamento de valores: por um lado, a justiça deixa de seguir suas regras
oficiais para adequar-se às regras inventadas por Monipodio, enquanto a
quadrilha se apropria de regras e preceitos religiosos da sociedade vigente de
modo inconseqüente, para assim poder atribuir maior autoridade aos seus
estatutos. Ladrões seguem de maneira rígida as leis de sua “organização”, ao
passo que a justiça oficial transgride seus estatutos ao deixar de lado sua
tarefa essencial de combater o crime, prestando, além de tudo, serviços ao
crime. Monipodio refere-se a quem os protege:
[...] y estas tales misas, así dichas como pagadas, dicen que
aprovechan a las tales ánimas por vía de naufragio, y caen debajo de
nuestros bienhechores: el procurador que nos defiende, el guro
31
que
nos avisa, el verdugo que nos tiene lástima, [...] Son también
bienhechoras nuestras las socorridas
32
, que de su sudor nos socorren,
ansí en la trena como en las guras; y también lo son nuestros padres y
30
SCHOLBERG, K. Algunos Aspectos de la sátira en el siglo XVI. Berne Frankfurt Las Vegas: Peter
Lang, 1979. p.74.
31
Alguacil é funcionário da justiça.
32
Socorridas são prostitutas.
122
madres, que nos echan al mundo, y el escribano, que si anda de buena,
no hay delito que sea culpa ni culpa a quien se dé mucha pena; [...]
33
.
E também, no momento em que são surpreendidos pela visita de um
funcionário da justiça, o chefe os tranqüiliza:
Estando en esto, entró un muchacho corriendo y desalentado, y dijo:
El alguacil de los vagabundos viene encaminado a esta casa, pero
no trae consigo gurullada
34
.
Nadie se alborote dijo Monipodio , que es amigo y nunca viene
por nuestro daño. Sosiéguense, que yo le saldré a hablar.
35
Ao final, quando restitui ao alguacil a bolsa roubada por Cortadillo,
Monipodio explica:
[...] y la bolsa se ha de llevar el alguacil, que es de un sacristán pariente
suyo, y conviene que se cumpla aquel refrán que dice: «No es mucho
que a quien te da la gallina entera, tú des una pierna della». Más
disimula este buen alguacil en un día que nosotros le podremos ni
solemos dar en ciento.
36
Quando diz buen alguacil, não necessariamente uma ironia na fala
de Monipodio, já que verdadeiramente o alguacil colabora com sua associação.
A questão é que, ao ser prestativo com o crime, o funcionário descumpre com
os estatutos oficiais da justiça, eis que o que é “bompara crime é mau para a
sociedade.
O efeito cômico desencadeado pelo contraponto entre a exímia
organização da sociedade de Monipodio ao lado da desorganização e da
33
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.186.
34
Grupo de alguaciles.
35
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p. 191.
36
Idem, ibidem.
123
negligência da sociedade sevilhana, representada pela figura do alguacil, faz rir
e ao mesmo parece querer ensinar. Visto este espetáculo de impunidade pelos
olhos de personagens pícaros como Rincón e Cortado, a crítica à sociedade se
desloca, tornando-se menos mordaz e preservando a urbanidade característica
das obras cômicas cervantinas.
4.2 Cada uno en su oficio puede alabar a Dios
utras das deformidades encontradas em “Rinconete y
Cortadillo” tratam-se das chamadas, por Tesauro, em seu
Tratado dos Ridículos, deformidades comparativas.
Características do Ridículo em geral, o autor assim as descreve: “Se o saber
não corresponde à profissão: de cujos erros tu ris em Prosa e Verso”. Na
novela, tanto algumas ações quanto alguns saberes dos pícaros do Pátio de
Monipodio não correspondem à sua profissão. Essa desproporção de dois
objetos causa o riso e possibilita ao autor fabricar engraçadíssimas “argúcias”,
termo utilizado por Tesauro.
37
Através da esquematização incongruente das caricaturas, da
deformidade monstruosa dos mistos, o cômico deforma proporcionalmente,
como imagem fantástica e inverossímil, a imagem icástica
38
e verossímil da
opinião
39
. Dessa forma, é possível para o leitor reconhecer nos efeitos a
contradição.
Quando Rincón e Cortado se encontram pela primeira vez com o pícaro
da confraria de Monipodio, ocorre um dos diálogos mais cômicos da novela.
Há, de imediato, dois estranhamentos. O primeiro é com relação à linguagem
empregada por ele. A língua germanesca é desconhecida dos jovens. O
segundo vem da surpresa de que ladrões também podem servir a Deus:
37
TESAURO, E. Tratado dos Ridículos. Campinas: CEDAE, 1992. p.39.
38
Nesse caso, tem-se em conta que os costumes encenados pelo mico ou pela sátira se tratam de
imagens deformadas, ou seja, não são icásticas, portanto não correspondem necessariamente à realidade
empírica. As deformações, ou seja, as imagens fantásticas, visam a exagerar para assim mover os afetos e
evidenciar os vícios.
39
HANSEN, J. A. Uma arte conceptista do cômico: O “tratado dos ridículos” de Emanuele Tesauro. In:
TESAURO, E. Tratado dos Ridículos. Campinas: CEDAE, 1992. p.9.
O
124
¿Es vuesa merced, por ventura, ladrón?
respondió él , para servir a Dios y a las buenas
gentes, aunque no de los muy cursados; que todavía estoy en el año del
noviciado.
A lo cual respondió Cortado:
Cosa nueva es para que haya ladrones en el mundo para
servir a Dios y a la buena gente.
A lo cual respondió el mozo:
Señor, yo no me meto en tologías; lo que sé es que cada uno
en su oficio puede alabar a Dios, y más con la orden que tiene dada
Monipodio a todos sus ahijados.
Sin duda dijo Rincón , debe de ser buena y santa, pues
hace que los ladrones sirvan a Dios
40
.
Para o leitor, ficam evidentes tanto a desproporção entre a “profissão” e
a vida religiosa quanto a ironia da última fala de Rincón, que parece ao lado do
leitor desacreditar de tal disparate.
Instigados pela novidade, os protagonistas decidem comprovar se de
fato isso é possível, delinqüência e religião compartilhando os mesmos
estatutos ditados por esse chefe, Monipodio. Levados pelo noviço, os jovens se
depararão com pícaros que se dizem religiosos, mas que também praticam, à
sua maneira, os rituais de devoção da igreja. Devotos, praticantes e
principalmente crentes, esses delinqüentes foram persuadidos pelo líder
Monipodio de que ser um ladrão ou uma prostituta não exclui manter
paralelamente uma vida devota e que, inclusive, era aconselhável e muito útil,
pois poderiam contar com a Providencia divina caso se encontrassem em
perigo ou perseguidos pela justiça. O mesmo estatuto que prega que todos os
bens roubados devem ser divididos inclusive recomenda que se contribua com
esmolas para os santos, que se reze o rosário todas as semanas, que se
encomende missa pelas almas etc.
40
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.179.
125
Mistura de superstição e ritualismo, a religiosidade pregada por
Monipodio aproxima-se de alguns costumes sociais da época, em que
criminosos mantinham certos rituais católicos como forma de conseguir
proteção divina e da justiça.
Essa deformidade parece de algum modo acentuar a atmosfera teatral
presente na novela, que os delinqüentes de fato atuam como religiosos,
exagerando nos gestos em busca, talvez, de uma maior credibilidade. Para
contar com a proteção divina, os delinqüentes de Monipodio levam em seu
alforje objetos da católica, como, por exemplo, os velhos que caminham pelo
Pátio com rosarios de sonadoras cuentas”
41
. Essa amplificação está calculada
dentro dos efeitos cenográficos do cômico.
Contudo a justaposição de delinqüência e religiosidade não era
nenhuma novidade para o leitor da época e não causava o riso por si . Na
literatura picaresca, havia o exemplo de Guzmán de Alfarache, o pícaro com
características de pregador. Por ter se retirado da vida de pícaro, Guzmán
reflete sobre seu passado, mostrando certo arrependimento. Por ter este
distanciamento da vida criminosa, o declarado “ex-pícaro” se coloca no lugar
de conselheiro e pregador dos bons costumes e da católica. Não são raras
as passagens religiosas:
Así debemos amar a Dios sobre todas las cosas, con todo nuestro
corazón y de todas nuestras fuerzas, pues Él nos ama tanto. Después
déste el conyugal y el prójimo
42
.
