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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Letras e Artes
Escola de Belas Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Área de Concentração: Linguagens Visuais
Linha de Pesquisa – Estudos e Experimentações da Arte Contemporânea
Dissertação de Mestrado
A OBRA DE ARTE NA ERA DE SUA REPRODUTIBILIDADE TURÍSTICA
Por: Alexandre Sá Barretto da Paixão
Orientador: Professora Doutora Glória Ferreira
Rio de Janeiro
fevereiro de 2006
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3
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Letras e Artes
Escola de Belas Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Área de Concentração: Linguagens Visuais
Linha de Pesquisa – Estudos e Experimentações da Arte Contemporânea
Dissertação de Mestrado
A OBRA DE ARTE NA ERA DE SUA REPRODUTIBILIDADE TURÍSTICA
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais da Escola de Belas-Artes
da Universidade Federal do Rio de Janeiro
para obtenção do grau de
Mestre em Linguagens Visuais
Alexandre Sá Barretto da Paixão
Orientador: Professora Doutora Glória Ferreira
Rio de Janeiro – 2005
4
Alexandre Sá Barretto da Paixão
A obra de arte na era de sua reprotubilidade turística
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro para obtenção do grau de Mestre em Linguagens Visuais
Aprovada por:
Orientador: Professora Doutora Glória Ferreira
Professor Doutor Milton Machado
Profesora Doutora Cecília Cotrim
Aprovado em ____ de __________ de 2006
5
FICHA CATALOGRÁFICA
Sá, Alexandre
A obra de arte na era de sua reprotubilidade turística / Alexandre Sá.
Orientador: Professora Doutora Glória Ferreira
Rio de Janeiro: UFRJ / EBA, 2006. 147 págs.
Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro / Escola de Belas-Artes
1. Artes plásticas. 2. Imagem. 3. Turismo. 4. Cultura. 5. Alegoria. 6.
Poética. 7. Tese (Dissertação – UFRJ / EBA)
6
Para todos os nossos nós.
7
Agradecimentos
A Deus e aos orixás. Sem eles, nada disso seria possível.
À minha família que apesar da dor, tenta compreender a todo instante
minhas escolhas, caminhos e descaminhos.
Aos meus avós maternos (in memorian) pela criação, pelo perdão e pela
defesa sempre presente.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Linguagens Visuais
da Escola de Belas Artes da UFRJ. Em especial à Glória Ferreira por tudo,
por ser o quê ela é e por ensinar tanto a tantos. Pela poesia, pelo humor e
pela luta incansável. Milton Machado, pela energia, pelo olhar afiado, pelo
carinho, pela ajuda e por sua arte. Carlos Zílio, pelo respeito, pelo cuidado,
pela consideração e pela história. Paulo Venâncio, pelas análises e pela
crítica.
Aos professores do Instituto de Artes da UERJ, pelo começo dos caminhos
e pelo diálogo intenso: Ricardo Basbaum, Cristina Salgado, Cristina Pape,
Malu Fatorelli, Roberto Conduru, Vera Beatriz Siqueira, Sheila Cabo e
Cláudio da Costa.
À Cecília Cotrim (PUC-RJ) pelos olhos d’água, pela veracidade e
voracidade poética.
A José da Costa (UNI-RIO) pelo exemplo e pelas experiências teatrais.
A Luiz Camillo Osório (UNI-RIO) pelo crédito e pela sabedoria.
À Amélia Sampaio, por tudo. Pela paciência e pela ajuda infindável.
À Daniela Mattos, pelas parcerias e pela vida nossa.
Aos artistas que sempre se mostraram abertos e não menos encantados à
minha chegança: Lívia Flores, Cezar Bartholomeu, Simone Michelin, Alex
Hambúrguer, Alexandre Vogler, Clarisse Tarran, Mauro Ferreira, Ernesto
Neto, Ricardo Ventura e Márcia X (in memorian).
A Cildo Meireles e Catherine Bompuis, pelo coração aberto e pela alegria
nos olhos.
Aos amigos por estarem sempre por perto e pela energia constante: Tato
Teixeira e Leila Lessa.
Aos profissionais da Reseau d’Écoles d’Art (França) pela gentileza, pela
cooperação e pelo interesse.
Aos irmãos da minha turma de mestrado, pelo tempo comungado: Cadu
Costa, Cristina de Pádula, João Modé e Nicholas Martins.
Ao Centro Experimental Rés do Chão pela inventividade e pelos primeiros
passos.
Aos alunos, pelo amor.
8
“O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta.”
Michel Foucault
“Eis a palavra de ordem. Em torno dela, há muito se trava um debate, que vos é
familiar. Como ele vos é familiar, sabeis também que esse debate tem sido estéril.
Ele não conseguiu libertar-se da enfadonha dicotomia por um lado – por outro
lado: por um lado devemos exigir que o autor siga a tendência correta, e por outro
lado temos direito de exigir que sua produção seja de boa qualidade. Essa
fórmula é atualmente insuficiente, na medida em que não conhecemos a
verdadeira relação existente entre dois fatores: tendência e qualidade.
Obviamente, podemos postular, por decreto, a natureza dessa relação. Podemos
dizer que uma obra caracterizada pela tendência justa deve ter necessariamente
todas as outras qualidades.”
Walter Benjamin
“ Mas o que sabe você de mim, uma vez que acredito no segredo – quer dizer, na
potência do falso – mais do que nos relatos que revelam uma deplorável crença
na exatidão e na verdade? Se não me mexo, se não viajo, tenho como todo
mundo minhas viagens no mesmo lugar, que não posso medir senão com minhas
emoções, e exprimir da maneira a mais oblíqua e indireta naquilo que escrevo.”
Gilles Deleuze
9
Resumo
Refletindo sobre a herança deixada por Walter Benjamin em seu texto A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o presente texto tem por
objetivo detectar algumas transformações ocorridas no processo de construção
da obra, bem como avaliar algumas conseqüências no que diz respeito à
produção de imagens dentro de um momento de movimento constante entendido
como a era da reprodutibilidade turística.
10
Abstract
Thinking about the heritage left by Walter Benjamin in his text The work of
art in the age of its technical reproductibility this text has as purpose, the detection
of some transformations happened in the process of construction of the work, as
well as the effort to evaluate the consequences of the production of images in a
moment of constant changing, known by the age of the touristic reprodutibility.
11
Resumé
En reflechant sur le heritage qui Walter Benjamin a laissé en son texte
L’œuvre d’art dans lage de sa reprodutibilité tecnique, ce texte a comme objectif
la détection de quelques transformations que ont arrivé dans le processus de
construction de l’œuvre et aussi dans le production des images dans un moment
de constant mouvement compris comme l’age de la reprodutibilité touristique.
12
Sumário
Página de aprovação.....................................................................................................p.4
Ficha catalográfica.........................................................................................................p.5
Dedicatória.....................................................................................................................p.6
Agradecimentos.............................................................................................................p.7
Epígrafe..........................................................................................................................p.8
Resumo..........................................................................................................................p.9
Abstract..........................................................................................................................p.10
Resumé..........................................................................................................................p.11
Introdução......................................................................................................................p. 14
Lado A (Ato 1)...............................................................................................................p.17
1) Pequenas considerações monumentais...................................................................p.20
1.1) A sobrevivência monumental da atualidade..........................................................p.23
1.2) Alguma problemática.............................................................................................p.26
1.3) Souvenirs, monumentos, marcos e coisas do tipo................................................p.27
1.4) A experiência como elemento fundamental da monumentalidade........................p.29
1.5) Homem-monumento. Algumas possibilidades de investigação.............................p.30
1.6) Nem tudo é terra de Oz queridinha........................................................................p.34
1.7) A humano-monumentalidade como possibilidade de reversão do jogo.................p.36
1.8) Pulsão de morte, riscos e outros pequenoscios luxuosos..................................p.39
1.9) Observação efêmera, quase justificativa................................................................p.44
1.10) O turismo mesmo. Mesmo que ainda estrangeiro................................................p.44
1.11) Porquês turísticos.................................................................................................p.47
1.12) A obra como cidade..............................................................................................p.51
1.13) A reprodutibilidade turística. Tentativas ingênuas de capturá-la..........................p.52
1.14) A exposição como sinônimo de culto....................................................................p.56
1.15) A aura. Ou o quê resta dela. Ou nada disso.........................................................p.60
1.16) Quem nunca teve de desprezar justamente aquilo que amava?..........................p.62
1.17) Algum rito de originalidade (ainda não morta)......................................................p.64
1.18) A era turística........................................................................................................p.67
1.19) Pequenos desafios e outras ostras.......................................................................p.72
1.20) Pequenos bálsamos e outras histórias.................................................................p.75
13
Intermezzo....................................................................................................................p.81
LADO B (Ato 2)..............................................................................................................p.86
2) Aonde será que isso começa?..................................................................................p.91
2.1) Inércia, algum silêncio, alguma moda e outros paradoxos....................................p.93
2.2) A(hhh)rtistas ?!.......................................................................................................p.97
2.3) Pequeno aparte: comentário sobre coletivos e sobre a coletividade.....................p.102
2.4) Algum fim?.............................................................................................................p.103
2.5) Hegel... Sim, eu tentei fugir dele............................................................................p.106
2.6) Alguma poética......................................................................................................p.108
2.7) Algumas observações alegóricas..........................................................................p.113
2.8) Alegoria ou o movimento de passagem.................................................................p.118
2.9) Não... Eu não tenho uma frase de efeito...............................................................p.121
BÔNUS TRACK............................................................................................................p.124
Intermezzo 2.................................................................................................................p.136
Bibliografia...................................................................................................................p.139
Pequena observação 1................................................................................................p.143
Pequena observação 2................................................................................................p.144
Pequena observação 3................................................................................................p.145
Letreiro de fim de filme.................................................................................................p.146
14
Introdução
Este trabalho nasceu diante de uma preocupação sobre os efeitos e as
mudanças ocorridas ao longo da história dentro do processo de captura, produção
e veiculação de imagens no sistema de arte. Obviamente, a produção de imagens
sempre foi algo inerente à arte, mas aqui me refiro especificamente àquilo que
Walter Benjamin chamou de reprodutibilidade técnica.
Fui percebendo aos poucos que existia uma série de pequenas
transformações que terminavam por exigir uma reavaliação de tal texto e de tais
observações lançadas pelo autor. Por certo, o momento vivido gerava uma série
de questões que Walter Benjamin não teve tempo de perceber, como por
exemplo, a equiparação do valor de culto ao valor de exposição, a diluição da
aura (tida como sinônimo de distância religiosa), o surgimento de uma aura outra
(que paradoxalmente mantinha-se amparada na capacidade de exposição de uma
determinada imagem), bem como a potencialização do desejo utópico de
eternidade e a diminuição considerável do ritual (que ainda assim, consegue
sobreviver em alguns momentos muito específicos).
Algumas das diferenças fundamentais que se descortinavam eram a
velocidade e a quantidade de produção das imagens. Além de um desejo de
captura de imagens que sejam exóticas e distantes o suficiente para que
provoquem um efeito potente no observador. Estas imagens, consideravelmente
distantes (e aproximadas através da reprodução), têm por objetivo a produção de
um tipo de prazer ao serem observadas, ao deixarem-se invadir pelo olhar atento
e não menos curioso do blico, ávido por mais e mais imagens; num movimento
cíclico e obviamente sem fim.
Mas se então estamos num momento de ultrapassagem desta
reprodutibilidade técnica, onde a própria imagem se descobre dentro de um novo
processo técnico, como denominá-la? Como definir um momento onde o quê
ocorre de fato, é um giro, uma mudança na própria estética veiculada por esta
imagem? Como denominar um momento de trânsito incansável onde o
deslocamento é regra e onde o prazer parece surgir como a mais forte
justificativa?
Escolhi o termo turístico. E por chamar este momento de reprodutibilidade
turística. Onde, mesmo sendo a técnica o eixo primeiro e fundamental, o quê se
15
presentifica é a efemeridade do registro, a perecibilidade da experiência estética
provocada e a ligeira certeza de que todas as coisas parecem satisfeitas quando
banhadas em sua mais recôndita superficialidade. E se o turismo se baseia
fundamentalmente na visita (e na possibilidade de experiência) do monumento
(ou naquilo que ainda lhe resta), no mergulho em elementos geográficos que
abarquem um determinado momento histórico, optei então para iniciar esta
“viagem” justamente com a problemática da monumentalidade e de sua gradativa
desaparição.
Aos poucos fui percebendo que se revelava um certo tipo de melancolia
inconteste dentro da escrita, uma certa tristeza narrativa que parecia querer se
estabelecer e não mais abandonar o fluxo da análise. O texto aos poucos parecia
querer colocar a imagem como de todo um processo de pasteurização da
paisagem, se direcionando para um caminho amargo e absolutamente não
desejável.
Optei então por compartimentar a dissertação em dois lados (A e B), lados
que são a princípio antagônicos, mas que gradativamente se descobrem
complementares. A e B como os lados dos antigos long-plays que viviam aderidos
e que por circunstâncias materiais, davam continuidade de maneira diferente à
mesma obra. A e B como as gangues funkeiras que na cada de 90, se
degladiavam nos bailes-sumidouros dos subúrbios cariocas e que tinham por
objetivo provar sua supremacia diante da violência de sua presença e de seus
desenganos. A e B como dois movimentos que se repulsam e se atraem.
Na realidade, a segunda parte (ou o segundo ato) desta dissertação
termina por colocar em evidência parte das preocupações que foram
fundamentais para a estrutura e para a composição da primeira, além de borrifar
algum otimismo possível. Trata-se de um certo tipo de mapeamento onde vou
garimpando algumas reflexões que sempre me foram muito importantes e que
terminaram desembocando nesta reprodutibilidade que se diz turística.
O lado A busca a todo instante aproximar-se da questão que lhe deu
origem (que de fato também é minha). E faz isto de maneira muito objetiva, quase
linear. O lado B é quase um hipertexto, um conjunto de questões que serviram de
suporte para o primeiro momento. O lado B corre riscos e sabe da necessidade
de tal ousadia. É incerto, difuso e aponta para algumas questões que (em virtude
16
da escassez de tempo e de sua própria profundidade) serão avaliadas novamente
numa próxima pesquisa.
Em alguns momentos, os dois lados expõem suas deficiências sem
nenhuma vergonha ou pudor. Estão tentando levantar questões hipotéticas que
serão comprovadas (se possível for) ao longo da história e ao longo de mais
algumas décadas de produção artística. Sabem da impossibilidade de terminar a
pesquisa, tentam iluminar algum caminho e sentem que seria ingenuidade querer
alguma resposta absolutamente objetiva. Os dois lados tentam, cada um a sua
maneira, observar uma condição atual e verificar possíveis caminhos. Para isto
misturam-se, permeiam-se e refletem-se. Tentam orquestrar algo. Nem que seja
alguma poética que justifique toda a dor e delícia desta empreitada que recomeça
agora.
O.B.S.: Ao longo do texto surgiram pequenos textos escritos por mim e
algumas letras de músicas que servirão de refresco à profusão de idéias e
imagens. Na realidade todos os elementos estão intrinsecamente interligados,
embora em alguns momentos tal ligação opte pelo caminho avesso da
explicitação óbvia a qual estamos acostumados (e a qual esperamos em
momentos como este).
17
LADO A
O Nome da Cidade
(Caetano Veloso)
Onde será que isso começa?
A correnteza sem paragem
O viajar de uma viagem
A outra viagem que não cessa
Cheguei ao nome da cidade
Não a cidade mesma espessa
Rio que não é Rio: imagens
Essa cidade me atravessa
Ôôôô êh boi êh bus
Será que tudo me interessa?
Cada coisa é demais e tantas
Quais eram minhas esperanças?
O que é ameaça e o que é promessa?
18
Ruas voando sobre ruas
Letras demais, tudo mentindo
O Redentor que horror, que lindo
Meninos maus, mulheres nuas
Ôôôô êh boi êh bus
A gente chega sem chegar
Não há meada, é só o fio
Será que pra meu próprio Rio
Este Rio é mais mar que mar?
Ôôôô êh boi êh bus
Sertão ê mar
19
“O que deve logo desaparecer da nossa visão torna-se imagem”
Walter Benjamin
“ Ó Zaratustra, esta é a grande cidade; aqui, nada tens a procurar e tens
tudo a perder.
Por que pretendias vadear este lodaçal? Tem pena dos teus pés!
Cospe, de preferência na porta da cidade – e volta atrás!
Aqui é o inferno para pensamentos de eremitas; aqui os grandes
pensamentos são refogados vivos e cozidos picadinhos.
Aqui apodrecem todos os grandes sentimentos; só pequenos sentimentos
de estalante secura têm o direito de estalar aqui!
Não sentes já o cheiro a matadouros e casas de pasto do espírito?
Não fumega esta cidade os vapores do espírito abatido como uma rês?
Não vês as almas penduradas, inertes, como trapos sujos? E ainda fazem
jornais com estes trapos!
Não ouves como espírito, aqui, foi transformado em jogo de palavras?”
F. Nietzsche
20
Pequenas considerações monumentais
Boris Groys em seu texto A cidade na era da sua reprodutibilidade turística
1
ao
referir-se sobre a eliminação do desejo de busca por uma cidade ideal, ocorrida ao longo
do modernismo, nos diz que: “O olhar turístico romantiza, monumentaliza e eterniza tudo
para o qual ele está voltado.”
2
E completa:
“Somente o turismo monumentaliza uma cidade somente diante do olhar do
turista em trânsito o quotidiano urbano em fluxo e mutação permanentes, torna-se
a imagem monumental da eternidade. E o crescimento do turismo também é
sinônimo de uma velocidade crescente da monumentalização.”
3
Ou seja, é diante do olhar do turista, do estrangeiro, daquele que não é natural de
uma determinada região, que uma cidade pode vir a se tornar monumental. Antes de
mais nada é necessário que esclareçamos que o monumento a priori, é algo que se
impõe dentro de uma determinada paisagem como marco geográfico, histórico e/ou
artístico. Algo que se coloca dentro do espaço para que consiga de alguma maneira, ou
pelo menos tente, contribuir para a perpetuação memorialística de uma pessoa ou de
uma acontecimento relevante na história de uma nação, comunidade, país, continente,
etc...
O monumento traz uma relação direta com a história de uma região, e com a
possibilidade de manutenção desta mesma história dentro da memória coletiva. O
monumento, na maioria das vezes, amparado em sua grandiosidade de superfície formal,
é algo que pressupostamente ainda é capaz de provocar certo arrebatamento poético
através de sua presença arquitetônica dentro do espaço público.
É um elemento-chave no planejamento, na produção e na manutenção da
identidade da cidade, diante do desejo utópico de eternidade. Ou um pouco menos, de
história. São “marcos, guias de orientação e ‘pontos de interesse’”
4
. São elementos que
traduzem um hiato físico dentro da velocidade do tecido urbano e que servem como
elemento de sustentação da arquitetura geral da cidade.
Em Veneza, em 1964, no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos
Monumentos Históricos, foi aprovado o seguinte texto, que parece nos esclarecer ainda
mais o que representa este monumento:
1
GROYS, Boris. A cidade na era da sua reprodutibilidade turística. In Catálogo da XXV Bienal de São
Paulo.
2
Idem pág. 44
3
Idem pág 44
4
RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar. p 185..
21
“Portadoras de mensagem espiritual do passado, as obras monumentais de cada
povo perduram no presente como o testemunho vivo de suas tradições seculares.
A humanidade, cada vez mais consciente da unidade dos valores humanos, as
considera um patrimônio comum e, perante as gerações futuras, se reconhece
solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si mesma o dever de
transmiti-las na plenitude de sua autenticidade.”
5
Poderíamos então estabelecer uma ligação direta entre o monumento e a história,
o povo, suas tradições, seus valores estéticos e ao patrimônio público. O monumento
seria como que aquele momento capturado em realidade plástica que consegue abrandar
a degenerescência do tempo e a entropia das épocas. Ao pensarmos isto, não devemos
esquecer obviamente que o distanciamento temporal necessário para uma análise do
monumento mais afiada, termina inevitavelmente mudando nosso eixo de observação.
Ou seja, pensar o monumento hoje é, diferente daquilo que moveu sua construção e
idealização em épocas passadas. Por certo, antes mesmo do desejo de estabelecimento
histórico e estético, a funcionalidade também surgia como uma justificativa potente que
não pode ser ignorada.
Para Argan, o monumento é um símbolo que traz uma reunião de elementos
históricos e estéticos que não podem ser avaliados separadamente.
“Começamos por dizer que, quando falamos de valor histórico e estético, não
aludimos a dois valores distintos, mas a um só. De fato, o valor histórico de um
monumento consiste no fato de que existe e se vê, ou seja, se como forma
sujeita a avaliação estética.”
6
Para Aloïs Riegl, é importante percebermos também que uma diferenciação
absoluta entre monumentos históricos e monumentos artísticos é injustificável, pois na
grande maioria dos casos, estes dois eixos estão numa relação intensa que pelo seu
diálogo e interseção, potencializam a monumentalidade do objeto. Melhor dizendo, é
claro que existe (ou pelo menos deveria existir) um valor artístico que é paralelo ao valor
histórico. Contudo, este valor artístico termina sendo um dos elementos estruturais da
construção deste valor histórico. Ou seja, está embutido nele, pois o monumento artístico
é a priori um monumento de história da arte
7
5
Carta de Veneza In http://www.iphan.gov.br/legislac/cartaspatrimoniais/veneza-64.htm
6
ARGAN, Giulio C. Argan. História da arte como história da cidade. p. 227
7
RIEGL, Aloïs. Le culte moderne des monuments. p.39
22
Sendo assim, podemos considerar que nos dois casos, o de Argan e o de Riegl,
uma separação entre o valor estético e/ou artístico do valor histórico é desnecessária,
pois o monumento o é como tal, por conseguir fundir estes dois eixos numa realidade
escultórica única. E sua imposição física na história se exatamente por uma presença
estética e artística considerável.
De qualquer forma, o monumento consegue trazer à realidade, o valor histórico
como emblema, como eixo de articulação estético com a geografia que lhe suporte
8
.
Poderíamos pensar inclusive, que o monumento é capaz de corporificar a historicidade
através da orquestração de seus elementos arquitetônicos.
Algo de estável, mesmo que carregando a dúvida de sua perecibilidade como seu
mais profundo segredo. Ou melhor, seu segredo inimaginável. Seu legado é exatamente
o de sua produção dentro de um local específico através do diálogo entre espaço e
tempo. Ele surge como elemento simbólico de uma série de particularidades que foram
fundamentais (em sua maioria) para a realidade concreta de um momento. E que tenderá
sempre por permanecer como prova precisa de sua existência integral dentro de um eixo
de relação antagônica do devir-extinção-do-mundo e do devir-estável-da-história,
permeado por uma certa cobiça de infinitude, possivelmente fundamentada ao longo de
sua sobrevivência.
Em 1931, um outro tratado fundamental chamado Carta de Atenas
9
nos a
indicação do que viria a ser o monumento dentro de uma sociedade:
“A conferência recomenda respeitar, na construção dos edifícios, o caráter e a
fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança dos monumentos antigos, cuja
proximidade deve ser objeto de cuidados especiais. Em certos conjuntos, algumas
perspectivas particularmente pitorescas devem ser preservadas. Deve-se também
estudar as plantações e ornamentações vegetais convenientes a determinados
conjuntos de monumentos para lhes conservar o caráter antigo. Recomenda-se,
sobretudo, a supressão de toda publicidade, de toda presença abusiva de postes
ou fios telegráficos, de toda indústria ruidosa, mesmo de altas chaminés, na
vizinhança ou na proximidade dos monumentos, de arte ou de história”.
O que hoje talvez valha apenas como um sorriso teórico, ainda indica
curiosamente:
8
Obviamente existem exceções. Vale lembrar que a construção dos monumentos e de esculturas públicas
sempre é alvo de polêmica em qualquer parte do mundo. Contudo aqui, não nos preocuparemos inteiramente
com tais casos.
9
Carta de Atenas In http://www.iphan.gov.br/legislac/cartaspatrimoniais/atenas-31.htm
23
“A conferência, convencida de que a conservação do patrimônio artístico e
arqueológico da humanidade interessa à comunidade dos Estados, guardiã da
civilização, deseja que os Estados, agindo no espírito do Pacto da Sociedade
das Nações, colaborem entre si, cada vez mais concretamente para favorecer a
conservação dos monumentos de arte e de história. Considera altamente
desejável que instituições e grupos qualificados possam, sem causar o menor
prejuízo ao Direito Internacional Público, manifestar seu interesse pela
salvaguarda das obras-primas nas quais a civilização se tenha expressado em
seu nível mais alto e que se apresentem ameaçadas.”
10
E por último:
“A conferência, profundamente convencida de que a melhor garantia de
conservação de monumentos e obras de arte, vem do respeito e do interesse
dos próprios povos, considerando que esses sentimentos podem ser
grandemente favorecidos por uma ação apropriada dos poderes públicos, emite
o voto de que os educadores habituem a infância e a juventude a se absterem
de danificar os monumentos, quaisquer que eles sejam, e lhes façam aumentar
o interesse, de uma maneira geral, pela proteção dos testemunhos de toda a
civilização.”
11
Mesmo que tal carta traga um subtexto por vezes melancólico, uma ligeira
tendência ao não-lugar da lembrança que tende a ser o passado, parece-nos bastante
interessante para pensarmos a função ética do monumento dentro do eixo de relação
entre os vários elementos outros que compõem a cidade. Além disto, poderíamos
observar que ele talvez seja a escolha arquitetônica mais racional para indicar que o
homem e todo o universo que lhe acompanha, esteve em determinado local e em
determinado momento. Algo que consiga explodir visualmente e semanticamente todo o
vício de pseudo-contentamento diante da ausência de identidade histórica, estética e
geográfica.
1.1. A sobrevivência monumental da atualidade
Como já dissemos anteriormente, o valor de arte do monumento hoje é bastante
diferente do que em épocas passadas, e para pensarmos isto devemos nos amparar
10
Idem
11
Idem
24
numa análise paralela sobre as transformações que a arte também sofreu. Pois se da
Antiguidade até o Renascimento, o valor artístico atendia a uma demanda objetiva de
maneira incontestável, tal valor aos poucos se transfigurou em algo diverso e
absolutamente particular (atingindo tal ápice fundamentalmente no modernismo
12
), onde
tal noção de valor artístico variava de pessoa para pessoa. De grupo para grupo. De
movimento para movimento.
E se não mais um valor artístico eterno, se o próprio valor artístico instaura-se
definitivamente na subjetividade, talvez possamos considerar que o valor de arte de um
monumento não é mais o de uma rememoração, mas sim um valor atual”
13
E este valor
atual, exatamente pela instabilidade (advinda da inevitável diversidade) instaurada no
eixo artístico e estético, termina por sobrecarregar a valoração histórica (mesmo que esta
esteja então localizada na própria atualidade, mesmo a história não mais precise do
distanciamento temporal para se presentificar como sensação).
Ou seja, por vivermos num momento de dúvida e de instabilidade diante dos
valores estéticos e artísticos, por estarmos num momento onde o juízo de valor é algo
absolutamente particular e subjetivo, por estarmos situados dentro de uma área onde a
inconstância histórica está instaurada, o monumento recorre à possibilidade de valoração
atual para justificar sua existência. Contudo, poderíamos pensar ainda que este valor
quando distanciado dos valores estéticos torna-se fragilizado, perene e separado daquilo
mesmo que ele se propõe. Melhor dizendo, a fragmentação dos valores estéticos termina
por expandir e multiplicar a sensação histórica que se espraia na atualidade. E embora
esta sensação histórica não esteja mais ligada intrinsecamente ao passado, ela ainda
subsiste diante de uma ânsia de futuro. O que quero dizer é: Se o monumento (da
mesma forma que a arte) ampara-se hoje na própria subjetividade, se a
monumentalidade é algo passível de questionamento, o quê termina potencializado é sua
valoração atual (e possivelmente efêmera) que por sua multiplicidade, amplia a sensação
de uma responsabilidade diante do tempo e do espaço. E esta responsabilidade diante
do tempo e do espaço pode ser considerada de alguma forma, como o processo de
surgimento e manutenção de uma sensação histórica.
Por outro lado, devemos ainda considerar as observações de Aloïs Riegl, que
defende que o monumento é uma reivindicação de imortalidade, do presente eterno e da
possibilidade de perenizar um estado de sonho como um estado original. E que
exatamente por isto, por esta impossibilidade de manutenção de tais desejos no
12
DEFERT, Jacques. L’imaginaire du patrimone p.4 (texto gentilmente enviado por email pelo autor em 03
de novembro de 2005) “O projeto da modernidade, depois do Humanismo e das Luzes, não consistiu
unicamente em uma transferência de propriedade e de visibilidade em direção ao espaço secularizado do
patrimônio coletivo. Ele foi acompanhado de um complexo deslocamento de afetos.”
13
RIEGL, Aloïs. Le culte moderne des monuments. p.42
25
presente, o monumento no século XX será um emblema ou um sintoma da refutação de
tais valores
14
Esta negação (da imortalidade, do estado de sonho e de poesia de um
momento histórico) não surge pela simplicidade daquilo que nega de fato, mas pela
escolha inconsciente do ato de deixar de querer algo para que o surja posteriormente
um sentimento mais forte de frustração e incapacidade. Ou seja, negamos tais valores
não pelo ato de negar, mas sim pela certeza recôndita da dor que seria provocada pela
assunção de tais desejos inerentes. Esta negação é o reflexo da presença constante de
uma fantasmática da dúvida acerca do futuro e da obnubilação de um fluxo histórico que
nos sirva de base.
Vale lembrar que o monumento ainda se fundamenta no entrecruzamento de
valores artísticos e históricos. Na realidade, o que aconteceu foi uma considerável
mudança de eixos naquilo que consideramos como arte e história. Mas ainda assim, não
podemos esquecer que os valores artísticos continuam embutidos nos valores históricos
(mesmo que estes se estabeleçam como ligeira sensação) para que assim consigam
construir uma relação estrutural.
Poderíamos também pensar numa outra hipótese: Se atualmente diante da
incerteza dos valores artísticos, o quê sobreviveria como condição sine qua non é a
sensação histórica, temos o surgimento de um problema de outra ordem, já que esta
sensação ainda se fundamenta no seu desejo inelutável de eternidade, permanência e
futuro. Valores estes, que no Século XX, revelaram-se como desejos fadados à
impossibilidade. Sendo assim, hoje o processo histórico por não conseguir articular, de
maneira formal, seus movimentos temporais e espaciais, termina satisfeito com sua
valoração atual, conformado com sua inevitável efemeridade. Talvez seja esta uma das
maiores razões da diminuição gradativa da construção dos monumentos em nossa
época. Ou como diz Rosalind Krauss, o apagamento da lógica monumental.
15
Além disso, é necessário que não sejamos ingênuos de achar que o monumento e
sua respectiva manutenção seguem sempre as mesmas regras ao longo da história.
Apesar de termos optado por citar trechos de alguns tratados que defendiam a presença
e a conservação de tais monumentos, não podemos esquecer que na prática, nem
sempre as coisas funcionaram deste modo.
