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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
As vivências de imigrantes e de seus descendentes:
análise fenomenológica das cartas
Márcio Luiz Fernandes
Orientadora: Profa. Dra. Marina Massini
RIBEIRÃO PRETO - SP
2007
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
As vivências de imigrantes e de seus descendentes:
análise fenomenológica das cartas
Márcio Luiz Fernandes
Orientadora: Profa. Dra. Marina Massini
Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação da
Universidade de São Paulo, Departamento de
Psicologia e Educação da FFCLRP-USP, para
obtenção do título de Doutor em Psicologia.
RIBEIRÃO PRETO - SP
2007
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Ficha Catalográfica
Fernandes, Márcio Luiz.
As vivências de imigrantes e de seus descendentes: análise
fenomenológica das cartas / Márcio Luiz Fernandes; orientadora Marina
Massimi – Ribeirão Pretro, 2007.
200p. il. 30cm.
Tese (Doutorado – Programa de Pós-graduação em Psicologia. Área
de Concentração: Psicologia) Faculdade de Filosofia Ciências e Letras –
USP – Ribeirão Preto.
1. Imigração. 2. Análise Fenomenológica. 3. Vivências Psicológicas
FOLHA DE APROVAÇÃO
Marcio Luiz Fernandes
As vivências de imigrantes e de seus descendentes: análise fenomenológica das cartas/
Tese apresentada à Faculdade de Psicologia da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor.
Área de Concentração: Psicologia
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ________________________________________________________________
Instituição:_________________________Assinatura:____________________________
Prof. Dr. ________________________________________________________________
Instituição:_________________________Assinatura:____________________________
Prof. Dr. ________________________________________________________________
Instituição:_________________________Assinatura:____________________________
Prof. Dr. ________________________________________________________________
Instituição:_________________________Assinatura:____________________________
Prof. Dr. ________________________________________________________________
Instituição:_________________________Assinatura:____________________________
A minha mãe, com amor e gratidão, dedico
este trabalho.
A Profa. Dra. Marina Massimi, pela atenção e
apoio durante o processo de orientação.
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da USP de Ribeirão Preto no seu
Departamento de Psicologia e Educação pela
acolhida.
À Congregação dos Missionários Claretianos
pelo apoio em todos estes anos.
Ao Padre Noé Tamai e Antonio Perin pelo
incentivo as pesquisas sobre as raízes vênetas.
A Profa. Nancy Marinelli e Rafael Archangelo
pela atenção e amizade.
A comunidade da Paróquia Nossa Senhora da
Assunção de Cascalho.
À todos os amigos que me acompanharam.
RESUMO
O êxodo das massas de agricultores provenientes da Itália, sobretudo do Vêneto, e
instalados no final do século XIX no interior do Estado de São Paulo, e as diversas etapas de
tal processo na formação da identidade ítalo-brasileira constitui o cenário de nossa pesquisa.
Tal fenômeno exige indagar sobre o significado do “deixar a pátria” de origem e revisitar os
lugares constitutivos da cultura camponesa dos imigrantes. Nosso objetivo é o estudo das
cartas dos imigrantes vênetos e dos seus descendentes, visando colher os fragmentos de elos
que perpassam as gerações e veiculam os valores de pertença cultural, no que se refere a
determinado modo de vida familiar, ao processo de integração e de assimilação dos costumes
brasileiros e à atual tentativa de resgate da identidade ítalo-brasileira. O método de análise
utilizado é inspirado na fenomenologia de Edith Stein e busca apreender, a partir das
estruturas de vivências pessoais e comunitárias, as experiências humanas de
enraizamento/desenraizamento transmitidas pelos envolvidos na relação epistolar. O método
fenomenológico possibilita reconhecer os pontos essenciais das narrativas em dois pólos
importantes, seja na perspectiva interna das vivências dos sujeitos, bem como na dimensão
inter-subjetiva. Analisamos, desse modo, as possíveis conexões entre duas distintas
realidades: uma referente às correspondências trocadas entre os imigrantes vênetos do Brasil e
Itália, e a outra referente às atuais correspondências, sobretudo dos habitantes da ex-colônia
de Cascalho no município de Cordeirópolis-SP, que tem permitido aos descendentes a
reconstrução da história familiar e constituído em estímulo para a preservação das raízes
culturais e do valor das genealogias. Além das cartas, a pesquisa se baseia na leitura da
bibliografia referente à imigração italiana no Brasil. Os resultados obtidos revelam a força
comunicativa e evocativa do epistolário daquela comunidade de agricultores; mostram os
aspectos dinâmicos dos relacionamentos e a busca das novas gerações pelas raízes; e as
estruturas das vivências dos indivíduos e da comunidade.
SUMMARY
The farmers’ mass exodus, coming from Italy, mainly from Veneto, and settled, by the
end of the 19
th
century, in the countryside of São Paulo (SP) state, and the several stages of
such process in the formation of the Italy-Brazilian identity, constitutes the scenery of this
research. Such phenomenon requires ask about the meaning of “leaving the origin patria” and
revisiting the places that constitute the country culture of the immigrants. Our aim is the study
of Veneto Immigrants’ and their descendants’ letters, focusing in collecting pieces of links
that are transmitted through generations and spread cultural values, regarding a way of
familiar living, the integration process and the assimilation process to the Brazilian customs to
the nowadays tentative to rescue the Italy-Brazilian identity. The analyses method used is
inspired in the phenomenology of Edith Stein and tries to seize, from common and individual
living structures, the human experiences of enrooting/leaving transmitted by the ones
involved in the epistolary relation. The phenomenological method lets us recognize the
essential points of the speeches in to important poles, be it in the internal perspective of the
peoples’ livings, be it in the inner subjective dimension. We analyzed, this way, the possible
connections between two distinct realities: one, referring to the exchanged mail between the
Veneto immigrants from Brazil and Italy, and the other referring to the nowadays mail,
specially from the inhabitants of Cascalho ex-colony in the city of Cordeirópolis-SP, that has
allowed the descendents the reconstruction of their family history and construction an stimuli
to the cultural root’s and genealogy values’ preservation. Besides the letters, the research is
based on the reading of the bibliography that refers to Italian immigration in Brazil. The
obtained results reveal the communicative and evocative strength of the epistolary of that
farmers’ community; show the dynamic aspects of the relationship and the new generation’s
search to their root; and the living structures of the individuals and community.
RÉSUMÉ
L’exode des agriculteurs originaires d’Italie , notamment ceux de la région de la Vénétie qui
se sont installés, à la fin du XIX siècle, à l’intérieur de l’État de São Paulo et toutes les étapes
du processus pour la formation de l’identité italo-brésilienne constituent le cadre de notre
recherche .Tel phénomène nous fait poser des questions sur ce qui signifie “quitter la patrie”
d’origine et revisiter les endroits constitutifs de la culture paysanne des immigrés. Nous avons
comme but l’étude des lettres des immigrés venus de la Vénétie et leurs descendants afin de
rassembler les fragments des liens entre les générations responsables par la diffusion des
valeurs culturelles en ce qui concerne la vie familiale, le processus d’intégration et
d’assimilation des moeurs brésiliennes et l’actuel essaie de récupérer l’identité italo-
brésilienne .La méthode d’analyse utilisée est basée sur la phénoménologie d’Edith Stein et
cherche à retenir , à partir des structures du vécu personnel et communautaire , les expériences
humaines d’enraciner/déraciner transmises par ceux qui sont dans les relations épistolaires.La
méthode phénoménologique nous donne la possibilité de reconnaître les principaux points des
récits en deux pôles importants , soit les perspectives internes du vécu des sujets, soit par la
dimension inter-subjetive. Ainsi, nous avons analysé les connexions possibles entre deux
réalités différentes : l’une qui concerne la correspondance échangée parmi les immigrés du
Brésil et de l’Italie , et l’autre qui concerne le courrier actuel , surtout celui des habitants de la
ex-colonie de Cascalho , municipalité de Cordeirópolis-SP qui permet aux descendants de
reconstruire l’histoire de leurs familles et les encourager à préserver les racines culturelles et
la valeur de la généalogie. Outre les lettres , cette recherche a eu comme base la lecture de la
bibliographie sur l’immigration italienne au Brésil. Les résultats obtenus nous montrent la
force communicative et évocatrice de la correspondance de la communauté des agriculteurs ,
les aspects dynamiques des rapports et la quête menée par les générations vers leurs racines ,
ainsi que les structures du vécu des individus et de la communauté .
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................. 19
CAPÍTULO I - A BUSCA DAS RAÍZES .................................................47
1.1 CARTAS ENVIADAS DESDE A TERRA DE ORIGEM............... 51
1.1.1 A Entropatia.................................................................................... 56
1.1.2 A Vivência da Esperança
.................................................................. 59
1.1.3 A Motivação
..................................................................................... 61
1.1.4 Os Sentimentos ................................................................................ 63
1.1.5 As Formas de Conhecimento............................................................66
1.2 AS CARTAS DESTINADAS DO BRASIL À ITÁLIA....................68
1.2.1 Os Sentimentos ................................................................................ 70
1.2.2 A Vivência da Recordação................................................................ 72
1.2.3 As Vivências na Comunicação Discursiva..........................................74
1.3 AS CARTAS DOS DESCENDENTES...............................................77
1.3.1 Encontro com as Raízes por parte dos Descendentes...........................77
1.3.1.1 Os Atos Volitivos...................................................................... 80
1.3.1.2 A Vida Afetiva.........................................................................107
1.3.1.3 O Sentimento de Gratidão
........................................................110
CAPITULO II - REATANDO LAÇOS....................................................115
2.1 ACONTECIMENTOS: DA ITÁLIA PARA O BRASIL..............
116
2.1.1 As Cartas e os Reencontros..............................................................116
2.1.2 Os Atos do Conhecimento Recíproco ...............................................117
2.1.3 Os Atos da Reflexão.........................................................................122
2.2 ENTRE BRASIL E ITÁLIA.............................................................125
2.2.1 A Motivação: Preservar a Continuidade dos Laços............................125
2.2.2 As Cartas como Preservação dos Elos...............................................127
2.3 DO BRASIL PARA A ITÁLIA........................................................ 130
2.3.1 A Consciência do Pertencer............................................................. 130
2.3.2 A Entropatia.................................................................................. 137
2.3.3 A Abertura ao Outro ...................................................................... 140
2.3.4 A Festa do Encontro....................................................................... 142
2.3.5 Pessoa e Comunidade...................................................................... 144
2.3.6 A Criação de um Contexto de Relacionamentos................................ 147
CAPÍTULO III - A FORMAÇÃO DE UM POVO
............................... 151
3.1 AUTO-CONFIGURAÇÃO .............................................................. 152
3.1.1 As Cartas da Família Hubner......................................................... 156
3.1.2 A Carta da Família Rosolem........................................................... 162
3.1.2.1 A Viagem e Chegada ao Porto de Santos.................................. 164
3.1.2.2 A Hospedaria dos Imigrantes.................................................. 165
3.1.2.3 O Destino: Fazenda Santa Tereza........................................... 167
3.1.3 A Carta dos Residentes do Núcleo................................................... 169
3.2 A AUTO-CONSERVAÇÃO............................................................... 171
3.2.1 Saber Cultivar a Terra................................................................... 172
3.2.2 A Expressão Lingüística................................................................. 178
3.2.3 Manter a Memória do Outro
.......................................................... 180
3.3 A AUTO–EXPRESSÃO .................................................................... 183
3.3.1 A Expressão Religiosa..................................................................... 183
3.3.2 As Celebrações e os Relatos
............................................................. 186
CONCLUSÃO
............................................................................................. 191
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
........................................................193
19
INTRODUÇÃO
Justificativa/contexto
O fenômeno da imigração em massa de famílias para o Brasil, provenientes
principalmente do Vêneto, situado no nordeste italiano (cf. mapa 1), constitui o horizonte de
nossa pesquisa. No vintênio 1880-1900 – período em que no Brasil a política imigratória irá
privilegiar a etnia italiana – calcula-se que cerca de um milhão e oitocentas pessoas tenham
partido dali para outras partes do mundo. Como apontam os dados estatísticos, o Vêneto foi a
região entre todas as regiões italianas cujo processo migratório foi, sem dúvida, de
extraordinária relevância, não só do ponto de vista da dimensão quantitativa mas em termos
de reflexos políticos, sociais, religiosos e de costumes. Nos finais do século XIX, tal região,
que atualmente é metade ocupada por imigrantes provenientes da África e da Europa oriental,
alimentou um consistente fluxo migratório endereçado, de modo particular, para a América
Latina. Em contraste com a emigração temporária realizada por indivíduos em países da
Europa central, o êxodo para a América comportou o deslocamento de inteiros grupos
familiares. O deixar a terra natal e empreender a viagem transoceânica para estes últimos, no
entanto, teria significado definitivo. Em algumas províncias do Vêneto, como a de Treviso, a
intensa mobilidade humana chegava a representar 30 % da população (LAZZARINI, 2004). O
fenômeno vivido neste contexto deixou marcas profundas na memória coletiva não só entre os
parentes e amigos dos que migravam, mas também em toda a comunidade que permanecia.
No Vêneto de hoje, é muito difícil não encontrar pessoas que nos relatem as experiências de
membros da própria família que tenham vivido os dissabores ou a fortuna de uma emigração
temporária ou permanente.
20
Fonte: BOTTEON, 2005.
Figura 1: Mapa da Itália e do Vêneto.
Para entrar um pouco mais nas circunstâncias múltiplas em que esse processo foi
realizado, seria preciso lembrar, ao menos, o que era o Vêneto no período sucessivo à
dominação austríaca (1815-1866). Era uma região pobre, depressa e incapaz de romper com
as condições de miséria e atraso. Um conjunto convergente de fatores que vão desde aqueles
tocantes à crise agrária mundial pela qual passava a Europa com baixa produtividade e queda
dos preços àqueles relativos aos fatores internos, como o permanente estado de crise nas
21
plantações prejudicadas pelas condições climáticas, pelas pestes nos campos e, sobretudo,
pela falta de capitais para os pequenos empreendedores agrícolas configurava um cenário
desfavorável para milhares de famílias de camponeses. Outras decorrências devem ser
destacadas e dizem respeito às altas taxas de analfabetismo, às péssimas condições higiênico-
sanitárias, às epidemias, à depressão econômica e, nos últimos vinte anos do século XIX, a
uma explosão demográfica assustadora. Como salienta Lazzarini (1981, p. 75), a motivação
real e imediata para que os camponeses vênetos tomassem a decisão de emigrar – seja
temporária ou permanentemente como era o caso dos destinos para a América Latina – deve
ser individuada nas intoleráveis condições de vida destas populações rurais. Este conjunto de
elementos de caráter interno e externo, dentro de uma conjuntura internacional de oferta de
viagens facilitadas pelas Companhias de Navegação e incentivadas por empresas privadas
promotoras da imigração e por políticas governamentais nos países de destino – como é o
caso do Brasil em que tal fluxo assume importância decisiva no sustento do cultivo do café
em São Paulo e do povoamento do sul do Brasil desde a segunda metade do século XIX aos
primeiros decênios do Século XX – são todos fatores que contribui para o sucesso de tal
deslocamento humano.
Os cantos e as narrativas populares, por sua vez, testemunham que, no período desta
vistosa concentração do fluxo migratório, a América passa a ser identificada com o Brasil –
terra de abundância e riquezas – e nação que representa o mito da terra prometida para a
coletividade decidida pela empresa transoceânica (FRANZINA 1998, p 258). A literatura da
imigração – aqui entendida como o complexo de escrituras produzidas pelos emigrantes – faz-
nos perceber o impacto suscitado pela nova realidade americana nos âmbitos populares
vênetos, sobretudo, quando se considera as condições desfavoráveis vividas por todos os
membros da família. As terras para além do oceano simbolizavam para os que abandonavam a
pátria a esperança de poderem, por meio do trabalho e das reservas, se transformar em
22
proprietários. Este era o sonho mais recorrente alimentado pelos rurais e camponeses do
Vêneto. Um fator determinante, por outra parte, eram os contados entre os imigrantes e os que
potencialmente tinham condições de sê-lo, por meio de cartas, endereçadas pessoalmente e,
posteriormente, publicadas em jornais locais como uma das tantas formas de propaganda
emigracionista. Contudo, em muitas ocasiões foi esse veículo determinante para o expatrio
revelando como o fenômeno adquiriu, muito além do que as circunstâncias políticas
envolvidas pudessem controlar, uma perspectiva na qual a dimensão privada e solidária
combina-se com aquela pública e contratual ligadas ao complexo esquema e ao
funcionamento do trafico emigratório (FRANZINA, 1988, p. 60). A correspondência,
portanto, pertence também ela à literatura da imigração, sendo composta pelos contadinos e
já, desde a sua origem, mostra a sua ambivalência, inaugurando uma forma de escritura com
as marcas de oralidade e de pertença regional.
Já o processo de inserção do imigrante italiano no território brasileiro, depois do ano
de 1886, irá caracterizar-se por dois fatos novos. Em primeiro lugar, as massas camponesas
que antes se dirigiam às Províncias do Sul do país passam a deslocar-se para a Província de
São Paulo e, em segundo lugar, tal força de trabalho vem subsidiada tanto pelas entidades
governamentais quanto por fazendeiros proprietários de terra que têm necessidade de mão de
obra para o cultivo dos terrenos de café pelo interior paulista.
No Brasil, essa imigração foi significativa, pois veio em substituição ao escravismo –
abolido em 1988 – por decreto imperial (ALVIM, 1985). Também a sociedade brasileira sofre
transformações profundas nas três últimas décadas do século XIX e, por conseguinte, procura
favorecer o desenvolvimento de um sistema de acolhida dos imigrantes (AZZI, 1987). Já, na
Itália, a preocupação com a questão dos patrícios nas terras americanas vai crescendo à
medida em que vão chegando notícias e informações a respeito da situação, das condições e
das necessidades experimentadas pelos que emigraram e, por isso, foram fundadas diversas
23
entidades governamentais e de cunho religioso visando a assistir os imigrantes. Uma dessas
instituições foi a obra do bispo João Batista Scalabrini (1839-1905), cuja ação principal foi a
de promover o envio de missionários para acompanhar os imigrantes. A cooperação deles era
no sentido de favorecer o grupo de imigrantes, principalmente aqueles espalhados pelas
fazendas e colônias, nas suas necessidades por meio de ações concretas que pudessem
reproduzir no ambiente de destino as realidades que os imigrantes haviam deixado na terra
natal. Já em 1887, atuavam no Brasil em colônias no Rio Grande do Sul e em São Paulo no
sentido de sustentar a vida destes grupos de vênetos a partir da assistência religiosa pois eram
fortemente ligados à figura dos sacerdotes e às tradições católicas. Em 1904, o próprio
Scalabrini visitou as diversas colônias em que atuavam os seus missionários enviados ao
Brasil e reafirmou diante dos seus compatriotas, ter a sensação de sentir-se em casa própria,
como se estivesse em uma paróquia da Itália. De fato, nas diferentes colônias, os missionários
trataram de imediato de reunir a população para a edificação de templos, escolas e espaços
recreativos.
Scalabrini (1979, p. 45) no seu livro A imigração italiana na América, descreve as
experiências cotidianas dos imigrantes a partir dos relatos de correspondências enviadas por
seus missionários. Entre as dificuldades, Scalabrini destaca a questão das falsas promessas, a
falta de assistência religiosa, a fome, a morte das crianças e, por fim, elenca os aspectos
ligados à dinâmica psicológica do estrangeiro: a solidão, a desilusão e uma espécie de doença
mortal, essencial característica daquele que se sente desenraizado: a nostalgia.
Extenuados pelos trabalhos, pelo clima e pelos insetos, sucumbem sem
consolo sobre a terra fecundada por seus suores, às margens das verdes
florestas que souberam trabalhar não para si nem pelos filhos, acometidos
por esta doença fatal e delicada que é a saudade! Naquele momento, sonham
talvez, com a pátria que não soube dar-lhes nem mesmo o pão, e invocam
inutilmente o ministro da religião sagrada de seus pais para transformar as
trevas da agonia com as esperanças imortais da fé (SCALABRINI, 1979, p.
45).
24
O que é sobremaneira revelador nessa descrição de Scalabrini é que toda ela se realiza
na perspectiva de ressaltar o apego às raízes e às dimensões da cultura regional. Ele indica
alguns elementos que verdadeiramente contam para o camponês, isto é, o pensamento sobre a
religião dos antepassados, o vilarejo, o lugar de nascimento, enfim, estas realidades ligadas à
pátria, típicas do pensar do estrangeiro.
Nesse aspecto, é preciso ressaltar o esforço despendido, principalmente na área da
sociologia, por autores que se empenharam na tarefa de pensar a figura do estrangeiro e a sua
relação com a pátria. Os trabalhos de Shultz (1979), já um clássico, examinam o estrangeiro,
evidenciando a tentativa de adaptar-se ao esquema e modelo cultural já estabelecido, e
evidenciam uma preocupação com as dinâmicas sociais e psicológicas que dominam a cena
entre os sujeitos migrantes na relação com a comunidade de destino. No âmbito da obra de
Simmel (1989), autor com o qual vai dialogar Stein, a perspectiva do estrangeiro vem
estudada com ênfase nos pólos opostos e complementares em relação dialética das formas
sociais: estabilidade/mobilidade; distância/proximidade; inclusão/exclusão, a fim de poder
entender a dimensão da alteridade. Há ainda o estudo de Park (1952), o qual trabalha a
questão a partir dos binômios: migração/mudança social; migração/estrutura da pessoa. A
integração, segundo ele, obedece a um certo desenvolvimento, com dinâmica complexa e
difusa no tempo, porque exige assimilação por parte da comunidade imigrante que
compreenderá a assunção de estilos de vida, de percepção, de sentimentos e de valores da
comunidade de destinação, diferentes dos da comunidade de origem. Nesta linha, já Massimi
e al. (1997) apontavam, na perspectiva das dinâmicas psicológicas, o quanto a vivência do
estrangeiro nesse processo de integração tem etapas distintas: momentos que vão desde a
aplicação do modelo cultural de origem para falar do novo ambiente habitado, passando pela
percepção da inadequação deste com relação às exigências trazidas, até que,
progressivamente, haja a internalização dos valores, exigindo uma verdadeira modificação de
25
si mesmo, chegando a resultar na inserção genuína ou, representar como apontam os estudos
de Mellina (1987, 1992), que o estrangeiro, distante da própria terra, possa sentir dificuldades
que se traduzem em graves distúrbios mentais.
Os processos de emigração e imigração são temas de toda história humana. Contudo,
hoje, o foco de interpretação que vem sendo sugerido consiste em uma abordagem em que a
migração não seja um tema considerado apenas na sua bipolaridade, mas como processo
social que liga País de origem e o de destino, um processo transnacional, em que as relações
que o migrante estabelece são múltiplas e capazes de atravessar as fronteiras (GOZZINI,
2005). Por isso, no horizonte dos estudos sobre a imigração, a relação epistolar ajuda-nos a
perceber os aspectos subjetivos desta condição de estrangeiros para os primeiros que vieram
para o Brasil. Além disso, podemos perceber os diferentes sentidos que a compreensão desse
passado tem para os descendentes. Em muitos casos a descoberta da história familiar passa a
ser fonte de renascimento para os indivíduos na relação com a comunidade. Esse aspecto fica
mais evidente ainda se pensamos no contexto contemporâneo em que os indivíduos sofrem
profundas rupturas biográficas. Por isso, na convergência de cartas antigas e novas pode-se
ver como indivíduos e grupos promovem o enraizamento por meio da multiplicação dos
contatos e do contínuo intercâmbio proporcionado pelas cartas.
São dois os loci do qual partimos para poder realizar a pesquisa e que têm relação com
as fontes de nosso trabalho. No Brasil, o lugar de referência é a comunidade de Cascalho, e na
Itália, sobretudo no Vêneto, o arquivo da paróquia de ‘San Martino’, pois, fundamentalmente,
são os lugares que estão no centro de nossa pesquisa.
O núcleo colonial de Cascalho: ponto de partida
Em terras do fazendeiro Domingos José de Nogueira Jaguaribe foi criado pelo governo
da Província de São Paulo, mediante a lei de 29 de março de 1884, o núcleo colonial de
26
Cascalho (cf. mapa do núcleo fig. 2). Cascalho era o nome de uma antiga fazenda herdada
pelo Dr. Jaguaribe na linha de sucessão do Sr. José Ferraz de Campos, denominado Barão de
Cascalho. Nas crônicas contidas no livro do tombo da paróquia encontramos a seguinte
descrição:
Dividida a fazenda em lotes, foi testada a colonização com colonos de
diversas nacionalidades, alemães, suíços e dinamarqueses; os quais, depois
de algum tempo de permanência no lugar, logo se retiraram não conseguindo
adaptar-se às condições da nova colônia. Vieram por último os italianos que
lograram fixar-se no solo (...) o solo typo da decantada terra roxa,
considerada a melhor para variar culturas, principalmente a do café (Livro
do Tombo, p. 4).
Fonte: BOTTEON, 2005.
Figura 2: Núcleo colonial de Cascalho.
O governo da Província, junto com a aristocracia rural de São Paulo, começava a
interessar-se pela experiência de subsidiar a imigração européia a fim de fazer frente às
necessidades de mão de obra para as culturas de cana de açúcar passaram ao plantio de café.
A lei acima citada não só deu as regras precisas para este procedimento, como sancionou e
27
autorizou a criação destes núcleos. A população de imigrantes destinada a estes núcleos ia
paulatinamente tornando-se proprietários das terras. O núcleo de Cascalho, na verdade,
aparece neste contexto como quase o único núcleo, junto com o da cidade de Lorena, que
efetivamente funcionou. Conforme afirma o historiador local Tamiazo (2004, p. 17), trata-se
da expressão de uma exceção. Dos cinco núcleos autorizados a serem implantados só foram
efetivamente realizados o de Canas – no município de Lorena – e o de Cascalho, que, na
época, pertencia ao município de Rio Claro. Ao lado deste núcleo, encontravam-se
importantes fazendas como a de Ibicaba – propriedade do Senador Vergueiro – Santa Tereza e
a pequena povoação iniciada, provavelmente em 1885, cuja área era de uma antiga fazenda
que veio a chamar-se oficialmente Capela de Santo Antônio de Cordeiro. A área foi
extremamente beneficiada pelas facilidades que começavam a surgir, desde a implantação do
trecho da ferrovia pela Companhia paulista inaugurando-se o trecho Campinas-Rio Claro em
1876, o que permitiu a circulação de mercadorias e o trânsito de passageiros a partir da
estação de Cordeiro, território onde atualmente encontra-se o município de Cordeirópolis-SP.
O núcleo colonial de Cascalho foi pensado pelo governo da Província e administrado
pela Inspetoria de Terras, colonização e imigração de São Paulo a fim de que os estrangeiros,
como proprietários de seus pequenos lotes e no trabalho do cultivo do solo, pudessem
abastecer o mercado com os produtos. Dessa forma, iniciava-se a experiência da colocação da
mão de obra nas terras paulistas em que os trabalhadores imigrantes podiam contar com o
apoio financeiro e técnico com o objetivo de viabilizar a circulação da produção. O modelo
migratório predominante foi o da família composta de pais e filhos segundo o tipo de
estratégia e regulamentos próprios da legislação provincial. A composição mais freqüente era
a do casal com 1 a 4 filhos e, portanto, jovens casais, e aos quais, por vezes, estavam
associados diversos tipos de parentes e agregados. De outra parte, surgia a partir daí um outro
tipo de possibilidade de trabalho para os membros das famílias uma vez que sendo bastante
28
numerosa poderia sustentar-se com os trabalhos esporádicos ou permanentes nas outras
fazendas ao redor do núcleo.
Atualmente a localidade Cascalho é um distrito rural do município de
Cordeirópolis/SP, a cerca de 160 Km da Capital, e abriga 100 famílias das quais 90% são
descendentes dos imigrantes. A atividade principal continua sendo a agricultura e, ao lado
disso, temos o crescimento das atividades de pequenas empresas domésticas e de médias
indústrias nos setores de cerâmica, madeira, alimentos e destilados. No centro do bairro,
encontra-se a Igreja, com sua praça e coreto no qual se desenvolve intensa atividade religiosa,
social e cultural. Desde a sua origem – ligada às tradições católicas dos imigrantes
camponeses vênetos – a comunidade cristã vai ser a base de sustento e servirá de apoio à
própria consolidação e à aculturação da população à sociedade brasileira.
A partir dos anos 90, época marcada pelas celebrações centenárias da imigração, os
representantes da comunidade passaram a incentivar as pessoas, as famílias e os diferentes
grupos a fim de que pudessem narrar as experiências vividas no tempo. O resultado foi o de
lograr uma inter-relação na comunidade. De fato, a experiência perdura até o presente e abriu
a perspectiva da comunidade para a necessidade da busca constante das raízes. Os jubileus e
anos centenários são a possibilidade de novos inícios, são gestos re-criadores do cotidiano. As
comemorações deram início a um movimento de todas as famílias da comunidade no sentido
de revalorizar as tradições e recuperar a memória dos acontecimentos passados e, assim,
proporcionar a interação entre as pessoas que permaneceram e as famílias que, ao longo dos
anos, tiveram de deixar o bairro.
A escolha do tema do trabalho vincula-se ao fato de que o pesquisador estava
envolvido diretamente nas preocupações da referida comunidade em sua busca em resgatar as
razões de sua história. Um primeiro estímulo refere-se às repercussões suscitadas pela
elaboração da dissertação de mestrado (FERNANDES, 2001). O estudo foi feito a partir das
29
memórias da população de Cascalho a respeito do padre Luis Stefanello (1878-1964) – líder
espiritual da comunidade – e ao qual a população sempre devotou grande estima sendo
considerado ‘um padre poderoso’ por suas bênçãos e exorcismos. O referido sacerdote atuou
por mais de 40 anos na localidade. Podemos dizer que uma espécie de filó da memória foi
sendo criada ao longo dos anos em torno da sua figura. Na verdade, por meio dele tornava-se
possível um elo com a história das diversas famílias e, conseqüentemente, eram inevitáveis as
narrativas sobre a identidade dos pais e avós que emigraram da Itália. Outro estímulo veio
com a possibilidade de realizar os estudos na Itália e com o crescente contato com a região do
Vêneto. No início para conhecer pessoalmente a terra dos meus antepassados e,
posteriormente, para investigar as cartas de ítalo-brasileiros que chegavam solicitando aos
párocos que lhes enviassem notícias a respeito dos antepassados e sobre a Itália.
O arquivo paroquial de ‘San Martino’ (Itália)
No Arquivo da paróquia de ‘San Martino’ – em Santa Lucia di Piave – na Itália foi que
tivemos acesso a pastas que continham as cartas dos descendentes e um farto número de
cartas com os pedidos dos indivíduos e famílias endereçadas às paróquias do Vêneto a fim de
descobrir suas origens. Este arquivo foi interessante porque ali encontramos reunidos grande
parte de material com os pedidos das famílias de ítalo-brasileiros que estavam em busca de
atar os laços de conhecimento e amizade com as famílias italianas. A potencialidade dele está
no fato de que foi ali conservado um bom número de correspondências tanto de imigrantes
quanto dos seus descendentes. É de grande valor pela variedade de preocupações e desejos
expressos nas missivas.
30
Objeto
O tema do corpus epistolar produzido pela imigração por parte dos camponeses
italianos que no final do século XIX participaram ativamente da configuração da sociedade
brasileira constitui, sem dúvida, um objeto de estudo riquíssimo para pesquisadores das
diversas áreas das ciências humanas. Desse ponto de vista, este tipo de documento mantém a
característica tanto de fontes como de objeto para os referidos estudos. Assim, por outro lado,
falar das cartas como fontes supõe-se, como mostrou Lemos (2004, 18), que elas nos
“interessam pelo que contêm de indicativo sobre a pessoa, na posição de remetente ou de
destinatário, e suas circunstâncias. Em relação a elas, há pessoas que desfrutam de perspectiva
privilegiada, em decorrência de atributos particulares, por estarem no lugar certo na hora
certa”. Ou ainda, como nos indica Massimi (2002, p. 14) nos seus estudos sobre as cartas dos
jovens jesuítas, será preciso aos que têm o olhar sobre este tipo de fonte considerar, em
primeiro lugar, os critérios de seleção, isto é, se se quiser pensar em termos de trabalho e
análise deste tipo de material, ter-se-á que privilegiar as cartas cujo conteúdo e valor
descritivo reflitam de modo mais direto a narração da história de vida e, por conseguinte,
permitam a análise das motivações e sentimentos subjetivos.
Neste campo, temos de salientar o trabalho de pesquisa histórica realizado por
Franzina (2000) por meio das cartas dos camponeses vênetos. Franzina, já em 1977, tinha
publicado e recolhido uma série de delas colocando em relevo a originalidade e
homogeneidade transnacional dos relatos desses camponeses.
Por outro lado, devemos reconhecer o quanto é complicado e difícil poder recolher
este tipo particular de cartas de camponeses que provaram a experiência do deixar a própria
terra. Estas correspondências abarcam assuntos variados – desde a viagem transoceânica e o
impacto na chegada e adaptação à nova terra – até dados da intimidade familiar dos
correspondentes. Deve-se considerar que muitas cartas são guardadas e preservadas como
31
objeto de memória. Para os estudos da imigração, elas fornecem-nos alguns elementos para
compreender melhor as dinâmicas internas da cultura camponesa vêneta no país de destino e
os comportamentos e sensações que emergiram diante de certas situações e, por fim,
consentem recriar as poliédricas faces da realidade com a qual se deparavam.
As correspondências dos camponeses revelam-se extremamente importantes porque,
por meio delas, temos acesso ao mundo das experiências vividas por um povo. As cartas em
questão, de fato, não são a mera narração de um acontecimento, mas o próprio evento, porque
todo o conjunto de comunicação, de argumentação e de testemunho que elas representam
constitui, passo por passo, expressão de uma posição existencial. Por esta expressão,
lingüística e comunicativa, observamos que é possível compreender aquilo que é típico do
desejo e das vivências do sujeito. Neste sentido, as cartas são importantes porque nos
oferecem uma perspectiva subjetiva a respeito da experiência feita pelos protagonistas quando
da imigração. Pode-se conhecer pelos seus escritos as formas como se organizavam no
trabalho, na vida religiosa, política, econômica e a maneira pessoal de perceber o novo
ambiente social. Elas nos dão uma visão bastante ampla do fenômeno da imigração, captando-
o em suas grandes linhas e, permitindo fazer as articulações com os mais diversos estratos da
estrutura do indivíduo nas suas dimensões: corpórea, psíquica e espiritual. Permite também
delinear os sentimentos e as percepções do indivíduo e sua relação com a nova comunidade de
pertença.
É preciso lembrar, entretanto, que este é um trabalho situado: fala da realidade de um
tempo a partir da imigração vêneta no final do século XIX em suas conexões com o presente.
O fio condutor desta perspectiva é a questão das experiências e vivências que emergem na
relação entre as cartas antigas e novas em termos da história biográfica da família e a
redescoberta das raízes culturais. A nossa perspectiva de pesquisa, portanto, não é do tipo
historiográfico. Trata-se de uma leitura da documentação escrita – as cartas- organizadas num
32
contínuo temporal que em certa medida nos permitem a reconstrução das experiências a luz
do método fenomenológico. Outros recortes são colocados em evidências: de lugar – o da
colônia de Cascalho –; de diferentes aspectos das correspondências: desde aquelas dos
protagonistas até aquelas dos descendentes. O trabalho está concentrado na leitura
fenomenológica das cartas e, portanto, desde a origem é uma pesquisa qualitativa.
Neste sentido, o recorte de nosso trabalho coloca em evidência a relação do indivíduo
com a comunidade e o sentido de pertença que vem expresso nas missivas. Esta ligação com
as raízes, com a família, com as gerações passadas e com a religião indica que o horizonte não
se reduz à própria vida individual. Por isso, o exame das cartas compreende dois âmbitos
específicos: aquelas dos imigrantes e a dos descendentes. Para formarmos uma idéia geral de
todas as cartas aqui utilizadas, podemos agrupá-las em quatro distintos níveis: a das cartas
antigas, as dos descendentes e aquelas dos missionários imigrantes e dos trabalhadores no
serviço de Imigração.
Em primeiro lugar, portanto, as cartas do passado provenientes das diversas
localidades do Brasil em que se estabeleceram os imigrantes vênetos, bem como aquelas
recolhidas no antigo núcleo colonial de Cascalho e escritas por eles. Em segundo lugar,
mostramos as cartas atuais, em que os descendentes procuram estreitar os laços com a terra
dos seus ancestrais, demonstrando os mais variados interesses: necessidade de entender as
raízes e a história familiar, busca de documentos – certidões de nascimento, batismo e
casamento dos ancestrais, –; busca de cartas e fotos antigas; cidadania italiana; o desejo de
reencontrar as famílias e estender os laços com estes; busca por trabalho e por intercâmbios
culturais. Os conteúdos presentes nas cartas ultrapassam a questão da curiosidade humana,
mas revestem-se de um cuidado e um sentido de responsabilidade com relação ao futuro que
recoloca as pessoas frente ao dever e ao respeito ao passado. Tal questão foi abordada por
Ricoeur (2003) quando nos recordava que a herança recebida é fonte de obrigações. Nos
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conteúdos destas cartas, podemos colher este tipo de motivos que passam a ser estímulos para
o aprofundamento de conhecimentos e relacionamentos inter-culturais. Por último,
resolvemos considerar e agrupar a este conjunto as cartas dos missionários imigrantes escritas
em Cascalho e as anotações sobre a referida população feita pelos agentes da Secretaria de
Terras e Imigração do Estado de São Paulo.
Quanto à natureza da documentação aqui utilizada, será preciso, antes de mais nada,
dizer que as cartas antigas – redigidas pelos protagonistas da imigração – podem ser todas
reconduzidas a um único modelo cuja forma e conteúdo derivam da função de uma
comunicação epistolar cujo objetivo principal era o de reafirmar os vínculos de solidariedade
familiar que foram rompidos pela emigração. De modo geral, as correspondências dos
camponeses podem ser classificadas como cartas de saudação e cartas familiares. O segundo
aspecto a ser considerado diz respeito ao fato de que estas cartas de saudação possuem uma
determinada estrutura : elas iniciam-se com uma saudação e, em seguida, trazem notícias
referentes sobretudo ao estado de saúde e à situação econômica de quem escreve com o desejo
de que a saúde e o sucesso possam estar gratificando ao destinatário da carta e a toda a sua
família. As experiências relatadas – sentimentos, recordações, motivações – e tudo aquilo que
possa estar presente a mais estão em função dos laços de pertença à família e da experiência
de deixar a própria terra.
Já as correspondências dos descendentes – cartas atuais – são elaboradas com o intuito
de recuperar as ligações com as raízes culturais dos ancestrais. Embora escritas em contexto
diferente e, por vezes, por pessoas pertencente a terceira e quarta geração dos filhos dos
imigrantes, elas podem ser classificadas na mesma categoria. Por meio de algumas delas,
pode-se vislumbrar o quão potente é o exercício desta ligação com a identidade italiana,
cultivada em comunidades ou em ambientes tradicionais como está manifesto nas vivências
em torno da comunidade de Cascalho.
34
Objetivo
O objetivo da pesquisa é o estudo das cartas dos imigrantes vênetos e dos seus
descendentes em uma perspectiva de leitura fenomenológica com o fim de investigar, a partir
das estruturas das vivências pessoais e comunitárias, as experiências humanas de
enraizamento/desenraizamento transmitidas pelos envolvidos na relação epistolar.
O interesse pelo testemunho escrito ligado diretamente ao tema da imigração de
proveniência vêneta, com particular atenção às cartas familiares e às respectivas histórias de
vida, podem ser daí re-evocadas a partir das vivências que, segundo nossa hipótese inicial,
permite discutir o quanto o tema das raízes culturais perpassa as diversas gerações de
descendentes, sobretudo, quando se pensa em comunidades cujo elemento estrangeiro tenha
predominado desde sua origem. Assim, o intuito é o de apresentar o quanto a prática epistolar,
no horizonte da imigração, permitiu e tem permitido hoje a criação de um espaço de
sociabilidade que revela as dinâmicas do processo de um determinado período histórico e
cultural e permite reviver o sentido de pertença social.
Pela análise das cartas, pode-se individuar a dinâmica dos desejos e visões de mundo,
bem como compreender as motivações, sentimentos, sonhos e afetos daqueles que foram os
protagonistas dessa epopéia. Além disso, a análise permite perceber os aspectos dinâmicos e
de diferenças de representação entre os que partiram da própria terra e dos que ficaram e,
assim, ver as conexões entre as condições de vida material e as necessidades espirituais do ser
humano nos variados contextos sociais e políticos em movimento.
Parece-nos bastante plausível considerar essa discussão do enraizamento a partir da
análise de Edith Stein. As razões para isso são múltiplas. Basta pensar, em primeiro plano,
que o método fenomenológico por ela empregado tinha como tarefa essencial compreender a
constituição do ser humano e indicar as suas principais dimensões e necessidades. Um
segundo aspecto relaciona-se ao lugar que a narratividade ocupa na sua vida. Stein escreve a
35
sua autobiografia espiritual fixando-se na descrição de suas vivências. O ponto de partida é o
olhar para a herança recebida como membro de uma família hebréia. Ao leitor, restará a
impressão de uma jovem cuja trajetória está marcada pela consciência de pertença ao povo
hebreu e, paradoxalmente, à nação alemã. A terceira razão liga-se à capacidade da autora em
apontar as diversas leituras presentes num mesmo acontecimento, a atenção à pluri-
dimensionalidade do real, o que permite privilegiar as relações entre o parcial e o todo, o
subjetivo e o objetivo. Por fim, pode-se dizer que tal tema está no centro das discussões da
autora, basta ver, por exemplo, as análises sobre a relação indivíduo-comunidade; a questão
da sociedade e Estado, sem falar, é claro no itinerário de análise por ela proposto que não se
contenta apenas com o exame das realidades exteriores, mas com o problema da subjetividade
e da transcendência do ser humano.
O conceito de enraizamento e a necessidade de ter raízes vêm expostos por Simone
Weil (2001) no seu livro “O Enraizamento” no qual a autora discute como tal necessidade da
alma humana corre o risco de ser negligenciada e esquecida. Há diversos fatores, presentes na
sociedade contemporânea, que favorecem o desenraizamento. Esta autora apresenta o
desenraizamento como uma espécie de doença, fruto da violência. A importância da
participação nos campos inter-subjetivos, a troca de contatos e influências, os vínculos com o
passado, e o valor da herança e da memória do passado são temas que sublimam Weil (1979,
p. 418):
Seria vão voltar as costas ao passado para só pensar no futuro. A oposição
entre o futuro e o passado é absurda. O futuro não nos traz nada, não nos dá
nada; nós é que, para construí-lo, devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa
própria vida. Mas para dar é preciso ter, e não temos outra vida, outra seiva a
não ser os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados
por nós. De todas as necessidades da alma humana não há outra mais vital
que o passado.
36
Método
Para abordar o objeto proposto nos valemos do método fenomenológico, uma vez que
este nos ajuda a reconhecer os pontos essenciais das narrativas em dois pólos importantes,
seja na perspectiva interna das vivências dos sujeitos, seja como na dimensão inter-subjetiva,
em uma interseção entre história individual e coletiva.
As pesquisas realizadas por Franzina (2000) apontam para certos aspectos da cultura e
da história das classes subalternas que emergem das cartas dos imigrantes. O autor pontua
que a releitura atenta dos documentos populares deve conduzir o pesquisados a intuir as
conexões entre macro e micro-histórias. O modo de Franzina estudar o fenômeno migratório
foi o de buscar revisar as teses tradicionais nesse campo. Neste sentido, ele entende que os
estudos migratórios devem estar sempre abertos aos dados oferecidos pela memória histórica
dos protagonistas, e tais estudos precisam manter o equilíbrio entre as interpretações por meio
dos dados estatísticos, demográficos e econômicos e aqueles que têm em conta os
testemunhos diretos. Portanto, aproximar-se daquilo que pensaram e escreveram aqueles que
participaram desta experiência permite, segundo Franzina (1992, p. 18):
(...) demonstrar que, na base dos movimentos migratórios mais diversos,
existe o cruzamento e a interação social de notável pertinência, mas tal
estudo é capaz de demonstrar que existia sentido de pertença, visões de
mundo e projetos de vida autônomos e originais.
A mesma perspectiva apresentam os autores Baily e Ramella (1998) os quais se
dedicaram ao estudo de uma coleção de 351 cartas da família Sola. A hipótese de trabalho era
a convicção de que tais cartas pessoais seriam importantes para entender a realidade subjetiva
e a organização social em torno da migração. É preciso lembrar que, nessa pesquisa, foram
abordados diferentes aspectos do processo de migração e ilustrados, por meio de
correspondências trocadas por uma única família, durante os anos de 1901-1922,
37
evidenciando-se os impactos da imigração e as mutações ocorridas nas sociedades de destino
e de partida.
Outra obra neste âmbito seria a de Lussana (1913) que recolhendo mais de 100 cartas
escritas por imigrantes faz um estudo comparativo entre mentalidade operária e aquela
camponesa. Vemos, portanto, que, devido às mudanças ocorridas dentro da historiografia
recente, o campo de pesquisa do historiador vem-se ampliando cada vez mais e vai desde o
estudo das diversas culturas até o estudo particular da cultura popular, inclusive, dando ênfase
à correspondência enquanto instrumento para penetrar na mentalidade de determinada época.
Segundo Chartier (1990), estes estudos permitem compreender a gênese da construção de uma
realidade social. Essa abordagem mais microscópica da investigação histórica tem permitido
levar em consideração a experiência do homem comum fazendo referência às suas concretas
condições de vida e de trabalho.
Os estudos, como o de Thomas e Znaniecki em The Polish Peasant in Europe and
American (1968), clássico da sociologia americana, são importantes pelas indicações
metodológicas dadas a respeito do trabalho com as cartas dos camponeses e pela influência
exercida nos trabalhos de várias gerações de pesquisadores que mostraram interesse em
semelhante tipo de fonte. Esses autores, além de demonstrarem a relevância do uso das cartas
para a análise da subjetividade dos indivíduos que experimentaram ter de deixar a pátria e
aventurar-se em outras nações ou continentes, forneceram aos historiadores e cientistas
sociais a possibilidade de pensar continuamente no significado histórico do processo de
imigração porque, de uma parte, as cartas fazem emergir as observações subjetivas daqueles
que participaram do evento, por outro lado, permite uma avaliação e comentários amplos a
respeito dos motivos expressos, especialmente quando se pensa nos aspectos históricos,
sociais e políticos envolvidos, mas tratados nelas a partir da experiência que os indivíduos
fazem no interior do grupo familiar. Por meio do método qualitativo de pesquisa fundado
38
sobre documentos pessoais e, em particular, pela utilização de cartas dos emigrantes polacos
radicados nos Estados Unidos, os autores puderam descrever e analisar as mudanças de idéias,
de valores e de comportamentos experimentados pelos camponeses depois da emigração. A
razão que os levaram a privilegiar documentos pessoais encontra-se na estreita conexão entre
a vida individual e familiar que estão na base dos acontecimentos na vida social. Como
apontam os dois autores citados, o elemento pessoal, sem dúvida, é um fator constitutivo dos
acontecimentos sociais.
Assim, apesar de constatarmos, nestas diferentes abordagens, vários pontos pertinentes
para a discussão, o presente trabalho encontra respaldo teórico no horizonte das análises
apresentadas pela fenomenologia, que, na linha de Husserl e, em particular, de Edith Stein
ajuda-nos a procurar entender de maneira profunda as questões subjacentes ao grande
fenômeno sócio-cultural da imigração e, na análise do universo das cartas, poder mostrar os
dinamismos do vivido e do que foi representado pelos indivíduos e membros da comunidade
enquanto protagonistas da experiência de busca pelas razões da própria raiz familiar. O que
não exime o leitor de perceber a convergência das posições com as perspectivas
metodológicas oferecidas pela própria fenomenologia. Conforme aponta Husserl (1961), o
fenomenólogo deve viver na situação paradoxal de considerar aquilo que é óbvio como
enigmático. É por esta razão que tal método se mostra muito eficaz, pois nos dá a
possibilidade de remontar às origens das experiências vividas (BELLO, 1998), e explorar,
interrogando sobre o significado das próprias evidências. Essa preocupação em captar o
‘sentido’, tentando romper os esquemas mentais pré-estabelecidos, faz que o pesquisador
oriente seu olhar sobre a forma como aquelas experiências aparecem para os sujeitos
envolvidos. Aquele que trabalha com a fenomenologia ocupa-se com aquilo que se mostra. E
esta é a característica principal do método que é a de realizar uma redução, ou seja, de colocar
entre parênteses os conhecimentos que supomos estar na existência das coisas (STEIN, 2001),
39
para então pôr em evidência a dimensão do que aparece à consciência. Para realizar tal
operação, deve-se deixar de lado o supérfluo para poder selecionar o que de essencial está
presente em cada coisa, seja ela material, intelectual ou espiritual. Este procedimento é o da
descrição, no qual se salienta os pontos de referência essenciais presentes naqueles atos que
cada um dos seres humanos vive a partir da esfera da consciência. Stein (2001), põe em
destaque este procedimento quando estabelece a relação entre psicologia e fenomenologia
dizendo que, por um lado, a psicologia analisa a percepção, a vontade, a fantasia e a
imaginação como fatos e verifica as condições em que eles acontecem, supondo já o que são
cada um deles. Por outro lado, a fenomenologia quer mostrar que estas operações
fundamentais da consciência, quando analisadas nas suas estruturas essenciais, permitem ao
pesquisador a identificação dos diferentes estratos das vivências. A grande contribuição da
fenomenologia à psicologia é a de fazer que o psicólogo possa trabalhar com conceitos claros
que foram obtidos mediante o trabalho arqueológico de escavo nas estruturas da consciência
(STEIN, 2001), pois é próprio do trabalho intuitivo da fenomenologia iluminar os problemas
a partir de uma análise da psique que mostre com clareza em nível teórico aquilo que acontece
nas dinâmicas concretas que caracterizam a psique.
