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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
MESTRADO EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE.
MARCELO DE ALMEIDA NOGUEIRA
ASSÉDIO SEXUAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE
Rio de Janeiro
2010
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1
MARCELO DE ALMEIDA NOGUEIRA
ASSÉDIO SEXUAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE
Dissertação apresentada em conclusão de
Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade à
Universidade Veiga de Almeida.
Orientadora: Maria Anita Carneiro Ribeiro
Rio de Janeiro
2010
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DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU
E DE PESQUISA
Rua Ibituruna, 108 – Maracanã
20271-020 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922
FICHA CATALOGRÁFICA
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA
Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho
N778a Nogueira, Marcelo de Almeida
Assédio sexual: contribuições da
psicanálise /
Marcelo de Almeida Nogueira, 2010.
40f. ; 30 cm.
Digitado (original).
Dissertação (Mestrado) – Universidade
Veiga de
1
MARCELO DE ALMEIDA NOGUEIRA
ASSÉDIO SEXUAL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE
Dissertação apresentada em conclusão de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade à
Universidade Veiga de Almeida.
Aprovado em 27 de setembro de 2010.
__________________________________________________
Profª. Drª. Maria Anita Carneiro Ribeiro
Universidade Veiga de Almeida
Orientadora
__________________________________________________
Profª. Drª. Sônia Borges
Universidade Veiga de Almeida
__________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Adriano Japiassú
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2010
2
Resumo
Este trabalho discute, através de uma abordagem multidisciplinar, estabelecendo uma
tentativa de conexão entre o Direito e a Psicanálise, o crime de assédio sexual, inserido no
contexto dos demais crimes contra a dignidade sexual, discorrendo-se sobre o contexto
histórico no qual o Código Penal foi elaborado, apontando-se contradições com o Brasil
do século XXI. Analisa-se o chamado “caso Dora”, publicado por Freud, em outubro e
novembro de 1905, tido para os psicanalistas como emblemático. Procura-se fazer uma
leitura do caso à luz da legislação penal em vigor. Busca-se analisar a sexualidade em
Freud, abordando-se o desejo sexual das mulheres que, segundo o próprio autor, é
enigmático. Conclui-se que os motivos do assédio são inconscientes.
Palavras-chave: Direito – Psicanálise – Sexualidade – Mulher
3
Abstract
This research discusses, through a multidisciplinary approach, trying to create a
connection between Laws and Psychoanalysis, the crime of sexual harassment inside in
the historical context of the elaboration of the crime laws, showing the contradictions with
Brazil of the XXI century. The Dora case”, published by Freud on 1905 October and
November, is the emblematic issue for the psychoanalysts. The purpose is to make a
reading of the case considering the current penal law. The sexuality by Freud was
analyzed, broaching the women sexual desire, which is, for the author, enigmatic. The
conclusion is that the reasons of the harassment are not conscious.
Keywords: Law – Psychoanalysis – Sexuality - Woman
4
SUMÁRIO
1 Introdução ...................................................................................................................... 06
2 Capítulo I ........................................................................................................................ 10
2.1 A questão desdobrada ....................................................................................... 10
2.2 O caso Dora ...................................................................................................... 12
2.3 O Código Penal ................................................................................................. 15
2.4 Revisitando Dora .............................................................................................. 23
3 Capítulo II ...................................................................................................................... 24
3.1 A sexualidade em Freud ................................................................................... 24
3.2 Os poetas e as mulheres .................................................................................... 30
3.3 Psicanálise e Direito: paradoxos ....................................................................... 35
4 Conclusão ....................................................................................................................... 36
5 Produto ........................................................................................................................... 37
Referências ........................................................................................................................ 38
5
Introdução
A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe
dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente
organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade
de proprietários dos meios de produção. Embora as leis apresentem contradições que não nos
permitem rejeitá-las sem exame, como pura expressão dos interesses daquela classe, também
não se pode afirmar, ingênua ou manhosamente, que toda legislação seja Direito autêntico,
legítimo e indiscutível. Nesta última alternativa, nós nos deixaríamos embrulhar nos “pacotes”
legislativos, ditados pela simples conveniência do poder em exercício. A legislação abrange,
sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto
e correto, e negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas
do poder estabelecido.
1
O Código Penal, pensado na década de 30 e publicado em 1942 é permeado de uma
visão moralista, muito especialmente no atual capítulo “Dos crimes contra a dignidade
sexual”. Dentre inúmeros campos, a área sexual sempre guardou particular interesse ao direito
penal. Aliás, costumo dizer em minhas aulas, que o Código Penal se resume a dois valores:
sexo e dinheiro. Comparando-se as penas dos crimes contra o patrimônio, percebemos
facilmente que são maiores do que as dos crimes contra a vida.
Respeitado o princípio da “intervenção penal mínima”, deve o Direito Penal ocupar-
se, no que tange nos crimes contra a dignidade sexual, daquelas condutas que envolverem
violência ou grave ameaça. De resto, não deve preocupar-se o Direito Penal, deixando tal
tarefa para os outros ramos do direito.
Passando por variada gama de interpretações, tipificações e formas de proteção, as
condutas ligadas ao sexo ilustram a visão da sociedade, em dado momento histórico, quanto
às questões de seu próprio desenvolvimento. As políticas criminais aqui refletem, de modo
bastante emblemático, as reais formas de equilíbrio interno do tecido social. A questão
sexual, portanto, mostra-se das mais complexas.
2
O caso do assédio sexual talvez se mostre
como a mais emblemática situação de presença dos paladinos da moral no campo sexual.
Trazida à realidade normativa penal brasileira pela Lei nº. 10.224, de 15.05.2001, a qual
1
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 15. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.
2
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes Sexuais: bases críticas para a reforma do direito penal sexual. São
Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 20.
6
introduziu o tipo criminoso do assédio sexual no art. 216-A, do Código Penal, semelhante
figura gerou inúmeras controvérsias na doutrina.
3
Mas o que designaria a palavra “moral”? Qual a relação entre moral e direito? A
moral, definida como o conjunto de práticas de costumes, de padrões de conduta formadores
da ambiência ética em que se vive, varia de cultura para cultura. No curso da evolução
histórica, consagrados pontos de vista, modos de agir e de pensar diferentes, tipifica a
capacidade humana de julgar e valorizar a experiência
4
. Há, todavia, na experiência moral
aspectos peculiares que a projetam como mecanismo psicológico através do qual exercemos
certo controle de nossa própria atividade psíquica; domínio dos desejos, das sensações, força
de vontade, caráter. Daqui procede um dos elementos característicos da experiência moral
satisfação do dever cumprido ou remorso porque a ele faltamos. Ora, esses aspectos da
vivência dos valores não os conhece o direito. São aspectos gerados na consciência, pois é
próprio da moral preocupar-se com as intenções ainda as mais recônditas, porque a conduta
moral não se processa apenas em relação aos outros, mas igualmente em face do nosso foro
íntimo.
5
Não sucede tal coisa com o direito, que se esgota no mundo das relações externas,
das relações entre os homens. Por isto mesmo, no campo moral, a apreciação da conduta pode
ficar sujeita a dois pontos de vista – o da opinião (externo) e o da própria consciência
(interno). Assim, a valorização ética e suscetível de obedecer a prismas tão pessoais de fé,
felicidade, amor, ideal que, não raro, a consciência do individuo entra em conflito com o meio
social. Quando o direito considera o elemento interno (a intenção, o desejo), quando procura
verificar se a vontade do sujeito está viciada por erro, dolo etc., fá-lo tão somente na medida
em que esse elemento terá concorrido para a prática de atos externos.
6
O direito é, em síntese,
um mínimo ético.
Boa parte daqueles que defendem a figura do assédio concordam que, com tal
modalidade de criminalização, divorciada de uma preocupação mais acurada e com lastro
principiológico, claramente agressiva à intervenção mínima e à ultima ratio, se torna difícil
uma efetividade do tipo. O assédio sexual, a meu sentir, deveria ser retirado do leque
descritivo criminal. Uma reparação financeira, no âmbito de Direito Civil, daria melhor
resposta às suas eventuais vítimas.
7
Entende-se como não conveniente que construções
fundadas sobre dogmas religiosos venham, em pleno século XXI, a ditar os contornos
3
IBID, p. 356
4
LIMA, Hermes, Introdução à ciência do direito, 29. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. p. 107.
5
IBID. p. 109.
6
IBID, p. 109.
7
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, Crimes Sexuais: bases críticas para a reforma do direito penal sexual. São
Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 360.
7
criminalizantes de situações ligadas ao sexo. É obrigatório, pois, seu revisitar. Especialmente
o estupro teve a construção de sua figura criminal sobre uma base religiosa e afeita à idéia da
possibilidade decorrente de uma gravidez. Aliás, com o advento da Lei 12.015/09, o fato do
agente engravidar a vitima ou transmitir-lhe doença sexualmente transmissível, passou a ser
causa de aumento de pena. Vemos a preocupação patrimonial do legislador também na
gravidez resultante de estupro. A lei permite o aborto quando a mulher for vítima deste tipo de
violência sexual. Poderíamos supor que o bem jurídico tutelado, por ocasião desta modalidade
de aborto legal, seria a saúde psicológica da mulher. Obrigá-la a dar à luz, feriria o princípio
da dignidade da pessoa humana. Contudo, estabelecendo-se uma análise mais crítica da
legislação de 1942, podemos concluir que a preocupação do legislador é com o patrimônio do
pai da vítima, pois, em última análise o estuprador viraria herdeiro da fortuna do pai. Não
percamos de vista que a parte especial do nosso Código Penal é um espelho do Código
fascista italiano, no qual a preocupação era com o patrimônio dos fazendeiros da época.
No que tange aos atualmente compreendidos crimes contra a “dignidade sexual”, pelo
que se justificou, não mais cabe, depois do expurgo restritivo da ponderação quanto à “mulher
honesta”, sustentar a mantença de figuras como a de posse sexual por meio de fraude. O
subjetivismo contido na relação comunicacional que deságua em uma relação íntima não
fornece segurança alguma para sequer uma previsão típica. Mesmo se utilizando dos
expedientes de laboratório clássicos, se alguém se sentir enganada por outrem, tendo-se
sexualmente entregue por simples promessa de casamento, isso não pode dizer respeito ao
Direito Penal. O consentimento era válido durante a relação, tendo sido objetado
simplesmente por motivo superveniente. Da mesma forma, não parece que o elemento fraude
possa, em dias atuais, justificar a manutenção de algo tão hipotético quanto quem venha a
manter relações sexuais por engano com um terceiro, imaginando tratar-se de um seu parceiro
ou marido.