14
DEFERT, Jacques. L’imaginaire du patrimone. p. 1
15
Citado por Paulo Herkenhoff In Cildo Meireles (catálogo). p. 39
26
1.2. Alguma problemática
Sendo os monumentos elementos integrantes do processo de transformação
urbanística, estão conseqüentemente suscetíveis a transformações históricas,
econômicas e sociais. E sua destruição é por vezes, inevitável, como no caso de guerras
e catástrofes naturais. Vale lembrar também que esta destruição em alguns casos
específicos, torna-se necessária para a reconstrução do espaço e para a diluição de um
emblema urbanístico que estava amparado num momento histórico complexo e por
vezes, politicamente questionável. Em virtude de sua construção (formação) dentro de
um espaço específico, o monumento é sempre fundamentado por uma necessidade
econômica que, desde o começo da história esteve subjugada a forças políticas.
Podemos então pensar em casos específicos, momentos em que o conjunto de
forças, optam por metamorfosear a própria história É o caso de Auschwitz:
“Auschwitz, liberado pelo exército soviético, foi, durante o regime comunista na
Polônia, considerado como um memorial relativo ao assassinato de milhões de
pessoas pelo terror nazista. Não havia referência aos judeus. Este processo de
des-judeização de Auschwitz foi, a partir da década de 1970, fortemente
ampliado. A catolicização de Auschwitz foi estimulada pelo então arcebispo de
Cracóvia, em cuja diocese localiza-se Auschwitz, Karol Wojtyla, o futuro Papa
João Paulo II, desde os anos 70. Em 1983, o lugar da sede do comando nazista
é transformado em igreja e em 1984 é inaugurado um convento das Carmelitas.
Cerimônias religiosas, como a Via Sacra, são ali realizadas. Uma enorme cruz
domina a paisagem de Auschwitz. (...) A apropriação e metamorfose,
duplamente efetivadas, de um dos mais tristes lugares da memória” da história
humana, tem um sentido político por parte daqueles que não foram as mais
numerosas vítimas de um genocídio sistemática e cientificamente programado.
A apropriação e metamorfose do memorial situa-se na interface de conflito no
qual estão em jogo elementos como poder e identidade, quer em sua dimensão
de organização sócio-política, quer como identidade nacional, quer ainda como
identidade religiosa.”
16
Obviamente que aqui, o exemplo dado parece-nos distante do que temos em
mente quando nos referimos ao monumento, que neste caso a imagem que surge
imediatamente é de violência e de caos. Auschwitz não foi construído com o objetivo de
16
CORRÊA, Roberto Lobato. Monumentos, política e espaço In http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-183.htm
27
ser monumento, embora houvesse um desejo de perpetuação histórica absolutamente
forte e consideravelmente cruel. Contudo, após tudo o que se passou, suas ruínas
tornaram-se um monumento que faz parte do patrimônio da humanidade. O q nos
interessa nesta citação é a possibilidade de corrupção que jaz em todo o monumento e
ainda, a instauração da presença monumental após determinada época e após a fratura
de sua funcionalidade original. Além disso, tal exemplo (por mais triste que seja) nos
serve como prova inconstestável da quantidade incalculável de imagens fraturadas que
estão interligadas ao próprio monumento. Ou seja, o monumento é antes mesmo de uma
construção ou de um espaço específico, uma imagem que se produz diante de uma
situação crua exposta no espaço urbano. Um hiato que se presentifica como imagem e
que só se apresenta como monumento quando experimentado.
1.3. Souvenirs, monumentos, marcos e coisas do tipo.
Kevin Lynch em A imagem da cidade, reflete sobre a paisagem e sobre o
processo urbanístico de forma um pouco diferente, de maneira menos abstrata e mais
sintética, como nos diz Argan:
“O livro de Kevin Lynch (A imagem da cidade) destina-se com toda
probabilidade a mudar radicalmente, desde os alicerces, a metodologia dos
estudos urbanísticos e, enquanto isso, a eliminar em definitivo toda uma série
de abstrações de conveniência como “a sociedade”, “a comunidade”, a “função
urbana”.
17
Neste livro, o autor não reflete sobre o monumento em sentido estrito, mas faz
observações sobre aquilo que ele chama de Marcos, que são uma divisão da cidade
provocada pela imagem. São eles: vias, limites, bairros, pontos nodais e marcos.
De qualquer maneira, vale lembrar que existe uma ligeira diferença entre os
marcos e os monumentos, pois os monumentos são tipos específicos de marcos
geográficos.
17
ARGAN, Giulio C. Argan. História da arte como história da cidade. p. 230
28
“As pessoas tendem a selecionar como marco algo que sobressaia, algo que
tenha desempenhado um papel na vida de sua cidade: uma prefeitura, um
mercado, fontes, monumentos, teatros, pórticos de igrejas e assim por diante.”
18
Ainda assim, estes marcos, de alguma maneira distantes de uma certa
tendência monumental e bastante próximos de sua funcionalidade dentro do tecido
urbanístico, emanam certas características que ainda nos interessam bastante.
Vejamos:
“Uma vez que o uso de marcos implica a escolha de um elemento dentre um
conjunto de possibilidades, a principal característica desta classe é a
singularidade, algum aspecto que seja único e memorável no contexto. Os marcos
se tornam mais fáceis de identificar e mais passíveis de serem escolhidos por sua
importância quando possuem uma forma clara, isto é, se contrastam com seu
plano de fundo e se existe alguma proeminência em termos de sua localização
espacial.”
19
E ainda:
“Possui as características da reconhecibilidade em vários níveis de referência e
da coincidência da importância simbólica e visual. As pessoas que usavam
marcos distantes, o faziam quando procuravam uma orientação genérica ou,
mais freqüentemente, simbólica (...) visível de perto e de longe, de dia ou de
noite; inconfundível; dominante por seus contornos e suas dimensões;
profundamente ligado às tradições da cidade; em harmonia com o centro
religioso e de trânsito; unido ao seu campanário de tal modo que sua direção
pode ser avaliada mesmo à distância...”
20
Curiosamente, o marco também tem uma relação direta com a história:
“Quando uma história, um sinal ou um significado vêm ligar-se a um objeto,
aumenta o seu valor enquanto marco.”
21
18
RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar. p. 183
19
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. p. 88.
20
Idem. p. 91
21
Idem. p. 90
29
1.4. A experiência como elemento fundamental da monumentalidade
Ainda gostaria de fazer uma observação sobre tais marcos ou monumentos (já
que o quê realmente me interessa é o têm em comum), sobre a impossibilidade crua de
produção de qualquer imagem com o objetivo de retratação deste seja capaz de gerar um
retrato inteiro do que ele representa na paisagem. Melhor dizendo, os marcos ou os
monumentos são capazes de produzir imagens, mas produzir imagens de tais elementos
que consigam abarcar sua densidade de presença é utopia. A captura completa do
monumento em imagem é impossível, pois “...os sons e os cheiros reforçavam os marcos
visuais, muito embora não parecessem constituir marcos por si próprios...”
22
. A obtenção
de uma imagem total é um desejo irrealizável.
Quando me refiro à imagem total, penso numa imagem que se ao direito da
ingenuidade de acreditar que possa ser instrumental o suficiente para capturar toda a
“aura” de existência que existe num local, num objeto, numa paisagem, ou numa pessoa.
Algo que suponha esquecer sua limitação de nascença (como imagem) e persiga
ferozmente os meios de captura de seu alvo. Imagem que, como palavra por vezes dá-se
o direito de esquecer de lembrar sua função instrumental. Algo que traga a ousadia do
desejo de ser capaz de diminuir a perda da potência que reside em toda e qualquer
distância. Da mesma maneira que em toda e qualquer saudade. Uma imagem que
exigisse o máximo possível de si mesma sem que isto fosse sinônimo de psicopatia, nem
trouxesse nenhum vício. Que conseguisse a partir da captura de um espaço, construir um
espaço outro e que utilizasse os mais diversos meios para a construção de sua poética.
Algo que conseguisse se estabelecer numa posição antagônica e não menos simbiótica
com o conceito de escritura, definido aqui por Jacques Derrida:
“...a designar escritura tudo isso e mais alguma coisa: não apenas os gestos
físicos da inscrição literal, pictográfica ou ideográfica, mas também a totalidade
do que possibilita; e a seguir, além da face significante, até mesmo a face
significada; e, a partir daí, tudo o que pode dar lugar a uma inscrição em geral,
literal ou não, e mesmo que o que ela distribui no espaço não pertença à ordem
da voz: cinematografia, coreografia sem dúvida, mas também ‘escritura’ pictural
,musical, escultural, etc... Também se poderia falar em escritura atlética e, com
segurança ainda maior, se pensarmos nas técnicas que hoje governam estes
domínios, em escritura militar ou política.”
23
22
Idem p. 92
23
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. p. 11.
30
O monumento não permite inteiramente que lhe capturem tecnicamente por ter
como motor fundamental uma consciência objetiva da imprescindibilidade física de
presença advinda de sua própria monumentalidade. Em verdade, o monumento como
monumento, se estabelece inteiramente como experiência estética, quando o
observador está lá. E então, ele (o monumento, arquitetonicamente consciente de sua
presença e de seu substrato) poderá reverberar seu eixo de realidade como algo em si,
na terra do inominável e do “incapturável”. Experiência. Encontro. Algo que ultrapassa a
imagem e a escrita, exatamente pelas raízes cravadas no solo da identidade, até então
estrangeira a ele mesmo, que lhe serviu de base física. O monumento é, então, a fratura
na paisagem primeira. Da mesma forma que o homem.
1.5. Homem-monumento. Algumas possibilidades de investigação
para longe da culpa e da dor de conformar-se com a paisagem
Curiosamente os pontos pelos quais passamos até aqui, as últimas citações, bem
como as problemáticas surgidas até então, se colocadas em análise, poderiam (e
deveriam de alguma maneira) se referir também ao Homem, em sua pequena
monumentalidade de experiência de vida. Puro paradoxo. Algo que deveria atormentar os
dias e as madrugadas de consciência vil.
Nosso problema é justamente o do valor estético da cidade, da cidade como
espaço visual. (..) ‘A cidade’, dizia Marsílio Ficino, ‘não é feita de pedras, mas
de homens.’”
24
E mais:
Parece haver uma imagem pública de qualquer cidade que é a sobreposição
de muitas imagens individuais. Ou talvez exista uma série de imagens públicas,
cada qual criada por um número significativo de cidadãos. Essas imagens de
grupo são necessárias sempre que se espera que um indivíduo atue com
sucesso em seu ambiente e coopere com seus concidadãos.”
25
Se as cidades perdem gradativamente suas diferenças e suas particularidades, se
os “pontos de encontro” se deslocam gradativamente para uma virtualidade enviesada
(vejam que nem nos exigimos a delícia da presença do marco do monumento, mas que
24
ARGAN, Giulio C. Argan. História da arte como história da cidade. p. 228
25
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. p. 51.
31
nos contentamos com a reduzida-imagem do ponto de encontro), talvez caiba ao Homem
transformar-se no antídoto desta paisagem pasteurizada, de reverter o jogo da estética
consumista do desaparecimento de toda e qualquer referência.
Pontos de orientação são essenciais para qualquer forma não insana de vida
urbana ou rural. Sem eles, um cidadão não consegue ‘ler’, quanto mais
‘entender’ o seu lar...”
26
Ou ainda:
“Na cidade de abrigos do século XX, os pontos de encontro passíveis de serem
identificados foram drasticamente reduzidos.”
27
E mais:
“Como na maioria das instituições do capitalismo tardio, as repetições sem
variação expressam a mensagem de que o espaço foi padronizado, de que suas
inflexões e associações foram anuladas...”
28
Se articulando tais citações acima, pensarmos que cada vez mais é inevitável
uma supressão do suporte espacial, temporal ou mesmo, político (fundamentalmente em
países em desenvolvimento) diante de um processo feroz e não menos natural de
industrialização e desenvolvimento tecnológico, e que a presença dos monumentos, dos
marcos, dos elementos urbanísticos capazes de orientar a percepção dentro da
paisagem e atenuar a pasteurização visual do tecido urbano, será cada vez menos ligada
à sua perspectiva histórica e ao juízo estético comum, talvez a opção de pensarmos na
necessidade humana de redescobrir sua monumentalidade não seja tão assim.
Principalmente se, de alguma maneira, ainda acreditarmos na história e no homem como
elementos estruturais da civilização. O que obviamente, não é uma obrigatoriedade.
No caso da Arte especificamente (e dos artistas), é importante ressaltarmos que
ainda existe a necessidade e o legado da transformação de tais reflexões monumentais
para junto da realidade material e social da representação (ou seja, a produção de um
objeto, ou de uma situação). E ainda, quando nos referimos aos artistas, para que
possamos redescobrir alguma monumentalidade que nos pareça justa, é necessário que
26
RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar. p. 186
27
Idem. p. 187.
28
Idem. p. 187
32
antes disso, nós consigamos repensar a própria responsabilidade da figura do artista e
inclusive, a própria fé nesta atividade. “Eles devem reorganizar, reajustar e reformular sua
em sua própria atividade.
29
De qualquer maneira, retomaremos tal questão mais
adiante.
Vale lembrar que em alguns casos, esta reflexão sobre a redescoberta da
monumentalidade poética do homem, através de uma consciência da realidade
monumental da obra pode optar por caminhos variados, inclusive seu contrário formal
mais direto.
Cruzeiro do Sul – 1969/1970
Em Cruzeiro do Sul (1969 – 1970) de Cildo Meireles, um pequeno cubo de
madeira fica exposto no canto de uma enorme sala vazia, apenas com um foco de luz em
sua direção. Além de ter toda uma reflexão física diante da herança do minimalismo, aqui
o artista opta por um caminho diverso, a partir de uma possível dimensão insignificante
do objeto. Pseudo-insignificância esta que se sustenta por seu viés simbólico e político.
Mesmo mantendo ainda uma certa teatralidade (sem exageros), o objeto surge
como emblema, como signo de alguma herança esquecida. Como indício de toda uma
realidade nacional bastante específica. O objeto liga-se a questões históricas,
geográficas de uma determinada região do país e se impõe pela vastidão monumental de
fatos que o cerca. E num jogo dialógico sem fim, a obra parece desvelar também (em
refluxo) sua existência semântica monumental, pois mesmo em suas dimensões
mínimas, suporta o espaço que lhe cabe e o vácuo de seu entorno.
29
MICHAUD, Yves. La crise de l’art cotemporain. p. 157.
33
Princípios Entre os anos 70 e 80, você desenvolveu uma série de trabalhos
de cunho político que fizeram uma alusão direta à violência e à tortura. Em
Cruzeiro do Sul (1969/70) você parece problematizar os assassinatos de uma
comunidade indígena.
Cildo Meireles Esse trabalho faz referência a uma região chamada Bico do
Papagaio que é uma pontinha do estado de Goiás, que agora é Tocantins,
Maranhão e Pará e que, de certa forma, minha história pessoal passa por lá. Um
dia meu pai recebeu um telegrama de um pastor denunciando um massacre na
região. Meu pai foi enviado para para fazer um relatório administrativo. Quando
chegou, acabou se envolvendo na causa, o que acabou até afetando sua carreira.
Ele descobriu que o massacre era o segundo contra um mesmo grupo de índios.
O primeiro tinha acontecido uns 15 anos antes, por um grupo de fazendeiros
liderados por Raimundo Soares. Esse grupo de fazendeiros estava interessado
nas terras indígenas (como sempre este é um problema fundamental no mundo,
no Brasil e fora do Brasil). Eles se reuniram, alugaram um avião para sobrevoar a
região da aldeia jogando roupa infectada: guerra bacteriológica. Em 15 dias a
população foi reduzida de 4 mil para 400 habitantes. Dos que sobraram, metade
enlouqueceu, saiu andando, ou, se tornou alcoólatra. Meu pai descobriu que tinha
havido este primeiro crime, e o segundo... Quando ele levantou essa história,
transformou o inquérito administrativo em policial, levando o responsável ao
Tribunal. O cara foi julgado, condenado, e, pela primeira vez no Brasil, alguém foi
condenado por matar índio. Cruzeiro do Sul, que faz parte dos meus trabalhos em
arte física, tinha como objetivo falar disso.”
30
Neste caso específico, a monumentalidade surge pela articulação simbólica, pela
presença da madeira como vestígio de uma história desconhecida para muitos e pela
solidão que a cerca. É a partir de um fato específico que o artista carregava em sua
memória que o trabalho articula algumas questões específicas e enxerta-lhes poética. E é
na instauração de uma relação formal e arquitetônica (fundamentada pelo antagonismo),
que surge a presença inquestionável do objeto (imbuído de monumentalidade) em sua
carga de presença e no seu eixo de questionamento diante da paisagem, de sua
respectiva identidade e de seu drama inerente. O monumento como reflexo de símbolo
do homem ainda histórico.
30
In http://www.vermelho.org.br/principios/anteriores.asp?edicao=64&cod_not=175
34
“The Southern Cross is, despite its size, monumental, both simbolic and spatially.
Its monumentality exists in the tension between the potential energy, the symbolic
density, of this minuscule object, and the vast, empty spaces in which it is
installed.”
31
Na citação acima, podemos perceber que a monumentalidade a qual nos
referimos surge pela tensão entre a energia potencial, a densidade simbólica e a vastidão
que o cerca. Curiosamente tal tensão parece ser bastante próxima daquela que abarca
os seres humanos atualmente, onde exatamente por sua dimensão e densidade, uma
resposta ativa à instabilidade temporal parece impossível.
1.6. Nem tudo é terra de Oz queridinha....
Pensando ainda sobre esta hipótese de que, seria o homem (e seu legado) o
último reduto possível de manutenção de um foco de estabilidade diante da efemeridade
da paisagem, encontrei um desenho de Robert Venturi, um dos autores de um livro
chamado Aprendendo com Las Vegas
32
Embora o livro seja um estudo específico sobre a arquitetura (e mais
especificamente sobre algumas construções de Las Vegas) além de um debruçar-se”
sobre o simbolismo de suas construções, achei curioso esta coincidência e ironia diante
de uma auto-afirmação praticamente pop. Por certo, quando defendo a possibilidade do
homem redescobrir sua monumentalidade, penso de maneira absolutamente oposta a
esta.
De qualquer forma, tal livro foi fundamental para as pesquisas arquitetônicas pois
representou também um giro nas análises tradicionais. Nele, os autores além de
31
HERKENHOFF, Paulo. A Labyrinthe Ghetto: The work of Cildo Meireles. p. 41 (catálogo)
32
VENTURI, Robert, SCOTT Brown, Denise & IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas. p. 186. Tal
indicação bibliográfica foi uma gentileza de Nicholas Martins.
35
enfatizarem a imagem, acima do processo da forma
33
, dividem as construções em dois
tipos: O pato e o Galpão decorado. Vejamos:
“Quando os sistemas arquitetônicos de espaço, estrutura e programa são
submersos e distorcidos por uma forma simbólica global, chamamos este
edifício, que se converte em escultura, de pato, em homenagem ao ‘Patinho de
Long Island’...”
34
E ainda:
“E damos o nome de galpão decorado ao tipo de edifício cujos sistema de
espaço e estrutura estão diretamente a serviço do programa, e o ornamento se
aplica sobre estes com independência...”
35
Resumindo:
“O pato é a edificação especial que é um símbolo; o galpão decorado é o abrigo
convencional a que se aplicam símbolos.”
36
Optamos por esclarecer tal divisão pois é esta que fundamenta grande parte das
análises tratadas neste livro. Contudo, o que nos interessou de fato, foi a presença desta
ilustração que aponta para o perigo que corremos diante da possibilidade de
interpretação do homem como último monumento possível: o exagero e uma
artificialidade que tem por objetivo endossar, através da superficialidade, uma realidade
aparente e sem consistência. Este é o caminho mais fácil e mais curto.
Por certo, a ilustração ironiza uma construção que tenta se auto-afirmar como
monumento. A frase exposta I am a monument”, utiliza o pronome pessoal eu
(especificamente para pessoas) numa situação onde ele geralmente não seria utilizado. A
construção se coloca como sujeito de sua reflexão e de sua vontade diante da produção
de uma imagem artificial de desejo imposto.
A ilustração é um deboche diante de alguns programas de urbanização como no
caso, da prefeitura de Boston, que freqüentemente opta pelo exagero e que termina em
alguns casos, provocando uma hiper-presença que os autores acham repleta de tédio,
exatamente pela pasteurização reversa da paisagem. Ou seja, a produção incessante de
33
Idem. p. 117
34
Idem. p. 118
35
Idem. p. 118
36
Idem. p. 118
36
construções (e de imagens) altamente potentes termina por provocar um movimento
inverso, diminuindo a potência do panorama da cidade, da paisagem e da imagem que
poderia vir a provocar.
Aqui, é necessário fazermos uma rápida observação que pode esclarecer muito
daquilo que nos preocupa. Procurando informações sobre esta imagem na Internet, me
deparei com um exemplar bem pitoresco de um souvenir que exemplifica o avesso de
nossa proposta: Um boné vendido pelo Philadelphia Museum of Art que tem fibras óticas
para fazer com que objeto brilhe no escuro. Aqui, a imagem do objeto que por cobiça,
gera um falso discurso como sujeito, retorna a objetividade do boné, para mais uma vez
ser tensionada na subjetividade daquele que decide usá-lo. De qualquer maneira, a
monumentalidade torna-se um mero pretexto, uma quase-brincadeira que termina
esbarrando no vazio. É óbvio que podemos (e talvez devamos) encarar o objeto ordinário
como um “blefe-souvenir-museólogico”, afinal sabemos (espera-se) que algo deste tom,
pode ser uma ironia. E por certo, a grande maioria dos freqüentadores de museu tem
absoluta clareza disto. Contudo, talvez seja bom lembrarmos de uma citação de Peter
Plagens que parece tangenciar o assunto: “A ironia transformou-se, na arte atual, em
qualidades que parecem, enganadoramente, não irônicas.”
37
38
1.7.
A humano-monumentalidade como possibilidade de reversão do
jogo
A tal monumentalidade a qual me refiro e que creio ser necessária sua
redescoberta pelo homem, e que se desejado for, sua detecção pelo artista
contemporâneo é um refresco, um alento que surge do interior mesmo da realidade como
37
PLAGENS, Peter. O pós-artista. In Arte & Ensaios. Vol. XII. p. 169.
38
In http://store.philamuseumstore.org/noname37.html
37
uma maneira justa e nada dolorosa para o paradoxo que reside em toda a existência, que
se baseia na potência criativa e infindável do homem e na sua existência mínima diante
do tempo e do espaço. Talvez isto nos ajude diante de nossa impossibilidade nata ( “Sim,
existem sujeitos: são os grãos dançantes na poeira do visível, e lugares móveis num
murmúrio anônimo.”
39
) e no mesmo movimento, atenue a angústia desta encruzilhada
inevitável sem que a ação poética se torne estanque.
Revolver-se. Para que assim de alguma maneira, consigamos perseguir alguma
certeza advinda de nós mesmos, mesmo que esta porventura, evole-se
instantaneamente, ou em casos extremos, seja destruída em virtude das forças (se é que
elas ainda existem) econômicas e políticas. Redescobrir esta monumentalidade seria
então, fazer com que a manutenção da poética do indivíduo seja a maior prova de
resistência possível diante da paisagem. Talvez esta monumentalização do homem, nos
sirva como hiato, como possibilidade de fratura nada utópica diante de um jogo pós-
moderno viciado, descrito aqui por Zygmunt Bauman:
“Manter o jogo curto significa tomar cuidado com os compromissos a longo
prazo. Recusar-se a “se fixar de uma forma ou de outra. Não se prender a um
lugar, por mais agradável que a escala presente possa parecer. Não ligar a vida
a uma vocação apenas. Não jurar coerência e lealdade a nada ou a ninguém.
Não controlar o futuro, mas se recusar a empenhá-lo: tomar cuidado para que
as conseqüências do jogo não sobrevivam ao próprio jogo e para renunciar à
responsabilidade pelo que produzam tais conseqüências. Em suma, cortar o
presente nas duas extremidades, separar o presente da história. Abolir o tempo
em qualquer outra forma que não a de um ajuntamento solto, ou uma seqüência
arbitrária, de momentos presentes: aplanar o fluxo do tempo num presente
contínuo.”
40
Resumindo, “O eixo de estratégia da vida pós-moderna não é fazer a identidade
deter-se, mas evitar que se fixe.”
41
E vale lembrar que esta instabilidade não tem nada
de novo, pois é uma claramente uma herança moderna, pois:
“As vanguardas deram-se conta de que um novo fator vinha perturbar o mundo:
a impermanência. Tudo se tornara irremediavelmente impermanente:
39
DELEUZE, Gilles. Conversações. p.134
40
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. p. 113.
41
Idem. p. 114.
38
conhecimento, comunicação, consumo, produção; o próprio homem tinha seu
‘eu’ desestabilizado”
42
E mais:
“Com a predominância dos aspectos impermanentes da vida, surge o gosto do
provisório, do inconstante. Nada mais pode permanecer estável, permanente,
eterno. Os traumas e os choques sensórios que a impermanência produzia
preparavam, de certa forma, o aparelho sensorial para uma cultura em que a
imagem iria predominar. A imagem moderna se constituía então como a
problemática estruturação visual da impertinência.”
43
Esta monumentalidade subjetiva a qual me refiro não é ingênua ao ponto de
achar que seja suficiente para provocar uma nova fixação de identidades, valores e
sentimentos (já que fixar-se não faz parte de nossa herança). Mas pelo menos parece-
nos uma hipótese lúcida para que o movimento intenso do não-estabelecimento não nos
cause tanta angústia e nem potencialize o movimento entrópico que cada vez mais é tão
presente.
Esta entropia já foi detectada por Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois em L’informe,
mode d’emploi, catálogo de uma exposição realizada no Centre Georges Pompidou em
1996. Tal catálogo parte do termo Informe, criado por Georges Bataille, para discutir o
que viria ser esta característica e este hábito tão presentes. Segundo Yve Alain-Bois é:
“O informe nada é em si.: tem existência apenas operatória: é um performativo,
como a palavra obscena, cuja violência não tem tanta relação com aquilo a que
se refere. O informe é uma operação.”
44
Mas por que falamos aqui do informe? Na verdade, o que nos interessa de fato é
uma de suas operações: a entropia. Segundo os autores, o informe opera de quatro
modos específicos: a horizontalidade (processo de funcionamento que rejeita a
verticalidade e uma certa hierarquia inerente), a pulsação (ritmo intermitente que marca a
força do processo e a indiferenciação entre espaço e tempo), baixo materialismo (a
42
FILHO, Paulo Venâncio. História, cultura periférica e a nova civilização da imagem. In Arte & Ensaios.
Vol. V. p. 95
43
Idem. p. 95
44
KRAUSS, Rosalind, BOIS, Yve-Alain. L’informe, mode d’emploi. Ver FERREIRA, Glória. Arte &
Ensaios. Vol. V.
39
utilização dos mais diversos materiais “não nobres” para obtenção de uma forma
específica) e a entropia (o desgaste inevitável de energia nos processos e a desordem na
estrutura dos sistemas).
A entropia é a medida da desordem ou da imprevisibilidade da informação, ação
de voltar(-se) para si, reflexo, mudança de disposição ou de sentimento, ação de
“ensimesmar-se”. Este “ensimesmar-se” traz obviamente uma preocupação específica
sobre o próprio processo de existência da obra, uma busca de uma consciência diante da
finitude e do inevitável. A desordem da informação termina potencializando o processo de
caos e de incerteza, gerando sensações em hipertexto que esbarram inevitavelmente na
questão da morte.
1.8. Pulsão de morte, riscos e outros pequenos vícios luxuosos.
“Para falar francamente, sempre foi desta maneira : eu jamais vivi no possível,
somente dentro do inconcebível. Minha memória acumula os horizontes destruídos.
Existe em nós uma tentação, mais até do que uma vontade, de morrer”
45
A pulsão de morte é algo que está presente na grande maioria dos trabalhos
recentes e que parece ainda ter sua força dentro da produção atual das artes plásticas.
Um dos exemplos mais claros e mais fortes que temos é de Damien Hirst, artista inglês
integrante do grupo Young British Artists (YBA), que a partir da década de 90 torna-se um
dos principais elementos do star system contemporâneo, inclusive ganhando o Turner
Prize em 1995. Uma das séries mais conhecida coloca corpos de animais, cortados ou
não, dentro de vitrines cheias de formol. O resultado quase hospitalar surge como um
emblema desta tal angústia que falamos anteriormente.
Ele diz: Eu sou consciente das contradições mentais que existem em tudo, como
por exemplo: Eu vou morrer e quero viver para sempre. Eu não posso escapar ao fato e
também não posso deixar o desejo fugir”
46
O artista tem consciência desta contradição,
desta agonia diante da inevitabilidade da morte e ao fazer uso disto termina por produzir
uma imagem que nos parece potencializar tal aflição. A imagem de considerável impacto
surge e se sustenta pelo desconforto que provoca, pelo seu exotismo inevitável. Pelo fim
em si mesma que clarifica e que expõe, pelo antagonismo de sua presença e por sua
sentença inerente.
45
CIORAN, Emilie Michel. Recontre avec le suicide. p. 1. (texto obtido por programa de compartilhamento
de arquivos).
46
In http://www.tate.org.uk/britain/turnerprize/history/hirst.htm
40
Mother and Child divided – 1993
“Folha - De que forma você relaciona sua obra à morte? Pelo excesso do
material e sua banalização?
Hirst - A gente diz "vida é morte" e "morte é vida". No final das contas, a vida é
para viver, é muito excitante, mas eu acho que é difícil de entender o que é a
morte. É algo com o que se tem que lidar a cada dia.
Folha - Suas obras são muito sedutoras. O que significa o belo para você? E
como você as constrói?
Hirst - A obra tem que ser desejável. Você tem que fazer com que as pessoas
ouçam você antes de mudar as idéias delas. Se as pessoas olham e vão
embora, então esquece. Como artista você tem que penetrar na cabeça delas.
Da mesma forma como flores atraem abelhas. Você tenta de tudo.
Folha - A morte vende?
Hirst - Sempre vendeu, não? Em todos os níveis.”
47
O trabalho de Hirst é o emblema de uma imagem que se esvazia exatamente por
aquilo que é (e não simplesmente por aquilo que representa) e pela surpresa que traz
quando colocada dentro de um meio expositivo. O observador é levado ao vácuo de si
mesmo e do mundo. Na citação acima podemos perceber que o artista ao se referir ao
belo, diz que é preciso produzir uma imagem forte e praticamente inesquecível, mesmo
que para isto utilize os mais diversos recursos.
Conhecemos nossas dúvidas e nossas amarguras, mas reforçar tal sensação não
seria hoje um método que estamos consideravelmente cansados? Será que os artistas
não deveriam encontrar outro caminho que não seja obrigatoriamente o caminho mesmo
do esvaziamento que acontece todos os dias na paisagem ordinária dos homens? Ser
47
In http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ (05 de fevereiro de 2006)
41
espelho não é de fato, por mais óbvio que pareça, mais fácil que ser exceção? Ainda
assim, não podemos desconsiderar o que tal imagem provoca quando se apresenta
como túmulo...