Um aspecto importante da metodologia empregada pro aquelas áreas que Husserl e
Stein denominam ciências do Espírito – como a História, as ciências da cultura em geral –
consiste na consciência de que há um problema central que é aquele da expressão. Na
perspectiva fenomenológica, este termo vem entendido como aquelas manifestações através
das quais podemos ter acesso ao mundo espiritual tanto dos indivíduos quanto das
comunidades. A tarefa daquele que se dedica às ciências humanas está em captar as diferentes
expressões sejam elas verbais ou escritas – bem como os gestos – dos seres humanos
colocados dentro de uma determinada situação histórica, social, cultural, religiosa etc que são
relevantes para a compreensão do significado da expressão. Stein (2001), fala de dois sentidos
40
para o termo expressão: o primeiro refere-se tanto à configuração das formas expressivas
como à mímica e àquelas externas que o ser humano produz por suas obras; o segundo
sentido de expressão liga-se aos movimentos vitais, que podem, por sua vez, ser conhecidos
por meio das formas expressivas. A vida pessoal, segundo a perspectiva steineana, pode ser
definida historicamente a partir da manifestação desses fenômenos expressivos, os quais, por
sua vez, são considerados fontes históricas porque nos revelam traços da vida espiritual do
passado. De fato, no percurso de nosso trabalho, as lições da fenomenologia sobre a estrutura
do ser humano e das formas de associação nos vários níveis – família, comunidade, Estado –
serviram como orientação prática para poder realizar a leitura das cartas dos imigrantes, tanto
nos aspectos materiais que caracterizam este tipo de expressão escrita quanto pela função que
elas ocupam em relação à necessidade fundamental do ser humano de se sentir enraizado.
O papel da descrição não é o de fazer uma interpretação, mas de propiciar uma
reconstrução e, por isso, pode ser comparado ao trabalho arqueológico que implica o escavo
nas estruturas mais profundas do ser humano. Husserl (2002), ressalta que a única
possibilidade de poder entender a fecundidade e a extensão dos problemas que a análise
fenomenológica abarca é colocar os pés sobre cada um dos territórios próprios desta análise.
O método em si nos é dado pela própria estrutura do objeto e consiste, precisamente, em
deixar que o objeto nos indique a direção a ser tomada. Husserl reconhece a dificuldade de
conduzir uma pesquisa concentrada sobre os dados e busca a redução das coisas à sua
essência, mas assevera que o procedimento é como o de um viajante que busca conhecer um
país estrangeiro e começa a narrar detalhadamente tudo aquilo que aparece pelos caminhos
ainda não desbravados por ninguém. Se aquilo que ele narra for a fiel descrição daquilo que
ele viu, então aquilo sempre conservará o seu valor, ainda que haja outros procedimentos de
análise que descubram naquela terra outros aspectos antes não descobertos. A mesma imagem
de viagem a um lugar desconhecido foi utilizada por Stein (2003), porém, a sua perspectiva
41
será enriquecida com considerações em torno às mudanças que ocorrem no sujeito que
observa os dados num contínuo jogo alternado entre interioridade e exterioridade. Esse é o
princípio elementar do método fenomenológico que, quando aplicado a um exame cujo
objetivo consiste em descortinar necessidades profundas do ser humano, como é a relação
com as origens e a genealogia – por exemplo – implica considerar a forma como ele faz
experiência de si e como percebe a própria humanidade diante dos outros com os quais se
relaciona. O viver comunitário, na perspectiva steiniana, significa compartilhar dos gestos que
favorecem o desenvolvimento da comunidade.
Depois de termos elucidado o foco de nossa investigação como o conjunto de cartas
produzidas pelos imigrantes italianos vênetos e pelas gerações dos seus descendentes
percebemos que esta nos oferecia um amplo horizonte para a pesquisa. E tal situação foi
geradora de novos dados que foram somados à perspectiva com que queríamos abordar o
nosso objeto. Em primeiro plano, aparecia o conjunto objetivo de experiências que se
realizavam na comunidade de Cascalho. Neste sentido, cabe ressaltar os encontros por grupos
de famílias do bairro, com o objetivo de reunir os membros das respectivas famílias para
tardes de convivências e troca de informações. Mas o objetivo deste convivium era o de
proporcionar o encontro das famílias e a coleta de documentos familiares que seriam
catalogados pela comunidade, ou seja: desde cartas, partituras, títulos de propriedades de
terra, fotos, passaportes, lista de núpcias etc.
Outro aspecto importante foi com relação à escolha do arquivo da paróquia de ‘San
Martino’ pois nele encontramos grande parte de cartas que foram endereçadas a Diocese de
Vitório Veneto exatamente no período em que, na comunidade de Cascalho, ocorriam as
tentativas de resgate histórico, sobretudo, na ocasião das celebrações dos 110 anos da chegada
dos imigrantes. De fato, estes eventos comemorativos sempre tiveram a vantagem de
42
despertar a memória das pessoas e suscitar um determinado movimento de busca e
valorização das raízes.
A única fonte de pesquisa são as cartas que aqui serão analisadas a partir do conteúdo
e significado que delas emergem, tendo em conta os pressupostos do método fenomenológico.
Ao lado isso, realizamos a pesquisa bibliográfica e teórica referente à imigração italiana. Há,
portanto, um conjunto de textos – documentais e bibliográficos – que servem para enriquecer
a análise realizada e, ao mesmo tempo, permitem manter articuladas as diversas polaridades:
Brasil – Itália; indivíduo – comunidade; cartas antigas e novas; enfim, o entre-dois próprio da
dialética epistolar.
Para o acesso às fontes documentárias visitamos os arquivos: 1)Arquivo Geral da
Congregação Escalabriniana, Roma – Itália; 2) Arquivo do Centro Studi Emigrazione-Roma;
3) Arquivo da Paróquia de “San Martino” de S. Lucia di Piave, Treviso, Itália; 4) Arquivo da
Associação Coneglianesi, Treviso, Itália; 5) Arquivo do Estado de São Paulo; 6) Arquivo da
Paróquia e Associação Trevisana no Mundo de Cascalho. Foram consultados os seguintes
livros paroquiais: 1) Livro do Tombo da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, Cascalho;
2) Livro do Tomo da Paróquia de Santo Antonio, de Cordeirópolis.
Coleta e transcrição dos dados
No Arquivo Geral da Congregação Esclabriniana, em Roma, o trabalho foi o de
recolher os dados referentes às cartas dos missionários e à respectiva trajetória histórica
daqueles que atuaram no núcleo colonial de Cascalho e na vila de Cordeiro. Por outro lado,
verificamos que o corpus epistolar produzido pelos missionários Escalabrinianos destinados
ao Estado de São Paulo é muito significativo, permitindo um estudo particular sobre este
tema. Segundo nosso interesse, localizamos 30 cartas escritas pelos missionários-imigrantes
cujo conteúdo se refere à população de Cascalho, mas nos concentramos nas 5 cartas mais
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importantes. Outras cartas/documentos serão utilizados como fontes secundárias no nosso
estudo, pois trata-se de papéis que reforçam a perspectiva contextual. Aliás, será preciso
prestar atenção, ao longo da leitura do texto, à colocação desta espécie de anexo documental.
No Centro de Estudos sobre a Imigração de Roma, preocupamo-nos em reunir
material bibliográfico referente a três específicos tópicos: 1) a história da imigração italiana
no Brasil; 2) fontes epistolares; 3) dados sobre a atuação da Igreja Católica na assistência aos
imigrantes. No Arquivo da Associação da cidade de Conegliano (Província de Treviso),
interessamo-nos por obras cujo objeto de estudo era a cultura local e os costumes vênetos,
material de informação sobre as cartas e as tradições camponesas do final do século XIX e a
situação atual do vêneto como terra de imigração.
Já no Arquivo Público do Estado de São Paulo, que fornece uma rica documentação
sobre a imigração italiana, levantamos os documentos e cartas pertencentes à Secretaria do
ministério da Agricultura, classificados em três distintas pastas sob o nome de “Imigração,
terras e colonização”. Nelas encontramos a documentação bastante diversificada: leis sobre a
imigração, instruções para o funcionamento das colônias; requisições de serviços; declarações
de transporte dos imigrantes; diversas listas com a relação dos imigrantes; informes sobre as
vendas dos lotes de terra e os seus respectivos proprietários; e, por fim, um conjunto de 10
cartas dos agentes e diretores do núcleo. Este grupo de cartas forneceu-nos alguns elementos
para compreender melhor as dinâmicas internas daquele núcleo colonial com relação à
constituição da comunidade.
O Arquivo paroquial da Igreja Nossa Senhora da Assunção de Cascalho apresenta
duas seções distintas, uma dos livros paroquiais: tombo, batismo, casamentos, mortos,
associações religiosas e culturais. Selecionamos desta parte as informações quanto aos
aspectos ligados a colônia na sua origem, recolhendo os dados da situação das famílias ali
estabelecidas e as correspondências que informavam sobre o núcleo e sua população. Além
44
disso, ali se encontram toda série de documentação referente a algumas correspondências
familiares e material fotográfico, bem como diários, registros de nascimento, e todo tipo de
documentação recolhida pela Associação Trevisana no Mundo com o fim de preservar a
memória histórica do bairro. A idéia de formação de um banco de dados vem sendo cultivada
a partir das celebrações centenárias do bairro, ocasião propícia em que os membros da
comunidade organizaram-se em associação para poder captar os documentos e reunir as
famílias. A conservação desses documentos, pelas instituições e associações, revela uma
especial preocupação com os elos de união com o passado e, por sua vez, indica os horizontes
de abertura da comunidade e o compromisso de transmissão de um legado para as gerações
futuras. Em Cascalho, portanto, temos um arquivo comunitário, constituído por documentos
das diversas famílias, cujos números são de 6.000, digitalizados, sendo que 80% destes
constituem fonte iconográfica de especial valor pois são fotos das famílias, e os outros 20%
distribuídos em correspondências, títulos de propriedade, passaportes, lista de núpcias etc.
No arquivo da paróquia de ‘San Martino’ em Santa Lucia di Piave, Treviso, Itália,
pudemos encontrar a maior parte das cartas escritas pelos descendentes dos imigrantes. Estas
cartas foram endereçadas às paróquias da diocese de Vitório Vêneto. Este arquivo, além dos
livros antigos de batismo, de matrimônio, do livro dos mortos, que contém dados de inúmeras
famílias, foi enriquecido com uma seção e processos e pedidos referentes à busca de
documentos e contatos por parte dos descendentes ítalo-brasileiros. Nele, encontramos o
arquivo que foi organizado em pastas catalogadas por ordem alfabética tendo como referência
os nomes de famílias. A história deste arquivo está ligada à figura de um sacerdote, padre Noé
Tamai que, por mais de 20 anos, trabalhou no Estado do Espírito Santo junto à ex-colônias de
imigrantes. No seu retorno à Itália, foi-lhe encomendado – por parte do bispo diocesano –que
se ocupasse em atender as solicitações feitas por brasileiros descendentes de italianos na
procura de informações sobre as origens e documentos dos seus ancestrais. Eram inúmeros os
45
pedidos que chegavam às paróquias e à Cúria da diocese de Vitório Vêneto. Neste arquivo,
aparecem mais de 700 processos com os relatórios de pedidos formulados por famílias
brasileiras interessadas na cidadania e na pesquisa pelas origens familiares. As pastas
catalogadas por nomes de famílias permitem ao pesquisador entrar em contato com um
mosaico de narrativas familiares cujo eixo central está na busca das raízes. Pudemos examinar
todas as pastas, e selecionamos 50 processos com cartas e histórias familiares que nos
interessavam, obtendo um total de 100 cartas, das quais 85 são escritas por famílias de
descendentes de italianos e 15 cartas antigas dos próprios imigrantes que, em seguida, foram
traduzidas. Nestas pastas, não estão presentes exclusivamente os pedidos dos ítalo-brasileiros,
mas os pedidos das famílias italianas na procura dos parentes emigrados no Brasil.
As cartas do Arquivo da Paróquia de ‘San Martino’ foram objeto de nossa atenção
porque obedecem a algumas características bastante importantes do ponto de vista
metodológico pois, 1) para este lugar era encaminhada grande parte das correspondências que
os párocos da diocese de Vitório Vêneto recebiam de famílias cujos descendentes eram de
proveniência da Província de Treviso; 2) por meio destas cartas é possível reconhecer algo
sobre os primeiros imigrantes pois aparecem histórias de vida e de reencontros; 3) e o
significado da imigração para os membros de diferentes famílias.
Depois de recolher as cartas que seriam utilizadas para a análise fomos realizando as
anotações e separando as antigas daquelas dos descendentes. Em seguida, passamos a
transcrever e traduzir as cartas. Este processo não foi muito fácil porque, sobretudo, para as
missivas antigas, era necessária paciência para decifrar as palavras, e por outro lado, às vezes,
defrontar-se com um tipo de escritura cujo vocabulário pertence ao dialeto vêneto.
46
Estrutura do trabalho
O trabalho divide-se em três capítulos:
Em “a busca das raízes” apresentamos as diferentes vivências expressas pelos
descendentes na procura da própria identidade pessoal e familiar. A importância dos
documentos, o significado da terra dos ancestrais, da viagem e da genealogia, são temas deste
capítulo em que mostramos, sobretudo, as motivações que impulsionam os indivíduos.
O segundo capítulo trata das vivências dos indivíduos dentro do contexto familiar. A
partir das considerações acerca do valor atribuído ao contato epistolar com os parentes
analisamos o dinamismo psíquico enfatizando as vivências da empatia, dos sentimentos e do
querer. O ponto de partida são os reencontros ocorridos no interior de algumas famílias e, a
partir daí, mostramos as influências de um indivíduo profundamente enraizado na vida da
comunidade.
No terceiro capítulo procuramos descrever os passos para a “formação de um povo”,
trazendo a discussão sobre a importância das experiências humanas vividas não só por
membros de uma família, mas a partir do horizonte da comunidade de pertença e no
entrelaçamento dos relacionamentos estabelecidos com as gerações de descendentes na ex-
colônia de Cascalho.
47
CAPÍTULO I
A BUSCA DAS RAÍZES
A definição de história dada por Stein (2000, p. 200) como vida de um povo nos
convida a pensar as experiências que as pessoas singularmente realizam dentro do cenário da
terra que lhes coube viver. Para os filhos de pais italianos nascidos em terras brasileiras e para
as gerações seguintes, não se pode negar que há uma participação que subsiste na formação
do tipo do povo, a qual mantém certo influxo, dentro de uma comunidade de imigrantes, dos
modos e usos que trouxeram os pais. A existência de ex-colônias de imigrantes italianos
dentro do nosso território e a integração desses descendentes ao patrimônio peculiar e
característico da brasilidade deixa ainda aberta a pergunta sobre sua identidade. A idéia de
querer compreender as razões da imigração penetrou com intensidade na consciência das
diversas gerações desses imigrantes nos últimos decênios. São muitos os que depois de longo
percurso de pesquisa na história familiar podem exclamar como Zago: “Agora sei quem sou,
de onde vim e quem eram e como viviam meus antepassados”
1
. O caminho para tal
consciência foi preparado por fatores intrínsecos e extrínsecos ao ser humano. As facilidades
de comunicação intensificaram os intercâmbios entre o Brasil e a Itália e, desse modo, as
memórias e as vivências dos que empreenderam a viagem migrando da Itália para o Brasil
podem ser lidas e compreendidas por meio de diversos instrumentos que nos permitem
compor essa história: fotografias, biografias e autobiografias, testemunhos orais e escritos e,
em particular, pelas cartas.
Com base nisso, então, se procedermos a um balanço crítico a respeito da configuração
do processo comunicativo, sobretudo o que se dá por meio das correspondências, será forçoso
1
Arquivo Paroquial “San Martino”, cx. Z1.
48
notar que a originalidade dos mais diferentes conteúdos dessas missivas encontra-se na tensão
que elas nos sugerem manter entre narrativa e vida. O fato de se tratar de correspondências
ordinárias nas quais se registram os dados cotidianos, as circunstâncias da vida familiar e, de
modo especial, a preocupação em relação à compreensão das raízes culturais, leva-nos a
considerar que para os missivistas o narrar-se por meio da escrita significa uma tomada de
consciência da própria experiência. Em correspondência com os respectivos anseios
expressos, há simultaneamente a possibilidade de extrair as qualidades próprias, isto é, as
expressões e o horizonte de significado do indivíduo humano. Os traços mais significativos –
colhidos no confronto das diferentes cartas – oferecem notícias, impressões e intuições que
posteriormente poderão ser objeto de generalização e universalização. O significado de uma
carta encontrada pode ter um determinado valor para o indivíduo que escreveu, na relação
com o seu destinatário, valor privado e particular. Contudo, quando tal conteúdo vem
observado na relação com os outros do seu grupo de pertença e na convergência com os
fatores próprios do período em questão, esse tipo de correspondência poderá fazer emergir um
contexto de vital interesse para o estudo. De fato, para poder representar certo conhecimento
histórico, será preciso estabelecer as relações entre a expressão comunicativa do indivíduo
com outros indivíduos segundo a conexão de espaço e tempo. A interpretação de cada
testemunho dado e de suas mútuas relações é que permitem estabelecer os elos entre as
missivas do passado e o movimento atual de retomada dessas correspondências por parte das
gerações daqueles que são filhos, netos e bisnetos de imigrantes. Neste capítulo, portanto,
vamos nos perguntar: o que estas cartas expressam? Há convergência entre o interesse
manifestado pelos diferentes indivíduos possibilitando uma unidade em termos de análise ?
Há por parte dos sujeitos a preocupação em não perder a identidade da própria descendência?
Os indivíduos ao escreveram revelam os motivos pelos quais empreendem a busca da própria
biografia individual e familiar?
49
Na abordagem fenomenológica, o interpretar significa: penetrar na situação individual,
ou seja, colher em profundidade as expressões vitais dadas pelos testemunhos e, em segundo
lugar, compreender o significado destas no contexto geral de determinado evento histórico.
Portanto, no caso do evento da imigração vêneta, os testemunhos que encontramos
individualmente nas cartas dos imigrantes e, hoje, naquelas dos seus descendentes orientam-
nos a olhar para a história de um povo. Portanto, cada particular informação conecta-se ao
evento compartilhado por todo um grupo de pessoas. Há um conjunto de experiências
humanas relatadas nas cartas, e estas múltiplas experiências são vividas nos diferentes estratos
da estrutura tripartida do ser humano: como corpo, psique e espírito. Para Stein o ser humano
e, em particular, a sua vida psíquica sofre um contínuo fluxo de impressões e reações (STEIN,
2002). A pessoa humana, portanto, está em contínuo colóquio com tudo aquilo que encontra
2
.
Assim, os autores das cartas dão-nos um quadro bastante vasto, por exemplo, das impressões
causadas pelo novo mundo, da forma como eles acolhem os objetos
3
e, simultaneamente, são
capazes de nos oferecer um pequeno mapa da situação vivida interiormente ou da concepção
de si frente à realidade.
A questão central na fenomenologia, segundo a perspectiva de Husserl e Stein, consiste na
exigência em compreender a realidade por meio dos conteúdos das vivências, os Erlebnisse, e as
2
No livro Potenza e Atto, Stein (2003, p. 194-195) usa o termo colóquio para referir-se às diferentes formas
com as quais o ser humano se sente impactado pelo real, externa e internamente. O impacto com aquilo que
encontra pode ser vivido de maneira superficial ou profunda. Mas o colóquio é ao máximo grau quando aquilo
que se encontra é uma outra pessoa.
3
A este propósito encontramos uma observação pertinente e iluminadora sobre o significado desta apreensão do
mundo pelo sujeito, feita por Stein (1996, p. 241): “A personalidade, tanto individual quanto comunitária,
encontra-se diante de um mundo de objetos que estes indivíduos colhem e do qual se deixam condicionar em
nível de comportamento (...). Existem três diversas maneiras de se posicionar frente ao mundo: a aceitação, o
pôr-se em movimento e, por fim, a ação”. Husserl, no volume II das Idéias, explicita claramente como se
comporta o eu na sua relação com o mundo circunstante e, entre outras coisas, confirma a causalidade
motivacional entre sujeito e objeto. Sob esse aspecto, Husserl sublinha que o dar-se conta dos objetos do mundo
significa o mesmo que reconhecer que estes suscitam no ser humano determinados estímulos: sejam eles de
prazer ou de dor, dependendo do modo próprio de manifestar-se. Graças a isso, por sua vez, pode-se falar da
intencionalidade no objeto. Assim, por exemplo, uma fruta que por suas propriedades estimula o desejo de
comer, e faz que o ser humano passe a se ocupar do objeto, a observá-lo e, eventualmente, responder ao
estímulo comprando a fruta. E aí também o sujeito vai descobrir-se não só como alguém que atribui valor ao
objeto, mas irá perceber sua vontade atuando, bem como, a sua criatividade, a sua intuição com relação a todos
os objetos do mundo circunstante (Cf. HUSSERL, 2002b, p. 219-223).
50
correspondentes relações entre eles. A investigação pode ser realizada para perceber o que é típico
das vivências como a da recordação, da esperança e da fantasia e a analogia destas com a empatia.
Ou ainda: perceber de que modo relacionam-se a motivação e os sentimentos e, além disso, estes
com os fenômenos expressivos. O interesse, portanto, está concentrado nos diversos atos que
registramos como seres conscientes. Um registro, por conseguinte, ligado tanto ao mundo externo
quanto ao mundo interno. A complexidade do ser humano vem abordada por Stein no seu livro a
Struttura della persona umana, na tentativa de oferecer uma visão completa. Na estrutura do ser
humano há diferentes estratificações. Ora, sendo assim, podem-se notar vivências
qualitativamente diferentes porque, por exemplo, os registros dados no nível das sensações são
diferentes daquelas psíquicas, ou ainda daquelas espirituais (BELLO, 2006). Há um gama de
vivências porque há uma quantidade diversa de atos que estamos realizando sendo registrados
pela consciência. Estes atos possuem características e qualidades que lhes são próprias. Neste
capítulo, veremos que o interesse manifestado pelos diferentes indivíduos é o de não perder a
identidade da própria descendência e, assim, por meio das correspondências antigas e modernas,
constata-se a forma concreta de permanecer ligado com as histórias familiares e dos ancestrais.
Mas o que vem a ser este universo de vivências? São os atos constituintes por meio dos quais será
possível colocar em evidência a forma como o mundo aparece com relação ao eu, o qual vive nos
seus atos. E para examiná-los será necessário, simplesmente, refletir sobre eles. As cartas são
aqui instrumentos para poder identificar a forma como os seres humanos são conscientes da sua
realidade física, psíquica e espiritual e de que maneira tais atos por eles realizados são registrados
nos seus escritos privados e autobiográficos. Escrever uma carta já significa a tomada de
consciência por parte do ser humano das condições e circunstâncias que o envolvem. Por elas será
possível perceber diversas vivências. Como diz Stein (2001, p. 274):
Uma carta encontrada pode ser entendida como expressão de uma
personalidade e se pode ainda estudá-la no seu sentido individual a partir do
confronto com a pessoa a qual se dirige e a particular condição vital da qual
participa aquele que envia as notícias
.
51
Observado isso, pode-se retomar a questão da elaboração das cartas tanto do ponto de
vista do contexto de sua produção – e neste sentido a imigração, nos finais do século XIX,
revelou-se um evento desencadeante do recurso à escritura (GIBELLI, 1989) e uma fase na
qual uma massa de iletrados dele faz uso - quanto dos elementos expressivos da pessoa.
Escrever uma carta, exige que o autor ative diversos atos simultaneamente desde aqueles
atos de primeiro nível que são os perceptivos, como ver e tocar, até aqueles da reflexão, os
quais permite ao ser humano registrar por meio da expressão escrita as experiências vividas.
Simultaneamente vem ativada a memória para evocar as lembranças, a imaginação, os
sentimentos, enfim, é algo que envolve a pessoa em sua totalidade.
Deste modo, nos propomos a identificar, neste primeiro capítulo, os diversos atos
mediante o estudo de algumas cartas nas quais aparece a necessidade que os indivíduos têm
de enraizamento. O capítulo divide-se em duas distintas partes: na primeira, vamos priorizar a
análise de algumas cartas dos protagonistas, isto é, daqueles que viveram as circunstâncias da
imigração nos inícios do século XX. Na segunda parte, nos concentramos na busca pelas
raízes por parte dos descendentes por meio das correspondências enviadas ao Vêneto. E, por
fim, a última parte em que tratamos dos acontecimentos, isto é, os eventos fundamentais da
vida de alguns indivíduos marcados por reencontros com as origens e extraídos das
correspondências privadas.
1.1 CARTAS ENVIADAS DESDE A TERRA DE ORIGEM
Observemos, em primeiro lugar, a carta de resposta endereçada aos filhos pelo Sr. Luis
Della Coletta. Os filhos haviam emigrado da Itália para o Brasil, desembarcando no porto do
Rio de Janeiro em 8 de setembro de 1880
4
e estabelecendo-se na região Sul do Brasil.
4
Arquivo Nacional, RV n. 24, Microfilme n. 044-94, FT n. 0698-A.
52
Provavelmente, enviam uma correspondência aos pais informando sobre a viagem, a chegada
e as condições na terra de destino. As cartas como espaço de revelação de idéias, sonhos e
sentimentos exigem sempre a atenção de dois pólos – remetente e destinatário – e como
prática escrita pede sempre respostas. Assim, o Sr. Luis responde aos filhos desde a cidade de
Cordignano – província de Treviso – no Vêneto. Nesse sentido, emerge um dado de grande
importância desta missiva, pois ela dá ao leitor a possibilidade de perceber a interpretação
feita pelo camponês/colono da situação cultural, social e econômica da sociedade de pertença.
Trata-se, portanto, de um olhar a partir da terra de origem. A distância cria para os
camponeses as condições necessárias para intensificar o contato com os familiares e amigos
por meio da correspondência epistolar e, assim, multiplicam-se as imagens e os olhares tanto
a respeito das terras de destino – no caso o Brasil - quanto da terra de origem, a Itália.
Por outro lado, se nos colocamos na perspectiva dos destinatários – no caso aqui os
filhos – que, como membros da cultura camponesa Veneta, eram ligados à tradição da família
e a todas as pessoas do vilarejo ou da cidade em que habitavam, então é possível entender o
quanto as notícias provenientes do outro lado do Atlântico eram fundamentais pois permitiam
ao sujeito perceber-se enraizado àquela coletividade deixada por parte da família imigrante.
Para poder indagar o sentido e o valor das vivências desses sujeitos e, em particular, das
sensações próprias deles, será imprescindível, por exemplo, levar em conta a necessidade de
notícias e de conhecimento a respeito dos eventos do ambiente natal e das recordações dos
parentes, amigos e vizinhos. Tal conhecimento tem ligação com um mundo de valores
determinantes para o sujeito. Na terra estrangeira, o imigrante confronta-se imediatamente
com diferenças culturais em termos de língua e costumes, sofre com as adaptações
necessárias: na alimentação, no clima, nos usos sofre, enfim, por ter a impressão de que na
sociedade de destino, ao contrário, somente estão em casa os nascidos naquela terra. O
53
sentimento de apego e afeição à comunidade tradicional de pertença, principalmente à família,
expressa os valores de continuidade próprios do universo cultural do camponês vêneto.
Mas, se é verdade que para o imigrante vêneto‘il sangue non diventa mai aqua’
5
revelando por este provérbio quanto relevo há o sentido de pertença à herança cultural
recebida, é verdade também que o deslocamento da terra natal ofereceu a muitos deles a
possibilidade de saciar a sede de propriedade respondendo assim a uma das formas com as
quais o ser humano expressa a sua necessidade de enraizamento. Ora, ocorre que, nesse caso,
deve haver uma leitura atenta das cartas para constatar a ligação com estas questões da
materialidade do mundo e a sensibilidade própria do mundo agrícola em que o camponês vê a
terra como um meio de trabalho.
Três momentos da carta são importantes: o primeiro, referente às noticias dadas pelos
pais aos filhos quanto ao agravamento das condições materiais em decorrência da falta de
emprego e das intempéries naturais. O segundo momento, estreitamente ligado ao primeiro,
consiste na descrição das vivências suscitadas nos pais depois da leitura das informações
transmitidas pelos filhos. Por fim, o momento no qual se passa para a narrativa dos eventos
quotidianos, por meio da recordação das pessoas amigas, das atividades de restauração da
Igreja do vilarejo e dos problemas com relação à plantação do tabaco. Façamos agora a leitura
de toda a carta a fim de que, em seguida, possamos nos deter na sua análise:
Cordignano, 3/10/1881.
Filhos muito queridos,
Anteontem recebemos, com muito prazer, a sua desejada carta, lendo que
gozam de excelente saúde, assim como nós.
Aqui, queridos, nos arranjamos cada vez pior. Por mais que se trabalhe, não
progredimos nunca, mesmo com grande engenho e economia, e se
tivéssemos algum pedido de trabalho, seríamos ainda invejados por aqueles
que estão como o caçador que espera a lebre.Além disso, temos os
mantimentos muito reduzidos, porque este ano fomos atingidos por uma
grande seca geral.
5
Em diversas cartas, após descrever a situação na terra de destino, os missivistas costumam registrar alguns
provérbios provenientes da tradição popular. Para o exame do significado deste e de outros provérbios,
remetemos ao estudo feito por Coltro com os respectivos comentários (COLTRO, 2004, p. 26).
54
Vocês fizeram nascer em nós uma esperança, ao falar em nos abraçarmos
ainda novamente neste mundo, aí nesses lugares para nós desconhecidos.
Ah, quisera Deus que nos possamos reerguer depois de tanto sofrimento e
adversidade.
Não entendemos bem como vocês se acertaram com seus parentes: sejam
mais claros quando responderem a esta carta, fazendo-nos ver essa situação e
tudo o mais. Mas, eis uma grande regra: não fazer certos negócios com
parentes, mesmo que unidos em longa amizade, ou em estreito parentesco.
Acreditar em todos e confiar em ninguém.
Ficamos satisfeitos em saber que também aí nesses lugares vinga o bicho da
seda, criação muito lucrativa. Falem-nos sobre todas as qualidades de frutas,
cereais e legumes, em suma, tudo o que aí se cultiva, se é bom ou não, se as
terras de vocês são planas ou montanhosas, e se aí crescem as vinhas para
fazer bom vinho, e se existe terreno firme para, querendo, poder-se construir
alguma edificação.
Pedimos, queridos filhos, que não se esqueçam de nós, e nós aqui
continuaremos a suplicar ao Senhor que os favoreça e escute.
Os familiares de Luisa de Frata estão bem, enviam-lhes afetuosas saudações
e um beijo; assim também Francisco Michelin e sua família, e Ronchi e
Luisa, Antonio; todos os amigos e conhecidos de vocês os saúdam
cordialmente.
Não sabendo em que outro modo exprimir nossos sentimentos, saudamos
vocês em coro, e vertendo lágrimas de amor, de afeto e de consolação,
damos-lhes um beijo, um aperto de mão, a vocês, filhos, irmão, cunhada e a
sua amável e graciosíssima filhinha Bernardina. Oh, esta menina! Que dor
não poder abraçá-la e apertá-la ao peito! Mas chega, temos uma esperança!
A novidade que podemos acrescentar é a restauração completa da nossa
igreja arciprestal; no próximo ano, será terminado também o campanário e
construída sua pinha completa. Mais não temos para estender-nos, senão
firmar-nos, seus fiéis e mui amorosos pais, irmão e irmã Della Colletta e
cunhados.
Antonio Amadio os saúda e agora se formou coronel apenas mudando de
casa, e foi morar com a senhora Borgoli na qualidade de colono. Parece que
no próximo carnaval vai acontecer o seu casamento com uma jovem dos
Agostini de Villa.
Anteontem quatro agentes da fazenda e dois carabineiros, orientados por um
espião, foram ao horto do Arcipreste e lá encontraram três plantas de tabaco
plantadas por Pietro A., pois os dessa família não somente incomodam o
próximo mas abusam sempre das leis do governo, o que é uma bela
retribuição ao seu patrão
6
.
No primeiro momento, como já dissemos, o autor procura mostrar a satisfação por ter
recebido a carta. Neste caso, há algo – uma manifestação visível e tátil – que materialmente e
afetivamente entra no horizonte dos sujeitos destinatários da carta provocando o movimento
de resposta. Em seguida, ele esboça uma síntese da situação vivida em que são postos em
evidência os condicionamentos do ambiente. Quais os principais problemas apontados pelo
6
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC 20-15.
55
remetente? Fundamentalmente, ele individua os seguintes pontos: 1) as condições eram
desfavoráveis; 2) o trabalho era escasso; 3) havia uma insatisfação social; 4) desastres naturais
como a seca privavam da possibilidade do cultivo dos alimentos. Ora, pelo que se vê, os
recursos para que o ser humano, possuidor de um corpo material e constrangido a extrair o
sustento do mundo no qual estava colocado, são completamente insuficientes e, como tal,
coloca a questão da relação entre cidade e Estado no sentido das obrigações deste último em
assegurar aos cidadãos a livre expressão vital e o desenvolvimento das suas capacidades.
Estas circunstâncias externas referentes ao ambiente em que está inserido o ser humano são
fundamentais para o seu desenvolvimento efetivo. O que a carta demonstra, então, é
precisamente a insuficiência de recursos para prover as necessidades do ser humano
7
. Tal
situação passa a constituir em forte motivo para começar a pensar na busca de condições mais
adequadas. O que fica evidenciado na carta do Sr. Luis são os elementos geradores da grave
crise que assolou toda a região do Vêneto provocando o fenômeno migratório. O autor, ao
falar das conseqüências para a sua família utiliza a palavra “passioni” (traduzida como
sofrimento) e adversidades gerados por aquele contexto e do qual eles esperavam confiantes
poder reerguer-se.
A estas considerações contextuais segue-se o segundo momento em que o autor revela
a comoção diante das notícias recebidas dos filhos. O ser humano, no caso o correspondente
em foco, depois de refletir sobre as reais condições nas quais está inserido passa a descrever
um conjunto de experiências vividas e um renovado desejo passa a emergir como exigência
para ele e para o restante da família. A partir, então, das expressões utilizadas vamos
examinar os diferentes atos e o seu sentido para o missivista: 1.1.1 a entropatia; 1.1.2 a
7
Ver a propósito aquilo que escreve Stein a respeito da estrutura ôntica do Estado. Em um dos tópicos deste
capítulo ela aborda, por exemplo, a relação do Estado com a nação e, então, especifica o papel da economia de
Estado no confronto das cidades que a compõe e, além disso, propõe os três modos com os quais um Estado, em
caso do território não ter matéria prima para suprir as necessidades, poderá afrontar o problema: “1. Podem-se
encontrar meios para transformar as matérias presentes naqueles que realmente servem; 2. Podem-se adquirir
novos territórios que contenham em quantidade suficiente as matérias que faltam; 3. Podem ser importadas de
outras nações as matérias-primas necessárias” (STEIN, E., 1999, p. 121).
56
vivência da esperança; 1.1.3 motivação; 1.1.4. formas de conhecimento. Por intermédio desta
carta, portanto, podemos ir percebendo que o sujeito realiza atos de diversos níveis e não
unicamente aqueles pertencentes à dimensão emotiva. De fato, nota-se o remetente reagindo
ao ambiente, ativando sua capacidade intelectiva, colocando em função a vontade e a
responsabilidade frente ao destino do próprio círculo familiar.
1.1.1 A Entropatia
Um dos atos significativos que aparecem na troca epistolar é aquele da empatia porque
entre quem escreve e quem recebe estabelece-se um contato no qual torna-se possível a ambas
partes sentir a existência de um alter ego cuja semelhança com o próprio eu pode ser
reconhecido. E não só isso, por este tipo de comunicação, realizado por meio da vivência da
entropatia ou empatia, será possível descobrir a vida psíquica e espiritual de outros e chegar
inclusive a reconhecer o que as pessoas do outro lado do oceano, como mostra a carta acima,
estão vivendo. Segundo Bello (2004, p. 119), este “é um fator importantíssimo para
compreender os outros: a possibilidade de eu sentir que o outro está vivendo aquilo que eu
mesmo posso viver”.
Em qualquer ato empático, portanto, há este “dar-se conta” do outro, cujo significado
foi objeto de aprofundado estudo por Stein
8
. Ao longo de toda a carta encontra-se esta
tentativa de proximidade com o outro. Nela o leitor pode sentir esta tensão em estabelecer as
condições a fim de que se dê a comunhão intersubjetiva. São expressões como: “não
esqueçam de nós e nós aqui continuaremos a suplicar ao Senhor que os favoreça”, ou ainda:
8
A base da investigação realizada por Stein na sua tese sobre a Empatia consistia em explicar o significado deste
reconhecimento do outro, ou seja, deste dar-se conta: tal como a expressão de dor que leio no rosto de alguém.
Porém, a especificidade do ato empático consiste exatamente na não identidade entre o sujeito empatizado e o
sujeito que empatiza. Vejamos como ela define este ato: “No instante em que a vivência emerge
improvisadamente diante de mim, eu a tenho diante como Objeto; porém, enquanto me dirijo para as suas
tendências implícitas e procuro conduzir a datidade mais clara o estado de ânimo em que o outro se encontra, tal
vivência não é mais um Objeto no real sentido da palavra, a partir do momento em que me atraiu para dentro de
si, por isso agora eu não estou já dirigido para esta vivência mas que, identificando-me com ela, me dirijo para o
seu Objeto, o estado de ânimo do outro, e me encontro no seu lugar” (STEIN, 1998, p. 77-78).
57
“quando responderem a esta carta, façam-nos ver essa situação”, e tantas outras expressões
presentes nesta e em outras missivas cujo conteúdo indica uma tomada de posição frente ao
outro ser humano, manifestando uma atitude positiva como confiança, amor, gratidão, e
mostrando também, em outras circunstâncias, o aspecto negativo, como a inveja, o ódio e
mesmo a antipatia. As missivas, em geral, instauram atos sociais
9
nos quais se pode
reconhecer, por meio dos seus efeitos, aqueles de natureza positiva ou negativa. Assim,
constata-se o amor no relacionamento entre pais e filhos na conseqüente força produtiva que o
amor tem de fundar e vivificar as relações interpessoais. Trata-se, neste caso, de um valor em
termos concretos que favorece ao ser humano atuar no sentido de encontrar meios para a
aproximação da família.
Na troca epistolar aparece, por exemplo, como vem ativada a entropatia quando os
pais referem aos filhos a percepção da própria condição de saúde, ao dizer: “recebemos sua
carta e lemos que gozam de excelente saúde assim como nós”. Trata-se da apreensão do outro
ser vivente como alguém semelhante a mim. Os pais, nesta carta, comunicam aos filhos a dor
de não poder abraçá-los, o sofrimento pela distância e pelas circunstâncias desesperadoras.
Tudo isso pode ser compreendido pelos filhos porque eles mesmos experimentaram a dor da
separação ao deixarem a terra natal. Essa tomada de consciência não significa, entretanto,
poder viver na qualidade que o outro vive, pois cada um tem uma percepção absolutamente
singular em nível de conteúdo a respeito do significado que é estar distante do outro que se
ama e da correspondente dor por esta separação. A vivência da entropatia verifica-se
igualmente quando, nas cartas, aparecem as saudações afetuosas de parentes e amigos que
permitem ao leitor da carta ativar a recordação, isto é, presentificar pessoas das quais se está
9
Para Stein, os atos sociais são aqueles em que uma pessoa se dirige a outras pessoas. Estes podem ser expressos
por meio de ordens, cartas, comunicação oral, perguntas. O que dá unidade a estes atos todos é o fato de eles
serem realizados a partir da vontade de mover as outras pessoas a um determinado comportamento, e podem
gerar um contexto operativo que ultrapassa o âmbito dos indivíduos e, dessa forma, influenciar a comunidade.
Em sentido amplo, até a tomada de posição no confronto de uma pessoa como a admiração e o amor podem ser
considerados atos sociais. Há, ainda um terceiro nível, como aqueles atos que têm a força de produzir ou anular
uma realidade objetiva no mundo social, como a promessa no casamento, ou a renúncia aos bens familiares, etc
(STEIN, 2000, p. 188).
58
separado e fazer memória dos lugares dos quais eram oriundos. Nesta vivência, o passado tem
o caráter de se tornar um agora, por isso, conforme nos informa Stein (1998, p. 75) “o eu, o
sujeito do ato de recordar, em tal ato de presentificar pode voltar o olhar para a alegria
passada” e, assim, conseqüentemente receber no seu íntimo, reportando-se àqueles velhos
amigos e, deixando-se renovar por aquela vivência recordada, chegar a provar as sensações de
contentamento por aquelas presenças. Esta é a importância da empatia, pois por ela se pode
entender não só a estrutura subjacente à pessoa humana, assim como, as formas de
experiência intersubjetivas e a relação da pessoa humana com as formas de alteridade
objetiva, como são a família, o povo e o Estado.
Por outro lado, quando os filhos do Sr. Luis, ao lerem a carta remetida da Itália pelos
pais, deparavam-se com as saudações provenientes de pessoas cujos nomes lhes eram
familiares estavam ativando a entropatia. Ao abrir a carta e encontrar escrito: “Luiza,
Antonio e todos os amigos conhecidos de vocês os saúdam”, imediatamente ativa-se a
capacidade de refletir e reconhecer as pessoas referidas. O mecanismo vem melhor
explicitado por Bello (2006, p. 64) e pode ser aplicado a este caso particular:
O ato da percepção se ativa quando leio no livro a palavra “Husserl”,
pois sei que se trata de uma pessoa, e dá-se o sentir-reconhecimento
de que é um ser humano e junto dá-se o ato da recordação, pois
recordo-me de quem é Husserl ou de alguém que me falou dele.
Nós mesmos, ao abrirmos as cartas desses imigrantes, lemos a assinatura do
remetente logo reconhecemos tratar-se de uma pessoa, ainda que ela não esteja diante de nós
em carne e osso. Ativa-se a possibilidade de apreender que estamos diante das vivências de
pessoas cuja estrutura fundamental reconhecemos pois têm traços universais que pertencem a
todos os seres humanos.
59
1.1.2 A Vivência da Esperança
Temos um tipo de conteúdo de vivência bastante particular que pode ser classificado
como um estado de ânimo no qual o sujeito é tomado inteiramente. O conteúdo da carta
enviada pelos filhos fez que se ativasse uma determinada vivência nos pais. A referência
feita pelos filhos de que seria possível o reencontro de toda a família novamente suscita um
impacto positivo. A possibilidade de abraçar de novo os filhos – em terras por eles
desconhecidas - fez nascer a esperança nos pais. A alegria pelas novidades dos filhos,
certamente os sucessos no Novo mundo, infunde força na alma dos pais. Temos, portanto, um
exemplo simples para ver como vem ativada uma determinada vivência.
A esperança é uma vivência análoga à empatia (PIERRO, 2005), pois, de certa forma, ela
nasce aqui porque os pais se colocaram na mesma perspectiva dos filhos, o que permite esperar
uma realidade futura: a possibilidade do convívio de toda a família unida. Como se pode verificar,
houve uma intersecção entre a experiência própria do sujeito e aquela proveniente dos outros na
compreensão da realidade. O vigor e as certezas provenientes das experiências dos filhos e outros
parentes que estavam já vivendo nas colônias no sul do Brasil tornaram-se objeto de atenção, e
serviram de força revitalizadora para a experiência dos pais. Este esperar por algo bonito que irá
acontecer e ser sustentado na experiência cotidiana pelas palavras e pela solidariedade de outras
pessoas tem um particular significado quando se trata desta pequena comunidade de vida – a
família – pois reflete os elementos constitutivos de uma comunidade, em termos da necessidade
de uma corrente de vida que possa unir todos os indivíduos que dela fazem parte.
O ser humano tem potencialmente capacidade de empregar as suas últimas forças de
ação, em virtude de sua liberdade e da atividade voluntária, na consecução dos seus objetivos
e fins, mesmo em estados de fadiga física ou psíquica
10
. No caso da carta acima, vemos que o
Sr. Luis descreve aos filhos um estado desolador. As palavras utilizadas dão o contexto: “por
10
Segundo Stein (2000, p. 174) a força é uma qualidade permanente do ser humano, que não vem vivida
diretamente, mas que se apresenta, se oferece ao ser humano diretamente através das vivências.
60
mais que se trabalhe não progredimos nunca”, “nos arranjamos cada vez pior”. Que sensações
podem ser extraídas deste tipo de relato? São todas expressões que revelam um mal-estar
vivido, assim como, um cansaço e uma menor medida de força na vida. Paradoxalmente, há
um incremento de força proveniente das boas notícias que a carta recebida da América
consegue suscitar fazendo que eles esperem e sonhem com o abraço aos filhos nas terras
estrangeiras. Há também a espera de serem confortados e revigorados em suas forças pois
afirmam: “Ah, quisera Deus que nos possamos reerguer depois de tanto sofrimento e
adversidade”. O sentido de pertença à família vem expresso com maior evidência. Assim, o
sonhar o futuro perto dos filhos, mesmo que isso signifique deixar a terra natal, reacende no
coração destes pais a esperança. Isto nos faz pensar na atividade da vontade no sentido de
direcionar as forças para a realização de certas atividades ou para a tomada de decisão. Por
outra parte, há também os impulsos provenientes do ambiente – que, no caso, pedem a
urgência de buscar outros meios de sobrevivência – e dos provenientes da força espiritual de
outros sujeitos que alimentam a força espiritual da psique individual.
A solidariedade manifestada nestas cartas dos camponeses indicam-nos que a vida do ser
humano – como afirma Stein (2003, p. 212) – “não vem só alimentada do interior, mas também
do externo, isto é, das coisas que esta pessoa encontra e das pessoas com as quais convive”. Elas
nos falam da experiência da vida de comunhão em que aparece a conexão entre os conteúdos das
vivências dos indivíduos e sua relação com as experiências do grupo familiar em contextos
diversos.
Vários imigrantes, autores de cartas, colocam como conteúdo de sua esperança a
possibilidade de enriquecer na América É preciso entender o significado de “fazer a América”
como categoria na mentalidade dos camponeses daquela época a partir da visão paradisíaca
com relação à América: lugar onde seria possível realizar o sonho de tornar-se proprietário do
próprio terreno e conquistar riquezas com pouco trabalho.
61
1.1.3 A Motivação
A correspondência com os filhos, além de servir para consolidar uma aproximação
afetiva, acaba sendo o fator desencadeante de uma série de outras vivências que se dão
simultaneamente. Mas todos estes atos realizados na vida pelo ser humano são baseados em
motivações
11
. Quando o Sr. Luis escreve aos filhos dizendo: “vocês fizeram nascer em nós
uma esperança ao dizer que podemos nos abraçar ainda neste mundo” e, em seguida, pede as
informações sobre a qualidade das terras e sobre as diversas plantas e frutas cultivadas na
América, parece indicar-nos a busca das condições e das razões para tornar possível, por
exemplo, o projeto de emigrar também ele da Itália para a América
12
. A troca de experiência
das vivências dos filhos na América impulsiona os pais a pensar diversamente a própria
situação. Pode-se dizer, segundo a linguagem fenomenológica, que as vivências das duas
partes estão numa relação de produção e reprodução. Para compreender esta conexão, talvez
valha a pena considerar a própria explicação de Stein (1999, p. 195):
Uma outra pessoa, comunicando-me o seu pensamento, abre-me,
passo a passo, a compreensão do sentido originalmente constituído no
seu pensamento. Vivendo-o, me impulsiona a continuar a pensar, o
que não é mais uma reprodução sucessiva, mas uma produção
originária, em que se me abre um novo complexo parcial da conexão
de sentido global. Assim se desenvolve, na troca de pensamentos, um
pensar junto que não é vivido só pelo indivíduo, mas é um pensar em
comum.
11
Segundo a perspectiva da psicologia fenomenológica, a vida psíquica está submetida a determinados motivos
que regem o desenvolvimento do processo psíquico, contudo, por outro lado, há a função da motivação a qual
submete a psique ao domínio da razão. O motivo sempre impulsiona, já a motivação me faz procurar as razões,
me faz perguntar pela conveniência e pela possibilidade ou não da realização do motivo. Para Ales Bello (2000,
p.150), “a motivação não deve ser limitada ao âmbito dos atos livres, mas é representativa da estrutura de toda a
dimensão das vivências intencionais”.
12
Poderíamos dizer que, se a tomada de decisão em deixar a pátria aparece nesta carta e em outras como um dos
momentos ápices da vida daquele que atravessa o chamado ‘fosso grando’ – o oceano – então, provavelmente
neste ato está presente em si uma avaliação: existe um valor a atrair o sujeito, isto é, algo que serve de motivação
para que o sujeito vá em busca de condições melhores para sua existência. Por esta escolha, a pessoa torna-se
disposta até em sacrificar algo do seu ser e, eventualmente, até dos prazeres do convívio com os familiares e da
terra natal. Contudo, ainda que ela consiga realizar ou não os objetivos que busca, e perceba ou não o valor
objetivo da decisão tomada, permanecerá a exigência de contato com as pessoas e as coisas que sustentaram a
vida, sobretudo, o universo cultural e espiritual de um determinado povo (STEIN, 1999).
62
A intenção, por exemplo, de emigrar por parte dos pais começa a delinear-se na
medida em que coincidem o motivo – o abraço e o reencontro com os filhos – e as razões que
servem de fundamento para qualquer decisão, tal como são as informações positivas a
respeito da nova realidade se comparadas com a carência de recursos na terra natal. No
motivo, portanto, existe sempre uma força fundante para poder entender o comportamento
racional do sujeito (STEIN, 1999).
Há um motivo proveniente dos filhos servindo de estímulo aos pais. Devemos
observar este dinamismo, pois esta estrutura é o que interessa na análise fenomenológica. Há
“alguma coisa” que estimula, no sentido de fazer tender a, isto é, faz o sujeito inclinar sua
atenção para esta idéia. E isto, por sua vez, o move para poder realizar este algo, por exemplo:
a idéia de empreender a viagem. Para o sujeito vai se delineando uma certa consciência de um
objetivo. Por isso, de um simples impulso que o faz pensar na idéia de transferir-se para a
América, vai acontecendo um inclinar a atenção, no sentido de conceder que ela passe a
entrar dentro e, assim, o sujeito é guiado pela satisfação de saber que naqueles lugares poderá
encontrar maiores possibilidades para o desenvolvimento de suas potencialidades.
Aqui vê-se, por outra parte, o quanto é possível a passagem de motivos de um
indivíduo para outro. Por qual razão isso acontece? Segundo se pode entrever na carta, é pela
recíproca compreensão que os acumuna seja como parentes mas, por outro lado, a partir da
trágica situação vivida na terra natal. De fato, existem circunstâncias específicas apontadas na
carta que servem para fazer mover o desejo de imigrar. Em muitos casos, o que move o desejo
dos camponeses é exatamente o ter ouvido o testemunho de amigos e parentes já
estabelecidos em terras americanas
13
.
13
Houve, por outro lado, o uso das cartas ligado a certa propaganda emigracionista na tentativa de convencer o
camponês em deixar sua cidade natal por meio de promessas que não correspondiam à realidade. É o que aparece
nas linhas de Massimiliano Amadio em carta enviada a tia: “Cara tia, quantas você e minha mãe me falaram
desta maldita América que foi realmente a nossa desgraça. Eu vos peco: não saiam daí, pois vocês estão muito
bem e não têm consciência de que estão bem. Não creiam nas cartas que chegam desta parte, entre tantas haverão
algumas que dizem a verdade, mas acho que a maioria são embustes, aqueles que a escrevem estão indo muito
mal e desejariam fazer com que os que estão bem na Itália viessem pra cá. Oh! Quantos que aqui na América
arrancam os cabelos por terem escutado os discursos e as cartas das pessoas” (FRANZINA, 2000, p. 69).