8
As situações envolvendo a prostituição merecem destaque. Não tem elas mais lugar
em uma construção afastada da moral. Assim, crimes como a mediação para servir a lascívia
de outrem (art. 227, do Código Penal), favorecimento da prostituição (art. 228, do Código
Penal), casa de prostituição (art. 229, do Código Penal) e rufianismo (art. 230, do Código
Penal) não mais têm espaço na lei. Além de não violarem a autodeterminação sexual nem se
utilizarem, em termos gerais, de violência ou de grave ameaça, somente se justificam se
houver uma perspectiva histórica de repressão ao que se considera impudico. Desta feita, as
8
IBID, p. 364
8
condutas devem ser afastadas de qualquer sorte de previsão penal.
9
O fundamento do
legislador para a criminalização das condutas acessórias à prostituição é o mesmo para a
criminalização de quem participa do suicídio de outrem pois, não é crime uma pessoa matar-
se (morte física), mas é crime um indivíduo auxiliá-la; não é delito uma pessoa prostituir-se
(morte moral), porém, é delito um indivíduo favorecê-la. Razões de sobejo existem para a
incriminação do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Do mesmo modo que na
eutanásia, o auxiliador viola a lei do respeito à vida humana e infringe interesse da vida
comunitária, de natureza moral, religiosa e demográfica. O direito no suicídio um fato
imoral e socialmente danoso, o qual cessa de ser penalmente indiferente, quando a causá-lo
concorre, junto com a atividade do sujeito principal, uma outra força individual estranha.
Neste trabalho, procura-se estabelecer uma conexão entre Direito e Psicanálise, o que
nem sempre se mostra tarefa das mais fáceis.
No primeiro capítulo, discorre-se sobre o contexto histórico no qual o código penal foi
pensado, apontando-se contradições com o Brasil do Século XXI. Analisa-se também o
chamado “caso Dora”, publicado por Freud, em outubro e novembro de 1905, tido para os
psicanalistas como emblemático e perturbador. Procura-se fazer uma leitura do “caso Dora” à
luz da legislação em vigor, particularmente no que atine aos “crimes contra a dignidade
sexual.”.
No segundo capítulo, busca-se analisar a sexualidade em Freud, abordando-se o desejo
sexual das mulheres que, segundo o próprio autor, é enigmático. A partir do questionamento o
“que deseja uma mulher?”, passeia-se pela poesia, por conselho do próprio Freud. Percorre-se
Pablo Neruda (“O carteiro e o poeta”) e suas metáforas (“Seu sorriso se espalha como
borboletas...”) e Francisco Buarque de Hollanda (“Sabia, gosto de você assim, arrancando
páginas dentro de mim desde o primeiro dia!”).
A conclusão a que se chega é que o estudo do crime de assédio sexual à luz da
psicanálise não pode ser recortado do contexto dos crimes contra a dignidade sexual, previstos
no Código Penal. Estudar o comportamento do sujeito ativo destes delitos, sob o ponto de
vista psicanalítico, parece ser mais importante e eficaz do que criar novas leis e aumentar as
penas.
9
IBID, p. 370
9
2 Capítulo I
2.1 A Questão desdobrada
O título VI do Código Penal Brasileiro sempre me intrigou. Tratava até 7 de agosto de
2009 dos chamados “crimes contra os costumes”. Era dividido em 6 capítulos.
Capítulo I – Dos crimes contra a liberdade sexual
Capítulo II – Da sedução e da corrupção de menores
Capítulo III – Do rapto
Capítulo IV – Disposições gerais
Capítulo V – Do Lenocínio e do tráfico de pessoas
Capítulo VI – Do ultraje público ao pudor
Como advogado, professor de direito penal e desde meados de 2008 mestrando em
psicanálise, saúde e sociedade, pergunto-me: afinal, quais costumes estaria a lei procurando
tutelar? O Código Penal data de 1940, retratando um Brasil de 1930: agrário, monogâmico e
basicamente com uma única religião. Tínhamos, àquela época “filtros sociais e formais”
muito mais atuantes. Uma família, uma igreja e uma escola muito mais presentes. Sobrava
para o direito penal o resquício.
Certamente, os “costumes” de 1940, não são os mesmos de 2009. O próprio legislador
brasileiro, pouco a pouco, vem percebendo isto. A expressão “mulher honesta”, por exemplo.
Qual o conceito de “mulher honesta” no culo XXI ? ... A lei trazia tal expressão nos artigos
215 (“posse sexual mediante fraude”) e 217 (“sedução”), por exemplo. O conceito de “mulher
honesta” implicava um juízo de valor, que devia obedecer a padrões ético-sociais vigentes
na comunidade e revelados pelos costumes. Conceito de dificílima avaliação no século XXI.
Para o código de 1942, mulher honesta é aquela que ainda não rompeu com o ‘mínimo’ de
decência exigido pelos bons costumes. Qual seria esse ‘mínimo’? E “bons costumes”, quais
seriam? Quando indagado por meus alunos um exemplo de “mulher honesta”, recorria à
figura de minha avó materna Luiza, nascida em 1930.
Tomemos em nota o crime previsto no art. 215 (“posse sexual mediante fraude”) já
sem a expressão “mulher honesta”. Reza a lei:
10
Artigo 215 Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com
alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre
manifestação de vontade da vítima.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
A ação punida pela lei consiste em ter conjunção carnal (para o direito penal relação
pênis-vagina), fraudulentamente
.
A fraude é o engodo que leva ao engano. A fraude deve constituir meio idôneo para
enganar a mulher sobre a identidade pessoal
do agente. Ou seja, a mulher mantém o coito com
um homem, pensando tratar-se de seu marido! A lei trata a mulher como desprovida de
inteligência. Os manuais de Direito Penal, quando exemplificam tal delito, citam o exemplo
do “baile de máscaras”, onde a mulher mantém o coito com um “mascarado” pensando tratar-
se de seu próprio homem...
O fato é que o Direito Penal deve preocupar-se com os bens jurídicos realmente
importantes. A importação da exótica figura do “assédio sexual” merece registro. Diz a lei:
Artigo 216-A - Constranger alguém com o intuito de obter
vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da
sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao
exercício de emprego, cargo ou função.
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
Não se precisa questionar a relevância dos bens jurídicos tutelados (liberdade sexual,
indiscriminação nas relações trabalhistas, honra e dignidade da pessoa humana), merecedores,
sob todos os aspectos da proteção jurídica. Discute-se na verdade a pertinência da
criminalização desse tipo de comportamento que encontra suficiente proteção em nosso
ordenamento jurídico (áreas cível, trabalhista e administrativa).
A desinteligência reinante entre os especialistas sobre a necessidade, conveniência e
oportunidade da criminalização do “popularizado” assédio sexual, não se esgota no plano
político-jurídico: a polêmica em relação ao tema, na verdade, invade todos os segmentos
políticos, econômicos, éticos, morais, envolvendo a própria psicanálise e ganha foros de
conquista e independência feminista, ignorando que homens e mulheres, tanto uns quanto
outras, podem ser, indiferentemente, sujeitos ativo e passivo desse indigitado crime.
10
10
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal, Saraiva: São Paulo, 2001. p. 31.
11
2.2 O caso Dora
O chamado “caso Dora”, publicado por Freud em outubro e novembro de 1905,
retrata, para os psicanalistas, o mais lindo e exemplar caso clínico da histeria e prova que a
mulher não é sempre vítima e muito menos desprovida de inteligência, como parecem achar
alguns. No “caso Dora” o primeiro contato travado com Freud se através do pai dela, que
conhecia Freud, pois este, como neurologista, o havia tratado de uma cegueira oriunda da
sífilis, com sucesso. O pai de Dora leva a moça para uma consulta, pois esta, dentre vários
sintomas físicos, apresentava intenção explícita de suicídio.
Dora tinha dezoito anos quando foi levada a Freud e dois anos o pai dela mantinha
um relacionamento fora do casamento com a chamada sra. K, que por sua vez era casada com
o sr. K. Deste modo, mantém-se uma relação a quatro com o par formado por Dora e seu pai.
A mãe encontra-se ausente dessa situação. Freud comenta, no resumo do caso, que a mãe de
Dora era portadora de uma psicose doméstica, o que talvez justifique sua aparente
importância secundária no caso.
Dora facilitava inicialmente os encontros do pai com a sra. K, mantendo sigilo,
ajudando assim a sustentar a relação., colocando-se inclusive no lugar da sra. K, quando ela
tinha afazeres que a impediam de sair. Nessas ocasiões era Dora quem tomava conta dos
filhos da sra. K. ligando-se a ela de tal modo que ambas se tornam confidentes.
No entanto, Dora demonstra veementemente desde o principio do tratamento com
Freud sua revolta em relação ao pai devido ao seu envolvimento afetivo com a sra. K,
deixando claro que sempre soubera que seu pai tinha uma amante. Admitiu que a partir de
uma determinada época passou a não mais suportar essa relação.
Em 1900, Freud publica Die Traumdeutung. É nessa obra que pela primeira vez ele
evoca a lenda grega de Édipo. Sua experiência de médico levou-o a ver no amor da criança
por um de seus pais, no ódio pelo outro, o dos impulsos psíquicos que determinarão o
aparecimento posterior de neuroses. A atração e hostilidades infantis em relação à mãe e ao
pai se manifestam tanto nos normais, quanto nos neuropatas, ainda que em menor intensidade.
Esta descoberta, cujo alcance lhe parece geral, encontra, segundo Freud, sua confirmação num
mito que chegou até nós da antiguidade clássica: o mito de Édipo, de que Sófocles fez tema
da tragédia intitulada Óidípous Týrannos, Édipo-Rei, na tradução portuguesa usual.
Dora envolve-se, então, afetivamente com o sr. K. Entretanto, ao longo do tratamento
vê-se que ela identifica-se com o sr. K, na tentativa de ter acesso à sra. K, pois ela era o cerne
12
de sua questão, como pode se verificar a partir de seus sonhos que giram essencialmente em
torno dela. Todos que rodeavam a sra. K a adoravam. Dora então se coloca na posição de
adoração também, questionando-se: “o que quer uma mulher?”, “o que ela tem que eu não
tenho?”