“Um esvaziamento que de modo algum concerne mais ao mundo do artefato ou
do simulacro, um esvaziamento que aí, diante de mim, diz respeito ao inevitável
por excelência, a saber: o destino do corpo semelhante ao meu, esvaziado de
sua vida, de sua fala, de seus movimentos, esvaziado do poder de levantar os
olhos para mim. E que no entanto me olha num certo sentido o sentido
inevitável da perda posto aqui a trabalhar.”
48
Neste mesmo capítulo, Didi-Huberman expõe de maneira clara o que talvez vários
artistas estejam esquecendo vez por outra:
“Ora, saturar a angústia não consiste senão em recalcar, ou seja, acreditar
preencher o vazio pondo cada termo da cisão num espaço limpo, fechado e
bem guardado pela razão – uma razão miserável convém dizer.”
49
O quê surpreende é exatamente isto, a suficiência da miserabilidade da evidência
da razão catalogada, como elemento fundamental para a constituição de uma obra ou de
uma imagem de potência monumental. Certamente não defendo aqui a produção
unicamente de trabalhos voltados para o onírico, para a ilusão, ou mesmo para a
superficialidade do mundo, mas tendo a duvidar consideravelmente do teor artístico
extraído de uma realidade sem surpresas. Parece que cada vez mais, um desejo de
catalogação visual do perecível do mundo e do homem, surge como resposta plástica
aceitável que provoca por sua vez, satisfação e prazer.
Este movimento de colocar em evidência o mundo como realidade inevitável pode
e deve assumir outros contornos e escolher outros caminhos que terminem por não abolir
diretamente a poesia que é, a priori, necessária nos trabalhos de arte. Ou seja, a
dificuldade seria produzir uma imagem dúbia que consiga a partir da crueza da realidade,
lançar o público num processo de reflexão que, apesar de sua carga por vezes negativa e
entrópica, não ignore o lirismo possível que ainda nos resta e a possibilidade (e o risco,
obviamente) do homem se redescobrir monumental.
Ou seja, o que nos parece interessante é a possibilidade de produzir uma imagem
em latência que evidencie o vestígio de monumentalidade que ainda nos resta como
48
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. p. 37
49
Idem. p. 38.
42
legado e que seja capaz de abrandar nossa ansiedade congênita, que produzir uma
imagem monumental que seja um veredicto da fatalidade da finitude do homem e do
mundo, é de certa formal algo mais do que cotidiano (basta olhar o entorno).
Portrait with Scorpian (Closed Eyes), 2005
“Tudo o que posso por fim apreender é que uma tal visão que me imerge na
escuridão da noite e me cega, traz-me ao mesmo tempo para mais perto do
momento no qual, e disso não posso duvidar, a nítida clareza da consciência
me leva para o ponto mais distante dessa verdade imperscrutável, que se
descerra entre mim e o mundo com o intuito de ocultar-se”
50
Marina Abramovic, neste retrato com escorpiões traça um caminho mais longo e
não menos poético sobre o risco de estarmos vivos e do embate inevitável entre a vida e
a morte. A placidez do rosto é antagonizada pela figura obtusa do escorpião, que de certa
forma pode ser considerado como uma metáfora da realidade do mundo e dos homens.
O que surge como resultado é uma imagem absolutamente estrangeira,
enviesada e violenta, que num movimento rápido arrasta o espectador para um eixo de
consciência que apesar de distante e nada freqüente, torna-se fundamental: A
convivência do homem com os seus riscos (escolhidos ou não). O trabalho não opta por
clarificar nada, apenas deixa a imagem reverberando por si em suas incertezas de
discurso. O perigo tangencia a artista que por sua vez, roça o observador através da
consciência de sua presença através de uma luta infindável e não menos monumental,
expressa na imagem produzida. E como na citação de Georges Bataille, esta verdade
imperscrutável que surge tem como intuito não sua revelação direta, mas objetiva emergir
50
BATAILLE, Georges. Citado por Hans Ulrich Reck In Extensão, implicação, transgressão Da violência
das imagens à poética do kairos. http://www.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferencias/125.rtf
43
do mais profundo medo humano como poética para novamente, ocultar-se. Movimento de
aparição e desaparição. Morte e vida. Antítese que o é, porque a herança de seu
destino é o complemento.
Monument – 2001
Monument de Rachel Whiteread de 2001, construído especificamente para a
Trafalgar Square em Londres é um trabalho que consegue exemplificar o antagonismo da
realidade e questionar inclusive o que atualmente entendemos como monumento. A
artista optou por fazer uma reprodução do pilar que sustenta a obra de maneira invertida
e em resina. A escultura declara-se a si mesma como complemento da paisagem e como
possibilidade de instauração de uma situação poética dentro da cidade.
A imagem produzida nos remete a algo que esem vias de desaparecer, algo
que se sustenta unicamente por aquilo que lhe sobra como memória, como traço, como
vestígio. As duas partes parecem complementares e sugestionam um movimento infinito
de partes antagônicas, onde uma parte (por atração e repulsão) tenta o tempo inteiro
livrar-se da objetividade da outra, que no fundo, é ela mesma em semelhança. Enquanto
44
uma ampara-se na concretude da realidade dada, a outra ambiciona a translucidez de
vir a ser unicamente idéia no puro espaço.
E se como dissemos anteriormente, o monumento tem relação direta com a
memória e com o acontecimento de algum fato histórico, aqui se instaura um novo
drama, uma outra dor, pois a obra é a lembrança apenas daquilo que lhe serve de base e
que de acordo com o passar dos tempos, talvez não esteja mais lá. O trabalho é o
monumento consciente da possibilidade da perda de sua presença, tornando-se então
apenas uma névoa poética, uma ligeira lembrança. A perda que se expõe então, é a
própria morte da monumentalidade do desejo de presença, mesmo que esta última tenha
a seu lado sua parceira fundamental e antagônica (que é a própria manutenção deste
desejo) e que as duas peças não mais possam saber quem é o simulacro de quem.
Dubiedade típica de s mesmos em tempos de cólera. Eu e você. Obra e público.
Cidade e turista.
1.9. Observação efêmera, quase justificativa.
A questão que fundamenta esta dissertação foi surgindo aos poucos. Na verdade,
ela foi desvelada de acordo com as etapas do processo de construção do meu próprio
trabalho plástico (que comentarei mais adiante), onde fui percebendo a presença e a
preocupação sobre o diálogo, sobre a possibilidade de experiência entre nós, entre eu e
você, entre obra e público.
Ao longo da História da Arte, a distância existente entre estes dois últimos
elementos foi aumentando gradativamente. E mesmo com o surgimento da figura do
crítico de arte que tinha por objetivo tentar diminuir tal distância na experiência estética,
através do entendimento e da análise da obra e da trajetória do artista, esta distância
manteve-se avassaladora. Tão avassaladora que optei por compará-la ao turismo.
E se este turismo se baseia também no desejo de visitação de locais específicos,
de monumentos e pontos turísticos, achei lúcido (como já disse anteriormente) começar a
dissertação por uma análise de tais monumentos e daquilo que os preenche, a
monumentalidade. Ou seja, o monumento é fundamental para uma cidade, bem como
para o turismo e obviamente para o turista. E é sobre ele que nos debruçaremos agora.
1.10. O turismo mesmo. Mesmo que ainda estrangeiro.
As primeiras citações que utilizamos de Boris Groys (logo no começo do texto),
ligam o olhar turístico à possibilidade de monumentalização de uma cidade. Poderíamos
45
discordar absolutamente de tal afirmação. Pois o que realmente pode (e deve)
monumentalizar uma cidade (mesmo que estejamos esbarrando na fronteira do
impossível) é aquilo que a constitui de fato, homens em experiência de vida. Que quando
artistas, utilizarão suas respectivas poéticas para endossar sua importância como
homens e sua presença estrutural dentro da cidade, num jogo infinito de aparição e
desaparição.
Ainda assim, o turismo tem uma importância inquestionável para o
desenvolvimento de uma cidade ou até mesmo de um país, mas como deixamos claro
ele não é o único (e talvez nem mesmo seja o principal responsável) pela
monumentalização de um local específico. De fato, o turismo começa lentamente na
Europa durante o séc. XVIII, mais especificamente na Itália com jovens afortunados e
aventurosos que de acordo com suas respectivas vocações de escritores ou artistas
debruçam-se sobre outras culturas em busca de novas experiências. Aos poucos
começam a surgir novas empreitadas rumo ao Oriente e à África do Norte. Tais
deslocamentos eram justificados pelos encontros com o desconhecido, por redações de
textos de jornais, pela construção de cadernos de desenhos ou de aquarelas. Flaubert,
Fromentin, Maupassant e mais tarde Matisse, Gauguin ou Marquet são algumas das
figuras mais conhecidas deste processo.
51
Contudo, aqui estamos nos referindo ao movimento inicial de formação do turismo
(no séc. XVIII) e seu desenvolvimento considerável no século XIX, que se de acordo
com a ampliação dos meios de transportes, com o aumento da segurança dos mesmos e
com o aparecimento das primeiras formas de consumo de massa e de diversão. Porém
não podemos esquecer que não registro da palavra ‘turismo’ na língua inglesa antes
de 1800”
52
e que este movimento inicial do turismo em nada se compara ao que se
tornou a indústria turística das últimas décadas. Pois:
“O turismo de massa é um fenômeno do final do século XX; afirma-se – a partir de
estimativas que podem ser fantasiosas, mas que não deixam de ser interessantes
que o turismo de massa se tornou a indústria mais dinâmica do mundo. Por
isso, é difícil resistir às suas demandas e a seus grupos de pressão. Essa
indústria oferece emprego para uma grande variedade de exércitos de
trabalhadores e levou ao desenvolvimento de estruturas institucionais
completamente novas.”
53
51
MICHAUD, Yves. L’Art à l’état gazeux. p. 185
52
RYKWERT, Joseph. A sedução do lugar. p. 215
53
Idem. p. 215.
46
O turismo hoje contribui por 10% do crescimento mundial a cada ano. E apesar de
pequenas baixas que conheceu durante o ano de 2001, em virtude dos atentados de 11
de setembro, seu crescimento é galopante e indiscutível. Estimativas prevêem um
crescimento de 4,3% por ano durante os próximos dez anos. E exceto ocorram
catástrofes políticas ou ambientais, teremos em 2015, 1.6 bilhões de turistas para uma
população de 8 bilhões de seres humanos.
54
O turismo articula também vários setores
da vida que são fundamentais ao seu funcionamento como a hotelaria, a construção, os
transportes, as empresas de comunicação, as áreas de saúde, a indústria do sexo e
obviamente, a arte e os artistas.
A construção de “museus-pontos-turísticos” é cada vez mais freqüente, com altos
investimentos na arquitetura e na própria lógica de funcionamento do museu (áreas de
lazer, setores específicos para crianças, lojas de souvenir e coisas do tipo). Na maioria
dos casos, a construção destes “monumentos” é potencializada pelo desejo de
reurbanização de uma determinada região para que assim consiga atrair cada vez mais o
público local, turistas e, obviamente, capital. Como por exemplo, o Museu Guggenheim
em Bilbao, que foi uma empreitada realizada pelas autoridades locais com o objetivo de
revitalizar a economia e de aumentar as chances de transformação da região numa
metrópole cultural. O plano de edificação envolvia também um redimensionamento nos
meios de transporte, no alargamento do porto local, na construção de um centro de
conferência de artes performáticas entre outras coisas. O museu, desenhado por Frank
O. Gehry, abriu suas portas em 19 de outubro de 1997 e em menos de um ano havia
recebido mais de 1.300.000 visitantes.
Guggenheim - Bilbao
A construção de obras de arte em locais inóspitos também é um movimento que
devemos considerar. Em alguns casos, a instauração destes sítios específicos ajudou
claramente o desenvolvimento de determinado local que até então estavam
54
MICHAUD, Yves. L’Art à l’état gazeux. p. 187
47
consideravelmente degradados. Ou quando não degradados, eram locais de pouca ou
nenhuma visitação pública. O investimento em obras de arte como estas, terminam
também por potencializar o movimento e o fluxo turísticos em determinado local.
Spiral Jetty - 1970
Spiral Jetty de Roberth Smithson é um dos paradigmas de trabalhos de site
specific. Construído com materiais específicos como terra, rocha e cristais de salitre,
trata-se de uma enorme forma espiralada que se estendia da costa até o Grande Lago
Salgado em Utah, nos Estados Unidos. Aqui temos um exemplo claro do que Rosalind
Krauss investigou em seu texto A escultura no campo ampliado, que seria aquilo que
estando na arquitetura não seria arquitetura e estando na paisagem não seria paisagem,
e sua lógica estaria regida pela função social do monumento, por sua presença que se
impõe na paisagem, por sua força visual e por sua preocupação memorial.
55
1.11. Porquês turísticos
Mas por que falarmos aqui de turismo? Porque sabemos que estamos vivendo
numa época onde o hedonismo torna-se cada vez mais presente e o turismo é um dos
elementos que satisfaz tal hedonismo. Além disso, podemos considerar a experiência
turística como uma experiência também estética, pois se refere à sensibilidade, à
recepção e à busca de uma experiência artística. O turista está à procura de sensações
que estejam fora de todo o interesse utilitário e realiza suas experiências por prazer, para
“ter” tais experiências e aproveitá-las da melhor maneira possível.
56
55
KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. In Revista Gávea V.1
56
MICHAUD, Yves. L’Art à l’état gazeux. p. 188
48
“O quê é procurado no turismo é a distração, a evasão, a diversão, a sensação,
o prazer : todas as coisas que se arrumam sobre a rubrica prática do exotismo.
O exotismo permite a fuga do cotidiano e de suas violências, de se desorientar.
Ele deve permitir também a realização de encontros: encontro com outros
homens, com outros hábitos, com outras maneiras de pensar e sentir. Com
determinadas precauções e dentro das condições que proporcionam o encontro
sem perigo, que amortecem o choque com o estranho. Através do exotismo, o
turista procura o outro que não ele mesmo, de identidades diferentes da sua,
onde o encontro lhe confere o sentimento de sair de si, deixando-o assim crer
que ele sabe melhor aquilo que ele é.”
57
O turista vive sobre a égide do movimento incessante, sobre o prazer (na maioria
esmagadora dos casos, amparado por descompassos econômicos) do descompromisso
diante daquele que visita, para que assim possa ao fim de sua viagem, descobrir melhor
o que vem a ser ele mesmo e o outro.
Uma das diferenças fundamentais entre o turista e o flanêur (produto direto da
modernidade e de Baudelaire) é que o primeiro joga muito menos com o acaso, com a
observação dos movimentos de passagem, embora ele possa obviamente experimentar
acontecimentos casuais que aconteçam ao longo de sua viagem. O flanêur segue os
vestígios, tentando decifrar o que a paisagem labiríntica e impenetrável tem para lhe
oferecer
58
. O flanêur perde-se na massa, é o que está no centro do mundo - na multidão -
e o que está, ao mesmo tempo, protegido, dissimulando-se, ao abrigo dos olhares. Seu
desejo é dialético. Seu objetivo é aproximar-se daquilo que lhe escapa continuamente,
fazendo com que assim persiga o alvo sem cessar. Seu alvo são as pequenas relíquias
que a paisagem pode lhe oferecer para que, de alguma maneira, consiga anestesiar sua
solidão inerente. O flanêur procura um refúgio na multidão. A multidão é o véu, através
do qual a vida familiar se move para o flâneur, em fantasmagoria”.
59
O turista por sua vez, tem objetivos mais claros e alvos mais diretos. Seu objetivo
não é o de ser sumir na multidão, mas simplesmente de conseguir observá-la de fora,
como se através de uma vitrine. O turista sabe que jamais fará parte da sociedade a qual
visita (embora em alguns casos seja movido por este desejo utópico). Tal distância é
desejada para que assim consiga discernir melhor o que define os dois pólos (visitante e
visitado). E por mais que sejamos turistas em ato, em pulsão, ou em desejo, o turista tem
57
Idem. p. 191.
58
CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Bejamin. In:
http://www.ucm.es/info/especulo/numero24/benjamin.html
59
BENJAMIN, Walter. Écrits Français,“Paris, Capitale du XIXe siècle”, p. 301. citado por CANTINHO,
Maria João. Idem.
49
uma reputação. O turista (ou melhor, o estereótipo de turista) é vulgar, ridículo,
inculto, arrogante e egoísta, sempre deslocado e vestido com roupas ridículas,
movimenta-se em tropas barulhentas, devasta tudo e fotografa o quê quer que seja. É um
homem de episódios, de vida múltipla e compartimentada. Curioso, ansioso e
ligeiramente angustiado pela quantidade de coisas a serem aprendidas in loco. Ele
procura a verdade e a autenticidade que a própria situação turística lhe obriga a viver.
Atravessando fronteiras e tentando sem parar diluir as fronteiras entre aqui e lá, entre
centro e periferia.
60
Seu repertório é ausência de um comprometimento diante do futuro. O turista de
massa esbarra, tropeça em novas paisagens, em outras personagens exóticas e
inimagináveis. Por outro lado, seu outro e seu “outro-lugar” estão sempre a serviço dele
próprio. É importante que ele “se sinta em casa” para que possa mais tarde, caso deseje,
retornar ao local visitado e assim, auxiliar na movimentação de capital, mesmo que para
isto a cidade tenha que usar os mais diversos recursos para então propiciar as mais
estranhas ilusões. no turismo algo de construção involuntária que é bastante
interessante, pois dentro de uma época de consumo de massas, tudo de uma cidade
deve estar preparado para servir de base a este encontro com o estrangeiro. E
obviamente, a ficção pode também fazer parte deste jogo.
Claro que também podemos pensar em outras questões... (observem que estou
sempre me referindo ao turista típico): O turista se move por vontade de conhecimento,
para que possa ter contato com culturas outras, viaja de férias para que possa descansar
e para que, mesmo que por dias ou por meses, consiga se desligar de sua realidade
primeira, por vezes sufocante e árida. Antes de optar pelo movimento, houve um outro
movimento misterioso que em contrafluxo, obrigou-o a tomar tal decisão (mesmo que de
maneira inconsciente). Algo que provavelmente tenha sido potencializado pelo seu
desconforto e cansaço no lar de origem.
Por certo nem sempre isto é a regra. Uma das maiores qualidades do turismo de
massa é o que ele possibilitou aos homens de diversas partes do mundo (principalmente
aqueles que vivem em países desenvolvidos, com uma condição econômica estável): o
deslocamento freqüente durante suas férias. Em tais países, pessoas das mais variadas
classes sociais viajam para os mais diversos lugares com regularidade. E tal processo
por sua vez, também é fundamental e imprescindível para a economia, pois termina
auxiliando na qualidade da produção deste mesmo trabalhador quando retorna ao seu
local de trabalho.
De qualquer maneira, o extremo oposto do turista é aquele homem que, por mais
que o lar de origem seja desconfortável e selvagem, nele o contentamento infame
60
MICHAUD, Yves. L’Art à l’état gazeux. p. 189 e 190.
50
diante das condições que a vida lhe deu (por vezes suportado por instrumentos
religiosos). Seu lugar primeiro perdeu a identidade e talvez esta perda não lhe faça
tanta falta assim. Esta figura é a do vagabundo, que segundo Bauman, é o oposto
complementar inevitável do turista.
“Uma palavra de advertência: turistas e vagabundos são as metáforas da vida
contemporânea. Uma pessoa pode ser (e frequentemente o é) um turista e um
vagabundo sem jamais viajar fisicamente para longe.”
61
Apesar disto, o que realmente nos interessa aqui é a figura do turista, bem
definida pelo mesmo autor no trecho abaixo:
“De fato, os turistas que valem o que comem são os mestres supremos da arte
de misturar os sólidos e desprender o fixo. Antes e acima de tudo, eles realizam
a façanha de não pertencer ao lugar que podem estar visitando: é deles o
milagre de estar dentro e fora do lugar ao mesmo tempo. O turista guarda sua
distância, e veda a distância de se reduzir à proximidade. É como se cada um
deles estivesse trancado numa bolha de osmose firmemente controlada;
coisas tais como as que o ocupante da bolha aceita podem verter para dentro,
coisas tais como as que ele ou ela permitem sair podem vazar. Dentro da
bolha o turista pode sentir-se seguro: seja qual for o poder de atração do lado
de fora, por mais aderente ou voraz que possa ser o mundo exterior, o turista
está protegido. Viajando despreocupadamente, com apenas alguns pertences
necessários à garantia contra à inclemência de lugares estrangeiros, os turistas
podem sair de novo a caminho, de uma hora para outra, logo que as coisas
ameaçam escapar do controle, ou quando seu potencial de diversão parece ter-
se exaurido, ou quando aventuras mais excitantes acenam de longe. O nome do
jogo é mobilidade: a pessoa deve poder mudar quando as necessidades
impelem, ou os sonhos o solicitam. a essa aptidão os turistas dão o nome de
liberdade, autonomia ou independência, e prezam isso mais do que qualquer
outra coisa, uma vez que é a conditio sine qua non de tudo o mais que seus
corações desejam. Este é também o significado de sua exigência mais
frequentemente ouvida: ‘Preciso de mais espaço’. Ou seja, a ninguém será
permitido discutir o direito de sair do espaço em que atualmente estou
trancado.”
62
61
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. p. 118.
62
Idem p. 114
51
1.12. A obra como cidade
O movimento turístico se sustenta pela separação semântica intransponível e pela
distância absoluta entre aquele que visita e aquele que é visitado. Que pelo exotismo do
ambiente e de seu conteúdo, projeta uma imagem ‘monumentalizada’ do outro (sempre
do outro), mantendo-se o mesmo, em eterno processo de reverberação. Se pensarmos
que a cidade é a construção de uma realidade não-natural, em virtude dos seus desejos
de comunicação, fruto da produção humana, e composta por uma trama inesgotável de
signos e variações estéticas, poderemos então aproximar a imagem da cidade da própria
imagem da obra de arte. A obra como cidade, em imagem de construção e
desconstrução.
Podemos também pensar que o quê monumentaliza a obra é a visita / viagem
esporádica daquele que é estrangeiro à sua poética. Ou seja, o público. Ou mais:
Pensando sobre o monumento como algo que contribui para a perpetuação
memorialística de alguém ou de algo diante do esquecimento por vezes, implacável da
história, surge uma pergunta: Seria então este fluxo transitório de “forasteiros” que
tornaria possível um refluxo diante do esvaziamento da obra, do próprio artista e da
história? Seriam a velocidade e a quantidade da exposição deste trânsito entre público e
obra, os responsáveis pela instauração de uma nova sensação de obra e de presença?
Sendo assim, o quê constitui e consolida a obra como tal, é o olhar daquele que a
desconhece de fato (exatamente por ser estrangeiro à poética da mesma) e que, em
certas ocasiões, visita-a por curiosidade. Ou seja, o público (a audiência) como turista,
em afã de pesquisa de campo direcionado à experiência estética.
Penso então num trabalho de uma artista que vive no Rio de Janeiro que quase
como brincadeira, tangencia tal questão.
A aeromoça – 2003
52
O nome da artista é Carmen Riquelme e a da personagem, Mirabel Milagres, a
aeromoça. Esta aeromoça (que trabalhou ativamente entre 2003 e 2004 no Rio de
Janeiro), surge em locais de arte e também em lugares de passagem (não-lugares) como
metrôs e ônibus. Geralmente fala em espanhol por seu desejo inquestionável de
comunicabilidade. Fala apressadamente como se não tivesse nenhum tempo a perder.
Fala rápida como se fosse esta sua única obrigação: comunicar-se com o público. Porém
fala em espanhol. Idioma próximo e ainda assim, distante. Sempre carregando sua
malinha de viagem, entrega vez por outra, pequenas doses de cachaça para os
passantes para que eles possam abstrair ainda mais sua pseudo-sina de estarem sempre
em movimento.
As informações que ela são sobre os locais específicos, sobre as obras ou
sobre qualquer outra coisa que seja de sua vontade. O público arrebatado pelo exotismo
desta presença, termina não conseguindo discernir claramente qual é o significado de tal
discurso, sendo então capturado por uma visualidade que exatamente por estar fora do
seu eixo comum de realidade, consolida-se como uma névoa poética extremamente bem-
humorada. O que move este encontro é a distância absoluta que os separa, que os une e
que é capaz de os sufocar.
Exatamente por estarem conscientes da herança da dificuldade de comunicação,
surge então uma outra linha de fuga: o descompromisso e o lúdico, a experiência leve, a
diversão sem nenhuma cobiça de profundidade. A aeromoça parece pressentir que o
interesse do público diante da obra é extremamente passageiro e volátil. Sua aparição
tira proveito disto. Através da sagacidade do encontro, do entorpecimento da presença,
da força visual e da efemeridade do instante-experiência.
1.13. A reprodutibilidade turística. Tentativas ingênuas de capturá-la.
Ao longo deste texto venho tentando me aproximar daquilo que chamo de
reprodutibilidade turística. Venho com os olhos abertos e procurando meios para que
possamos entendê-la, sem que isto implique em captura. A escrita ao longo do tempo
mostrou-se dura, pesada por saber da quantidade infindável de caminhos que deveria
percorrer para tocar esta nova reprodutibilidade que chegou como estrangeira para junto
de minha poética e até hoje não foi embora.
Mas de fato, o que viria a ser esta reprodutibilidade turística? Tudo começou com
a citação de Paul Valéry: O mais profundo é a pele”, e com o texto de Walter Benjamin,
A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, onde o autor examina as
mudanças estruturais que surgem a partir dos métodos de reprodução (gravura,
53
fotografia e cinema). Ao longo do texto fui percebendo que existiam uma série de
mudanças outras que foram ocorrendo ao longo do tempo e que interessavam
consideravelmente ao meu processo de trabalho.
Tais mudanças são inúmeras. Podemos perceber um aumento na velocidade e na
quantidade de veiculação destas imagens, a presença cada vez maior destas imagens no
mundo e na arte, a gradativa potencialização da imagem por sobre a escrita, a
equiparação do valor de culto ao valor de exposição, a fragmentação da aura (no sentido
religioso, defendido e já detectado por Walter Benjamin) e o surgimento de uma aura
outra, amparada na quantidade de exposição e veiculação de uma imagem específica,
além da diluição do ritual, da instauração de um desejo (quase utópico) de eternidade e
da presença cada vez mais forte, de uma sensação de esvaziamento.
“Walter Benjamin fez uma análise onde a ‘aura’ do trabalho de arte estava em
função da distância do observador. Esta atitude, culturalmente embebida na
necessidade de que objetos religiosos mantenham uma distância do
observador, foi supostamente demolida pela reprodução. O fotógrafo, na opinião
de Benjamin, a forma quintessencial da reprodução, atingia uma nova classe de
objetos sem auras. O close-up era parte do império sem aura. O argumento era
a princípio, sofístico. Ao carregar um problema subjetivo, este close-up é trazido
pelo fotógrafo apenas num senso turístico.”
63
Ou ainda:
“Estamos aqui deslocados da mesma maneira que fotógrafos, turistas
voyeurísticos em mundos representados sobre os nossos pés.”
64
O qchamo de era da reprodutibilidade turística é um momento onde a imagem
(mesmo que saibamos que seja esta sua sina) utiliza os mais diversos recursos para a
produção de uma força visual arrebatadora e não menos violenta. Onde por vezes o
caminho escolhido é o da explicitação representativa de sua superfície esquelética e
nada além disto. O alvo desta imagem é o estranhamento, o fetiche do exótico e do
distante através de um método de pseudo-aproximação que satisfaça ao espectador.
Na verdade, a era da reprodutibilidade turística atende mais ao espectador do que
às suas próprias vontades. Seu objetivo é o arrebatamento do público (que posiciono
como turista) e é dele a responsabilidade de indução (mesmo que sem a consciência
63
MORRIS, Robert. The present tense of the space. p. 80.
64
Idem. p. 76.
54
necessária) da produção de mais e mais imagens. É dele que se deseja extrair o máximo
proveito possível, seja em termos de capital, seja em termos de direcionamento e/ou
formação de gado.
A superficialidade desta era é a superficialidade da comunicação imediata, direta,
sedutora, sem nenhum mistério e sem nenhuma reflexão. Sagaz, veloz e certeira; são
estas suas características. Arrebatamento; é este seu método de catequização. Dissipar;
é este seu verbo. Cobiçar mais e mais mercadorias; é este seu lema.
A reprodutibilidade turística é um momento entrópico que talvez possa ser notado
com mais acuidade no mundo dos homens ordinários, daqueles que se situam
(certamente por opção) bem longe desta Academia e bem próximos da outra. A dos
corpos esculpidos, a das anfetaminas, das “bombas” e do valor que se pode extrair da
imagem disto tudo. Tudo e todos são passíveis de serem capitalizados. A
reprodutibilidade turística instaura na cabeça dos homens a possibilidade de que eles se
transformem em produto de uma agência imagética (capitaneada por eles mesmos na
maioria dos casos), que está sempre a disposição daqueles que estiverem dispostos à
mais um mergulho no prazer desconhecido (por vezes nem tanto assim).
É uma era de hedonismo absoluto. Em todos os níveis possíveis. Do prazer como
o maior e melhor produto a ser comprado. De sexo e de moda. De grandes campanhas
(públicas e particulares, por mais paradoxal que pareça) de marketing. De formação de
“carreiras” a qualquer custo. De processos de igualdade entre eixos díspares, de
pasteurização estética e de ausência de concentração. Era de pouca tolerância e de
pouco amor, esta palavra tal que nem sempre cabe num texto que se deseja científico.
Por outro lado, é um momento de absoluta velocidade na comunicação, na
transmissão de dados, nos contatos entre pessoas e entre países. De rizomas e
hipertextos. É um momento onde pela quantidade enorme de dados, geralmente nos
sentimos perdidos. É uma era de acessibilidade, de diluição de fronteiras e de expansão
de territórios. É um momento de intenso deslocamento e de pouco estabelecimento.
Momento de destruição de tabus, de transformação de valores estéticos e morais.
Escolhi a imagem como eixo norteador desta pesquisa por ser o elemento-chave
desta era turística, por ser um emblema, um índice de possível fundação, de memória e
de certeza de um passado vivido, construído, ou mesmo imaginado. A imagem é o eixo
norteador da reprodutibilidade turística pois é precisa em sua superfície, fácil de imprimir-
se na memória e repleta de vontade de potência. “Agora as imagens, que são o passado
da realidade, começam a revelarem-se em direção a duração, o tempo presente da
experiência espacial imediata.”
65
65
Idem. p. 70.
55
A efemeridade, a perda de uma originalidade natural e superficialidade são alguns
dos elementos que diferenciam fortemente a reprodutibilidade turística da
reprodutibilidade técnica. Como exemplo podemos pensar na fotografia tradicional, que
tecnicamente trazia uma questão sobre seu objeto a ser fotografado. Vejamos o que
diz Roland Barthes:
“Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda:
ponho-me a ‘posar’, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-
me antecipadamente em imagem.”