63
1.1.4 Os Sentimentos
Devemos partir da consideração da força vivificante de determinadas vivências dos
sentimentos como fonte dos impulsos e das atividades. Já foi possível mostrar o modo como a
“desejada” carta remetida da América pôde servir de impulso aos pais, os quais na leitura das
notícias dos filhos e das possibilidades apontadas em termos de trabalhos, começam eles
mesmos a vislumbrar um novo horizonte para a própria existência. Agora devemos observar
de que forma também as vivências dos sentimentos colocam em movimento uma certa tomada
de decisão e como esta leva efetivamente a uma ação.
A vida dos sentimentos é expressiva porque, por sua essência, a força neles presente
tem de encontrar meios para ser liberada. Ou seja: deve encontrar modos de externalizar-se. É
impensável que o ser humano não responda à urgência que os sentimentos têm de “sair de si
mesmos”. Antes, pela necessidade de expressar-se há como conseqüência o fato de que eles
motivam os atos da vontade e as ações; e, mais particularmente, podem motivar também uma
manifestação expressiva (STEIN, 1998). A relação entre os sentimentos e a sua
correspondente necessidade de expressão aparece em diferentes níveis, sublinhado pelo Sr.
Luis:
Não sabendo em que outro modo exprimir nossos sentimentos, saudamos
vocês em coro, e vertendo lágrimas de amor, de afeto e de consolação,
damos-lhes um beijo, um aperto de mão, a vocês filhos, irmão, cunhada e a
sua amável e graciosissima filhinha Bernardina. Oh, esta menina! Que dor
não poder abraçá-la e apertá-la ao peito! Mas basta temos uma esperança
14
.
Vê-se, neste trecho, perfeitamente como por meio da expressão lingüística escrita
emergem os elementos da interioridade do ser humano. Trata-se, aliás, de expressões que
mostram um estado interior, colocando em evidência não só a mera necessidade de uma
percepção sensível do corpo vivente do outro do qual o remetente está distante, mas uma
escala de afetos revelando amor, consolação, dor e esperança. A peculiaridade destes
14
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC 20-15
64
movimentos da alma encontra-se no caráter de fonte tanto para o incremento quanto para a
consumação das forças psíquicas. Cada ato, segundo sua qualidade, comporta um consumo de
forças proporcional à participação do indivíduo naquela vivência como exemplifica Stein
(2003) ao dizer que a raiva, a irritação, a tristeza etc causam um desgaste no ser humano,
enquanto, o entusiasmo, a alegria, o amor, acrescentam vigor à vida.
Na análise deste fragmento da carta, temos de considerar, em primeiro lugar, os
dados sensíveis que cooperam como matéria para poder estabelecer a proximidade com os
destinatários. O trecho ‘saudamos vocês em coro vertendo lágrimas de amor, de afeto e
consolação’ serve para expressar que todos da família estavam tristes com a separação,
contudo, alimentados pela esperança, podiam sentir consolação. As lágrimas manifestam, ao
mesmo tempo, diversas vivências. Vejamos um exemplo: vivendo o amor tanto na sua
dimensão psíquica quanto espiritual, os sujeitos também vivem a atualização dele pelas
lágrimas, revelando o apego, o impulso e a vontade unitiva própria do amor. Já a vivência do
sentimento de dor (expresso em relação ao fato de não poder abraçar os filhos e netos) tem, no
dinamismo psíquico, os seus efeitos nas funções do corpo, especialmente, provocando as
lágrimas. A expressão das lágrimas que correm no rosto é simplesmente o lado externo da
dor, de forma a constituir uma unidade natural entre a dor e a expressão triste no rosto. O
modo com que o autor da carta externaliza os sentimentos adquire seu verdadeiro sentido
quando associado à corporeidade. A vida dos sentimentos, portanto, serve de motivo para as
expressões do corpo: o querer beijar, apertar a mão, abraçar e estreitar ao peito as pessoas
caras revela que o sujeito, mesmo percebendo os limites impostos pela distância, cria o
âmbito para realizar aquilo que na realidade estava impedido de ser realizado. Evidentemente
a carta transforma-se no canal para a expressão de todos esses desejos dos pais e dos
familiares com relação aos filhos emigrados. A rigor, toda essa apresentação, no caso
65
específico dos sentimentos, faz pensar na função da carta oferecendo-se como objeto que
permite presentificar, e, assim aproximar dois mundos.
Segundo a sua essência, os sentimentos devem sempre motivar algo, ou seja, eles
devem chegar a revelar formas diversas de expressão. Poderíamos perguntar: o sentimento de
dor pela separação dos filhos motiva alguma ação por parte dos pais? Ou ainda: o sentimento
da esperança – revelado pela carta recebida da América - que relação guarda com os atos
volitivos no caso específico analisado? Consideremos, antes de tudo, um aspecto muito
importante: se de um lado os sentimentos no seu extrinsecar-se motivam o ato da vontade, por
outro, este último, exprime-se na ação. Os atos da vontade, portanto, a semelhança com os
sentimentos, não são fechados em si. Dessa forma, a vontade dos pais de unir-se aos filhos
pode levá-los a realizar diversas ações. Escrever uma carta é uma delas. E se isto ainda não
basta, pode-se começar a planejar uma viagem. Enfim, se estas ações não podem ser
realizados por algum motivo, o ser humano tem ainda a possibilidade de ativar, por meio da
fantasia, e imaginar a viagem e o encontro com os entes queridos. Segundo Stein (1998, p.
141), nestes casos, será possível “criar um mundo, em que posso levar realizar aquilo que me
é negado, e isto é de per se uma forma de expressão”.
Nas cartas, os sentimentos encontram uma forma de serem registrados. Aliás, todos os
fenômenos expressivos têm a força de emanar os sentimentos e, ao mesmo tempo, eles são
expressão das qualidades psíquicas que se manifestam neles, revelando o caráter, pois cada
um dos sentimentos possui um conteúdo que faz direta referência às facetas do eu. Na
verdade, mesmo o exame de uma simples experiência, como o caso do sentimento de dor pelo
distanciamento físico dos entes queridos, de modo essencial, permite captar o relacionamento
estreito existente entre a esfera vital e os sentimentos (STEIN, 1999), pois, de fato, os
sentimentos não só se nutrem da esfera vital, mas a influenciam por meio dos seus conteúdos
podendo ser fonte de novas forças ou ter efeitos negativos.
66
1.1.5 As Formas de Conhecimento
É importante notar o modo utilizado pelo remetente na carta para que o “mundo
desconhecido” – a América – possa ser apreendido e conhecido. Toda a forma de
conhecimento especificamente humano é um processo racional que comporta um movimento
a fim de buscar intuir a verdade
15
. Neste sentido parece interessante observar a vontade que os
pais manifestam na carta de poder compreender melhor como estão vivendo os filhos, como
se relacionam com os parentes e, além disso, tentar extrair informações sobre as condições
materiais do mundo no qual seus filhos estão inseridos.
Ficamos satisfeitos em saber que também ai nesses lugares vinga o bicho da
seda, criação muito lucrativa. Falem-nos sobre todas as qualidades de frutas,
cereais e legumes, em suma tudo o que aí se cultiva, se é bom ou não, se as
terras de vocês são planas ou montanhosas, e se aí crescem as vinhas para
fazer bom vinho, e se existe terreno firme para, querendo, poder-se construir
alguma edificação
16
.
A primeira expressão desta carta nos faz ver como os atos se dão em estreita conexão:
vemos que junto aos atos cognitivos acontecem outros atos psíquicos como o dos sentimentos.
Por meio do primeiro o ser humano toma consciência dos acontecimentos e reflete sobre eles,
já em seguida há uma tomada de posição frente a estes objetos conduzindo a uma avaliação –
no caso aqui positiva – sentindo o valor de um acontecimento ou de um objeto. E,
conseqüentemente, o ser humano é levado a considerar a positividade ou não de uma coisa
que, por sua vez, pode ser: boa, agradável, ruim, desastrosa, etc. O autor da carta revela isso a
seu destinatário por meio da reação de satisfação frente às notícias de que na América era
possível realizar a criação do bicho da seda. O sentimento de satisfação está, portanto,
15
Stein nos diz que o elemento comum em todo conhecimento é que este nos abre a alguma coisa, é um
movimento no qual se reconhece múltiplas vivências. Eis como ela formula tal dinamismo: “O movimento do
conhecimento é atividade e como tal é obra da vontade, ou seja, a ação do intelecto vem dirigida pela vontade.
De outro lado, a vontade como tal é cega, e não pode escolher como objetivo aquilo que o intelecto não lhe
apresenta em forma de certeza. Isto pode parecer, a primeira vista, um circulus vitiosus, entretanto não é. (...) o
refulgir de uma verdade exige a obra do intelecto para que possa tornar-se posse duradoura. Neste refulgir o
intelecto recebe passivamente algo, recebe-o como motivo que quer ser posto em movimento e que com a
participação da vontade efetivamente se move” (STEIN, 1983, p. 627).
16
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC 20-15.
67
relacionado à tomada de consciência deste acontecimento. Por outro lado, este tipo de
sentimento difere daqueles de ordem mais afetiva considerados acima, e são de ordem
axiológica pois são atos avaliativos diante de um bem percebido.
Na seqüência desta carta, vemos manifestar-se o desejo de que os filhos possam
informá-los de “tudo o que se cultiva”. O pedido feito não é o de simplesmente descrever o
mundo externo tal como vem percebido sensivelmente. Ainda que nos níveis mais
elementares, há um mínimo de exigência, para que esta informação possa ser iluminada pelo
intelecto, pois só este pode, por exemplo, entender a forma das coisas para que se possa falar
das qualidades delas. Esses camponeses, por sua vez, tinham certo conhecimento prático, isto
é, no seu campo específico, eram mestres pois tinham as habilidades necessárias para dominar
as técnicas e a prática para, por exemplo, saber dizer se o terreno era bom para poder cultivar
videiras e dar bom vinho, assim como informar as diferentes qualidades de frutas e dos
respectivos terrenos.
Seria possível dizer, em base ao conteúdo da carta e, em particular, ao tipo de interesse
manifestado e às informações solicitadas, algo a respeito da característica própria deste grupo
familiar a partir das habilidades que manifestam no plano prático. Segundo Stein (1983), o
intelecto prático dos tipos humanos como o dos artesãos, dos camponeses, dos técnicos, das
donas de casa, exerce um papel essencial na vida destas pessoas no sentido de ver o mundo
como campo de ação e, portanto, há o empenho de contribuir com o próprio talento prático
para a transformação do mundo. Pela carta, sabemos que o motivo da satisfação do Sr. Luis
liga-se ao fato de que também nas longínquas terras era possível aos seus filhos desenvolver a
criação do bicho da seda. E este é um dado significativo para o imigrante porque as
possibilidades expressivas da sua personalidade, que lhe consentiam intervir no mundo
externo, não sofriam fraturas violentas. Vê-se, por outra parte, que os fins que persegue o Sr.
Luis na tentativa de obter as informações a respeito da América são objetivas e ligadas ao
68
mundo prático e de trabalho desses camponeses. A ligação com os trabalhos do cultivo da
terra
17
, da criação dos bichos de seda, da fabricação do vinho e da edificação constitui,
outrossim, a contribuição dada pelas massas de camponeses que imigraram, enriquecendo a
cultura dos lugares em que se fixavam. A vida pessoal dos camponeses exprime-se no gesto
de transformação manual, e a personalidade deles, sem dúvida, irrompe atrás de tudo o que
produzem. Aliás, o interesse manifestado pelo autor da carta em conhecer “tudo o que se
cultiva” na América converge com a perspectiva descritiva própria da fenomenologia segundo
a qual tudo aquilo de que se ocupa o ser humano no mundo pode trazer as marcas da sua
personalidade e indicar os traços típicos da sua característica pessoal (STEIN, 1999).
1.2 AS CARTAS DESTINADAS DO BRASIL À ITÁLIA
Vamos agora analisar duas cartas escritas a partir do Brasil e enviadas por imigrantes
em resposta aos seus familiares radicados na Itália. São correspondências nas quais as
questões da inter-subjetividade ocupam lugar central e, portanto, o acento posto pelos
respectivos remetentes é o da importância decisiva que há, nos momentos de crise, da
possibilidade dos reencontros que conduzam a um colóquio autêntico e vivo entre as pessoas
pertencentes ao mesmo grupo familiar em dois diferentes ambientes. Esta estrutura
comunitária – a família – tem um papel importante para as pessoas pois é uma comunidade
fundada não apenas sobre relacionamentos ligados ao presente, mas os laços criados por estes
relacionamentos são duradouros porque tendem a estender-se pelas gerações. Com efeito, será
possível ao leitor constatar o testemunho dos imigrantes a respeito dos episódios em torno da
17
Na perspectiva fenomenológica de Stein (2003, p. 191), nenhum objeto é pura materialidade, mas é informado,
porque cada objeto desvela um sentido peculiar que lhe pertence: “(...) uma parte essencial da vida humana
consiste no manejar coisas externas, as quais nos são muito familiares e estão estreitamente conectados à
materialidade. Nós sabemos para que servem e como devem ser utilizadas, temos consciência disso e as usamos
como os membros do nosso corpo”.
69
II guerra mundial e, igualmente, verificar a solicitude dos imigrantes com relação aos
parentes deixados na pátria de origem e a ânsia por notícias dali provenientes. A capacidade
do ser humano de interagir com outros vem manifestada na correspondência ítalo-americana
por meio das quais podemos nos informar sobre a situação de vida e de trabalho e, em
particular, vêm à luz a situação desastrosa da guerra e, não menos eloqüente, aparece o juízo
avaliativo e comparativo a respeito dos diversos contextos. Stein (1999, p. 162), por exemplo,
considera que “é verdadeiramente maravilhoso como este eu, não obstante sua singularidade e
sua insuprimível solidão, possa entrar em uma comunidade de vida com outros sujeitos”.
Estas missivas foram conservadas pelos destinatários, ou seja, pelos familiares
italianos da família Z. e, posteriormente, com o passar dos anos, este conjunto de cartas serviu
de novo como elo para poder unir os descendentes da família Z. da Itália e Brasil por ocasião
das festas jubiliares da imigração. O contexto de escrita é o final da II guerra mundial. Depois
da leitura da carta, assumindo uma atitude reflexiva, podemos começar uma discriminação de
alguns atos mais significativos que nos são dados pela análise.
Cotiporã, 11-10-46
Caríssimo primo Antonio e família,
Faz pouco tempo que recebi uma sua carta escrita no dia 27-1-46. Você
pode ver o quanto vagou pelo mundo antes de chegar em minhas mãos. Foi
com muito prazer que a recebi porque faz muitos anos que não recebo
notícias do além-mar.
Fiquei muito contente pelo fato de encontrá-lo entre os viventes, sobretudo
depois das grandes destruições causadas pela guerra, com cinco sobrinhos
em combate, e pode-se dizer que é um verdadeiro milagre que o Senhor os
haja restituído. Fiquei também maravilhado com a tua numerosa família, e
por isso escreva-me, e faça-me saber como está se comportando.
Agora deixo-lhes as minhas notícias. Você deve saber sobre a morte do meu
pobre pai. Ele morreu em 1922 e em 1924 meu irmão Matias. Nós somos
ainda em quatro. Eu, meu irmão João, e duas irmãs, a Augusta e Lucia. A
minha família depois é composta de 12 filhos e nós dois. Aqui, caro primo,
não é mais como no tempo passado que era uma carência enorme, quando
todas as coisas iam mal, porque não sofremos a guerra, mas certamente
iremos sofrer as suas conseqüências, mas nós podemos agradecer a Deus,
porque trabalhando passamos bem do mesmo jeito.
Na Europa, ao contrário, não é assim: pouco trabalho e pouco para comer,
por aquilo que ouvimos.
70
Termino esta minha carta mal escrita, desejando-te cordiais saudações dos
meus de família e também dos meus sobrinhos. Gostaria de escrever mais,
porém nós aqui no Brasil, não sabemos muito bem escrever na nossa velha
língua. Esta que lhe envio escrevi com muitos erros. Se quiser vir aqui no
Brasil, o prazer é todo nosso. Aqui se passa bem, mas trabalhando muito.
Envie-me fotografias dos teus familiares porque em outra carta que te
escrevo te enviarei de todos os nossos daqui. Peço que me responda e possa
dizer-me alguma coisa da Itália. O meu endereço é este:
José Z.
Cotipora – Veranópolis
18
Poderíamos perguntar: para que serve esta carta? O que ela possibilita? Quais
vivências são possíveis de serem identificadas? Qual o nexo entre as reações e os
sentimentos? Que desejos são manifestados por meio dela? Estas perguntas nos permitiram
percorrer o caminho da análise que se segue, principalmente, dos sentimentos, das
recordações e das vivências comunicativas.
1.2.1 Os Sentimentos
observamos que o ser humano o é apenas um corpo sico, mas um corpo
vivente, isto é, traz consigo uma vida interior que se exprime. Pelos atos dos sentimentos, o
sujeito participa positivamente ou negativamente diante das sensações, dos pensamentos e das
ações. Há diversos estratos que podem ser separados e examinados. Quando o sujeito recebe
nas mãos (na fenomenologia é muito importante a análise das sensações: o tocar, o ver, o
ouvir) a carta que vagou pelo mundo e diz que ela foi recebida com prazer, está manifestando
aquilo que sente diante do objeto. Aquela carta suscita um certo estado interior positivo.
Temos, portanto, um primeiro tipo de sentimento ligado a este sentir prazer, alegria, ira, ou
tristeza etc, no qual o sujeito tem uma reação ao tomar consciência de algum objeto.
Em seguida, poderíamos considerar, as expressões nas quais o remetente revela outro
tipo de sentimento. Como quando diz: “Fiquei muito contente de encontrá-los entre os
viventes”. Este é outro nível referente aos sentimentos afetivos nos quais o sujeito manifesta
18
Arquivo Paroquial “San Martino” Cx. Z1.
71
amor, preferência, carinho, estima por alguém ou algo. Além disso, deve-se levar em conta os
anos em que não houve nenhum contato, por esta razão, a carta do além-mar reveste-se de
particular significado, é um bem que enche de contentamento o sujeito que a recebe. De outra
parte, há também o contentamento pelas favoráveis condições de alguns familiares que
participaram dos combates na guerra. Assim, na carta cruzam-se as vivências dos indivíduos
e aquelas comunitárias da guerra, que traz destruições e sofrimentos para os membros da
família, bem como para a coletividade. As cartas revelam também as memórias da guerra e o
quanto tal situação de destruição gera desenraizamento, isto é, o desaparecimento das
condições inter-subjetivas.
Stein (1973, p. 246), ao falar das vivências da guerra, descreve-a como
diminuição das forças de uma nação:
Uma das minhas primeiras vivências deprimentes da guerra foi o
espetáculo de uma longa fila de cavalos que haviam sido requeridos
para o exército e que atravessaram as ruas. Isto me fazia pensar em
uma enorme bomba aspirante que extraia todas as reservas de forças
do país. Uma angústia semelhante foi produzida quando meses mais
tarde vi o porto de Hamburg totalmente morto.
ainda um outro tipo de sentimento manifestado da seguinte maneira pelo Sr.
José: “Fiquei também maravilhado com a tua numerosa família e, por isso, escreva-me, faça-
me saber como está se comportando”, em que a tomada de posição afetiva leva o sujeito a
buscar a união com o interlocutor.
A passagem dos sentimentos a seus efeitos específicos pode ser constatada como
uma força construtiva, no interior da pequena comunidade, em que a tomada de posição de
um membro da família – ao comunicar as boas notícias depois dos tempos de guerra –
provoca um efeito no destinatário da carta – a alegria, o maravilhamento - e serve de
estímulo ao relacionamento recíproco. Certamente a alegria, o contentamento frente às boas
noticias dos familiares, alguns deles sobreviventes da guerra, faz que nasça um sentimento de
72
gratidão pelo valor que tem a vida do outro. Trata-se, portanto, de observar que este tipo de
contentamento constitui uma nascente de força, servindo de estímulo para o estreitamento das
relações.
1.2.2 A Vivência da Recordação
Depois de expressar os sentimentos suscitados pela carta que recebera dos parentes do
outro lado do Oceano, o remetente passa a narrar acontecimentos próprios das vivências do
seu grupo familiar no Brasil. Ele ativa uma memória não só individual, mas a história do
grupo e ao lembrar vai, pouco a pouco, oferecendo uma síntese dos eventos principais.
Interessa ressaltar que a vida do ser humano está posta no processo de transformação
caracterizado pelo fluir contínuo de vivências, as quais têm um início e um fim e, desse modo,
quando elas se concluem passam a pertencer ao passado dando início a uma nova fase
(BELLO, 2005). As vivências, portanto, não se anulam. Elas permanecem presentes e podem
ser ativadas por meio da recordação. Para Husserl (2001), a dinâmica de tal vivência é a de ser
uma aparição que revive, isto é, que me traz o objeto do passado. Assim, no caso de nosso
autor, quando escreve comunicando sobre a morte dos seus entes queridos, estava, no seu
íntimo, tendo a representação daquelas pessoas. Portanto, no momento em que escreve a carta,
no ato da recordação, dá-se uma presentificação originária ao sujeito que o realiza. Entretanto,
o objeto da recordação não estava em carne e osso presente diante dele, era, sim representado
como presente em si mesmo, mas, num tempo precedente, o conteúdo era passado. A
recordação é sempre este tornar presente uma percepção precedente e, conseqüentemente,
aquilo que foi vivido pelo remetente se divide no ato de recordar e no seu conteúdo, tal como
acontece para todas as outras vivências.
É necessário observar, por outro lado, que o próprio ato de escrever uma carta não
poderia ser realizado sem antes ativar aquilo que nós aprendemos, e isso significa que no ato
73
de escrever e na compreensão de algo, o ser humano tem necessidade de ativar a recordação.
Todos os seres humanos possuem a mesma estrutura
19
e operamos todos por meio da
percepção, da capacidade de refletir, das recordações, enfim, por um fluxo de vivências que
são impulsionadas pela força psíquica.
As vivências da recordação têm aqui nesta carta uma modalidade particular. O autor
informa ao destinatário da sua missiva, de forma breve, eventos ocorridos num largo espaço
de tempo. Ele passa a recapitular os acontecimentos de anos vividos como um ato unitário de
presentificação em que se re-percorre as vivências passadas no seu todo. Ao mencionar os
tempos em que se sofria carestia e, ao trazer à memória a situação passada, ainda que não
expresse o seu comportamento interior a respeito dela, o remetente dá um juízo negativo
acerca do passado porque percebe as diferenças com o presente em que a situação foi
modificada por um esforço de trabalho, de transformação da realidade:
Agora lhes deixo as minhas notícias. Você deve saber sobre a morte do meu
pobre pai. Ele morreu em 1922 e em 1924 meu irmão Matias. Nós somos
ainda em quatro (...) Aqui, caro primo, não é mais como no tempo passado
que era uma carência enorme, quando todas as coisas iam mal, porque não
sofremos a guerra, mas certamente iremos sofrer as suas conseqüências, mas
nós podemos agradecer a Deus, porque trabalhando passamos bem do
mesmo jeito
20
.
No final da correspondência, temos o típico pedido do envio de fotos. Na situação dos
imigrantes, junto com as cartas eram também enviadas as fotografias. Era um outro fator que
ajudava a manter o relacionamento entre os parentes distantes e acompanhá-los como se
estivessem presentes. Na fotografia, as pessoas são vistas. Por intermédio desta técnica, são
registrados os eventos fundamentais da existência: como o nascimento, o crescimento e
envelhecimento do ser humano, bem como as realidades do mundo e do ambiente em que se
inseriam os imigrantes. Por que são tão importantes estas imagens para quem se encontra
distante dos seus? A vivência que se ativa é a da percepção do outro, bem como a da
20
Arquivo Paroquial “San Martino” Cx. Z1.
74
recordação. A modalidade da presença do outro nesse caso tem uma peculiaridade: a
recordação do outro que a foto traz faz com que o sujeito torne presente um objeto que não
pode ser vivido originalmente (BELLO, 2003), em carne e osso, porém, o essencial é que por
meio dela o sujeito vive, de modo originário, não o objeto da percepção mas o conteúdo da
recordação que remete aos lugares vividos ou presentifica as pessoas que se amam. Na
imigração, o dado fotográfico assume o estatuto da representação daquele que está ausente e,
assim, ajuda a vencer a nostalgia da distância entre entes queridos.
1.2.3 As Vivências na Comunicação Discursiva
Na última parte da carta, o remetente salienta elementos importantes para o discurso
comunicativo e para um intercâmbio que propicie a revelação de parte a parte. O missivista
termina a carta enfatizando sua dificuldade em escrever na língua pátria, ou seja, no dialeto
vêneto. Desculpa-se pela carta “mal-escrita” e salienta que gostaria de escrever mais, contudo,
percebe as dificuldades do uso da língua de suas origens, pois, depois de mais de quarenta ou
cinqüenta anos radicados em outra terra já se encontram adaptados aos costumes e modos de
falar e escrever da pátria adotiva. Os níveis da aproximação com o outro vêm manifestados
por outras formas: pelo pedido de troca de fotografias para conhecer a família; pelo convite
para que os familiares venham trabalhar no Brasil e, por fim, pela insistência para que haja a
resposta da carta com as notícias da Itália.
O ser humano, na sua estrutura fundamental, não só está aberto a tudo aquilo que
existe em torno a si, mas a sua natureza tem uma particularidade que é a da abertura recíproca
com outras pessoas (STEIN, 2000). Essa abertura manifesta-se de maneira clara nestas cartas
familiares. Desse ponto de vista, se é o caso de buscar os pontos que permitem essa
compreensão recíproca – o que está claro dado o contexto de vida dos parentes italianos que,
por conta da guerra, sentem o risco do desaparecimento das condições inter-subjetivas – teria
75
de haver uma atenção à correlação entre os sinais escritos e as vivências psíquicas das pessoas
que se freqüentam, isto é, à coordenação recíproca entre a capacidade de informar sobre certas
vivências psíquicas por parte do remetente e a forma como é assumida essa informação pelos
destinatários. Assim, no discurso comunicativo, todas as expressões servem como sinais das
vivências psíquicas e espirituais que compreendem todos os atos de quem escreve, e, por
conseguinte, atos que os destinatários conseguem acolher intuitivamente dentro de si. Na
troca epistolar, portanto, ativa-se a possibilidade de percepção do outro como uma pessoa que
exprime algo. É, nesse sentido, uma escuta que supõe introduzir-se no contexto vital do outro,
e isto se dá, nos níveis da compreensão lingüística. Na carta, alguém dirige uma palavra a
outro: de forma que quer tornar conhecidas as suas vivências e o sentido delas ao outro. Por
isso, esquecer a forma de escrever na “velha língua dos antepassados” constitui, sem dúvida,
um empecilho à compreensão recíproca. No discurso comunicativo, todas as expressões,
portanto, remetem aquilo que Husserl (2001a, p. 300) chama de sinais com função
informativa, e observa: “para quem escuta, as expressões servem como sinais de pensamento
de quem fala, isto é, das suas vivências psíquicas, assim como das outras vivências contidas
na intenção comunicativa”. Ao responder aos parentes, o Sr. José estava realizando um ato
(uma experiência vivencial) na tentativa de tornar presente ao outro (e a si mesmo pela
reflexão a respeito dos acontecimentos) o mundo da própria vida, isto é, estava
compartilhando a experiência normal da realidade na qual estava inserido. Por outra parte, ele
reconhece que poderia falar mais, e talvez dos hábitos normais, dos interesses e objetivos
práticos, enfim, de tudo o que aqueles sujeitos viviam na sua comunidade, mas confidencia a
dificuldade em escrever a partir dos referenciais do seu mundo tradicional. A questão da
pertença a um povo só pode ser real na medida em que as pessoas singularmente sintam a
importância da própria participação (STEIN, 2000). Mas este pertencer só pode ser possível
porque estão presentes alguns canais que consentem a troca de novidades e o fluxo da arte de
76
contar. Mediante a troca das correspondências, a consciência desta pertença a um determinado
mundo cultural era continuamente despertada. O que emerge deste trecho da carta é que para
o Sr. José estava viva a consciência de membro do povo e a vontade de empenhar-se para que
a comunicação com o “além-mar”, fonte de sentimentos de contentamento, pudessem
continuar presentes. Temos, por fim, outros pontos que na carta favorecem a troca de
influências entre as duas partes: as solicitações de resposta e de notícias da Itália, bem como o
pedido para a troca de fotografias. Todos estes pontos, na sua convergência, são aspectos
complementários ao enraizamento.
Há ainda outra carta da mesma família em que se pode identificar o quanto
representativo foi este reencontro entre os dois mundos. As notícias recebidas fazem com que
outros membros da família busquem também se corresponder. A multiplicação dos contatos
propicia a preservação dos vínculos com o passado:
Cotiporã, 8 de janeiro de 1947
Caríssimo primo Antonio e família,
Venho até vocês com esta minha carta esperando possa encontrá-los em
ótimo estado de saúde, como posso afirmar de nós até o presente. Por meio
do tio José sei de vocês pois ele teve as vossas notícias faz pouco tempo. Ele
ficou muito contente de ter ainda relação com o outro lado do mar.
Caro primo, me dirijo a você suplicando de poder dar-me informações de
Fioravante Luigi e família. Escrevi alguns anos atrás, diversas vezes, mas
não recebi nenhuma resposta, mas é impossível que estejam todos mortos.
Faz já seis anos que não tenho mais nenhuma notícia. Naquele tempo
estavam ainda no município de Fregona. Mas não sei se eles não mudaram
de cidade. Seria um grande favor, se vocês me fizessem saber alguma coisa a
respeito deles. Por hoje é só. E só espero que me possam responder a isto, e
que com muito prazer vou esperar e, então, vos escreverei com maior
detalhe. Despeço-me de vocês deixando tantas saudações de toda a minha
família. E serei para sempre o vosso primo. Giovanni Z. filho do defunto
Mateo Z
21
.
O componente intencional da vivência aparece aqui quando o remetente diz: “Caro primo,
me dirijo a você suplicando de poder dar-me informações”. O sujeito se dirige a um outro para
pedir informações de alguém de quem não tem mais notícias. O centro da atenção, é este dirigir-se
21
Arquivo Paroquial “San Martino”. Cx. Z1.
77
a alguém, presente na carta. Importa observar esta estrutura do pedido, isto é, sua colocação no
âmbito do desejo de realizar de novo o encontro com quem se perdeu a comunicação.
Mas a que conclusões podemos chegar pensando neste tipo de comunicação? De início, há
que considerá-la como um fenômeno expressivo relativo ao grupo familiar em foco e, em seguida,
notar que, pela análise do conteúdo do discurso, somos levados a considerar toda a série de atos
realizados e expressos pelos remetentes colocando em comunicação os dois mundos. Entender,
porém, a complexidade dessa recíproca percepção do outro que se dá na comunicação supõe a
consideração de alguns componentes. Um primeiro, relativo ao conhecimento por meio da
linguagem escrita, que revela um saber de todos os objetos a partir de um paradigma comparativo
entre o passado e o presente, entre a realidade européia e a brasileira, bem como o fato de que tal
linguagem permite um conhecimento compartilhado da vida íntima do ser humano e do círculo de
relacionamentos. A carta registra informações e pensamentos tanto entre correspondentes
próximos, como também entre os distantes. O que fica mais evidente nas cartas desses colonos
vênetos é que nelas se espelham seu corpo e alma. A carta é a presença deles no corpo do texto.
Um segundo componente refere-se àquilo que na pesquisa fenomenológica chamamos de atos que
o sujeito realiza para conferir significado ao que constitui objeto de sua expressão. O exemplo
disso verifica-se quando o sujeito, que escreve a missiva, elabora certo tipo de reflexão sobre a
própria situação vivida. E, além disso, consegue fazer convergir as suas qualidades sensíveis com
aquelas intelectivas e, nesta intersecção, mostra o fluir dos próprios estados de ânimo.
1.3 AS CARTAS DOS DESCENDENTES
1.3.1 Encontro com as Raízes por parte dos Descendentes
Alguns fragmentos das cartas enviadas por descendentes de imigrantes à Itália – retiradas
do Arquivo da Paróquia de São Martino na Província de Treviso – revelam motivos relacionados
78
à necessidade das pessoas de conhecer a história da família. Junto com este tipo de interesse estão
objetivos ligados à obtenção de documentos, à elaboração da arvore genealógica, ao reatar os
contatos com familiares e a finalidades práticas como o da cidadania e do intercâmbio cultural. As
motivações relativas a este tipo de interesse são, por sua vez, variadas. Contudo, não deixa de
existir esta tensão, ou a consciência do valor desta busca. A aceitação deste valor para a vida
pessoal passa a ser o motivo para o querer e o agir destes indivíduos. Por outro lado, tais motivos
são um incremento de energia para o querer (STEIN, 2001) e contribuem com uma parte de força
significativa para manter uma tomada de posição voluntária. Desse modo, será possível notar
nestes pedidos uma relação entre as motivações e as vivências porque “quando a consciência se
volta para um determinado objeto não entende um vazio qualquer, mas algo que tem um conteúdo
de sentido determinado e serve de suporte de uma consistência unitária de ser” (BELLO, 2000, p.
151). A motivação, como já foi dito, liga-se a razões. Porém, o que interessa ressaltar é que a
motivação
22
justifica uma série de atos do âmbito cognitivo relacionados a este tomar posição,
querer saber, dirigir-se a alguém na busca de respostas. Se, como vimos anteriormente, o sujeito
vive nas suas vivências e o eu está inseparavelmente ligado ao fluxo delas, então, podemos
examiná-las, as nossas e a dos outros, a partir do horizonte da vida intencional do ser humano. A
intencionalidade é o principal tema de toda a análise fenomenológica pois tem a ver com essa
particular propriedade das vivências de ser “consciência de alguma coisa” (HUSSERL, 2002a, p.
209), cada um dos atos, portanto, encontra o seu correlato: o julgar é o julgar de um estado de
coisas, o perceber é a percepção de alguma coisa; o avaliar é a avaliação de um complexo de
valores, o agir está direcionado à ação, o amar ao amado, a alegria ao que nos dá prazer. As cartas
– em particular aquelas em forma de pedidos - apresentam-se como a expressão deste âmbito
22
As pesquisas de Stein sobre a causalidade psíquica e as problemáticas do âmbito da vontade como
manifestação da vida psíquica colocam em destaque “o fato de que a motivação é uma conexão de sentido em
que uma vivência qualquer não pode apresentar-se contemporaneamente com uma outra”pois é ela que faz
acontecer essa passagem de um ato para outro ( Psicologia e scienze dello spirito, p. 125).
79
intencional
23
. Não se trata de uma exposição relativa apenas aos impulsos dos indivíduos e
tampouco das vivências psíquicas, mas do fato de que, refletindo sobre as condições dos seus
ancestrais como imigrantes, os indivíduos tomam consciência da necessidade de entender um
estado de coisas ligado à saga do grupo familiar. Tal compreensão, por sua vez, motiva a ação de
movimentos livres e criativos dos indivíduos. A peculiaridade desses atos, como estamos
demonstrando pela análise das cartas, conduz-nos a identificar as dimensões do ser humano como
corpo, psique e também como ser espiritual
24
. A propósito, aliás, serão as vivências da dimensão
espiritual a ocupar esta parte. Na realidade, porém, pode-se constatar que os atos da esfera do
querer e do agir caracterizam-se essencialmente por serem ações orientadas por uma aceitação da
vontade, por uma tomada de posição voluntária na qual o individuo tem consciência do objeto do
querer. Notaremos, portanto, no dinamismo de conhecimento instaurado pelas perguntas em torno
às origens – manifestado nos pedidos – que tal atividade como obra da vontade ocorre de modo
separado, no entanto, são atos profundamente conexos entre si de acordo com a própria estrutura
da pessoa. É uma passagem gradual e, portanto, as conexões destas duas faculdades não se
estabelecem no nível espiritual, mas ocorrem e são preparadas já desde as vivências sensíveis
25
.
Por isso, vamos passo a passo, observando atentamente, alguns detalhes deste processo para que
possamos colher os elementos essenciais e de unidade de todos eles.
23
Não devemos esquecer que o próprio Husserl cuidou em salientar que todas as coisas da vida cotidiana, da
esfera da vida, são animadas por uma intenção. As folhas de uma carta, o livro existente, são uma coisa à qual
conecta-se uma segunda que é o sentido. Diz Husserl (2002b,p.240): “Um copo para beber, uma casa, uma
colher, um teatro, um templo, etc significam alguma coisa. É sempre diferente ver a coisa como coisa e a coisa
como objeto de uso, como teatro, ou como templo”.
24
Tanto Husserl como Stein fazem sistematicamente a análise partindo destas três dimensões do ser humano.
Husserl no volume II das Idéias para uma fenomenologia pura e Stein no seu livro Psicologia e scienze dello
spirito proporcionam as bases teóricas para a análise fenomenológica, revelando não só as estruturas do sujeito
mas aquelas relativas às estruturas das diferentes formas de associação humana.
25
Recordemos que, para Stein, o sujeito do conhecimento volta-se para o mundo externo e sob o fundamento das
percepções sensíveis, o intelecto capta dentro de si os objetos: “Se um sujeito vem internamente tocado, afetado,
isto de um lado é uma chamada para o externo; o intelecto é, desse modo, estimulado a voltar-se para uma coisa
ou um acontecimento externo e, por assim dizer, a ‘incorporá-lo espiritualmente” (1983, p. 627). Esta
incorporação de que fala Stein não está, entretanto, condicionada a uma imagem espacial como se o objeto
pudesse vagar para qualquer parte dentro de nós, mas significa que quando um objeto torna-se conhecido pelo
ser humano, ele passa a pertencer ao sujeito do conhecimento e, portanto, não há necessidade de sair de si para
poder encontrá-lo.
80
1.3.1.1 Os Atos Volitivos
Nos pedidos dos descendentes de imigrantes será possível detectar não só uma
exigência relacionada à questão das raízes. Nestes fragmentos podemos identificar os motivos
e a vontade livre do indivíduo humano que, colocado diante da sua história pessoal e familiar,
move-se na busca da compreensão de si. Os atos volitivos, conforme destaca Stein (1998, p.
215), realizam-se sempre na forma do “cogito”
26
. Na verdade, é preciso perceber a conexão
entre a capacidade de querer do indivíduo e a presença dos sentimentos porque cada querer
constrói-se sobre um sentir (STEIN, 1998). Da leitura destas cartas, por exemplo, não resta
dúvida sobre o fato de que o indivíduo, ao realizar seu pedido, tem o sentimento de que será
possível realizar o que espera. É exatamente esse sentimento de possibilidade de realizar algo
que está ligado a cada querer.
O trecho da carta seguinte foi escrito por alguém cuja intenção era a de conseguir os
documentos para a elaboração do livro sobre as memórias familiares. As justificativas para a
solicitação das informações são assim formuladas:
[...] é tão importante para mim conhecer de fato as raízes de minha família, a
localidade exata da partida deles para o Brasil, se ficou alguém ali na Itália,
onde moram e quais seus nomes. Quero saber como viviam, se eram pessoas
de bem, o motivo maior que os levou a procurar terras tão distantes levando
juntamente sua esposa e filhos
27
.
Devemos indagar, em primeiro lugar, quais atos são realizados quando o sujeito, na
formulação de um pedido, dirige-se a outras pessoas com a clareza dos objetivos a que quer
chegar. Este tipo de pedido não pertence à dimensão dos sentimentos diretamente. Quando o
sujeito diz: “é importante conhecer, e quero saber”, que atos são estes? São todos movimentos
26
A expressão ‘eu penso’ aqui utilizada faz referência à dimensão espiritual do ser humano. Segundo Husserl e
Stein, o termo espiritual está indicando que o eu não encontra sua sede no aspecto somático, mas descobre-se a si
mesmo conectado com a série de vivências como, por exemplo: eu percebo algo, julgo, quero, imagino e
recordo, e ao realizar tais atos encontro-me como o protagonista destas ações e dos estados de ânimo delas
decorrente. E o ser humano só pode se dar conta destas vivências e do correlato delas na medida em que reflete,
portanto, quando dirige o seu pensar a experiência que está realizando ou para aqueles já realizadas.
27
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. F.
81
cognitivos e, por conseguinte, são atividades dirigidas pela vontade. São vivências que se
configuram como atos em que há uma motivação explicita (BELLO, 2000) por parte do
sujeito. Ou seja: o sujeito parte de certas premissas; como o fato das narrativas dos seus
parentes imigrantes ou de algum documento de desembarque, além disso, espera poder
aprofundar estes conhecimentos tendo como conseqüência os dados precisos da história
familiar. Desse modo, no próprio fluxo das vivências aparece uma conexão associativa entre
elas.
Esse querer consiste numa tomada de posição ativa por parte do sujeito e implica não
só um conhecimento superficial, mas desdobra-se na pergunta acerca do que ocorreu com os
imigrantes, dos motivos da partida e do modo de viver deles. Nesse caso, a função reflexiva e
a da vontade são ativadas como vivências próprias da dimensão do espírito. Tal conhecimento
requerido no pedido compreende diversos níveis que vão desde a identificação do lugar da
partida ao estudo do modo de viver dos antepassados, bem como a verificação das pessoas e
parentes próximos radicados no país de origem.
Para chegar aos objetivos propostos os indivíduos, por outra parte, tem de percorrer
um longo caminho de pesquisa e dispor dos meios para a aquisição destes fins tal como revela
a carta seguinte:
[...] venho comunicar-me com o Sr. novamente com a finalidade de mais
uma vez falar da pesquisa que faço a respeito dos meus familiares nascidos
na Itália. O Sr. escrevera que está encontrando dificuldades para encontrar os
registros face as poucas opções que lhe foram apresentadas, entretanto eu
continuo interessado em desvendar meu passado, por isso, apresento abaixo
outras situações do meu conhecimento para que talvez as pesquisas cheguem
a um bom termo (...) No momento o sr. padre é o único elo entre os meus
desejos e os mistérios que envolvem as origens de minha família
28
.
Quando o sujeito diz: “continuo interessado”, qualitativamente, poderíamos dizer que este
ato é uma atividade intelectual. São as situações de conhecimento já realizadas ou o conjunto de
28
Arquivo paroquial “San Martino”, Cx. S1.
82
dados que o sujeito apresenta que o leva a crer na possibilidade da existência dos documentos dos
ancestrais na Itália. O dado importante aqui é o interesse manifestado pelo indivíduo como fator
que movimenta a sua vontade de conhecer. Há algo a respeito dos seus ancestrais que para ele
aparece velado, não claro e misterioso. E isso passa a ser o objeto de sua atenção, do interesse, e
ser motivo para o ato de querer e agir a fim de “desvendar o passado”. Nas palavras de Husserl
(2002b, p. 223), seria traduzido da seguinte forma: “o objeto quer ser objeto de atenção e bate a
porta da consciência”. Por isso, o indivíduo deseja descobrir, pois não só os dados já
conquistados são para ele um valor, mas também aqueles ainda não conhecidos. O conjunto de
perguntas dirigidas ao sujeito que serve de intermediário é no sentido de uma clarificação a
respeito do passado familiar. Trata-se de uma vontade de conhecer que se transforma em ato. A
ação vem dirigida pelo propósito de esclarecer o passado. De forma que o objeto de interesse e
atenção se impõe ao sujeito e exerce sobre ele certos estímulos, uma atrativa a respeito dos nexos
da sua realidade familiar e, por conseguinte, abre-se um campo daquilo que o sujeito sente como
valor de conhecimento a ser realizado.
Essa procura para os demandantes tem a peculiaridade de agir sobre o seu próprio
estado vital de forma a incrementar suas forças. Percebe-se que nos casos em que recebem
uma resposta às interrogações postas, há um incremento de energia para a própria vida, que se
pode entrever quando os demandantes relatam os próprios sentimentos ou sensações.
Tal perspectiva é percebida claramente na missiva – do estudante Marcos – na qual
está presente a conexão entre os estados de ânimo e a tomada de consciência dessas
vivências
29
intencionais na constituição dos valores para a sua vida. Para Marcos, o voltar no
tempo – conseguindo saber dos seus ancestrais – representa algo indescritível que lhe dá vigor
29
Convém esclarecer que quando se fala em vivências, segundo a perspectiva de Husserl, estamos tocando no
nível da consciência do ser humano, pois as vivências são atos que vão desde a percepção, a recordação, a
imaginação, a sensação, a reflexão e outros. Aquilo que relata, por exemplo, o estudante Marcos, é uma
percepção de si, fruto de certo aprofundamento da própria história pessoal, em que o sujeito aprende a conhecer-
se e aproxima-se de si mesmo. Algumas vezes, por meio de um simples passaporte dos avós, o indivíduo é
despertado pelo objeto e, desse modo, empreende toda uma busca para desvendar o passado, cujo resultado é, em
primeiro lugar, a percepção pessoal de si e, depois, a responsabilidade de manter viva nas gerações a mesma
consciência de pertença.
83
psíquico (STEIN, 2000). Assim, as vivências dos sentimentos – descritas por ele como
sensações de alegria/felicidade – constituem a base e o fundamento para o movimento dos
atos volitivos. Importante perceber como o indivíduo registra suas vivências e, partindo dos
componentes afetivos ligados a uma determinada realização, evidencia as razões (nível das
motivações) pelas quais é conveniente para ele continuar interessado na história familiar:
A possibilidade de voltar no tempo, cerca de 300 anos, na história da nossa
família, saber exatamente de onde viemos, é uma sensação indescritível de
alegria/felicidade, esperanças e motivação para seguir a pesquisa voltando
ainda mais no tempo com os olhos no futuro e seguindo em frente. Agora
muito mais conscientes das nossas origens, o que tudo isso representa é a
responsabilidade de deixar esse legado às futuras gerações
30
.
Como se pode notar, o trecho acima constitui um valioso exemplo de como as
vivências estão conectadas umas às outras e, embora de uma forma simples, encontramos a
descrição de um dinamismo, desde os atos sensíveis até aqueles que conduzem o indivíduo a
reconhecer o quanto o conhecimento adquirido na busca pelas raízes torna-se um valor e o
motor que move o desejo para novas descobertas. O fato de conhecer, entender, compreender
a história familiar é algo essencial para Marcos. Dissemos anteriormente que se tratava de um
exercício que exigiu empregar suas forças a fim de obter as informações necessárias para a
“volta no tempo”; vemos, contudo, que há uma série de atos colocados simultaneamente em
ação: a decisão de buscar as origens, a força física e psíquica empregada para tal
empreendimento e a vontade de colocar-se em movimento e permanecer constante na espera
da resposta e, por fim, os sentimentos ligados à resposta recebida. O que, afinal, a pesquisa
representou para o estudante? Ele diz: “é a responsabilidade de deixar esse legado a outras
gerações”. De fato, só a liberdade para a auto-determinação pode despertar a consciência da
responsabilidade (STEIN, 1999). Para o indivíduo, como ser livre (STEIN, 2000), o fato de
poder decidir fazer ou não determinada ação e descobrir-se capaz de colocar para si mesmo
30
Arquivo paroquial “San Martino”, Cx. C1.
84
determinados objetivos e vê-los realizados por meio da ação implica, como sublinhou o
remetente, um acréscimo de consciência ligado a um dever frente às outras gerações. Esse
movimento dirigido ao conhecimento de algo relacionado ao passado familiar é um fazer
ligado à vontade do ser humano.
A observação de Stein (1998) a propósito dos atos do conhecimento resume esta
relação entre as diversas vivências e, em particular, entre os atos volitivos e intelectivos.
Evidentemente, também aqui é válida a correlação que a autora faz entre a responsabilidade, a
consciência e a apreensão do valor. O valor percebido tem força atrativa e motiva a não
abandonar a busca:
O conhecer é por si mesmo um valor e precisamente um valor em grau
diverso respeito ao seu objeto (...) Não apenas o conhecimento adquirido,
mas aquele ainda não realizado é percebido como um valor, e este sentir um
valor é a fonte de cada esforço cognoscitivo, a mola de cada vontade de
conhecer. Um objeto se oferece a mim de modo obscuro, velado e não
claro. Este se apresenta como uma coisa que deve ser descoberta, uma coisa
que exige ser esclarecida, levada à luz. Este esclarecimento, este descobrir e
o seu resultado, ou seja, o conhecimento claro e distinto, está diante de mim
como um valor profundamente sentido e este me atrai irresistivelmente atrás
dele (STEIN, 1998, p. 216).
Segundo a perspectiva steiniana, portanto, a percepção do valor constitui a fonte do
movimento de busca, o qual leva o ser humano a reconhecer que o objeto conhecido (trazido à
luz) é portador de um significado. De outra parte, ela chega a individuar diversas fontes de
força das quais a vida psíquica vem nutrida sendo uma delas o mundo de valores. O sujeito
desejoso de conhecer experimenta em si as solicitações provenientes do mundo dos objetos e
dos valores. Trata-se, assim, finalmente, de seguir de modo livre tal atração por meio de
ações voluntárias porque delas dependem, como efeito, o que se descobre como
conhecimento
31
. Mas, evidentemente, para se falar deste sujeito humano como um “eu
inteligente” e um “eu que quer” não se pode prescindir de todas as atividades e interesses que
31
Ver a este propósito as indicações dadas por Stein (2000)a respeito da recíproca dependência entre
conhecimento e vontade no seu estudo sobre a pessoa humana e, em particular, nos pontos em que discute os
aspectos especificamente humanos da estrutura pessoal
85
ele desenvolve ao longo de sua vida. A pessoa humana recebe o mundo, é afetada por ele na
sua interioridade, e simultaneamente, ela parte para uma ação no mundo. Em um caso como
em outro, na recepção do mundo ou no agir nele, apresentam-se as dificuldades, os limites,
porque a pessoa, segundo Stein (2003), não possui a capacidade de receber tudo, nem a
profundidade para compreender tudo e nem sequer vivacidade nem forças suficientes para
sentir os estímulos de cada ser vivente no seu agir prático. Porém, estas três características –
amplitude, profundidade e força – descrevem a medida de ser própria de cada pessoa
singular, fala das diferentes profundidades do eu. Portanto, ao encontrar uma pessoa
poderíamos perguntar: qual a amplitude do seu conhecimento? Quais as imagens com as
quais exprime a profundidade do seu ser? Com que vivacidade move-se e qual sua força?
Nestas características aparece tudo, ou seja, as possibilidades de externar aquilo que a pessoa
é na sua vida psíquica e na vida espiritual.
