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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL
SAMANTA COLHADO MENDES
AS MULHERES ANARQUISTAS NA CIDADE DE SÃO PAULO
(1889 1930)
FRANCA
2010
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SAMANTA COLHADO MENDES
AS MULHERES ANARQUISTAS NA CIDADE DE SÃO PAULO
(1889 1930)
Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de
História, Direito e Serviço Social da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como pré
requisito para obtenção do título de mestre em História.
Área de Concentração: História e Cultura Social.
Orientador: Prof° Dr. Moacir Gigante
FRANCA
2010
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Mendes, Samanta Colhado
As mulheres anarquistas na cidade de São Paulo : 1889-1930 /
Samanta Colhado Mendes. Franca : UNESP, 2010.
Dissertação Mestrado História Faculdade de História,
Direito e Serviço Social UNESP
1. Anarquismo História Brasil. 2. Mulheres Movimento
operário São Paulo, 1889-1930. 3. Feminismo.
CDD 320.570981
SAMANTA COLHADO MENDES
AS MULHERES ANARQUISTAS NA CIDADE DE SÃO PAULO
(1889 1930)
Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social
da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como pré requisito para
obtenção do título de mestre em História.
BANCA EXAMINADORA
Presidente:_________________________________________________________________
Dr. Moacir Gigante, UNESP - Franca
1° Examinador:_____________________________________________________________
2° Examinador:_____________________________________________________________
Franca, ____ de __________ de 2010.
Dedico esse trabalho a todas as mulheres
trabalhadoras.
Agradecimentos
Primeiramente agradeço ao meu pai, que embora não esteja mais presente, depositava
em mim grande confiança, além de uma terna amizade.
Agradeço à minha família. Á minha mãe por agüentar tantas lamentações, choros e
confusões em momentos difíceis, que ela não admitia como tais, dizendo sempre que tudo
daria certo, que estava tudo bem, enfim... Tudo aquilo que eu insistia em dizer a ela que era
“auto-ajuda”. À minha avó, que é uma mulher no sentido mais amplo do termo, por ser tão
compreensiva, amiga, carinhosa e dedicada, principalmente em me agradar com suas comidas
maravilhosas. Ao meu irmão (Dedê) que sempre acreditou, confiou e me ajudou a realizar
essa dissertação, mesmo dizendo que eu deveria “prestar um concurso público”. À minha irmã
(Nete), que com imensa paciência, me ouve falar, falar e falar... Aos meus cunhados sempre
carinhosos e divertidos, Patrícia e Marcos (mesmo com o grande defeito de ser palmeirense!).
Àquele que também faz parte da minha família meu namorado, Ecauê. Obrigada
pelo companheirismo pela paciência, pelo amor, pelo carinho e pela compreensão, mesmo
quando eu dizia que não poderíamos sair porque tinha que “fazer as coisas do mestrado”.
Você teve grande importância para que conseguisse terminar essa dissertação.
À todos os meus amigos que me apóiam e, principalmente, me divertem muito: Karine
(Kretis), Danyel (ou Danyelesssssss), Gil, João, Wellington, Vini, Ulysses, Patrô, Roney,
Ítalo, Marcelo (que embora eu encontre nos dias 23 de dezembro, sempre me deu bons
conselhos), Bozó, Rayra (grande amiga, mesmo sendo “cu-nhada”) e as eternas irmãs Aline e
Debora. Desculpem-me aqueles que não citei aqui por pura distração, vocês sabem que
agradeço à vocês também.
À todos os meus alunos, mesmo àqueles que se formaram ou que não encontro
mais, com certeza vocês me ensinaram muito.
E, por fim, àquele que foi mais que um orientador, Moacir Gigante, um amigo e
incentivador. Obrigada pela compreensão e, principalmente por ter apostado em meu projeto e
minhas idéias.
Nos bailes, eu era uma das mais alegres e
cheias de energia. Uma noite, um primo de
Sasha, um garoto jovem, me puxou de lado.
Com uma expressão grave, como se fosse
anunciar a morte de um companheiro querido,
ele sussurrou que não convinha a uma
agitadora ficar dançando. Com certeza não
convinha com um tal abandono. Não era uma
atitude digna para quem estava para se tornar
uma força no movimento anarquista. Minha
futilidade apenas mancharia a causa. Eu
fiquei furiosa com a interferência sem pudor
do garoto. Eu falei para ele cuidar da própria
vida e disse que estava cansada de jogarem a
causa toda hora na minha cara. Eu não
acreditava que uma causa que defende um
ideal tão lindo, o anarquismo, a liberdade e
emancipação das convenções e do preconceito
exigisse a negação da vida e da alegria. Eu
enfatizei que nossa causa não poderia esperar
que eu fosse uma freira e que o movimento
não deveria se tornar um mosteiro. Se fosse
isso, eu não o queria. Eu quero a liberdade, o
direito à livre-expressão, o direito de todos às
coisas bonitas e radiantes! Para mim, o
anarquismo era aquilo e eu viveria o
anarquismo a despeito de todo mundo
prisões, perseguição, tudo. Se eu não puder
dançar, não é a minha revolução.
Emma Goldman
RESUMO
O presente trabalho visa observar e entender as teorias e práticas das mulheres anarquistas
atuantes no movimento operário paulistano durante a Primeira República (1889 1930),
buscando suas especificidades e práticas em comum aos movimentos anárquicos de outras
localidades e objetivando mostrá-las como sujeitos históricos. Para tal não como
deixarmos de analisar o anarquismo em suas variadas facetas, como o anarco-comunismo e o
anarco-coletivismo, assim como seus principais teóricos, considerados clássicos, como
Bakunin, Kropotkin e Malatesta e outros anarquistas paulistanos do sexo masculino, com os
quais essas mulheres dialogaram direta ou indiretamente. Também analisaremos o contexto
histórico paulistano da Primeira República, período marcado pela imigração européia, intensa
urbanização e industrialização fundamentais para o desenvolvimento do movimento
operário anarquista aqui analisado -, bem como as libertárias de fora do país que
influenciaram enormemente o pensamento das libertárias por aqui. Fizemos isso através da
análise de textos e relatos das mulheres libertárias, como Izabel Cerruti e Iza Rutt nos jornais
anarquistas da época (“A Terra Livre”, “A Plebe” e “O Internacional”), das memórias das
militantes libertárias, como Emma Goldman, Louise Michel e Maria Lacerda de Moura e da
“Revista Renascença”, editada pela última.
Palavras-chave: Anarquismo. Mulher. Anarco-feminismo. São Paulo. Primeira República.
ABSTRACT
This work aims to observe and understand the theories and practices of anarchists womens
acting at the Sao Paulo’s worker moviment during the First Republic (1889 1930),
searching their specificities and practices in common with anarchist movements of other
localities and objetifying show them like historical subjects. For this we have to analyze
anarchism on your various facets, like anarcho-communism and anarcho-collectivism, as well
as theirs main theoreticians, considered classicals, like Bakunin, Kropotkin and Malatesta and
other Sao Paulo’s male anarchists, which those womens spoke directly or indirectly. We will
also analyze the Sao Paulo’s historical context of the First Republic, period marked by
european immigration, intense urbanization and industrialization fundamental for the
development of anarchist worker moviment here analyzed as well as foreign libertarians
which enormously have influenced the libertarians pensaments here in Brazil. We have done
it through the analysis of texts and reports of libertarian womens, like Izabel Cerruti and Iza
Rutt at anarchist newspapers of that period ("The Free Land," "The Mob" and "The
International"), the memories of libertarian millitants, like Emma Goldman, Louise Michel
and Maria Lacerda de Moura and of the “Renaissance Magazine”, published by Maria
Lacerda.
Key-words: Anarchism. Women. Anarcho-feminism. Sao Paulo. First Republic.
LISTA DE SIGLAS
CUT
Central Única dos Trabalhadores
IISH
Instituto Internacional de História Social de Amsterdã
AIT
Associação Internacional dos Trabalhadores
CGT
Confédération Generale Du Travail (França)
CDP
Comitê de Defesa Proletária (São Paulo)
COB
Confederação Operária Brasileira
CBT
Confederação Brasileira do Trabalho
CNT
Confederação Nacional do Trabalho (Espanha)
FBPF
Federação Brasileira para o Progresso Feminino
PC
Partido Comunista
CCS
Centro de Cultura Social
URSS
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................
CAPÍTULO 1 ANARQUIA E ANARQUISMOS...........................................................................
1.1 O anarquismo e suas raízes históricas........................................................................................
1.2 Os expoentes do anarquismo que mais influenciaram a prática do movimento anarquista
em São Paulo (Bakunin, Malatesta e Kropotkin)............................................................................
CAPÍTULO 2 O ANARQUISMO EM SÃO PAULO DURANTE A PRIMEIRA
REPÚBLICA (1889 1930)...............................................................................................................
2.1 A São Paulo da Primeira República e o movimento anarquista..............................................
2.2 Alguns militantes anarquistas em São Paulo: Gigi Damiani, Edgard Leuernroth e Neno
Vasco....................................................................................................................................................
CAPÍTULO 3 ANARQUISMOS E FEMINISMOS.......................................................................
3.1 A mulher no imaginário social do fim do século XIX e início do século XX........................
3.2 As mulheres anarquistas e suas críticas à moral e a sociedade burguesa (Louise Michel,
Emma Goldman, Voltairine de Cleyre e Maria Lacerda de Moura)..........................................
3.3 As mulheres anarquistas e os feminismos (sufragista e marxista)........................................
CAPÍTULO 4 AS MULHERES ANARQUISTAS EM SÃO PAULO E SUAS ATUAÇÕES
NO MOVIMENTO OPERÁRIO...................................................................................................
4.1 As mulheres anarquistas e o contexto republicano brasileiro (economia e
política)..............................................................................................................................................
4.2 Atuações grevistas das mulheres libertárias: a greve geral anarquista e as greves por
melhores condições de trabalho e vida...........................................................................................
4.3 Organizações das mulheres anarquistas em São Paulo..........................................................
4.4 As mulheres libertárias e a propaganda, a arte e a educação como meios e táticas
revolucionárias.................................................................................................................................
4.4.1 A propaganda libertária através dos jornais: Izabel Cerruti, Leda Rafaxelli, Canda
Otero, Matilde Magrassi e Ilia criticavam a sociedade capitalista e propagavam os ideais da
sociedade futura..................................................................................................................................
4.4.2 As mulheres anarquistas e as Escolas Modernas: Anna de Castro Osório, Angelina
Soares e Maria Lacerda de Moura lutavam pela organização delas e defendiam os métodos
de ensino racionalista inspirados em Francisco Ferrer................................................................
4.4.3 As mulheres anarquistas e o teatro operário........................................................................
4.4.4 As mulheres anarquistas e sua atuação como propagandistas em festas e festivais
operários............................................................................................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................
ANEXOS............................................................................................................................................
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19
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248
INTRODUÇÃO
[...] a anarquia [mesmo na imensa literatura socialista] pesa sempre como uma
aberração, como um ramo morto, como o nada, do qual esses autores anunciam
amiúde o completo desaparecimento e o triunfo integral seja de seu bolchevismo,
seja de seu reformismo estatista-capitalista-socialista. (NETTLAU, 2008, p. 21).
Na década de 80 do culo XX foram publicadas uma série de teses e estudos a
respeito do anarquismo, bem como trabalhos marxistas e muitas análises sobre o movimento
operário no Brasil sob o ponto de vista da História Social. Trabalhos pioneiros e que abriram
caminho a inúmeras publicações subseqüentes que os questionaram ou mesmo buscaram
novos caminhos, arcabouços teóricos e objetos de estudo. Grupos anarquistas contemporâneos
e editoras se empenharam também em divulgar, para além desses estudos, os clássicos
anarquistas (como os livros de Bakunin, Kropotkin, Malatesta e Emma Goldman) como o
fazem até hoje a Editora Imaginário, Editora Hedra e Robson Achiamé. No entanto, muito
a ser estudado no momento a respeito de tal tema e o presente trabalho visa a ser uma
contribuição nesse sentido.
Walter Benjamin, estudioso da escola de Frankfurt, nos afirmava em seu último escrito
“Sobre o conceito de História” (1940) que o termo História (“Geschichte”) designa tanto o
processo de desenvolvimento da realidade no tempo, como o estudo desse processo ou relato”
(GAGNEBIN, apud: BENJAMIN, 1994, p. 7). Ou seja, designa uma realidade, um
acontecimento que o historiador define como histórico e não é uma representação de algo que
se apreende como um suposto real, não é somente um discurso, é o estudo de uma realidade
ou de um relato sobre essa realidade realizado por um cronista que:
[...] narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em
conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido
para a História.
Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido,
ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave
para tudo o que veio antes e depois. (BENJAMIN, 1994, p. 15 e 223, grifos nossos).
O historiador, diferentemente do cronista que não é obrigado a explicar os episódios
com que lida, é o responsável por buscar experiências vividas (sem contentar-se em só
representá-las, como faz um cronista), não como uma “transmissão pura do que está sendo
narrado”, mas como uma reconstrução (e não reconstituição) de um passado que não existe
mais. Para tal, coloca sua subjetividade em ação, como colocava Paul Thompson em “A voz
do passado” (1992).
Sob essa perspectiva, o historiador social que busca experiências vividas de mulheres
anarquistas, deve entendê-las a partir do que elas dizem e do que dizem os anarquistas com os
quais elas tiveram contatos, mesmo que através de escritos. A reconstrução da história de
vida dessas mulheres deve levar em conta os ideais e concepções nos quais elas estavam
envolvidas, nos quais buscavam explicações para suas vidas e sua militância e sobre os quais
as próprias puderam imprimir suas próprias formas de pensar e agir. Essa constitui uma forma
de deixá-las falar (de buscar a memória que deixaram em seus escritos), já que, como
afirmava Michelle Perrot (1988), por muito tempo essas mulheres foram “esquecidas ou
silenciadas” na História.
Errico Malatesta (1853 1932) foi um anarquista de grande importância no
movimento operário na Itália, em outros países da Europa e da América Latina, tais como a
Argentina (onde viveu e participou do movimento por um tempo) e no Brasil. Em São Paulo,
na imprensa operária (como em “A Plebe” e “A Terra Livre”), seu nome é sempre citado, bem
como são publicados alguns de seus artigos. Para ele, apesar de não ter escrito
especificamente sobre esse tema, mas ter dado pistas a respeito do que pensava em muitos dos
seus escritos, a história é fruto da vontade humana, a anarquia, assim como tal, seria fruto da
vontade realizadora e do desejo das massas e não algo determinado e inevitável, como uma lei
natural ou resultado da evolução natural das idéias, como vista por Piotr Kropotkin (1842
1921), outro anarquista muito citado pela imprensa operária paulistana.
Como vereis, está em via de operar-se no conjunto das ciências uma mudança ainda
mais profunda e de maior alcance; e a anarquia é apenas uma das múltiplas
manifestações desta evolução. É apenas um dos ramos da nova filosofia que se
anuncia. (KROPOTKIN, 2001, p. 22, grifos nossos).
[...] A harmonia entre os homens não se deve a uma ação espontânea da natureza,
somente pela ão consciente e voluntária será ela conseguida, diz Malatesta.
(TRAGTENBERG, apud: MALATESTA, 1989, p. VIII).
Para os anarquistas o homem só existe como indivíduo na sociedade. Individualidade e
coletividade estão intimamente ligadas, uma se refletida na outra e, dessa forma, para ser
livre, como almejam os anarquistas, a coletividade deve alcançar a liberdade, não o indivíduo
sozinho. A escravidão de um único indivíduo seria a escravidão de todos. Certamente é isso
que pensaram as mulheres anarquistas. A mulher não pode ser livre sozinha, enquanto
categoria, só será livre se esta libertação for a libertação de toda a sociedade, se conseguir ver
sua imagem livre refletida na sociedade também liberta, nos outros indivíduos, quando ver a
sociedade livre do machismo que não seria um vício do homem (enquanto gênero), mas do
meio social, ou seja, um vício de todos os indivíduos. Essa luta pela libertação da humanidade
empreendida pelos indivíduos e grupos deles, e a negação da autoridade (vista pelos
anarquistas como anti-natural), através de um processo dialético seria o motor da História,
segundo eles.
Eles também se opunham ao materialismo histórico que via o socialismo como uma
fase no processo histórico e a História como uma marcha constante rumo ao progresso.
Mikhail Bakunin (1814 1876) - para citar também outro anarquista cujas idéias tiveram
grande impacto no movimento anarquista brasileiro hegeliano, como Karl Marx, apoiava-se
na filosofia do conflito constante (dialética), mas propunha vê-lo a partir do real, do social em
direção ao ideal e não o contrário. Sem sobrepor ideal a realidade e sem determinismos,
propõe a História, assim como Malatesta e diferentemente de Marx, como o fruto da vontade
humana, bem como deve ser vista a revolução, fruto também da profunda em um ideal. O
desespero e a miséria não seriam indispensáveis à revolução social, como pensou Marx ao
afirmar que a acumulação de capital nas mãos da burguesia levaria a maior miséria do
proletariado que, conseqüentemente, e por força da última, faria a revolução, sendo essa uma
fase inevitável no processo histórico demonstrado por ele em seu “Manifesto Comunista”
(1998).
[...] Ambas [miséria e o desespero] são capazes de provocar revoltas individuais ou,
a rigor, insurreições locais, mas não são determinantes para sublevar massas
populares inteiras. Para isto, ainda é preciso um ideal, que sempre surge
historicamente das profundezas do instinto popular, educado, amplificado e
esclarecido por uma série de fatos marcantes, de experiências duras e amargas - é
preciso, digo, uma idéia geral de seu direito e uma profunda, ardente, pode-se
dizer até mesmo religiosa, nesse direito. Quando esse ideal e essa encontram-se
reunidas no povo, lado a lado com a miséria que o força ao desespero, então, a
revolução social está próxima, inelutável e não força que possa impedi-la.
(BAKUNIN, 2003, p. 56).
Essa concepção de História não afirma a presença de um sujeito, como o afirma
como o próprio motor da História (e não somente a luta de classes), o que a coloca em
contraposição direta em relação à concepção estruturalista e pós-estruturalista da história,
onde o sujeito é sujeitado, ou é entendido quando imerso em um jogo de poderes
responsável por sua sujeição, a concepção de história sem sujeito. Para a concepção
anarquista da História os sujeitos não estão imersos em estruturas determinantes, tais como
pensou Louis Althusser em seu “Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado” (1980) ou
Michel Foucault, de maneira diferente, em seus vários estudos (como em “A verdade e as
formas jurídicas(2003), por exemplo) e até mesmo de Jacques Lacan. A História, para os
estruturalistas, não pode entender o que os homens pensam ou sentem, o real; é possível
entender as estruturas. Porém, não há como entender as mulheres anarquistas (estudadas nesse
trabalho) como meramente sujeitadas pela cultura e pela moral dominantes, que
determinavam papéis e comportamentos sociais específicos às mulheres de todas as classes
sociais. Elas organizaram seu viver e suas lutas de acordo com seus preceitos pessoais e de
acordo com ideais anarquistas de apoio mútuo, amor e solidariedade, como veremos adiante.
Aliás, nesse sentido, vale colocar que a própria cultura deve ser vista como um espaço de
conflito e mutável, como colocava Thompson (1998). Ou seja, as mulheres não foram meras
vítimas passivas na história, mas sim sujeitos ativos e capazes de promover mudanças
pessoais e no próprio contexto político, econômico, social e cultural.
Felizmente, a sociedade atual não foi formada pela vontade de uma classe dominante
que teria sabido reduzir todos os dominados ao estado de instrumentos passivos,
inconscientes de seus interesses. A sociedade atual é a resultante de mil lutas
intestinas, de mil fatores naturais e humanos, agindo ao acaso, sem direção
consciente; enfim, não nenhuma divisão clara, absoluta, entre os indivíduos, nem
entre as classes. (MALATESTA, 2008, p. 68, grifos nossos).
Os anarquistas pensavam que o sujeito que se movimenta, que luta e cria suas formas
de convivência e vida cotidiana, mesmo sem consolidar uma revolução social, está fazendo a
história, está sendo o motor dela. E a sociedade anárquica por eles pensada não é o fim da
história, os indivíduos que nela viverem, continuarão a fazer a história.
Porém, cabe acrescentar aqui que na concepção anarquista da história existe certo
paradoxo. A história seria fruto da vontade humana, mas, ao mesmo tempo acreditava-se que
a revolução social ocorreria de qualquer forma, ou seja, concebiam a inevitabilidade do
processo histórico.
Tendo como base essas idéias e retomando que as mulheres anarquistas podem ter
suas experiências de militância anarquista melhor entendidas através do próprio anarquismo e
sem colocá-las de maneira separada dos outros militantes - como faz a pós-modernidade ao
fragmentar todos os movimentos (gays, mulheres, negros, etc), colocando-os como
movimentos de minorias e não como da maioria que juntos compõem - é que vamos observar
as libertárias que participaram do movimento operário em São Paulo, buscando obviamente
suas especificidades como é ser mulher, quais são suas lutas próprias e como vêem o
movimento anarquista como forma de conquistar sua libertação, assim como a libertação de
toda a humanidade.
O historiador quer saber como viviam em tal época os membros de que se compunha
tal nação, quais eram as suas crenças e os seus meios de existência, qual era o seu
ideal social, e que meios possuíam para caminharem para este ideal. E pela ação de
todas estas forças, outrora desprezadas, interpretará os grandes fenômenos
históricos.
A história, depois de ter sido a história dos reinos, tende a ser a história dos povos, e,
por fim, o estudo dos indivíduos. (KROPOTKIN, 2001, p. 30 e 31).
Para que possamos observar e compreender mais a fundo as questões colocadas acima,
dividimos esse trabalho em quatro capítulos. O primeiro deles (capítulo 1) visa compreender
as bases teóricas e as primeiras práticas anarquistas, observando-as um corpo teórico e
filosófico, assim, como um movimento surgido em um momento histórico determinado, mas
que adquiriu diversas facetas ao longo da história (como fizemos no tópico 1.1). Para isso,
observamos o pensamento de libertários do sexo masculino
1
- no que se refere às táticas e aos
meios revolucionários (propaganda, artes, ação direta e organização) e à construção da
sociedade futura - que ganharam grande importância e até influenciaram o movimento
anárquico em todo o mundo, e mais especificamente em São Paulo, sendo citados e lembrados
com grande freqüência pelos jornais anarquistas dessa cidade (como em “A Plebe”, “A Terra
Livre” e “O Internacional”), como foram Bakunin, Malatesta e Kropotkin (tópico 1.2). Porém,
não como entender o anarquismo no Brasil e seus militantes, como as mulheres, somente
entendendo o anarquismo clássico do qual falaremos no capítulo 1, sem compreendermos o
contexto histórico específico de sua formação e desenvolvimento.
O presente trabalho retrata um período histórico de intensas transformações políticas,
econômicas, sociais e culturais a Primeira República
2
. Tal recorte foi efetuado por ser esse o
momento de formação de uma classe operária brasileira, o que foi fundamental para o
desenvolvimento do anarquismo por aqui. Imigrantes vindos da Europa (e em maior número
da Itália, da Espanha e Portugal) traziam para o Brasil teorias, modos de encarar o mundo e
lutar por uma transformação social presentes em seus países de origem, e o anarquismo
estava entre essas teorias e práticas, para as quais a cidade de São Paulo foi receptora e
multiplicadora. A cidade que começava a crescer, mais visivelmente que outras regiões do
país, devido aos investimentos financeiros em industrialização e urbanização provenientes da
grande acumulação de capital proveniente do café (produzido no “Oeste Paulista”), tornava-se
também local de moradia, trabalho e convivência dos novos habitantes do país, dentre os
quais estavam inúmeros operários anarquistas. Essa classe operária em formação da qual
estamos falando deve ser entendida como colocava Thompson (2004), ou seja, como uma
relação móvel e ativa, que “precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais”
(THOMPSON, 2004, p. 10), que criaram suas próprias formas culturais, de convivência social
1
Estudamos primeiramente os libertários do sexo masculino para podermos encontrar, em capítulos posteriores,
as semelhanças e diferenças entre seus pensamentos e ações comparados aos das mulheres anarquistas, para que
assim possamos compreender mais profundamente o que era ser uma mulher anarquista e o que as libertárias
acrescentaram de novo a um corpo teórico e movimento tão amplo como o anarquismo.
2
O período escolhido para ser estudado nesse trabalho vai de 1889 a 1930, exatamente o mesmo recorte político
da época, que não necessariamente coincide com todas as transformações sociais ocorridas, já que o povo
brasileiro, não mudou de vida totalmente após a proclamação da República. No entanto, o escolhemos por que
justamente nesse começo do período republicano surgiram as primeiras associações anarquistas mutualistas,
também conhecidas como sociedades de apoio ou socorro mútuo, que são como a origem do anarquismo em São
Paulo trazido por imigrantes. Já 1930 marca a subida de Getúlio Vargas ao poder, o que não significou o fim do
anarquismo, mas uma queda significativa de sua importância no movimento operário devido à ascensão do
Partido Comunista (fundado em 1922) e a aprovação de leis trabalhistas, que exerceram certo fascínio sobre
muitos operários. O fim da década de 20 do século XX e o começo dos anos 30, no entanto, foram de suma
importância para os movimentos feministas e para a crítica das mulheres anarquistas ao feminismo sufragista,
que visava alcançar, principalmente, o direito ao voto para as mulheres.
e luta experiências - em determinado momento histórico, e não como algo imóvel, uma
categoria ou estrutura. Os trabalhadores e, mais especificamente, as trabalhadoras fabris
anarquistas que esse trabalho visa mostrar e compreender não eram, portanto, vítimas de um
processo histórico carregado de mudanças, mas sim, sujeitos ativos, mesmo que nem sempre
“vitoriosos”, nesse processo. Isso fica claro no capítulo 2, no qual estudamos as
transformações do período e o desenvolvimento do anarquismo por aqui (tópico 2.1), bem
como alguns dos militantes, que adquiriram importância para o movimento anárquico
paulistano e tornaram-se até referências nesse sentido (tópico 2.2)
3
. Cabe ainda colocar que
nesse capítulo ficam evidentes as diferenças entre as formas culturais desenvolvidas na cidade
de São Paulo, que crescia com grande rapidez. Podemos dizer que aqui se formou uma cultura
operária e uma cultura anarquista ligada a ela, que se colocava de maneira antagônica com
relação à cultura burguesa da época, no entanto, não devemos entender essas formas culturais
de maneira generalizada, mas como fruto de inúmeras influências e trocas.
[cultura deve ser entendida como] [...] um conjunto de atitudes, valores e
significados compartilhados, e as formas simbólicas (desempenhos e artefatos) em
que se acham incorporados. Mas uma cultura é também um conjunto de diferentes
recursos, em que sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o
subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que
somente sob uma pressão impiedosa por exemplo, o nacionalismo, a consciência
de classe ou a ortodoxia religiosa predominante assume a forma de um sistema.
(THOMPSON, 2008, p. 17, grifos nossos).
Quando falamos em cultura do período, tomando-a no sentido colocado acima (como
espaço de conflito), nos remetemos também ao capítulo 3 desse trabalho. Nesse capítulo
observamos (no tópico 3.1) como o imaginário social e a cultura da época criaram padrões de
conduta sociais para as mulheres, que se tornavam importantes sujeitos atuantes na nova
cidade, porém nem todas as mulheres se submeteram a tais padrões, criaram suas próprias
formas culturais e se uniram a outros indivíduos de maneira diversa àquela proposta pela
cultura dominante da época. O casamento legitimado pela lei e pela Igreja Católica que
muitas vezes envolvia dotes financeiros não era uma prática generalizada entre as operárias
e as anarquistas, que optavam por relações e uniões mais livres. Ou seja, essas mulheres se
organizavam nas “fissuras” da cultura dominante, seu cotidiano não era condicionado pelo
domínio dos governantes; viviam o cotidiano e suas formas de relacionamento de maneira
própria e não eram somente vítimas da nova organização social do período, o que podemos
observar na vida e nas ações das mulheres libertárias que tiveram grande importância para o
anarquismo no Brasil e no mundo, dadas as suas novas posturas, críticas e práticas anárquicas
3
Aqui ainda fizemos o mesmo que anteriormente: procuramos observar os pensamentos e a militância de
anarquistas do sexo masculino, com o mesmo objetivo apresentado na nota 1.
diante da sociedade da época, como Louise Michel, Voltairine de Cleyre, Emma Goldman e
Maria Lacerda de Moura (estudadas no tópico 3.2), que pregavam o amor livre como base de
todas as relações interpessoais. Procuramos observar em seus pensamentos e ações, o que
pensavam sobre organização, ação direta, propaganda e meios revolucionários (arte e
educação, principalmente), pontos centrais nos pensamentos e movimentações anarquistas,
desde o anarquismo clássico, como veremos mais adiante.
[...] as trabalhadoras haviam criado seus próprios espaços culturais, possuíam meios
de fazer valer as suas normas, e cuidavam para receber o que lhes era “devido”.
Talvez não fossem os “direitos” de hoje em dia, mas elas não eram sujeitos passivos
da história. (THOMPSON, 2008, p. 346, grifos nossos).
Ainda no capítulo 3 do trabalho, ao longo das teorias e práticas das mulheres
libertárias estudadas nos tópicos 3.2 e 3.3, procuramos observar como os mais diversos
feminismos se desenvolveram durante a Primeira República na cidade de São Paulo.
Feministas independentes escreviam artigos para jornais, sufragistas organizaram inúmeras
associações e fundaram revistas de grande circulação entre as mulheres da “nova cidade” e as
marxistas pregavam seus ideais de amor-camaradagem através de folhetos e livros que
circulavam com maior freqüência, principalmente depois da Revolução Russa de 1917 e da
fundação do PC (Partido Comunista Brasileiro), em 1922. No entanto, as anarquistas, apesar
de trocarem idéias e experiências com essas feministas fizeram críticas ferrenhas à suas
propostas, que, segundo elas, trariam maior submissão da mulher e não sua emancipação total.
As mulheres libertárias não pregavam a supremacia da mulher sobre o homem, mas sim a
libertação total para ambos, que se realizaria através da construção de uma sociedade livre
e igualitária para todos, onde os indivíduos pudessem conviver em harmonia, solidariedade e
apoio mútuo, sem qualquer distinção.
Por fim, no último capítulo desse trabalho, procuramos entender as práticas das
mulheres anarquistas no movimento operário paulistano partindo da idéia de que recuperar
suas atuações e memórias é também recuperar a própria memória do movimento operário
anarquista de São Paulo. Para isso, no tópico 4.1, mostramos a relação dessas mulheres com o
contexto político-econômico republicano, procurando salientar como elas viam e criticavam
fatos e personalidades políticas, assim como a economia da época, em que a industrialização
se desenvolvia no país, mesmo que com momentos de crise. O tópico 4.2 nos leva a
compreender como essas mulheres atuaram frente a esta visão e críticas do período, o que na
maior parte das vezes se deu através da ação direta anarquista (violenta ou não) em greves,
piquetes e sabotagens espontânea ou organizada pelas associações e organizações livres
propostas e formadas por essas libertárias, o que trabalhamos no tópico 4.3. Já o tópico 4.4 foi
subdividido em outros tópicos (4.4.1; 4.4.2; 4.4.3 e 4.4.4), para que possamos observar os
meios e táticas revolucionárias privilegiadas pelas anarquistas paulistanas: a propaganda, as
artes e a educação. Aqui em São Paulo, na maioria das vezes, as mulheres optaram por meios
e táticas não violentas de ação anárquica, assim como fizeram os homens que estudamos no
capítulo 2, por isso, suas atuações como propagandistas em jornais e em festas e festivais
operários foram imensas, assim como foram enormes seus esforços por fundarem e
organizarem escolas de educação libertária para, principalmente, os filhos dos operários, e por
montarem peças teatrais que levassem a mensagem libertária ao maior número de pessoas
possível, além de promover uma convivência social sadia e instrutiva à classe trabalhadora
paulistana. Cabe colocar aqui, que havia grande preocupação dos anarquistas (desde o
anarquismo clássico, estudado no capítulo1) com a promoção de um lazer para classe operária
que fosse ao mesmo tempo um exercício da solidariedade, da convivência livre e um lazer
educativo, que desviasse a atenção do álcool e do jogo, para eles, vícios da sociedade
capitalista. Como é possível perceber, privilegiamos aqui, ao longo desses quatro capítulos,
quatro aspectos do pensamento e movimento anarquista: a ação direta (através de greves,
piquetes, boicotes e sabotagens), a organização (sindical ou não, mas sempre livre e
espontânea), a propaganda (em jornais, manifestações públicas e em festas e festivais
operários) e arte (principalmente o teatro) e a educação como meios de se chegar à revolução
social. Fizemos isso por observarmos em todos os escritos anárquicos - desde panfletos,
passando por jornais e até em livros de toda a história desse pensamento e movimento no
Brasil e no mundo a preocupação dos libertários com relação a esses pontos. Para eles, era
essencial preparar a sociedade que se queria construir e isso poderia ser feito se os ideais
fossem propagados a um número maior de pessoas, se a ação fosse espontânea e se a
organização e os meios revolucionários estivessem em acordo com os fins que se visasse
alcançar, ou seja, a organização deveria estar pautada na solidariedade e na liberdade, nunca
em hierarquias e na autoridade, e funcionar como um exercício preparatório para a vida livre e
os meios revolucionários também deveriam estar em consonância com uma sociedade pautada
no apoio mútuo, ou seja, deveriam ser os menos violentos possíveis, por isso, investiram
tantos esforços em educação e arte como meios revolucionários. Os fins, segundo anarquistas
paulistanos e de fora do Brasil, não justificavam os meios.
Os jornais utilizados aqui como fonte para observação da vida e militância das
mulheres anarquistas (“A Terra Livre”, “A Plebe”, “O Internacional”), bem como suas
memórias, eram jornais de tendência definida anarquista e tinham como objetivo claro e
expresso fazer propaganda anárquica e levar a seus leitores, notícias sobre o movimento
operário no resto do Brasil e no mundo. Por isso, muitos foram fechados pela polícia e pelo
governo, mas seus escritores e editores, militantes anarquistas, esforçaram-se por mantê-los
em circulação, montando tipografias em suas próprias casas e em sedes de uniões e
associações operárias (até que essas não sofressem também com as perseguições) ou até em
outras cidades, como ocorreu com “A Terra Livre”, que foi editada no Rio de Janeiro, durante
alguns anos de sua existência. Também esforçaram-se para fazer uma rede de circulação
desses jornais e fazer com que fossem lidos em Centros de Cultura (CCS) e Bibliotecas
Sociais, bem como em encontros e reuniões. Nem sempre sua circulação se dava de acordo
com o previsto, jornais que inicialmente eram para ser quinzenais, podiam aparecer uma vez
por mês, por exemplo. Também houve, por parte dos militantes, grande interesse em preservá-
los e arquivá-los, o que, sem dúvida alguma, fez com que hoje pudéssemos ter acesso a eles e
a vida e militância das mulheres aqui estudadas. Edgard Leuenroth, por exemplo, arquivou
grande número e jornais anarquistas, que hoje podem ser consultados no arquivo que recebeu
seu nome, localizado na Universidade Estadual de Campinas.
CAPÍTULO 1 ANARQUIA E ANARQUISMOS
Não iremos, no presente trabalho, observar as mulheres como mero fruto de modelos e
padrões sociais, como seres sujeitados e imersos em redes de poder que não permitem seu
movimento e vida. As mulheres criaram (e criam) formas de viver que escapam às
dominações e estruturas sociais, são, portanto, sujeitos. E para entender as mulheres
anarquistas é necessário observá-las como seres pensantes, atuantes e propagadoras de idéias
que não o dadas somente pelo contexto histórico-social no qual viveram; certamente ele as
influenciou, mas não determinou suas condutas e formas de movimentação.
Justamente por isso, não como entender as libertárias sem entender o anarquismo e
algumas de suas facetas. Elas, além de escreverem e atuarem por si próprias, compartilharam
e trocaram suas idéias com outros anarquistas, assim como leram e discutiram teóricos
considerados clássicos para essa linha de pensamento, em salões de leitura, em associações,
em teatros e festas operárias e escolas modernas. É justamente por isso que se faz necessário
que o presente capítulo mostre as idéias anarquistas de maneira mais geral, bem como suas
bases essenciais e principais diferenças, como o faremos no tópico 1.1; que apresente as
considerações a respeito de organização e propaganda de alguns anarquistas amplamente lidos
e citados pela imprensa operária anarquista paulistana, como Errico Malatesta, Mikhail
Bakunin e Piotr Kropotkin, cujas idéias influenciaram enormemente as organizações e a
propaganda anárquicas por aqui, como faremos no tópico 1.2.
1.1 O anarquismo e suas raízes históricas
Anárquico é o pensamento, e para a Anarquia marcha a história. (Giovani Bovio).
Aos historiadores do anarquismo uma das primeiras questões que surgem em
decorrência da pesquisa é de qual seria a sua origem, as suas bases e a partir de que momento
podemos denominá-lo como tal. Porém, para respondê-las é essencial uma definição clara do
que podemos chamar de anarquismo.
Errico Malatesta define anarquia através de sua significação lingüística: a palavra
anarquia vem do grego e significa sem governo, “estado de um povo que surge sem
autoridade constituída, sem governo”. (MALATESTA, 2001, p. 11). Dessa forma podemos
perceber que anarquia é o estado ou forma de organização de uma sociedade futura a qual os
libertários almejam construir, mas essa definição difere daquela dada ao anarquismo, que,
para os anarquistas e para os historiadores do tema, é o movimento que luta pela construção
da sociedade livre através da derrubada do Estado e de todas as suas instituições, assim como
da destruição de todas as formas de autoridade e da expropriação dos capitalistas. Somente
Piotr Kropotkin e alguns de seus seguidores parecem fugir a tal definição afirmando que o
anarquismo é parte de uma tendência filosófico-científica, de uma nova filosofia herdada do
iluminismo, da busca pelo conhecimento científico ou com bases científicas, que legitima a
explicação naturalista, tentando entender as relações que regulam o universo natural e
humano. Vamos pensá-lo aqui unindo essas duas visões: o anarquismo como uma filosofia
definida que comporta inúmeras tendências, mas que tem uma aplicação prática nos
movimentos de contestação da organização social capitalista e luta pela construção de uma
sociedade anárquica.
Com base nessa definição podemos buscar a origem do anarquismo em diversos
movimentos de contestação às formas de autoridade, sejam religiosas ou político-econômicas,
desde a Antiguidade, passando pela Idade Média até a época moderna.
Max Nettlau (1865 1944), o primeiro e maior historiador anarquista sem dúvida
alguma o “Heródoto da Anarquia”
4
-, fez de sua vida uma busca por essas origens e pela
história do anarquismo. No ano de 1892, graças a uma herança familiar decidiu dedicar-se
somente a história do anarquismo e, mais especificamente, de Mikhail Bakunin, viajou por
toda a Europa e pela América em busca de documentos e pessoas que o conheceram. Acabou
por reunir documentos sobre as origens e sobre o anarquismo enquanto movimento. Com o
fim da Primeira Guerrra Mundial e a alta inflação que assolava a Alemanha, onde morava
nessa época, suas economias estavam arrasadas e ele se viu forçado a vender seu acervo, que
acabaram dando origem ao renomado Instituto Internacional de História Social de Amsterdã
(IISH).
[...] que todos esses materiais servirão para conservar a história da anarquia
depurada das inexatidões e ponderadamente apresentada, elevando-se o máximo
possível acima da lenda, da retórica e dos conceitos superficiais. (NETTLAU, 2008,
p. 21).
Para esse autor não como separar uma história da idéia anarquista (ou do
anarquismo) da “história de todas as evoluções progressivas e das aspirações à liberdade”
(NETTLAU, 2008, p. 27), entretanto o anarquismo, como tal, teve seu desenvolvimento em
um momento histórico favorável, em que “surge essa consciência de uma existência livre”
(NETTLAU, 2008, p. 27) pregada pelos libertários, e em que os fundamentos autoritários são
contestados e os sentimentos de solidariedade social exaltados.
4
Franz Mintz, professor e historiador especialista em Guerra Civil Espanhola e em autogestão, lembra-nos em
sua introdução à edição francesa do livro de Nettlau “La Anarquia a través de los tiempos” de 1983, que esse
historiador anarquista é assim chamado por vários historiadores do tema.
Kropotkin, por outro lado, afirmava que as raízes do anarquismo podiam ser
encontradas no conflito entre autoridade e liberdade existente na “Idade da Pedra”, onde o
homem primitivo buscava naturalmente padrões de cooperação. Mas, o que parece até um
“consenso” entre os historiadores do anarquismo como o já citado Max Nettlau, George
Woodcock (1912-1995) e James Joll (1918 1994)
5
, é que os estóicos, na Grécia Antiga,
foram os primeiros a conceber uma sociedade em que todos homens eram dignos como iguais,
rejeitando assim, qualquer idéia de “Estado”. Já na Idade Média, heréticos pregavam um
governo de Deus não um governo político (conflito: autoridade terrena e autoridade divina).
No entanto, a raiz mais clara do pensamento anárquico parece estar no auge da Revolução
Inglesa do século XVII, a Guerra Civil de 1640 e o Commonwealth (Protetorado) único
intervalo republicano na História da Inglaterra. Durante o Protetorado surgiu o que Woodcock
(1981) chama de “os primeiros proto-anarquistas”: os Diggers (Nettlau também cita esse
movimento como uma das principais raízes do anarquismo antes de 1789). Assim como os
anarquistas modernos, os Diggers identificavam o poder econômico com o poder político e
sustentavam a necessidade de que ocorresse uma revolução mais social do que política para
que se fosse possível estabelecer a justiça. Assim como Leon Tolstói (1828 - 1910), o líder
dos Diggers Gerrard Winstanley, afirmava que “o reino de Deus está em nós” (WOODCOCK,
1981, p. 30), contrapondo-se assim à autoridade de uma instituição religiosa, mas não à
existência de um ser supremo. O último publicou um panfleto em 1649 intitulado “A nova
Lei da Integridade” no qual afirma que todos aqueles que tem autoridade tiranizam os outros –
desde senhores e magistrados, até pais e maridos - e que a solução para a ruptura com essa
tiranização é a construção de uma sociedade livre, baseada nos ensinamentos de Cristo para
ele a “Liberdade Universal”.
Quando esta igualdade universal surgir em cada homem e mulher, ninguém deverá
reivindicar seus direitos sobre qualquer criatura e dizer: isto é meu e aquilo é seu.
Este é o meu trabalho, aquele é o seu. Mas todos devem arar a terra e criar o gado, e
a benção da terra será comum a todos: quando um homem precisar de milho ou de
gado, ele retirará do primeiro depósito que encontrar. Não haverá compra e venda,
nem feiras e mercados. E todos trabalharão alegremente para fazer as coisas que são
necessárias, um ajudando o outro. Não haverá senhores, mas cada um será senhor de
si mesmo, sujeito à lei da integridade, razão e igualdade, que é Deus, que virá dentro
de si e o governará. (WINSTANLEY, apud: WOODCOCK, 1981, p. 31).
uma proximidade imensa dessas observações de Winstanley com as idéias comuns
a maioria dos anarquistas modernos, como veremos mais adiante. O que evidentemente difere
é que os libertários, em sua maioria, não reconhecem esse “governo de Deus” de que fala o
5
Franz Mintz, afirma, no mesmo prefácio, que esses autores fizeram plágios mal disfarçados da obra de Nettlau
e que os mesmos têm pouco ou nada a acrescentar.
líder dos Diggers, que ao tentarem tomar terras não utilizadas no sul da Inglaterra, foram
reprimidos violentamente por proprietários. Durante essa tentativa empreenderam resistência
pacífica enquanto puderam.
A Renascença foi outro momento em que se produziram pensamentos ou “alternativas
libertárias”, como afirma Woodcock (1981). Nesse momento, o controle (em termos sociais,
políticos, econômicos e culturais) era forte, mas as idéias libertárias foram expostas por
Diderot, Étienne de La Boetie, John Locke e Tom Paine. Nettlau cita Diderot como um dos
principais autores com idéias libertárias nessa época. Tom Paine, por sua vez, influenciou o
pensamento de anarquistas como Henry David Thoreau, Josiah Warren e Benjamin Tucker.
É possível notar no pensamento de Max Nettlau e em sua história do anarquismo um
movimento dialético: a autoridade é um resquício de animalidade (anterior a humanização dos
animais) e “a marcha pelo progresso, que prossegue com segurança ao longo dos séculos, foi
e é uma luta contínua para destruir as cadeias e os obstáculos autoritários” (NETTLAU, 2008,
p. 27). Porém só a vontade seria o motor das mudanças. As transformações, não vêem,
segundo ele, de causas econômicas (assim como pensaram Malatesta e Bakunin). A luta
contra a autoridade (seja divina ou humana) sempre existiu, assim como a busca pela
existência coletiva (apoio mútuo), entretanto, essa luta dura impediu muitos homens de
desenvolverem uma consciência anarquista, assim, apesar de sempre existirem, as lutas que
são as bases diretas do anarquismo datam do século XVII (associações voluntárias e tentativas
de cooperação Industrial) e principalmente, da Revolução Francesa (1789). A revolução
Francesa trouxe a tona uma crítica incisiva contra a autoridade real e suas instituições, negou
a autoridade real e religiosa presente na educação, nas relações sexuais e na vida religiosa.
que logo impôs um autoritarismo, assim como a Revolução Russa de 1917.
[...] a revolução, assim como a guerra, destrói, consome ou muda os homens fazendo
deles déspotas independentes de qual tenha sido sua posição precedente, e torna-os
pouco aptos, depois de tais experiências, a defender a liberdade.
aqueles que permaneceram fiéis à revolução, aqueles que extraíram dos erros da
autoridade um novo ensinamento revolucionário de força excepcional podem
atravessar indenes as revoluções. Élisée Reclus, Louise Michel e Bakunin são três
exemplos disso enquanto todos os outros são fatalmente influenciados pelo
autoritarismo, ainda inseparável das grandes agitações populares. (NETTLAU,
2008, p. 41).
As idéias libertárias tiveram depois de 1789 um declínio na França, bem como em
toda Europa, em grande parte, devido à ditadura implantada pela Revolução Francesa. Muitos
textos publicados durante esse período exaltavam o Estado. No entanto, em 1793, surge na
Inglaterra, o que a maioria dos historiadores do anarquismo consideram o primeiro grande
livro libertário: “An Enquiry concerning Political Justice and it’s influence on general virtue
and happiness” (“Investigação a respeito da Justiça Política e a sua influência sobre a virtude
em geral e a felicidade”) escrito por Willian Goldwin. Segundo Nettlau, no prefácio escrito
em 1791 para esse livro, Goldwin afirmava-se convencido de que a monarquia era uma forma
de governo profundamente corrupta e que os governantes exerciam uma influência deletéria e
desastrosa sobre os homens, principalmente no que diz respeito ao seu desenvolvimento
moral.
Não é possível que os grandes males existentes e as infelicidades que nos oprimem
tão lamentavelmente estejam ligados tanto aos defeitos do governo quanto à sua
origem, e que a supressão desses males e dessas infelicidades possa, pois, decorrer
da mudança dos governos? Não seria possível que as tentativas de transformar a
moral dos homens, individual e particularmente, quer dizer, uma empresa fútil e
errônea, torne-se mais eficaz e concreta quando, pela regeneração das instituições
políticas, tivermos modificado os objetivos e operado uma mudança das influências
que determinam os homens? (GOLDWIN, apud: NETTLAU, 2008, p. 47).
É evidente, porém, nesse pensamento de Goldwin, que ainda não havia a negação de
todo e qualquer governo, o que será uma característica geral de todos os anarquistas que virão
depois. Goldwin colocava-se em oposição ao governo monárquico e sua influência maléfica
sobre a moral dos homens, mas não expande essa influência a todo e qualquer governo como
fez Mikhail Bakunin, por exemplo. Seu antigovernamentalismo pode ser entendido nesse
sentido. Ao contrário, entretanto, está a sua crítica à autoridade. Essa, por sua vez, deveria
estar fora das relações sociais justas e da vida livre, onde poderão se desenvolver a
sociabilidade e a individualidade, voluntaria e imediatamente ou gradativamente, por meio da
educação sem persuasão. Tal crítica à autoridade aplicava-se também ao Estado, que seria
uma fase transitória na história humana, condenada a desaparecer quando os homens
agruparem-se segundo a razão.
Juntamente com Willian Goldwin, outro gérmen do pensamento anarquista está em
Adam Weishaupt, que afirmava que os Estados seriam destruídos através da ação de
sociedades secretas. Bakunin, mesmo sem haver indicações se conhecia o pensamento de
Weishaupt, vai compartilhar dessa idéia anos depois, principalmente com a associação
“Fraternidade Internacional”.
Outra grande influência ao pensamento anarquista foi, sem dúvida, Robert Owen
(1771 1858), que conhecia a obra de Goldwin. Ele não colocava, ainda apoiando-nos em
Nettlau, a questão da anarquia, nem do Estado, mas preocupava-se com as melhores
condições para a cooperação equitativa, “que exigisse boa vontade individual, organização
técnica e outras organizações indispensáveis” (NETTLAU, 2008, p. 54 e 55). Dedicou-se a
pensar sobre a cooperação na produção e na distribuição, assim como o farão muitos
anarquistas em períodos posteriores, como Pierre Joseph Proudhon.
Vale citar ainda outro expoente importantíssimo para entendermos as origens do
pensamento anárquico que é Charles Fourier (1772 1837). Fourier recomendava um
socialismo de associação voluntária, uma organização técnica perfeita que permitisse uma
vida harmônica a todos os membros de uma comunidade.
Em resumo, podemos dizer que do fourierismo surgiram numerosas vias rumo a um
socialismo libertário e homens como Élisée Reclus sentiram-se, por toda a sua vida,
atraídos por essas duas idéias: associação e comuna, isso quer dizer que eles
sentiram que essas duas concepções, amplamente interpretadas, constituíam, na
realidade, uma única: o esforço para organizar uma vida harmoniosa, à margem
daquela, inútil e nefasta, do Estado. (NETTLAU, 2008, p. 58).
Apesar de todas essas influências aqui citadas, nenhum desses autores denominava-se
anarquista e foi só em 1840 que apareceu a mais importante publicação do primeiro autor a se
denominar assim Pierre Joseph Proudhon. Nos anos de 1840 Paris era uma espécie de asilo
político para aqueles que fugiam de regimes mais duros na Europa (como os federalistas
espanhóis, carbonários italianos e poloneses, russos fugidos da tirania do Czar Nicolau I e
alemães). Dentre esses “exilados” estavam Mikhail Bakunin (russo) e Karl Marx (alemão)
6
,
ambos freqüentavam bares e discutiam juntamente com Proudhon (1809 1895), artesão
autodidata, filho de uma família francesa muito pobre, que tomou conhecimento das idéias de
Fourier, das quais sofreu enorme influência.
Proudhon fazia oposição a qualquer forma de autoridade, seja religiosa ou estadista
fazendo apelo à anarquia, defendeu a livre organização federalista durante toda a sua vida. É
com ele que se inicia propriamente o que podemos chamar de anarquismo. Podemos dizer que
quando ele publica “O que é Propriedade?”, em 1840, que se inaugura o pensamento
anárquico.
[...] a propriedade e a realeza têm-se quebrado em pedaços desde que o mundo
começou. Assim como o homem busca a justiça na igualdade, a sociedade busca
ordem na anarquia. [...] a propriedade, por seu despotismo e usurpação, logo se
mostra apassiva e anti-social. (PROUDHON, apud: WOODCOCK, 1981, p. 62).
A propriedade individual sendo um roubo, pois garantiria a usurpação da maioria pela
minoria, seria também e, por conseqüência, contra a natureza humana, visto que é um traço
dessa natureza ser social (como veremos mais adiante). O governo, seja República ou
Monarquia, significa opressão e protegeria a propriedade individual, por isso deveria ser
destruído juntamente com ela.
6
Marx e Proudhon rompem definitivamente em 1846. Seu livro “A Miséria da Filosofia”, publicado em Paris em
1847, é uma resposta ao livro de Proudhon “Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da Miséria”
escrito em 1846 (o título original em francês era “Système des contradictions économiques ou Philosophie de la
Misere”) .
Inspirado pelas idéias de Fourier, como foi dito, Proudhon organizou o Banco do
Povo. Foi uma organização econômica, uma “união de crédito” entre produtores, que
trocavam seus serviços a preço de custo. Para ele esta organização seria a base para
construção de uma rede de relações livres entre produtores (camponeses, artesãos e oficinas
cooperativas), que acabariam por substituir as relações capitalistas de mercado, e
conseqüentemente, libertariam o trabalhador. Organizações mutualistas como essas
influenciaram inúmeros trabalhadores que assim se organizaram. Seus métodos de ação eram
pacíficos: a cooperação entre produtores para “regeneração econômica”, usando um termo de
Woodcock (1981). A Primeira Internacional (Associação Internacional dos Trabalhadores),
contava com inúmeras tendências (como também veremos mais adiante) e dentre elas, a
mutualista teve bastante força, pelo menos até1868.
Proudhon defendeu, além da associação de produtores, a federação, que Bakunin
defenderá mais tarde como forma ideal de organização. Agrupamentos locais segundo
necessidades econômicas, para ele, seriam combatidos pelo Estado e pelo centralismo.
Restabelecê-las contra intervenção do poder estatal e dos monopólios, levaria ao isolamento
do Estado, o que determinaria seu fim e “permitiria desembocar na associação e federação dos
organismos de fato úteis socialmente” (NETTLAU, 2008, p. 77 e 78). Assim, o federalismo e
a ação direta econômica levariam à derrubada da sociedade capitalista e à construção da
sociedade anárquica.
Para Max Nettlau, Proudhon foi muito incompreendido. Segundo ele, depois da
Revolução Francesa muitos haviam ficado apáticos diante do multiplicar de formas
autoritárias; da burocracia; do Estado centralizado; do exército; do clero reorganizado; e da
burguesia que pensava em crescer e enriquecer; somente Proudhon se atreveu a falar, a
pensar a emancipação intelectual, política e social, que implicariam na emancipação moral e
no desenvolvimento da humanidade. Pregou como base da ação social consciente do homem,
a prática da reciprocidade e da igualdade; criticou a Igreja o Estado e o capital, como o
fizeram os anarquistas de períodos posteriores. Aliás, sua influência sobre esses anarquistas
foi imensa. Mesmo após sua morte em 19 de janeiro de 1865, apenas quatro meses depois da
fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, suas idéias ecoaram nessa
associação, bem como em inúmeras associações e comunas formadas ao longo da história,
como a Comuna de Paris (1871).
O capital, que sobre o terreno político equivale ao governo, tem por sinônimo em
religião o catolicismo. A idéia econômica do capital, a política do governo ou da
autoridade e a idéia teológica da Igreja são três idéias idênticas e diferentemente
religadas; combater uma delas é atacar todas as outras, como o sabem hoje todos os
filósofos. O que o capital faz ao trabalho e o Estado à liberdade, a Igreja, de seu
lado, o faz ao espírito. Essa trindade do absolutismo é tão funesta na prática quanto
na filosofia. Para oprimir com eficácia o povo é preciso acorrentar temporariamente
seu corpo, sua vontade e sua razão. Quando o socialismo quiser mostrar-se
inteiramente positivo, liberado de todo o misticismo, ele terá de denunciar a idéia
dessa trindade. (PROUDHON, apud: NETTLAU, 2008, p. 75 e 76).
Mas, apesar dessa incompreensão, é importante conservar de Proudhon a “natureza
construtiva de suas idéias” (NETTLAU, 2008, p. 137) e suas aplicações contra o
autoritarismo (tanto capitalista como socialista).
Em conclusão, para o período considerado até aqui [1840] a idéia anarquista teve
defensores múltiplos e variados que se exprimiam de maneiras diferentes. Ela era o
resultado de uma evolução natural e não de uma propaganda artificial. De 1760 a
1860, Diderot e Lessing, Sylvain Maréchal, Goldwin, Warren, Proudhon, Max
Stirner, Élisée Reclus, Bellegarrigue, Couerderoy, Déjacque e Pi i Mangall e os
trabalhadores catalães, ao lado de Bakunin e de Pisacane, todos esses homens de
valor lançaram um desafio à autoridade. (NETTLAU, 2008, p. 138).
Vimos, quando falávamos da definição de anarquismo, que os libertários pensam de
maneiras diferentes em relação a vários assuntos. Ora, se o anarquismo é visto como filosofia
e movimento que questiona as formas autoritárias, ele não poderia ter um único viéz, não
poderia ser visto como um dogma. É nesse sentido que muitos militantes do movimento
afirmam uma de suas diferenças com relação ao marxismo. Para eles o último seria
praticamente uma religião, apesar de podermos observar que marxismo e anarquismo
compartilharam de muitas bases em comum e em alguns movimentos estiveram juntos.
7
Após a publicação de “O que é propriedade?” (1840) o anarquismo passa a se
diversificar cada vez mais e a comportar uma infinidade de visões do mundo atual e da
sociedade futura. Essas visões são o que muitos historiadores, como Flávio Luizetto (1987) ,
Caio Túlio da Costa (1998) e François Châtelet, Olivier Duhamel, Évelyne Pisier-kouchner
(1986), chamam de “escolas” do pensamento anarquista. Elas diferem entre si com relação
aos métodos e meios revolucionários e à organização da sociedade futura, embora com
relação a esse último ponto, os anarquistas, no geral, se negem a pensá-la de forma muito fixa,
que seria obra dos que vivessem esse momento de construção, eles dão apenas indicações
de princípios nos quais se deveria pautar tal construção. Max Nettlau (2008) afirma que as
várias correntes de pensamento e ação anarquistas são como a evolução do anarquismo
(enquanto teoria e prática) ao longo da sua história e a forma própria do movimento em cada
localidade. Entre essas escolas podemos definir inúmeras: o anarco-individualismo, anarco-
sindicalismo, anarco-comunismo, anarco-coletivismo, enfim. Porém não devemos observá-las
de maneira sectária, fragmentária; elas dialogam entre si e os anarquistas, ou pelo menos a
maioria, procuraram caminhar juntos nas movimentações enquanto as diferenças não falaram
7
Max Nettlau coloca-se contra o antimarxismo gratuito e sectário de alguns anarquistas.
mais alto. Em São Paulo, as escolas de pensamento anarquista mais presentes eram a anarco-
comunista, anarco-sindicalista, como veremos mais tarde ao expor as idéias de Bakunin,
Kropotkin e Malatesta (certamente muito influentes aqui).
Moralmente o anarquismo basta-se a si mesmo: tem, contudo, necessidade de
formas concretas de vida material para traduzir-se nos fatos e é a preferência por
uma determinada forma que diferencia as diversas escolas de pensamento anarquista
entre si. (MALATESTA, 1984, p. 24 e 25).
Evidentemente, porém, os anarquistas compartilham de bases comuns entre as quais
podemos identificar: uma visão naturalista do homem e da sociedade; a identificação de dois
poderes existentes na sociedade capitalista (poder político e poder econômico); e o
questionamento de todas as formas de autoridade, do Estado e suas instituições.
Mikhail Bakunin afirmava que é a natureza do homem que o difere das outras espécies
animais (além de sua inteligência), ele é simultaneamente social e individualista, ao contrário,
por exemplo, das abelhas e formigas, que são mais sociáveis que o homem, mas vivem
para a coletividade, nunca pela individualidade. O fato de ser uma espécie animal
desenvolvida, no pensamento de Bakunin, por sua organização mais completa, permite aos
seus membros maior mobilidade, liberdade e individualidade” (BAKUNIN, 2008, p. 30),
como por exemplo, ocorre com relação aos animais ferozes e mesmo com homem (a espécie
superior, segundo sua idéia).
O homem, indivíduo animal, assim como os animais de todas as outras espécies,
tem, tão logo começa a respirar, o sentimento imediato de existência individual; mas
adquire a consciência refletida de si mesmo, consciência que constitui
propriamente sua personalidade, por meio da inteligência, e , conseqüentemente, em
sociedade. Vossa personalidade mais íntima, a consciência que tendes de vós
mesmos em vosso foro interior, não é, de certa forma, senão o reflexo de vossa
própria imagem, refletida e enviada a vós, como por meio de um conjunto de
espelhos, pela consciência, tanto coletiva, quanto individual de todos os seres
humanos que compõem vosso mundo social. Cada homem que conheceis e com o
qual vos encontrais em relação, direta ou indireta, determina, mais ou menos, vosso
ser mais íntimo, contribui para fazer de vós o que sois, construir vossa
personalidade. Em conseqüência, se estais cercados de escravos, mesmo que sejais
senhor deles, implica dizer que sois também escravo, pois a consciência dos
escravos não pode refletir senão vossa imagem aviltada. [...] os vícios de vosso meio
social são vossos vícios, e podereis ser um homem realmente livre se estivésseis
cercados de homens realmente livres, bastaria a existência de um único escravo para
diminuir a vossa liberdade. (BAKUNIN, 2008, p. 31 e 32, grifos nossos).
A liberdade, no entanto, deixou de ser um estado natural do homem ao longo de sua
história. Em algum momento na humanização dos animais, pensavam Bakunin, Malatesta,
Nettlau como dizemos - e Kropotkin, a autoridade prevaleceu e um homem passou a se
dar o direito de subjugar outros homens e fazer com que trabalhassem para ele. A luta
contínua da humanidade passou a ser então empreendida para negar essa autoridade e
construir uma sociedade livre dessa autoridade; uma sociedade em que o sentimento natural
de solidariedade humana pudesse se desenvolver plenamente, sem empecilhos. Aliás, segundo
Kropotkin, que viajou revendo a “Teoria da Evolução das Espécies” de Charles Darwin, a
espécie mais desenvolvida não é aquela em que os indivíduos mais competem entre si, mas
aquela em que os mesmos mais cooperam entre si, diminuindo o controle da autoridade. O
progresso, que visam os libertários (como o visam também os marxistas) seria alcançado
quando a coletividade vencesse essa luta contra a autoridade antinatural (consolidada em
governos, instituições e relações individuais), que é na sociedade capitalista, a responsável
pela opressão do homem. Tal progresso só seria alcançado através da Revolução Social
internacional.
Assim, em resumo: nossos fins políticos são, para cada nação, a abolição dos
privilégios aristocráticos, para o mundo inteiro, a fusão de todos os povos. Nosso
destino é chegar a esse estado de perfeição ideal no qual as nações não mais
necessitam estar sob a tutela de um governo ou de uma nação: é a ausência de
governo, é a anarquia, a mais elevada expressão da ordem. Aqueles que não pensam
que a terra possa algum dia dispensar a tutela, não crêem no progresso, são
reacionários. (RECLUS, apud: NETTLAU, 2008, p. 105, grifos nossos).
Uma poesia de José Oiticica, um dos anarquistas brasileiros mais conhecidos também
deixa clara essa crença dos anarquistas no progresso e de que a anarquia era o estado natural
do homem e para o qual ele deve retornar.
Para a Anarquia
Para a Anarquia vai a humanidade,
Que da Anarquia a humanidade vem!
Vêde como êsse ideal de acôrdo invade
As classes tôdas pelo mundo além!
Que importa que a facção dos ricos brade,
Vendo que a antiga lei não se mantém?
Hão de ruir as muralhas da cidade,
Que não há fortalezas contra o bem.
Façam da ação dos subversivos crime,
Persigam, matem, zombem... Tudo em vão!
A idéia, perseguida, é mais sublime.
Pois, nos rudes ataques à opressão,
A cada herói que morra ou desanime,
Dezenas de outros bravos surgirão! (OITICICA, 1970, p. 279).
As religiões também são fundamentalmente contrárias à natureza humana segundo os
anarquistas. Bakunin afirmava que as religiões monoteístas são profundamente individuais,
cada indivíduo deve adorar e obedecer com o objetivo de ocupar um lugar no céu, num
paraíso que existe no pós-morte, nunca possível na Terra; admiram a solidariedade
(sentimento natural) no pecado e matam a idéia de coletividade. Além disso, pregam a
inferioridade humana diante de um Deus que tudo sabe, tudo faz e tudo pode; enquanto o
homem decadente obedece e se submete. O cristianismo, por exemplo, vai tão longe nesse
sentido que impede o homem de qualquer decisão que não passe por sua permissão, até
mesmo com relação às uniões.
[...] nada é pela graça do homem, tudo pela graça de Deus, verdadeiro rebanho de
ovelhas desgarradas, que o tem nem devem ter nenhuma relação imediata e
natural entre si, a ponto de lhes ser até mesmo proibido unir-se para reprodução da
espécie sem a permissão ou a bênção de seu pastor, somente o padre tem o direito de
casá-los em nome desse Deus, que é o único traço de união legítimo entre eles:
separados fora dele, os cristãos se unem e podem se unir nele. Fora dessa sanção
divina, todas as relações humanas, mesmo os laços de família, participam da
maldição geral que atinge a criação, são reprovadas: a ternura pelos pais, pelos
esposos, pelos filhos, a amizade fundada na simpatia e na estima recíprocas, o amor
e o respeito pelos homens, a paixão pelo verdadeiro, pelo justo e pelo bem, a paixão
pela liberdade, e a maior de todas, aquela que implica todas as outras, a paixão pela
humanidade. (BAKUNIN, 2008, p. 38).
A união, portanto, é possível se permitida pelo Estado e pela Igreja, os casamentos
devem ter respaldo desses, enquanto que a união livre torna-se um pecado. A mulher ocupa
um papel de submissão em relação a essas duas instituições que pregam a sua submissão ao
homem. Os libertários vêem “Deus e o Estado” como inimigos da união e da igualdade (que
também era uma característica natural até a constituição da autoridade ao longo da história da
humanidade) entre homens e mulheres. O homem (enquanto gênero), apesar de adotar essa
posição de superioridade, não é o responsável pela opressão da mulher. Quem é responsável
por tal são as instituições religiosas e do Estado, que afirmam e corroboram a suposta
superioridade do homem sobre mulher. Até a união, natural, deve passar pelo aval da
autoridade, antinatural, esteja ela na terra ou no céu; esta é um entrave à humanidade, mata
tudo o que de humano: a solidariedade, a união, o amor pela humanidade; prega o egoísmo
(outra característica antinatural). O “Deus-Nada”, que o homem criou a partir de uma
abstração, tornou-se o “Deus-Tudo” (BAKUNIN, 2003, p. 220).
O desejo de todos os anarquistas é de conquistar (ou reconquistar) a igualdade
completa através da revolução social: não a igualdade “fisiológica ou etnográfica, mas social
e econômica entre todos os indivíduos qualquer que seja a parte do mundo, a nação ou o sexo
ao qual eles pertencem”. (BAKUNIN, 2003, p. 222). É assim que pensavam as mulheres
libertárias, que viam sua libertação dentro da perspectiva da destruição de todas as classes
sociais.
[...] O despotismo do marido, do pai, em seguida do irmão mais velho, fez da
família, já imoral por seu fundamento jurídico econômico, a escola da violência e
da ignorância triunfantes, da covardia e da perversão quotidianas no lar.
(BAKUNIN, 2003, p. 249).
O Estado, criação da modernidade, tem como característica natural a conquista.
Aumentar, crescer, conquistar a qualquer preço, subjugar toda a força que seja igual, superior
ou inferior a força que ele organiza são tendências naturais e inerentes de todo e qualquer
Estado. Natureza essa, pois, que está em contraposição à natureza do homem. Justamente por
isso: “O Estado é a negação da humanidade” (BAKUNIN, 2008, p. 30). Ele pode ser definido
como burocrático, nobiliárquico e militar e sua função é garantir a exploração de uma maioria
por uma minoria que detém os meios de produção. Aliás, para Malatesta e Kropotkin, essa
minoria que constitui o Estado organizado em governos.
Em todos os tempos e lugares, qualquer que seja o nome que o governo assuma,
quaisquer que sejam sua origem e sua organização, sua função essencial é sempre a
de oprimir e explorar as massas, defender os opressores e os açambarcadores; seus
órgãos principais, características indispensáveis, são o policial e o coletor de
impostos, o soldado e o carcereiro, aos quais se junta infalivelmente o mercador de
mentiras, padre ou professor, pago e protegido pelo governo para escravizar os
espíritos e torná-los dóceis ao jugo. (MALATESTA, 2001, p. 28).
As instituições estatais e privadas funcionam como braços do Estado (organizador da
força) que garantem a sua existência e são responsáveis por manter a exploração e opressão da
grande massa por uma classe que explora seu trabalho. Por mais que os governos criem e
mantenham serviços reconhecidos por eles como direitos, tais como correios, serviços de
higiene pública, estradas, tratamento de águas, proteção de florestas, ou mesmo hospitais e
orfanatos, sempre tem como intuito a dominação, manter seus privilégios e daqueles “cuja
classe é o representante e defensor” (MALATESTA, 2001, p. 29). A moral do Estado,
portanto, é a moral da submissão (rompe com a solidariedade natural entre os homens),
enquanto que a moral humana é a moral do respeito pelo homem, pela dignidade, pelo direito
e pela liberdade de todos os indivíduos.
Em resumo, como foi dito, por ter a natureza oposta à natureza humana e por ser a
exploração organizada a criação de uma minoria de homens para garantir a exploração),
todos os anarquistas afirmam o Estado como um mal e origem de outros males. Ele é uma
forma da autoridade que deve ser destruída pelos homens em sua marcha rumo ao progresso.
Dois trechos de obras de Bakunin (a primeira extraída de “O Princípios do Estado e outros
ensaios”, de 1871 e a segunda de “Estatismo e Anarquia”, um dos seus últimos escritos, de
1873) expressam o conceito de Estado ao qual parecem compartilhar todos os libertários:
[...] o Estado outra coisa não é senão a garantia de todas as explorações em proveito
de um pequeno mero de felizes privilegiados, em detrimento das massas
populares. Ele se serve da força coletiva e do trabalho de todos para assegurar a
felicidade, a prosperidade e os privilégios de alguns, em detrimento do direito
humano de todos. É um estabelecimento para o qual a minoria desempenha o papel
de martelo e a maioria representa a bigorna. (BAKUNIN, 2008, p. 69).
[...] tem (o Estado) por único objetivo a organização, na mais vasta escala, da
exploração do trabalho, em proveito do capital concentrado em pouquíssimas mãos;
o que significa o reinado triunfante da judiaria e dos grandes bancos sob a poderosa
proteção das autoridades fiscais, administrativas e policiais, que se apóiam,
sobretudo, na força militar, despótica, por conseguinte, em sua essência, mas que se
abrigam, ao mesmo tempo, atrás do jogo parlamentar de um pseudo-regime
constitucional. (BAKUNIN, 2003, p. 35).
Deve-se evidenciar também que a crítica ao Estado feita por todos os anarquistas se
estende a todo e qualquer Estado, mesmo republicano, democrático ou mesmo aquele
imaginado pelos marxistas. Criticam assim a participação dos operários no parlamento como
defendeu Fernand Lassale (1825 1864) e seus seguidores, o Blanquismo
8
, que defendia um
governo de “intelectuais”, assim como o Estado socialista e a Ditadura do proletariado
defendido por Marx. O “Estado Socialista” é criticado pelos libertários como governo de uma
minoria intelectual (privilegiada), com a falsa justificativa de saber o que é melhor para o
povo, o que significa ser tão tirano quanto qualquer Estado monárquico.