66
E ainda:
“Em outras palavras, ato curioso: não paro de me imitar, e é por isso que,
cada vez que me faço (que me deixo) fotografar, sou infalivelmente tocado por
uma sensação de inautenticidade, às vezes de impostura (como certos
pesadelos podem proporcionar). Imaginariamente, a fotografia (...) representa
esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um
sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo
então uma microexperiência da morte (do parêntese): torno-me
verdadeiramente espectro. (...) Mas quando me descubro no produto dessa
operação, o que vejo é que me tornei Todo-Imagem, isto é, a Morte em pessoa;
os outros o Outro desapropriam-me de mim mesmo, fazem de mim, com
ferocidade, um objeto, mantêm-me à mercê, à disposição, arrumado em um
fichário, preparado para todas as trucagens sutis.”
67
É claro que existe uma veemência no discurso de Barthes que soa por vezes, um
pouco exagerada. Mas mesmo assim, o qele aponta com maestria é o processo de
objetivação da subjetividade que a fotografia provoca. Uma inevitável perda de
naturalidade, um inelutável hábito de imitação de si mesmo que parecem comuns. Na
reprodutibilidade turística a presença de tais hábitos (ou seriam sintomas?) é muito maior.
Basta pensarmos na fotografia digital (e na quantidade cada vez mais surpreendente de
máquinas deste tipo, presentes inclusive em telefones celulares) e na Internet, onde o
papel é eliminado e a imagem se estabelece por meios virtuais. Ou melhor, onde a
imagem aproxima-se mais daquilo que deseja: virtualidade.
66
BARTHES, Roland. A câmara clara. p. 22
67
Idem. p. 29
56
A fotografia digital diminuindo os custos, possibilita o aumento da produção destas
imagens. Se as imagens aumentam, o processo de captura de tais fotos também
aumenta. Aumenta também a tal inautenticidade à qual Barthes se refere, bem como a
presença de um desejo constante de tornar-se todo-imagem, além da experiência da
morte e da desertificação de si próprio.
Se pensarmos ainda que vivemos numa época a qual Deleuze se refere como
sociedade de controle, que seria um desdobramento da sociedade disciplinar bastante
discutida por Michel Foucault, a imagem na reprodutibilidade turística ganha ainda mais
força (bem como a perda de uma originalidade natural a qual estamos nos referindo). A
sociedade de controle é uma sociedade de vigilância intermitente que utiliza como um
dos seus vários métodos, a colocação de câmeras de vigilância por toda parte,
escritórios, escolas, casas e até mesmo ao ar livre.
68
Este tipo de sociedade tem como estratégia fundamental o esvaziamento da
imagem como poética e o preenchimento da imagem como fonte de informação,
deslocando-a de sua função representativa, fazendo com que a compreendamos como a
própria expressão dos acontecimentos. A era da reprodutibilidade turística faz-se valer
disso, onde a imagem antes mesmo de detectar uma informação a ser veiculada, quer se
auto-afirmar como um olhar onipresente de vigilância incansável.
Contudo, é necessário esclarecer que não aqui nenhum desejo de negação
absoluta da imagem. Muito pelo contrário. As imagens são fundamentais para o processo
de conhecimento de uma cultura dentro de uma determinada época. O que me proponho
aqui, é analisar algumas práticas artísticas, alguns perigos inerentes a este tipo de
imagem e apontar alguns meios que possibilitem uma reflexão mais clara e mais justa
diante desta problemática.
1.14. A exposição como sinônimo de culto
É importante reforçarmos ainda que o quê redimensiona a obra e lhe confere
valores é, ainda, curiosamente, seu valor de exposição ao outro, aliado a uma forte carga
de excentricidade. Ou melhor, é o crescente grau quantitativo de reprodutibilidade de
uma imagem de obra, que confere à própria, o estatuto de arte. E no caso da imagem
turística, o valor de exposição equipara-se ao valor de culto, obviamente. Melhor dizendo,
a obra de arte na era de sua reprodutibilidade turística se sustenta pela possibilidade de
exposição da mesma; e seu culto respectivo advém exatamente disto (na quantidade de
68
POMBO, Olga. Sociedade de controle. In http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos
57
sua exposição e veiculação). Ou seja, a obra de arte na era de sua reprodutibilidade
turística, os valores de culto e de exposição estão lado a lado.
Diz Walter Benjamin:
“Fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada
das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos
os fatos através de sua reprodutibilidade.”
69
Este desejo de aproximar as coisas, de trazê-las à superfície (realizada por
Cézanne na pintura e explorada pela invenção da fotografia no final do século XIX) já nos
aponta um caminho e mais outra possibilidade de observação. O culto ao longo da
história tinha uma relação direta com o religioso, com o quê se mantinha escondido,
velado, de pouco acesso, distante. A partir do momento que esta distância (talvez até de
certa forma, ilusória) começa a ser diluída, a partir do momento que a obra de arte se
emancipa de sua função ritual, se desliga do mitológico e se aproxima do cotidiano, a
exposição destas imagens começa a ganhar força.
Poderíamos pensar que hoje na pós-modernidade, num momento onde ainda
vivemos sob os resquícios fantasmáticos da pop arte, de sua iconologia e de seus
valores comportamentais, o culto ainda persiste. Embora persista de outra forma. O
próprio culto sofreu um desvio e hoje, embora não mais se ampare em sua função
ritualística, ainda se sustenta por sua função quantitativa e por vezes, fictícia.
O quê quero dizer é que poderíamos colocar em crise o conceito de Walter
Benjamin sobre um deslocamento simples do valor de culto para o valor de exposição.
Aqui onde estamos, culto e exposição resolveram hibridizar-se numa relação intensa.
69
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Obras escolhidas vol.
1. pág.170
58
A Marilyn Monroe de Andy Warhol é um exemplo claro (e praticamente óbvio)
desta questão. Pois aqui o culto ainda persiste, embora não seja mais fundamentado em
questões religiosas ou coisas do tipo. O quê sustenta este culto é exatamente o grau de
exposição desta imagem (e neste caso específico, da personagem escolhida).
Paradoxalmente, o quê serve de base a toda esta exposição (e a manutenção da
mesma) é seu culto. Em tempos de mídia atroz, os dois eixos se fundem (tendo o produto
em sua exposição cultual como seu objetivo) e é esta relação que serve de sustento para
a sobrevivência da imagem da obra em eixos artísticos. O que podemos detectar é que
hoje na exposição subsiste algo de culto, da mesma forma que no culto reside algo de
sua possibilidade de exposição. Ou seja, os dois conceitos tornaram-se historicamente
interdependentes.
Vale lembrar também que Benjamin foi incapaz de perceber um resíduo do culto
nas fotos de Atget (ele defendia que foi exatamente no momento em que o homem se
retira da fotografia que “o valor de exposição supera o valor de culto”
70
). Culto este
natural, diante do desértico desconhecido, próximo também das primeiras expedições
fotográficas a lugares absolutamente ignorados até então. O vazio habitado que não se
revela. Nas fotos de Atget, o valor de exposição surge com potência, mas isto não quer
dizer que ele tenha sido superado por completo, inclusive por ser uma imagem que traz
ainda uma carga aurática considerável.
“A aura nestas fotografias, então, não se encontrava na presença do fotógrafo
na fotografia, da maneira como a aura de uma pintura é determinada pela
presença da inconfundível mão do pintor em seu quadro. Ao contrário, trata-se
da presença do assunto do que é fotografado, ‘a pequena centelha do acaso, do
aqui e agora’ com a qual a realidade chamuscou a imagem.”
71
Creio que temos aqui mais um exemplo claro em que os dois conceitos começam
a se articular e a coexistirem.
70
Idem. p. 174
71
BENJAMIN, Walter. A pequena história da fotografia. Citado por CRIMP, Douglas. A atividade
fotográfica do pós-modernismo. In Arte & Ensaios. Vol. 11. p. 132
59
“Cultus o verbo latino colere designou a princípio simplesmente o hábito de
habitar um lugar e ocupar-se dele, cultivá-lo. É um ato relativo ao lugar e à sua
gestão material, simbólica ou imaginária: é um ato que simplesmente nos fala
de um lugar trabalhado. Uma terra ou uma morada uma morada ou uma obra de
arte. Por isso o adjetivo cultus está ligado o explicitamente ao mundo do
ornatus e da ‘cultura’ no sentido estético do termo.”
72
Se vivemos uma situação cultural onde a imagem se coloca por vezes como obra,
o culto ainda sobrevive na imagem produzida e veiculada, na imagem exposta de
maneira incansável. Construímos a imagem para que nela possamos habitar, é esta a
nossa herança de “local” a ser trabalhado. O próprio sentido de localidade hoje é uma
imagem produzida.
Existe algo ainda que não podemos deixar de comentar sobre a era da
reprodutibilidade turística que é o perigo absoluto que os artistas correm a todo instante
de provocar um certo tipo de patronato ideológico no desejo de expor uma imagem
intensa, que por seu exotismo traga algo de cultual e de inexplorado. Ou seja, o artista no
desejo de ser exoticamente plástico, termina viajando para as mais diferentes culturas em
busca da captura de suas características fundamentais.
Hal Foster já apontou isto em seu célebre texto O artista como etnógrafo
73
onde o
autor a partir do texto de Walter Benjamin O autor como produtor, detecta uma prática
bastante comum na contemporaneidade: a saída dos artistas em pesquisas de campo.
Atrás de uma cena, de uma imagem, de um objeto, ou mesmo de um hábito o mais
distanciado possível de sua realidade original, para retratar ou para desvelar determinada
cultura ou determinada sociedade.
Como dissemos anteriormente, hoje o valor de culto e de exposição são
permeáveis e dialogam entre si a todo instante. A prática de tais “pesquisas” ampara-se
de certa maneira nesta fórmula e por vezes provoca uma junção (ilusão?) tão forte entre
os dois valores que, o teor artístico” da proposta termina potencializado ou até mesmo,
bem dissimulado.
O problema é que a investigação ou a viagem a determinado local e a captação
de tais imagens, sons e escritas não são suficientes para a instauração de uma obra de
arte. Como veremos mais adiante, as viagens foram fundamentais para uma série de
72
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. p. 156
73
FOSTER, Hal. O artista como etnógrafo. In Arte & Ensaios. Vol. XII
60
artistas e de movimentos, porém a temor que nos aflige atualmente é a forma de
utilização de tais diferenças dentro do processo criativo.
1.15. A aura. Ou o quê resta dela. Ou nada disso.
O culto traz uma relação direta com a aura, mas esta última também é vista por
Walter Benjamim como algo que foi destruído na era da reprodutibilidade técnica. Porém,
na reprodutibilidade turística poderíamos questionar sua destruição, pois ela aqui ainda
insiste em existir. A questão é que ela surge agora de uma outra maneira, desligada da
religião e dos valores morais. A aura pública de um objeto transmuta-se como
possibilidade enviesada de mercado e exposição; declarada, induzida, representada,
onipresente e quase sem nenhum mistério. Ou seja, quanto mais exposto e próximo
como imagem, mesmo que distante como objeto real, mais “aurática” a imagem de uma
coisa pode vir a ser.
A aura como entendíamos, tratava-se de uma aparição original e única que estava
amparada no jogo da distância e da proximidade com o observador, contudo não
podemos esquecer que Aura não é credo: seu silêncio está longe de ter apenas o
discurso da crença como resposta adequada.”
74
A crença era um dos elementos
estruturais da aura, mas seu paradoxo espacial sempre se mostrou fundamental para
entendermos seu funcionamento. Ou seja, algo que por mais distante de mim, seja capaz
de produzir neste mesmo instante em que me confronto com ele, uma sensação de
proximidade e de regozijo.
“É ainda a distância a distância como choque. A distância como capacidade
de nos atingir, de nos tocar, a distância ótica capaz de produzir sua própria
conversão háptica ou tátil. De um lado, a aura terá sido como que re-
simbolizada, dando origem entre outras coisas, a uma nova dimensão do
sublime, na medida mesmo em que se tornava aí a forma pura do que surge.”
75
Se anteriormente, tínhamos a aura como sinônimo de encantamento e distância,
hoje parece que ela se apresenta como aquilo que envolve situações-enigma, por vezes
exóticas, estrangeiras, impensadas. O risco que nos assola é que desenvolvamos uma
prática em arte que no exercício de resgate inconsciente de uma aura outra, romântica e
praticamente morta, sejamos deslocados para visualidades e experiências
74
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha p. 158
75
Idem p. 159
61
fundamentadas em desenganos, em fundamentalismos, em dilaceramentos do corpo
(como mártir) e outras coisas do tipo. A aura é agora uma ligeira lembrança.
Aqui precisamos fazer uma pequena observação, pois não podemos esquecer
que aquela “aura encantada e original” teve sua última tentativa de salvação no
modernismo através da religião da arte pela arte, sacralizando as obras e seus
respectivos ideais de autonomia. Porém, o próprio Walter Benjamin havia percebido
que esta tentativa era desde o princípio, fadada ao fracasso, pois o culto então era tido
ele mesmo como objeto.
Certamente ao longo da história, o museu sempre foi a instituição capaz de doar
certa “aura” para determinado objeto e para determinado artista. Hoje, no meio de uma
crise absolutamente conhecida, onde o museu procura meios justos para catalogar e
arquivar as mais diferentes e efêmeras manifestações artísticas, ele mesmo ainda
consegue se manter como objeto de culto (por quanto tempo ainda?) repleto de aura,
funcionando como um meio de comunicação absolutamente potente, onde aumentam
cada vez mais as aberturas de suas sucursais (franchising) e seu posicionamento dentro
do mercado de massas.
Ainda sobre a aura, é Yves Michaud que nos apresenta uma investigação
instigante sobre os dias de hoje, onde para ele o que nos resta é simplesmente um
perfume, uma atmosfera, uma sensação, um gás.
“ Então a arte se refugia numa experiência que não é mais aquela dos objetos
envoltos por uma aura, mas de uma aura que não se prende à nada ou a quase
nada. Esta aura, este nimbo, este perfume, este gás, como podemos chamá-la,
fala através do modo de identidade de uma época.”
76
A aura hoje surge como uma névoa poética que pode evaporar-se a qualquer
instante. Fugidia. Incapturável. Efêmera. Ela não mais reside nos objetos expostos, mas
se presentifica, ou melhor, se faz sentir em determinados momentos, em instantes
específicos onde a experiência estética se revela num encontro absolutamente subjetivo
entre obra e espectador. Ou seja, se antes estávamos diante de um momento onde a
aura era aquilo que imantava o objeto, hoje na reprodutibilidade turística, ela mesma joga
com a estética da aparição e desaparição, tornando-se maleável, dúbia e absolutamente
inconstante.
Douglas Crimp diz que a aura em nosso tempo “tem-se tornado somente uma
presença, quer dizer, um fantasma.”
77
e que, mesmo sendo inevitável sua diluição, serão
76
MICHAUD, Yves. L’Art à l’état gazeux. p. 205
77
CRIMP, Douglas. A atividade fotográfica do pós-modernismo. In Arte & Ensaios. Vol. 11. p. 132.
62
inevitáveis também todos os projetos de recuperá-la, “de fingir que o original e o único
ainda são possíveis e desejados.
78
Estas idas e voltas, esta diluição entre original e
cópia foram investigados e difundidos fortemente com a obra de Marcel Duchamp.
1.16. “Quem nunca teve de desprezar justamente aquilo que amava?”
F. Nietzsche
Air de Paris – 1919
A herança de Marcel Duchamp e de seus ready-mades é uma das maiores
responsáveis por um processo gradativo de democratização e de desubstancialização do
objeto de arte. A substância do objeto é vaporizada, diluída, rarefeita, fragmentada e
amparada na idéia e na experiência.
O processo do ready-made é um dos métodos modernos de produção da obra de
arte. Se o compreendermos bem, teremos compreendido grande parte da produção
contemporânea dos últimos cinqüenta anos. Na maioria dos cérebros modernos este
programa geralmente vem instalado e o é nem mesmo necessário repetir o
exercício.
79
O objeto de uso ordinário não traz nenhuma aura quando em seu exercício
original como objeto, porém a partir do momento em que é deslocado para o eixo
expositivo (através das mãos do artista), assume o estatuto de obra e é então envolto por
uma auréola que o acompanha ao longo do tempo e das exposições.
78
Idem. p. 129
79
DELHOMME, J. P. Art contemporain. citado por Yves Michaud In MICHAUD, Yves. L’Art à l’état
gazeux. p. 54.
63
Certamente Duchamp “descomplica” o ato de criação artística. Seu “halo artístico”
surge de acordo com um conjunto de desejos dentro de um sistema de gosto que nem
sempre é justo ou suficientemente apurado. Sabemos que de fato a construção de uma
obra ou mesmo a construção de uma trajetória artística não é tão simples assim. Que
apesar do legado duchampiano e de sua “pseudo-beleza-da-indiferença”, existe uma
série de fatores explícitos e ocultos que juntos podem vir a consolidar (ou não)
determinado artista ou determinado trabalho.
Duchamp nos levou diretamente ao cerne da produção da obra, a reflexão diante
daquilo que é, daquilo que ainda não é, e daquilo que para ser arte, terá um grupo de
obstáculos a ser enfrentado. De alguma maneira todos sabemos, por mais clichê que
pareça, que tudo pode ser arte, mas nem tudo o é por uma série de razões que escapam
à mera escolha do objeto. E a tal pergunta velha acerca do objeto ou da experiência se
este é ou não arte, é um dos legados inevitáveis que carregaremos durante toda a
história seguinte.
Um dos méritos de seu trabalho é o convite eterno (e nem sempre terno) que faz
ao público, o desafio que anuncia a todo instante pois são objetos feitos contra “o público,
contra nós. De uma ou de outra maneira, Duchamp afirma que a obra não é uma peça de
museu; não é um objeto de adoração nem de uso, mas de invenção e de criação.”
80
. Em
Duchamp, condescendência é uma palavra esquecida.
Por certo em sua obra, um desejo claro de unir arte e vida, mas diga-se que a
aproximação que Duchamp desejara, não é a mesma veiculada pela Pop. Por certo não
existiria Brillo Box se não houvesse A Fonte, contudo entre uma e outra há a instauração
da marca, do marketing, do logotipo e da moda. Em Duchamp “arte fundida à vida quer
dizer poema de Mallarmé ou romance de Joyce: a arte mais difícil. Uma arte que obriga o
espectador e o leitor a converter-se em um artista e em um poeta.”
81
De qualquer maneira, não podemos esquecer da importância do processo
deflagrado por Marcel Duchamp, onde o valor de exposição e a “aura” de determinado
objeto artístico são instaurados pelo próprio artista ou a partir do momento em que ele é
fagocitado pelo meio expositivo. A criação artística pode ser simples e sem maiores
complexidades, contudo sua legitimação passa por um movimento que é para além de si
mesma, para além do gosto público e para além da poética pessoal do artista.
80
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. p. 61.
81
Idem. p. 61
64
1.17. Algum rito de originalidade (ainda não morta)
É óbvio que a obra de arte nunca teve uma essência imutável, mas sim uma
essência histórica que depende das descobertas tecnológicas e das transformações
sociais
82
. E no caso da era da reprodutibilidade turística, o risco maior que surge é uma
pasteurização avessa da produção artística, que buscará a mais distante e exótica
imagem possível como se isto fosse garantia para o estabelecimento de uma experiência
estética. Outro risco que surge é que apesar da arte ter sempre estado ligada ao
comércio e o objeto de arte ter sido sempre uma mercadoria específica, a produção
contemporânea pode por vezes esbarrar numa prática viciosa de produção em série, que
vise atender uma demanda enorme de compradores ávidos diante de mais uma
novidade. Até talvez não haja problema algum, a questão é a conseqüente sufocação
da poética individual do artista e a aniquilação da reflexão ao longo de sua trajetória.
A questão da originalidade é algo que nem precisamos colocar muito em
discussão, obviamente. Pois hoje não podemos jamais imaginar um original que não
tenha sido copiado. Inclusive porque a reprodução é necessária para a manutenção do
original.
“Com a progressiva predominância e a hegemonia cultural da imagem, da
reprodução, a situação inverteu-se: esta última passou a ser a garantia do
original. E cada vez mais se caminha para uma civilização em que as
reproduções não se referiam mais a nenhum original. Assim a civilização da
imagem parece oferecer curiosa conclusão ao mito platônico da caverna:
substituímos a realidade por um mundo de imagens criado por nós mesmos:
construímos com a mais sofisticada tecnologia a nossa própria caverna, não
mais envolta em sombras, mas incessantemente iluminada por imagens.”
83
O ritual (que resta) na Arte é visto com considerável estranheza, pois não é tão
presente como prática artística. O desejo atual é o de uma obra que produza uma
imagem imediata que fique tatuada no cérebro do observador. O mundo da arte
ritualizado, sacralizado, ligado a uma raridade teatralizada se esvazia gradativamente
não unicamente de obras, mas também de artistas. Somente alguns iniciados obstinados,
82
MICHAUD, Yves. L’Art à l’état gazeux. p. 112
83
FILHO, Paulo Venâncio. História, cultura periférica e a nova civilização da imagem. In Arte & Ensaios.
Vol. V. p. 93.
65
fanáticos, conservadores, senão verdadeiramente reacionários que se obstinam a
perpetuar o rito. Fora disto, todo o mundo é artista, e banha-se inteiramente na arte.
84
Alviceleste – 2003
Márcia X, artista carioca oriunda da geração 80, realizou vários trabalhos plásticos
e principalmente, performances. A presença do ritual, da concentração inabalável, do
exercício plástico direcionado ao espiritual foram características marcantes de sua
trajetória e principalmente de seus últimos trabalhos, como este de 2003.
Alviceleste foi realizado nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque
Lage (RJ), onde a artista vestida de branco realiza sua ação na sala previamente
preparada, despejando tinta azul nos “bules de vidro”. Tinta esta que escorre através de
finíssimas correntes que pendem dos objetos e se espalha pelo chão. A artista aqui surge
como um elemento de ligação entre céu e terra, como possibilidade poética de diálogo
entre dois eixos antagônicos e complementares. Entrega. Exercício de fé na
transcendentalidade do material, em sua própria trajetória e no mundo. Atividade de
poema.
Durante o tempo da exposição, o espaço vagarosamente inunda-se de outros
azuis e dos símbolos que o acompanham. O azul consciente de sua presença como
índice de ausência, conversa com a duração do tempo e aos poucos, deixa-se agir,
recolorindo a possibilidade pictórica de redenção provocada no dia do vernissage. “Se
nossa vida se esvazia e se preenche a toda hora, é função da arte registrar essa
passagem, tão notória em Alviceleste.”
85
No trabalho de Márcia X, a aura continua a ser uma névoa, mas nem por isto opta
por ocultar-se. O ritual se revela como parte fundamental do processo e a força do
84
MICHAUD, Yves. . L’Art à l’état gazeux. p. 55
85
NAVAS, Adolfo Montejo. Alviceleste. In http://marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=14
66
trabalho e o que suporte à produção de imagens que são notoriamente potentes,
lúcidas, raras e nem por isto esvaziadas em sua clausura de imagem.
Outro exemplo claro e não menos elegante da presença do ritual como elemento
fundamental da prática artística é o de Joseph Beuys.
I love America and America loves me – 1974
Nesta performance, Beuys ficou durante quarto dias envolvido no feltro com um
coiote dentro de uma sala de exposição. É certo que a presença do ritual na obra deste
artista é absolutamente conhecida e discutida. Beuys sempre foi a figura do mito, do
artista político, da revolução externa e interna.
Uma das coisas que nos parece interessante aqui (dentro do contexto da
dissertação), é percebermos que a presença fortíssima deste ritual termina por preencher
o vazio inerente da imagem. Os trabalhos de Beuys têm esta qualidade, de poder
provocar uma imagem estranha (como registro) que gera algum desconforto, que se
estabelece no imaginário coletivo e que guarda sua potência de imagem exatamente por
tentar abarcar toda a força da ação realizada. Imagem que sabe que é defectível, que
não é e jamais será suficiente, mas que luta com seus próprios recursos para aproximar-
se da vitalidade do passado que lhe deu origem.
E no caso dos dois trabalhos, uma citação de Hans Belting parece esclarecer
absolutamente o que os liga e o que os erige:
“Os homens fazem reiteradamente imagens, embora sejam freqüentemente
desiludidos por elas. A continuação do ritual foi também uma resistência contra
a inutilidade de encontrar imagens ou verdades definitivas nas imagens feitas
67
por nós. O fazer-imagens foi a tentativa sempre interrompida e, apesar disso,
sempre retomada de contrapor ao mundo um mundo próprio de imagens, no
qual o homem queria se instalar.”
86
Um dos elementos que ganhou potência na era da reprodutibilidade turística é o
valor de eternidade. Talvez não seja inteiramente um valor de eternidade que tenha
ganhado amplitude, mas sim uma cobiça diante da eternidade das coisas que tenha
surgido como elemento inacessível que se estabelece como alvo improvável e
utopicamente perseguido diante do esgotamento do mundo, da diluição da memória, da
fragilização subjetiva e da era da civilização das imagens.
1.18. A era turística
Walter Benjamin nos diz: “Retirar o objeto de seu invólucro, destruir sua aura, é a
característica de uma forma de percepção cuja capacidade de ‘captar o semelhante’ é tão
aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-la num fenômeno único.”
87
De alguma forma, o objeto de conhecimento turístico não é retirado de seu
invólucro, mas é a expansão do invólucro turístico que se abre àquele que é visitado. Ou
seja, o movimento é contrário. É o turista que traz para dentro de seu invólucro as coisas
que foram capturadas ao longo da viagem. Tal processo não se ampara unicamente na
visualidade, mas faz uso dela como força motriz, exatamente pela certeza que é
estampada em sua superfície.
O turista depende da visualidade (devido a sua insegurança) para detectar este
descompasso e este desconhecimento poético do outro. Assim, este caçador de imagens
termina não por destruir a aura da ‘obra’, mas endossando-a, descobrindo-a volátil,
exatamente por perceber a eterna incapacidade de abrangê-la em sua construção
imagética por esta (im)propriedade. Deixando-a em processo de reverberação e
exposição, produzindo então uma aura outra (infinita em sua reprodução duvidosa e em
suspensão). Talvez não mais original, mas múltipla, híbrida e não menos perigosa.
86
BELTING, Hans. Sísifo ou Prometeu? Sobre arte e tecnologia hoje. In XXVI Bienal Internacional de São
Paulo (catálogo)
87
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Obras escolhidas vol.
1. p. 170
68
Como no texto abaixo
88
:
“Assim como as fotos dão às pessoas a posse imaginária de um passado irreal,
também as ajudam a tomar posse de um espaço em que se acham inseguras.
Assim, a fotografia desenvolve-se na esteira de uma das atividades modernas
mais típicas: o turismo. Pela primeira vez na história, pessoas viajam
regularmente, em grande número, para fora do seu ambiente habitual, durante
breves períodos. Parece decididamente anormal viajar por prazer sem levar uma
câmera. As fotos oferecerão provas incontestáveis de que a viagem se realizou,
de que a programação foi cumprida, de que houve diversão. (...) A própria
atividade de tirar fotos é tranqüilizante e mitiga sentimentos gerais de
desorientação que podem ser exacerbados pela viagem. Os turistas, em sua
maioria, sentem-se compelidos a pôr a câmera entre si mesmos e tudo de notável
que encontram. Inseguros sobre suas reações, tiram uma foto. Isso forma à
experiência: pare, tire uma foto e vá em frente.”
89
G.C. Argan é o autor que parece esclarecer de maneira mais precisa nossa
questão:
“Não é difícil compreender como, para todas as correntes artísticas de vanguarda,
a problemática do objeto de arte, aliás do objeto simplesmente, se tenha
estendido à cidade: a cidade está para a sociedade assim como objeto está para
o indíviduo. A sociedade se reconhece na cidade como o indivíduo no objeto; a
cidade portanto é um objeto de uso coletivo. Não isso, a cidade também é
identificável com a arte porquanto resulta objetivamente da convergência de todas
as técnicas artísticas na formação de um ambiente tanto mais vital quanto mais
rico em valores estéticos. Quando se fala em crise da arte, fala-se na realidade,
em crise da cidade; e a crise da cidade é um dos fenômenos mais graves e
perigosos do mundo moderno.”
90
É lógico que na arte, existe uma série de outros parâmetros que devem ser
levados em consideração para que o mero objeto alcance o estatuto de obra. Críticos,
curadores, marchands e outros profissionais do ramo. Mas mesmo assim, tais
profissionais (inclusive os artistas) também podem estar, dependendo da situação,
88
Embora esteja se referindo especificamente a fotografia, creio que tal paralelo com a imagem (latu sensu) é
absolutamente possível.
89
SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. p. 19.
90
ARGAN, Giulio C. Argan. História da arte como história da cidade. p. 255.
69
incluídos dentro deste processo de “turistificação”, que em virtude de uma enorme
fragilidade temporal e uma gradativa dissolução espacial, terminam recorrendo as mais
variadas opções e as mais divergentes práticas, para que suponham estar diminuindo o
lapso cultural da pluralidade que paradoxalmente os mantém relacionados. E que em
alguns casos, como o das bienais, utilizam esta distância e esta diferença para ditar suas
regras de veiculação e inserção em mercado.
Um dos problemas que esta reprodutibilidade turística traz, é a consciência de que
somos (e que sempre seremos) incapazes de dar conta da produção e da pluralidade
desta mesma produção. Desta constatação, surge a ânsia utópica de tentarmos
estabelecer parâmetros estéticos para isto. A questão não tão nova, ainda pode ser
potencializada quando lembramos de que Artur Danto diz que: “Então a
contemporaneidade é, de uma perspectiva, um período de desordem na informação, uma
condição perfeita de estética entrópica. Mas é igualmente um período de total liberdade
perfeita. Hoje não mais nenhuma palidez na história. Tudo é permitido.”
91
Esta
permissividade pode gerar por vezes, uma esterelização entrópica da paisagem na
cidade da obra. Algo como um parque temático.
“...o primeiro ingrediente de urbanidade característico deles é a variedade de
seus meios de transporte, de tipos que não existem na cidade de verdade (...) A
caricatura urbana chega a ter uma população de figurantes de grande
visibilidade e com pseudo-autoridade (...) mas seus membros de uniforme
também fazem parte do espetáculo, não estão ali para lidar com o tráfego de
verdade, para falar da coleta de lixo de verdade (...)Tudo indica que a principal
função da cidade do parque temático é estabelecer ‘uma cultura pública
nacional baseada na estetização das diferenças e no controle do medo’(...)
essencial para seu sucesso é uma urbanidade de imitação e os monumentos
que a complementam.”
92
Contudo, convém ainda precisarmos um pouco mais sobre o que vem a ser
realmente esta questão turística. Encontramos ainda no mesmo texto de Boris Groys
algumas informações fundamentais:
“...todas as pessoas, coisas, signos e imagens variadas, oriundas de todas as
culturas locais possíveis, principiam a abandonar seus lugares tradicionais e
91
DANTO, Arthur C. After the end of art. Ver SÁ, Alexandre. After the end of art – uma quase resenha. In
Concinnitas nº5 p.205
92
Rykwer, Joseph. A sedução do lugar. p. 212.