Quando se está diante do conjunto aparentemente semelhante destas petições por parte
dos descendentes que reclamam o conhecimento das raízes, é preciso lembrar que não se trata
de um único e simples tema, ao contrário, podemos extrair delas as razões, os motivos e os
sentimentos relativos à pesquisa que empreendem os sujeitos. Basta observar a posição
tomada pelo remetente, na missiva seguinte, o qual não desiste de tentar e insiste por meio do
envio de várias correspondências para poder alcançar o objetivo proposto:
Prezado Padre N.,
Estou bem, mas um pouco angustiado por não conseguir localizar as raízes
da minha família. Agradeço pelo muito que fez e apesar dos transtornos que
lhe tenho causado, suplico que continue se empenhando na busca das
certidões de nascimento e de casamento de Ártico e Pavan. Pesquisei muito,
mas, não consegui referências mais precisas. Os documentos examinados
apenas indicam que eram de Treviso
32
.
Cada ação, cada carta enviada na procura por localizar as raízes da família insere-se
neste movimento em que o indivíduo está empenhado em conquistar seu objetivo. Para a
32
Arquivo paroquial “San Martino”, cx. AII, família Ártico.
86
realização deste fim a pessoa, o ser humano, reflete e pesquisa. Vemos, porém, que a
vitalidade com que ele se coloca na busca consome suas forças na esfera dos sentimentos.
Determinados conteúdos das vivências, como a angústia, o medo, a tristeza, por exemplo,
podem progressivamente influir na vitalidade e paralisar completamente o impulso para
determinados fins a que o sujeito se propõe
33
.
Outros pedidos tocam diretamente na problemática do desenraizamento. Na carta
seguinte, o autor declara a ‘necessidade interior’ das raízes e, por isso, quer conservar vivos
os vínculos com o passado para poder entender o presente.
Revmo. Pároco
Por motivos sentimentais estou realizando, já faz muitos anos, uma grande e
difícil pesquisa sobre os meus antepassados. Tenho forte necessidade interior
de encontrar as minhas antigas raízes, para poder compreender melhor a
minha família. Acredito que uma pessoa sem passado não pode conseguir
um futuro. As más condições da saída dos nossos antepassados, expulsos das
suas cidades pela fome e falta de perspectiva de futuro naqueles anos negros
também para a Itália no fim do século XIX, são para mim um grande desafio
que faz esta pesquisa ainda mais importante. Todos os documentos deles
foram perdidos com o tempo, desapareceram pelas precárias condições de
vida, especialmente nos primeiros anos de vida na nova terra. Assim agora
nós não sabemos mais onde encontrá-los ou a quem dirigir-se
34
.
Nesta missiva os motivos são explícitos e identificados pelo remetente como aqueles da
esfera dos sentimentos. O sujeito sente a possibilidade
35
de avançar naquilo que ele identificou
como ‘grande e difícil pesquisa’, mesmo sabendo que as marcas dessa trajetória histórica foram
perdidas e, por esse motivo, se dirige a Itália crendo no fato de que estes novos contatos podem
responder as suas inquietações. Daí que se possa falar da fundamental importância que tem cada
movimento dirigido a uma finalidade. Poderíamos perguntar: que significado têm os novos
33
Em uma passagem da Psicologia e scienze dello spirito (109), Stein diz, por exemplo: “Dissemos antes que a
vivência do entusiasmo exige certa fadiga. Nisso se manifesta o consumo de forças do viver, que em sentido
próprio ultrapassa a capacidade da psique. A parada do fluxo vital pode ser compreendida a partir da forte
requisição de força vital ocasionado por cada vivência emocional...”.
34
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. L.
35
É interessante pensar nesta categoria da possibilidade presente no querer humano e expresso no sentimento de
poder realizar algo, porque é a existência deste sentimento que motiva e sob o qual se constrói cada vontade
humana. Para Stein (1998, p. 216), como é sabido, “em cada livre ‘eu quero’ existe um ‘eu posso’, pois com um
‘eu não posso’ concorda apenas um tímido ‘eu gostaria’ – cada vontade se insere em duplo modo na estrutura
pessoal revelando a sua profundidade”.
87
conhecimentos? Que mudanças ocorrem ou que repercussões pode haver no fato de conhecer as
condições da sua família e de tantas outras que no final do século XIX imigraram para o Brasil? A
resposta pode ser dada observando-se a estrutura da atividade de conhecimento que sempre
coloca em evidência a relação entre o sujeito e objeto numa dinâmica criativa. Obviamente isto
quer dizer que com cada novo conhecimento vem incorporado algo para o mundo espiritual de
quem está interessado. O mundo pessoal e familiar vem enriquecido com maiores certezas e,
talvez, tal conhecimento possa ser determinante para mudanças significativas, com novas luzes
sobre o viver. Ainda mais quando se trata de afirmar que o conhecimento constitui para o sujeito
um desafio que, segundo afirma o autor da carta, “fazem que a pesquisa seja ainda mais
importante”. Neste particular, Stein (2003, p. 189) chama a atenção para este algo novo que vem
criado por meio do conhecimento e mantido pelo espírito subjetivo, pois ao lado do que vem à luz
“ao mesmo tempo cresce o próprio sujeito espiritual, pelo menos na sua capacidade de conhecer e
na sua capacidade em acolher sempre coisas novas”. Neste caso, isso significa voltar a pensar
naquilo que disse o autor da carta a respeito da forte necessidade interior que ele adverte de refletir
sobre suas raízes. Na verdade, o que dá unidade a todo o seu operar é a capacidade de buscar um
conjunto de dados necessários do ponto de vista prático para clarificar o caminho – a força de
vontade – que “é um poder do qual nos tornamos conscientes quando estamos diante de uma
tarefa” (STEIN, 2001, p. 128).
Em outros lugares, aparece a perspectiva de jovens que encontram motivos de viver
ligados ao fato de que poderão transmitir aos outros os elos com o passado. A descoberta do
valor da história familiar enche as pessoas de prazer. Na análise das cartas, é necessário
prestar atenção a esse momento da “descoberta”, no qual vem posto em evidência, de um
lado, a fratura que se sentir desenraizado provoca e, por outro, o papel fundamental que na
esfera psíquica têm as respectivas vivências para o agir do ser humano. Na carta de Vanessa, a
impossibilidade de obter a cidadania não representa o fim de suas motivações, mas a
88
descoberta dos documentos (certidão de nascimento dos bisavôs) é o ponto de partida para
continuar a pesquisa sobre a história completa dos seus antepassados:
Desisti de tirar minha cidadania. É que para tirar a cidadania, existem
algumas burocracias e eu não tenho como pagar. Então eu vou continuar
fazendo minha pesquisa, porque o que mais me importa é montar minha
árvore genealógica. Eu já descobri bastantes coisas sobre meus antepassados,
e isto me dá um imenso prazer. Um dia escreverei a história completa de
meus antepassados, e então, enviarei para o senhor
36
.
Quando Vanessa na carta diz: “desisti de tirar a cidadania” temos um exemplo de uma
ação que tinha um objetivo definido, mas há motivos opostos à realização do desejo que a
levam a abandoná-lo. Os motivos por ela elencados são razoáveis: a burocracia e a
impossibilidade de pagar o processo. Por outra parte, o ser humano tem a possibilidade de
transformar os motivos de contrastes no objeto de uma escolha em outra direção. O agir da
Vanessa encontra outras motivações, e ela se propõe a continuar a pesquisa, fazer a árvore
genealógica e escrever a história completa dos antepassados. Temos de ter presente, que se
uma atividade não pode ser sustentada por algum motivo razoável ou porque as forças
pessoais para sustentar determinada posição não são suficientes, elas encontram outras
possibilidades de expressão, sendo colocadas em movimento pelo propósito voluntário. No
caso da Vanessa, merece ser assinalado isso: ela tem diante de si um bem reconhecido – que
é o fato da descoberta dos ancestrais - que a motiva (pois lhe causa imenso prazer) a agir nesta
direção. Mas a descoberta feita por meio do conhecimento, isto é, a ação exige de sua parte
que nasça uma aceitação da vontade (um fiat). É nesta estrutura que se coloca qualquer
propósito – como capacidade de dar vida a uma ação espontânea guiada por um sim pessoal.
Para Stein, o propósito
37
desempenha um papel fundamental nos processos volitivos porque
36
Arquivo paroquial “San Martino”, Cx. SII.
37
Bello (2000, p. 153), ao explicar a esfera dos atos que Stein classifica como livres, salienta que “eles são tais
quando procedem de um propósito e são orientados para uma aceitação da vontade (fiat), isto é, para uma
decisão tomada num momento oportuno (...) já o propósito é um querer que tem como pressuposto necessário
um poder”
89
coloca o ser humano em ação com uma força própria, por esta razão, constitui o momento
livre do querer.
As vivências da vontade são de grande importância na constituição da unidade
psicofísica do ser humano. Por isso, vale a pena examinar a partir destas cartas o vínculo entre
as ações que são determinadas pela vontade com os fenômenos perceptivos e os sentimentos.
Isto significa que a vontade se serve do mecanismo psicofísico para poder realizar o objeto do
querer. Stein (1998, p. 145) exemplifica tal mecanismo contrapondo o ‘querer’ e o ‘tender a’,
fazendo ver que a força do querer coloca em ato um movimento para superar as influências
contrárias:
Decido realizar um exame e os preparativos necessários são realizados
automaticamente. Pode acontecer que eu sinta uma menor intensidade de
minhas forças antes mesmo que o objetivo seja atingido; em tal caso, cada
atividade mental necessária deve ser, naquele momento, posta em ação,
superando uma forte tendência contrária por meio de um ato da vontade.
Assim a vontade tem o seu predomínio tanto sobre a alma quanto sobre o
corpo próprio (...).
Para algumas pessoas, ao contrário do exemplo da carta da Vanessa, a cidadania torna-
se o objetivo principal, exigindo grande empenho da vontade na sua realização. Mas quando
uma fase do processo conclui-se e, de modo particular, quando os documentos solicitados na
Itália são enviados – na maior parte das vezes por sacerdotes do Vêneto – a relação com o
objeto causa sempre um impacto de grande emoção:
Foi com uma emoção profunda e uma indescritível felicidade que recebi sua
carta com os documentos dos meus bisavôs. Tenho trabalhado na obtenção
dos documentos necessários para a minha cidadania italiana e, creia-me, é
extremamente complicado e leva tempo até que tudo fique resolvido. Os
documentos que o senhor me enviou são de suma importância. Sem eles meu
processo ficaria incompleto. É também uma sensação diferente a de ter em
mãos dados tão precisos de meus antepassados. De certa forma me sinto
mais vivo, mais ligado à Itália. Estou agora estudando a língua italiana e
espero, em breve, poder mandar-lhe uma carta em italiano
38
.
38
Arquivo paroquial “San Martino”, Cx. A1.
90
O sujeito faz referência às sensações diferentes por “ter em mãos” os documentos dos seus
bisavôs. Este é um ponto interessante da análise fenomenológica porque por meio deste sentido do
tato o ser humano pode orientar-se no espaço e compreender as fronteiras de demarcação entre seu
corpo e os outros corpos e objetos. Ao tocar os documentos, o ser humano registra a percepção de
um objeto e passa a ter consciência dentro de si de algo. Ele se dá conta ou tem consciência de que
tocou alguma coisa e, assim, o documento encontra-se dentro dele enquanto percebido. As vivências
relativas às sensações e a percepção nos revelam a corporeidade
39
. No percurso de análise da
interioridade parte-se sempre das vivências perceptivas. Este é um primeiro nível. Mas podemos
continuar refletindo sobre a relação do sujeito com o objeto percebido para chegar a entender outras
estratificações ali presentes. Ele afirma, por exemplo, que: ´é uma sensação diferente ter dados tão
precisos dos antepassados’. Quais sensações? Diz sentir-se vivo, emocionado e feliz. Assim, os
dados do mundo externo – os documentos – têm um impacto no mundo interno. Os sentimentos
sensíveis de prazer e contentamento são os componentes concretos desta vivência do sujeito. Por
outra parte, isto significa que os elementos sensíveis, ou seja, aqueles que temos acesso por meio do
tato, do ouvido, da visão são revestidos
40
de um determinado sentido. Contudo, o sensível aqui não
está exclusivamente ligado aos sentidos, mas estende-se também à esfera da emoção, dos
39
No livro II das Idéias na terceira seção quando Husserl analisa a motivação como lei fundamental do mundo
espiritual, ele estabelece a relação entre o corpo e as percepções dizendo que no corpo encontra-se localizado o
estrato das sensações e tudo aquilo que é não-eu, isto é, os objetos que o sujeito tem diante de si são objetos da
sua experiência. Em cada objeto, portanto, à sua maneira há um caráter de subjetividade enquanto meta dos
cuidados do ser humano e substrato da sua atenção teórica, afetiva e prática. Igualmente, Stein, quando
estabelece o paralelismo entre corpo e alma, espiritual e corporal, colocando em evidência a importância e a
unidade entre estes níveis, enfatiza que “...não é possível pensar nenhum evento material no interior do corpo
humano que não esteja, de alguma maneira, conectado com a alma” (La struttura della persona umana, op. cit.,
p. 154). As polaridades: corpo próprio – objetos do mundo circunstante; eu – os outros; corpo – espírito são
problemas tocados na análise fenomenológica de Husserl e Stein. Mas a polaridade da qual se parte como centro
de orientação são sempre o eu e os outros que, por meio da atividade intencional da consciência, consentem a
apreensão do significado de cada eu no mundo em relação com os objetos. Também é isso o que acontece na
dimensão inter-subjetiva quando tanto o conhecimento de si próprio quanto da alteridade se dão na recíproca
compreensão. As considerações feitas por Husserl ainda no Vol. II, seção II, cap. IV das Idéias a respeito do
problema da inter-subjetividade e o exaustivo estudo da Stein (2001) sobre subjetividade e inter-subjetividade
em que o corpo vem examinado como lugar da expressividade da pessoa e instrumento imprescindível de ligação
com o mundo externo, trazem afirmações de grande valor para os estudos psicológicos e, obviamente,
necessitam ainda ser observadas com devida atenção.
40
No parágrafo 85 das Idéias, vol. I, Husserl (2002a, p. 213) fala de que acima destes momentos sensoriais
existe uma camada que possibilita conferir um sentido em virtude do qual se realiza o concreto Erlebnis
intencional. Isto nasce partindo do elemento sensorial que não tem em si nenhuma intencionalidade.
91
sentimentos. A partir daí, parece razoável afirmar que, todos estes dados que vêm de fora e têm
relação com as nossas reações, possuem ainda um outro estrato, que vem organizado pelo sujeito a
partir do valor por ele atribuído ao objeto. Há, portanto, o momento em que estes dados vêm
organizados e avaliados positivamente pelo ser humano. A questão teórica que vale a pena
sublinhar, do ponto de vista da linguagem fenomenológica, são estes dois momentos da corrente do
ser fenomenológico: isto é, a camada material
41
e a noética. Bello (2004), explica que estes dois
territórios são postos separadamente pela análise, entretanto, nós, na experiência cotidiana, vivemos
estes aspectos no seu conjunto e unidade, como por exemplo, quando escolhemos comprar uma
roupa de cor branca. Neste caso, os dados da roupa e da cor representam o aspecto hilético,
enquanto o sentido ligado a esta escolha – o fato do branco agradar, ter um valor para o sujeito – faz
referência à forma desses dados, isto é, o aspecto noético. Podemos aplicar este procedimento de
análise também para o caso da relação dos descendentes de italianos com os documentos dos seus
ancestrais, tal como foi expresso pelo sujeito na carta acima. Por exemplo: se tomarmos o
documento, constatamos, de imediato, que se trata de uma folha de papel – uma matéria. O
documento, aí, na verdade, traz um conteúdo que serve para uma finalidade e ao qual o sujeito
atribui um sentido. Aquilo que dá forma à matéria é o sentido. Para o sujeito, o documento faz
referência afetiva aos bisavós que emigraram da Itália e, por isso, provoca certa emoção, mas
remetem a um sentido mais profundo que é o da pertença, pois, ao refletir sobre os dados, o
indivíduo exclama: “me sinto mais vivo, mais ligado à Itália”. Este sentir é diferente porque foi
construído a partir de uma vontade de saber, motivado racionalmente; antes, esse sentimento de
frescor e vitalidade deixa ver o modo pelo qual na estrutura do ser humano encontra-se uma
correspondência entre as potências (forças) e a multiplicidade de vivências (STEIN, 2000). Como
diria Husserl (2002b, p. 193) “(...) das coisas que o eu pessoal torna presente à sua consciência
41
Recordemos que, para Stein (2000), não existe matéria sem força. Ao falar desta conexão Stein traz o exemplo
do bloco de granito – que é uma formação material – constituída de matéria na qual se percebe uma
espiritualidade pessoal. Efetivamente, para Stein, o problema está em constatar que em cada formação existem
significados simbólicos e práticos que interpelam o ser humano e deixam entrever um espírito pessoal presente
no mundo visível que confere sentido a cada matéria.
92
emanam estímulos”. Aliás, por meio desta realidade, algo se revela e há um quantum de força que o
sentimento de contentamento por tal descoberta reserva. Nessa circunstância particular, verifica-se
que aquilo que o ser humano intui concretamente diante da realidade é uma percepção que acaba se
tornando uma vivência de liberdade. Conforme nos indica Stein (2000), as atividades pessoais no
nível espiritual caracterizam-se por serem conscientes, dirigidas a um objetivo e, portanto, livres.
Poderíamos pensar no dinamismo completo que o trabalho na busca pela conquista da
cidadania representou para o sujeito. Mas vamos nos deter na última declaração feita pelo
missivista ao seu correspondente afirmando que estava estudando a língua e desejava em
breve poder escrever uma carta no idioma italiano. Sob esse aspecto, a complementaridade
mantida pelo indivíduo entre a busca da cidadania e o sentimento de pertença merece
destaque pois, para o indivíduo, o fundamental é sentir-se mais ligado à comunidade-povo da
qual faziam parte os ancestrais. O estabelecimento deste laço produz um dinamismo de
conhecimento real que se traduz na aprendizagem da língua. O vínculo que se busca comporta
uma atitude espiritual de comungar com o diferente, falando e escrevendo na língua dele. Mas
o que significa aprender uma nova língua? Na aprendizagem da língua, são colocadas em ato
potências diversas dada a complexidade do processo. São atividades parciais que vão desde os
sentidos, a memória, a inteligência, mas que, no início, empenham as atitudes do sujeito e,
sobretudo, são atividades que brotam da vontade
42
. A aprendizagem de uma língua – escrever
42
A beleza e a fineza das análises de Stein consistem em que para ela as vivências do sujeito configuram a
estrutura básica para qualquer subjetividade. Mas, por outra parte, a maneira como reflete as questões, mostrando
os passos percorridos, indica não só uma atenção teórica, mas principalmente que ela sabe colher o significado a
partir de uma situação concreta, isto é, da experiência da própria autora no estudo e domínio de várias línguas.
Quando formula, por exemplo, o caminho do complexo processo de aprendizado de uma língua Stein (2000,
p.177) diz: “Ocorre conhecer e dominar os diversos grupos fonéticos que desconhecemos e distingui-los, estas
são atividades do ouvido (ou mesmo da vista); é preciso também reproduzi-los usando os próprios instrumentos
lingüísticos. É necessário entender o sentido das estruturas fonéticas, compreender as relações objetivas que
existem entre elas. Os conteúdos, com o seu respectivo significado, devem ser impressos e guardados na
memória. É necessário, enfim, chegar a pensar na língua estrangeira, isto é, formular, mediante um processo
mental gradual, os pensamentos não no próprio idioma, mas naquele estrangeiro”. Em 1915, durante a guerra
mundial, a jovem Stein prestou seus serviços voluntários no hospital militar, onde estavam representadas todas
as nações pertencentes a monarquia austro-húngara. Neste contexto foi que ela aprendeu a perceber, de modo
mais evidente, as diferenças entre as nações. Segundo o seu relato autobiográfico havia neste hospital um livro
escrito em nove idiomas com as perguntas e respostas mais freqüentes para facilitar a relação médico-paciente
com o qual Stein rapidamente se familiarizou.
93
e falar – implica a atividade da vontade e uma tensão de força muito elevada. Quer dizer, do
ponto de vista do sacrifício e das forças empregadas neste aprendizado, aparecem como
elemento dominante de todo o dinamismo psicofísico os atos da vontade.
Neste caso, inclusive, não se pode negar que haja certa causalidade entre as vivências, não
no sentido de uma causalidade física, porém, deve-se ter em conta o que os sentimentos vitais
produzem no direcionamento das vivências do indivíduo. Se tomarmos o exemplo da petição que
estamos analisando poderíamos pensar assim: a chegada dos documentos dos avós (causa)
provoca sensações vivificantes: felicidade, emoção (evento causante) que permitem ao sujeito
continuar o trabalho em busca da cidadania ou no estudo da língua italiana (evento causado). Para
compreender este ponto será preciso lembrar que o elemento de ligação de todos os atos de ordem
espiritual é a motivação que, por sua vez, exige aquele algo – denominado por Stein (1999, p. 57)
de força psíquica – que faz fluir as vivências de maneira vivaz levando a efeito o movimento
realizado. De fato, como já foi assinalado, qualquer atividade do eu exige o emprego da força
vital. O evento causante permite um aumento ou diminuição da tensão do viver para o indivíduo
e, por conseguinte, do estado psíquico manifestado. Não é possível pensar, por exemplo, que o
cansaço possa servir como estímulo e vivificar o fluxo de consciência e nem mesmo se pode dizer
que os conteúdos de determinadas vivências não consumam a força vital antes de revitalizá-la,
como é o caso da tristeza ou angústia que podem paralisar o impulso para determinadas ações.
Nesta direção, a mediação da força vital adquire um valor particular porque se compreende como
a vida se revigora diante de uma carta na qual vêm anunciados ao indivíduo dados que para ele
tem um significado positivo – proporcionando alegria – e o quanto este fato conduz a atividades
na direção indicada pelas motivações explicitadas pelo sujeito
43
.
43
Sobre a cooperação entre causalidade e motivação insiste, especialmente, Stein no seu livro Psicologia e
Scienze dello spirito e ainda mostra como na vida da psique, agem a força sensível e a espiritual. Segundo o
parecer de Bello (2000, p.148), Stein nos ensina com pontualidade e precisão a identificar os atos que
diariamente realizamos, ou seja: dirigir o olhar para a nossa interioridade para a descoberta dos atos nela
presentes.
94
Os pedidos apresentam esta característica intencional: a pessoa do remetente dirige-se
a alguém a fim de poder obter algo que para ele tem relações afetivas com a história da
família. Nesta estrutura, porém, a relação com a coisa externa é significativa porque se, de um
lado, as vivências do ser humano são todas imanentes; por outro, o “dirigir-se a” pode ser
também visto de modo imanente quando se trata de ter como objeto de atenção a própria
vivência e apresentar-se de modo transcendente quando as vivências se referem a objetos
externos que, por sua vez, são transcendentes. Observemos melhor esta estrutura a partir dos
pedidos que se seguem:
Sou um descendente de italiano que vive no Brasil. Está no meu coração
encontrar o certificado de nascimento de meu avô Giuseppe G., nascido na
Itália no dia 14 de dezembro de 1887. Pediria se fosse possível realizar uma
consulta nesta Cúria para ver se existe o registro de nascimento de meu avô.
Antecipadamente agradeço
44
.
Alguns pedidos chegam a Cúria Diocesana de Vitório Veneto (Itália) tal como o do Sr.
Mário que tem necessidade apenas de encontrar o certificado de nascimento do avô – tanto
para fins de cidadania quanto para a elaboração da árvore genealógica –; tais pedidos são
remetidos aos encarregados diocesanos, mas certamente nem todos recebem a resposta, dado
o volume de correspondência que chega à Cúria e às paróquias. Por outro lado, há cartas-
respostas nas quais surpreende-nos a solicitude para com os requerentes. O que há aí bastante
presente no estilo assumido por toda a diocese
45
, marcada pela emigração nos finais do século
XIX, é a consciência do quanto estes dados têm valor para as famílias dos descendentes e o
dever de responder com atenção:
44
Arquivo paroquial “San Martino”, Cx. G1.
45
Para observar tal empenho basta ver a carta do bispo dirigida a todos os párocos da Diocese a fim de que
pudessem responder aos pedidos que chegavam a Cúria e paróquias. Assim exprimia-se o prelado: “Todos vocês
já receberam dos países da América Latina, e não só, cartas com pedidos de certificados de Batismo e
nascimento. O fenômeno está aumentando, mas também aumentam as dificuldades de dar resposta precisa e
solícita (...). Por isto pensei em pedir a um sacerdote que conheço interessado, competente e com boa experiência
para prestar o próprio serviço e colaboração nesta tarefa. Nada de difícil. O padre Noé pede um certificado
possivelmente respondam com solicitude. Ele tem necessidade de ter acesso ao Arquivo Paroquial façam isto
com confiança e cordialidade. Vocês encontram-se com pedidos que vocês não compreendem, não joguem fora.
Façam chegar até o sacerdote encarregado e talvez ele possa encontrar caminhos para responder com honra. (...)
O Senhor bendiga também este sacrifício” (Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. A).
95
Caríssimo Fernando,
Depois de 10 anos volto a escrever-lhe. Desta vez com uma boa notícia:
encontrei o ato de batismo dos seus bisavôs. Se ainda precisar é só escrever-
me. Aguardo notícias. Padre Noé
46
.
Na carta seguinte, junto ao pedido dos documentos dos bisavôs, o sujeito descreve o
significado e o influxo das iniciativas dos ancestrais para a vida da comunidade. De fato, será
por meio da recordação dos gestos do avô imigrante – dos valores religiosos trazidos – que o
indivíduo encontra as razões para aprofundar a própria pesquisa:
Agora preciso encontrar a certidão de casamento de mais dois bisavôs:
Fedrigo A. e Pasqua G., pais de minha avó materna. Eles se casaram em
Piavon, em fevereiro de 1870, conforme está no certificado de batismo de
minha avó. Esse meu bisavô, Fedrigo A., foi quem trouxe para minha cidade
natal a devoção a Sto Antonio de Pádua, colocando uma imagem em uma
gruta no alto de um morro, onde depois foi construída uma bela igreja.
Todas as noites ele acendia uma lamparina no alto desse morro em louvor a
Santo Antonio, em promessa pela cura de uma doença de minha bisavó. Diz
a lenda que no dia em que ele morreu ninguém subiu até a gruta, mas a
lamparina se acendeu. Tenho uma amiga que está escrevendo um livro
contando a história da construção dessa Igreja e eu gostaria que ela citasse
nele mais dados desse meu bisavô
47
.
Vamos nos concentrar por um momento no conteúdo da recordação do sujeito porque nos
leva a pensar num campo fundamental da experiência humana, na medida em que nos aproxima
da vivência de homens religiosos e, por conseguinte, da relação deles com o fenômeno religioso
na procura de uma vida mais rica, de uma potência
48
que pode ser invocada. O que manifesta ou
para que serve, por exemplo, a promessa de todos os dias acender uma lamparina no alto do
morro? O que significa trazer uma imagem e difundir sua devoção? Essas questões – e tantas
outras que podem ser feitas - remetem para a necessidade do ser humano de ampliar o horizonte
da própria vida. A experiência religiosa do ser humano pode ser explicada partindo-se da esfera
46
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. B3.
47
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. A.
48
Segundo Leeuw (1992, p. 537), o ser humano abre-se a uma totalidade, a uma potência que vem ao seu
encontro: “O homem que procura a potência na vida, não somente chega até o limite, mas sabe-se conduzido a
um país estrangeiro. Não somente chega até um lugar onde se abre um instante infinito, mas enquanto está
caminhando, tem consciência de se encontrar a cada instante circundado de coisas prodigiosas. Não está presente
somente o que é superior, mas ele é tomado pelo superior”.
96
hilética, isto é, da sensibilidade. Procuremos exemplificar fazendo uma aplicação no campo da
experiência religiosa relatada acima. A análise hilética serve para evidenciar o relacionamento
vital que há entre os elementos do mundo externo – as cores da imagem, o óleo da lamparina, a
formação rochosa do morro e da gruta – e o sujeito humano em sua sensibilidade interior: de
prazer e de bem-estar espiritual proporcionado pelo registro destes dados sensíveis. A potência
que o sujeito procurava passa por meio de elementos perceptíveis e, por isso, os gestos de trazer
uma imagem e colocá-la numa gruta sobre o monte falam da relação entre o fiel e a divindade, do
louvor pela salvação alcançada. O próprio gesto da comunidade ao edificar ali uma “bela igreja
para Santo Antonio remete de novo ao tema da encarnação, da experiência do encontro com esta
potência ou divindade. Pela hilética, portanto, somos levados a acentuar estes estratos sensíveis da
subjetividade humana na experiência do sagrado. Em seguida, podemos passar para a esfera
espiritual em que se descobre o sentido da promessa, o valor da figura de S. Antonio como santo
poderoso e milagreiro, o significado da edificação de um templo e sua colocação no alto de um
monte, etc. Esta atividade valorativa pertence à esfera noética. Estes dois aspectos são
fundamentais para poder ler as representações da experiência religiosa e, em particular, para os
fenômenos da religiosidade popular em que a percepção da matéria e o seu sentido mantêm
profunda correlação.
Os atos da percepção colocam-nos em relação com os objetos externos. Porém,
quando o sujeito voltado para o objeto - que se apresenta a ele como transcendente - passa a
assumir uma atitude reflexiva que o conduz a pensar na memória dos seus antepassados,
então, passamos a uma outra esfera de conexões em que, por meio do objeto, se revela a
recordação dos antepassados. Este ato é todo interior pois permite ao sujeito voltar a si mesmo
e viver de modo originário
49
o conteúdo da memória que tal objeto traz consigo:
49
Recordemos que produção originária em Stein (1999) é aquela em força da qual uma evidência acaba se
impondo e iluminando o eu da pessoa pela primeira vez, ou, quando, pela primeira vez, a manifestação de um
objeto nos é dado.
97
Agradeço por ter-me ajudado com estas certidões de batismo. Atribuo muita
importância a esta recuperação da memória dos meus antepassados. Gostaria
de saber sempre mais e mais
50
.
Já outro aspecto fundamental neste pequeno trecho é quando o sujeito diz: “atribuo
muita importância a esta recuperação da memória”, em que há a tomada de posição diante do
objeto, isto é, o sujeito faz uma avaliação positiva a respeito da recuperação dos documentos.
É próprio da configuração do querer o fator determinante da atenção
51
. Este fator consiste em
fixar a atenção a um objeto pela importância dele, ou, em termos mais precisos, pelo interesse
que o objeto desperta. Na verdade, trata-se de compreender que para o indivíduo a
recuperação da memória dos antepassados é uma escolha que pressupõe uma atenção positiva
para com os objetos que trazem pistas para iluminar a própria busca. O que as pessoas
experimentam nessa busca é o desejo de saber mais, como muito bem expressou o sujeito, ao
referir-se à memória dos antepassados: ‘gostaria de saber sempre mais e mais’. Vemos,
portanto, que ao lado dos atos da vontade existe os movimentos cognitivos mediante os quais
a consciência do indivíduo pode aumentar ou alargar os conteúdos referentes ao objeto de sua
atenção. Também poderíamos indagar sobre quais sensações, sentimentos, pensamentos,
representações e predisposições fluem no sujeito diante da qualidade dos dados obtidos.
Justamente estas considerações sobre o fluir das vivências ao qual nos referimos durante toda
a análise permitem falar da relação existente entre o corpo próprio, a psique e o registro destes
atos na consciência.
50
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. Z1..
51
Husserl prefere chamar estas vivências de modos de atenção porque elas aparecem misturadas com outros
tantos atos do ser humano: a percepção, a reflexão, o recordar, o querer etc. Nas Idéias, Husserl escreve (2002a,
p. 234): “os atos da atenção, que possuem um papel fundamental, não estão fenomenologicamente separados de
outros fenômenos, e exatamente porque estão misturados com estes é que eles podem ser designados como
modos de atenção”. Até mesmo a escolha, por exemplo, pressupõe uma atenção positiva em direção aos objetos
do querer. Há, portanto, de um lado, a conexão entre atenção e intencionalidade; por outro, Husserl (2002a)
afirma que na estrutura do ato da atenção toca-se de modo eminente no caráter da subjetividade porque este ato é
próprio do eu e não se separa dele. A metáfora que melhor representa este ato seria aquela de um raio de luz que
permeia o eu. O eu vive neste e em tantos outros fenômenos dos quais não se pode separar como decidir, refletir,
avaliar etc. Sem dúvida, a capacidade de atenção determina a qualidade da relação do sujeito com o mundo.
98
Os documentos para os descendentes de imigrantes – certidão de batismo, de
casamento, passaporte, fotos – evocam uma certeza sobre lugares onde nasceram e viveram os
ancestrais: por isso, é como se o enigma do passado fosse descoberto; para quem está diante
destes dados, há também a experiência da presentificação. Quando uma certa coisa traz a
recordação de uma outra ou desperta o sujeito para a representação de imagens sobre o
passado temos não só o mecanismo associativo atuando, mas, como mostra Stein (1999), estes
atos indicam que o viver de cada ser humano não desaparece sem deixar suas marcas, mas
estas estão destinadas a perdurar no tempo
52
; elas podem ser de novo despertadas. A vivência
da recordação atualiza os elementos essenciais do passado no presente e, assim, o passado
recordado vem representado pelo sujeito e pode ser re-evocado na presença de certos objetos.
Em alguns pedidos o motivo da procura encontra-se exatamente nesta sensação de perda das
marcas do passado, como expresso pelo sujeito: “Faz muito tempo que venho buscando
informações sobre a história da minha família. Com o tempo a trajetória dos meus corajosos
antepassados ficou cada vez mais distante de mim”
53
.
No trecho seguinte, esses aspectos ficam ainda mais evidentes. A metáfora que a
pessoa criou a fim de contar a experiência que alguns membros da comunidade tiveram diante
da presença dos documentos vindos da Itália, sintetiza o percurso feito até aqui:
Recebi os documentos e distribuí para as famílias mais antigas com ligação
com os Perin, Caliman, Minet, Basei, Sossai. Devo lhe dizer que foi recebido
como uma preciosidade e motivo de muita alegria. Era como se tivessem
notícias do paradeiro da mãe que julgavam eternamente perdida
54
.
O dizer que receber os documentos é como ter as notícias do paradeiro da mãe perdida
significa perceber a conexão entre os dados do passado e sua relação com o presente. Esses
52
A propósito da memória, refazendo-se a tradição agostiniana e de Husserl, Ricoeur (2004, p. 52) afirma que
“na memória reside a ligação originária da consciência com o passado. Sabemos e dizemos isso desde Agostinho
(Confissões XI): a memória é o presente do passado. (...) A memória assegura uma continuidade temporal da
pessoa: é a continuidade entre passado e presente que me permite voltar desde o presente vivido aos eventos
mais distantes da minha infância” .
53
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. B1.
54
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. C1.
99
dados suscitaram nos destinatários o que Stein (2000) chama de influxo vivificante. Tal
conceito refere-se principalmente àquele incremento de energia e força que se recebe na
presença de pessoas significativas, ou também por meio de tudo aquilo que para os indivíduos
é objeto de valor positivo. O valor positivo encontrado – saber o paradeiro do que estava
perdido – torna-se fonte de força psíquica. De fato, a atitude receptiva dos destinatários
permitiu ver naqueles documentos um valor que os fez provar uma alegria profunda, pois eles
estavam diante de algo precioso concernente à própria família. Tal alegria está fundada nas
informações recebidas, pois cada sentir precisa dos atos do conhecimento sob o qual são
construídos. Os valores sentidos pelos indivíduos podem ser vivenciados em diferentes graus
mostrando a relação essencial entre a hierarquia dos valores e o ordenamento dos sentimentos
axiológicos. Por aí se compreende, por exemplo, por que a alegria por ter recebido os
documentos dos ancestrais não se manifesta de maneira superficial, mas foi vista como ‘uma
preciosidade’: era a alegria por um objeto enquanto recordação das pessoas amadas. Ora, seria
superficial este sentimento se o objeto encontrado não fizesse referência significativa para os
indivíduos. Assim é que, ao falar do reino dos valores e ressaltar a correlação com os
diferentes estratos da pessoa, Stein (1998), ajuda-nos a entender que o reconhecimento e o
avançar neste âmbito permitem simultaneamente o crescimento no reino da própria
personalidade.
Contudo, cumpre ressaltar que, a aquisição dos documentos dos ancestrais italianos
tem múltiplas finalidades e significados para os descendentes de imigrantes. Para alguns,
serve apenas para a obtenção da cidadania, a outros favorece a construção da árvore
genealógica e, para muitos deles, desdobra-se na elaboração de um livro da família ou um
álbum da história de um conjunto de famílias. Mas podemos dizer que nesta busca se constitui
um conhecimento objetivo, gerando nos descendentes o despertar de sentimentos de pertença
pelo vínculo interior com o objeto intencional, a saber: os documentos dos ancestrais.
100
Algumas pessoas pedem documentos, já outras preferem ter diante de si a imagem que
possa trazer à mente os lugares em que viveram eles mesmos ou seus descendentes. Esse tipo
de pedido de lembranças fotográficas permite ao imigrante e a seus familiares viverem em
companhia do seu passado, pois, quando se abre um álbum ou se vê os postais do lugar natal,
no decorrer dos anos, há uma diversidade de sentimentos que afloram, outras imagens são
suscitadas e tantas outras experiências conectam-se àquelas figuras ou fotos:
Pediria ainda ao sr., se fosse possível, enviar-me um cartão postal da cidade
de Spresiano para uma velha parente que passou a sua infância ali e depois
de 70 anos recorda ainda de todos os particulares. Ela vivia perto da estação
e me dá uma pena imensa saber que ela não tem nem uma foto
55
.
[...] gostaria muito que o sr. me mandasse algumas fotos, cartões postais,
enfim, qualquer coisa daí, que eu terei o maior prazer em guardar como
lembrança. Estou lhe enviando a foto de minha família, em que estão meus
pais, minha irmã e eu
56
.
Realmente, a força do objeto fotográfico está em conservar lembranças, em
armazenar o cotidiano para que seja revisitado de tempos em tempos, e permite confirmar as
particularidades das quais se tem recordação. Esses pequenos postais ou fotos servem para
que o indivíduo aprenda também a conhecer e a voltar-se para o que está na sua interioridade.
A foto conduz o sujeito a vivenciar a recordação, trazendo presente aquilo que havia
percebido em carne e osso, pelo afastamento durante 70 anos, não pode mais perceber
originariamente, entretanto, tem uma modalidade própria de estar presente por meio das
representações, sejam elas vivências das lembranças ou da imaginação. Assim, o indivíduo,
na recordação, pode ter todos os particulares do lugar, e a foto ou o cartão postal poderá
trazer a confirmação ou mostrar as mudanças ocorridas em termos ambientais e estruturais na
cidade de origem. É oportuno lembrar o exemplo dado por Stein (1999, p. 131) a respeito da
possibilidade de voltar a um evento:
55
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. Z1.
56
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. SII.
101
(...) uma percepção pode ser repetida, a produção presentificante é uma
repetição daquela originária só que com conteúdo não originário, antes que
originário. (...) Tenho a possibilidade não só de repetir um passeio ou de
voltar a ele como um evento passado, mas também de presentificá-lo na
recordação e na fantasia.
Não são apenas os objetos que possibilitam a presentificação ou a recordação dos
ancestrais, mas há também a expectativa que consiste na espera de poder conhecer os
ambientes de proveniência dos antepassados. Os sujeitos movem-se para retornar aos lugares
de pertença de seus ancestrais a fim de completarem suas buscas e conhecerem as
particularidades do ambiente:
Há bastante tempo que recebi sua carta. De fato, concordo com o senhor não
ser fácil levantar os dados solicitados a respeito do meu bisavô. (...) Mas o
motivo desta carta não é tanto o pedido de certidão e batizado dos meus
bisavôs, mas anunciar-lhe a decisão de nossa viagem á França, prevista para
o dia 14 de junho próximo. Gostaríamos de conhecer e visitar a região de
meus antepassados. Ficar-lhe-ia grato se o senhor pudesse me indicar como
chegar a Follina, de onde são originários os meus bisavôs que vieram para o
Rio Grande do sul na primeira imigração. Ficar-lhe-íamos gratos se o senhor
pudesse nos pôr em contato com alguma família L. em Follina
57
.
Neste trecho, encontramos, portanto, o sujeito comunicando ao outro o propósito de
fazer uma viagem à terra dos seus antepassados. Como já fizemos notar, o propósito comporta
necessariamente um poder, ou seja: ter as condições para realizar a viagem que vem orientada
por uma decisão tomada em momento oportuno na vida dos indivíduos. A análise
fenomenológica permite, neste caso, compreender o papel determinante das motivações no
âmbito dos atos livres. Dentre os atos livres temos o ato voluntário, o qual, como nos explica
Stein (1999), em si não é um movimento cego, mas é caracterizado, na sua essência, pela
consciência do que se quer. Por exemplo, é bem compreensível o motivo expresso na carta
pelo sujeito: ele empreende uma viagem para conhecer a terra natal dos seus antepassados,
isto é, a cidade de Follina; em seguida, pede ao sacerdote que o coloque em contato com
pessoas do seu grupo familiar. O sujeito tem consciência dos objetivos. Na relação entre os
57
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. LII.
102
motivos da vontade e sua vivência aparecem alguns elementos essenciais que, quando
considerados, permitem descrever melhor o dinamismo do querer. Em primeiro lugar, há um
fato percebido ou reconhecido pelo sujeito. Em seguida, é necessário que o sujeito acolha,
tenha um comportamento de escuta, ou seja, reconheça a exigência ou a sua necessidade
fundamental. Enfim, depois de reconhecida tal exigência, é ainda preciso que seja acolhida e
aprovada pelo sujeito e, então sim, vem realizada em ato baseando-se em todos esses
elementos. Stein (1999, p. 92) fala, por exemplo, do gesto do perdão como algo paralelo ao
movimento do querer. De fato, esta estrutura pode ser compreendida na medida em que
pensamos em realidades concretas do cotidiano como estas reveladas pelas cartas. Nelas
aparecem como ponto de partida a necessidade reconhecida pelo sujeito de compreender as
raízes e a ação combinada de forças para atingir os objetivos propostos.
Também é certo, entretanto, observar as estratégias que as famílias italianas do Vêneto
utilizam na procura de seus familiares no Brasil. Aqui é o caso de notar as formas
estabelecidas para reatar os laços, os vínculos familiares que foram perdidos, demonstrando
que o sentido da presença humana no mundo realiza-se por meio de um percurso que nem
sempre é linear, mas possui os desnorteamentos, os desencontros – e encontros, os lados
luminosos e sombrios. Muitas vezes os reencontros ocorrem por meio de lembranças e
notícias conservadas por gerações ou por algum ponto de referência comum que liga o grupo
familiar aos eventos da grande imigração dos finais do século XIX. A carta seguinte foi
enviada por um sacerdote da diocese de Vitório Vêneto – que se fez de intermediário entre as
famílias da Itália e as do Brasil. Nela transparece a necessidade do indivíduo de reaver os
vínculos afetivos com os familiares do tio que havia emigrado para o Brasil:
Prezado Sr. Ivo,
Não sei se esta minha carta vai fazer partir alguma coisa boa. Escrevo-lhe a
pedido do Sr. Luigi M., meu paroquiano, que disse ter parentes no Brasil.
Ele me contou que um tio dele, Ângelo M., saiu para o Brasil no começo de
1900 e foi morar em Caxias do Sul. Por algum tempo escreveu aos irmãos e
aos parentes da Itália. Mas agora faz muitos anos que não tem notícias dele e
103
dos filhos e parentes dele. Disseram-me que o Sr. é casado com uma filha
deste Ângelo M., e que conhece o parentesco e os parentes ainda vivos.
Gostaríamos portanto de saber alguma coisa sobre este assunto e se pudesse
mandar a relação dos familiares que ainda existem no Brasil. Queira
desculpar o trabalho que vou dar com esse pedido, mas acho bom conhecer
estas coisas, estes relacionamentos humanos que ajudam a gente a se
conhecer e amar mais
58
.
Já a resposta revela-nos o quanto tais reencontros provocam contentamento e
impulsionam os indivíduos envolvidos a direcionar as próprias ações na concretização deste
conhecimento. Desse modo, confirma-se o parecer dado pelo remetente de que esses
relacionamentos que levam ao conhecimento mútuo abrem um horizonte de amor:
O sr. Ângelo M. faleceu no dia 22 de novembro de 1946. Às vésperas de
nosso casamento, que teve de ser transferido. Ele não deixou mais nenhum
parente aqui no Rio Grande do sul. Meu caro padre: então diga ao Sr. Luis
que ficamos muito contentes com suas notícias. Estamos aqui as ordens e
gostaríamos de ter maiores notícias. (...) De outro lado, existe uma
possibilidade de irmos à Itália no próximo ano. Iremos visitá-los.
A questão do vínculo entre os membros de uma família pode mesmo ser pensada nos
diferentes estratos como veio sublinhado na primeira carta. Por isso, o conhecimento de como os
ancestrais mantinham-se em comunhão com os parentes faz refletir em diversos aspectos
constitutivos para que a família se realize como uma comunidade. A realização desta comunhão
implica a assunção de uma postura de disponibilidade cujas fontes não são puramente o elo
corporal ou de sangue, mas vem alimentada pela reciprocidade, solidariedade e pelo sentimento
de amor. O sentimento do amor está ligado, conforme assinala Bello (1985; 1998), a uma
motivação válida ditada por uma tentativa de entrar em comunhão com outros, de abri-los a si
próprios. A ênfase no sentimento do amor não nos deve fazer esquecer que as cartas foram, em
larga medida para os imigrantes, o canal por meio do qual os familiares mantiveram-se por anos
em união com os parentes. Por elas temos notícia dos estreitos laços de solidariedade criados,
sobretudo, no envio de recursos. O encontro que envolve as pessoas, portanto, tem um sentido de
58
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. MII.
104
reconhecimento não só extrínseco, mas verdadeiramente ontológico a tal ponto de, como comenta
Manganaro (2000, p. 118), “o outro se tornar a condição do encontro comigo mesmo, a verdade
sobre o meu eu, assim, o milagre da reciprocidade e da relação é esta: cada homem é condição de
autenticidade para outro homem”.
Na seqüência de correspondências, aparece este mesmo movimento de procura mas a
partir da Itália por meio da ajuda de alguns párocos. A família que conservava uma única
carta dos ancestrais
59
tenta de novo re-fazer a comunicação com os parentes brasileiros:
Prezados Senhores,
Sou o vigário de Sarano de S. Lucia de Piave. Um amigo de Susegana pediu
para escrever esta carta para saber se ainda existem seus parentes em
Piracicaba. Ele está procurando por Amabile e Elisa. Será que são vocês? Ou
conhecem e sabem onde elas foram parar?. Aguardo resposta, saudações.
A resposta chega imediatamente. Nela, encontram-se as razões pelas quais os parentes
já não podiam se comunicar. A dificuldade principal era o idioma:
Revmo. Padre,
Foi com surpresa e alegria que recebemos sua carta, procurando por
Amabile e Elisa. (...) A tia Elisa me contou que elas pararam de se
corresponder com os familiares italianos porque tinham dificuldade de
escrever em italiano. Depois que a nona faleceu, elas foram deixando de
falar o italiano, daí a dificuldade. Hoje, porém, já está mais fácil porque
vários sobrinhos falam bem o italiano. (...) Fale para seu amigo e nosso
parente que gostaríamos muito de nos corresponder com ele
60
.
É curioso observar a convergência de sensações nos que se põem no caminho da pesquisa
sobre as origens. O sentimento de satisfação para as famílias brasileiras e para as italianas tem
uma dinâmica peculiar. As possibilidades de um despertar para as questões das raízes familiares
são intensificadas quando acontece o encontro com pessoas – de outro continente – curiosas em
conhecer as origens dos seus ancestrais. Essa união acontece e re-acontece por causa de um ponto
59
A carta conservada possuía as informações sobre a localização dos familiares no Brasil e o apelo para obter
respostas: “... nós estamos todos bem, assim esperamos de todos vós. Desejamos e esperamos as vossas caras
notícias. Saudações e desejamos a vocês todo o bem” (Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. TII, carta 3).
60
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. TII.
105
de referência comum que liga a família. Por vezes, são as próprias correspondências antigas que
chegam a desencadear um grande circuito de notícias e têm o poder de engendrar memórias. Tal
perspectiva pode ser documentada pela carta escrita pelo Sr. Antonio B., a um sacerdote,
relatando a experiência de ter ajudado na pesquisa sobre as origens de um ítalo-brasileiro:
É realmente prazeroso constatar que alguns mantenham ainda esta pertença
às suas antigas raízes. Respondendo a um professor universitário de origem
italiana dizia que cada um de nós não é só filho dos próprios pais, mas
também de todos os outros antepassados, do mundo deles, da cultura deles,
do modo deles de serem homens, uma vez que nossas raízes têm longínquas
profundidades, talvez muito mais do quanto nós mesmos pensamos, e nos
transmite uma herança que não podemos desconhecer, porque está dentro de
nós, esta herança somos nós. E conhecê-la – obviamente muito além da
própria genealogia – é sempre um enriquecimento, uma tomada de
consciência útil, talvez também necessária
61
.
Tal como em outras cartas, o indivíduo expressa a satisfação em constatar que algumas
pessoas conservam o apego às próprias raízes. O sentimento de prazer constitui a reação do
sujeito diante da tomada de consciência do quanto para os descendentes dos imigrantes as
interrogações sobre as raízes estão ainda vivas. As razões disso encontram-se no fato de que
‘cada um de nós não é só filho dos próprios pais, mas também de todos os outros
antepassados’. Stein (2001, p. 106) discute esses aspectos e faz uma análise realmente
sistemática no capítulo V de seu livro em que trata do problema das origens das espécies. Para
a autora, esses problemas não são secundários, pois descobrir que “o indivíduo que nasce, em
um primeiro momento, deve mesmo ser considerado uma parte daquele que o gerou, mas que
depois deve começar a conduzir sua existência independente deste” significa pensar o
relacionamento entre a herança e a formação de uma identidade pessoal
62
. Há um patrimônio
61
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. L1.
62
Stein (2003, p. 374) no livro Potenza e Atto prefere usar o termo caráter para indicar as disposições e
propriedades que o ser humano adquire ao longo de sua vida sob o influxo dos diversos fatores do seu ambiente:
“Por meio da disposição herdada o ser humano possui uma particularidade típica da sua família, do seu povo, da
sua raça. E a estas características, ao longo da vida, vão sendo cada vez mais fortemente impressas se o
indivíduo permanece sob o influxo da respectiva comunidade. Com a entrada em outras comunidades – por
exemplo na classe profissional – ele vai acabar sendo influenciado e assumirá as propriedades típicas desta
comunidade”.