Em linhas gerais, Fernand Lassale (considerado o “pai da social-democracia”)
defendia que para os trabalhadores conquistarem algo, deveriam se apoderar do Estado e
voltar a força estadista a seu favor e contra a burguesia. Para tal seria necessária uma “reforma
pacífica” do Estado que só poderia se operar através do parlamento, das eleições e do sufrágio
universal. O povo elegeria representantes que, pouco a pouco, constituiriam a maioria
parlamentar e, através de decretos, transformariam o Estado Burguês em Estado Popular, que
por sua vez, abriria crédito às associações operárias de produção e consumo (defendidas pelos
Lassalianos como forma de organização econômica dos trabalhadores), possibilitando que as
mesmas pudessem competir com o capital burguês, assim vencendo-o e absorvendo-o.
começaria a transformação radical da sociedade. O que significa que a tomada do poder
político seria o primeiro passo da Revolução, o que para os anarquistas é uma mentira, que
a Revolução, para ser bem sucedida, deveria ser social e internacional e a tomada do poder
político levaria a formação de outra classe dominante, mesmo que composta de operários,
que devido à conquista desse poder esquecer-se-iam de sua origem e classe. Além disso,
segundo Bakunin, as cooperativas operárias não seriam capazes de concorrer com as empresas
burguesas, acabariam por manter os privilégios dessa burguesia e afastariam o perigo social,
que o proletário passaria a ver na cooperativa uma solução para muitos de seus problemas,
como a miséria, mantendo assim a ordem social vigente.
Com relação à “Ditadura do Proletariado” e o Estado socialista os anarquistas o
denunciam e apontam suas contradições, como o fez Bakunin no trecho a seguir:
[...] Eles [os marxistas] sustentam que sua única preocupação e seu único objetivo
será dar instrução ao povo, elevá-lo, tanto econômica, quanto politicamente, a um tal
nível que todo governo não tardará a se tornar inútil; e o Estado, após ter perdido seu
8
Segundo Paulo Edgar Almeida Resende (2003) Louis-Auguste Blanqui (1805 1881) criticava o
cooperativismo de Proudhon afirmando que ele privilegiava os interesses dos artesãos e dos pequenos
comerciantes.
caráter político, isto é, autoritário, transformar-se-á por si mesmo em organização de
todo livre dos interesses econômicos e das comunas.
Eis uma flagrante contradição. Se seu Estado é de fato um Estado popular, por
que motivos dever-se-ia suprimi-lo? E se, por outro lado, sua supressão é necessária
à emancipação real do povo, como poderia qualificá-lo de Estado Popular? Ao
polemizar com eles, nós os levamos a reconhecer que a liberdade ou a anarquia, isto
é, a livre organização das massas operárias, de baixo para cima, é o último objetivo
da evolução social, e que todo Estado, inclusive seu Estado Popular, é um jugo, o
que significa, por um lado, que engendra o despotismo e, por outro, a escravidão.
Segundo eles, este jugo estatista, esta ditadura é uma fase de transição necessária
para chegar à emancipação total do povo: sendo, a anarquia ou a liberdade, o
objetivo, e, o meio, o Estado ou a ditadura. Assim, portanto, para libertar as massas
populares, dever-se-ia começar por subjugá-las. [...] a isso respondemos que
nenhuma ditadura pode ter outro objetivo senão o de durar o máximo de tempo
possível e que ela é capaz apenas de engendrar a escravidão no povo que a sofre e
educar este último nesta escravidão; a liberdade pode ser criada pela liberdade,
isto é, pela insurreição de todo o povo e pela livre organização das massas
trabalhadoras. (BAKUNIN, 2003, p. 213 e 214).
também uma forte crítica dos anarquistas ao governo da ciência, que defendiam os
positivistas. Um governo desse tipo seria tão opressor quanto qualquer ditadura e, pior ainda,
a imensa maioria seria governada por uma classe de pretensos detentores de verdade. Aliás,
nesse sentido, é consenso entre os anarquistas que, em uma sociedade futura, o trabalho
intelectual não deva estar separado e ser privilegiado como na sociedade capitalista; todos
devem poder fazê-lo gratuitamente e por prazer, assim como todos devem ter acesso à
educação, até os níveis mais avançados.
É justamente por essa concepção de Estado que os libertários se opõem à participação
política eleitoral ou parlamentar, mesmo que seja em um sistema democrático, onde os
representantes eleitos continuariam a explorar e perpetuar a exploração do povo em nome dele
mesmo. E se deve também a isso o fato das mulheres anarquistas se negarem a lutar pelo
sufrágio universal, que, segundo elas, serviria para corroborar sua exploração e a moral
burguesa em que a mulher tem uma posição de submissão.
Como foi possível perceber até aqui a interpretação naturalista dos anarquistas com
relação ao homem, à sociedade e à sociabilidade natural deste tem forte influência
rousseuaniana (com certeza uma das bases do pensamento anarquista). A clássica frase de
Rousseau “o homem é bom por natureza, a sociedade é que o corrompe” corresponde à idéia
dos anarquistas que o indivíduo forma sua personalidade em seu contato com a coletividade.
É de fato nisso que se apóiam ao afirmar que os crimes e os vícios, por exemplo, tem como
base a opressão do Estado e a exploração capitalista, ou seja, a má organização da sociedade.
Todo indivíduo humano é produto involuntário de um meio natural e social no seio
do qual nasceu e desenvolveu-se e do qual continua a sofrer influência. As três
grandes causas de toda a imoralidade humana são: a desigualdade tanto política
quanto econômica e social; a ignorância que é seu resultado natural e sua
conseqüência necessária: a escravidão. (BAKUNIN, 2006, p. 110).
Além da visão naturalista e da crítica ao Estado e a todas as formas de autoridade dos
anarquistas, podemos identificar como característica comum ao pensamento de todos eles a
identificação de dois poderes: o poder político e o poder econômico. O primeiro é exercido
pelos governantes, através da força física ou das instituições e o segundo é exercido pelos
proprietários dos meios de produção, que controlam os o proprietários através do trabalho.
Ambos caminham juntos, um servindo de respaldo ao outro: o governo garante a exploração
do trabalho por parte dos proprietários e esses respaldam a existência de um governo que seria
supostamente responsável por neutralizar os interesses diversos que existiriam nas relações
sociais, principalmente de exploração do trabalho. O governo, no geral formado por membros
da classe dominante é seu guardião” segundo Malatesta (2001). As leis formuladas pelos
governos, para Kropotkin, seriam, nesse sentido, um meio de garantir a espoliação da maioria,
através de sentimentos e de uma moral que essa maioria aceita como humana. Não fosse essa
formulação, a grande massa haveria se revoltado contra o governo e suas instituições,
segundo ele.
Por esses dois poderes estarem tão entrelaçados que, segundo os anarquistas das mais
várias tendências, a luta do movimento operário deve ser empreendida para destruí-los
simultaneamente (Kropotkin afirmava que exatamente após a derrubada do governo
começaria a expropriação e não só de proprietários, mas também de comerciantes e de
bancos, o que garantiria a total “comunização” dos meios de produção). Se a abolição dos
governos fosse feita sem a expropriação dos proprietários esses se reorganizariam em governo
e tornariam a respaldar a exploração, enquanto que, se a expropriação fosse feita sem a
derrubada dos governos, esses recuperariam a propriedade e voltariam a explorar o trabalho
da massa.
Os anarquistas disseram-no mil vezes, e toda a história o confirma: propriedade
individual e poder político são dois elos da corrente que oprime a humanidade, os
dois germes da lâmina do punhal do criminoso. É impossível livrar-se de um sem se
livrar do outro. Uma vez abolida a propriedade individual sem abolir o governo, ela
renascerá graças aos governantes. Abolir o governo, sem abolir a propriedade
individual, é deixar os proprietários reconstituírem o governo. Aquele que domina as
coisas, domina os homens; quem governa a produção, governa os produtores; quem
mede o consumo é o senhor dos consumidores. (MALATESTA, 2004, p. 95, grifos
nossos).
É muito comum em alguns textos a respeito do anarquismo se falar que os anarquistas
são contra todos os poderes ou que observam micro-poderes, porém o que se mostra de
maneira muito clara na leitura de obras reconhecidas como clássicas sobre o tema, tais como
as de Bakunin, Malatesta, Kropotkin, Emma Goldman, Élisée Reclus, é que os libertários
colocam-se contra os poderes apresentados acima e que aceitam o poder pactuado (o que
Malatesta, por exemplo, denominava como concessões mútuas”), como por exemplo: se um
indivíduo aceitou viver em uma comunidade, deve estar disposto a sacrificar algumas de suas
vontades em proveito de sua comuna, sem deixar obviamente de se expressar. Nesse sentido,
Malatesta (1984) considera que questões práticas de uma comunidade ou de uma organização
operária deveriam ser votadas, prevalecendo o voto da maioria. “As idéias e opiniões
permanecem, evoluem e diferenciam-se fazem parte do progresso”, segundo ele –, “e
decisões práticas precisam ser tomadas sobre essas idéias e opiniões com certo imediatismo,
isso ocorrerá todos os dias” (MALATESTA, 1984, p. 10), por isso devem ser votadas para
decidir o que seria melhor em dado momento, um exemplo claro estaria na construção de uma
ferrovia em uma comunidade: haveriam projetos diferentes sobre a construção e a
comunidade deveria votar naquele que achasse melhor e caberia à minoria aceitar às decisões
da maioria, que todos os indivíduos estão em comum acordo sobre viver naquela
comunidade. Mas o ato de ceder à vontade da maioria não seria, em uma sociedade livre, uma
imposição e sim um ato de sua vontade.
É razoável, justo e necessário que a minoria ceda ante a maioria, para tudo o que não
admite várias soluções no mesmo tempo; ou quando as diferenças de opinião o
são de uma importância tal que valha a pena dividir-se e que cada fração aja ao seu
modo; ou quando o dever de solidariedade impõe a união.
Mas o fato de ceder, no que concerne à minoria, deve ser o efeito da livre vontade,
determinada pela consciência da necessidade: não deve ser um princípio, uma lei,
que se aplica por conseqüência de todos os casos, mesmo quando a necessidade não
se faz realmente sentir. É nisso que consiste a diferença entre a anarquia e toda a
forma de governo. (MALATESTA, 2008, p. 185 e 186).
Podemos concluir as idéias gerais do anarquismo através de um dos textos de
Malatesta, escrito em 1903
9
. Neste ele define princípios gerais do anarquismo, que certamente
podemos entendê-los como princípios para a maioria os libertários
10
:
1. Abolição da propriedade (privada ou estatal) da terra, das matérias-primas e dos
instrumentos de trabalho, para que ninguém tenha os meios de explorar o
trabalho dos outros e para que todos, assegurados os meios de produzir e de
viver, sejam verdadeiramente independentes e possam associar-se livremente
uns com outros, no interesse comum e conforme suas afinidades e simpatias
pessoais;
2. Abolição do Estado e de qualquer poder que faça leis para impô-las aos outros.
Portanto, abolição do trabalho de todos os órgãos governamentais e todos os
elementos que lhe são próprios, bem como de toda e qualquer instituição dotada
dos meios de constranger e de punir;
3. Organização da vida social por meio das associações livres e das livres
federações de produtores e consumidores, criadas e modificadas conforme a
9
Esse texto foi publicado em São Paulo em 1910 com o nome de “Programma e Tattica de Partido Socialista
Anarchico” segundo Max Nettlau (2008). Essa declaração de princípios foi bem aceita entre vários grupos
anarquistas, inclusive atualmente.
10
A escola chamada de anarco-individualista chega a defender a existência de “uma certa” propriedade privada.
Para eles, o homem, enquanto individualista e não só socialista, necessitaria de uma propriedade onde pudesse
estar sozinho quando o desejasse. Mas de maneira nenhuma podemos entender essa propriedade como a
propriedade capitalista, responsável pela exploração do trabalho e opressão dos não proprietários.
vontade de seus componentes, guiados pela ciência e pela experiência, e libertos
de toda obrigação que não se origine da necessidade natural, à qual todos, de
bom grado, se submeterão quando lhe reconheçam o caráter inelutável
11
;
4. A todos serão garantidos os meios de vida, de desenvolvimento, de bem-estar,
particularmente às crianças e a todos os que sejam incapazes de prover a própria
subsistência;
5. Guerra a todos os preconceitos religiosos e a todas as mentiras, mesmo as que
se ocultam sob o manto da ciência. Instrução completa para todos, até os graus
mais elevados;
6. Guerra às rivalidades e aos preconceitos patrióticos. Abolição das fronteiras,
confraternização de todos os povos;
7. Libertação da família de todas as sujeições, de tal modo que ela resulte na
prática do amor, livre de toda influência estatal ou religiosa e da opressão
econômica ou física. (MALATESTA, 2009, p. 2).
A destruição da sociedade capitalista e a construção da anarquia seriam alcançadas
através da ação direita das massas contra o Estado e a burguesia. Com relação a isso a maioria
dos anarquistas concordava, discordavam apenas com relação aos métodos revolucionários
utilizados (se violentos ou não) para tal, assim como discordavam sobre como se organizaria a
sociedade futura (propriedade e divisão da produção).
1.2 Os expoentes do anarquismo que mais influenciaram a prática do movimento
anarquista em São Paulo (Bakunin, Malatesta e Kropotkin)
A anarquia é uma sociedade fundada sobre o livre entendimento, no seio da qual
cada indivíduo pode atingir o máximo de desenvolvimento possível,
desenvolvimento material, moral e intelectual, e onde encontre na solidariedade
social, a garantia de sua liberdade e de seu bem-estar. (MALATESTA, 1984, p. 31).
O anarquismo é definido pelos anarquistas modernos (ou anarquismo clássico
12
) como
um movimento internacional, ou seja, para eles, a revolução só seria vitoriosa se fosse
mundial e não ocorrida em uma nação ou em determinada localidade. Logo, é impossível
entender o movimento libertário paulistano sem compreender que o mesmo dialogava com o
movimento em todo o mundo. Os anarquistas brasileiros, em sua maioria imigrantes
europeus, trouxeram consigo idéias anarquistas e socialistas, discutiram as decisões tomadas
em congressos libertários, embora muitas vezes sem viajarem para esses congressos; liam os
textos considerados clássicos anarquistas e aqueles que não sabiam ler ouviam pela boca dos
11
Com relação a esse ponto os anarco-individualistas podem discordar e preferir uma organização individual.
12
George Woodcock em sua obra “Grandes escritos anarquistas” (1981) denomina de anarquismo clássico os
anarquistas que defenderam as idéias de expropriação da burguesia, de destruição do Estado e das formas de
autoridade. Para ele pode-se dizer que o anarquismo clássico tem seu início com Proudhon em 1840, quando
publica “O que é propriedade?” e vai até o começo do século XX com Malatesta e Kropotkin, passando por
Bakunin. As idéias libertárias anteriores a 1840 seriam cerne do pensamento anarquista, mas não anarquismo
propriamente dito. Essa abordagem varia entre os vários estudiosos do anarquismo. Daniel Guérin (em seu
prefácio a obra “Textos anarquistas” (2006) de Bakunin) , por exemplo, afirma que Mikhail Bakunin é o
fundador do anarquismo histórico - que seria o que Woodcock chama de anarquismo clássico - e que o mesmo
tem seu fim com a destruição das associações anarco-sindicalistas espanholas em 1939. João Freire, na
introdução à obra de Neno Vasco “Concepção anarquista de sindicalismo” (1984) concorda com a denominação
de anarquismo histórico de Guérin e coloca Bakunin, Kropotkin e Malatesta como tais.
outros essas leituras em salões de leitura organizados por libertários; a imprensa, que era
muito ampla, era escrita, além do português, em línguas como o italiano e o espanhol, visto
que os imigrantes dessas origens foram a maioria. Esta imprensa trazia também citações de
anarquistas como Piotr Kropotkin, Errico Malatesta, Mikhail Bakunin, Louise Michel e
Emma Goldman, assim como divulgava seus textos em brochura aos operários paulistanos (a
exemplo do texto de Élisée Reclus “Evolución, Revolución y Anarquismo”). Esses expoentes,
portanto, não podem ser ignorados ao estudarmos o movimento operário na Primeira
República; as suas considerações com relação à organização, métodos e meios
revolucionários, bem como, com relação à propaganda, as artes e a educação. Suas
concepções devem ser explicitadas para que possamos compreender o movimento anárquico,
um movimento internacional.
Mikhail Bakunin nasceu em Priamukhino (Rússia) em 1814 e morreu em Berna em
1876. Foi considerado por muitos libertários, entre eles Malatesta (que recebeu profundas
influências do pensamento de Bakunin), como o “pai espiritual do anarquismo”
(MALATESTA, 2008a, p. 30). Participou de inúmeros movimentos nacionalistas, como por
exemplo, de movimentos eslavos, até se dedicar totalmente à causa anarquista (após 1864,
quando tem seu primeiro contato com Proudhon), organizando sociedades secretas que
visavam a destruição do Estado e da sociedade burguesa (como a “Associação Fraternidade
Internacional” ou “Aliança dos Revolucionários Socialistas” fundada na Itália em 1865),
lutando ativamente nas revoltas de 1848 e participando ativamente da Associação
Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional) da qual foi expulso em 1872 depois
de inúmeras e famosas polêmicas com Karl Marx. Segundo Paulo Edgar Almeida Resende
(2003), pode-se dizer que ele participou de todas as lutas populares ocorridas na Europa entre
1840 e 1876. Nunca escreveu um livro, seus manuscritos são todos interrompidos,
principalmente porque ele deixava de escrever para dedicar-se aos movimentos que eclodiam
em toda Europa ou era preso por decorrência de sua atividade política. Tais manuscritos, que
tornam possível entender suas idéias, foram organizados e publicados em forma de livros e
brochuras que chegavam no Brasil durante a Primeira República, graças ao esforço de outros
anarquistas que viam-se diretamente influenciados por seus pensamentos como Élisée Reclus
e James Guillaume (1884 1916, um dos membros mais importantes da Federação do Jura da
Internacional, que, assim como Bakunin foi expulso em 1872), que organizaram suas obras
após sua morte quando a viúva de Bakunin deu-lhes seus manuscritos não publicados.
Nos anos de 1840 e 1841 Bakunin teve contato com os Jovens Hegelianos na
Alemanha, influência decisiva em sua vida. Nesse grupo teve contato com as obras das suas
maiores influências filosóficas que foram, sem dúvida, Hegel e Fichte, aliás, sua mais
conhecida citação: “a ânsia de destruir é também uma ânsia criativa” (WOODCOCK, 2002, p.
168) foi profundamente influenciada pelas idéias de Hegel. E com relação a ele afirma, em
1873, que sua teoria, a teoria da negação absoluta, era muito mais “completa, harmoniosa e
profunda” (BAKUNIN, 2003, p. 164) do que a de Voltaire e Rousseau, por exemplo. Porém,
criticava seu aspecto profundamente metafísico: a filosofia de Hegel seria o coroamento de
um mundo fundado num ideal superior, o que aponta como seu principal problema. Os
seguidores de tal teoria, no entanto poderiam ser divididos em três categorias para Bakunin: a
primeira dos conservadores, que afirmavam que “tudo que é real é racional” e a monarquia
seria o ideal (como por exemplo, monarquia prussiana); a segunda seria o centro (Bakunin
não a define); e a terceira dos revolucionários, que mostraram a implacável negação que é a
essência da filosofia hegeliana, entre os quais estão Feuerbach, que negou a metafísica e o
mundo divino, assim como Marx, que, apoiado na filosofia de Hegel afirmava a mudança
como determinada e certa, segundo Bakunin. Os hegelianos da terceira categoria para ele
colocavam a revolução partindo de um ideal para o real, da idéia para a vida e não o contrário.
[...] Ora, quem parte da idéia abstrata nunca chegará à vida, pois da metafísica à vida
não existe caminho. Um abismo as separa. E saltar por cima deste abismo é executar
o “salto mortale”, ou o que o próprio Hegel chamava, salto qualitativo (Qualitativer
Sprung) do mundo lógico ao mundo natural; ninguém até agora conseguiu realizá-lo,
e nunca conseguirá. Quem se apóia na abstração, nela encontrará a morte.
A maneira viva, concretamente racional de avançar, no domínio da ciência, é ir do
fato real à idéia que o abarca, o exprime e, por isto mesmo, o explica; e, no domínio
prático, ir da vida social à maneira mais racional de organizá-la, de acordo com as
indicações, condições, necessidades e exigências mais ou menos apaixonadas da
própria vida. (BAKUNIN, 2003, p. 165).
Ao contrário dessa terceira categoria de hegelianos, Bakunin pensava que o caminho
da emancipação real e completa do povo seria a destruição, a partir do real, de suas condições
reais de existência e sua organização social reais, para a ideal: a construção de formas de
comunidades livres. Esse caminho não é dado e determinado, mas construído pelo povo
(educado pelo exemplo), através de sua vontade, organização e métodos. Vontade,
acompanhada de paixão, sacrifício e “unidade de pensamento de palavra e de ação”
(BAKUNIN, 2003, p. 154). Concordava, por outro lado, com Marx ao afirmar que o fato
econômico (o real) precede o direito político e jurídico
13
.
Entretanto a vontade revolucionária não bastaria para que a revolução social fosse bem
sucedida. Somada à vontade e a paixão revolucionária deve estar a organização. A luta
13
Marx criticou Proudhon em “A miséria da filosofia” pelo último colocar o direito político e jurídico como
precedentes ao fato econômico. Paulo Edgar Almeida Resende, em sua apresentação ao texto de Bakunin
“Estatismo e Anarquia” (2003), afirma que Bakunin concordava com essa crítica de Marx, afirmando que
Proudhon era metafísico.
organizada é essencial à revolução e à construção da sociedade anárquica baseada em
preceitos de solidariedade e livre organização comunal. Essa concepção influenciou
profundamente a organização de sindicatos anarquistas na Espanha e no Brasil. Os anarquistas
paulistanos, ao se organizarem em sindicatos e associações por ofício, sem dúvida alguma
compartilhavam desse pensamento. Sua crença na revolução universal, que poderia
começar pelas massas caminhava junto com a crença de que para tal se realizar seria essencial
a organização da força revolucionária.
a revolução universal é assaz forte para derrubar e quebrar a potência organizada
do Estado, apoiada por todos os recursos das classes ricas. Mas a revolução
universal é a revolução social, é a revolução simultânea do campo e daquele das
cidades. É que se deve organizar porque sem uma organização preparatória, os
elementos mais poderosos são impotentes e nulos. (BAKUNIN, 2008, p. 19 e 20,
grifos nossos).
A organização livre dos operários e camponeses para a luta revolucionária também
seria uma forma de preparar para a revolução social. Era o que Bakunin chamava de
aprendizagem através da ação. Organizações e associações operárias deveriam construir-se
sobre as bases da liberdade, já que é essa liberdade que garantiria a prosperidade e a dignidade
de cada indivíduo tanto na sociedade futura (anárquica) quanto na luta revolucionária; sem
dirigentes (já que a libertação dos trabalhadores seria obra dos próprios trabalhadores); e
através da livre coligação internacional (já que a burguesia também faria alianças
internacionais). Podemos observar, nesse sentido, que há uma diferenciação de Marx na
aposta que Bakunin fazia com relação às organizações do campesinato.
Mas, como chegar, do abismo da ignorância, da miséria, da escravatura, em que
vivem os proletários dos campos e das cidades, a este paraíso, a esta realização da
justiça sobre a terra? [que é a sociedade pós-revolucionária] para tal os
trabalhadores tem apenas um meio: a associação. Através da associação, instruem-
se, esclarecem-se mutuamente e põem fim, por si próprios, a esta fatal ignorância
que é uma das principais causas da sua escravatura. Através da associação,
aprendem a se ajudarem, a se conhecerem, a se apoiarem mutuamente, e acabarão,
por criar um poder muito maior do que todos os capitais burgueses e poderes
políticos juntos. (BAKUNIN, 1979, p. 7, grifos nossos).
A sociedade livremente organizada que a luta revolucionária visaria construir, deveria
se pautar, segundo Bakunin, na destruição do conflito entre Capital e Trabalho presentes na
sociedade capitalista. Para isso deveria organizar-se de maneira coletivista. A pobreza,
segundo os libertários, obriga o operário a vender o seu trabalho e, conseqüentemente, a sua
vida ao capitalista ou o faz ou morre de fome. Capital e trabalho estão assim separados na
sociedade capitalista. O trabalho escravo do capital (os trabalhadores governados pelos
burgueses). A escravidão moderna assim definida é respaldada por uma suposta liberdade
política do trabalhador. A sociedade livre, construída após a destruição desse conflito
representado através da sociedade burguesa, deveria organizar-se de maneira que a liberdade e
a igualdade sejam totais, uma sendo condição a outra, ou seja, através da coletivização dos
meios de produção e dos instrumentos de trabalho, assim como do trabalho obrigatório a
todos, segundo a fórmula: a cada um conforme o seu trabalho. Através do trabalho manual
obrigatório, os indivíduos ganhariam espírito de solidariedade e justiça. O trabalho intelectual
seria gratuito e de acordo com a vontade de cada um. Assim, a terra não seria propriedade de
ninguém, mas sim um dom da natureza; seus frutos, “enquanto produto do trabalho”
(BAKUNIN, 2006, p. 52), deveriam voltar para as mãos daqueles que a cultivassem.
[...] o trabalho isolado dos indivíduos mal seria capaz de alimentar e vestir um
pequeno povo de selvagens; uma grande nação se torna rica e pode subsistir
pelo trabalho coletivo, solidariamente organizado. (BAKUNIN, 2008, p. 97).
[...] O que exigimos é que seja mais uma vez proclamado o grande princípio da
Revolução Francesa o de que todo homem deve dispor de meios materiais e
morais para desenvolver sua humanidade -, um princípio que, segundo acreditamos,
deve ser traduzido no seguinte problema: organizar a sociedade de tal modo que, ao
nascer, cada indivíduo, homem ou mulher, disporá de meios materiais tanto quanto
possível idênticos, para o desenvolvimento das suas diferentes faculdades e para sua
utilização no seu trabalho; organizar uma sociedade que, tornando impossível a
qualquer indivíduo, seja ele quem for, a exploração do trabalho de outros indivíduos,
permita que cada um deles participe da riqueza social que, na realidade, jamais é
produzida senão pelo trabalho apenas na medida em que tiver contribuído com seu
próprio trabalho para produzi-la. (BAKUNIN, apud: WOODCOCK, 2002, p. 183,
grifos nossos).
Sendo assim, a revolução social não nasceria da obra e vontade de um gênio, mas sim
das próprias massas, através de suas práticas políticas e lutas. É nesse sentido que devemos
nos ater aqui a observar as práticas políticas dos anarquistas na Associação Internacional dos
Trabalhadores, que sem dúvida foi a organização mais referenciada como exemplo dentro de
inúmeros meios operários. As práticas políticas defendidas pelos anarquistas no seio da AIT, e
não os ideais de uma organização fortemente centralizada com dirigentes dispostos a ditar
seus rumos e formas de ação, tiveram grande relevância para os conteúdos e práticas políticas
adotados por ela, assim como pelos anarquistas em São Paulo. As idéias de auto-organização
debatidas e experimentadas pelos anarquistas coletivistas em tal associação foram de
influência fortíssima para os anarquistas clássicos e contemporâneos no Brasil e no mundo. É
por isso que devemos analisar sua formação e os principais embates ocorridos durante seus
anos de existência.
A Associação Internacional dos Trabalhadores, para Bakunin, era uma forma de
organização dos trabalhadores avançada e que poderia levar à revolução social à medida que
se expandisse e tivesse como adeptos os proletários de todo o mundo. Ela (conhecida também
como Primeira Internacional quando se refere ao seu período de existência de 1864 a 1876)
foi fundada em 28 de setembro de 1864, com intuito de unir os trabalhadores de várias
tendências políticoideológicas, sem centralização, baseando a unidade organizativa nos laços
de solidariedade, para que pudessem trocar experiências e unirem-se em movimentações.
Seu primeiro congresso ocorreu de 3 a 8 de setembro de 1866 em Genebra (Suíça),
onde foram redigidos, por Karl Marx, desde a assembléia de 28 de setembro de 1864
membro do Conselho Central, que se tornaria depois o Conselho Geral - seus primeiros
estatutos. Inicialmente compunham a Internacional apenas Marx, alguns de seus seguidores e
mutualistas de Paris apoiados pelas trade-unions inglesas, os últimos defendendo formas de
organização operárias cooperativas e de socorro mútuo. Entretanto depois de 1868 (depois de
seu segundo congresso em setembro de 1867 em Lausanne e das grandes greves em Genebra
no ano de 1868) ela passou a chamar a atenção de membros de outras tendências políticas
14
que passaram a integrá-la, como foi o caso de Bakunin, que adere à associação como membro
da seção de Genebra. Blanquistas, defendendo um “governo dos intelectuais” para “guiar a
revolução” e ao mesmo tempo uma livre federação de comunas; lassalianos e coletivistas
seguidores de Bakunin começaram a travar intensos debates sobre o que deveria ser uma
organização como a Associação Internacional dos Trabalhadores. Para os últimos ela deveria
ser uma associação revolucionária, não só cooperativa e de socorro mútuo; pautar-se na
solidariedade operária, na livre união e livre organização, nunca na centralização e na direção
partidária defendida por Marx e Engels; também deveria atuar através da ão direta e nunca
pela ação parlamentar defendida pelos lassalianos. Dessa opinião certamente partilhavam os
anarquistas brasileiros ao fundarem inúmeras associações e organizações operárias.
[...] Quer (a Internacional), [...], uma organização econômica, política e social na
qual todo o ser humano sem prejuízo das suas particularidades naturais e
individuais, encontre igual possibilidade de se desenvolver, instruir, pensar,
trabalhar, agir e desfrutar a vida como um homem. Sim, quer isto, e mais uma vez,
se o que ela quer é impossível com a organização atual dessa sociedade, tanto pior
para esta sociedade. (BAKUNIN, 1979, p. 8, grifos nossos).
Várias seções se formaram ao longo do ano de 1868 e muitas aderiram ao coletivismo
e as posições sobre a associação defendidas pelos coletivistas, como as seções de Madrid e
Barcelona, a Federação Romanda (união das seções francesa e suíça) e a Federação do Jura. O
Congresso seguinte, quarto congresso da AIT, realizado em Balê de 6 a 12 de setembro de
1869, em decorrência da formação de novas seções e suas adesões ao coletivismo, tem quase
a unanimidade de delegados pronunciando-se pela propriedade coletiva. Nesse mesmo ano,
14
James Guillaume (1884 1916) escreveu, depois de 1880, quatro volumes sobre a Associação Internacional
dos Trabalhadores: “L’ International: documents et souveniers” , que segundo Daniel Guérin (2006) são os
documentos mais importantes da Internacional sob o ponto de vista anarquista.
Bakunin, com enormes dificuldades financeiras sai de Genebra para viver em um local mais
barato. Segundo James Guillaume (2006), Marx e Nicolas Outine (marxista da social-
democracia) desorganizaram a seção de Genebra com intrigas e calúnias, para centralizarem
cada vez mais a associação, e fizeram com que a Federação Romanda sofresse uma cisão
(1870) formando duas facções: uma que afirmava a participação política do proletariado na
política burguesa (através de candidaturas e intervenções políticas) e outra que afirmava o
contrário, que a participação política do proletariado consolidaria a ordem capitalista. O
Conselho Geral de Londres (do qual faziam parte, como foi dito, Marx e seus seguidores),
os alemães e os alemães suíços tomaram parte da primeira facção e os franceses, belgas e
espanhóis da segunda, defendida essencialmente pelos trabalhadores da seção do Jura.
A partir de 1871 o Conselho Geral de Londres passou a tomar medidas ainda mais
centralizadoras dentro da AIT, contrárias à livre organização praticada pelos coletivistas e aos
ideais de fundação da própria organização. Em setembro desse ano uma conferência secreta
foi convocada para tomar medidas que destruíssem a autonomia das seções e federações e
para conceder ao Conselho Geral uma autoridade, que para Guillaume, era contrária aos
estatutos fundamentais da associação e daria ao conselho direito para organizar a luta política
da classe trabalhadora centralizar a luta. Imediatamente a federação do Jura convidava os
membros da AIT à lutar contra as imposições do Conselho; as seções italianas, belgas,
francesas (ou pelo menos em sua maior parte) e norte-americanas se colocaram da mesma
forma.
Tendo observado a forte influência das idéias coletivistas na AIT, Marx e seus
seguidores do Conselho Geral convocaram, em 2 de setembro de 1872, um congresso em
Haia (Holanda), um local de difícil acesso aos membros de federações mais afastadas. A
Federação Italiana absteve-se de mandar delegados; a Espanhola enviou quatro; a Jurassiana,
dois; a Belga, sete; a Holandesa, quatro; a inglesa, cinco. Esses formavam a oposição ao
Conselho Geral, que levou quarenta delegados anteriormente dispostos a executar o que Marx
e Engels ditassem, ainda segundo Guillaume. No último dia de congresso, 7 de setembro de
1872, foi votada a expulsão de Bakunin sob justificativa de que ele formara uma sociedade
secreta cujos interesses eram diversos aos da AIT. Nesse momento, vários dos delegados da
oposição haviam abandonado o congresso e a expulsão foi confirmada. Os membros que
haviam se retirado se reuniram dias depois, em 15 de setembro de 1872, em Saint-Imier (Jura
Suíço) a fim de fazer outro congresso, que se opusesse às decisões do Conselho Geral.
Segundo Malatesta
15
, o Congresso repudiava as decisões do congresso de Haia e a
centralização proposta por Marx. Exprimia sua oposição através da seguinte declaração:
“Natureza da Ação Política do Proletariado
Considerando:
que querer impor ao proletariado uma linha de conduta ou um programa político
uniforme como o único caminho que possa conduzi-lo à sua emancipação social é
uma pretensão tão absurda quanto reacionária;
que ninguém tem direito de privar as federações e seções autônomas do direito
incontestável de determinarem elas mesmas e seguirem a linha de conduta política
que acreditarem ser a melhor, e que toda tentativa semelhante nos conduziria
fatalmente ao mais revoltante dogmatismo;
que as aspirações do proletariado não podem ter outro objetivo senão o
estabelecimento de uma organização e de uma federação econômicas absolutamente
livres, fundadas no trabalho e na igualdade de todos e absolutamente independentes
de todo governo político, e que esta organização e esta federação podem ser o
resultado da ação espontânea do próprio proletariado, dos corpos de profissão e das
comunas;
Considerando que toda organização política outra coisa não pode ser senão a
organização da dominação em proveito de uma classe e em detrimento das massas, e
que o proletariado, se quisesse se apoderar do poder, se tornaria, ele próprio, uma
classe dominante e exploradora;
O Congresso de Saint-Imier declara:
1) que a destruição de todo poder político é o primeiro dever do proletariado;
2) que toda a organização de um poder político pretensamente provisório e
revolucionário para conduzir esta destruição pode ser um embuste a mais e seria
tão perigoso para o proletariado quanto todos os governos hoje existentes;
3) que, rejeitando todo compromisso para chegar à realização da revolução social, os
proletários de todos os países devem estabelecer, fora de toda política burguesa, a
solidariedade da ação revolucionária”. (MALATESTA, 1989, p. 132, grifos nossos).
A Federação Belga, que não compareceu a esse congresso mandou sua aprovação a tal
declaração. O Conselho Geral, que desde o Congresso de Haia estava sediado em Nova
Iorque, se pronunciava em 1873 pela suspensão da Federação do Jura da AIT. A Federação
Holandesa, que até então permanecia neutra, retirou-se da Internacional em apoio aos
jurassianos e aderiu ao Congresso de Saint-Imier.
A cisão e o anunciado fim da Primeira Internacional tiveram muito impacto nos meios
operários nesse período e em períodos posteriores, passaram a se discutir cada vez mais
questões em torno da organização e da luta revolucionária de acordo com aquilo que
pregavam os anarquistas em sua prática política dentro da Internacional. Os anarquistas
paulistanos, por exemplo, insistiam na necessidade de organizar-se revolucionariamente de
maneira livre, como pregavam os coletivistas durante esses citados congressos. Opuseram-se
às centralizações e direções, assim como se opuseram os membros coletivistas e mutualistas
15
Para Malatesta a Internacional não sofreu cisão por causa das disputas internas ou por ser tão heterogênea.
“Seu modo de organização, tornado centralista e autoritário sob o impulso do Conselho Geral de Londres,
particularmente de Karl Marx, que era sua alma, conduziu de fato à cisão da Internacional”. (MALATESTA,
1989, p. 127). Porém, nesse sentido entre os estudiosos do tema há várias interpretações. Paulo Edgar Almeida
Resende, por exemplo, afirma em sua introdução ao texto de Bakunin “Estatismo e Anarquia” (2003), que a
dissolução da Primeira Internacional se deu por causa da forte repressão que sofria.
da Internacional. Organizaram-se em grupos segundo seus ofícios e em sindicatos anarquistas
(livres). Para os anarquistas de São Paulo, assim como para Bakunin, um operário sozinho
não conseguiria lutar contra o poder organizado da burguesia, portanto deveriam organizar-se,
exercendo, além da prática revolucionária, a solidariedade.
Organizemo-nos, alarguemos a nossa associação, mas não esqueçamos de, ao
mesmo tempo, a consolidarmos, a fim de que a nossa solidariedade, que é a nossa
força, se torne cada vez mais real. Tornemo-nos cada vez mais solidários no estudo,
no trabalho, na atividade política, na vida. Associemo-nos em ações comuns de
modo a tornarmos a existência um pouco mais suportável e menos difícil; formemos
em todos os locais, e sempre que nos seja possível, sociedades de consumo de
crédito mútuo e de produção, que, embora incapazes de nos emanciparem dum
modo coerente e sério nas atuais condições econômicas, habituam os operários à
prática dos negócios e preparam embriões da organização do futuro. (BAKUNIN,
1979, p. 9 e 10).
A organização sindical não deveria ser a única via de organização. Não deveria ser
vista como segura e inevitável, sendo necessário abandonar outras
16
. O sindicato deveria
caminhar na luta juntamente com outras formas, tais como a comuna livre, grupos
anarquistas, a comunidade experimental e as cooperativas que, segundo Nettlau (2008),
constituem o “estágio primordial” da coexistência social livre e as “realidades da vida
econômica futura”. Nenhuma dessas formas de organização excluiria outras, desde que
fossem livres. Os anarquistas em São Paulo pensavam dessa forma, basta observar o artigo em
que “A Plebe” anuncia um convênio de agremiações obreiras, nota-se que vários tipos de
organização, desde ligas de resistência até uniões e sindicatos, todas de acordo com o ofício e
organizadas de maneira espontânea, assim como o convênio, em que as agremiações
compareceram espontaneamente:
O convenio das agremiações obreiras realizado no domingo, foi uma bella
demonstração de vitalidade do movimento de resistência e de luta do operariado. [...]
Foram as seguintes as associações que se fizeram representar no Convenio: União
dos Canteiros, Syndicato dos Serralheiros, União dos Chapeleiros, União dos
trabalhadores de Fábricas de Bebidas (secção da Cia. Antarctica), União Geral dos
Ferroviários (secção da S. Paulo Railway), Liga dos Trabalhadores de Madeira,
União dos Artífices de Calçados, União dos Pedreiros e Serventes, Liga dos
Padeiros e Confeiteiros, União dos Alfaiates, Ligas Operárias da Mooca,
Belenzinho, Ypiranga, Braz, Cambuci, Bom Retiro e Vila Marianna, Liga dos
Ceramistas (secção da Fábrica Santa Catharina, Água Branca), Liga Operária da
Água Branca e Lapa, Syndicato dos Canteiros de Cotia, Sociedade dos Laminadores
de S. Caetano, Syndicato Internacional dos Canteiros de Ribeirão Pires, Liga
Operária de S. Roque, Syndicato dos Canteiros de Lageado, Liga dos Vidreiros
(secção da Fábrica Santa Marina, Água Branca).
16
Seria errôneo pensarmos que os anarquistas pensavam todos da mesma maneira no que diz respeito aos
sindicatos. Individualistas, por exemplo, negavam participar de associações desse e de outros tipos. Bakunin,
Kropotkin e Malatesta o viam como uma forma importante de organização, já que conseguia agregar tantos
operários, que aprendiam, através da experiência e do exercício da solidariedade, a organizarem suas próprias
vidas sem chefes.
Também estiveram representadas as corporações do cortume da Água Branca, da
Cia. Progresso, do mesmo bairro, e da Fábrica de tecidos da Lapa. (A Plebe, São
Paulo, 8 de setembro de 1917, anno I, número 13).
Os sindicatos anarquistas em São Paulo na Primeira República, diferentemente dos
sindicatos dirigidos por partidos políticos, como hoje é a CUT ou a Força Sindical, foram
organizações livres e sem um dirigente que guiasse a luta, assim como defendido pelos
coletivistas da Primeira Internacional. Objetivavam pela luta econômica dos trabalhadores,
controlada por eles mesmos, conquistar melhores condições econômicas e, além disso,
provocar a transformação radical da sociedade através da revolução social. Contrapuseram-se
à política parlamentar, observando-a como uma maneira de perpetuar a exploração do
proletariado, e ao Estado, que seria o defensor dos grandes industriais e produtores de café.
A Greve Geral era vista no Brasil como método capaz de levar à revolução social
desde que viesse acompanhada da expropriação dos burgueses e da destruição do Estado. Se
não chegasse a alcançar tal fim, ao menos possibilitaria aos trabalhadores conquistar melhoras
momentâneas, que tornariam suas vidas um pouco menos sofridas, e praticar a solidariedade e
o apoio mútuo. Esse pensamento, que se viu consolidado na Greve Geral de 1917 em São
Paulo, que acabou por terminar com um acordo entre os operários e os patrões, em que
algumas reivindicações foram alcançadas, tinha como defensor também Bakunin. Para ele, a
greve geral que vise à revolução social pode sem dúvida levar a ela, porém se ela for
internacional, caso contrário os trabalhadores morreriam de fome. Além disso, sem uma
organização séria e coerente as greves nunca levariam a uma transformação radical da
sociedade, as últimas “pressupõem uma certa força coletiva, um certo entendimento entre
os trabalhadores” (BAKUNIN, 1979, p. 11). De qualquer forma, porém, as greves gerais
fortaleceriam a ajuda mútua, portanto são atitudes válidas para ele.
A organização e a Greve Geral defendidas por Bakunin estariam em plena
concordância com os objetivos finais que se pretende alcançar com a revolução social. Se o
objetivo final da revolução é construir uma sociedade baseada na liberdade e igualdade, a
organização deve ser livre e comum. A igualdade é condição à liberdade fato coletivo -,
logo, se não há igualdade não pode haver liberdade, nem sequer política.
[...] ela quer [a revolução social] e nós queremos que todo homem que nasça sobre
esta terra possa se tornar um homem no sentido mais completo desse termo; que ele
tenha não somente o direito, mas todos os meios necessários para desenvolver todas
as faculdades, e ser livre, feliz, na igualdade e para a fraternidade. (BAKUNIN,
2008, p. 85).
Com relação à organização da sociedade pós-revolucionária Bakunin defende, além da
propriedade coletiva, a organização federal, ou federalismo
17
. A sociedade anárquica se
organizaria em federações, comunas e associações, inteiramente autônomas e organizadas
espontaneamente, sem serem obrigadas a unirem-se e desunirem-se - sendo união e desunião
somente baseadas em suas necessidades inerentes e em oposição às organizações
centralistas, burocráticas e militares. Ou seja, se organizariam de baixo para cima em livres
associações ou federações menores que juntas formariam comunas ou regiões, que por sua
vez, se aglomerariam às outras, formando uma Federação Internacional e Universal de
comunas livres e autônomas entre si. Nessas federações, com a terra e os instrumentos de
trabalho coletivizados, os direitos políticos seriam garantidos pelo trabalho. Aquele que sem
trabalhar se usa das riquezas produzidas por os alheias seria considerado um ladrão. Tal
organização federal seria a única condição de uma liberdade real e por si só contrária à
“organização da indústria capitalista e da especulação bancária” (BAKUNIN, 2003, p. 35),
respaldada pela democracia, assim como pela polícia, pelo judiciário, pelos militares e pela
teologia, ambos funcionando como braço do Estado, o grande protetor da exploração.
Sou um partidário convicto da igualdade, econômica e social, porque sei que, fora
desta igualdade, a liberdade, a justiça, a dignidade humana, a moralidade e o bem-
estar dos indivíduos, assim como a prosperidade das nações, serão nada mais do que
mentiras. Mas, partidário da liberdade, condição primeira da humanidade, penso que
a igualdade deve estabelecer-se no mundo pela organização espontânea do trabalho e
da propriedade coletiva, das associações produtoras, livremente organizadas e
federalizadas nas comunas, pela federação igualmente espontânea das comunas, e
não pela ão suprema e tutelar do Estado. (BAKUNIN, 2006, p. 37 e 38, grifos
nossos).
A essas federações, agrícolas e industriais, caberia também a administração dos
serviços públicos, sem que para tal fosse necessário um governo, uma ditadura ou um poder
tutelar dirigente. O povo que nas federações vivesse seria responsável por auto-gerir a
produção e suas próprias vidas. As decisões sobre aspectos gerais de funcionamento e
abastecimento seriam tomadas em assembléias e acatadas por aqueles que aceitaram a vida
em determinada federação de comunas livres (“concessões mútuasde que falamos acima).
Para conter a reação, por exemplo, seria necessária a eleição de deputados revogáveis para
administração revolucionária da comuna.
Para a organização da comuna: a federação das barricadas permanentes e a função
de um conselho revolucionário da Comuna pela delegação de um ou dois deputados
por cada barricada, um por rua ou por bairro, deputados investidos de mandatos
imperativos, sempre responsáveis e sempre revogáveis. O conselho comunal assim
organizado poderá escolher, entre os seus, comitês executivos separados por cada
ramo da administração revolucionária da comuna. (BAKUNIN, 2006, p. 114).
17
Proudhon já havia defendido o princípio federativo como forma ideal de organização social em sua obra “Do
Princípio Federativo” de fevereiro de 1863, publicado no Brasil recentemente pela Editora Imaginário (2001).
A Comuna de Paris, derrubada em 1871, é vista por alguns estudiosos do anarquismo
como Arthur Lehning (2006) como adepta das idéias federalistas de Proudhon e Bakunin,
embora saibamos que a Comuna não tinha uma tendência política-ideológica homogênea.
[...] A Comuna de Paris não tinha nada em comum com o socialismo de Estado de
Karl Marx, estavam, antes, em acordo com as idéias de Proudhon e as teorias
federalistas de Bakunin. [...] A Comuna de Paris não centralizou os meios de
produção nas mãos do Estado. O objetivo da Comuna de Paris não foi o de deixar o
Estado enfraquecer, mas de ab-rogá-lo imediatamente. O aniquilamento do Estado
não era mais o resultado final inevitável de um processo histórico dialético, de
uma fase superior da sociedade, ela própria condicionada por uma forma superior de
produção. [...] não queria fundar outra quina estatal, mas substituir o Estado por
uma organização da sociedade sobre as bases federalistas. (ARTHUR LEHNING,
apud: BAKUNIN, 2006, p. 137).
Essas concepções federalistas também estão presentes no pensamento de outros
anarquistas como Malatesta e José Oiticica (22 de julho de 1882 30 de junho de 1957),
grande anarquista brasileiro que dirigiu o jornal libertário “Ação Direta” no Rio de Janeiro
(1929; 1946 1958). Oiticica, por exemplo, afirmava como primeiro princípio do
anarquismo: que “o território de cada país será dividido em zonas federadas, cada zona em
municípios, e cada município em comunas” (OITICICA, 1970, p. 267).
Bakunin não acreditava que a propaganda tivesse um papel central na luta
revolucionária. Dava muito mais importância à utilização de métodos violentos, afirmando
que a força combativa deve estar armada e pronta para utilizá-las se o for necessário, que o
Estado e a burguesia têm como defesa a força militar e policial armadas. No entanto, não
deixava de frisar que o objetivo da revolução é o aniquilamento das classes e não dos
indivíduos, logo, a propaganda, a educação e a organização revolucionária, seriam meios para
se despertar o espírito da revolução social poupando um número de mortos, que poderia ser
maior caso os métodos utilizados fossem somente os violentos. Malatesta, nesse sentido pensa
como Bakunin e talvez dê até mais ênfase à ação violenta e acredite mais no papel da
propaganda; para ele, não há como se fazer a revolução sem sangue e sem armas a
burguesia jamais aceitaria ser expropriada sem que para isso os operários utilizassem armas,
assim como o Estado não aceitaria a sua destruição e o fim dos privilégios dos governantes.
Assim, para Bakunin, propaganda tem um papel fundamental para o convencimento e para o
despertar de um espírito socialista natural que as massas tem dentro de si ela deveria visar à
insurreição universal, a revolta generalizada, deveria instigar o pensamento e a vontade
revolucionária que está presente no instinto das massas, mas que encontra-se sufocado pela
miséria, pela exploração e pelos preconceitos inculcados pelas classes dominantes. que ela
seria insuficiente sem “a luta solidária dos operários contra os patrões”, sem “os sindicatos, a
organização e a federação dos núcleos de resistência” (BAKUNIN, 1979, p. 61).
-se aqui uma diferença com relação às idéias de alguns partidos políticos de
esquerda: para esses as massas deveriam ser conduzidas por dirigentes que as convencessem
do que seria melhor para elas, enquanto que os anarquistas acreditam que naturalmente o
homem é socialista e capaz de guiar sua própria vida, basta que desperte esse espírito
socialista e, nesse ponto o revolucionário, convencido desse espírito natural, tem seu
papel deve dar o exemplo e fazer propaganda.
Essas idéias estão muito presentes no movimento operário anarquista em São Paulo
durante a Primeira República, além dos métodos como a greve geral, aqui a propaganda foi
muito forte através da imprensa operária, dos comícios públicos e das festas operárias e ainda
a educação e a arte eram vistos como meios de luta revolucionária. Inúmeras escolas
modernas (pedagogia libertária) foram abertas e o teatro operário, que apresentava peças de
denúncia à organização social capitalista e à condição da mulher, era representado em muitas
ocasiões, como veremos no capítulo a seguir.
Para Bakunin a educação não levaria à emancipação do povo, um professor não seria
capaz de ensinar ao povo aquilo que é sua vida ou o que ela poderia ser. Demonstrava uma
grande desconfiança com relação à um dirigente intelectual do movimento anarquista. As
ações práticas é que levariam à transformação radical da sociedade, assim se aprenderia na
prática a cooperação e a luta. Essas ações são, para ele, a formação de associações artesanais e
cooperativas de empréstimos, consumo e produção. A cooperação é uma forma equitativa e
racional, a forma de organização da sociedade futura, a prática dela na sociedade capitalista,
não levará sozinha à emancipação do proletariado, mas habituará os mesmos a se unirem, a se
organizarem e a conduzirem seus próprios interesses é o que ele chama de aprendizado da
cooperação. Acreditava, dessa forma, na educação e na propaganda através do exemplo.
Nenhum sábio está, portanto, em condições de ensinar ao povo, ou definir para ele, o
que será ou deverá ser seu modo de vida, logo após a revolução social. Esse modo
de vida será determinado, em primeiro lugar, pela situação de cada povo e, em
segundo, pelas necessidades que nascerão em cada um deles e manifestar-se-ão com
o máximo de força, portanto, de modo algum por diretrizes ou notas explicativas
vindas de cima e, de maneira geral, por teorias, quaisquer que sejam elas, concebidas
às vésperas da revolução. (BAKUNIN, 2003, p. 238).
Ao desenvolver suas idéias sobre a educação integral
18
Bakunin se refere à educação
tanto na sociedade capitalista quanto na sociedade futura, segundo Silvio Gallo (1993).
18
“A Instrução Integral” foi escrita por Bakunin entre 31 de julho e 21 de agosto de 1869. Eram inicialmente
artigos sobre o tema escritos para o jornal “L’Égalité, nesse período e que mais tarde foram agrupados formando
um livro. No Brasil foi recentemente publicado pela Editora Imaginário (2003).
Segundo este libertário, na sociedade capitalista uma divisão do trabalho entre
trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais, os últimos tem o trabalho desvalorizado
com relação aos primeiros, que justamente por isso, tem privilégios. Uma educação
verdadeiramente libertária primeiramente deve ter como base o ensino e o desenvolvimento
de três atividades, sem distinção entre elas: intelectual, manual e moral. Ou seja, essa escola
estaria em constante conflito com a sociedade capitalista, segundo Gallo, atuando assim para a
destruição dela através do exemplo e de sua negação. Na sociedade futura, no entanto, estaria
em pleno acordo com os ideais libertários propostos por Bakunin: se nessa sociedade o
trabalho é obrigatório a todos, todos os indivíduos empreenderiam trabalhos manuais e
intelectuais, sem divisões, e perpetuariam a moral libertária aos indivíduos que nascessem
nessa sociedade; essa moral, por sua vez, é essencial para a manutenção da sociedade livre e
igualitária anárquica, em que todos teriam acesso à educação até os níveis superiores e
conforme o interesse de se dedicar ao estudo de cada indivíduo, visando seu próprio prazer e
não privilégios.
Seguindo um movimento dialético, as crianças deveriam receber uma educação em seu
ponto de partida segundo um princípio de autoridade que ao longo dos anos de educação iria
sendo negado até que por fim, na idade adulta, receberiam uma educação totalmente livre.
Com relação a esse ponto nem todos praticantes da pedagogia libertária parecem ter
concordado com Bakunin, como é o caso de Sebastián Faure (1858 1942) - muito citado
pela imprensa libertária paulistana -, que segundo um relado de Emma Goldman em sua
autobiografia “Viviendo mi vida” (1996), criou uma escola em que a liberdade era total entre
“professores” e crianças essa comunidade, citada como exemplo pelos libertários
paulistanos que fundaram escolas modernas, chamava-se Colméia.
“La Ruche” (La Colmena), como se llamaba la escuela de Faure estaba situada a las
afueras de Rambouillet, un antiguo pueblo francés. Com muy poca gente para
ayudarle, Faure había transformado um trozo de tierra salvaje y abandonada en una
floreciente granja en la que se cultivaban frutas e verduras. Había acogido a
veinticuatro niños huérfanos y a aquellos cuyos padres eran demasiado pobres para
pagar y les proporcionaba de su bolsillo casa, alimentos y ropa. Habia creado un
clima em La Ruche que liberaba a los niños de la disciplina y la coerción de todo
tipo. Había descartado los viejos métodos educativos y en su lugar había establecido
la comprensión por las necesidades del niño, la confianza y la seguridad en sus
posíbilidades y el respeto por su personalidad.
[...] Los murales pintados a mano que había en los dormitorios y aulas representando
la vida de las plantas, de las flores, de los pájaros y de los animales, tenían un efecto
más estimulante sobre la mente de los niños que cualquier lección “corriente”. El
libre agrupamiento de los niños alrededor de los maestros, para escuchar alguna
historia o buscar explicación a algún pensamiento desconcertante compensaba
ampliamente la falta de la antigua instrucción. (GOLDMAN, 1996, p. 448).
A proposta de educação integral (manual, intelectual e moral) proposta por Bakunin,
somadas as práticas de Sebastián Faure e de Francisco Ferrer foram amplamente utilizadas
nas escolas modernas paulistanas como podemos observar no artigo a seguir:
Escola Moderna n.1
Instituto de instrucção e educação para menores e adultos de ambos os sexos.
Aulas diurnas e nocturnas
Ensino theorico e pratico, segundo os methodos da pedagogia moderna com os
quaes se ministra aos alunnos uma instrucção que os habilita para o início das
actividades intellectuaes e profissionaes, assim como uma educação moral baseada
no racionalismo scientifico.
Curso Primário Rudimentos de Portugues, Arithimetica, Calligraphia e Desenho.
Curso Médio Grammatica, Arithimetica, Geografia, Noções de Sciencias physicas
e naturaes, Historia, Geometria, Calligraphia, Desenho, Dactylographia.
Para as alunnas haverá também trabalhos manuais: costura, bordado, etc.
Aulas diurnas
Horario: das 11 ½ às 16 ½ (das 11 ½ da manhã às 4 ½ da tarde).
Mensalidades: curso primário ou médio, 4$000; curso adiantado 6$000.
Aulas nocturnas
Horario: das 19 às 21
Mensalidades: curso primário ou médio, 5$; adiantado, 7$
Avenida Celso Garcia, 262 Belenzinho São Paulo.
19
(A Plebe, São Paulo, 22 de
setembro de 1917, anno I, número 14, grifos nossos).
Com relação à arte Bakunin não a afirmava como um meio possível de levar à
revolução social como pensaram, por exemplo, Kropotkin e Emma Goldman. Para ele, ela
poderia sim levar o homem a ver a “plenitude que lhe foi subtraída e devolver-lhe o sentido da
vida” (BAKUNIN, apud: RESZLER, 1974, p. 37). Por outro lado, pensava que depois da
revolução social a arte seria obra do povo em conjunto (arquiteto, poeta, pintor, músico, etc),
sem que o artista fosse um privilegiado, que, para ele todo homem seria um artista, que
não desenvolveria seu lado artístico por estar inserido na sociedade capitalista, pautada na
exploração e na opressão.
Os anarquistas de São Paulo parecem observar a arte como importante meio de
propagar suas idéias, como veremos mais adiante, as festas operárias geralmente contavam
com a apresentação de uma peça teatral. É indiscutível que a observassem também como uma
maneira de devolver-lhes a plenitude da vida que lhes foi subtraída como coloca Bakunin e
também como forma de lazer, mas davam a ela uma importância ainda maior. Aliás,
apostavam muito na propaganda, juntamente com a organização, muito mais do que Bakunin,
parecendo, nesse sentido, ter mais afinidade com as idéias de Malatesta, que tinha a idéia
fixa de chegar à revolução por meio da propaganda anarquista; a revolução feita pelas massas
com o espírito das idéias anarquistas” (NETTLAU, apud: MALATESTA, 2008, p. 33). Já que
os libertários consideravam que não deviam impor suas idéias às massas de maneira
19
Nos bairros de maior concentração de operários em São Paulo (por sua proximidade das fábricas), como Brás
e Belém, se organizaram a maior parte das escolas modernas.
autoritária, a propaganda, a arte e a educação tiveram um papel central em suas lutas aqui em
São Paulo, por exemplo.
Errico Malatesta nasceu em Santa Maria Cápua Vetere (Itália) no dia 4 de dezembro
de 1853 e morreu em Roma - preso em sua casa por ordem dos fascistas - em 22 de julho de
1932, vitimizado por uma pneumonia. Sua atuação no movimento anarquista na Europa e na
América Latina foi tão importante quanto à de Bakunin. Ambos, por sinal, estiveram juntos
na Associação Internacional dos Trabalhadores, a qual Malatesta aderiu, com apenas 17 anos
em 1871 (como membro e logo secretário da seção de Nápoles), e adandonou em 1872, com a
expulsão de Bakunin
20
.
Segundo ele próprio, Bakunin lhe exerceu uma grande influência: assim como ele
Malatesta tem a crença na vontade humana como capaz de transformar a sociedade, o
acreditou que essa transformação fosse algo determinado e dado anteriormente, e insistiu na
necessidade de prepará-la, de suscitar a vontade em estado de latência nas massas para que
a revolução social obtivesse sucesso; foi veementemente contra atuação parlamentar ou
eleitoral por parte do proletariado, partindo do princípio que esta perpetuaria a escravidão das
massas, e contra o sufrágio universal que, para ele, era uma mentira. Entretanto, logo se
distanciou de alguns dos pensamentos
21
do “pai espiritual do anarquismo” (MALATESTA,
2008a, p. 42), principalmente no que se refere à organização da sociedade futura, ou seja, ao
coletivismo. Defendeu o comunismo total, “a cada um conforme suas necessidades”, e não a
fórmula “a cada um conforme seu trabalho”; considerava todo o trabalho social, portanto, a
sociedade deveria usufruir dele sem nenhuma restrição. Sempre afirmou a necessidade de uma
organização federal dessa sociedade anarco-comunista, segundo os moldes apresentados por
Bakunin. Nesse sentido aproximou-se de Kropotkin (também defensor de uma sociedade
anarco-comunista), sem deixar de dizer que falta a esse último um pouco de realismo.
Malatesta não carecia de fé revolucionária, e a manteve até a última hora, mas
acreditava que o otimismo e certa expectativa de Kropotkin necessitava de base
realista. A espontaneidade criadora, a abundância, a cooperação harmoniosa quase
automática podem, ser produzidas por uma evolução natural em condições
favoráveis, mas não são, em absoluto, dados presentes, atuais, palpáveis e lidos
com os quais se possa contar hoje e amanhã, no dia seguinte de eclodir a revolução e
antes dela para que seja eficaz. Malatesta procurava fundamentos mais reais e muito
mais acessíveis e abundantes no mundo do qual de sair toda a evolução. Daí a
simpatia de Malatesta pela organização, a relação mútua, os pactos, a previsão que
se explica pela ausência concreta da abundância a qual ainda não é um fato,
20
Malatesta era um dos delegados no congresso de Saint-Imier em 1872, que se declararam oposição às decisões
do Conselho Geral.
21
Com relação a esse distanciamento afirma em um relato sobre Bakunin em 1926: “Hoje, penso que Bakunin
foi muito marxista na economia política e na interpretação histórica. Creio que sua filosofia se debatia, sem
conseguir sair, numa contradição entre a concepção mecanicista do universo e a fé na eficácia da vontade sobre
os destinos do homem”. (MALATESTA, 2008a, p. 42).
embora os armazéns estejam lotados. (NETTLAU, apud: MALATESTA, 2008, p.
18 e 19, grifos nossos).
É justamente pela noção de que se deveria buscar elementos reais no mundo em que se
vive que Malatesta afirmava que a futura sociedade anarco-comunista necessitaria coletivizar
alguns produtos (restringindo assim sua utilização) que não se encontrassem com abundância.
Obviamente esse coletivismo seria transitório, de acordo com as situações reais, as
disposições dos indivíduos e a abundância de produtos particulares. Luigi Fabbri (1877
1935), amigo pessoal de Malatesta e militante anarquista que participou de movimentos na
Europa e na América do Sul (Argentina e Uruguai, onde morreu), afirmava que ele via o
comunismo como “uma linha diretriz de conduta” (LUIGI FABBRI, apud: NETTLAU, 1977,
p. 137). Devia-se também a tal noção sua insistência na organização da luta revolucionária
anarquista, bem como na propaganda.
Durante o período que se encontrava em Buenos Aires, por volta de 1889, Malatesta
defendia uma organização Internacional dos anarquistas de todas as correntes, afirmando que
esses deveriam estar unidos enquanto tivessem interesses comuns, afinal de contas, todos
tinham como objetivo principal a “procura de uma garantia mais sólida de liberdade”
(MALATESTA, 1984, p. 35), que seria alcançada através da expropriação da riqueza e do
poder da burguesia, assim como da destruição do Estado e a substituição de ambos pela posse
comum e livre associação. Tal organização não implicaria na destruição das organizações
locais, regionais, dos pequenos grupos, enfim, da heterogeneidade anarquista, que nem na
sociedade anárquica haveria homogeneidade de organização social e do trabalho, segundo ele.
[...] no tendremos rázon de dividirnos en pequeñas escuelas por el furor de
determinar com exceso los particulares, variables según el lugar y el tiempo, de la
sociedad futura, de la que estamos lejos de prever todos los resortes y posibles
combinaciones. No habrá motivo, por ejemplo, de dividirnos por cuestiones como
las siguientes: si la producción alcanzara su s o menos vasta escala; si la
agricultura se hermanara en todas partes com la industria; si, por exceso, y a grandes
distancias podrán cambiarse los productos bajo la base de reciprocidad; si todas las
cosas serán disfrutadas en común o según norma; o si el uso de alguna de ellas será
más o menos particular. En fin, los modos y particularidades de las asociaciones y
de los pactos, de la organización del trabajo y de la vida social, ni serán uniformes ni
pueden ser desde hoy previtas ni determinadas.
No se pueden prever, sino muy vagamente, las transformaciones de las industrias, de
las costumbres, de los mecanismos de producción, del aspecto físico de las ciudades
y de los campos, de las necesidades, de las ocupaciones, de los sentimientos del
hombre y de las relaciones y vínculos sociales. Por lo menos no es lícito dividirnos
por puras hipotesis. La cuestión entre el colectivismo-anárquico y el comunismo
anáquico es cuestión tambiém de modalidad y de pacto.
Cierto es que la “remuneración, ségun la obra ejecutada”, pregonada por los
colectivistas, puede conducirnos a la acumulación desigual de los productos, y
determinar (cuanto el proceso de esta acumulación fuera excesivo) la vuelta a la
usura; a menos que la acumulación y la usura no fuesen imposibilitadas por
prohibiciones y fiscalizaciones, las cuales no podrán menos de ser despóticas y
odiosas. Por otra parte, la “toma a voluntad” de las cosas abundantes y
aprovisionamento de otras, pueden dar lugar tambiém a arbitrariedades e
imposiciones humillantes. Aí, pues, el sistema comunista no está exento enteramente
de inconvenientes. (MALATESTA, apud: NETTLAU, 1977, p. 140 e 141).
Os inconvenientes citados por ele acima poderiam acabar quando na sociedade os
homens tivessem condições iguais de produzir e viver em liberdade, assim como, quando
tivessem uma nova consciência moral uma moral comunista. Por isso é tão essencial se
preparar a revolução: preparar através da organização e da propaganda, ambas baseadas em
uma moral igualitária. Esse pensamento de que é necessária uma nova moral que sustente a
sociedade livre e igual também está muito presente nas idéias das mulheres anarquistas como
Emma Goldman (EUA) e Maria Lacerda de Moura (anarquista que militou a maior parte da
sua vida em São Paulo). Ambas acreditavam que a sociedade capitalista e a moral burguesa
que a sustenta eram as responsáveis pela exploração da mulher e por colocá-la em uma
posição de inferioridade; a sociedade anárquica, porém, deveria ser baseada em uma moral
totalmente diferente: na liberdade e na igualdade de todos os indivíduos, sem qualquer
distinção de gênero ou raça. Liberdade e igualdade que deveriam pautar todas as uniões.
A organização Internacional anarquista pensada por Malatesta se reuniu em um
congresso anarquista em Amsterdã dos dias 24 a 31 de agosto de 1907 (conhecido como
Congresso Internacional Anarquista). Esse congresso foi muito comentado pela imprensa
anarquista paulistana, principalmente em “A Terra Livre”
22
(publicado em São Paulo de 1905
a 1910). Os libertários paulistanos se organizaram para mandar delegados - o que não fica
claro se foi possível pelo alto custo da viajem - e acompanharam atentamente as discussões
através das notícias que aqui chegavam (havia entre os anarquistas uma preocupação em
trocar notícias, através de correspondência, sobre os movimentos que ocorriam em todo
mundo). Concordavam plenamente com a união de todas as tendências anarquistas em uma
grande organização internacional que respeitasse as organizações locais e regionais, aliás,
nesse sentido Edgar Leuenroth
23
, administrador do jornal aqui citado, sempre deixou claro
que as decisões desse congresso não deveriam ser levadas a cabo por aquelas organizações
22
Jean Grave (1854 1939), anarco-comunista francês que editava vários jornais em Paris com objetivo de fazer
propaganda desse ideal, editava em 1908 um jornal também chamado “Terre Libre”. Talvez, assim como “A
Terra Livre” de São Paulo e Rio de Janeiro, tenha seu título inspirado na frase de Goethe “O Homem Livre sobre
a Terra Livre”. Esse anarquista também é sempre citado no jornal brasileiro. Neno Vasco, imigrante português
que viveu e militou por dez anos em São Paulo (1902 1911), dirigia esse jornal aqui no Brasil juntamente com
Edgard Leuenroth e editava um jornal anarquista semanal em Lisboa no ano de 1913, também chamado “Terra
Livre”.
23
Edgard Frederico Leuenroth nasceu em Mogi Mirim em 31 de outubro de 1881 e morreu em São Paulo, onde
viveu desde os cinco anos de idade (no bairro do Brás), em 28 de setembro de 1968, foi tipógrafo, jornalista e
sem dúvida o anarquista brasileiro mais famoso. Dedicou toda a sua vida à militância e à propaganda libertária e
arquivou praticamente todo o material do movimento anarquista brasileiro da primeira metade do século XX.
Hoje esses materiais encontram-se no arquivo que recebe o seu nome localizado na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), que é referência a todos historiadores do movimento operário desse período.
que discordassem delas, o congresso era um meio para que os operários anarquistas pudessem
trocar experiências e organizar lutas em comum, bem como levantar discussões sobre temas
importantes para o movimento, mas de maneira alguma suas decisões deveriam ser impostas
autoritariamente aos trabalhadores, como afirmava o próprio Malatesta e em momentos
anteriores, os membros da AIT. Luigi Damiani (1876 1953), imigrante italiano, também
conhecido como Gigi Damiani
24
, que militou em São Paulo desde 1909 editando jornais e
participando de várias organizações operárias, também compartilhava das idéias de Malatesta
a respeito dessa organização internacional anarquista que comportasse várias tendências desse
pensamento.
Durante esse congresso, no entanto, houve uma discussão entre Malatesta e Pierre
Monatte (1881 1960) sobre o sindicalismo que parece ter influenciado fortemente o
movimento anarquista brasileiro e as suas formas de organização.
Monatte professou uma defesa acerca do sindicalismo revolucionário, afirmando que
esse não se manifestava tanto na teoria, mas em ações práticas, em atos concretos. Sua fala
pautava-se em ver o sindicato revolucionário como um “órgão de transformação social e a
greve geral como meio de obtê-la(MONATTE, apud: WOODCOCK, 1981, p. 200). Nesse
sentido, a associação entre anarquismo e sindicalismo revolucionário era muito clara para ele:
primeiro porque ambos visam eliminar o capitalismo e o sistema salarial através da revolução
social e segundo porque o sindicalismo, presente no movimento operário, seria impulsionado
pelo anarquismo, que o popularizou, para a revolução social. Não como negar que os
libertários concordavam com ele a esse respeito; o sindicato para Bakunin e Kropotkin, como
dito, era uma forma de organização operária (essencial para a luta) que se não alcançasse a
revolução social, que era seu principal objetivo, pelo menos, habituaria os trabalhadores à luta
e à prática da solidariedade e do apoio mútuo. Porém, as discordâncias começaram a aparecer
quando o próprio Monatte citou como grande exemplo de sindicato revolucionário a CGT
(Confédération Generale du Travail) Francesa
25
. Segundo ele tal confederação reunia vários
sindicatos através de um comitê que exercia funções diretivas sem monopolizar funções
executivas e legislativas. Bourses
26
e Federações do trabalho nomeavam delegados para
compor o comitê e, além disso, comissões eram formadas pelos membros de ambas; os
congressos da confederação eram soberanos e suas decisões deveriam ser acatadas por todos
24
Gigi Damiani teve um papel muito importante no movimento operário brasileiro, editou, dentre outros, o
jornal “La Battaglia”, escrito em língua italiana.
25
Em 1906, ano do Primeiro Congresso Anarquista Brasileiro, a CGT Francesa declarou-se a favor do
sindicalismo-revolucuionário em seu congresso em Amiens (norte da França).