70
iniciam uma viagem ao redor do mundo. Desaparece a severa oposição entre o
turista romântico em viagem e a população sedentária vinculada ao seu lugar. A
cidade não espera mais pelo turista ela mesma começa a circular globalmente,
a reproduzir-se em escala mundial, a expandir-se em todas as direções.”
93
E ainda:
“Essa metrópole internacional funciona como uma máquina de reprodução, que
reproduz com relativa rapidez em todas as outras cidades do mundo, todos os
fatores locais que surgem em uma determinada cidade. Assim, com o passar do
tempo, cidades significativamente dissimilares passam a se parecer umas com as
outras, sem que nenhuma cidade em particular tenha servido de modelo.”
94
Obviamente tal proposta, esquece ligeiramente o fator econômico, ignorando a
maquinaria capital que torna o movimento entre eixos possível e que é de fato, o
‘parâmetro artístico’ do sistema capitalista. Além disso, o abandono do lugar tradicional
realizado pelas culturas, traz inevitavelmente, o perigo de desligamento completo das
raízes fundadoras de tal povo ou de tal prática. E mesmo que estejamos todos em
trânsito, e que não mais saibamos o que sou eu, o que é você, e o que pode vir a ser
nosso encontro em experiência estética; e por mais que tenhamos esquecido qual o
nosso devir-arte, que estejamos confusos quanto à possibilidade do turista ser o público
ou o próprio artista; e que estejamos satisfeitos com o fato de sermos turistas de turistas
de nós mesmos, o quê surge por vezes é um panorama pasteurizado, onde as diferenças
diluem-se por completo e onde o observador viaje pelo simples prazer do deslocamento.
Pelo puro desejo do deslize do foco objetivo e termine então, enclausurado no próprio
tédio da rotina não completamente passageira.
E se este movimento já não mais se limita às pessoas e envolve signos, coisas, e
imagens, claramente podemos pensar na arte como também parte deste afã de
deslocamento. E se a arte, pensada como elemento de expressão de um momento
determinado da história, ou melhor, se os objetos de arte, iniciam então o fluxo global em
busca do refluxo mercadológico advindo deste mesmo movimento, junto a uma tentativa
desesperada de construção de uma pseudo-narrativa estética que lhe sirva de padrão
plástico, a plastificação de suas nuances visuais, idéias, e sensações termina ocorrendo
da mesma maneira. Provocando uma ambiência oca, que pelo desejo de produção
93
GROYS, Boris. A cidade na era da sua reprodutibilidade turística. In Catálogo da XXV Bienal de São
Paulo. p. 48.
94
Idem. p. 49
71
daquilo que é surpreendente e capaz de arrebatar os sentidos, gera uma visualidade
mais do que esperada; que não traz nenhuma luz à destruição de valores éticos, políticos
e morais. Nada surpreende mais do que a incapacidade de ser surpreendido. É o que
Gilles Lipovetsky chama de a era do vazio.
“Um deserto paradoxal, sem catástrofe, sem tragédia nem vertigem, que já não se
identifica com nada, nem mesmo com a morte: não é certo que o deserto obrigue
a contemplação de crepúsculos mórbidos. Consideremos esta onda de
‘desinversão’ pela qual todas as instituições, todos os grandes valores e
finalidades que organizaram épocas passadas, encontram-se progressivamente
esvaziados de sua substância. (...) Quem se salvou deste maremoto? Aqui, como
em outras partes o deserto cresce: o saber, o poder, o trabalho, o exército, a
família, a igreja, os partidos, etc..já deixaram globalmente de funcionar como
princípios absolutos e intangíveis e nos mais variados graus, nada faz com que
creiamos neles. Neles, nada leva a nada.”
95
Contudo, diante desta esterelização da paisagem, um texto de Hans Belting,
publicado no catálogo da XXVI Bienal Internacional de SP nos anima:
“Enquanto as mídias de massa colonizam os sonhos privados com violência
comercial, os artistas ainda possuem o direito à auto-expressão na esfera
pública, o que é inimaginável mesmo para parlamentares ou magnatas, a o
ser que eles recorram a papéis-clichê.”
96
E ainda :
“Walter Benjamin disse uma vez que a arte é o lugar-tenente da utopia. Era uma
posição de vanguarda artística, cujos objetivos estavam dirigidos a revolucionar
a sociedade. Hoje a utopia se transferiu à tecnologia, na qual parece factível o
que na arte permaneceu apenas uma matéria de sonhos. Por isso a utopia
recebe um outro sentido. ela se manifesta no fato de que a tecnologia é
acionada pelo impulso de testemunhar contra os homens e sua ‘antiguidade’
(...), impelindo a auto-invenção de um novo homem”
97
95
LIPOVETSKY, Gilles. La era Del vacío. p. 35.
96
BELTING, Hans. Sísifo ou Prometeu? Sobre arte e tecnologia hoje. In XXVI Bienal Internacional de São
Paulo (catálogo)
97
Idem.
72
1.19. Pequenos desafios e outras ostras.
A reprodutibilidade turística é exatamente a capacidade que uma imagem-
situação ainda tem, de provocar reações e colocar problemas que demandam uma
solução, uma reflexão, ou pelo menos um debate em qualquer sítio. E que utiliza os mais
variados meios para que este processo ocorra. A obra de arte na era da reprodutibilidade
turística lança mão de diversas técnicas e estratégias de divulgação para que consiga
provocar seu vestígio de propósito, tentando cada vez mais abarcar o maior mero de
pessoas.
Nossa maior questão é a seguinte:
“(...) como encontrar a sua própria imagem na desordem das imagens? Como
fabricar imagens que fiquem, que deixem rastros? Não mais imagens
simples, elas estão todas imbricadas. Cadeia de imagens, escravas umas das
outras, sobre as quais perdemos todo o poder. Cada um de nós então é uma
interrupção potencial: uma imagem justa / justo uma imagem.”
98
A obra de arte na era da reprodutibilidade turística faz-se a partir sua própria
imagem, seu puro reflexo de obtusa representação. A imagem em obra, obra-se como
imagem. E arte, termina sendo aquilo que é provocado pelo discurso. Armadilha pura
para o conceito e fruto dele. Exemplo claro disto é o trabalho de Sherrie Levine.
After Walker Evans - 1981
98
PEIXOTO, Nelson Brissac Peixoto. Paisagens da imagem: Pintura, fotografia, cinema, arquitetura. In.
Imagem Máquina. p. 245
73
Trabalho este que trata-se (a grosso modo) do movimento de fotografar algumas
fotografias de outros artistas. Não podemos considerar a imagem do trabalho como algo
suficiente para ser analisado como obra, pois como já dissemos, é uma imagem
capturada. Então, a imagem obtida pela artista está em eterno processo e é este
processo que a valida como obra, que por sua vez se estabelece como tal através da
clarificação do processo de obtenção desta mesma imagem. Obra e imagem estão
intrincadas e lançam-se eternamente num jogo dúbio onde uma depende da outra e onde
as duas optam pela incerteza como parte constituinte fundamental.
99
A armadilha a qual me referi anteriormente serve também para os que crêem que
tal deslocamento (da obra para a imagem), junto ao fim de uma narrativa histórica, (já
que não existe claramente uma vertente orientadora de práticas e já que a linguagem
mostrou-se incapaz de reunir em si mesma um conjunto de signos que consiga ser útil o
suficiente para atender a uma demanda universal), seja sinônimo de liberdade absoluta.
Tal armadilha semântica se aplica aos artistas e cidadãos da mesma maneira, que
ambos são produtores de imagens. E de fato:
“...a liberdade da arte hoje em dia é forçada (ao mesmo tempo falsa e compelida):
uma ingenuidade cheia de desejos que se mascara como jouissance, uma
promiscuidade tomada equivocadamente como prazer.”
100
Ou como nos diz, Guy Debord:
“A tão evidente perda da qualidade, em todos os níveis, dos objetos que a
linguagem espetacular utiliza e das atitudes que ela ordena apenas traduz o
caráter fundamental da produção real que afasta a realidade: sob todos os pontos
de vista, a forma mercadoria é a igualdade confrontada consigo mesmo, a
categoria do quantitativo. Ela desenvolve o quantitativo e pode se desenvolver
nele.”
101
E ainda:
“No plano das técnicas, a imagem construída e escolhida por outra pessoa se
tornou a principal ligação do indivíduo com o mundo que, antes, ele olhava por si
mesmo, de cada lugar aonde pudesse ir. A partir de então, é evidente que a
imagem se a sustentação de tudo, pois dentro de uma imagem é possível
99
Sempre quando penso no trabalho desta artista, imediatamente me surge na cabeça a frase de meu amigo
Tato Teixeira : « Campo ampliado tem limite ? »
100
FOSTER, Hal. Recodificação. p. 38
101
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. p. 28
74
justapor sem contradição qualquer coisa. O fluxo de imagens carrega tudo; outra
pessoa comanda a seu bel prazer esse resumo simplificado do mundo sensível,
escolhe aonde irá esse fluxo e também o ritmo do que deve manifestar-se,
como perpétua surpresa arbitrária que não deixa nenhum tempo para a reflexão,
tudo isso independente do que o espectador possa entender ou pensar. Nessa
experiência concreta da submissão permanente encontra-se a raiz psicológica da
adesão tão unânime ao que está, ela reconhece nisso, ipso facto, um valor
suficiente. O discurso espetacular faz calar, além do que é propriamente secreto,
tudo o que não lhe convém.”
102
E qual elemento melhor incorpora a verdade de uma forma-mercadoria? A
imagem. E não que isto seja um problema, uma sina, ou qualquer outra coisa. A imagem
é mercadoria, por sua imediaticidade e por seu efeito direto, por sua tendência ao
espetáculo e por sua existência que dispensa qualquer outra forma de expressão. A
imagem é, de alguma maneira, a forma-mercadoria da própria explicitação em si. Do
privado, que de alguma maneira, se torna público. Parece que a imagem surge hoje
como pseudo-solução milagrosa para um problema que Hannah Arendt nos coloca: O
quê torna difícil suportar a sociedade das massas não é o número de pessoas que ela
abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo
entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las uma às outras e de
separá-las.”
103
“A nova civilização da imagem estabeleceu outra figura do artista. Como previu
Argan, é raro encontrarmos atualmente a figura típica do artista/intelectual
moderno, o artista que buscava o novo a todo custo e que compreendia o
sentido dessa busca. O artista desses tempos ditos pós-modernos, sem
distinção de origem ou nacionalidade, parece resumir-se a um operador e
técnico das imagens. Tal como seu equivalente na esfera da economia, que
opera num mundo globalizado economicamente, atuando em vários lugares ao
mesmo tempo e não se situando em nenhum deles, o artista procura encontrar
conexões, ligações entre as imagens, negando-lhes qualquer valor cognitivo,
atribuindo-lhes o valor banal de persuasão da mídia sem se comprometer
efetivamente com nenhuma delas e abdicando assim de sua responsabilidade
cultural. Torna-se desta maneira, um agente do sistema, e não um criador,
renovador ou transformador. E, se ele se utiliza ainda, dos meios técnicos
102
Idem. p. 188.
103
ARENDT, Hannah. A condição humana. p.62.
75
tradicionais, é simplesmente devido ao prestígio cultural que eles ainda mantém.
Prestígio, entretanto, impotente para se opor à voracidade das imagens do
mundo atual, onde diariamente circulam imagens sem história, sem origens,
sem identidades, incessantemente.”
104
Exatamente por isto, nos situamos hoje diante de uma ‘nova’ aporia: Se estamos
constantemente diante de um mundo repleto de imagens, e se estas imagens podem ser
equiparadas a uma obra (mesmo que composta unicamente por megapixels) ou a várias
obras, será que não estamos vivendo então uma repotencialização da difusão relacional
entre arte e vida? Ou ainda, será que a imagem não é de fato, a mera equação simplória
entre vida e arte a qual fomos acostumados a nos contentar? E mais, se isto ocorre, a
obra de arte como poética histórica se perdeu? Ou será que a diluição da figura do artista
dentro da sociedade (e não mais a diluição da sociedade dentro da figura do artista) fez
com que nos tornássemos incapazes de diferenciar o quê é arte e o quê se situa fora de
seu círculo de existência (pergunta primeira de todo o processo)? Onde depositamos
então nossas utopias de transformação e de renovação? Estaríamos então próximos do
tal ponto zero que surge a cada retomada estilística? Ou será que agora o estilo mesmo
é o próprio ponto zero? Estilo em inércia reverberada? Ou será que estamos diante de
um novo tipo de primitivismo midiático que precisa redescobrir uma forma de expressão
outra, talvez pelo viés da imaginação, que liberte-nos da sufocação próxima? E para
terminar, será que o grau de exponiblidade de uma imagem é capaz o suficiente, de
conferir solidez àquilo que ela representa?
1.20. Pequenos bálsamos e outras histórias.
Saco Zero – 2005
104
FILHO, Paulo Venâncio. História, cultura periférica e a nova civilização da imagem. In Arte & Ensaios.
Vol. V. p. 97
76
O trabalho de Lívia Flores é um refresco diante de tantas questões e diante da
paisagem. É uma ironia absolutamente elegante diante da arte e do próprio estatuto a
que ela se conformou. Trata-se de uma série de sacos de plástico com o símbolo zero
impresso.
O saco se apresenta como objeto passível de utilidade, pronto a carregar qualquer
coisa que o preencha, mas mantém-se a todo o tempo em contradição mediante sua
posição de objeto exposto. Produz uma imagem. Oca e em reverberação. Debocha de si
mesmo, da figura do artista e do mercado. Sorri porque tudo é incrível e surpreendente.
Tropeça na proximidade entre arte, vida e ready-mades. Tropeça em si mesmo como
objeto de arte. Tropeça em nós através de sua inevitável visualidade induzida.
É reprodutível. Mas para que o seria? Qual sua vantagem? E qual cobiça que
provoca? Qual seu desejo como obra? É uma metáfora clara do esvaziamento e do
nosso legado. Situa-se a todo tempo numa área de instabilidade entre aquilo quê é de
fato e sua imagem provocada quando ex-posto”. o tem nenhuma ânsia, conforta-se
com o que a história fez dele. É nulo e sempre o será mesmo que preenchido por ar,
mesmo que inflado por alguma auréola rarefeita. É um anti-trabalho e é um não. Um
pedido de reflexão. Um espelho quebrado e um acidente, no melhor dos sentidos
possíveis. Um hiato diante de um processo de desertificação que, exatamente por expor
esqueleticamente o que o move, nos lança no abandono e na solidão de sua imagem
impertinente.
Relembrando ainda Walter Benjamin, é ele que nos lança mais um enigma e ao
mesmo tempo, uma profecia: “A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução
de uma obra de arte criada para ser reproduzida.”
105
O objetivo então que se revela,
parece o emblema da era da reprodutibilidade turística (onde a obra está para cidade
assim como o público para o turista), reproduzir-se, copiar-se, tornar-se idêntico (mesmo
sabendo desta impossibilidade) e paradoxalmente atraente, descobrir-se passível de
investimento, gerar capital, aprimorar eternamente a imagem e aprofundar somente
aquilo que a constitui, ser efêmero, eliminar e desvendar gradativamente todo o ritual
possível, ser ordinário, aproveitar, fazer uso de recursos, movimentar-se sem
intermitência, desbravar novos habitantes que carreguem ainda algo de original,
experimentar novas situações sexuais, obter prazer, pasteurizar-se, jamais ser exceção.
Numa era de imagens, o que talvez reste aos artistas é exatamente a produção de
muito mais imagens (e saber se elas ainda podem ser inventadas), que consigam por sua
vez, serem contrapostas à quantidade inesgotável de imagens públicas que são
veiculadas diariamente. Projetar novas imagens sobre o mundo que se apresenta, que
105
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Obras escolhidas vol. 1.
p. 171.
77
na reprodutibilidade turística a possibilidade de invenção de novos mundos nos foi
cerceada. Hans Belting relaciona esta condição diretamente ao mito de Sísifo:
“Para Camus ele é a figura-símbolo de uma revolta que expressa na criação
artística a experiência de um mundo absurdo. Sísifo sabe sobre a inutilidade de
sua revolta, e esse saber lhe restitui a autonomia pessoal que, do contrário,
ele perderia ou teria perdido. Os artistas fazem um gesto de auto-afirmação,
embora saibam que eles nada alterarão no mundo, mas eles podem se
conscientizar de seu estado. ‘Nisso consiste a alegria secreta de Sísifo. Seu
destino pertence agora a ele só. A luta contra o cume pode preencher um
coração humano. Temos de imaginar Sísifo como um homem feliz’”.
106
Homem muito abrangente – 1978 / 2006
Milton Machado é um dos artistas que parece saber disto com enorme elegância:
da inutilidade desta revolta que abarca absolutamente a paisagem. E exatamente pela
consciência desta inutilidade, por trazer esta angústia como uma das recônditas certezas,
por ter clareza de nossa presença infinitesimal, produz um trabalho que nos serve como
alento e como lembrança de nossa possibilidade de existência monumental e subjetiva. O
106
BELTING, Hans. Sísifo ou Prometeu? Sobre arte e tecnologia hoje. In XXVI Bienal Internacional de São
Paulo (catálogo)
78
homem e o artista como monumento na busca da orquestração de uma poesia que, de
tão crua, violenta e passional, produz uma imagem arrebatadora e impensada. Imagem
esta que reverbera, mas que não cede em momento algum às facilidades de sua própria
existência como imagem. Imagem que para sê-la, exige do observador um
aprofundamento de sua própria poética de vida e uma investigação sobre o local de sua
participação no jogo estético e intelectual.
Em Um homem muito abrangente, trabalho que reúne instalação, vídeo e
performance, o mito de Sísifo parece surgir como pano de fundo, como aquilo que a
memória por vezes, em momentos de distração, insiste em esquecer: A poesia infinita,
incansável e não menos utópica do ato artístico.
Depois escrever a palavra PELE sobre diversas superfícies de uma sala, o artista
(como o assistente do atirador de facas) se dirige para um outro espaço e marca o corpo
do atirador na parede. O próprio atirador se posiciona diante deste índice de corpo para
lançar as facas de modo a preenchê-lo, enquanto o artista (num determinado momento),
escreve a seguinte frase na parede: UM HOMEM TÃO ABRANGENTE QUE OCUPASSE
O MUNDO TODO MENOS O PRÓPRIO ESPAÇO DE SEU CORPO PODERIA SAIR-SE
MUITO BEM COMO ASSISTENTE DE UM MAU ATIRADOR DE FACAS.
O homem muito abrangente a qual se refere é o próprio artista em seu desejo de
movimento e dissolução. O artista em seu afã de descobertas e de experimentação. O
artista e a poesia que se olham numa distância aproximada e consideravelmente
dolorosa, pois um sabe claramente do fardo que é amar o outro. O artista que nega a sua
própria condição de alvo e que é capaz de aparecer e desaparecer de acordo com sua
necessidade poética. O artista como névoa, como nuvem, que deixa de ocupar seu
próprio espaço para se perder e inevitavelmente se encontrar no espaço do outro.
Mesmo que para isto saiba que o vestígio deixado pelo corpo seu será preenchido de
maneira rápida, sonora e violenta. O homem muito abrangente sabe da aflição que é ter
escolhido o caminho profundo de não ser apenas uma imagem. Ele conhece sua escolha
e a cruz inerente nesta paisagem cinza. Ele admite sua sina e sua profissão de fé, pois
nasceu com este desejo cravado em seus olhos, por vezes rasgados pela lâmina de uma
ignorância que inunda o espaço e o tempo em seus caminhos e descaminhos.
79
detalhe
107
“Tão abrangente que quase total. Mas falta-lhe um quê de si mesmo. Procura-
se, mas sempre em vão (o Homem Muito Abrangente ocupa todos os vãos). E,
no entanto, é sem volta. Sua perda é de origem, origem tão abrangente que
nada nele é final (se disse que o seu fim não é um fim em si mesmo). Como
todo homem digno (a quem Pico dedicou uma oração) tem algo de camaleão.
Carece de individualidade, não tem uma vocação, nem sequer uma aparência.
Parece-se, ao que parece. Singular, é plural. Pode ser todas as coisas, fazendo
tudo que quer. No entanto, lhe é vetada uma única ocupação: a própria. Sua
única propriedade é o ter nada de próprio. Principalmente interior. Daí que é
híbrido, impuro. Sempre além dos limites, o Homem Muito Abrangente é o mais
puro exterior.”
108
A alegria secreta do homem muito abrangente pertence a ele só. É seu segredo.
E é a luta contra o cume ou contra àquilo que o cenário oferece, que servirá de alento ao
seu coração humano e artista. Seu coração também é o seu segredo, sua dúvida e sua
lágrima. Ter coragem de abandonar-se para saber o que restou de si mesmo. Deixar-se
para compreender e para curar-se. Sua luta é infindável. O homem muito abrangente não
pode parar e é esta sua possibilidade de redenção. Ele como mito à procura de mais
algumas gotas poéticas que lhe abrandem o sofrimento de ver o mundo como é. Pura
imagem. Caos, poeira e algumas lâminas.
107
Foto do artista. (Gentilmente enviada por email em 01/03/2006)
108
MACHADO, Milton. Homem muito abrangente In http://www.estacio.br/site/universidarte/funarte_02.asp
extraído do catálogo Territórios, ITO, São Paulo 2002
80
Sim, o sonho desta folha é ser de papel vegetal. Pelo menos em imagem.
81
I N T E R M E Z Z O
O U
D E S C A N S O D E S C O M P R O M I S S A D O
P A R A L E I T O R E S E M G E R A L
há algo em toda escrita de dissertação algo que aqui por estas terras, chama-se
décalage
algo de incapturável
esguio como água
algo de espaço que se pensa que atravessa
espaço de algo que é entre
semprentre
o mesmo entre-pessoas-espaço de qualquer parte de qualquer lugar
a escrita traz o abismo inevitável entre uma página e outra
entre uma idéia e outra
entre uma imagem e outra
há sempre algo de poço quando o branco espaço de uma nova página se desvela
branco espaço estrangeiro repleto de sobressalto e vento
branco espaço entre nós
momento inerte sem trás nem frente
vácuo
entre uma página e outra houveram várias outras sem escrita
sem nenhuma cobiça de diário
houve uma passagem e um bilhete através do oceano
vôo de horas
susto e delícia
destino que se apresentou ao menino tal que quando micro sabia que um dia
viajaria para a França
e ele foi, turista
estrangeiro de si mesmo
82
escrevo agora depois de quase um mês de aterrissagem e de decolagem e de
decolagem e de aterrissagem e de aterrissagem e de decolagem
minha obsessão pela paisagem tornou-se poética
olho com olhos de quem nunca viu
olhar de estampido sem arremedo
olhos cheios...................................
potência pura de experiência sem reprodução
nem foto
nem palavra
nem nada
silêncio de quem vive
silêncio de vida que é avessa a qualquer desejo de explicitação
de qualquer esclarecimento
há entre nós um oceano
uma história
e algum passado que quase sempre se esconde na acidez sagaz do teu-(meu?)-
outro-dentro que prefiro não saber
coisa minha que carrego em nome dos sem nome
naïf e nada revolucionário
há entre nós um romance e uma idéia estrangeira que se apresenta:
sim, eu sou aquilo que você imaginava quando minimal
sou aquela reverberação poética que te faz morrer de sede
coisa tua que é também minha
desejo de movimentação
atravessamento em mim para ti
é esta nossa única língua?
é só aqui que posso tocar em você sem nenhum medo de represália?
é aqui que você exonera a roupa teórica que lhe serve de escudo?
aqui na há mais espetáculo
83
alguém recolhe os copos
alguém arruma as cadeiras
a defesa terminou
só resta eu e tu em verbo
silêncio
nenhuma angústia
nenhuma distância
há um oceano entre nós
e não há nenhuma revolta
amenidades e nenhuma imagem
puro esvaziamento no momento em que você é só meu; poético
sim, o vôo de volta traz sempre alguma dor
não choro nem sinto saudade
vista de cima, a cidade não é tão ré
como meu desejo de ponto de fuga
nem minha tristeza de ver o que fizeram de nossos nós
já que a paisagem é bovina, o chão está cheio de carne fresca
E talvez amanhã me sinta um pouco mais do que hoje, que a princípio não
nada que reverta este jogo de esvaziamento que vivo junto com o meu time de
infindáveis jogadores também esvaziados. Senti uma enorme vontade de sumir
com as imagens de teus trabalhos que me perseguem vez por outra. Saudade
sem totalidade melancólica. Sumir com a imagem da experiência do possível da
redenção porque não sei que sempre sobrevivo depois de tantas machadadas que
ganhamos ao longo da trajetória utópica de acreditar no outro que existe além do
modismo oblíquo do encontro relacional moderninho updated... Hoje tive vontade
de acordar e saber que de fato, você nunca existiu. Nem você. Nem suas
situações. Nem eu. Nem nós em alguma garganta cogito em que se sabe que
ainda algo preso em nossa goela. E sempre quis que de fato, nunca tivesses
ido sem batom no espelho e sem que isto obrigatoriamente fosse filme. Tentar
84
saber. Encantar. O ato laranjinha de te ver desvendar-se sem cinza, sem
nenhuma pasteurização anti-rugas. É isto que queres, um porquê a-gramático
que justifique a ponte que nos estabelece? É isto que pode hádvir amor?
Velocidade-luz? Bem e isto?! E essa vontade irrealizável que surge da
constatação de que dar um passo além de ti, é cadafalso? É abismo; como aquele
de ter coragem de ser obrigado a acreditar no coletivo de todos os dias que pego
para seguir meu destino? É a forma e a (h)altura do chamado que insistes em
chamar de marketing? É essa escrita que de alguma maneira, o faz em bateria e
cuíca e percussão tocada pelo Zero? Eu te amo e isso é phodda. Eu usei o nome.
E o uso. É esta nossa pele que de profundidade não tem nada. Algo que ainda me
deixe diante de mim; apesar de ti. Da sina do trabalho teu que também é meu e
que exatamente por isto não é mais coisa alguma. C’est la vie (hãnde)? Havia
um outro destes público, que me visitava vez por outra. Que tinha nos olhos o
brilho encantado dos que estão vivos de fato. Vivos como você e eu e a Av. Brasil
ao longo dos dias e de todas as noites de luar do ser-tão. Foi-se embora por não
suportar a bondade de fazer da minha casa-corpo (seja ela qual for) também
dele ser. Vivo sem que perecer seja seu devir. Não houve escândalo algum. o
nada. E de alguma maneira nosso catecismo cool de vernissage implica em
que tenhamos que nos acostumar com isto? Sem bolsas cheias e diálogos e
ahhhhhh(é isso que tu queres?) travessamentos e sem algo que também te sirva
esse teu ciúme?), por onde, por tanto, por este amor que talvez possa ficar
entre nós dois por um pouquinho. Dorme aqui agora no colo da minha letra
sensorial para sempre. [Obrigado por n´[ozes]. Por todo o eixo de praia de dentro
daqui do cérebro-brisa sem que isto seja obrigação de achar que precisamos
participar de tudo um do outro o tempo todo. Sem que esqueçamos que
convivência implica em muita violência de represa. De onde te amo, não
mais nenhuma ação. Nem nenhum objeto relacional que te sirva de broquel. Aqui
harte ainda alguma liberdade dentro do cosmos horizontal em que o travesseiro
que te preparo, deve poeticamente ser babado na galeria do ad infinitum + chuva
para que não deixe de seguir a sua estrada e seu eixo de relação comigo. Eu não.
Eu nem sempre. A toda a dança que luz a madrugada entre eu-você. Saída do
coração-caco com bateria de escola de samba, banda de fanos e um letreiro de
fim de filme (longe das plásticas, que acham sentimento sempre kitsch). E
recomeço. É todos os dias. Laranjinha. E sem rotina. é ou era? Tens
coragem? Esta carta é exatamente para ti.
85
Sim, você já sabe qual é o sonho de folhas como esta. Pelo menos em imagem.
86
LADO B –
pocket and remixed versions
RELP
(Zé Miguel Wisnik)
a menina olha no espelho pelo ralo
e diz oi rato otário, que que tu faz aí?
mas quem responde lá longe é o eco
vejo hoje você
vejo hoje você
vejo hoje você bem de perto
quem te viu quem te vê
quem te vir há de ver
feliz de quem doa a quem doer
a menina fica assim
quer ser cor e ser ocres
nem preto nem branco mas puro matiz
87
quem se viu quem se vê quem se diz
feliz de quem doa a quem doer feliz
num repente começa a sussurrar a rezar
uma reza que mais parece um rap
um help pro céu um salmo
ó mãe tu era réu te amo
ó mãe tu era réu te amo
ó mãe tu era réu te amo
te chamo e te salvo pra estares aqui
quem te viu quem te vê quem te quis
feliz de quem doa a quem doer feliz
ela fica rindo e polindo
o que parece ter dentro e fora de si
ou então construindo um lindo palíndromo
ouro tesouro de ouro e marfim
que mima a mina e anima a mim
num breque sem fim de um samba
88
tão velho que bate no espelho
e se vê no cristal
ela faz o seu e o meu carnaval
cantando assim
só dote dádiva é a vida de todos
e lá vou eu em meu eu oval
só dote dádiva é a vida de todos
e lá vou eu em meu eu oval
(gota pura
gota gota pura
vindo pela veia do veio
diamante diamante duro
cortando o cristal pelo meio)
só dote dádiva é a vida de todos
e lá vou eu em meu eu oval
só dote dádiva é a vida de todos
e lá vou eu em meu eu oval
89
Imagem refresco para os olhos sem nenhum compromisso (?!)
Yves Klein - Salto no vazio
1928-1962
90
“A história das idéias é a história do rancor dos solitários”
Emil Cioran
“ Aqui temos de nos ocupar apenas com o ideal da arte, e para a arte a
separação entre a universalidade e a individualidade ainda não deve surgir no
modo indicado, por mais que esta diferença também seja necessária para a
efetividade restante da existência espiritual. Pois a arte e seu ideal são
justamente o universal, na medida em que é configurado para a intuição e, por
isso, ainda está em unidade imediata com a particularidade e sua vitalidade.”
Hegel
“Quando o problema da felicidade suplanta o do conhecimento, a filosofia
abandona seu donio próprio para entregar-se a uma atividade suspeitosa:
interessa-se pelo homem.”
Emil Cioran
91
2. Aonde será que isso começa?
Como explicar quadros a uma lebre morta - 2005
“Antes de perguntarmos o que devemos fazer? Temos que considerar primeiro a
questão, como devemos pensar?”
109
Em 13 de novembro de 2005 no Museu Guggenheim de Nova York, dentro de
uma série chamada Seven Easy Pieces, Marina Abramovic refez uma performance
realizada por Joseph Beuys (1965) intitulada: Como explicar quadros a uma lebre morta.