106
hereditário que associa o indivíduo a um grupo determinado de pessoas. Tal afirmação – do
ponto de vista noético – permite considerar os diversos estratos de pertença do indivíduo. O
ser humano que nasce é certamente parte daquele que o gerou, contudo, posteriormente, no
desenvolvimento, vai conduzindo a própria existência independentemente dos pais e dos
antepassados. Mas o elemento essencial aqui é constatar que o ser humano, como indivíduo, é
primordialmente dependente, e para sua verdadeira autonomia tem necessidade de verificar
os conteúdos que lhe foram transmitidos pelos pais e antepassados. Por outra parte, cada ser
humano é membro de uma comunidade, de um povo. Assim, o mundo cultural em que os
descendentes de imigrantes foram educados funda uma comunidade que tem por base uma
ligação originária e com a qual cada singular membro compartilha os valores. O que se
verifica na carta acima é a tentativa de mostrar a correlação entre a dinâmica pessoal e aquela
familiar e transgeracional, isto é, a interdependência desses elementos.
Posteriormente, e como último elemento, o Sr. Antonio nos fala da herança. Diz
literalmente que ‘a herança somos nós’
63
referindo-se a essa gama de relações da qual somos
dependentes e mediante a qual recebemos o mundo e a cultura. Constata que o modo de ver e
pensar adquirido atua como fator interno da nossa existência. Segundo tal concepção, a
herança torna-se dívida para com o passado. Compreender o que se é constitui um
enriquecimento para o ser humano. Mas a força vital adquirida – o enriquecimento – está em
estreita dependência da consciência das raízes. Tal consciência é considerada pelo remetente
63
Ver, por exemplo, os comentários que Ricoeur faz à noção de dívida para a compreensão fenomenológica das
relações entre memória e história. Ricoeur parte da convergência encontrada entre o pensamento de Santo
Agostinho e do filósofo Koselleck quanto ao modo de falar do presente em relação ao conhecimento histórico, o
primeiro fala do tríplice jogo do presente: presente do passado, presente do presente, presente do futuro, e o
segundo sublinha a polaridade existente entre o horizonte de espera (futuro) e o espaço da experiência (passado),
inaugurando assim a possibilidade de usar da categoria de dívida, a qual, por sua vez, faz alusão a um certo fardo
que o passado traz ao futuro. Sublinha-se que tal dívida é um peso que comporta uma obrigação, um
compromisso. De certa forma, tal categoria permite compreender a memória como profecia, isto é, aberta ao
futuro. Assim, se de um lado, a dívida exige uma obrigação para com o futuro, por outro, segundo Ricoeur, ela
não se esgota apenas na noção de um fardo a ser carregado, mas a herança é também “ressource”, no sentido de
que a herança faz que o ser humano não apenas olhe passivamente para as marcas do passado, mas exige que de
certa forma ele esteja implicado, possa ser afetado pelos fragmentos do acontecimento e, é assim, que a herança
torna-se uma fonte de força para o indivíduo, bem como para a comunidade na qual vive (cf. RICOEUR, P., La
marque du passe, in Revue de Métaphysique et de Morale, janvier-mars, 1998, n. 1, PUF, Paris, p. 7-31.;
Ricordare, dimenticare, perdonare: l´enigma del passato, Bologna: Il Mulino, 1998, p. 23-45).
107
como útil e necessária porque instaura uma dinâmica diferente dentro dos relacionamentos. A
fenomenóloga Bello (2000, p. 166), ao explicar os níveis de vida associativa segundo Edith
Stein, assinala que: “[...] a força vital é dos indivíduos particulares que contribuem para
formar a comunidade, mas, uma vez objetivada, a mesma pode servir de estímulo para um
indivíduo singular no âmbito de uma comunidade [...]”. Nessa experiência, porém, o sujeito
consciente de que é originariamente dependente, pode descobrir que sua vida e a das outras
pessoas com as quais está associado, na pequena comunidade da família, não só estão
genericamente juntas, mas, ao contrário, as vidas dos sujeitos dirigem-se umas às outras
(HUSSERL
, 2003).
1.3.1.2 A Vida Afetiva
Nas cartas, podemos encontrar a descrição das vivências dos sujeitos - descendentes
dos imigrantes – diante da experiência feita na viagem para conhecer a terra dos ancestrais:
Andar por Zoppé, sentir a energia das ruas e dos locais por onde andaram,
viveram e nasceram meus antepassados, foi realmente emocionante. Pude de
certa forma, resgatar a minha identidade. Agora sei quem sou, de onde vim,
quem eram e como viviam meus antepassados. O ser humano não pode viver
sem as referências do passado
64
.
Observemos aquilo que o sujeito revela pela percepção do mundo externo – o andar
pelas ruas e locais da cidade de origem dos seus ancestrais – pois este é o primeiro nível da
análise. De fato, o sujeito se dá conta da cidade de maneira sensível: andando, tocando,
vendo, ouvindo etc. Ou seja, ele reconhece os objetos externos e, simultaneamente, é afetado
por eles. Desta experiência decorrem as sensações agradáveis ou desagradáveis. Nestes casos,
de acordo com a perspectiva steiniana, o ‘corpo vivente’ vem tocado sensivelmente, e é dessa
maneira que nós nos damos conta de possuirmos um corpo. Em correspondência com o relato
acima, podemos dizer que o sujeito experimenta sensações agradáveis, pois adverte uma
64
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. Z1.
108
energia proveniente dos locais e das ruas. Este é um segundo nível no qual aparece um tipo
determinado de sentimento ligado aos sentidos. Se considerarmos a essência do ser humano
como ser aberto e consciente, devemos observar que não somente será possível uma abertura
receptiva no confronto das impressões externas e internas, bem como pela nossa capacidade
de conhecimento espiritual, podemos vivenciar o significado das coisas. Por isso, há ainda um
outro nível a observar: é aquele em que experimentamos certos sentimentos – vivenciados na
alma e no corpo vivente – a partir da avaliação do significado daquilo que encontramos. A
expressão ‘foi realmente emocionante’ indica este nível da percepção do significado do
caminhar pelas ruas de Zoppé e poder reviver, imaginar e recordar os feitos de homens e
mulheres que tiveram de deixar aquela terra. Nesta expressão, está sintetizado o movimento
da alma do indivíduo. Todavia, o movimento de compreensão do significado comporta a
abertura em acolher as possibilidades de atualização desta viagem para a experiência pessoal.
E com muita perspicácia isto está indicado na carta acima no trecho: ´pude de certa forma
resgatar a minha identidade’.
É perfeitamente possível identificar nessa carta as duas dimensões que caracterizam o
conceito de pátria
65
: isto é, aquela material ligada ao território, ao lugar tal como descrito pelo
remetente quando diz: ‘andar por Zoppé, suas ruas e locais´ e a dimensão espiritual, ligada ao
fato de que naquela cidade viveram pessoas significativas para a história pessoal do sujeito e,
por isso também, o andar pelas mesmas ruas é percebido como fonte de energia.
A segunda parte do relato, porém, mostra como a viagem ao lugar de origem dos seus
antepassados permitiu uma compreensão diversa de si. O resgate da identidade significa, tal
como nos mostra a carta em questão, o descortinar dos vínculos de pertencimento.
65
Para esta questão remetemos aos estudos que fez Stein sobre as formas associativas humanas, em particular, ao
Estado, na qual a autora fazendo uma análise essencial de cada uma delas mostra a peculiaridade do ser humano
como ser associativo. Tal estudo permite uma visão bem ampla não apenas do conceito de pátria, mas das
dimensões da vida de um povo. Segundo ela, os povos o pessoas que possuem vida própria: nascem, crescem e
desaparecem (cf. Una ricerca sullo Stato, Roma: Città Nuova,1993, e também, La struttura della persona
umana, p. 199-214). Outra obra complementar é a leitura do livro de González Di Pierro (2005), o qual
evidencia o laço entre a antropologia filosófica e a reflexão sobre a história realizada por Edith Stein.
109
Interessante notar que o resgate de que fala o sujeito se dá no reconhecimento de que o ser
humano não pode viver sem olhar para o passado. Nota-se que o valor da viagem está
exatamente em ter possibilitado o despertar dos valores da raiz na interioridade do sujeito.
Além disso, a leitura das cartas evidencia em seus autores a capacidade de constatar os
diferentes níveis de emoção que provam os descendentes ítalo-brasileiros – na quarta geração
– quando comparados com os parentes italianos:
Cada vez mais constato a diferença das emoções de quem ficou e de quem
partiu, embora sejam da quarta geração. Para quem deixou a pátria, a
emoção é maior. Quando estive em Barco de Levico, Trento, foi uma
‘regressão’, aos costumes, à cultura. Foi um encontro lindíssimo, porque
havia a procura pela raiz. Os que permaneceram lá não podiam sentir do
mesmo jeito, pois são galhos ainda vinculados ao tronco
66
.
Ao dizer ´eu constato a diferença’, o sujeito coloca em evidência a sua capacidade de
refletir, de voltar a sua atenção para as vivências das emoções por ele sentidas e, por meio da
empatia, tem o modo de constatar esta situação em outros e poder dizer: ‘os que permanecem
lá (na Itália) não sentem do mesmo jeito’. Porém, este raio que emana do eu – como diz
Husserl (2002a) – ou que se dirige para o próprio eu, pela vivência da reflexão, dá a
possibilidade de iluminar – é uma luz - as diferenças entre a emoção vivida pelo sujeito e
aquelas observadas em outros. Há graus de intensidade nas emoções. Na opinião de Stein
(2003), elas podem ser vividas na superfície ou na profundidade.
Parece-nos muito sugestiva a imagem criada pelo autor para representar as diferenças
percebidas por ele entre os de lá e os de cá do Oceano. No entanto, essa posição de estar em busca
das raízes não é, de fato, ligada apenas àqueles que procuram informações sobre seus ancestrais
que imigraram, mas é um fator ligado a uma das necessidades mais profundas de todo ser
humano. Essa exigência inerente ao ser humano de inserir-se numa dimensão comunitária que re-
evoca a cultura trazida pelos ancestrais vem representada pela imagem da árvore. Tal encontro
pode ser significativo quando vem despertada no sujeito a busca e a curiosidade.
66
Arquivo Paroquial “San Martino”, cx. C1.
110
1.3.1.3 O Sentimento de Gratidão
É preciso particular atenção para com os sentimentos, os quais segundo Stein
(1998), desvelam justamente os estratos pessoais. O interesse volta-se para o significado dos
dados da vivência dos sentimentos para os indivíduos e, simultaneamente, para os valores
deles derivados. Os sentimentos como o amor, o ódio, a gratidão ou a vingança possuem o
próprio correlato em termos de valores pessoais. O objeto destes sentimentos, incluída a
gratidão, são as outras pessoas. Na vivência da gratidão, há a compreensão imediata do valor
da pessoa, contudo, esse valor vem reconhecido não só pelo bem realizado mas enquanto
vem afirmado o valor da pessoa em si, digna de respeito e atenção.
O sentimento de gratidão tem seus fundamentos em razões que vêm explicitadas nas
cartas. Se, em muitos casos, a pesquisa realizada parece ser impossível em decorrência da
falta de dados precisos, por outro lado, quando esta conduz a descobertas significativas, os
pesquisadores que serviram de elo na aquisição de informações e documentos, são lembrados
com especial atenção nas cartas enviadas como agradecimento. Em muitas delas, são
sugestivas as imagens/representações que têm os remetentes a respeito desse trabalho de
escavo nas raízes da família:
[...] o meu mais profundo agradecimento pela pesquisa que foi feita de nossa
família aí na Itália. Chego a imaginar que é um sonho. Como pode alguém
valorizar tanto alguns registros de gente tão humilde, que foram feitos há
tanto tempo? Agradeço pra sempre
67
.
O bem realizado por alguém leva a pessoa que o recebeu a desejar mostrar-se
reconhecida no confronto do outro. De certa forma, receber a resposta ao pedido feito
apresenta-se, como vimos, na modalidade de um despertar.
Jamais esquecerei o seu empenho em reconstruir o vínculo da nossa família
perdido há mais de cem anos. Para mim foi muito importante ter ido a
Zoppé, conhecer-lhe e conhecer meus parentes que nem sabia que existiam
67
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. ZII.
111
e que me deram tanta atenção e, acima de tudo, carinho. Houve uma troca
muito grande entre nós. Senti que representei, em determinados momentos, a
filha e a irmã que eles não tiveram. Foram incansáveis, proporcionando-me o
melhor
68
.
Duas considerações importantes podem ser feitas a respeito dos depoimentos nesses
fragmentos recolhidos nas cartas: a primeira, é a idéia de que alguém possa encontrar valor
em documentos de ‘gente humilde’. Tal constatação converge com as preocupações das
pesquisas de muitos historiadores e sociólogos em torno à cultura dos camponeses e operários
vênetos que emigraram. Muitas pesquisas foram e estão sendo desenvolvidas, promovendo o
resgate dos fragmentos dessa história por meio de cartas, diários, fotografias, vestimenta etc.
Não é uma cultura dos letrados, mas de um grupo social diferente, materialmente ligado à
terra, às pequenas tradições camponesas e, sobretudo, que conserva traços de pertença ao
catolicismo tradicional. Aliás, o fato de todo um povo – uma coletividade - ter experimentado
a emigração da terra de origem, foi fator estimulante para que se começasse a instaurar um
processo de produção escrita por pessoas – na sua maioria - analfabetas ou semi-analfabetas,
que não se intimidaram de elaborar uma rica gama de textos sobre a própria saga fora da
pátria. O sociólogo italiano Ulderico Bernardi (1986), em sua obra sobre a cultura popular
camponesa no Vêneto, é quem nos confirma quanto os estudiosos vêm se ocupando, com
continuidade e método, da gente humilde que foi deixada no esquecimento, sem registros para
consolidar seus atos, mas dos quais se busca recolher os testemunhos desde a expressão
escrita até os objetos de uso. Em segundo lugar, a idéia sugerida por pessoas que agradecem
pelo fato de terem sido ajudadas a reconstituir um vínculo perdido coloca-nos diante da
questão da memória dos ancestrais. Há o agradecimento e o reconhecimento aos que serviram
de elo nesse trabalho porque, a partir dos dados e dos encontros realizados, as pessoas sentem-
se protagonistas na construção de sua história.
68
Arquivo Paroquial “San Martino, Cx. C1.
112
Outros sentem apenas a necessidade de algum documento ou de algo que recorde a
terra natal:
Uma amiga nossa sabendo deste meu contato veio me procurar: - A
Giovannina C. Ela veio ao Brasil recentemente, em 1923, mas como a mãe
morreu cedo, perdeu todos os documentos ou não os possuía. É uma senhora
que por não ter nenhum documento, se sente muito insegura e é bastante
deprimida
69
.
Quando, depois de um tempo, foram entregues os documentos a Giovannina, sua
amiga escreve à Itália agradecendo e diz: “... ela ficou tão alegre que parecia que tinha se
encontrado”. Do ponto de vista fenomenológico, pode-se afirmar que essa passagem do
sujeito estranho a si mesmo a uma aquisição da identidade por meio de um documento que
recorde/confirme sua trajetória, aparece como uma necessidade fundamental do ser humano.
A sensação de radical insegurança e vulnerabilidade dado pelo rosto sem nome, pela vida
anônima, por uma vida desenraizada que não permite a formação de uma identidade própria e,
portanto, de uma diferenciação, justifica a procura da Sra. Giovannina. Nesse caso, vemos que
o indivíduo busca seus direitos, reclama justiça e, a partir de então, pode colocar-se na relação
com a comunidade baseando-se na identidade. O caso é que Giovannina estava inserida em
um ambiente – pequena comunidade – no qual a maioria dos indivíduos conserva os pequenos
fragmentos de identidade e, mais recentemente, intensificava o contato com a Itália na busca
de documentos. Para ela, portanto, inserir-se verdadeiramente significava recuperar e, além
disso, documentar sua identidade de imigrante. E, de fato, o caso dela mostra que, ligado à
perda das referências étnicas, está o próprio adoecimento do ser humano. Segundo nos diz
Safra (2006a, p. 25), “todo desenraizamento produz uma fratura nos fundamentos mesmos da
condição humana, impossibilitando que surja a pessoa suficientemente sustentada e
reconhecida pela comunidade, com possibilidade de experimentar e narrar uma experiência”.
A narrativa de si, no sentido de significação no mundo, só foi possível para a Sra. Giovannina
69
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. C1.
113
porque ‘encontra a mãe perdida’ - para usar a metáfora exposta acima -, ou seja, quando pôde
ter os documentos. O seu ser no mundo estava garantido e confirmado de novo pelo
documento. Esse objeto restituía simbolicamente sua identidade.
O que é sobremaneira revelador nessas descrições é que todas elas nos fazem perceber
que os atos que o ser humano realiza não são independentes uns dos outros e sim são
compreendidos num fluxo de vivências inter-relacionadas. Vemos, assim, como o fluir dos
sentimentos em torno dos antepassados serve de motivação para o conhecimento da realidade
histórica da imigração. Por isso, Stein (1998, p. 202) constata que “é próprio da essência do
querer o ser motivado por um sentimento” e isto significa que o sujeito escolhe buscar o que
lhe aparece como um valor positivo. Entretanto, antes de iniciar a busca do que se quer, o
indivíduo deve avaliar as possibilidades e refletir se o que escolhe é razoável ou não.
Qualquer tarefa requer o emprego de uma quantidade de forças para poder alcançar os
objetivos propostos. Aqui entra a atividade dos atos da vontade. De certa forma, como ensina
Stein (2000, p. 178), “o desenvolvimento do ser humano depende da capacidade de dispor de
maneira voluntária da força presente”. E é exatamente isso o que se pode perceber nas cartas
de pedido analisadas acima, em que diversas vivências intencionais manifestam a
razoabilidade da necessidade sentida pelo sujeito. A resposta positiva ou negativa são
possibilidades, mas só pode ser encontrada à proporção que o indivíduo se move. A própria
natureza do pedido é um dirigir-se a alguém para poder ser ajudado na passagem da situação
do não-saber àquela do conhecimento, da ausência de documentos àquela da obtenção deles.
Vê-se, portanto, que há certa convergência nesses pedidos, no sentido de que neles verifica-se
uma estrutura dinâmica em que as polaridades: saber - não saber; perdido – encontrado;
presente–ausente se retro-alimentam. As cartas que examinamos estão repletas dessas
considerações em torno ao tema do “encontro com as raízes”.
114
115
CAPITULO II
REATANDO LAÇOS
Ao analisarmos as diferentes vivências – o fluxo de consciência – por meio das
expressões contidas nas cartas familiares, o que foi evidenciado era o fato de que toda a vida
consciente só pode derivar do indivíduo. Dessa forma, a via para poder alcançar a
compreensão da psique do indivíduo concreto não pode prescindir da inserção deste no seu
âmbito de manifestação, isto é, na convivência dos indivíduos dentro das respectivas esferas
em que se associam os seres humanos, seja a comunidade, seja a sociedade, ou seja ainda, o
Estado. Vamos refletir neste segundo capítulo, sobre a realidade das relações inter-subjetivas
e, em particular, a respeito dos vínculos entre os membros de uma determinada comunidade,
como a família. Na perspectiva fenomenológica de Stein a base da vida associada é pensada
não como mera agregação de pessoas, mas a partir do reconhecimento de que a força vital do
indivíduo tomado singularmente contribui para a formação da comunidade. E não é só isso.
Pelas cartas vamos chegar a entender que a presença das ligações inter-subjetivas quando
consolidadas e objetivadas na comunidade, serve de estímulo para a atuação dos indivíduos.
Os valores vividos no reencontro entre os familiares da Itália e do Brasil, lidos de maneira
fenomenológica, não constituem apenas motivos que prescrevem a direção do agir, mas
fornecem os impulsos necessários para o trabalho de revitalização das relações em nível
familiar, e principalmente da comunidade. No presente trabalho, partimos da análise das
cartas de alguns indivíduos na busca pela identidade das suas origens para abordar neste
capítulo as vivências destes, no contexto da comunidade de pertença, isto é, a família. No
terceiro capítulo, serão abordadas as vivências no âmbito da comunidade dos descendentes de
imigrantes vênetos. Assim, o nosso estudo alarga-se desde a análise do indivíduo, da família
116
chegando até a comunidade. Tomando como ponto de orientação as experiências relatadas nas
cartas, podemos proceder na identificação da influência do indivíduo sobre a comunidade e
prestar atenção na dimensão dos sentimentos e valores fundamentais que constituem fontes
para as vivências comunitárias.
Segundo nos ensina Bello (2006, p. 74), quando se diz que acreditamos em um vínculo
de sangue, significa, no caso da família, que estamos ligados por um elo corporal, porém “o
vínculo de sangue não faz que a família seja uma comunidade, é preciso que haja uma
disponibilidade psíquica e espiritual”. Por isso vamos observar quais os principais aspectos
sugeridos por essa recíproca relação.
2.1. ACONTECIMENTOS: DA ITÁLIA PARA O BRASIL
2.1.1 As Cartas e os Reencontros
Podemos documentar alguns eventos de vida relacionados aos encontros realizados a
partir da busca, por parte de parentes italianos, de seus descendentes emigrados para o Brasil.
Muitas famílias mantiveram as memórias dos parentes que participaram da grande emigração
transoceânica, transmitindo de uma geração a outra os fatos mais marcantes e dramáticos
desse período. O caso da família Capraro e Stefan é singular para poder descrever o quanto foi
importante, mesmo no interior do grupo familiar, transmitir os eventos – o que aconteceu –
por meio da narrativa. Eis o caso. Trata-se da viagem empreendida depois da primeira guerra
mundial, em 1921, pelo casal João e Mariana, atendendo ao pedido dos tios da família Sanson
que já habitavam o sul do Brasil. Esse casal se estabelece no Brasil na casa dos tios e logo
lhes nascem os filhos: Romano e Luiz. Todavia, em 1928, em razão de uma grave doença que
atingiu a colônia no Paraná, os dois jovens esposos vêm a faltar, deixando dois pequenos
órfãos. Nessa ocasião, o intercâmbio de correspondência entre a família Sanson do Brasil e
117
Capraro/Stefan da Itália intensifica-se para saber se os parentes estavam dispostos a acolher as
duas crianças órfãs. Porém, a família Stefan na Itália – com seis filhos – não tinha condições
de recebê-las. A partir de 1930 em diante, a comunicação entre as duas partes interrompe-se;
contudo, na memória da família Stefan a imagem dos dois órfãos e a lembrança desse fato
ficou gravada na memória das gerações posteriores. Passaram-se 55 anos até que Mario
Stefan, primo dos dois órfãos, junto com representantes da Associação Trevisana no Mundo,
começassem a empreender a busca a fim de reencontrar os irmãos Capraro. Diversas
correspondências são enviadas ao Consulado de Curitiba e a São Paulo. Posteriormente, por
intermédio do pároco da cidade de Morretes-PR, conseguem localizar os dois irmãos Luiz e
Romano na cidade de Curitiba. No Natal de 1985, os irmãos Luiz e Romano comunicam-se
por telefone com os parentes na Itália: é o início do reencontro. A nora do Sr. Romano, em
março de 1986, escreve ao primo Mário da Itália dizendo: “- nós estamos muito felizes por
um acontecimento como este do Natal, cheio de emoções, de alegrias e surpresas que jamais
esqueceremos”
70
. O movimento de compreensão e reconhecimento, neste caso, não tem uma
única direção, mas é recíproco.
2.1.2 Os Atos do Conhecimento Recíproco
Os atos ligados ao conhecimento são relevantes para a construção da personalidade.
Esses atos levam o ser humano à compreensão das características específicas do mundo
material e de suas leis, contudo, eles não se reduzem apenas a este âmbito porque é possível
por eles reconhecer as peculiaridades do ser humano. Neste sentido, é preciso dizer que
também a empatia é uma vivência cognitiva porque permite que as pessoas estabeleçam uma
relação profunda com aquilo que o outro está vivendo. Por ela, a vivência do outro – do
70
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. C2.
118
estranho
71
a mim – pode ser experimentada como um ato originário em termos do conteúdo
para compreender que o outro sente dor, prova alegria, sente-se angustiado ou em paz. Para
Bello (1997) e Pierro (2005), entretanto, essas considerações devem ser examinadas de modo
amplo com base nas contribuições de Stein (1998; 1999), que, partindo da corporeidade,
indica a presença da esfera psíquica e espiritual e as possibilidades de comunicação
intersubjetiva relativas a cada uma dessas esferas. O papel fundamental da empatia alarga-se e
coloca-nos em contato com todas aquelas realidades objetivas nascidas da relação entre as
pessoas no nível espiritual. Na escrita de uma carta, no trabalho manual, nas expressões
literárias, nas narrativas populares, temos as diferentes formas com as quais o indivíduo
exprime sua interioridade. Por esses meios a pessoa mostra-se a outros indivíduos e, por sua
vez, eles têm a possibilidade de acolher o significado das expressões, ou seja, de compreender
esta linguagem. Para Stein (2001, p. 208), o tema do fenômeno expressivo, coloca em
evidência que a revelação de uma pessoa a outra se dá na percepção do seu caráter global. O
certo, portanto, é que a empatia não só serve de fundamento para a alteridade subjetiva, mas
torna possível a constituição de um mundo objetivo. Tomando por base estes dois eixos, Bello
(1997, p. 12) comenta:
71
Husserl fala de dois diferentes modos de apresentação do conhecimento – descritos, esquematicamente, em
termos do ser-conhecido (típica familiar) e do ser desconhecido (estranho). Para ele, é importante compreender
a típica estrutura por meio da qual cada coisa se torna conhecida, ou a experiência na qual o indivíduo consegue
incluir aquilo que lhe era estranho. Os que pertencem a mesma pátria têm uma relação psíquica com o mundo a
eles familiar válida para todos, cada um compreende o próprio compatriota, por exemplo, como ser humano
pertencente àquele determinado ambiente. Já, quanto ao estranho, diz Husserl (2003, p. 96): “cada compatriota
compreende o estranho como estranho, isto é, de forma universal e abstrata ele é visto como sujeito pessoal, mas
não com a peculiaridade psíquica de quem habita a mesma terra, talvez como um homem de um ambiente
familiar desconhecido (...)”. Contudo, apesar de o poder compreender o mundo daqueles que não são os
nossos compatriotas com o domínio que temos dos que pertencem a nossa pátria, ainda assim, nós
compreendemos uns aos outros enquanto seres humanos. Na relação vital há um estrato particular que
possibilita esta adequada percepção do outro que é a entropatia recíproca. Este é o método para tornar familiar
aquilo que é estranho, compreendê-lo intuitivamente como se fosse familiar e tratá-lo como uma alteridade. O
outro é nosso semelhante porque possui as mesmas estruturas em termos das qualidades psíquicas e de afeto, e
portanto, constituído como todo ser humano de corporeidade, psique e espírito. Já Bello (2004, p. 191) alerta
sobre a importância desse tema para o relacionamento entre as culturas porque a diferença – pensemos na
questão da imigração hoje na Europa - cria uma situação psicológica de insegurança: “... todos os dias nós
encontramos pessoas diferentes e nossa primeira reação é a de afastar o diferente. Para não fazer isto, é
necessário ir a um outro nível, ao nível espiritual e dizer: este é um ser humano, tem o seu sofrimento. (...) como
podemos chegar a dizer que se trata de uma alteridade e não somente de diversidade ou estranhamento? Há uma
diferença de cultura, é claro, mas também uma unidade na alteridade: ele também é ser humano”.
119
De tal modo que se colhe não só a alteridade no sentido de que em mim
mesmo está presente potencialmente um instrumento que me põe em contato
com um ser ou mais seres que têm as minhas mesmas características e, neste
sentido, são como eu, mas não são eu, portanto são alter-ego. Mas estes
seres são percebidos também como criadores de cultura, isto é, no sentido da
produção de comportamentos, de expressões artísticas, religiosas, políticas,
portanto, promotores de atividades espirituais
.
Da capacidade do ser humano de interagir com outros nasce a possibilidade de criação de
diferentes comunidades. Na reciprocidade entre os membros de uma mesma família, tal dinâmica
pode ser constatada quando se examinam os sentimentos e os comportamentos dos sujeitos
envolvidos. Nem sempre uma família realiza-se como comunidade
72
pois nem sempre se
consegue alcançar a comunhão de vida. A comunidade familiar existe quando cada membro,
livremente, aceita entrar em um movimento de convivência no qual dois sujeitos estão
determinados pelas expressões vitais mútuas. Os reencontros familiares que estamos abordando,
realizados mediante um vínculo mais epistolar, mostram-nos os diferentes níveis dos sentimentos
desde o primeiro momento de atração até aqueles nos quais os indivíduos redescobrem valores e
cultivam sentimentos de amizade e amor recíprocos.
Não é de se estranhar que a procura de contatos por parte dos familiares italianos tenha
contribuído para que os familiares brasileiros pudessem aprofundar o conhecimento recíproco e
de suas raízes, ou seja, aprofundar antigas dúvidas e instigantes vazios provocados por
acontecimentos do passado. O resgate do diálogo com os familiares na Itália abre para Pedro,
filho do Sr. Romano, um conjunto de sensações que vêm por ele descritas como ânsia por um
conhecimento pessoal:
A ânsia de conhecê-los é já uma constante presença. Além disso, tenho a
sensação de ser pai uma outra vez. Explico-me: a notícia que me dizia de
parentes na Itália, parentes que já buscava fazia vinte anos me reportou ao
evento do nascimento dos meus filhos. Já na juventude pedia ao meu pai a
72
Escreve Stein (2000, p. 61): “(...) é necessário estudar também qual relação se dá entre o indivíduo e as formas
sobre-individuais as quais pertence. Não está dito que tal relação seja necessariamente de tipo espiritual. Quando
não só as características exteriores são sinais da pertença, quando uma ligação viva liga um membro à totalidade,
então sim se pode falar de comunidade e, assim, nos confrontamos também com um comportamento avaliativo
dos indivíduos no confronto da totalidade, da qual eles são conscientes de ser membros”.
120
forma para poder voltar às nossas origens. A coisa não era nada fácil dada a
inexistência do testemunho por parte dos meus avós. De fato os meus avós
morreram quando meu pai tinha só seis anos
73
.
A alegria pela notícia dos parentes na Itália com os quais o sujeito buscava contato por
anos a fio é algo que penetra profundamente como vivência pessoal, pois se trata de um sentir
construído sobre um saber (STEIN, 1998), um sentir que permite ao sujeito colocar-se dentro
do valor sentido: a notícia reportou-o ao evento do nascimento dos filhos. Esse contato entre
as famílias foi vivido, pelo Sr. Pedro, como abertura de um mundo dotado de sentido. Os
sentimentos de ânsia e de vibração interior, o desejo de conhecer pessoalmente os parentes
são justificados porque a busca já existia por parte dele há mais de 20 anos. Na sua juventude,
as interrogações feitas ao pai eram na tentativa de encontrar os caminhos certos ‘para poder
voltar às origens’. E eis que a resposta surgiu de maneira inusitada. Graças à iniciativa dos
familiares italianos, foi possível acontecer o reencontro. A notícia foi recebida como um
evento que o fazia sentir-se pai outra vez, tal era a intensidade de significado desse encontro
para a sua história. Evocar o nascimento dos próprios filhos para sugerir o impacto e o valor
de tal notícia é uma metáfora potente para expressar a experiência vivida.
Podemos falar de uma espécie de ‘contágio psíquico’ dado pelo fato de que tal notícia
dos parentes italianos é recebida por parte do sujeito e provoca determinadas reações. A
impressão advertida diante da notícia, por exemplo, é a sensação de ser pai outra vez. Aqui,
neste caso, os atos de compreensão da situação – a notícia tão desejada, procurada por anos e
dificultada pela inexistência das marcas e dos testemunhos a fim de encontrar os parentes na
Itália – fazem que aconteça o contágio
74
. Tal compreensão exige uma função espiritual por
73
Fonte: L´Azione: settimanale di informazione della diocese di Vittorio, 3 agosto 1986.
74
A compreensão das formas expressivas dos outros é independente do contágio. Pode acontecer, por exemplo, que
haja um contágio sem a mínima compreensão do significado daquilo que se recebeu, e não se ter nem mesmo as
condições para avaliar objetivamente o significado do estado no qual o indivíduo foi tomado em certas ocasiões.
Stein (1999, p. 208) dá um exemplo, ilustrando tal situação: “Se uma criança chora porque vê chorar a sua mãe, é
possível que não seja capaz de compartilhar a dor em questão, isto é, que não tenha nenhuma compreensão dos
fundamentos da sua motivação; mas é, por outro lado, possível que ele compreenda as lágrimas, enquanto
expressão de dor, e torne-se consciente da presença de uma dor da qual sua mãe está tomada inteiramente.”
121
parte do sujeito porque aquilo que é comunicado na carta – um documento – é entendido
como expressão de um estado interno do remetente no confronto dos destinatários.
Imediatamente vem o desejo e a ânsia de conhecer os parentes e de comunicar a notícia a
outros. O ponto de irradiação de um contágio psíquico é dado justamente pela impressão que
um indivíduo recebe de um estranho por meio de formas expressivas, tal como o contato com
a carta dos parentes.
Em carta ao sacerdote que serviu de elo entre os parentes italianos e os contatos no
Brasil, o Sr. Romano – um dos órfãos - conta a sua história:
Recebemos a sua carta com as boas notícias. Estamos tão contentes em saber
que temos tantos parentes na Itália, depois de tantos anos, penso que seja
mais ou menos uns 60 anos, pois meu pai e minha mãe tiveram dois filhos,
eu e Luiz, sendo que eu era o mais velho. Quando mamãe morreu, eu tinha 6
anos e Luiz 4 anos; e depois de seis meses morreu também meu pai.
Depois que os meus pais morreram s ficamos com a família Sanson que
nos educaram. Tenho pouca recordação de papai e mamãe. (...)
Caro Padre, estamos fazendo algumas economias para poder ir conhecer os
nossos parentes e também o Sr., a ansiedade é grande de ver chegar este dia,
uma vez que estas coisas não acontecem comumente. Entre outras coisas
gostaria de investigar sobre o outro lado da família, ou seja, dos Capraro, a
fim de que possamos conhecê-los, uma vez que estaremos aí, e também
saber com maior particularidade sobre a família Steffan, tirar fotografias de
todos, com os parentes: filhos, netos, etc
75
.
Vamos concentrar-nos, em primeiro lugar, no sentimento de contentamento ou
alegria. Quando ele vem a saber das boas notícias, sente ser invadido por uma alegria. É uma
alegria que inicialmente é dirigida para algo fora do fluxo de consciência, externo, ou seja: é a
alegria por saber que reencontrou os parentes da Itália. A notícia tem um valor positivo e o
sentimento está relacionado a este algo objetivo. Entretanto, a alegria não é só alegria por uma
notícia, mas algo que invade a pessoa e se infunde como sentimento vital, movimenta e
influencia o curso ulterior das ações como o próprio remetente expressa: “... estamos fazendo
algumas economias para poder ir conhecer os nossos parentes”. A distância física tem de ser
vencida. Os efeitos estão relacionados à natureza do sentimento, e a profundidade deste
75
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. C2.
122
depende, por sua vez, da intensidade do valor. O fator predominante é o reencontro inusitado.
Trata-se de um evento que mobiliza toda a família, sobretudo por meio da surpresa, das
emoções, e das motivações que suscita. Os verbos ir, conhecer e investigar dão aqui o tom dos
motivos novos presentes. O autor reserva um parágrafo para narrar a sua biografia
76
. A carta
torna-se o veículo para a elaboração autobiográfica. A revelação de que os parentes na Itália
procuravam saber dos dois órfãos de outrora torna-se ocasião de desvelar o passado. Além
disso, o acontecimento do outro – até então desconhecido – que vem ao encontro, suscita
emoções e reabre a experiência da história. O Sr. Romano sente-se motivado a compor, com
os dados dos parentes italianos, a recordação dos próprios pais com os quais pôde viver pouco
tempo, além disso, mostra que a viagem servirá para investigar dados mais precisos sobre a
família.
Com efeito, o fato de se viver um valor – como o da investigação em torno das
particularidades da família – torna-se fundamento a respeito do próprio valor. A vivência dos
valores para o sujeito tem um efeito vivificante que traz impulsos novos. A experiência
pessoal do Sr. Romano, portanto, pode ser considerada à luz da ação vivificante do
recebimento das notícias e, por outra parte, a partir do processo de pensamento- reflexão
aberto pelo encontro com o outro.
2.1.3 Os Atos da Reflexão
Os primeiros contatos entre os parentes mostram-se muito intensos. A família Capraro
vive a festa do reencontro e, nas missivas enviadas à Itália, são as novas gerações que
festejam e interrogam:
76
Um fator constitutivo é o papel desempenhado pelos avós com os demais membros da família. Alguns
pesquisadores ressaltam tal papel em diferentes níveis – social, emocional, transacional (envolvendo interação
entre as gerações), simbólico etc. – salientando, em particular, o papel de transmitir os fatos do passado às novas
gerações, tornando-se elo entre elas. Na história de vida aqui mostrada – no caso dos órfãos – o que aconteceu
foi justamente que a perda dos pais impossibilitou totalmente o contato entre as gerações e, de fato, os filhos do
Sr. Romano e Luiz vão perceber que nem mesmo seus pais tinham informações sobre os seus e, por conseguinte,
havia uma total impossibilidade de conhecer os dados da família. A esse propósito, ver o artigo de Cristina de
Souza Brito Dias e Deusivania Vieira da Silva, Os avós: uma revisão da literatura nas três últimas décadas.
123
Escutando os comentários dos meus pais a respeito de vocês a minha
curiosidade infantil fez com que escrevêssemos juntos esta carta. Eu sou
Tatiane tenho 9 anos e sou neta de Romano Capraro (...). Estamos curiosos
desde o momento que soubemos da vossa existência. Cada carta que chega é
motivo de satisfação e, por isso, pedimos uma troca de correspondência.
Meu pai, antes de escrever as primeiras notícias, sempre comentava conosco
de ter muita vontade de saber algo sobre os seus parentes. Lamentava-se por
não haver ninguém que pudesse falar sobre os seus avôs. O avô Romano é
capaz de recordar pouco devido a idade que tinha quando tudo aconteceu.
Tomamos a liberdade de escrever fazendo perguntas sobre a vida dos nossos
nonos: Qual o motivo desta decisão de vir e escolher o Brasil? Chegaram a
manter alguma correspondência? Vocês têm alguma recordação deles?
(como fotos, cartas, etc). Na época em que eles morreram como ficaram
sabendo? Houve alguma tentativa de manter contato com as crianças
órfãs?
77
.
A carta inicia-se com uma questão recorrente em relação às vivências dos sujeitos: a
do dinamismo da vontade de conhecer o outro, a de ter curiosidade e interrogar sobre o
passado. É importante ver como o ser humano no contato com o outro busca a clareza. O
problema do conhecimento mútuo está relacionado também à reflexão, porque, por esta
vivência pode-se compreender os atos realizados na vida. No trecho citado acima, o olhar do
sujeito volta-se para a experiência deste reencontro e do seu significado para os membros da
família. Tal significado liga-se à questão da ausência de recordações e a esperança de que o
novo encontro possa responder à busca de todos. Em uma passagem, a Tatiane explicita essas
razões dizendo: “o avô Romano é capaz de recordar pouco (...) tomamos a liberdade de
escrever fazendo perguntas sobre a vida dos nossos avós”. O fato de o ser humano
experimentar vivências diferentes não significa que ele esteja a todo o momento atento ou
voltado para elas. Mas isso acontece na medida em que o ser humano reflete e dirige questões
fazendo que essas vivências se tornem objeto para o eu, de modo que a ação de perguntar
torna esta vivência uma atividade egológica
78
. Para Husserl (2002a, p. 184) “também as
77
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. C2
78
É Husserl (2002b, p. 216) quem diz: “Ora, naturalmente o eu pode refletir sobre suas experiências, sobre a
direção do seu olhar, sobre seus atos avaliativos ou volitivos; então também estes se tornam objetos e se dispõem
diante do eu. Mas existe uma diferença que salta aos olhos: estes objetos não são estranhos ao eu, são atividades,
estados do próprio eu (...)”. Reafirma-se, então, a confiança na capacidade de cada ser humano de descobrir o
“sentido” das coisas, de ver e conscientizar-se. Estes atos (avaliativos, reflexivos, volitivos) pertencem a
estrutura interior e são operações mediante as quais o ser humano se orienta frente às próprias experiências.
124
reflexões são, por sua vez, vivências e como tais podem tornar-se substrato de novas
reflexões, e assim in infinitum, segundo um princípio de caráter geral”. As vivências
submetidas ao olhar reflexivo apresentam-se como uma série de questões dirigidas aos
parentes porque, na verdade, eram eles que poderiam servir de elo para a memória não só
familiar, mas do indivíduo concreto que pouco ou nada sabia a respeito dos seus pais. A
capacidade de conservar as impressões, ter boa memória, pode realmente ser uma qualidade
psíquica típica dos membros de uma família, contudo, ela não vem dada como algo próprio da
família em si (Stein, 1999) e, justamente por isso, as questões são dirigidas aos indivíduos que
teriam a possibilidade de ter conservado tais lembranças ou possuir objetos – cartas e fotos
que servissem como resposta.
Outro fenômeno interessante no interior dessa família é o contágio de entusiasmo que
possibilita a transmissão de valores educativos para as novas gerações. Por meio da filha é
expressa a interrogação de toda a família. As histórias de reencontros como esses ajudam as
famílias a preservarem um sentido de continuidade entre seus membros. Como se pode notar,
o trecho constitui um valioso exemplo de como a carta é motivo de satisfação para quem a
recebe (no caso, a família do Sr. Romano) e as disposições internas por ela suscitadas, como
reconhecimento, gratidão, amor e expressões de afeto são, a primeira via para poder
aproximar-se da pessoa do outro que ainda se deseja conhecer (STEIN, 2001).
Para descrever, mais amplamente, o dinamismo de força vital que tais re-encontros
trazem para os indivíduos e, com base neles, para toda a comunidade, faz-se necessária a
devida atenção aos objetos que se encontram relacionados à constituição de um valor para
este ou para aquele indivíduo/ou comunidade concreta. Quando alguns documentos pessoais –
cartas, certidões, passaporte, fotografias – são revisitados pelos descendentes, esses objetos
passam a ter um valor específico tanto por aquilo que evocam quanto por aquilo que
significam.
125
No dia 30 de julho de 1986, foi realizada uma festa para celebrar o reencontro entre
os familiares, em Zoppé de San Vendemiano (Treviso), em que o Sr. Romano e sua família
puderam finalmente conhecer os parentes na Itália. E este é um ponto muito importante de
conexão entre os dois momentos fundamentais anteriormente narrados, isto é, entre o
momento da busca pelos parentes e o da descoberta e comunicação entre eles. O gesto da festa
de reencontro mostra que o intercâmbio entre os indivíduos se realiza por meio de atos
sociais. São momentos nos quais se fundam laços de solidariedade para celebrar os valores
alcançados: o amor, a gratidão, o reencontro. Para Bello (2000, p. 166), “podemos constatar a
positividade ou a negatividade de tais atos somente nos seus efeitos: o amor é uma força
produtiva, ao passo que o ódio é destrutivo, e a positividade se torna valor porque está ligada
indissoluvelmente ao ser da pessoa”.
2.2 ENTRE BRASIL E ITÁLIA
2.2.1 A Motivação: Preservar a Continuidade dos Laços
A seguir, apresentamos outro conjunto de correspondências de um mesmo grupo
familiar, por meio do qual se verifica um elo muito profundo entre os imigrantes e seus
descendentes, que afetou as gerações seguintes. Contudo, apesar das semelhanças com o que
foi visto, nesse conjunto de missivas, podemos identificar duas características específicas. A
primeira é que esse grupo de cartas mostra a questão de como a comunicação entre os
imigrantes e os seus familiares distantes passa de uma geração a outra, por intermédio dos
filhos e sobrinhos. A segunda, por outro lado, deixa claro que tal tipo de relação perdurou ao
longo do tempo, sofrendo certos abalos durante alguns períodos, porém, resistindo com o
empenho dos envolvidos em sempre retomar a ligação.
126
Temos a narrativa das memórias da Sra. Ida Zanatelo, cujo pai e avós deixaram a
Itália e emigraram para o Brasil em 1886. O pai da Sra. Ida, porém, aos 20 anos, deixou os
próprios familiares no Brasil e voltou para a Itália. No entanto, jamais deixou de se
corresponder com seus pais. Como todos os imigrantes da primeira hora os membros dessa
família também foram impulsionados pela “necessidade de escrever”. Depois, foi a vez da
Sra. Ida manter o relacionamento. Entretanto, com o passar do tempo, devido à mudança
constante dos endereços, ela perde o contato. Chega o tempo de buscar outros meios para
manter os elos.
No entanto, o caminho para reencontrar o novo endereço foi longo. Por vezes, a Sra.
Ida imaginava que a única forma de poder estar unida e fazer memória da família no Brasil
era poder ajudar alguma missão daquelas terras de Minas Gerais para as quais o seu pai e
parentes emigraram; por isso, escreve a um padre que havia sido missionário no Brasil
dizendo:
Gostaria se possível que me mandasse o endereço de uma missão que se
encontra neste lugar: Província de Minas Gerais, Varginha – Brasil. Porque
espero poder adotar a distância uma menina, e espero fazer isso pela
memória dos meus avôs e tios que desembarcaram ali no ano de 1886, meu
pai tinha 6 anos. Depois meu pai veio para a Itália quando tinha 20 anos e
não voltou mais para o Brasil. Mas eu pude corresponder com os irmãos de
meu pai. Mas a última carta que escrevi voltou no dia 10. Uma amiga fez
tantos pedidos por meio de missionários que se encontram no Brasil sem ter
nenhuma resposta
79
.
Essa carta mostra como a Sra. Ida toma iniciativas para restabelecer os elos. Ela
manteve elos por cartas para continuar a relação que o pai estabeleceu com os parentes desde
o início. Mas quando as cartas pararam de ser respondidas ela toma outra atitude que é a de
realizar a adoção a distância como gesto em memória dos seus antepassados.
79
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. Z1.
127
2.2.2 As Cartas como Preservação dos Elos
Os familiares Z. do Brasil e da Itália cultivaram correspondência desde o período da
grande imigração do final do século XIX. Infelizmente quase todas foram perdidas e as que
apresentamos aqui são do período após a Segunda Guerra Mundial. São cartas enviadas do
Brasil para a Itália e endereçadas a Sra. Ida. Elas permitem reconstituir de alguma forma o
que foi esse relacionamento:
Varginha, 25 de outubro de 1946
Caríssima sobrinha,
Respondo a tua carta. Você não pode imaginar quanta consolação nos trouxe
quando recebemos as tuas notícias, mas depois lendo, ficamos muito tristes
em ouvir a desgraça de perder o pai, a mãe, mas a maior é aquela do marido.
Creio que Deus terá compaixão de você e dos teus filhos. Você desejava
saber as nossas notícias, então, antes de tudo te faço saber que nós estamos
bem de saúde e muito bem de finanças. Cara sobrinha aqui no Brasil
trabalhando se passa bem. Se bem que mudou muito devido a guerra. Ainda
que aqui nós não tivemos nada, mas a crise se percebe, mas em todo o caso
se está bem melhor que a Europa. Cara sobrinha se você quer vir ao Brasil
eu farei por você tudo o que posso. Agora dizem que tem a emigração. Se
você puder se reunir com mais 3 ou 4 famílias, irei buscar vocês no Rio de
Janeiro, mas se você resolver alguma coisa, mande a tua carta por avião
80
.
A carta traz o registro da vivência da empatia por parte dos parentes que sofrem pela
sorte da sobrinha e que se colocam dispostos a ajudá-la diante da crise causada pela guerra. A
correspondência registra ainda a manifestação concreta por parte deles quando o tio declara:
“cara sobrinha se você quiser vir ao Brasil eu farei por você tudo o que posso”. Vemos, então,
que o tipo de comportamento com relação ao outro não é negativo, nem indiferente
81
, mas
espontaneamente há um comportamento próprio daqueles que desejam construir relações
significativas ao interno da família. O sentimento fundamental quando o vínculo entre os
membros da comunidade se dá neste nível é o amor. O laço de solidariedade entre os parentes
80
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. Z1.
81
O caminho para a compreensão da psique do indivíduo não pode restringir-se a uma análise do indivíduo
tomado isoladamente. Será preciso, portanto, levar em consideração a inserção deste indivíduo no âmbito
espiritual e dos efeitos da força vital da comunidade sobre ele, e por outro lado, do significado dos diversos tipos
de comportamento do individuo para a força vital da comunidade. Segundo Stein (1999) a tomada de posição
espontânea com relação às outras pessoas podem ser divididas em: 1. positivas – amor, gratidão, confiança, fé; 2.
negativas – desconfiança, antipatia, ódio e toda a série de comportamentos desfavoráveis que não ajudam a
construção de uma comunidade; 3. e, por fim, o comportamento indiferente que não é nem amor e nem ódio.
128
nos parece a característica principal. A capacidade do ser humano de colocar-se disponível
diante de outros é um valor construtivo para a vida da comunidade. Deve ser destacado este
fazer algo em favor de alguém em que subsiste uma atenção pela pessoa do outro. Mas qual o
significado, por exemplo, da tomada de posição positiva de um sujeito diante do outro para a
vida de qualquer comunidade? Esta tomada de posição dos indivíduos frente a outros
considerando-os não como objetos, mas como pessoas as quais posso dizer: ‘eis-me aqui’
contribui para formar a comunidade. A unidade vital que constitui a essência da comunidade
funda-se nesta solidariedade. Stein (1999, p. 232) escreve que “quando os indivíduos estão
abertos uns aos outros, quando a tomada de posição de uma pessoa não fica sem efeito sobre a
outra, mas penetra nela, subsiste uma vida comunitária (…), pois sem tal relação recíproca
não pode existir comunidade”. Por meio destas breves indicações emerge os componentes
essenciais da vida comunitária, a saber: a dedicação aberta e espontânea, uma vida colocada
em comum e nutrida reciprocamente.
Na missiva seguinte, podemos compreender, este caráter de participação na vida do
outro como expressão dos sentimentos que ligam os indivíduos. Mesmo na separação e na
distância, é possível viver no outro e para o outro. A Sra. Ida recebe a ajuda dos seus parentes
que se encontravam “bem de finanças”:
Varginha, 30 abril de 1947
Caríssima sobrinha,
Venho por meio destas poucas linhas informar-te que todos nós gozamos de
muita saúde, e igualmente espero que esta minha encontre todos vocês com
plena saúde.
Cara sobrinha te faço saber que te expedi 500,00 mil reis em moeda
brasileira, então, você deve receber 1.109 liras, e quando você receber faça-
me saber quanto recebeu porque aqui nós não sabemos como vale a lira na
Itália. Cara sobrinha aqui as coisas não vão mal, mas houve muita mudança
por motivo da guerra, os gêneros de comer, o vestiário, os sapatos estão com
um preço fabuloso, mas assim mesmo se está melhor do que na Europa.
Nada mais tenho a dizer, só te envio tantas saudações a você e a toda a tua
família e sou o teu tio Guilherme Zanatello
82
.