A partir do questionamento: “O que é que meu pai ama na sra. K.?”, pode-se pensar na
relação de Dora com seu pai. Verificamos, então, que o pai era impotente, e não lhe dava o
que ela demandava. Exatamente por isso, Dora o amava apegando-se ao que é amado por seu
pai na sra. K, ainda que ela não saiba o que realmente é, pois isso que ela ama na sra. K está
para além dela mesma. Chama a atenção o fato de, aos catorze anos, Dora nada ter falado
sobre o assédio feito pelo Sr. K.
Quando as primeiras dificuldades do tratamento tinham sido
superadas, Dora contou-me um episódio anterior com Herr K., mais bem
talhado ainda para atuar como um trauma sexual. Ela tinha então quatorze
anos. Herr K. combinara com ela e sua mulher encontrarem-se uma tarde em
seu local de trabalho na praça principal de B---- para assistirem a um festival
religioso. Ele, contudo, persuadiu a esposa a ficar em casa, e mandou seus
empregados embora, encontrando-se assim sozinho quando a moça chegou.
Aproximando-se a hora da procissão, pediu ele à moça que esperasse por ele
na porta que dava para a escada que levava ao andar superior, enquanto ele
abaixava as portas corrediças externas. Em seguida voltou e ao invés de sair
pela porta aberta, agarrou subitamente a moça e beijou-a nos lábios. Esta era
sem dúvida uma situação capaz de despertar nítida sensação de excitação
numa moça de quatorze anos que nunca fora tocada antes. Mas Dora teve
naquele momento uma violenta sensação de repugnância, livrou-se do
homem e passou por ele correndo para a escada, daí alcançando a porta da
rua. Ela, todavia, continuou a encontrar-se com Herr K. Nenhum deles,
contudo, jamais mencionou a pequena cena; e segundo seu relato, Dora a
manteve em segredo até a confissão durante o tratamento. Durante algum
tempo depois disso, ela evitou ficar sozinha com Herr K. Os K. tinham
acabado de planejar uma expedição que devia durar alguns dias e na qual
Dora deveria acompanhá-los. Depois da cena do beijo ela recusou juntar-se
ao grupo, sem dar qualquer motivo.
11
Acredito que durante o abraço apaixonado do homem ela sentiu não
só o beijo como também a pressão de seu pênis ereto contra seu corpo.
12
O sr. K cortejava Dora insistentemente. Vale a transcrição da cena do lago:
11
FREUD, Sigmund. Um caso de histeria. três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos. v. 7. Rio de
Janeiro: Imago, 1972. p. 25-26.
12
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p 27-28.
13
Herr K sempre fora extremamente atencioso com Dora. Passeava
com ela e lhe dava pequenos presentes; mas ninguém via mal algum nisto.
Dora tinha cuidado com todo o carinho dos dois filhos dos K, dedicando-lhes
atenção quase maternal. Quando Dora e seu pai tinham vindo consultar-lhe
dois anos antes, no verão, tinham estado prestes a romper com a Herr e Frau
K, que passavam o verão num de nosso lagos nos Alpes. Dora devia passar
várias semanas na casa dos K, ao passo que seu pai pretendia voltar à casa
após alguns dias. Durante esse tempo, Herr K também permanecera ali.
Quando o pai se preparava para partir, a moça subitamente declarara com a
maior determinação, que iria com ele e, com efeito, assim fizera. alguns
dias mais tarde, ela esclarecera seu estranho comportamento. Contara então à
mãe com o propósito de que o que dissesse fosse transmitido ao pai que
Herr K tivera a audácia de fazer-lhe uma proposta amorosa, enquanto
andavam depois de um passeio ao lago. Herr K fora chamado a dar
explicações pelo pai da moça e seu tio quando de um novo encontro entre
eles, mas negara da forma mais enfática ter tomado, de sua parte, qualquer
liberdade que pudesse ser assim interpretada. Começara então a lançar
suspeitas sobre a moça, dizendo que ouvira de Frau K que ela só tinha
interesse em assuntos sexuais e que costumava ler a Fisiologia do Amor, de
Mantegazza e livros desta espécie em sua casa no lago. Era muito provável,
acrescentara, que ela se tivesse excitado demais com tais leituras e
simplesmente ‘imaginara’ toda a cena que descrevera
13
Ao contrário do que se espera de uma histérica, Dora não se importava com o
constante assédio do Sr. K. Porém, consternou-se quando ele declarou: “Minha mulher não
significa nada para mim”. Ao se deparar com essa revelação, Dora uma bofetada no sr. K,
pois se a sra. K não significa nada para ele, então, por analogia, ela, Dora, nada significa para
seu pai. Desmonta-se então o castelo edipiano. O fato é que os motivos do assédio sexual são
inconscientes.
Justamente por lidar com esferas do inconsciente, é que se deve adotar o princípio da
intervenção mínima que orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a
criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de
determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social
revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, sua criminalização é inadequada e não
recomendável. Se, para o restabelecimento da ordem jurídica violada, forem suficientes
medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por
isso, o direito penal deve ser a ultima ratio
, isto é, deve atuar somente quando os demais
ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do
indivíduo e da própria sociedade.
14
13
FREUD, Sigmund. Op. Cit. P. 23-24
14
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. p. 30-31
14
2.3 O Código Penal
No entanto, mesmo com a entrada em vigor da Lei 12.015/09 em 7 de agosto de 2009,
foi expressa a preocupação de relacionar a sexualidade a uma concepção moralista. O Título,
que delimita o objeto de tutela do direito repressivo, não é mais o dos “crimes contra os
costumes”, mas sim, “crimes contra a dignidade sexual”, como se se pudesse fazer uma nítida
separação entre atos sexuais dignos e atos sexuais indignos. Com a nova lei as penas dos
crimes sexuais foram agravadas especialmente em razão da idade da vítima.
Dentre inúmeros campos, a área sexual sempre guardou particular interesse ao direito
penal. Aliás, costuma-se ouvir, nas aulas de direito penal, que o Código Penal se resume a
dois valores: sexo e dinheiro. Comparando-se as penas dos crimes contra o patrimônio,
percebe-se facilmente que são maiores do que as dos crimes contra a vida (furtar um par de
chinelos, cuja pena varia de 1 a 4 anos, é mais grave do que matar alguém por imprudência,
cuja pena é de 1 a 3 anos).
Passando por variada gama de interpretações, tipificações e formas de proteção, as
condutas ligadas ao sexo ilustram a visão da sociedade, em dado momento histórico, quanto
às questões de seu próprio desenvolvimento. As políticas criminais aqui refletem, de modo
bastante emblemático, as reais formas de equilíbrio interno do tecido social. A questão sexual,
portanto, mostra-se das mais complexas.
Em um mundo que conheceu a arte e a literatura eróticas, às censuradas pinturas do
teto da Capela Sistina, dos escritos gregos de Platão, sem contar com um sem-número de
relatos outros, curiosa é a repressão sentida quanto ao sexo. A atuação do Direito Penal, nesta
contraditória realidade, há de ser analisada.
15
Na longa existência do Código Penal brasileiro, muitas têm sido, especialmente nos
últimos anos, as tentativas de reforma. Estas, entretanto, estiveram sempre mais baseadas em
idéias isoladas de cunho filosófico, mais tangentes a posicionamentos pessoais, políticos ou
de ordem variada. A situação toma, ainda, outras e maiores proporções em momento posterior
à Constituição da República de 1988 e com o novo Código Civil de 2002. Com o intuito de
obviar alguns itens, premente se torna fazer uma leitura científica da questão, dando, mesmo,
15
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, Crimes Sexuais: bases críticas para a reforma do direito penal sexual,
São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 19.
15
base a se refletir na necessidade de mudanças, contrapondo-se, pois, com igual peso d’armas,
a meros e conservadores postulados morais e religiosos.
16
Para uma devida compreensão do tema, vale dizer, de se estabelecer bases críticas para
uma reforma racional do Direito Penal sexual, vários pontos hão de ser revistos. Ainda que
sem a pretensão maior de se estabelecer uma Parte Geral de um Direito Penal sexual, que não
cabe no escopo desse trabalho, necessário se torna um perpassar por uma a evolução do
conceito de sexo, moral e gênero para, então, poder-se tentar traçar as linhas mestras do
estudo pretendido.
17
O caso do assédio sexual talvez se mostre como a mais emblemática situação de
presença dos paladinos da moral no campo sexual. Trazida à realidade normativa penal
brasileira pela Lei nº. 10.224, de 15.05.2001, a qual introduziu o tipo criminoso do assédio
sexual no art. 216-A, do Código Penal, semelhante figura gerou inúmeras controvérsias na
doutrina.
18
Como bem sustenta Figueiredo Dias
19
, trata-se da importação de um modelo
estadunidense que se mostra desnecessária e disfuncional, porque, ou se encontraria
proteção em outros campos típicos ou, quando isso não se dá, nem mesmo desfruta de
dignidade penal. Portanto, protege-se, aqui, não uma noção relativa à autodeterminação
sexual, mas um aspecto moralizante da maioria da população ou da camada dominante em
termos de relações amorosas, econômicas ou profissionais.
Luíza Eluf lembra que:
No Brasil, não temos a tradição de recorrer à área cível quando nos
sentimos moralmente ofendidos. A regra, para nós, tem sido a Delegacia de
Polícia e, depois, a Justiça Penal. A necessidade de incriminar a conduta do
assédio sexual, em nosso país, também é conseqüência das grandes
dificuldades de acesso da população ao Judiciário, principalmente no trato de
questões patrimoniais. Tivéssemos nós uma Justiça mais democrática; talvez
pudéssemos dispensar acréscimos à legislação penal, ficando apensa com a
Constituição Federal, que prevê a possibilidade de indenização por dano
moral.
20
Pode-se afirmar que uma tipificação de tal porte, em que a vinculação seem função
da condição sexual do sujeito, prescindindo de outro qualquer fundamento material que a
16
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. Cit. p. 20-21.
17
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. Cit. p. 21
18
IBID. p. 356
19
DIAS, Jorge de Figueiredo. Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual In: Comentário
conimbricense do código penal. Parte especial. Coimbra, Coimbra Editora, 1999. p. 461.
20
ELUF, Luiza Nagib. Crimes contra os costumes e assédio sexual. São Paulo, Jurídica Brasileira, 1999. p.
131.
16
acompanhe, mostra-se isolada em uma sociedade plural. Aqui de se distinguir, por
exemplo, da noção protetiva de um Direito Penal de menores, em que não se dá ponderação
sexista, mas, tão-só, em função da especial proteção ofertada a hipossuficientes.