São evidentes duas diferenças entre a religiosidade de Guzmán e a dos
pícaros do Patio. A primeira, mencionada, é a de que Guzmán e os pícaros
de Monipodio como personagens de novela possuem genealogias diferentes
43
;
a segunda é a de que Guzmán parece ter abandonado completamente a sua
vida de pícaro, enquanto os delinqüentes do Pátio estão no auge da vida
41
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.182.
42
ALEMÁN, M. Guzmán de Alfarache. Ed. José Maria Micó. Madrid: Cátedra, 1992. p.152.
43
Guzmán pertence à tradição picaresca inaugurada por Lazarillo de Tormes, ao passo que os
delinqüentes do Patio de Monipodio se vinculam mais aos pícaros dos entremezes.
126
criminosa. Todavia a principal discrepância entre as duas justaposições é que,
no caso de Guzman de Alfarache, a deformidade não leva ao riso, não é
ridícula, não diverte o leitor, como no caso de "Rinconete y Cortadillo".
Mesmo que, em sua longa trajetória, Guzmán tenha sido tão delinqüente
ou mais que Monipodio, ele narra e aconselha de um lugar diferente, com um
status de ex-pícaro, que “aprendeu” com suas vivências, de modo que não é
possível visualizar claramente a contradição, embora, em algum momento, o
próprio personagem se questione com relação a essa justaposição. Guzmán
parece ter consciência de que era mal vista pela sociedade a prática da
devoção por parte de criminosos. Porém, mesmo assim, defende as suas
crenças:
Ya sabes mis flaquezas: quiero que sepas que con todas ellas nunca
perdí algún día de rezar el rosario entero, con otras devociones; y
aunque te oigo murmurar que es muy de ladrones y rufianes no soltarlo
de la mano, fingiéndose devotos de Nuestra Señora, piensa y di lo que
quisieres como se te antojare que no quiero contigo acreditarme.
44
Ainda na literatura, Micó aponta que, em El Buscón de Quevedo,
também é possível encontrar uma pícara devota, e Calderón de la Barca, em
La devoción de la cruz, escreve: Las devociones nunca faltan del todo a los
ladrones
45
, destacando a naturalidade com que a religiosidade estava
presente no mundo criminal.
Também na segunda novela da segunda jornada de Decameron,
aparece o tema “delinqüência/religião” com a história de Rinaldo, devoto de
São Julião e um grupo de ladrões que o assalta.
Dessa forma, nota-se que o tema da “religiosidade dos crimionosos” não
era por si só cômico, mas se torna ridículo quando colocado na chave da sátira,
que exagera, amplifica toda a sua desproporção.
Dentro do contexto da novela, desde o princípio causa admiração e não
parece natural e verossímil para Rincón e Cortado a religiosidade dos
44
ALEMAN, M. Guzmán de Alfarache. Ed. De José Maria Micó. Madrid: Cátedra, 1992. p.284.
45
Idem, p.99.
127
integrantes da confraria. Os personagens desde o início se mostram
desconfiados e irônicos com relação à de seus novos companheiros. Por
mais que os personagens do Pátio tentem justificar sua devoção, quanto mais
o fazem, mais ridículo se tornam aos olhos de Rincón e Cortado e também dos
leitores:
Es tan santa y buena replicó el mozo , que no yo si
se podrá mejorar en nuestro arte. Él tiene ordenado que de lo que
hurtáremos demos alguna cosa o limosna para el aceite de la lámpara
de una imagen muy devota que está en esta ciudad, y en verdad que
hemos visto grandes cosas por esta buena obra; porque los días
pasados dieron tres ansias a un cuatrero que había murciado dos
roznos, y con estar flaco y cuartanario, así las sufrió sin cantar como si
fueran nada. Y esto atribuimos los del arte a su buena devoción, porque
sus fuerzas no eran bastantes para sufrir el primer desconcierto del
verdugo.[...] Tenemos más: que rezamos nuestro rosario, repartido en
toda la semana, y muchos de nosotros no hurtamos el día del viernes, ni
tenemos conversación con mujer que se llame María el día del sábado.
De perlas me parece todo eso dijo Cortado ; pero
dígame vuesa merced: ¿hácese otra restitución o otra penitencia más
de la dicha?
En eso de restituir no hay que hablar respondió el mozo
, porque es cosa imposible, por las muchas partes en que se divide lo
hurtado, llevando cada uno de los ministros y contrayentes la suya; y
así, el primer hurtador no puede restituir nada; cuanto más, que no hay
quien nos mande hacer esta diligencia, a causa que nunca nos
confesamos; y si sacan cartas de excomunión, jamás llegan a nuestra
noticia, porque jamás vamos a la iglesia al tiempo que se leen, si no es
los días de jubileo, por la ganancia que nos ofrece el concurso de la
mucha gente.
46
Embora somente obedeça as ordens que lhe Monipodio, o pícaro
parece acreditar que realmente se obtêm benefícios da devoção. Para
46
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.180.
128
persuadir Rincón e Cortado, chega a empregar exemplos. Convencido por
Monipodio, o jovem cumpre com satisfação os rituais de devoção. O rosário
que reparte semanalmente é um ritual católico diário com base no qual cada
dia da semana possui um tema para a oração
47
. Esta prática era bastante
freqüente na cultura espanhola, constando também na literatura religiosa, por
exemplo, na Introducción a la vida devota, em que San Francisco de Sales
(1608) destaca que: el Rosario es una manera muy útil de orar, con tal que se
rece cual conviene. E aconselha que todos mantenham la santa costumbre
diariamente.
Quanto a não roubar às sextas-feiras, provavelmente a regra se deve ao
jejum e à penitência que se realizam nesse dia, práticas também mencionadas
por San Francisco de Sales:
Los miércoles, viernes y sábados son los días en los cuales los antiguos
cristianos más se ejercitaban en la abstinencia; escoge, pues, algunos
de estos días para ayunar, según te lo aconsejen tu devoción y la
discreción de tu director.
48
Sobre não conversar com mulheres chamadas Maria aos sábados, não
há nada prescrito. Poder-se-ia relacionar com algum ritual para a Virgem Maria,
entretanto seria mais acertado pensar que se trata de uma regra inventada por
Monipodio. Cervantes a elenca junto com as outras práticas verdadeiras
chamando atenção para o fato de que esses ladrões reinventam as formas de
devoção, seguindo de modo apenas superficial tais ritos.
Cientes de que o problema reside sobretudo na transgressão do sétimo
mandamento (“Não roubarás”), e não nos dias em que se praticam os crimes,
Cortado faz a pergunta fundamental para entender a religiosidade desses
pícaros: “há alguma espécie de restituição dos bens roubados?”. A resposta é
taxativa: en eso de restituir no hay que hablar”, ou seja, não a prática
47
O rosário geralmente era dividido da seguinte maneira: segunda e quinta-feira, mistérios gozosos; terça
e sexta-feira, mistérios dolorosos; quarta-feira, sábado e domingo, mistérios gloriosos. (Idem, p.180).
48
QUEVEDO Y VILLEGAS, F. Introducción a la vida devota Quinta parte capítulo XXIII. In:. Obras
completas. Obras en prosa. Ed. Felicidad Buendía. Madrid: Aguilar, 1992.
129
religiosa como meio de se fazer o bem. Trata-se, pois, de rituais praticados de
maneira vazia, como uma espécie de superstição, tanto que estão permitidas
algumas transgressões, como abrir mão da confissão tão recomendada
durante a Contra-Reforma, de modo que não teriam de confessar nenhum
delito, e também não era obrigatório comparecer à missa durante os dias em
que se lêem as cartas de excomunhão, isto é, os que haviam sido
excomungados não chegavam a tomar conhecimento disto.
Apesar de ser uma das armas espirituais da igreja, a excomunhão vinha
perdendo seu prestígio e valor:
[...] era queja común que el abuso que se hacía de ella (la excomunión),
había perdido prestigio y valor, hasta el punto de que muchas personas
de religiosidad indudable se dejaban estar excomulgadas largo
tiempo.