26
Bourses são associações de trabalhadores: bolsões de trabalhadores que cooperam entre si.
os confederados, assim haveria uma unidade da classe operária. Só deveria haver um sindicato
para cada profissão e cada cidade, que, por sua vez, não deveria ser anarquista, mas abrigar
todas as tendências políticas, ou seja, um sindicato operário onde a unidade se colocaria acima
das divergências. A greve geral, como ação direta dos operários, bem como a sabotagem,
seriam os meios de ação desse sindicato revolucionário. Terminou afirmando que os
anarquistas não estavam utilizando os métodos do sindicalismo revolucionário e que deveriam
lutar por um sindicato neutro, independente e único.
Malatesta, abertamente a favor dos sindicatos, mas sempre desconfiado de suas
posturas reformistas, que eles freqüentemente se prestavam muito mais às lutas por
melhorias momentâneas e não pela revolução social, respondeu à Monatte contestando a
centralidade e a neutralidade sindicais defendidas por ele em seu discurso. Afirmava que o
sindicalismo não se basta a si mesmo. Os sindicatos deveriam estar abertos a todos os
trabalhadores e seria preciso que os anarquistas que fizessem parte dele permanecessem
anarquistas dentro desses sindicatos; os interesses da classe operária não são idênticos os
operários estão submetidos à lei da competição, justamente por causa da existência da
propriedade privada e do governo - os interesses de uma categoria estão sempre em oposição
aos de outras e, por isso mesmo não poderia haver unidade, muito menos neutralidade, além
do que, os sindicatos não comportariam uma parcela da classe operária que seria a dos
desempregados, dos quais os anarquistas não deveriam se esquecer. Um sindicato único e que
englobe toda a classe operária também seria inaceitável por haver proletários que moralmente
estariam mais próximos da burguesia do que do proletariado.
[...] na sociedade atual, a solidariedade pode ser o resultado de uma comunhão
que surge sob a égide de um ideal compartilhado. O papel dos anarquistas é
despertar os sindicatos para esse ideal, orientando-os gradualmente para a revolução
social, mesmo que ao fazê-lo corram o risco de prejudicar as “vantagens imediatas”
que tanto parecem agradá-los. (MALATESTA, apud: WOODOCOCK, 1981, p.
205).
[...] o sindicato operário é, por sua natureza, reformista, não revolucionário. O
espírito revolucionário deve ser-lhe levado, desenvolvido e mantido pelo constante
trabalho dos revolucionários que agem fora e dentro do sindicato, mas não pode
porvir de prática natural e normal. [...] O sindicato só pode fazer ação revolucionária
se estiver impregnado do espírito de sacrifício, à medida que o ideal esteja situado
acima dos interesses, ou seja, somente na medida em que cesse de ser sindicato
econômico para se tornar grupo político fundado sobre um ideal, o que é impossível
nas grandes organizações que necessitam, para agir, do consentimento das massas,
sempre mais ou menos egoístas, medrosas e lentas. (MALATESTA, 2008, p. 122).
Além disso, os anarquistas deveriam negar-se a se tornarem funcionários dos
sindicatos. Aliás, Malatesta afirma que toda organização que tenha como fim a revolução
social e a construção de uma sociedade livre e igualitária deve estar de acordo com esses fins.
Contraria assim Maquiavel: para ele os fins não justificam os meios. Se os meios
revolucionários empreendidos fossem autoritários a revolução social jamais levaria a uma
sociedade livre e igualitária. Ou seja, como Kropotkin, afirmava que a organização dos
anarquistas deveria ser uma organização livre, de pessoas com objetivos comuns, e que
englobasse três aspectos: a organização em geral, como princípio e condição de vida na
sociedade atual e futura; organização da atividade anarquista; organização das forças
populares, em particular, das massas operárias para resistir ao governo e ao capitalismo.
[...] a todo fim correspondem determinados meios. Considerando-se que é no fim
que é preciso procurar a moral, o meio é fatal. [...] tudo que estiver em contradição
com o fim que é nosso, tudo que tende a conservar o estado atual das coisas, tudo o
que tender a sacrificar um homem, contra a sua vontade, para o triunfo de um
princípio, tudo isto é mau.
Trata-se, pois, sempre, em todos os atos da vida, de escolher o mal menor possível
para obter o maior bem possível. (MALATESTA, 1984, p. 79, 80 e 81, grifos
nossos).
-se assim, que sindicalismo revolucionário e sindicatos com influência anarquista
são diferentes, embora Monate afirmasse que o sindicalismo revolucionário era a forma
histórica do anarquismo. O sindicato revolucionário pregava centralidade, unidade, enquanto
que os sindicatos de influência libertária baseavam-se na heterogeneidade de interesses e
opiniões, na luta livre e na ação direta das massas organizadas, essas, longe de se
aglomerarem em um grande bloco homogêneo, organizar-se-iam conforme os interesses de
sua categoria ou por afinidade e relacionar-se-iam, em caso de interesses diversos, baseados
na solidariedade.
Em resumo, para anarquistas como Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Reclus e Grave
sindicalismo e organizações operárias eram questões de tática, escolhas estratégicas com
importância central na luta pela emancipação da humanidade. O sindicato deveria ser um
organismo para estimular e se exercitar a solidariedade entre os operários, em que todos
deveriam estar juntos até que as diferenças falassem mais alto.
O sindicalismo [...] pode ser um movimento legal, movimento de luta contra o
capitalismo no meio econômico e político que capitalismo e o Estado lhe impõem.
Não tem, portanto, saída, e nada poderá obter de permanente e geral, senão deixando
de ser sindicalismo, ligando-se não mais às melhorias das condições dos assalariados
e à conquista de algumas liberdades, mas à expropriação da riqueza e à destruição
radical da organização estatista. (MALATESTA, 2008a, p. 36).
Os sindicatos operários (as ligas de resistência e as outras manifestações do
movimento operário) são sem dúvida alguma úteis: eles são até mesmo uma fase
necessária da ascensão do proletariado. Eles tendem a dar consistência aos
trabalhadores de suas reais posições de explorados e escravos; desenvolvem neles o
desejo de mudar de situação; habituam-nos à solidariedade e à luta, e pela prática da
luta fazem-nos compreender que os patrões são inimigos e que o governo é o
defensor dos patrões. (MALATESTA, 2008, p. 119).
com relação à greve geral, Malatesta afirmava que essa poderia ser um meio de se
desencadear a revolução social, uma arma poderosa nas mãos do proletariado, mas não seria
nada sem a revolta armada, assim como pensou Bakunin. Ela deveria ser vista como meio
para insurreição e seguida da tomada dos meios de produção e da riqueza pelos trabalhadores
à força. Para ele, a idéia de que se uma greve se prolongasse até o momento em que a
burguesia estivesse faminta essa sofreria uma derrota e os trabalhadores sairiam vitoriosos e
no controle dos meios de produção, é falsa: os trabalhadores seriam os primeiros a morrer
com a falta de suprimentos, enquanto que a burguesia viveria dos estoques daquilo que fora
antes produzido. A greve geral, assim como a organização da classe operária, a ação direta, o
boicote, a sabotagem e a insurreição armada são meios dos quais a anarquia é o fim. Um
trecho de suas críticas à Monatte no congresso anarquista de 1907, intituladas “Sindicalismo:
a crítica de um anarquista”
27
, que resume bem a sua idéia sobre a Greve Geral:
Na verdade, o que deveríamos pedir ao operário não seria tanto que parasse de
trabalhar, mas que continuasse a trabalhar em seu próprio interesse. Sem isso, a
greve geral logo se transformaria em fome geral, mesmo que tivesse tido energia
suficiente para confiscar imediatamente todas as mercadorias acumuladas nas lojas.
(MALATESTA, apud: WOODCOCK, 1981, p. 207, grifos nossos).
Os anarquistas paulistanos organizaram na Primeira República, sindicatos por ofício
28
,
entendendo, assim como Bakunin, Malatesta e Kropotkin, que o sindicato tem um papel
fundamental como meio de organização dos operários, mas que, para estar em acordo com os
fins que visavam, cuja importância era ressaltada por Malatesta, assim como com os métodos
anarquistas, e dar conta de toda a heterogeneidade da classe operária, o poderiam nem ser
centralizados e nem neutralizadores, como afirmava Monatte, em que todos tivessem que se
submeter às decisões de um dirigente, e nem se poderia querer formar um sindicato único,
que os trabalhadores de cada categoria, mesmo que compartilhassem de um mesmo ideal,
possuíam interesses diferentes. As mulheres anarquistas formaram em São Paulo os seus
próprios sindicatos, visto que, por exemplo, tinham que reivindicar um salário igual ao dos
homens, dentre outras coisas. Porém não estavam distantes de outros sindicatos livres - como
veremos o salário das mulheres era mais baixo para pressionar o salário de toda a classe
operária para baixo, ou seja, para estimular concorrência entre os operários - esses se uniam
para destruir essa concorrência, através de reivindicações que poderiam até ser chamadas de
27
É com esse título que George Woodcock publica a resposta de Malatesta a Pierre Monatte em seu livro
“Grandes escritos anarquistas” (1981).
28
É possível observar nesses sindicatos havia presença massiça de imigrantes, enquanto que os trabalhadores
nacionais não eram bem vistos por esses militantes, suas reivindicações não estão presentes nos relatos e nem na
imprensa anarquista da época. Ironicamente, os sindicatos livres não comportaram o elemento nacional durante a
Primeira República em São Paulo.
reformistas por alguns anarquistas e lutar pela revolução social. Nesta cidade, propuseram
sindicatos com bases anarquistas e não somente a participação dos anarquistas nos sindicatos.
Essa foi sem dúvida uma grande especificidade do movimento anarquista aqui observado,
assim como foi o caso dos anarquistas espanhóis durante a Guerra Civil Espanhola: nessas
duas localidades o sindicato era visto como estratégia fundamental para se alcançar a
revolução social libertária. Os sindicatos tinham aspirações emancipadoras, organizaram-se
sobre bases anarquistas procurando definir claramente essa tendência e afirmando que os
trabalhadores não deveriam organizar-se baseados somente no laço solidário que os une,
como Bakunin afirmava com relação aos trabalhadores da Primeira Internacional, mas sim
organizarem-se segundo suas tendências político-ideológicas, afinidades e interesses, como os
interesses de categoria ou ofício, obviamente afirmando no dia a dia a solidariedade e a
liberdade no interior de seus sindicatos. Os métodos de ação direta como a greve geral, a
sabotagem o boicote e mesmo as formas de intervenção artística (como o teatro operário) e
educacionais (escolas modernas) seriam os métodos utilizados por esses sindicatos e
organizações operárias. Nesse sentido, os anarquistas paulistanos contestavam a
“neutralidade” dos sindicatos e afirmavam que mesmos deveriam definir a tendência
anarquista.
[...] queira-se ou não, uma das tendências acaba por predominar nos sindicatos, e o
que se deve pedir aos anarquistas é que façam nos sindicatos a maior propaganda
dos seus princípios até que tomem uma orientação anarquista. (JOÃO CRISPIM,
1913, apud: VASCO, 1984, p. 27).
Vale frisar aqui que esses sindicatos e os métodos de ação direta utilizados em São
Paulo também visavam conquistar melhorias e não somente levar a uma revolução social. O
próprio Malatesta afirmava que não se podiam deixar de lado as lutas por melhorias mesmo
na sociedade capitalista. A greve geral, mesmo que não acabasse com a expropriação da
burguesia, poderia trazer benefícios aos operários que também lutavam por uma vida menos
sofrida como foi dito. As lutas por melhores condições salariais, de vida e de trabalho
(menos horas trabalhadas, por exemplo) não provocariam, para os libertários, mudanças
sociais mais profundas, mas serviriam para que o proletariado o se adaptasse e
embrutecesse com a miséria, além do que a luta seria uma forma de aprendizagem e exercício
da solidariedade, assim como uma forma de criar o hábito da auto-organização. Esse
pensamento se mostra de maneira evidente na lista reivindicações da Greve Geral de 1917,
sem dúvida a mais importante na história do movimento anarquista paulistano, que
terminou diante da intensa repressão que sofreu, somada a um acordo que previa o
cumprimento de algumas dessas reivindicações.
[...] O documento do CDP
29
arrolou quinze reivindicações para pôr fim à greve.
Exigiu, de imediato, a libertação de todas as pessoas detidas por motivo de greve, a
garantia de que nenhum operário seria dispensado por ter participado e o respeito ao
direito de associação. Outras oito reivindicações foram dirigidas aos industriais:
abolição de fato da exploração do trabalho aos menores de 14 anos nas fábricas,
oficinas, etc. e do trabalho noturno para as mulheres e menores de 18 anos. Aumento
de 35% nos salários inferiores a 5$000, 25% para os mais elevados, 50% em todo
trabalho extraordinário e pontualmente no pagamento dos salários a cada quinze dias
ou, o mais tardar, cinco dias após o vencimento. Também reivindicavam dos
industriais a garantia de trabalho permanente aos operários, bem como a jornada de
8 horas e a semana inglesa (2ª a 6ª feira).
[...] o CDP incluiu as seguintes reivindicações: o barateamento dos gêneros de
primeira necessidade; a adoção de medidas para evitar a ação dos açambarcadores e
dos especuladores; providências para impedir a adulteração e falsificação de
alimentos; a redução de 30% nos aluguéis das casas a100$000 e a não-execução
de despejo por falta de pagamento dos inquilinos, das casas cujos proprietários se
opusessem à essa redução. (LOPREATO, 1997, p. 35 e 36).
Não o sindicato, porém, era visto pelos anarquistas paulistanos como forma de
organização capaz de levar à revolução social. É justamente por isso que na Primeira
República observamos tão intensa atividade de organização operária anarquista os jornais a
noticiavam com freqüência a formação de inúmeras associações; operários convidavam-se
uns aos outros para aderirem a tais; festas eram organizadas para promovê-las e as
organizações de mulheres podem ser vistas em grande número. Todas elas eram pautadas na
livre iniciativa, na autonomia e responsabilidade.
A organização, que nada mais é do que a prática da cooperação e da solidariedade, é
a condição natural e necessária, da vida social; ela é um fato inelutável, que se
impõe a todos, na sociedade humana em geral como em qualquer grupo de pessoas
que possuam em comum um objetivo a atingir. [...] Longe de criar a autoridade, a
organização é a única solução contra a autoridade e a única maneira de fazer com
que cada um de nós se habitue a tomar parte ativa e consciente no trabalho coletivo e
deixe de ser um instrumento passivo nas mãos dos chefes. [...] é na cooperação com
os outros homens que o homem encontra a razão de ser de sua atividade e de seu
poder de iniciativa.
As bases de uma organização anarquista devem ser as seguintes, na minha opinião:
plena autonomia, plena independência e, portanto, plena responsabilidade dos
indivíduos e dos grupos; acordo livre entre os que acreditam ser útil unir-se para
cooperar em um objetivo comum; dever moral de manter os compromissos
assumidos e de nada fazer que contradiga o programa aceito. (MALATESTA, 1984
p. 112 e 115, grifos nossos).
Porém a organização e a luta através da ação direta violenta, segundo o anarquista
acima citado, não garantiriam que uma revolução fosse bem sucedida. Como se colocava
contra a uma idéia mecanicista
30
de que a revolução seria inevitável, onde a vontade a
liberdade não teriam lugar, e de que a própria condição de miséria e exploração do
29
CDP era a sigla que designava o Comitê de Defesa Proletária que contava com representantes de trinta e seis
associações operárias e de comissões grevistas. O CDP tinha como principal objetivo reunir em uma única carta
as reivindicações de várias categorias profissionais.
30
Malatesta afirmava que a revolução social era “ato de vontade dos indivíduos, vontade das massas; ela não
exige, para ter sucesso, certas condições objetivas, mas não acontece necessariamente, fatalmente unicamente, a
partir de fatores econômicos e políticos”. (MALATESTA, 1989, p. 26).
proletariado o levaria à luta revolucionária, assim como contra o espontaneísmo
31
de
Kropotkin, afirmava que para que essa ocorra e os objetivos alcançados sejam os mais
libertários, deveria haver, além da vontade, a preparação material uma preparação moral e
intelectual. A sociedade capitalista baseia-se, para ele, em uma moral individualista, inculcada
por padres e patrões em todos os indivíduos que a corroboram, mantém sua coexistência
social respaldando a desigualdade, a exploração e a opressão. Para combatê-la seria
necessário opor-lhe, na teoria e na prática, outra moral, superior por ser baseada na igualdade,
solidariedade e na liberdade, assim como no apoio mútuo. A educação e o exemplo, assim
como a propaganda libertária, deveriam ser entendidos nesse sentido. Não a educação
embrutecedora posta em prática no sistema capitalista, mas a educação integral e libertária,
que, juntamente com a propaganda
32
de mesmo cunho levariam à propagação dos ideais ao
maior número de pessoas (militantes ou não), assim como, propagariam valores essenciais à
sociedade futura tais como a solidariedade, o amor, a responsabilidade, a igualdade e a
liberdade. O exemplo consistiria em viver segundo a moral libertária, colocada anteriormente,
mesmo na sociedade capitalista. A luta por melhorias imediatas também seria uma forma de
educação pelo exemplo “é através da luta que de se aprende a lutar” (MALATESTA, 2008,
p. 10); através de mobilizações autônomas o efeito moral produzido seria muito positivo:
conquistas puderam ser alcançadas com as próprias mãos e as mesmas poderiam muito bem
construir a nova organização pós-revolucionária. Essa concepção serviu de base para as
escolas libertárias e dos meios artísticos aqui em São Paulo.
Para nós, não é muito importante que os trabalhadores queiram mais ou menos: o
importante é que aqueles que queiram, procurem conquistar, com sua força, sua ação
direta, em oposição aos capitalistas e ao governo.
Uma pequena melhoria, arrancada pela força autônoma, vale mais por causa de seus
efeitos morais e, a longo prazo, mesmo por seus efeitos materiais, do que uma
grande reforma concedida pelo governo ou pelos capitalistas com finalidades
enganadoras, ou mesmo por pura e simples gentileza. (MALATESTA, 2008, p.
126).
Piotr Kropotkin nasceu em Moscou no ano de 1843 e morreu em Dmitrov em 1921,
também preso em sua própria casa (assim como Malatesta) por ordem do governo
bolchevique. Apesar de sua origem aristocrática
33
rompeu com os privilégios de sua classe e
recusou o direito à herança de sua família para se dedicar à reflexão política e às causas
sociais. Aderiu ao anarquismo no ano de 1872 ao conhecer uma comuna de relojoeiros suíços
31
Kropotkin não admitia nenhum método violento para a revolução social anarquista, acreditava na
espontaneidade das massas, que ao compreenderem o quão evoluído era o ideal libertário, colocar-se-iam em luta
(não violenta) através de suas organizações.
32
Max Nettlau, em seu prefácio à obra de Malatesta “Escritos revolucionários” (2008), afirma que ele possuía a
idéia fixa de chegar à revolução por meio da propaganda anarquista.
33
Kropotkin era filho do príncipe Aleksei Petrovitch e por isso era conhecido como “O Príncipe Anarquista”.
do Jura e passou a vida escrevendo e participando de movimentações libertárias (não
violentas). Talvez por sua formação como cientista (era geógrafo, assim como Élisée Reclus),
observava a anarquia como parte integrante da nova filosofia herdada do iluminismo, da
busca pelo conhecimento científico ou com bases científicas, como afirma Elsa Cerqueira no
prefácio à obra desse libertário “Anarquia: sua filosofia, seu ideal(2001). Em seus livros e
panfletos a concepção naturalista acerca do homem e da sociedade atinge seu ponto máximo:
a anarquia seria a evolução natural das idéias, assim como estaria baseada na racionalidade.
Ou seja, a sociedade anárquica seria uma fase natural do progresso humano, onde a
solidariedade na qual ela deveria se pautar seria o motor desse progresso. Assim a
humanidade marcharia continuamente para a anarquia.
Juntamente com Malatesta
34
e Élisée Reclus (que conheceu em 1880 e foi grande
amigo), Piotr Kropotkin segundo Max Nettlau (1977) os militantes mais ativos do
anarquismo na década de 80 do culo XIX, juntamente com Joham Most, Antonio Pellicer,
Joseph Lane, Willian Morris e Merlino - foi um dos maiores defensores do comunismo
anárquico, ou comunismo libertário como ele preferia chamar para não causar enganos com
relação à idéia de baderna que a palavra anarquia poderia designar. A anarquia, para ele,
conduziria inevitavelmente ao comunismo total
35
, juntos seriam a expressão máxima da
igualdade. Por isso opôs-se enfaticamente à idéia coletivista de “a cada um segundo seu
trabalho” afirmando sua impossibilidade: segundo os coletivistas a definição da parte que
caberia a cada indivíduo seria baseada nas horas de trabalho (proporcional à tais horas) que
cada um despendeu para a produção das riquezas, mas, se os instrumentos de trabalho e os
meios de produção são de posse comum, ou coletiva, não haveria como definir essa parte.
Logo, só se poderia efetivamente fazer alguma definição nesse sentido se a propriedade
privada fosse restabelecida, o que estaria em contraposição aos ideais anarquistas e
comunistas, além do que, no sistema coletivista se formaria uma nova forma de salariato,
portanto, uma nova forma de exploração, segundo ele. A posse comum (dos instrumentos de
34
Malatesta e Kropotkin divergiram em muitos sentidos apesar de serem defensores do anarquismo comunista.
Além da crítica de Malatesta ao “espontaneísmo” de Kropotkin (que acreditava que a sociedade anarco-
comunista deveria ser construída através da espontaneidade das classes operárias), o primeiro o criticou muito o
segundo em questões como o seu apoio e de seus seguidores à Tríplice Entente durante a Primeira Guerra
Mundial. Malatesta afirmava que os anarquistas das mais variadas vertentes não deveriam apoiar nenhuma
guerra entre Estados, já que elas serviam para consolidá-lo, assim como sua dominação, e para colocar
trabalhadores de nações distintas como inimigos, onde um deveria matar o outro. Os anarquistas de São Paulo
parecem concordar com Malatesta em suas fortes campanhas contra a Primeira Guerra Mundial.
35
Diferentemente de Malatesta, Kropotkin não acreditava na comunização de alguns produtos e coletivização de
outros, mas na comunização total de todos os meios, instrumentos e produtos.
trabalho e dos meios de produção), “trará necessariamente o gozo comum dos frutos do labor
comum” (KROPOTKIN, 1953, p. 27).
O trabalho é fruto da sociedade organizada livremente em livres federações e
comunas, por isso não deve ser guiado segundo qualquer fórmula que seja, deve voltar para a
sociedade segundo as necessidades de cada indivíduo que para ele era um “mundo de
federações e um cosmos por si só” (KROPOTKIN, 2001, p. 26) - ou grupo, educado segundo
os valores de solidariedade e apoio mútuo. Justamente por essa visão do trabalho (todo e
qualquer trabalho) como fator social, como resultado do trabalho de todos que participariam
do processo de produção e não de um indivíduo, Kropotkin afirma que não se poderia dar a
ele um valor, assim como não se poderia fazer distinção entre trabalho qualificado e não
qualificado. É nesse sentido que criticava Ricardo (1772 1823), que afirmava que o valor de
um determinado produto deveria ser proporcional à quantidade de trabalho socialmente
necessário para produzi-lo. Não há como, para o libertário aqui citado, um trabalho prestado à
sociedade ser pago com dinheiro.
É certo, com efeito, que, à medida que o cérebro humano liberta-se das idéias que
lhe foram inculcadas pelas minorias de padres, chefes militares, juízes, empenhados
em firmarem o seu domínio, e de homens da ciência pagos para o perpetuarem,
surgiu uma concepção da sociedade em que não há lugar para aquelas minorias
dominadoras. Esta sociedade, entretanto na posse de todo o capital social acumulado
pelo trabalho das gerações precedentes, organiza-se para tomar este capital
aproveitável a todos, e constitui-se sem refazer o poder das minorias. Ela
compreende no seu seio uma variedade infinita de capacidades, temperamentos, e
energias individuais: não exclui ninguém. Invoca inclusive a luta, o conflito, porque
sabe que as épocas de conflitos, livremente debatidos, sem que o peso de uma
autoridade constituída fosse lançada num prato da balança, foram épocas de maior
desenvolvimento do gênio humano. Reconhecendo que efetivamente todos os seus
membros têm direitos iguais a todos os tesouros acumulados pelo passado, não
reconhece mais divisão entre explorados e exploradores, entre governados e
governantes, entre dominados e dominadores, e procura estabelecer uma certa
compatibilidade harmônica no seu seio, não sujeitando todos os membros a uma
autoridade que, por ficção, seria considerada como representante da sociedade, não
procurando estabelecer a uniformidade, mas chamando todos os homens ao livre
desenvolvimento, à livre iniciativa, à livre ação e à livre associação.
Ela procura o mais completo desenvolvimento da individualidade, combinado com o
mais elevado desenvolvimento da associação voluntária sob todos os aspectos, em
todos os graus possíveis, para todos os fins imagináveis: associação sempre mutável,
tendo em si própria todos os elementos da sua duração, e revestindo as formas que, a
cada momento, melhor correspondem às múltiplas aspirações de todos. [...] É
somente em nossos dias que o ideal de sociedade em que cada um se governa por
sua própria vontade (a qual é evidentemente resultado das influências sociais que
cada um sofre) afirma-se ao mesmo tempo sob o seu lado econômico, político e
moral, e que se apresenta apoiado na necessidade do comunismo, imposto às nossas
sociedades modernas pelo caráter eminentemente social da nossa produção atual.
(KROPOTKIN, 2001, p. 33, 34 e 35, grifos nossos).
Apesar de a sociedade comunista ser um ideal “imposto às sociedades modernas”,
inevitável diante das condições de produção capitalistas, Kropotkin afirmava que não há como
alcançá-la sem a destruição do Estado acompanhada da expropriação capitalista. Em sua obra
“A Conquista do Pão” (1953), que se tornou uma obra clássica para o anarquismo e foi
amplamente divulgada pela imprensa e pelos grupos libertários em São Paulo na Primeira
República, desenvolveu amplamente a questão. Inclusive, mais do que Bakunin ou Malatesta.
Segundo ele, toda a riqueza material do mundo (utensílios, máquinas, produtos, etc) foram
produzidos através do trabalho humano e, passadas de geração para geração, através desse
mesmo trabalho, tanto intelectual (grandes invenções), quanto manual. Trabalhos esses,
sempre coletivos, “nascidos do passado e do presente” (KROPOTKIN, 1953, p. 9), do contato
social entre os seres humanos e em sua interação com a natureza luta por dominar as forças
naturais em conjunto. Porém o trabalho foi, na sociedade capitalista, açambarcado por alguns:
os burgueses, que exploram o trabalho da imensa maioria produtora de todas as riquezas do
mundo, que regulam sua produção através dos mercados nacionais e mundiais e garantem tal
exploração através da constituição de um conjunto de autoridades, que, por sua vez, são
responsáveis por atrasar o desenvolvimento de sentimentos sociais como o respeito, a
simpatia, o auxílio mútuo
36
, assim como o bem-estar social.
[...] para que o bem-estar seja uma realidade é necessário que esse imenso capital:
cidades, casas, campos, oficinas, vias de comunicação, deixe de ser considerado
propriedade privada e de que o ambarcador dispõe a seu bel-prazer. É preciso que
tudo isso, obtido com tanto trabalho, se torne propriedade comum. É preciso uma
expropriação. (KROPOTKIN, 1953, p. 18).
a expropriação garantiria que a produção, obra coletiva, regressasse à coletividade
humana, sem a injusta apropriação pessoal; faria com que tudo voltasse a todos, cada um
trazendo a sua cota de trabalho e usufruindo dele segundo suas necessidades. Ela, no entanto,
não deve ser somente a expropriação das terras e dos meios de produção; as relações
econômicas estão interligadas e a expropriação não pode ser limitada. Devem ser
expropriados também os bancos - que se o controle dos bancos fosse exercido por algum
ser humano ou grupo, faria com que esses controladores (donos de riqueza) reorganizassem o
governo e a exploração e as indústrias. Além disso, ao contrário do que colocavam os
lassalianos, a expropriação não poderia ser feita por meio de uma legislação ou por meio
parlamentar, mas por uma revolução social, ou seja, o povo revoltado não deveria
reivindicar o direito ao trabalho (o direito de ser explorado por um capitalista), mas deve lutar
pelo seu bem-estar, em todos os sentidos que se poderia imaginá-lo, e organizar-se para
36
Em sua obra “A ajuda mútua como fator de progresso entre os animais e os homens”(escrito na Inglaterra em
1902), Kropotkin opõe-se aos darwinistas sociais ao afirmar que a espécie que mais evolui é aquela que mais
coopera entre si e não aquela que mais concorre entre si. A ajuda mútua é um fator de progresso e evolução.
garanti-lo. “O direito ao bem-estar é a revolução social; o direito ao trabalho é quando muito,
um degredo industrial” (KROPOTKIN, 1953, p. 24).
Sin embargo, la recuperación de las posesiones humanas, la expropriación, en una
palabra, no puede realizarse más que por el comunismo anárquico: es preciso detruir
el Gobierno, desgarrar sus leyes, repudiar su moral, ignorar sus agentes y ponerse a
la obra según la propria iniciativa y agrupándose según sus afinidades, sus intereses,
su ideal, y la naturaleza de los trabajos empreendidos. Es después de esa caída del
Estado como los grupos de trabajadores emancipados... podrán entregarse a las
ocupaciones atractivas de la labor libremente elegida y proceder cientificamente al
cultivo el suelo y a la producción industrial, mezclada com recreos dado al estudio o
al placer. (...) profesamos una fe nueva, y cuando esa fe, que es al mismo tiempo la
ciencia, se haya convertido em fe de todos los que buscan la verdad, tomará cuerpo
en el mundo de las realizaciones, porque la primera de las leyes históricas es que la
sociedad se modela en su ideal. Ciertamente, la inminente revolución, por
importante que pueda ser en el desarollo de la humanidad, no diferirá de las
revoluciones anteriores al dar un salto brusco: la naturaleza no lo da. LISÉE
RECLUS, apud: NETTLAU, 1977, p. 128 e 129).
Entretanto, como foi dito anteriormente, Kropotkin não aceitava métodos
revolucionários violentos. A revolução acontecerá inevitavelmente, segundo o progresso da
humanidade, e o máximo que se pode fazer com relação a ela é preparar o espírito, ou
preparar-se moralmente para a nova sociedade que nascerá após a revolução, tal é a função do
anarquista, do revolucionário: propagar as idéias e a educação libertária ao maior número de
pessoas, que construirão a sociedade livre de maneira espontânea. Assim, a propaganda, a
educação e a arte têm papel central na sua teoria, ambas são os métodos revolucionários mais
eficazes
37
, assim como as formas de organização livre, uma forma de prática do apoio mútuo
na vida cotidiana, que prepararia para a vida futura. O sindicato, por exemplo, seria essencial
nesse sentido.
A educação plena e integral, para ele, ajudaria a libertar o indivíduo do
encarceramento intelectual a que foi submetido pela educação pública oferecida pelo Estado
ou pela educação religiosa oferecida pelos padres, ajudaria também a consolidar a sociedade
futura. Ou seja, a crítica de Kropotkin incide sobre a educação burguesa de forma total, ele
não visa reformas, reformulações nesse sistema educacional, mas luta pela construção de uma
educação efetivamente anarquista. Justamente por isso participava, segundo Flávio Luizetto
(1987), de um grupo de militantes anarquistas, o “Comitê para o Ensino Anarquista” (de 1882
até o início do século XX), do qual participaram também Élisée Reclus, Jean Grave, Carlo
Malato e Louise Michel, que foram responsáveis por elaborar o “Programa Educacional”
37
Dentre os anarquistas aqui trabalhados, Kropotkin foi o que mais deu importância à educação e às artes como
métodos revolucionários.
redigido por Paul Robin (1837 1912) e Francisco Ferrer (1849 1909)
38
em 1882 -
partindo do seguinte pressuposto:
[...] o poder econômico, associado ao poder político, mantém instituições de ensino
submissas aos interesses particulares, e o sistema escolar, na sua totalidade,
concorre, em última instância, para a perpetuação do regime capitalista, isto é, da
sociedade dividida em classes. (LUIZETTO, 1987, p. 48).
Propuseram uma educação que una educação científica, educação profissional, assim
como não faça a separação entre ensino e aprendizagem. Uma educação que não forme uma
aristocracia intelectual responsável por submeter trabalhadores, assim como já propunha
Proudhon ao preconizar a generalização da aprendizagem politécnica e o acesso de todos a
todos os graus de ensino, o que seria um passo importante no processo de emancipação do
trabalhador, e Bakunin ao defender a educação integral (intelectual, manual e moral/física).
Mas foram além ao proporem, de forma sistematizada, práticas educacionais, o “Programa
Educacional” definia, ainda segundo Flávio Luizetto, que: dever-se-ia atentar para os três
problemas que tornam a educação burguesa nociva (a disciplina, os programas e as
classificações) suprimindo toda disciplina, causa de dispersão e mentira, substituindo os
programas, que anulam a originalidade, pela iniciativa e responsabilidade das crianças e
destruindo quaisquer formas de classificações, que estimulam inveja e rancor entre os
indivíduos; o ensino deveria ser, depois de abolida essas práticas educacionais nocivas,
integral, racional, mista e libertária integral porque favoreceria o desenvolvimento
harmonioso de todo o indivíduo e forneceria um conjunto completo, coerente e sintético,
progressivo em todos os domínios do conhecimento (intelectual, físico, manual e
profissional); racional para o desenvolvimento da dignidade e da independência pessoal
baseadas na razão e não fé, na piedade e na obediência a uma autoridade divina; misto por
favorecer a co-educação sexual e libertário para consagrar a liberdade e formar homens livres
que se respeitem mutuamente. Tal programa educacional, juntamente com as propostas de
Francisco Ferrer, foram as bases das escolas libertárias fundadas em São Paulo durante a
Primeira República.
Kropotkin, pintor e músico aficcionado, a arte em dois sentidos: a arte como meio
revolucionário e a arte como livre exercício em uma sociedade anárquica; é com relação ao
primeiro sentido que nos deteremos aqui. Segundo André Reszler (1974), esse libertário foi o
38
Francisco Ferrer i Guardia criou em 1901 um projeto de pedagogia libertária chamado de “Escola Moderna”,
privilegiando o ensino das ciências naturais e colocando em prática a educação integral. Sem dúvida as bases das
escolas libertárias de São Paulo, que também receberam o nome de “Escolas Modernas”, tinham como base as
propostas de Ferrer. Inclusive a sua morte (por execução) é muito lembrada pela imprensa anarquista paulistana,
também eram organizados festivais em sua homenagem.
último anarquista a definir-se sobre a arte e o primeiro revolucionário moderno a falar sobre o
compromisso do artista. Convidava os artistas a abraçarem a causa anarquista não na
qualidade de “mestres, mas de companheiros de luta, não para governar, mas para inspirar um
meio novo, não para ensinar, mas para conceber as aspirações das massas” (RESZLER, 1974,
p. 12).
[...] Y probablemente el único en comprender qui si el compromiso de tener um
sentido, debe estar fundado en la reciprocidad consciente de las aportaciones. Al
militante, el artista aporta la garantía, la legitimación de la causa socialista. Al
artista, la revolución le promete superar las dificultades para vivir y para crear. [...]
Vosotros, poetas, pintores, escultores, músicos, si habéis comprendido vuestra
verdadera misión y los intereses del arte em mismo, venid pues a poner vuestra
pluma, vuestro pincel, vuesro pincel, vuestro buril, al servicio de la revoloución.
(KROPOTKIN, apud: RESZLER, 1974, p. 56).
Criticava a idéia da arte pela arte” afirmando-a como uma expressão clara do
individualismo burguês, assim como para ele eram o impressionismo, o simbolismo e o
modernismo. A arte deveria ser obra coletiva, comunitária, e, na sociedade capitalista que
visam destruir, deveria ser engajada para tal destruição, deveria estar carregada de idealismo.
Mas por arte engajada não se deve entender arte submissa, a arte é livre, tem sua própria
lógica e sua própria história, não pode ser submetida à propaganda, é um método diferente,
com suas próprias práticas. Ou seja, a arte também deveria estar em pleno acordo com os fins
anarquistas ser livre. Os artistas, para Kropotkin, deveriam unir-se livremente, pela amizade
criadora e não por decretos que lhes impusesse o que fazer.
Essas idéias a respeito de arte influenciaram o teatro anarquista, tão forte aqui em São
Paulo durante a Primeira República, assim como influenciaram o grupo anarco-sindicalista
francês “L’ Art Sociale” (1896 1901), que teve como um dos membros fundadores Charles
Albert (1843 1914), - cujas peças tratavam de temas como o “Casamento Burguês” e foram
encenadas em São Paulo no período aqui trabalhado - Paul Delesalle (1870 -1948) e como um
dos colaboradores Jean Grave. Tal grupo organizava, em Paris, nos bairros revolucionários,
conferências, exposições de arte pública e gratuitas e representações teatrais.
CAPÍTULO 2 O ANARQUISMO EM SÃO PAULO DURANTE A PRIMEIRA
REPÚBLICA (1889 1930)
O historiador profissional da velha escola pode preferir, como tema de suas
pesquisas e de seus relatos, os fatos de grande repercussão, revoluções, as manobras
dos diplomatas e dos conspiradores; contudo, o que realmente é mais importante são
as incontáveis relações quotidianas entre indivíduos e entre grupos que constituem a
verdadeira substância da vida social. (MALATESTA, 1984, p. 96).
Após observarmos as raízes históricas do anarquismo, suas características gerais e suas
mais variadas facetas, vamos, no presente capítulo, procurar as especificidades do movimento
anarquista em São Paulo, bem como seu diálogo com os movimentos operários de outras
regiões e as influências das idéias daqueles que aqui denominamos anarquistas clássicos.
Para tal, não se pode deixar de lado o contexto político, econômico, social e até
cultural da cidade de São Paulo durante a Primeira República, bem como as atuações de
militantes libertários nessa cidade explicitados no tópico 2.1. Esses militantes buscaram suas
próprias práticas de ação e novas formas de pensar o movimento diante das especificidades
brasileiras, como fizeram Neno Vasco, Edgar Leuenroth e Gigi Damiani. Seus nomes estão
sempre presentes nos jornais operários aqui estudados, como “A Plebe” e “A Terra Livre”,
seja assinando artigos ou como oradores em conferências, observaremos essas especificidades
no tópico 2.2.
2.1 A São Paulo da Primeira República e o movimento anarquista
O ano de 1889 no Brasil foi marcado pela Proclamação da República. No entanto,
segundo a maior parte dos historiadores do período, essa proclamação foi fruto de um
processo muito mais longo: a decadência do Império, que se mostrava incompatível com os
rumos que tomava o país e como incapaz de resolver problemas nacionais
39
. Não vamos aqui
fazer uma discussão nesse sentido, porém devemos tomar essas idéias como base para
compreender o período como um período de continuidades, mas também de intensas rupturas
em termos políticos, econômicos, sociais, culturais e até mesmo morais (todos muito
interligados), o que sem dúvida pode ser compreendido se tomarmos como ponto de partida a
produção cafeeira, grande responsável, segundo Wilson Cano (1998), pela “grande onda
imigratória”, pela intensa industrialização e urbanização da cidade de São Paulo em fins do
século XIX e início do século XX.
39
Para citar obras consideradas clássicas nesse sentido temos Caio Prado Junior, em sua “Evolução Política do
Brasil” (1972), que afirmava que as instituições do Império eram incompatíveis com o progresso do país, e
Sérgio Buarque de Holanda, em “História Geral da Civilização Brasileira” (1985), que colocava que o regime
imperial já havia se deteriorado e “implodira-se”, mesmo havendo grupos que lutassem pela República.
Segundo Richard Grahan (2001), até a década de 50 do século XIX, o açúcar ainda era
o principal produto de exportação do país. Tal produto, segundo o mesmo autor, contava com
uma produção marcada pelo atraso tecnológico uso de carros de boi e rodas d’água -,
enquanto Cuba, sua principal concorrente, usava máquinas a vapor. Faltava aqui preocupação
com a fertilização dos solos utilizados (sempre utilizavam terras virgens), o que, além do
grande desmatamento, acarretava o alto custo da produção; havia abandono de terras devido à
abundância; grande distância dos mercados com relação a Cuba, que localiza-se muito mais
próxima da Europa; e o trabalho escravo, segundo Verena Stolcke (1986), até os anos de 1850
compunha a maioria da força de trabalho “necessária a uma agricultura de exportação em
larga escala” (STOLCKE, 1986, p. 17). Foi a partir do ano de 1850 que o café, produzido
antes com menor intensidade, passou a ocupar um importante papel nas receitas exportadoras
brasileiras, sendo o responsável por quase a metade dessas.
Durante os anos de 1850 a 1870 a produção cafeeira concentrava-se com maior
intensidade na região que conhecemos como Vale do Paraíba e no Oeste Paulista
40
. O trabalho
escravo continuava, nesse momento, a ser predominante, porém, o Oeste contava também
com o trabalho nacional livre.
[...] a lavoura do Oeste passa a desenvolver uma tendência a reservar o braço
escravo para funções essenciais, empregando o trabalho nacional livre nas tarefas
supletivas ou perigosas. Igualmente, multiplicam-se as tentativas para introduzir
colonos europeus, o pagamento de cujas passagens era adiantado pelos fazendeiros.
(BEIGUELMAN, 1985, p. 8).
Não se deve, no entanto, atribuir à decadência da produção cafeeira no Vale do
Paraíba, a partir de 1870, somente ao uso da mão-de-obra escrava, que já vinha sendo
restringida por várias leis, como a Lei do Ventre Livre (1871). Segundo Wilson Cano (1998),
a escassez de mão-de-obra não seria sozinha a razão da abolição ou da substituição de braços,
a razão das últimas seria, o processo de acumulação de capital. A mão-de-obra escrava
estava estancada nos últimos quinze anos da escravidão, mas só foi possível substituí-la
graças ao grande capital proveniente do café. E, nesse sentido, a decadência da região do Vale
do Paraíba se deve principalmente à limitação das terras e ao esgotamento das terras pelo seu
uso intensivo, enquanto que o Oeste Paulista contava com grande disponibilidade de terras,
além de condições climáticas favoráveis e grande fertilidade do solo (“terra roxa”). Com o
aumento da produção e exportação de café a partir de 1870
41
, o Oeste passou a investir em
40
Oeste Paulista compreendia as regiões de Campinas e Ribeirão Preto, que na verdade são as regiões Leste e
Nordeste do estado de São Paulo.
41
Em 1870 a produção cafeeira ocupa 16% do total produzido no Brasil, em 1875 já era responsável por ¼ dessa
produção e em 1885 por 40% dela.
técnicas agrícolas mais eficientes, como o uso do arado e da máquina carpideira, que
permitiram que seis escravos fossem substituídos por um homem e um animal, o que se torna
seu principal diferencial com relação à região do Vale e com relação à sua própria produção
em períodos anteriores. O Oeste paulista passou, após 1870, a produzir cerca de cinco vezes
mais do que produzia anteriormente. A utilização de máquinas de beneficiamento de café,
como despolpadores, descascadores, ventiladores, brunidores, separadores, classificadores e
modificadores de tipos de café passaram a ser utilizadas nas fazendas cafeeiras e também
aumentaram a produtividade; essas máquinas começam a ser produzidas em São Paulo a partir
de então.
-se aqui questões importantes como a da mão-de-obra e mesmo a industrialização, o
que nos leva à conclusão de que só é possível entender a economia dessa época, como mostra
Wilson Cano (1998), como um complexo integrado, que possibilita o desencadear de um
processo dinâmico de acumulação. O café, “produto mundo”, segundo José Evaldo Doin et al.
(2007), levou à grande acumulação de capital na mão dos grandes fazendeiros e “exigiu”, para
manter sua expansão, transformações na sua própria produção (trabalhadores e donos de terra,
assim como mercado), bem como no seu beneficiamento (indústrias para produzir
equipamentos para beneficiar café e embalá-lo, como a de juta), transporte (ferrovias), rede
bancária e comércio (importação e exportação). Foi justamente por isso que as indústrias e as
ferrovias passaram a ser uma necessidade e a imigração, uma solução rentável para maior
lucro desses fazendeiros, que investiram suas fortunas também em modernização de cidades e
em formas de lazer.
Uma preocupação muito evidente no período era com o transporte do café.
Obviamente a exportação era muito mais visada do que o mercado interno, por isso o
transporte até o porto de Santos, principal ponto de escoamento do café para o exterior,
deveria ser mais rápido e com poucas perdas, além do que, deveria ser um transporte com
custos relativamente pequenos, o que seria possível através da implantação de um sistema
ferroviário, que serviria também como desbravador de matas virgens; reduziria os custos do
transporte e cerca de 20% dos preços de exportação; aumentaria a velocidade com que o
produto chegava ao porto; e elevaria a produtividade, que não se perdia muito se
relacionado com o período que o transporte era efetuado por animais (burro). Foi por isso que,
em 1867, com a união do capital inglês e do Barão de Mauá, Irineu Evangelista de Sousa
(1813 1889), foi inaugurada a São Paulo Railway Company, que ligava Santos a Jundiaí.
Para ligar as outras áreas produtoras do Oeste Paulista foram construídas a Cia. Paulista
(1872), a Cia. Mogiana (1875) e a Cia. Sorocabana (1875). Máquinas de beneficiamento do
café, somadas às ferrovias que reduziam o custo do transporte da alta produção, garantida
pelas primeiras, significavam lucro, “acumulação cafeeira”, segundo Wilson Cano (1998).
As altas margens de lucro da cafeicultura paulista, a alta produtividade e a grande
disponibilidade de suas terras, imprimindo alto ritmo na acumulação de capital do
café, pela expansão dos plantios, exigiram radical solução ao problema da mão-de-
obra escrava cujo estoque, em São Paulo, permanecia praticamente estancado
durante os últimos quinze anos da escravidão. Resolvido esse problema, pela
imigração, e, dadas as condições da demanda externa do café, a acumulação cafeeira
não mais contaria com esse freio. (CANO, 1998, p. 30).
O trabalho livre de imigrantes passou a ser visto como mais rentável por impor menos
gastos do que requeria um escravo em tempos de limitação ao tráfico. Os imigrantes tinham
salários flexíveis, consumiam e deviam pagar pelo que os fazendeiros ou o governo
“investiram” neles, sejam passagens, hospedagens, etc, enquanto o escravo tinha de ser
comprado e essa compra nos últimos anos da escravidão era dificultada pela forte pressão
inglesa para abolição, pela proibição do tráfico de escravos (1850) e pela lei do Ventre Livre
(1871). Mesmo assim a substituição de braços não foi bem vista por todos os fazendeiros. Os
cafeicultores do Vale do Paraíba, segundo Paula Beiguelman (1985), por exemplo,
discordavam dessa solução propondo o trabalho semi-servil de cules (trabalhadores chineses e
indianos), que deveriam ser pagos pelos cofres públicos. Não havia consenso nem sequer
entre os fazendeiros do Oeste Paulista. Produtores do “Novo Oestecolocavam-se a favor da
imigração, enquanto que os do “Oeste Antigo” eram contra.
O “Novo Oeste”, que compreendia as cidades de São Simão, Ribeirão Preto, Pinhal,
São João da Boa Vista, Casa Branca, Cajuru, Batatais e Franca, era representado na
Assembléia Legislativa Provincial por Martinho Prado (1843 1906), deputado pelo Partido
Republicano Paulista, que propunha medidas para mostrar a necessidade da imigração.
Medidas essas que funcionavam também como pressão, como no caso da proposta de imposto
proibitivo ao tráfico de escravos na província de São Paulo, que o chegou a virar lei, mas
que, de qualquer forma, motivou intensas discussões entre escravistas e imigrantistas dentro
da Assembléia. Os imigrantistas justificavam a imigração através dos constantes conflitos
entre fazendeiros e escravos, das fugas e dos quilombos e em teóricos como Louis Couty
(1854 -1884), que difundia a noção de que trabalho escravo e liberto estava associado à
incompetência. Em 2 de julho de 1886, período em que a produção cafeeira estava em grande
alta, fundaram, por iniciativa de Antonio de Queiroz Telles (1831 1888), fazendeiro e
presidente da Província de São Paulo também conhecido como Conde de Parnaíba, a
Sociedade Promotora da Imigração, responsável por canalizar verbas para o pagamento de
passagens para imigrantes. Por outro lado, a região conhecida como “Oeste Antigo”,
compreendendo as cidades de Campinas, Rio Claro, Limeira e região, colocava-se a favor do
trabalho nacional livre e não da imigração.
As discussões e opiniões contrárias sobre o assunto, sempre intensas no período que
vai de 1850 até 1888, não impediram que, com a Abolição da Escravatura (1888), a Sociedade
Promotora da Imigração, conseguisse introduzir cem mil imigrantes na lavoura cafeicultora de
São Paulo com passagens subsidiadas pelo governo, o que fez com que o Oeste se “unisse
pela imigração em oposição ao Vale do Paraíba, cuja produção decaía.
No entanto, devemos observar que a aceitação à imigração e a grande onda imigratória
não ocorreram de uma hora para a outra. Houve tentativas de substituição da mão-de-obra
nem sempre bem sucedidas
42
. A mais conhecida delas foi o “sistema de parceira”: em 1847 o
Senador Nicolau Vergueiro (1778 1859), fazendeiro de Ibicaba (próxima à Limeira) levou,
para a sua propriedade, suíços e alemães que, em teoria, dividiriam pela metade os lucros após
a venda do café. O fazendeiro arcaria com o transporte dos imigrantes da Europa até o porto
de Santos e do mesmo até a fazenda; também arcaria com os primeiros gastos no que se
referia a instrumentos de trabalho e outros gêneros necessários. Os imigrantes teriam direito a
uma casa e uma área para a produção de gêneros para sua subsistência. Tudo deveria ser pago
pelos imigrantes com o produto das primeiras colheitas, com o discurso de que eles deveriam
reembolsar o fazendeiro. Isso fazia com que os imigrantes ficassem obrigados a permanecer
nas fazendas, ou pagariam multas e juros.
Os trabalhadores trazidos por Nicolau Vergueiro demoravam cerca de quatro anos
para conseguir quitar a dívida, segundo Verena Stolcke (1986), ou nem chegavam a conseguir
pagá-la. A Lei de Terras, assinada em 1850, garantia a propriedade privada e impedia que os
imigrantes se tornassem proprietários ao se estabelecerem em terras públicas, o que garantia
ao fazendeiro, a exploração do trabalho de tais imigrantes e seu lucro. A vinda de imigrantes
em família também permitia a exploração do trabalho de mulheres e crianças. Por isso tal
sistema também ficou conhecido como “escravidão por dívidas”, como colocava Sérgio
Buarque de Holanda em seu prefácio à obra de Thomas Davatz “Memórias de um colono no
Brasil” (1980). Não há dúvida que os trabalhadores resistiram, protestando - como ocorreu em
1856 quando o mestre-escola Thomas Davatz transformou inquietação na fazenda em protesto
ou fugindo para a cidade. O relato desse mestre-escola nos mostra de como funcionava o
sistema implantado por Vergueiro.
42
Em 1815 a cidade de Casa Branca recebeu imigrantes açorianos. De 1827 a 1837 instalaram-se em outras
regiões do estado, imigrantes alemães.
Fomos conduzidos a (Ibicaba), exibiram-nos esses regulamentos apenas nhamos
chegado e quando o desejo de alguma coisa bem diferente, de comida ou de bebida,
transparecia em quase todos os semblantes. (...) outra parte do regulamento consta
das limitações, por assim dizer, à liberdade pessoal dos colonos. Sem autorização
por escrito do diretor, nenhum colono em dia útil, pode ausentar-se da fazenda, a
não ser para local muito próximo e quando a viagem - ida e volta seja possível em
um dia. (...) Também é necessária permissão verbal para receber ou hospedar um
amigo, ainda quando se trate de parente próximo. E é claro que tais autorizações
ficam inteiramente ao arbítrio do diretor, que as pode conceder ou autorizar. (...).
(THOMAZ DAVATZ, apud: FREITAS, 1999, p. 28).
Depois do ano de 1857 o sistema de parceria passou a ser substituído pelo sistema de
contrato de locação de serviços, onde o trabalhador receberia uma parcela fixa da produção,
previamente determinada, por pés de café a serem colhidos e também receberiam uma área
para a subsistência, igualmente pré-determinada, para que não se “desviasse” a atenção do
cultivo cafeeiro para a cultura de gêneros alimentares.
O sistema de colonato foi outra tentativa de implantação da mão-de-obra imigrante. Os
fazendeiros pagavam aos trabalhadores uma remuneração por tarefa e por medida colhida,
uma espécie de salário fixo e ganho por pés a mais que fossem colhidos. No entanto esse
“salário” era baixo e em momentos de crise poderia ser mais baixo ainda.
O grande fluxo imigratório se mesmo, apesar dessas primeiras e mal sucedidas
tentativas, entre os anos de 1880 e 1930 (período caracterizado como o da “Grande
Imigração” (FREITAS, 1999)). Segundo Sônia de Freitas (1999), já em 1870 o governo
Imperial dava apoio à imigração como meio de garantir a produção e a exportação do café. A
Associação Auxiliadora de Colonização, fundada em 1871, e a Lei Imperial de 1885 já
estabeleciam propaganda na Europa e subsídios às passagens. Logo é possível percebermos
que a mudança do tipo de mão-de-obra utilizada nas lavouras cafeeiras não se deu somente
pela inviabilidade da escravidão, como afirmaram muitos historiadores, mas por causa dessa
inviabilidade somada à grande acumulação de capital nas mãos dos fazendeiros, proveniente
do aumento da produção e exportação do café, que também permitiu maiores investimentos
no beneficiamento e nos transportes de tal produção como já foi dito anteriormente.
O grande salto da expansão cafeeira de São Paulo, entre 1876 e 1883, quando dobra
a capacidade produtiva do café, seria feito, parcialmente dentro de relações
capitalistas de produção. (CANO, 1998, p. 48).
A partir da década de 80 do século XIX havia grande oferta de mão-de-obra imigrante,
principalmente após a fundação da Sociedade Promotora da Imigração em 1886. O governo,
que até 1886 não subsidiava as passagens, mas ficava responsável por “ajudar” os imigrantes
a quitarem suas dívidas com os fazendeiros, passou a partir dessa data a subsidiar tais
passagens. Eram os próprios imigrantes que deveriam procurar os fazendeiros e não o
contrário, como nas primeiras tentativas aqui citadas. O fazendeiro pagaria um salário à
família imigrante, explorando assim o trabalho de mulheres e crianças - salário esse flexível,
que pode ser entendido como possível de diminuição - e poderia dispensar temporariamente
os trabalhadores em caso de crise agrícola mais aguda. Às famílias imigrantes era permitido o
plantio de gêneros alimentícios e de subsistência somente em zonas intercafeeiras.
A introdução de imigrantes em família permitiria ao fazendeiro obter um suprimento
de trabalho suplementar barato, fornecido pelos membros femininos e infantis,
enquanto ao colono se tornava possível, através da cooperação da unidade familiar,
um melhor aproveitamento das oportunidades de ganho. (BEIGUELMAN, 1985, p.
9).
O trabalho assalariado passou a ser visto como muito mais vantajoso para os
fazendeiros e para o governo do que o trabalho escravo. A possibilidade de elasticizar o
número de braços empregados e, dessa forma, aumentar os lucros, através de um salário
flexível sempre pressionado para baixo, permitiram ao fazendeiro a vantagem de não terem
que investir tanto capital quanto deveriam investir em um escravo. Além disso, o governo
colocou-se como disposto a subsidiar as despesas com passagens do trabalhador livre
imigrante.
Antes de irem para as fazendas no interior, os imigrantes passavam pela Hospedaria
dos Imigrantes
43
, fundada em 1888, no bairro da Mooca em São Paulo. Sua localização, muito
próxima à estação do Brás (São Paulo Railway), permitia que os trabalhadores fossem nos
trens das companhias ferroviárias, para as fazendas de café. Nos trens da São Paulo Railway
também embarcavam de Santos até São Paulo. O transporte ferroviário, além de beneficiar o
transporte do café passa assim a ser importante meio de transporte de passageiros,
principalmente no período da Grande Imigração.
Com relação às nacionalidades dos imigrantes é consenso entre os historiadores, que
os italianos eram maior número, seguidos dos espanhóis, portugueses, japoneses, alemães e
austríacos. Na Itália, além das péssimas condições em que viviam os trabalhadores urbanos e
os camponeses, havia grande incentivo à imigração, principalmente através da propaganda,
por circulação de panfletos, efetuada pela Sociedade Promotora da Imigração. Sem dúvida,
esses dois fatores atuando de forma conjunta, foram os responsáveis pela grande imigração de
italianos para o Brasil. O gráfico abaixo mostra a predominância do número de imigrantes
italianos com relação àqueles de outras nacionalidades como portugueses, austríacos,
japoneses, espanhóis e alemães:
43
Hoje importante museu que recebeu o nome de “Memorial do Imigrante”.
GRÁFICO 1 - Imigrantes: Número e Nacionalidades no período de 1872 a 1952.
Imigrantes: Número e Nacionalidades
878.102
460.929
395.844
69.161
189.764
39.305
Italianos Portugueses Espanhóis
Japoneses Alemães Austríacos
(FREITAS, 1999, p. 44).
A população do estado de São Paulo sofreu um aumento vertiginoso durante a grande
onda imigratória a partir das últimas décadas do século XIX. Em 1900 a população total do
estado já era de 2.280.000 segundo Edgard Carone (2001). E os imigrantes italianos passaram
a constituir grande parte dessa população. Os dados sobre o número de imigrantes em
comparação ao número de imigrantes italianos na tabela a seguir nos dão uma idéia clara
dessa presença italiana no estado, no geral os italianos são mais do que a metade dos
imigrantes que entraram no país.
TABELA 1 - Comparação entre o mero de imigrantes de diversas nacionalidades e o
número de imigrantes italianos.
Ano
Número de imigrantes em São Paulo
Imigrantes Italianos
1886
9.536
6.094
1887
32.112
17.323
1888
92.098
80.749
1889
27.863
19.025
1890
38.491
20.991
1891
108.736
84.486
1892
42.061
34.274
1893
81.739
48.739
1894
54.637
31.548
1895
149.742
106.525
1896
105.642
69.458
1897
105.870
76.451
1898
54.484
34.391
1899
36.012
20.704
1900
27.894
15.804
1901
75.845
56.325
1902
40.386
28.895
1903
18.161
9.444
1904
27.751
9.476
1905
48.087
13.596
1906
48.429
s/informação.
(CARONE, 2001, p. 37).
Deve-se também à grande onda imigratória (a partir de 1886), a expansão do
complexo cafeeiro (entendido aqui como a produção agrícola de café e seu beneficiamento
indústrias, transporte e mão-de-obra livre) em condições extremamente favoráveis segundo
Wilson Cano (1998). O plantio aumentou, assim como a capacidade produtiva, a produção e a
oferta de força de trabalho. Fatores esses somados permitiram a continuação da dinâmica de
acumulação cafeeira. O trabalho livre, com salário flexível, possibilitou também que os
trabalhadores não empregados na produção agrícola em momentos de crise ou em caso de
grande oferta de braços que o fluxo imigratório excedia as próprias necessidades da
produção cafeeira -, fosse empregada no meio urbano e nas indústrias de beneficiamento e de
juta, nesse momento, nascentes por conta das necessidades do processo de produção cafeeira e
do capital disponível para ser investido na atividade industrial paulistana (São Paulo,
localizada entre o Oeste Paulista e o porto e Santos passou a ser visto como ponto estratégico
para concentração da atividade industrial e para escoamento de produção). Assim braços
imigrantes foram empregados na expansão urbano-industrial de São Paulo, tanto devido à
entrada de imigrantes não agrícolas como pelo movimento de atração e fuga nos períodos de
crise do café.
Nesse sentido deve-se ressaltar que as condições de trabalho nas fazendas eram
péssimas (o que não diferia das indústrias) e, por isso, levavam à fuga de inúmeros imigrantes
para a cidade
44
. Segundo Sônia de Freitas (1999) cada trabalhador era responsável por um
número de pés de café: mulheres e jovens, mil pés; homens adultos, dois mil pés e as
mulheres ainda deveriam fazer os trabalhos domésticos. Os pés de café eram plantados a uma
distância de três metros um do outro para que o capim e as ervas daninhas não tomassem
conta dos mesmos. A primeira colheita só era feita quatro anos depois da plantação e somente
durante a seca (ou seja, de maio a setembro). O café era lavado, colocado para secar ao sol e
protegido (coberto) à noite por causa do orvalho. Depois de seco era beneficiado e ensacado,
processo que envolvia as máquinas. Entre o período de plantação e colheita os imigrantes
trabalhavam em outras plantações (como a de milho) ou em consertos na fazenda. No entanto,
todo esse trabalho era vigiado por capatazes das fazendas e ocupava grande parte do dia dos
44
Devemos ressaltar que as péssimas condições de trabalho não eram as únicas responsáveis pelas fugas e outras
formas de resistência. Os imigrantes traziam da Europa idéias como o socialismo e o anarquismo, como veremos
mais adiante.
trabalhadores, mesmo sob o sol forte. Mesmo com essas péssimas condições de trabalho e de
vida o contrato da maioria dos imigrantes estabelecia que devessem ficar um ano na fazenda.
A imprensa operária anarquista denunciava freqüentemente essas péssimas condições de
trabalho, assim como os maus-tratos e a violência a que estavam submetidos os imigrantes na
lavoura cafeeira, como no artigo “Ecos das Fazendas”, publicado em “A Terra Livre” de 23
de outubro de 1906 em São Paulo:
A fazenda Guerra (Bebedouro) é um logar pinturesco e paradisiaco, diz um jornal.
Nesse paraíso (O paraíso dos ricos é feito da miséria dos pobres, dizia Victor Hugo)
passam-se scenas como a que é contada por um correspondente de “La Battaglia”
45
.
Uma mulher contava ao fazendeiro, animada pelo seu ar bonachão, que o ficctoliteo,
com que era medido o café, não tinha 50, mas 65 litros... “Sem dúvida, disse a
humilde criatura, o sr. patrão não sabe disto”. Em vez de agradecer a... ingenuidade
servil da desgraçada, o escravista deu de redea ao cavallo e com o cabo do chicote
enchumbado assoitou-lhe na cabeça tão violenta pancada que a mulher caiu logo por
morta. Vendo isto, o marido fez um gesto suplicante e gritou “Por piedade, sr.
patrão, não lhe bata mais, que ella está quasi morta!”
Longe de se comover, o fazendeiro começou a espancar o colono. Aos gritos deste e
dos filhos, acudiram os feitores, o administrador e dois carreiros que ajudaram ainda
o carrasco. O colono, Pedro Cavallo, ficou com a cabeça e um braço partidos: um
rapaz de 12 annos ficou com o corpo coberto de contusões, e uma rapariga de 15
annos caiu por terra meio morta, a mãe fazia dó.
Quanto aos outros colonos fugiram! O colono espancado foi transportado no dia
seguinte a cidade para ser visto pelo médico e pela polícia. Esta multou o fazendeiro
em 60$000, não incomodando os ajudantes. Com efeito: os colonos são gente barata,
e o prazer de os espancar não deve ser caro.
A “La Battaglia” narram ainda outros factos, que somos forçados a resumir.
Na fazenda Serra (Sarandy), o fazendeiro, desprezando o contrato, coisa facílima
para os patrões, paga, por 1000 pés de café na cavadura, 50$ em vez de 100$000
réis; e por alqueire de café colhido, 350 em vez de 500 réis. Demais os livretes estão
cheios de multas. Ás reclamações respondem ameaças.
Na fazenda Tanchinho, Ribeirão Preto, sucede mais ou menos o mesmo. O
administrador não paga aos colonos para que estes não fujam; estes são obrigados a
comprar fiado no armazem da fazenda, e por isto ficam ainda mais presos. É uma
verdadeira sequestração.
Na fazenda de Henrique Tiberio (Córrego Rico), os colonos levantam-se ás 4 da
madrugada e labutam bestialmente até ás 7 da noite, dormindo em abjectas pocilgas.
Para comer, uma família de 3 ou 4 pessoas recebe semanalmente do fazendeiro: 2
kilos de farinha, uma garrafa de azeite e um kilo de sal; uma família de 5 ou 6
pessoas recebe 3 kilos de farinha e o resto em proporção. Os colonos pagam por
estes generos um preço exorbitante, ficando assim sempre em debito e não podendo
abandonar a penitenciaria. Não podem vender nada fora, nem milho nem feijão; e se
criam porco, o patrão fica com elle dando em troca uma insignificante. E silencio,
senão trabalha o chicote.
Na fazenda da Gramma, Itatinga, os colonos são pagos á chibatada. Assim sucedeu a
Joaquim Boemia, pai de 7 filhos; Antonio Salamaro, após 2 annos de trabalho gratis;
e a Antonio Bianco, credor de 7 contos, salario de 3 annos de trabalho.
Na fazenda de José Stein, Salto, ha seis annos que os colonos não sentem o cheiro
do dinheiro e ha três que o patrão nem sequer lhes faz as contas dizendo sempre que
não tem tempo! Quando lhe pedem dinheiro, responde lentamente: “Ah! dinheiro,
dinheiro! o dinheiro está caro como o diabo!” E vai-se assobiando. O camarada
Leopoldino teve que ir embora, deixando o salario de 3 annos. Uma criada trabalhou
5 annos, a 20$000 reis por mês, não recebendo nem a decima parte. O obediente
colono Luís Tasso trabalha ha nove annos de graça. Uma vez o fazendeiro convidou
45
“La Battaglia”, periódico anarquista publicado em São Paulo, era escrito em língua italiana.
ironicamente um dos seus escravos a recorrer aos tribunaes para ser pago. Os
fazendeiros riem-se gostosamente das leis feitas e por fazer.
Na fazenda de João Antonio (Jaboticabal), o administrador, Chico despediu
arbitrariamente alguns colonos e camaradas (jornaleiros) sem lhes pagar. O agente
consular nada obteve, a não ser insultos. Por fim, os trabalhadores foram resolvidos
a obter seu salario, e o despota pagou, retendo (empreguemos o eufemismo) 100 mil
reis de cada um e 200 mil do mais simplório. Propomos que se encarregue este
senhor de escrever um tratado sobre este tema: a propriedade é fruto do trabalho
(dos outros)”.
Lemos no “Avante!” que na fazenda de José Padula (Ribeirão Bonito), 15 famílias
espanholas são maltratadas. Os colonos não recebem os seus salarios, e alguns são
encerrados no segredo e ameaçados de morte.
No tempo da escravatura, os escravos não recebiam dinheiro e não podiam fugir,
como se vê pelos factos acima narrados, os colonos trabalham de graça e são
impedidos de fugir pelas dividas, pela falta de pagamento e mesmo pela violencia
directa. Onde está a diferença? Promulgou-se uma lei abolicionista, mudou-se a
forma de governo, mas as transformações legaes não são transformações reais.
(Ecos das fazendas. A Terra Livre, São Paulo, 23 de outubro de 1905, anno I,
número 19).
A substituição da mão-de-obra trouxe outra vantagem aos produtores, comerciantes e
industriais brasileiros: ao contrário dos escravos, os trabalhadores imigrantes eram, até certo
ponto, consumidores, aumentando assim o mercado consumidor interno do país.
Como foi dito, a mão-de-obra imigrante não utilizada no campo, nas lavouras de
café, foi empregada na expansão urbano-industrial paulista. São Paulo, assim como cidades
do interior como Ribeirão Preto, cresceu aceleradamente e esse processo de urbanização
esteve carregado de ideais modernizadores, bem aos moldes franceses. É justamente por isso
que esse período também é conhecido como Belle Époque. Porém, esse crescimento urbano
acelerado teve como base o crescimento industrial.
Se, historicamente, as cidades preexistem às indústrias, ocorreria que, a partir do
momento em que o capital financeiro chegou a dominar todas as demais atividades
econômicas, ele passou também a determinar toda a expansão urbana, desde
aspectos econômicos até sócio-político e culturais. Até a paisagem e a arquitetura,
neste ponto, submeteram-se aos ditames do capital. (HARDMAN; LEONARDI,
1982, p. 189).
As indústrias em São Paulo - que eram incipientes até o grande “boom” do café em
1880 - nasceram com o objetivo de produzir máquinas, tecidos e equipamentos para
beneficiamento do café, ou seja, a produção industrial de fins do século XIX até 1932
46
estava
intimamente relacionada com o complexo cafeeiro, ou mesmo subordinada ao capital
proveniente do café, afinal de contas foi ele que propiciou acumulação de capital antes de
1930, que poderia ser investido em atividades como a atividade industrial. No entanto, não
devemos entender a industrialização ao longo desse período como totalmente determinada
46
Segundo Wilson Cano (1998) e Barjas Negri (1996) essa foi a Primeira fase da industrialização em São Paulo.
pela produção cafeeira
47
. A expansão da produção do café não foi sempre crescente no
período aqui trabalhado, havia momentos de crise e momentos de expansão. A grande
lucratividade dos períodos de expansão permitiu sim, o investimento em bancos, estradas de
ferro, indústrias, usinas, etc, mas momentos de crise agrícola como durante a Primeira Guerra
Mundial (1914 1918), onde o café não teve expansão, a indústria xtil, com papel
importante na produção industrial, teve um grande desenvolvimento, como coloca Barjas
Negri (1996). De qualquer forma foi o capital cafeeiro convertido em capital industrial e a
grande oferta de braços, que serviram de base ao desenvolvimento industrial de São Paulo.
O ramo têxtil era o mais importante segmento da indústria paulistana primeiramente
por causa das sacarias do café. Segundo o autor citado Barjas Negri (1996), o setor têxtil
absorvia mais de 40% do pessoal ocupado e era responsável por mais de 30% da produção
industrial. Devemos ter em mente que a população consumidora crescia enormemente nesse
período e, justamente por isso, se podia produzir aqui vestuário e alimentos - que pelo
trabalho ocupar grande parte do dia dos trabalhadores nem tudo podia ser mais feito em casa -
para atender esse mercado nacional. Logo, a indústria, além de beneficiamento da produção
cafeeira, atende a um mercado consumidor nacional em crescimento (formado por uma
burguesia nascente e pelos operários), o que permite a acumulação de capital nas mãos dos
industriais e uma certa autonomia da produção industrial com relação à produção cafeeira que
lhe proporcionou crescimento através do investimento de capitais provindos da sua expansão.
Os industriais podiam assim investir na expansão industrial.
A indústria alimentícia era o segundo ramo de produção mais importante, absorvendo
cerca de 10% do pessoal ocupado e 20% da produção total. Vestuário, calçados, artefatos de
tecidos e alimentos, somados, eram os ramos que ocupavam a metade da produção industrial
paulista. A indústria química, de minerais não metálicos e de metalurgia respondiam por um
quinto da produção industrial, enquanto que as indústrias de bens de capital e de consumo
duráveis eram incipientes. A tabela a seguir nos uma clara visão da estrutura industrial do
estado de São Paulo a partir de 1907, quando a produção industrial já estava em crescimento.
TABELA 2 - Estrutura Setorial da Indústria de Transformação do estado de São Paulo:
1907 1928.
Grupos e Ramos de Indústrias
Pessoal ocupado
Valor da produção
1907 1919 1928
1907 1919 1928
I. PREDOMINANTEMENTE PRODUTORES DE
75,7 70,5 70,5
77,7 77,6 77,0
47
Em vários momentos, como no início da industrialização ela esteve totalmente determinada sim. Em
momentos de expansão do café, cresciam as indústrias e nas crises do primeiro elas sofriam estagnação. Mas
durante esse período, os industriais também acumularam capital que poderia ser novamente investido na
industrialização.