21
Boa parte daqueles que defendem a figura do assédio concordam que, com tal
modalidade de criminalização, divorciada de uma preocupação mais acurada e com lastro
principiológico, claramente agressiva à intervenção mínima e à ultima ratio, se torna difícil
uma efetividade do tipo. O assédio sexual, a meu sentir, deveria ser retirado do leque
descritivo criminal. Uma reparação financeira, no âmbito de Direito Civil, daria melhor
resposta às suas eventuais vítimas.
22
Especialmente o estupro teve a construção de sua figura criminal sobre uma base
religiosa e afeita à idéia da possibilidade decorrente de uma gravidez. Aliás, com o advento da
Lei 12.015/09, o fato de o agente engravidar a vitima ou transmitir-lhe doença sexualmente
transmissível, passou a ser causa de aumento de pena. Percebe-se que a preocupação
patrimonial do legislador também aparece na gravidez resultante de estupro. A lei permite o
aborto quando a mulher for vítima deste tipo de violência sexual. Pode-se supor que o bem
jurídico tutelado, por ocasião desta modalidade de aborto legal, seria a saúde psicológica da
mulher. Obrigá-la a dar à luz feriria o princípio da dignidade da pessoa humana. Contudo,
estabelecendo-se uma análise mais crítica da legislação de 1942, conclui-se que a
preocupação do legislador é com o patrimônio do pai da tima, pois, em última análise o
estuprador viraria herdeiro da fortuna do pai. Não se perca de vista que a parte especial do
nosso Código Penal é um espelho do Código fascista italiano, no qual a preocupação era com
o patrimônio dos fazendeiros da época.
No que tange aos atualmente compreendidos crimes contra a “dignidade sexual”, pelo
que se justificou, não mais cabe, depois do expurgo restritivo da ponderação quanto à “mulher
honesta”, sustentar a mantença de figuras como a de posse sexual por meio de fraude. O
subjetivismo contido na relação comunicacional que deságua em uma relação íntima não
fornece segurança alguma para sequer uma previsão típica. Mesmo se utilizando dos
expedientes de laboratório clássicos, se alguém se sentir enganada por outrem, tendo-se
sexualmente entregue por simples promessa de casamento, isso não pode dizer respeito ao
Direito Penal. O consentimento era válido durante a relação, tendo sido objetado
simplesmente por motivo superveniente. Da mesma forma, não parece que o elemento fraude
possa, em dias atuais, justificar a manutenção de algo tão hipotético quanto quem venha a
21
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. Cit. p. 359.
22
IBID. p. 359-360.
17
manter relações sexuais por engano com um terceiro, imaginando tratar-se de um seu parceiro
ou marido.
23
A figura do “assédio sexual” é apreciada por diversos setores da sociedade, que,
muitas vezes, o como uma correta e imprescindível política afirmativa. Como muito se
sustentou, a manutenção de um tipo pe nal cujo único sustentáculo vem a ser a questão do
gênero, procurando, de qualquer forma, rever e minimizar os erros constitutivos da sociedade
atual, além de equivocado, é perigoso ato contra a tolerância em uma sociedade plural e por
demais simbólico, também, pois, de se revogá-lo. Indubitavelmente, o marco inicial a guiar
aqui a alteração sustentada é a percepção de que somente a violência e a grave ameaça devem
justificar a presença de intervenção penal, limitando-se, assim, os tipos previstos às figuras
mencionadas.
Saindo das previsões hoje tidas como contrárias à liberdade sexual, outras tantas
figuras são percebidas. A Lei n° 11.106/05 já cuidou da descriminalização de algumas (como,
por exemplo, os casos de sedução e rapto, violento e consensual). Entretanto, o que se dizer
de outras modalidades criminosas em vigor? Para elas, é de suma importância um
aprofundamento dogmático.
Inicialmente, e de todo o exposto, resta claro que devem ser afastadas quaisquer
considerações de conteúdo moral presentes no Direito Penal sexual. Esvaziando-se o cabedal
dos atualmente chamados crimes contra a liberdade sexual e cingindo-os a questões atinentes
às práticas dadas com violência ou grave ameaça, resta ponderação ao tratamento jurídico-
penal sentido em questões como as de corrupção de menores, os crimes relativos à
prostituição e tráfico de pessoas e de ato obsceno e de escrito obsceno.
24
O crime de corrupção de menores, previsto na lei penal brasileira em seu art. 218,
incorpora-se a um capítulo em que também se tratava da sedução. Esta última foi abolida do
horizonte normativo pela novel Lei 11.106/05. Todavia, ainda tratava o Código Penal de
aspectos de fundo moral, prevendo punição no caso de sedução de menor de idade, virgem,
entre 14 e 18 anos, mantendo-se, com ela, conjunção carnal e abusando de sua inexperiência
ou justificável confiança. Nos dias atuais, nos resta saber, se, realmente, cabe a manutenção
de um tipo como o da corrupção de menores, conforme as exigências de um Direito Penal
sexual racionalmente orientado.
25
Tanto um crime como outro, denotam um profundo
sentimento de resguardo da figura dos menores de idade. Nesse sentido, nos casos de assédio
23
IBID. p. 364.
24
IBID. p. 365.
25
IBID. p. 366.
18
sexual não podemos omitir que a novel lei 12.015/09, prevê o aumento de pena em até 1/3 se
a vítima é menor de 18 anos.
A noção de corrupção de menores acabou por ganhar, no Brasil, outros tantos vetores.
Especificamente, a partir de 1954, estabeleceu-se ser também crime de corrupção de menores
o fato de com eles praticar infração penal, ou induzi-los a praticá-la. Hoje, o tipo penal é
previsto no art. 244-B do ECA, sendo punido com pena de reclusão de 1 a 4 anos. Apesar de
ambos os delitos tutelarem interesses de menores, aqui se cuida do desenvolvimento da
personalidade geral do mesmo, enquanto que aquele trata do aspecto de cunho sexual. Aqui, a
consideração moralista é tremenda. Pode-se afirmar que, conforme a regra codificada, não
seria passível a corrupção de alguém corrompido. Em outras palavras, o tipo destinar-se-ia
a uma proteção dos jovens entre 14 e 18 anos ainda não dados aos mistérios do sexo. Os
limites dessa corrupção é que ensejam as maiores ponderações.
Duas conclusões assim se firmam. A primeira é a de que, em se considerando não
haver uma violação ao bem jurídico liberdade de autodeterminação sexual, a idéia diferencial
de corrupção de menores segundo a qual alguns podem e outros não ser corrompidos não
merece guarida do Direito Penal sexual. Ainda mais não se tratando de situação de violência
ou grave ameaça. A segunda é que, dadas as peculiaridades próprias envolvendo o
desenvolvimento de jovens, semelhante tipo pode, eventualmente, ser tratado na esfera de
proteção destes, desde que venham a ser dados novos contornos ao tipo, procurando-se excluir
tão gritantes contornos moralizantes.
26
As situações envolvendo a prostituição merecem destaque. Não tem elas mais lugar
em uma construção afastada da moral. Assim, crimes como a mediação para servir a lascívia
de outrem (art. 227, do Código Penal), favorecimento da prostituição (art. 228, do Código
Penal), casa de prostituição (art. 229, do Código Penal) e rufianismo (art. 230, do Código
Penal) não mais têm espaço na lei. Além de não violarem a autodeterminação sexual nem se
utilizarem, em termos gerais, de violência ou de grave ameaça, somente se justificam se
houver uma perspectiva histórica de repressão ao que se considera impudico. Desta feita, as
condutas devem ser afastadas de qualquer sorte de previsão penal. O fundamento do
legislador para a criminalização das condutas acessórias à prostituição é o mesmo para a
criminalização de quem participa do suicídio de outrem pois, não é crime uma pessoa matar-
se (morte física), mas é crime um indivíduo auxiliá-la; não é delito uma pessoa prostituir-se
(morte moral), porém, é delito um indivíduo favorecê-la. Razões de sobejo existem para a
26
IBID. p. 367
19
incriminação do induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Do mesmo modo que na
eutanásia, o auxiliador viola a lei do respeito à vida humana e infringe interesse da vida
comunitária, de natureza moral, religiosa e demográfica. O direito no suicídio um fato
imoral e socialmente danoso, o qual cessa de ser penalmente indiferente, quando a causá-lo
concorre, junto com a atividade do sujeito principal, uma outra força individual estranha.
Por certo, duas exceções se fazem presentes em tal assertiva, merecendo previsão
legal; são questões envolvendo o abuso e a exploração da prostituição mediante violência,
grave ameaça ou qualquer situação em que se verifique uma violação do consentimento em se
livremente entregar à prostituição e acerca da prostituição infantil.
27
Em não se percebendo uma situação forçada e aqui leia-se a noção de força tanto
desde uma perspectiva do emprego de uma violência ou grave ameaça empregada, como
qualquer forma de exploração da prostituição, em que a iniciativa do agente que vende seu
corpo não se de forma espontânea -, ter-se-ia crime punível. Assim, por exemplo, havendo
um vício de vontade por questões financeiras ou por necessidades particulares ou familiares,
não se pode afirmar a livre disposição de vontade de uma dada pessoa. Em tais casos, por
certo, verifica-se uma patente violação da dignidade da pessoa humana. Em caso contrário
não.
A prostituição infantil, por outro lado, tem razões e fundamentos para uma repressão
maior. Tida em algumas legislações como subproduto da corrupção de menores, a prostituição
envolvendo menores de idade crianças ou adolescentes é problema de elevada monta,
especialmente em países como o Brasil, onde o chamado turismo sexual é preocupante. Ainda
que se considere que a prostituição não seja um delito em si e que as suas formas de
exploração não forçadas não devam consistir em delito, a sua vertente infantil é de ser
recriminada. Mas frise-se, não por mera inquietação moral, como, a princípio, pode parecer.
28
.
(Há regiões de nosso país, onde é comum os próprios pais “oferecerem” as filhas ou até
mesmo a filha mais velha assumir o papel de “mulher” do pai. Lembre-se que, para Freud, o
complexo de Édipo originário é com a mãe.). Genericamente, encontram-se posições várias,
as quais pontuam os eventuais bens jurídicos tratados em questões sexuais relativas a menores
de idade. Fala-se, por exemplo, de proteção quanto à liberdade sexual (quer negativa –
referente ao direito que toda a pessoa tem de não se envolver em um comportamento de
natureza sexual não-desejado-, quer positiva - vale dizer, a capacidade de o sujeito dispor
livremente de seu corpo) destes agentes e da questão da dignidade da pessoa humana ou da
27
IBID. p. 370
28
IBID. p. 371
20
identidade ou intangibilidade sexual dos menores. Todos têm, em certa medida, problemas
particulares. Em termos amplos, não parece correto se falar de liberdade sexual em se tratando
de hipossuficientes, já que eles têm limitações no exercício dessa liberdade
29
. Afora questões
subjetivas, como a da dignidade da pessoa humana como referencial penal, deve-se concluir
existir uma agressão à esfera da identidade sexual do menor, a qual, de per se, é intangível.