82
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. Z1.
129
Nesses apontamentos da carta vê-se que o autor constata com mais atenção os efeitos
da guerra na economia e as diferenças entre o Brasil e a situação na Europa. Além disso,
percebe-se que a questão da ligação entre os parentes não vem marcada por um sentimento
genérico, mas tem uma motivação válida ditada pelo desejo de compartilhar a vida. O assumir
a vida do outro tem diferentes níveis presentes que vão desde aquele afetivo até o ético. Por
isso, a participação dá-se efetivamente mediante a ajuda econômica. Conforme comenta Bello
(1998, p. 103), “quem ama verdadeiramente quer o bem do outro, quer que sua vida se
desenvolva de forma positiva, que se revele tudo aquilo que de bom está potencialmente
contido no outro”.
Varginha, 13 de julho de 1947
Caríssima sobrinha,
Já faz alguns dias que recebemos a tua desejada carta (...). Agora quero que
você saiba que nós irmãos estamos todos juntos, só o teu tio Adriano que se
encontra no Estado de São Paulo. Você nos pergunta se nós trabalhamos a
terra e se somos proprietários: sim, eu com os teus tios somos proprietários,
e a nossa terra é cultivada com café e mantimentos. Agora eu te agradeço a
tua fotografia. E, além disso, eu entendi que você recebeu o dinheiro que te
enviei. (...) Você pergunta quantos somos na família: eu tenho 7 filhos e são
todos casados, só 1 que não é, ele tem 12 anos, é o filho mais novo (...).
Guilherme Zanatello.
O surpreendente destes eventos no interior da família é constatar que o que mantém a
Sra. Ida continuamente preocupada em não desfazer os laços por meio das correspondências
com os familiares no Brasil é exatamente a gratidão por eles, sobretudo, pelo tio que nos
momentos difíceis soube fazer-se presente. Apesar de não ter mais os seus parentes mais
próximos, continua a enviar-lhes as cartas, principalmente aos primos recordando-lhes a
história de seu pai. Em carta datada de 25 de outubro de 1981, ela escrevia:
S. Giacomo di Veglia – Vittorio Veneto
Caros primos,
Sou a filha de Domingos Zanatello, irmão do pai de vocês. (...) Agora vos
digo os nomes de todos os irmãos de meu defunto pai, e dos pais deles para
que vocês saibam que sou vossa prima.(...) Só quero saber como vocês estão
e que trabalhos realizam porque calculando as datas que meu pai me deixou
já vai fazer mais de 90 anos que os avôs e os nossos pais emigraram ali no
130
Brasil e desejo que vocês tenham conseguido realização e que estejam bem.
Por favor, façam-me saber alguma coisa porque tenho tanto prazer nisso. (...)
Eu teria escrito antes, mas tinha perdido o vosso endereço (...)
83
.
A comunhão de vida – característica essencial da comunidade – supõe esta disposição
do querer o bem do outro. Na relação entre duas ou mais pessoas acontecem o alargamento de
horizontes, a comunicação de experiências, de lembranças. Nas cartas trocadas entre os
membros desta família vem explicitada a forte consciência de pertença.
2.3 DO BRASIL PARA A ITÁLIA
2.3.1 A Consciência do Pertencer
Para compreender melhor o que acontece no âmbito das pequenas comunidades, -
como é o caso da família – é necessário voltar a atenção para os indivíduos envolvidos e, mais
especificamente, para as vivências manifestadas na troca epistolar. As dimensões do espírito
subjetivo captado no comércio entre os indivíduos conduzem-nos a pensar no influxo da
pessoa sobre a sua comunidade de pertença.
De fato, ao descrever o significado irredutível da estrutura da pessoa humana para a
constituição das formas espirituais objetivas como a comunidade, Stein, entende-a, é verdade,
como uma fonte de força que emana do corpo, da psique e do espírito da pessoa particular e
que exerce um influxo sobre as formas concretas. Segundo Pierro (2005, p. 117) “o que existe
é um paralelismo entre a singularidade pessoal e a comunidade, tanto no nível de sua estrutura
externa, como no nível espiritual” de forma tal que a clareza daquilo que acontece nas
estruturas expressivas do indivíduo nos informa também sobre as características da
comunidade. Desse modo, pode-se falar da comunidade em termos de personalidade. A
unidade entre a força psíquica e espiritual do indivíduo na sua interação com a dos outros
83
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. Z1.
131
indivíduos possibilita não só o nascimento de uma comunidade, mas constitui um influxo
vivificante para aquelas já constituídas.
Observado isso, pode-se retomar com atenção a razão pela qual nos deteremos no
conjunto de 7 correspondências oferecido a nós pela família Peruch. Estas cartas ligam-se de
maneira determinante não só aos membros desta família, mas ao evento em torno de uma
comunidade, isto é, a antiga colônia de imigrantes italianos chamada Cascalho, pertencente ao
município de Cordeirópolis. Por ocasião da preparação das comemorações centenárias da
chegada dos imigrantes ao bairro, foram realizados diversos eventos que despertaram o
interesse dos indivíduos e das famílias com relação à história familiar. Alguns indivíduos
motivados por essas questões passaram a empenhar-se na busca pelas raízes e na tentativa de
aproximação com os familiares italianos. De certa forma, a motivação sobre essas questões
tem sempre sua origem na vivência individual e alarga-se e transforma-se em motivo para
uma vivência da comunidade. Todavia, vamos ver em que medida as motivações supra
individuais coincidem com aquelas do indivíduo
84
.
A carta seguinte foi uma dentre tantas que Paulo – membro da comunidade de
Cascalho – enviou à Itália, diretamente para a cidade de onde partiram os seus ancestrais, no
final do século XIX:
Cordeirópolis, 7 de maio de 1993
Caro Sr. Elio Peruch,
Meu nome é Paulo Peruch, trabalho no metropolitano de São Paulo – Brasil
– e sou engenheiro mecânico. Minha família chegou ao Brasil no final do
século passado (em torno de 1897) provenientes da cidade de Godega de
Santo Urbano (TV). Minha bisavó Jeovana Battistella, viúva de Constante
Peruch (anexo o certificado de morte) veio junto com os seus três filhos e
quando chegaram estabeleceram-se na cidade de Cordeirópolis – Estado de
São Paulo.
84
Esses dois aspectos, porém, podem imediatamente não coincidir. O exemplo dado por Stein (1999, p. 197)
esclarece este ponto: “Posso trabalhar no âmbito científico, como membro do meu povo e a seu serviço, pelas
exigências da ciência na Alemanha. Mas os motivos que me guiam podem ser totalmente diferentes daqueles
dominantes no ambiente científico alemão; posso sentir-me, por causa da minha motivação, estranha a
comunidade e não conseguir exercer nenhuma influência sobre as motivações da comunidade cientifica”.
132
O tempo passou e nós perdemos a comunicação com a nossa família na
Itália. Hoje, com a certeza da minha origem italiana, procuro alguém da
minha família para que assim possamos restabelecer o contato
85
.
A natureza desse pedido mostra uma particularidade com relação aos pedidos
analisados no capítulo anterior, porque o interesse desloca-se para a busca de pessoas
pertencentes ao mesmo grupo familiar. O objetivo não é os documentos, as certidões, as fotos,
mas o pedido de um rosto humano por meio do qual seja possível restabelecer o contato.
Entretanto, qual seria o território importante para ser analisado a partir daquilo que refere o
sujeito quanto à história dos seus ancestrais imigrantes? Basta percorrer os passos indicados
pelo sujeito para entender que ele vive, sente e age como membro da sua família. O objeto de
busca do sujeito encontra-se conectado com um “nós”, quando diz: “o tempo passou e nós
perdemos a comunicação com a nossa família na Itália”. E isso é só um começo, é certo, mas
tem uma extraordinária relevância do ponto de vista fenomenológico porque, de fato, a
comunidade – família só pode ser consciente de si mesma por meio do indivíduo que tem as
vivências da recordação, da reflexão, dos sentimentos, por conseguinte, a comunidade só pode
viver e sentir passando pelo indivíduo. Aquilo que o indivíduo sente como membro da
comunidade forma o material com o qual se constroem as vivências comunitárias. Por vezes,
a mesma vivência pode ser tomada seja como vivência do indivíduo, como da própria
comunidade. Posso viver, por exemplo, a celebração do centenário da imigração como a
possibilidade de recuperar os contatos com os familiares na Itália e, ao mesmo tempo, como a
valorização da história da comunidade. Recordemos a tese fundamental com a qual Stein
(1999, p. 168) dá início à análise fenomenológica:
(...) cada vida consciente surge do eu individual. Cada vida que gera
originalmente o fluxo último constituinte tem origem no eu individual e só
no âmbito das vivências constituídas se podem distinguir vivências do
indivíduo e vivências comunitárias.
85
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-01.
133
Voltemos o olhar para o conteúdo da carta de Paulo na perspectiva dessa certeza sobre
as suas origens italianas ao descrever, por exemplo, que sua bisavó chegou ao Brasil em torno
de 1878 junto com três filhos vindos da Itália. Qual a via de acesso que permite a uma pessoa
conhecer a vida espiritual de outros indivíduos dos quais nem sequer teve contato? Como é
possível o acesso ao mundo dos seus antepassados? No interior da família, poderíamos dizer
que esta vida do passado vem comunicada de um para outro por meio da normal convivência,
na troca de notícias e recordações ou ainda, por meio de obras realizadas, de um documento
ou fotografia. O ser humano está inserido num contexto social e histórico do qual não pode
prescindir, de modo, que a comunidade vivente,
86
também por meio de suas tradições, faz
que o indivíduo tenha acesso a esse mundo de pessoas e acontecimentos do passado. Stein
(1998, p. 229) insiste em que a única via de acesso do indivíduo para os outros indivíduos do
passado se dá por meio da corporeidade, isto é, “o espírito do passado está diante de nós com
múltiplas formas, mas tal espírito está sempre conectado a um corpo físico: a palavra escrita
ou incisa sobre a pedra; pedra ou metal transformados com uma determinada configuração
espacial”.
Na continuação da carta, o autor insere seu pedido dentro do contexto da sua
comunidade de pertença
87
e aponta outras famílias oriundas da mesma província de seus
ancestrais. Por fim, volta a pedir algum sinal das terras vênetas para confirmar algo esperado
não só pelo indivíduo mas por sua família.
86
Toda a questão da tradição emerge a partir da consideração da comunidade vivente, isto é, das formas de vida
nas quais os indivíduos crescem e se desenvolvem no contato com as gerações precedentes e, assim, se expressa
uma continuidade da vida espiritual. Stein (2001, p. 280), por exemplo, dá uma definição por via negativa e,
depois, passa para uma definição positiva: “Por tradição entendemos, portanto, não a transmissão oral dos
eventos (...) nem mesmo consideramos o perpetuar-se de eventos culturais surgidos nas épocas precedentes. Vale
como tradição o estilo de vida do presente na medida em que esta se enraíza no passado (...)”.
87
Nas discussões sobre os pressupostos para a obra de educação social, Stein (1994) faz uma ponderada reflexão
antropológica na qual aparece claramente o significado do ser humano como indivíduo e membro da comunidade
e os limites aos quais ambos estão expostos, porém, aponta para as possibilidades de realização – porque
indivíduo e comunidade não vivem de forma estática mas sempre em devir – presentes neste desenvolvimento
dinâmico. Stein (1994, p. 52) diz: “A pertença à comunidade significa que o indivíduo faz parte da única
natureza humana, que é una e a mesma para tudo aquilo que tem rosto humano. Essa natureza é o fundamento da
igualdade na vida dos seres humanos: no modo de pensar, sentir, querer e agir. É o fundamento da comunhão
pela qual os homens onde venham a ter contato, podem viver em comunidade e da comunidade”.
134
Na cidade de Cordeirópolis onde mora a minha família existem muitos
italianos: os seus filhos, netos, etc. Eles vieram da província de Treviso. Se
por acaso forem vocês os meus parentes, peço a vocês que me escrevam
porque a nossa família faz muito tempo que espera uma confirmação.
Felicidades. Paulo
88
.
Ora, vemos como no próprio pedido o horizonte de pertença vai-se alargando. Temos,
portanto, o indivíduo, sua família, o conjunto de famílias e a cidade. São diferentes níveis nos
quais se constata os organismos parciais nos quais vivem os seres humanos. Mesmo assim, é
possível descobrir diferenças entre as relações que se dão na cidade, a qual compreende uma
multiplicidade aberta de indivíduos, e a família, que comporta contato pessoal entre seus
membros. A tentativa de Paulo, por meio do envio das cartas, insere-se justamente no esforço
para vencer a distância e a estranheza e buscar o contato pessoal com os familiares que ele
supõe ter na Itália. Como já dissemos, a espera pelas notícias dos parentes é uma vivência na
qual o indivíduo não se sente sozinho, mas é uma espera que pertence a todos aqueles
incluídos na unidade do grupo familiar. Certamente cada indivíduo tem um tipo de
expectativa diferente ligado ao significado dessa experiência. Por isso, há um fator importante
a ser considerado a saber: podemos distinguir o conteúdo vivido pelo indivíduo como
membro da comunidade e aquilo que a comunidade mesma vive.
Para avançar, porém, em direção ao diálogo travado entre Paulo e os interlocutores da
sua família na Itália, talvez valesse a pena considerar, em primeiro lugar, que foram várias as
tentativas do sujeito ao enviar missivas a quase todos os que apareciam com o mesmo
sobrenome dele na cidade de Godega de Santo Urbano sem obter nenhuma resposta. Em
segundo, que estas cartas tocam os temas do mundo da vida e se referem àqueles complexos
atos da existência pessoal e coletiva.Em terceiro lugar, é possível observar a modalidade
mediante a qual os indivíduos se colocam em relação recíproca e, dentro da experiência feita
88
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-01
135
por eles como membros da comunidade, aparecem a força e os impulsos provenientes deles
como fonte para vitalizar a comunidade.
Bibano, 1 de julho de 1993
Estimado Sr. Paulo,
Recebemos a sua carta o dia 25 de maio. Eu me chamo Elsie Peruch, tenho
25 anos e sou filha do Elio. Sei que em precedência você tinha escrito outras
cartas a primos de meu pai e que não deram resposta ao teu pedido de
informações porque na ascendência direta (bisavôs, trisavôs) ninguém
recordava nem de Constante, nem João Peruch. Muitas informações sobre a
origem da família podem ser encontradas nos arquivos paroquiais. Aquele de
Bibano foi consultado mas não trazia dados importantes para poder voltar às
origens.
Os Peruch são originários da paróquia de Santo Estevão de Pinidello da
cidade de Cordignano. A casa existe ainda, mas já faz 50 anos o território
passou a ser um bairro do município de Sarmede. Consultei o arquivo
paroquial de Santo Estevão e consegui encontrar entre os muitos Peruch a
sua ascendência. Comecei pesquisando por uma certidão de matrimônio (...).
Ainda faltam dados que creio seja possível encontrar, mas por motivos de
trabalho não posso continuar as pesquisas. Espero poder reiniciá-las em
setembro e vou te escrever novamente
89
.
A resposta a uma carta constitui a manifestação de abertura de um sujeito a outro
90
.
Porém, devemos perguntar o que levou o indivíduo – a Elsie – e seus familiares a responder
ao pedido do Paulo. Quais foram os pensamentos e interrogações suscitados pela carta vinda
do Brasil relatando a saga de uma mulher, viúva de certo Peruch de Godega de Santo Urbano,
que emigra junto com seus filhos por volta dos anos de 1897? Como entender aquele pedido?
Quais os efeitos experimentados pela família Peruch da Itália diante do influxo proveniente de
alguém considerado estranho e externo à própria comunidade? É interessante observar que
as perguntas da carta do Paulo serviram de estímulo para uma procura pelas raízes. Elas
fizeram que a família se mobilizasse na pesquisa sobre a vida daquelas pessoas, pois, como
afirma Elsie, as primeiras cartas de Paulo não foram respondidas porque “na ascendência
direta ninguém recordava” dos nomes citados. Assim, a família é levada a consultar os
89
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-01
90
Stein (1999, p. 226) descobre a dimensão profunda dessa comunicação ao dizer: “Onde os sujeitos entram em
relação existe um terreno fértil para uma unidade de vida, para uma vida comunitária que se alimenta de uma
única fonte. Tal comunidade de vida entra em vigor quando os indivíduos se oferecem espontaneamente um ao
outro, são abertos um na direção do outro e não possuem um comportamento artificial como da sociedade, em
que os indivíduos são considerados reciprocamente como objetos (...)”.
136
arquivos paroquiais nos quais seria possível encontrar as origens do núcleo familiar. Com tais
pesquisas o grupo familiar não só traz à luz algo importante para a família do Brasil, mas
redescobre as origens comuns. Podemos verificar, então que realmente o papel desempenhado
pelas perguntas postas por uma subjetividade estranha e pertencentes a um mundo de valores
diferentes tornou-se fundamental, tanto do ponto de vista do efeito estimulante que esta
pessoa exercitou sobre outras, quanto do ponto de vista dos atos intelectivos, por meio do
dinamismo do querer-compreender, levando os indivíduos a uma ação em que suas forças
estavam direcionadas pelo conteúdo de valor encontrado.
Neste caso surge uma nova comunidade construída a partir da aceitação do influxo
proveniente de fora, ligada pela aceitação recíproca dos indivíduos e unificada pelo terreno
fértil de vida constituído pelas raízes comuns. A comunidade ítalo-brasileira e aquela da qual
partiram os ancestrais unem-se pelos motivos aportados pelo desejo do indivíduo – e da sua
família – de reencontrar as pessoas do lugar de sua proveniência. Temos o exemplo de duas
comunidades familiares que não tinham nenhum contato recíproco e que passam a ter em
comum só um membro que as reúne. Quando Stein (1999) trata dessas questões referentes à
força vital dos indivíduos para a modificação das relações na comunidade, ela dá dois
exemplos muito significativos: o primeiro refere-se ao mercante que freqüenta países
estrangeiro e que traz para a sua comunidade as influências vivificantes recebidas na sua
viagem; o outro exemplo é da vida escolar: uma sala de estudantes preguiçosos e
desinteressados recebe “ventos de ar fresco” com a chegada de um novo professor que, com
sua presença, consegue ganhar a simpatia e, dessa forma, fazer que a classe e ele não se
situem mais um diante do outro como sujeito e objetos estranhos e independentes, mas como
pessoas que assumem, reciprocamente, tarefas para o bem de todos. Impossível não pensar,
portanto, que o mesmo mecanismo esteja presente na transmissão de força e estímulos de um
indivíduo a outro quando se analisa o significado da recepção da carta do Paulo. Mas tal
137
transmissão de força só é possível a partir dessa abertura espiritual de um para com o outro.
Contudo, talvez o problema posto pelo outro nunca tivesse sido considerado e, então, a
verificação e a compreensão desse problema tenha particular valor, já que coloca em
movimento uma atividade espiritual de descobertas que, por sua vez, são estímulos para
continuar a busca.
2.3.2 A Entropatia
Vamos observar outra carta de resposta de Elsie a Paulo na perspectiva das vivências
da entropatia e da abertura. Há, nesta carta, um duplo movimento: de conhecimento da
história da própria família e de compreensão em profundidade da necessidade de
enraizamento vivida por Paulo:
Bibano, 25 de agosto de 1994
Caríssimo Paulo e família,
Recebi a sua carta com muito prazer. Deve desculpar-me por não ter
respondido antes as suas cartas (...) Muitas vezes iniciei a escrever-lhe mas
esperava sempre encontrar mais tempo para aprofundar a minha pesquisa.
Agora talvez, avancei um pouco mais.
Eu compreendo muito bem o orgulho e a estima por aqueles corajosos
homens e mulheres que deixaram a segurança da própria terra para afrontar
o mar, o oceano e uma longa viagem para quem sabe que lugar... Também
na minha família, na minha parentela mais estreita tivemos emigrantes.
Meu avô José, era o quarto de dez filhos. Nasceu em 1907. Ficou órfão de
pai em 1915 durante a primeira guerra mundial. Nos anos 20, dois dos seus
irmãos partiram para a Austrália e ficaram lá por mais ou menos uns 15
anos. Depois também o meu avô e seu irmão Natal foram encontrar os seus
lá e meu avô permaneceu até 1947. Ele se casou antes de partir e tinha tido
já o meu pai, e apenas terminou a guerra ele retornou. Seu irmão Natal ficou
lá na zona de Perth onde moram os seus 5 filhos com as suas famílias. Uma
outra irmã de meu avô chamada Maria emigrou para a França nos anos 50,
vive ainda na zona de Bordeaux com os seus filhos. Outros primos moram
nos Estados Unidos.
Como vê, a família Peruch, pelo menos aquela a mim mais próxima faz parte
daqueles milhões de italianos que em épocas diversas colonizaram o mundo
e se distinguiram pela operatividade, generosidade e confiança.
Compreendo portanto o seu desejo de recordar e fazer apreciar a coragem
destes antepassados. Eu mesma desejo muito conhecer as minhas origens.
Sou muito ligada a minha terra, que amo e aprecio pelas suas belezas, a sua
cultura e pelas pessoas tão hospitaleiras e disponíveis (...) Recebi a foto da
vossa família com muito prazer, vocês são simpáticos...
91
91
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-02
138
Temos, porém, uma vivência que exerce aqui um papel fundamental. Quando Elsie diz
compreender os sentimentos de afeto e orgulho de Paulo diante dos corajosos antepassados
imigrantes que deixaram o conforto da pátria e aventuraram-se no além-mar, ela está ativando a
vivência da entropatia. É a capacidade de apreender o outro. Estamos diante de uma abertura
recíproca
92
entre duas pessoas que comunicam suas respectivas experiências. Tal experiência
pode ser compreendida porque o sujeito diante do qual há uma tomada de posição vem
reconhecido como uma alteridade. Segundo Stein (2000, p. 170) a relação de compreensão
“significa abraçar o agir espiritual do outro na sua orientação a um determinado fim e no seu nexo
relacional”.
O que aparece, porém, logo no início da missiva de Elsie? Ela diz: “esperava sempre
poder ter mais tempo para aprofundar minha pesquisa e agora avancei mais um pouco”. O
esforço em continuar realizando a pesquisa sobre a história dos antepassados provém dos
motivos originados da carta de Paulo. Porém, essa necessidade de conhecer as origens, de
entrar em contato, foi dando abertura, passo a passo, para o significado global dessa história
para ambos. É isso que revela o trecho seguinte da carta:
Encontrei no arquivo paroquial de Bibano notícias interessantes e importantes.
O registro do matrimônio e o documento que registra a morte de Constante
Peruch em junho de 1893. (...) Além destas pesquisas continuei aquela sobre a
ascendência e voltei no tempo até chegar em 1600. Essas notícias recavei dos
arquivos paroquiais de Santo Estevão de Pinidello. Creio com ulteriores
pesquisas de poder voltar ainda mais no tempo para chegar ao chefe de toda a
família que por primeiro chegou a Santo Estevão. A família Peruch viveu por
todos estes três séculos em um casarão ainda existente. De lá partiam, quando
eram muito numerosos, outros chefes de família ou filhos de Peruch que
ocuparam como agricultores outras terras e casas da zona. Envio-lhes as
fotografias da casa
93
.
92
Bello (2000, p. 163) faz perceber que os atos da empatia para Stein possuem um movimento que parte do eu
para os outros e não tem uma direção unívoca e são fundamentais para adquirir maior consciência de si: “De
fato, a constituição do indivíduo fora de mim é a condição da constituição do indivíduo em si mesmo; pois,
quando capto o corpo de um outro como meu semelhante, capto também a mim mesmo como igual a ele, desse
modo a nível psíquico me situo no seu ponto de vista para olhar a minha vida psíquica, adquirindo a imagem que
o outro tem de mim”. Na perspectiva steiniana, poderíamos falar de um colóquio próprio da atividade
intencional. São diversas as formas em que o ser humano vem tocado interiormente no contato com aquilo que
encontra, este colóquio é ao máximo grau quando aquilo que ele encontra não são os objetos do mundo externo,
mas um outro ser humano.Nesse caso, o comportamento pode ser de aceitação ou de rejeição assumindo formas
de amor e de ódio.
93
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-03.
139
A pesquisa insere Elsie na atividade de busca da comunidade familiar e, do ponto de
vista do motivo que a impulsiona, ela não se encontra sozinha. Pela troca de informações, a
vivência de ambos – Paulo e Elsie - encontra-se numa relação de produção e reprodução que
é a condição da qual deriva uma vivência comunitária. Com a atividade de busca, Elsie
insere-se em uma conexão motivacional com o seu grupo familiar no processo de
conhecimento das raízes. Na prática, dá-se um nexo espiritual muito forte, a ponto de o sujeito
que realiza a pesquisa tornar próprio os objetivos que inicialmente pertenciam a outros com os
quais se colocou em relação. Há, com a outra pessoa ou grupo, a união na vontade e na ação
realizada de maneira consciente e livre. Os motivos do sujeito que reivindicava a pesquisa
passam a constituir também objetivo para quem a leva a termo. Essas conexões são exemplos
de motivações sobre individuais. Elas abrangem também os principais âmbitos da vida
espiritual do ser humano e têm uma estrutura motivacional em que desejo e ação de quem
atua se fundem em unidade, conforme declara Stein (1999, p. 196):
Quando realizo o desejo de um outro ser humano, o desejo que me é
estranho se transforma em motivo para a minha ação. Por outro lado isto
pressupõe que eu compreenda tal desejo (...). Além disso, a fim de que eu
possa satisfazê-lo é necessário que não só eu tenha consciência do conteúdo
do desejo, mas que esse me toque também interiormente, impulsionando-me
a agir.
Quanto a Elsie, não há dúvida, ela introduz-se no contexto vital do seu interlocutor
apresentando também a experiência de emigração vivida no interior do círculo restrito dos
parentes mais próximos. Ela percebe que a história de toda a sua família está assinalada pela
mesma experiência narrada por Paulo a respeito dos seus ancestrais. A experiência do outro
desperta nela, imediatamente, a comparação com as recordações do avô e dos tios que
emigraram pelo mundo, permitindo adquirir cada vez maior consciência a respeito do sentido
daquele passado familiar e dos seus influxos no presente, inclusive, no reconhecimento do que
o outro – antes estranho e agora familiar - está vivendo. Essa passagem da subjetividade para
140
a intersubjetividade realiza-se, especialmente, pela empatia. Por ela, a Elsie pôde saber da
necessidade do Paulo de recordar e fazer conhecer a história dos imigrantes a toda a família,
porque as estruturas de vivência dele são iguais às da Elsie.
E justamente essa exigência de enraizamento vem expressa nas últimas linhas da carta
quando comenta: “eu mesmo desejo conhecer as minhas raízes. Sou muito ligada a minha
terra, que amo e aprecio pelas suas belezas, sua cultura e pelas pessoas tão hospitaleiras e
disponíveis”. A reação dos sentimentos a determinados valores enquanto vivência comunitária
pode se dar em correspondência com os dados sentidos pelo indivíduo. Por isso, o apreço pela
beleza da terra, pela cultura e pelo povo pode ser vivido segundo a profundidade e vivacidade
do impacto com as quais o valor de pertença vem sentido e conhecido. Este amor que se prova
pela própria família, pela terra e pelo povo inicialmente produz uma ação positiva dentro do
sujeito, podendo servir como um acréscimo de força e levar inclusive que a pessoa se
sacrifique neste serviço pelo desejo de viver mais intensamente como membro do povo
(STEIN, 1999).
2.3.3 A Abertura ao Outro
Na resposta, Paulo concentra-se em mostrar as suas disposições afetivas diante das
novidades presentes na carta de Elsie. Apesar de possuir conotações próprias, os sentimentos
expressos não podem ser reduzidos a simples reação sentimental à carta, mas eles estão
determinados pelo objetivo que desde o princípio fez Paulo interessar-se por este contato:
Cordeirópolis, 31 de outubro de 1994
Cara Elsie,
Como vai? E a tua família? Está tudo bem? Espero que sim. Fiquei muito
feliz e emocionado com a tua carta. A tua carta fez com que terminasse a
ansiedade que tinha já faz um ano. Tal ansiedade crescia neste período todas
as vezes que eu abria a caixa de correspondências, tinha mesmo medo de
perder o vínculo que por tanto tempo buscava.
Elsie você foi a única que me deu atenção, no início foi muito difícil
entender isso: as pessoas não me respondiam, mas você me deixou muito
contente. Você ficou comovida pela minha determinação em buscar uma
141
aproximação com a família Peruch na Itália e, portanto, você começou a se
ocupar com as minhas cartas.
A pesquisa que você e a tua irmã fizeram foram magníficas e serei grato por
toda a minha vida
94
.
Os sentimentos expressos por Paulo estão todos relacionados ao valor atribuído por ele
ao vínculo familiar. O estado de ânimo, como a ansiedade – vivida na espera da resposta -
possui uma vivência intencional correlata que é precisamente o medo. Mas qual o medo
expresso por Paulo? O medo era perder o vínculo construído por meio de tantas buscas e
envio de diversas correspondências. Por outro lado, a emoção e a felicidade por ter sido
correspondido têm como correlato a certeza sobre o elo. Este influxo recíproco entre os
indivíduos realizado por meio das cartas é aquela “corrente de vida” (STEIN, 1993), elemento
essencial e característico da comunidade. A finalidade comum é o vínculo entre os indivíduos,
isto é, a aproximação entre os familiares da Itália e do Brasil. A partir da convergência destes
elementos – influência mútua, objetivo comum – somos conduzidos a poder falar do caráter
da comunidade, isto é, de algo novo que emerge na medida em que os indivíduos vivem de
uma consciência comunitária.
O trecho em que Paulo fala que Elsie foi a única a responder-lhe faz-nos pensar de
novo no papel das pessoas para a revitalização de uma comunidade. Em termos mais gerais,
porém, queremos destacar como nessa relação, em que está presente uma consciência de
pertença comunitária, manifesta-se tanto a sensibilidade do indivíduo quanto o dinamismo
mediante o qual uma única ou mais pessoas podem levar outros membros do grupo a
descobrir estímulos novos nas relações recíprocas. Nas reflexões sobre a comunidade Stein
(1999, p. 239) sustenta que o olhar aberto aos valores, sejam eles familiares, religiosos,
estéticos e outros, não depende apenas da sensibilidade originária da própria comunidade que
é receptiva ao bem, mas do gênio daqueles que nos educam para apreciá-los:
94
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-04.
142
Basta-nos fazer ver que os indivíduos singulares de uma comunidade podem
ser uma espécie de órgão, que dão a comunidade a capacidade de colocar-se
em contato com o mundo dos valores (...). Mas para que eles sejam os
órgãos da comunidade, é oportuno que também a comunidade, e portanto,
seus membros, sejam sensíveis e vivam realmente como membros da
comunidade.
Quer dizer, a importância da presença desses indivíduos está em que eles são canais
para que a comunidade possa chegar às fontes das quais poderão extrair tantos outros
impulsos vivificadores. Nas comunidades mais restritas, como a família, esses indivíduos
servem como órgão de união para ajudar no enriquecimento mútuo e cultural dos membros.
Vê-se também, agora, o valor e o sentido original que tem a abertura recíproca, pois quem se
fecha e não comunica externamente a riqueza do próprio mundo interior e das suas
necessidades vitais não pode ser considerado apto para o desempenho dessa tarefa.
Outra dimensão dessa abertura interior da alma entre os interlocutores está presente na
compreensão da vida psíquica do outro que pouco a pouco se desvela. Quando Paulo diz, por
exemplo: “você ficou comovida e passou a se ocupar com as minhas cartas” intui uma das razões do
movimento que fez partir o relacionamento. Este reencontro pelas cartas junto com as pesquisas
realizadas efetua, em sentido positivo e amplo, uma atividade espiritual de trocas: de pensamentos,
sentimentos, recordações e objetos. Assim, no proceder em comum, mostram de maneira concreta
como os indivíduos na comunidade podem ser sustentados um pela força do outro.
2.3.4 A Festa do Encontro
Na seqüência da carta, Paulo recorda para Elsie a festa da família. Este momento é
essencial para o desenvolvimento de qualquer comunidade – lembremo-nos das festas jubilares e
religiosas - que dão visibilidade a respeito do mundo de valores no qual vive o ser humano
95
. E
95
Uma observação sobre a festa tradicional da Folia de Reis feita pelo estudioso da cultura popular M. Mahfoud
(2003, p. 62) ajuda-nos a ampliar o significado deste momento para a vida comunitária: “A memória possibilita
ali (na festa) a relação com o ‘antigo’, tecer a experiência de relacionamentos com tantos outros, sem os quais
não teríamos acesso aos acontecimentos de um tempo distante”.
143
quando falamos de valores não nos referimos somente à sensibilidade por valores morais. Já
dissemos, por exemplo, que por meio da vida dos sentimentos o eu não só recebe o mundo como
dotado de positividade, mas abre-se ao mundo de valores
96
e acolhe-o dentro de si em graus
diversos de profundidade. Por isso, celebrar os valores pessoais que possam provir do passado e
também do presente como fatores que dão uma orientação para o comportamento da comunidade
transforma as ações espontâneas do indivíduo em fonte de força objetiva para a comunidade. O
exame do efeito contagiante da festa jubilar da família e do seu conteúdo mostra a emoção do
sujeito que age em nome da comunidade e, por conseguinte, a surpresa dos outros:
Infelizmente você não pôde vir ao Brasil para a festa do centenário da
chegada da família Peruch. A festa foi muito emocionante principalmente
quando se encontravam pessoas que não se olhavam e não se falavam por
tanto tempo; o momento máximo foi quando apresentei aos presentes, a
árvore genealógica, as fotografias e as outras informações que você me tinha
enviado. A família ficou surpresa com os dados que eu tinha e, eu lhes dizia
que estas informações eu tinha somente porque você e a sua irmã tinham
respondido à minha carta. E ficamos também surpresos com os parentes que
temos nos Estados Unidos, França e Austrália
97
.
O primeiro ponto a ser destacado na descrição de Paulo relaciona-se ao fato de que a
festa é um momento emocionante para a vida da família porque possibilita o re-encontro das
pessoas e, em especial, ajuda romper as resistências. Um fato inegável diz-nos Stein (1993), é
que no interior da família e do grupo de amigos nem todos os membros se compreendem, nem
todas as relações são positivas. Contudo, ela observa que a estranheza e a distância, na sua
essência, constituem-se sempre em uma ruptura da comunidade que é fundada em laços
pessoais. Neste ponto, uma celebração em memória das origens comuns é um fator que
colabora para que os sujeitos reflitam sobre os relacionamentos e enriqueçam as suas vidas
com os conhecimentos relativos à história dos antepassados dentro do contexto de toda uma
cidade fundada por imigrantes.
96
Stein (1999, p. 245) indica que a pessoa não é um ser privado de valores, mas precisa estar sempre receptivo
frente a eles pois “reconhecemos o que é a pessoa a partir do mundo de valores em que vive, dos valores aos
quais está disponível e a tudo aquilo que ele pode criar por meio dos valores recebidos”.
97
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-05.
144
A segunda questão refere-se à apresentação feita por Paulo, durante a festa, dos
resultados da busca realizada, que provoca a surpresa de todos. Os objetos apresentados como
a arvore genealógica e as fotografias ajudam a atualizar as lembranças e estende uma ponte
com algo de valor – o bem – que foi transmitido pelos ancestrais. Com esta forma de agir,
Paulo foi capaz, a partir da sua comunidade de origem, de estabelecer um contato com outra
comunidade colocando uma e outra dentro do espírito das recordações sobre a imigração. As
famílias, nos distintos ambientes, vivem a surpresa e a emoção.Em todo caso, o que aproxima
as duas realidades é a presença desses mediadores em que pesa o efeito das palavras e dos
gestos deles como portadores de valores.
2.3.5 Pessoa e Comunidade
Quanto ao efeito estimulante produzido pelo indivíduo no interior da comunidade,
devemos ainda refletir sobre os conteúdos comunicados e recebidos porque o entusiasmo com
o qual um sujeito descreve ao outro suas atividades em favor da família pode envolver e ser
estimulante para aqueles com os quais o sujeito entra em comunicação. Nesse caso, pode
acontecer que “o sujeito torne-se um membro unificante entre as duas comunidades,
favorecendo a realização de uma unidade vital entre as duas partes” (STEIN, 1999, p. 228).
Em outra missiva, Paulo compartilha com Elsie as preocupações em torno às perdas
sofridas dos parentes da primeira geração nascida no Brasil
98
. De novo entram em cena as
vivências comunitárias, pois é um sujeito comunitário que fala ressentindo o fato do
desaparecimento das testemunhas, isto é, as pessoas que diretamente conviveram com os
98
Simone Weil refere o risco constante sofrido pelas coletividades de serem privadas do seu significado pela
imposição do Estado e do dinheiro. A missão da coletividade para com o ser humano seria a de assegurar no
presente as ligações entre o passado e o futuro. Mas há um processo de substituição dos vínculos e esvaziamento
desse sentido. Há um trecho em que Weil (2001, p. 93) aponta para as conseqüências desse fenômeno: “Mas hoje
ninguém pensa nos antepassados que morreram cinqüenta anos, ou mesmo vinte ou dez anos, antes de seu
nascimento, nem nos descendentes que nascerão cinqüenta anos, até mesmo vinte ou dez anos após sua morte.
Por conseqüência, do ponto de vista da coletividade e de sua função própria, a família não conta”. Nessa mesma
linha, vão as reflexões de Stein (1993) sobre o Estado, fazendo ver que, nem mesmo nas estruturas de
organização e instituição do Estado, podem faltar as qualidades de responsabilidade e solidariedade, presentes
na estrutura da comunidade. Estas qualidades permitem estabelecer relações de sujeito para sujeito.
145
imigrantes. No centro de tudo estão as preocupações com o progressivo desenraizamento (a
perda dos vínculos) que pode ocorrer quando não houver mais quem possa lembrar, por isso,
para Paulo é necessário continuar buscando, organizando os encontros, mesmo percebendo
que os sentimentos de força e fraqueza não podem ser separados totalmente para cada
indivíduo pertencente à comunidade:
Cordeirópolis, 31 dezembro de 1997
Cara Elsie,
(...)
A minha família, ou seja, os descendentes de Constante e Jeovana começam
a perder a primeira geração nascida no Brasil. Desde 1996 já perdemos
várias pessoas e, infelizmente, não conseguimos fazer as entrevistas e anotar
as recordações deles sobre a família. Quando comecei a fazer os meus
estudos sobre a família, muitas pessoas me ajudaram, mas hoje está mais
difícil e as pessoas não tem tempo para este tipo de estudo.Continuo
buscando pelo Brasil, todas as famílias com o nosso mesmo sobrenome e
quem sabe um dia poderei organizar um grande encontro com a vossa
presença aqui
99
.
É preciso retomarmos alguns pontos que concernem à essência da vida comunitária e a
relação entre a participação vivificante do indivíduo singular na constituição das vivências
comunitárias. As ações de uma ou mais pessoas no interior da comunidade podem servir,
como já foi visto, para contagiar tantas outras. Basta pensar, por exemplo, no gesto da festa de
família como descrita por Paulo. Mas pode ocorrer o equívoco de entender a comunidade
somente como uma forma de convivência entre as pessoas. Na opinião de Stein (1999), a
essência da vida comunitária não está no fato de que os sujeitos se dirigem um ao outro como
fim em si, mas a comunidade se configura quando os seus membros unidos dirigem o olhar
para algo objetivo. É deste ponto de vista teórico que consideramos aquilo que Paulo diz, na
continuação da carta, sobre o grupo de pessoas da sua geração que sente a necessidade de
reavivar os laços familiares e, além disso, no âmbito maior da comunidade realizar a união de
todos a partir de um objetivo explicitado, segundo informa o sujeito, pelos primeiros italianos
em um momento da história, dos quais continuamente se faz memória:
99
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-06.
146
A minha geração, graças a Deus, está se empenhando em reavivar estes
laços familiares e temos certeza de que estamos, uma outra vez, unindo a
família.
Eu participo no bairro de Cascalho, que é o lugar onde chegou os primeiros
italianos. Junto com o padre e um grupo de pessoas estamos organizando
associações para poder unir todas as pessoas, seguindo a idéia dos primeiros
italianos que diziam: “ajudar e buscar alternativas para que todos possam
vencer”. Com esta idéia, este ano nós fundamos a associação dos
agricultores e a associação esportiva e estamos em contato com o cônsul
italiano para que no próximo ano possamos fundar a associação italiana.
Esta comunidade em que quase todos são descendentes de italianos realiza
todos os meses uma festa para poder sustentar as associações. No próximo
ano o batistério fará 100 anos e nós faremos uma grande festa
100
.
Podemos constatar que, na medida em que cresce no indivíduo a consciência da
pertença e amor pelo conhecimento da sua família, se fortalece também o amor pelo próprio
povo, pelas origens e pela comunidade da qual ele participa. Tal positividade chega a arrastar
outros indivíduos. Há um despertar da necessidade de uma comunhão tamm em nível
societário
101
. Vê-se no caso assinalado que o ser humano pode pertencer a diferentes tipos de
comunidade ao mesmo tempo. No relato do Paulo evidencia-se os diferentes níveis de
pertença: a família, a comunidade de Cascalho, as associações e a comunidade cristã. Cada
uma delas tem um projeto diferente que, na sua essência, deveria contribuir para o
desenvolvimento pessoal daqueles que compartilham tal experiência. A fonte última de força
para a comunidade realizar aquilo que é necessário vem do eu individual. Por essa razão,
quando a comunidade perde suas forças e fracassa na realização das suas finalidades, a única
possibilidade de revitalizar-se só pode vir de uma pessoa ou grupo de pessoas como fonte da
qual brotam novas energias. A própria Stein (1999, p. 215) fala a respeito da comunidade em
termos da responsabilidade do ser humano diante dela: “A comunidade não é um sujeito livre
e portanto não é nem mesmo responsável no sentido que são os indivíduos. Os indivíduos têm
a responsabilidade última das ações que realizam em nome da comunidade”.
100
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-06.
101
A reflexão sobre a vida em sociedade é examinada por Stein (1999) nas suas estruturas de sustentação e na
contraposição com o contágio das massas em que não se realiza ligações de caráter espiritual e pessoal. A
característica da sociedade manifesta-se quando os indivíduos reúnem-se para alcançar determinados objetivos e
elas têm inicio por um ato de uma pessoa - fundadora – que determina a sua criação.
147
2.3.6 A Criação de um Contexto de Relacionamentos
A tomada de posição de amor, respeito e gratidão frente às outras pessoas pressupõe
um contexto de compreensão já existente entre elas. Tal contexto que aparece na convivência
epistolar entre Paulo e Elsie e suas respectivas famílias são atos sociais que não se fundam
apenas no relacionamento ligado ao presente, mas se refaz no terreno supra individual da
história de amizade e convivência dos antepassados que imigraram. Por isso, nas missivas,
haverá sempre a preocupação de tocar os temas das raízes. Como vimos, as informações que a
Elsie busca nos arquivos passam a ser também de interesse para ela e para os seus familiares
na Itália: a redescoberta da antiga casa, o lugar de nascimento e batizado, os instrumentos de
trabalho, as fotografias e, inclusive, as cartas antigas. O envio das informações ao Brasil
torna-se o veículo de um intercâmbio em que aparecem não só as expressões de vínculos
corporais e étnicos mas de uma comunhão espiritual:
(...) Espero com esta minha carta de encontrá-los em boa saúde e que tudo
prossiga bem no trabalho e na vida cotidiana. Desculpe-me ainda por ter
escrito tarde, depois de tanto tempo, mas não é fácil consultar os arquivos
porque, de fato, é necessário esperar a disponibilidade dos párocos. Foi um
prazer poder lhe enviar estas informações. Não é muito mas pode servir para
tornar próximas estas terras tão distantes geograficamente mas tão vizinhas
para quem a tem no coração. Saudações a todos. Vou procurar escrever-lhe
logo: Elsie e família
102
.
Para Paulo, também as ligações de proximidade
103
realizam-se no intercâmbio de
materiais e informações que ajudam no conhecimento recíproco. Sem dúvida, há um ponto
comum de referência para a experiência de ambos. Entretanto, o que vence a distância é o
102
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-07.
103
Esta última frase inspira-se em trecho escrito por Paul Ricoeur (2003), em seu livro sobre as questões de
memória e história, no qual o autor em capítulo que discute as relações entre o eu, a coletividade e os mais
próximos, faz notar como as ligações de proximidade com os outros perpassam tanto as relações de filiação, de
amor conjugal quanto as relações sociais. Graças a isso, diz o autor, a proximidade vem a ser uma categoria
fundamental para pensar as relações na comunidade, pois, os que verdadeiramente podem ou deplorar a minha
morte, ou celebrar o meu nascimento, bem como, alegrar-se pelas conquistas e estar solidário na doença e no
trabalho são os que estabeleceram comigo uma relação de reciprocidade, de amizade. Os amigos podem chegar a
reprovar algumas ações minhas, contudo, nunca deixarão de afirmar minha existência. A proximidade do outro é
a ponte, portanto, para que o indivíduo – no caso o estrangeiro – possa de novo recuperar a própria dignidade,
talvez perdida na aventura da travessia e no sentir-se desenraizado.
148
sentimento de ternura, a afeição recíproca cultivada por eles ainda sem se conhecerem
pessoalmente.
Estou enviando a você uma fotografia dos anos 20, a arvore genealógica, um
número do jornal da minha cidade com um texto que escrevi, e também um
postal de São Paulo onde trabalho e fotografias de Cordeirópolis. As
fotografias do centenário vou te mandar em breve, na próxima carta.
Elsie, queria ter informações de Bibano, você pode enviar-me? (...)
Infelizmente a distância entre nós é grande, porém, esta distância não é
objeção à ternura que sentimos por você. Um abraço a todos. Paulo
104
.
Podemos falar de comunidade não só quando existe uma dedicação recíproca entre os
indivíduos, mas quando eles conseguem expressar um para o outro o que de verdade constitui
o elo de comunhão entre eles. Essa dedicação aberta e espontânea de um sujeito para com o
outro está na origem da comunidade que vem nutrida e movida por motivos comuns. Nem
mesmo a distância pode ser objeção quando subsiste o intercâmbio de sentimentos e a
disponibilidade psíquica de acolher o outro como sujeito e não como meio para obter os
interesses particulares. Quando as pessoas estão nesse nível de relação, elas são amigas e,
como admite Stein (2000, p. 189), “tal relação faz parte do ser pessoal de ambos e contribui
para determinar a vida deles”. Uma convivência fundada sobre a abertura para as qualidades
pessoais do outro. O que contrasta com a essência da comunidade é, enfim, o fechamento que
é o comportamento derivado da consideração do outro como objeto para o fim particular e,
assim, não é possível o contágio dos sentimentos recíprocos e nem a motivação que se
transmite como força vital para o desenvolvimento de todos.
Os momentos fortes e construtivos do relacionamento de tais sujeitos foram marcados
por vivências em que estavam presentes os medos, a ânsia, a dúvida; mesmo assim, por outro
lado, foi mantida viva a decisão de aprofundar a situação passada e presente relativa à família.
O contato tão desejado por Paulo com as pessoas da terra de origem dos seus ancestrais trouxe
benefícios não só para uma parte, mas para ambas.
104
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 30-06.
149
Os frutos desse processo de enraizamento estão ligados à compreensão daquilo que o
outro – de um mundo cultural diferente - produz quando vem ao meu encontro. Todavia,
concretamente, a alteridade desperta no sujeito a comparação com a própria percepção interna
e, quando positiva, pode-se descobrir um incremento das forças espirituais e, até mesmo,
mudanças no mundo das experiências do sujeito. O influxo vivificante (sentir-se reforçado
mediante os motivos de outros) torna o ser humano capaz de uma maior atividade espiritual e
leva-o a reconhecer que algumas das suas vivências não têm mais origem em si próprias, mas
provêm do encontro com sujeitos de outras comunidades. No caso de Elsie, o olhar que vem
do correspondente impulsiona a descobrir as razões da emigração e dá nova luz para olhar
para a realidade
105
.
A intuição de recuperar os fragmentos das vivências familiares manifesta-se, desse
modo, como desejo de transmitir às gerações o sentimento de pertença mútua e de amor às
raízes. De qualquer forma, são as ações e o interesse do indivíduo que tornam vivas para si e
para os outros membros da família ou grupo social os tesouros recebidos em herança. Não
podemos ignorar, entretanto, que existe uma tendência a considerar o indivíduo cada vez mais
isolado, por outro lado, há situações e momentos propícios em que a atenção se volta curiosa
para a comunidade da qual o indivíduo recebe e compartilha os dons.
105
As condições para a aceitação e a vivência plena de um valor vêm garantidas quando o sujeito estabelece uma
comparação entre aquilo que se apresenta diante dos seus olhos com sua percepção interior, pois é necessária
uma ligação interna com o objeto. Stein (1999, p. 188) apresenta três possibilidades desta relação: “1. Uma
pessoa pode ter diante dos olhos uma coisa, presente em carne e osso, sem saber que ela representa um valor; 2.
Pode-se ter diante dos olhos algo e saber, sob o fundamento de uma mediação, que ela possui um valor, sem que
isto se torne evidente. Nestes casos o sujeito está cego diante do valor (...) 3. Pode-se ter diante dos olhos um
objeto e conseguir ver o seu valor sem conseguir, porém, ser tomado interiormente por ele”.
150
151
CAPÍTULO III
A FORMAÇÃO DE UM POVO
Neste terceiro capítulo, apresentamos as cartas dos imigrantes da colônia de
Cascalho. Depois de termos feito uma análise das vivências individuais e comunitárias,
vamos pensar na formação social de um núcleo colonial destinado aos imigrantes. Os
dados que emergem das cartas apresentam um quadro já bastante amplo para que
possamos compreender que o fenômeno da imigração não pode ser visto de maneira
unívoca. Mas o fenômeno mostra por si mesmo multiformes significações
106
. Há uma
enorme dívida humana em termos de desenraizamento da comunidade de pertença, de
abandono das cores e das paisagens habituais, dos lugares de culto religioso e de
veneração dos mortos, da língua e da terra natal, conforme indica-nos o estudioso de
cultura vêneta, Ulderico Bernardi (1994). Tudo isso torna o imigrante uma figura de
imprescindível importância porque raiz, ngua e normas do convívio social são
componentes estruturais para a compreensão do ser humano (GOZZINI, 2005). Nesse
particular, historiadores e cientistas sociais têm mostrado uma atenção crescente pelo uso
das cartas para estudar o processo de imigração
107
. Aqui interessa-nos perceber a condição
106
Remeto às anotações esclarecedoras de Franco Ramella (2003), da Universidade de Torino, em seu artigo “Gli
studi sull´emigrazione tra vecchi paradigmi e nuove prospettive”. O autor discute os problemas que, na pesquisa sobre
o fenômeno migratório, podem surgir quando há o predomínio de um único paradigma interpretativo. A insistência do
autor é quanto a uma análise que possa mostrar as refinadas cadeias de ligação humana que se produz no processo
migratório, redes sociais abertas às novas sociedades nas quais se inseriam e os vínculos com os que estão na área de
partida. Além disso, insiste na necessidade de diálogo e confronto entre os setores de estudos de história da imigração
com as outras áreas das ciências para que haja enriquecimento e renovação na pesquisa.