BENS DE CONSUMO NÃO-DURÁVEIS
1. Têxtil
42,2 41,7 42,6
38,7 29,1 29,0
2. Vest., Calçados e Art. de Tecidos
15,2 12,1 8,4
10,7 9,5 13,3
3. Alimentos
11,6 8,8 9,1
19,4 31,4 20,5
4. Outros
6,7 7,9 10,4
8,9 7,6 14,2
II. PREDOMINANTEMENTE PRODUTORES DE
BENS INTERMEDIÁRIOS
22,8 26,9 20,7
20,8 19,6 20,2
1. Química
4,4 3,0 2,5
3,3 4,7 7,1
2. Minerais Não-Metálicos
7,4 12,0 6,0
6,2 4,1 2,2
3. Metalurgia
8,5 6,0 4,8
6,7 4,4 3,3
4. Outros
2,5 5,9 7,4
4,6 6,4 7,6
III. PREDOMINANTEMENTE PRODUTORES DE
BENS DE CAPITAL E DE CONSUMO DURÁVEIS
1,5 2,6 8,8
1,5 2,8 2,7
1. Mecânica
- - 3,8
- - 1,2
2. Material de Transportes
0,9 1,3 3,1
0,6 2,2 1,1
3. Material Elétrico
- - 0,5
- - 0,2
4. Outros
0,6 1,3 1,4
0,9 0,6 0,2
TOTAL
100,0 100,0 100,0
100,0 100,0 100,0
(NEGRI, 1996, p. 37).
Fábricas têxteis como Cotonifício Rodolfo Crespi, Mariângela (de Francisco
Matarazzo), Tecidos Ahaia, Tecidos Ipiranga e Industrial São Paulo, ambas fundadas em 1900
eram algumas das fábricas desse importante setor da atividade industrial. A Antártica
representava também uma das importantes indústrias do ramo alimentício. As condições de
trabalho nesses ambientes não eram tão diferentes daquelas descritas pelos trabalhadores das
fazendas. Eram comuns, como veremos mais adiante, as denúncias na imprensa operária a
respeito de tais condições, assim como eram comuns os boicotes aos produtos de tais
empresas por parte dos operários anarquistas, que viam nessa atitude uma forma de ação
direta da classe trabalhadora.
Ao contrário do que afirmam alguns historiadores e sociólogos ao qualificarem a
industrialização em São Paulo como atrasada ou tardia, as indústrias dessa cidade
funcionavam, durante a Primeira República segundo os moldes de produção capitalista e
alguns preceitos da racionalização do trabalho. Obviamente esse processo de racionalização
se deu com o tempo e com o aumento da implementação de unidades industriais (como um
processo de diferenciação da produção nas indústrias ao longo do tempo), mas nas
primeiras décadas do século XX foram comuns, por exemplo, na imprensa operária anarquista
analisada para esse trabalho (jornais como “A Terra Livre” e “A Plebe”) os relatos sobre
encarregados e administradores, responsáveis por vigiar a produção, além, obviamente, dos
patrões. estavam presentes os gestores das empresas, que segundo João Bernardo (1998),
existem como classe desde o início do capitalismo, embora nem sempre como classe
organizada. Com administração desses gestores, a produção funcionava segundo os moldes
propostos por Frederick Winslow Taylor (1856 1917), conhecido como taylorismo.
Segundo esses moldes, para que a produção atingisse alta produtividade, ferramentas
não deveriam ser controladas pelos trabalhadores e técnicas de produção deveriam ser
padronizadas, assim como deveria existir amplo controle sobre o trabalho por parte dos
administradores e encarregados da produção, que garantiriam essa padronização. Poder-se-ia
estabelecer uma quota a ser produzida por cada trabalhador e os pagamentos poderiam ser
feitos de acordo com essa quota, como por exemplo, no caso do setor têxtil paulistano: um
valor era pago ao operário ou operária que operasse um tear, se conseguisse operar dois, ou
mais teares, outros valores poderiam ser acrescentados ao pagamento, o que, para Taylor,
eram incentivos para aumentar a produtividade de cada um. O trabalho dentro de uma fábrica
também deveria ser dividido, o que nas tecelagens se dava através da divisão entre aqueles
que limpavam o algodão, lançadeiras, tecedeiras, etc, ou seja, as tarefas eram dissecadas,
assim como pensou Taylor ao desenvolver experimentos com aço-ferramenta e com
princípios de uma gestão científica da produção por volta de 1890 na fábrica Midvale, nos
Estados Unidos. A administração, somadas à racionalização do trabalho (por meio da divisão
do trabalho, técnicas e ferramentas padronizadas e controladas pela empresa) garantiam
aumento da produção mesmo sem aumentar as horas de trabalho, o que significa exploração
da mais-valia relativa. No entanto, não devemos pensar que as horas de trabalho em São Paulo
durante a Primeira República tenham sido diminuídas por isso. As jornadas eram longas nesse
período mesmo com a administração científica da produção.
O principal objetivo da administração deve ser o de assegurar o máximo de
prosperidade ao patrão e, ao mesmo tempo, o máximo de prosperidade ao
empregado (...). Igualmente, máxima prosperidade para o empregado significa, além
de salários mais altos do que os recebidos habitualmente pelos obreiros de sua
classe, este fato de maior importância ainda, que é o aproveitamento dos homens de
modo mais eficiente, habituando-os a desempenhar os tipos de trabalho mais
elevados para os quais tenham aptidões naturais e atribuindo-lhes, sempre que
possível, esses gêneros no trabalho. (TAYLOR, apud: HELOANI, 2003, p. 25,
grifos nossos).
Outro aspecto importante da produção industrial em São Paulo nesse momento era a
exploração do trabalho feminino e infantil, como base essencial da mão-de-obra utilizada no
período. Segundo Karl Marx o emprego das máquinas “torna supérflua a força muscular”
(MARX, 1967, p. 90) o que torna possível o emprego de operários “sem força muscular, ou
com um desenvolvimento físico não pleno, mas com grande flexibilidade” (MARX, 1967, p.
90). Ou seja, o emprego de máquinas permite ao capital a exploração do trabalho infantil e
feminino, aumentando o número de assalariados e englobando todos os membros da família
operária. A máquina surge, portanto, como um meio de o capital englobar todos os membros
da família operária, de criar um aumento do número de assalariados nas filas de
desempregados prontos a serem explorados um exército de reserva -, como meio
responsável para a aceleração do processo de produção e, principalmente, como meio de
desvalorização do trabalhador, que passa assim a ser observado em dois sentidos: como
alguém sem controle sobre o seu próprio trabalho e sem o conhecimento a respeito dele, o que
é exacerbado pela divisão do trabalho suas tradições, saberes e competências são perdidas
e, também complementando esse primeiro sentido, como apêndice da máquina, obediente e
submisso ao ritmo de trabalho imposto por ela. Todo o saber-fazer transfere-se para a
máquina. Há alienação do trabalho.
Com todos os membros da família operária empregados, o salário de uma pessoa, o até
então “chefe da família”, poderia ser dividido por quatro pessoas, que produziam mais, mas
que ganhavam pelo trabalho de uma pessoa, o que além da desvalorização do trabalhador
significa exploração da mais-valia absoluta. Não seriam mais necessários o mesmo número de
braços para efetuar uma determinada tarefa com o uso das máquinas, que acabavam por
substituir muitos desses braços. Além disso, aumentava a fatia de sobre-trabalho extraída da
força de trabalho: que todos os membros da família operária estavam inseridos no processo
de produção fabril, fora das fábricas deveriam contribuir com outros tipos de trabalho. A
mulher, por exemplo, deveria exercer o trabalho doméstico, o que é chamado também de
dupla jornada de trabalho, mas que para Marx é o sobre-trabalho. Os bens que antes eram
produzidos em casa pela família operária agora, com ela tendo os dias ocupados pela
produção fabril e, por isso, com menos tempo de produzir em casa, deveriam ser
industrializados, o que levava os trabalhadores a trabalharem ainda mais para poder consumi-
los, o que mesmo assim não era possível devido aos baixíssimos salários da época.
Porém, as mulheres e as crianças não foram englobadas pela indústria de maneira igual
ao homem adulto, mas sim em categorias diferentes e com os salários diferentes. Segundo
Maria Valéria Pena (1981), o capitalismo tem como necessidade cada vez maior o controle
dos trabalhadores, dessa forma segmenta-os para que esse controle seja exercido de maneira
mais eficaz. Essa segmentação se tanto entre trabalhadores manuais e intelectuais quanto
dentro de uma mesma categoria, como por exemplo, entre homens operários e mulheres
operárias. O trabalho feminino é colocado como trabalho secundário, respaldado pela idéia de
que a mulher, além de física e intelectualmente seria inferior ao homem, teria menos
experiência que ele no mercado de trabalho ou seria o sexo mais frágil. A mulher, então
deveria ganhar salários mais baixos e ser empregada em tarefas menos especializadas, o que,
além de levar à sua completa desvalorização, pressionava o salário de toda a classe operária
para baixo. Ora, se havia uma imensa oferta de braços, um “exército de reserva” o salário
baixo de uma parcela dos trabalhadores faria com que os salários de todos fossem “jogados”
para baixo. Assim também a concorrência entre os trabalhadores podia ser desenvolvida.
Além de desvalorizadas e da concorrência entre os operários estimulada pelo emprego de
mão-de-obra feminina e infantil, são freqüentes na imprensa operária anarquista as denúncias
de maus tratos e abusos sexuais contra as mulheres nas fábricas de São Paulo. Como exemplo
podemos citar o artigo de “A Plebe” intitulado “Violências e Torpezas na Fábrica de Tecidos
Labor”:
Segundo nos consta, o mestre desta fábrica, um tal de Baptista, tem tido em relação
as operarias que ali trabalham uma conduta bastante suspeita. Afirma-se que este
individuo persegue com propostas indecorosas muitas dessas operarias, injuriando e
martyrisando de mil maneiras aquellas que têm dignidade e a coragem de repelir tão
infame sujeito.
Diz-se ainda que conta com o apoio de outro typo de não melhores virtudes, um tal
Piati, gerente do estabelecimento, o mesmo que, não ha muito veiu foragido de
Sorocaba, onde exercia iguaes funções na fábrica de Votorantim. (Violências e
Torpezas na Fábrica de Tecidos Labor. A Plebe, São Paulo, 25 de agosto de 1917,
anno I, número II).
A burguesia industrial nacional em formação e expansão no período aqui abordado
percebeu isso, contrariando aqueles historiadores que afirmavam que essa não era astuta e que
o capitalismo aqui foi tardio. É evidente quando observamos os números de trabalhadores por
ramos industriais e o número de mulheres que dele faziam parte, que elas foram empregadas
massiçamente tendo-se em mente essa concorrência e a pressão nos salários. Vale lembrar
ainda que o setor industrial mais forte, o setor têxtil, empregava, na década de vinte do
século XX, um terço de mulheres entre os operários empregados e as crianças correspondiam
também à grande parcela dentre os operários empregados.
[...] Aos imigrantes, em boa parte coligados em comunidades de patrícios, nos casos
ainda mais felizes, em Associações de Ajuda Mútua, Uniões Operárias, Sindicatos
ou círculos paroquiais, a situação nem por isso era promissora. Defrontados com
jornadas de dez, quatorze ou dezesseis horas de trabalho, preferencialmente
propostos a mulheres e crianças, salários congelados, custo de vida e aluguéis em
escalada permanente e completo desamparo legal, sua vida na cidade pouco diferia
das fazendas de que haviam se esquivado. (SEVCENKO, 1992, p. 39, grifos
nossos).
A tabela abaixo deixa clara a predominância do emprego de mulheres entre os
operários em vários ramos industriais, assim como predominância de seu emprego no setor
têxtil, durante o ano de 1919.
TABELA 3 - Distribuição de Operários pelos Principais Ramos Industriais, segundo o
Sexo e a Idade 1919.
Ramos
Distribuição
Global %
Maiores de 14 anos %
Homens/Mulheres/Total
Menores de 14 anos %
Homens/Mulheres/Total
Total Geral %
Homens/Mulheres
Têxtil
45,7
44,7 55,3 92,1
45,6 54,4 7,9
44,8 55,2
Alimentação
14,7
82,9 17,1 92,0
69,9 30,1 8,0
81,9 18,1
Vestuário e
Toucador
13,8
62,6 37,4 90,5
56,0 44,0 9,5
61,9 38,1
Cerâmica
12,3
88,6 11,4 94,7
81,2 18,8 5,3
88,2 11,8
Metalurgia
7,3
94,0 6,0 92,3
92,3 7,7 7,7
93,9 6,1
Químico/Produtos
análogos
6,2
71,0 29,0 97,4
66,4 33,6 2,6
70,8 29,2
(FAUSTO, 1976, p. 112).
O jornal anarquista “A Terra Livre” em um artigo intitulado “As crianças na
indústria”, do ano de 1907 -nos uma clara visão das condições de trabalho e da gestão
taylorista nas fábricas têxteis de São Paulo: trabalhavam homens, mas principalmente
mulheres e crianças; o salário, no caso das tecedeiras, era pago baseado em quotas de acordo
com a quantidade de teares que operassem, aliás, nesse sentido é clara a diferença entre o
salário dos homens e das mulheres; havia divisão do trabalho; as jornadas chegavam a
dezesseis horas de trabalho por dia e os encarregados e contramestres (gestores) responsáveis
por vigiar a produção agiam com violência com relação àqueles que dormissem durante o
período de trabalho. No entanto, as fábricas eram aqui, ao contrário do que pregava a gestão
científica da produção, ambientes com pouca luz, sujos e barulhentos.
Transcrevemos estas impressionantes informações de “La Battaglia”:
Onde o suplício dos operários crianças atingiu o cúmulo inquisitorial é nas fábricas
de tecidos de São Paulo e entre estas onde se faz maior devastação é na Fiação e
Tecelagem Maria Angela; dos Srs. Matarazzo & C. Neste ergastulo os teares e
máquinas nunca param nem de noite nem de dia.
Eis as condições de trabalho nesta penitenciária:
Os homens encarregados de várias máquinas (por exemplo, os cardadores)
trabalham 16 horas por dia das 5 da manhã ás 10 da noite, com um descanso de
uma hora para a refeição e ganham de 3$500 a 4$000; as mulheres ocupadas na
limpeza do algodão, no enfusamento, encolamento dos urdumes, trabalham segundo
os ramos, 14, 12 e 11 horas por dia com salários que vão de 2$ a 2$500. As
tecedeiras ganham 2$000; com dois teares, 3$500; com três, 5$000; com seis ... mas
estas últimas tiveram que desistir esmagadas pela fadiga.
As crianças das lançadeiras, de ambos os sexos, de 8 a 12 annos, ganham por 12
horas de trabalho, de 800 a 1$200 por dia.
Mas agora os dignos capitalistas, tendo estendido o raio dos seus negocios, fazem
trabalhar as suas fábricas de noite e de dia, e as crianças trabalham das 5 da tarde ás
6 da manhã com 1 hora de intervalo, sob a vigilância dos guardas.
A certa altura da noite quasi todas estas crianças de 8 a 12 annos, meio mortas de
fadiga e de fome, caem a dormir: então, o encarregado acorda-as e manda-as
retornar ao trabalho. Mas os pobres pequenos tornam a cair; então o contramestre
desperta-os á bofetada e elles, soluçando, retornam ao trabalho.
A refeição nocturna destas crianças compõi-se de pão e banana.
Os contramestres na fábrica têm carta branca, podem bater nos seus subordinados ou
despedi-los. uns 15 dias (o artigo foi publicado no dia 10 do corrente) um destes
brutos, cujo nome estamos prontos a dar, sovou ferozmente uma menina, e foi pelos
pais desta chamado á polícia, onde o Sr. delegado lhe fez saber que se a menina
morresse, era responsável por isso, mas se não morresse, não era nada. Alguns dias
depois, não restabelecida de todo ainda, esta desgraçada voltou ao trabalho e foi
despedida pelo algoz. (As crianças na indústria. A Terra Livre, São Paulo, 28 de
fevereiro de 1907, anno II, número 27).
A industrialização crescente
48
de São Paulo durante a Primeira República, período de
intensas transformações econômicas e sociais como é possível perceber, provocou um
aumento da população e da importância da cidade em termos políticos, econômicos e sócio-
culturais. Como foi dito, os imigrantes fugidos do interior ou aqueles que vieram
diretamente para trabalhar em áreas não agrícolas foram responsáveis por essa expansão
urbano-industrial. Foi durante esse período que São Paulo mudou, em todos os sentidos, que
deixou de ser uma cidade de passagem, de nômades e mascates como colocava Gilberto Freire
(1985), e passou a ser um local onde fixavam residência os ricos fazendeiros e industriais,
assim como os operários, que passou a ser um espaço de sociabilização e de trocas sócio-
culturais, um espaço também de conflitos entre classes sociais. Foi, sem dúvida, nesse período
que começou a se tornar uma metrópole.
Segundo Edgard Carone (2001) até o fim do período colonial a cidade de São Paulo
estava estagnada em termos de população. a partir da primeira metade do século XIX que
começou a crescer, o que se de maneira acentuada a partir de 1850, momento em que o
café passou a ocupar maior importância nas receitas exportadoras do país. A população que
em 1827 era de 25.471 habitantes, no ano de 1850 passa a ser de mais ou menos 30.000
habitantes, número que só aumenta até 1930 quando já era de 887.810 habitantes
49
. No
entanto, essa população estava longe de ser homogênea e de assim se distribuir pelos espaços
urbanos. Além dos operários, em sua maioria imigrantes, a população era composta por
trabalhadores nacionais, empresários e uma classe média, que para Boris Fausto (1976) era
composta por aqueles que não faziam trabalhos manuais, como médicos, professores,
comerciantes, funcionários públicos, funcionários de bancos e advogados, sem deixar de
colocar que alguns imigrantes, embora em menor número, também trabalhavam como
mascates, comerciantes, prestadores de serviços. Essa classe média fixava residência em
bairros como a Vila Mariana, a Consolação e a Liberdade, enquanto que os empresários
construíam suas casas nos bairros de Higienópolis, Cerqueira Cesar e os operários moravam
em bairros próximos às fábricas e às várzeas como o Brás, Bexiga, Lapa, Penha, Mooca,
geralmente em vilas operárias construídas pelos próprios empresários, como retomaremos
mais adiante.
48
Deve-se ter em mente que nem sempre as indústrias cresceram em ritmo acelerado durante todo o período aqui
estudado. Havia momentos de crise, como no início da Primeira Guerra Mundial, e de ascensão, como em 1910 e
1916.
49
Segundo Edgard Carone (2001) os sensos populacionais indicavam em 1890, 240.000 habitantes; em 1910,
375.439; e em 1920, 587.072 habitantes.
Dessa forma a cidade configura-se como um local propício para a formação de um
mercado de trabalho livre e assalariado, assim como um espaço de mercado de consumo das
próprias indústrias e do comércio local. Torna-se propícia à instalação de mais fábricas, para
além daquelas que favoreceram seu crescimento inicial, justamente por esses dois fatores:
mão-de-obra e mercado consumidor, fatores que, ao mesmo tempo, tornaram possível o
crescimento cada vez mais acelerado da cidade. Em São Paulo a industrialização, cujo
desenvolvimento se deveu aos investimentos iniciais dos cafeicultores para beneficiamento do
café, favoreceu o crescimento da cidade da mesma forma que no interior do estado o capital
proveniente do café favoreceu diretamente o crescimento de cidades, na época menos
industrializadas do que São Paulo que concentrava a atividade industrial, como Ribeirão Preto
e Campinas. Produção cafeeira, industrialização e urbanização estavam intimamente ligadas
apesar de uma atividade não determinar totalmente a outra.
[...] Pode-se dizer que a cidade, ao concentrar certas atividades econômicas, acaba
por criar uma base de serviços necessários à circulação e distribuição das
mercadorias industriais, bem como do capital (dinheiro, matérias-primas e
máquinas) a ser investido na produção fabril; assim, todo o sistema comercial e
financeiro (armazéns, lojas, bancos, créditos, etc) e também sistema viário e de
transportes, os serviços de energia elétrica etc formam um conjunto de atividades
indispensáveis à indústria. (HARDMAN; LEONARDI, 1982, p. 166).
A urbanização vem carregada de idéias modernizadoras
50
bem aos moldes parisienses.
Os modelos arquitetônicos e urbanísticos, por exemplo, se inspiravam em modelos
haussmanianos
51
. A moda começava a ocupar um papel cada vez maior na vida dos habitantes
da cidade. O Estado - que pode ser entendido como um poder associado e a serviço da
burguesia ou mesmo como formado por ela própria, como colocavam os anarquistas - nesse
sentido, começava a intervir sobre os campos da saúde, da energia, da segurança pública e
criar redes de água e esgoto, ou seja, propunha uma série de medidas higiênicas, também aos
moldes propostos por Haussmann, que visavam o controle da população em constante
crescimento durante o período.
Implantava-se desde os fins do século XIX seguindo esses preceitos modernizadores,
aquilo que se colocavam como melhorias urbanas: em 1872 foram implantadas em algumas
áreas redes de iluminação pública; na mesma década, no ano de 1877, uma nova penitenciária
50
Em artigo publicado na Revista Brasileira de História (julho de 2007) José Evaldo Doin et al. coloca que o
conceito de modernizada muda entre os vários autores do tema. “Georges Balandier defende a idéia de que a
modernidade pode ser qualificada como tradição do novo”, como o movimento de destruição do antigo. Já David
Harvey “salienta que associada ao universalismo, o internacionalismo e o globalismo, na verdade a modernidade
nunca se desprendeu totalmente do paroquialismo etnocêntrico” (DOIN et. al, 2007, p. 110).
51
Eugène Haussmann (1809 1891) projetou reformas para a capital francesa durante o século XIX que
visavam a demolição de um traçado arquitetônico antigo e a construção de um traçado urbano que permitisse
maior controle social.
foi fundada, assim como um matadouro e um mercado municipais (1887 e 1890); foram
ampliados os serviços da Santa Casa da Misericórdia e o asilo de Mendicidade foi criado em
1885. Já existiam na cidade desde 1872 bondes de tração animal, que em 1900 foram
substituídos pelos bondes elétricos da companhia canadense Light and Power - que possuía
um contrato de quarenta anos com a prefeitura de São Paulo e era responsável por fazer o
transporte principalmente de operários de seus bairros para a área central da cidade - e desde
1873 paralelepípedo e granito foram utilizados no calçamento de ruas; em 1893 o governo
criou a Repartição dos Serviços Técnicos de Água e Esgotos, que foi responsável por
canalizar o rio do Ipiranga, captar as águas do Guapira e do Campo Redondo e terminar a
instalação do serviço de esgoto nos bairros da Santa Cecília e Campos Elíseos, assim como
por instalar rede esgoto na Luz, no Bom Retiro, na Liberdade e na Bela Vista. Além disso, o
Estado passou a investir em ensino profissionalizante, como por exemplo, no Instituto de
Educandos Artífices” fundado em 1874.
Para além dessas “melhorias” urbanas - as quais nem toda a população tinha acesso,
que os bairros que primeiro recebiam iluminação, redes de esgoto e de água eram os bairros
onde viviam os ricos e a classe média como é possível perceber pelo que foi citado
anteriormente - foram promovidas inúmeras iniciativas de prevenção de doenças, o que não
estava distante das idéias de controle social citadas acima. A própria divisão de bairros,
colocando-se os operários para os bairros de várzea (como Brás, Mooca, etc), era segundo
Maria Auxiladora Guzzo de Decca (1987) uma maneira de higienizar a cidade em
crescimento, de acordo com os padrões modernizadores. Foi com esse intuito, ou pelo menos
com essa justificativa, que foram criados prédios com laboratórios próprios destinados a
estudar e combater doenças e epidemias - como o Instituto Vacinogênico, Bacteriológico e de
Análise Clínicas, bem como os hospitais de isolamento e que se realizaram constantes
campanhas de combate à febre amarela, malária, febres tifóides, lera, difteria e tuberculose.
Segundo José Evaldo Doin et al. (2007) essas idéias francesas de controle social através de
medidas como essas aqui citadas ressoaram sobre várias cidades do estado de São Paulo,
atuando na modificação de hábitos e costumes:
[...] no sentido dado por Norbert Elias, ou seja, segundo um constante moldar e
disciplinar de hábitos e comportamentos, que se estendem desde as pequenas regras
de atitudes e etiquetas aa normatização e coerção que garantem o controle do
Estado e do poder público municipal. (DOIN et. al., 2007, p. 101).
Nicolau Sevcenko (1992) afirma que a urbanização de São Paulo trouxe consigo
aceleradas mudanças de vida, à medida que se pregava uma ruptura com tradições e que a
cultura começava a ser massificada e que a cidade começava a se transformar em um “grande
palco”. O mundo moderno vislumbrado na época era imprevisível, instável, cheio de
possibilidades opostas e contradições e o planejamento urbano, sanitário, etc, a massificação
cultural, o “corporativismo autoritário” eram colocados no sentido de disciplinar, de controlar
os novos moradores, que eram colonizados em seus gestos e sentimentos, segundo Maria
Odila (1992), padronizá-los, o que acarretava na perda da própria identidade individual e o
mais característico traço desse mundo moderno: o anonimato. Processo de massificação
cultural esse, que fica ainda mais evidente na década de 20 do século XX, momento em que a
cidade começa a se tornar uma metrópole. A modernização acelerada, vista como processo de
padronização dos indivíduos, e a “invasão do imaginário social pelas novas tecnologias”
(SEVCENKO, 1992, p. 18) da cidade causa uma espécie de estranhamento àqueles que
viviam na cidade.
De tal modo o estranhamento se impunha e era difuso, que envolvia a própria
identidade da cidade. Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de
brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem
americana, nem européia, nem nativa; nem industrial, apesar do volume crescente
das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era
tropical, nem subtropical; não era ainda moderna, mas não tinha passado. Essa
cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois
da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-
lo como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados. (SEVCENKO, 1992,
p. 31).
Em uma cidade que crescia de maneira descontrolada, que causava um estranhamento
em seus moradores, que recebia pessoas das mais variadas partes do mundo, com culturas e
linguagens tão diferentes, assim como ideais tão diversos haja vista que havia anarquistas,
mutualistas e comunistas entre os imigrantes e em que indivíduos ocupavam maior espaço
social (como as mulheres que agora ganhavam as ruas seja para trabalhar ou fazer compras), a
sociabilidade poderia significar um problema à ordem social vigente. Era nesse sentido que se
colocava o controle social. Obviamente tal controle incidia, sempre com a justificativa de
civilizar
52
os não civilizados, sobre todos os indivíduos da cidade, mas principalmente sobre
esses “novos” sujeitos sociais: como operários anarquistas e mulheres. Segundo Alexandre
Samis (2006), os anarquistas foram criminalizados pela polícia, enquanto instrumento do
Estado e da elite dominante da época, que passava a exercer cada vez maior controle sobre a
vida dos membros das classes mais baixas e se tornava cada vez mais um instrumento para
reprimir o anarquismo. Os agentes policiais que ampliassem as estatísticas com relação às
52
Segundo Doin et. al. o conceito de civilização aqui não era tomado como avaliar os méritos ou não da
civilização, mas ela mesma se tornava um critério. Como afirmava Jean Starobinski: “Ela se torna (o critério por
excelência) motivo de exaltação para todos aqueles que respondem ao seu apelo; ou, inversamente, fundamenta
uma condenação; tudo que não é civilizado, tudo que lhe resiste, tudo que a ameaça, fará figura de monstro ou de
mal absoluto”. (DOIN et. al., 2007, p. 94 e 95).
atividades libertárias ganhavam maior prestígio perante os oficiais das instâncias maiores
como sendo os maiores combatentes dos “inimigos do povo”. Assim o anarquismo foi cada
vez mais criminalizado pela polícia e por positivistas e médicos, que apelavam para a moral e
para as teorias biológicas (como as de Cesar Lombroso), que afirmavam que os anarquistas
tinham características genéticas de criminosos. Essa criminalização acabou por gerar
discriminações entre a população comum da época.
As mulheres definitivamente ganhavam o espaço público. Elas estavam por toda
parte, a qualquer hora. Tecelãs, costureiras e aprendizes, cedo pela madrugada, em
busca das fábricas e oficinas de modas. Balconistas, atendentes e serviçais do
comércio logo depois. No início da manhã, colegiais, aias e professoras se dirigiam
às escolas e conservatórios. Daí até ao meio-dia, o agito indiscriminado das compras
trazia mulheres de todas as classes, etnias e idades para o centro. As operárias saíam
às ruas para o curto repouso das doze horas, enquanto as senhoras e moças das casas
conspícuas se recolhiam para o almoço moroso e a sesta. A partir das dezesseis
horas, se estabelecia o “footing” no circuito das lojas finais do Triângulo, cujo ápice
era o chá das cinco nos salões do Mappin Store e o refluxo, o “rush” das seis. Nesse
horário, os homens deixavam os escritórios e bancos; as moças de família
retornavam aos lares, dando início à “toilette” dos eventos noturnos; as operárias
regressavam a ou nos bondes em legiões ruidosas. No ínterim as moças-sem-
família afluíam ao Triângulo, em manobras sedutoras pelos bares e cervejarias
combinando com os cavalheiros os encontros tardios que eles teriam, depois de
deixarem em casa as senhoras e senhoritas que levaram ao teatro, restaurantes e
cinemas. (SEVCENKO, 1992, p. 50 e 51).
Para Maria Odila (1984), até o século XIX, antes mesmo da expansão vertiginosa da
produção cafeeira no Oeste Paulista, as mulheres, principalmente pobres e sós, ocupavam
grande espaço na vida da cidade de São Paulo sua presença era maior do que a dos homens -
que se constituía como um espaço de sobrevivência para elas, que não tinham suas vidas
pautadas em eventos políticos e reformas institucionais do período, mas na carestia da vida e
nas crises de abastecimento que ameaçavam suas existências. As ruas estavam cheias de
quitandeiras, negras com seus tabuleiros, beatas, brancas pobres, escravas e forras. Tal
sobrevivência era garantida pelo comércio ambulante de gêneros alimentícios como hortaliças
e toucinho; pelos trabalhos de lavadeiras, cozinheiras de forasteiros e estudantes para os quais
se ofereciam; e por pequenos “expedientes de ocasião” (ODILA, 1984, p. 15), como vender
cera, enfeitar as ruas para uma procissão ou fazer sabão. Ou seja, nesse momento pertenciam
a espaços sociais informais, improvisados de acordo com as necessidades que a vida lhes
impunha. Os padrões das classes sociais dominantes, como a estrutura familiar, e os papéis
sociais atribuídos a homens e mulheres não podiam ser mantidos pelas classes desfavorecidas,
as moças pobres, por exemplo, não tinham dotes, mantinham então uniões “consensuais
sucessivas” (ODILA, 1984, p. 20) e deveriam suprir suas necessidades econômicas através
desse trabalho informal para qual a cidade era ambiente propício.
[...] A cidade, comentava Velloso, em 1882, está sobrecarregada de mulheres
pobres, morando em casas pequenas e quartos de aluguel, construções pequenas de
taipa, muito baixas, de telhado desabado, chão de terra socada, nos trechos mais
pobres de ruas como São Bento, Ladeira de São Francisco, do Rosário, de Boa
Vista. Nesta última rua, paralela com a do Rosário, as casas estavam construídas tão
abaixo do nível da rua que, por cima delas se avistava de uma rua para a outra, as
imagens conduzidas em charolas, quando passava a procissão de cinzas. (ODILA,
1984, p. 14 e 15).
Foi, porém, com a industrialização e urbanização crescentes dos primórdios da
República Velha que as mulheres passaram a ocupar um espaço diferente na cidade:
começaram a serem empregadas também em empregos formais, como nas fábricas sem
deixar de colocar que muitas delas também trabalhavam como domésticas em casas da
burguesia nascente e a participar de espaços de sociabilidade e cultura (que aumentavam e
se diversificavam), sejam burguesas ou da classe média incipiente indo às compras, clubes,
cafés ou confeitarias, ou operárias das fábricas, empregadas domésticas ou do comércio e
costureiras de pequenas oficinas, freqüentando festas e piqueniques operários, jogos de
futebol, salões de estudo anarquistas, parques públicos, ou teatros operários. A década de 20
do século XX, no entanto, foi o período em que essa presença feminina estava em maior
evidência: os hábitos de consumo, a esse momento, tinham se intensificado; a propaganda,
promovida pelo comércio em intenso crescimento nessa década, passou a apelar cada vez
mais às mulheres, funcionando também como controle social - uma maneira de encaixá-las
em padrões de conduta e de consumo de acordo com ideais civilizadores e modernizadores
das elites da época. Segundo Sueann Caufield (2000) nesse período da história a preocupação
de modernizar, higienizar e civilizar incide de maneira intensa sobre a família - o cerne da
sociedade burguesa em formação na qual a mulher ocupa um papel central. A preocupação
em defender a honra e definir a mulher honesta e a desonesta estavam presentes na política,
no direito e na medicina do período e, nesse sentido, a década de 20 do século XX constitui
seu auge. Os meios de comunicação, de trabalho e lazer criados ou em plena expansão nessa
década procuravam trazer essas definições ao comportamento das mulheres.
Cada vez mais crescia a preocupação com a beleza, com a imagem e com a moda. As
mulheres, além de donas-de-casa prestativas (a casa, ao marido e aos filhos), deveriam ser
mulheres modernas, com ótima aparência, vestindo-se de maneira elegante, e tendo hábitos de
consumo. Os tecidos e cortes de roupas confeccionadas em oficinas de famosas madames,
assim como a maquiagem e os acessórios vendidos por lojas como o Mappin Store deveriam
ser valorizados por essas mulheres modernas, porém, sem que cometessem exageros ou que
tivessem a aparência que pudesse ser confundida com a de uma prostituta (mulher desonesta).
A estética passava assim a ser valorizada como uma maneira de criar padrões de beleza e
comportamento massificados, estendidos a todas mulheres, embora muitas delas como as
operárias anarquistas, se negassem a partilhar deles. Muitas revistas destinadas às mulheres
circulavam na cidade e no interior durante essa década, como é o exemplo da revista “A
Cigarra” (publicada de 1914 a 1954). Assim como a imprensa paulista da época, ela era uma
revista dinâmica segundo Marcia Padilha (2001); comportava-se como uma guardiã dos
valores da elite paulista, voltando-se para assuntos do cotidiano e da sociabilidade da mesma
elite sem se voltar para o debate intelectualizado sobre literatura, nacionalidade e estética.
Seus artigos privilegiavam assuntos como beleza, casamento, moda, educação e voto
feminino. Promovia concursos como o da mulher mais bonita, da mulher mais culta, do
melhor partido da cidade, do homem mais feio, da loura e da morena mais bonitas, etc, todos
baseados no ideal da mulher moderna ou da “nova mulher” (PADILHA, 2001, p. 36); em
valores burgueses como o culto à beleza física, o status social e na pregação de um feminismo
liberal, do qual a maior representante era Bertha Lutz (1894 1976)
53
, e segundo o qual a
mulher deveria lutar por maior inserção no mercado de trabalho e pelo direito ao voto, que
ela própria seria o alicerce da sociedade burguesa, a responsável por educar os cidadãos do
futuro (os filhos) e reeducar o do presente (marido), por manter o lar o principal alicerce da
sociedade. Ou seja, a mulher moderna deveria lutar por mais espaço na sociedade, sem querer
modificá-la profundamente; deveria votar, mas sem se esquecer de que seu principal papel,
que, segundo a sociedade burguesa em formação, era ser mãe, educadora e dedicada ao lar, ao
marido, aos filhos e a sua aparência. Algumas das características e dos valores defendidos por
essa revista ficavam bem claras no artigo sobre o concurso para a moça mais culta da cidade.
A mulher valorizada era aquela que tinha acesso ao conhecimento de línguas, de ciências e de
artes, mas que não deixava de se preocupar com o status, com a reputação.
As candidatas deste concurso são as moças mais brilhantes da nossa sociedade.
Entre essas apontam-se as que mais sabem fazer pintura á aquarela ou a oleo, as que
recitam primorosamente, as que tocam magnificamente piano ou violino, as que tem
gosto ou talento para o canto, as que dançam com perfeição, as que falam com
precisão linguas estrangeiras, as que se exprimem em portuguez com correcção e
elegancia e as que possuem variados conhecimentos de sciencia, de literatura e de
arte. São estas as nossas candidatas. Não é mister, claro, está, que ellas possuam
todos estes talentos e dotes, mas ao menos alguns, que tenham conquistado, em sua
sociedade e em seu meio, uma certa reputação. (A Cigarra, São Paulo, 1 de outubro
de 1923, número 193, apud: PADILHA, 2001, p. 38 e 39, grifos nossos).
Não devemos, no entanto acreditar que todas as mulheres da cidade lessem revistas
como essa e muito menos que todas adotassem esses valores em uma cidade cuja população
se constituiu de forma tão heterogênea tanto no que se refere às nacionalidades quanto às
53
Bertha Lutz fundou, em 1922, a Federação Brasileira para o Progresso Feminino, que pregava principalmente
o direito pelo voto da mulher.
classes sociais. As mulheres pobres apesar de algumas escreverem para seção de
Colaboradoras -, por exemplo, tinham grande parte de seu dia consumido pelo trabalho e,
justamente por isso, não podiam se dedicar como as mulheres da burguesia ou da classe média
totalmente às artes e às ciências, também recebiam salários que mal pagavam os gêneros
alimentícios, que esses tinham seu preço aumentado freqüentemente, como veremos mais
adiante, consumiam muito menos do que as mulheres das classes mais altas. Nem todas as
mulheres aceitaram esses valores como valores universais, organizaram suas vidas, formas de
sociabilidade e atividades culturais de acordo consigo mesmas, com seus ideais e objetivos.
Não aceitaram todas as tendências modernizadoras e civilizadoras impostas. Basta, para
entendermos isso, olharmos para a imprensa anarquista da época. Jornais como “A Terra
Livre” (1905 1910) ou “A Plebe” (1917 1957) trazem artigos de uma infinidade de
mulheres que escreviam para eles. Apesar de pouca informação de suas vidas para além
daquilo que escreviam nos jornais, é possível notar que se colocavam exatamente em
oposição a esses padrões de conduta. A mulher valorizada por esses jornais era a mulher forte,
que luta, através da livre união e da livre solidariedade com suas companheiras e
companheiros, por melhorias chamadas, por elas próprias e por seus companheiros, também
anarquistas, do sexo masculino, momentâneas (salários maiores e iguais aos dos homens,
jornadas de trabalho menores) e pela destruição da sociedade capitalista. Essas mulheres
organizavam sua vida cultural e social de maneira diferente das leitoras de “A Cigarra”, em
seus teatros representavam peças sobre o amor livre e sobre a sociedade anarquista;
criticavam em seus jornais a luta somente pelo sufrágio universal; participavam e
organizavam festas e piqueniques operários; pregavam que a libertação da mulher era uma
luta pela libertação de toda humanidade através da destruição total da sociedade capitalista e
da construção de outra sociedade; atuavam em grande número nas greves. Izabel Cerruti, por
exemplo, escreve um artigo intitulado “Fé, esperança e caridade” para A Plebe” de 25 de
agosto de 1917 em que questiona a religião e a caridade, um valor amplamente defendido
pelas feministas liberais, defendendo a destruição desses valores através da construção da
anarquia. Estão presentes em seu relato a crença na evolução e no progresso, como já falamos,
comum à maioria dos anarquistas.
Oh! Santas virtudes fé, esperança, caridade! sem vós o que seria dos filhos de
Deus?!... O pobre encontra nellas lenitivo para as suas dores e misérias... Ao rico
mais ditoso basta a caridade para galgar os píncaros da eterna mansão.
Naturalmente, assim será enquanto a classe productora das immensas riquezas que
nos rodeiam se prestar a desempenhar o deprimente papel que lhes destinaram de
mendiga e expoliada na tragi-comedia da existencia actual e cujos principaes
actores são: a religião, o capitalismo e o militarismo.
Mas, quando essa massa soffredora, que é a maior fracção da humanidade, se
compenetrar do seu valor; e na consciencia se fizer ouvir a voz, que lhe indica os
seus direitos, os papeis serão invertidos. E se voltará o feitiço.
Esse momento chegará não o duvideis, oh deshumanos potentados! E será aquelle
em que os elementos da classe baixa, como a denominaes, despertar da sua apathia
de seculos. E o seu termo, que por signal está longe, se verificará por meio da
reacção que sem duvida há de surgir produzida pelo avanço da sciencia e pela
evolução da humanidade.
A evolução determina no homem maior cohesão da sua força moral e intelectual,
permitindo-lhe ver as coisas pelo verdadeiro prisma, baseado na dignidade de
caracter e na justiça da acção. O que significa: um homem não deve dobrar a espinha
perante o outro homem. Todos têm direitos a vida, ao bem-estar, desfructando
igualmente os beneficios de que a grande mãe a Natureza é de uma
prodigalidade immensa.
A sciencia no seu incessante progresso desenvolvendo a indústria, determina a
luta economica entre os povos. E traz como consequencia a miseria e a fome, e será
portanto o golpe de graça que arrancará as massas do lethargo maldito. Com seu
despertar desmorona-se-ão os ultimos sustentáculos da velha sociedade.
E então, raiando a alvorada da sociedade nova, teremos assignalado no calendário a
data solenne que a humanidade celebrará, unindo todos os homens num amplexo de
verdadeiro amor, na mais perfeita harmonia e no meio da maior abundância!
E não haverá mais fé, nem caridade, mas unicamente esperança; esperança em
melhores dias, com a continua investigação da sciencia, e o aperfeiçoamento
progressivo dos homens e das coisas. Para o que, a humanidade, já sem freio algum,
se entregará com verdadeiro ardor a tarefa de contribuir para o bem commum,
tornando em realidade o paraízo biblico.
Sendo a sciencia o principal agente da felicidade humana, ella expandir-se-á, então,
cada vez mais pelo universo, contribuindo para o bem-estar do homem com a sua
util e benfazeja coadjuvação. (Fé, esperança e caridade. IZABEL CERRUTI. A
Plebe, São Paulo, 25 de agosto de 1917, anno I, número II).
Os imigrantes estrangeiros, que em 1920 compunham 35% da população da cidade de
São Paulo, constituíam a parte essencial da mão-de-obra na lavoura cafeeira e nas indústrias,
como foi dito. Tais imigrantes, principalmente os italianos, traziam da Europa, segundo
Nildo Viana (2006), forte cultura operária e idéias políticas como o anarquismo. Em vários
países da Europa, como pudemos perceber ao observar as seções da Associação Internacional
dos Trabalhadores, as idéias anarquistas eram muitos fortes no século XIX e foram trazidas
para a cidade aqui trabalhada por esses imigrantes. Logo, a condição fundamental para o
surgimento do anarquismo e sua hegemonia no movimento operário paulistano da República
Velha, principalmente até 1922 ano de fundação do Partido Comunista -, foi a formação da
classe operária por imigrantes estrangeiros de acordo com o processo de substituição da mão-
de-obra e emprego nas indústrias como vimos acima, e assim “se constitui a possibilidade
histórica do surgimento do anarquismo brasileiro” (VIANA, 2006, p. 23). Porém, parece ter
sido esse um dos “elementos limitadores” (CHALHOUB, 2001, p. 59) do movimento
operário brasileiro como um todo no período. Para Neno Vasco (1984), anarquista militante
em São Paulo não havia no movimento operário brasileiro nenhuma homogeneidade, mas
desunião e rivalidades.
Os conflitos entre brasileiros e imigrantes, e entre os próprios grupos etnicamente
divididos, foram uma das principais limitações do movimento operário brasileiro.
Fizeram abortar muitas tentativas de organização, e ocasionaram o declínio de
muitos sindicatos. [...]
As comunidades de imigrantes dividiam-se entre si. O regionalismo que afligiu a
Itália estendeu-se aos trabalhadores italianos em São Paulo causando retardamento
de sua organização. Mais importante ainda foram as tensões étnicas entre grupos
estrangeiros, particularmente e entre italianos e portugueses, que em conjunto
constituíam dois terços da imigração durante o período em discussão. (MARAM,
1979, p. 30 e 31, grifos nossos).
O preconceito e a xenofobia no período eram traços marcantes na sociedade. Segundo
Boris Fausto (1976) os imigrantes eram impedidos de participar da política ao mesmo tempo
em não havia motivos para que políticos e fazendeiros influentes incentivassem atitudes
xenófobas, que a mão-de-obra imigrante era considerada “industriosa e dócil” (FAUSTO,
1976, p. 33). O preconceito contra os italianos era evidente em conflitos como o ocorrido no
ano de 1896. O período que vai do ano de 1892 a 1896 havia sido marcado por manifestações
de brasileiros contra italianos (“caça aos italianos”), o que fez com que os governos de Brasil
e Itália assinassem um Protocolo para indenizar os italianos que sofressem algo por aqui. No
entanto essa assinatura deu origem a inúmeros choques durante o mês de agosto do mesmo
ano: foram quatro dias (22 a 25 de agosto) de lutas no centro da cidade e nos bairros italianos
do Brás e do Bom Retiro em que houve mortes e muitas pessoas acabaram ficando feridas; o
posto policial da Santa Ifigênia foi atacado por italianos e brasileiros depredaram a sede do
jornal italiano “Fanfulha” e arrancaram o nome da Rua dos Italianos no Bom Retiro. Tal
conflito só chegou ao fim com a intervenção da cavalaria da polícia.
Conflitos como esse fizeram com que os imigrantes se organizassem em grupos com
bases étnicas. Nem todas as associações rejeitavam a idéia de organização com tais bases
como coloca Michel Hall (2004), nem mesmo organizações libertárias. Italianos, por
exemplo, desenvolveram formas culturais, como o teatro e ficção, assim como jornais em
língua italiana, o que fazia com que muitos dos trabalhadores nacionais não tivessem acesso a
essas leituras. O jornal anarquista “La Battaglia” é um claro exemplo: totalmente escrito em
língua italiana tinha alguns artigos traduzidos para o português em jornais como “A Plebe”
em 1917. Outro exemplo foi o sindicato dos pedreiros de São Paulo, que segundo Sheldon
Maram (1979), era de predominância italiana e teve dificuldades em manter em seus quadros
trabalhadores não-italianos porque todas as reuniões e a propaganda eram feitas na língua da
maioria dos associados. Ainda segundo o mesmo autor até 1917 os italianos manifestavam
preconceito com relação aos portugueses, colocando-os como furadores de greves sem
consciência social. Porém, apesar de os denominarem assim, muitos portugueses participaram
do movimento operário anarquista, tanto em organizações como na propaganda libertária,
como Neno Vasco.
Os italianos, principal contingente entre os imigrantes, sofriam na Itália (durante o
século XIX) com o alto desemprego e com a expansão do número de casos de doenças como
cólera, pelagra e malária, além dos altos impostos e da concentração fundiária. Essas
condições, somadas à propaganda da Sociedade Promotora da Imigração e ao incentivo de
proprietários rurais, bancos e companhias de navegação que prometiam um eldorado àqueles
que possuíam péssimas condições de vida na Europa, foram os principais responsáveis por
essa intensa imigração. Na Itália o movimento anarquista era forte, militantes muito
conhecidos como Malatesta e Carlo Cafiero faziam intensa propaganda anarquista e existiam
muitas organizações anárquicas. Assim como no Brasil, devido à influência da Revolução
Russa e a fundação do Partido Comunista (em 1922), foi na década de 20 do século XX
que o marxismo passou a ter um papel mais importante na Itália. Foi justamente por essa
hegemonia no movimento operário italiano que os imigrantes trouxeram consigo essas idéias.
Espanhóis também enormemente influenciados por idéias anárquicas, principalmente de
Bakunin, também foram responsáveis por trazer essas idéias para o movimento. Já o
anarquismo em Portugal, segundo João Freire em sua introdução ao livro de Neno Vasco
“Concepção Anarquista do Sindicalismo” (1984), teve sua predominância depois dos anos 10.
Vasco, anarquista sobre o qual falaremos adiante, foi intenso propagandista aqui no Brasil nas
primeiras décadas do culo XX, militando em seu país de origem somente a partir de 1911,
quando retorna. Para John W. F. Dulles (1977) o apoio que os governos europeus davam à
emigração se devia ao fato dessas idéias anárquicas serem tão fortes na Europa era uma
forma de “expulsar ameaças à ordem” de seus países.
Sob forte influência dos anarquistas citados anteriormente como Malatesta, Bakunin e
Kropotkin, mas sem esquecer Proudhon, o anarquismo brasileiro se desenvolveu. As
concepções mais presentes aqui foram o anarco-comunismo e o anarco-sindicalismo. Dava-se
importância principalmente à necessidade fundamental da organização anarquista (como
colocavam Bakunin, Malatesta e Kropotkin) e da luta através da ação direta (greves, greves
gerais, boicotes, sabotagem); da propaganda anarquista através de jornais e formas culturais; e
da educação libertária como meio de emancipação social e preparação moral para a sociedade
futura. Entretanto, as práticas aqui não foram meras cópias do que diziam esses teóricos do
anarquismo clássico, mas foram desenvolvidas formas de ação e métodos próprios. As
condições de trabalho e de vida dos trabalhadores dessa cidade eram péssimas como foi
colocado, no entanto, as mobilizações operárias não eram determinadas somente por elas, mas
eram sim baseadas nesses ideais, métodos e ações.
O movimento operário não contava somente com um tipo de organização. Todas eram
observadas como uma forma de se exercer a livre solidariedade entre os operários, assim
como de lutar por melhores condições. As primeiras organizações foram as sociedades de
apoio mútuo (que existiam em 1889) e as cooperativas de produção e consumo tais quais
como defendidas por Proudhon. Essas organizações conviviam também com associações
culturais e recreativas. Segundo Cláudio Batalha (2000), havia na cidade três tipos de
sociedades de resistência: as associações pluriprofissionais, que reuniam operários de
diferentes ramos e ofícios; as sociedades por ofício; e os sindicatos de indústria ou ramo de
atividade. Os sindicatos pluriprofissionais eram também denominados como ligas ou uniões.
Mas o que constituía a base dos sindicatos predominantes até os anos 10 eram os sindicatos
por ofício. o há na imprensa operária pesquisada dados sobre se entre os participantes das
associações e sindicatos havia trabalhadores nacionais.
Os anarquistas de São Paulo, influenciados pelas idéias de Malatesta, afirmavam que a
forma de organização por oficio, ramo ou categoria, era essencial para a luta dos operários,
que os interesses da mesma classe eram diversos. Porém, ao contrário desse mesmo libertário,
acreditavam que os anarquistas não deveriam ser somente participantes dos sindicatos, mas
que deveriam lutar pela construção de sindicatos libertários, baseados na livre organização na
livre cooperação e na afinidade de interesses segundo o ramo ou ofício a que pertenciam seus
participantes, como já foi sucintamente demonstrado no capítulo anterior. Os sindicatos
anarquistas não deveriam lutar somente pela luta por melhorias imediatas, mas pela
transformação social através da revolução, porém sem deixar de entender que as lutas por
melhorias também deveriam ser efetivas, pois proporcionavam aprendizado e exercício da
cooperação e solidariedade. Os jornais anarquistas como “A Terra Livre”, escrito em
português, anunciavam a fundação de inúmeros sindicatos e associações desse tipo, como por
exemplo, no artigo “Costureiras de Sacos” da seção “Movimento Operário” de julho de 1906.
Como podemos notar, essas organizações e suas movimentações eram fortemente reprimidas
pela polícia, mas nem por isso deixavam de se proliferar.
Os operarios que costuram sacos, quase todos do sexo feminino, depois do bello
exemplo dos de Santos e do Rio, resolveram também associar-se para a defesa dos
seus interesses e melhoramento das suas tristes condições.
Reuniram-se para tal fim num local particular da rua Oriente e falaram, ou ouviram
falar, sobre a necessidade da associação, um dos bem poucos meios de resistência
que restam aos explorados.
Finda a reunião, o companheiro João Castaldi, que tomara a palavra esperava
tranquilamente o bonde que o conduziria ao centro da cidade, quando foi preso e
conduzido á policia, e ali retido por algumas horas. (Costureiras de sacos. A Terra
Livre, São Paulo, 13 de julho de 1906, grifos nossos).
Esses sindicatos e associações anarquistas podiam ou não fazer parte de federações
locais ou estaduais. Havia também federações por ofício ou ramo como a Federação dos
Trabalhadores Gráficos do Brasil e a Federação Anarquista de São Paulo, fundada em 1905, o
que mostra clara influência das idéias de Bakunin sobre a organização federal, mas no
panorama de lutas contra a sociedade capitalista. Nenhum dos participantes desses sindicatos,
associações e federações era funcionário de tais; no máximo eram administrados por cinco
pessoas: um secretário, um tesoureiro, um revisor de contas e dois vogais (membros eleitos
em assembléia que tinham votos deliberativos). Os sindicatos anárquicos condenavam a ão
partidária, rejeitavam direções e intermediários no conflito entre trabalhadores e patrões,
assim como também se opunham à participação parlamentar.
O Primeiro Congresso Anarquista Brasileiro, ocorrido em abril de 1906 no Rio de
Janeiro, reunido frente à onda de greves que eclodiam no país, decidiu pela fundação de uma
Confederação Operária Brasileira
54
(a COB) da qual fariam parte variadas organizações e
operários, mesmo que de tendências diferentes, apesar das tendências anarquistas serem a
maioria. Isso mostra claramente a tentativa de reunir as organizações em prol a movimentos e
reivindicações comuns como a defesa da jornada de oito horas; a criação de um jornal para a
divulgação e articulação do movimento; e a defesa do aumento de horas destinadas ao lazer.
Jornais como o citado “A Terra Livre” publicaram inúmeros artigos sobre o congresso,
remessas foram arrecadadas para mandar delegados. As decisões do congresso não eram
impostas, aceitavam as deliberações as associações que concordassem com as mesmas.
Vale à pena deixarmos claro aqui que o movimento operário de São Paulo não era
somente anarquista. Socialismo Reformista e Trabalhismo eram também correntes presentes
pelo menos até a década de 20. Mas sem dúvida alguma o anarquismo foi hegemônico entre
essas três correntes tanto no Brasil quanto nos outros países da América Latina.
54
A COB organiza em 1913 o Segundo Congresso Anarquista Brasileiro e, em 1919, o Terceiro. Porém o
Congresso de 1906 era considerado por outras tendências do movimento operário o terceiro congresso operário
brasileiro, sendo o primeiro de 1892, o segundo de 1902 (ambos socialistas) e o quarto o congresso de 1912,
organizado pelo filho do presidente Hermes da Fonseca (1910 1914) Mário Hermes da Fonseca e pelo tenente
Palmiro Serra Pulquério no Rio de Janeiro - com apoio (inclusive financeiro) do governo com o objetivo de
formar um partido político. O tema abordado foi “Progresso Econômico e a elevação social, intelectual e moral
do proletariado” e se constituiu a Confederação Brasileira do Trabalho (CBT), que seria responsável por
defender as reivindicações operárias, como melhorias salariais, indenização por acidentes, jornadas de trabalho
menores, etc. Segundo Dulles (1977) o fato desse congresso ter sido considerado um congresso operário
provocou desespero nos anarquistas, já que o mesmo não discutiu doutrinas internacionalistas, antimilitaristas e
questões da propriedade privada.
Os métodos de ação direta privilegiados pelos anarquistas paulistanos eram sem
dúvida os boicotes e as greves. Freqüentemente, e ao longo de toda a República Velha, a
imprensa libertária propagava o boicote aos produtos de fábricas como a Antártica ou das
fábricas de propriedade dos Matarazzo, reconhecidas como “penitenciárias industriais”, por
suas altas jornadas de trabalho e baixíssimos salários. No ano de 1907, por exemplo, a
Federação Operária de São Paulo, organização anarquista composta de inúmeros sindicatos
livres como demonstrado acima, declarava boicote aos produtos “Matarazzo & Cia” com o
objetivo de alcançar a jornada de oito horas de trabalho. Tal forma de ação direta teve ecos
em outras cidades do Brasil: “A Terra Livre”, nesse momento publicada no Rio de Janeiro,
noticiava em um artigo intitulado “A jornada de Oito horas em São Paulo”:
A polícia assalta a federação operária prisões e torturas semeando o terror.
As autoridades burlam-se dos “habeas corpus” emanados dos juízes competentes
[...] o movimento mantem-se firme solidariedade da Liga Operária de Campinas
Em Santos, Ribeirão Preto, São Bernardo e São Roque Continua a “Boicottage”
aos produtos Matarazzo & C. Viva a jornada de oito horas!”(A jornada de Oito
horas em São Paulo. A Terra Livre, Rio de Janeiro, 25 de maio de 1907, anno II,
número 34, grifos nossos).
Muitos dos boicotes também ocorriam em períodos de greves, que foram inúmeras
durante o período. Além das greves gerais serem vistas como uma maneira de se chegar à
revolução social e à construção da sociedade futura, eram observadas como uma forma de
aprendizagem através da luta, como exercício da livre solidariedade e livre organização e ação
dos operários. Mesmo que não levasse aos fins que se almejava conquistar, estavam de acordo
com tais e eram meios de preparação moral e material para a sociedade futura, além do que
poderiam trazer melhoras para a vida atual dos trabalhadores submetidos às péssimas
condições de vida e trabalho. Em todas as greves a presença feminina era extremamente forte,
inclusive muitas dessas greves começaram pela ação de mulheres como ocorrido em 1901,
1902, 1907, 1917 e 1919.
Em 16 de fevereiro de 1901 entraram em greve cerca de seiscentas operárias da
Fábrica de Tecidos dos Sant’Anna (Brás) de propriedade de Antônio Álvares Penteado. Elas
protestavam contra uma alteração na tabela de salários da fábrica que diminuía o salário
médio, mas estabelecia que quem produzisse acima de um determinado número de peças
ganharia uma remuneração maior por unidade. Esse sistema de salários de acordo com o
pagamento de bônus a quem produzisse mais, como defendido por Taylor, esbarrava na
exaustão física dos operários, segundo Paula Beiguelman (1977), mas principalmente na
resistência dos operários como nesse caso. As operárias se reuniram todas as manhãs na porta
da fábrica para que não se contratassem substitutos e a polícia atuava com violência e
promovia prisões como a da tecelã Giuseppina Cutolo e do seu irmão Giuseppe Cutolo. A
greve foi encerrada quando Álvares Penteado se comprometeu a restabelecer o sistema de
salários; a diminuir multas e não punir com tais multas de maneira irregular; e acabar com os
maus-tratos a que estavam submetidas às operárias.
Outra fábrica de tecidos foi cenário de greve, desta vez no ano de 1902: a Fábrica de
Tecidos dos Anhaia (Bom Retiro). No mês de outubro desse ano as operárias dessa fábrica
declararam-se em greve contra os maus-tratos do mestre de teares, que havia expulsado do
emprego arbitrariamente a jovem Emma Sartorelli, de dezessete anos de idade e três anos de
serviço na mesma fábrica. Uma comissão de operárias foi formada e Ascendino Reis e
Alcebíades Bertolli, ambos do jornal “Avanti!”, foram escolhidos para representá-la
solicitando à empresa a expulsão do mestre e a readmissão de Emma. A direção da fábrica, no
entanto negava-se a negociar e, por isso, as operárias promoviam piquetes. Aquelas que eram
obrigadas pelos pais a irem trabalhar se juntavam com as suas companheiras em greve na hora
do almoço e a brica acabou por ser fechada pelas operárias aque a gerência concordasse
em demitir o mestre de teares. A greve acabou com a demissão do mesmo, mas com as
arbitrariedades cometidas pelos contramestres, as operárias entraram em greve um mês depois
com auxílio financeiro de companheiros (coletado pelo jornal libertário O Amigo do Povo”)
e apoio da Liga de Resistência dos Tecelões e Tecelãs de São Paulo, que organizou um
espetáculo pró-greve.
Como recomeçassem as insolências dos contra-mestres e o capricho do patrão, de
novo as operárias da fábrica de tecidos Anhaia, do Bom Retiro, se viram obrigadas a
declarar greve (...) em meio à forte simpatia do povo trabalhador. Pode-se dizer que
o movimento operário em São Paulo começa agora a valer, com esta greve, que é
uma das mais importantes que se tem feito no Brasil. (O Amigo do Povo, São Paulo,
22 de novembro de 1902, apud: BEIGUELMAN, 1977, p. 28, grifos nossos).
O ano de 1906 foi marcado pelas inúmeras greves de ferroviários, principalmente da
Companhia Paulista, amplamente citada no jornal “A Terra Livre”. no ano de 1907 eclodia
a greve das costureiras - marcada por piquetes - com grande adesão sofreu forte repressão
policial; foi nesse ano também que os trabalhadores das pedreiras e carpinteiros conseguiram
a jornada de oito horas de trabalho. Certamente, entretanto, a mais notável greve da Primeira
República foi a Greve Geral de 1917 em São Paulo, observada por muitos historiadores como
a maior greve anarquista de São Paulo.
Quando estourou a Primeira Guerra Mundial (1914) o país entrou em um período de
recessão econômica, principalmente devido à queda das exportações agrícolas. O desemprego
cresceu e com ele cresceram também as manifestações contra o desemprego, a diminuição dos
salários reais e a carestia da vida. Atividades anarquistas foram também fortemente
reprimidas pela polícia e pelo governo nesse ano, mas nem por isso foram sufocadas. Os
anarquistas colocaram-se imediatamente contra a guerra, afirmando-a, assim como colocava
Malatesta, como uma guerra em que trabalhadores seriam obrigados a matar seus irmãos de
outras nações para fortalecer governos e a exploração econômica. Mulheres anarquistas
propõem a greve dos ventres”, afirmando que as mulheres não deveriam ter filhos para
servirem como soldados nas guerras. Em 1915 os anarquistas brasileiros se colocaram à frente
de um movimento pela organização do “Congresso Internacional da Paz”, realizado no Rio de
Janeiro no mesmo ano. Esse congresso visava discutir maneiras para cessar a guerra na
Europa.
(O Congresso da Paz chegou a conclusão de que) do proletariado poderá partir
uma ação decisiva contra a guerra, por ser ele que proporciona os elementos
necessários aos conflitos bélicos, fabricando todos os instrumentos de destruição e
morte e fornecendo o elemento humano para servir de carne para canhão. (Cabia ao
proletariado responder à declaração de guerra com a declaração de) greve geral
revolucionária, (de acordo com os) preceitos humanos proclamados pela Associação
Internacional dos Trabalhadores. (O Congresso lembrou ao operariado a validez da
sabotagem e do boicote contra os elementos que participavam ou cooperavam com a
guerra, assim como a necessidade de uma propaganda sistemática contra o
nacionalismo, o militarismo e o capitalismo), cujo regime é o causador principal das
guerras. (EDGARD LEUENROTH, apud: DULLES, 1977, p. 37).
À medida que a guerra avançava e as grandes potências se envolviam no conflito, não
havia mais condições para que as mesmas abastecessem seus mercados internacionais. Para o
Brasil, segundo Luigi Biondi (2006), o problema era que em 1916 não conseguia importar
máquinas dessas grandes potências, mas, por outro lado, a produção aumentava visto que o
país, não envolvido diretamente no conflito, passava a ter condições de exportar produtos
industrializados para outros países e deveria abastecer seu mercado interno. Assim o
desemprego caiu durante esse ano e passou a não ser mais um problema, mas as jornadas de
trabalho, por outro lado, sofreram grande aumento. Além disso, os preços dos gêneros
alimentícios, calçados e vestuário subiram absurdamente nos anos de 1914, 1915 e 1916,
como podemos observar na tabela a seguir.
TABELA 4 - Cotações de preços por atacado (mil-réis) 1914 1915
Gêneros
Jan. 5 1914
Out. 31 1914
Jan. 2 1915
Jul. 1 1915
Jan. 5 1916
60kg de açúcar (cristal)
19,5
21,5
22,0
27,0
39,8
58kg de arroz beneficiado de 2°
24,0
23,0
22,0
32,0
30,0
100 1 de feijão (mulatinho)
29,5
23,0
19,5
14,5
14,5
100 1 de feijão (novo, bom)
33,0
21,0
20,0
14,0
16,0
1 saca de farinha de mandioca
9,5
8,5
8,5
8,5
13,0
100 1 de milho amarelo
8,5
5,9
6,7
7,6
10,2
(DULLES, 1977, p. 38).
Fatores como o aumento no custo de vida não acompanhado pelos salários e as altas
jornadas de trabalho, somados ao forte movimento anarquista empenhado na oposição à
guerra, cujo regime capitalista seria sua causa e a destruição dele, através da ação direta das
massas resultaria na extinção das mesmas guerras, culminaram na movimentação grevista de
1917 a Greve Geral anarquista.
Na noite de 2 de junho de 1917, a União dos Operários em Fábricas de Tecidos
convocou os trabalhadores do setor para uma assembléia na sede da entidade, na rua
da Mooca, 292. Nos dias subseqüentes, as reivindicações de aumento preencheram a
pauta de várias reuniões. Assim começou a greve geral paulistana de 1917,
envolvendo homens, obviamente, porém em muito maior quantidade, mulheres e
crianças. (BIONDI, 2006, p. 172, grifos nossos).
Em uma dessas muitas reuniões para pedir aumento de salários, os tecelões do
Cotonifício Crespi
55
(Mooca), reunidos em 9 de junho de 1917, pediram aumento salarial de
15 a 20%, regulamentação do trabalho de mulheres e crianças, modificação no regime interno
da fábrica, supressão da contribuição “pró-pátria” (uma porcentagem de 2% descontada do
salário dos trabalhadores italianos para ser destinada à guerra). A recusa da indústria em
atender às reivindicações fez com que se colocassem em greve. Imediatamente aderiram a ela
operários de outras fábricas têxteis da Mooca, Brás, Cambuci e fábricas do interior. Os
anarquistas propunham “Toda solidariedade aos grevistas” (LOPREATO, 1997, p. 8) e,
seguindo esse lema, operários de outros setores pararam a produção. Em 26 de junho
operários da Estamparia Ipiranga (de Nani Jafet e Cia.) declararam-se em greve e a 7 de julho
os operários da Antártica fizeram o mesmo. Na primeira semana de julho a greve havia se
alastrado e a polícia reprimia fortemente os piquetes, quebra-quebras, saques e
movimentações. Essa adesão massiça de várias categorias do operariado da capital e do
interior, com 15000 trabalhadores de 35 empresas em greve, fez com que os mesmos se
reunissem em assembléia a 8 de julho do mesmo ano na Liga Operária da Mooca
(organização anarquista) pela formação de um Comitê da Greve e no dia seguinte (9 de julho)
houve uma manifestação com grande número de grevistas, onde se formou o Comitê de
Defesa Proletária (CDP), e que culminou em mais violência policial, mas dessa vez com
ferimentos e morte (um dia depois da manifestação) de um sapateiro anarquista, José Ineguez
Martinez, que fora atingido por uma bala no estômago.
Ao contrário de levar ao fim da greve, a morte do sapateiro pela violência policial,
levou à paralisação total nos dias que se seguiram ao enterro. 45000 operários estavam em
greve somente quatro dias após a morte de José Martinez, segundo Boris Fausto (1976), e
55
Essa fábrica era de propriedade de Rodolfo Crespi, que juntamente com Francisco Matarazzo, retirava dos
salários de seus empregados quantias que eram doadas aos comitês pró-guerra.
mobilizações desses grevistas nas ruas como saques, quebra de bondes, manifestações e
comícios também aumentaram. O enterro, aliás, tornou-se uma dessas mobilizações, ou
melhor, uma das maiores, segundo o próprio Edgard Leuenroth “uma das mais
impressionantes demonstrações até então verificadas em São Paulo” (EDGARD
LEUENROTH, apud: DULLES, 1977, p. 50). Em 10 de julho de 1917 a notícia da morte do
operário anarquista se espalhou rapidamente pela cidade, provocando, além de comoção
popular, muita revolta. O CDP (formado por anarquistas e socialistas) decidiu então
transformar o enterro em uma grande manifestação contra a violência policial e, através da
imprensa, convidou toda a população para participar da cerimônia em um cortejo que iria da
Rua Caetano Pinto (Brás), onde morava com a família o sapateiro, até o cemitério do Araxá.
No dia seguinte (11 de julho), por volta das oito horas e trinta minutos, uma grande massa, de
aproximadamente 10.000 pessoas, carregando bandeiras pretas e vermelhas acompanhou o
cortejo, a comissão de frente era formada por mulheres do Centro Libertário de São Paulo. A
multidão passou pelas principais ruas de São Paulo como a Avenida Rangel Pestana, a
Ladeira do Carmo e a Rua 15 de novembro sempre sob os olhos dos policiais. Um comitê de
mulheres se dirigiu à Repartição Central de Polícia para pedir ao delegado a soltura do
anarquista polonês Antonio Nalepinski, preso no dia 10. A cerimônia de enterro terminou
com o discurso de vários oradores em língua portuguesa, espanhola e italiana, dentre eles
estavam Edgard Leuenroth, Theodoro Monicelli (redator do jornal socialista “Avanti!”) e,
segundo Cristina Lopreato (1997), uma mulher vestida de preto que afirmava que o sapateiro
era uma vítima dos “mantenedores da ordem, que de par com os exploradores do nosso
trabalho investiram brutalmente contra os que reclamavam pacificamente aquilo que as leis
permitem” (LOPREATO, 1997, p. 12). Os discursos, além de reforçar reivindicações
grevistas, exigiam a reabertura de organizações anarquistas fechadas pela polícia, como a
Liga Operária da Mooca (fechada em 9 de julho) e a Escola Nova. Durante os dias que se
seguiram ao enterro a greve continuava e “A Plebe” publicava artigos e notícias sobre ela, em
um deles, redigido por Everardo Dias e assinado por “um grupo de mulheres grevistas”,
intitulado “Appello aos Soldados”, de 21 de julho de 1917 (mas que no início da greve havia
sido distribuído como panfleto), pedia-se aos soldados para se recusarem a atirar em grevistas.
Aos soldados!
Soldados! Não deveis perseguir os vossos irmãos de miséria. Vós, também, sois da
grande massa popular, e, si hoje vestis farda, voltareis a ser amanos camponeses
que cultivam a terra, ou operarios explorados das fabricas e officinas.
A fome reina em nossos lares, e os nossos filhos nos pedem pão! Os perniciosos
patrões contam para suffocar as nossas reclamações, com as armas de que vos
armaram, oh! Soldados.
Essas armas elles vol-as deram para garantir o seu direito de esfomear o povo.
Mas, soldados, não façaes o jogo dos grandes industriaes que não têm patria.
Lembrai-vos que o soldado do Brazil sempre se oppoz á tyrania e ao assassinato das
liberdades.
O soldado brasileiro recusou-se no Rio, em 81, a atirar sobre o povo quando
protestava contra o imposto do vintem, e, até o dia 13 de maio de 1888 recusou-se a
ir contra os escravos que se rebellavam fugindo do cativeiro!
Que bello exemplo a imitar!
Não vos presteis, soldados, a servir de instrumento de oppressão dos Matarazzo,
Crespi, Gamba, Hoffman, etc, os capitalistas que levam a fome ao lar dos pobres, e
gastam os milhões mal adquiridos e que esbanjam com as “cocottes”.
Soldados!