Com isso, não se busca uma proibição absoluta dos mistérios do sexo aos jovens coisa que
talvez pretendesse originariamente a norma nacional da corrupção de menores -, mas guardar
os mesmos de uma mercancia sexual. Se adultos podem por ela optar, não o podem crianças e
adolescentes que ainda não desenvolveram uma identidade apta ao exercício de tal liberdade.
Trata-se de soberania sexual, em que o próprio patrimônio sexual do indivíduo é usado de
forma contrária aos interesses do mesmo.
30
É de se observar, contudo, que tendencialmente diversas modernas legislações penais
estão por reconhecer a soberania sexual de adolescentes. Variando o marco inicial desta, tem-
se, em muitos países, a consagração de certa independência sexual dos jovens, a qual vai
aumentando até atingir a sua plenitude quando da maioridade civil. Dessa maneira, alguns
estatutos, como, v.g., o português, acabam por aceitar do conhecimento do sexo pelos jovens,
conferindo-lhes uma autonomia em práticas heterossexuais (aqui entendendo-se o coito oral,
vaginal ou anal), se nelas não se perceber uma situação de dependência em relação ao agente.
A não aceitação da disponibilidade de tal faculdade implicaria em um celibato forçado ou
uma castidade imposta dos jovens, dificilmente aceita nos dias atuais.
31
Poder-se-ia, inclusive, ir mais longe. A novel lei 12.015/09 criou a figura do “estupro
de vulnerável”, englobando as antigas formas de presunção de violência. De acordo com a lei,
ocorre o “estupro de vulnerável” na hipótese da prática de conjunção carnal ou ato libidinoso
diverso contra menores de 14 anos. Incorre no mesmo crime quem pratica as ações descritas
contra alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário
discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer
resistência. Mesmo nestes casos, é de se ter, eventualmente, um relativo poder de exercício de
faculdade sexual. Se assim não o fosse, estar-se-ia exercendo um tolhimento indelével da
própria liberdade sexual, condenando tais agentes a um obrigatório celibato. Sempre que a
pessoa, mesmo que dotada de anomalia mental, puder exprimir sua vontade de anuir com o
ato sexual, deve-se entender por um possível não criminalizado gerenciamento sexual. Em
29
IBID. p. 370-371
30
IBID. p. 372-373
31
IBID. p. 373-374
21
outras palavras, também intangível é a identidade sexual de portadores de retardo mental.
Aqui, como mencionado, é fundamental que se proceda a uma análise de como se deu a forma
de contato e permissão sexual, de quão grave é a doença alienante e de como pode ser
disponibilizada a faculdade. Vistos concretamente, por certo existirão casos em que se
permita e em que se proíba o ato. A proibição absoluta, no entanto, é que parece descabida.
32
Tais ponderações acabam por justificar que não se tem exclusiva abordagem de um
Direito Penal sexual, senão quando se trate de um aspecto sexual em especial do campo penal
juvenil, em que a própria regra da soberania não é exercida em sua plenitude, com regras e
dimensões próprias. A questão da prostituição infantil deve manter-se, pois, afastada do
regramento geral da lei penal sexual, ganhando campos em sede do Estatuto da Criança e do
Adolescente (como hoje se percebe no seu art. 244-A), norma justificável e que merece
manutenção. Observe-se que a lei especial aqui não assume idéias unicamente de norma,
mas, sim, de Código, com filigranas e regramentos próprios, como sena imputação de atos
infracionais ou de crimes típicos contra criança ou adolescente. Nesse sentido, há maior razão
para previsões no específico contexto do Estatuto.
33
Já a figura do tráfico de pessoas é mais complexa. A Lei nº 11.106/05 inovou a norma
codificada no que tange aos crimes de lenocínio e tráfico de mulheres ao abrir a tutela não
mais ao tráfico de mulheres, mas de pessoas, e redesenhar, assim tipos como os do art. 231 e
agora do art. 231-A. A partir de então, a repressão genérica é dada no que diz respeito a quem
promove, intermedia ou facilita, em âmbito nacional ou internacional, o recrutamento, o
transporte ou acolhimento genérico de quem venha a exercer a prostituição. Na realidade,
correspondendo ao que era previsto pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado, em seu art. 3°, o legislador nacional foi mais longe,
asseverando que o consentimento da pessoa prostituída não é válido para tais fins e que
apenas a sua não comprovação atestaria causa de aumento, como se no art. 231, § 2º, do
Código Penal. Isso não era mencionado no Protocolo, senão que o consentimento não seria
válida se constatada situação de vulnerabilidade ou prévia entrega de dinheiro para a obtenção
desse consentimento.
34
A noção de vulnerabilidade da vítima como um dos fatores decisivos para a
criminalização das condutas acessórias à prostituição, deu-se por simples influência moralista,
devendo tais tipos penais sofrer releitura.
32
IBID. p. 374
33
IBID. p. 374-375
34
IBID. p. 375
22
Por um lado, a norma internacional não obriga uma ampla tipificação e, por outro, o
substancial emprego de conteúdo moral percebido nos condutas incriminadas não mais pode
subsistir. Somente seriam minimamente aceitáveis figuras que fizessem alusão à
vulnerabilidade configurada na hipossuficiência da pessoa prostituída, nunca normas amplas
que, tenham por escopo cuidar da prostituição. Esta não diz respeito ao Direito Penal.
35
Por certo, o direito tem sofrido profundas transformações na atualidade, por força das
mudanças da sociedade. Tomando conhecimento do Inconsciente freudiano e,
conseqüentemente, de uma outra cena, que não aparece nas audiências, advogados, juízes e
Promotores comprometidos com a ética da Ciência Jurídica não se baseiam apenas em seu
próprio juízo de valor moral, mas acolhem os laudos e pareceres fundamentados na
subjetividade de cada caso. Para tal, foi preciso também que o julgador se despojasse do poder
que lhe foi instituído para creditar valor à determinação dos processos inconscientes, à lógica
do desejo. Com isso, o Direito tende a ficar cada vez mais próximo da possibilidade de fazer
justiça.
36
2.4 Revisitando Dora
Para o Direito Penal, “corromper” tem a significação de perverter, viciar, depravar.
Obviamente, para que se corrompa alguém, é necessário que se trate de pessoa não
moralmente corrompida. Em sua defesa o Sr. K “lançou suspeitas” sobre Dora, dizendo que
ouvira que ela tinha interesse em assuntos sexuais e que costumava ler “a Fisiologia do
amor, de Mantegazza.”
Começara então a lançar suspeitas sobre a moça, dizendo que ouvira de Frau
K. que ela tinha interesse em assuntos sexuais, e que costumava ler a
Fisiologia do Amor, de Mantegazza e livros desta espécie em sua casa no
lago. Era muito provável, acrescentara, que ela se tivesse excitado demais
com tais leituras e simplesmente “imaginara” toda a cena que descrevera.
37
Ao que parece, ‘o caso Dora‘ não se adequa a nenhuma das hipóteses legais
mencionadas: não houve induzimento a nenhum tipo de crime, conforme dispõe o art. 244-B
35
IBID. p. 376
36
.LIMA, Alba Abreu. Psicologia Jurídica: lugar de palavras ausentes. Rio de Janeiro, Evocati, 2007. p. 77-78.
37
FREUD, Sigmund. Um caso de histeria. Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos. V. 7. Rio de
Janeiro: Imago, 1972 p. 23-24.
23
do Estatuto da Criança e do Adolescente; não houve estupro, ou seja, ato sexual mediante
violência ou grave ameaça e, finalmente, não houve divulgação por qualquer meio de
comunicação de imagens pornográficas, envolvendo adolescente, como dispõe o art. 241 do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Para a Psicanálise, ‘o caso Dora‘ é emblemático e perturbador. Para o direito, uma
questão que poderia ser cuidada em área não penal.
3 Capitulo II
3.1 A sexualidade em Freud
Cabe, neste momento, pesquisar a questão da sexualidade em Freud. Para a
psicanálise, o desejo sexual é profundamente enigmático. Especialmente o desejo das
mulheres, uma vez que todos nascemos de uma mulher.
No clássico “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
38
, Freud refere-se a uma
“pulsão sexual”, fazendo uma analogia com a “pulsão de nutrição”: a fome. O equivalente à
fome seria a libido, que não por acaso é um vocábulo feminino.
Freud introduz dois conceitos: o de “objeto sexual”, a pessoa de quem provém a
atração sexual e “alvo sexual”, a ação para a qual a pulsão impele.
Freud estuda também a homossexualidade (inversão sexual), classificando-a em três
tipos: invertidos absolutos (objeto sexual pode ser do mesmo sexo), anfígenos (objeto
sexual pode pertencer a ambos os sexos) e ocasionais (em função de condições externas).
Afirma que a inversão pode ser aceita pela pessoa ou sentida como patológica e que pode
aparecer em diferentes momentos da vida.
Freud refuta a concepção da inversão como uma degeneração e como um caráter
absolutamente inato. Além disso, assevera a importância de algo do indivíduo na tendência à
inversão, uma vez que as influências externas não são suficientes para explicá-la.
38
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 149.
24
Para Freud, nem a hipótese de que a inversão é inata, nem tampouco a conjectura
alternativa de que é adquirida explicam sua natureza.
Freud supõe uma bissexualidade universal e uma independência da escolha objetal em
relação ao sexo do objeto: “Assim somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe em nossos
pensamentos entre a pulsão e o objeto. É provável que, de início, a pulsão sexual seja
independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem aos encantos destes.”
39
Freud cita “a teoria do hermafroditismo psíquico”
40
, que pressupõe que o objeto
sexual dos invertidos seja o oposto do normal. O homem invertido sucumbiria, como a
mulher, ao encanto proveniente dos atributos masculinos do corpo e da alma, sentir-se-ia
como uma mulher e buscaria o homem.