107
Tal é o que dizem os autores Baily e Ramella (1988, p. 2-3) em estudo a propósito das cartas: “As cartas têm
vantagens únicas como fontes de estudo no processo de migração. Elas registram observações subjetivas
daqueles que participaram do processo como se ele fosse uma revelação, não a reconstrução da memória de
eventos e sentimentos passados, nem as observações de comportamentos simulados ou reconstruídos. Além
disso, cartas particulares permitem-nos avaliar observações e comentários em relação às motivações, o processo
de adaptação e a experiência feita pelos imigrantes, especialmente quando podemos determinar alguma coisa da
história e a posição social e econômica do escritor e sua família”.
152
do imigrante
108
e as etapas de sua inserção e a modificação do ambiente, o seu encontro
com realidades étnicas diversas e os aspectos do quotidiano vividos na construção de uma
comunidade. Ou seja, neste caso, falar em ação comunitária significa tratar da
responsabilidade do ser humano diante da história o viver consciente como membro de um
povo consiste em reconhecer a dívida que o ser humano tem com relação à herança
recebida. Stein (2000) diz-nos que para que a vida comunitária forme um povo deve-se
levar em consideração a existência das seguintes características: a auto- configuração, a
auto- conservação e a auto- expressão. Trata-se de uma formação na qual as ligações
entre as pessoas, por meio dos atos sociais, tem particular valor.
3.1 AUTO-CONFIGURAÇÃO
A historiografia tem dado mais ênfase à presença dos imigrantes nas fazendas e menos às
colônias criadas por iniciativa privada e pública entre 1877 e 1911 (GIRON, 2004, p. 116). Por
isso, neste capítulo, vamos recolher os indícios deixados pelos imigrantes no núcleo que
originariamente foi povoado por pessoas e suas famílias provenientes da Dinamarca, da Suécia,
da Prússia, da Saxônia e Áustria, que posteriormente, devido às dificuldades de adaptação às
condições de vida, as propriedades foram vendidas aos imigrantes italianos
109
.
O núcleo colonial de Cascalho foi criado em 1885, levando-se em conta a lei provincial de
29 de março de 1884, artigo 28, que previa a criação de até 5 núcleos coloniais ao lado das
108
Considerar, a propósito, o que diz Baccarini (2002, p. 197), que, a meu ver, faz uma interessante discussão
sobre o problema do estrangeiro no mundo contemporâneo e, sobretudo, em termos fenomenológicos, mostra
que pensar o estrangeiro significa refletir sobre a nossa capacidade de aceitar novos modos de alteridade. Em
termos fenomenológicos diz o autor: “(...) o estrangeiro apresenta-se como o não identificado, aquele que
provém de um outro lugar e que não nos conduz imediatamente a pensar na familiaridade da pátria. A análise do
estrangeiro como categoria filosófico-antropológica, bem como ética- política implica que se coloque a atenção
na questão a habitação e a pertença como condições da identificação”.
109
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0345, cx. 05, folhas 8 a 10. Ver também os dados do livro do Tombo
da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, Cascalho, p. 4. Podemos encontrar nos relatórios do diretor do
núcleo, as relações dos imigrantes que abandonaram Cascalho desde a fundação até o mês de dezembro de 1887.
O curioso é perceber a descrição com a qual eles eram identificados: os nomes dos chefes de família, os
respectivos lotes rurais e o número total de pessoas que deixaram o núcleo, somando 169 pessoas: cf. doc. 0345,
cx. 02, folhas 5,6 e 7.
153
principais linhas ferroviárias e dos principais centros de produção agrícola. Em janeiro de 1887, já
estavam ocupados por imigrantes e suas famílias, 31 destes lotes rurais (GROSSI, 1914). A carta
de 31 de dezembro de 1884, dirigida ao presidente da Província de São Paulo, Sr. Dr. José Luiz de
Almeida Couto, por parte da comissão constituída para estudar os terrenos do Oeste paulista para
o estabelecimento destes núcleos, mostra que o de Cascalho foi formado a partir de uma antiga
fazenda de café, inserida ao redor de outras fazendas e situada próxima a uma importante
bifurcação da Estrada de Ferro da Companhia Paulista:
Ilmo. Ex.mo. Sr.
... a comissão dirigiu-se no dia 13 de dezembro à Estação de Cordeiro, em
cuja proximidade está situada a fazenda Cascalho pertencente ao Dr.
Domingos Nogueira Jaguaribe Filho que à offerecera à venda. Esta fazenda
está situada à 3 kilometros da Estação de Cordeiro, onde a Estrada de Ferro
da Companhia Paulista se bifurca para S. João do Rio Claro, e Descalvado,
offerece pela sua posição topographica grande vantagem para um
estabelecimento desta natureza, pois tem à sua disposição meios de
transportes commodos e baratos não só para os gêneros que podem ser
consumidos nos mercados de Limeira, Rio Claro e Araras, como também
para os gêneros de exportação. As terras são em geral de superior qualidade:
roxas e vermelhas, em pequena parte não tão boas, mas prestando-se à
cultura da canna, algodão e sereaes, devendo ser de abundante produção
110
.
Na continuação da carta, a comissão informa que a fazenda era sujeita à geada, mas
que a cultura do café ali presente, apesar de não receber tratamento devido, continuava em
estado frondoso, mostrando, assim, a fertilidade das terras. Grande parte da fazenda era ainda
coberta por matas contendo madeiras de ótima qualidade
111
em abundância. Outrossim, a
comissão faz o elenco dos recursos materiais da fazenda:
110
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0345, cx. 50, folhas 15 a 17.
111
O parecer favorável da comissão a respeito das terras a serem adquiridas para a criação do núcleo de Cascalho
– expresso nesta carta dirigida ao Presidente da Província – pode ser lido perfeitamente na perspectiva de como
se dá o movimento do conhecimento em perspectiva fenomenológica. Vemos como as observações feitas (os
juízos) conectam-se com as justificativas que põem em ação os atos do intelecto e da percepção sensível e
técnica do lugar. No caso de uma avaliação desse tipo, os atos do intelecto estão plenamente ativados a fim de
poderem dirigir-se àquelas coisas externas e, sob o fundamento das percepções sensíveis, colher internamente,
em forma de conhecimento, o mundo externo. Nas observações que realiza, o grupo técnico age – ao contrário da
massa dos homens impulsivos – guiado por objetivos, esforçando-se por persegui-los, operando as habilidades
necessárias para converter teoria em prática.
154
A fazenda tem uma grande casa de morada, diversas casas secundárias, que
poderão servir para o agasalho dos colonos etc, casa de máquinas, contendo
uma serra, um engenho de canna, um alambique aperfeiçoado, maquina para
o benefício do café, 1 moinho, 1 descaroçador de algodão, prensa para o
enfardamento etc, todos estes maquinismos são movidos por um vapor de
força de 8 cavallos, tem também 2 quadros ladrilhados para secar o café,
existe além disto um outro moinho movido por água, assim como outras
edificações construídas fora deste centro, para habitação dos colonos que lá
havião, restando actualmente 1 ou 2 famílias, todas estas edificações
precisão de retoques, existe também uma olaria montada, com forno para a
queima dos tijolos
112
.
No entanto, qual a relação entre as informações desta missiva com aquelas que são o
foco de atenção de nosso estudo? A razão principal de reproduzirmos aqui alguns aspectos
dos primórdios da colônia de Cascalho relaciona-se a três fatores. Em primeiro lugar, porque
nos informam sobre as condições materiais encontradas pelos imigrantes. Um Estado – como
era o caso do Brasil dos finais do século XIX – que promove e acolhe no seu território
diversos povos está, ele próprio, destinado a modificar os seus aspectos ambientais,
econômicos, sociais e políticos (STEIN, 1993). Em segundo lugar, porque alguns imigrantes
de origem austríaca, alemã e portuguesa irão permanecer e, com a chegada dos italianos,
acontecerá a composição de núcleos familiares com dupla pertença étnica. O último fator, está
relacionado com a colocação dos imigrantes como pequenos proprietários rurais
113
ao redor
de grandes fazendas e de alguns importantes centros comerciais nas cidades que iam se
formando no interior da Província de São Paulo. O modelo de fixação do imigrante, como
pequeno proprietário rural, tem um valor e significado – se quisermos pensar do ponto de
112
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0345, cx. 50.
113
Pode ser oportuno observar que, nas descrições feitas a respeito da colônia, a idéia de fases de
desenvolvimento reforça-se quando da fixação dos colonos italianos, pois estes privilegiam a policultura e uma
maior variedade no cultivo: desde cereais, frutas, hortaliças e a criação de animais para o próprio consumo. Na
tese A economia de mercado e organização do espaço agrário: o exemplo de Cordeirópolis, de Lombardo
(1978, p. 27), encontramos os seguintes dados a respeito do dinamismo e do espírito de empreendimento dos
colonos: “O núcleo de Cascalho contribuiu para o aumento populacional da área, dando-lhe mais dinamismo. Em
1889, pela lei 645, foi criado (graças em grande parte ao núcleo) o distrito de paz de Cordeiro. Até por volta de
1930, o núcleo constituiu-se numa célula ativa de pequenos proprietários imigrantes italianos, no seio de grandes
fazendas cafeeiras. Havia um centro religioso e recreativo, dois açougues, uma loja, oito armazéns, uma padaria,
duas farmácias, fábrica de macarrão, de cerveja, de sabão. Além destas fábricas citadas, haviam três engenhos de
pinga, máquina de beneficiamento de arroz e de milho, evidenciando, assim, a proliferação de plantio de
cereais”.
155
vista psicológico – de grande relevância, porque vai ao encontro das aspirações de tornar-se
dono do próprio espaço e sentir-se livre para poder cultivar a terra do seu modo, o que lhe dá
autonomia para poder empreender criativamente o próprio negócio. Os 245 lotes do núcleo,
segundo os relatórios, foram divididos da seguinte forma: 69 lotes agrícolas; 52 chácaras; 124
lotes urbanos, considerando-se que, em 1887, estavam ainda vagos cerca de 219
114
. Foi a
partir de 1888 que começaram a chegar os colonos italianos para povoar esses terrenos. A
maioria dos camponeses, nesse pequeno núcleo, será a dos imigrantes vênetos da província de
Treviso. Desse modo, o ‘caráter’ do núcleo estará fortemente influenciado pelo caráter desses
habitantes (STEIN, 2003, p. 124), que passaram a viver em comunidade, e inevitavelmente a
reproduzir as tradições das pequenas vilas de suas origens na nova realidade. Aos camponeses
era oferecida a possibilidade de adquirir seu próprio terreno seja nas colônias do Estado, seja
nas privadas. A resposta a esse direito de propriedade é o primeiro elemento para que o
imigrante possa começar a fixar raízes no novo espaço por ele habitado. Como sabemos, a
aquisição da propriedade está ligada ao sonho de “fazer a América”, o que para esses
camponeses vênetos reveste-se de particular significado se comparado ao que ocorria nos
campos de terra no Vêneto, onde, a cada ano, muitos eram obrigados a migrar para outros
campos, com novos patrões
115
. Desse modo, criava-se a constante instabilidade,
impossibilitando a realização de qualquer projeto e o nascimento de organizações e
associações entre os colonos. Vemos, portanto, por estas cartas dos primórdios da colônia, a
ação do Estado para organizar de certa forma o território do ponto de vista econômico.
114
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0357, cx.01, f. 2.
115
Ulderico Bernardi mostra a importância do relatório Jacini, no qual temos os dados da pesquisa encomendada
pelo Parlamento Italiano em 1877 sobre as condições da classe agrícola que foi colocada sob a direção do
senador Stefano Jacini, e cujos resultados foram publicados entre 1880 e 1885, revelando as severas condições
de trabalho destes camponeses. Comenta Bernardi (1994, p. 8-9): “Os colonos agricultores viviam sob a
pressão/medo de perder a casa e o trabalho por meio da dispensa que os patrões realizavam a San Martino, o dia
11 de setembro, data que marcava a chegada do salário pelo trabalho de um ano inteiro e da renovação dos
contratos (...). O trabalho pesado, quase exclusivamente manual e com o único auxílio de algum animal – boi,
asno, ou cavalo – era acompanhado pelo medo, para quem não tinha a propriedade da terra, de perder a casa e
atividade”.
156
O processo de aquisição de valor e sentido que o imigrante
116
encontrava, pouco a pouco, no
exterior, estão presentes nas narrativas e remetem-nos às suas vivências existenciais
117
. De modo
que não podemos deixar de mencionar a ligação intencional que há entre o sujeito e os objetos.
Assim, quando o ser humano escreve sobre suas percepções sobre os lugares ou sobre o que sente,
ou quando relata aquilo que está realizando no trabalho com outros, pode-se dizer que ele está no
nível das relações inter-subjetivas. Desse modo, o que temos são alguns testemunhos diretos por
meio das cartas de alguns imigrantes e as impressões dos missionários que passaram por Cascalho,
pois tendo eles maior possibilidade de comunicação com a Itália e constante mobilidade dos seus
missionários entre os dois continentes puderam relatar os acontecimentos e a vida dos imigrantes
espalhados por estes núcleos tanto nas Províncias de São Paulo, quanto nas do Rio Grande do Sul,
Paraná e Espírito Santo. Um testemunho indireto vem das cartas dos agentes e diretores da colônia
que enfocam os recursos materiais, fazem observações técnicas e, por vezes, dão um juízo sobre os
colonos. Por isso, será na convergência de todos esses elementos: as cartas dos camponeses
imigrantes, os relatórios sobre o núcleo e as cartas dos missionários Escalabrinianos, que
verificaremos como as dimensões individual e comunitária se entrelaçam para a formação de um
povo e perceber os significados encontrados nos relacionamentos com os parentes próximos e
distantes, no trabalho, na religião e nas diversas funções vitais para o ser humano.
3.1.1 As Cartas da Família Hubner
Observemos, agora, as cartas que os descendentes da família Hubner conseguiram
conservar. Esta família estabelecerá seus laços de parentesco com as famílias de italianos
116
Bello (2004, p. 161) adverte que “na fenomenologia, o conceito de sujeito tem o significado de uma estrutura
essencial pura que tem vivências”, como a percepção, a memória, a atenção etc. E quem faz a descrição destas
estruturas é o sujeito empírico que examina a si mesmo quando realiza um destes atos.
117
O filósofo Gadamer faz notar que enquanto o termo Erlebnis só entrou em circulação no vocabulário
filosófico a partir de Husserl, um outro conceito era utilizado na arte para dizer que cada expressão artística
manifestava uma vivência para aquele que saboreava a obra. Gadamer (2001, p. 87) refere que na literatura
alemã, por exemplo, Goethe utilizava o termo Erleben e significava “estar ainda em vida quando uma
determinada coisa acontece” indicando que esses termos fazem referência a algo que entra no horizonte daquilo
que se experimenta diretamente, e não só a algo que se pode conhecer conceitualmente.
157
presentes no núcleo. Essas correspondências e outras que aqui serão analisadas foram
recolhidas por ocasião das reuniões de famílias de Cascalho, promovidas pela Paróquia de
Nossa Senhora da Assunção. Nelas, os participantes eram orientados para verificar se tinham
posse de algum documento dos antigos moradores do núcleo, o que tornou possível reunir,
com a autorização dos respectivos interessados, um banco de dados com fotos, títulos de
propriedade, cartas, passaportes, diários, partituras, bem como objetos e utensílios que,
reunidos, fazem parte do acervo de preservação da memória das famílias do bairro.
A carta seguinte foi recebida pela família Hubner e Nosswitz, provenientes da cidade
de Gablonz, que fazia parte da Áustria-Hungria onde atualmente temos a República Tcheca. A
carta original está em alemão e foi escrita por Franz Nosswitz e enviada a Maria, sua irmã, e a
José Hubner, seu cunhado. Provavelmente deve ser a resposta a uma carta recebida, pois ele a
inicia da seguinte forma: “recebemos a página anexa à carta de 26/11 de ti”. Nesses diálogos
epistolares, o foco da atenção era baseado, sobretudo, nos eventos cotidianos. Franz e sua
família alegram-se em saber que os parentes em Cascalho tinham uma existência feliz:
Gablonz, 1 de janeiro de 1888
Querida irmã e cunhado,
[...] Alegrou-nos muito, em primeiro lugar, que vós estais com saúde e
gozais de uma feliz existência, o que nós também de coração, não invejamos.
Agora, querida irmã, perguntas o que nós todos sempre ainda fazemos e
como estão as coisas. O irmão Guilherme (Wilhelm) mora com sua sogra e
dedica-se, demais, à fábrica de vidro. Embora ele empregue 20 ou mais
trabalhadores, não sabe infelizmente, depois de ter 5 filhos e do alto custo de
vida entre nós, se acumulará muitos tesouros.
[...] Nossa querida irmã Carolina morreu de tuberculose pulmonar. Também
nossa querida irmã Julia (...) Ela deu a luz a um garotinho e adquiriu uma
outra doença no parto, da qual faleceu. Tudo levou a mãe desafortunada
prematuramente para a morte. É... quando rememoramos vemos que nossa
família foi duramente surpreendida. Todos os queridos tiveram que se
separar de nós no melhor desabrochar de suas vidas. Agora finalmente,
terminamos com os acontecimentos de nossa família
118
.
Concentremos nossa atenção nos atos ou nas vivências intencionais que são colocadas
em evidência por um sujeito ao escrever uma carta. O ser humano comporta-se em relação ao
118
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 20 – 01.
158
mundo e às pessoas que o circundam de maneira consciente, isto é, refletindo, avaliando,
representando, recordando, enfim agindo. É nessa série de atos que está vivendo a pessoa,
segundo a perspectiva de Stein. As correspondências, por sua vez, permitem a intersecção de
dois pólos mediante a qual o mundo do texto e o mundo do leitor se tocam, como se pudesse
acontecer o abraço entre duas pessoas separadas por quilômetros de distância. A ponte entre a
vida e a narrativa acontece no momento em que a correspondência chega ao seu destino. A
carta tem, portanto, essa força de suscitar tanto no remetente quanto no destinatário certos
sentimentos e fazer emergir algo por meio das recordações. E o que significa então, nesse
caso, recordar? Husserl mostra que a vivência da recordação tem dois movimentos: um
primeiro que é espontâneo e outro que poderíamos dizer que é consciente, ou seja, o
movimento que permite ao ser humano prestar atenção àquilo que lhe veio à mente, que é o
momento do fazer memória
119
. Esses dois momentos são fundamentais para o caso que
estamos propondo, pois ocorre a passagem do momento espontâneo da vivência para aquele
da rememoração. O trecho: “É... quando rememoramos vemos que nossa família foi
duramente surpreendida”. Este é o momento do fazer memória em que há inclusive um juízo
de valor sobre a existência. Poderíamos nos perguntar ainda: mas qual função exerce aqui a
narrativa? De fato, é o evento da narrativa que possibilita ao sujeito a fixação da atenção sobre
determinados pontos significativos da trajetória pessoal e familiar. De modo que, ao escrever,
o remetente torna presente para si certos momentos vividos e procura compartilhar com os
destinatários as recordações que selecionou.
A recordação pode ser espontânea, como dissemos, mas, outras vezes, necessitamos
realizar uma atividade de busca no passado colocando em ação nossa vontade e afetos, para
poder trazer à mente os acontecimentos, objetos e pessoas que potencialmente, estão presentes
e, assim, realizar o ato da recordação. Poderíamos perguntar neste sentido, utilizando
119
HUSSERL, E., Per la fenomenologia della coscienza interna del tempo, op. cit., p. 308-314. Remetemos
também aos comentários feitos a obra de Husserl por Ricoeur no capítulo em que este último trata da relação
entre memória pessoal e coletiva, in: RICOEUR, P., La memoria, la storia, l´oblio, op. cit., p. 154-169.
159
categorias clássicas, de que modo encontra-se presente no ato de recordar a potência e o ato?
Edith Stein nos responderia que o ser humano tem em potência um mar de coisas das quais
pode se recordar ou de notícias que pode transmitir
120
, mas este só pode passar da potência ao
ato na medida da nossa atenção a ele. A recordação é uma vivência do ser humano em
contínuo movimento.
Ao lado dos acontecimentos familiares, Franz narra que a situação econômica instável
e os melhoramentos estavam modificando completamente a vida da cidade:
As atividades econômicas estão muito instáveis em geral, mas que
exista uma carência em especial para se queixar, não há, pois todos os
anos, não menos que 30 lindas casas, também, são construídas de vez
em quando. Se tu, querida irmã ou cunhado recebesses, na frente dos
olhos, a hodierna cidade de Gablonz e também os arredores, então
pareceria tudo também bem outra coisa. Também não é tudo, até a
ferrovia pela qual se lutou muitos anos, então será construída agora de
Reichenberg a Gablonz e será aberta em setembro de 1888. Como na
vossa carta é mencionado, então teremos que esperar uma visita, o
que nos dará realmente muita alegria, daí poderíeis também, querida
irmã e cunhado, vos convencer pessoalmente de tudo do que vos
contei e ainda saber mais de outras coisas que nós não mencionamos
aqui. Terminamos agora a nossa carta com saudações cordiais e
esperamos que também nossa missiva encontre com a melhor
prosperidade.
Francisco Nosswitz
Nós pedimos resposta para breve.- o endereço está junto
121
.
É justamente das experiências e das expressões utilizadas pelo Sr. Franz que nos provém
uma contribuição particular. Ele faz uma espécie de convite para que o leitor da carta – que não
devemos esquecer eram os imigrantes radicados no núcleo de Cascalho – pudesse imaginar a
cidade de Gablonz com suas belas casas e a nova ferrovia. A cidade natal e seus arredores
120
A perspectiva apontada por Stein (2003), a propósito da possibilidade de passagem da potência ao ato, mostra
os graus do ser. Isto significa que o meu ser presente, atual, traz consigo a possibilidade de um ser diferente no
futuro e que pressupõe o que aconteceu precedentemente. Portanto, o meu ser presente é, ao mesmo tempo, atual
e potencial. Poderíamos pensar, por exemplo, esta dialética de potência e ato a partir da imagem das ondas do
mar. Mais simples e ilustrativo vem a ser o exemplo dado por Stein a respeito do processo de obtenção de um
conhecimento: quando vejo pela primeira vez um termômetro, e compreendo o que ele é, sua utilidade, suas
qualidades, etc., esta é a passagem da potência ao ato, de um conhecimento possível àquele real. Além disso, tal
conhecimento não permanece atual, porque imediatamente passo a pensar outras coisas, mas obtive a idéia do
termômetro. De modo que quando ouço falar nele, sei do que se trata, represento a imagem intuitivamente, ou
ainda, posso recordá-lo.
121
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 20 – 02.
160
tinham sido modificados. Não era a mesma de quando a irmã e o esposo Hubner dali partiram,
de modo que, só se o leitor pudesse ‘receber diante dos olhos a hodierna cidade’, poderia ver as
diferenças. A frase na carta tem este poder sugestivo, de despertar a imaginação. Quando
percebemos alguma coisa, é como se os objetos do mundo exterior entrassem em nós. De forma
que o autor comunicava aquilo que ele mesmo estava experimentando, pois, quem é que recebia
diante dos olhos – este é o ato da percepção – diariamente a cidade de Gablonz com suas belas
casas senão o próprio sujeito que escrevia a carta?
A missiva a seguir, por sua vez, foi escrita pelo colono Josef Hubner e o destinatário é
referenciado como “querido tio”. Ela traz notícias a respeito da situação dos familiares e
conhecidos emigrados para o Brasil, que estavam no núcleo de Cascalho, desde 1 de
dezembro de 1885. As correspondências neste grupo familiar, pelos indícios deixados nas
cartas recebidas e nas enviadas, parecem obedecer a certa regularidade. Por meio dela,
podemos refletir, também, sobre a questão do ambiente no qual se insere o imigrante.
Veremos que é de suma importância perceber esta correlação entre o mundo externo e a
constituição do indivíduo (STEIN, 2001), pólos para os quais o missivista volta sua atenção.
As pequenas conquistas – desde a mudança de um lugar para outro até a construção da própria
moradia – vão ser possíveis pela junção dos elementos disponibilizados pelo ambiente com a
força de iniciativa que possuem os indivíduos.
Cascalho, 30 de novembro de 1887
Querido tio,
O senhor deve ter ficado surpreso por não ter recebido notícias nossas por
tanto tempo, mas nós, neste ínterim, mudamos outra vez e em primeiro
lugar, gostaríamos de ver como a situação ficaria, antes que eu lhe
escrevesse; esperamos, por isso, que o senhor perdoe o nosso longo silêncio.
Como o senhor já sabe, o pai não quis mais ficar na colônia de café e por já
por dois anos comprou, aqui, 20 hectares de terra numa colônia do governo,
nos quais já há um pedaço com uma plantação de café. O primeiro ano foi
tão seco que nós ganhamos pouco, mas no segundo ano plantamos mais que
no primeiro e tivemos uma boa colheita. Até agora moramos numa casa que
pertence ao governo, mas, agora, começamos a construir uma casa de tijolos
em nosso terreno. Por isso já no início do próximo ano já poderemos mudar.
A terra aqui é muito fértil e atravessa uma boa estrada, temos três cidades na
redondeza e cada uma delas dista apenas três horinhas, que são Rio Claro,
161
Araras e Limeira, além disso, claro, está a estação ferroviária de Cordeiro
que dista apenas uma hora daqui; de forma que podemos vender nossos
produtos sempre facilmente e por bom preço.
De nossos conhecidos não saberia eu mais nada informar. Hillebrand mora
aqui e que também construiu uma casa em seu terreno e que Franz
(Francisco) Luke casou, que Josef Gurtler e Franz Gurtler compraram cada
um terreno em Santa Cruz. Sentimo-nos como antes, todos com saúde e
bem, e esperamos o mesmo do senhor.
122
As informações ilustram o processo de adaptação dessa família à realidade da colônia
de Cascalho. A primeira indicação importante seria aquela da passagem da colônia de café –
na fazenda – para o núcleo onde o colono torna-se proprietário. Outro aspecto é quanto à
necessidade que têm esses colonos de certa autonomia, que se torna possível ou não de acordo
com as circunstâncias
123
. A frase “meu pai não quis mais ficar” caracteriza, do ponto de vista
fenomenológico, o espírito de iniciativa, o fato de que o sujeito pode mudar e de fato realiza a
mudança, assinalada na carta pela compra da propriedade. É a potência que Stein (2000, p.
179) chama de força de vontade, no sentido de determinação em escolher, realizar atos e
mover-se. Nesta mesma direção, pode ser lido e interpretado no relato o trecho em que se diz
que a família estava construindo uma casa de tijolos em sua propriedade para poder deixar a
casa que era do governo. Desse modo, não só estão presentes as estruturas do “eu quero e
posso”, mas uma terceira dimensão do espírito de iniciativa individual vem ali evidenciada.
Tal dimensão é aquela por meio da qual o ser humano age realizando uma intervenção no
ambiente, ligada a capacidade de ação física. A edificação da casa própria é o sinal desta
necessidade que tem o ser humano de deixar suas marcas. Vale sublinhar junto com este
elemento das marcas de si na história, a questão do trabalho e a relação com o cultivo da terra,
que faz a família esperar e projetar.
Por este testemunho escrito, portanto, o autor informa-nos sobre o ritmo da vida, o
contexto espacial e temporal, assim como sobre o que acontecia com outras famílias, as quais,
122
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 20 –03.
123
Na teoria da ação proposta por Ricoeur (1986, p. 298), por exemplo, aparece a articulação entre os diversos
níveis do fazer humano: o projeto, a intenção, os motivos, as circunstâncias e os efeitos.
162
pouco a pouco, também elas iam edificando a morada e procurando se fixar no núcleo. Um
detalhe curioso são as informações que ele dá quanto às distâncias quanto ao tempo gasto do
núcleo às cidades vizinhas onde mantinham o comércio dos produtos.
A experiência pessoal do remetente, portanto, pode ser considerada à luz da sua relação
com o ambiente, e é neste ponto que aparece a sua típica inserção na organização da sociedade
como produtor rural. Esta carta, do ponto de vista fenomenológico, fala das potencialidades
presentes no ser humano e, em particular, da força física para a transformação do solo.
A transformação do solo (por meio da irrigação, das plantações) como todas
as outras habilidades humanas que tem por objetivo tornar útil o material
existente para a satisfação das necessidades, submetem a cidade a influência
dos habitantes, e assim pode ser profundamente mudado e cessa de ser pura
natureza (STEIN, 1983, p. 122).
Vemos, portanto, nos elementos presentes nessas cartas, que os indivíduos fazem
referência contínua a uma característica da vida da comunidade, isto é, à sua auto-
configuração a qual compreende a capacidade de ação física e as ligações profundas entre os
membros da família. Em outra carta, o remetente continuará a salientar o ritmo de produção
que a família está se impondo e, ao mesmo tempo, o aceno ao crescimento da população com
a chegada dos novos colonos:
(...) queremos plantar também 3000 mudas de videira no próximo ano. Desde
aproximadamente meio ano há um professor alemão e os meus irmãos agora
também aprenderam, pelo menos a ler, escrever e calcular. Aliás, as coisas estão
indo bem para nós, temos 5 vacas para ordenhar, além do gado restante e
pudemos vender bem nossas coisas porque continuamente chegam aqui novos
colonos, os quais necessitam de comprar tudo nos primeiros tempos
124
.
3.1.2 A Carta da Família Rosolem
Prosseguindo nossa análise, tomemos agora a carta do Sr. Rosolem. Ele é um
imigrante que se estabeleceu primeiramente na Fazenda Santa Tereza que fazia fronteira
territorial com o núcleo colonial de Cascalho, onde posteriormente passaria a viver junto com
124
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC. 20 - 11
163
toda a sua família. Procedamos, portanto, passo a passo, tal como indica-nos o método
fenomenológico, tentando aproximar-nos do significado da experiência vivida pelo sujeito nos
seus diferentes estratos e que nos é transmitida por este testemunho.
Desse modo, seria útil começar destacando os momentos essenciais que o próprio
autor foi mostrando ao longo da sua descrição. Tal percurso pode ser dividido em quatro
momentos fundamentais, a saber: 1) a viagem, 2) a chegada ao porto de Santos, 3) a
hospedaria dos Imigrantes, 4) o lugar de destino: a fazenda Santa Tereza. Esta estrutura
narrativa pode ser observada em muitas das cartas dos imigrantes vênetos, e poderia servir
para poder estabelecer as diferenças/semelhanças, continuidade/descontinuidade das
impressões procurando fazer um quadro comparativo entre as missivas dos núcleos coloniais
e aquelas provenientes dos imigrantes destinados às fazendas.
O que o Sr. Rosolem nos oferece, ao relatar ao seu antigo patrão sua condição nas
novas terras, é o acesso ao mundo dos seus sentimentos e, não somente isso, mas também fica
evidente a situação que sua família compartilha com a massa, com a multidão dos deserdados
e daqueles que pretendiam com o êxodo das terras italianas reafirmarem o sonho de compor
um mundo diferente para si e para os próprios descendentes. Sob esse aspecto, a interrogação
sobre a saga de um povo imigrante tem de ser interpretada em um sentido mais radical do que
aquele apontado em muitos estudos sobre a imigração no qual temos a sensação de que os
protagonistas desapareceram. Por trás da narrativa, do modo de fabular a própria vida e a dos
outros, descortina-se um mundo de experiências referentes ao processo de deslocação em que
afloram os mais contrastantes sentimentos. Para o Sr. Rosolem, o momento da escrita é a
parada para poder tomar consciência
125
e compreender o sentido das transformações ocorridas
125
Para Husserl, bem como para Stein (2003), o significado de consciência compreende dois níveis: o primeiro,
elementar, refere-se àquele conhecimento e atitude que nos acompanha sempre; já o segundo, em nível superior,
aponta para a atividade reflexiva, ou também chamada de autoconsciência. Edith Stein utiliza a imagem da luz
para explicar o que significa este primeiro nível desse conhecimento (essa luz) que acompanha sempre a nossa
vida interior. Evidentemente marca-se a diferença com Descartes para o qual a consciência significava apenas
reflexão, e não tinha esta perspectiva dinâmica que atravessa todos os atos dos seres humanos.
164
na própria vida. As diversas etapas vão intensificando o drama. O leitor tem a impressão de
ser conduzido aos estratos mais profundos da interioridade do autor. Desde a viagem da Itália
ao Brasil até a chegada na fazenda a narrativa apresenta-se como um convite a perguntar: será
possível ao sujeito sentir-se em casa algum dia? Como poderá lidar com o peso de uma
incomensurável percepção de não-pertencer?
3.1.2.1 A Viagem e Chegada ao Porto de Santos
A carta traz a data de 9 de março de 1889 e foi escrita por ocasião da chegada na
América e enviada pelo autor ao seu antigo patrão. Vale a pena seguir ponto por ponto o
escrito para compreender a dinâmica de como o novo horizonte – antes desconhecido – vai-se
configurando e, como aparecem, em termos de conhecimento as primeiras imagens da viagem
realizada.
Senhor Patrão Dr. Ferdinando Chisini
Pieve de Soligo
Depois de um longo silêncio, agora disponho-me a dar-lhe minhas notícias.
Com grande dor devo manifestar-lhe a minha terrível sorte. Começarei a
dizer-lhe alguma coisa da viagem: esta foi, e é muito pesada, tanto que pelo
meu conselho não encontraria tal tribulação nem mesmo o meu cão que
deixei na Itália. Tal viagem foi muito pesada, primeiro por ter encontrado 4
dias de grande tempestade, depois por ser muito apertado no compartimento,
e mais nos últimos dias sofremos um calor insuportável.
Finalmente depois de 26 dias desembarcamos a Santos onde esperávamos de
respirar um pouco, e ser saciado com boas notícias, mas apenas se podia
dirigir algumas palavras com algum italiano, e deles se ouvia resposta pouco
boa. E a tal resposta começava a crescer a nossa desesperação (FRANZINA,
2000, p. 61)
Qual a sensação vivida com relação à viagem pelo Sr. Rosolem? O objetivo do autor
é, em primeiro lugar, o de ‘manifestar’ ao destinatário do seu escrito a dor provada pela
decisão por ele tomada. Essa dor tem diversos níveis de sentido tanto físicos (“compartimento
apertado, calor terrível”) quanto psíquicos (“tribulação”). É o corpo vivente que sofre na
viagem.
165
Qual a influência das palavras de outros sobre a pessoa do Sr. Rosolem? Aqui notamos
o grau de interação entre diversos elementos, seja do ponto de vista de como as palavras de
outros penetram e influem na psique, seja do ponto de vista das condições psíquicas em que o
ser humano em questão se encontra. Constatamos, por exemplo, agravar-se a sensação de
desespero e ansiedade na medida em que ouvia de outros compatriotas seus que as
circunstâncias não eram nada favoráveis ao imigrante.
Dois níveis, portanto, podem ser identificados no relato: o primeiro referente ao
sentimento próprio, aquele que originalmente ele trazia: que era a esperança de boas notícias;
o segundo são os sentimentos estranhos, aqueles dos quais o indivíduo se apropria a partir da
impressão obtida de outros. As sensações, portanto, não são positivas, mas de um desespero
que tomava conta da pessoa.
3.1.2.2 A Hospedaria dos Imigrantes
A terceira fase, na hospedaria dos Imigrantes, possibilita-nos aprofundar o
conhecimento acerca da experiência vivida pelo Sr. Rosolem e considerar mais um elemento
essencial ligado ao caráter. Por caráter entende-se “a capacidade de sentir e o impulso com o
qual este sentir se transforma em vontade e ação” (STEIN, 2001, p. 175). O âmbito do caráter
relaciona-se àquele da vida afetiva e da vontade. Neste aspecto, perguntar pelo tipo humano
do Sr. Rosolem significa tentar colher no relato como ele sentia os valores e como foi afetado
pelo ambiente. Na hospedaria dos Imigrantes, aquilo que ele ouve e vê causa-lhe profunda
impressão interior. Tudo o que ouve e vê foi percebido como tormento psicológico. Pouco a
pouco o que aparecia aos seus olhos suscitava e alimentava certo arrependimento pela decisão
tomada. O fato de que apresenta as sensações de incômodo mostra que ele foi atingido na sua
interioridade por esta situação dolorosa. O modo com que encontra as razões desta particular
166
circunstância indica-nos um tipo humano bastante cordial. Depois, em nível intersubjetivo
mais profundo, no ato da entropatia, porque passa a observar o sofrimento dos outros:
Imediatamente embarcamos num trem especial e, em aproximadamente 4
horas chegamos a São Paulo na casa da Migração, e também ali chegando
crescia mais forte a nossa desesperação, primeiro por ver uma grande
multidão de povo, e por ouvir que existia grande mortalidade dos mais
pequenos, e não só, mas quando começou o entardecer e observando todos
os pequenos meninos e a inteira família que cansados da viagem dormiam
apinhados sobre as mesas, circundados de 10.000 pessoas. E eu não podia
repousar por ouvir que de um lado do dormitório chorava uma mulher, do
outro um homem, e observando os meninos, e pensando de ser eu também
culpado de tê-los feito suportar tanta tribulação, lhe digo a verdade Sr.
patrão que eu também não podia segurar o choro durante toda a noite, e
assim passou o meu primeiro repouso na América (FRANZINA, 2000, p.
61).
As impressões que colhe do ambiente em que está vão, pouco a pouco, causando um
estado de intenso sofrimento. Poderíamos falar de graus diversos de sofrimento que o co-
envolvem, que vão desde os inferiormente sensíveis – ver, ouvir, tocar – até aqueles
maximamente espirituais constituídos de conteúdos no qual vive a pessoa. Afirma nosso
autor: ‘não podia repousar’, ‘pensando de ser eu também culpado’ pela situação, de modo que
não ‘podia segurar o choro durante toda a noite’ e estes sentimentos todos sintetizados pelo
desespero são os conteúdos nos quais vive o eu do Sr. Rosolem. São sentimentos porque são
emoções que têm um determinado sentido para o indivíduo e não são meras expressões
passivas. O impacto com esta realidade conduz o indivíduo a realizar outros atos como, por
exemplo, aquele da reflexão: que o faz avaliar o grau de culpa por ter conduzido a sua própria
família a este estado de tormento. De certa forma, o fluir da dor, por meio das lágrimas,
mostra que é o corpo vivente na sua totalidade que se expressa. A linguagem das lágrimas
atenuam por um tempo o sofrimento.
167
3.1.2.3 O Destino: Fazenda Santa Tereza
A chegada ao destino parece não servir para atenuar o sofrimento. Aliás, o relato mostra o
estado de melancolia
126
em que vive o sujeito ao perceber a ausência de qualquer perspectiva
favorável. Temos a descrição de um homem oprimido no seu espírito: sofre o peso da decisão
tomada porque está diante de fatos trágicos como a perda de cinco dos seus filhos.
Finalmente depois de 4 dias fomos levados de São Paulo ao nosso destino,
isto é, Santa Tereza, e tendo chegado ao lugar e vendo que não era ainda
preparada as nossas casas e tendo de ficar provisoriamente em uma pequena
casa 138 pessoas, e não apenas isso, mas vendo italianos que já da 5 meses
habitavam nesta Fazenda e os seus pequenos meninos com os pés e as pernas
destruídas por pequenos bichinhos de forma que não podiam estar em pé,
digo-lhe a verdade, que vendo isso me veio um choro continuo, e não teria
coragem de ficar perto se o meu pai não fosse buscar-me e conduzir-me
junto aos meus filhos, só de pensar de tê-los conduzido a sofrer tantas
tribulações. Em lágrimas lhe descreverei que depois de poucos dias ficaram
doentes todos os filhos e também as mulheres, e nós que trouxemos 11 filhos
na América agora ficamos com 5 pois os outros os perdemos. Deixo ao Sr.
considerar qual e quanta foi a nossa desesperação que se tivesse havido o
poder não teria ficado na América nem mesmo uma hora, como espero que
se Deus me dará vida e saúde, o mais rápido que puder conduzirei o resto
dos meus filhos a Itália, e pelo meu conselho não vai partir pessoa alguma da
Itália para vir na América porque eu desejaria mil vezes a morte antes de
partir (FRANZINA, 2000, p. 61).
Esta última parte da carta é muito significativa porque indica que só o tempo e a
observação atenta do lugar e das possibilidades ofertadas é que poderão ajudar a modificar o
juízo. Aqui nosso imigrante começa a indicar um lado diverso: vislumbra a possibilidade de que
naquela localidade se pode “fazer a América”, mas não de modo fácil, mas por meio do trabalho:
Quanto às posições seriam belíssimas se os Sacerdotes fossem doutores e se
encontrássemos tudo aquilo que é necessário e tal como se encontra na Itália.
Porque aqui aquele que goza de saúde e que tem vontade de trabalhar, ganha
muito dinheiro, e também o aluguel é discreto, mas agora lhe direi, aquele
que trabalha 2 anos em boa saúde ganha muito dinheiro, mas se fica doente
em 10 dias se consuma o seu rendimento porque uma visita do doutor custa
126
Descrevendo a melancolia como estado de ânimo e experiência, que não pode ser estranha ao ser humano,
Borgna (2004, p. 74) observa: “(...) na medida em que refletimos sobre o sentido das coisas que nos circundam e
sobre o sentido (sobre o não senso, às vezes) das coisas que realizamos. Em cada etapa (idade) da vida, mas em
particular naquela assinalada pelo crepúsculo, pode nascer (improvisamente) a consciência da precariedade e da
desproporção das nossas ações e dos nossos projetos; e então nasce a melancolia, que tira o brilho às coisas e às
paisagens interiores e nos faz, não obstante tudo, recuperar por vezes valores e reflexões que se não fossem
revitalizados por meio da melancolia não poderiam re-emergir”.
168
30 fiorini, bem como os remédios e muitos outros objetos. Por ora termino,
mas não posso terminar se antes não lhe dou uma grande recomendação, e o
Sr. me dará licença para fazê-lo e à sua família.Tal requerimento seria que o
Sr. se ocupasse de pedir as pessoas e a sua família de rezar para que Deus
nos conserve a saúde para poder assim nos vermos logo na Itália.
Deve perdoar-me tal incômodo (...). Se ao Sr. puder responder-me digo que
desejo as vossas notícias. Agora receba da minha parte e de minha inteira
família as mais cordiais saudações e, ao mesmo tempo, me fará o prazer de
saudar toda a vossa família. Adeus, sou o vosso desventurado servo
Rosolem Roberto.
O meu endereço: Roberto Rosolem, América Brasile província di S. Paolo
Stazione Cordeiro in S. Teresa (FRANZINA, 2000, p. 61).
Para o Sr. Rosolem, portanto, importava mostrar que a adaptação na América não se podia
resolver sem a devida assistência médica, nem, por outro lado, seria possível o regresso à pátria
sem o trabalho. E para que o sujeito pudesse realizar isso, necessitaria das forças do seu corpo e,
conseqüentemente, da saúde. Daí se evidenciava a relação entre saúde e trabalho. Imediatamente
fundamental nesta perspectiva é ver que um dos pedidos que fazia ao patrão é de que ele se
ocupasse de pedir que as pessoas da comunidade rezassem fim de que Deus conservasse a saúde
deles. Tratava-se, assim, finalmente, de um reconhecimento muito próprio da experiência
religiosa destes camponeses: o fato de poderem contar não só com as próprias forças, mas de
serem sustentados por uma vida espiritual que lhes dava capacidade de suportar os fatores
externos adversos
127
. Neste nível, o que chama atenção na carta é exatamente esse alternar-se
contínuo da exterioridade e da interioridade. É algo de fora – o mundo visível, as circunstâncias e
as pessoas – que exigem uma contínua tomada de posição. Por sua vez, são as impressões
externas que recebo que solicitam uma atitude de avaliação; são elas que requerem reflexão e que
127
Stein (2003, p. 199. Já no livro Introduzione alla filosofia, há um trecho em que Stein (2001, p. 222), ao tratar
da vida psíquica e espiritual, menciona a confiança que o ser humano deposita no ser divino, que o faz supor e
acreditar que a vida tenha sentido. Vale a pena reproduzir o trecho todo, seja pela clareza e beleza, seja pelo fato
de nos parecer muito apropriado como comentário a toda esta carta do Sr. Rosolem. Ela diz: “O sentimento de
insegurança provado pelo ser humano em situações de desespero, quando o nosso intelecto não vê nenhuma via
de saída possível e quando sabemos que no mundo inteiro não existe ser humano que tenha a vontade ou o poder
de aconselhar-nos ou de ajudar-nos, é neste sentimento de insegurança que sentimos a existência de uma força
espiritual que nenhuma experiência externa nos ensina. Não sabemos o que vai acontecer conosco, e diante de
nós parece abrir-se um abismo e a vida nos arrasta para dentro inexoravelmente, e uma vez que nos empurra para
frente não tolera nenhum passo atrás, mas enquanto cremos de cair no abismo, nos sentimos nas mãos de Deus
que nos sustenta e não nos faz cair”.
169
fazem que eu decida por isso ou aquilo. Mas também, claro, que sou tocado no universo dos meus
sentimentos, sensações e emoções, tal como ficou explícito no exemplo anterior.
3.1.3 A Carta dos Residentes do Núcleo
Para compreender como se realiza ou como se constrói a história, isto é, a vida de um
povo, será preciso perguntar sobre as ações concretas dos indivíduos que são membros desse
povo. No caso de Cascalho, vemos emergir a consciência de pertença ao lugar, à medida que
seus membros agem de forma comum e, também, investem seus esforços na construção de um
destino que visa o bem não só particular, mas o de todos. Torna-se mais simples, talvez,
perceber essas dinâmicas neste exemplo particular de Cascalho, porque a maior parte dos
membros partilhava da mesma origem étnica e, ao imigrar, trouxeram das cidades e das vilas
da região de Treviso, na Itália, os costumes e os hábitos próprios que determinaram a maneira
pela a qual esse pequeno grupo estabeleceu-se no interior de São Paulo. O que é sobremaneira
revelador — nessa perspectiva de estudo das cartas dos imigrantes — é observar o apego e o
sentimento de pertença à cultura da pátria, mas, ao mesmo tempo, será esse pertencimento —
no sentido de reconhecimento do valor da experiência vivida — que facilitará o encontro com
a cultura diversa, além da inserção no novo contexto.
Nesse sentido, a auto-configuração pode ser descrita nos seus diferentes elementos e,
portanto, ela inclui, dentre outros: crescimento numérico, capacidade de ação física e espiritual e
ligações interiores entre os membros e progresso na vida de fé e nas habilidades práticas. Todos
esses elementos ajudam a considerar que a dimensão social pertence ao ser de cada pessoa. O ser
humano isolado não existe e, portanto, a sua inserção no universo comunitário possui diferentes
significados que por meio da análise fenomenológica podem ser evidenciados.
Qual o significado, por exemplo, da carta-petição endereçada ao Sr. Presidente da
Província de São Paulo, por parte das famílias residentes no núcleo, com as respectivas
assinaturas dos residentes? Vejamos, em primeiro lugar, o conteúdo do pedido:
170
Cascalho 10 de agosto de 1893
128
Os abaixo assignados residentes no Núcleo colonial do Cascalho, vem
representar a V. Ex.ª. no sentido de lhes ser facultada a necessária licença
para a construção de uma capella na praça da colônia, e um cemitério no
local que V. Ex.ª. for mandado designar e a construção d´uma escola. (...)
ponderamos a V. Exª. que este núcleo colonial, conta hoje não menos de
trezentos fogões, e que o número de seus habitantes se eleva a cerca de
mil almas, neccessitando para commodidade de todos da realização dos
melhoramentos que impetram, e que os habitantes do núcleo
comprometem a realizar por si
129
.
E se nossa pergunta era sobre o significado presente nessa solicitação dos habitantes
de Cascalho, este é o momento em que caberia mesmo especificar ainda mais de que modo ia
tomando forma – “auto-configurando”, como mencionou Stein – um estilo próprio, em termos
de usos e costumes que requeriam a construção dos lugares de significado segundo a herança
cultural recebida. O pedido é indicativo de que a vida comum tem início a partir das
disposições dos sujeitos e do dirigir-se a algo que tem particular relevância para o
desenvolvimento da própria comunidade. A igreja, a escola e o cemitério são símbolos por
excelência das necessidades fundamentais do ser humano. Todos eles são lugares para se
fazer memória
130
. Pelo movimento em torno da edificação do lugar onde eles mesmos moram,
os membros da comunidade demonstram o seu gosto pelo existir, o prazer em agir e, de fato,
128
Segundo Tamiazo (2005, p. 24): “(...) Paradoxalmente, 1893 é a data do fim de uma fase do Núcleo. Por
decreto de 30 de dezembro daquele ano, o governo do Estado emancipou o núcleo, isto é, retirou-se dele como
autoridade, interrompendo os recursos financeiros. Assim, de 1894 em diante, Cascalho passou a ser uma
população como outra qualquer, vinculada aos poderes locais e municipais”.
129
Arquivo do Estado de São Paulo, Manuscritos, doc. n° 641. Documento proveniente da Inspetoria de terras,
colonização e imigração do Estado. Por sua vez, a resposta ao pedido da população foi positiva com a
demarcação das terras para a construção da capela, da escola e do cemitério em documentos emitidos pela
Inspetoria de terras n°. 495 e 496 respectivamente de 30/10/1893 e 20/11/1893 (BOTTEON, 2005, p. 36-37).
130
Ricoeur fala que o agir ético em uma comunidade comporta três aspectos interdependentes: supõe o cuidado
consigo mesmo (ou estima de si); o desejo de viver bem com os outros (ou solicitude, amizade) dentro de
instituições justas. Este último aspecto, como será entendido por Ricoeur? Ele afirma que são todas as estruturas
do viver de uma comunidade histórica. É ação conjunta de uma comunidade, nas suas diversas esferas, que gera
obras que podem ultrapassar as gerações e servir para a constituição de uma história (RICOEUR, 1991, p. 211).
Assim é que, para Ricoeur (2003, p.62), como ele afirma no capítulo 1 de La memoria, la storia, l´oblio: “os
lugares permanecem como as inscrições, os monumentos, potencialmente os documentos, enquanto as
recordações transmitidas oralmente, só com a voz, voam como as palavras”, fazendo perceber, por conseguinte,
a possível parentela entre recordação e lugares, como uma espécie de ars memoriae. Erigir o templo, a escola,
etc., significa continuar a luta contra a tendência ao esquecimento.