Cumpri o vosso dever de homens! Os grevistas são vossos irmãos na miseria e no
soffrimento: os grevistas morrem de fome, ao passo que os patrões morrem de
indigestão!
Soldados! Recusai-vos ao papel de carrascos! (Appello aos soldados. A Plebe, São
Paulo, 29 de julho de 1917, anno I, número 6).
A essa altura da greve geral o CDP havia redigido uma pauta de reivindicações
integrada que representava todos os operários em greve (como apresentamo-la anteriormente).
Jornalistas foram os intermediários entre os patrões e operários em negociações para alcançar
algum acordo para o cumprimento de tais reivindicações. O governador de São Paulo, Altino
Arantes, concordou em libertar os operários presos e reconheceu o direito de reunião;
comprometeu-se também a fazer leis para a proibição da jornada noturna de mulheres e
menores de dezoito anos; e afirmou que os gêneros alimentícios teriam preços mais baixos.
Os industriais afirmaram que não mandariam embora grevistas; pagariam horas-extra;
propuseram um aumento de 20%. Os grevistas aceitaram tais propostas e fizeram comícios na
Praça da Concórdia (Brás), na Lapa e no Ipiranga para anunciar os acordos firmados pelo
CDP e os operários decidiram por retomar as atividades, mas mobilizados em caso de haver
necessidade de outra greve. A maioria dos industriais, no entanto, não cumpriu os acordos. A
Antártica, por exemplo, firmou a jornada em nove horas de trabalho, não em oito, e deu
aumento salarial somente de 10%.
Somente em 1919, após uma grande greve que quase chegou às dimensões da greve
geral de 1917 e por isso também fortemente reprimida pela polícia que fechava associações,
prendia operários e invadia casas de militantes, a jornada de oito horas de trabalho foi
conquistada e o aumento salarial de 20%, prometido em 1917, foi dado. Entretanto, sindicatos
foram violados por soldados, o direito de reunião abolido e os comícios interditados.
Outro aspecto fundamental do movimento anarquista em São Paulo foi a crença na
propaganda como meio de expandir ao máximo as idéias libertárias para assim se chegar a
revolução social, raramente ou nunca nos jornais e textos deixados por militantes vemos
algum apelo às práticas violentas. Assim como Malatesta, os libertários paulistanos tinham a
crença de se chegar à revolução através da propaganda, mas ao contrário dele, e muito mais
próximos das idéias de Kropotkin, não consideravam a violência como meio inevitável e
consideravam a arte, ou melhor, a arte engajada e comprometida, como importante meio
revolucionário. Foi justamente por isso que investiram tanto e utilizaram variadas formas de
propaganda que estavam ligadas com práticas culturais da classe operária, como por exemplo,
o teatro operário e as festas libertárias, que eram veículos de propaganda libertária,
divertimento instrutivo (meio didático de preparação dos trabalhadores), espaço para debates
públicos, forma de arrecadação para jornais e movimentações como greves, forma de lazer e
cultura avessa à cultura burguesa (às peças teatrais encenadas no teatro municipal, aos cafés,
etc), meio de projetar a sociedade futura, como colocam Mariangela de Lima e Maria Thereza
Vargas (1986) e forma de agrupamento dos operários, assim como as organizações.
Para se fazer a propaganda é preciso estar no meio das pessoas. É nas organizações
operárias que o trabalhador encontra seus camaradas e, em princípio, aqueles que
estão mais dispostos a compreender e a aceitar nossas idéias. E mesmo que se
quisesse fazer intensa propaganda fora das associações, isso não poderia ter efeito
sensível sobre a massa operária. Excetuando um pequeno número de indivíduos
mais instruídos e capazes de reflexões abstratas e de entusiasmos teóricos, o
operário não pode chegar de uma vez a anarquia. Para se tornar anarquista, de
modo sério, e não somente no nome, é preciso que comece a sentir a solidariedade
que o une a seus camaradas, é preciso que aprenda a cooperar com os outros na
defesa dos interesses comuns e que, lutando contra os patrões, compreenda que
patrões e capitalistas são parasitas inúteis e que os trabalhadores poderiam assumir a
administração social. Quando compreende isso, o trabalhador é anarquista, mesmo
que não carrege o nome. (MALATESTA, 2008, p. 92).
O teatro livre, ou teatro operário, existia, no Brasil, desde o século XIX, segundo
Edgard Rodrigues (1984), mas foi a partir de 1901 que ganhou maior impulso, sempre
funcionando juntamente com os movimentos de ação direta, como as greves e manifestações
públicas, como veremos mais detalhadamente no capítulo 4 desse trabalho. Tomava como
base os múltiplos dons de um grupo de indivíduos que para o anarquismo a arte está
ligada com uma característica natural dos homens e comum a todos os indivíduos, a
necessidade de se expressar -, que se reuniriam por gosto pelo espetáculo. Havia artistas
amadores (operários de vários setores) e alguns poucos atores profissionais que pregavam,
apoiando-se em Kropotkin e Jean Grave
56
, uma arte do povo, para o povo e pelo povo. Os
espectadores abandonavam a sua posição passiva, passavam a intervir no espetáculo, aliás,
deixava de existir a própria idéia de artista espectador espetáculo, no lugar, todos
participavam do mesmo ato criativo. A preocupação com a estética (cenário e figurinos) era
muito menor do que a preocupação com a mensagem a ser passada. Eram representadas peças
de Charles Albert e peças inspiradas em textos de Máximo Gorki, Emile Zola e Leon Tolstoi
56
O teatro operário também se apoiava na idéia de Proudhon da “arte em situação”, ou seja, da arte como ritual
da experiência coletiva vivida como fundamento do espetáculo.
(que também eram lidos em centros culturais), geralmente em italiano e raramente em
espanhol. A participação das mulheres era notável e dentre as temáticas apresentadas estavam:
o amor livre e a crítica à família e ao casamento (contratual) burgueses, bem como a crítica à
religião católica responsável também pela opressão da mulher.
A nossa finalidade, sem reticências e sem jesuísticas restrições, é utilizar o Teatro
Popular para demonstrar quanto são incivis e desumanas as bases da sociedade atual;
quanto é nefasto ao destino da espécie humana o sistema atual da família, vinculado
à religião e à lei; quanto sangue custa a idéia selvagem do patriotismo; quanto são
tirânicas (apesar das aparências) as formas de políticas que nos encantam. (LUIGI
MOLINARI, 1905, apud: LIMA e VARGAS, 1986, p.168, grifos nossos).
Não existia um local fixo, um espaço físico, para o teatro. A partir de 1908 os grupos
teatrais passaram a se formar dentro das associações operárias. As peças eram representadas
nas festas operárias que ocorriam em salões das ligas e uniões operárias como o Salão Celso
Garcia, pertencente à Associação das Classes Laboriosas, localizada na Rua do Carmo, 39.
Tais festas em salões ocorreram durante todo o período, mas principalmente até o ano de
1917, quando começaram a ser promovidos, por jornais libertários, festivais públicos, que
mantém o conteúdo das festas, mas ressaltando seu caráter lúdico e de “entretenimento
coletivo” (HARDMAN, 2002, p. 51), o que se deve em grande parte às grandes mobilizações
públicas ocorridas naquele ano. Em ambos o principal objetivo era fazer propaganda
anarquista e o teatro sempre esteve presente. O jornal “A Plebe”, por exemplo, promoveu, no
dia 25 de agosto de 1917, uma festa no Salão Celso Garcia, com intuito, além da propaganda,
de arrecadar verbas para as vítimas da greve, ou seja, para os operários e suas famílias que
sofreram com a violência policial na greve geral de 1917, o que mostra a relação dessas
atividades culturais com os movimentos de ação direta e a festa como meio de arrecadação
para o movimento operário.
A “Velada” de propaganda de hoje.
Conforme noticiamos em nosso número passado, realiza-se hoje, ás 20 horas, no
Salão Celso Garcia, a Rua do Carmo, 39, uma “velada” de propaganda, promovida
pelo Circolo Sociale Cuore ed Artes e pelo Grupo dos Jovens Incançaveis, cujo
producto se destina as familias dos operários victimados pela policia assassina
durante a greve geral.
O programa esta assim organizado.
- Representação do drama social em dois actos, de Tito Carvilha, Sangue
Fecundo.
- Recitação por dois companheiros do Grupo de Jovens Incançaveis do dialogo
social Sem Patria.
- Extracção de uma rua.
- Baile Familiar.
(A Plebe, São Paulo, 25 de agosto de 1917, anno I, número II, grifos nossos).
Como foi dito a participação das mulheres era muito grande no teatro operário.
Assim o era também a participação das crianças, que seriam os adultos da nova sociedade e,
portanto, teriam igual responsabilidade na construção da sociedade futura. Espetáculos de
crianças eram representados no mesmo horário dos espetáculos de adultos.
Juntamente com o teatro operário de cunho estritamente libertário, se desenvolveram
em São Paulo durante a Primeira República, grupos de teatro dirigidos principalmente às
comunidades operárias de italianos que ficaram conhecidos como filodrammatici. A maioria
de seus membros era anarquista e suas peças tinham como objetivo também a propaganda
libertária, justamente por isso, suas apresentações não eram gratuitas e toda a verba financiava
os grupos anárquicos atuantes no momento. Pietro Mascagini, Núcleo Scolastico
Filodrammatico Libertário, L’ Amore All’ Arte e Germinal são exemplos desse tipo de
atividade teatral, da qual saíram nomes como Itália Fausta
57
que chegou a se tornar atriz
profissional e famílias como os Cubero, Valverde e Catallo. As temáticas apresentadas eram
as temáticas do teatro anarquista. A imprensa operária noticiava as apresentações de tais
grupos, como o fez “A Terra Livre” em 22 de setembro de 1906.
Festa Dramática:
O grupo filodramatico anexo ao circulo de estudos sociaes do Braz, hoje o seu
primeiro espectaculo no salão Olavo Bilac, avenida Rangel Pestana, 227, as 8 e meia
da noite, representando em italiano o drama “Per la Vita” de Demetrio Alati.
Terminado o espectaculo haverá o costumado baile familiar. (A Terra Livre, São
Paulo, 22 de setembro de 1906, anno I, número 17).
Além do teatro operário - que segundo Mariangela Lima e Maria Thereza Vargas
(1986), permaneceu intocado em momentos de novas posições do movimento ou em
momentos de “problemas de organização” (LIMA e VARGAS, 1986, p. 178), com mesmo
público e peças que chegavam a ser representadas por quatro décadas os anarquistas
paulistanos apostavam fortemente na educação como meio de se chegar à revolução social e
de preparação moral para a sociedade futura. Círculos de Estudos, escolas e universidades
livres foram formadas por aqui. “A Terra Livre” de 28 de junho de 1906 divulga a fundação
de um novo círculo de estudos sociais, deixando claros os seus métodos e funcionamento,
bem como seus objetivos. No círculo também funcionava uma biblioteca social.
Circulo de Estudos Sociaes
Por iniciativa de alguns individuos foi aberto, na rua Monsehor Andrade, 59, Braz,
um Circulo de Estudos Sociaes.
O escopo precipuo desta iniciativa é difundir entre os trabalhadores, por meio de
leituras, conferencias e dramas sociaes, a instrução necessária para os libertar do
jugo que os oprime. Para tal fim, o Circulo dispoe duma biblioteca de leituras
sociaes, franqueada a todos que della queiram servir-se, das 7 ás 10 da noite, nos
dias uteis e das 2 da tarde em diante nos dias de feriado.
O grupo iniciador apella para todos os que aprovam esta iniciativa, á qual podem
aderir, quer pagando uma quota mensal, quer oferecendo livros e opúsculos; e pede
ás redacções de periodicos defensores dos explorados que enviem alguns exemplares
das suas publicações.
57
Em 1898 Itália Fausta já se apresentava na Societá Filodrammatica Paolo Giacometti, dentre outras.
Pelos Iniciadores. Luís Trombos. (A Terra Livre, São Paulo, 28 de junho de 1906,
anno I, número 11, grifos nossos).
As Escolas Modernas, inspiradas não só nas idéias de Proudhon e Bakunin, mas
principalmente nas idéias e métodos de Francisco Ferrer, foram duradouras na cidade aqui
estudada. Tais escolas localizadas no Brás e no Belenzinho sobreviveram de 1913 a 1919 e
muitas outras, com menos tempo de existência, foram criadas na cidade. Todas elas eram
criadas por iniciativa de anarquistas pertencentes a sindicatos e centros de cultura social,
dentre os quais havia muitas mulheres, e contavam com a ajuda financeira dos próprios
operários. Segundo Edgard Rodrigues (1992), a primeira Escola Moderna da cidade nasceu na
Av. Celso Garcia, 262, no ano de 1909, seguiram-lhe a Escola Moderna 1, fundada pelo
professor João Penteado na Rua Saldanha Marinho, 58 e a Escola Moderna n°2, localizada na
Rua Muller, 74, criada por um Comitê Pró-Escola Moderna, ambas fundadas em 1913. O
método racionalista e a educação integral constituíam as bases dessas atividades educacionais,
como pode ser observado com relação à Escola Moderna n°2.
[...] Esta escola servir-sedo método intuitivo demonstrativo e objetivo, e basear-
sena experimentação, nas afirmações científicas e racionadas, para que os alunos
tenham uma idéia clara do que se lhes quer ensinar.
Educação Artística, Intelectual e Moral.
Conhecimento de tudo quanto nos rodeia. Conhecimento das ciências e das artes.
Sentimento do belo, do verdadeiro e do real.
Desenvolvimento da Compreensão sem esforço e por iniciativa própria.
a) Matérias:
As matérias a serem iniciadas, segundo o alcance das faculdades de cada aluno
constarão de leitura, caligrafia, gramática, aritmética, geografia, geometria, botânica,
zoologia, minerologia, física, química, fisiologia, história, desenho, etc.
Para maior progresso e facilidade de ensino, os meninos exercitar-se-ão nas diversas
matérias com o auxílio do museu e da biblioteca que esta Escola está adquirindo, e,
que servirá de complemento ao ensino das aulas.
Na tarefa da educação tratar-se-á de estabelecer relações permanentes entre a família
e a escola, para facilitar a obra dos pais e dos professores.
Os meios para criar estas relações serão reuniões em pequenos festivais, nos quais se
recitará, se cantará e se realizarão exposições de trabalhos artísticos dos alunos;
entre os alunos e os professores haverá palestras a propósito de várias matérias, onde
os pais conhecerão os progressos alcançados pelos alunos.
Para complemento do nosso programa de ensino organizar-se-ão sessões artísticas e
conferências científicas.
Horário: das 13 às 16 horas.
A inscrição dos alunos acha-se aberta das 10 às 12 horas de manhã e das 16 ás 18
horas. (A Lanterna, São Paulo, 8 de novembro de 1913, apud: RODRIGUES, 1992,
p. 50 e 51).
Dentre as mulheres que participavam dessas Escolas Modernas também podemos
citar: Teresa Maria Carini, que, juntamente com Edmondo Rossoni, participou da Escola
Moderna da Água Branca, fundada por operários vidreiros da Fábrica Santa Marina; Maria
Antônia Soares, que dirigiu, ao lado de seu irmão Florentino de Carvalho, a Escola Moderna
do Brás; e Anna de Castro Osório, que também contribuía com a imprensa operária
anarquista. Aliás, os jornais (talvez mais importante meio de propaganda anarquista), faziam
inúmeras campanhas pró-escolas modernas, tanto no sentido de mantê-las quanto de fundá-
las, sem dúvida eram eles o principal veículo de divulgação de tais e de propaganda de seus
métodos. O artigo “Uma Escola Livre” de 28 de fevereiro de 1907 do periódico A Terra
Livre” apresenta-nos uma defesa das escolas libertárias.
A Liga Operária de Campinas tomou uma iniciativa bem digna de nota e de
simpatia. Vai estabelecer uma escola infantil, procurando baseá-la o mais possível
nos modernos princípios pedagogicos.
A escola não deve ser um logar de tortura física ou moral para as crianças, mas sim
um logar de prazer e de recreio, onde ellas se sintam bem, onde o ensino lhes seja
oferecido como uma diversão, procurando aproveitar a sua natureza irrequieta e
alegre, as suas faculdades e sentimentos, falando mais ao olhar do que ao ouvido,
dedicando-se mais á inteligência do que á memória, esforçando-se por desinvolver
armonica e integralmente os seus organs.
A experiência, a observação directa, a recreação instrutiva serão muito mais
favorecidas pelo professor que a comprehende a sua missão, do que as longas e
fatigantes preleções e as recitações fastidiosas e sem sentido.
O que é verificável pelo próprio aluno, o que é demonstravel, o que é accesível,
claro, lógico para a criança, o que ella pode por si mesma descobrir ou desinvolver
isso será preferido a todas as divagações metafísicas ou filosóficas, a todas as
afirmações impostas pela autoridade do pedante, que não podem senão habituar á
pregniça intelectual. E por isso a escola não será religiosa, não será política, não será
dogmática, mas irá buscar á lição de coisas, á natureza vivida e provocada, ao vasto
campo das sciencias exactas, ao raciocínio espontaneo e facil, os motivos de
agradavel estudo para as inteligencias que desabrocham e da larga e salutar expanão
para os organismos tenros.
Tal é o plano, tal é o intuito que anima e inspira os nossos bravos amigos de
Campinas e que elles procurarão mais tarde de acordo com a Federação Operária,
explicar melhor ao público. Apresentemos o seu esforço como uma preciosa
incitação. (Uma Escola Livre. A Terra Livre, São Paulo, 28 de fevereiro de 1907,
anno II, número 27, grifos nossos).
No movimento operário anarquista paulistano atuaram homens e mulheres que
acrescentaram pontos ao anarquismo e tiveram a sua própria maneira de enxergá-lo, como foi
o caso de Gigi Damiani, Edgard Leuenroth e Neno Vasco.
2.2 Alguns militantes anarquistas em São Paulo: Gigi Damiani, Edgard Leuernroth e
Neno Vasco
Luigi Damiani, conhecido como Gigi, nasceu em Roma (Itália) e nessa cidade iniciou
sua militância anarquista, por volta de 1890. Foi um dos libertários italianos mais importantes,
assim como Malatesta, com quem dirigiu o jornal da Federazione Anarchica Italiana, logo
após a Primeira Guerra Mundial. Emigrou para o Brasil, ou mais especificamente para São
Paulo, em 1897 juntamente com sua mulher Emma Mennocchi, também anarquista, e aqui
permaneceu até 1902, quando dirigiu-se a Curitiba e Ponta Grossa (Paraná). Em 1909, no
entanto, voltou para a capital do estado de São Paulo, onde desempenhou um papel
importantíssimo no movimento anarquista e permaneceu até 1919, quando voltou a Roma.
Segundo Luigi Biondi (2006), Gigi imigrou para o Brasil por causa da falta de emprego na
Itália e devido à forte perseguição da polícia aos anarquistas. Edilene Toledo (2004) afirma
que esse libertário foi o que mais exerceu influência no movimento anarquista em São Paulo e
outras partes do Brasil.
O que conta são as idéias, e eu professo idéias heterodoxas. Sou um herege dentro
da própria heresia. Nada fatalista, creio e espero que de alguma forma as coisas
encontrarão o seu caminho. Nunca tive inclinações para liderar o que quer que seja,
igreja ou escola... Escreverei sobre a que é a “minha anarquia” sem pretender que
seja a mais bonita e perfeita. Permaneci em tudo e por tempo demais um homem do
século XIX: nos sentimentos, nos afetos, nos ódios... um sem-classe, nos tempos que
correm. (LUIGI DAMIANI, apud: BIONDI, 2006, p. 160).
Em São Paulo Gigi trabalhava como pintor de tecidos, decorador de paredes e fazia
parte da direção, assim como Tobia Boni, do jornal anarquista “La Battaglia” - escrito em
língua italiana - que tinha uma tiragem de cerca de 5.000 exemplares semanalmente. Possuía
uma grande crença na propaganda através dos jornais, mas, assim como muitos dos militantes
libertários dessa cidade, dava grande importância à organização operária. Foi, nesse sentido,
então, se aproximou do sindicalismo, já em 1911.
À medida que as indústrias cresciam e as oficinas começavam a fazer parte do passado
da cidade, as ligas, organizações, federações e sindicatos também se multiplicavam e Gigi,
passou a dar mais importância à organização e à greve como estratégia de ação direta
fundamental da classe operária organizada, sem, obviamente deixar de ressaltar, em “La
Battaglia”, a importância do boicote. Ao contrário de Malatesta e de acordo com o
pensamento de militantes do Brasil (como Neno Vasco), Gigi defendeu que o sindicato livre
seria fundamental meio de organização para se chegar à revolução social, no entanto, não
seria instrumento de luta na sociedade atual, mas o próprio cerne da organização produtiva
da sociedade anárquica; através do sindicato, a produção material da sociedade libertária seria
organizada pelos operários livremente organizados, para ser utilizada pela sociedade segundo
as necessidades de cada um (anarco-comunismo). Essa aproximação definitiva do anarco-
sindicalismo, faz com que mude o nome de “La Battaglia” para “La Barricata”, em 1912. Ele
também dava grande importância à educação como meio de se chegar à revolução e como
preparação moral para a sociedade futura, no ano de 1909 em “La Battaglia” escrevia
inúmeros artigos sobre a morte de Francisco Ferrer, executado pelas autoridades espanholas
em 1909.
Em 1914, por conta da eclosão da Primeira Guerra Mundial, fundou e dirigiu o
periódico anárquico “Guerra Sociale”, junto com Cherchiai, que assim como “La Barricata”,
era escrito em língua italiana, mas contava com artigos em português. Afirmava, em tal jornal,
que a guerra acabaria em revolução, mas os anarquistas não deveriam apoiá-la de maneira
nenhuma, ou seja, não deveriam apoiar nenhuma das alianças. E defendia novamente a
organização sindical que unisse tendências comuns libertárias, que fosse “imprevisível e
indomesticável” (BIONDI, 2006, p. 171). Tal posição foi defendida incansavelmente por ele
em 1917 juntamente com o método da greve geral e, justamente por essa posição, seu papel
na greve geral daquele ano foi fundamental: em reunião, na noite de 9 de julho no Centro
Libertário, com os outros editores dos jornais anarquistas Guerra Sociale e A Plebe”,
militantes do Centro Libertário de São Paulo, editores do jornal socialista “Avanti!” e
militantes socialistas do Centro Socialista de o Paulo, decidiu a fundação do Comitê de
Defesa Proletária (o CDP), defendido por ele e Monicelli como meio de unificar a luta dos
proletários da cidade
58
. Gigi, segundo Cristina Lopreato (1997) teve papel de destaque como
um dos coordenadores do movimento grevista; ele foi um dos oradores do comício da Praça
da no dia do enterro de José Martinez. Apesar do movimento grevista não ter levado à
revolução, como ele acreditava que deveria ser a greve geral, Gigi o considerou vitorioso,
como podemos perceber em um artigo publicado em “Guerra Sociale” de 26 de julho de 1917:
Ninguém acreditava nela, ninguém previu que eclodisse. Do governo aos
revolucionários, todos estavam convictos de que esse amálgama de lixo imigrante
poderia gerar resignação. Todavia, mesmo descrentes, insistimos na semeadura.
(GIGI DAMIANI, Guerra Sociale, São Paulo, 26 de julho de 1917, apud: BIONDI,
2006, p. 174).
Após a greve, que para Gigi não levou ao fim que almejavam os libertários porque
os grevistas do interior não invadiram armados a cidade de São Paulo, ele passou a ser
perseguido pela polícia: sua casa havia sido invadida pelos policiais que visavam expulsá-lo
do país com base na Lei Adolfo Gordo (de 1907) que legalizou a expulsão de imigrantes
anarquistas com menos de cinco anos de residência no Brasil, o que não ocorreu porque tinha
“raízes” no Brasil (um terreno no Paraná). Participou até 1919 de outros movimentos por
aqui, mas nesse ano foi deportado para a Itália pelas autoridades brasileiras. Ele próprio
narrou essa deportação em uma biografia cujos textos foram publicados em “A Plebe” e
citados por Luigi Biondi (2006).
No dia seguinte ao ocorrido, estudantes fiéis ao governo empastelaram “A Plebe”, e
foram adiante, invadindo e destruindo as sedes de outros jornais e as de sindicatos
de trabalhadores. Preso (...) fui conduzido até o Rio de Janeiro, e embracado
clandestinamente no Principessa Mafalda, que se encontrava fundeado na Baía de
Guanabara. Assim os portuários foram mantidos na ignorância dos fatos, para que
não declarassem greve de protesto. Na verdade, eu estava bem contente de ir-me
58
Nesse sentido é clara a influência das idéias de Malatesta que afirmava que anarquistas de várias tendências e
socialistas deveriam estar juntos enquanto defendessem posições comuns. No caso da greve de 1917 essas
posições comuns eram melhorias salariais, melhores condições de trabalho e vida, etc. Porém os anarquistas
acreditavam que ela pudesse levar à revolução social.
embora. A situação na Itália, em 1919, era rica de promessas. Desembarcado em
Gênova, fui colocado na prisão, e fiquei, esquecido, uns vinte dias. Um mês
depois, com a chegada de Malatesta, fui trabalhar com ele no jornal [...]. (GIGI
DAMIANI, apud: BIONDI, 2006, p. 175).
No seu país de origem continuou a militar, mesmo tendo que se exilar, por causa dos
fascistas, na França, Bélgica, Espanha e Tunísia. Morreu em 16 de novembro de 1953, em
Roma. Sua definição de anarquismo nos também uma clara mostra de como o pensaram
também os anarquistas paulistanos e os mesmos organizaram um movimento com tantas
correntes de pensamento, mas bases comuns.
O ponto de vista comum em tôrno do qual todos os anarquistas estão de acordo [...]
é aquêle que conduz à mesma meta e se caracteriza no fato de se manter o
movimento anárquico com uma feição que o distingue de todos os outros
movimentos político-social: a concepção de um futuro para a humanidade que
exclua todo princípio de autoridade, de domínio e de exploração do homem pelo
homem.
O anarquismo pode ter tendência individualista, comunista ou coletivista; cristão
primitivista; referir-se ao marxismo da primeira hora; ser ativista, revolucionário,
educacionista; pode aceitar ou repelir a violência, especializar-se no malthusianismo
ou no vegetarianismo; mas, no seu complexo, tende a uma única finalidade: a
independência moral e física do indivíduo, reforçada na solidariedade entre todos os
seres humanos, próximos ou distantes.
O anarquismo pode ser filosofia e ciência político-econômica, sem cair no
dogmatismo; simples especulação idealista ou fundamentalmente prático em suas
atitudes fora de qualquer ação impositiva; pode apegar-se ao materialismo histórico
ou apelar para as fôrças morais e considerar o sentimento como fator mais eficaz
para libertar o homem da incompreensão em que se debate; pode dizer-se ateu,
agnóstico ou divagar em hipóteses espiritualistas; mas conserva sua idoneidade
quanto à necessidade que em combater todo e qualquer princípio de idolatria
estatal, conformista e de monopólio econômico. É antiautoritário e antitotalitário em
todas as circunstâncias. [...] (GIGI DAMIANI, apud: LEUENROTH, 1963, p. 21).
Se Gigi Damiani foi o militante do anarquismo que mais influenciou o movimento
libertário em São Paulo e outras partes do Brasil, Edgard Leuenroth certamente foi o mais
conhecido deles. Leuenroth nasceu no Brasil e mais especificamente em Mogi Mirim (São
Paulo) em 31 de outubro de 1881. Filho de médico mudou-se para São Paulo, ainda criança,
com sua mãe e irmãos assim que seu pai morreu e nessa cidade instalaram-se no bairro do
Brás. Na adolescência, em 1897, começou a trabalhar nas Oficinas da Companhia Industrial
de São Paulo, onde aprendeu o ofício de tipógrafo, de importância fundamental para toda a
sua vida. Sua convivência com os operários do bairro do Brás e com o Circulo Socialista
fizeram com que tivesse contato com idéias socialistas e, mais tarde, anarquistas, às quais
aderiu, passando a se dedicar ao movimento até sua morte em 28 de setembro de 1968.
Leuenroth acreditava, assim como Damiani e Malatesta, na propaganda como meio
essencial para alcançar a revolução social e como meio de preparação da sociedade futura
através da propagação de valores como a solidariedade e o apoio mútuo. Justamente por essa
crença, aliada ao seu ofício de tipógrafo, fundou e dirigiu inúmeros jornais anarquistas -
alguns dos quais continuaram a existir mesmo depois do declínio do movimento libertário no
Brasil como “O Trabalhador Gráfico”; “A Lanterna” (1901); “A Terra Livre” (juntamente
com Neno Vasco (1905)); “A Lucta Proletária”, o jornal da Federação Operária de São Paulo
(1906); “A Folha do Povo” (1908); e, o mais famoso deles, “A Plebe” (1917), nesse último
escrevia os editoriais e, juntamente com seus colaboradores, publicava notícias sobre o
movimento no Brasil e no mundo, publicava artigos de anarquistas como Bakunin, Kropotkin
e Malatesta e promovia campanhas para ajudar financeiramente o movimento. A maioria dos
números desses jornais e de jornais dirigidos por seus companheiros, Leuenroth teve o
cuidado de arquivar, assim como Max Nettlau fizera com os documentos que conseguiu
encontrar sobre o anarquismo na Europa e nas Américas.
A propaganda, porém, para alcançar algum sucesso em seus objetivos, deveria estar
aliada à organização dos operários para a ação direta e à educação. Nesse sentido, além de
apoiar as inúmeras uniões, ligas e sindicatos operários, fundou o Centro Typográphico de São
Paulo (União dos Trabalhadores Gráficos) e o Sindicato dos Gráficos, apoiou a fundação de
inúmeros sindicatos livres, o que mostra uma posição favorável ao anarco-sindicalismo. No
artigo a seguir fica clara a sua defesa das organizações livres e por afinidades. Essa concepção
era amplamente aceita e praticada pelos anarquistas paulistanos.
O movimento anarquista se articula em toda parte de baixo para cima, da atividade
individual dos militantes para as agrupações em que livremente se reúnem e que, por
sua vez se entrosam em federações locais, regionais, ou de atividades afins tôdas
reunidas em federações nacionais. Todos esses entrelaçamentos se operam de âcordo
com os princípios do mais rigoroso federalismo e da autonomia de seus
componentes.
As agrupações são formadas em obediência a afinidades, que podem ser de ordem
pessoal, profissionais, de atividades referentes às diversas modalidades de
propaganda ou de obras a executar (LEUENROTH, 1963, p. 88, grifos nossos).
Também divulgava e participava da fundação das escolas modernas, bibliotecas
sociais e centros de cultura, defendendo a necessidade da educação para que se alcançar à
transformação social.
Não obstante entenderem que a transformação social não pode ficar na dependência
da cultura geral e total do povo, os anarquistas são educacionistas, porque estão
convencidos de que essa transformação irá tanto mais longe na vida das realizações
anárquicas quanto mais elevada fôr a soma de evoluções individuais. Estão,
entretanto, certos de que sómente com a transformação da sociedade se conseguirá
dar instrução racional e geral ao povo porque isso presentemente não será possível,
em virtude da instrução e da educação do povo dependerem dos elementos
interessados em mantê-lo na ignorância, para que se submeta à tirania político-
econômica-religiosa do regime burguês.
Não obstante isso, os anarquistas nunca se descuidaram da obra cultural do povo,
procurando, pelo menos, neutralizar a ação obscurantista dos reacionários, por meio
de escolas, ateneus, centros de cultura social, fundados em várias zonas do país,
conferências e palestras comentadas, além da difusão e publicação de folhetos,
livros, revistas e jornais. [...] (LEUENROTH, 1963, p. 126, grifos nossos).
Sua atuação na Greve Geral de 1917 foi bastante notória. Observava-a como o fato
que desembocaria em uma revolução social anarquista. Participava, durante ela, de
organizações, discursava em comícios gigantes (como o comício ocorrido na Praça da Sé).
Discursou no enterro de José Martinez no cemitério do Araxá, e foi um dos membros do CDP,
que ajudou a criar na reunião com Damiani e outros de seus companheiros. Essa atuação, no
entanto o levou à prisão em setembro do mesmo ano, quando a repressão (ou reação) policial
ao movimento operário se intensificara, como noticiava “A Plebe” de 15 e 22 de setembro de
1917. Aliás, esses números tiveram que ser compostos e impressos nas oficinas do jornal “O
Combate” por seus colaboradores, já que “A Plebe” também fora fechada, assim como
inúmeras associações e ligas operárias.
“No reino da Senegambia: A constituição Republicana é uma burla Está em scena
a heroica policia de São Paulo”
Numerosas prisões de operários Assalto á typographia onde se imprime “A Plebe”
e às Ligas Operarias Subtracção dos originaes A prisão do nosso director Edgard
Leuenroth.
O Centro Libertario é violentamente assaltado e todos os moveis e archivo
removidos para a Policia Central Espancamentos Outras proezas.
[...] A Plebe concebeu a realização da obra gigantesca da organização dos obreiros
paulistanos, infiltrando-lhes o espírito de anseios, de libertação e equidade!
Por isto, só por isto e nada mais é que o Edgard Leuenroth foi privado de sua
liberdade, seqüestrado do convívio de sua família e de seus dedicados amigos, que
são tantos quantos o conhecem. [...] (A Plebe, São Paulo, 15 e 22 de setembro de
1917, anno I, número 14, grifos nossos).
Edgard Leuenroth, como foi dito, fundou e dirigiu “A Terra Livre” juntamente com
outro importante anarquista militante na cidade de São Paulo: Gregório Nazianzeno Moreira
de Queirós Vasconcelos. Neno Vasco, como era conhecido, nasceu em Penafiel (Portugal) em
9 de maio de 1878 e mudou-se para o Brasil com sua família ainda na infância (com 8 ou 9
anos de idade), porém retornou à sua terra natal na adolescência para cursar Direito em
Coimbra. Ao concluir o curso, no ano de 1901, retornou ao Brasil e fixou-se em São Paulo,
local onde colocou em prática suas idéias libertárias e onde se aproximou das idéias de
Malatesta, afastando-se das de Kropotkin. Nunca exerceu a profissão de advogado nem no
Brasil, nem em seu regresso a Portugal - por observá-la como incompatível com suas idéias,
mas utilizou sua formação e extenso conhecimento de línguas estrangeiras (como o francês,
inglês, alemão, italiano e espanhol), para se sustentar como correspondente de línguas para
empresas estrangeiras. Esse seu vasto conhecimento lingüístico foi utilizado também em sua
militância: traduziu para o português obras de Malatesta e a tradução do hino da Internacional
dos Trabalhadores para a língua portuguesa é de sua autoria. Foi ativo crítico da imprensa
oficial da Primeira República, afirmando que ela era uma forma de manter o proletariado num
estado de aceitação da exploração que sofria, assim como fazia a Igreja.
Em São Paulo, casou-se com Mercedes Moscovo
59
, anarquista filha de imigrantes
espanhóis e aqui permaneceu até 1911 fazendo propaganda dos ideais anarquistas através de
jornais, escrevendo peças teatrais e pensando a arte e a educação como meios e táticas para se
chegar à revolução social. Fundou e dirigiu juntamente com alguns de seus companheiros,
dentre os quais estava Gigi Damiani,“O Amigo do Povo” (a partir de1902); com Leuenroth,
“A Terra Livre” (1905); “A Voz do Trabalhador”; e a revista “Aurora”. Escreveu peças de
teatro como “A Greve dos Inquilinos” e “O Pecado da Simonia”, por acreditar que a arte era,
além de uma forma de lazer que evitaria que os operários buscassem o álcool como alívio às
intensas jornadas de trabalho, uma maneira de aumentar a resistência ao capital. Essas peças
foram amplamente representadas pelo teatro operário em São Paulo, mesmo depois de seu
retorno a Portugal, como podemos observar no artigo a seguir, publicado em “A Plebe” de 8
de maio de 1920, no artigo intitulado “Festivais de Propaganda”.
Do Centro Feminino de Jovens idealistas:
Organizado por este Centro, realizar-seum bem organizado festival no dia 15 do
corrente, às 10 e 12 horas, no Salão da Federação Espanhola, á Rua do Orzometro,
49 A, sobrado, que obedecerá ao seguinte programa.
1° Orquestra;
2° Representação da empolgante peça social em um ato “Amanhã”;
3° Representação do emocionante drama social em um ato, em espanhol, “Hambre”;
Representação da interessante comédia social em um ato, de Neno Vasco,
“Pecado da Simonia”;
5° Quermesse e Baile familiar.
Nos entre-atos, cantos e recidativos sociais. (Festivais de Propaganda, A Plebe,
São Paulo, 8 de maio de 1920, anno IV, número 63, grifos nossos).
Para ele, os operários instruídos, por uma educação libertária, lutariam pela destruição
do capitalismo e da exploração do homem pelo homem, assim como aprenderiam, na
autonomia proporcionada por esse tipo de educação, a se auto-organizarem na futura
sociedade, negando-se a reconhecer lideranças, partidos e pretensos governantes, justamente
por isso, participou ativamente também da fundação de escolas modernas. Os
questionamentos de Neno com relação à educação e à cultura burguesas se davam em vários
sentidos: em “A Terra Livre”, por exemplo, polemizou com a Academia Brasileira de Letras
no que se referia à ortografia, esta acabou utilizando algumas das propostas da redação desse
jornal em 1907. Seu nome, no entanto, não é citado no que diz respeito a grandes comícios
públicos.
Neno Vasco, segundo testemunho unânime de todos os que conheceram, seria tudo
menos um indivíduo que buscava pôr-se em evidência. Nunca vemos o seu nome
59
Manuel Moscovo, irmão de Mercedes, que também era anarquista, companheiro de Neno Vasco.
anunciado em comícios ou conferências, em reuniões públicas ou orgânicas. É sim,
um escritor infatigável, um homem de contacto humano directo e também um
intelectual ávido de compreender e ensinar. (JOÃO FREIRE, apud: VASCO, 1984,
p. 43).
Apesar de pouco falar em público e de dar bastante ênfase à propaganda, à arte e à
educação, Neno Vasco foi um dos maiores defensores da organização operária como meio
essencial de luta e, nesse sentido, foi grande defensor da formação de sindicatos livres
(anarco-sindicalismo), que para ele eram a principal forma de organização espontânea dos
produtores, tanto para a resistência ao sistema atual (lutando por melhores salários e menores
jornadas) quanto para a luta revolucionária. Segundo ele, para se chegar a uma sociedade
comunista anárquica, os métodos revolucionários devem estar em pleno acordo com os fins a
serem alcançados, ou seja, devem estar pautados na livre iniciativa e na solidariedade, devem
ser entendidos como forma de preparar a anarquia educar para criar terreno para ela. A
organização, como meio de luta econômica seria, portanto, a base essencial para se chegar à
revolução o método essencial. E o sindicato, nesse sentido, seria a forma de organização
mais eficaz.
O sindicato, pelo contrário, e esta é a vantagem suprema, educa o proletariado na
luta e na solidariedade contra o capitalismo e essa luta é susceptível de
desenvolvimento constante, tornando visível o antagonismo entre as classes sociais e
palpável a necessidade duma emancipação completa. (VASCO, 1984, p. 122).
O sindicato livre, por contar com a participação de inúmeros trabalhadores sem
imposição e pagamento de taxas, poderia comportar inúmeras tendências que não seria
uma organização “separatista” (VASCO, 1984, p. 102) -, mas sempre ser uma organização
livre, base para a sociedade futura. Nesse sentido, Neno, ao afirmar que o sindicato livre tem
como principal fundamento a luta revolucionária, mas que não deve deixar as lutas por
melhorias imediatas, distancia-se das idéias de Malatesta, que afirmava que os anarquistas
deveriam ser anarquistas dentro do sindicato, sem querer transformar o sindicato em um órgão
anarquista já que sua função seria apenas lutar melhorias imediatas.
Os anarquistas têm, pois, a missão de mostrar que o sindicalismo, para ser
verdadeiramente revolucionário, tem de ser socialista e anarquista ao mesmo tempo.
[...]
Para ser anarquista [o sindicato], deve querer o grupo profissional livre e aberto e
não pode admitir a propriedade individual ou corporativa, nem uma nova classe
burocrática; o seu ideal será a livre cooperação (determinada pelas necessidades a
que todos voluntariamente se submetem) e o direito de cada um ao uso gratuito aos
meios de produzir. (VASCO, 1984, p. 102 e 133, grifos nossos).
Aliás, também se diferenciou de Malatesta ao afirmar que o sindicato não se
dissolveria na sociedade futura, mas sim, seria sua base: um grupo múltiplo para a produção
essencial; para os serviços públicos (alimentação, vestuário, alojamento, transportes
comunicação, saúde, instrução, iluminação, etc); para a satisfação de necessidades
intelectuais, estéticas e morais; ou para interesses locais de estatística, determinação do
consumo e distribuição. Os sindicatos seriam parte da organização federal de comunas livres,
locais, mundiais, de sindicatos e grupos de afinidade. Tal sindicato livre, órgão revolucionário
e de resistência, deveria também atuar através da ação direta sindical, prezando pela
independência sindical e pela união dos trabalhadores sem direção, e não funcionar como
sociedade de mutualista, nem deveria fazer alianças com esses organismos econômicos com
diferentes funções, que para ele, não visavam nem a transformação social, nem conquistar
melhorias imediatas, assim como não deveriam tomar parte de nenhuma forma de intervenção
política através de partidos.
Para funcionar normalmente, tem o sindicato profissional, órgão da resistência
operária, que estar livre e desembaraçado de quaisquer outras funções, nitidamente
separado de qualquer outro órgão de função econômica diversa. Concretizando: tem
que rejeitar do seu seio as várias formas de mutualismo e de cooperativismo, tantas
vezes embrulhadas com a resistência nas velhas associações operárias, aliás, ainda
numerosas. (VASCO, 1984, p. 121).
Porém não se deve pensar que Neno Vasco acreditasse que o sindicalismo bastasse a si
próprio, que levaria fatal e inevitavelmente à revolução social, como pensavam alguns
adeptos do sindicalismo revolucionário, que ele chamava de automatismo sindical. Para ele,
os anarquistas deveriam empenhar-se para fazer propaganda das idéias anarquistas, para levar
ao maior número de pessoas as idéias de autonomia e de federalismo livre, assim
garantiriam também a adesão de um número cada vez maior de trabalhadores a esse sindicato,
sem impor-lhes tal adesão. O operário “vai à associação, ao sindicato, levado pelo interesse e
pela sedução da idéia”, pelo exemplo da ação e do zelo “constante em defesa dos interesses de
todos e de cada um” e aos “resultados obtidos” (VASCO, 1984, p. 130). O sindicato deveria,
portanto, promover ações de propaganda como a criação de bibliotecas, conferências,
concertos e espetáculos, bem como promover uma educação geral e técnica para os seus
sócios, desenvolvendo dessa forma as aptidões para a vida associativa, para a ação militante e
para os trabalhos na sociedade futura. Sem dúvida foi esse pensamento que predominou entre
os anarquistas paulistanos ao promoverem festas e apresentações pró sindicatos ou uniões
operárias. A propaganda e ação que o tornam realmente revolucionário, realmente contrário à
atitudes que não visem a destruição das classes sociais e à atitudes corporativas.
A luta de classe não surge automaticamente, desde que se agrupam assalariados para
a defesa dos seus interesses imediatos, econômicos e profissionais. A luta de classe é
a luta pelos interesses gerais do proletariado, ou pelos interesses corporativos que
não contrariam aqueles; e, para ser revolucionária, deve visar à abolição das classes.
E, infelizmente, não é o parlamentarismo, o pseudo-socialismo parlamentar, que
conduz à colaboração de classes e à negação da luta de classe: o corporativismo, sem
a acção consciente dos revolucionários, a cada passo vai ter. (VASCO, 1984, p.
98 e 99, grifos nossos).
Além de sua luta constante pela organização sindical livre e pela propaganda
anarquista, Neno Vasco, como todos os outros anarquistas que militavam em São Paulo,
insistiu fortemente em uma postura anticlerical, não é à toa que colaborava com inúmeros
jornais libertários com esse cunho, como com “A Lanterna”, dirigido por Edgard Leuenroth.
Insistia que a Igreja era uma das principais responsáveis pela manutenção do regime de
exploração do homem pelo homem, através da proteção que dava aos “tiranos” e aos
privilégios. Seria ela, segundo ele, um dos maiores estorvos à emancipação social ao colocar o
“reino de Deus” como o alívio a todas as agonias que sofria proletariado. Definia o
anticlericalismo dos anarquistas como integral, como a negação do poder religioso,
econômico e político, afirmando que o mesmo abrangeria:
a) Luta contra os padres para mostrar as contradições de suas vidas com as
doutrinas que professam; o sacerdócio como profissão, tendo o interesse material
por base, etc. Isso é importante para as camadas mais simples da população, que
vêem o padre e não os dogmas e mitos, como importante foi para o povo francês,
que não lia os enciclopedistas, a propaganda panfletária contra a realeza, a nobreza e
o clero.
b) Luta contra a influência política da Igreja pela ação direta e pela propaganda,
extraparlamentar.
c) Denúncia do poder econômico da Igreja, da Igreja como emprêsa, como auxiliar
da exploração capitalista, como divisora do proletariado, fautora de crumirismo.
Êste ponto é importantíssimo.
Esse é o anticlericalismo dos anarquistas, que r ele orientarão suas atividades,
como sempre o fizeram. (NENO VASCO, apud: LEUENROTH, 1963, p. 115).
Neno Vasco voltou para Portugal em 1911 com Mercedes Moscovo ainda sua esposa,
Lá teve a oportunidade de conhecer pessoalmente Malatesta e continuou sua militância
anarquista, editando jornais e se correspondendo com a imprensa anarquista brasileira (como
“A Lanterna”, “A Guerra Social” e “O Diário”, respectivamente das cidades de São Paulo,
Rio de Janeiro e Porto Alegre). Morreu em 15 de setembro de 1920, após se dedicar anos a
cuidar de sua mulher, de quem contraiu a tuberculose que o vitimou. Suas idéias a respeito da
necessidade da organização - principalmente de sindicatos livres - intimamente ligadas à
importância da propaganda e da ação direta anarquista, certamente eram compartilhadas pelos
anarquistas e pelas mulheres libertárias atuantes em São Paulo, onde prevalecia o anarco-
sindicalismo, tal qual defendido por ele, como meio de luta para se alcançar o anarco-
comunismo.
O anarquismo nesta cidade, no entanto passou a perder força como corrente
hegemônica do movimento operário durante a década da morte desse libertário (década de 20
do século XX). Isso se deve a vários fatores: primeiramente a revolução russa ocorrida em
1917 passou a exercer grande fascínio em alguns libertários, mesmo com anarquistas e
socialistas como Leuenroth e Damiani apontando para os riscos do autoritarismo dos
bolcheviques; em segundo lugar está a fundação do Partido Comunista em 1922, que passou a
querer assumir um papel diretivo nas lutas operárias; e em terceiro está a forte repressão
policial. Todos esses fatores têm de ser vistos, entretanto, de maneira relacionada, sem que
um sozinho tenha sido determinante para esse declínio da corrente libertária. Com relação à
repressão policial Edgard Leuenroth denunciava:
As atividades dos anarquistas no Brasil, embora exercidas dentro do quadro da
chamada democracia republicana, bem raras vezes puderam decorrer normalmente.
Verificaram-se violências de tôda ordem contra os militantes libertários, as suas
iniciativas, a sua imprensa, as suas organizações, moveram-se contra eles campanhas
de injúrias e calúnias; foram vítimas de perseguições, maus tratos, espancamentos
em presídios e solitárias; sofreram assaltos em seus domicílios, com apreensão de
bibliotecas, coleções de revistas e jornais, além de violências contra suas famílias
deportações para ilhas e regiões insalubres, expulsões para o estrangeiro, e também
assassínios. (LEUENROTH, 1963, p. 134).
CAPÍTULO 3 ANARQUISMOS E FEMINISMOS
Todos os nossos conceitos sobre o desenvolvimento da história se encontram em
crise. A vida escorre por entre as malhas das construções teóricas, escapa às
classificações e, a cada passo, nega as generalizações e sínteses. Sentir esta
multiplicidade significa sentir o valor que para a vida tem a liberdade (que faz
possível a variedade infinita). (FABBRI, 1952, p. 29).
O presente capítulo visa observar e analisar como as mulheres anarquistas viam, de
maneira própria, a teoria e a prática anarquistas como principal meio para alcançar a
libertação total da mulher, assim como a libertação de toda a humanidade sendo a última
condição essencial para a primeira - , ou seja, seria a completa destruição da sociedade
capitalista, através da revolução social, não da luta parlamentar, e a construção da sociedade
anárquica, pautada no amor, na solidariedade e no apoio mútuo, a única maneira, segundo
elas, de conquistar a liberdade total. Assim, o anarquismo, para elas, é a possibilidade de luta
e expressão última de sua libertação: se a construção da individualidade, tão importante para
os anarquistas, como o vimos, se em sua vida coletiva, em seu contato com outros
indivíduos e através da vida em comunidade, não como construir uma liberdade real para a
mulher se isso não ocorrer com a comunidade de indivíduos que a cerca, sejam eles homens,
mulheres, homossexuais, enfim...
Portanto, as anarquistas não lutaram somente pela incorporação da mulher na
sociedade tal como se organizava no momento presente da sua luta, requerendo para si
direitos civis e políticos (direito ao voto e a serem candidatas), como o fizeram as feministas
sufragistas ou liberais; também não lutaram para conquistar superioridade com relação ao
homem, mas sim questionaram a sociedade em todas as suas bases econômicas, políticas,
sociais, culturais e morais lutando por uma transformação radical dessas bases através da
construção de uma comunidade de indivíduos livres e solidários entre si. Em sua propaganda
anárquica, em suas peças teatrais, na educação libertária e nas greves levaram sua mensagem
também para os homens, buscando a libertação interna (da moral burguesa) e externa (das
instituições políticas e econômicas) para todos e a derrubada do Estado e das classes sociais,
assim como da religião esses sim os verdadeiros inimigos da libertação da mulher.
Essas mulheres também se diferenciaram profundamente das feministas comunistas
(marxistas), como Alexandra Kollontai. Para as anarco-feministas, como foram chamadas por
muitos estudiosos do anarquismo, o amor entre os indivíduos não deveria ser submetido a
nenhuma lei ou arcabouço teórico, seria ele livre, tanto na sociedade atual, quanto na futura, a
sociedade capitalista que seria responsável por submetê-lo às regras e aos interesses político-
econômicos. Kollontai, por outro lado, o analisava dentro da perspectiva do materialismo
histórico e afirmava que na sociedade socialista ele deveria servir aos interesses da
coletividade, que, nesse caso, pode ser entendida como Partido Comunista (como veremos
mais adiante).
As mulheres aqui estudadas (anarquistas brasileiras e estrangeiras que estavam em
pleno acordo e contato, já que o anarquismo era um movimento internacional) deram grande
enfoque à organização por livre iniciativa e pautada nas afinidades e reivindicações próprias
das mulheres, que para elas, assim como para os anarquistas estudados no presente
trabalho, a classe operária estava longe de ser homogênea; à propaganda e ao exemplo
(prática do amor livre, da livre união e da maternidade livre e consciente mesmo na sociedade
capitalista); às artes e a educação como meios fundamentais para se chegar à revolução e à
construção de uma nova sociedade - já que esses meios estariam em pleno acordo com os fins
a serem alcançados observando os meios violentos como ineficazes e afirmando que a
revolução social, para ser bem sucedida, deveria ser preparada. Acrescentaram também ao
anarquismo temas até então não trabalhados ou tratados de maneira superficial pelos
anarquistas do sexo masculino como a prostituição, o casamento, a maternidade, o amor e a
situação da mulher na sociedade capitalista.
Quando as mulheres anarquistas falavam que o havia libertação da mulher sem
libertação da humanidade não queriam negar a luta, ainda na sociedade capitalista, por
igualdade entre os sexos (igualdade salarial, por exemplo), pelo direito da mulher ao prazer
sexual e pela maternidade livre e consciente. Para elas a maternidade deveria ser fruto da
escolha consciente da mulher, ou seja, não seria algo divino, nem uma necessidade natural
obrigatória, mas sim fruto da vontade livre e espontânea, baseada nas condições e no tempo
que a mulher considerasse satisfatórios para tal. Os métodos contraceptivos e o controle de
natalidade seriam então uma forma de garantir essa maternidade livre e consciente e de
conquistar uma certa libertação ainda na sociedade capitalista, principalmente para as
mulheres operárias, que com salários baixíssimos (como na Primeira República) e muitos
filhos para sustentar teriam condições de vida extremamente penosas.
Para abordar profundamente esses temas tratados pelas anarquistas e aqui
apresentados, o presente capítulo foi dividido em três tópicos essenciais. O primeiro (3.1)
abordará questões presentes no imaginário social do fim do século XIX e início do século XX
a respeito da mulher; o segundo (3.2) mostrará a crítica de anarquistas no Brasil e no mundo
(sempre observando as ligações entre essas críticas Brasil/Mundo - que as anarquistas
estavam em contato constante, pelo menos através de textos impressos) a respeito de questões
tratadas no tópico anterior e como o anarquismo para elas significou uma forma alternativa ao
imaginário burguês no que diz respeito à mulher, observando-a como indivíduo que se
constrói em sociedade e, nesse sentido, como se diferenciaram dos anarquistas clássicos e
outros anarquistas brasileiros estudados nos capítulos anteriores; e o terceiro (3.3) analisará as
principais divergências de pensamento e as discussões e polêmicas entre as feministas de
outras vertentes e as anarquistas, buscando as especificidades na maneira de pensar das
últimas.
3.1 A mulher no imaginário social do fim do século XIX e início do século XX
[...] os imaginários sociais constituem outros tantos pontos de referência no vasto
sistema simbólico que qualquer colectividade produz e através da qual, como disse
Mauss, ela se percepciona, divide e elabora os próprios objectivos. É assim que,
através dos seus imaginários sociais, uma colectividade designa a sua identidade;
elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e das
posições sociais; exprime e impõe crenças comuns; constrói uma espécie de código
de “bom comportamento”, designadamente através da instalação de modelos
formadores tais como o do “chefe”, o “bom súbdito”, o “guerreiro corajoso”, etc.
(BAZCO, 1985, p. 309, grifos nossos).
Como dissemos anteriormente, com a crescente urbanização e industrialização dos fins
do século XIX e início do século XX as mulheres passaram a ocupar mais espaço na
sociedade na maior parte das cidades do país e até do mundo. Nas ruas de São Paulo, por
exemplo, sua presença era notável: muitas trabalhavam fora do espaço doméstico, como as
operárias e as empregadas de comércio, bancos e escritórios e freqüentavam o espaço urbano
por lazer (burguesas freqüentavam lojas, cafés e praças para fazer o footing e operárias iam
aos salões de leitura, centros de cultura social e teatros operários, além, obviamente dos
piqueniques e festivais operários). Essa presença massiça, no entanto, provocou
estranhamento e medo em rios setores sociais, principalmente no que se refere à presença
de operárias militantes, como as anarquistas. É justamente por isso, que inúmeros modelos e
padrões de conduta foram criados para controlar as mulheres no espaço público. Não cabia
simplesmente expulsá-las, afinal de contas elas eram importante parcela da mão-de-obra e da
população consumidora, mas era essencial controlá-las, através de modelos que
correspondessem à nova sociedade.
O crescimento econômico do país levou ao surgimento e à ascensão da classe
burguesa urbana e, por isso, os modelos e padrões de conduta que formaram o imaginário
social da época deveriam estar em pleno acordo com os ideais dessa classe e, mais ainda,
permitirem seu maior desenvolvimento econômico e sustentá-la enquanto classe dominante.
Nesse sentido, o corpo teórico e doutrinário que mais respondia aos ideais dessa burguesia e
que serviu de base à formulação de modelos de mulher foi, sem dúvida o positivismo.
[...] Essas idéias influenciaram grande parte dos intelectuais brasileiros, tanto por
seu caráter teórico-filosófico, como pelo teor republicano, ao enfatizar que o sistema
de governo monárquico deveria ser destituído em nome do progresso, que seria
alcançado através da consolidação da República, regime que melhor representa a
fase positiva. (ISMÉRIO, 1995, p. 16).
Para os positivistas, a família tinha um papel central na organização sociedade, era ela
quem a sustentava, baseada na moral, e que concretizava o progresso conquistado através da
cientificidade e da industrialização. Porém, o pilar da família, segundo esse corpo filosófico,
seria a mulher, logo, ela seria a responsável pela manutenção e propagação da moral e,
conseqüentemente, pela manutenção da sociedade burguesa. Segundo Auguste Comte (1798
1857), principal pensador positivista, a mulher deveria abdicar de direitos em favor de seus
deveres que deveriam ser de “rainha do lar e anjo tutelar” (ISMÉRIO, 1995, p. 19) de sua
família, ou seja, a mulher deveria ser dedicada ao marido, aos filhos e a casa, distanciando-se
do modelo de mulher pecadora, representado pela prostituta. Vale colocar aqui que a
prostituição era condenada pelos positivistas, mas eles nunca pregaram o seu fim. Para manter
um modelo de mulher ideal era essencial ter em contraposição o modelo da mulher pecadora e
perigosa à sociedade. Sueann Caufield (2000), por exemplo, afirma que a prostituição nunca
foi condenada pela polícia e pela justiça no Rio de Janeiro do início do século XX, muito pelo
contrário, ambos, juntamente com os médicos (pautados nas idéias de justiça e higiene
positivistas) da época, visavam controlá-la, criando estatísticas e zonas de meretrício.
Assim, pautados nesses ideais, médicos, juristas, políticos e educadores, pregaram
uma série de normas de conduta para as mulheres, que estiveram presentes no imaginário
social da época. A mulher deveria se casar cedo, pois o casamento (para os anarquistas:
aliança política e econômica, não necessariamente amorosa) era para ela também uma forma
de educação, além disso, deveria casar-se casta e se possível também o deveria o marido. Os
médicos da época afirmavam que o casamento proporcionava práticas sexuais higiênicas e
civilizadas, ao contrário da prostituição, que, apesar de não proibida, visto que o homem tinha
necessidades sexuais maiores que as das mulheres, segundo esses médicos, constituía uma
prática sexual ilícita e não saudável, que também podia propagar doenças como a sífilis e a
gonorréia vistas até então como grandes problemas médicos, que não havia um
conhecimento da cura de tais doenças. O exercício da sexualidade saudável, portanto, era um
dos alicerces da organização social. Regras para o casamento ditadas por Comte foram,
muitas vezes, seguidas por aqui:
1) Monogamia indissolúvel completada pela viuvez eterna;
2) Sustento da mulher pelo homem;
3) Livre desistência do dote (por parte da mulher);
4) Livre desistência da herança por parte da mulher;
5) Superintendência materna na educação;
6) Liberdade de testar;
7) Liberdade de adotar. (Hino ao Amor. Igreja do Apostolado Positivista no
Brasil, Rio de Janeiro, 1901, apud: ISMÉRIO, 1995, p. 23, grifos nossos).
É possível perceber no trecho acima citado que a maior parte das exigências com
relação ao casamento recaíam sobre a mulher. Ela era quem deveria ser fiel e manter-se viúva
eternamente, ela poderia (e até deveria) abrir o de dotes e heranças e ela é quem deveria
educar os filhos, os futuros cidadãos da pátria, os futuros responsáveis pelo desenvolvimento
econômico e moral da sociedade. Mesmo que na nova sociedade capitalista em pleno
desenvolvimento no início do século XX no Brasil, a mulher estivesse presente nas ruas por
vontade própria ou por necessidade, contrariando os ideais positivistas de Comte que
afirmavam o lar como seu santuário e o espaço fora dele como santuário do homem, ela
jamais deveria esquecer-se que seu espaço era o lar e que sua principal função na sociedade
era a manutenção dele e da família. Não deveria esquecer que seus principais deveres seriam
o trabalho doméstico, o cuidado e a educação dos filhos e a dedicação ao marido. Sem dúvida
alguma isso justifica o sobretrabalho da mulher que explicamos no capítulo anterior: ela
poderia trabalhar nas fábricas (também contrariando a idéia de Comte de que a mulher deveria
ser sustentada pelo marido) para colaborar com o sustento da sua família; sua participação no
trabalho fabril, no caso da família operária era essencial em razão dos baixos salários, porém
ao chegar em casa, ela é que deveria ser responsável pelos trabalhos domésticos, pela
educação dos filhos e pelos cuidados com relação ao marido a dupla jornada de trabalho,
como hoje a conhecemos. Ou seja, aqui no Brasil, o que fica evidente na cidade de São
Paulo, uma releitura do positivismo para manter a sociedade burguesa e respaldar seu
desenvolvimento: a mulher não foi retirada do espaço do trabalho para permanecer presa ao
lar, mas foi inserida sem deixar de lado as obrigações para com o lar.
A deusa do lar; é a progenitora do homem; é o seu anjo da guarda; é a sua amiga
natural, mãe, esposa e filha; é aquela que joga sua vida pela vida que nos . (A. R.
GOMES DE CASTRO, apud: ISMÉRIO, 1995, p. 7, grifos nossos).
Ainda para os juristas da época, apoiados em preceitos positivistas, a mulher era
naturalmente frágil, irresponsável, irracional e assexuada, portanto, deveria ser vigiada, pois
seria um ser fácil de corromper. Era um período em que estabelecer a honra da mulher e da
família era questão central na organização da sociedade, como afirma Sueann Caufield
(2000). Clóvis Bevilaqua, famoso jurista do período afirmava que:
Em tudo aquilo que exigir mais larga e mais intensa energia intelectual, moral e
física o homem será mais apto do que a mulher, mas em tudo que exigir dedicação,
persistência, desenvolvimento emo-cional delicado, o homem não pode ser
equiparado à sua companheira. (CLOVIS BEVILAQUA, apud: ISMÉRIO, 1995, p.
28, grifos nossos).
A mulher seria assim um ser naturalmente sensível, naturalmente dotado de
características emocionais, essa era sua virtude. Enquanto isso, o homem era o ser intelectual,
apto para a vida na sociedade da concorrência e dos grandes negócios.
Tudo isso foi respaldado pela medicina. Os médicos sanitaristas da época afirmavam
que a mulher tinha naturalmente dois caminhos: ou ser mãe e esposa ou ser prostituta, devido
a sua natureza leviana. Fragilidade e afetividade eram suas características naturais
predominantes nos dois casos. O ideal para a sociedade era que fosse mãe e esposa devotada,
fiel e obediente.
A educação das mulheres baseava-se na perpetuação desses modelos de mulher
criados e respaldados por médicos, políticos e juristas. Aprendiam desde a infância prendas
domésticas, costuras, bordados, rendas. Na escola aprendiam a tocar piano, violino, acordeom
(isso para as mulheres das classes mais altas da sociedade), assim como pintura e bordados.
Convém não esquecer que a emergência da família burguesa, ao reforçar no
imaginário a importância do amor familiar e do cuidado com o marido e com os
filhos, redefine o papel feminino e ao mesmo tempo reserva à mulher novas e
absorventes atividades no interior do espaço doméstico. Percebe-se o endosso desse
papel por parte dos meios médicos, educativos e da imprensa na formulação de uma
série de propostas que visavam “educar” a mulher para o seu papel de guardiã do lar
e da família a medicina, por exemplo, combatia severamente o ócio e sugeria que
as mulheres se ocupassem ao máximo dos afazeres domésticos. Considerada base
moral da sociedade, a mulher de elite, a esposa e mãe da família burguesa deveria
adotar regras castas no encontro sexual com o marido, vigiar a castidade das filhas,
constituir uma descendência saudável e cuidar do comportamento da prole.
(D’INCAO, 2000, p. 230, grifos nossos).
A moda serviu também como importante respaldo a esses ideais de mulher
consolidados nesse momento da história. A mulher agora era também consumidora e
justamente esse padrão de conduta e os padrões de beleza foram vendidos a ela nas grandes
lojas como o Mappin Store ou pelos ateliês de costura das madames paulistanas, como vimos
sucintamente no capítulo 2. Segundo a moda da época as mulheres deveriam vestir-se de
maneira elegante e “na medida” (sem muitos acessórios e com discrição) para não parecerem-
se com prostitutas e deveriam estar sempre arrumadas para o marido que chegava em casa
após um dia todo de trabalho, aliás, a casa também deveria estar sempre bem arrumada até
nos seus mínimos detalhes. A mulher, portanto, deveria ter aparência impecável e colaborar
com a família, o alicerce da sociedade.
[...] Mulheres casadas ganhavam uma nova função: contribuir para o projeto familiar
de mobilidade social através de sua postura nos salões como anfitriãs e na vida
cotidiana [com boa aparência e elegância], em geral, como esposas modelares e boas
mães. Cada vez mais é reforçada a idéia de que ser mulher é ser quase integralmente
mãe dedicada e atenciosa, um ideal que pode ser plenamente atingido dentro da
esfera da família “burguesa e higienizada”. (D’INCAO, 2000, p. 229).
Outro modelo de mulher criado nesse momento foi sem dúvida o modelo de mulher
moderna” ou “nova mulher”. As mulheres estavam nas ruas e muitas trabalhavam nas mais
diversas atividades
60
em desenvolvimento na cidade de São Paulo. Outras se dedicavam à
literatura e à música e muitas ganhavam a vida como professoras primárias. O modelo de
mulher moderna correspondia à realidade dessas mulheres, ou seja, a mulher moderna era
aquela que não se ocupava só do lar e da família, mas também de uma carreira, da aparência e
da convivência social. A nova mulher estava em toda a parte: nos cafés, nos salões de leitura,
nas praças, lojas, mas sem esquecer-se do seu lar, de sua missão como rainha do lar e anjo
tutelar da família. Sabia tocar instrumentos, como o piano e falar outras línguas, como o
francês. Feministas sufragistas e revistas como “A Cigarra”, que tinha grande circulação no
período aqui retratado, respaldavam esse modelo; as feministas afirmando que a mulher
deveria requerer direitos civis e ocupar-se de uma carreira, assim como do lar e a revista
promovendo concursos como da moça mais culta de São Paulo
61
, que premiava aquelas
mulheres que liam e recitavam poemas, falavam outras línguas, tocavam instrumentos
musicais, entendiam de artes e tinham certo conhecimento científico (ver capítulo 2).
Evidentemente esses modelos não foram seguidos pelas mulheres de todas as classes
sociais como afirmam certas análises pós-estruturalistas a esse respeito. Mulheres das classes
mais baixas, por exemplo, organizaram seu viver na cidade de maneira própria, sem se
submeterem a padrões de conduta burgueses. Trabalhavam e exerciam seu lazer em espaços
que não exigiam que tocassem instrumentos ou falassem outras línguas, mas onde pudessem
se comportar de maneira mais livre. Prostitutas também organizaram seu viver e seu trabalho
e formaram redes de amizades com homens influentes e policiais para se protegerem da ação
e da regulamentação de poderes públicos, como mostram-nos Cristina Schettini (2006) e
Sueann Caulfield (2000). Inúmeras mulheres lutaram cotidianamente pela sua liberdade e
autonomia na nova cidade e exerceram-nas em seus espaços de luta, trabalho ou lazer, sendo
sujeitos e não sujeitados por normas e padrões. O casamento, por exemplo, apesar de ser um
valor para todas as classes, não predominava entre as classes populares, não era a única via
legítima de união entre homem e mulher, como era para a classe burguesa, segundo Rachel
Soihet (2000), o mais comum entre essas classes populares eram as uniões menos burocráticas
60
Nicolau Sevcenko em seu “Orfeu extático na metrópole. São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos
vinte” (1992) mostra-nos claramente essa presença das mulheres nos diversos ramos de atividade na cidade de
São Paulo.
61
Nesse sentido vale a pena consultar “A cidade como espetáculo: publicidade e vida urbana na São Paulo dos
anos vinte” (2001) de Márcia Padilha.
e mais informais. O homem não era o mantenedor da família nas classes baixas, a mulher
tinha papel fundamental no orçamento doméstico.
Dessa forma, podemos perceber que o positivismo, na Primeira República em São
Paulo estava colocado no sentido de dar respaldo doutrinário e ideológico ao processo,
carregado de transformações econômicas, políticas, sociais e culturais, que se deu nesse
período. Houve aqui uma espécie de “releitura” dos modelos positivistas no sentido de
justificar a exploração do corpo e do trabalho da mulher, através de sua inferiorização em
relação ao homem em termos de racionalidade e inteligência. Sendo a o-de-obra feminina
tão essencial às indústrias e ao progresso da época, os juristas, médicos, políticos e
empresários, imbuídos dos ideais positivistas, justificavam, através deles e de seus padrões de
superioridade, inferioridade e explicações sobre a natureza de homens e mulheres, os menores
salários pagos às últimas, pressionando para baixo o salário de toda classe operária graças à
reserva de braços de trabalhadores, estimulando concorrência e cisões dentro da tão
heterogênea classe operária; justificavam também o sobretrabalho da mulher (a dupla jornada
de trabalho) e o consumismo de padrões de beleza, da moda, da aparência, da beleza, enfim...
Porém nem toda a sociedade partilhou desses padrões que acabaram por fazer parte do
imaginário social da época. Mulheres anarquistas em todo o mundo, desde os fins do século
XIX questionaram e propuseram alternativas a esses modelos; pregaram a luta, através das
organizações operárias e da propaganda pela arte, pela educação e pelo exemplo como meios
para se chegar à revolução social, vista por elas como única maneira de libertação total e real
de toda a humanidade; propuseram novas formas de vida e de união entre os indivíduos
mesmo dentro da sociedade capitalista, formas essas que deveriam estar pautadas nos ideais
finais do anarquismo como a solidariedade, o apoio mútuo e o amor livre. Falaram aos
homens e principalmente às mulheres buscando expor suas especificidades e suas dúvidas a
respeito de temas esquecidos ou escondidos pelos meios de comunicação da época, como
métodos contraceptivos e maternidade livre e consciente, contrariando uma das máximas do
positivismo de que a maternidade seria uma função natural da mulher e um dos principais
objetivos da união entre homens e mulheres, aliás, nesse sentido também foram além do que
pregavam os médicos e juristas da época, afirmavam que a base da união entre os indivíduos
não deveria ser, de forma alguma, os interesses políticos e econômicos, mas o amor e a
admiração, bem como a solidariedade e a vontade de compartilhar afinidades. Pensaram
formas de lazer educativo para as mulheres e homens, dentre eles o teatro que questionasse a
moral e a condição da mulher na sociedade burguesa, bem como o papel dela na sociedade
futura, anarquista. Além disso, pensaram a educação libertária como meio de emancipação
intelectual da mulher ainda na sociedade em que estavam inseridas (capitalista), afinal de
contas, para elas a emancipação intelectual era a principal base para a emancipação total e real
da mulher. Louise Michel, Emma Goldman, Voltairine de Cleyre (fora do país) e Maria
Lacerda de Moura (aqui em São Paulo) estão entre essas mulheres, para as quais o(s)
anarquismo(s) era a possibilidade mais completa de libertação da mulher de sua condição de
submissão pregada pela moral burguesa, apoiada nos preceitos positivistas.