No entanto, alerta Freud:
“Por melhor que se aplique a toda uma série de invertidos, ainda está
longe de revelar uma característica universal da inversão. Não dúvida
alguma de que uma grande parcela dos invertidos masculinos preserva o
caráter psíquico da virilidade, traz relativamente poucos caracteres
secundários do sexo oposto e, com efeito, busca em seu objeto sexual traços
psíquicos femininos. Não fosse assim, seria incompreensível o fato de a
prostituição masculina, que hoje como na Antigüidade se oferece aos
invertidos, copiar as mulheres em todas as exteriorizações da indumentária e
do porte; tal imitação, de outro modo, ofenderia necessariamente o ideal dos
invertidos. Nos gregos, entre os quais os homens mais viris figuravam entre
os invertidos, está claro que o que inflamava o amor do homem não era o
caráter masculino do efebo, mas sua semelhança física com a mulher, bem
como seus atributos anímicos femininos: a timidez, o recato e a necessidade
de ensinamentos e assistência. Mal se tornava homem, o efebo deixava de
ser um objeto sexual para o homem, e talvez ele próprio se transformasse
num amante de efebos. Nesses casos, portanto, como em muitos outros, o
objeto sexual não é do mesmo sexo, mas uma conjugação dos caracteres de
ambos os sexos, como que um compromisso entre uma moção que anseia
pelo homem e outra que anseia pela mulher, com a condição imprescindível
da masculinidade do corpo (da genitália): é, por assim dizer, o reflexo
especular da própria natureza bissexual.”
41
Freud conclui que há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma “solda” e não
uma íntima ligação como imaginava o autor.
Freud fala da criança, como objeto sexual. Excepcionalmente, explica, as crianças são
objetos sexuais exclusivos. Passam a desempenhar este papel quando um indivíduo covarde
39
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 144
40
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 145.
41
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 150.
25
ou impotente presta-se a usá-las como substituto, ou ainda, quando uma pulsão urgente não
pode apropriar-se, no momento, de nenhum objeto mais adequado.
Lembre-se que o nosso ordenamento jurídico traz várias figuras típicas punindo a
denominada “pedofilia”. Aliás, tal vocábulo não tem previsão na nossa legislação. Muito dos
crimes sexuais contra a criança se dão através da internet, com adequações típicas
individualizadas ou, no caso de haver violência real ou presumida a figura adequada é a do
estupro, prevista no Código Penal.
Freud define a expressão “alvo sexual normal” como “a união dos genitais no ato
designado como coito, que leva à descarga da tensão sexual e à extinção temporária da pulsão
sexual”.
42
Destaca ainda, que certas relações intermediárias com o objeto sexual (a caminho
do coito), “tais como apalpá-lo e contemplá-lo”, são reconhecidas como alvos sexuais
preliminares que, “de um lado, trazem prazer em si mesmas, e de outro intensificam a
excitação que deve perdurar até que se alcance o alvo sexual definitivo.” Freud destaca ainda
a importância do beijo no contato sexual, que apesar das partes do corpo nele implicadas não
pertencerem ao aparelho sexual, constitui a entrada do tubo digestivo. Estão descritos, para
Freud, “fatores que permitem ligar as perversões à vida sexual normal”. Freud divide as
perversões em dois grupos: transgressões anatômicas quanto às regiões do corpo destinadas à
união sexual ou demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual, que normalmente
seriam atravessadas com rapidez a caminho do alvo sexual final”.
43
O uso da boca como órgão sexual é considerado para Freud como “perversão” quando
“os lábios de uma pessoa entram em contato com a genitália de outra”. Quem por considerar
tal prática perversão, certamente usual desde os primórdios da humanidade, cede nisso “a um
claro sentimento de asco que o resguarda de aceitar tal alvo sexual”. Freud destaca que os
limites deste asco são “puramente convencionais”, pois aquele que beija com ardor os lábios
de uma mulher, “talvez usasse com asco a escova de dentes dela, embora não tenha nenhuma
razão para supor que sua própria cavidade bucal seja mais limpa que a da moça”.
O uso sexual do orifício anal, também é analisado por Freud. “O papel sexual da
mucosa do ânus de modo algum se restringe à relação sexual entre os homens, nem tampouco
a predileção por ela é característica da sensibilidade dos invertidos.”
44
Freud observa que “ao menos para os seres humanos”, é indispensável uma certa dose
do uso do tato para que se atinja o alvo sexual normal. Dificilmente, “demorar-se no tocar,
42
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 150.
43
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 151.
44
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 153.
26
desde que o ato sexual seja levado adiante, pode contar entre as perversões. O mesmo se
com o olhar. A impressão visual continua a ser o caminho mais freqüente pelo qual se
desperta a excitação libidinosa.”
45
Na perversão que aspira ao olhar e ser olhado distingue-se, segundo Freud, um traço
“curiosíssimo”. O alvo sexual apresenta-se numa configuração dupla, nas formas ativa e
passiva. A força que se opõe, eventualmente, ao prazer de ver, para Freud é a “vergonha”.
A inclinação a infligir dor ao objeto sexual, bem como sua contrapartida, são para
Freud, as “mais freqüentes e significativas de todas as perversões.” No que concerne à
“algolagnia ativa” (o sadismo), suas raízes são fáceis de apontar nas pessoas normais. A
sexualidade da maioria dos varões, explica Freud, “exibe uma mescla de agressão, de
inclinação a subjugar, cuja importância biológica talvez resida na necessidade de vencer a
resistência do objeto sexual de outra maneira que não mediante o ato de cortejar.”
46
O
conceito de sadismo, para Freud oscila “na linguagem corriqueira, desde uma atitude
meramente ativa ou mesmo violenta para com o objeto sexual até uma satisfação
exclusivamente condicionada pela sujeição e maus-tratos a ele infligidos. Num sentido estrito
somente este último caso extremo merece o nome de perversão.”
A designação de “masoquismo” abrange todas as atitudes passivas perante a vida
sexual. O masoquismo, explica Freud “não é outra coisa se não uma continuação do sadismo
que se volta contra própria pessoa, que com isso assume para começar o lugar do objeto
sexual. “O sadismo e o masoquismo ocupam entre as perversões um lugar especial, já que o
contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base pertence às características
universais da vida sexual.”
47
A história da civilização humana nos ensina que a crueldade e a pulsão sexual estão
intimamente correlacionadas, mas, lembra Freud, “no esclarecimento desta co-relação não se
foi além de acentuar o fator agressivo da libido.”
48
Freud também trata da sexualidade infantil, destacando “o que é um equivoco de
graves conseqüências”, achar que ela está ausente na infância e que desperta no período da
vida designado de puberdade. Tal equívoco, segundo Freud, “é o principal culpado de nossa
ignorância de hoje sobe as condições básicas da vida sexual.”.
A razão da denominada “amnésia infantil” também é explorada por Freud nos “Três
Ensaios”. A razão dessa estranha negligência pode ser buscada, “em parte nas considerações
45
FREUD, Sigmund.. Op. Cit.p. 157.
46
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 159.
47
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 160.
48
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 160-161
27
convencionais que os autores respeitam em conseqüência de sua própria criação”, e em parte,
destaca Freud “num fenômeno psíquico que até agora escapou a qualquer explicação”. O
“chuchar”, para Freud é uma das manifestações sexuais infantis. Tal ato, “que aparece no
lactante e pode continuar até a maturidade ou persistir por toda a vida” consiste, como
sabemos na repetição rítmica de um contato de sucção com a boca, do qual está excluído o
propósito de nutrição. O sugar com deleite alia-se a uma absorção completa e leva ao
“adormecimento”, ou mesmo a uma reação motora que Freud descreve como uma espécie de
“orgasmo”. Não raro o “chuchar” combina-se com a fricção de alguma parte sensível do
corpo. Freud observa que, por esse caminho muitas crianças passam do “chuchar” para a
masturbação. Freud no “chuchar” uma manifestação sexual, devendo-se estudar nele “os
traços essenciais da atividade sexual infantil”.
Do exemplo do “chuchar” Freud parte para a dedução do que é uma zona erógena:
“trata-se de uma parte da pele ou da mucosa em que certos tipos de estimulação provocam
uma sensação prazerosa de determinada qualidade”.
A propriedade erógena pode ligar-se de maneira mais marcante a certas partes do
corpo. Mas, ensina Freud “a qualidade do estímulo, mais do que a natureza das partes do
corpo, é que tem haver com a produção da sensação prazerosa”.
49
O alvo sexual da pulsão infantil consiste em provocar a satisfação mediante a
estimulação apropriada da zona erógena que de algum modo foi escolhida. Freud alegra-se ao
descobrir que, “uma vez compreendida a pulsão vinda de única zona erógena, não temos
muito mais coisas importantes a aprender sobre a atividade sexual das crianças”
50
. A
sexualidade humana é perversa porque é infantil.
Ao mesmo tempo em que a vida sexual da criança chega à sua primeira florescência,
entre os 3 e os 5 anos, também se inicia nela a atividade que se inscreve na pulsão de saber
ou de investigar”. “De onde vêm os bebês”, é a primeira questão que ocupa a criança após o
despertar “da pulsão de saber”. Freud lembra que este é também o enigma proposto pela
Esfinge de Tebas. A Esfinge era um ser estranho, com corpo de leão, patas de boi, asas de
águia e rosto humano. Seu enigma: O que é que tem quatro pés de manhã, dois ao meio dia e
três à tarde? Édipo respondeu que era o homem, porque engatinha quando criança, passa a
vida andando sobre dois pés, mas,velho, tem que recorrer a uma bengala. A Esfinge matou-se,
e Édipo, casando-se com Jocasta, tornou-se o rei de Tebas.
49
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 187-188
50
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 190
28
Com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual
infantil a sua configuração normal definitiva. Até esse momento, lembra Freud:
pulsão sexual era predominantemente auto-erótica; agora, encontra o objeto
sexual. Até ali, ela atuava partindo de pulsões e zonas erógenas distintas que,
independendo uma das outras, buscavam um certo tipo de prazer como alvo
sexual exclusivo. Agora, porém, surge um novo alvo sexual para cuja
consecução todas as pulsões parciais se conjugam, enquanto as zonas
erógenas subordinam-se ao primado da zona genital. Posto que o novo alvo
sexual atribui aos dois sexos funções muito diferentes, o desenvolvimento
sexual de ambos passa agora a divergir muito. O do homem é o mais
conseqüente e também o mais facilmente acessível a nossa compreensão,
enquanto o da mulher representa até mesmo uma espécie de involução. A
normalidade da vida sexual é assegurada pela exata convergência das
duas correntes dirigidas ao objeto sexual e à meta sexual: a de ternura e a
sensual. A primeira destas comporta em si o que resta da primitiva
eflorescência infantil da sexualidade. É como a travessia de um túnel
perfurado desde ambas as extremidades.