O título da série traz uma ironia interessante... Sete peças fáceis... A artista além de
refazer três de suas performances (nas duas últimas noites), optou por fazer o mesmo
com três outros trabalhos de Gina Pane, Bruce Nauman e Vito Acconci.
Apesar do que diz o título, talvez não haja nenhuma facilidade em refazer
trabalhos seminais realizados por outros artistas. A idéia e o “roteiro” da performance
estão lá, mas a intenção e a intensidade são outras, da mesma forma que o tempo e o
espaço onde a ação se desenrola. Pelo menos é isto que o público imagina como uma
possível justificativa justa para a realização de um trabalho conhecido e neste caso
específico, tão potente quanto o de Joseph Beuys.
Fato é que a série de performances gerou um questionamento sobre o processo
criativo e onde o público a todo o tempo se perguntava qual seria a razão para que a
artista optasse por remontar tais propostas. O performer e escultor Tom Marioni, numa
carta ao The New York Times, questionava se com propostas como esta, ela não estaria
109
BEUYS; Joseph. An Appeal for an Alternative. In Theories and documents for contemporary art. p.634.
92
se tornando simplesmente uma atriz.
110
Cris Burden por exemplo, foi um dos outros
artistas que decidiram não colaborar com o projeto.
Por certo, a releitura de trabalhos importantes como estes termina trazendo uma
questão sobre o nível de representação utilizado, e se tal representação não termina por
esbarrar e potencializar uma certa teatralidade. De qualquer maneira, sempre achei que a
teatralidade estivesse inerente à performance, não pela falsificação das ações, mas pelo
seu contrário absoluto, ou seja, pela força e pela fé que o artista deposita no repertório de
ações criadas para um momento específico.
Nos anos 90, ela disse a Batriz Ruf e Hans-Peter von Däniken: “Na década de 70,
o teatro era o inimigo dos performers. Era considerado como algo fake, uma experiência
ensaiada. Hoje, na década de 90, minha atitude mudou consideravelmente: hoje o
público que vem ao teatro ver meu trabalho, assiste uma peça e uma performance.”
111
A representação no teatro é completamente diferente daquilo que chamamos de
atuação e tudo depende da montagem, do diretor ou mesmo do autor e de seu texto.
Temos por exemplo alguns teóricos como Stanilaswki que defendem que a personagem
vive em sua realidade absoluta, completamente aderida àquele que a opera (o ator). E
que em casos emergenciais ou no fim da apresentação, se descolará daquilo que criou
como forma de expressão. Para eles, a relação entre personagem e ator é forte, precisa
e bastante longe da representação.
De qualquer maneira, esta relação entre teatralidade e artes plásticas não me
interessa tanto
112
quanto o quê desejo levantar, que é a pulsão poética provocada por
Beuys e retomada pela artista. A imprensa e o próprio museu divulgaram que tais peças
deveriam ser encenadas novamente em virtude de uma preocupação memorial, devido à
fragilidade dos registros, além da reavaliação da força de sua proposta, e de uma
necessidade de reflexão sobre a mudança de idéias e ideais.
113
Enfim, por que explicar quadros a uma lebre morta hoje? A pergunta
aparentemente ingênua, já que poderíamos pensar que todo artista pode propor qualquer
ação que provoque o quê deseja, termina nos encaminhando para outro ponto que nos
interessa bastante. Em 26 de novembro de 1965, Beuys começava sua ação. Sentado
num canto da galeria próximo da entrada e absolutamente concentrado. Vez por outra se
levantava e parecia querer explicar à lebre alguma história de alguma arte. 13 de
novembro e 2005, 40 anos depois, Marina Abramovic repete a ação.
110
http://www.hotreview.org/articles/marinaabram.htm
111
Idem
112
Provavelmente me interesse numa próxima pesquisa, pois esta questão é consideravelmente importante
para o meu processo de trabalho, onde plasticidade e teatralidade sempre se mantiveram juntas.
113
http://www.artcircles.org/id59.html
93
Como explicar quadros a uma lebre morta - 1965
A lebre está morta; e mesmo que viva estivesse de nada adiantaria. É apenas um
corpo que o artista carrega. Um índice de vida. Um corpo-morto-objeto-animal. Sem
ação alguma. Um corpo que se apresenta como imagem. Sua presença é apenas
presença como latência objetiva, onde nada funciona. Como poderíamos pensar a figura
do animal e do artista? E mais qual é a relação que o une?
O artista se coloca na figura assídua do incansável. Deseja explicar um pouco da
arte e da poética. É um solitário e seu murmúrio parece abrandar sua solidão. O animal é
um emblema do público que ele carrega nos braços. O animal seria o receptor absurdo
que não consegue operar nenhuma comunicação. Os dois enclausurados em seus
universos díspares: O artista em sua vitalidade ingênua, e o público em seu silêncio de
imagem e de morte. O quê os une é a impossibilidade, o desejo irrealizável e o fim que se
explicita plasticamente. Não propriamente uma narrativa. Não um desenrolar de
ações. A ação está lá, jogada no cuo, sem reviravoltas nem surpresas. Inércia e
silêncio.
2.1. Inércia, algum silêncio, alguma moda e outros paradoxos (algum
panorama).
Beuys era um mito. E como artista, um visionário. Parece que talvez mesmo sem
sentir, ele nos apontava para um momento próximo onde a sensação de inércia e
silêncio se colocaria diante de nós como emoção inelutável. Nos últimos anos, uma série
94
de debates e de publicações vem tentando descobrir o que seria este momento muito
específico onde estamos estagnados dentro de uma história apática que parece
ensimesmar-se a todo o tempo.
É importante que esclareçamos que aqui não estamos nos referindo ao mercado
de arte e ao seu funcionamento. Os trâmites comerciais mantêm-se operantes e não se
importam muito com questões teóricas como a ausência de historicidade que envolve
grande parte das produções artísticas atuais. Mercados são mercados e são
comandados por demandas específicas regidas por leis muito particulares e paralelas à
criação estética.
O q quero dizer aqui é que aos poucos pudemos ter consciência e
conseqüentemente pudemos problematizar um certo “encerramento no desenvolvimento
histórico da arte, onde aquela era de criatividade arrebatadora que no Oriente, durou pelo
menos seis séculos, acabou.”
114
No começo do Séc. XX, o modernismo e a era dos manifestos se mostraram
como momentos potentes onde havia claramente uma fé no futuro e um desejo de
mudança inquestionável. Por certo tais desejos e tais profecias lançadas traziam muitas
vezes enganos e desenganos, mas o quê ali nos parece interessante é o desejo de
mudança e de transformação de um momento artístico e social que não agradava aos
intelectuais da época.
Por certo, a vanguarda tinha uma predisposição a pensar a arte como um
movimento de progressão, onde cada movimento ao negar seu anterior, estaria
conseguindo dar um passo a frente no processo de criação artística (o quê hoje pode nos
parecer uma ingenuidade). Mas o quê nos parece mais importante é que este momento
nos ofereceu (ou pelo menos sempre tentou) uma possibilidade, uma saída, um caminho
de reflexão, uma clarificação do local de onde partiu e de onde objetivava chegar: ...a
história do conflito político e social. Tradicionalmente a arte serviu para resolver
magicamente este conflito.”
115
Obviamente a resolução, no caso da vanguarda, não era
tão mágica assim, pois:
“A vanguarda ajudou a reciclar os refugos sociais do capitalismo industrial para
o seu próprio sistema produtivo, a mediatizar formas proletárias e estilos
subculturais (pela criação da nova arte, da moda, dos espetáculos) no interesse
não do controle social como também do interesse da produção de
massas.”
116
114
DANTO, Arthur C. After the end of art. p. 22
115
FOSTER, Recodificação. p. 69
116
Idem. p. 61.
95
De fato, este processo de troca proposto pelas vanguardas fundamentava-se no
aproveitamento de uma posição intermediária entre a figura da vítima e do carrasco.
Assim, ela pôde se apropriar das subclasses para o lucro da burguesia. Apesar disso,
como disse anteriormente, o quê é interessante na vanguarda é a detecção de uma
esperança diante do futuro da arte e do seu desejo de produção de obras que tragam
uma liberação das convenções. Para que assim conseguissem conseqüentemente
apontar para um caminho estético que de alguma maneira, também fosse útil a
sociedade.
Aos poucos este desejo pela novidade e esta pulsão de libertação vão diminuindo.
A figura do artista como marginal e revolucionário termina sendo englobada pelo mercado
como proposta artística (afinal isto é inevitável e de certa forma, desejado pelas duas
partes). O desejo de construção de um estilo aos poucos se apagado e desalojado, e
a própria vanguarda se descobre cansada.
A década de 60, apesar de suas experiências de body art e happenings, termina
gerando uma arte desprovida de personalidade, calada tanto ao indivíduo quanto à
história. Que juntos ao estilo (entendido como a reunião da persona do artista ou de um
grupo de artistas dentro de um mesmo movimento, aliada à aura das obras produzidas),
são renegados como bases de uma possível significação.
117
Não a arte da década de 60 iria gradativamente apagar a personalidade e a
identidade do estilo do artista, como no minimalismo por exemplo, mas também a
presença da arte conceitual e seu desvio da experiência estética para a realidade do
espaço onde as idéias operam, termina por potencializar tal processo de apagamento e
de diluição. E se entendemos a arte como uma tentativa de resolução de um conflito
entre o artista individual e as convenções de uma forma de arte, a partir de então a figura
do artista mergulha no individualismo, utilizando os mais diversos meios para a sua
sobrevivência. Contudo, como diz Theodor Adorno, “a pretensa cultura oficial do
individualismo (...) aumenta necessariamente em proporção à liquidação do indivíduo.”
118
É claro que não podemos generalizar, nem dizer que este movimento de diluição
do indivíduo foi provocado unicamente pela arte. Seria uma ingenuidade e uma
impropriedade. Este processo de diluição do indivíduo e de individualização do artista
ocorreu por uma série de questões econômicas, sociais e políticas. O quê podemos
detectar é que tais movimentos deixaram um legado de visualidade seca, de presença
quase hospitalar, onde nada falta nem nada sobra. E onde a figura do artista termina se
ocultando em virtude da força formal que o trabalho opera.
117
Idem. p. 39.
118
Citado por FOSTER, HAL In Recodificação. p. 40
96
Michael Fried em seu ensaio Art and Objecthood
119
, detectava uma certa
teatralidade presente nas obras minimalistas. Ou melhor, uma certa teatralidade que as
obras carregavam (por sua dimensão e pela imposição de sua presença no espaço) e
que terminavam provocando a mesma sensação em seu entorno e no público que as
visitava. Mesmo que a forma nada tenha de alegórica, mesmo que ela opte pela
contenção, sua escala termina gerando uma sensação teatral. O objeto escultórico se
impõe como presença. E para que tal sensação o termine sobrecarregando o próprio
trabalho, a figura do artista se cala. A teatralidade aqui, se entendida como elemento de
presença ativa e de ênfase em uma proposta artística, termina sendo deslocada da figura
do artista para o objeto.
Se por um lado tínhamos o artista em sua presença de certa maneira oculta, por
outro tínhamos a figura do artista como elemento midiático institucionalizado. Andy
Warhol é um dos melhores exemplos disso, que apesar de pressupostamente negar o
convencionalismo da arte produzida até então, terminava por carregar uma postura
absolutamente tradicional: a do artista emblemático que era capaz de articular diversos
eixos da sociedade e que orquestrava grande parte de sua tática de produção e de
marketing.
Um dos maiores problemas que a arte pop traz, é a instauração da moda como
elemento fundamental do processo artístico. O q parece mais complexo sobre toda
esta marcha é uma inevitável inércia e superficialidade que se estabelecem e que, de
alguma maneira, parecem presentes na arte até hoje. A moda carrega um desejo da
experiência do choque, do estranhamento e exatamente por não ter infindáveis
possibilidades para obter tais objetivos, opera uma transformação do velho, recolocando-
o na superficialidade e no frescor do novo.
“Aqui toda a ideologia da moda está em questão. A lógica formal da moda impõe
uma mobilidade aumentada a todos os signos sociais característicos. Essa
mobilidade formal dos signos corresponde a uma mobilidade real das estruturas
sociais (profissional, política, cultural)? Certamente não. A moda mais
amplamente, o consumo mascara uma inércia social profunda. É em si própria
um fator de inércia social, na medida em que a demanda por mobilidade social
real se converte em brincadeira e se perde na moda, na súbita e em geral cíclica
mudança de objetos, roupas e idéias. E a ilusão de mudança é acrescida à ilusão
de democracia.”
120
119
FRIED, Michael. Art and objecthood. University of Chicago Press. Nova Iorque; 1998.
120
BAUDRILLARD, Jean. For a critique of the political economy of the sign. Citado por FOSTER, HAL.
Recodificação. p. 46.
97
2.2. A(hhh)rtistas ?!
“O artista típico está em geral ‘perdido no tempo, na cultura e na metáfora.’”
121
Se aos poucos a arte se problematiza da mesma maneira que a figura do artista, se o
artista hoje se pergunta a todo instante qual a sua função dentro da sociedade, talvez
seja ele um dos elementos fundamentais deste momento de inércia que apontamos
inicialmente. Talvez seja ele a primeira parte deste processo que mereça uma análise
específica.
Na primeira etapa deste trabalho dissemos que estamos hoje num momento de
liberdade absoluta, onde todos os métodos e materiais parecem possíveis para a
construção de uma obra de arte. Não temos mais nenhum elemento estilístico que nos
sirva de base e que tenha por objetivo nortear as produções. Estamos livres. Mas livre de
quê ou de quem?
A liberdade é uma das muitas palavras que não podemos utilizar para expressar
nossa condição atual. Se acreditarmos em liberdade, estaríamos acreditando numa
situação utópica onde não estaríamos envolvidos com um sistema econômico ferrenho e
que desenvolve cada vez mais sua máquina de guerra e sua estética de ataque. Na arte,
a situação não é muito diferente. Existe todo um sistema de legitimação do artista que
segue suas regras próprias e que geralmente, atende uma demanda pública e comercial.
A liberdade a qual nos referimos (que por vezes corre o risco de ser um sinônimo de
jaula), é uma liberdade material e poética, embora seja uma liberdade que termine
esbarrando num método de funcionamento completamente organizado e cada vez mais
global:
“O mundo da arte cresce, massifica-se, estrutura-se sobre diversificados tipos
de pressão: por um lado, encontramos uma pressão exterior, a pressão política
dos governos e das instituições públicas ou privadas, que, usando a cultura
como caução, recorrem à sua reconhecida condição de espetáculo para afirmar
a visibilidade de um poder, afirmado demagogicamente na sua democraticidade
pela evidência das multidões que possam acorrer a um museu ou a uma
exposição. Por outro lado, encontramos uma pressão interior, advinda das
necessidades de legitimação e ocupação num domínio específico da criação
121
FOSTER, Hal. Recodificação. p. 37
98
artística por parte de todos os agentes envolvidos no processo de criação e de
apresentação da obra de arte.”
122
Junto a isto, podemos perceber também uma situação estranha que vem se
colocando: o desenvolvimento de um sentimento geral de depressão que parece envolver
a sociedade gerando um efeito negativo incontestável. A instauração de um certo
desencorajamento em todos os níveis e uma considerável falta de ambição. O risco que
os artistas correm é exatamente de se deixarem tomar por esta onda de caos e
terminarem portanto, deixando de perseguir seus objetivos e de aprofundar suas
respectivas poéticas.
123
“Dentro de uma sociedade onde falta consideravelmente a confiança nela
própria, que é afetada depois de vários anos por um tipo de depressão coletiva,
que traz consigo um medo ou um pânico diante de toda a possibilidade de
mudança, não existe nenhuma razão para que as atividades artísticas estejam
abrigadas deste clima geral. O contrário é que surpreendente.”
124
Mesmo que a política venha se mostrando como um eixo de relação e
funcionamento falido, mesmo que a resposta do público ao trabalho do artista nem
sempre seja a esperada, mesmo que o público esteja cada vez ausente (estrangeiro)
125
e
distante das reflexões da arte, a atividade do artista não pode estancar. Antes de mais
nada, alguns ótimos artistas o são, exatamente pelo fato de que não poderiam ser outra
coisa além disto.
O artista é artista por necessidades fundamentais, humanas, sentimentais, por
razões intrínsecas e por vezes até mesmo desconhecidas. É porque é este seu caminho
de cruz e delícia. E mesmo tendo a paisagem se estabelecido da forma que se
estabeleceu, seu trabalho é o de trabalhar para que possa dar continuidade àquilo que se
propõe. Talvez seja este um de seus maiores desafios. Trabalhar para conseguir
continuar seu trabalho. Trabalhar para trabalhar.
Lembro de um texto de Walter Benjamin chamado A lontra
126
, onde o autor narra
alguns momentos onde ele observava no zoológico, o comportamento de uma lontra e
122
FERNANDES, João. Born to be famous: a condição do jovem artista, entre o sucesso pop e as ilusões
perdidas.... In Arte & Ensaios. Vol. X. p. 127.
123
MICHAUD, Yves. La crise de l’art contemporain. p. 149
124
Idem. p. 149
125
“E por quais razões as massas deveriam adotar os critérios estéticos de grupos de especialistas que
pertencem, na maioria dos casos, à classe dominante e em todo caso, à elite do poder?” In MICHAUD,
Yves. La crise de l’art contemporain. p. 152
126
Que me foi gentilmente apresentado por Cadu Costa.
99
terminava fascinado por isto. O movimento que a lontra realizava com alguma constância
era exatamente o de sair de sua toca, observar o entorno, observar seus observadores e
sumir novamente dentro do escuro de onde veio e onde habitava.
Penso sempre na lontra como a figura do artista, que quando necessário, visita o
mundo e colhe a imagem que lhe interessa para novamente retornar ao seu local de
origem e retomar seus trabalhos. Ela talvez saiba do processo de visitação, da presença
de seus observadores, da instituição que lhe acolhe e de sua importância para o
funcionamento do zoológico, porém sua preocupação é outra. Sua preocupação (se é
que de fato ela possui) é íntima, desconhecida, encontra-se na profundeza de algum local
onde ela tem acesso. É essa sua vida e seu ritmo de funcionamento. A imagem da
realidade do mundo produz um efeito, que ela por sua vez, captura ou não.
“É em vão que tu tentarás se livrar de assalto das máximas deles, que
condenarás seus atos... Mas tua mão de artista pode ensaiar capturá-los
através de seus atos de destruição. Caces seus prazeres arbitrários, a
frivolidade, a rudeza e insensivelmente terminarás por bani-los assim de seus
atos, de seus sentimentos. Em qualquer lugar que tu os encontre, envolve-os de
formas nobres, grandes, cheias de espírito, envolve-os completamente de
símbolos, nos quais tu és um especialista, até o momento em que a aparência
triunfe sobre a realidade e a arte sobre a natureza.”
127
Sim, sabemos que de fato, a saúde estética é impossível.
128
Mas por outro lado o
quê nos cabe é ainda uma preocupação considerável diante do panorama que se
apresenta como arte, além da preocupação inevitável com o nosso trabalho e com a
nossa trajetória. O exercício é o de escutar e tentar descobrir qual é a vontade do
trabalho, tatear o que for necessário para poder se aproximar da possível pretensão da
arte hoje
129
. Mesmo que os observadores no zoológico façam barulhos demais, e
preocupem-se de menos com o movimento poético infinitesimal provocado a todo
instante.
Mesmo que a função social do artista tenha gradualmente perdido seu
conteúdo
130
, resta-nos o movimento de reorganizar, de reajustar e de reformular nossa fé
127
SCHILLER, Lettres sur l’education esthetique de l’homme. Citado por MICHAUD, Yves. In La crise de
l’art contemporain. p. 239.
128
MICHAUD, Yves. La crise de l’art contemporain. p. 153
129
Uma das perguntas que nos colocamos (Eu e Glória Ferreira) numa das primeiras reuniões de orientação.
Pergunta sem resposta. Pergunta que serve como reverberação infindável para o moto-contínuo do nosso
ofício.
130
MICHAUD, Yves. La crise de l’art contemporain p.156
100
em nossa própria atividade
131
(sozinhos ou em grupo), para que possamos então
descobrir outras linhas de fuga para nossa própria ação. Potencializar e explorar novas
possibilidades, a do artista como curador
132
, como crítico de arte, como agenciador de
situações enigma, como hipertexto. Trabalho infindável... Provocar algo para arte ou
mesmo, descobrirmos que a arte como tal era, e trilharmos o caminho de uma arte
outra
133
, ou de um outro algo ainda sem nome que consiga de maneira justa provocar o
que desejamos. E o que desejamos?
No texto de Peter Plagens, ele se propõe a analisar o termo “pós-artista” criado
por Donald Kuspit. Em determinado momento, citando o próprio Kuspit, ele detecta o que
na sua opinião deu origem a este termo:
“Desiludidos com a arte, eles ainda têm ilusões sobre si mesmos sobre o que
a arte pode fazer por eles (mas não o que podem fazer pela arte), como torná-
los ricos e famosos, ou pelo menos dignos de notícia ou apenas dignos de
nota.”
134
E mais:
“A arte contemporânea abandonou sua função da ala visual dentro da casa da
poesia e transformou-se numa subdivisão irresponsavelmente transgressora da
indústria do entretenimento. Agora é cultura pop comercial, leia-se esotérica,
rabugenta e pequena.”
135
A questão é exatamente esta e para isto não teremos resposta aqui: O que
queremos agora? A resposta é absolutamente pessoal, subjetiva e profunda. O quê eu
ingenuamente (quase Dorothy) espero com esta dissertação (e como artista) é provocar
questões, levantar algumas problemáticas e perceber (mesmo utopicamente) que pelo
menos a maioria queira a produção de uma paisagem artística diversa desta que se
coloca. Uma outra paisagem, talvez mais prazerosa, mais densa, mais poética e mais
intelectual. Se então formos maioria, se tais vozes puderem se dar o direito de estarem
juntas apesar dos pesares e apesar das disparidades entre cada artista, poderemos
131
Idem. p. 157
132
Bastante investigada por Ricardo Basbaum
133
Costumo sempre trabalhar com um neologismo para esta situação: (h)arte. Infelizmente aqui não poderei
investigar da maneira que se deseja este assunto, mas talvez o retome numa próxima pesquisa.
134
PLAGENS, Peter. O pós-artista. In Arte & Ensaios. Vol. XII. p. 170.
135
Idem. p. 170.
101
tentar algo diferente (que não esbarre na obviedade da compulsão do novo e nem
mesmo se contente com o delícia viciosa da superfície).
Peter Plagens, ainda cita uma passagem que nos parece, no mínimo polêmica:
“Ergam-se sobre suas patas traseiras, Kuspit diz aos artistas de hoje, e aceitem
o fato de que a revolução Duchamp-Warhol-Beuys foi um êxito e que vocês
agora são ‘pós-artistas’ fazendo ‘pós-arte’. Parem de se apegar à glória residual
de algo em que vocês não crêem realmente.”
136
Talvez não tenha entendido ou talvez prefira continuar sem entender claramente o
que o autor quis dizer. Posso tentar compreender o termo pós-artista e pós-arte, bem
como a revolução inquestionável provocada pelos artistas específicos, mas desconfio
inteiramente quando ele fala para que paremos de nos agarrar a uma glória residual que
não cremos realmente. Curioso perceber como o autor imagina que todos os artistas
pensam a mesma coisa sobre a profissão de artista, e que tudo se resume a uma certa
glória artificial. Parece que ele termina por generalizar a figura do artista (que tem por
objetivo uma sobrevivência luxuosa) e talvez termine esquecendo ligeiramente que existe
uma série de outros artistas que fazem arte porquê querem, porquê precisam, ou
simplesmente que nasceram para isto. E que os desejos, expectativas e objetivos são os
mais diferentes possíveis.
Por certo Duchamp, Beuys e Warhol fazem uma revolução na arte, no processo
de criação e no discurso historiográfico da arte. Os três artistas são fundamentais e não
estão nesta dissertação de maneira descompromissada. Mas creio que nenhum deles foi
capaz de acabar com a arte (e nem ao menos desejou de fato). O que fizeram foi lançar
um problema estético que nós tentaremos resolver, ou pelo menos pensar sobre. É esse
nosso legado e não nenhum mal nisso. Contudo, podemos desconfiar da afirmação
que o autor faz, ao dizer que devemos esquecer de algo que não acreditamos realmente.
Nós quem?
136
Idem. p. 170.
102
2.3. Pequeno aparte: comentário sobre coletivos e sobre a
coletividade
Aqui, preciso fazer uma explicação rápida: Quando pergunto “nós quem?”, termino
esbarrando na questão do coletivo. Os coletivos (que estiveram muito presentes nas
últimas décadas no cenário artístico, e no caso do Rio de Janeiro e São Paulo, uma
retomada de tais práticas se mostrou mais fortemente nos últimos anos
137
) são um
exemplo de um certo frescor quimérico dentro da possibilidade de reunião de pessoas
que merece algum cuidado.
Não posso negar que grande parte do meu trabalho plástico começou com um
coletivo chamado Rés do Chão
138
. Foi que publiquei meu primeiro texto
especificamente para as artes plásticas, que iniciei todo o processo, que conheci pessoas
absolutamente interessantes e que tive noites inesquecíveis de intensa diversão e/ou
experiência estética (e por que não?). Uma das melhores qualidades do coletivo é
exatamente esta possibilidade de movimentação, de abertura, de experimentação, de
troca espontânea e rizomática; além da maneira admirável com que tenta reconciliar arte
e vida. É a delícia do refresco da idéia utópica que se deseja ser uma opção ao sistema
de arte, que sustenta suas regras operacionais e seus encontros.
E é em alguns casos este mesmo desejo (quando muitíssimo mal regulado) que
parece ser responsável por seu fim. Os coletivos, suas propostas e suas ações (mesmo
as mais simples) se sustentam dentro do sistema de arte. E mesmo que construam
um sistema específico e quase alternativo, eles ainda operam dentro desta realidade pois
se utilizam destes signos, que por sua vez terminam sendo fundamentais ao seu
funcionamento e à sua sobrevivência.
Rés do Chão
137
Ver ANDRADE, Luis. Rio 40° Fahrenheit. In Concinnitas nº5
138
Capitaneado pelo artista Edson Barrus. E que contou com a participação de vários artistas e críticos como
por exemplo: Ricardo Basbaum, Daniela Mattos, Cecília Cotrim, Carmen Riquelme, Marcelo Cucco,
Giordani Maia, Alex Hambúrguer, Luis Andrade, Tato Teixeira, Amélia Sampaio, Luiza Guimarães, Célia
Pataccinni e Vandir Gouvea. A sede deste coletivo situava-se na Rua do Lavradio, no Centro do Rio de
Janeiro.
103
Contudo, o coletivo como forma de atuação artística e política tem uma duração
determinada. Seu funcionamento parece limitar-se ao próprio movimento entrópico das
idéias, do “gênio” de cada integrante e da própria originalidade. O quê é interessante
notar é a força da presença e da validade inquestionável desta idéia de coletivo, de
alteridade e de hospitalidade que são fundamentais em manifestações deste tipo
139
e que
também são fundamentais para podermos nos aproximar das questões que falamos
anteriormente.
Pensando um pouco sobre isto, comecei a perceber que a sensação provocada
pela palavra coletivo (quando dentro do meu trabalho), era um pouco maior e não menos
utópica. Gradativamente percebi que meu desejo surreal de coletividade diz respeito ao
grupo social como um todo. Coletivo surgia para mim, como a possibilidade de
interpretação entre aquilo que existe entre eu e você e entre todos os nossos nós. Aqui.
Agora. Mesmo que o fim
140
desta delícia de relação seja inevitável.
2.4. Algum fim?
A questão do fim da arte (ou da morte da arte) há mais ou menos dez anos tem se
mostrado como alvo de discussão de críticos, historiadores e artistas. As pessoas foram
percebendo que houve de fato, uma certa fratura, um hiato dentro da própria narrativa
histórica da arte que foi se revelando, e aos poucos o assunto foi mostrando sua força
diante das mais diversas constatações.
Arthur Colleman Danto é um dos teóricos que mais se preocupou e se preocupa
com o assunto. Ele aponta que depois da era dos manifestos, a partir da década de 60 e
do desenvolvimento da Pop Art, as fronteiras entre um objeto comum de uso ordinário e
uma obra de arte começam a ser eliminadas, provocando alguma tensão e instaurando
uma problemática. “A arte deixa de se impor limites: qualquer objeto visual pode se tornar
obra.”
141
. Um dos trabalhos emblemáticos para esta reflexão é a Brillo Box de Andy
Warhol.
O fim ao qual Danto se refere é o fim de uma narrativa histórica, ou seja, de uma
grande narrativa que provoque uma maior consciência de seus meios, de seus processos
e de sua formação. O autor compara esta narrativa a um romance de formação
(Romansbildung), onde a vida adulta da arte começaria onde termina a sua formação.
139
Inclusive no programa de residência realizado na Escola Superior de Belas Artes de Montpellier, esta era
uma preocupação absolutamente presente nos alunos e na própria cidade. Aliada à questão da memória.
140
Fim este que no caso do coletivo se apresenta por diversas razões. E no meu caso específico, por razões
pessoais que não caberiam aqui.
141
MAMMI, Lorenzo. Mortes recentes da arte. p. 78.
104
Ainda assim, este fim desta narrativa não provocaria maiores problemas para o processo
artístico, mas terminaria por revelar um momento de liberdade absoluta onde todas as
possibilidades poéticas apresentam-se ao artista. (Como comentamos anteriormente).
Uma das maiores diferenças apontadas por Danto entre a arte contemporânea e a
arte do passado é a possibilidade que temos de fazer tudo que imaginarmos como parte
de um processo artístico. Ou seja, não há mais nada que a princípio não possamos fazer,
pois os limites se expandiram e passam a ser o alvo da reflexão racional. Ou seja, a arte
como prática passa a ser do domínio da análise e do questionamento, da filosofia e não
da história da arte.
142
O que parece bastante curioso é uma definição que ele tenta estabelecer para o
processo de criação artística atual. Vejamos: “um objeto de arte é, para ele, um objeto
que diz respeito a alguma coisa (is about something) e que corporifica ou encarna
(embody) o seu significado”.
143
. É claro que tal definição termina sendo a mais abstrata
possível e mesmo que ele perceba uma fusão do significado no significante como parte
do processo, tal definição não parece nos esclarecer muita coisa. Por outro lado não
podemos esquecer que “o problema não é mais o de expandir o campo da arte, mas o de
colocar à prova suas capacidades de resistência dentro do campo social global.”
144
Ou
seja, se para Danto tudo pode ser encarado como objeto artístico, faz-se necessário
acompanhar e colocar tal objeto à prova dentro de um sistema, para que assim
possamos ver se é possível sua sobrevivência.
De qualquer maneira:
“O que chega ao fim, por conseqüência, é uma grande tradição crítica que parte
da escola da visibilidade pura e chega até Greenberg e Argan. Para interpretar a
arte contemporânea é necessário elaborar novos métodos críticos, que levem em
conta não apenas as características formais de cada signo, mas também e
sobretudo suas conotações indiciárias.”