Cabe dizer que as idéias e teorias dessas mulheres estão muito ligadas às suas vidas, às
suas experiências cotidianas como mulheres. É a partir de sua vida e do fato de sentirem na
pele esses novos papéis sociais que tentavam impor a elas que formulam suas idéias
associando-as aos ideais anarquistas que compartilhavam com outros libertários do sexo
masculino. Por isso, não há como entender suas teorias sem entender suas vidas e suas
práticas cotidianas; a formulação dessas teorias e ideais se dão como um processo em suas
próprias vivências. Então ao falarmos delas e de seus pressupostos teóricos anarquistas, como
o faremos a seguir, falaremos de suas vidas, trajetórias e práticas no movimento operário
libertário, para que assim possamos compreender a fundo o que era ser uma mulher anarquista
e o que de específico e que as diferencia dos homens anarquistas dos quais falamos ao
capítulo anterior. Além do que, suas memórias individuais servem para compreendermos a
própria memória coletiva do movimento anarquista. Nesse sentido, mulheres anarquistas
brasileiras e de fora do país tinham idéias em comum e, sem dúvida, as brasileiras liam as
estrangeiras nos jornais operários, como em “A Terra Livre” e em centros de leitura e cultura
social.
3.2 As mulheres anarquistas e suas críticas à moral e a sociedade burguesa (Louise
Michel, Emma Goldman, Voltairine de Cleyre e Maria Lacerda de Moura)
[...] Não podemos matar as idéias a tiros de canhão nem tão-pouco algemá-las.
O fim apressa-se tanto mais quanto o verdadeiro ideal surge, belo e poderoso,
superior a todas as ficções que o precederam. (MICHEL, 1971, p. 8).
Foram inúmeras as mulheres que lutaram pela libertação feminina através do
anarquismo, observando-o como única possibilidade de libertação total da mulher assim como
de toda a humanidade. Elas não pregaram a superioridade da mulher em relação ao homem,
mas sim, a construção, juntamente com ele, de uma sociedade justa e igual para todos. Nesse
sentido, criticaram o feminismo tal como se apresentava em fins do século XIX e início do
XX, como luta pelo voto, e acabaram por influenciar gerações de mulheres que lutaram em
outros momentos da história (como a década de 70 do século XX) por amor e união livres e
por uma maternidade consciente e fruto da vontade da mulher. Sem dúvida alguma, a
precursora do anarquismo feminista (ou anarco-feminismo, como colocam inúmeros
estudiosos do anarquismo) foi Louise Michel. Suas idéias influenciaram enormemente as
teorias e práticas das mulheres anarquistas em São Paulo na Primeira República (como Maria
Lacerda de Moura e as libertárias tratadas no capítulo 4 do presente trabalho).
No começo do século XIX, Marianne Michel trabalhava como empregada doméstica
em uma espécie de castelo na cidade Vroncourt (França), que pertencia à família de Étienne-
Charles Demahis desde o século o século XVIII. Ele era um magistrado que lutava pelos
direitos humanos, pela igualdade e pelos ideais da Revolução Francesa, mesmo que isso
pudesse lhe custar seu cargo. Sua esposa, Louise-Charlotte Mexence Porquert, era filha de
outro importante magistrado francês e, justamente por isso, foi criada em um ambiente que
lhe possibilitou aprender música, filosofia e ler poesia; assim como seu marido, era uma
defensora da igualdade e da humanidade e possuía uma fé imensa nos preceitos da Revolução
de 1789. Esse ambiente, carregado de idéias liberais, teve, no entanto, sua harmonia rompida
em 1829, quando Marianne engravidou. Étienne e seu filho, Laurent adepto dos mesmos
ideais dos pais , acusaram-se reciprocamente de serem o pai da criança. Laurent foi embora
de casa para não casar-se com a jovem e, em 29 de maio de 1830, nasceu Louise Michel.
Segundo Irma Boyer (1946), uma das biógrafas de Louise, tudo indica que Étienne era pai
dela, que Laurent não tinha motivos para não querer casar com uma empregada, visto que
renunciara ao conforto e a riqueza da sua família e casara-se com uma camponesa, com quem
vivia uma vida simples.
Étienne e Louise-Charlotte decidiram-se por criar Louise como uma filha da casa e
possibilitaram-na uma infância em contato com a natureza, com os animais e uma educação
sensível e sincera. Étienne ensinara Louise a ler e ela aprendeu escrever sozinha, durante a
infância e a adolescência teve bons professores, lia e discutia com o avô Voltaire, Rousseau,
Juan Huss, Saint-Just e Moliére, cujos textos influenciaram profundamente sua trajetória
como revolucionária. Desde a juventude correspondia-se com Victor Hugo para ela, seu
grande mestre e sua mais profunda influência de quem foi amiga até sua morte.
Ainda jovem, durante os tempos de Vroncourt, começou a questionar aqueles que
afirmavam a inferioridade do sexo feminino. Condenava o matrimônio burguês, em que a
mulher seria mero apêndice do homem e que as uniões raramente se dariam pelo amor, mas
constantemente pelos interesses políticos e econômicos, como algo humilhante e degradante
para a mulher. Tais idéias, que se confirmaram durante sua fase madura estavam na base das
idéias e práticas das anarquistas brasileiras; certamente Louise foi uma referência para elas.
La rebelaba la esclavitud de la mujer y guardaba una impresión profunda de las
teorías que Arnolfo expone a Inês en “La escuela de las mujeres”
62
.
Por su parte, tenía la decisión firme de no ser jamás “la sopa del hombre”. Toda su
dignidade, toda su altivez se alzaban contra semejante concepción del matrimonio,
tan humillante para la mujer.
Una unión carente de amor se le representaba por otra parte, como uma prostituición
y estaba dispuesta a rechazar com energia a los Arnolfos mejor rentados
63
. (BOYER,
1946, p. 49, grifos nossos).
Justamente por essa concepção rechaçou, aos 15 anos de idade o casamento
convencional e os pretendentes que procuravam-na. Resolveu que se casaria por amor e
estima (também como pensava Maria Lacerda de Moura), o que acabou por nunca acontecer
já que a única vez que se apaixonou, viu seu amor ser morto pelo governo de Versalhes após a
queda da Comuna de Paris.
Igual a las heroínas de Corneille, que sólo amaban a quien inspirara estima, Louise
solo quería casarse con un hombre digno de ella. “Ponía mis ilusiones a gran altura”,
escribe en sus Memorias. Para una personalidad tan selecta, intelectual y
moralmente, el amor sólo podía surgir de la admiración. Habiendo consagrado su
vida al ideal, la muchacha pretendía naturalmente un compañero generoso y fuerte
para sostener bien la lucha a su lado. (BOYER, 1946, p. 50 e 51).
O ano de 1845 representou uma virada decisiva para a vida e para o ideal de Louise
Michel. Nesse ano morreu aquele que ela chamava de avô (mas que pode ter sido seu pai
como vimos), após cinco anos da morte de Louise-Charlotte. A pequena parte da herança que
ele deixou para Louise foi contestada pela esposa de Laurent, que a colocava como filha
bastarda e, por isso, sem direito a nada. Com os avós mortos, ela decidiu então se tornar
professora, com isso poderia também ajudar a sua mãe. Em Chaumont, próxima a cidade do
castelo onde vivia, havia cursos normais para a promoção de professoras primárias, durante
um desses cursos ela estudou inúmeros temas para passar em todos os exames, o que ela
considerava superficial e fatigante. Ao fim do curso, em 1853, para não se afastar de sua e
aceitou um cargo de professora em Haute-Marne. Nesse momento uma republicana convicta
e, indignada com o golpe de Estado e com o Império, ensinava seus alunos a cantarem a
Marselhesa e, nas missas, os mesmos protestavam quando se ouvia “Domine salvum
Napoleonem”. Louise costumava afirmar que orar por Napoleão III e pelo Império era um
sacrilégio. Essas concepções, certamente influência de seu avô e dos textos que liam e
compartilharam, fez com que fosse chamada a dar esclarecimentos e fez com que se mudasse
para Audeloncourt. No ano de 1856 tinha um cargo de professora no instituto para meninas
62
Arnolfo escreve sobre o papel e a função da mulher na sociedade. Como os positivistas afirmava seu papel
social de “rainha do lar” e “anjo tutelar da família”.
63
Aqueles homens que quisessem se casar com ela simplesmente por interesses econômicos, que quisessem uma
mulher “rainha do lar” e que não tivessem amor e admiração por sua personalidade. Para ela as uniões deveriam
pautar-se na independência e no companheirismo.
dirigido por madame Vollier em Château-d’Eau 14 e pode, assim realizar seu sonho de viver
em Paris.
Paris crescia e perdia suas ruas estreitas onde foram construídas barricadas nas
revoluções de 1830 e 1848 (que contaram com a participação ativa de Bakunin). Boulevares e
avenidas amplas as substituíam, para possibilitar maior acesso das tropas em caso de levantes
da população. Monumentos públicos e casas grandes e alinhadas, praças, a Ópera Nova,
Chatelet, Igrejas e quartéis foram construídos, tudo segundo as reformas de Haussman
64
. A
atividade econômica se intensificava (indústrias, concentração de capital, inventos científicos
e tecnológicos, assim como a aplicação da ciência na vida prática) e, com isso, inúmeras e
profundas transformações sociais ocorriam. Criavam-se sociedades de crédito, os
especuladores, banqueiros e financistas passaram a ter um papel social central na sociedade, a
Bolsa de Valores transforma-se pouco a pouco no coração da cidade. Mulheres burguesas
ostentavam adornos e luxos enquanto a prostituição crescia e o corpo feminino era cada vez
mais visto como mercadoria, assim como tudo no capitalismo moderno.
Nessa “nova Paris” Louise vivia uma vida simples. Como professora adjunta com
Madame Vollier e diretora de internato em 1865, com sua sócia Caroline L’Homme, durante
todo o Império ela se viu obrigada a debater-se com a pobreza e as preocupações com
dinheiro. Os aluguéis eram caros e a remuneração escolar baixa.
Para Louise o Império não era capaz de dar conta de tantas mudanças sociais,
políticas, econômicas e culturais pelas quais passava a França nesse momento. Sob o regime
de Napoleão III aumentavam os impostos, a miséria e as guerras soldados eram mandados
para toda a parte, sem suprimentos, armas e uniformes suficientes, para garantir a vitória do
imperador e seu sistema a qualquer custo, mesmo que em detrimento do povo. Ela possuía
uma crença profunda no progresso e na evolução da humanidade; as transformações ocorridas
então seriam, na verdade, expressão desse progresso para o qual rumava a humanidade, e
resultaram, segundo ela, de lentas evoluções, pois, em certos momentos, os acontecimentos
envolvem tanto os seres que a ação precede à vontade. Porém, para que a humanidade pudesse
evoluir mais e chegar ao progresso o Império deveria ser derrubado, que colocava-se como
empecilho.
O pão está caro, o dinheiro é raro
Haussman faz subir as rendas,
O governo mostra-se avarento,
só os denunciantes tem boa mesada!
Cansado de tão longo jejum
64
Nesse sentido, Leonardo Benevolo em “História da arquitetura moderna” (1999) faz uma análise profunda das
reformas hausmanianas em Paris e seus impactos sociais.
que pesa sobre o povinho
já é tempo, sim senhor,
dele tomar o freio nos dentes!
Dancemos a Bonaparte!
Não é a nós que nos presenteamos,
Dancemos a Bonaparte!
Ainda havemos de meter na carta
o chilindró! (MICHEL, 1971, p. 15, grifos nossos).
Essa crença no progresso, que viria após a derrubada do Império, segundo Louise
Michel, era muito comum aos anarquistas, como vimos anteriormente, no entanto, nesse
momento ela ainda não era uma anarquista e sim republicana. Somente a República poderia
ser o ideal de sistema político-econômico-social para uma sociedade em transformação que
visasse o progresso. Participava de reuniões do Partido Republicano, onde conheceu os chefes
de tal Jules Favre, Eugene Pelletan e Jules Simon - e participava de reuniões em sociedades,
também de cunho republicano, onde comparecia em cursos de química, física e história
natural. Foram as idéias republicanas que a impulsionaram para a participação direta nos
acontecimentos que levaram a queda do Império, como propagandista e participante de
manifestações públicas e atos violentos.
Àqueles que querem continuar a ser escravos:
já que o povo quer que a águia imperial
continue a planar sobre a sua abjecção.
Já que ele continua a dormir, esmagado pelas frias ruínas da eterna opressão;
Já que todos eles, os que são delegados
estendem o pescoço submisso ao carrasco,
o melhor, amigos, é largar o cutelo
e acabar de uma vez com o cobarde rebanho!
Um só vale mil quando dá a vida,
e diz adeus a todos de uma vez para sempre
um por um, iremos, com uma audácia terrível,
porque temos connosco o ferro e o fogo!
Basta de cobardes, os cobardes são traidores;
a multidão vil, come, bebe e dorme:
se quiseres ficar, fica a lamber os senhores.
Não te chegam já os mortos que tens?
O sangue dos teus filhos faz vermelho o chão
dorme sobre os ossos junto aos muros surdos.
Dorme, enquanto, abelha por abelha,
cresce o heróico enxame das gentes populares!
Montmartre, Belleville, ó legiões valentes.
Vinde, vinde todas, a hora já chegou.
De pé! A vergonha pesa e pesam as cadeias,
De pé! Como é belo morrer! (MICHEL, 1971, p. 17 e 18).
Em fins da década de 60 do século XIX aderiu à Internacional, como republicana, e
aos protestos dela contra as guerras de Napoleão. Essa associação era duramente perseguida
pelo Império e taxada por ele como sociedade secreta; seus membros eram presos e
submetidos a julgamentos, que segundo Louise, funcionavam como meios de propaganda das
suas idéias, aliás, para ela a repressão exercida pelo Império fazia com que ela conseguisse
maior adesão popular. Os Internacionalistas Franceses, inclusive ela, protestaram contra a
guerra franco-prussiana de 1870, para eles a guerra significava a morte de irmãos
trabalhadores promovida pelos próprios trabalhadores e em prol de governos, sustentadores da
exploração e da opressão. Essa concepção a respeito da Guerra, embora em momentos
históricos distintos, era a mesma das anarquistas paulistanas, que afirmavam a Primeira
Guerra Mundial como massacre de irmãos operários em prol dos governos, assim como fizera
Louise.
Outros fatos, em que Louise esteve presente ativamente, e que se somaram à pressão
dos internacionalistas pela queda do Império foram: o funeral de Victor Noir, que havia sido
assassinado por um primo de Napoleão; e o caso de La Villette, em que blanquistas e
revolucionários ocuparam o quartel dos bombeiros no boulevar de La Villette, 141 para
proclamar a República, mas que foi reprimido pela polícia que invadiu o local e prendeu
inúmeros manifestantes. No último caso ela levou um abaixo-assinado em nome do povo de
Paris para o governo, através do General Trochu pela libertação de Eudes e Brideau,
condenados à morte após serem presos em La Villette.
O acontecimento que, enfim, colocou fim ao Império de Napoleão III foi a derrota de
suas tropas em Sedan e a prisão do Imperador em 2 de setembro de 1870
65
. O povo,
mobilizado em diversas ações, gritava “Viva a República!” e tomava as ruas de Paris junto
com os soldados da Guarda Municipal. Juntos invadiram o corpo Legislativo. Presos do
governo imperial foram postos em liberdade, a multidão dirigiu-se para a Câmara Municipal
em um grande levante, no qual Louise estava presente.
Ainda nesses momentos que antecederam à proclamação da República, Louise rompeu
totalmente com o espiritualismo. O homem para ela, o que também a aproximava do
anarquismo, seria o resultado de influências múltiplas.
La idea es, pues, en verdad, producto del organismo humano [...] - , y sin embargo
diríase que lo caldea y conduce así como el conductor lleva la máquina. Esto se
explica: puesto que los seres son producto de su época, ésta, los levanta junto con las
demás partículas de polvo. (MICHEL, apud: BOYER, 1946, p. 70, grifos nossos).
65
Esse acontecimento também foi decisivo para o processo de anexação da Alemanha. Os soldados alemães
lutaram ao lado da Prússia na guerra franco-prussiana e, em 1870, após a vitória na guerra se completou o
processo de unificação com a anexação à Prússia dos estados do sul da Alemanha, fundando-se assim o II Reich
Alemão, em 1871.
Também rompeu com qualquer idéia de vida após a morte. Segundo ela a vida seria
um teatro de transformações em que para ela existir, se renovar e transformar seria essencial a
morte. através dessas transformações se realizaria o progresso e a evolução, que seriam
também processos naturais. Nesse caso, suas concepções naturalistas parecem-se com as de
Kropotkin.
[...] El sólo medio que permite a un ser humano no morir por completo, consiste en
consagrar su vida a un fin que lo transcienda; el egoísmo es vano; la búsqueda de
felicidad, una tontera; por lo demás, si la dicha existiera seria efímera. Lo más
racional que se ofrece al hombre es acatar la gran ley de la naturaleza que mezcla la
vida individual a la universal; es vivir para el conjunto de la humanidad y
sacrificarse al progreso humano. (MICHEL, apud: BOYER, 1946, p. 76).
A República foi proclamada em 4 de setembro de 1870 e tinha um caráter
extremamente patriótico: defender a República significava defender a pátria da invasão
estrangeira. Salvar a República era salvar a França dos antigos inimigos do Império. O povo
organizava clubes e comitês de vigilância, eleitos em assembléias populares, para defender o
novo regime da ameaça estrangeira. Assim Louise se preparava para defendê-la. Foi nesse
momento que aprendeu a atirar com amigos e amigas republicanas e fazia parte do clube da
Justiça e Paz e do comitê de vigilância (ambos) de Montmartre (aliás, andava armada com
uma antiga baioneta, para se defender enquanto presidia clubes e comitês). No entanto, a
República estava longe de ser o ideal. O governo, colocado pelo povo em luta no poder,
negociava, “às costas desse povo”, o armistício com a intervenção de outros países neutros.
Notícias de rendição provocavam a ira da população.
Uma vez reconquistada a paz, não se tratava para nós de criar uma república
guerreira e agressiva para os outros, mas de instituir a Internacional pelo mundo
inteiro sob o ardente impulso das idéias sociais. (MICHEL, 1971, p. 78).
Para Louise nada havia mudado, “uma vez que as engrenagens haviam mudado de
nome; tinham uma máscara nova, mais nada” (MICHEL, 1971, p. 81), qualquer homem, uma
vez no poder, cometeria crimes, pois o poder o corrompe. Essa desilusão com a República de
4 de setembro, no entanto, foi decisiva para a formação das idéias, teorias e, principalmente
para a militância dessa anarquista. A partir das atitudes tomadas pelos governantes
republicanos, Louise percebeu que o problema não estava em uma ou outra forma de governo
(Império ou República), mas sim na própria idéia de governo, que seria sempre um meio de
manter seu poder e os privilégios da classe dominante, mesmo através da força. Nesse sentido,
as guerras e os acordos (como o do armistício, proposto pelos republicanos), seriam sempre
necessários para os governos se manterem - as guerras mantinham o apoio da população ao
poder e colocavam um governo em uma melhor “posição” com relação a outros governos.
Através dessa convicção e dessa descrença no ideal republicano, ela se aproximou cada vez
mais dos ideais anarquistas até defendê-los de maneira absoluta, dos dias da Comuna de Paris
até o fim de sua vida. Sua crítica ao poder político passou a ser incisiva a partir daí e
influencia as teorias e a militância de muitas libertárias como Emma Goldman (EUA), Maria
Lacerda de Moura a Izabel Cerrutti (São Paulo Brasil).
[...] O que havia afinal era uma série de bandidos que combatiam o Império: tinham
entrado como esquilos na cabana onde antes deles corriam outros, movendo a
mesma roda que outros tinham movido antes deles, e que outros irão mover.
(MICHEL, 1971, p. 89).
Mas essa desilusão não era só de Louise Michel, foi compartilhada por inúmeros
cidadãos parisienses. O governo ocultava as derrotas, falava de não rendição, quando essa era
certa; de vitória e expulsão dos prussianos, quando os alemães tomavam territórios franceses.
Paris, então sublevou-se. O que a população acreditava era que a demissão do governo e a
instauração de uma comuna poderiam garantir a defesa da cidade, por isso invadiram a
Câmara Municipal, em 31 de outubro de 1870. Evidentemente o governo não aceitou esse
pedido e promoveu inúmeras prisões dos opositores da República e espalhou o medo por toda
a parte. Somente nas reuniões livres havia revolucionários e somente em tais reuniões eles
podiam expressar seus pensamentos. Em seu escrito “A Comuna - vol. 1
66
Louise nos conta
os acontecimentos e o funcionamento dessas organizações e reuniões livres, organizadas de
maneira espontânea pelo povo. O que podemos perceber nesses relatos é que não havia uma
liderança, mas sim uma organização espontânea, como pregavam os anarquistas e como o
fizeram as anarquistas paulistanas ao formarem suas associações por ofício (como veremos no
capítulo 4), apesar disso, não devemos tomá-las como unicamente libertárias, que as várias
tendências políticas (como anarquistas, republicanos e blanquistas) estavam ali concentradas.
Porém fica claro que esse era o tipo de organização que Louise afirmava como essencial à luta
pela libertação, ao afirmar que era o “único ambiente onde se podia ser livre de verdade”
(MICHEL, 1971, p. 98).
Chegavam todos entre as cinco e seis horas da tarde; resumia-se o trabalho efetuado
durante o dia e aquele que havia a fazer para o dia seguinte; conversava-se até o
último minuto e, às oito horas, cada qual partia para o seu clube respectivo.
(MICHEL, 1971, p. 99).
Em reuniões como essas se decidiam atos de protesto que foram decisivos para a
instauração da Comuna de Paris, como o protesto de 22 de janeiro de 1871, onde Louise e
seus companheiros foram armados, juntamente com uma multidão, aa Câmara Municipal.
66
Esse livro teve inúmeras edições no mundo todo. Em Portugal, cuja edição usamos para esse trabalho, foi
publicado em dois volumes (“A Comuna”, 1 e 2) em 1971, mas seu título original era “La Commune: Histoire et
Souvenirs I et II” , foi escrito logo após a volta de Louise da prisão na Nova Caledônia e publicado na França em
1898.
Segundo ela: “a primeira vez que defendemos a nossa causa pelas armas, vivemos a luta com
tal intensidade que quase nos transformamos em projécteis (MICHEL, 1971, p. 112). O
governo republicano mandou que a fuzilaria abrisse fogo contra essa multidão, o que acabou
causando muitas mortes e perseguições (clubes, locais de reuniões e jornais foram fechados,
os últimos, substituídos por cartazes do governo, e reuniões públicas foram extintas). De
qualquer forma foi um ato decisivo para a propagação das idéias e a instauração da Comuna,
inclusive entre membros do exército e da marinha. Louise inclusive planejou matar Thiers,
membro do governo provisório, não o fez quando convencida pelos seus companheiros de
que esse ato seria um duro golpe à comuna, tanto pela repressão que se seguiria, quanto pela
possível condenação da população ao ato.
De Montmarte a Belleville, animaba al proletariado de París una voluntad igual de
resistir hasta la muerte al prusiano y de defensa social contra la burguesia. Con
ayuda de los recuerdos que databan del 93 fué naciendo la idea de instaurar, en lugar
del gobierno de defensa nacional, una COMUNA electa, que seria emanación
propria del pueblo de París. (BOYER, 1946, p. 101).
Durante essas agitações e reuniões o número de mulheres participantes era expressivo:
formaram-se organizações femininas, muitas das quais atuavam na frente armada,
arrecadavam fundos para conseguir ambulância e muitas mulheres burguesas se uniam às
associações e sociedades de socorros das vítimas da guerra. Louise Michel trabalhava mais na
“Seção da Pátria em Perigo” e na comissão de vigilância de Montmartre do que nas
sociedades de socorro. Nenhuma delas podia ouvir falar de rendição: “é verdade que as
mulheres amam as revoltas. Não valemos mais que os homens, mas o poder ainda não nos
corrompeu”, dizia ela. Ainda destaca-se a participação, dentre essas mulheres, de várias
professoras, que assim como ela, não deixaram escolas pararem de funcionar por causa dos
acontecimentos. A maioria delas trabalhava em escolas de ensino elementar e profissional
gratuitas.
[...] Eu tinha três cursos: o de literatura, onde era fácil encontrar citações de autores
antigos que se adaptassem à situação actual; o de geografia antiga, onde as
investigações e os nomes do passado levavam às investigações e aos nomes
presentes, e onde se podia imaginar o futuro sobre as ruínas do passado. [...] Tinha
ainda [...] um curso de desenho. [...]
Quando as coisas se complicaram, Charles Sirvry passou a dar as aulas de literatura
e Mademoiselle Potin, minha amiga e camarada, ficou com as aulas de desenho.
(MICHEL, 1971, p. 134).
Em 26 de março de 1871 a população parisiense votou pela comuna. Soldados,
exército e marinha entraram no edifício da Câmara Municipal com bandeiras e faixas
vermelhas, assim como com o busto da República. Dois dias depois, em 28 de março do
mesmo ano, entre os intervalos dos tiros de canhão o povo proclamava a Comuna, aos gritos
de “Viva a Comuna!”. Louise Michel, agora uma anarquista convicta, afirmava que ela não
deveria ser proclamada pelo voto, mas sim revolucionariamente. Negava qualquer tipo de
ação que se assemelhasse à ação parlamentar (certamente essa idéia também influenciou as
libertárias paulistanas), mas apoiava e lutava por uma comuna livre, bem aos moldes
federalistas defendidos por Proudhon e Bakunin, e a idéia de que a Revolução Social seria
fruto da vontade do povo, jamais algo pré-determinado. Vê-se em seus relatos também a
defesa dos anarquistas de um poder pactuado.
Se algum poder podia fazer qualquer coisa, esse poder era o da Comuna, constituída
por homens inteligentes e cheios de coragem, com uma honestidade inacreditável;
homens que tinham dado, desde sempre, provas de uma devoção e de uma vontade
para o sacrifício; souberam morrer heroicamente.
O poder é maldito e é por isso que sou anarquista. (MICHEL, 1971, p. 168, grifos
nossos).
Imediatamente após a proclamação da Comuna o governo republicano, agora
refugiado em Versalhes, começou uma implacável reação. Os membros da Comuna de Paris
eram das mais várias tendências político-sociais - blanquistas, republicanos, socialistas,
anarquistas -, mas segundo Louise havia uma maioria revolucionária e uma minoria socialista
“pensando demasiado”, frente a essa reação do governo. Para ela, o dinheiro dos bancos
deveria ter sido confiscado pela Comuna para que ela conseguisse se manter (segundo a
própria idéia anarquista de expropriação), o que não ocorreu. As primeiras medidas da
Comuna, como: a abolição dos cultos e proibição da venda de objetos Mont-de Pieté; a
confiscação dos bens de raiz; a instituição de pensão para os federados feridos na guerra,
revertendo-a para a mulher ou filho em caso de morte em combate do mesmo; a pensão
alimentar dada as mulheres que se separassem com provas válidas; a abolição dos processos;
interdição de investigações sem mandados regulares; a proibição da acumulação de empregos
e fixação do ordenado máximo de seis mil francos anuais; os pagamentos aos membros da
Comuna de quinze francos por dia; a organização de um tribunal civil; aquisição de oficinas
abandonadas pelas sociedades do trabalho; pagamento de professores estabelecido em dois
mil francos; a derrubada da Coluna de Vendôme (erguida em homenagem a Napoleão); a
proibição de multas nas oficinas; abolição de discursos políticos e profissionais; e o fim da
execução dos prisioneiros de Versalhes, não foram suficientes para segurar a fúria da reação
governamental. Não houve extinção da propriedade privada, nem expropriação dos meios de
produção. Nem por isso, Louise deixou de lutar pela Comuna.
Os primeiros dias da Comuna foram prósperos: a arte e as ciências (astrologia,
química, metereologia, embriologia, elétrica) se desenvolveram fortemente, porque a Comuna
permitia aos cientistas e artistas trabalharem com isso, sem terem que fazer outros
trabalhos; os museus e jardins públicos foram abertos. Mas a necessidade de defesa e luta
contra a reação era tão presente que Louise Michel engajou-se rapidamente no 61° Batalhão
de Marcha de Versalhes, corpo do exército de Eudes, para proteção da Comuna ela
combatia como soldada armada -; a esse batalhão se juntaram ainda outras vinte mulheres nos
dois ou três dias que se seguiram, grande parte delas cuidava dos feridos. O 61° saiu em
marcha para atacar Versalhes no dia 3 de abril e permaneceu assim até maio.
[...] nem era o medo de morrer, nem o de matar que dominava o pensamento, mas
sim o ideal realizável através da luta armada. (MICHEL, 1971, p. 190).
Para Louise Michel e seus companheiros anarquistas da Comuna, a consolidação de
uma Comuna Livre através da luta armada seria a possibilidade de construir uma sociedade
nova, comunista e igual para homens e mulheres. assim ambos poderiam viver em plena
liberdade, igualdade e em solidariedade e apoio mútuo, unindo-se livremente para maior
desenvolvimento individual e, conseqüentemente coletivo (já que para ela o individuo
desenvolve sua personalidade em contato com a comunidade de indivíduos, que só podem ser
verdadeiramente livres e felizes em comunidade). Essa seria a possibilidade de libertação de
homens e mulheres, sem distinção de qualquer tipo, ou seja, a sociedade em que cada
indivíduo deverá ser livre “dentro do princípio da livre união”, como ela mesma afirmava. Os
dias de luta dessa anarquista pela Comuna Livre serviram de exemplo para as anarquistas
paulistanas, que empreenderam uma luta pelos mesmos ideais de construção de uma
sociedade livre, pautada na livre união. Seus textos foram publicados com freqüência no
Brasil e divulgados em São Paulo pelo jornal “A Terra Livre”. O texto abaixo, escrito por um
grupo de anarquistas da Comuna, exilados em Londres três anos após seu fim, e transcrito por
Louise Michel em sua obra “Mis recuerdos de la Comuna” (1973), mostra claramente o
anarquismo defendido por eles o anarquismo comunista (também defendido amplamente em
São Paulo, como vimos), que a Comuna poderia ter conseguido realizar (ela seria o meio mais
de acordo com os fins que eles desejavam alcançar). Seria ela a forma de libertação dos
trabalhadores pelos próprios trabalhadores, pautados nos princípios de solidariedade e união:
Somos ateos porque el hombre no será jamás libre mientras no haya expulsado a
Dios de su inteligência y de su razón. [...]
Que la Comuna libre para siempre a humanidad de este espectro de sus miserias
pasadas, de esta causa de sus miserias presentes. En la Comuna, no hay lugar para el
sacerdote: toda manifestación, toda organización religiosa debe ser proscrita.
Somos comunistas, porque queremos que la tierra, que las riquezas naturales dejen
de ser apropiadas por algunos, y que pertenezcan a la comunidad. Porque queremos
que libres de toda opresión, dueños al fin de todos los instrumentos de producción:
tierra, fábricas, etc., los trabajadores conviertan el mundo en un lugar de bienestar y
ya no de miséria. [...]
Al destruir la propiedad individual, el comunismo hace caer una a una todas esas
instituiciones de las que la propiedad es el eje [...] Con el aniquilamento de las
clases, desaparecerán todas las instituciones opresivas del individuo y del grupo,
cuya única razón de ser era el mantenimiento de esas clases, la sujeción del
trabajador a sus amos. [...]
Somos revolucionarios, o comuneros, porque, queriendo la victoria, queremos sus
medios; porque comprendiendo las condiciones de la lucha, y queriendo cumprirlas,
queremos la organización más fuerte de combate, la colición de los esfuerzos, no su
dispersión, sino su centralización. [...] La Comuna es la forma militante de la
Revolución Social.
El grupo: La Comuna Revolucionaria. Aberlen, Berton, Breuillé, Carné, Jean
Clément, F. Counet, Ch. Dacosta, Delles, A. Derouilla, É Eudes, H. Gausseron, E.
Góis, A. Goullé, E. Granger, A. Granger, A. Huguenot, E. Jouanin, Ledrux, Léonce
Luillier, P. Mallet, Marguerittes, Constant-Martin, A. Moreau, H. Mortier, A.
Oldrini, Pichon, A. Poirier, Rysto, B. Sachs, Solignac, Ed. Vaillant, Varlet, Viard.
(MICHEL, 1973, p. 437 a 440, grifos nossos).
A Comuna, que ganhava apoio de sindicatos, maçons e de várias regiões da França e
mesmo em outros países, foi cada vez mais atacada pelo governo, cada vez mais as mortes e
prisões aumentavam e as munições dos batalhões, como o 61° Batalhão de Marcha do qual
Louise fazia parte segundo ela nessa época se dedicou tão inteiramente à causa que poucas
vezes dormia uma noite inteira e mais raramente ainda visitava sua mãe -, a resistência, no
entanto era heróica, as mulheres novamente participavam em grande número, muitas delas
também se ocupavam de organizar cantinas, além dos ambulatórios para primeiros socorros.
Eis as mulheres com a sua bandeira vermelha, furada pelas balas, saudando os
federados; foram elas que organizaram um serviço de ambulâncias para o forte;
daqui [do forte de Issy] os feridos são transportados para Paris. Dispersamo-nos para
podermos ser mais úteis. Eu fui para a estação de Clamart, batida durante todas as
noites pela artilharia de Versalhes. Subia-se ao forte de Issy por uma pequena colina
rodeada de sebes; o caminho estava todo florido e cheio de violetas que abafavam os
tiros.
Próximo, havia um moinho de pedra; éramos poucos nas trincheiras de Clamart; se o
canhão do forte não nos defendesse poderia haver surpresas. Os homens de
Versalhes ignoravam sempre nosso reduzido número. (MICHEL, 1971, p. 194).
Mesmo assim a Comuna não conseguiu se manter por muito tempo. Por toda a parte
havia versalheses, assim como conspiradores e traidores, que avisavam dos pontos fracos na
segurança de Paris. As mulheres erguiam barricadas na Praça Blanche e na Praça Pigalle
67
,
Louise estava com o exército para o combate no cemitério de Montmartre e na barricada de
Clignancourt. Mas as mortes aumentavam, Versalhes entrara em Paris em 21 de maio de
1871 e abria fogo indiscriminadamente contra a população de Paris. Em 28 de maio do
mesmo ano a Comuna estava definitivamente liquidada, a partir de então ocorreram inúmeros
fuzilamentos (segundo Louise Michel, o número de executados estava por volta de cem mil) e
prisões.
67
Dessas mulheres não é possível sabermos mais nada além de seus nomes pelo relato de Louise Michel. Não há
nada que indique qual tendência política seguiram. Entre elas estavam: Elisabeth Dmihef; Lemel; Malvina
Poulain; Blanche Lefebvre; Excoffons.
Louise conseguiu esconder-se após a queda definitiva da comuna, mas sua mãe foi
presa e, por isso, ela resolveu entregar-se em troca da soltura da mãe. Foi enviada para a
prisão de Sartory, onde acreditava que seria fuzilada. No entanto, isso não ocorreu e, com um
grupo de mulheres foi enviada à prisão de Chantier para aguardar seu julgamento definitivo.
Em seus relatos, ela afirmava que não foi fuzilada porque Versalhes não tinha mais lugar para
tantos mortos na cidade. Valas comuns estavam cheias, assim como o Rio Sena e as ruas de
Paris. As filas de prisioneiros dessa época eram imensas, todos eram levados para as prisões a
para que a população pudesse observar o que ocorria com aqueles que se opunham ao
governo, seja ele republicano ou imperial.
Nessa última prisão Louise era considerada uma das piores presas por ter atirado na
cabeça de um oficial a garrafa de café que sua mãe conseguira lhe mandar; por fazer
caricaturas na parede dos visitantes da prisão e por reivindicar que as mulheres burguesas, que
apoiavam Versalhes não fossem fazer caridade na prisão para não “emporcalhar a Comuna”
(MICHEL, 1971a, p. 105). Justamente por isso foi enviada ao correcional de Versalhes com
outras trinta e nove mulheres, consideradas também de péssimo comportamento.
No correccional, o regime das quarenta piores foi singularmente abrandado: deram-
nos autorização para tomarmos banho, forneceram-nos roupa branca [até então as
mulheres vestiam a roupa do corpo desde que foram presas] e permitiram a visita
dos familiares. (MICHEL, 1971a, p. 106).
Do correcional foi enviada para a prisão de Arras, onde permaneceu até seu
julgamento em dezembro de 1871. Havia para os prisioneiros três tipos de penas possíveis:
deportação com prisão em fortificações; trabalhos forçados e deportação comum. Louise
Michel foi condenada por luta armada em movimento insurrecional pelo Conselho de Guerra
de Versalhes e sua pena foi a primeira das três possibilidades. Ela não tentou defender-se,
pediu aos juízes para ser fuzilada, mas assumiu a pena e foi enviada à Nova Caledônia, um
conjunto de ilhas a seiscentas léguas da Austrália. Dentre os presos e condenados havia
também crianças de oito a quinze anos de idade, que tiveram pais que participaram da
Comuna. A mensagem que dava às suas companheiras que lutaram na comuna era a seguinte:
[...] Vamos, vitoriosas, vamos manter-nos unidas e, unidas nos nossos interesses
comuns com os trabalhadores, com eles solidárias nos esforços derradeiros.
(MICHEL, 1971a, p. 222).
Assim, para ela, a mulher e o homem não estavam em posições opostas. As opressões
sentidas por um e outro, embora diferentes, eram fruto da mesma coisa: da sociedade
capitalista de classes e suas instituições políticas, econômicas, sociais, culturais, morais e
religiosas. Juntos, homens e mulheres, deveriam derrubá-la para alcançar a libertação total e
real, através da construção da sociedade anarquista e comunista, onde solidariedade e união
livres seriam os principais valores sociais. Assim também pensava Maria Lacerda de Moura e
outras libertárias paulistanas no começo do século XX.
Em sua prisão, apesar dos padecimentos físicos, da pouca comida e vestuário e dos
maus tratos dos carcereiros, ela continuou a lecionar para os filhos dos deportados e para os
nativos, fez também diversas observações da natureza, podendo estudar na prática várias
espécies de insetos e plantas que não existiam na Europa e aprendeu vários dialetos locais.
A anistia ocorreu em 1880 e Louise foi direto para Londres, onde permaneceu oito
anos, indo à França para algumas visitas, para participação em movimentações (como
greves e manifestações de desempregados), e para dar conferências (onde propagava os ideais
anarquistas), que era considerada uma excelente oradora, assim como também era Maria
Lacerda de Moura em São Paulo. Louise acreditava que os meios violentos (luta armada)
eram essenciais para se chegar à revolução social ao qual almejavam os anarquistas (nesse
sentido, suas idéias são diferentes das anarquistas paulistanas, que, na maioria das vezes
apostaram em meios revolucionários não violentos), mas para que a sociedade a ser
construída não fosse pautada na violência dos momentos revolucionários ela deveria ser
preparada através das ações em greves, onde os operários vivem na prática a solidariedade e a
luta pelos seus direitos, valores tão importantes à futura sociedade. A propaganda, nesse
sentido, era fundamental para que mais pessoas estivessem lutando pelo ideal e para poupar
mortos em momentos de ação armada violenta, assim como seriam fundamentais também as
artes e a educação (como veremos a frente), que além de propagar os valores sociais
libertários, funcionavam como uma forma de propagação de idéias anarquistas. Em 21 de
novembro de 1881, por exemplo, Louise falava em uma reunião pública na sala de Elisée
Reclus em Montmartre, onde foi ovacionada por uma multidão de operários ao defender as
ações violentas como meios revolucionários e o chamado “terrorismo anarquista” (em
algumas circunstâncias):
[...] Que o tiranicidio [entenda-se terrorismo] sólo es practicable cuando la tirania
tiene una cabeza o cierto grupo de cabezas; cuando se convierte en hidra, hace falta
una revolución. (MICHEL, apud: BOYER, 1946, p. 217).
Suas conferências, pelas quais nunca cobrou nada, eram proferidas, além da França,
na Holanda e na Inglaterra (país onde passou a viver agora). Nestas, além de defender meios
violentos e propaganda, também para a preparação revolucionária, defendia a organização
como fundamental à luta e opunha-se a atuação parlamentar, afirmando que essa seria só uma
forma de legitimar a exploração e o Estado, responsável pela defesa dos interesses dos que
exploraram os trabalhadores, assim como afirmava Izabel Cerrutti em São Paulo (ver capítulo
4). Ela admitia, inclusive, que anarquistas e socialistas deveriam estar unidos em uma luta
comum até que suas divergências não falassem mais alto, como defenderia Malatesta mais
tarde (no começo do século XX).
Combatimos al enemigo común. Por mi parte no me ocupo para nada de asuntos
particulares y estoy, lo repito con todos los grupos que ataquen, sea con la azada, sea
con la mina, sea por el fuego, al edifício maldito de la vieja sociedad. (MICHEL,
apud: BOYER, 1946, p. 211, grifos nossos).
Por causa dessa intensa atividade, Louise foi presa inúmeras vezes. Em uma das vezes
usou um tribunal francês como meio para a propagação de suas idéias (anarco-feministas),
questionando a dupla moral burguesa e os papéis dados à mulher na sociedade. Nessa ocasião
foi condenada à seis anos de reclusão em estabelecimento central e dez anos de vigilância pela
alta polícia após dizer aos juízes:
Una cosa hay que os sorprende y molesta: que una mujer se atreva a defenderse. No
se acostumbra ver una mujer que ose pensar; conforme a la expresión de Proudhon,
se quiere ver en cada mujer la dueña de casa o la cortesana.
Hemos enarbolado la bandera negra porque la manifestación podia ser
esencialmente pacífica, por ser la bandera negra de las huelgas, la bandera de
quienes tienen hambre.
He recorrido Europa diciendo que no reconocía fronteiras, diciendo que la
humanidad entera tiene derecho al acervo de la humanidad. Y este patrimonio no
nos pertenece a nosotros, acostumbrados a vivir en la esclavitud, sino a los que
tendrán libertad y sabrán disfrutarla. (MICHEL, apud: BOYER, 1946, p. 233 e 234,
grifos nossos).
Antes de ir para a prisão (Central de Clermont) Louise passou pela prisão de Saint-
Lazare onde teve contato com inúmeras prostitutas que estavam presas e pôde, com isso,
desenvolver melhor suas idéias sobre a prostituição. Para ela, a prostituição era uma desonra,
um ato absurdo e humilhante para a mulher, mas para o qual tinham sido levadas muitas
moças e mulheres pelas ssimas condições em que viviam e pelos baixíssimos salários que
recebiam, mesmo quando faziam o mesmo trabalho que homem. Ou seja, a prostituição seria
decorrência da sociedade de classes e das péssimas condições em que vivia a classe
trabalhadora. Em uma sociedade igualitária e anárquica ela deixaria de existir completamente.
Também compartilhava dessa idéia Maria Lacerda de Moura, que iria criticar mais tarde as
teorias científicas que inferiorizaram a mulher, empurrando-a para caminhos como o da
prostituição. Para Louise, as prostitutas ainda eram submetidas, nas ruas, à exploração de
cafetões e da polícia.
Si las mujeres de las prisiones causan horror, a mí me repugna la sociedad!
Que se suprimia primero la cloaca. Cuando haya sitio limpio al sol, nadie se metera
en la basura.
Niñas de voces suaves y puras; helas aqui de vuestra edad, con voces quebradas y
rudas. Es que no se vive como ellas viven, sin beber para aturdirse; para olvidar que
se vive.
Saint-Lazare! Escuchad, muchachas que nunca dejasteis a vuestras madres; aqui hay
jovenes como vosotros, niñas de diez y seis años. Pero ellas no tienen madre o sus
madres no tiveran tiempo de velar por ellas.
Las pobres no pueden tener sus hijos a su lado ni tomarse el tiempo necesario para
velar a sus muertos. Están pálidas, marchitas; es para libraros de los ataques de
quienes dicen los imbéciles se echarían sobre vosostras si su hambre de carne
fresca no pudiera saciarse en la calle, en la hija del pueblo.
Llaman a esto igualdad y justicia. (MICHEL, apud: BOYER, 1946, p. 250 e 251,
grifos nossos).
Com a morte de sua mãe, em 1885, e a intensa participação do povo em seu enterro o
governo quis lhe dar um indulto da pena. Inicialmente Louise se negou a aceitá-lo, mas depois
acabou convencida de que fora da prisão poderia ser mais útil à causa, podendo retomar suas
giras de propaganda e “arruinar um pouco mais o edifício carcomido dos governantes”
(MICHEL, apud: BOYER, 1946, p. 269 e 270).
Una mujer es siempre tan poca cosa que amigos y enemigos se complacen siempre
en depararle un destino humillante, aun cuando saben, unos tan bien como otros, que
no será débil. (MICHEL, apud: BOYER, 1946, p. 269).
Seus últimos anos de vida na França (até 1890) não foram nem um pouco menos
conturbados do que toda a sua vida, continuava ativa em movimentos de trabalhadores e dava
inúmeras conferências até que em uma delas sofreu um atentado. Pierre Lucas, um operário
alcoólatra ligado a um grupo católico entrou em uma sala de conferências atirando e acertou
Louise Michel na cabeça. Ainda consciente, ela pediu à multidão que queria linchar o
atirador, que o deixassem ir. Foi levada ao hospital e Pierre foi preso. Após sua recuperação
ela fez questão de ser a testemunha de defesa do preso em seu julgamento afirmando que ele
havia sido levado pelo desespero e pelas suas péssimas condições de vida, assim como as de
sua família, a cometer tal ato - ele era uma vítima da má organização social.
A partir de 1890 fixou-se em Londres novamente após ver crescer um complô, na
França, para interná-la em um sanatório. Ali conheceu e travou amizade com vários
anarquistas como Emma Goldman
68
(que conheceu em um congresso anarquista), Malatesta,
Carlo Malato (com quem freqüentava grupos anarquistas e sociedades fraternais) e Kropotkin,
o que mostra, mais uma vez, o caráter internacionalista do movimento anarquista e a afinidade
de pensamentos entre seus mais diversos militantes.
A menudo iba a trabajar a lo de Kropotkin. Quien no haya vivido en la intimidad de
este gran sábio no puede hacerse una idea de su bondad y grandeza de alma. En
Londres se respetaba a Kropotkin como a un Dios y, personas que no compartían sus
ideas debían sin embargo inclinarse ante ese apóstol de la humanidad. Este hombre
que tanto sufriera en su vida, no podía ver sufrir a los demás; tenía tal sensibilidad
68
Em suas memórias “Vivendo mi vida” (1996) Emma Goldman cita esse encontro como um dos maiores de sua
vida, ela coloca Louise Michel como heróica por sua luta na Comuna e destaca sua grandeza moral ao defender o
homem que atentou contra a sua vida. Certamente o pensamento e as ações de Michel influenciaram muito as
teorias e práticas de Emma, assim como a influenciou Kropotkin, para ela, seu grande mestre.
que el menor infortúnio le arrancaba lágrimas. Cada dia asaltaba su casa una turba
de pobres que iban a pedirle limosla. Kropotkin daba algo a cada uno. También
trataba de difundir su hermosa doctrina a los cérebros de todos aquellos
desventurados. (MICHEL, apud: BOYER, 1946, p. 304 e 305).
Os clubes dos quais Louise e outros anarquistas faziam parte em Londres, dentre os
quais destacamos o Clube Autonomia, faziam festas públicas com representações teatrais,
assim como as que ocorriam em São Paulo (ver capítulos 2 e 4). Tais festas, tanto como
aqui, tinham como objetivo propagar as idéias anarquistas e promover arrecadação financeira
para o movimento, além de serem um lazer instrutivo e um instrumento didático para a classe
operária, o mesmo se dava com o teatro anarquista nelas representado, servia como
propagação de idéias, instrumento didático, lazer instrutivo e não alienante, como imagem da
sociedade futura e, com isso, meio de preparação moral e material para essa sociedade. Louise
escreveu inúmeras peças que foram representadas nessas festas, em uma delas, chamada “El
Ogro y Prometeo”, apresentava Prometeu como um mortal que tinha ideais (e não mais como
o filho de Zeus), mas que era constantemente persuadido por fúrias a desistir de seus
sacrifícios em nome de tais ideais, elas tentavam incutir-lhe uma série de dúvidas.
Primera Furia
Todos tus sueños son locos y todo en la naturaleza
Vive a muerte o sierve a otro pasto
El lejano ideal que aquí perseguías
Jamás existirá para ningún ser viviente
Muchos otros, después de ti, en la estéril tierra,
Como tu soñaran la huidiza quimera
Del progreso eterno que siempre se escapa
Arrogando a las noches los inútiles días.
Segunda Furia
Por siempre brillarán auroras sangrantes
Suciediendo a noches de pálido espanto
Nunca verá nadie lo que tu creías
Sabe-lo bien. Nunca! Nunca! Nunca!
Prometeo mira el horizonte sin responder. La furia prosigue:
Puedes buscar a los lejos, en inmensas llanuras
Cerrado está el futuro a las razas humanas
Escucha venir de allá unos aullidos
Es la canción de muerte que sube en el viento.
[Mas Prometeu reafirma a sua fé no progresso:]
Veo ascender albas blancas
Allá, en las grandes ollas desiertas
Oigo las alas entre las ramas
Veo luces por los Aires.
Se alza de la naturaleza
Un canto magnífico y pujante
Mucho durará acaso la sombra
Pero el Progreso irá creciendo.
[as ondas do mar representam o progresso constante da natureza e do homem, que
exige sacrifícios]
Las Hijas del Oceano
El mar palpita, rueda la ola
Rueda inmensa, calma y durmiente
Igual que la savia y la sangre
Guarda una viva rompiente.
Ondas monótonas llevaos
Horas y dias. Pasad! Pasad!
La arena montonada en las playas
Y la hora que siempre transcurre
Y el espacio como los días,
Juntos mezclan vida y sueños;
Ondas monótonas llevaos
Horas y días. Pasad! Pasad!
Durante el canto, Prometeo inclina la cabeza para morir. Las hijas del océano se
inmovilizan un instante en su aspecto de olas. Silencio. El viento sopla.
Durante mucho tiempo, titurados como granos,
Morirán los rebeldes por los rebaños humanos.
(MICHEL, apud: BOYER, 1946, p. 308 a 311).
Escreveu outras inúmeras peças tratando de combates violentos entre forças do
passado e do porvir. Em “La conquista del mundo” nunca publicada, mas citada pela sua
biógrafa Irma Boyer (1946) fazia uma representação quase mística da sociedade futura
(anarquista), onde a inteligência do homem se elevaria à alturas desconhecidas e o amor
imenso uniria todos os corações. “A fera ancestral das épocas passadas morre para sempre
diante da floração esplêndida da humanidade nova”, dizia ela no ato final dessa peça.
Fica evidente nos escritos de Louise Michel e nessas obras aqui apresentadas sua
concepção contrária a de arte pela arte, que para ela era uma arte vã. Suas poesias, como
podemos observar nas citações aqui apresentadas, estão ligadas a temas político-sociais ou à
crítica à sociedade capitalista. Tal concepção também estava presente no movimento
anarquista paulistano, principalmente nas peças teatrais apresentadas pelas libertárias no
teatro operário de São Paulo (como veremos no capítulo 4). Henri Barbuse (1946) em seu
prefácio à obra de Irma Boyer afirmou que ela:
[...] no amó el arte por el arte. Ningún poeta proclamo con mayor fuerza que el
artista tiene una misión social que cumplir y que la obra de arte debe constituir una
acción. La obra maestra hacia cuya consecución deben tender finalmente todas las
fuerzas del artista es su propia vida. (BARBUSE, apud: BOYER, 1946, p. 10, grifos
nossos).
Assim como Kropotkin:
El Bien y lo Bello se identificaron en su espíritu y en la mañana de la vida Luisa
Michel se decide a asignarle un objetivo supremo: la felicidad de la humanidad.
Desde entonces sólo concebirá el arte como instrumento al servicio de la idea;
escritores y artistas tienen para ella una misión social que cumprir, a la que deben
subordinarse la melodía del verso o la magia de las palabras. Esta doctrina explica
la belleza de su obra literária, que vale ante todo, por la profundidad y sinceridad de
pensamiento y sentimiento y después por la expresión estética de fidelidad
admirable, de artista que sabe maravillosamente elegir y combinar las imágines para
que el esplendor de la forma iguale al de la idea. [...] Sus novelas y dramas de
factura romántica, en que el arte de la composición no aparece, donde los personages
demasiado numerosos y demasiado simbólicos carecen a menudo de vida, no están
empero desprovidos de todo valor literario; abundan en descripciones de relieve, en
pasajes magníficos de elocuencia y lirismo, en que el alma de Luisa Michel se
manifesta con notas de espléndida belleza. (BOYER, 1946, p. 325 e 326, grifos
nossos).
Em São Paulo o nome e os textos de Louise Michel eram referência para o movimento
operário anarquista e certamente as mulheres anarquistas brasileiras compartilhavam de
muitos de seus pensamentos. Podemos perceber isso pelos artigos publicados pela imprensa
anarquista em São Paulo. “A Terra Livre”, em janeiro de 1910, por exemplo, publicava um de
seus textos intitulado “Posse, e não saque”, nele é possível percebermos uma afinidade entre
seus pensamentos (como a defesa da expropriação total da classe burguesa) e os de libertárias
paulistanas como Izabel Cerrutti e Iza Rutt:
Entenda-se bem: o que se prepara no mundo inteiro é a tomada de posse da terra
pela humanidade livre e não o despojo duma casta nem de classe em benefício de
outra.
Não se trata duma vasta conspiração que ameace separadamente o despotismo, os
misticismos dogmatizantes ou as instituições que servem de fundamento as
iniqüidades privativas, mas do derrubamento do regimem de privilegio em toda a
sua integridade carcomido já pela gangrena da sua corrupção e monstruosidade de
seus crimes.
Os que representam esse regimem, ou melhor, aquelles sobre quem pesa mais
directamente a responsabilidade da sua existencia, julgam ver por todas as partes
conspiradores que os ameaçara de morte. É o espectro da sua própria conciencia!
O velho mundo sucumbe sob o peso da sua maldade; quer mover-se, tomar novo
alento, e só produz estertores de agonia.
O sangue dos mártires vertido em torrentes durante o curso da História; justifica a
esperança no porvir; bella como o desejo, infalível como a justiça, completa de
felicidade para as futuras gerações e ainda para os que na triste atualidade tem a
generosa heroicidade de saber morrer por ella.
Talvez, os senhores houvessem atrasado o derrubamento final, aligeirando as
cadeias, diminuindo os sofrimentos, suavizando as virtudes da cruel e estupida
inquisição exercida contra os infelizes; teem tido carência dessa prudente e mínima
bondade e a consequencia tem sido exacerbar a intensidade revolucionaria das
multidões ávidas de desfrutar a vida natural e os progressos pela humanidade
acumulados na civilização moderna.
Conforme o proletário se eleva, decaem os potentados; muitos destes creem que a
sua importancia os aponta ao odio, e no seu ridiculo terror caem na miseria manha
das perseguições; terrível desgraça, castigo fisiologico que reduz as suas victimas ao
ridiculo, chegando mais bem a inspirar riso que compaixão.
Na Antiga Grécia obrigavam-se os escravos a embriagar-se diante da juventude para
atrair sobre elles o desprezo. Nos nossos dias são os potentados que se oferecem a
tão desprezível espectaculo: vede o sultão vermelho rodeado de uma cavalgada de
Atilas, em que figuram imperadores, reis e presidentes, tristes personagens a quem a
ideia do veneno torna amargos os manjares com que se alimentam e o temor de ver
surgir um assassino detrás duma cortina de seu aposento ou de baixo do leito onde
transcorrem horas de insomnia, perturbam o seu descanço, apesar das bençãos de
todos os Torquemadas do mundo. Empenhados em obscurecer o brilho da sciencia,
em ultrajar a majestade da justiça, patrocinadores de iníquas empresas, fomentam a
guerra e com ella a fome, a peste e a miseria; exemplo casa expedição ao Transvaal
para satisfazer agiotas, e essa outra á China para dar gosto aos missionarios, os quais
se tem visto conduzir os soldados ao assassinato, á violação e ao incêndio. Vêde-os
em horrível cortejo, á guisa de carnaval de morte, passar em meio da ostentação
oficial como símbolos do mal, do poder e da riqueza; riboniba o canhão, fendem os
ares as musicas militares, repicam os sinos, relincham os cavallos, brilha a
iluminação; é uma marcha de fachos, a ultima; um desfile de fantasmas, porque
alem no horizonte desponta a alva da epoca da redenção; em breve o sol levante
alumiará as multidões mundiaes que com passo rapido, desprezando os obstaculos,
esmagando os reptis e monstros ocultos na sombra, saudarão o despertar do mundo
com as aclamações do triunfo, os hinnos á revolução terminada, o júbilo de viver
sem humilhação e sem soberba, e com ellas tornará realidade e condição de
perseverança a união dos povos na paz, na justiça e na liberdade, será a internacional
do mundo em plena sciencia, em plena posse do ideal. (Posse, e não saque.
LOUISE MICHEL. A Terra Livre, São Paulo, 10 de janeiro de 1910, número 66,
grifos nossos).
Louise Michel morreu em 10 de janeiro de 1905. Seu corpo foi levado à Paris, para o
cemitério de Levallois-Perret, onde estava enterrada a sua mãe, sua amiga Maria Ferré e
Théophile Ferré, único homem pelo qual se apaixonou e que viu ser fuzilado em 1871, logo
após o fim da Comuna. Seu pensamento influenciou inúmeras mulheres anarquistas que
atuaram em várias partes do mundo no começo do século XX
69
, como Emma Goldman, nos
Estados Unidos e na Rússia; Maria Lacerda de Moura no Brasil e Voltairine de Cleyre
também nos Estados Unidos.
Voltairine de Cleyre nasceu em Leslie, Michigan Estados Unidos, em 17 de
novembro de 1866, segundo Emma Goldman (1991), recebeu esse nome porque seu pai era
admirador de Voltaire. Ainda na adolescência foi obrigada a entrar para um convento católico
de onde fugiu, esse fato foi decisivo para a sua ruptura com a religião e a adesão ao ateísmo
mais tarde. Participou ativamente de uma das revoltas que mais influenciou o movimento
anarquista no mundo a revolta de Haymarket (Chicago) no ano de 1886
70
, onde operários
em greve foram mortos e anarquistas julgados e condenados à morte por participação em
revolta contra os patrões e o governo. Sua vida foi curta - morreu em 19 de junho de 1912,
muito doente -, mas sua militância deixou influências profundas em todo o movimento,
principalmente entre as mulheres libertárias (inclusive entre as libertárias de São Paulo).
Trabalhou também a favor da Revolução Mexicana nos Estados Unidos arrecadou fundos,
69
Certamente também influenciou as feministas da década 70 do século XX.
70
Em 1° de maio de 1886, operários da fábrica de Haymarket (em Chicago) declararam greve pela jornada de
oito horas de trabalho (oito de trabalho, oito de lazer e oito de descanso). Quatorze deles foram mortos depois de
enfrentamentos com a polícia e outros oito anarquistas (Albert Parsons, August Spies, Louis Lingg, Adolph
Fischer, George Engel, Michael Schawab, Samuel Fielden e Neebe) foram presos e condenados em 1887. Esse
fato teve tanta importância para o movimento operário no mundo todo que o dia 1° de maio foi escolhido, no
Congresso Internacional Socialista de 1891, como Dia do Trabalhador para homenagear essa luta. Além disso,
muitos trabalhadores, como Emma Goldman, aderiram ao anarquismo por causa desse evento, do qual Voltairine
de Cleyre foi ativa participante.
escreveu artigos e deu conferências sobre o assunto. Basta, para compreendermos essa
influência, observarmos o que Max Nettlau em sua obra “La anarquía a traves de los tiempos”
(1977) escreve sobre essa libertária:
La más bella flor de esa evolución libertaria entre americanos, que, sin preocuparse
de las escuelas socialistas y anarquistas europeas, trataba simplesmente de combinar
el maximo de libertad, de solidariedad y de sentimiento tan revolucionário como
abnegado para los trabajadores explotados, para las mujeres enfeudadas a las
costumbres de la familia, para la humanidad sometida a los gobernantes - fue
Voltairine de Cleyre (1866 1912), inspirada en sus comienzos por el libre
pensamiento, el martirologo de Chicago y las ideas e impulsiones de Dyer D. Lum
(1839 1893), pero llegada durante sus veinticinco años de actividad a una
concepción de la anarquía que fue tal vez la más amplia, tolerante y además seria,
reflexiva, determinada, que conocemos al lado de la de Eliseo Reclus. (NETTLAU,
1977, p. 170, grifos nossos).
Ela foi uma ativa defensora do anarquismo comunista (anarco-comunismo), assim
como Malatesta, Kropotkin e Louise Michel. Afirmava que esse “reconhece a cooperação
livre, em cujo seio todos os métodos e aplicações podiam exercitar-se” (CLEYRE, apud:
NETTLAU, 1977, p. 159). Porém, segundo ela, o método da ação direta era o mais completo
para que a humanidade pudesse alcançar o progresso através da construção da sociedade
anárquica. Ação direta seriam as reações espontâneas - organizadas ou não, pacíficas ou
violentas daqueles que se sentem oprimidos por uma situação, sem que para isso, sejam
essenciais um pensamento anterior (se vantagens ou não na ação), nesse sentido, ainda
segundo ela, aqueles que pensam demasiado nas ações são oportunistas, não acionistas
diretos. Fica clara aqui a sua concepção do anarquismo como fruto da vontade individual ou
coletiva e da ação e espontânea de indivíduos organizados em grupo (quando afinidade de
pensamento e interesse, assim como cooperação) ou não. A História, dessa forma, seria fruto
dessa luta direta (ação direta) de indivíduos oprimidos que buscam o progresso através de sua
libertação.
Qualquer pessoa que, em um momento dado achou que tinha o direito de afirmar
alguma coisa e que, corajosamente o fez, sozinha ou em companhia de outras que
partilhavam de suas convicções, estava sendo um “acionista direto”.
Qualquer pessoa que um dia planejou fazer alguma coisa, e que o fez, ou que expôs
seu plano a outras pessoas, e obteve sua cooperação para que agissem em conjunto,
sem procurar autoridades externas para implorar que elas realizassem aquela coisa
em seu benefício, foi um acionista direto. Todas as experiências de cooperação são
basicamente ação direta. (CLEYRE, 2001, p. 28, grifos nossos).
Assim, greves, sabotagens e boicotes, atitudes tão utilizadas pelas anarquistas em São
Paulo, como por exemplo, ao virarem um bonde que levava operários fura-greves para o
trabalho, seriam formas de ação direta. Por outro lado, eleições seriam um método indireto de
ação, ou seja, se tentaria legalizar aquilo que se quer obter. A ação política teria como base a
coerção: o Estado decide e aplica aquilo que foi legalizado (em decretos, leis, mandados,
enfim...), mesmo que seja através da força (o que geralmente ocorre, segundo Voltairine).
Direito significaria então, coerção. Assim, ação direta precede a ação política, o que não quer
dizer que não hajam boas medidas formuladas por ação política, mas a ação direta, além de
mais eficaz, as precede. Antes das leis, a ação direta desperta a consciência para a necessidade
de garantia de diretos. Justamente por compartilharem dessa concepção, as libertárias
paulistanas lutaram cotidianamente e tentaram fazer com que suas lutas se concretizassem em
leis (como leis de salários iguais para homens e mulheres que desempenhassem a mesma
função e a regulamentação do trabalho noturno para mulheres e crianças) ou seja, a ação
direta (em lutas cotidianas e movimentações operárias), precedia às leis (que, mesmo assim,
deveriam existir para garantir às trabalhadoras melhores condições de vida e trabalho, mas
que sem a ação direta não seriam nada além de coerção).
É através dos atos diretos dos precursores da mudança social, e graças a eles, sejam
eles de origem pacífica ou belicosa, que a Consciência Humana, a consciência das
massas, se desperta para a necessidade de mudança. [...] A ação direta é sempre
aquela que clama, a iniciadora, através da qual a grande massa de indiferentes se
conscientiza de que a opressão está se tornando intolerável. (CLEYRE, 2001, p. 34,
grifos nossos).
Juntamente com a ação direta, para Voltairine, devem estar as formas de ajuda mútua
direta, como armazéns organizados pelos próprios produtores (para armazenagem de
produtos, mantendo-os fora do mercado para evitar especuladores); bolsas de trabalho
(produtoras de notas de crédito para produtos depositados em troca); e cooperativas.
Observamos aqui aquilo que Max Nettlau falava dessa libertária: a sua concepção ampla e
reflexiva da anarquia, baseada na liberdade e na solidariedade. Para ela, a ação direta seria
essencial à luta, seja por melhorias momentâneas (melhores salários, menos horas de trabalho
e condições menos despóticas e menos perigosas também para o trabalho), seja pela revolução
social, assim como defendiam Bakunin e Malatesta, porém ela deveria estar acompanhada da
ajuda mútua direta (tal como defendeu Proudhon no que se refere ao mutualismo), essencial
para que os trabalhadores pudessem se manter em luta sem muitos prejuízos materiais e para
que aprendessem e sentissem na prática a solidariedade, que seria a base da sociedade livre e
igualitária, mas que sozinha não levaria à revolução. A revolução social, que só seria vitoriosa
através da derrubada do monopólio legal da terra e do dinheiro, pela expropriação total (assim
como defendeu Kropotkin), seria alcançada através dessas duas premissas, ou métodos:
ação e ajuda mútua diretas. Sem dúvida alguma as libertárias que atuaram na Greve Geral de
1917 em São Paulo se apoiavam nessa concepção, aplicando métodos de ação direta e
exercendo a solidariedade e o apoio mútuo.
As greves seriam um dos métodos de ação direta mais eficazes para que o operariado
pudesse alcançar seus objetivos, pois eram um instrumento temido pelo patrão, porque a
produção e os negócios dele seriam prejudicados, mesmo que essa greve não levasse à
revolução social. Nesse sentido, Voltairine não afirmava, em seus poucos escritos publicados,
que a greve poderia necessariamente levar à revolução, assim como também colocava
Malatesta, mas que essa proporcionava aprendizagem na prática e era uma forma de alcançar
melhores condições de vida no presente. A greve levaria à revolução se fosse seguida da
expropriação total (meios de produção, terra e dinheiro). Para atuar em greves, no entanto, os
operários deveriam estar organizados de maneira livre, espontânea e direta. Por isso, os
sindicatos livres teriam um importante papel na luta dos trabalhadores, sem esquecer que esse
não deveria ter diretores e funcionários, muito menos cobrar quantias de ingresso, e sim ser
constituído através de afinidades de interesses e pensamento, visto que a classe operária era
tão heterogênea. Esse pensamento, sem dúvida alguma influenciou o movimento das mulheres
anarquistas em São Paulo, como vimos elas foram as primeiras a colocarem-se em greve na
Greve Geral de 1917 e também se organizaram em sindicatos livres e por ofício, como os
sindicatos de costureiras. Assim, novamente como Malatesta, Voltairine de Cleyre acreditava
que o sindicalismo não se bastava a si próprio, que ele deveria ampliar seus objetivos e
colocar-se em greve geral, seguida de expropriação total para alcançar à revolução social.
Greve Geral (forma de ação direta, que acaba sendo sempre violenta, também por causa da
violência da repressão do Estado e dos patrões), seguida de expropriação total, segundo ela,
seriam as formas de se chegar à revolução social bem sucedida e preparada através da luta
cotidiana por melhorias e por direitos e pelas associações de apoio e ajuda mútua.
Concordo plenamente que as fontes da vida e toda a riqueza natural da terra e as
ferramentas necessárias para a produção cooperativa devem se tornar livremente
acessíveis a todos. É para mim uma certeza absoluta que o sindicalismo deve
ampliar e aprofundar seus objetivos, ou se afogará: e estou certa de que a lógica da
situação pouco a pouco os obrigará a verem isso.
[...] [Os sindicatos devem entrar em greve] pelo todo, pela riqueza natural da terra. E
o próximo passo seja a expropriação direta de toda essa riqueza.
[...] [Os trabalhadores] devem aprendem que seu poder não depende da força do seu
voto, que seu poder depende de sua capacidade de parar a produção. (CLEYRE,
2001, p. 41, grifos nossos).
Ou seja, a greve, a expropriação e a revolução social seriam obra dos próprios
operários, organizados para alcançar seus objetivos finais (revolucionários) e melhorias
mesmo na sociedade capitalista. Aliás, segundo ela, toda a estrutura social depende dos
trabalhadores.
Mas o que a classe trabalhadora pode fazer, quando crescerem e se transformarem
em uma organização sólida, é mostrar a classe produtora, através de uma súbita
interrupção de todo o trabalho, que toda a estrutura social depende deles; que as
possessões dos demais são totalmente inúteis para seus donos sem a atividade dos
trabalhadores; que manifestações como essas, greves como essas, são inerentes ao
sistema de propriedade e continuarão a ocorrer até que todo o sistema seja abolido
e, tendo demonstrado isso de uma maneira eficaz, sigam adiante e expropriem.
[...] a Vida clama por viver, e a Propriedade lhe nega a liberdade de viver; e a Vida
não se sujeita a isso. (CLEYRE, 2001, p. 42, grifos nossos).
Assim como Louise Michel, Voltairine de Cleyre sofreu um atentado no ano de 1901.
Anarquistas de todos os Estados Unidos se uniram em campanha para arrecadar dinheiro para
seu tratamento de saúde
71
. Quando ela saiu do hospital negou-se a denunciar o jovem que
atentara contra sua vida (um menino que fora seu aluno), além disso, pediu que toda a
imprensa anarquista ajudasse na sua defesa, afirmando que o garoto tinha sido tomado pela
preocupação de não ter emprego e que precisava de amor. Uma atitude também muito
parecida com a de Louise Michel
Voltairine também criticou o casamento e a dupla moral sexual burguesa. O
anarquismo estava intimamente ligado à luta pela libertação da mulher que viria através da
libertação de todos os indivíduos: “a meu ver (...) qualquer dependência, qualquer coisa que
destrua a total autonomia de um indivíduo, assemelha-se à escravidão” (CLEYRE, 2001, p.
26). Sem dúvida alguma essa frase expressa o pensamento de todas as mulheres anarquistas.
Para elas qualquer dependência, seja entre homens e mulheres, seja de um governo seria
escravidão. Por isso a libertação total, de todos os indivíduos, seria alcançada através da
destruição do Estado e da expropriação da burguesia, para a construção de uma sociedade
anárquica, livre e igualitária. Aliás, sobre o governo, Voltairine afirmava:
[...] a natureza do governo é tornar-se uma coisa separada, uma instituição que existe
para seu próprio benefício, caindo como uma ave de rapina sobre o povo, e
ensinando seja o que for que tenda a mantê-lo seguro em seu assento. (CLEYRE,
2001, p. 48).
Assim, a força do governo significaria a fragilidade do povo. Desse pensamento e dos
pensamentos e modos de ação citados acima compartilhou Emma Goldman, que, além de
grande admiradora e leitora de Voltairine, foi sua amiga, sentindo profundamente a sua morte.
Inclusive, Voltairine substituiu Emma em uma de suas falas em um comício porque essa fora
presa, protestando veementemente contra tal prisão. Juntas também lutaram pela diminuição
da pena de Alexander Berkman em 1893 (ele havia sido condenado a vinte e dois anos de
prisão por atentar, em 1892, contra a vida de Henry Frick).
Emma Goldman nasceu em Kovno (Lituânia, estado de domínio russo nessa época)
em 27 de junho de 1869 em uma família judia que sofrera inúmeros reveses econômicos e,
por isso, passavam por uma situação financeira delicada que os levou a mudarem-se para São
71
Emma Goldman participou ativamente dessa campanha.