49
Esse desprestígio das cartas de excomunhão deve-se principalmente ao
uso indistinto desse recurso para, por exemplo, a recuperação de objetos
perdidos ou para a cobrança de dívidas
50
. Essa “utilidade” das chamadas
paulinas
51
aparece na novela quando o estudante roubado por Cortado o
interroga sobre a bolsa desaparecida. Cortado então lhe aconselha a recorrer
às paulinas para recuperar o objeto perdido.
Diante dos argumentos expostos pelo pícaro da confraria, Rincón e
Cortado parecem não se convencer. Apesar dos exemplos dos benefícios da
devoção e a descrição dos rituais para mantê-la viva, o pícaro percebe a
desconfiança de seu auditório e continua sua argumentação:
Y ¿con sólo eso que hacen, dicen esos señores dijo
Cortadillo
52
que su vida es santa y buena?
49
DOMÍNGUEZ ORTIZ. La sociedad española en el siglo XVII. Granada: Consejo de investigaciones
científicas, 1970. p.181.
50
Idem, p.181.
51
Paulinas eram os mandatos que se davam para recuperar objetos roubados ou extraviados, ameaçando-
se com a excomunhão os que não os devolvessem. (Idem, p.181).
52
Cervantes aqui utiliza o nome “Cortadillo” dado posteriormente por Monipodio ao personagem.
130
Pues ¿qué tiene de malo? replicó el mozo . ¿No es peor
ser hereje o renegado, o matar a su padre y madre, o ser solomico?
Sodomita querrá decir vuesa merced respondió Rincón.
Eso digo dijo el mozo.
Todo es malo replicó Cortado . Pero, pues nuestra suerte
ha querido que entremos en esta cofradía, vuesa merced alargue el
paso, que muero por verme con el señor Monipodio, de quien tantas
virtudes se cuentan.
53
O efeito continua: quanto mais explica sua religiosidade, mais se
aproxima do ridículo. O argumento de que níveis de delito é refutado em
seguida por Cortado; todo es malo, diz, demonstrando a sua convicção de que
não vê como ladrões possam servir a Deus. Mesmo assim o personagem
decide conhecer Monipodio, por curiosidade, porque la suerte ha querido, mas
não porque veja fundamento em sua organização, o que faz com que o leitor
também se mantenha desconfiado, com um riso irônico nos bios ao adentrar
o contagiante espaço do Pátio de Monipodio.
Um espaço metafórico onde coexistem crime e religião, orquestrados por
uma contagiante atmosfera teatral, assim é o Pátio de Monipodio, uma
sociedade invertida à qual o leitor terá acesso pela mão dos pícaros Rincón
e Cortado, e apenas por meio deles se conquistará o privilégio de conhecer
cada mazela representada nesse palco oculto.
53
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.181.
131
4.3 Da honestidade do orador: Monipodio conduz os seus fiéis
Las honestas palabras dan indicio de la
honestidad del que las pronuncia o las escribe.
Miguel de Cervantes. El coloquio de los perros
anifestações religiosas de caráter teatral como as pregações,
procissões e missões
54
eram algumas das expressões
artísticas mais comuns na praça pública de uma cidade
agitada como Sevilha. A religião parecia onipresente, como
destacou Nuñez Roldán em La vida cotidiana en la Sevila del siglo de oro: En
los siglos XVI y XVII Dios estaba en todas las partes y ocupaba todas las horas
de los hombres […]
55
.
Em que outro lugar, religião e criminalidade estariam convivendo de
maneira tão próxima que não na própria cidade de Sevilha? A religião se
convertera em espetáculo teatral, ocupando o centro da praça, onde pícaros
reformados e mendigos com carteirinha compareciam curiosos para ouvir as
contagiantes palavras do pregador sem muitas vezes se dar conta da
engenhosa manobra à qual estavam submetidos.
Em seu Patio, Monipodio prega de forma veemente as normas e
preceitos de sua confraria. Seu discurso é bem recebido e acatado pelos seus
súditos, os confrades da organização. Rincón e Cortado, no entanto, não
chegam a ser persuadidos por sua oratória; desde o início, os personagens
desconfiam da honestidade desse pregador.
O verbo “pregar” vem do latim praedicare, que em espanhol se tornou
predicar, e tem entre suas muitas acepções em língua portuguesa “pronunciar
54
A Contra-Reforma iniciada a partir do Concílio de Trento (1545-1563) resultou em um importante
impacto sobre a cultura popular espanhola. Em nome dacatólica, estabeleceu-se um amplo movimento
de doutrina e reforma dos costumes que teve como principal fonte as resoluções do Concílio de Letrão,
das quais se apropria, sobretudo, do décimo cânon o De praedicatoribus restituendis, o qual declara a
pregação como um dos principais procedimentos para doutrinar a massa. Estabeleceram-se, dessa forma,
diversas medidas para garantir sua eficácia. Seus objetivos prioritários estavam ligados principalmente a
impor uma maior disciplina e cristianizar a vida cotidiana e a cultura popular. (VILAGRAN, M.G. La
palabra del predicador. Contrarreforma y superstición en Cataluña (siglos XVII y XVIII). Barcelona:
Universidad Autónoma de Barcelona, 2003. p.49 – tesis doctoral).
55
NUÑEZ ROLDAN, F. La vida cotidiana en la Sevila del siglo de oro. Madrid: Silex, 2004. p.16.
M
132
sermões, propagar o cristianismo ou alguma doutrina”. Desse modo, podemos
classificar Monipodio como um pregador, pois, além de difundir sua “doutrina”,
também propaga de algum modo o cristianismo.
Em seu primeiro contato com a organização, os personagens parecem
surpresos com o fato de que ladrões possam servir a Deus; é quando um dos
delinqüentes lhes explica: cada uno en su oficio puede alabar a Dios, y más
con la orden que tiene dada Monipodio a todos sus ahijados
56
. Segundo a
“doutrina” de Monipodio, sim, era possível que servissem. Instigados pela
novidade e com um riso irônico nos lábios, Rincón e Cortado decidem conhecer
pessoalmente o pregador dessas “pérolas”, como classificam: [...] vuesa
merced alargue el paso, que muero por verme con el señor Monipodio, de
quien tantas virtudes se cuentan”.
57
Uma das principais virtudes de Monipodio é a de doutrinar os seus
ouvintes de maneira convincente, induzindo-os a praticar o crime de forma
organizada e “religiosamente”, ignorando o princípio ciceroniano de que o bom
orador deve ser um homem honesto. Monipodio faz com que seus confrades
acreditem que cada qual pode servir a Deus dentro de sua profissão e que em
sua confraria estarão todos protegidos, inclusive pela Providencia divina.
Dentro do Patio de Monipodio, não questionamentos sobre a
honestidade de seus atos e Monipodio é considerado pelos seus subordinados
como um pregador apto para ditar leis e organizar a confraria. De modo
distinto, mas também pregando suas crenças e valendo-se da autoridade do
discurso religioso para dar confiabilidade ao seu, Guzmán de Alfarache, ao
contrário de Monipodio, é capaz de perceber que sua credibilidade como
orador está comprometida pelo seu histórico de crimes:
Ya dirás que te predico y cuál es el necio que se cura con
médico enfermo? Pues quien para si no alcanza la salud, menos lo
podrá dar a los otros. ¿Qué condito cordial puede haber en el colmillo
56
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.179.
57
Idem, p.181.
133
de la víbora o en la puntura del alacrán? ¿Qué nos podrá decir un malo,
que no sea malo?
58
O trecho destacado ilustra de forma satisfatória o modo como o discurso
de Guzmán se aproxima ao discurso dos pregadores da época, os quais, por
sua vez, tinham também em seu horizonte o preceito ciceroniano de que o bom
orador não deve ser desonesto. Em sua Rhetórica eclesiástica, Fray Luis de
Granada reflete sobre algo muito semelhante:
¿Pero que necesidad hay de tantos argumentos, para probar una cosa
tan manifiesta, quando los mismos Retóricos, definen así al Orador: Un
varón bueno, diestro en hablar? Porque si el Orador que trata de la
servidumbre de las casas, y de que se vuelva un depósito para ser
creído de los Jueces, ha de ser varón justo, y se busca más en él la
probidad de la vida que la inteligencia del arte; ¿qué diremos de un
Predicador cuyo, total cuidado y oficio consiste en mover á los hombres
al odio de los vicios y al amor de las virtudes, mas con sus obras que
con sus palabras? Pues con mucha razón se dixo: (Eccli 34) ¿A quién
limpiará un sucio?