171
só por meio da ação o ser humano se faz entender. Sem iniciativa
131
não há singularidade e,
sem ela, não seria possível compreender a cultura mais coletivista que existisse. Além disso,
essa carta é manifestação da vida interior desse povo porque nela eles assumem, em sua
totalidade, a responsabilidade pela edificação dos lugares em que se dará possivelmente o
progresso em termos de conhecimento e de fé e, com isso, não somente acentuam-se as
capacidades físicas para o trabalho, mas fica também evidente a preocupação em garantir a si
e às novas gerações a aquisição de valores. Não há dúvida, por exemplo, de que o processo
imigratório favoreceu, por sua vez, o desenvolvimento e o enriquecimento
132
da civilização
brasileira através do encontro entre as diversas culturas. A maneira como conceberam a
arquitetura da Igreja e da praça com o coreto não podia deixar de trazer as marcas, por
exemplo, da forma como viam as construções das igrejas do vêneto e, assim, contribuíam a
seu modo no processo de enriquecimento cultural.
3.2 A AUTO-CONSERVAÇÃO
Como ocorreu o processo de auto-conservação dos que emigraram para Cascalho? É
possível voltar a estes inícios e colher os dados que possibilitam perceber as diferenças entre a
ocupação da terra e a consolidação de um povo, a constituição de uma comunidade? Quais
documentos temos para poder ver a evolução e a constituição desta formação social?
Observando algumas etapas do desenvolvimento da colônia de Cascalho poderemos entender
131
Falar da iniciativa é tocar no tema da teoria da ação. Autores como Paul Ricoeur, Maurice Blondel e Hannah
Arendt convergem para uma mesma direção ao apresentar a dialética da ação entre voluntário e involuntário,
porque a iniciativa, o agir do ser humano, implica a contínua morte (sacrifício) ao fluxo de possibilidades
pensadas e exige, também, determinação. A iniciativa permite o acontecer do humano — este parece ser o fio de
ouro que liga o pensamento desses autores. Para Ricoeur (1986) — que explica a iniciativa como o presente
vivo; Para Arendt (1999) — a iniciativa é revelativa, pois, por meio de palavras e atos, nos inserimos no mundo
humano; Para Blondel (1996) — a iniciativa é uma necessidade e, ao mesmo tempo, aparece como obrigação, e
exigência para o eu.
132
Pontificio Consiglio della Pastorale per i migranti e gli itineranti, Erga migrantes caritas Christi, Città del
Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2004, p. 7-8.
172
como os processos de formação da identidade estão relacionados à mistura e à aculturação de
diversos povos estrangeiros
133
. Como o indivíduo possui uma vida interna e externa, assim
também a comunidade ou povo expressa sua vida mediante estes dois pólos. A natureza
popular que se imprime no inteiro estilo de vida da comunidade está em estreita ligação, ainda
que não seja inteiramente coincidente, com o tipo do povo (STEIN, 2000). Em Cascalho, por
exemplo, o tipo predominante são os imigrantes italianos que se compõem com outros tipos
que estavam já presentes no lugar: o tipo alemão, o brasileiro, o português etc.
3.2.1 Saber Cultivar a Terra
A este propósito é sugestivo observar os relatórios enviados pelos diretores dos
núcleos de imigração aos Inspetores provinciais, segundo era estabelecido por lei, porque
neles está configurado aquilo que pertence à essência da sociedade, principalmente pela forma
como vêm definidas as diversas atividades segundo a meta a ser alcançada pelos
indivíduos
134
. O diretor do núcleo colonial deveria, por exemplo, segundo carta do inspetor
João de Sá Albuquerque, de 26 de novembro de 1885, cuidar de estudar atentamente o
terreno, de examinar a diversidade e a natureza do solo de cada lote, de zelar pela conservação
das casas que poderiam ser utilizadas como residência provisória dos colonos, de ver os lotes
que não seria conveniente vender devido ao fato de estarem encravados nas matas e de anotar
as necessidades materiais da colônia
135
. No caso de Cascalho, temos uma síntese da carta -
relatório elaborado pelo diretor do núcleo datado de 24 de novembro de 1887, no qual se
133
Segundo Bernardi (1981) seria necessário olhar a forma como se relacionam determinados fatores – pessoa,
comunidade, ambiente e história local – com os elementos da sabedoria material e não material, junto com o
quadro de valores e necessidades (uma hierarquia de bens) a fim de que nesta convergência possa emergir aquilo
que é específico de uma determinada cultura.
134
Sobre esse ponto, Stein (1999) insiste dizendo que a vida do indivíduo com relação ao Estado e as formas de
sua organização não coincidem com sua inteira existência, é um pequeno fragmento daquilo que constitui a
finalidade da vida. O pressuposto essencial é que nos fundamentos de qualquer sociedade existe a forma
comunitária.
135
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0345, cx. 01, folhas 7 e 8.
173
encontram detalhes interessantes a respeito da terra e da população. A relação terra
136
– no
significado de ambiente – e povo realmente são determinantes porque pelas condições
externas oferecidas será possível ao sujeito desenvolver ou não as atividades segundo as
habilidades e potencialidades que possui
137
. Desse modo, aqueles que, originalmente, eram
lavradores adaptavam-se com mais facilidade. Em contrapartida, era mais difícil a adaptação
à terra por aqueles que antes exerciam profissões como: jornaleiro, carpinteiro, ferreiro
138
.
Segundo este diretor, apesar da criação do núcleo ter sido realizada em torno de 1885
e o número de colonos ser reduzido, ele considera que a povoação realmente veio acontecer a
partir do momento em que começava a sua gestão na direção, a saber: no dia 16 de setembro
de 1886. A lavoura principal da colônia compunha-se de cereais
139
. O relatório apontava,
outrossim, para a qualidade fértil do solo e das madeiras das matas. Diz, ainda, que alguns
colonos começaram o cultivo da uva e do centeio, além do café já encontrado nos seus lotes.
Sobre os colonos temos a seguinte informação:
Os colonos são, em geral, pacatos e laboriosos, de qualquer nacionalidade
que sejam, se eram lavradores em seu País são bons. Houve na colônia
apenas um acto de insubordinação praticada pelo dinamarquês Fredrik
Huidsen, que foi expulso do núcleo. Os dinamarquezes, sahirão em geral da
escoria das grandes cidades da Dinamarca – salvo excepção – portaram-se
136
Ao enfrentar as questões relacionadas à idéia de povo e sua formação histórica Stein toca em algo que diz
respeito à possibilidade do desenvolvimento do projeto e do destino do ser humano: é a questão da habitação. Ao
enfrentar tal problemática, Stein (2000, p. 200) afirma que para desenvolver a própria vida, o povo necessita de
um espaço de terra e completa: “Uma terra que não deve necessariamente ter confins fixos, nem ser sua
propriedade estável, mas que pelo menos por certo período deve ser sua propriedade para servir de morada e ser
utilizada para o trabalho”.
137
Stein (1993, p. 122) comenta sobre a possibilidade que existe de uma influência espiritual da natureza sobre
as pessoas pelo efeito causado pelo caráter da paisagem. A constituição física da paisagem pode exigir dos seus
habitantes o empenho máximo de suas forças para produzir o necessário e pode exercer uma função paralisante e
não permitir que as pessoas se organizem para o trabalho de modo adequado. Já para um conquistador audaz
pode ser que o trabalho se realize.
138
De fato, na relação dos imigrantes que chegaram ao núcleo em 3 de abril de 1887, na sua maioria provenientes
da Dinamarca e Suécia, o elenco das profissões é bastante diversificado. Temos poucos lavradores, alguns
criados, muitos ferreiros e fundidores, jornaleiros, caixeiros, pedreiros e carpinteiros. Por sua vez, se
comparamos este elenco das profissões com o dos imigrantes italianos vindos posteriormente, teremos um
quadro diverso no qual predomina a tradição de trabalhadores do campo.
139
O relatório enviado dos gêneros colhidos pelos colonos do Núcleo de Cascalho de setembro de 1886 a
setembro de 1887 apresenta a lista de produtividade dos respectivos proprietários. A soma total de 8 produtores
foi a seguinte: 3.600 litros de arroz; 4,700 litros de feijão, 65.450 litros de milho, 1.400 litros de batata; 1000
litros de batata doce; 3.250 litros de mandioca, 12 litros de abóbora. (Arquivo do Estado, doc. 0 345, cx. 02,
folha 8).
174
muito mal a princípio, estragaram muita madeira, telhas e tijolos, lançando
mão de tudo quanto lhes convinha. Estabeleci uma guarda na colônia e desde
que ela começou a funcionar diminuiu consideravelmente o desaparecimento
de madeiras e outros materiais, que pouco já eram
140
.
É verdade que o juízo do respectivo diretor, necessariamente fundado e legitimado
a partir da ideologia da Província – está indicando uma determinada visão com relação ao
trabalhador estrangeiro: a de que o braço adequado para o sistema das colônias é o camponês
e não o homem da cidade, porque este último era mais vulnerável à insubordinação e a
reivindicações do que o laborioso e pacato lavrador proveniente das culturas rurais. De fato,
os primeiros habitantes da colônia serão, na sua maioria, dinamarqueses que tinham pouca
experiência na lavoura; possuíam certa instrução e exerciam atividades profissionais em
outras áreas. Nesse contexto, observa-se que a maior parte deles abandonou o núcleo sem, ao
menos, ter completado um ano de trabalho nas terras – das quais possuíam título provisório
por 4 anos
141
. Permaneceram alguns imigrantes lavradores provenientes da Áustria como as
famílias Hubner, Luke, Hildebrand, assim como os primeiros italianos vênetos provenientes
da região de Serravalle
142
. A justificativa do administrador do núcleo mostra esta
incompatibilidade com os trabalhos:
Núcleo Colonial do Cascalho, 8 de abril de 1887
Exmo. Sr. Presidente da Província,
Tenho a honra de passar as mãos de V. Exª as relações, uma dos lotes rurais
deste Núcleo e outra dos immigrantes chegados a 3 do corrente. Cumpre-me
participar que, dos recém-chegados um não retirou-se hoje do Núcleo por
haver perdido o trem. Foram distribuídos 28 lotes as famílias e grupos de
homens solteiros. Da respectiva relação V. Exª verá que a máxima parte se
retirará por exercer profissão que não se dá bem com a cultura da terra
143
.
Quando os colonos chegavam ao núcleo, eram-lhes dados mantimentos por oito dias.
Além disso, eram fornecidas sementes para que pudessem realizar as primeiras plantações.
140
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0345, cx. 05.
141
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0345, cx. 05, f. 9s.
142
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0345, cx. 05,f.10ss.
143
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0345, cx. 05.
175
Nota-se, portanto, por meio destas cartas-relatórios, que a preocupação era centrada na
produção material para as necessidades fundamentais e para a pequena organização de um
excedente produtivo para o comércio. O diretor, na continuação da carta, esclarece as
preocupações referentes aos cuidados com a saúde da população:
O estado sanitário da colônia é bom e o clima é superior. Tem fallecido
algumas creanças, que chegaram doentes ao núcleo, outras por micuria dos
paes. Falleceram também dois adultos. Os enfermos tem sido medicados
pelo pratico Alexandre Pacheco de Souza Guimarães, estabelecido com
pharmacia em Cordeiro. Para alguns casos graves foi chamado médico. Os
colonos são, geralmente, tão pobres que tomei a resolução de tratar dos
enfermos e fazer enterrar os mortos por conta do governo
144
.
O maior problema apontado pelos imigrantes, do qual ressentiam profundamente, era a
ausência da assistência médica e a alta taxa de mortalidade das crianças. Desse modo, pode-se
salientar uma diferença no que acontecia nas fazendas, sobretudo naquelas mais isoladas, que
sofriam ainda mais a carência de médicos e farmacêuticos por encontrarem-se distantes dos
centros urbanos e nenhuma assistência como poderiam ter os que viviam nos núcleos do
governo.
Já assinalamos que, para o estudo do fenômeno imigratório na colônia de Cascalho,
será preciso considerar a força dos fragmentos ou dos indícios documentais na sua
convergência, pois a questão que se coloca, do ponto de vista teórico, refere-se ao peso
indicativo daquilo que emerge no âmbito local na constituição desse grande afresco, isto é:
não podemos perder a chance de mostrar a efetividade humana universal desses pequenos
relatos. Não podemos ignorar, entretanto, que, se existe certa sensibilidade camponesa vêneta
(ou do chamado homem simples
145
) na abordagem de todas as questões fundamentais do
144
Arquivo do Estado de São Paulo, doc. 0345, cx. 02, f. 4.
145
A noção de homem simples, empregada por Stein (1983, p.630) quando discute a relação do intelectual com o
mundo do homem comum, parece ilustrar perfeitamente o tipo de sensibilidade à qual nos referimos quando
pensamos nesses camponeses. E assim escreve: “O homem simples é aquele que deduz em nível interior o valor
e o significado daquilo que é e acontece ao seu redor e dentro dele. No homem simples as comoções internas e as
suas eventuais expressões constituem realmente a verdadeira e própria vida”.
176
mundo
146
da vida, e na maneira de se posicionar ao encarar a solução dada aos problemas, tal
sensibilidade deve também manter sua continuidade nos testemunhos que aparecem num
âmbito mais restrito por se tratar de sujeitos provenientes da mesma cultura. Por outro lado,
será necessário manter o olhar para o conjunto da experiência dos imigrantes nas colônias da
Província de São Paulo para captar os fatores de unidade e de compacidade interior da cultura
(italiana; vêneta) e sua correspondente relação com as formas de expressão de tal povo no
novo ambiente de destino.
A este propósito, na página que resta de um velho caderno, no qual em poucas linhas,
o imigrante Sr. Batistella revelava o desejo de contar a história aos seus filhos, de deixar um
registro sobre a saga da sua família:
Vieram 44 pessoas. Estas as datas que a família Baptistella veio da Itália
para o Brazil, chegaram no Rio de Janeiro dia 18 de setembro de 1888. No
dia seguinte chegaram na fazenda Santa Cruz. Ficaram na fazenda dois anos.
No dia 15 de setembro de 1890 dividiram-se: 24 pessoas vieram em
Cascalho, 20 pessoas foram para Lorena. Dois anos depois vieram o
Mansueto e Sebastião Baptistella
147
.
Podemos notar, em primeiro lugar, que não há uma preocupação pelos pormenores e
junto com ela uma descrição de todos os membros da família e dos acontecimentos. Existe
sim objetividade que exige ser compreendida na sua essência. Três pontos parecem
importantes: 1) informa que um significativo número de pessoas da mesma família veio da
Itália; 2) aponta as migrações internas realizadas dentro do território do interior paulista: o
trabalho nas fazendas por um tempo e, depois, a divisão do grupo familiar entre as colônias de
Cascalho e Lorena; 3) e, por fim, mostra o número de pessoas e a data dos principais
acontecimentos.
146
Importante observar que a expressão ‘mundo’ na perspectiva fenomenológica, conforme nos adverte Bello
(1998, p. 38), consiste não só “no conjunto de coisas físicas, mas é constituído por toda a bagagem de
experiências vivenciais que cada ser humano possui e compartilha com o grupo ao qual pertence”.
147
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC 20 – 07.
177
Ressaltamos, em segundo lugar, que este último ponto referente à datação dos fatos
serve para indicar que há uma intrínseca conexão entre a situação objetiva e aquela subjetiva.
Quer dizer, a julgar por aí, é o próprio calendário, a datação, que teria de ser entendida como a
ponte que fornece ao sujeito condições de lembrar os eventos significativos de sua história
pessoal. Por meio da data, o leitor pode-se situar na vastidão do horizonte histórico. As duas
datas fixadas pelo sujeito nesta folhinha de papel mostram o tempo na sua origem, isto é, o
tempo com seu valor fundamental. São dois momentos de referência para a compreensão da
história de sua família: no dia 18 de setembro de 1888, no porto do Rio, chegavam ao Brasil
ele e sua família para iniciar algo novo. Assim, também, a data de 15 de setembro de 1890
marca a separação do grupo familiar entre Cascalho e Lorena para uma nova etapa de
construção da vida.
É da década de 1910 uma carta recebida por Mansueto Batisttela, esposo de Rosa
Gava, cujo original foi conservado pelos parentes, que nos dá a chance de ver invertida a
perspectiva da comunicabilidade. Uma carta proveniente da cidade natal — as emoções
suscitadas no estrangeiro/imigrante que a recebeu podem ser por nós aqui apenas inferidas de
maneira analógica. De qualquer forma, segundo Stein (2001), a via de acesso que cada ser
humano tem, enquanto indivíduo psicofísico, para conhecer a vida espiritual de outros
indivíduos dá-se pela mediação da corporeidade do ser vivente que, com ações e palavras, se
comunicam. Contudo, é verdade que posso conhecer e ter acesso a outros por meio daquilo
que foi transmitido e pelas obras que eles deixaram, das quais o ser humano tem uma
percepção sensível. A carta que lemos agora do Sr. Francisco Gava a seus parentes de
Cascalho representa uma dessas marcas do passado, que por meio da expressão escrita, nos
chega por intermédio daqueles que a conservaram:
Bibano, 23 de agosto de 1911.
Caro cunhado
Depois de um longo silêncio que chegamos a não ter nenhuma notícia da tua
pessoa, agora através do meu tio, Tiago, recebi uma mensagem que você
178
gostaria de saber como se encontram nossos irmãos. Agora te explico:
Francisco e Ângelo, nós nos encontramos aqui na velha família. João está
fora, está nas terras de Antonio Pianca, e já faz quatro anos que saiu aqui da
família. Agora nós nos encontramos todos com boa saúde e toda a nossa
família. Digo-te que a minha mãe morreu no dia 10 de janeiro. Eu não te dei
nenhuma notícia de nós aqui porque das tuas mãos não recebi nenhum
escrito, por isto nunca me ocupei de escrever-te. Mas se você me mandar as
tuas notícias você vai ver que não deixarei de responder-te. Termino este
meu escrito desejando as mais cordiais saudações a você e a todos os nossos
sobrinhos. Quanto aos nossos campos de terra vão indo muito bem.
Esperamos uma abundância divina de tudo aquilo que se encontra na terra
tanto para mim como também para o meu irmão João. Não tenho outras
coisas pra dizer, a não ser saúdá-lo. Adeus! Adeus! E digo ser o teu
afeiçoado cunhado.
Francisco Gava (BATTISTELLA, 2004, p. 294).
É oportuno refletir sobre o entrelaçamento do mundo das experiências vividas pela
família Gava/Batistella na Itália e dessas famílias, aqui, no Brasil. Temos a possibilidade de
ver isso por meio das notícias oferecidas que têm um fundo comum: a experiência nos campos
de terra por meio da produção que tanto em Cascalho quanto em Bibano são abundantes e,
além disso, da necessidade que a família tem de realizar o êxodo na busca de trabalho,
rompendo a unidade da “velha família”, tal como tinha ocorrido com os familiares aqui, no
Brasil, quando os dois grupos se separam. Outro ponto ainda mais importante parece ser “o
longo silêncio” a que acena o Sr. Francisco, logo no início de sua missiva, ao explicar que tal
atitude é por causa da falta de reciprocidade na comunicação. Por essa razão, a fim de que não
se percam os contatos, o remetente propõe: ‘se você me mandar as tuas notícias você vai ver
que não deixarei de responder-te’. Esta troca de notícias, na estrutura de convivência familiar,
revela atos nos quais um sujeito está diante do outro, por isso, receptivo aos influxos
provenientes de tal relação como os sentimentos, as avaliações morais e os juízos.
3.2.2 A Expressão Lingüística
Já a carta seguinte é da década de 1920. Foi escrita por Ângela Sanson, casada com
João Rosolem. Ela escrevia aos pais. Sua família, os pais e três irmãos casados, depois de um
179
período de mais de 20 anos vividos em Cascalho, resolve voltar para a Itália, num grupo
composto por 18 pessoas, enquanto Ângela e suas irmãs permanecem no Brasil, pois já
estavam casadas. Aqui se entrevê um dos problemas que as famílias, que estavam no núcleo,
tinham de enfrentar: à medida que o grupo familiar ia se configurando mediante o
crescimento numérico, não era possível o sustento econômico de todos a partir da pequena
propriedade agrícola, então, a alternativa era migrar. A missiva foi conservada pelos
familiares italianos e foi o documento que desencadeou o interesse deles em buscar os
parentes e em conhecer a localidade chamada ‘Cascalho’, transmitida a eles pelas recordações
dos avós que por tantos anos tinham vivido no Brasil:
[...] ma io sono restata despiacenta perche ela cambia per Rio Preto, son
lungi un dia di ferovia. Ma io vo trovarla perche tenho só ela che io posso
consolarmi con ela de mio parente. Ma nois andiamo forti. Io con mio
marito: forti e gordi che se ne vedete restati incantati. Che il nostro lavoro de
paradaia davanti la chiesa de Cascalho. Inda esiste quelo padre quando che
aresi voi altri qui. Mio cunhato Paulo Sonego la setemana Santa le venho sto
a trovarmi con la figlia. Ele mi dise che tem a photografia de 6 nipote ma io
non tenho, ma io gli ho visto na casa de mia sorella Luisa. Io tô pedindo che
mi scrivi con che si comportate e quanti che siete in casa in tutto e mi fare il
piacere di farmi sapere de mi Regina Fachin e farmi sapere dele miei da
Itaglia chome si le mie zie comportano ela Guiglhio, Angela, e mio zio
Angelo Bue. Altro non mi restano salutarvi giunto col mio marito a una
streta mano e un bacio a mio padre e fratelli cunhate e nipoti e nipote.Adio
Adio. Una pronta risposta.E mi firmo, vostra figlia
Angela Sanson Rosolem
Io spero di a salutare questa persona de buon quore che sono mio amico e
amica: Giacomo Pagot e Rosa Pagot
148
.
A originalidade dessa narrativa encontra-se, em primeiro lugar, no aspecto da
expressão lingüística
149
. Temos materialmente, diante dos olhos, a possibilidade de perceber
as influências entre o vêneto e o português. Outros aspectos pertinentes a serem sublinhados
são os seguintes: 1) Não temos aqui simplesmente a vivência do indivíduo, pois a
comunicação contempla a experiência que o indivíduo vive dentro de um determinado
148
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC 20 – 10.
149
A relação entre língua e imigração é um dos temas que tem sido objeto de estudo e pesquisa nos últimos
quinze anos na sociologia da linguaguem. Os estudiosos têm particular interesse pelos testemunhos escritos,
levando em consideração as histórias de vida e as cartas familiares (MALGARINI; VIGNUZZI, 2003)
180
horizonte social; 2) Por isso, menciona a necessidade que tem de visitar a irmã que também
teve de migrar para Rio Preto e diz ser o único dos seus parentes com o qual pode consolar-se;
3) Faz menção aos trabalhos na padaria, isto é, o pequeno comércio que a família mantém na
colônia diante da igreja de Cascalho; 4) Recorda o padre Luis Stefanello que era conhecido
dos familiares que voltaram à Itália; 5) A carta termina com três pedidos: a) que os pais e
parentes na Itália não deixem de mantê-la informada sobre como se comportam; b) quer saber
de uma amiga chamada Regina Fachin, dos tios e manda saudações aos amigos da família
Pagot; c) pede que os parentes não demorem em responder seus pedidos e se despede.
3.2.3 Manter a Memória do Outro
Da mesma época temos duas correspondências enviadas da Itália por membros da
família Sonego. Esta família tinha relações de parentesco com a Sra. Ângela Sanson Rosolem,
que escreveu a carta vista anteriormente. As cartas foram enviadas de Orsago (Treviso- Itália)
por Antonio Sonego ao irmão Hermenegildo que habitava os arredores de Cascalho. No
trecho seguinte impressiona a forma como os parentes mantêm os elos, as raízes, apesar dos
inconvenientes e da interrupção da comunicação em tempos de guerra. Viver enraizado
significa manter a memória do outro:
Orsago 27 de julho de 1926.
[...] Caro irmão, saiba que eu te escrevi, mas se vê que o teu endereço não
era o mesmo deste que você me enviou. Sempre nós temos você na
memória, para nós é uma consolação ter as tuas noticias, e ficamos
dolorosamente sentidos pela morte de nosso irmão Valentino, e você me diz
que os seus filhos encontram-se perto de você e eles estão se arranjando
bastante bem, não é? Depois, sobre a morte do nosso irmão José nós ficamos
sabendo depois da guerra. E a respeito da guerra: ela já cessou, mas foi a
nossa desgraça porque tivemos de escapar, abandonar tudo para que
pudéssemos salvar a vida e perdemos tudo
150
.
150
Arquivo da Paróquia “San Martino”, Cx. S1.
181
O primeiro elemento refere-se ao risco das cartas se perderem devido ao constante
deslocamento dos indivíduos. As pessoas migravam de uma fazenda para outra, ou de colônia
do governo para aquelas privadas e das colônias rurais para a cidade. E foi exatamente este o
problema apontado pelo Sr. Sonego no início da missiva: ele não recebia mais as respostas do
irmão porque este não lhe havia comunicado a mudança de endereço. Um segundo aspecto é
quanto às vivências: o Sr. Sonego diz que as cartas com as notícias do irmão são uma
consolação e que este vive na sua memória. Poderíamos perguntar, então, qual o valor da
carta neste caso? Por este meio, se mantêm os vínculos originários – pais, irmãos - e a partilha
dos acontecimentos dramáticos – sobretudo os referentes à guerra – ocorridos na pátria. Um
pouco mais além, nessa mesma carta, no trecho seguinte, o Sr. Sonego frisa ainda mais os
aspectos afetivos, humanos, centrados no relacionamento com o outro. Vemos que a carta não
é apenas o espaço narrativo informativo, mas é o espaço humanizado – que faz ver que nascer
em uma família não implica apenas uma rede de relações (CAVALLARO, 2002), mas
principalmente a relação do indivíduo e sua família tornam-se abertura a totalidade da
realidade:
Você deseja saber se ainda continuo trabalhando ou se estou já aposentado,
não é? Eu, caro irmão, encontro-me aposentado já faz 5 anos, mas nos dão
uma aposentadoria muito pequena que dá para viver regularmente porque os
alimentos são muito caros, e por outro lado, não temos o que ajuntar para
fazer frente ao aluguel, então nos encontramos aqui em Orsago, nossa cidade
natal e justo agora que teríamos necessidade de sustento nos falta todos os
meios. Mas você faz falta também. Nos encontramos aqui unidos com a
Celeste e seu marido. A Celeste manda saudações a você. Caro irmão desejo
saber como todos estão, e espero que estejam bem, é isso que nós desejamos.
Outra coisa não tenho a dizer, e nós vos mandamos tantas saudações e beijos
a todos. Quem assina é o teu irmão e cunhada. Tendo as tuas notícias as
lágrimas me molham o papel. Tantas saudações a Bernardo Altinier. Saiba
que a minha idade é de 69 anos e 65 a minha mulher. Faça-me o favor de
saudar nossa cunhada e seu filho Augusto desejando saúde e sorte a todos. A
respeito de minha cunhada Jeovana faz um ano que não sabemos nada, se
você pode ver os seus filhos para que dêem o endereço dela pois tanto a
minha mulher quanto a Celeste desejam saber dela. Saudações a todos.
Recorde do teu irmão depois de tantos anos de ausência e de novo saudações
e beijos a todos. Adeus
151
.
151
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. S1.
182
A outra carta é escrita em dezembro do mesmo ano. Elas demonstram que o
intercâmbio entre os familiares foi possível ser retomado alguns anos depois da desoladora
experiência da guerra. Não deixa de ser interessante notar que na carta revelam-se as
peculiaridades do remetente:
Orsago, 3 de dezembro de 1926
Caro irmão e cunhada,
Respondo a tua carta que com muita consolação recebemos, ficamos felizes
ao ouvir que todos gozam de boa saúde, assim também sobre a cunhada
Augusta e os seus filhos. Assim também eu posso assegurar o mesmo
também de nós dois aqui. Caro irmão, entendemos as tuas condições de
família, você disse que houve uma queda no café e que todos os produtos
que chegam da Europa são caríssimos, eu acredito porque também aqui
temos os produtos muito caros que é preciso viver economizando muito para
poder viver. Tudo é caro. O café nós pagamos 33 liras o quilo, aquele porto
rico que é o melhor. (...)
Te envio a minha foto e te digo que não saíram muito bem, como sou in
persona
152
.
O intercâmbio epistolar sugere a tarefa a que se impuseram os autores de lá e os de cá
do Atlântico de mapear a própria condição humana. Enviando junto com as cartas, às vezes,
impressos de jornal, fotografias e postais, manifestam o universo cotidiano marcado por
afeições, saudades e recordações. No final da carta, o Sr. Sonego dizia ao irmão: “- envio-te a
minha foto e te digo que não saiu tão bem, como sou in persona”. Realmente a foto é bem
diferente de um encontro vis-a-vis. Ela aparece apenas como a expressão dos traços externos
da pessoa. Ao lado deste aspecto, diríamos hylético, encontra-se a perspectiva noética da
fotografia, isto é, o significado que está ali. E quem descobre o significado são aqueles para os
quais o retrato foi enviado, com a finalidade de trazer, por meio da imagem a presença do
outro do qual se sente nostalgia
153
. Neste sentido, a foto é também uma escritura.
152
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. S1.
153
Há um estudo sobre a imigração feito por Mellina (1987) no qual o autor faz uma analise fenomenológica da
nostalgia. Descreve a nostalgia como um fenômeno de primeira ordem na vida interior. A nostalgia vem
apresentada por ele como uma fronteira entre presença e ausência e, por sua característica antinômica, ela faz
emergir o sentimento da esperança.
183
3.3 A AUTO–EXPRESSÃO
Constatamos que estes colonos empenham-se nos diversos núcleos e fazendas, em
requerer junto às autoridades um espaço para a edificação de lugares de culto. Faz parte da
auto- expressão do povo o empenho pela dimensão religiosa. Segundo Bello (1998), a
experiência religiosa ocupa o lugar central para todas as culturas
154
.
3.3.1 A Expressão Religiosa
À luz destas considerações é, possível, então, perceber que, propondo os relatos dos
sacerdotes que assistiram os colonos e que na comunidade exerceram uma liderança,
estaremos de algum modo tocando na auto-percepção deles a respeito do trabalho que
estavam realizando e, ao mesmo tempo, na concepção que tinham dos usos e costumes da
vida dos camponeses de Cascalho. Não podemos esquecer, obviamente, que eles também
eram imigrantes e a maior parte deles provenientes de grupos familiares de zonas rurais.
Uma das primeiras informações a este respeito, por exemplo, da colônia de Cascalho é
a da carta-relatório, enviada pelo Pe. Pedro Dotto à Itália, no dia 1 de março de 1904, na qual
descreve ao bispo Scalabrini as características da população à qual assiste a Congregação:
Neste momento recebi com grande prazer a tão desejada carta de Vossa
Excelência, e a considerarei sempre, como uma cara memória, sendo o
primeiro seu escrito dirigido diretamente a mim, na qual reconheço um
verdadeiro pai que fala ao meu coração. Não sei se o padre Faustino tenha
comunicado a Vossa Excelência a meu respeito, isto é, que se determinou,
de acordo com o Vigário de transferir-me a Cascalho.
Esta população não é grande, nem rica, mas de muito bom coração. Na
maioria são italianos vênetos. Há uma colônia portuguesa e alguns
brasileiros. Já faz cerca de quatro anos que conheço este lugar, e no ano
passado estive aqui provisoriamente como cura durante dois meses.
Devendo agora ser removido o outro cura por razões particulares, a
população fez todo o esforço junto ao padre Faustino por ter-me de novo, e
assim foi. (...) Ficando aqui, um ano ou mais, gostaria de fazer um passeio
na Itália e chegar diante de Vossa Rev. para prestar contas de tudo
155
.
154
Bello afirma: “A comparação com as outras culturas serve para confirmar a centralidade do momento
religioso, principalmente quando é realizada com uma atitude refletida, tal como justamente é realizada a
investigação fenomenológica que sabe captar as estruturas dos fenômenos culturais” (1998, p. 148).
155
Arquivo Geral da Congregação Escalabriniana, Roma, doc. 403.
184
Segundo podemos observar por esta descrição, a unidade da pequena comunidade é
evidenciada pelo esforço comum por obter não só o espaço para o culto como vimos, mas a
presença dos sacerdotes, não só temporária mas permanente. Os colonos estavam ligados à
figura do sacerdote (MERLOTTI, 1979) e ressentiam pela carência deles na América
156
.
Em carta de 14 de setembro, Padre Dotto comunica ao seu amigo padre Antonio Demo
sobre os efeitos que a visita do bispo Scalabrini causou na população e sobre as impressões
deste a respeito da visita a Cascalho:
No mês passado tive a preciosa visita de Dom Scalabrini, nosso superior
geral e fundador, o qual ficou muito edificado pelo acolhimento, e concurso
do povo, e despertou também muito entusiasmo por sua afabilidade e
doçura. Pode-se dizer que aqui tenha tido a melhor impressão de todo o
Estado de São Paulo, pois deve saber que no Brasil reina um forte
jacobinismo, e portanto, há pouco interesse pelo estrangeiro. S. Excia.
também disse em público e em particular que parecia estar numa paróquia da
Itália
157
.
Importante essa sensação de “estar em casa”, como se fosse uma paróquia da Itália. Isto
aponta para um dos objetivos dos Missionários Escalabrinianos de reproduzir na nova terra as
condições do ambiente de origem a fim de garantir o processo de consolidação da imigração. O
que nos informa Pe. Dotto, a partir da visita de Dom Scalabrini a Cascalho, é que, para o povo,
esta presença trouxe vigor novo. Já ressaltamos que a originalidade do compromisso que eles
tinham era de manter viva nos imigrantes a consciência de povo, por meio da vivência da fé e da
conservação de todas as dimensões que compreendiam o ser humano. Nos estatutos desta
Congregação religiosa, cuja origem está ligada à comoção diante dessas massas de italianos que
156
Nas cartas, os imigrantes mencionam aos seus correspondentes as dificuldades encontradas nas fazendas em
que ressentiam a falta de médicos, sacerdotes e de ambientes para o convívio social: “é necessário refletir pois
assim que se chega o imigrante é mandado a uma fazenda. Digo-lhe que na fazenda não se encontram nem
igrejas, nem sacerdotes, nem bar, nem mercado algum.Lá em caso de alguém ficar doente não se pode encontrar
nem pão, nem médico e nem medicamentos”. Em outra, aparece o conteúdo do desejo: em uma delas o retorno à
pátria: “E se o altíssimo Deus me ajudar, passando um pouco de anos, vou voltar para minha cara pátria, pois
desejo voltar onde existem os costumes da religião católica; pois aqui se vai à missa raras vezes porque a estrada
é muito ruim e longa” (FRANZINA, 2000, p. 147).
157
No livro do Tombo da Paróquia de Cascalho, encontramos as anotações do próprio Scalabrini, o qual deixa
registrado a seguinte mensagem: “Fui acolhido com sinais de vivíssima alegria por esta colônia de Italianos de
Cascalho, que eu agradeço novamente e da qual não me esquecerei nunca. No dia seguinte celebrei a Santa
Missa, implorando de Deus, abundancia de graças e bênçãos sobre todas as famílias: Adeus, irmãos, nos vemos
no Paraíso” (Livro do Tombo, p. 8).
185
abandonavam a pátria
158
, está prevista a assistência não só religiosa aos imigrantes, mas a busca
do seu bem-estar moral, social e econômico
159
. De uma maneira geral, as análises dos dados vão
mostrando que a questão desta consciência de pertença não passa apenas pela relação entre os dois
continentes, mas pela capacidade de criar no ambiente do País de destino os fatores da vida
cultural que pudessem servir de sustento para o grupo social. Hoje, sobretudo, corre-se o risco de
esquecer, nas inúmeras pesquisas sobre a Imigração, a necessária pontualização que explique
como os italianos conseguiram sobreviver no exterior. Certamente, uma das respostas é que
alguém em concreto não os tinha deixado sozinhos, demonstrando a coragem de tutelar os seus
direitos e procurando manter os elos de contato com as raízes culturais do País do qual partiram.
Um dos elementos fundamentais e necessários para a existência do povo é que dentre os seus
membros tenha alguém – ou um grupo de pessoas – que mantenha viva a consciência de pertencer
a um horizonte universal, aberto e, além disso, conforme ensina Stein (2000, p. 201) que “estes
indivíduos conscientes influenciem a ação dos outros (...) e que em última análise aqueles que não
vivem conscientes como membros da totalidade venham tocados por estas ações”.
Em carta de 27 de abril de 1908, enviada ao Geral da Congregação, o padre Dotto fala
do envio de remessas, faz requerimento de objetos que faltavam para o culto e pede o envio
de uma imagem de Santa Luzia para a Igreja:
(...) Neste espaço de tempo estou recolhendo diversas contribuições desta
população, para uma ajuda, por isso para o último mês de maio prometo-lhe de
expedir pela mediação do Pe. Faustino 2000 liras italianas para a casa mãe, mais
1300 liras para os objetos que já tinha pedido. A lista contém: um turíbulo de
metal branco e 8 candelabros, também estes de metal branco, de
aproximadamente 65 centímetros para poder sustentar velas de 4 centímetros de
158
João Batista Scalabrini, o fundador desta obra, refere-se a esta comoção diante dos compatriotas partindo para
a América, nas páginas 43 ss do seu A Emigração Italiana na América. Importante aí é a experiência da
entropatia relatada e que desencadeia posteriormente uma obra em favor do outro. Assim, Scalabrini começa a
contar dos sentimentos que o deixaram profundamente marcado: “Em Milão, há vários anos, assisti a uma cena
que me deixou na alma um sentimento de profunda tristeza. Passando pela estação, vi o salão, os pórticos laterais
e a praça vizinha tomados por trezentas ou quatrocentas pessoas mal vestidas, divididas em diversos grupos. (...)
Eram anciãos curvados pelas fadigas, homens na flor da idade; senhoras que arrastavam os filhinhos atrás de si,
meninos e meninas, todos irmanados por um só pensamento e guiados por uma única meta. Eram imigrantes”.
159
Para perceber ainda as dimensões das preocupações causadas pelo fenômeno migratório italiano nos finais do
século XIX, seria interessante estudar a expansão das Congregações religiosas entre os imigrantes e suas
respectivas contribuições, assim como os documentos da Santa Sé nas causas pro Emigratis Catholicis.
186
diâmetro. Mais 8 candelabros menores do mesmo metal, isto é, de 40 centímetros
aproximadamente. A píxide da qual me fala seja até menor, para conter mais ou
menos 200 partículas, mas que seja com o copo de argento. O cálice seja melhor,
isto é, com um custo de 70 liras aproximadamente. Quanto a estátua de Santa
Luzia é justa a consideração de Vossa Paternidade, e era exatamente por isso que
eu desejava que fosse de madeira, mas se não é possível é melhor encomendá-la, e
sendo pequena – com só 60 centímetros – espero que não aconteça nenhum
inconveniente que possa quebrar a imagem. Desejo que estas coisas possam ser
trazidas pela vossa Paternidade quando vier ao Brasil, ou através de qualquer
outro dos nossos missionários por que assim podem cuidar melhor [...]
160
.
Apesar de longa e cheia de detalhes, esta carta pode ser analisada do ponto de vista das
formas expressivas. Na dimensão do sagrado, os objetos, segundo a sua função, tornam-se
símbolos (LEEUW, 1975). Os objetos pedidos para a celebração litúrgica, comprados com a
contribuição dos membros da comunidade, expressam a dimensão hilética. Tal dimensão vem
falar desta materialidade que afeta a sensibilidade do ser humano, e que ajuda a configurar o
culto. Por isso, as indicações dadas para que os turíbulos sejam de metal, para que a píxide
tenha o copo de argento e para que a imagem seja de madeira – para que não se quebre na
viagem – são preocupações com o significado que este material tem para o culto cristão. Há
uma exigência no sentido de que os objetos sejam duráveis, belos e dignos, tal como aparece
nas entrelinhas da carta. Mas qual o significado destas exigências? É que no registro do
sagrado, os objetos apontam para o sentido de beleza e estabilidade (SAFRA, 2006).
3.3.2 As Celebrações e os Relatos
O movimento das famílias, na colônia Cascalho, a partir das celebrações do centenário da
imigração no bairro organizadas por membros da paróquia a partir do ano de 1993, foi fator
desencadeante de vivências comunitárias em que o foco de interesse era o resgate das origens.
Tudo estava ligado ao fato de pensar nos antigos moradores provenientes da Itália e, desse
modo, ajudar as diversas gerações a tomar consciência dessa pertença e, ao mesmo tempo,
dessa história. Isso tudo pode ficar mais evidente quando se acompanha os relatos feitos
pelos descendentes aos intermediários que os ajudaram nas pesquisas:
160
Arquivo Geral da Congregação Escalabriniana, Roma, doc. 403
187
Campinas, 21 de novembro de 1994
Caro vigário
(...) Foi ontem a primeira confraternização da Família Della Coletta em
Cascalho, terra que os acolheu há 100 anos atrás. Foi celebrada a missa,
depois almoço típico com músicas italianas, apresentação da árvore
genealógica e um livro com a história da família. No encontro havia em
torno de 900 pessoas (...). A história foi pesquisada por nós (...)
Agradecemos por tudo o que o senhor nos fez, na ajuda da história dos Della
Coletta (e anteriormente dos Campo dall’Orto)
161
.
O apego dos indivíduos singulares pela pátria ou pelas pequenas narrativas familiares não
chega a ter efeitos diretamente sobre a comunidade, porém, serve de estímulos para outros
(BELLO, 2003); é o que fica claro, a propósito do exame das vivências dos membros da
comunidade, em relatos nos quais aparecem os sentimentos e os comportamentos dos sujeitos ao
redescobrirem a trajetória dos imigrantes. Há ainda a dimensão objetiva que coopera com a força
proveniente dos sujeitos, ou seja: a comunidade na qual estão inseridos oferece condições
objetivas e motivos que influenciam os sentimentos vitais dos indivíduos para a busca. A própria
Stein, por exemplo, foi estimulada, diante da luta contra o judaísmo na Alemanha, a narrar as suas
experiências de humanidade no interior de uma família de hebreus
162
. Algo semelhante pode
acontecer quando uma comunidade atual passa a interessar-se e a refletir sobre os fatos que
marcaram a vida dos seus antigos habitantes, sobretudo, quando eles remetem-na a um horizonte
maior, tal como em uma comunidade formada por descendentes de imigrantes.
O conhecimento proveniente das aulas de história por meio do ensinamento ocasional e
sistemático sobre os povos, a formação do povo brasileiro ou da cidade de origem, por vezes,
torna-se distantes da experiência das pessoas. Porém, a mudança ocorre na medida em que os
indivíduos percebem o valor do pequeno relato familiar na composição do mosaico da vida da
comunidade em que se inserem. Quanto a este particular, Stein (2000, p. 211), que, nos seus
escritos, mostra com orgulho sua pertença ao povo alemão e ao povo hebreu, afirma:
161
Arquivo Paroquial de “San Martino”, Cx. D3, Família Della Coletta.
162
No prólogo do escrito autobiográfico Stein (1973, p. 17) salienta as razões e estímulos: “Nestes meses pensei
constantemente sobre uma conversa que tive há alguns anos com um sacerdote e religioso. Naquela conversa ele
me sugeriu escrever aquilo que eu, como filha de uma família hebréia, tinha conhecido da dimensão humana
judaica porque muitos dos que estão fora sabem pouquíssimo sobre esta experiência. (...) No princípio meu
projeto foi escrever as recordações da vida da minha mãe. Ela era incansável nos seus relatos”.
188
(...) a realização vivente daquilo que é o povo alemão e, ao mesmo
tempo, a identificação com o ‘nós’ no qual vivemos, em geral, se
realizará só se nós mesmos ‘vivemos a história’, isto é, somos
testemunhas e participamos de eventos históricos decisivos. Em
épocas críticas chegamos à consciência de qual significado tenha a
ação do indivíduo na vida comum e, desse modo, é reavivada a
responsabilidade. E quando o povo é ameaçado, desperta-se a
compreensão de qual seja o seu significado para uma pessoa, de que
coisa se deva ao povo e de quanto profundamente a nossa vida está
ancorada nele.
É de se notar que, sob esse ponto de vista, Stein nos ajuda a olhar para o significado
que há nesta questão de viver a história, sobretudo, nos momentos críticos de um povo. E não
só a história da nação, mas as ameaças contínuas de desenraizamento presentes hoje nas
grandes e pequenas cidades. Por isso, as iniciativas nas quais o ser humano pode se sentir
protagonista e ser favorecido no conhecimento do próprio povo constituem, sem dúvida, um
fator de enraizamento. Desde a formação da nação brasileira está presente esta abertura ao
patrimônio espiritual de diversos povos aos quais somos obrigados a reconhecer as
contribuições recebidas. Na pequena comunidade de Cascalho também as novas gerações
podem aproximar-se do patrimônio dos seus antepassados que foram estrangeiros nesta
terra
163
. Vejamos algumas cartas dos descendentes nas quais manifestam-se as reações diante
do conhecimento das raízes familiares:
Caríssimo padre,
(...) O meu tio trouxe os papéis da árvore genealógica que o sr. teve a
bondade de pesquisar e nos enviar. Ficamos no auge da alegria e estamos até
hoje mergulhados nesses papéis. Nos primeiros dias nem dormimos de tanto
pensar, pois temos paixão por esse assunto dos nossos antepassados
164
.
A compreensão do valor da pertença fica mais evidente para os indivíduos e suas famílias
quando estes conseguem entrar em contato com os estrangeiros, ou seja, quando voltam seu
olhar para a cultura do outro. A troca dentro da comunidade familiar entre os brasileiros e os
163
Stein (2000, p. 203), escreve: “Temos, entretanto, ainda diante dos olhos alguns exemplos tangíveis do modo
em que se forma um povo, por exemplo, (...) o nascimento de uma nova população dos restos de povos
estrangeiros nos Estados Unidos”.
164
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. C2.
189
italianos
165
permite a compreensão desse horizonte do ‘nós’, em que se aprende a distinguir
entre o que é nosso e o que provém da alteridade.
Padova, 29 de dezembro 1997
Caros primos,
Foi uma alegria receber vossas notícias, vos agradecemos pelas fotografias
e, sobretudo pelo filme. A história filmada do centenário fez reviver a avó
Imelda e a todos os seus filhos, os anos passados a Pionca, é bonito ver
como as tradições italianas foram levadas para Cascalho. Vimos a grande
obra que fez o padre Luiz Stefanello, e nos deu imensa satisfação saber que
foi um personagem muito importante e determinante para a vossa cidade
166
.
O contato com a vida espiritual do passado é fonte de força para os membros da
comunidade e, além disso, foi sendo vivido não só por uma família mas por tantas outras. O
efeito estimulante criado permite que nos pedidos já não se encontre o desejo pessoal em
primeiro plano, mas é o pedido de toda a comunidade familiar:
Cordeirópolis, 03 de agosto de 1998
Caro vigário,
(...) Sou uma apaixonada pela origem de minhas raízes, não sei como
descrever a imensa satisfação ao receber sua correspondência. Agradecemos
a generosidade em atender um pedido, que não é só meu, mas de uma
geração de mais de 2000 pessoas oriundas de Pedro Osello e Ana Zaia,
vindos de Treviso, Itália. (...) Em 1888 desembarcaram 3 gerações juntas de
um mesmo navio, como segue demonstrativo anexo, e já localizei a
descendência de quase todos aqui no Brasil. Eu iria proporcionar uma
grande alegria a todos os descendentes se descobrir as nossas origens na
Itália. Creio que no próximo ano deverei estar em Treviso e irei aproveitar
para fazer algumas pesquisas de nossas raízes e irei até a paróquia de Gorgo
al Monticano para agradecê-lo pessoalmente
167
.
Enfim, o significado da festa e das celebrações relaciona-se ao fato de poder tornar
vivo para todos as ligações com os avós e bisavós e, conseqüentemente, encontrar-se tanto o
indivíduo quanto a comunidade conscientes das realizações dos antepassados e abertos as
iniciativas do futuro.
165
Para Stein (2000, p. 208), a questão da pertença ao povo está relacionada ao fato de que seus membros
possam entrar em contato com algo que lhes remeta à totalidade: “(...) existe a pertença na medida em que
existem canais que consentem a comunicação e troca de influências”. Ao contrário, nos ambientes nos quais a
vida dos indivíduos está fechada e restrita pode ocorrer a diminuição desta consciência de pertença.
166
Arquivo da Associação Trevisana no Mundo de Cascalho, CC 20-12.
167
Arquivo Paroquial “San Martino”, Cx. O2.
190
191
CONCLUSÃO
Na presente pesquisa, escolhemos de analisar cartas a partir da hipótese que estas nos
possibilitariam adentrar no universo interior da comunidade de imigrantes escolhida para a
investigação, especificamente no que diz respeito às relações entre o dinamismo de sua
configuração e suas formas expressivas.
O método escolhido para a leitura e análise destes documentos foi sugerido por
algumas obras da fenomenóloga Edith Stein - especificamente Psicologia e Ciências do
espírito, A Estrutura da pessoa humana e a Introdução à Filosofia – e revelou-se
especialmente fecundo para a realização dos objetivos da pesquisa. Sintetizamos a seguir os
passos realizados.
No primeiro capítulo intitulado “A busca das raízes” evidenciou-se o dinamismo das
vivências ocorrida na troca de cartas entre membros da comunidade brasileira de origem
vênetas e os seus parentes na Itália. A partir das cartas pudemos apreender a emergência do
sentido de pertença mútua. A análise revelou que o ato de narrar os acontecimentos vividos e
fazer chegar notícias aos respectivos correspondentes na Itália era acompanhado e expressava
vários tipos de vivências: percepções, sentimentos, recordações, motivações, reflexões.
O capítulo “Reatando laços” aponta para os aspectos fundamentais da relação do
indivíduo com a comunidade de pertença, no duplo movimento das correspondências do
Brasil para a Itália e da Itália para o Brasil. A partir dos reencontros entre parentes distantes e
dos atos de conhecimento recíproco, emergem vivências no nível da reflexão e da motivação,
na busca de dar continuidade ou reatar laços familiares. A experiência do pertencer é
acompanhada pelas vivências da entropatia e da abertura ao outro. A pessoa é reconhecida
como tal pela comunidade e por sua vez ela cria continuamente a comunidade através da
192
iniciativa de pôr relacionamentos, seja como trocas de informações e afetos pelas cartas, seja
como gestos de celebração e de festa em algumas especiais ocasiões.
O último capítulo mostra que a articulação dos relacionamentos e das vivências
comunitárias possibilita a formação de uma experiência de povo, segundo as três
características apontadas por Stein: a autoconfiguração; a autoconservação e a autoexpressão.
. Acreditamos que a leitura das cartas a partir do método fenomenológico possibilite
uma modalidade peculiar de abordagem desse tipo de documentos que complementa a análise
propriamente histórica dos mesmos, permitindo adentrar no mundo material, psíquico e
espiritual dos seus autores e identificar tanto no indivíduo quanto na comunidade, os fatores
que desencadeiam o dinamismo dos relacionamentos e o enraizamento numa história de povo.
193
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