145
Hans Belting por sua vez, defende um fim de uma ilusão e a abertura de um
campo novo de trabalho. Ele detecta uma certa ruptura entre arte e história da arte
ocorrida no modernismo e que foi ganhando força na arte produzida recentemente. Para
ele, só o questionamento que se realiza sobre a história da arte como um campo
autônomo, provoca uma problemática: a necessidade de que o historiador consiga
142
Idem. p. 80.
143
Idem.
144
BOURRIARD, Nicolas. Esthétique relationnelle. p. 31.
145
MAMMI, Lorenzo. Mortes recentes da arte. p. 83
105
produzir um discurso historiográfico que seja capaz de abranger todas as manifestações
recentes num fluxo de idéias bastante específico. Coisa impossível, obviamente. O quê
deixa de existir para Belting, é uma teoria geral de arte que seja suficiente.
“A lógica de um desenvolvimento linear de uma história da arte ainda não
escrita, que o artista era capaz de produzir com suas próprias mãos teve seu
tempo. ‘Hoje, o abandono do novo é inevitável, se se deseja manter viva a
atividade artística (...) Em revanche nada nos permite afirmar que a arte morreu.
O que terminou foi sua história, da mesma forma que a novidade.”
146
Para Yves Michaud o que chega ao fim é a utopia da arte como possibilidade de
experiência universal e como possibilidade de transformação social. Para ele, o que nos
resta hoje é uma forma de comunicação estabelecida entre cidadãos próximos que foram
tocados pela proposta artística. E para que isto ocorra, não importa muito sobre qual
suporte esta comunicação acontecerá.
147
A questão é que a utopia da arte sempre trouxe um desejo de democracia, de
comunicação e de educação que se desenvolvia dentro de um programa de construção
da humanidade. Tal processo utópico estava intimamente ligado a uma cobiça de
igualdade e liberdade entre os cidadãos que fosse por sua vez, capaz de produzir um
sentimento de agrupamento e de lucidez.
Se esta reunião de indivíduos e se estes valores como democracia, comunicação,
liberdade e educação se mostram gradativamente enfraquecidos, o que chega ao fim é
aquilo que a arte sonhou como possível diante do fluxo social, histórico e político. Para
Michaud, este fim é conseqüência direta de uma crise do próprio conceito de arte, do
estado cultural, da diminuição da vitalidade na criação, da ausência de público e da perda
da fé. Este fim da utopia não se resume somente ao eixo artístico, mas se divide em fim
da utopia da cidadania democrática e fim da utopia do trabalho.
Depois destas observações, destes pequenos mapeamentos e destas pequenas
diferenças diante da problemática que lançamos anteriormente, parece-nos que Nicolas
Bourriard nos aponta (junto com Hubert Damisch) um caminho bastante interessante:
“ Não existe ‘fim da história’ nem ‘fim da arte’ possíveis, pois a partida recomeça
permanentemente, de acordo com o contexto. Quer dizer, em função dos
jogadores e do sistema que eles constroem ou criticam. Hubert Damisch via em
tais teorias do ‘fim da arte’ o resultado de uma confusão entre o ‘fim do jogo’
146
BELTING, Hans. L’histoire de l’art est-elle finie ? p. 12.
147
MICHAUD ; Yves. La crise de l’art contemporain. p. 241.
106
(game) e o ‘fim da partida’ (play): quando os contextos sociais mudam
radicalmente o que se anuncia é uma nova partida, sem que o próprio senso do
jogo seja colocado em questão.”
148
O qvivemos hoje é um momento de transição, de passagem e de reavaliação
do processo. Trânsito. Entre. O trabalho do artista é o de se adaptar às novas fases e
mudanças que vão surgindo ao longo do tempo e produzir um conjunto de trabalhos que
de alguma maneira, consiga refletir e repensar as condições dadas; além de propor
outras obviamente. Mesmo que acreditemos que a história da arte como construção de
uma grande narrativa utópica chegou ao fim, este fim é apenas o fim de uma partida. O
jogo é interminável. E cabe a nós, nos prepararmos para os próximos torneios e para os
próximos adversários. Ou pelo menos, reformularmos nosso time.
2.5. Hegel... Sim, eu tentei fugir dele.
Tudo o q descrevemos na parte anterior, havia sido detectado por ele. E
todos os teóricos que citamos acima, vão a Hegel para poder traçar alguns paralelos e
investigar parte de sua estética. A época de Hegel foi uma época em que a arte estava
cedendo espaço para a filosofia, pois o processo de “desenvolvimento do espírito” estava
segundo ele, entrando num eixo filosófico de reflexão pura. Vale lembrar que este local
ocupado pela arte já havia sido ocupado também pela religião.
Estes três eixos: religião, arte e filosofia, são em Hegel, caminhos do espírito para
o encontro do absoluto, para o encontro das idéias divinas. Este encontro com o absoluto
são possibilidades de busca daquilo que ele entendia como plena universalidade. Para
Hegel, a filosofia era tida como uma espécie de técnica a partir da qual, “do plano do
sensível, eu consigo subir até o plano espiritual ou ao plano da plena universalidade.”
149
Este caminho é o caminho proposto pelo idealismo (da qual Platão também faz
parte) e onde o mundo é divido categoricamente em dois planos: o sensível (considerado
como plano inferior) e o plano superior (que em Platão é o mundo das idéias). Hegel
defende que o idealismo só pode ser vitorioso se ele conseguir absorver o outro (que não
a idéia). Ou seja, a vitória do idealismo se daria de fato quando o próprio mundo
sensível fosse superado.
encontramos um paradoxo, um drama presente nas páginas de sua Estética,
pois se o sensível aspira o absoluto e se o caminho natural do sensível é a
148
BOURRIARD, Nicolas. Esthétique relationnelle. p. 19.
149
BORNHEIM, Gerd. Hegel e a morte da arte. p. 114.
107
ultrapassagem dele mesmo, a proposta se mostra de antemão, irrealizável. Se a arte se
baseia no sensível, na materialidade do mundo, se o seu meio de funcionamento inicial é
a forma do objeto, como ultrapassá-la?
Hegel defende também que a arte do passado se baseava numa universalidade
muito específica. O universal era comungado (e atingido) de maneira imediata e se
estabelecia lado a lado com a fragmentação subjetiva, “a contemplação da arte era
imediatamente a vivência do absoluto”
150
e a vivência da obra era a instauração da
experiência da identidade dentro de cada indivíduo.”
151
Chega-se a um momento onde esta universalidade entra em crise. Hegel defende
que esta imitação (do absoluto, da idéia divina) desaparece para dar lugar a uma mera
representação do objeto. O quê Hegel detecta é o gradativo desaparecimento do plano
teológico dentro da produção artística. Aos poucos a “grande arte do passado”
desaparece, dando lugar a uma ciência da arte que se preocupa em investigar os
processos de construção de si mesma.
Cézanne é um bom exemplo disto. O que ele pinta não é precisamente suas
personagens ou seus objetos, Cézanne investiga o próprio processo de construção
pictórica, fazendo ciência ao longo de seus quadros e explicitando um método de
observação da realidade que tinha por objetivo não mais ocultar a técnica, mas expor a
técnica como forma de construção do quadro. É uma pesquisa de linguagem plástica. O
que parecia-lhe interessar (bem como a alguns pintores seguintes) é pintar a própria
estética.
152
Aos poucos, este desejo de reflexão sobre a análise dos processos de construção
poéticos e estéticos termina ganhando ainda mais força. E a arte torna-se a ação
continuada da reflexão sobre si mesma. Desloca-se para o eixo da filosofia e ensaia um
desligamento do sensível. Pensa-se. O quê então é tido por muitos autores como a morte
da arte, seria antes mesmo a vitória da filosofia e de seu desejo de estabelecimento de
um movimento de reflexão que se situe unicamente nas idéias. Surge-nos então uma
outra pergunta: “Poderia nos acontecer algo semelhante: alguém que por meio da
filosofia, nos libertasse da filosofia? Ou será assim perpetuamente?”
153
150
Idem. p. 125.
151
Idem.
152
Idem p. 135.
153
DANTO, Arthur C. A idéia da obra-prima na arte contemporânea. In Arte & Ensaios. Vol. X. p. 90.
108
2.6. Alguma poética.
Como vimos acima, para Hegel, esta busca do absoluto se dividiria em três eixos
bem marcados: religião, arte e filosofia. Estamos hoje no momento de investigação da
filosofia e ela nos parece fundamental para podermos entender o processo de construção
artística atual.
Ele diz:
“A bela arte é, pois, apenas nesta sua liberdade verdadeira arte e leva a termo
sua mais alta tarefa quando se situa na mesma esfera da religião e da filosofia e
torna-se apenas um modo de trazer à consciência e exprimir o divino, os
interesses mais profundos da humanidade, as verdades mais abrangentes do
espírito.”
154
sabemos que esta arte bela, como ele pensava, é algo que deixou de existir.
Contudo esta citação nos pareceu interessante por exemplificar esta equação triangular
de eixos que são fundamentais para o desenvolvimento do espírito. Recentemente,
pensando sobre esta tríade, resolvi
155
substituir a palavra religião pela palavra fé, pois
hoje o que seria do domínio da religião, parece (em sua grande maioria) ter sido também
invadido pelo mercado financeiro e por táticas de fabricação de ignorância em massa.
Preferi o termo por sua liberdade e por seu desligamento de um método de controle.
Enfim, fiz esta pequena alteração e construí um esquema que chamo de “Devir da
existência” e que mostro a seguir...
154
HEGEL, G.W.F. Cursos de estética. p. 32.
155
Perdoem-me a liberdade poética...
109
110
Resolvi criar dois eixos interligados: o do espírito e o da realidade. o que eu
acredite que o espírito seja algo irreal, ou esteja em posição de antagonismo diante da
realidade. O que quero dizer é que são dois eixos de existência diferentes e parcialmente
heterogêneos, embora convivam lado a lado.
O espírito então se dividiria em fé, arte e filosofia. Preferi denominar este eixo
como Da natureza do espírito.
A articulação entre a e a arte, ou melhor, o processo provocado pela
na arte, seria a construção da obra.
No lado oposto, temos a articulação entre a e a filosofia, que daria
origem à teoria. A fé (entendida como confiança) na filosofia (entendida
como processo de análise de determinado termo, momento ou situação)
provoca a teoria.
A relação então estabelecida entre a filosofia e a arte, é a prática. Ou seja,
o processo de análise da arte é sua própria prática, seu exercício diário de
reflexão através da objetividade da realidade material.
Aqui ainda produzimos duas pequenas subdivisões: a prática da arte
geraria a poética e a prática da filosofia, geraria a estética. As duas:
poética e estética se situam em locais opostos e não menos
complementares.
Se o espírito “se pratica” na articulação entre arte e filosofia, se o espírito
se presentifica na produção de uma estética e poética, certamente não
poderemos falar de algum “fim”, pois este exercício de produção é
interminável. E poderíamos dizer ainda um pouco mais: o espírito se
realiza na articulação dos eixos, na movimentação entre fé, arte e filosofia
e na relação com seus derivados (obra, teoria e prática). Não vivemos
inteiramente um momento de ultrapassagem da arte e da fé, mas um
momento onde a ênfase dada se deslocou ligeiramente para a filosofia.
Mas de nada adiantaria fixar-se num eixo filosófico ad infinitum, pois sua
origem e seu destino é o mundo real, que por sua vez, também acontece
na fé que se coloca diante da arte. Ou seja, na força inquestionável da
materialidade do objeto, do mundo material, sensível. É dele que advém
sua problemática. E é para ele que ela retornará. Obviamente este mesmo
deslocamento pode em breve (de acordo com a circulação inerente em
111
toda as épocas), deslocar-se novamente para a arte ou mesmo para a
(agora já desligada da clausura que a religião lhe impunha).
No triângulo oposto temos o que chamo Da natureza do real
A natureza do real é a imanência, o tempo e o espaço. Os três se
articulam e são interdependentes da mesma forma que os eixos que
fundamentam o espírito.
A imanência do tempo é o próprio infinito.
A imanência do espaço é o cosmos.
A articulação entre espaço e tempo gera o qentendemos como história.
Que também jamais terminará. O que pode ter diminuído de fato, é a
possibilidade de captura de uma escrita que seja capaz de trazer
consciência a este movimento histórico. O problema é a velocidade em
que tempo e espaço se articulam e por conseqüência, a velocidade em
que esta história se faz. Exatamente por desconhecermos esta história em
sua inteireza, optei por chamá-la na primeira parte deste trabalho de
sensação histórica.
Aqui também produzimos duas pequenas subdivisões: A história quando
articulada com o espaço gera a forma. E o tempo quando junto da história
se estabelece pelo conteúdo.
Como disse, os dois eixos são paradoxalmente complementares.
O cosmos é o estabelecimento real da obra. A obra é o cosmos em si.
O infinito é a teoria que se provoca na realidade. É o discurso infindo do
cosmos. Da mesma maneira que o cosmos é a presentificação infinda do
infinito como obra
156
.
A arte está para o espaço da mesma maneira que a filosofia está para o
tempo. A arte é o processo da busca de consciência do espaço da mesma
maneira que a filosofia é a busca da consciência do tempo.
A história se faz pela prática da ação. Ou melhor, em toda a ação reside
uma potência histórica que pode ser deflagrada ou não.
A forma é poética e o conteúdo, estética.
156
E quem seria o infinito artista do infinitivo?
112
Nesta construção hipotética optei por deixar mais próximos os dois elementos
que, perdoem-me a redundância, situam-se mais próximos. e imanência. A é a
imanência em si mesma e a imanência é a fé em si mesma. Os dois eixos são
interdependentes e é o fluxo contínuo entre eles que articula todo o funcionamento do
esquema descrito. Os dois são antitéticos e inevitavelmente se atraem e se repulsam. É
esta força de atração e repulsão que os mantém em movimento.
Se entendermos a imanência como uma imagem da concretude do mundo e a
como a alegoria imprescindível para atenuar as angústias do espírito, chegaríamos a um
resultado simples: o devir da existência é uma imagem alegórica. E é exatamente o
funcionamento, a qualidade e a precisão de tal imagem (produzida por cada indivíduo
para si e para o seu entorno) que fundamentará o funcionamento deste esquema. De
vida, é lógico. E de morte. E porque não?
A arte é parte deste processo e está ligada a esta construção de uma imagem que
seria fruto da natureza do real aliada à natureza do espírito, e que seja capaz de articular
a própria reflexão sobre si mesma (filosofia) e que como alegoria, conseguisse explicitar
a credibilidade (fé) dada à sua própria realidade (como ponto de origem) que se
apresenta ou mesmo que se constrói.
Se pensávamos que o momento vivido era aquele onde a filosofia se estabelecia
como último eixo possível, talvez agora possamos investigar que não existem últimos
redutos e sim um movimento constante e incansável entre a realidade e o espírito, onde a
filosofia também é uma parte integrante, e onde nosso destino como humanos ou como
artistas será sempre o da produção de uma imagem alegórica.
Heavy Metal
113
Heavy Metal
157
(1986), de Milton Machado é um trabalho que parece pressentir
com inquestionável elegância que é este o nosso devir, ou melhor, que é este o devir da
existência: a produção de uma imagem alegórica. É este o jogo infindável de inumeráveis
partidas ao qual o homem é lançado a todo o instante e no qual o artista tenta operar sua
poética. A história poderá se quiser, tentar catalogar tais imagens. Embora nunca sejam
totais. A imagem total é uma impossibilidade à qual a história deve se habituar. A história
sobrevive então, em conformidade com o fato de que ela nunca mais será capaz de
registrar em sua escrita (também infindável), a quantidade incalculável de imagens que
se produz.
Nosso momento é o entre. E nossa respiração acontece aí. Milton Machado sabe
disso. Sabe de nosso ingênuo desejo de catalogação, de mapeamento, de investigação
antropológica e etnográfica, mas sabe também do nosso exercício (como artistas) de
produção de uma quantidade também incalculável de imagens que consigam operar
numa gica diferente da reprodutibilidade turística. Imagens por sobre imagens com
algum ad infinitum de profundidade.
2.7. Algumas observações alegóricas...
Super-homem, personagem a reativar
157
Vale lembrar que este trabalho é constituído por uma disposição de mapotecas. De qualquer maneira,
optamos por considerar a imagem provocada ao invés de sua “funcionalidade” nata.
114
O trabalho de Pierre Joseph parece apontar para grande parte do que viemos
propondo até então. Este artista francês tornou-se mundialmente conhecido através de
uma série de propostas performáticas onde ele propunha a presença de uma
personagem bastante conhecida de histórias infantis dentro de um espaço de exposição.
A mais famosa delas, a branca de neve, tornou-se um símbolo do trabalho do artista e
rapidamente foi vendida a um colecionador. Terminou sendo vendida... (?!)
Na verdade o artista vendeu a proposta desta performance (bem como algumas
outras) e dentro do próprio contrato exigia que qualquer performance que fosse realizada
com a personagem, mesmo que em circunstâncias diferentes e inusitadas, deveria ser
informada ao autor através do envio de registro (materiais fotográficos ou escritos).
Enfim....O trabalho através de sua leveza instaurava uma sensação poética
repleta de humor, onde a produção de uma imagem específica (dentro do processo de
produção de outras imagens e de outras obras) terminava provocando um certo
estranhamento e chamando a atenção do público bem como da crítica. O curioso desta
série de trabalhos é que ele produzia uma imagem exótica que através de sua presença
inabalável terminava alterando todo o seu entorno. Um discurso que se sobrepunha aos
outros, revirando a situação e inclusive dando-se ao direito de perguntar sobre sua
função ali como objeto de arte.
Este outro trabalho da série, Super-homem, personagem a reativar (1992) traz
grande parte das mesmas questões anteriores, contudo aqui surgem outras referências.
O super-homem está sentado numa caixa de Brillo Box (Andy Warhol), acima de sua
cabeça Grandes núcleos (Hélio Oiticica), diante dele um alvo (Jasper Johns), além de
duas latas de amassadas de Coca-Cola. O tal super-homem está numa pose que remete
obviamente ao Pensador de Rodin e observa a possibilidade do alvo consideravelmente
distante. Parece que este super-homem tem consciência daquilo de Danto apregoa: a
obra-prima é hoje apenas a lembrança de uma estética ultrapassada....
158
Vale lembrar
que todas as obras citadas são falsas. São reproduções de trabalhos de artistas que
Pierre Joseph optou por fazer.
Não podemos esquecer que Rodin foi um dos paradigmas do Romantismo e que
com ele houve uma passagem bem precisa e uma alteração radical no discurso estrutural
da escultura. Rodin início a um processo de fragmentação do espaço, do sujeito e da
carga sentimental que ele carrega. Na Porta do Inferno, a figura do pensador surge como
um elemento central que tem por objetivo de “centralizar e aplainar o espaço das portas,
sujeitando todas as figuras à sua presença abstrata.”
159
158
DANTO, Arthur C. A idéia de obra-prima na arte contemporânea. In Arte & Ensaios. Vol. 10
159
KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. p. 19
115
Em termos de narrativa, esta passagem do Neoclássico para o Romântico, traz
também a fragmentação gradativa da narrativa clássica. “...A porta do inferno resiste a
todas as tentativas de ser compreendida como uma narrativa coerente.”
160
. Rodin
simboliza de certa maneira a fragmentação e a eloqüência. A figura do pensador, a
tentativa utópica de centralização desta efervescência.
O “pensador” de Pierre Joseph tem o olhar distante, reflexivo, pensa sobre si
mesmo e sobre sua condição dentro do museu ou da galeria de arte. Ele mesmo percebe
sua sina de tornar-se objeto e exatamente por isto, está sentado em cima de uma cópia
das caixas de Andy Warhol. Como dissemos, a Brillo Box foi um trabalho seminal para
o questionamento da natureza do processo de construção da obra e ali, parece servir de
suporte a uma gama de pensamentos e reflexões que cabem ao super-homem ou ao
que resta dele. Possivelmente ele já bebeu duas latas de refrigerante para poder ajudar
nesta empreitada nada fácil de descobrir uma maneira interessante de atingir o tal alvo
(uma referência clara a Jasper Johns). Mas qual seria seu alvo? Qual seria o desejo ou a
culpa do super-homem?
O super-homem é um emblema de parte daquilo que Zaratustra apregoa.
Zaratustra é o solitário que do alto de sua montanha faz uma análise sobre os homens e
sobre seus ressentimentos. É um exilado que sabe da dor e do prazer de sua condição.
Que conhece o mundo e que consegue observá-lo de longe. O super-homem de
Nietzsche observa o engano inerente dos ditos homens superiores e fala de outra coisa:
transmutar os valores, converter a negação em afirmação.
161
Zaratustra “de fato, não
queria peixes, mas sim lançar sua isca no mar dos homens’, para fisgar um deles. Não
qualquer um. Mas um em especial: o super-homem (übermensch), a quem esperava
fazer “subir à minha altura”. Acreditava que numa data qualquer, ainda que longínqua, o
super-homem seria atraído pela mensagem do profeta-pescador Zaratustra.”
162
O super-
homem de Nietzsche seguia sempre seus instintos, pois se situava além de toda a moral,
ou melhor, acima do bem e do mal, sempre sendo o senhor de seu microcosmo pessoal.
O quê Pierre Joseph propõe é a reativação do Super-homem, apesar da
paisagem que o envolve. A diferença entre os dois (entre o homem e o super-homem)
não é de ordem natural, mas se fundamentalmente nos objetivos que alcançam.
163
Nietzsche defende que o homem superior tem um poder ativo e outro poder reativo. As
forças reativas encontraram algo que as conduz à vitória: a possibilidade de negar, a
vontade de nada que seja capaz de produzir um devir-reativo universal. As forças ativas
representam a afirmação de um desejo impossível, das supostas certezas do homem que
160
Idem.
161
Idem. p. 255.
162
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/artigos/zaratustra.htm
163
Idem. p. 253
116
terminam por encaminhá-lo para o erro, para os desenganos da vida. Na realidade, as
forças ativas funcionam como utopia, como ação de confirmação de uma fatalidade
inevitável. E Deleuze confirma esta proposta: “Ora nunca a reação se tornará ação sem
esta conversão mais profunda: é necessário em primeiro lugar que a negação se torne
poder de afirmar.”
164
O desafio que se coloca é a possibilidade de tornar a negação uma afirmação
justa para o seu devir-homem que consiga abrandar sua debilidade nata. E como já
havíamos colocado, na arte o processo é bastante parecido. Descobrir maneiras de
provocar uma conversão profunda, onde a negação (da paisagem) não se mantenha
como negação simplesmente, mas que descubra seu poder afirmativo diante de seu
exercício e de seu próprio devir. “O elemento de afirmação é o que falta ao homem,
mesmo e sobretudo ao homem inferior.”
165
E como reativar este super-homem? Como provocar uma imagem que
desemboque numa força de negação que seja lúcida para que ele se afirme como desejo
utópico mesmo que sua tentativa esteja fadada ao erro? Como provocar esta ousadia de
experiência? O trabalho de Pierre Joseph faz isto de maneira precisa: produz um trabalho
onde a imagem, embora absolutamente sedutora, estabelece uma questão que fica
reverberando no espaço, no tempo e no observador. Seu super-homem tem um ar
decrépito e talvez seu desejo seja o de se reconciliar consigo mesmo, com a arte e com o
hiato que se estabeleceu desde muito entre blico e obra. Mesmo que precise negar
algo. Mesmo que precise negar a si mesmo como obra e/ou como imagem. Para isto ele
utiliza uma série de referências históricas para provocar uma certa simulação de
historicidade bem-humorada e absolutamente otimista diante dos obstáculos que nos
chegam como legado quase intransponível. Como criar uma obra em espaço de imagem
em hipertexto que consiga negar sua origem para poder afirmar um processo poético?
Daniela Mattos, artista carioca com a qual tenho o prazer de compartilhar algumas
performances, também desenvolve uma série de trabalhos que trazem esta consciência e
este devir. Trabalhos que sabem desta responsabilidade e que provocam pela negação,
uma afirmação poética que por sua força plástica, atingem o público de maneira
contundente.
164
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia p. 255
165
Idem.
117
1b - Da série diálogos
Neste trabalho (2003), a artista repleta de flores de crochê
166
(preparadas
anteriormente por ela mesma), se desloca pelo espaço de exposição. Em algum
momento específico, pára e entrega uma das flores a um observador qualquer que cruza
o seu caminho. Assim que ele tem tal flor nas mãos, a artista vai embora e a flor
lentamente se desfaz até refazer-se original, em fio. O observador-participante não
consegue mais segurar o fio tal e deixa com que a artista se vá. A performance termina
quando todas as flores que estavam presas em seu vestido se desfazem.
algo que prematuramente se nega: a poética, a experiência, o outro. E
curiosamente ao negar, termina se afirmando. Revelando-se. Exemplificando o que se
deseja como obra, como troca, como possibilidade de tempo e espaços vividos. O quê
resta de fato é a experiência indiciária, o vestígio daquilo que de maneira efêmera se
desfaz. A obra vira um gás, um perfume que exala e que se mantém durante algumas
horas na cabeça no espectador.
Não há nenhuma melancolia, apenas uma consciência do inevitável: a entropia do
mundo. A artista se coloca como parte integrante deste processo entrópico, mas em
momento algum desfia dores e angústias. Está lá e provoca uma sensação volátil, mas
jamais faz desta velocidade de encontro, um obstáculo. A ação provocada pelo
desfazimento da flor se sobrepõe imediatamente à imagem do oferecimento da flor. São
movimentos antitéticos que neste pulso de construção e desconstrução, provocam uma
imagem alegórica onde a poesia se instaura.
166
Neste caso vale lembrar o que diz Gilles Deleuze : “O crochê (...) traça um espaço aberto em todas as
direções, prolongável em todos os sentidos, ainda que este espaço tenha um centro.” In DELEUZE, Gilles.
Mil Platôs. Vol V. p. 181
118
2.8. Alegoria, ou o movimento de passagem. Pequenos comentários
ou cenas do próximo capítulo.
Falamos tanto de alegoria que convém pararmos um pouco para examiná-la. A
alegoria é antes de mais nada, uma maneira de sobreposição de mensagens com o
intuito de modificar àquela que serviu de base, gerando um fluxo novo de idéias. Ou
melhor dizendo, a alegoria é uma expressão “eternamente anexada a uma outra
expressão”
167
A alegoria tem uma capacidade fundamental que pode interessar bastante
atualmente: “a capacidade para resgatar do esquecimento histórico aquilo que ameaça
desaparecer.”
168
. E ainda: a alegoria é tanto uma atitude quanto uma técnica, uma
percepção quanto um procedimento. (...) a alegoria ocorre sempre que um texto é
dublado por outro.”
169
Se um dos assuntos que permeou esta dissertação era a possibilidade de diluição
de uma certa escrita historiográfica, a alegoria pode aparecer como uma alternativa bem
humorada para um problema que até então surgia como obstáculo a ser transporto. Se
um dos “textos” que ingenuamente se coloca é o do fim da arte, talvez estamos chegando
num momento onde nada mais justo do que escrevermos outro “texto” para dublá-lo (ou
dribá-lo). Escrever um novo texto-imagem onde consigamos produzir, através da
manipulação de significados, situações que sejam poéticas o suficiente para
ultrapassarmos a pasteurização que se espraia na paisagem na era da reprodutibilidade
turística.
“O imaginário alegórico não é um imaginário apropriado; o alegorista não
inventa imagens, mas as confisca. Ele reivindica o significado culturalmente,
coloca-a como sua intérprete. E em suas mãos, a imagem torna-se outra
coisa.”
170
Exatamente por se constituir como momentos, como instantes, como fragmentos,
a alegoria é atraída pela ruína, pelo índice, pelo vestígio. Ela se faz de ruínas e a partir da
reunião de tais ruínas, ela constrói um hipertexto para a disseminação de suas
mensagens. Ou seja, ela consegue extrair do seu hábito inerente de “colecionar cacos”,
167
OWENS ; Craig. O impulso alegórico : sobre uma teoria do pós-modernismo. In. Arte & Ensaios. Vol 11.
p. 121.
168
Idem. p. 113.
169
Idem. p. 114.
170
Idem. p. 114
119
um movimento potente que ainda assim, consegue manter alguma inteireza. E é esta
integridade enviesada que a alegoria desenvolve que pode auxiliar num processo de
ampliação de uma historicidade biográfica do indivíduo.
“Na alegoria, o observador é confrontado com a fácies hippocratica da história
como uma paisagem primordial, petrificada. Tudo sobre a história que, desde o
início, tem sido inoportuno, pesaroso, fracassado é expresso na face, ou melhor,
em uma cabeça de morte. E, embora tal coisa falte toda a liberdade da
expressão ‘simbólica’, toda proporção clássica, toda a humanidade, essa é,
contudo, a forma na qual a submissão do homem à natureza é mais óbvia e,
significativamente, amplia não apenas a questão enigmática da natureza
enquanto tal, mas também a historicidade biográfica do indivíduo. Este é o
coração do modo alegórico de ver...”
171
Vale lembrar também que a alegoria pode ser visual ou verbal, mas seu cerne
operacional é essencialmente de uma forma escrita. “Em um golpe a profunda visão
da alegoria transforma coisas e trabalhos num excitante texto.”
172
E mais:
“...a linguagem escrita e falada confrontam-se em tensa polaridade... A divisão
entre a linguagem escrita significante e a linguagem falada intoxicante abre uma
clareira sólida na massa sólida do significante verbal e força o olhar às
profundezas da linguagem.”
173
Se um dos problemas mais remotos que deu origem a esta crise que serve de
fatasmática para grande parte de nossa reflexão estabelecida até aqui, é a que se
estabelece entre significado e significante ao longo da História da Arte e que será
responsável inclusive pelo gradativo distanciamento do público que aos poucos torna-se
incapaz de “ler o texto” inserido nas obras, talvez seja absolutamente interessante
retomarmos esta questão alegórica para provocarmos a produção de um texto outro que
consiga reestabeler algum elo perdido na comunicação. Talvez seja bom não
esquecermos do que nos diz Rainer Rochlitz: “a morte é a sanção de tudo o que o
narrador pode contar”.
174
171
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Citado por OWENS; Craig. O impulso
alegórico : sobre uma teoria do pós-modernismo. In. Arte & Ensaios. Vol 11. p. 115
172
Idem. p. 122.
173
Idem. p. 123.
174
ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte. p. 260.
120
“A introdução da alegoria responde, de forma infinitamente mais significativa, a
esta crise da arte que, por volta de 1852, a teoria da arte pela arte estava
destinada a enfrentar.”
175
Por último, é necessário que esclareçamos uma certa diferença que se coloca
entre a alegoria barroca e a alegoria moderna. Num sentido mais estrito, Rainer Rochlitz
defende que o quê separa de maneira mais contundente as duas é exatamente a
lembrança, que na modernidade ela é absolutamente presente e termina servindo
como um remédio à impossibilidade de vivência da experiência absoluta e autêntica, que
termina sendo colecionada como “uma fotografia de lembrança”
176
“A lembrança é o complemento da experiência vivida. Ela cristaliza a crescente
alienação do homem que faz o inventário de seu passado como de um morto. A
alegoria deixou para o século XIX o mundo exterior para estabelecer-se no
mundo interior. A relíquia provém do cadáver, a lembrança, da experiência
morta que por um eufemismo, chama-se experiência vivida.”