59
Desse modo, é possível entender melhor o fato de que Rincón e Cortado
desde o princípio relutam em aceitar o discurso religioso de procedência no
mínimo duvidosa. Embora se trate de discursos de essências diferentes, tanto
no caso de Guzmán quanto no de Monipodio estamos diante de um orador cuja
honestidade está comprometida e que, munido de alguma teologia, espera
persuadir seu auditório.
Satirizada também em sua “aparente” religiosidade, a sociedade
sevilhana aparece refletida no Pátio de Monipodio através da banalização dos
discursos e rituais religiosos que são praticados com intensidade pelos
criminosos da quadrilha. Mais que deleitar aprovechando, a sátira busca o
movere e, numa espécie de catarse, espera-se que o público tire escarmento
58
ALEMAN, Mateo. Guzmán de Alfarache II. Ed. De José Maria Micó. Madrid: Cátedra, 1992. p.43.
59
FRAY LUIS DE GRANADA. Los seis libros de la rhetórica eclesiástica, o de la manera de predicar.
Madrid: Don Plácido Barco López, 1793.p. 29.
134
das ações más e exemplo das ações boas
60
. Na novela, ridiculariza-se toda
uma sociedade, mas se toca sobretudo em duas importantes feridas: o
descuido da justiça e a intensa popularização dos assuntos religiosos, que,
dessa forma, acabam por cair na boca dos pícaros. Um dos elementos da
comicidade presente no fragmento acima é a presença de uma espécie de
paródia do discurso religioso; segundo Highet
61
, tanto a paródia quanto a ironia
atuam como instrumentos da sátira:
Pues, de aquí adelante respondió Monipodio , quiero y es mi
voluntad que vos, Rincón, os llaméis Rinconete, y vos, Cortado,
Cortadillo, que son nombres que asientan como de molde a vuestra
edad y a nuestras ordenanzas, debajo de las cuales cae tener
necesidad de saber el nombre de los padres de nuestros cofrades,
porque tenemos de costumbre de hacer decir cada año ciertas misas
por las ánimas de nuestros difuntos y bienhechores, sacando el
estupendo para la limosna de quien las dice de alguna parte de lo que
se garbea; y estas tales misas, así dichas como pagadas, dicen que
aprovechan a las tales ánimas por vía de naufragio [...]; y, por todos
estos que he dicho, hace nuestra hermandad cada año su adversario
con la mayor popa y solenidad que podemos.
62
O discurso de Monipodio é tão rústico quanto ele mesmo e apresenta,
segundo Tesauro, aquela deformidade comparativa entre o saber e a profissão,
abrindo para o autor a possibilidade de trabalhar com inúmeras argúcias
jocosas. Monipodio tenta manter um tom formal e solene através do uso da
redundância e de expressões que lembram os discursos oficiais (“quiero y es
mi voluntad cae tener necesidad”). Sua linguagem, embora precária,
diferencia-se da linguagem dos demais delinqüentes presentes ali. Sua
eloqüência é a sua arma para persuadir e coagir os pícaros sob a sua tutela, de
modo que se nota seu esforço para ser eloqüente, invocando principalmente a
60
HANSEN, J. A. A sátira e o Engenho. São Paulo: Ateliê, 2004. p.200.
61
HIGHET, G. Anatomy of satire.(1962). Apud URBINA, E. Ironia medieval, parodia renacentista y la
interpretación del Quijote . Disponível em: cvc.cervantes.es/obref/aih/pdf/08/aih_08_2_079.pdf 1983,
p.672.
62
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.186.
135
autoridade do discurso religioso, o que faz de maneira duvidosa, cometendo
erros graves de vocabulário, os quais, no entanto, não são notados por seus
confrades.
Os pícaros do Patio não só não percebem os desvios que comete
Monipodio como também reproduzem de maneira muito parecida esse mesmo
discurso, como se viu no primeiro encontro do guia com Rincón e Cortado.
No começo do relato, Rincón revela ser filho de um bulero o buldero e
que, por este motivo, havia estado durante algum tempo nesse ofício,
acompanhando seu pai. Dessa forma, o personagem, ao contrário de
Monipodio, que parece repetir de oídas o discurso dos pregadores, conhece e
domina o vocabulário do discurso religioso. Acompanhado pela astúcia de seu
companheiro mais novo, Cortado, Rincón prontamente percebe e faz burla da
precariedade do discurso de Monipodio e de sua falta de domínio nos assuntos
da religião.
Enquanto propaga as leis de sua confraria, Monipodio reveste seu
discurso de uma solenidade digna de uma ordem religiosa; apodera-se de
palavras que evocam rituais da igreja, mas o faz de maneira errônea e sem
critério (“sacar el estupendo, por via de naufrágio”). Ele não estuda seu
auditório, que, embora seus subordinados acatem suas palavras com
respeito, ele não é capaz de perceber que os recém chegados Rincón e
Cortado logo começam a ridicularizar seu modo de falar:
Por cierto dijo Rinconete, ya confirmado con este nombre ,
que es obra digna del altísimo y profundísimo ingenio que hemos oído
decir que vuesa merced, señor Monipodio, tiene. Pero nuestros padres
aún gozan de la vida; si en ella les alcanzáremos, daremos luego noticia
a esta felicísima y abogada confraternidad, para que por sus almas se
les haga ese naufragio o tormenta, o ese adversario que vuesa merced
dice, con la solenidad y pompa acostumbrada; si ya no es que se hace
mejor con popa y soledad, como también apuntó vuesa merced en sus
razones.
63
63
Idem, p.186.
136
Sem que Monipodio se conta, Rinconete joga com suas palavras de
maneira engenhosa. Suas facécias assemelham-se às que se classificam
como elegantes em O Cortesão. Primeiro ele estuda o seu auditório, de modo
que apenas seu companheiro Cortadillo é capaz de perceber o modo como
está ridicularizando as palavras de Monipodio. Essa é uma das recomendações
presentes no manual de conduta: antes de aplicar burlas e facécias ao
discurso, é preciso ter em conta que não se devem escarnecer os poderosos,
que, dessa forma, se podem adquirir inimizades perigosas
64
. Em seguida, é
possível perceber em seu discurso a falsa aceitação das palavras de
Monipodio, recurso esse que também se encontra em O Cortesão: “Rimos
também bastante quando alguém aceita o que se lhe diz, e até mais, porém
demonstra entendê-lo diversamente”.
65
Ou ainda: “Mas entre os motes têm
excelente acolhida aqueles que nascem quando, do raciocínio mordaz do
companheiro, se tomam as mesmas palavras no mesmo sentido e contra ele
se as dirigem”
66
. É o caso quando se retomam as palavras “naufragio,popae
adversário”, aplicando a elas o mesmo sentido atribuído por Monipodio,
mesmo sabendo que estão todas mal empregadas. Sabemos da presença da
burla principalmente porque Rinconete coloca ao lado da palavra “naufragio
(que na verdade deveria ser sufragio) a palavra “tormenta para demonstrar ao
seu companheiro Cortadillo e conseqüentemente ao leitor que havia
identificado os erros na fala de Monipodio, mas, não querendo corrigi-los
naquele momento, prefere fingir acatar o seu discurso, o que realmente
funciona, visto que Monipodio não percebe suas facécias:
Así se hará, o no quedará de mí pedazo replicó Monipodio.
67
Dessa maneira, ocorre na narrativa um efeito curioso, que é o efeito
causado pela ingenuidade de Monipodio, ridicularizado pelos dois meninos
dentro de sua própria casa. Esse efeito contribui para a leveza com que é
64
CASTIGLIONE, B. O Cortesão. Trad. Carlos N. M. Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
p.136.
65
Idem, p.165.
66
Idem, p.148.
67
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p. 187
137
descrito o mundo do crime, embora se esteja dentro de uma organização
criminosa. Tesauro classifica como Ridículo Urbano esse tipo de atenuação:
Portanto a forma do Ridículo Urbano consiste em uma tal maneira de
representá-lo que, se o Mote é Mordaz, que pareça inocente, e se é
obsceno, que pareça modesto.
68
O clima, como se discutiu, é de riso, de entremez, e o foco não está
na gravidade dos delitos, mas, sim, na forma natural e “religiosa” com que o
praticados.