Petesburgo (Rússia) onde ela trabalhava em uma pequena oficina de costura. Abraham
Goldman, o pai de Emma, era extremamente autoritário e dava aos filhos uma educação
baseada na obediência e nos castigos violentos. Foi justamente por parte dele que ela sentiu
pela primeira vez a opressão sofrida pelas mulheres, respaldada pelo casamento burguês. Aos
quinze anos de idade, Emma foi obrigada por seu pai a casar-se, o que lhe gerou revolta,
que seu objetivo era estudar e fez com que ela fugisse para os Estados Unidos, com sua irmã
Helena, com quem mantinha uma relação de mãe e filha.
[Dizia a ela seu pai:] “Las muchachas no tienen por qué aprender tanto! Todo lo que
una hija judia necesita saber es mo preparar pescado gefüllte, hacer finos los
fideos y dar a su hombre muchos hijos”. No me someteria a sus planes, queria
estudiar, conocer la vida, viajar. Además, nunca me casaría si no era por amor,
argüía yo firmemente. Era en realidad para escapar a los planes de mi padre por lo
que había insistido en marcharme a América. Ahora, nuevos intentos de casarme me
perseguían en la nueva tierra. Estaba decidida a no dejarme vender: trabajaría.
(GOLDMAN, 1996, p. 36 e 37).
Em 1885 Emma chegava a Rochester (cidade próxima a Nova Iorque), onde encontrou
sua irmã mais velha, Lena e começou a trabalhar como costureira numa fábrica (Garson &
Mayer). as condições de trabalho eram péssimas, como em São Paulo, e o taylorismo
guiava sua gestão: oficinas iluminadas e bem ventiladas; altas jornadas com só meia hora para
o almoço; vigilância constante dos gestores; forte disciplina e pagamento por peças
produzidas. Nesse momento ela era uma simpatizante das idéias socialistas, mas não
participava ativamente do movimento operário. Casou-se com um imigrante judeu, Jacob
Kershner, tempos depois da sua chegada (em 1886) ao Eldorado dos imigrantes que era os
Estados Unidos, o que a fez perceber o total fracasso do matrimônio burguês - onde a mulher
era colocada em uma posição de inferioridade com relação ao homem - do qual, mais tarde
seria uma crítica ferrenha. Não se dava bem com o marido, que para ela não era um
verdadeiro companheiro; não tinham harmonia sexual, nem compartilhavam idéias. Vivia, no
entanto, a luta pela sobrevivência de tantos imigrantes na América, até que em 1886 ocorreu
um fato decisivo, que mudaria de vez toda a sua vida: anarquistas que participaram da greve
de Haymarket, da qual Voltairine de Cleyre participou ativamente, foram acusados de
atentado e executados. O impacto de tal fato foi tão grande para Emma e outros tantos
operários que ela aproximou-se mais dos círculos anarquistas e decidiu-se por dedicar a sua
vida ao ideal libertário. Separou-se e foi para Nova Iorque (em 15 de agosto de 1889), onde a
atividade libertária era mais intensa nesse momento. Foi aí que pode desenvolver suas idéias e
teorias sobre sindicalismo, emancipação feminina e das artes como importante instrumento
revolucionário e tornou-se uma das anarquistas mais conhecidas e referenciadas em todo o
mundo, e com muita freqüência na cidade de São Paulo, assim como Louise Michel, Bakunin,
Kropotkin e Malatesta.
[...] El estado en que se encontraba la opinión pública y el prejuicio general contra
los anarquistas, unidos a la enconada oposición de los empresarios al movimiento
por la jornada de ocho horas, constituyeron la atmosfera que favoreció el asesinato
judicial de los anarquistas de Chicago. Cinco de ellos Albert Parsons, August
Spies, Louis Lingg, Adolph Fischer y George Engel fueran sentenciados a morir
en la horca; Michael Schawab y Samuel Fielden fueron condenados a cadena
perpetua; Neebe recibió una sentencia de quince años. La sangre inocente de los
mártires de Haymarket clamaba venganza. (GOLDMAN, 1996, p. 32 e 33, grifos
nossos).
Em Nova Iorque, após ser mal recebida na casa de seus tios, Emma procurou
anarquistas que conhecia, que arrumaram-lhe um lugar para morar e lhe mostraram o café
Sachs, ponto de encontro e reunião de radicais socialistas e anarquistas, poetas, escritores,
trabalhadores e estudantes pobres. No mesmo dia de sua chegada, nesse café, conheceu
Alexander Berkman (então com dezoito anos) - que seria seu companheiro até o fim da vida
com quem foi assistir uma conferência de Johann Most, anarquista alemão, que vivia nos
Estados Unidos. O grande interesse pelas idéias e palestras de Most fez com que Emma fosse
conhecê-lo pessoalmente na redação de seu jornal “Freihet”, ele lhe falou sobre Louise
Michel e Sophia Perovskaia e incentivou-a a se dedicar totalmente à causa anarquista, assim
como fazia Berkman, aliás, esse lhe perguntava se havia lido autores anarquistas e se esses a
influenciaram a separar-se de Kershner e a acreditar no amor livre, ao que Emma responde
que a própria experiência como mulher a fez tomar essa decisão e criar plena convicção nas
uniões livres.
[...] Quería saber qué libros había leído sobre el matrimonio y si me habían influído
a la hora de dejar a mi marido. Nunca había leído tales libros, pero había visto
suficiente de los horrores de la vida matrimonial en mi propia casa. La forma
desabrida en que Padre trataba a Madre, las continuas disputas y escenas violentas
que terminaban en los desmayos de Madre. También había visto la degradante
sordidez de las vidas de mis tíos y tías y de mis conocidos de Rochester. Esto, unido
a mi propia experiencia matrimonial, me habría convencido del error de unir a la
gente por toda vida. La proximidad constante en la misma casa, la misma habitación,
la misma cama, me repelían.
Si vuelvo a amar a algún hombre, me entregaré a él sin pasar por el altar o por el
juzgado declaré - y cuando el amor muera, me marcharé sin pedir permiso.
(GOLDMAN, 1996, p. 61, grifos nossos).
Tal concepção de amor e união livre (“uno-me a um homem quando houver amor e
quando esse morrer vou-me embora”), sem sanção religiosa ou jurídica, defendida por Emma
desde seus primeiros dias em Nova Iorque foi também vivida na prática por ela. A união livre
não seria uma prática possível e desejável somente na sociedade anárquica construída após a
revolução social, mas uma prática possível ainda na sociedade atual, servindo como forma de
libertação, mesmo dentro dos limites impostos pela sociedade de classes, e como uma forma
de aprender a viver em cooperação e solidariedade com os outros, sendo o amor o único
critério para uma união. Ela uniu-se ao mesmo com Berkman e Fedia (um artista anarquista),
e todos moraram juntos (ela dizia amar os dois), namorou Most e mais tarde, namorou
Edward Brady, um anarquista, com quem descobriu que o amor não era supremo com relação
ao sexo, e que o último era uma experiência única que todos os seres humanos deveriam
experimentar sem que para isso fosse necessário o casamento (o sexo seria vital na vida
humana para homens e mulheres, assim como o são os alimentos) e Ben Reitman. Sua
concepção de união livre se estendia à sua idéia sobre a maternidade. Ela defendeu a
maternidade livre e consciente fruto da vontade de companheiros - e, por isso, resolveu não
ter filhos, acreditava que deveria se dedicar somente ao ideal e um filho, nesse sentido,
impediria tal dedicação. Maria Lacerda de Moura tinha opiniões muito próximas as de Emma
Goldman com relação a esses pontos, e os defendeu com muita ênfase em sua estada em São
Paulo, como veremos a seguir. Os dois relatos seguintes expressam bem a visão de Emma
sobre o amor livre que viveu na prática.
Durante aquellas semanas Fedia y yo nos convertimos en amantes. Me había dado
cuenta de que mis sentimientos por Fedia no guardaban relación con mi amor por
Sasha [Berkman]. Cada uno despertaba en mí diferentes emociones, me transportaba
a mundos diferentes. No experimentaba ningún conflicto, sólo me aportaban
plenitud.
Era imposible reconciliarme con un amor que negaba al amado el derecho a
mesmo, un amor que crecía a expensas de la persona amada. (GOLDMAN, 1996, p.
88 e 215, grifos nossos).
Emma continuou a trabalhar como costureira em Nova Iorque. Trabalhou em fábricas,
pequenas oficinas e em casa e passou a organizar comícios, juntamente com Berkman o
primeiro deles foi um comício realizado na Cooper Union para lembrar a morte dos
anarquistas de Chicago, por ocasião do aniversário de sua condenação em 11 de novembro de
1887, anarquistas e socialistas estiveram juntos em tal comício e passou a fazer giros de
conferências pelos Estados Unidos desenvolvendo e propagando suas próprias idéias (não as
idéias de Most, que organizava suas primeiras conferências e, que pelas divergências de
pensamento que Emma apresentava com relação a ele em suas falas, rompeu com ela),
afirmando, por exemplo, que a luta por conquistas momentâneas, como a jornada de oito
horas de trabalho, era essencial, porque assim o trabalhador teria mais tempo para instruir-
se, para divertir-se e para lutar, mas que não se podia perder de vista a luta contra o
capitalismo, que levaria à verdadeira libertação através da construção de uma sociedade sem
classes e sem exploração do homem pelo homem. Assim se constituiu um dos principais
pontos do pensamento de Emma Goldman, cujo desenvolvimento se deu durante toda a sua
vida: ela acreditava que a propaganda libertária era um dos principais meios de se chegar à
revolução social, e, além de estar em pleno acordo com os fins a serem alcançados, permitiria
que mais vidas fossem poupadas do que em uma ação violenta. Anarquistas paulistanas, assim
como ela, privilegiavam essa prática ao organizarem festas e festivais de propaganda, assim
como ao atuarem em peças teatrais e discursarem em comícios e manifestações. Durante seus
giros, que passaram a ser cada vez mais freqüentes à medida que passava a ser conhecida em
todo o país. Emma ajudava em greves e fazia propaganda como oradora em comícios, aliás,
nesse sentido, era considerada excelente. Assim como Voltairine, acreditava que as greves
não levariam à revolução se não fossem seguidas da expropriação total das riquezas, mas elas
eram a base das lutas, tão essenciais para que os trabalhadores vivessem em melhores
condições no presente e os habituava à luta, à cooperação e à solidariedade. Outro aspecto
importante defendido por Emma, assim como pelos anarquistas aqui estudados, era o aspecto
educativo. Para ela, os trabalhadores deveriam receber uma educação libertária, carregada dos
valores da sociedade futura para libertarem-se e destruírem o capitalismo e para conviverem
em cooperação e solidariedade na sociedade futura, por isso, organizou assim como o
fizeram muitas anarquistas em São Paulo -, com seus companheiros, grupos educativos e
encontros, onde os mais diversos temas podiam ser discutidos, e bailes.
Por um curto momento, no inverno de 1892, Emma, Fedia e Berkman, fixaram-se em
Springfield, onde Fedia trabalhava com um fotógrafo e onde puderam montar uma sorveteria
que garantia-lhes o sustento sem que tivessem que se dedicar às dezoito horas que passavam
costurando para fora em casa. Na nova cidade acompanhavam notícias de que trabalhadores
de uma das fábricas da Carnegie Steel Company, de Homestead, organizados na Associação
Mista de Trabalhadores do Ferro e do Aço
72
, estavam com problemas. Henry Clay Frick, um
homem autoritário, considerado inimigo dos trabalhadores por proibir sindicatos em seus
depósitos e por dirigir os trabalhadores com “mãos de ferro”, era temporariamente o
presidente dessa companhia, que prosperava devido ao alto preço do aço importado. Ele
negava-se a fazer acordos com a associação de trabalhadores e aboliu de uma vez por todas a
escala móvel de salários, até então em vigor, que estabelecia que conforme o preço de
mercado dos produtos aumentasse, os salários deveriam acompanhar o mesmo aumento, e
fechou a fábrica de aço para que cada trabalhador se considerasse despedido acertaria então
com cada um deles o salário que deveriam receber. Era um fechamento patronal, não uma
greve. Imediatamente, no entanto, os trabalhadores de outras fábricas da companhia
colocaram-se em greve e em todo o país havia agitações. Frick despejou famílias de operários
72
Amalgamated Association of Iron and Steel Workers.
grevistas das casas da companhia e ameaçou contratar detetives para identificar possíveis
lideranças do movimento, declarando que preferia ver os trabalhadores mortos a atender às
suas reivindicações. Emma, Berkman e Fedia ficaram indignados com tal situação e
dirigiram-se a Nova Iorque para imprimir manifestos que levariam para Homestead. Eram
manifestos que pediam aos trabalhadores que aproveitassem o momento de luta para
destruírem o capitalismo e construírem o anarquismo. Porém, assim que chegaram
receberam a notícia que pistoleiros abriram fogo contra trabalhadores e suas famílias
despejadas enquanto dormiam, na madrugada. Ao receber tal notícia, Berkman afirmou que
era o momento de se fazer um atentado contra Frick, que era responsável por assassinatos a
sangue frio. Emma e Fedia concordaram imediatamente, acharam que era uma atitude de
vingança de todos os trabalhadores do mundo, através de um ato de violência individual como
preconizaram muitos anarquistas, como Louise Michel e inclusive Most, não um crime, aliás,
para ela o último seria resultado da pobreza.
Berkman empenhou-se na construção de uma bomba, que não deu certo. Iria então a
Pittsburg sozinho e cometeria o ato com uma pistola, comprada com o dinheiro da sorveteria.
Emma não iria para lá, tentaria arrumar mais dinheiro para enviar-lhe. Para isso ela tentou se
prostituir. Comprou roupas e calçados, vestiu-se e maquiou-se e foi para a rua, mas não
conseguiu o fazer, um homem que lhe abordara, percebeu que não era prostituta por causa de
seu nervosismo e deu-lhe dez dólares; conseguiu mais dez com a sua irmã Helena, sem que
essa soubesse de seus planos e enviou tudo a Berkman. No dia 23 de julho de 1892 o ato foi
executado. Frick foi ferido e Berkman preso, por ironia, através da ajuda de um operário.
Seguiram-se a esse ato inúmeros ataques aos anarquistas e, também por parte deles, a
Berkman, Emma e Fedia, que assumiram completamente as conseqüências de tal. Nesse
momento, Emma defendia o ato através de conferências e de artigos como “Alexander
Berkman, el vengador de la matança de Homestead”, publicado no periódico “Anarchist”,
mas mais tarde, em suas Memórias
73
(“Viviendo mi vida” volume 2 (1996a)), se colocava
profundamente arrependida por tal ato, que, segundo ela, não estava em harmonia com os fins
que os anarquistas queriam alcançar - um ato violento não levou à construção de uma
sociedade pacífica e solidária e ainda provocou o sofrimento de Berkman, condenado a vinte e
dois anos de prisão (dos quais cumpriu quatorze); a perseguição dos anarquistas e a cisão no
próprio movimento libertário entre aqueles que condenavam e a minoria que concordava com
73
Suas memórias, publicadas na Espanha com o título “Viviendo mi vida” em 1996, foram escritas entre 1928 e
1931. Constituem também um importante documento do movimento libertário, principalmente nos Estados
Unidos.
o atentado. Muito convicta de que o anarquismo comunista, tal como defendido por
Kropotkin e Malatesta
74
, deveria ser alcançado após a revolução social, e não o anarquismo
individualista de Stirner e seus seguidores, e de que ele representava uma fase fundamental do
progresso humano, Emma passou a condenar atos violentos individuais e cada vez mais
acreditar na propaganda como meio fundamental e mais de acordo com valores como o amor
e a solidariedade. Viajou por todos os Estados Unidos e pelo mundo (Inglaterra e outros
países da Europa) propagando os ideais libertários. Uma de suas conferências de propaganda,
proferida em Nova Iorque, em um grande comício na Praça Union, por ocasião do aumento do
desemprego mostra claramente suas idéias e concepções. Para homens e mulheres alcançarem
a libertação total, deveriam destruir o Estado e o capitalismo. Assim pensava também Maria
Lacerda de Moura.
Hombres y mujeres empecé en medio de un silencio repentino -, no os dais cuenta
de que el Estado es vuestro peor enemigo? Es una máquina que os aplasta para
poder sostener a la clase dirigente, vuestros amos. Como inocentes niños depositáis
vuestra confianza en los líderes políticos. Les facilitáis ganar vuestra confianza, sólo
para dejar que os vendan al primer postor. Pero incluso cuando no hay una traición
directa, los políticos obreristas hacen causa común con vuestros enemigos para
manteneros a raya, para evitar la acción directa. El Estado es el pilar del capitalismo,
y es ridículo esperar ningún desagravio de su parte. No veis la estupidez que es pedir
ayuda a Albany cuando existe una inmensa riqueza aqui mismo? La Quinta Avenida
está pavimentada en oro, cada mansión es una ciudadela de dinero y poder. Sin
embargo, aquí estáis vosotros, un gigante hambriento y encadenado despojado de su
fuerza. El cardenal Manning declaró hace tiempo que “la necesidad no conoce
leyes” y que “el hambriento tiene derecho a su ración del pan del vecino”. El
cardenal Manning era un eclesiástico imbuido de las tradiciones de la Iglesia, que
siempre ha estado del lado de los ricos y contra los pobres, pero tenía algo de
humanidad y sabía que el hambre es una fuerza irresistible. Vosotros también
tendréis que aprender que tienéis derecho a compartir el pan del vecino. Vuestros
vecinos no sólo os han robado el pan, sino que os están chupando la sangre.
Seguirán robándoos, y a vuestros hijos, y los hijos de vuestros hijos, a menos que
desperteis, a menos que os volvais lo suficientemente osados como para exigir
vuestros derechos. Bien, entonces, manifestaos delante de los palacios de los ricos;
exigid trabajo. Si no os dan trabajo, exigid pan. Si os deniegan ambas cosas, tomad
el pan. Es vuestro derecho sagrado! (GOLDMAN, 1996, p. 152 e 153, grifos
nossos).
Por causa dessa intensa atividade como propagandista Emma foi presa por diversas
vezes. Em uma delas aproveitou seu julgamento para novamente propagar suas idéias, assim
como faziam Louise Michel e outros anarquistas participantes da Comuna. Em tal ocasião
falou sobre religião, amor livre e moralidade, temas que desenvolveria com maior intensidade
até o fim de sua vida.
[...] Intenté desenmascarar la hipocresía de la moralidad, a la Iglesia como
instrumento de esclavitud, la imposibilidad del amor forzado. Las constantes
74
Emma conheceu esses dois anarquistas na mesma ocasião em que conheceu Louise Michel, em um congresso
na Inglaterra. Tornou-se admiradora de Kropotkin, com quem travou outros encontros em várias ocasiões de sua
vida, como durante a Revolução Russa.
interrupciones de MacIntyre [fiscal de distrito] y las órdenes del juez de que
respondiera con un si o un no, me obligaron a abondonar mi proposito.
(GOLDMAN, 1996, p. 159).
Ainda em fins do século XIX Emma vez um curso de enfermeira ajudada
financeiramente pelos seus companheiros do movimento isso lhe possibilitou que trabalhasse
como parteira das classes baixas, que os mais ricos procuravam hospitais. Essa experiência
fez com que visse na prática o mau que poderia causar uma gravidez o planejada para as
mulheres, principalmente da classe trabalhadora, que com muitos filhos, acabavam cada vez
mais escravas do trabalho; do capital (submetidas às péssimas condições de trabalho e à
exploração da burguesia) e do lar, quase não tendo tempo para o lazer e a instrução.
Certamente essa experiência lhe permitiu, no começo do século XX, desenvolver teorias sobre
libertação sexual e propagar, em suas conferências, os métodos contraceptivos, o que fez com
que fosse presa outras inúmeras vezes. No relato a seguir fica claro o desespero causado pela
gravidez em muitas mulheres pobres, além dos métodos abortivos utilizados; aquele seria
fruto da condição da mulher na sociedade capitalista e da sua forma de tratar a maternidade
como algo divino e, ao mesmo tempo, natural, o que também causava um imenso mal às
crianças nascidas sem o desejo e a vontade dos pais. Ou seja, a maternidade “involuntária”
seria fruto do problema social por completo, não um simples aspecto dele. Mulheres e
crianças levavam a carga mais pesada do sistema econômico capitalista, segundo ela.
Todavia me impresionaron más los tremendos y vanos esfuerzos de las mujeres
contra los frecuentes embarazos. La mayoría vivia con el temor constante a quedar
embarazadas; la gran parte de las mujeres casadas se sometían impotentes, y cuando
descubrían el embarazo, la alarma y la preocupación daban como resultado su
decisión de deshacerse del futuro hijo. Eran increíbles los métodos tan fantásticos
que podía inventar la desesperación: saltar desde las mesas, rodar por el suelo,
masajear el vientre, beber pócinas vomitivas y usar instrumentos romos. Intentaban
éstos y otros métodos similares, generalmente con graves resultados. Era
desgarrador, pero comprensible. Teniendo una numerosa prole, a menudo más de los
que el salario del padre podía mantener, cada nuevo hijo era una maldición; “una
maldición divina”, como me decían las mujeres judias ortodoxas y las católicas
irlandesas. Los hombres, por lo general, se mostraban más resignados, pero las
mujeres clamaban al cielo por infigirles tales castigos. Durante los dolores del parto
algunas mujeres lanzaban anátemas contra Dios y contra el hombre, especialmente
contra sus maridos. “Echale! gritaba una de mis pacientes no dejes que esse
bruto se me acerque que o le mataré!” Esa criatura atormentada ya había tenido ocho
hijos, cuatro de los cuales habían muerto en la infancia. Los demás estaban
enfermizos y malnutridos, como la mayoria de los niños no deseados y mal cuidados
que se arrastaban a mi alrededor mientras ayudaba a traer otra criatura al mundo.
(GOLDMAN, 1996, p. 216 e 217, grifos nossos).
No que diz respeito ao aborto cuja luta pela legalização foi tão presente nas lutas
feministas da década de 70 do século XX - Emma sempre se negou a ajudar suas pacientes a
fazê-lo, assim como nunca fez uma operação desse tipo. Segundo ela, o por uma questão
moral sobre a “santidade da vida”, mas porque temia pela saúde das mulheres, que poderiam
morrer ao passar por um procedimento desse tipo, deixando órfãos seus outros filhos. Além
disso, achava que não tinha capacidade para fazer uma operação desse tipo, sabia que ela teria
um péssimo resultado, também para a mulher, se não fosse bem realizada.
Ao insistir em temas como a libertação sexual e se opor às idéias positivistas como a
de que a mulher necessitava mais de amor do que o homem, colocando que essas idéias
reforçavam a submissão e dependência da mulher, Emma se diferenciou dos anarquistas
clássicos que tanto influenciaram suas teorias e práticas no movimento anarquista. Kropotkin,
em uma reunião com ela em Londres criticou o periódico “Free Society” (periódico anarquista
inglês), afirmando que esse preocupava-se demasiadamente com a questão sexual, o que era
uma perda de tempo. Ela respondeu enfaticamente ao seu grande, mestre, como relata em suas
memórias:
[...] “Ese periódico está haciendo un trabajo estupendo afirmo con entusiasmo
pero sería mejor si no desperdiciara tanto espacio tratando sobre sexo”. No estuve de
acuerdo con él y nos enzarzamos en una acalorada discusión sobre el espacio
reservado al problema sexual en la propaganda anarquista. La opinión de Pedro era
que la igualdad de la mujer y el hombre no tenia nada que ver con el sexo; era
cuestión de cerebro. “Cuando ella sea su igual intelectualmente y comparta sus
ideales sociales dijo -, será tan libre como él”. Los dos nos alteramos un poco y
nuestras voces debían de parecer como si estuviéramos peleándonos. Sofía [mulher
de Kropotkin], que estaba tranquilamente cosiendo un vestido para su hija, intentó
varias veces dirigir la conversación por cauces menos vociferantes, pero fue en
vano. Pedro y yo recorríamos la habitación cada vez más agitados, cada uno
defendiendo su postura denodadamente. Finalmente, me detuve e hice el seguiente
comentario: “Está bien, compañero, cuando haya alcanzado tu edad puede que la
cuestión sexual ya no tenga ninguna importancia para mí. Pero lo es ahora y es un
factor tremendo en la vida de miles, millones incluso, de jóvenes”. Pedro se paró en
seco, con una sonrisa divertida iluminando su rostro amable. “Créeme, no había
pensado en eso”, respondió. “Quizás tenga razón, después de todo”. Me miró
sorriendo afectuosamente y con un brillo pícaro en sus ojos. (GOLDMAN, 1996, p.
286, grifos nossos).
Sua opinião sobre as questões sexuais estavam muito próximas daquilo que escreviam
as anarquistas paulistanas em jornais da imprensa operária anarquista. Maria Lacerda de
Moura, por exemplo, tratava o sexo como algo natural e essencial à vida. A crença de Emma
na propaganda como meio mais eficaz de se chegar à revolução social era tão grande que se
dedicou à edição de uma revista, além de atuar como oradora em comícios, conferências e
reuniões públicas. Acreditava que a palavra escrita era mais duradoura e a revista traria
artigos de jovens idealistas sobre arte e sobre “qualquer esforço revolucionário (mesmo que
impopular)”. Inicialmente o nome escolhido para ela era “The Open Road”, mas foi proibido
pela afirmação de que seria uma violação do Copyright, o novo nome escolhido então por
Emma e seu companheiro Max foi “Mother Earth” (Mãe Terra). Seu primeiro número saiu em
de março de 1906, com sessenta e quatro páginas e foi financiado por ingressos de uma
peça teatral apresentada por Orleneff. Contava com a participação de Berkman, que cuidava
da edição após ser solto em 18 de maio de 1906. Essa revista teve grande divulgação nos
Estados Unidos e vários de seus números foram divulgados e distribuídos pela imprensa
operária anarquista paulistana. “A Terra Livre”, por exemplo, anunciava que os interessados
deveriam escrever ao jornal para recebê-la.
Em agosto de 1907 Emma participou, como delegada do Oeste americano, do
Congresso Internacional Anarquista de Amsterdã (Holanda), do qual falamos no capítulo 1
desse trabalho. Nessa ocasião defendeu ativamente a idéia de organização. Para ela a
organização era essencial à luta, pois a individualidade se desenvolveria através da vivência
cooperativa e, por conseqüência, se desenvolveria também a coletividade e os sentimentos de
apoio mútuo e solidariedade. Os sindicatos, nesse sentido, teriam papel fundamental na luta
revolucionária, mas o sindicalismo não se bastava a si próprio como defendera Monatte em
sua fala no Congresso. Acreditava que os mesmos deveriam organizar as suas forças contra o
capital, não somente lutar por melhorias momentâneas e ser inteiramente livre e anarquista,
carregado de um espírito libertário que poderia ser despertado através da propaganda e das
artes. Distanciava-se assim das idéias dos anarquistas individualistas e do sindicalismo
revolucionário, aproximando-se ainda mais das idéias de Malatesta e Kropotkin, assim como
dos anarquistas paulistanos, que observavam a organização como meio essencial de luta e à
sociedade que visavam construir. A organização era esencial para a preparação, material e
moral da revolução social, que para Emma não surgiria do nada; deveria ser anti-autoritária e
auto-organizada por indivíduos que tivessem afinidade de interesses e de objetivos e, no caso
do sindicato livre, seu papel também seria importante na sociedade futura, que poderia ele
ser o canal para fluir o crescimento econômico e industrial, juntamente com as cooperativas,
sendo ele responsável pela organização econômica e pelo prosseguimento da produção.
Hay una idéia errónea, razonábamos, sobre que la organización no favorece la
libertad individual, sobre que significa la decadencia de la individualidad. Muy al
contrario, en realidad, la verdadera función de la organización es ayudar al
desarrollo y crecimiento de la personalidad. A como las lulas animales, por
cooperación mutua, expresan su poder latente en la formación de un organismo
completo, así la individualidad, por esfuerzo cooperativo con otras individualidades,
alcanza su más alta forma de desarrollo. Una organización, en el verdadero sentido,
no puede resultar de la combinación de simples nulidades. Debe estar compuesta por
individualidades inteligentes y autoconscientes. En verdad, el total de posibilidades
y actividades de una organización está representado por la expresión de las energías
individuales. El anarquismo proclama la posibilidad de una organización sin
disciplina ni miedos ni castigos y sin la presión de la pobreza: un nuevo organismo
social que podre fin a la lucha por la existência la lucha salvaje que socava las
mejores cualidades del hombre y hace cada vez más grande el abismo social. En
resumen, el anarquismo se esfuerza por conseguir una organización social que
estableza el bienestar para todos. (GOLDMAN, 1996, p. 441 e 442, grifos nossos).
Outro aspecto importante do anarquismo de Emma era a sua observação da arte como
meio revolucionário, assim como a propaganda e as formas de ação direta (greves, por
exemplo), chegou a organizar uma escola de arte em Nova Iorque para que fosse possivel
estudar o ponto de vista anarquista sobre arte. Negava a arte pela arte, essa deveria ter como
base a vida e, juntamente com ela, seria a “chama da revolta”. Justamente por isso defendeu
com tanto vigor o teatro como meio para entender o social e para transformá-lo. Desde 1906
fez conferências sobre teatro social, como uma série de 1912, cujo título era “A importância
social do teatro moderno”; escreveu sobre o tema em seu livro “Anarchism and other essays”
(cuja primeira edição datava de 1911); organizou um teatro anarquista (1906) em Nova Iorque
com a trupe do russo Orleneff - as peças encenadas faziam sucesso entre operários e até as
camadas médias da população ele vivia lotado; ajudava a organizar peças sociais por várias
cidades onde passava (como “O Germinal” de Zola e “Change” de J. O. Francis) e dava
cursos sobre arte dramática (como em Chicago em 1913). O teatro era o principal meio para
se despertar a consciência social
75
. Admirava as obras de Ibsen e as classificava como
verdadeiras peças libertárias. Suas concepções influenciaram o teatro operário paulistano e as
libertárias que nele atuaram. Aqui as peças encenadas criticavam a sociedade capitalista e a
situação da mulher com relação a ela e propunham uma comunidade de seres humanos livres
e solidários entre si, apresentando assim imagens do futuro da humanidade.
Para todos aquellos que se apegan primordialmente al mensage palpable del poema,
del relato, del drama, el arte anarquista es una realidad. Así, la “gran dama” del
anarquismo americano, Emma Goldman, descubre el arte, “su” arte, en la pintura de
Millet, en la escultura de Constantin Meunier o en la poesia de Walt Whitman.
Los paisajes de Millet son “una acusación terrible contra nuestros males sociales”,
afirma, partiendo de un simples análisis del contenido. Las estatuas de Meunier
ilustran la “relación entre el desconetento bullente de los mineros y la rebelión
espiritual que busca su expresión artística” (partiendo de una interpretación análoga,
el editor del semanario libertario Padre Peignard (Pêre Peinard), Emile Pouget,
ordena a Maximilien Luce una serie de litografias de las estatuas del escultor belga).
En el teatro de Ibsen y, en menor medida, en los dramas de Gerhart Hauptmann
(“Antes de salir el sol” y “Los Tejedores”) y de Fraz Wedekind (“Despertar de la
Primavera”) Emma Goldman descubre “la levadura del pensamiento radical y el
dispensador de los nuevos valores”. No contento con desenmascarar la hipocresía de
un orden social moribundo. Ibsen muestra mo emerge de las cenizas del mismo
“el individuo regenerado, el rebelde valeroso, temerario”. Los efectos destructivos
de Ibsen son, al mismo tiempo, extremadamente constructivos: no solamente socava
los pilares de la civilización existente, sino... sienta las bases de un ideal más sano,
en el seno de un ambiente social más favorable”. (RESZLER, 1971, p. 98 e 99,
grifos nossos).
O ano de 1914 representou uma fase importante no pensamento dessa libertária. Além
de lutar ativamente contra a campanha anti-bélica e contra o alistamento obrigatório, imposta
75
Paul Munter, um jovem admirador de Emma, datilografou todas as suas conferências sobre teatro proferidas
no Berkeley Theatre, o que possibilitou a publicação de “The Social Significance of the Modern Drama”, ainda
sem edição em português.
pelos Estados Unidos após o início da Primeira Guerra Mundial, começou a fazer
conferências sobre Controle de Natalidade e Métodos Contraceptivos, assuntos então tratados
por poucas pessoas como Margaret Sanger, Moses Hraman, sua filha Lillian, Ezra
Haywood, o médico Foote, seu filho E. C. Walker e Ida Craddock e praticamente nem
citado pelos anarquistas. Nessas coneferências vendia livros e distribuía panfletos de
escritores que trabalhavam o tema. Para ela o controle de natalidade garantia uma
maternidade e uma infância feliz, assim como significava “uma higiene sexual”, por isso
era um importante aspecto da luta social e deveria ser propagado através da ação direta
(comícios e agitações).
Desde que regresé de la Conferencia Neo-Malthusiana, celebrada en París en 1900,
había añadido a mi serie de conferencias el tema del control de la natalidad. No
discutía sobre os diferentes métodos porque esta cuestión representaba, en mi
estimación, sólo un aspecto de la lucha social y no deseaba arriesgarme a ser
detenida por ello. Además, como siempre estaba a punto de ser enviada a prisión por
mis actividades generales, me parecia injustificable expornerme a más riesgos. Sólo
proporcionaba información sobre métodos cuando me lo pedían en privado. Las
dificultades de Margaret Sanger con las autoridades de Correos por su publicación
“The Woman Rebel” y el arreto de Willian Sanger por dar uno de los panfletos de su
mujer sobre métodos de control de la natalidad a un agente de Comstock, me
hicieron ser consciente de que había llegado el momento de, o bien dejar de dar
conferencias sobre el tema, o de hacer le justicia. Sentia que debía compartir con
ellos las cosecuencias del asunto.
[...] Presenté el tema haciendo un análisis de los aspectos históricos y sociales del
control de la natalidad, y luego exprese vários métodos anticonceptivos, su
aplicación y efectos. (GOLDMAN, 1996a, p. 56 a 58).
A propaganda anarquista defendendo a Revolução Russa que estourou em 1917 era
intensa apesar de alguns libertários, como Katarina Brechovskaia, criticarem os métodos
dos bolcheviques. Emma e Berkman pensavam em ir para a Rússia colaborar com a causa
revolucionária, que até então apoiavam, mas optaram por permanecer nos Estados Unidos,
onde poderiam propagar o que ocorria lá, apesar das campanhas da imprensa burguesa contra
a revolução. No entanto, a repressão nos Estados Unidos também era intensa, prisões, tortura
e assassinatos de membros de grupos da esquerda e de anarquistas eram freqüentes e, devido a
sua intensa atividade anti-bélica e contra o alistamento militar, eles foram presos (como
noticiava “A Plebe” de 11 de agosto de 1917, anno I, número 9) e só conseguiram a liberdade
sob fiança (com dinheiro arrecadado por seus companheiros anarquistas) em 1919. Em seus
julgamentos foram condenados e a pena foi a explusão do país seriam mandados para a
Rússia, país de onde emigraram. Tal fato lhes causou imensa alegria, apesar de tudo,
poderiam colaborar com a Revolução. Porém, nos primeiros dias na Rússia já puderam
constatar as contradições do governo dos bolcheviques: falta de liberdade de expressão;
privilégios e melhores comidas destinadas aos membros do Partido; escolas para filhos dos
membros do governo com melhores condições, melhores merendas e doces, enquanto os
filhos dos trabalhadores estavam em escolas sujas, sem ventilação, calefação e comida;
hospitais especiais para as lideranças do Partido; trinta e quatro tipos de comida permitidos
aos governantes, enquanto nos armazéns e mercados vendia-se somente carne, ovos e
manteiga com preços altos; filas de homens e mulheres para conseguir comida (peixes podres,
cereais com vermes e batata congelada); restrições ao corte de lenha; perseguição de
opositores; impedimentos a auto-organização da produção; fábricas e oficinas comandadas
por gestores (que eram membros do partido ou gerentes, engenheiros e técnicos que serviam
no antigo regime) e não pela coletividade dos trabalhadores; militarização. O Estado
Comunista era centralizado como haviam dito os anarquistas nos Estados Unidos e os
bolcheviques justificavam todas essas contradições e privilégios afirmando que era necessário
defender a revolução da reação e dos intervencionistas (a contra-revolução). Os Bolcheviques,
segundo Emma, mataram a revolução, mas o problema não era só do bolchevismo, e sim do
Estado em si. Qualquer que fosse o Estado destruiria qualquer revolução e estaria em posição
oposta aos interesses do povo.
[...] Se detruyó la revolución rusa y el Partido Bolchevique se afianzó en el poder.
Sencillamente, el pueblo ruso, que fue el único que en verdad hizo la revolución y
que estaba determinado a defenderla a toda costa, estaba demasiado ocupado en el
frente de batalla para poner atención a los enemigos que tenía en casa. Y mientras
los obreros y los campesinos rusos ofrecián sus vidas en las trincheras, este enemigo
interno se fue apoderando del poder cautelosamente y, despacio, pero con seguridad,
creó el Estado centralizado y destruyó los Soviets. Este Estado destructor de la
revolución hoy puede muy bien ser comparado en despotismo y burocracia a
cualquiera de los gobiernos del mundo.
[...] Más es, fue la experiencia más que todas las teorías, que demonstrado la
ineficacia de los gobiernos, no importa la clase de gobierno que sea, y el obstaculo
que son a las actividades de las masas. [...] las futuras revoluciones iran derechas al
fracaso si lo que Lenin llama “Comunismo Militarizado” se impone en el mundo.
(GOLDMAN, 1978, p. 25 e 26, grifos nossos).
Berkman e Emma chegaram a trabalhar com o governo bolchevique (recolhiam
documentos por todo o território russo e ucraniano para compor o museu da Revolução), mas
logo romperam totalmente com ele após as manifestações de Kronstad
76
- afirmando que o
comunismo não existia na Rússia, mas sim existia o capitalismo de Estado, e fugiram pelo
leste europeu. Instalaram-se na Europa. Pediram asilo político em vários países e assim que
sua permissão para permacer em determinado país se esgotava, seguiam para outra localidade.
Passaram pela Alemanha, França e Inglaterra, antes de seguirem para o Canadá. Em 1936 o
companheiro de Emma se suicidou após passar por uma operação que lhe gerava dores
76
Marinheiros e trabalhadores de Kronstad entraram e greve em 1921 para denunciar os privilégios e a política-
econômica dos bolcheviques e foram duramente reprimidos pelo governo. Trotski ordenou que o exército
atirasse sobre os manifestantes.
terríveis, ela partiu então para Barcelona a convite da CNT e da Federação Anarquista Ibérica,
participando ativamente da Guerra Civil Espanhola. Depois do fim da guerra retornou a
Toronto, Canadá, onde morreu em 1940. Seu corpo foi levado à Chicago e foi enterrado no
cemitério Waldheim junto aos mártires de Haymarket e de Voltairine de Cleyre. Suas idéias
de que a revolução social deveria ser preparada (moral e materialmente) através da
propaganda e da organização livre os meios mais eficazes e de acordo com os objeivos a
serem alcançados, juntamente com as artes e a respeito da emancipação feminina (como
veremos no tópico a seguir de maneira mais aprofundada) influenciaram anarquistas no
mundo inteiro desde fins do século XIX, inclusive em São Paulo. Maria Lacerda de Moura foi
uma delas. Sua desilusão com a Revolução Russa, a concepção de que formação de um
Estado mataria qualquer revolução foi compartilhada pelas libertárias de São Paulo que se
expressavam e propagavam, com grande veemência, sua crença nos ideais ácratas em jornais,
assim como preconizava Emma.
Mi vida! Había vivido en sus cimas y en sus abismos, en sus amargos dolores y en
sus éxtasis, en la negra desesperación y en la esperanza ardiente. Había apurado la
copa hasta el final. Había vivido mi vida. (GOLDMAN, 1996a, p. 509).
Para Maria Lacerda de Moura não emancipação feminina sem emancipação
humana. Na organização social burguesa-capitalista, baseada na exploração do homem pelo
homem, todos são escravos, todos são explorados.
Esse pensamento traduz o que pensavam as anarquistas em todo o mundo, porém foi
através de sua vida e tragetória como militante feminista que Maria Lacerda de Moura chegou
a tal conclusão, após romper totalmente com os preceitos do feminismo liberal. Ela nasceu em
1887, na fazenda da Monte Alverne, em Manhuaçu, na então província de Minas Gerais. Aos
quatro anos de idade mudou-se para Barbacema (Minas Gerais) com a sua família (pai, mãe,
irmã e irmão), onde seu pai foi trabalhar como oficial do Cartório de Órfãos e sua mãe passou
a fazer doces para vender. Ingressou na Escola Normal Municipal de Barbacema e formou-se
professora (profissão que exerceu vida toda e que a fez, mais tarde, formular suas idéias sobre
educação libertária) e aí viveu até os trinta e quatro anos de idade, casou-se e fez sua primeira
conferência aos trabalhadores. O fato de viver em uma família da classe média urbana (tanto
quando solteira, quando casada) a fez observar e sentir na pele a condição a qual a mulher
estava submetida.
que não podemos evitar a revolução das classes, a revolução se prepara, surda,
entre as nações; - ergamos, n’um grito ardente de a nossa voz, proclamando, pela
palavra e pela ação, intenções puras que desejam a felicidade para todos os homens
que pedem o direito à vida, à saúde, ao alimento, à casa, à instrução, aos
divertimentos, a tudo que alegra a alma dos ricos e que, até agora, tem sido vedado
aos pobres, aos que mais trabalham. (MOURA, apud: RICHTER, 1998, p. 30).
Em 1921 ela se mudou para São Paulo e passou a ter contato mais próximo com os
trabalhadores e trabalhadoras, o que lhe permitiu desenvolver suas idéias sobre ação educativa
(que significava transmitir, transformar e transgredir, segundo ela), feminismo (rompendo
definitivamente com o feminismo liberal, como veremos mais adiante), anticlericalismo e
aderir completamente ao anarquismo.
Maria Lacerda encontrou em São Paulo, um conjunto de grupos de trabalho que se
entrecruzavam em alianças e dissidências amargas, de socialistas, anarquistas e
comunistas, a cujos projetos educativos se incorporou, nem sempre de maneira
pacífica. Seja como for, a mudança para São Paulo proporcionará ambiente para
desenvolvimento de suas idéias e ação educativa, fora dos quadros oficiais do
Estado. (LEITE, 1984, p. 14).
Questionava mais veementemente a distribuição de papéis dentro da família, onde a
mulher deveria obedecer primeiramente ao pai e o irmão, depois ao marido, devendo cumprir
tarefas domésticas e nunca reclamar, como afirmavam os positivistas. Para ela, a Igreja tinha
papel fundamental na fixação de um modelo de mulher inferior e obediente, justamente por
isso, assumiu uma posição anticlerical e propôs a emancipação intelectual da mulher como
base para a sua libertação. Emancipação essa que só seria possível através da educação
libertária.
A mulher patrícia não pode penetrar os arcanos da questão, na sua maioria escrava
da religião, dos trapos, das jóias, dos bombons e do salário não pode pensar senão
pela cartilha dos dogmas, das modistas, das vitrinas e da lucta pelo estomago.
A religião, em constante conflicto com a sciencia, tem na mulher a alavanca
reaccionária contra a evolução para feitos mais altos.
Cumpre desembaraça-la das peias que a encarceram mentalmente.
Enquanto não souber pensar será instrumento passivo em favor das instituições do
passado. E ela própria, inconseqüente, trabalha pela sua escravidão.
E o captiveiro é tal que se revolta se outras mulheres querem elevá-la à altura dos
seus direitos clamando contra a violação do pensamento feminino.
Enquanto não pensar, em vão tentaremos quebrar os grilhões para a nossa
independência individual; a mulher é escrava; dependente do salário, do homem, do
seu capital.
Assim é impossível a libertação.
Seu cérebro foi considerado infantil pelo egoísmo masculino dos ancestraes.
[...]
A brasileira ardente, altiva, inteligente, idealista, generosa, num impulso final, por
entre relampagos da consciencia adormecida, perceberá.
E a sua dedicação eloqüente completará a obra magnífica.
Faltam-nos escolas.
Faltam-nos educadores na accepção mais ampla da expressão.
Faze-los nascer deste mesmo povo eis o que é preciso. (MOURA, 1922, apud:
LEITE, 1984, p. 20, grifos nossos).
Logo após sua vinda para São Paulo, ainda em 1921, participava, dando conferências e
em de sessões de leitura, da Bibiloteca Social “A Inovadora”, organizada pelos anarquistas na
Ladeira do Carmo. E “A Plebe” incluía seus livros e conferências, desde 1919, entre as obras
recomendadas. O artigo de 5 de novembro de 1919, por exemplo, elogiava sua obra
“Renovação” afirmando que era um livro que iria “marcar época na literatura sociológica do
Brasil” (A Plebe, São Paulo, 5 de novembro de 1919, anno II). Publicava também artigos
assinados por ela, como o artigo que se intitulava: “Sciencias básicas e auxiliares da
pedagogia”, onde falava sobre a psicologia, a pedagogia, a higiene e a medicina, tentando
relacioná-las e mostrando a importância de uma ciência para a outra: nada seria a pedagogia
sem principalmente a psicologia e a higiene”. (MARIA LACERDA DE MOURA. A Plebe,
São Paulo, 17 de maio de 1924, anno IV). Há, ainda nesse jornal anarquista, o anúncio da
publicação da revista “Renascença”, editada por Maria Lacerda a partir de 1923, o que mostra
a importância e a influência dela no movimento operário anarquista da época:
Aparecerá em fevereiro de 1923, nesta capital, magnífica revista de arte e
pensamento Renascença cujo objetivo, como indica o projeto novo, se define na
elaboração consciente com energias novas da geração forte dos idealistas.
[...]
A edição de Renascença será entregue à conhecida escritora Maria Lacerda de
Moura, cuja dedicação às grandes causas são presentes na sua vida e nos seus livros,
“Em torno da educação” e “Renovação” e nas suas conferências.
[...]
Renascença é a revista moderna e interessa a toda gente. (A Plebe, São Paulo, 27 de
janeiro de 1923, anno V).
Ao contrário de Emma Goldman, Louise Michel e Voltairine de Cleyre, que
certamente influenciaram seus pensamentos, Maria Lacerda de Moura se opunha aos métodos
revolucionários violentos e se considerava uma individualista. Acreditava que a suprema
resistência e a não violência, associadas à educação libertária e as artes seriam as únicas
formas de se chegar à revolução social, aliás, esses meios estariam em pleno acordo com os
fins que deveriam ser alcançados a sociedade livre baseada no amor, na solidariedade e na
igualdade e seriam forças revolucionárias poderosas. Nesse sentido, distancia-se muito dos
anarquistas clássicos aqui analisados, com exceção de Kropotkin, e aproxima-se mais de
Tolstói, que também negava as ações violentas. Justamente por essa crença na educação e nas
artes como meios revolucionários, ela participou, em São Paulo, de escolas modernas e
apoiou o teatro anarquista.
A educação scientífica e racional para ambos os sexos, é o mais perfeito instrumento
de liberdade. É a extinção da miséria universal, é o acúmulo de riquezas, é a
contribuição para a solidariedade a moral do futuro.
[...] A Escola oficial, a Universidade é tradicionalista, antiga, reacionária, é a escola
do passado, com seus erros, absorvente, cheia de velharias poeirentas, incapaz de um
sonho, incapaz de um protesto consciente, incapaz de um surto renovador... O
acadêmico invulgar, emancipado, eloqüente, idealista é desviado, sorrateiramente,
posto de lado, escorraçado mesmo acuado para a possível domesticidade, em favor
da reação.
[...] A escola tem efeito deprimente no organismo e na psicose. É o regime do temor,
da emulação, de castigos e prêmios, de opressão, de esforço, de exigências (...). A
escola atual é instrumento reacionário do passado conservador e rotineiro, é a
inimiga da civilização de liberdade e continuadora da escravidão feminina.
(MOURA, apud: LEITE, 1984, p. 79 e 81, grifos nossos).
Em 1924, publicou um de seus mais importantes livros: “A mulher é uma
degenerada?”, onde fez uma crítica à ciência e aos médicos da Primeira República, que
afirmavam supostas características naturais das mulheres que seriam a comprovação da
inferioridade feminina inata. Essas teorias científicas colocavam as prostitutas como
naturalmente degeneradas; sendo a “comprovação” para tal o fato de possuírem os quadris
largos. Maria Lacerda retomava, nessa obra, a importância do esclarecimento, ou seja, da
emancipação intelectual da mulher. em 1926 publicou “Religião do amor e da beleza”,
onde ficou nítido seu anticlericalismo, ao colocar a Igreja como responsável por cristalizar o
modelo de mulher submissa e inferior, e ainda, inspirada pelo anarquista Han Ryner, colocou
o amor livre, como espontâneo e natural. Segundo ela, o amor seria a principal força que
guiaria e motivaria todos os seres humanos e, justamente por isso, só poderia ser livre.
Percebeu que não seria possível a emancipação feminina sem a emancipação humana da
sociedade burguesa e capitalista, que cria modelos de mulher respaldados pela ciência e pela
Igreja e submete o amor ao casamento baseado em interesses políticos e econômicos.
A singularidade de Maria Lacerda de Moura provém da articulação que estabeleceu
entre o problema da emancipação feminina e a luta pela emancipação do indivíduo
no capitalismo industrial, cujo recrudescimento ela apontou nos regimes fascistas
que então se estruturaram. (LEITE, 1984, p. 28).
Assim como os anarquistas fizeram em 1914, Maria Lacerda assumiu uma posição
anti-militarista e contrária à guerra nos fins da década de 20 do século XX. Nesse momento o
fascismo começava a despontar na Itália e a exercer influência no Brasil. Ela foi uma das
primeiras brasileiras a criticar e protestar contra o fascismo italiano (para muitos foi ela a
primeira mulher antifascista da América) e, para isso, pronunciava conferências contra a
guerra em São Paulo, Sorocaba, Campinas, Santos, Rio de Janeiro e na Argentina. Via no
fascismo uma forma de concentração de capital sempre ligada à hierarquia tentacular do clero
católico. Em 1928, por exemplo, escreveu um artigo intulado “Guerra a Guerra!” em que
propunha:
[...] à mulher um papel decisivo contra as guerras a recusa de serviços diretos e
indiretos aos preparativos e aos combatentes e a greve dos ventres, impedindo o
nascimento de uma população que o Estado incorporaria aos exércitos. (LEITE,
1984, p. 68).
Na revista “Renascença” (1923), intitulada por Maria Lacerda como “revista de arte e
pensamento”, é possível observarmos, nos seus cinco primeiros volumes, a discussão de uma
infinidade de assuntos como arte, educação da mulher, moral, etc. Artigos eram destinados a
intelectuais e havia uma seção chamada “Pelo mundo Proletário”, que noticiava as greves, a
fundação de ligas de resistência e pedia a colaboração de todos com as lutas operárias. Havia
ainda a publicação de poesias. No artigo número 1 do primeiro exemplar dessa revista mensal,
de fevereiro de 1923, a diretora (Maria Lacerda) defendia a arte moderna e o futurismo como
atitudes revolucionárias e defendia o anarquismo que deveria ser construído pela revolução.
E a arte não é velha nem moderna, é de todos os tempos e sempre a mesma. É a
faúlha do absoluto cantando dentro das almas.
[...]
A arte chamada “nova” é revolucionária, tem o espírito da época, é mystica
transcendendo as limitações e o sectarismo e arvorando a bandeira de uma
curiosidade insaciável deante das forças cryptopsychias, deante da vida interior tão
subtil...
[...]
Renascença de luz num cyclo violento de renovação social.
As sociedades de hoje, crepitam em fogueiras incandescentes e o pensamento dos
homens de espírito é incendiário: canta honras funebres entre flamas diluculares...
É o século das interrogações e das reticencias.
[...]
Não podemos subir aos céus sem descer os olhos à terra...
Renascença não trata de políticas ou de religiões.
A sua religião é a religião do individualismo consciente para o altruísmo em busca
do bem estar para todos; é a religião do amor, da sabedoria e da arte num conjunto
harmonioso para a escalada da perfeição.
A sua política é a política da transformação radical da sociedade vigente no sentido
de ser distribuído o pão para todas as bocas e a luz para os desvãos das consciências
adormecidas; é a política que sonha com a amplitude de todos os valores
individuaes, com a aristocracia do mérito para expansão das vocações sadias e do
idealismo clarividente em oposição à chatice da mediocridade prepotente que
espezinha e aniquila e adormece e mata as ilusões e os sonhos. (MOURA.
Renascença, São Paulo, fevereiro de 1923, anno I, número I, grifos nossos).
Ainda nos anos 20 do século XX colaborou com a “Liga Anticlerical” e com o jornal,
também anticlerical, “A Lanterna” (publicado desde 1901, embora com interrupções durante
essas duas décadas de publicação); e, em 1926, com a comunidade agrícola de Guararema em
São Paulo, onde teve sua maior produtividade intelectual (aí permaneceu até 1935, foi onde
escreveu seus livros sobre o fascismo). Segundo ela, nessa comunidade, “passou da crítica ao
existente à vivência da utopia”, teve contato com a educação libertária, reforçando ainda mais
a sua visão de educação como meio para a emancipação da sociedade (educação essa, racional
e científica), teve contato pela primeira vez com os métodos educacionais do anarquista
espanhol Francisco Ferrer. Foi nesse momento também que começou a observar a prática do
amor livre e da maternidade livre e consciente. Para ela, assim como para Emma Goldman e
Louise Michel, essa era a única e verdadeira forma de amor, ao contrário do casamento
contratual burguês, que só produziria anomalias sexuais, já que os dois sexos estão em
desigualdades de direitos. O amor só existiria entre pessoas que não se oprimem.
O amor plural, o amor-camaradagem, que é o oposto do amor exclusivista e
possessivo que conhecemos libertará a mulher e o homem, acabará com a
exploração feminina, com o infanticídio, com as figuras humilhantes criadas pela
representação burguesa dos papéis atribuídos à mulher, a exemplo da solteirona e da
prostituta. A mulher poderá então unir-se a quem amar e ser mãe quando quiser.
(MOURA, apud: RAGO, 1985, p. 107 e 108).
A convivência em Guararema a motivou a tentar a autogestão em núcleos de
horticultura e fruticultura, também passou a observar a cultura popular e a defender a rebeldia
como engrenagem de mudança social.
Maria Lacerda observou a emancipação feminina não no campo da política
institucional, mas também no campo da moral, da sexualidade e da educação. As mulheres
deveriam realizar-se como indivíduos de maneira integral (no amor, no sexo, no
desenvolvimento artístico e intelectual, no trabalho, etc), assim como todos os seres humanos.
Nesse sentido, enfatizou a busca pela independência de idéias como meio para emancipação,
questionando qualquer forma de autoritarismo. Tais pensamentos e sua forma de ação
influenciaram inúmeras anarquistas e fez com que ela fosse muito referenciada no movimento
operário anarquista em São Paulo na Primeira República, mesmo não sendo da classe
trabalhadora e não trabalhando como operária.
Em todos os séculos surgiram espíritos combativos e foi com essa combatividade
que se erigiram novas formas sociaes sempre em vista do futuro (...). As
revoluções se fazem primeito nos espíritos. (MOURA, apud: RICHTER, 1998, p. 2).
3.3 As mulheres anarquistas e os feminismos (sufragista e marxista)
O anarco-feminismo, como expressão da sensibilidade anarquista aplicada às
preocupações femininas, toma o indivíduo como seu ponto inicial, e se opõe às
relações de domínio e subordinação, com base em formas econômicas não
instrumentais que preservem a liberdade da existência humana, tanto de homens
como de mulheres (BROWN, apud: GOOGLE, p. 4).
Não foram as mulheres anarquistas que, em fins do século XIX e início do século
XX, questionaram as tentativas, por parte de setores dominantes da sociedade, de criar
modelos e padrões de mulheres, dando a elas funções sociais muito claras (mãe e esposa).
Foram inúmeras as mulheres, individual ou coletivamente (em grupos organizados), que
discutiram com juristas e médicos, assim como buscaram, em seu cotidiano, criar formas de
vida que escapassem àquilo que lhes era imposto e que permeava o imaginário social. Em São
Paulo, por exemplo, o movimento feminista adquiriu várias vertentes
77
que se diverenciavam
77
Segundo Céli R. J. Pinto (2003) havia no Brasil como um todo o feminismo difuso, onde mulheres cultas
(professoras, escritoras e jornalistas), não organizadas em grupos, escreviam textos para jornais falando sobre a
dominação da mulher, o interesse de mantê-las fora do espaço público, sobre divórcio e sexualidade; o feminsmo
sufragista, que lutava pela inclusão da mulher na sociedade, já que esta seria essencial para o bom
funcionamaneto da sociedade, sem questionar as bases da mesma; e os feminismos anarquista e comunista.
Ainda é possível identificar a existência de associações femininas que não eram feministas, ou seja, que não
entre si, assim como debatiam pontos de vista diferentes a respeito da mulher, da maternidade
e do amor. A aceitação social de cada uma dessas vertentes também era diversa. As
discussões entre as mulheres seguidoras das diversas vertentes feministas, em jornais, em
conferências e encontros transcritos, torna-nos capazes de entender claramente como
pensavam e atuavam em movimentações e mesmo em suas vidas cotidianas. É preciso ter em
mente que os novos valores de mulher impostos e mesmo presentes no imaginário social
desse momento de intensas rupturas na história contemporânea (tanto no Brasil, quanto em
várias partes do mundo) não foram seguidos por homens e mulheres de todas as classes
sociais; muitos indivíduos e grupos organizaram suas vidas e sua convivência de maneira
própria.
Uma das vertentes de que falamos acima e que foi a mais forte corrente no movimento
feminista organizado no mundo todo no início do século XX era o feminismo sufragista, que
seguia preceitos do liberalismo, ou seja, afirmava igualdade entre todos os indivíduos.
Segundo essas feministas, se todos os seres o iguais, a mulher, assim como o homem, tem
direito à inserção na vida pública e à participação parlamentar. Foi, portanto, na luta pelo voto
(sufragismo) e pelos direitos civis da mulher que mulheres como Bertha Lutz, Leolinda Daltro
e Gilka Machado se engajaram. Grande parte delas pertencia às classes sociais mais altas e
pouco ou nada falavam sobre as condições de vida e trabalho das mulheres da classe
trabalhadora. Escreviam artigos para jornais e revistas criticando as leis brasileiras e a
exploração sexual; formavam federações; participavam de manifestações, enfim. Pensavam
em um “novo ideal de mulher”, a nova mulher, questionando os lugares que eram destinados a
ela (o lar e o casamento), reivindicavam que a mulher deveria estudar
78
e ocupar lugar
também fora do lar, mas respaldavam os modelos positivistas ao afirmarem que, apesar de
ocupar lugares públicos, trabalhar e votar, deveria estar sempre ligada ao lar, já que sua
função era manter a sociedade em harmonia e o lar, nesse sentido, seria o pilar da sociedade.
Aliás, sua participação fora do espaço doméstico, visava manter o bom funcionamento da
sociedade ou então regenerá-la (através da educação que daria aos futuros cidadãos a pátria,
as crianças), nunca destruí-la.
[...] a defesa da participação eleitoral feminina se justificava, então, como um
instrumento de mobilização de forças que permitiria atuar mais amplamente em
termos políticos e jurídicos, para a legitimação e proteção dos interesses das
mulheres. (RICHTER, 1998, p. 74).
visavam defender os interesses da mulher, mas sim tinham intuito beneficente ou filantrópico, como coloca
Miriam Leite (1984).
78
A educação e o estudo que as mulheres deveriam receber, segundo as feministas sufragistas, deveria incluir
educação moral e tarefas domésticas (culinária, corte e costura), já que o papel social essencial da mulher era de
ser uma excelente mãe, dona-de-casa e transmissora de valores sociais.
Uma das mais representativas associações feministas sufragistas da Primeira
República foi a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF), fundada em 1922,
durante o I Congresso Internacional Feminista, organizado por Bertha Lutz - a maior
representante desse feminismo no Brasil no Rio Janeiro. A luta central dessa federação era
pelo direito ao voto feminino, porém, segundo a própria organizadora do congresso que deu
origem a tal organização, a mulher não deveria se engajar demais nas lutas políticas, porque
seria um “perigo para a causa do voto feminino” (PINTO, 2003, p. 26), justamente por isso,
inúmeras anarquistas a criticaram. Não era uma federação auto-organizada como pregavam as
libertárias, possuía uma direção extremamente elitista composta por Bertha Lutz, Ana Amélia
Carneiro de Mendonça, Jerônima Mesquita e Maria Eugênia Celso. Pelo fato de pregarem que
o voto da mulher seria importante para a regeneração da sociedade, sem questionar suas
bases, nem os papéis atribuídos à mulher e por proporem práticas reivindicatórias nada
radicais, obtiveram apoio de inúmeros políticos republicanos e das classes sociais mais altas.
Maria Lacerda de Moura colaborou com esse movimento durante muito tempo,
inclusive criou a Federação Internacional Feminina em 1921, nas cidades de São Paulo e
Santos e atuou em concordância com Bertha Lutz. No entanto, rompeu radicalmente com ele
em 1922, abandonando a federação que fundou, denunciando seu conservadorismo e a
filantropia que a permeava. Obviamente ela não negava a importância das lutas das mulheres
por melhores condições ainda na sociedade capitalista, mas afirmava que a libertação total da
mulher, assim como do homem se daria com a destruição pacífica, através da ação direta,
dessa sociedade e com a construção da anarquia, baseada em valores como o amor.
Não há emancipação feminina sem emancipação humana. Nesta organização social
burguesa capitalista, baseada na exploração do homem pelo homem, todos são
escravos, todos são explorados pelo industrialismo, absorvente, pelas necessidades
desnecessárias, criadas pela cupidez do capitalismo.
Para o homem se emancipar do regime de patrões e exploradores e para a mulher se
emancipar do mesmo regime e emancipar-se da proteção masculina, seria preciso
que a atual organização social de privilégios e preconceitos desaparecesse pela
substituição de outra sociedade mais equitativa.
[...] Casada, solteira ou viúva, a mulher é escrava do salário, do pai, do marido,
patrão, diretor espiritual ou sociedade. (MOURA, apud: LEITE, 1984, p. 46 e 102,
grifos nossos).
Para as sufragistas o amor e o sexo estavam condicionados ao casamento. A mulher só
poderia ter relações sexuais se fosse casada e com o objetivo de procriar, não de obter prazer.
O casamento, por sua vez, deveria ter como o principal objetivo manter a ordem social e, para
isso, estar baseado na união político-econômica e não no amor; ele deveria ser uma forma de
construir a base da sociedade o lar - e ser o ambiente para se criar e educar a criança, fora
dele a infância também estaria em perigo, assim como estaria a sexualidade, pois estaria
associada à prostituição. Anarquistas como Maria Lacerda de Moura criticaram tal idéia e
pregaram o amor e a união livres, baseadas na independência entre os indivíduos e em suas
afinidades, assim como a maternidade consciente.
Para mim, o amor completo, integral, tem de realizar a afinidade mental, espiritual,
sentimental, afetiva e sexual. Mas, cada um com as suas características de sexo e
suas qualidades específicas sem que um tente modelar ao outro pelo seu
temperamento ou pelos seus atributos pessoais e pela individualidade. (MOURA,
apud: LEITE, 1984, p. 104, grifos nossos).
Também se diferenciando das feministas sufragistas, Maria Lacerda, apesar de ser
uma mulher de classe média, lutou pela emancipação das trabalhadoras. Evidentemente essa
luta estava associada à sua idéia de que um ser humano poderia ser inteiramente livre se
todos também o fossem; como num jogo de espelhos, um ser humano seria refelexo do outro,
a personalidade do indivíduo seria fruto da sua interação com a coletividade de outros
indivíduos, portanto bastaria haver um escravo para que todos os homens assim o fossem,
como já havia afirmado Bakunin.
Do que vale a minha emancipação econômica pelo trabalho, se continuo a explorar
torpemente o serviço de minha própria irmã? (...) E todas atiram às costas da
proletária o serviço braçal pesado e incômodo, o trabalho árduo de que cada criatura
humana tem necessidade para a sua higiene pessoal e para a sua própria subsistência.
(MOURA, apud: LEITE, 1984, p. 134, grifos nossos).
De que vale a igualdade de direitos jurídicos e políticos para meia dúzia de
privilegiadas tiradas da própria casta dominante, se a maioria feminina continua
vegetando na miséria da escravidão milenar? (MOURA, apud: RICHTER, p. 71).
Com relação ao direito ao voto, as anarquistas afirmavam que essa luta não levaria à
libertação da mulher e sim faria com que houvesse um respaldo ao Estado e à ordem vigente,
ou seja, à exploração do homem pelo homem. Colocavam que a emancipação somente no
campo da política institucional não significaria verdadeira emancipação, mas escravidão.
Votando a mulher afirmaria a necessidade de um governante para dirigi-la, legitimando assim
o governo e sua proteção à classe exploradora e à ordem social capitalista. Por outro lado, as
libertárias defendiam que a livre união e a organização (também livre) das mulheres para lutar
pela destruição do Estado e da sociedade capitalista como um todo, seja pacificamente ou não,
mas através da ação direta, seria a única maneira de libertarem-se. Nesse sentido, para Maria
Lacerda, a educação feminina (educar para transformar) e a emancipação intelectual das
mulheres (elas deveriam pensar e agir por si mesmas) era essencial à sua libertação total,
como vimos, e não somente à emancipação política.
Cheguei à conclusão de que o meio é associar-se, não é a união das mulheres pela
defesa dos seus direitos, que elas confundem com velharias e cumplicidades
reacionárias. Ao falar em direitos lhes ocorre o voto, o qual deveria ter sido
reivindicado cem anos atrás... Agora, não é mais de votos que precisamos e
sim de derrubar o sistema hipócrita, carcomido, das representações parlamantares
escolhidas pelos pseudo-representantes do povo, sob a capa mentirosa do sufrágio,
uma burla como todas as burlas dos nossos sistemas governamentais, uma
superstição como tantas outras superstições arcaicas. (MOURA, apud: PRADO,
1986, p. 88, grifos nossos).
Maria Lacerda criticava a idéia de que o sexo tivesse como único objetivo a
procriação. Para ela, homens e mulheres tinham direito e deveriam experimentar o prazer
proporcionado pelo sexo. Aliás, a maternidade não era uma missão divina e natural da mulher
como afirmavam médicos e juristas na Primeira República, mas sim deveria ser um fruto da
vontade espontânea (auto-consciência) da mulher e do homem. Justamente por isso,
participou de discussões com os neo-malthuasianos e pregou o controle de natalidade, assim
como Emma Goldman o fez.
Emma Goldman e Maria Lacerda também concordavam no que diz respeito à
prostituição. Para elas na sociedade capitalista o corpo da mulher era visto como mercadoria,
como produto passível de compra e venda; essa organização social, onde a falta de condições
econômicas e a exploração levava muitas mulheres a prostitirem-se, juntamente com a moral
burguesa que a respalda, seriam as responsáveis pela existência da prostituição. Não seria
então a prostituta a mulher desonrada como colocavam as sufragistas, mas a vítima do sistema
econômico capitalista e de uma moral que criava estereótipos da “boa mulher” e da mulher
desonrada, principalmente no início do século XX, quando a idéia de determinar o que seria
honra ocupava um papel importante nas discussões de juristas médicos e políticos, o que
inferiorizava a mulher, como dissemos anteriormente. Nesse sentido, Emma afirmava que a
prostitiução não era praticada somente por mulheres da classe operária (contrariando
estudiosos do começo do século XX), mas por mulheres de todas as classes sociais, visto que
todas as mulheres seriam tratadas pelo seu sexo e não pelas suas capacidades e méritos, ou
seja, a responsável pela prostituição seria a inferiorização social e econômica das mulheres.
Além disso, a prostituição seria uma busca por prazer sexual para muitas mulheres, que eram
privadas dele no casamento, que o sexo dentro do mesmo visaria somente à procriação e
nunca o prazer, aliás, segundo a moral burguesa e as teorias científicas da época, o homem
teria necessidade de prazer sexual, faria parte de sua natureza, enquanto a mulher seria sempre
privada dele por não ter a mesma natureza masculina. O casamento baseado em aspectos
econômicos (casamento por dinheiro), para essas libertárias também seria o mesmo que a
prostituição, o primeiro apoiado e aceito socialmente, enquanto a segunda era condenada.
O sufrágio universal, tão defendido pelas sufragistas, foi criticado por Emma
Goldman
79
. Segundo ela, assim que as mulheres perceberam que o lar era escravidão elas
começaram a cultuar o sufrágio universal como cultuavam um Deus ou um novo ídolo. Seria
o sufrágio, então, a garantia da alegria e da independência, porém, na verdade ele significaria
maior escravidão, como o culto aos deuses também o seriam. O sufrágio não garantiria
emancipação; nem a purificação da política, como afirmavam muitas líderes desse tipo de
feminismo; nem a igualdade econômica, já que salários de homens e mulheres eram diferentes
por causa da inferiorização da mulher, que justamente por isso, viam-se obrigadas a cumprir
tarefas domésticas mesmo após um dia de trabalho em fábricas e oficinas. O direito ao voto
para todos os indivíduos seria uma imposição que corromperia os povos e os converteriam em
vítimas dos políticos, não seria um direito (como vimos anteriormente). O problema estaria no
sistema representativo em si, em que as pessoas eram governadas e não se auto-organizariam,
nem se autogovernariam.
[...] el sufrágio es el mal que sólo sirve para esclavizar a los pueblos, que lo único
que ha hecho ha sido cerrales los ojos, para que no puedan ver con qastucia los
han sometido. (GOLDMAN, 1977, p. 68).
As feministas sufragistas, para Emma, eram mulheres que lutavam pelos interesses de
sua classe, que eram das classes sociais mais altas; não queriam abolir as desigualdades e
não falavam em luta de classes. A única forma, segundo ela, de se alcançar a emancipação
total da mulher seria a luta através da ação direta e não pelo voto, nesse sentido a mulher não
deveria lutar para superar o homem, como pregaram muitas feministas, mas lutar juntamente
com ele para que ambos fossem livres. Sem a individualidade humana, que se formaria e
trabalharia em cooperação com outras individualidades, a humanidade nunca rumaria para o
progresso, por isso, um indivíduo não poderia ser escravo do outro e sim viver em cooperção
mútua homens e mulheres, assim como pensava Maria Lacerda de Moura. Era uma visão
limitada da sociedade a das sufragistas, que acreditavam que homens e mulheres estavam em
posições opostas. Na verdade os indivíduos como um todo lutariam pela libertação da
autoridade (antinatural) que se constituiu em algum momento da sua história (essa luta,
expressa na rebelião e na revolução seria instintiva) e que, na sociedade capitalista, se
consolidou no Estado, que, por sua vez, teria interesses antagônicos aos dos indivíduos e, por
isso, seria um impedimento ao progresso da coletividade de indivíduos, que poderia ser
alcançado através da libertação total de qualquer forma de autoridade. Para alcançar essa
79
Ao reconhecer feminismo como movimento que lutava unicamente pelo direito ao voto e por direitos civis da
mulher, Emma Goldman o criticava e negava-se a rotular-se como feminista. Era anarquista, assim que se
denominava.
libertação, a mulher deveria lutar pela sua emancipação, mantendo sua individualidade,
convivendo e lutando com o homem, ambos respeitando mutuamente a individualidade de
cada um. Foi o que fizeram as mulheres anarquistas aqui em São Paulo (ver capítulo 4).