51
Freud lança um olhar para o modo como as zonas erógenas se encaixam “na nova
ordem”, destacando que sobre elas recai um papel importante na introdução na excitação
sexual:
o olho , talvez o ponto mais afastado do objeto sexual, é o que com
mais freqüência pode ser estimulado, na situação de cortejar um objeto, pela
qualidade peculiar cuja causa no objeto sexual costuma ser chamada de
‘beleza’. Daí se chamarem “atrativos” os méritos do objeto sexual. A essa
estimulação já se liga, por um lado, um prazer, e pelo outro ela tem como
conseqüência um aumento da excitação sexual ou a produção dela, caso
ainda esteja faltando. Se a isso vem somar-se a excitação de outra zona
erógena, por exemplo, a da mão que é tocada, o efeito é o mesmo: uma
sensação de prazer, de um lado, que logo se intensifica pelo prazer
proveniente das alterações preparatórias (da genitália), e, de outro, um
aumento da tensão sexual, que logo se converte no mais evidente desprazer
quando não lhe é permitido o acesso a um prazer ulterior. Talvez mais
transparente ainda seja um outro caso: por exemplo, quando se estimula por
contato, numa pessoa não excitada sexualmente, uma dada zona erógena,
digamos, a pele do seio de uma mulher. Esse contato logo provoca uma
sensação prazerosa, mas, ao mesmo tempo, presta-se como nenhum outro
para despertar uma excitação sexual que exige um aumento do prazer. O
problema está justamente em saber como é que o prazer vivenciado pode
despertar a necessidade de um prazer ainda maior.
52
Perto do final da vida, efetuando uma crítica sobre si próprio, Freud não hesita em
afirmar que durante o seu percurso lhe escapou alguma coisa da feminilidade, "esse
continente negro". E dirige a Marie Bonaparte a pergunta que se tornou célebre: “A grande
51
FREUD, Sigmund. Op. Cit. p. 213
52
FREUD, Sigmund.. Op. Cit. p. 215-216
29
questão, que nunca foi respondida e que ainda não sou capaz de responder, a despeito de meus
trinta anos da alma feminina, é ‘Que deseja uma mulher’.”
53
No desenvolvimento de sua teoria, abandonando o método catártico, Freud mostrou a
ocorrência de uma situação específica, a transferencial; aprofundou o uso do método da
associação livre e assinalou a ocorrência do recalque. Tal estudo levou-o a adotar o conceito
do inconsciente, inicialmente compreendido como a consciência, da qual nada se conhecia.
Para compreender a origem dos sintomas, Freud foi levado, cada vez mais, à história do
paciente, chegando aos primeiros anos de vida, isto é, à infância. Dessa forma, descobre a
sexualidade infantil, novidade que enfrentaria a barreira dos preconceitos humanos,
despertando indignação e contestação. Seguiram à revelação da sexualidade infantil, o
reconhecimento das fantasias, das teorias sexuais infantis, o desejo, as fases de evolução da
libido, sonhos e um trabalho mais detalhado sobre o tratamento psicanalítico.
Freud dizia que no projeto da criação não foi contemplado o fato de o homem ser feliz.
Os que mais sofrem são aqueles que querem a felicidade ferrenhamente. A infância não é
feliz; é um período sofrido, segundo Freud porque se está no caminho da construção do
aparelho psíquico e se entra no mundo do desejo, que é prazer e desprazer.
3.2 Os poetas e as mulheres
Freud concluiu no final da Conferência XXXIII sobre a “FEMINILIDADE”:
Mas não se esqueçam de que estive apenas descrevendo as mulheres
na medida em que sua natureza é determinada por sua função sexual. É
verdade que essa influência se estende muito longe; não desprezamos,
todavia, o fato de que uma mulher possa ser uma criatura humana também
em outros aspectos. Se desejarem saber mais da vida dos senhores, ou
consultem os poetas, ou aguardem a que a ciência possa dar-lhes
informações mais profundas e mais coerentes
54
.
Sucessivas gerações de homens retomaram a pergunta ‘’o que quer uma mulher’’,
desde que Freud confessou sua perplexidade à amiga Marie Bonaparte no começo do século
passado. Ninguém conseguiu ou conseguirá respondê-la. Para a Psicanálise, como disse, o
53
JONES, Ernest. Vida e obra de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, p. 416.
54
FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Obras Completas. v. 22. Rio de
Janeiro: Imago, 1933(1932). p. 165. (O grifo é do autor da dissertação).
30
desejo é enigmático para homens e mulheres e, ainda, pode ser desvendado caso a caso,
tornando qualquer generalização uma banalidade. Contudo, os poetas são fontes valiosas para
entendermos o ‘’que quer uma mulher?’’ A poesia, para mim, significou a porta de entrada
para tentar falar de Psicanálise. Sou um professor de direito apaixonado pela poesia, pela arte
e pela música, como, por exemplo, Florbela Espanca (‘’Não és sequer razão do meu viver,
pois que tu és já toda a minha vida!‘’), Cora Coralina (Não sei ... se a vida é curta ... / .Não sei
... se a vida é curta ou longa demais para nós / Mas sei que nada do que vivemos tem sentido /
Se não tocarmos o coração das pessoas.‘’) e, claro, Chico Buarque (‘’Sabia, gosto de você
assim, arrancando páginas dentro de mim desde o primeiro dia!‘’). O fato é que a vida, sem
poesia, fica muito sem graça.
Os poetas dizem o “indizível”. Na verdade, não sabem o que estão dizendo.
Simplesmente dizem! Nelson Rodrigues, por exemplo, que, pessoalmente dizia muita besteira
(“para a mulher, a psicanálise é como se fosse um toque ginecológico, sem luva”...), enquanto
poeta, tocava a fundo na alma feminina. Basta ler “Vestido de Noiva”.
Ao que parece, Pablo Neruda também sabia “o que quer uma mulher”. No filme “O
carteiro e o poeta”, Pablo, então exilado numa ilha de pescadores na Itália, conhece Mario
Ruoppolo, carteiro da ilha. Cliente único numa população de analfabetos, o poeta chileno
exerce um fascínio crescente sobre Mario, encantado com seu poder de enlouquecer as
mulheres com seus “poemas de amor”. Dia após dia, o carteiro sobe a encosta íngreme em sua
bicicleta para falar com o poeta, ainda que não tenha correspondência para lhe entregar. Um
dia, depois de muito ensaiar diante do espelho, vai até Neruda pedir-lhe uma dedicatória para
as Odes Elementares que havia comprado. Insistente, Mario repete versos dessa composição e
acaba por irritar o poeta, que o rechaça pedindo-lhe que não o amolasse mais com suas
metáforas.
Mario não se intimida. Ao contrário, curioso pergunta “o que são metáforas?”. Neruda,
rindo, repete: “Metáforas?... Metáforas são... Como posso explicar? Quando se fala uma coisa
comparando-a com outra.” Impressionado com o que lera na véspera, Mario pergunta ao poeta
se também era uma metáfora: “O cheiro de uma barbearia me faz soluçar em voz alta.”
Neruda diz “não exatamente” e Mario continua: “Também gostei quando escreveu: ‘Estou
cansado de ser um homem. Isso também acontece comigo, mas nunca soube como dizer.” E
pergunta: “Por que ‘o cheiro de uma barbearia me faz soluçar em voz alta’?”. Neruda explica:
“Você vai ver, Mario, eu não poderia lhe dizer com palavras diferentes das que usei. Quando
você a explica, a poesia fica banal. Melhor do que qualquer explicação é a experiência de
sentimentos que a poesia pode revelar a uma alma suficientemente aberta para entendê-la”.
31
Mario fica cada dia mais fascinado pelo chileno e dessa relação encantada nasce no carteiro o
desejo de ser poeta. “Eu também gostaria de ser um poeta... Como alguém vira poeta?”,
pergunta. “Tente caminhar lentamente pela costa até a baía e olhando à sua volta”. “E elas
virão para mim, as metáforas?”. “Certamente”, afirma o poeta.
Um dia, Mario cria sua primeira metáfora. Enquanto o poeta recitava, diz que se sentiu
estranho, com as palavras indo para frente e para trás como o mar. “Na verdade me senti
enjoado. Porque... não sei explicar... me senti como um barco balançando nas suas palavras.”
“Sabe o que acabou de fazer, Mario?”. “Não, o quê?”. “Você inventou uma metáfora.”
Cativo das metáforas do poeta, Mario tentará usar a mesma arma para conquistar a sua
Beatriz. D. Rosa entra no quarto da sobrinha e, surpresa, quer saber em que ela está pensando
com a janela aberta; Beatriz diz “em metáforas”. “Metáforas? Nunca tinha ouvido você falar
assim antes. Que metáforas ele fez para você?”, interroga a tia nervosa. “Ele disse que meu
sorriso se espalha como borboletas.” “E depois, o que fez Mario?”, quer saber D. Rosa, já que
“seu carteiro, além de uma boca tem duas mãos”. Ela fica espantada ao saber que ele não
encostou suas mãos em Beatriz e que trocaram apenas palavras e olhares; entretanto, Beatriz
sentiu como se ele estivesse tocando nos seus cabelos. “Já chega”, diz a tia: “Quando um
homem começa a lhe tocar com palavras, não está longe de lhe tocar com as mãos.” A
sobrinha diz: “Não tem nada de errado com as palavras”, mas a tia responde: “Palavras são as
piores coisas que existem. Eu prefiro um bêbado no bar tocando seu traseiro do que alguém
que lhe diz: ‘seu sorriso voa como uma borboleta!’”. Beatriz a corrige dizendo que é
“espalha-se como uma borboleta”. D. Rosa sai em busca de Neruda para se queixar que Mario
seduziu sua sobrinha com “metáforas... Ele a deixou tão quente quanto um forno com suas
metáforas... Sua boca está cheia de feitiços”. Don Pablo ri.
*
Chico Buarque (nome artístico do poeta, músico e escritor Francisco Buarque de
Hollanda) também sabe exatamente “o que quer uma mulher”. Modesto, diz ser um curioso
do universo feminino. “Me esforço, tento entender, mas acho que nunca vou conseguir. As
mulheres são surpreendentes e misteriosas.”