Em O Cortesão, descrevem-se dois tipos de burla, sendo uma delas
“quando se engana alguém engenhosamente de maneira elegante e agradável
[...]”
69
. É dessa forma que Rinconete, principalmente, engana todos,
demonstrando um bom domínio na arte de conversar. Esse domínio logo é
percebido pelos demais que, embora não entendam a maioria de suas burlas,
manifestam sua admiração pelo seu discurso. Isso se no momento em que
Monipodio, ao prosseguir com suas cerimônias, declara:
¡Alto, no es menester más! dijo a esta sazón Monipodio .
Digo que sola esa razón me convence, me obliga, me persuade y me
fuerza a que desde luego asentéis por cofrades mayores y que se os
sobrelleve el año del noviciado.
Yo soy dese parecer dijo uno de los bravos.
Y a una voz lo confirmaron todos los presentes, que toda la
plática habían estado escuchando, y pidieron a Monipodio que desde
luego les concediese y permitiese gozar de las inmunidades de su
cofradía, porque su presencia agradable y su buena plática lo merecía
todo.
70
68
TESAURO, E. Tratado dos Ridículos. Campinas: CEDAE, 1992. p.47.
69
CASTIGLIONE, B. O Cortesão. Trad. Carlos N. M. Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
p.169.
70
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.189.
138
A solenidade da sentença de Monipodio contrasta com conteúdo
picaresco de sua mensagem. Ao recrutar novos ladrões para sua quadrilha,
Monipodio emprega os termos religiosos “cofrades mayores” e “año de
noviciado”, como se se tratasse da admissão para um cargo religioso. Logo os
demais confrades se mostram de acordo e alegam como um dos principais
motivos de sua admissão a sua buena plática, ou seja, reconhecem a discrição
do discurso de seus futuros companheiros.
Ao serem admitidos na confraria, as vozes de Rinconete e Cortadillo
cessam por algumas páginas para dar espaço aos acontecimentos do Patio.
Como se estudou, acentua-se a atmosfera teatral e os jovens se colocam na
platéia, ao lado do leitor, para presenciar o teatro dos pícaros. As brigas, os
desentendimentos, a dança, a música, as reconciliações, tudo ocorre depressa,
em ritmo de entremez. Chamam atenção, sobretudo, as manifestações de
religiosidade das personagens femininas, que lembram principalmente o
cotidiano das beatas, tão comuns nesse período:
Eis a velha pipota:
Tras ellos entró una vieja halduda, y, sin decir nada, se fue a la sala; y,
habiendo tomado agua bendita, con grandísima devoción se puso de
rodillas ante la imagen, y, a cabo de una buena pieza, habiendo primero
besado tres veces el suelo y levantados los brazos y los ojos al cielo
otras tantas, se levantó y echó su limosna en la esportilla, y se salió con
los demás al patio.
71
Trecho citado anteriormente por suas características teatrais, aqui se
pode perceber como essas mesmas características teatrais são reforçadas
pela prática dos rituais religiosos, de maneira exagerada e de forma
descontextualizada (dentro de uma associação criminosa).
A velha que atua como receptadora dos roubos descreve seus rituais
religiosos:
71
Idem, p.182.
139
Hijo Monipodio, yo no estoy para fiestas, porque tengo un
vaguido de cabeza, dos días ha, que me trae loca; y más, que antes
que sea mediodía tengo de ir a cumplir mis devociones y poner mis
candelicas a Nuestra Señora de las Aguas y al Santo Crucifijo de Santo
Agustín, que no lo dejaría de hacer si nevase y ventiscase.
72
Logo há também a devoção das prostitutas Escalanta e Ganaciosa:
Yo sí tengo (un cuarto para comprar candelicas) , señora Pipota
(que éste era el nombre de la buena vieja) respondió la Gananciosa ;
tome, ahí le doy dos cuartos: del uno le ruego que compre una para mí,
y se la ponga al señor San Miguel; y si puede comprar dos, ponga la
otra al señor San Blas, que son mis abogados. Quisiera que pusiera
otra a la señora Santa Lucía, que, por lo de los ojos, también le tengo
devoción, pero no tengo trocado; mas otro día habrá donde se cumpla
con todos.
Muy bien harás, hija, y mira no seas miserable; que es de mucha
importancia llevar la persona las candelas delante de sí antes que se
muera, y no aguardar a que las pongan los herederos o albaceas.
Bien dice la madre Pipota dijo la Escalanta.
Y, echando mano a la bolsa, le dio otro cuarto y le encargó que
pusiese otras dos candelicas a los santos que a ella le pareciesen que
eran de los más aprovechados y agradecidos.
73
Como um hábito consolidado entre as prostitutas e a velha ladra, elas
entregam devotamente suas moedas para a esmola dos santos. San Blas é o
protetor dos males da garganta, de modo que provavelmente Gananciosa
espera assim poder evitar a forca
74
. A conversa que poderia ter ocorrido entre
beatas surge em meio às transações criminosas da quadrilha. Lida sem levar
em conta o contexto em que está inserida, bem poderia ser uma conversa de
porta de igreja entre senhoras devotas. As mulheres cumprem de maneira
72
Idem, p.193.
73
Idem, p.195.
74
Idem, ibidem (nota).
140
satisfatória a ordem dada por Monipodio e seu discurso revela o modo como
encaram, com naturalidade, a sua religiosidade. Escalanta, num gesto
espontâneo, tira da bolsa algumas moedas e lhes entrega à velha para que ela
mesma escolha um santo para o qual doá-las. Esse é um gesto revelador, pois
demonstra que, para a prostituta, o importante é mesmo contribuir, não sendo
devota de nenhum santo específico. Importa, diante de seu chefe Monipodio,
cumprir com os estatutos de sua confraria.
A questão da falsa religiosidade também está presente em outras obras
cervantinas, sendo importante mencionar o caso da incursão do autor, no
campo da Comédia de santos, em El rufián dichoso.
A comédia El rufián dichoso, mencionada anteriormente pelo
antológico diálogo entre a Comedia e a Curiosidad, traz para o palco a história
real de Cristóbal de Lugo, un Rufián que se converte, tornando-se santo.
Novamente se aprecia a presença de um criminoso com valores religiosos, tal
qual em "Rinconete y Cortadillo", mas, no caso da comédia, é preciso ter um
certo cuidado, que Lugo possui uma personalidade mais complexa. Também
leva uma vida de crimes, também mantém paralelamente uma religiosidade
superficial, que não deixa de cometer os seus delitos, trazendo a mesma
contradição presente em "Rinconete y Cortadillo". Todavia o personagem
parece ter verdadeiras preocupações espirituais, o que se soma à sua
honestidade no trato de questões carnais, fazendo com que, de algum modo,
pareça pelo menos aceitável a sua santificação
75
. Lugo parece ter o essencial
para então tornar-se um santo, e não são os seus rituais que o tornam digno,
mas, sim, a sua bondade e a sua honestidade.
Um contraponto interessante é possível estabelecer também com um
soneto atribuído a Cervantes
76
:
.
75
REY HAZAS, A. Cervantes se rescribe: el teatro y las novelas ejemplares. Criticón, n.76, p.119-164,
1999. Disponível em: <www.cervantesvirtual.com>.
76
DIEZ FERNÁNDEZ, I. El soneto del rufián “arrepentido”. In: PUBLICACIONES Cervantes Society
of America. Disponível em: <http://www.h-net.org/~cervantes/csa/artics97/diez.htm>: Se suele
considerar que Cervantes es el autor del soneto ‘Maestro era de esgrima Campuzano’. Vicente Gaos
recoge el texto, en su edición de las Poesías completas (2: 396), entre las ‘Poesías sueltas atribuidas a
Cervantes’”.
141
Soneto 1
Maestro era de esgrima Campuzano,
de espada y daga diestro a maravilla,
Rebanaba narices en Castilla,
y siempre le quedaba el brazo sano.
Quiso pasarse a Indias un verano,
Y vino con Montalvo el de Sevilla;
cojo quedó de un pie de la rencilla,
tuerto de un ojo, manco de una mano.
Vínose a recoger a aquesta ermi
con su palo en la mano, y su rosario,
y su ballesta de matar pardales
Y con su Madalena, que le quita
mil canas, está hecho un San Hilario.
¡Ved cómo nacen bienes de los males!
