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porque cravadas a fogo lento. Minhas porque por elas sou. Minhas porque são
parte de um passado conjugado no presente, que vive num tempo que É,
eternamente, e não era, “pois ele [o passado] é o em-si do ser e a forma sob a
qual o ser se conserva em si” (DELEUZE, 1999: 42). Num presente que ERA, por
ser puro devir, não sendo ele age, “seu elemento próprio não é o ser, mas o ativo
ou o útil” (DELEUZE, 1999: 42).
Nesse tempo presente que não pára de passar, em relação com um
passado que não pára de ser, essas memórias foram sendo pressionadas e foram
exercendo pressão sobre toda a criação. Delas surgiram imagens, corpo,
atmosferas, cheiros, água.
Fui sendo fisgada, penetrada, rasgada, por esses fragmentos de
memórias, que recaíam por sobre cada gesto meu, formando camadas de
sensações que se interpenetram em minha percepção.
Encontrei no livro “De amor e trevas”, de Amos Óz
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, um sentimento
semelhante e faço um pequeno desvio, que espero seja prazeroso:
Cinqüenta e cinco anos mais tarde, ao escrever num caderno sobre aquela
noite, sentado à mesa do jardim em Arad, sopra de novo aquela mesma
brisa da tarde, e da janela dos vizinhos também nesta noite se derrama o
líquido grosso e amarelado da luz elétrica, denso como óleo de motor –
conhecer, nós nos conhecemos já faz muito tempo, é como se não
houvesse mais surpresas. Mas há: pois a noite da pedrinha na boca no
quintal em Jerusalém não vem a Arad para reviver coisas esquecidas ou
para trazer saudade e melancolia, mas, pelo contrário, aquela noite cai
sobre esta noite. É mais ou menos parecido com a mulher que
conhecemos há tempos, já não atrai mas também não deixa de atrair mas
sempre que nos encontramos ela diz mais ou menos as mesmas palavras
surradas, e sempre que nos encontramos ela tenta um sorriso, ou no
máximo dá um tapinha convencional no peito da gente, mas desta vez, de
repente, ela não, definitivamente não, de repente, ela estende os braços
pra você e te toca, e o segura pela camisa, não de maneira educada, mas
com todas as unhas, com desejo e desespero, os olhos cerrados com toda
a força, a face retorcida como se fosse de dor, insiste em conseguir o que
é dela, ela quer, exige, não desistirá, e a ela já não importa o que há com
você, não faz a menor diferença se você quer ou não, não importa, ela
agora precisa, agora ela não agüenta mais, agora ela avança e se crava
em você como um arpão de caçadores submarinos, e começa a puxar e
puxar, e te rasga, mas não é ela quem começa a puxar, ela só crava as
unhas, e é você quem puxa e escreve, puxa e escreve como um golfinho
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ÓZ, AMOS. De amor e trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005: 284, 285.