**
Compor canções que são trilha sonora de
muitos namoros é motivo de alegria para o compositor. O artista ressalta que as canções de
amor predominaram durante o século XX em quase todas as músicas populares, como a
brasileira, a americana, a cubana e a argentina, mas o século XXI é uma incógnita para a
sensibilidade. Para ele, as canções românticas estão associadas à juventude dos sentimentos,
na medida em que pressupõe uma espontaneidade a uma ingenuidade próprias do
*
O carteiro e o poeta (filme). Dirigido por Michael Ford, 1994.
**
À Flor da Pele (DVD). Dirigido por Roberto de Oliveira, 2006
32
desconhecimento do mundo. Na maturidade, os compositores tendem a fazer música cerebral.
grandes mestres como Vinícius de Moraes e Dorival Caymmi sabem cultivar a
ingenuidade.
Para o músico, “a música mais bonita do mundo” é Everytime We Say Goodbye, do
compositor americano Cole Porter. Sempre perambulando pelas ruas e vielas de Paris, o
artista explica as várias vertentes das canções românticas da música brasileira, como as
canções de dor-de-cotovelo, as canções rasga-coração, as canções de reconciliação e as
canções de despedida. As canções românticas são, para o autor, de “amolecer coração de
moça”.
***
Segundo Chico Buarque, uma das vertentes mais recentes nos anos setenta, anos do
pós-feminismo, é a canção de separação, que trata dos rompimentos amorosos dos jovens
casais, como, por exemplo, a sua Trocando em Miúdos.
Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças
Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter
Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado
Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.
Curiosamente, até mesmo numa canção como essa, que descreve momentos da
separação de um casal, os censores da época (1978) enxergavam uma tentativa de subversão.
***
Romance (DVD). Dirigido por Roberto de Oliveira (2006)
33
A simples referência a Neruda, que pertencera ao Partido Comunista chileno, era suficiente
para proibirem a letra. Ao tomar conhecimento do motivo absurdo de proibição, o autor teria
dito aos advogados encarregados de lidar com a censura que não havia nenhum perigo de
subversão, já que, a moça, embora tenha ficado com o livro, nunca chegou a lê-lo...
55
No passado, as pessoas enchiam cartas de amor com citações de poemas. Hoje, os
casais traçam versos de músicas. As canções fornecem galanteios, cantadas e torpedos para os
namorados. E foi-se o tempo em que galantear era uma prerrogativa masculina. Para Chico,
“hoje muitas compositoras que partem direto para o ataque”. Ele fala dos “piropos”, que
são versos feitos para conquistar a mulher amada, e diz que Vinícius era um mestre no gênero.
Chico Buarque parece entender como ninguém a “alma feminina”. Em “Com Açúcar,
com afeto”, apresenta sua primeira canção em que assume a posição feminina, revelando a
capacidade que se tornaria uma de suas marcas registradas. Foi composta por encomenda de
Nara Leão, que gostava de cantar música “onde a mulher fica em casa chorosa, e o marido na
rua farreando”.
Com açúcar, com afeto,
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Você diz que é operário
Vai em busca do salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê
No caminho da oficina
Há um bar em cada esquina
Pra você comemorar
Sei lá o quê!
Sei que alguém vai sentar junto
Você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias
De quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol
Vem a noite e mais um copo
Sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo
Vai bater um samba antigo
Pra você rememorar
Quando a noite enfim lhe cansa
55
HOMEM, Wagner. Histórias de Canções. Rio de Janeiro: LeYa, 2009, p. 176-177.
34
Você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão
Qual o quê
Diz pra eu não ficar sentida
Diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Ainda quis me aborrecer
Qual o quê
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você.
3.3 Psicanálise e Direito: paradoxos
Segundo Lacan, o suicídio é o único ato bem sucedido. Freud, aos 83 anos de idade
sofria de câncer na mandíbula. Morreu de uma overdose de morfina, aplicada por seu próprio
médico, a seu pedido. Temos aí, um caso clássico de eutanásia, que para o Direito Penal
brasileiro é crime, definido como um homicídio privilegiado (com diminuição da pena) por
um relevante valor moral. Em que pese a diminuição de pena, trata-se de crime, pois a vida
humana é um bem indisponível. Seria então Freud, um transgressor do direito posto?
35
Conclusão
Se um imperativo psicanalítico, é que não devemos nos calar diante do que não
pode ser dito. A regra de falar tudo o que vem à mente, a associação livre instituída por Freud,
é decorrente desse imperativo que cada psicanalista mantém em sua clínica. É uma aposta: a
de que na construção da própria história possa emergir o sujeito do inconsciente.
56
A poesia constituiu, para mim, a porta de entrada para tentar falar de psicanálise e
direito. Não fosse Florbela Espanca, Cora Coralina, Pablo Neruda e Francisco Buarque de
Holanda, este trabalho não seria possível.
Enquanto o advogado trabalha a queixa do seu cliente para moldá-lo na forma do
discurso jurídico, o psicanalista, por outro lado, subverte essa queixa, escutando mais além do
que é dito, buscando apreender o sentido obscuro da queixa, o desejo singular do sujeito.
57
Por certo, o direito tem sofrido profundas transformações na atualidade, por força das
mudanças da sociedade e vem tomando conhecimento do Inconsciente freudiano. Este é um
ponto importante: o direito utilizar da psicanálise como mais uma ferramenta colaboradora do
cumprimento do seu verdadeiro papel, que é promover a justiça. É ingênuo pensar-se que
criar novos crimes, ou aumentar as penas dos crimes existentes, irá inibir o criminoso de
cumprir o seu intento. Oportuno lembrar-se de que a guerra entre as torcidas dos diversos
clubes, que tantas mortes e feridos causava no Rio de Janeiro, cessou quando um grupo de
oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro resolveu estudar o comportamento dos torcedores
sob o ponto de vista psicanalítico. Um dos objetivos do estudo era entender a cabeça dos
chefes de torcida. Hoje, cento e vinte policiais militares controlam, com eficácia, as torcidas
em dias de grandes jogos, quando no passado um batalhão inteiro não era suficiente para
evitar a violência.
Este trabalho, que tenta a conexão entre direito e psicanálise, é mais um tijolo nesta
construção na tomada de consciência de uma outra cena que não aparece nas audiências. O
olhar psicanalítico procura retirar muito do pragmatismo jurídico. Para o direito, é branco ou
preto; para a psicanálise, há o cinza, em vários matizes.
56
LIMA, Alba Abreu. Psicologia Jurídica: lugar de palavras ausentes. Rio de Janeiro: Evocati, 2007.
57
IBID p. 44.
36
Produto
Ao término de minha dissertação, concluo que a psicanálise guarda uma estreita
relação com o Direito Penal ao se ocupar de problemas básicos e aspectos importantes do fato
criminal (processo motivacional, valor simbólico da conduta delitiva, funcionalidade da pena
etc.). Seu corpo de doutrina gira, fundamentalmente, em torno do inconsciente humano que
a psicanálise trata de explorar mediante a introspecção e os conflitos intrapsiquicos do
indivíduo, determinantes de sua personalidade e comportamento.
A contribuição criminológica mais significativa das doutrinas psicanalíticas discorre
em dois planos: o teórico e o clínico, trazendo uma sugestiva explicação do delito e do
castigo, e uma nova terapia, útil para determinadas perturbações psíquicas. Com efeito, a
psicanálise oferece uma rica gama de explicações para o comportamento delitivo. Neste
sentido é que vemos uma importante parceria entre o direito penal e a psicanálise. Esta foi
decisiva para acabar com as guerras entre as torcidas dos diversos clubes cariocas, que tantas
mortes e feridos provocavam dentro e fora dos estádios. Na década de 80, designou-se um
grupo de oficiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro para estudar o
comportamento dos torcedores sob o ponto de vista psicanalítico. O resultado é que, hoje,
cento e vinte policiais, que compõem um Grupamento em estádios, controlam as torcidas em
dias de grandes jogos, o que dois batalhões inteiros não o faziam.
Neste diapasão é que propomos um seminário a ser realizado na Academia de Polícia
Militar D. João VI, berço do oficial combatente da Polícia Militar, abordando o crime, sob o
olhar psicanalítico. Tal proposta encontra-se oportuna, vez que, a formação do oficial, cada
vez mais, vem se desvencilhando de ultrapassados modelos. Hoje se pensa numa Polícia
Militar prestadora de serviços que entende o fenômeno criminal sob a ótica sociopolítica,
inerente a qualquer sociedade. Deve-se romper, em definitivo, com a ideologia militar de
segurança nacional e adotar-se uma Polícia Militar cidadã, intransigente com os criminosos,
mas respeitadora dos direitos fundamentais. A psicanálise tem muito a contribuir na formação
do oficial PM do século XXI.
37
Referências
À FLOR DA PELE. Direção: Roberto de Oliveira. Produção: André Arraes, Camila Villas-
Boas, Eduardo Levy e Jorge Saad Jafet. Intérpretes: Chico Buarque, Caetano Veloso, Francis
Hime, Leo Jaime, Milton Nascimento, Nara Leão. Trilha sonora: Chico Buarque de Hollanda.
EMIBR. 1 DVD, (96 min), son., color.
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. Vol. 3. 7 ed. São Paulo: Saraiva,
2001.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. In:
Comentário conimbricense do código penal. Parte especial. Coimbra: Coimbra Editora,
1999.
FREUD, Sigmund. Um caso de histeria. Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos.
Volume VII. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
HOMEM, Wagner. Histórias de canções. Rio de Janeiro: LeYa, 2009.
JONES, Ernest. Vida e obra de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
LIMA, Alba Abreu. Psicologia Jurídica: Lugar de Palavras ausentes. Rio de Janeiro:
Evocati, 2007.
LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 29 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989.
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.
O CARTEIRO E O POETA.
Direção: Michael Radford. Intépretes: Massimo Troisi, Philippe
Noiret, Maria Grazia Cucinotta, Renato Scarpa, Linda Moretti, Mariano Rigillo, Anna
Bonaiuto, Bruno Alessandro (voz de Pablo Neruda). Buena Vista Pictures, 1994. 1 DVDRip
(116 min), son., color.
ROMANCE. Direção: Roberto de Oliveira. Produção: João Wainer, Celso Tavares.
Intérpretes: Chico Buarque, Daniela Mercury, Edu Lobo, Elis Regina. Trilha sonora: Chico
Buarque de Hollanda. EMIBR. 1 DVD, (95 min), son., color.
38
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes sexuais: bases críticas para a reforma do direito
penal sexual. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
39
Seminário
Tempo: uma semana de seminário técnico intensivo
Público-alvo: Alunos Oficiais PM
Local: Av. Marechal Fontenelle, 2906, Jardim Sulacap