77
O soneto de tom irônico relata, tal qual em El rufián dichoso, a
conversão de um rufián, porém, nesse caso, fica claro que verdadeiramente ele
não se converte. Em seu estudo do soneto, Diez Fernández propõe algumas
perguntas: ¿cabría tratar del desengaño barroco como base explicativa del
soneto? ¿Es un soneto erasmista que critica lo exterior y se burla de los falsos
ermitaños?”.
De fato, é possível notar uma tonalidade crítica com relação às práticas
religiosas do período. Contudo não se tem a intenção de classificar qualquer
77
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Obras menores de Cervantes. Redondillas, odas, elegías,
romances, etc, seguidos del Viaje al Parnaso. Edición de Antonio López con un prólogo por J. Givanel
Mas. Barcelona: Librería española, 1905. p.109.
142
obra cervantina como de militância erasmista
78
. Como se destacou, a crítica
que costuma se manifestar nas obras cômicas cervantinas é sutil e não parece
ter a intenção de “ferir”. Em "Rinconete y Cortadillo", as denúncias expressadas
pela leveza do ridículo expõem o problema, mas, ao mesmo tempo, provocam
o riso, castigat ridendo mores, ou seja, “rindo castigam-se os males”. Critica-se
principalmente a banalização dos assuntos religiosos, bem como a ineficácia
da justiça, a qual permite a existência de semelhante instituição. Em paralelo,
não é possível deixar de mencionar a presença incidental de idéias erasmistas
que faziam parte do pensamento dos escritores do período. Um dos aspectos
que mais rebelavam os humanistas era a religiosidade exterior e superficial que
fazia parte da cultura espanhola desse período, religiosidade associada por
vezes às representações teatrais escandalosas que ocorriam na praça pública
com o intuito de mover a multidão
79
.
No entanto, é nas últimas linhas de "Rinconete y Cortadillo" que se tem a
confirmação de que, embora houvesse ingressado na confraria, Rinconete de
fato não aceita seus estatutos e reprova, sobretudo, o modo como delinqüentes
levam em paralelo uma vida religiosa. Nesse momento, é possível entender a
presença da tonalidade satírica como recurso para denunciar os males da
sociedade. A sátira, nesse caso, não chega propriamente a ferir, antes exagera
e deforma para que o leitor veja nesses efeitos a contradição, para assim poder
“aprender” algo, dentro do dirigismo pedagógico comum entre as práticas
literárias do XVI. O tom do epílogo da novela é de denúncia, marcado pelo
retorno da voz de Rinconete:
Era Rinconete, aunque muchacho, de muy buen entendimiento, y tenía
un buen natural; y, como había andado con su padre en el ejercicio de
78
En realidad, la familiarización de Cervantes con Erasmo debió ser un irreconstruíble proceso de
lecturas aisladas, no exhaustivas ni cronológicas, paralelo a todo el curso de su vida. Proceso por
definición abundante en lagunas e interregnos propicios tanto a olvidos y metamorfosis como a la
reflexión crítica, cambios de foco y fluctuaciones estimativas.” (MÁRQUEZ VILLANUEVA, F. Erasmo
y Cervantes, una vez s. Cervantes: Bulletin of the Cervantes Society of America, n.4, v.2, p. 123-37,
1984).
79
Asunción Rallo Gruss, em seu estudo preliminar ao Crótalon, chama atenção para o décimo primeiro
canto e pontua: Muy ligado a este problema está el del pueblo, abandonado por el magisterio de la
iglesia y sometido a la superstición de bulas y prácticas externas. Tan abandonado que se entrega
gustosamente a los falsos profetas”. (VILLALÓN, C. El Crótalon de Cristoforo Gnofoso. Madrid:
Cátedra, 1990).
143
las bulas, sabía algo de buen lenguaje, y dábale gran risa pensar en los
vocablos que había oído a Monipodio y a los demás de su compañía y
bendita comunidad, y más cuando por decir per modum sufragii había
dicho per modo de naufragio; y que sacaban el estupendo, por decir
estipendio, de lo que se garbeaba; y cuando la Cariharta dijo que era
Repolido como un marinero de Tarpeya y un tigre de Ocaña, por decir
Hircania, con otras mil impertinencias (especialmente le cayó en gracia
cuando dijo que el trabajo que había pasado en ganar los veinte y
cuatro reales lo recibiese el cielo en descuento de sus pecados) a éstas
y a otras peores semejantes; y, sobre todo, le admiraba la seguridad
que tenían y la confianza de irse al cielo con no faltar a sus devociones,
estando tan llenos de hurtos, y de homicidios y de ofensas a Dios.
80
Chama atenção o tom didático com que o narrador revela o julgamento
de Rinconete. É nesse momento também que são corrigidos os vocábulos os
quais “abrilhantavam” o discurso de Monipodio. É a ocasião também em que, já
fora do Pátio, o personagem pode rir ao lado do leitor das imprudências
cometidas por o bizarro pregador (“dábale gran risa, le cayó en gracia”). O
tom, embora crítico, é leve e descompromissado; o caráter exemplar se
intensifica apenas nas últimas linhas:
Finalmente, exageraba cuán descuidada justicia había en aquella tan
famosa ciudad de Sevilla, pues casi al descubierto vivía en ella gente
tan perniciosa y tan contraria a la misma naturaleza; y propuso en de
aconsejar a su compañero no durasen mucho en aquella vida tan
perdida y tan mala, tan inquieta, y tan libre y disoluta. Pero, con todo
esto, llevado de sus pocos años y de su poca esperiencia, pasó con ella
adelante algunos meses, en los cuales le sucedieron cosas que piden
más luenga escritura; y así, se deja para otra ocasión contar su vida y
milagros, con los de su maestro Monipodio, y otros sucesos de aquéllos
de la infame academia, que todos serán de grande consideración y que
podrán servir de ejemplo y aviso a los que las leyeren.
81
80
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona:
Editorial Crítica, 2001. p.215.
81
Idem, ibidem.
144
É possível encontrar então a ambigüidade perigosa existente no
discurso aparentemente moralizante com que termina a novela, em que as
figuras picarescas de Rincón e Cortado julgam e moralizam a “infame
academia” de Monipodio. graus de delinqüência dentro da narrativa e o
arremate lança uma dúvida: o que devemos tomar como exemplar? Não viver
como Monipodio? Viver como Rinconete e Cortadillo? Além do mais, esses
arremates moralizantes são do narrador, que, ao final das contas, é outro
leitor.
82
Peter Dunn comenta também o fato de a moraleja aparecer através de
um personagem cuja própria posição é ambígua:
En cuanto a las novelas de por , dos de ellas (La española inglesa, El
celoso extremeño) terminan con explícitas declaraciones morales,
mientras que una tercera (Rinconete y Cortadillo) Rinconete enjuicia al
mundo criminal en que se encuentran él y su compañero. En los
primeros casos es dudar que el más romo lector se vea ayudado en su
comprensión de las novelas por estos añadidos del autor. El tercer caso
resulta más satisfactorio, desde el punto de vista artístico, ya que la
moralización se atribuye a un personaje cuya a propia posición es
ambigua. El dice que abandonará el mundo de Monipodio, pero no hay
seguridad de que lo haya hecho. De tal manera, el final queda abierto y
la moraleja flota en una peculiar perspectiva de ironía: cualquiera puede
moralizar, hasta Monipodio especialmente Monipodio moraliza. Por
lo tanto, avisos de este tipo no harán para el lector lo que su propia
conciencia moral no le obligue a hacer. Si un hombre no aborrece ya el
crimen ¿le persuadirán las palabras de Rincón a aborrecerlo?
83
Pensar o arremate moralizante de "Rinconete y Cortadillo" como
moraleja ou até mesmo vinculá-lo à exemplaridade típica de um Guzmán de
Alfarache seria uma solução dedutiva e contrária a tudo que a novela traz de
82
SIEBER, H. Novelas ejemplares. Madrid: Cátedra, 1997.
83
DUNN, P. Las Novelas Ejemplares. In: SUMA cervantina. London: Tamesis, 1973. p.81-118.
145
inovação e variedade ao gênero narrativo. Cervantes desvincula-se de modo
evidente da escrita de Mateo Alemán; mais que isso, satiriza a presença do
discurso religioso na boca de pícaros através da confraria de Monipodio. Não
seria justamente no epílogo da novela que tencionaria percorrer o caminho de
volta, vinculando-se ao modo alemaniano de pensar a literatura.