177
Se na modernidade estávamos diante desta interioridade da alegoria como parte
do processo, talvez seja o momento de descobrirmos uma possibilidade de exteriorizá-la,
de fazermos o movimento inverso e conseqüentemente pô-la em prática como parte da
marcha artístico. Se o “cadáver” compunha-se de lembranças e produzia algumas
“relíquias” talvez seja um bom momento de encher a realidade do mundo com tais
lembranças alegóricas para vermos se o tal cadáver pelo menos, ainda sabe dançar. E
se de fato, ele é a única coisa que restou.
175
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Citado por ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte
p. 274
176
ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte. p. 275.
177
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Citado por ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte
p. 275
121
2.9. Não, eu não tenho uma frase de efeito para terminar o programa.
Jardim
Jardim (detalhe)
A instalação de Cezar Bartholomeu é um destes momentos onde a prática
artística tangencia a teoria de maneira deliciosa. O nome do trabalho é Jardim, data de
2000 e trata-se de três elementos dispostos no escuro. Um globo de espelhos
atravessado por uma lâmpada fluorescente acesa, um lightbox com uma foto panorâmica
do setor de desembarque do aeroporto internacional do Rio de Janeiro e um livro com a
terceira crítica de Kant aberto numa gina que discorre sobre o sublime. A página do
livro está marcada por um papel fotográfico virgem.
A luz normalmente queimaria o papel, deixando marcas, lastros. Contudo tal
marcação é desfeita exatamente quando o observador se propõe o ato de leitura (sobre o
sublime). A imagem tênue (que se deseja fotográfica) se coloca como reflexo, como
índice da situação proposta pelo artista no espaço, tornando-se incapturável. A
122
curiosidade diante da leitura do texto faz com que nada se estabeleça como registro
sobre a virgindade do papel. A possibilidade de lembrança é aniquilada pelo afã de
captura de algum fio-teórico-condutor que a princípio residiria no livro e naquilo que ele
mesmo, livro, produz como imagem.
O lightbox exibe uma imagem de um aeroporto, de um não-lugar, de um lugar em
trânsito que se situa no entre espaços. Pura imagem que evidencia o movimento
constante de chegada e de inevitável partida. Está vazio. Desértico. É por si lança
uma situação-enigma, pois aparece exposto longe de sua funcionalidade, quase
esqueleticamente estético. É uma metáfora do recomeço. De procura de um espaço que
nos caiba, que seja capaz de abarcar e abrandar a presença do outro. Mesmo
estrangeiro. Mesmo desconhecido.
Outro trabalho que reflete o momento em que nos encontramos e que consegue
ainda lançar uma poética diante de uma articulação entre espaço e tempo desérticos,
onde a força da imagem ausente se coloca como emblema, é o realizado por Ann
Verônica Jansens na Bienal de Lyon de 2005. Trata-se de uma grande sala repleta de
fumaça verde, onde a arquitetura do espaço se dilui, onde nada é capaz de marcar o
tempo gasto ali e onde o público, perdido em sua condição de público e na própria
condição da diluição da obra, busca de qualquer forma achar uma saída.
O que resta é a força pictórica da fumaça verde, é a imaterialidade de sua
presença e é também a violência desta imaterialidade que lança o público num instante
silencioso e solitário, onde o único objetivo é o de se desvencilhar da situação proposta.
O público invade a obra e a obra por sua vez, num movimento rápido, invade o público e
o toma de assalto, retirando-o de sua realidade e de sua rotina de observador.
Lee 121!
123
As outras pessoas que por ventura surgem no meio do caminho (a quantidade de
espectadores é limitada), aparecem apenas como índice, como miragem, como presença
longínqua que inevitavelmente desaparecerá em breve. Aos poucos, e num certo
desespero emergencial, procura-se uma tática para o encontro da saída, que a
situação aos poucos revela-se sufocante. Pode-se rastejar no chão, tatear a parede ou
simplesmente observar o movimento que se desenha quando alguém abre alguma porta
em algum lugar não imaginado. A tarefa de fato não é nada fácil, mas o prazer de
descobrir uma paisagem outra (que no fundo no fundo, é a mesma de antigamente) é
algo inenarrável....
124
BÔNUS TRACK
Dona do castelo
(Jards Macalé e Waly Salomão)
Amor perfeito
Amor quase perfeito
Amor de perdição paixão que cobre
Todo o meu pobre peito pela vida afora
Vou-me embora embromadora
Você pra mim agora
Passa como jogadora
Sem graça nem surpresa
Diga que perdi a cabeça
Se eu me levantar da mesa e partir
Antes do final do jogo
Louco seria prosseguir essa partida
Peça falsa que se enraíza
E faz negro todo o meu desejo pela vida afora
Vou-me embora embromadora
E quando eu saltar de banda
E quando eu saltar de lado
125
Vou desabar seu castelo de cartas marcadas
E tramas variadas
Sim
Seu castelo de baralho vai se desmanchar
Desmantelado
Decifrado sobre o borralho da sarjeta
Chegou o inverno
126
Uma das perguntas que poderia surgir é exatamente a maneira pela qual cheguei
nestas questões todas que tentei explicitar anteriormente. Na verdade, as questões pelas
quais passei e pelas quais tentei alguma profundidade, são fundamentais para meu
processo plástico e sempre foram parte integrante do processo reflexivo que
acompanhou a prática artística.
Em termos gerais, tentei avaliar a presença da monumentalidade hoje e a
possibilidade da redescoberta do homem como monumento, a questão da relação e da
experiência considerando o público como turista e a obra como cidade, a força que a
imagem é capaz de produzir dentro de um sistema de significância, a pulsão de morte e o
movimento entrópico, a investigação de uma aura que se dissipa no ar como um gás e
que já se situa distante da aura vista por W. Benjamin como sinônimo de religiosidade, a
equiparação do valor de culto ao valor de exposição, a presença do ritual, o desejo de
eternidade, a pasteurização da paisagem, a ação infinita do artista diante da necessidade
de produção de mais imagens poéticas, a questão da fé e de Deus, a encruzilhada
teórica que se estabeleceu como fim da arte, a possibilidade de entender este fim apenas
como o fim de uma partida e não o fim de um jogo, a problemática inerente à figura do
artista hoje, a existência como a produção de uma imagem alegórica, a própria alegoria
como possibilidade de reinvenção, e a arte como pulsão de movimento infinito.
Na realidade minha trajetória começou com a escrita poética e aos poucos fui
desenvolvendo um desejo de investigação das possibilidades de deslocamento desta
textualidade para a visualidade. Esta foi uma questão que surgiu nos primórdios da minha
prática artística e que, aliada à prática teatral, tentava encontrar meios que não fossem
exclusivamente o da cena para a presentificação textual de uma força plástica. Aos
poucos fui me encaminhando para a performance e para o happening.
Este momento específico de transição para as artes plásticas se deu com um
trabalho chamado Vem escrever mais poesia ou Vem experimentar mais performance,
onde durante dois meses num casarão na Lapa (Centro do Rio de Janeiro) eu e mais três
amigos
178
(que então formavam o grupo Crioulos de Criação) tentávamos descobrir
possibilidades e alternativas para a instauração de uma situação plástica a partir de
textos poéticos de minha autoria.
Nesta época realizávamos com alguma freqüência, alguns debates com críticos
de arte, professores de teatro e de arte contemporânea, de modo que pudéssemos
encontrar uma saída para aquela teatralidade que se mostrava tão presente. Esta
iniciativa só foi possível pelo auxílio inestimável do Professor José da Costa (que durante
178
Amélia Sampaio, Leila Lessa e Tato Teixeira.
127
minha Graduação na UERJ foi também meu diretor teatral durante dois anos e meio
dentro de um programa para bolsistas-atores), que organizava tais encontros e que
defendia a necessidade do debate incansável. Por passaram: Nanci de Freitas, lvia
Heller, Luiz Camillo Osório, Ricardo Basbaum, Ivan Sugahara, Cláudio da Costa e Ângela
Materno.
Vem experimentar mais performance - 2002
A questão que surgia ali era a da presença da performance e de uma certa
incompatibilidade entre seu funcionamento e o funcionamento teatral. Numa
apresentação específica, Luiz Camillo Osório comparou o evento (em sua efervescência
e em sua impossibilidade de apreensão de um entendimento clássico) ao Cabaret
Voltaire (momento fundamental do dadaísmo). Aos poucos pude detectar que além da
escrita alegórica e exagerada, havia uma presença enorme do fragmento dentro do meu
processo poético.
Ainda em 2002, após ter enviado uma proposta para o Centro Cultural da UERJ,
pude realizar a primeira Instalativa, onde a questão do fragmento se colocava de maneira
mais contundente e onde, exatamente pela quantidade absurda destes fragmentos, eu
não tinha mais controle das imagens poéticas que eram provocadas. A princípio, a
Instalativa tratava-se de uma pesquisa teórica e prática sobre o espaço e sua dissolução
ou mais especificamente, sua impossibilidade de estabelecimento dentro da era pós-
moderna. O espaço como um campo ampliado de experimentação poética que,
exatamente por ‘existir dentro de um eixo de realidade obtuso, não consegue
estabelecer-se por sua efemeridade. Terminando ele mesmo, o espaço, sendo sua
questão específica e retórica e circular....Vício de “pós-teridade”.
Objetivamente, a Instalativa tornou-se uma instalação ativa (ou seja, ela mesma
como a reunião de uma série de forças concordantes e discordantes eternamente em
128
processo) que é ativada por performances, que por sua vez modificam e reinventam o
que havia de visualidade / poética / semiótica até então, construída pelo artista, no
estágio anterior. É uma instalação entremeada por performances pensadas previamente.
É uma trama hipertextual de reflexões estéticas sobre a possibilidade da obra-de-arte
hoje. Tais reflexões fazem parte de uma pulsão narrativa que as incorpora citações,
referências, pequenas estórias e imantam-nas como signos plásticos dentro de um novo
eixo de articulação. A Instalativa é uma tentativa poética de sobrevivência diante da
paisagem.
. Ela, como ente necessário à própria reinvenção e desvelamento de uma Arte
outra, buscando os momentos e movimentos mais favoráveis para a permeabilidade de
seus conceitos, a decomposição de seus nódulos formais, a consciência horizontal da
narrativa e a simulação benemérita do espaço infinito que há na passagem, ou mesmo no
diálogo, entre o microcosmo e o macrocosmo, entre a superfície e a profundidade da
poética relacional (sujeito-sujeito, sujeito-objeto, objeto-sujeito, sujeito-produto, objeto-
produto, objeto-aprodutivo). Mesmo que para isto, tenha que colher os gomos-cacos da
sua pseudo-reconstrução-desconstruída. Mesmo que para isto, tenha que investigar seu
transbordamento; sua alegoria inerente e seu desejo de libertação.
Instalativa 1.0 - 2002
129
Como também estava preocupado com o quê viria a ser exatamente esta
passagem, este entre-possível-alegórico entre todos os nossos nós, entre nós, entre eu e
você, entre público e obra, entre cidade e turista, desenvolvi um “quase-objeto” chamado
Bi-cheet’o, que utilizava em performances e nas próprias Instalativas. E que aos poucos
também foi se tornando um emblema do próprio trabalho e que terminou virando quase
uma assinatura.
Bi-cheet'o paisagem (2002/2003)
Bi-cheet'o pocket version (2003)
O Bi-cheet’o sempre foi para mim o emblema da distância entre dois pontos, ou
área ou volume entre limites determinados. Lugar mais ou menos delimitado cuja área
pode conter alguma coisa como eu e você num lugar ao sol de vento brando. Extensão
indefinida que você um dia pensou que poderia nos separar. Período ou intervalo de
130
tempo em que nos encontraremos, que a vida é feita de festas sem barulho como a
nossa. Vagar sem angústia, demora sem pressa, delonga sem sede. Meio que lembra o
espaço material, mas que exatamente por não entendê-lo de fato, apenas surge como
uma intimidade elegante de conhecer o que houve de mim em ti e o que de ti em mim
ressurgiu. Matéria e memória. Música.
Trajetória descrita por um ponto em movimento de idas em voltas sem que isto
implique em alguma expectativa de progressão. Velocidade que balança as janelas
dentro da noite onde nós acordamos. Acordes. Ainda há tempo entre. Entre. E
continue mais lindo do que nunca com suas camisas para fora das calças. Intervalo.
Férias para as palavras. Texto retirado sempre do dicionário das culturas não tão
populares como poderiam ser, para que não precisássemos de tantas montanhas e de
não ter que desprezar justamente aquilo que amávamos. Material branco usado na
separação das palavras que preciosamente não me disseste nunca. Intermezzo.
Distância impossível de medida dos rituais fúnebres e das despedidas repletas de
recomeços. Distância possível de medida dentro dos rituais científicos. Material branco
de luz sem otimismo barato utilizado na separação de uma linha ou das letras de uma
palavra ou das palavras do texto ou dos textos dos dicionários ou dos dicionários dos
livros ou dos livros das bibliotecas ou das bibliotecas do outros cômodos da casa que
arrumei para aguardá-lo enquanto pintava mais um quadro e compunha mais uma
sinfonia de amor demais. Espaço aberto (cosmos). Espaço de volume infinito sem
nenhum limite no contexto cosmológico. Processo sem clausura. Saudade.
Em 2003, depois de pensar sobre o processo desenvolvido até então percebi que
uma das coisas que mais me interessava de fato quando produzia a Instalativa, ou outras
ações performáticas (que foram acontecendo ao longo do ano, individualmente ou em
grupo
179
) era a imagem, o vestígio que conseguia capturar deste processo. A imagem
surgiu como uma vontade absoluta de captura de um instante poético incapturável. E
quais possibilidades esta imagem me oferecia? E quais imagens eu perseguia como
artista? E quais imagens torna-se-iam potentes o suficiente para que não se diluíssem ou
se confudissem com outras imagens? Aos poucos, o trabalho foi se direcionando para
questões como esta.
Em 2004, entrei para o Mestrado e como projeto de pesquisa propus a realização
de uma nova Instalativa no Galpão, onde tentaria reunir grande parte das questões que
havia trabalhado até então. A imagem surgia como um elemento potente, como uma
alegoria que terminava redirecionando todo o processo e repensando o fluxo do trabalho.
A questão aos poucos se clarificava, estava diante de um mergulho sobre a imagem que
179
Participei ativamente de alguns coletivos como Rés do Chão, Unicacena, Artes visuais e políticas e
Tvzona.
131
produziria a partir de uma ação e de uma instalação. Aliada ao texto que sempre me foi
imprescindível.
Instalativa 1.6 (detalhe) - 2004/2005
Instalativa 1.6 (detalhe) - 2004/2005
132
Instalativa 1.6 (vista frontal) - 2004/2005
A moldura de alumínio também surgia como um elemento que problematizava a
questão do enquadramento (seja na pintura, seja na foto) e terminava jogando com o
espaço para a construção de uma ambiência que se revelava e se ocultava em sua
fragmentação. A moldura sempre me serviu (em sua simplicidade) para mostrar ou pelo
menos tentar mostrar, tudo aquilo que fica de fora, tudo aquilo que sobra ao
enquadramento, tudo aquilo que é alegórico e não menos importante.
A noiva (2004) - ensaio fotográfico
133
A noiva foi um ensaio fotográfico que realizei numa comunidade que fica no fundo
do campus da UFRJ, na Ilha do Governador. A fotografia se instaurava de uma vez por
todas, como parte fundamental da criação proposta e era utilizada como instrumento de
detecção, de investigação, de profundidade. Por outro lado, seu desejo é o de produção
de uma imagem sedutora, uma imagem-enigma, uma questão em suspensão que não
deixe de carregar o prazer como elemento estrutural.
Lembro que esta série fotográfica foi realizada após um comentário do Professor
Carlos Zílio, que calmamente me disse: Olha, você pensa que trabalhar com molduras é
fácil? Moldura é o emblema da história da arte. Fiquei com aquilo na cabeça e decidi sair
numa pesquisa de campo, em busca de momentos possíveis da história deixados por aí.
A foto tinha um objetivo artístico específico, bastante preciso e o quê reverberava para
além dele era a presença da paisagem em suas delícias, amarguras e em seus
desencantos.
20m de vento – 2005
Em 20m de vento, também realizado com o grupo Crioulos de Criação, a
preocupação fotográfica se tornava absolutamente evidente. O trabalho, realizado nos
Jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, era um instante performático (onde
134
dois artistas colocavam 20m de tecido na paisagem e eu fotografava) que desejávamos
capturar.
O trabalho teve sua existência pela Internet. Sua divulgação e veiculação se
deram desta maneira. Não havia nenhuma possibilidade de experimentação ou de
visitação. Era apenas um perfume, uma bruma que se estabelecia no espaço apenas
para que fosse capturada antes de desfazer-se. Sua força residia apenas na imagem que
provocava.
Dentro do mestrado, participando do Projeto Interface
180
, realizei um trabalho onde
consegui reunir grande parte das minhas reflexões e inclui ainda a questão da
hospitalidade, da relação entre eu e você e entre todos os nossos nós. A proposta de
trabalho chamava-se La Bóia! (numa referência ao conhecido movimento antropofágico
brasileiro) e a ação (Instalativa pour Iemanjá).
Agora estava realmente diante de estrangeiros, de turistas. O local escolhido foi a
praia, que termina sempre por exibir parte destas distâncias, expostas nos corpos e no
comportamento adotado. Mas o que faria? Lembrei então de um momento (ainda me
preparando para fazer novamente as provas para o mestrado) onde ao assistir as aulas
como ouvinte resolvi montar um trabalho dentro da disciplina do Professor Milton
Machado. O tema era a ponte. Este não-lugar que serve de transição, de ligação entre
dois pólos. Resolvi aproveitar a ocasião (já que não tenho atelier) e montar um trabalho
enorme que misturava espelhos, fotos de candomblé, textos espalhados pelo chão e fios
que ligavam a parte externa do Galpão à parte interna. Depois de avaliar os alunos, ele
me olhou da maneira mais forte possível (que lhe é peculiar) e refletindo sobre os riscos
da tal hospitalidade e do exagero com que cumpri tal tarefa me disse: “Eu abro a porta da
minha casa, te hospedo e você quer me assassinar?”
Fiquei com aquilo na cabeça durante muito tempo. depois, muito depois é que
fui compreender a potência daquilo que me dizia e o respeito enorme que ali
compactuávamos um com o outro. Se o tema era a ponte, que eu me estabelecesse
apenas nela como possibilidade plástica, que tentasse entender seus limites e que
cautelosamente me direcionasse até onde ela termina, pois nem sempre a ultrapassagem
(seja ela qual for) é indolor.
Retomei tais reflexões nesta Instalativa pour Iemanjá, e aprofundei a questão da
imagem, da relação com o outro e potencializei o ritual. Lavei os pés dos franceses,
dentro de uma pequena situação plástica composta por molduras e depois fiz todo um
trabalho sensorial. O resultado foi indescritível e por mais que eu tente, as palavras aqui
são inoperantes.
180
Projeto de intercâmbio entre o mestrado em Linguagens Visuais e a Reseau d’écoles d’art (rede de escolas
de arte no sul da França).
135
La Bóia! Instalativa pour Iemanjá (2004)
Por último, dentro da residência proposta pela Reseau d’écoles d’art e realizada
dentro da Escola Superior de Belas Artes de Montpellier, pude realizar (em virtude das
condições técnicas oferecidas), grandes tiragens de situações que eu ia propondo ao
longo da paisagem e que capturava imediatamente através do aparelho.
Neste caso, consegui uma certa economia que até então jamais tinha aparecido
no meu trabalho e terminei me aproximando de uma imagem que conseguia abarcar a
carga de significado que eu desejava. Dentre muitas, destaco uma por sua
imediaticidade, por sua força de presença e pela questão que levanta e que deixo junto
aos senhores como revereberação poética e como certeza que o trabalho não acaba por
aqui.
Nós (2006) - fotografia, tiragem numérica
136
I N T E R M E Z Z O 2
O U
D E S C A N S O D E S C O M P R O M I S S A D O
P A R A L E I T O R E S E M G E R A L
O trabalho preocupa-se com as inserções no circuito e o diálogo performático de algumas
canções da música popular brasileira. É apenas uma reorganização de fatos e
acontecimentos para que se redescubra o sentido/sentimento de algumas comemorações de
fim-de-ano, sem nada alegórico ou de caráter comercial. Estes exemplares não são
vendidos. São apenas dados de presente de Natal para que o povo compre o seu peru. Não
aqui a presença avassaladora da indústria, nem a ausência da consciência de que tudo
que se relaciona, termina provocando a formação de um sistema onde múltiplas emoções
são exploradas e atravessadas, por vezes de maneira orientada, na figura do hostess ou do
curador, por outras, pela libertação de suas preocupações. Vale lembrar também que os
fonogramas e o cd não servem claramente para nada, como os últimos lançamentos do
mercado em promoção, como as radionovelas mexicanas de brilhantina e do silêncio
escancarrado que nos tornou mais sozinho em termos melódicos sem melancolia. O
trabalho insere-se como celebração. Como um foco preciso que por sua pouca
especificidade, busca o meio antiPOP de deixar-se ser nada e brega. Aqui não há elegância.
É a realidade fotográfica que libertou-se do fonograma. O som é apenas uma navalha sem
lado A e sem lado B. Libere o seu objeto de falso e use o folder dentro de uma moldura.
Instale o folhetim no seu estabelecimento de vitrine, para que combine com a cor dos sofás
e dos bichos. Ele também como ente (da mesma forma que o vizinho galã que mora no Cd
ao lado), como ser-vivo, existe sem que desejemos, existe pelo quê consegue florescer. É
apenas isto num dia de sol, de uma noite calma em águas sem calafrios. E se perguntarem
os cirurgiões, porque tanto romantismo velho, respondam-lhe que é para que se consolide o
próximo, para que pereça em luz, e para que saibamos quem é o Beltrano. Eu te amo,
Beltrano. Eu te amo, mesmo com seus maléficos quinze minutos de fama, até reapareceres
na tv e eu te desconhecer. A música não te interessa mais. Não ouça. Ensaie-me o texto em
performance sem o teatro como azeite e com o teatro como azeite. O presente é aquilo que
reverbera. É este objeto imanente que se estabelece como proposta de tempo. É aquilo pelo
qual dobram-se os sinos e os cacos. É ele mesmo o registro que não receberá numeração
nem assinatura de artista, pois se todos nós o somos, o quê estamos fazendo de nós
mesmos? O quê semeado em garantias, comprarei parcelado para dar aos filhos e sobrinhos
que nunca os tive? Eu te amo Beltrano. É isto. É este acorde que rezo os dias e os oceanos
e os espaços que chegaram e me disseram que o tempo ainda sabia brincar de elástico
alguns milímetros atrás dentro da guitarra do eco e da força. Do exercício interminável de
ouvir o bolero boleto de nosso primeiro olhar, sem desejos de cetim e repletos de batom.
De narrativa sórdida que desconhece as coreografias de ala, mas que prefere ser o quê ela
é. De ser o encontro inestimável entre obra e obra, para que o público voyeurize-se de
ouvido, pois nada acabou, e o artista sambe agramático, neológico, hidrossolidário, volátil.
Para que o artista reencontre suas companhias sem campainhas que se repetem aos baldes
de gelo que sempre viveram em silêncio considerável. Em caldo de outro sem deixar de
ser-te até o fim do pente que nunca se e. O xadrez de meu acompanhamento em edição.
137
Recortado o infinito que entre o homem e a máscara. Entre o ritmo e o velocímetro.
Entre o tempo e a história insana que pára para refrescar-se no próximo item que deixou de
ser um código de barras e amanheceu em vox. Vox mesmo. Vox de palavras que encho as
piscinas acampadas em meu quarto minimal, para que tu mergulhes e descubra a questão
de referência. Para que construas a raiz respeitosa da garça que ri porque tudo é incrível.
Aqui o clichê, a repetição, o outro, o verso dito por olhos que nem me são primos
sinfônicos, sem fim genealógicos, sem fins governamentais, sem fins mortais ao objeto e
ao sujeito. Sem segredos de gargantas roucas e tempestades de sal. Eu escrevo o quê em
mim é o mais pulso. Escrevo aquilo que em mim é menos calculista e menos
crítico.Transcrevo para ser mais humano e atravessar os ósculos para que entenda as
delícias de ter você em minhas rendas. E deixe de entender muita coisa. E entenda coisa
alguma. Para que sejas tu, a personagem mais linda de todas as poéticas contemporâneas
que ainda falam de amor que cresce com calma. Que vive calmo. É por isso que eu me
pergunto até quando sobrevivo a ti. Silêncio de inspiração transpirada, da respiração
descompassada e cheio ainda de medos. Medos ainda de termos no espaço o encontro todo
de laço e seja o que for. Medos de reconhecer-me no desconhecido de teu passado
histórico e teus maiores desejos. Tuas vontades de caminho e outro teu que te assusta em
interrogação.E eu quero. Te quero. Estupidamente quero que me chames para que sem
egoísmo. E repleto de quadros como este, difíceis de terminar e sem presença. De
reticências distraídas em suas etc... Etc perdoadas em suas telas em branco. O manifesto do
brancomo que lavo em ti. Neste espaço, inteiro. Repetente este. Espaço ampliado sem
limite. Sem limite entre eu e tu dentro da micro-câmera, em que te vejo, sem que te
compreendas. Sem que continues a ser um mísero mexicano. Não é preciso que
compreendas absolutamente nada. É o espaço que sorri porque desaba em sua permanência
de sentimentum. É este o saltondulado que gerou o infinito em sua convexidade. O infinito
como reverso do círculo que preenchia a história da dona baratinha e te colocava para
dormir em berço de novidade. Em terço de perseverança no momento imediato em que
surge antes de liquefeito. O exato e o próspero. O pão e o vinho. O preciso em que me
debrucei em vossos olhos, sem assalto e com approach. Torpedo de lculos e provas de
como atravesso teu eixo geométrico, para saltar a generosidade obtusa de tuas línguas.
Onde crio e onde cresço. Em tua falta de reconhecimento em meu desejo estrangeiro de
generalidades. De também ser teu para que seja mim. De olhos rápidos ao redor e ao ardor
de existir. De solidificar e de renascer em pauta nova de olhares e orvalhos. O outro objeto.
Abjeto. Neurobjeto que não rouba minha subjetividade. Aquele que sussura em teu ouvido
e passa a língua em teu pescoço. Que não precisa de minha existência para que exista como
fato, embora caiba em mim, em meus esmaltes de lava acesa. O vento de encantar-se e
vestir-se em outro sem deixar de ser si mesmo. A roupa nova. O espelho que cansou de me
mirar e me errar. Sendo o outro em sua relíquia e sua palatização. Eu ecomponho o grama.
O grama de plástico que assoprarei no espaço em sua incandescência para que atinja a
história. Não mais morta. Não mais sofrida. Eu o preciso como intempérie humana de
bonança pura, de retormar expectativas e ultrapossibilidades. Eu te amo, diz o cálice. Em
solilóquio me diz que é o que há. Vira música. Tange-lhes o espírito. ON de tomada
instalativa entre a parede e o azulejo. A quina em seu sumiço. É ali que a faca afia seu
sorriso e não deseja mal. É ali que a faca extrapola o perigo de sua vulnerabilidade, pois
transforma-se em luz. Sem distância em tempos incontáveis, por sua repetição inteira e por
sua cadência milimésima. O poema novo. É este que desgruda da página e coloca as
primeiras ondas em teu peito. Em teu samba. Em sem seu se acaso você chegasse no meu
bosque em flor. Para que viva-se. Para exploda-se em seu pé-direito de jazz. Para que
durmas comigo em minha ausência de fórmulas e entremeios. Para que sejas nós dois.
Apenas. Que os outros sejam nós dois se assim o merecerem. Entre meu dente e teu
138
labirinto de sol que escuta quando deseja. De ão. De culpa que não há. Sem prédios e
com o na terra para que eu consiga dize-lo. Eu te amo Beltrano. X X X X X X X X X
X X X X X X X X X X X
XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
XXXXXXXXXX-rated. RJ. Este é mais um projeto
CATALOGUEDEPOCHEPOUETRANGERS. Ouça alto. Varra a casa. Arrume uma
justificativa para repertório tão anticlássico. Feliz 200ZIL. Diga não à pirataria. Até aqui
nos ajudou o Senhor.
139
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Textos gentilmente enviados por email
DEFERT, Jacques. L’imaginaire du patrimone.
MACHADO, Milton. Este corpo é todo poros.
143
Pequena observação
Ao longo da escrita desta dissertação, propus a algumas pessoas que estabelecêssemos
uma conversa via email para vir em anexo. Infelizmente este desejo não se tornou
possível em virtude da correria inevitável e da necessidade de entrega desta. De
qualquer forma aproveito para agradecer às pessoas e para reiterar que tal proposta será
retomada muito em breve.
Agradeço então à:
Glória Ferreira, Carlos Zílio, Milton Machado, Roberto Conduru, Vera Beatriz, Cildo
Meireles, Luiz Camillo Osório, Cecília Cotrim, Alexandre Vogler, Simone Michelin, Cristina
Pape, Cristina Salgado, João Modé, Agnaldo Farias, Ricardo Basbaum, Daniela Mattos,
Cezar Bartholomeu, Lívia Flores, Paulo Sérgio Duarte e Artur Barrio.
144
Pequena observação 2
Não, eu não li Como se faz uma tese de Umberto Eco.
Este livro é absolutamente estrangeiro à paisagem brasileira.
Talvez o Umberto Eco devesse visitar as Universidades cariocas....
145
Pequena observação 3
Reza a lenda que todas as letras de músicas expostas aqui foram colhidas em momentos
muito específicos, onde a poesia e a teoria viviam tórridos momentos de amor e de ódio.
146
LETREIRO DE FIM DE FILME
Leonor
(Itamar Assumpção)
Devagar com esse andor Leonor
Casamento é muito caro
Sou compositor, cantor, também sou autor
Falo mais de flor que dor, Leonor
Mas não sou Roberto Carlos
Não tenho carro de boi, Leonor
Nem outro tipo de carro
Meu cachê é um horror, Leonor
Não sobra nem pro cigarro
Não tenho nem gravador, Leonor
Meu São Benedito é de barro
Meu menu é feijão com arroz
Que divido com mais dois, Leonor
Quando não falta trabalho
Viver somente de amor, Leonor
É tão lindo quanto precário
Tem que morar de favor, Leonor
Lá no bairro do Calvário
O que eu tinha de valor, Leonor
Dois gatos, três agasalhos
Cachecol de lã gibis do Tarzan
Gibis de terror, cobertor
Quatro jogos de baralho
Um macacão furta-cor, Leonor
Uma colcha de retalhos
O que não está no penhor, Leonor
Foi pra casa do Carvalho
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Livros Grátis
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