Embora seja negado pela maior parte dos críticos e lido geralmente
como moraleja rota, o arremate moralizante de "Rinconete y Cortadillo" pode
sim preservar, de algum modo, a sua essência didática. Não se trata, todavia,
do didatismo dogmático de Guzmán de Alfarache, nem da retomada da
tradição dos exempla com a sua característica “moral da história”. Trata-se do
didatismo típico da sátira, que se amplifica e ganha espaço no epílogo da obra.
Próprio das práticas poéticas do culo XVI e XVII, o dirigismo pedagógico, ou
o velho debate horaciano sobre a utilidade da obra de arte, aparece
freqüentemente discutido nos prólogos ou mesmo ao longo das obras do
período. Uma vez tratada a presença da sátira como recurso literário associado
ao cômico, e sendo um gênero de fundo didático em sua essência, torna-se
mais simples e menos polêmico o tema da exemplaridade da novela. Nesse
sentido, são esclarecedoras as palavras de Hansen:
No século XVII, o estilo de que a sátira é um gênero difunde-se por
países da área mediterrânea, principalmente os da península ibérica,
como uma koiné. Simultaneamente artifício literário engenhoso e padrão
distintivo dos discretos cortesãos, potencializa-se nas produções
poéticas da época como dispositivo sensibilizador da correção das
maneiras, da moral e da boa ordem política.
84
Em suma, dentro da reatualização da Arte Poética de Horácio pelos
preceptistas e escritores dos séculos XVI e XVII na Espanha, pode-se afirmar
que Cervantes, em "Rinconete y Cortadillo", embora não siga ao pé da letra a
premissa do deleitar aprovechando, tem em seu horizonte, como todos os
autores de sua época, inquietações com respeito à utilidade de sua prosa. Haja
vista o citado trecho do diálogo do canónigo no Quixote:
84
HANSEN, J. A. A sátira e o Engenho. São Paulo: Ateliê, 2004. p.52.
146
Y según a mi me parece, este género de escritura y composición cae
debajo de aquel de las fábulas que llaman milesias, que son cuentos
disparatados que atienden solamente a deleitar, y a no enseñar: al
contrario de lo que hacen las fábulas apólogas que deleitan y enseñan
juntamente.
85
Nas palavras do canónigo, percebe-se que a preocupação didático-
moral a qual povoara os textos da tradição medieval dos exempla ainda estava
presente na literatura da época cervantina. Ao mesmo tempo, sabe-se que a
presença do arremate moralizante na voz do pícaro Rinconete não pode nem
deve ser lida como indício da utilidade moral da novela, que o discurso
moralizante na voz de um pícaro, mais especificamente o de cunho teológico, é
satirizado no núcleo da narrativa pela figura stica e criminosa de Monipodio,
simplesmente o oposto do orador perfeito. Lida por esse viés, a sátira presente
em "Rinconete y Cortadillo" tem a função dupla de escarnecer tanto a
sociedade que lhe é contemporânea quanto o discurso “edificante” na boca de
pícaros, representados principalmente por Guzmán de Alfarache.
Guzmán de Alfarache alcançou enorme êxito ao seguir o modelo
inaugurado por Lazarillo. Entretanto se deve levar em conta a diferença
fundamental antes mencionada: a existência de digressões morais que
superam os fragmentos de narrativa. É como se o personagem estivesse
impulsionado por um desejo de instruir. O didatismo, que não é uma
característica evidente em Lazarillo de Tormes, parece consolidar-se somente
na obra de Alemán. Buscando um indício mais claro de como esse suposto
didatismo chegava à literatura picaresca, encontrou-se o prólogo da narrativa
picaresca El pícaro Marcos de Obregón, onde há explicitação do problema:
El intento mío fue ver si acertaría escribir en prosa algo que
aprovechase a mi república, deleitando y enseñando siguiendo aquel
consejo de mi maestro Horacio; porque han salido algunos libros de
85
CERVANTES SAAVEDRA, M. de. Don Quijote de la Mancha. Edición de Martín de Riquer.
Barcelona: Editorial Planeta, 1998. p.502. (Este trecho costuma ser relacionado com um fragmento da
Philosophia Antigua Poética de Pinciano).
147
hombres doctísimos en letras y opinión, que la abrazan tanto con sola la
doctrina que no dejan lugar por donde pueda el ingenio alentarse y
recibir gusto, y otros tan enfrascados en parecerles que deleitan con
burlas y cuentos entremesiles, que después de haberlos leído, revuelto,
aechado y aun cernido, son tan fútiles y vanos, que no dejan otra cosa
de sustancia ni provecho para el lector, ni de fama y opinión para sus
autores.
86
Vicente Espinel declara haver escrito um livro para deleitar
aprovechando e critica a ficção que visa ao mero entretenimento dos leitores,
usando a curiosa expressão cuentos entremesiles, a qual nos faz pensar em
alguns aspectos presentes em "Rinconete y Cortadillo". Se essa não era a
intenção principal de Mateo Alemán ao escrever o Guzmán de Alfarache, pelo
menos ela se apresentava como uma clara e atraente possibilidade para o
escritor. De qualquer maneira, a presença do pícaro pregador parece pairar
sobre "Rinconete y Cortadillo", refletindo-se desde a presença dos
personagens pícaros, passando pela precária teologia de Monipodio e
desembocando na ambígua moraleja na voz de Rinconete ao final da novela. A
moralidade do discurso de Guzmán é, como já se citou anteriormente, discutida
pelo próprio personagem ao longo da obra:
Su declaración de intenciones más clara quizás venga del propio
Guzmán en el primer capítulo de la segunda parte. [...] El capítulo de
basa en su confesión de que su vida ha sido la de un pecador. Su tono
defensivo surge del reconocimiento de que su propia conducta
disminuirá inevitablemente su credibilidad como predicador. No
obstante, a pesar de ello, considera su perversión y el relato de su
perversión parte fundamental de su método didáctico: “Aquesta
confesión general que hago, este alarde público que de mis cosas te
represento, no es para que me imites a mí; antes para que, sabidas,
corrijas las tuyas en ti.”
87
86
ESPINEL, V. Vida del Escudero Marcos de Obregón. Ed. M. Soledad Carrasco Urgoiti. Madrid:
Castalia, 2000. p. 77.
87
IFE, B. W. Lectura y ficción en el Siglo de Oro: las razones de la picaresca. Barcelona: Crítica, 1991.
p.92.
148
É possível, desse modo, distinguir o arremate moralizante de "Rinconete
y Cortadillo" e as moralizações de Guzmán de Alfarache como sendo de
genealogias diferentes. Enquanto Guzmán de Alfareache recorre ao caminho
mais tradicional do didatismo, provavelmente inspirado no preceito horaciano
do deleitar aprovechando, em "Rinconete y Cortadillo" o dirigismo
pedagógico através da sátira, ou seja, a novela acaba por ter algum didatismo
intrínseco ao gênero cômico e a moraleja presente no epílogo pode ser lida
como uma conseqüência da satirização do discurso moralizante na voz de
pícaros.
Do mesmo modo, situando a crítica na voz de personagens que, por
também pertencerem ao mundo do crime, têm sua credibilidade abalada, o
autor guarda para o final da narrativa uma irônica moraleja. Sua sátira é leve e,
desse modo, tem muito mais do cômico que do vitupério.
é possível, dessa maneira, aproximar-se do entendimento de
algumas questões levantadas ao princípio do trabalho. Avellaneda, o autor do
apócrifo Quixote a classificaria como “mais satírica que exemplar”, no entanto o
relato cervantino pode abarcar os dois adjetivos, talvez por ser uma narrativa
singular, como se verá nas considerações finais.
Considerações finais
inconete y Cortadillo" ocupa um papel de destaque na narrativa
cervantina. A novela, embora seja publicada apenas em 1613 no
conjunto das Novelas Ejemplares, teve uma redação pelo menos
dez anos anterior à sua publicação e, ao acompanhar sua
trajetória, é possível entrever algumas importantes transformações às quais
estava submetido o gênero narrativo na Espanha do Século de Ouro. Isto é, a
história do texto reflete, por si só, algumas remodelações que ocorriam na arte
de novelar. Por ter sido mencionada no Quixote, ter sido comparada pelos
personagens à “Novela del Curioso Impertinente” e até mesmo pela intenção
por parte dos personagens na leitura do texto, demonstra-se, de alguma
maneira, que a narrativa fora possivelmente concebida para pertencer a uma
moldura narrativa, que, em 1605, ano da publicação do Quixote, ainda não
existia em língua espanhola uma coleção de novelas nos moldes das novelas
exemplares. Nesse sentido, Cervantes acaba sendo o primeiro a novelar.
Embora posterior à publicação das Novelas Ejemplares, as declarações
do narrador no capítulo 43 da Segunda Parte de Dom Quixote de algum modo
levantam algumas razões pelas quais Cervantes teria optado por “suprimir” as
histórias intercaladas da narrativa e publicar novelas independentes numa
coleção separada. Uma dessas razões apontadas por Cide Hamete é o fato de
que, dessa maneira, as novelas poderiam ser mais bem apreciadas pelo leitor,
uma vez que estaria em maior evidência toda a sua gala y artifício.
Além disso, "Rinconete y Cortadillo" é o texto cervantino que mais se
aproxima da literatura picaresca, de modo que refletiria, de alguma maneira, a
recepção por parte de Cervantes do êxito que alcançou o relato picaresco em
sua época. A relação de aproximação/distanciamento que a narrativa mantém
com a poética do gênero de Lazarillo de Tormes traz para as linhas do relato
um importante diálogo entre a prosa cervantina e a picaresca, especialmente a
de Mateo Alemán e seu Guzmán de Alfarache.
"R
150
Dentro dessa atmosfera picaresca, destaca-se a presença de
personagens que, embora pertencentes ao mundo criminal, estariam mais
vinculados a uma picaresca entremesil, ou seja, mais relacionados ao teatro
dos entremezes. É interessante observar como se evidencia nas linhas do
relato a distinção entre esses dois tipos de picaresca: a primeira representada
pelos personagens protagonistas Rincón e Cortado, e a segunda, pelos
delinqüentes do tio de Monipodio. A distinção ocorre, principalmente, por
meio do discurso dos personagens. importantes marcas do estilo humilde
no discurso dos pícaros do Pátio enquanto o discurso de Rincón e Cortado
apresenta maior urbanidade. Entre as marcas desse estilo menos elevado
empregado pelos confrades de Monipodio está a utilização de diminutivos
alomorfes de Vuestra Merced e o jargão marginal, ou lengua de germanía,
muitas vezes incompreensível para Rincón e Cortado.
A atmosfera teatral está presente principalmente na segunda parte da
novela, dentro dos acontecimentos com os pícaros religiosos no Pátio de
Monipodio, mas se se leva em conta, por exemplo, o título da obra, Rinconete e
Cortadillo são os nomes que os personagens recebem para poder atuar na
confraria de ladrões, de modo que também os protagonistas passam a fazer
parte do teatro.
Neste cenário em que delinqüência e religiosidade compartilham o
mesmo espaço, o Pátio de Monipodio é como a praça pública, na qual, através
das deformações cômicas, expõe-se as mazelas da sociedade sevilhana do
período. A crítica esboçada pela novela, no entanto, não chega a ser mordaz,
que está deslocada e aparece por meio do discurso e da censura de
personagens que têm a sua credibilidade comprometida, no caso os próprios
protagonistas, Rinconete e Cortadillo.
Close destaca o fato de que Cervantes distingue a existência de dois
tipos de sátira: uma legítima que se ocupa dos vícios em geral e outra ilegítima
que causa danos à honra alheia
1
. Desse modo, é possível vislumbrar por meio
da leitura de "Rinconete y Cortadillo" a maneira pela qual Cervantes transita
pelo gênero cômico, sem perder a urbanidade. A tonalidade satírica do
1
CLOSE, A. Cervantes y la mentalidad cómica de su tiempo. Alcalá de Henares: Biblioteca de estudios
cervantinos, 2007. p.49.
151
texto se manifesta sobretudo pela justaposição de elementos como
delinqüência e religiosidade, o que abre espaço para o surgimento de uma
crítica, que se legitima ao final do texto com a inserção de uma espécie de
moral da história. A apresentação de um exemplo moral costuma ser uma
característica presente nos textos satíricos, ou seja, a narrativa deleita por meio
das deformidade cômicas, mas, ao mesmo tempo, ensina.
Para ilustrar o modo como Cervantes conduz o cômico e o satírico em
suas narrativas, tomamos como exemplo dois contos que o autor introduz no
prólogo da Segunda Parte de Dom Quixote. Embora os contos estejam
relacionados à feitura de um livro, é possível relacioná-los com o ofício da
escritura de modo geral, pensando especialmente na função de deleite e
entretenimento do leitor que uma obra pode ter. O primeiro conto narra a
história de um louco de Sevilha que tem o costume de entreter o público com
um espetáculo inusual: fazer com que um cachorro qualquer fique cheio de ar,
de modo que se torne redondo como uma bola. O método para realizar tal
façanha não causa maiores danos ao cão, que, em seguida, é solto; o louco
então se dirige ao público que prestigia sua façanha e diz: “Pensarão vossas
mercês que é pouco trabalho inflar um cachorro?”. O outro conto narra a
história de um louco de Córdoba que possui outro costume singular: caminha
pelas ruas com uma lousa de mármore sobre a cabeça e, quando se aproxima
de um cão, deixa cair a lousa sobre o animal, fazendo-o latir
desesperadamente. Um dia, deixa cair a lousa sobre um cachorro que pertence
a um artesão. Esse homem que tinha grande estima pelo cão, ataca o louco
com uma vara de medir e o golpeia até romper os ossos
2
.
Os contos, dentro do contexto do prólogo, têm a função específica de
atacar o autor do falso Quixote, Avellaneda. Entretanto, parecem ilustrar de
maneira satisfatória as reflexões realizadas neste trabalho com relação aos
aspectos satíricos das obras cômicas cervantinas e à postura cervantina diante
dos tipos de comédia: da velha, impregnada de vitupério e da nova menos
mordaz, sem maledicência. .
2
Os contos foram retirados da edição do Quixote traduzida por Sérgio Molina. Maria Augusta da Costa
Vieira introduziu um estudo sobre os mesmos no prefácio dessa edição, destacando alguns aspectos que,
embora reflitam mais sobre a questão da feitura de um livro e sobre o conflito com o autor do Quixote
apócrifo, inspiraram de algum modo a analogia com o modo cervantino de escrever textos cômicos.
152
O primeiro conto ilustraria o modo cervantino de escrever narrativas
cômicas. A imagem do cachorro inflado de ar representaria de algum modo a
leveza de seus textos (leves como o ar
3
), pois, embora esteja presente a burla,
a mesma não fere nenhuma entidade específica, ou seja, a ausência de
mordacidade ou virulência.
O segundo conto ilustraria a forma da qual Cervantes se afasta ao
escrever narrativas cômicas. A burla é pesada e agride uma entidade
específica, no caso, o cachorro do artesão. A ação do louco é agressiva e visa
provocar dor. Cervantes se distancia desse modo de tratar a matéria cômica ou
satírica de seus textos. As nuances satíricas presentes em suas obras cômicas
não têm a intenção de difamar ou atacar. Sua crítica é sutil e não virulenta.
Cervantes parece se opor às formas mais vis de vitupério e ao longo de
sua obra pontua diversas vezes a sua posição, como no colóquio entre Cipião
e Berganza, em que condena o ato de murmurar, propondo limites éticos para
a repreensão dos costumes do próximo. No Quixote aponta a distinção entre
dois tipos de sátira e em "Rinconete y Cortadillo" desloca a crítica direta à
sociedade sevilhana outorgando aos seus pouco confiáveis personagens
pícaros o dever de criticar, pondo em questão a credibilidade da crítica,
evitando assim um enfrentamento mais direto.
Dessa maneira, a leitura de "Rinconete y Cortadillo" realizada nesta
dissertação pretendeu, de algum modo, além de abordar a picaresca e
assuntos referentes à arte de novelar, levantar algumas questões, como o
diálogo com o gênero cômico, que se por meio de marcas teatrais, e a
presença de uma tonalidade satírica que, de alguma maneira, dialoga também
com o epílogo moralizante da obra, ressaltando que de fato a novela pode ser
lida como “exemplar”.
3
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