[...] Su desarrollo, su liberdad, su independencia, deben surgir de ella misma.
Primero, afriamándose como persona y no como mercancía sexual. Segundo,
rechazando el derecho que cualquiera pretenda ejercer sobre su cuerpo, negándose a
engendrar hijos, a menos que los desee; negandose a ser la sierva de Dios, del
Estado, de la sociedad, de la familia, del esposo, etc; haciendo que su vida sea más
simple, pero también más profunda y más rica. Es decir, tratando de aprender el
sentido y la substancia de la vida en todos sus complejos aspectos, liberándose del
temor a la opinión a la condena públicas. Sólo eso, y no el voto, hará a la mujer
libre, la convertirá en una fuerza de verdadero amor, de paz, de armonía; una fuerza
como un fuego divino, dador de vida: creador de hombres y mujeres libres.
(GOLDMAN, 1977, p. 83, grifos nossos).
A luta da mulher pela libertação, portanto, não seria somente uma luta para libertar-se
de algumas tradições e laços burgueses e exercer uma nova prática de si, mas sim uma luta
pela destruição da sociedade capitalista, com todas as suas tradições e valores, a partir de si
própria (rompendo em sua vida cotidiana com os valores que inferiorizam a mulher) e em
contato com os outros, e pela construção de uma nova sociedade, onde pudesse exercer
livremente sua liberdade e individualidade em cooperação com outros indivíduos (homens e
mulheres). E, nesse aspecto, a prática do amor livre e da maternidade consciente teriam papéis
fundamentais. O sexo para Emma, assim como para Maria Lacerda e outras anarquistas
brasileiras, e diferentemente de feministas como Bertha Lutz, não era unicamente para
procriar, mas proporcionava prazer para ambos os sexos. A maternidade, por sua vez, não era
uma função natural e divina da mulher e nem deveria ter sanção do Estado através do
casamento, mas sim deveria ser uma opção consciente e fruto de sua vontade, mesmo que
para isso se unisse a um homem sem casar-se com ele, mas unicamente pautada no amor livre
e nas suas afinidades. Justamente por essa concepção, Emma defendeu o uso de métodos
contraceptivos e o controle de natalidade, afirmando que a mulher o era uma “máquina de
reprodução”. Essa defesa certamente influenciou as libertárias paulistanas.
(...) Precisamos desembaraçar-nos das velhas tradições, dos hábitos ultrapassados,
para então ir em frente. O movimento feminista deu apenas o primeiro passo nessa
direção. É necessário que se fortaleça para dar o segundo passo. O direito ao voto, a
igualdade civil, podem ser reivindicações justas, mas a emancipação real não
começa nem nas urnas nem nos tribunais. Começa na alma de cada mulher. A
história nos ensina que em todas as épocas foi por seu próprio esforço que os
oprimidos se libertaram de seus senhores. É preciso que a mulher aprenda essa lição:
que a sua liberdade se estenderá até onde alcance seu poder de libertar-se a si
mesma. Por isso, é mil vezes mais importante começar por sua regeneração interior:
derrubar o fardo dos preconceitos, das tradições, dos hábitos. (GOLDMAN, apud:
LOBO, 1983, p. 81, grifos nossos).
La emancipación deberia permitir a la mujer convertirse en un ser humano en el
sentido más propio del término. Todo lo que dentro de ella pregna por afirmarse y
actuar deberia alcanzar su más plena expresión; habría que romper todas las barreras
artificiales y eliminar todos los vestigios de siglos de submisión y de esclavitud que
obstaculizan el camino hacia una mayor libertad (GOLDMAN, 1982, p. 312).
Além do sufragismo, o movimento feminista assumiu outras formas no início do
século XX, como dissemos, uma delas foi o feminismo comunista de tendência marxista.
No Brasil e em todo o mundo houve mulheres que seguiram essa tendência, mas sem dúvida
alguma, a mais representativa delas e com a qual as anarquistas mais polemizaram foi
Alexandra Kollontai. Russa nascida em 1872 lutou ativamente durante a Revolução de 1917 e
chegou a ocupar o posto de ministro de Estado como Comissária de Saúde do governo
soviético antes de romper totalmente com os bolcheviques, em 1920, ao afirmar que a
ditadura implantada por eles tinha tirado a voz e voto dos trabalhadores, rompendo totalmente
com o Partido Comunista e compondo o grupo conhecido como oposição operária
80
.
Segundo Kollontai, a evolução do modo de produção capitalista levou ao surgimento
de um novo tipo de mulher ao incorporar quantitativamente a força de trabalho feminina
dentre os assalariados: a mulher moderna ou celibatária afinal de contas, para ela o tipo
fundamental de mulher em cada época está em “relação direta com o grau histórico de
desenvolvimento econômico por que atravessa a humanidade”. (KOLLONTAI, 2000, p. 16).
Ou seja, as condições econômicas transformam as relações de produção e a própria psicologia
da mulher. Dessa forma, a celibatária seria aquela mulher que trabalhava e não mais dependia
economicamente do marido para garantir sua subsistência.
As relações de produção, que durante séculos mantiveram a mulher trancada em
casa e submetida ao marido, que as sustentava, são as mesmas que, ao arrancar as
correntes enferrujadas que a aprisionavam, impelem a mulher frágil e inadaptada à
luta do cotidiano e a submetem à dependência econômica do capital. [...] As virtudes
femininas passividade, submissão, doçura que lhe foram inculcadas durante
séculos, tornam-se completamente supérfluas, inúteis e prejudiciais. A dura
realidade exige outras qualidades nas mulheres trabalhadoras. Precisa agora de
firmeza, decisão e energia, isto é, aquelas virtudes que eram consideradas como
propriedade exclusiva do homem. [...] Nesta urgência em adaptar-se às novas
condições de sua existência, a mulher se apodera e assimila as verdades,
propriamente masculinas, frequentemente sem submetê-las a nenhuma crítica, e que,
se examinadas mais detalhadamente, são apenas verdades para a classe burguesa.
(KOLLONTAI, 2000, p. 17, grifos nossos).
Como a evolução relações econômicas e a superação de um modo de produção e o
surgimento de outro se dão através do determinismo histórico, o tipo de mulher surgido em
cada momento da história estaria também determinado por ele: o modo de produção
capitalista exigiu a incorporação da força de trabalho feminina e isso provocou profundas
mudanças na sua psicologia, levando-a libertar-se da prisão que era o lar. Tal pensamento é o
80
Por causa de sua atuação nesse grupo Kollontai foi perseguida e castigada pelos bolcheviques a mando de
Lênin que o classificava como um grupo da pequena burguesia.
primeiro ponto de contestação das anarquistas, para elas a mulher, assim como toda a
humanidade, tem vontade própria e essa vontade seria a responsável por suas transformações
psicológicas e sociais, a história não seria então pré-determinada por fatores econômicos, mas
sim pela vontade e ação dos indivíduos se a mulher mudou foi porque tomou atitudes nas
suas próprias vidas cotidianas e frente à militância pela sua libertação. Inclusive as mulheres
não teriam a passividade e a doçura como características naturais, o individuo pode ou não ter
tais características de acordo com sua personalidade e contatos sociais.
O casamento burguês, segundo a própria Kollontai, estaria baseado em relações
econômicas (em interesses econômicos) e por isso deveria ser indissolúvel, que separar-se
seria uma afronta à propriedade privada; e ao conceito de propriedade de um ser pelo outro,
ou melhor, do homem pela mulher, o primeiro a mantém como sua posse porque ela
dependeria economicamente dele. Os filhos, cuja geração seria a única finalidade das relações
sexuais, pela moral vigente no sistema capitalista, também seriam uma forma de garantir os
interesses econômicos burgueses: a família burguesa acumula capital e esse tem de ser
salvaguardado pela própria família, além disso, ela também consome e o consumo tem de ser
passado de geração em geração. O amor não estaria presente em tais relações. Porém,
Kollontai não propõe que o amor livre seja a base das uniões entre homens e mulheres na
sociedade burguesa e que essas uniões se dêem sem nenhuma sanção estatal, ao contrário, ela
afirmava que o amor livre seria um impedimento para se sentir o verdadeiro amor e, na
sociedade capitalista, ele sempre terminaria em uma união legal. Ele não seria possível
também durante a fase da ditadura do proletariado (socialista), intermediária, mas somente na
sociedade comunista. Observamos aqui que Kollontai não aplicava o materialismo histórico
somente como meio para interpretação das relações econômicas e com relação à psicologia da
mulher, mas sim como meio para entender o próprio amor. Em opisição ao amor por interesse
existente na sociedade capitalista, deveria existir o amor-camaradagem, que reforçaria os
laços de união e trabalho voltados para a coletividade, e não para os indivíduos envolvidos, o
amor estaria submetido às necessidades da ditadura do proletariado e as uniões deveriam
estabelecer-se para favorecê-la, assim como o sexo teria como objetivo fortalecer laços de
solidariedade e camaradagem, não deveria ser um ato puramante físico; enquanto o amor livre
e para o gozo dos indivíduos envolvidos só seria possível na sociedade comunista. As
relações amorosas seguiram certo esquema segundo seu pensamento:
QUADRO 1 Amor (segundo a concepção de Alexandra Kollontai)
Tese → Antítese → Síntese
↓ ↓
Capitalismo Socialismo Comunismo
↓ ↓
Casamento Burguês “Amor Camaradagem” “Amor Livre”
(indissolúvel e baseado em (voltado para a “coletividade”)
interesses econômicos)
O proletariado, por seu lado, deve diminuir o papel social e psicológico do
sentimento do amor, tanto no verdadeiro sentido da palavra, quanto no que se refere
às relações entre os sexos, mas pode e deve considerar estes papéis, para reforçar os
laços sociais. Estes não se situam no domínio das relações matrimoniais e da
família, mas são os laços que contribuem para o desenvolvimento da solidariedade
coletiva. (KOLLONTAI, 2000, p. 144).
Assim teria ocorrido em momentos anteriores na história, por exemplo: na Idade
Antiga imperava o amor patriarcal; na sociedade feudalista, o amor espiritual e na sociedade
conteporânea o amor baseado em interesses econômicos (burguês), cuja superação
dependeria, como dependeu em outras épocas, de mudanças na base econômica da sociedade.
Segundo Alexandra Kollontai o amor e a moral sexual não estão somente na superestrutura da
sociedade, portanto condicionados à base econômica (infra-estrutura), mas, as transformações
deles se dão ao longo do processo de luta contra as “forças sociais que se lhe opõem”.
Justamente por isso, o amor e a moral sexual mudam ainda na sociedade capitalista, mas a
total libertação da mulher e o amor livre seriam alcançados pela superação desse modo de
produção. Na sociedade capitalista, com sua dupla moral sexual (mulher de família x
prostituta) e com o casamento indissolúvel, a mulher estaria submissa aos desígnios do
homem, mas começaria a se libertar através do trabalho fora do lar; no socialismo ela
deveria lutar para a construção do comunismo através do trabalho (obrigatório e voluntário),
fortalecendo assim o Estado e o Partido Comunista, através do amor-camaradagem e na
sociedade comunista poderia exercer-se o amor livremente.
[...] a atenuação dessas falsas e hipócritas concepções [da mulher como acessório do
homem] se realizará com a transformação do papel econômico da mulher na
sociedade, com sua entrada nas fileiras do trabalho.
Toda a classe ascendente, nascida como conseqüência de uma cultura material
distinta daquela que a antecedeu no grau anterior da evolução econômica, enriquece
toda a humanidade com uma nova ideologia que lhe é característica. [...] O código
moral constitui parte integrante da nova ideologia. Portanto, basta pronunciar as
expressões ética proletária e moral proletária, para escapar da trivial argumentação:
a moral sexual proletária não é no fundo mais do que superestrutura. Enquanto não
se experimenta a total transformação da base econômica, não pode haver lugar para
ela [...]. A experiência da história ensina que a ideologia de um grupo social e,
consequentemente, a moral sexual se elabora durante o próprio processo da luta
contra as forças sociais que se lhe opõem. (KOLLONTAI, 2000, p. 64 e 71).
Sem dúvida alguma aqui está outra crítica das anarquistas com relação ao pensamento
de Alexandra Kolontai: elas propunham o amor livre como uma forma de educação, para a
vida livre na sociedade futura e como uma possibilidade de libertação, ainda que não total, na
sociedade atual e afirmavam que as análises marxistas submetiam o sentimento do amor ao
etapismo e a sucessão de modos de produção, assim como o submetem ao Estado e ao Partido
Comunista, que passaram, na Rússia bolchevique, a controlar inteiramente a vida das pessoas.
Maria Lacerda de Moura, por exemplo, afirmava, em 1926, que Kollontai submeteu o amor a
uma ideologia de classe e isso seria um erro.
Não será um erro, uma repetição de um crime contra a natureza, o marxismo forjar e
organizar uma moral nova em relação ao amor, para impor a todo orbe, como defesa
da luta de classes? (MOURA, apud: LEITE, 1984, p. 108).
Emma Goldman, mesmo colocando que o matrimônio burguês estaria baseado em
interesses econômicos, afirmava que nem todos os homens e mulheres seguiram esse padrão
de união, e muitos deles constituíram relações baseadas no amor livre, mesmo na sociedade
capitalista, mostrando assim que a vontade própria faz a história dos indivíduos e que ela não
poderia ser inteiramente determinada por fatores econômicos. Além disso, segundo ela o fato
da mulher ter ido trabalhar fora do espaço doméstico não significava que alcançou alguma
independência e libertação, ao contrário do que pensava Kollontai ao afirmar que a mulher
moderna era uma mulher independente. O trabalho assalariado era visto como transitório por
muitas mulheres, que haviam sido criadas e educadas desde a infância para casar-se e terem
filhos, segundo Emma, e, acima de tudo, o casamento reforçava a exploração da dupla jornada
de trabalho feminino (o sobretrabalho de que falamos no capítulo anterior).
La mujer considera su situación de trabajadora como transitoria hasta que llegue el
momento de dejarla a lado cuando aparezca el mejor postor. Por ello, es
infinitamente más difícil organizar a las mujeres que a los hombres. “Por qué me
voy a afiliar en el sindicato si voy a casarme y a tener un hogar?” Acaso no se le
ensiñado desde pequeña a creer que esa es su verdadera vocación? Ha aprendido que
el hogar, aunque no sea una prisión tan grande como la fábrica, tiene puertas y
cerrojos más sólidos. Tiene un guardián tan fiel que nada puede escapárlele. Pero lo
más trágico es que el hogar no la libra ya del trabajo asalariado, sino que acrecienta
su tarea. (GOLDMAN, 1982, p. 325 e 326, grifos nossos).
O amor não poderia ser submetido a fórmulas e esquemas segundo as anarquistas, ele
seria o sentimento mais livre do homem. Nesse sentido, o casamento estava em oposição
oposta a ele, submetendo-o ao Estado e à Igreja.
[O] Amor, o mais forte e profundo elemento em toda a vida; o percurso da
esperança, da alegria, do êxtase; o amor, o desafiador de todas as leis de todas as
convenções; o amor, o mais livre, o mais poderoso formador do destino humano;
como pode essa força impulsionadora ser sinônima à pobrezinha daquela semente,
cultivada pelo Estado e pela Igreja, o casamento. (GOLDMAN, apud: RICHTER,
1998, p. 67).
[o casamento é o mesmo que] otra instituición patriarcal, el capitalismo, que arrebata
al hombre su derecho de nacimiento, impide su desarrollo, envenena, y crea luego la
caridad pública, que propera a costa del ultimo vestigio del respeto por uno mismo.
La instituición del matrimonio a la mujer en un parásito y la obliga a depender
completamente de outra persona. La incapacita para la lucha por la vida, aniquila su
conciencia social, paraliza su protección, que es en realidad una trampa, una parodia
del carácter humano. (GOLDMAN, 1982, p. 327).
Kollontai ainda afirmava que era essencial que a mulher tivesse filhos (e acreditava
que o ato sexual não deveria ser praticado somente para obtenção de prazer), mas que
deveriam ser frutos de uma união pautada no “amor-camaradagem” (onde ambos trabalham e
o amor estaria submetido às regras da coletividade, ou melhor, da ditadura do proletariado) e
para que eles pudessem constituir a força de trabalho futura na sociedade socialista. A
maternidade, assim, estaria submetida à coletividade e suas necessidades; era uma “obrigação
essencial da mulher para com o Estado proletário”, como colocava. Esse ponto de vista
também foi imensamente criticado pelas libertárias: a maternidade não era, para elas, nem
função natural e divina, nem uma necessidade social, mas sim, fruto da autoconsciência e da
vontade de indivíduos unidos livremente; e, para que ela pudesse ser exercida, necessitava de
amor e liberdade, como já o dissemos. A mulher não era uma máquina reprodutora.
[...] La mujer no quiere seguir siendo la productora de una raza de seres humanos
enfermos, débiles, decrépitos y miserables, que no tienen ni la fuerza ni el valor
moral de arrojar el yugo de su pobreza y de su esclavitud. En lugar de ello, desea
menos hijos y mejores, engendrados y criados con amor y por libre elección, y no
por la obligación como en el matrimonio. (GOLDMAN, 1982, p. 329, grifos
nossos).
Emma Goldman e Alexandra Kollontai chegaram a se conhecer pessoalmente e
chegaram a travar uma discussão, Maria Lacerda de Moura leu os escritos dessa marxista
sobre o amor-camaradagem e os criticou em seu livro de 1926 “Han Ryner e o amor plural”.
No período que antecedeu a Revolução Russa, Kollontai passara pelos Estados Unidos para
dar conferências sobre a “questão feminina”, até então Emma a admirava como militante
socialista e compareceu em uma de suas conferências em Nova Iorque, porém em sua estada
na Rússia, acabou por romper totalmente com ela.
Assim que começou a observar o sistema de privilégios dos bolcheviques e as
condições péssimas em que vivia o povo russo, Emma resolveu procurar Kollontai para
entender melhor o que se passava no país. Até então nenhuma das duas havia rompido
totalmente com o Partido Comunista. Kollontai a recebeu no Hotel Nacional, em Moscou,
onde viviam também outros líderes bolcheviques, afirmou que os relatos de Emma sobre a
situação russa eram sobre “pequenos pontos cinza” de um imenso panorama revolucionário e
que tais pontos eram inevitáveis, visto que a reação e a intervenção de países capitalistas eram
intensas e que ela poderia ajudar no sentido de diminuí-los, podendo inclusive trabalhar com
as mulheres:
[...] Podría trabajar con las mujeres, eran ignorantes de sus propias funciones como
madres y ciudadanas. Había hecho tan buen trabajo de esse tipo en América, y podía
asegurarme que en Russia existia un terreno más fértil. Por qué no te unes a y
dejas de darle vueltas a unos pocos puntos grises? dijo en conclusión -; no son más
que eso, querida camarada, nada más.
Gente sometida a redadas, encarcelada y ejecutada por sus ideas! Viejos y jóvenes
retenidos como rehentes, toda protesta silenciada, la inquietud y el favoritismo en
alza, los mejores valores humanos traicionados, el mismo espíritu de la revolución
crucificado a diario... no era esto más que “áreas grises”, mates? Sentí que un frio
helador penetraba hasta la médula de mis huesos. (GOLDMAN, 1996a, p. 273,
grifos nossos).
As mulheres anarquistas, no Brasil e no mundo, não consideravam mulheres que não
queriam colaborar com um Estado, seja ele proletário ou capitalista, como ignorantes, mas
sim como lutadoras. Também não acreditavam que a revolução social deveria levar a uma
sociedade pautada no controle das vidas dos indivíduos, desde as opiniões políticas até o
amor, acreditavam que ela deveria levar à construção de uma sociedade inteiramente livre e
baseada no amor e na igualdade, jamais nas diferenças entre os sexos. Para elas a luta pela
emancipação feminina estava associada à luta pela destruição do capitalismo, esse sim o
responsável pela escravidão de todos os seres humanos, ou como escreveu a anarquista
esponhola Teresa Claramunt
81
em 1899:
Nuestra dignidad como seres pensantes, como media humanidad que constituímos,
nos exige que nos interesemos más y más por nuestra condición en la sociedad. En
el taller se nos explota más que al hombre, en el hogar doméstico hemos de vivir
sometidas al capricho del tiranuelo marido, el cual por el solo hecho de pertenecer al
sexo fuerte se cree con el derecho de convertirse en reyezuelo de la família (como en
la época del barbarismo). (CLARAMUNT, 1982, p. 317).
81
Teresa Claramunt Creus foi uma trabalhadora do setor têxtil de Sabadell (Espanha) que aderiu ao anarquismo
e fundou um grupo anarco-sindicalista em sua cidade. Participou de inúmeros movimentos anárquicos em toda a
Espanha.
CAPÍTULO 4 AS MULHERES ANARQUISTAS EM SÃO PAULO E SUAS
ATUAÇÕES NO MOVIMENTO OPERÁRIO
É apenas ambição dar para uma mulher de uma determinada classe a oportunidade
de uma participação mais integral em um sistema de privilégios e se estas
instituições (as instituições capitalistas) são injustas quando os homens tomam
partido delas, elas também serão injustas quando as mulheres tomarem partido delas.
(MONTSENY, 2007, p. 2).
Apesar de nem sempre lembradas pelos historiadores que estudam a história do Brasil
do período identificado como Primeira República e mesmo pelos historiadores de anarquismo,
foi enorme a militância das mulheres no movimento libertário tanto no mundo (como vimos
no capítulo anterior), como na cidade de São Paulo. Por aqui suas presenças e militâncias
coincidem com o período da grande imigração (1886 1930), sendo essa a condição essencial
para o desenvolvimento do movimento anarquista e para a atuação de mulheres que já traziam
da Europa ideais libertários ou mesmo os adotaram aqui, em contato com outros imigrantes.
No entanto, o movimento libertário dessa época foi amplamente estudado,
principalmente depois do fim da Ditadura Militar no Brasil, por inúmeros historiadores e
sociólogos. Daí decorrem as questões: por que omitir a presença feminina, que essa parece
ter sido de grande importância para o movimento? E, no que essas mulheres diferem dos
homens anarquistas, ou seja, o que era ser uma mulher anarquista?
Em primeiro lugar, a omissão das mulheres na história do anarquismo paulistano
parece muito mais inevitável do que intencional. São escassos os documentos a respeito delas
e a utilização da história oral como técnica para esse estudo torna-se cada vez mais difícil
dada a distância temporal com relação ao período. Raríssimos são os documentos e relatos
que tratam da vida dessas mulheres, mesmo em seus aspectos mais visíveis (como data e local
de nascimento, etc). O que temos a respeito delas foram seus relatos na imprensa operária da
época (onde podiam defender abertamente seus pontos de vista), relatos de companheiros de
movimento, números que indicam ajuda (até financeira) em movimentações nacionais e
internacionais, dados de apresentações em peças teatrais e ajuda na organização de escolas
modernas e, no caso de uma minoria, livros publicados (como é o caso de Maria Lacerda de
Moura). Porém, tal escassez de documentos nos leva a responder a segunda pergunta. Através
deles podemos identificar as especificidades de seus pensamentos como relação às mulheres
libertárias de outras partes do mundo e mesmo com relação aos homens. Essas mulheres
propuseram o anarquismo como única forma de libertação total da mulher e lutaram para criar
uma vida totalmente livre através da destruição do capitalismo e da construção de uma
sociedade baseada em valores de solidariedade e fraternidade entre todos os indivíduos.
Questionaram a República Brasileira observando-a como um regime destinado a favorecer
grandes proprietários de terra e a burguesia em desenvolvimento no período, aliás, para elas,
era a classe alta que se organizava em governos para perpetuar e garantir a exploração de uma
imensa maioria para que a minoria desfrutasse de uma vida de comodidades e luxos. Lutaram
por melhores condições de trabalho, menores jornadas e salários iguais aos dos homens, além
de protestarem contra os altos preços dos transportes públicos (no caso, o bonde) e contra os
altos aluguéis. Organizaram-se em associações e sindicatos por categoria e ofícios, porque
acreditavam que a mulher tinha suas próprias reivindicações e lutas diárias contra a
exploração e a submissão dentro e fora do lar; essa luta (ora violenta, ora pacífica) se dava em
greves, em boicotes, em comícios, em escolas libertárias e no teatro operário. Criticaram as
religiões cristãs afirmando que elas eram um dos maiores empecilhos à libertação da mulher.
Pregaram a união e a organização livres para a luta.
Aproxima-se a reforma social, onde cada qual terá o seu valor real e digno da sua
personalidade.
Oh! Quão adoravel será a sociedade de amanhã onde todos serão guiados pelo
mesmo ideal de fraternidade e o desprendimento pelas obras materiais será um facto.
Cada um lutará ardentemente pelo engrandecimento e bem estar collectivo.
Hoje não vivemos, apenas somos conduzidos por forças deshumanas, leis absurdas
impostas por imaginações enfermas, cerebros ôcos obcecados pelo calor asphyxante
de convicções jesuísticas cujo único fim é amesquinhar e destruir as consciencias
sãs.
Hoje, o operário soffre, mas amanhã, quando tudo for de todos, esse soffrimento
será substituído pelo bem estar, pela gloria adquirida na estufante peregrinação e
abnegação de muitos séculos de lutas titanicas.
Mãos á obra, reformadores! Avante para a renda da liberdade!
Chega o momento de castigarmos aquelles que impunemente sempre souberam
viver á nossa custa, a nos chicotear com as suas leis falsas.
Enquanto nós outros lutávamos a sós, a burguezia criminosa gastava os fructos dos
nossos esforços.
Chegou a época da agitação redemptora; ella agora virá exigir as contas e, como o
direito é todo nosso, torna-se mister sermos indemnisados com premios e juros de
tudo quanto fomos vilmente lesados.
Jovens patriotas! Coadjuvemos os nossos irmãos de ideaes, sacrificaremos
multuamente um minuto para gozarmos uma vida!
Arranquemos o rosario da mão da mulher, apresentemos a lampada vindicante do
livre pensamento e ahi, então, veremos quão beneficos serão os resultados e os
progressos conquistados.
Nobres patriotas: elevemos o nosso caracter, lutaremos em prol dum ideal
elevadíssimo que é a liberdade de consciencia.
Transformemos a sociedade, desprezando a praga clerical, onde os vícios e a
hypocrisia imperam.
Estirpemos esse cancto da consciencia feminina e veremos então uma sociedade viril
capaz de elevar e crear os mais elevados sentimentos que a imaginação poderia
idealisar.
Transformemos os conventos e templos em officinas profissionais e atiremos essa
corja de criminosos (padres e freiras), esses assassinos da liberdade de consciencia
para qualquer ponto onde não possam fazer mal e em troca sejam uteis a seus
semelhantes.
Basta de infamias, basta de tolerancias. Clarou o momento de arrancarmos a mulher
da escravidão imposta pelo egoísmo nefasto dos verdadeiros vampiros sociaes.
Dia vira em que ser christão será tão ridículo quanto oppobrioso é possuir fama de
ladrão!
Não está muito longe, amigos, basta um pouco de audacia e mais constancia e
muita coadjuvação das patriotas conscientes.
Viva a liberdade e morra o clero! (Eis o ideal almejado!. THERESA ESCOBAR. A
Plebe, São Paulo, 22 de março de 1919, anno II, número V, grifos nossos).
Sem dúvida alguma, o principal ponto colocado pelas mulheres anarquistas no
movimento foi a necessidade da emancipação da mulher do casamento (instituição
extremamente nociva à sua formação como indivíduo livre, física e intelectualmente e mesmo
ao amor). Ele seria substituído por uniões totalmente livres e pautadas unicamente no amor.
Para elas, as uniões sexuais também deveriam fundar-se essencialmente no amor e, nessa
união, a mulher deveria ser totalmente independente (moral e economicamente), mesmo na
sociedade capitalista. O amor e as uniões livres, ainda na sociedade burguesa, seriam uma
forma de libertação da mulher e também uma forma de aprendizagem para vida livre futura
(para homens e mulheres). Além disso, para que um casal tivesse filhos, deveria existir entre
eles somente vínculos de afeto, nunca leis jurídicas ou religiosas, aliás, nesse sentido, para as
anarquistas paulistanas, assim como para as libertárias citadas no capítulo anterior, a
maternidade deveria ser algo consciente e fruto da vontade de um casal.
O matrimônio apenas serve para abreviar a duração do amor, tornar odiosa a união.
No lar, a mulher é escrava, o homem é o senhor, este tem o direito de mandar,
aquela o direito de... obedecer. (...)
Como pode existir o amor entre uma escrava e um senhor? (...)
Por isso se diz: o casamento é a morte do amor. (TIBI, apud: RAGO, 1985, p. 103,
grifos nossos).
Por observarem a maternidade dessa forma, muitos libertários e libertárias pregavam o
controle de natalidade. As mulheres deveriam ter filhos quando o desejassem, esta, portanto,
não era sua função natural ou mesmo divina como era colocado por médicos, juristas, padres e
pelo próprio imaginário social da época. Justamente por isso, circulou amplamente em São
Paulo o livro “Huelga de Vientres” de Luis Bulra
82
que tinha o seguinte subtítulo: “medios
praticos para evitar las familias numerosas” (A Terra Livre, São Paulo, 13 de junho de 1906,
anno I, número 10).
Muitas dessas mulheres libertárias paulistanas viveram os ideais anárquicos em suas
vidas cotidianas e observá-las constitui-se também uma maneira de observar o próprio
movimento operário anarquista da época, que suas memórias ajudam-nos a compreender a
própria memória do movimento anárquico em São Paulo. Grande parte delas se uniram
82
O jornal anarquista “A Terra Livre” noticiou em diversas edições a distribuição desse livro por um preço de
cem réis. Pelas numerosas vezes que observamos que foi distribuído é possível concluir que havia imenso
interesse dos libertários e libertárias de São Paulo por esse texto.
livremente aos seus companheiros, baseando-se unicamente em laços de amor e fraternidade,
organizaram seu dia a dia pautado em princípios de solidariedade e igualdade, dividindo o que
tinham com seus companheiros trabalhadores e desempregados, abriram suas casas para
encontro de anarquistas das mais variadas tendências, como o fez Paula Soares, que
transformou sua casa, localizada no bairro do Brás, em ponto de encontro dos libertários
desde 1914
83
. ocorriam reuniões, grupos de estudos e ainda se organizou uma sala de
alfabetização e se redigiam jornais anárquicos. Para essas mulheres, o conhecimento, que
levaria à libertação, deveria ser compartilhado ainda na sociedade capitalista, sem que para
isso fosse necessário algum investimento financeiro. Suas trajetórias de vida são, portanto,
importantes documentos do próprio movimento operário e através de seus textos e relatos,
publicados na imprensa operária, tornam-se possíveis percebermos suas concepções sobre a
vida, a história e o anarquismo, apesar das pouquíssimas informações que temos sobre suas
vidas pessoais.
Para observarmos todas as questões sucintamente apresentadas acima e responder às
indagações propostas no início desse capítulo, abordando similaridades e divergências de
pensamentos e ações com anarquistas do sexo feminino e masculino já estudados em capítulos
anteriores do presente trabalho, assim como, para notarmos as diferenças entre o feminismo
anarquista e os outros feminismos existentes em São Paulo (como mostramos no capítulo 3),
dividimos esse capítulo em tópicos. Primeiramente, no tópico 4.1, observaremos como as
anarquistas viam e questionavam a política, a economia e a cultura da Primeira República e
suas relações com importantes personagens e fatos políticos da época, assim como com a
religião católica; logo após, no tópico 4.2, veremos como críticas e questionamentos à
sociedade republicana se desdobraram em práticas anárquicas, através da ação direta (em
greves e reivindicações por melhores condições de vida e trabalho) e como as libertárias se
organizaram para tal, no tópico 4.3. Para finalizar, no tópico 4.4 (dividido em outros quatro
“sub-tópicos”: 4.4.1; 4.4.2; 4.4.3 e 4.4.4) analisaremos os meios de luta privilegiados das
mulheres anarquistas paulistanas, que, na maioria das vezes, descartaram os métodos de ação
violentos, mesmo concebendo-os como inevitáveis em casos de ação direta com em greves e
piquetes, como afirmava Voltairine de Cleyre, e optaram pela propaganda, pela arte e pela
educação como importantes, e até essenciais, meios de luta, como afirmavam Emma Goldman
e Maria Lacerda de Moura (cada um dos “sub-tópicos” abordará um desses meios: 4.4.1 e
83
Sua casa foi ponto de encontro dos anarquistas de 1914 a 1923 aproximadamente.
4.4.4 a propaganda em jornais e festas e/ou festivais; 4.4.2 a educação libertária e 4.4.3
o teatro operário).
Vale colocar aqui que essas anarquistas paulistanas não atuavam distante dos homens
anarquistas, pensando em sobressaírem-se a eles, mas lutavam junto deles, levantando outras
questões relevantes para o movimento, como a discrepância entre os salários (de homens e de
mulheres), a liberdade de união e a maternidade livre e consciente. Além disso, adotaram
práticas já privilegiadas pelo anarquismo clássico, tratado no primeiro capítulo desse trabalho,
como as greves e a livre organização, porém de maneira específica, dado o contexto social e
político brasileiro. Também adotaram práticas relacionadas às teorias das libertárias que
atuaram fora do Brasil como Emma Goldman, Louise Michel e Voltairine de Cleyre (tratadas
no capítulo 3), sem, evidentemente, se prenderem totalmente a tais, já que atuaram de maneira
livre nos mais diversos momentos. Esse capítulo busca justamente mostrar as práticas das
mulheres libertárias em São Paulo nas mais diversas frentes do movimento operário
anarquista.
4.1 As mulheres anarquistas e o contexto republicano brasileiro (economia e política)
Como foi dito anteriormente, as libertárias que atuaram em São Paulo acreditavam
que a libertação total da mulher se daria com a derrocada total da sociedade capitalista e a
construção de uma sociedade livre. Entretanto, isso não quer dizer que elas não questionaram
a política republicana brasileira; seguindo idéias presentes nos clássicos do anarquismo,
lutavam por melhorias para as classes mais baixas ainda na sociedade capitalista e não
esperavam que essas fossem possíveis em outra sociedade; os anarquistas, juntamente com
os operários, deveriam lutar para que o sofrimento cotidiano do trabalhador fosse resumido ao
mínimo possível.
Para elas, o governo brasileiro privilegiava somente os interesses de uma classe
(dominante) em detrimento da imensa maioria de operários. Iza Rutt, que escrevia artigos que
apareciam em “A Plebe” com grande freqüência foi uma crítica ativa do governo republicano,
que, segundo ela, buscava, através de figuras como Rui Barbosa, ludibriar os operários para
que os mesmos acreditassem que o Estado estava colocado a seu favor, como podemos
observar no artigo a seguir.
Ruy Barbosa começa acariciar os trabalhadores!
O Estado publicou o colossal discurso em que sua exc se refere, num tom plangente,
aos operarios, como a pedir misericordia.
Depois de perorar sobre a mentiraria que indispoz os operarios contra a sua pessoa,
diz elle:
“Mãe mentira desbanca na maternidade os ratos. Cada manhã uma ninhada”.
E pergunta:
“Onde o princípio de liberdade, onde o princípio de igualdade, onde o princípio de
fraternidade, onde o princípio de caridade, que, nesta terra, me deixasse jamais de
ver ao seu lado?
Que desplante! A não ser o princípio de caridade, que é o sustentáculo das duas
classes sociaes e que, por isso, é muito natural que visse o Sr. Ruy Barbosa sempre
ao seu lado, tudo o resto é “ninhada de ratos”.
Valia-se elle, com ufania, de que serviu nos mais avançados postos em prol da
escravidão negra. Mas isso pouco importa à escravidão branca hodierna! “Águas
passadas não movem moinhos”.
E, apesar das “verbas” na sua folha de serviço às classes trabalhadoras do Brazil, os
operarios não serão jamais seus amigos.
No presente, os operarios não gostam de quem fala muito em deus, porque de deus
lhes advieram todos os soffrimentos através dos séculos.
Agora querem-no desterrar, para, livremente, poderem cantar.
“Paz na terra aos homens de boa vontade!” (Atenção Plebeus. IZA RUTT. A Plebe,
São Paulo, 29 de março de 1919, anno II, número VI).
Em outro artigo, já no mês de maio do mesmo ano, narrava o que ouvira trabalhadores
comentarem em frente ao Teatro Municipal (ao que parece, concordando com eles) durante a
conferência do mesmo Rui Barbosa. Falavam dos abusos da autoridade policial, que, segundo
Iza Rutt, agia como um “braço” do governo para manter a exploração dos trabalhadores.
Mostravam as diferenças sociais existentes nos espaços culturais e de sociabilidade na “nova
cidade” (a São Paulo que estava prestes a se tornar metrópole), onde às classes mais altas
estavam destinados caros teatros, como o municipal, e às classes baixas deveriam criar e
desenvolver seus próprios espaços culturais. Também criticavam o fato do Brasil ser um país
dependente dos países estrangeiros, afirmando que os políticos republicanos brasileiros nada
faziam para tirar o país da situação de exploração em que vivia com relação a outras potências
mundiais.
Apesar de professar ideias libertarias, estive a fazer número entre os basbaques que se
espremiam ao redor do Theatro Municipal. Não me foi possível entrar, embora
munida de convite. Mas, si não tive o prazer de ouvir Ruy Barbosa, ouvi, no entanto,
coisas muito interessantes cá fora.
Quando um garoto qualquer gritou:
“Lá vem a cavallaria!” e outros fizeram ouvir: “Cavallaria! Cavallaria!” houve
uma debandada geral e um senhor bem apparentado exclamou:
“É falar em cavallaria para que elles demonstrem a sua corajem... Pobre do Ruy,
si precisar contar com esse povo para subir ao Cattet!”
“Gostaria de ouvir o velhote, si agora promete mundos e fundos, mas quando estiver
empoleirado será tão bom ou peior que os outros.”
“O que nós precisávamos era de um homem com energia bastante que fosse capaz
de nos livrar dos exploradores extrangeiros. Somos um povo escravisado, aqui os
extrangeiros fazem o que querem, exploram-nos á vontade e ninguém lhes pede
conta. O Ruy não serve, está mais velho e os velhos são como herança, em tudo
precisam de guia, imaginem o que então será o governo de um velho e careta...”
Em outro grupo ouvi uma mulher que dizia:
“Pouco se me dava ouvir o caduco, o que eu queria era ver o theatro; quando passo
por aí, da-me vontade de entrar, e de ver uma belleza por dentro, não nhã-nhã?
Que pena!... (...) que o povo não pode entrar!...”
“Por que não com uma noite, mas quando tem companhia, comando?” perguntou
um velhote de barba...
“Ih, compadre, nem fale! A gente mal ganha para comer; vamos agora pensar em
Theatro? Theatro é só para gente rica!”
“Depois, Sinhesilia disse que não deixam entrar quem não vem em traje a rigor...”
“Que quer dizer traje de rigor?” – indagou uma mocinha de ar ingenuo.
“Traje a rigor”, explicou alguem, “é andarem as mulheres com as “mamelas” à
mostra!”
“Credo, minha senhora! E os homens?”
“Os homens... ora os homens tem mais cérebro que as mulheres, ouvi-las? A densa
vaidade nada arranja com elles...”
“O que enche de indignação a gente”, repoz um rapagão antipathico, “é pensar que
esse magestoso edificio que ahi está custou o dinheiro de nós todos e aquelles
canalhas é que se” [aproveitam dele].
Então, caros leitores, ouvi ou não ouvi coisas bem interessantes ca fora? (A margem
de uma conferência. IZA RUTT. A Plebe, São Paulo, de maio de 1919, anno II
número 11, grifos nossos).
Além da crítica ativa que fazia aos políticos e ao governo republicano, Iza Rutt
denunciou a Igreja Católica desse período, afirmando que o que os padres faziam era enganar
os operários e fazê-los confiar que a solução para a sua vida sofrida de altas jornadas e baixos
salários estava no cristianismo (o reino dos céus que alcançariam se fossem obedientes) e não
na luta diária contra a exploração. Assumia uma postura anticlerical, assim como era
defendida por Maria Lacerda de Moura e Emma Goldman
84
, chamando os trabalhadores à
luta.
- Querem rir-se os plebeus?
Pois nesse caso riam-se commigo, que nunca me ri tanto e tão gostosamente em
minha vida. E continuo a rir, rir, perdidamente. Mas a que vem tanto riso nesse
momento de serias preocupações? Perguntareis.
- É verdade, o momento é de preocupações e reclama seriedade. Mas quem poderá
resistir ao riso expontaneo que nos irrompe dos labios ao lermos as parvoíces que a
um jornalista do Rio disse S. Revma. o bispo de Campinas?
O papa-hostias, além de dizer tamanhas tolices, fez mal em se ocupar dos operarios,
para não se ver, agora na berlinda, arriscando-se a ser um dos primeiros alvos das
cruzadas que se organizam para sanear a terra de tudo o que for obstáculo à
existencia de obras boas.
- E isso nota bem s.revma. não se aqui no Brasil, mas em todo o universo.
Os acontecimentos ahi estão para attestar; - a guerra, peste e fome. É chegado o
fim do mundo... sem que se pregam absurdos contra a ordem natural das coisas... é
da riqueza social que está dividida a fórma a produzir desigualdade de bens entre os
homens que correm para o trabalho, e os que gastam nas... tavernas.
Os operarios estão fartos de saber quem são os que gastam rios de dinheiro à custa
dos miseráveis que gastam nas tavernas, bem como os que redobram a actividade e
os que ficaram a descançar... como faz s.revma. ...
E quanto ao resto do seu sermão, prega a revma. no deserto; pois não commovem
mais a ninguém as promessas do céu, nem intimidam as ameaças do inferno.
Uma prova disso deram os proprios operários catholicos que, desprezando os
preceitos da religião, que impõe o soffrimento e o jejum para alcançar os gosos
celestiais, escarneceram das bemaventuranças eternas. Pondo de lado a crença em
84
Emma Goldman criticava ativamente o puritanismo e o cristianismo em vários artigos de sua revista “Mother
Earth”. Em um dos textos pesquisados para essa pesquisa, publicado no Brasil com o nome de “Três ensaios
sobre religião” (2005), afirmava que ambos (puritanismo e cristianismo) eram responsáveis pela escravidão dos
trabalhadores, já que os mesmos esperavam no “reino dos céus” a sua salvação deixando de lado a luta
revolucionária para criar o “paraíso” na própria terra, através da construção da sociedade livre. Para ela, além
disso, os indivíduos comportavam-se como mandavam padres e pastores com medo do inferno, outro meio das
religiões controlarem as classes baixas.
Deus e duvidando do seu poder, reuniram-se aos grevistas, esquecendo-se que Deus
enviou o maná aos israelitas famintos. E para que se reuniram elles? Para protestar
contra o movimento dos grevistas ou recusar a sua solidariedade para com os
mesmos? Não, unicamente para apresentarem também ao governo e aos seus patrões
o seu programma de melhorias que não visam confortar o espirito, mas a materia,
que é a unica coisa positiva.
É, portanto, inutil s. revma. estar perdendo o tempo e o latim, appelando para o
patriotismo dos jornalistas. (D. João Nery e os operarios. IZA RUTT. A Plebe, São
Paulo, 25 de agosto de 1917, anno I, número II, grifos nossos).
Sua crítica à política da época se estendia também à influência que o fascismo
começava a ter no Brasil durante da década de 20 do culo XX, assim como o fizera Maria
Lacerda de Moura em inúmeras conferências e livros. Em um artigo de 1924, intitulado “O
monumento a Mussolini”, que apareceu também em “A Plebe”, denunciava a construção de
um monumento ao fascista italiano em uma cidade brasileira. Nesse artigo fica clara uma
posição tão colocada por anarquistas em toda a história do movimento: não importa o homem
que está no poder (político). O poder é nocivo, pois transforma o ser humano em um ser
vaidoso que faz de tudo para manter seu poder e seus privilégios em detrimento de uma
maioria. A autoridade dada ou tomada por um homem é um empecilho à liberdade e à
igualdade, portanto, contrária à natureza humana e seus valores, como o altruísmo, a
compreensão e a prática do bem e da solidariedade.
Tem graça! Houve quem nos taxasse a nós, povo brasileiro de falhos de sentimentos
cívicos porque não protestamos como deveríamos contra a ideia de se erguer, em
uma de nossas praças públicas, um monumento a Mussolini, quando temos tantas
personalidades históricas brasileiras, com muito mais direito a essa homenagem que
o “heros” italiano.
Ora, o povo... o povo para que ha de protestar por isso? (este povo que paga dois mil
réis por kilo de feijão bichado, porque protestar... não paga a pixa como diria o
bom philosopino Jéca). Para que? Uma estatua mais, uma estatua menos, em nossas
praças, não estorva a ninguem! Não merece tanto alarido.
E depois, no caso de Mussolini, o “caso” não é um caso para a gente esgoelar em
protestos, fazendo pés das patas dos nossos cavalleiros e atraindo os fans dos
“toscanas” que ha muitos por ahi, á espera da oportunidade para porem em acção e
“manganeio” e o oleo de rícino.
A ideia dos fascistas brasileiros quererem homenagear Mussolini elevando-lhe uma
estatua é comico-ridicula e seria mais para a agente se apegar a rir do disparate, si
não fosse o pensamento que faz assomar aos nossos olhos lagrimas de dôr sobre a
morte dos nossos companheiros, inimigos da causa sangrenta de Mussolini.
Mussolini, sobre ser feroz, é vaidoso, sobretudo vaidoso, como muito naturalmente
são os grandes homens.
A sua fereza, as suas bravatas, a sua valentia, na terra que foi berço de Garibaldi
(mas que também gerou Nero em tempos idos), tem por principal estímulo a
vaidade.
Nero, o Imperador da antiga Roma foi vaidoso também. A sua vaidade e a sua epoca
já iam se tornando terra morta. Regressou agora, com Mussolini.
A bondade, a pratica do bem, a compreensão dos deveres altruístas não envaidecem,
dão muitos benefícios. A maldade é compensada com todos os gosos. O maldoso é
enaltecido, encensado, levado à glorificação.
Mussolini é [...] [digno] de incentivo de gloria. Fez-se malvado por vaidade. Quer
que a história fale delle, como fala Nero.
O seu fim ou por outra, o fim de seu trabalho, da grandiosa e martyr Italia, esta por
pouco. A sua “gloria” vae evanescendo... O que não sofre alteração é a sua vaidade.
E Mussolini, vaidoso, o sucessor de Nero, quer a todo custo que o mundo se dobre
ante seu valor.
Pois bem, dobrem-se os seus semelhantes, os seus étnulos, os seus irmãos
capiritunes, que o povo rir-se-a do gesto. Levantem-se-lhe estatuas, que as estatuas
não fazem mêdo!
Nero acabou justiçado por suas proprias mãos, quando o povo romano,
compreendendo-se do seu valor, uniu-se num e formidavel bloco e rolou pelas
ruas como poderosa avalanche libertadora. (O monumento a Mussolini. IZA
RUTT. A Plebe, São Paulo, 17 de maio de 1924, anno VI, número 236, grifos
nossos).
4.2 Atuações grevistas das mulheres libertárias: a greve geral anarquista e as greves por
melhores condições de trabalho e vida
Quizera que ao despertar no Oriente o grande dia luminoso do de maio todas as
phalanges operarias, de polo a polo, fraternizadas pelos laços da camaradagem, da
união e da solidariedade, celebrassem, em unisono consorcio, as nossas paschoas,
com a Festa do Trabalho. (Apelo às Mulheres: 1° de maio. THEREZA ESCOBAR.
A Plebe, São Paulo, 10 de maio de 1919, anno II, número 12).
No período da Primeira República e, principalmente nas primeiras décadas do século
XX, quando a industrialização em São Paulo era cada vez maior, as movimentações grevistas
acompanhavam esse “boom” industrial. Foram inúmeras as movimentações para alcançar
melhorias salariais, menores jornadas de trabalho
85
, fim do trabalho noturno para mulheres e
crianças e tantas outras reivindicações ocorridas nas mais variadas fábricas e entre as mais
diversas categorias e ofícios de trabalhadores urbanos. Os sindicatos anarquistas, que se
multiplicaram a partir da década de 10 do mesmo século, cada vez mais estimulavam a Greve
Geral anarquista como método de luta para alcançar a revolução social (como vimos no
capítulo 2 desse trabalho), esta levaria ao enfraquecimento da burguesia enquanto classe e à
sua expropriação pelos trabalhadores, que seriam os responsáveis pela autogestão e pela
comunização dos modos de produção e dos produtos e bens, como terras, instrumentos de
trabalho, enfim. Tanto em uma forma de luta (por melhorias momentâneas), quanto na outra
(construção da sociedade anárquica), as mulheres libertárias tiveram grande importância; suas
atuações foram em grande número e extremamente ativas, inclusive, grande parte dos
movimentos grevistas que se estenderam à várias categorias de trabalhadores começaram por
mulheres. Elas acreditavam que somente a na sociedade anárquica a humanidade poderia ser
totalmente livre e igual, por isso lutaram pela sua construção, mas essa crença não limitou as
suas lutas: elas buscaram conquistar melhorias e formas de vida e trabalho mais iguais e livres
ainda na sociedade em que viviam, pregando, além de melhorias salariais e menores jornadas
de trabalho, o controle de natalidade, afirmando que o fato de a mulher trabalhadora ter
85
O movimento encabeçado pelos anarquistas de 8 horas de trabalho, 8 de lazer e 8 de descanso ganhava cada
vez mais força nesse período.
poucos filhos e uma família menos numerosa significavam sua libertação e possibilidade de
emancipação intelectual, que teriam mais tempo para o lazer e para o estudo, não para o
trabalho na fábrica e no lar (o sobretrabalho, do qual falamos anteriormente), lutaram também
contra a implantação de certos preceitos tayloristas na gestão das fábricas, como por exemplo
os salários e bônus pagos aos operários que produzissem mais ou trabalhassem com mais
máquinas.
Na manhã do dia 16 de fevereiro de 1901 entravam em greve cerca de 600 operárias
da fábrica de tecidos Sant’Anna situada no Brás, e de propriedade de Antônio
Álvares Penteado.
As operárias protestavam contra uma alteração que a fábrica introduzira nas tabelas
de remuneração por tarefa e que implicava em efetivo rebaixamento do salário
mediano. Por outro lado, os que conseguissem produzir acima de um determinado
número de peças se beneficiariam com uma remuneração maior por unidade mas
estes constituíam uma pequena minoria. Em suma, o novo plano de barateamento da
produção esbarrava na exaustão física dos operários, à qual a tabela vigente os
submetia. (BEIGUELMAN, 1977, p. 21).
Nessa ocasião (como já citamos rapidamente no capítulo 2 desse trabalho) as operárias
se reuniam todas as manhãs para que não fossem contratados substitutos. A polícia era
acionada para acabar com essas reuniões e chegou a prender a tecelã Giuseppina Cutolo, que
participava de uma dessas movimentações. Essa greve foi encerrada com o compromisso
firmado por Álvares Penteado de: restabelecer a velha tarifa; diminuir as multas e não
proceder à aplicação irregular desse tipo de penalidade; providenciar para que cessassem as
sevícias de que eram vítimas as operárias. Aliás, nesse último aspecto, foram inúmeras as
greves de mulheres contra os abusos sexuais de mestres, contramestres e patrões. Ainda
durante o ano de 1901 e em 1902 inúmeras greves ocorreram no setor têxtil, onde a maior
parte dos trabalhadores era composta de mulheres e crianças. Em 1902, por exemplo, as
operárias da fábrica de tecidos Anhaia, localizada no Bom Retiro entraram em greve em
protesto contra os maus tratos do mestre de teares, que havia expulsado a operária Emma
Sartorelli, de dezessete anos e três de trabalho na fábrica. As trabalhadoras fizeram piquetes e
chegaram a fechar a fábrica exigindo a demissão do contra-mestre. O jornal “O Amigo do
Povo”, dirigido por Neno Vasco em São Paulo noticiava essa greve como sendo uma das mais
importantes para o movimento operário da época (ver capítulo 2).
Todas as greves da Primeira República em São Paulo foram fortemente reprimidas
pela polícia e pelo governo da época. Operárias eram presas, associações eram fechadas e
militantes perseguidos. Um claro exemplo disso foi a greve da Companhia Paulista (ferrovia),
em 1906. Essa greve foi feita por operários do sexo masculino, que a maioria dos
trabalhadores de ferrovias era composta por homens, no entanto, as mulheres libertárias
atuaram seguindo os ideais anárquicos de solidariedade entre todos os indivíduos e reuniam-
se para formar uniões e associações para lutar pelos seus direitos e contra a violência policial.
O jornal “A Terra Livre” noticiava em junho de 1906:
Depois dos acontecimentos a que deu origem a greve na Paulista e nos quaes a
violência policiesca foi posta em scena sem provocação da parte dos operarios, a
policia parece querer entrar num periodo de franca e brutal repressão. Dois factos
novos o vem demonstrar.
Nesta cidade, apos uma reunião pacifica de pacificos trabalhadores, na maior parte
de sexo feminino, reunião em que se tratara dos interesses duma pobre classe e se
discutira a necessidade duma associação, um dos oradores, o tipografo Castaldi, foi
preso e retido durante algumas horas. (Caminho Perigoso!. A Terra Livre, São
Paulo, 13 de julho de 1906, anno I, número 12, grifos nossos).
No ano de 1907 ganhava notoriedade na imprensa anarquista a greve das costureiras,
que faziam inúmeros piquetes e foram perseguidas e reprimidas pela polícia, e a greve das
lavadeiras, essa categoria havia conseguido se unir e colocaram-se em greve no mês de maio
do mesmo ano. Com a greve conseguiram a diminuição da jornada de trabalho que era de
nove a onze horas de trabalho diárias. Tal luta pela diminuição da jornada era uma luta da
classe trabalhadora como um todo, mas muitas categorias ainda não haviam conseguido tal
diminuição nessa época.
As operárias da importante “Lavanderia Paulista” obtiveram com a greve a redução
da jornada de trabalho que era em média de 11 a 9 horas. (A Terra Livre, São Paulo,
19 de maio de 1907, anno II, número 33).
Por falar em greve das costureiras, os jornais como “A Terra Livre” afirmavam que a
sua organização era cada vez mais forte, o que causava receio nos patrões. No artigo seguinte
fica claro esse receio, além da crença dos libertários paulistanos, no caso das costureiras de
sacos, de que a greve causaria muitos prejuízos à burguesia nascente e não ao proletariado,
como afirmavam alguns anarquistas clássicos.
Essas operarias reclamaram nestes últimos dias um pequeno aumento no seu salario.
Os patrões, temendo uma greve que viria prejudica-los bastante nesta ocasião
cederam immediatamente ao pedido das operarias. (Movimento Operário. A Terra
Livre, São Paulo, 19 de agosto de 1906, anno I, número 16, grifos nossos).
Durante a década de 10 do século XX as movimentações grevistas não pararam de
aumentar. No período da Primeira Guerra Mundial (1914 1918), por exemplo, os operários
anarquistas colocavam-se em greve, afirmando que a guerra só aumentava o poder dos
governos colocando trabalhadores contra trabalhadores (irmãos contra irmãos) e questionando
o aumento da carestia da vida nesse momento; exigiam melhores condições de vida e trabalho
na cidade. É justamente nesse período que ocorre a maior e mais marcante greve da história
do movimento operário em São Paulo (e talvez do Brasil) a Greve Geral Anarquista de
1917, como citamos no capítulo 2. Essa greve foi uma greve essencialmente anarquista,
evidentemente se reclamavam melhores condições de trabalho, menores jornadas e
diminuição de preços nos gêneros de primeira necessidade, mas a idéia que guiava essa
movimentação era a de que uma greve geral poderia levar a tomada dos meios de produção e
bens produzidos pelos operários e levar, conseqüentemente, a expropriação total da burguesia
e à revolução social. Tal movimento começava com a paralisação, em sua maioria, de
mulheres e crianças. As primeiras agitavam-se contra a violência policial, faziam barricadas e
piquetes. Podemos destacar, entre essas mulheres Emma Mennocchi, imigrante italiana,
residente em São Paulo, esposa de Gigi Damiani. Emma havia fundado em 1910,
aproximadamente, a Associazione Femminile, associação de mulheres anarquistas italianas
em São Paulo.
Na noite de 2 de junho de 1917, a União dos Operários em Fábricas de Tecidos
convocou os trabalhadores do setor para uma assembléia na sede da entidade, na rua
da Mooca, 292. Nos dias subseqüentes, as reivindicações de aumento preencheram a
pauta de várias reuniões. Assim começou a greve geral paulistana de 1917,
envolvendo homens, obviamente, porém em muito maior quantidade, mulheres e
crianças. A polícia os meteu na cadeia, indistintamente, após uma passeata
organizada por anarquistas e socialistas defronte à Crespi.
[...] Emma Mennocchi, integrante do Centro Feminino de Jovens Idealistas, tem
participação ativa: grita contra os tiras que espancam as mulheres e as detêm. Os
militantes anarquistas se organizam para levar comida às que erguem barricadas e
resistem no interior da fábrica de tecidos. (BIONDI, 2006, p. 172, grifos nossos).
Baseadas em idéias como as de Voltairine de Cleyre de que a transformação social
poderia ser alcançada através da ação direta e de que essa acabaria por ser violenta, dadas as
circunstâncias de a burguesia não aceitar sua expropriação pacificamente, as libertárias
atuantes em São Paulo durante essa greve atuaram de maneira violenta em muitas ocasiões,
tomando e virando bondes que levavam fura-greves ao trabalho nas fábricas e tomando as
ruas em manifestações a favor da greve. Isso fica claro em um artigo de “O Estado de São
Paulo”, órgão da imprensa oficial, citado por Paula Beiguelman (1977).
(...) Um bando de mocinhas, infelizes operárias de fábrica, tomou conta de três
bondes. Às 11 e meia, a Light mandou suspender o tráfego de bondes, e duas horas
depois não havia nenhum veículo de espécie alguma em movimento. (O Estado de
São Paulo, São Paulo, 13 de julho de 1917, apud: BEIGUELMAN, 1977, p. 86).
Faziam comícios e passeatas durante a Greve Geral. Em artigo de 21 de julho de 1917
“A Plebe” publicava o artigo “Comícios e Passeatas: A burguesia se espanta”. Ambos eram
uma forma de conquistar as melhorias imediatas que exigiam os operários na pauta proposta
pelo CDP, como a diminuição da jornada de trabalho e aumento salarial (ver capítulo 2),
porém também eram uma forma de fazer propaganda anarquista, que muitas libertárias
acreditavam que se podia chegar à revolução social dessa forma e de prestar solidariedade à
algum companheiro preso. Propagavam essas idéias em discursos e através do exemplo (dos
operários e operárias auto-organizados, em greve e solidários a outros companheiros
grevistas).
Afim de reclamar a liberdade de seu companheiro preso, os trabalhadores homens,
mulheres e crianças vieram em coluna até a frente da Polícia Central, reunindo
depois em comício no Largo da Sé, onde falaram dois camaradas e uma
companheira. (Comícios e Passeatas. A Plebe, São Paulo, 21 de julho de 1917,
anno I, número 6).
Durante esse mesmo ano “A Plebe” noticiava a contribuição financeira de algumas
libertárias às vítimas da greve geral (operários ou seus familiares que sofreram com
perseguições, desemprego, etc) entregues ao Comitê de Defesa Proletária (CDP), como de
Izabel Cerrutti (que juntamente com Antonio Cerrutti doou cinco mil réis) e Nina Allieri (que
doou sozinha a mesma quantia). Além disso, inúmeras greves das operárias de diversos
setores da indústria, como a greve das operárias da Fábrica de Tecidos e Bordados da Lapa
ocorrida no mês de setembro.
Essa atuação das mulheres libertárias nas greves foram amplamente noticiadas pela
imprensa operária da época até 1930, quando a repressão ao movimento aumentou e muitos
dos jornais foram fechados. No ano de 1919, por exemplo, ocorreu outra Greve Geral
anarquista, que não chegou a ser tão ampla quanto a de 1917, mas que também teve a imensa
participação de mulheres e crianças. Em todo o período pesquisado elas lutaram de maneira
individual ou através de suas uniões e associações, que organizaram segundo os preceitos do
anarquismo clássico de espontaneidade, autogestão e sem hierarquizações, aliás, nesse
sentido, foram inúmeras as associações formadas no período. As libertárias paulistanas
concordavam com Malatesta ao se organizarem por categoria ou ofício, que, para elas, a
classe operária era tão diversa e as mulheres faziam reivindicações próprias e até diferentes
dos homens, como salários iguais aos deles e liberdade de escolha para se unirem e formarem
famílias. Essas organizações eram pontos centrais na luta das anarquistas em São Paulo, que
afirmavam que elas, além de organização para a luta atual, seja por melhorias imediatas, seja
pela revolução social, tinham papel fundamental na construção da sociedade futura, onde, os
indivíduos habituados a viverem em harmonia e cooperação nessas associações, se auto-
organizariam através delas. Sem dúvida alguma o sindicato anarquista era visto dessa forma
por elas e muitas se organizavam através dele. Assim como a greve geral era, segundo elas,
um método para se chegar à revolução social, a organização livre (em sindicatos ou
associações) era uma tática que levaria a tal e, por conseguinte, à construção da sociedade
futura.
4.3 Organizações das mulheres anarquistas em São Paulo
Meditai, refleti bem, companheiras, pensai que, se vós mesmas não tratais de
melhorar a vossa parte ninguém se importará de vós (A Terra Livre, São Paulo, 15
de agosto de 1906, apud: BARROS, 1979, p. 49 e 50).
Em 1906 “A Terra Livre” publicava um artigo de três costureiras libertárias, Tecla
Fabbri, Teresa Cari e Maria Lopes, que chamavam as operárias desse ofício a se organizarem
e lutarem
86
. O artigo escrito por elas não trazia nenhuma informação sobre suas vidas, porém
deixava muito claro os ideais anarquistas seguidos pelas paulistanas. Tratava-se de uma crítica
à exploração sofrida pelas mulheres operárias e de um apelo para que elas se organizassem
por ofício das costureiras para lutarem pelos seus direitos (com reivindicações específicas
da mulher trabalhadora, no caso, costureira) na sociedade capitalista, lutando contra o trabalho
noturno e as enormes jornadas de trabalho e pela construção de uma sociedade livre. Segundo
elas, as mulheres trabalhadoras deveriam ter tempo livre para se dedicarem à maternidade,
quando a desejassem, e para a instrução e o lazer através da leitura, que eram importantes
ferramentas para a libertação, segundo os libertários, e o trabalho noturno e jornadas que
chegavam a dezesseis horas diárias constituíam um empecilho para tais. Pregavam
solidariedade entre as operárias e operários e entre a família das operárias costureiras para,
com elas, protestarem contra a exploração dos patrões.
Ás Jovens Costureiras de São Paulo:
Companheiras!
Em vista da apatia que vos domina e que ninguem ainda de sacudir, nesta cidade
em que somos tão exploradas, resolvemos nos fazer uma nova tentativa em defesa
de todas, esperando não deixareis sós a declamar os direitos que nos cabem
indiscutivelmente. É justo recordar que já por vezes alguns amigos, nas colunas do
“Avanti!” de “La Battaglia” e da “Terra Livre” surgiram em nossa defesa, e as suas
palavras não foram ouvidas. Mas esperamos que não nos deixareis, a nós também,
pregar no deserto.
Devemos demonstrar enfim que somos capazes de exigir o que nos pertence e se
todas forem solidarias, se nos acompanharem nesta luta, se nos derem ouvidos, nós
começaremos por desmascarar a cupidez dos patrões sanguessugas.
No ultimo movimento de greve geral nesta cidade, ficou provado claramente que a
nossa classe é a mais ignorante e atrasada. Nesse movimento de solidariedade
operaria tomaram parte todas as corporações de oficio, desde o mecanico ao
marceneiro, desde o ferreiro ao carpinteiro, chapeleiros, pedreiros, seleiros, quasi
todos os trabalhadores graficos, os operarios e operarias das fabricas de fósforos, de
tecidos, de camisas, etc, os marmoristas, os ourives e muitos outros. Em Jundiahy, o
comercio fez causa comum com os grevistas, fechando as portas. Aqui, em São
Paulo, os proprios estudantes manifestaram as suas simpatias pelos operarios, tendo
de ser fechada a Faculdade. E nós, as costureiras, que fizemos?
Nós passamos indiferentes pelo meio dos grevistas que enchiam as ruas da cidade e
fomos trabalhar, mostrando que não tínhamos sentimentos, que não tínhamos sangue
nas veias. E no entanto naquella multidão estavam nossos pais, nossos irmãos,
nossos noivos, por entre os quaes s passamos sem pensar que elles reclamavam
86
Esse artigo parece ter tido bastante impacto nos meios operários da época já que em números subseqüentes de
“A Terra Livre” apareceram novos artigos dessas operárias e operários do sexo masculino comentavam-no
elogiosamente.
um direito para nós também. E, assim demonstramos ainda que não tínhamos afectos
de família nem amor!
Reflecti, companheiras, que devemos nós também ser sempre solidarias com os que
lutam pela libertação do trabalho, se queremos igualmente ser ajudadas, nas nossas
mais do que justas reclamações.
Companheiras! É necessario que recusemos trabalhar também a noite, porque isso é
vergonhoso e deshumano. Em muitas partes, os homens conseguiram a jornada de 8
horas, já desde 1856; e nós que somos do sexo fraco temos que trabalhar até 16
horas! o dobro das horas de trabalho delles, que são do sexo forte. Pensai,
companheiras, no vosso futuro de mais, e que, continuaremos a consentir que nos
depauperem, nos tirem o sangue deste modo, depois, tendo perdido a nossa energia
física, a maternidade será para nós um martirio e nossos filhos serão palidos e
doentes.
E vós, os que sois nossos pais, certamente, nos ajudareis, porque não temos força
para trabalhar, muitas vezes até às 11 horas da noite! o deveis falar quando
estamos em casa, mas na cara dos nossos deshumanos patrões, cujos negócios
crescem dia-a-dia. Ide a noite protestar, á bengalada, se for preciso contra esses
vilissimos ladrões! Vinde, quando tardemos, arrancar-nos com energia das garras
dos avidos exploradores! Tereis muito que perder? Que nos dão elles, os abutres, em
paga de tanta fadiga? Um salário ridículo. Uma miséria!
E nós também queremos as nossas horas de descanso para dedicarmos alguns
momentos a leitura, ao estudo, porque quanto a instrução, temos pouca; e se esta
situação continua, seremos sempre, pela nossa inconsciência, simples máquinas
humanas manobradas a vontade pelos cúpidos assassinos e ladrões.
Como se pode ler um livro, quando se vai para o trabalho ás 7 horas da manhã e se
volta para casa ás 11 da noite? Das 24 horas, só ficam 8 de repouso, que nem bastam
para recuperar no sono as forças exhaustas! Nós não temos horizontes ou antes,
temos um horizonte sem luz: nascemos para que nos explorem e para morrer nas
trevas como brutos.
Mas esperamos que não nos abandonareis, companheiras, e que nos ajudareis a
desnudar e fustigar a infame atrocidade dos patrões, que deve ter um fim. Sim!
Contamos com o vosso apoio de irmãs e de companheiras e assim a victoria será
nossa. Mãos a obra!
Nota: Aceitaremos com prazer e desde agradecemos todas as informações, os
conselhos, que qualquer companheira nos queira mandar. A correspondencia pode
ser dirigida a esse jornal. (Ás Jovens costureiras de São Paulo. TECLA FABBRI,
TERESA CARI, MARIA LOPES. A Terra Livre, São Paulo, 28 de julho de 1906,
anno I, número 13, grifos nossos).
As mesmas libertárias, em outro artigo, escrito em 15 de agosto de 1906 para o mesmo
jornal, falavam sobre o impacto de seu primeiro manifesto entre as costureiras, mas dessa vez,
convidavam-nas para uma reunião a fim de formar uma associação de ofício. Fica claro que o
comparecimento a mesma deveria ser espontâneo e livre, e sua organização pautava-se no
princípio de que não haveria qualquer tipo de hierarquia ou direção, assim como defendiam os
anarquistas clássicos e os anarquistas paulistanos que vimos em capítulos anteriores; a
associação, portanto, seria auto-organizada pelas operárias livremente associadas, sem
hierarquias e direções. No artigo podemos observar também o crescimento industrial de São
Paulo durante os primeiros anos do século XX e, principalmente, do setor de vestuário,
cresceram, nessa época, o número de oficinas na cidade juntamente com a divisão de classes,
cada vez mais evidente.
Ás Jovens costureiras de São Paulo:
II
Avante, Companheiras!
Desta vez devemos dizê-lo francamente parece-nos que as nossas palavras algum
resultado deram, e que as companheiras nos comprehenderam.
De todos os lados nos chegam incitamentos para continuarmos na nossa justa
campanha de reivindicar direitos que são bem nossos. Nunca, como agora se viu em
São Paulo tanto entusiasmo da parte das nossas companheiras as boas e da parte
do publico consciente e da imprensa livre que nos deu todo o seu valioso apoio
moral.
Muitos patrões, mesmo entre os peores, tiveram que reconhecer a justiça das nossas
reclamações e ficaram um pouco abalados diante da nossa atitude firme. Já muitos
disseram que estão prontos a conceder-nos em parte o que pedimos, se os outros
patrões os seguirem.
Não devemos, porém, esperar que nos concedam o que nos pertence, quando lhes
agrade: devemos to-lo por nossas mãos, pois que temos o direito e o poder de o
fazer. Não nos deixemos sobretudo adular com falsas concessões e promessas por
parte dos nossos sanguessugas.
Agora que nos vêem bem encaminhadas; servem-se de todos os meios hipócritas
para que se perca o nosso esforço. Mas não hão de ter essa satisfação, porque nos
uniremos e venceremos a batalha: e se, entre nós houver alguma traidora, nós a
apontaremos ao desprezo público, ao desprezo das pessoas laboriosas e honestas,
conscientes dos seus direitos.
Infelizmente, força é dizê-lo, não faltam entre nós as servis que de tudo se
envergonham, menos de se deixarem esfolar santamente como ovelhinhas. E o que é
sobretudo vergonhoso é haver da nossa parte consideração pelos patrões, quando
tem trabalhos que acabar á pressa e consentirmos em trabalhar até á meia noite,
submissas e resignadas, em vez de ir embora, sem tantos servillamos de escravas!
Vêde como elles aumentaram os seus estabelecimentos na cidade, e como progridem
rapidamente, dia-a-dia! E nós, companheiras, que melhoramento temos em quanto
trabalhamos nas suas oficinas? Que melhoramento pecuniario? Que progresso
moral? Nenhum! Sempre as mesmas escravas, sempre as mesmas exploradas,
perdendo gradualmente a saude nesses erguátulos!
Meditai, reflecti bem, companheiras, pensai que, se vós mesmas não tratais de
melhorar a vossa sorte, ninguem se importará de vós!
Decidimos convidar-vos num proximo manifesto, a uma reunião na qual se
discutirão assuntos de summa importancia para os interesses da nossa causa
justissima e nisto fomos encorajadas por muitas companheiras que nos mandaram a
sua adesão.
Agradecemos vivamente a toda a imprensa livre que se interessou por nós:
“Avanti!”, “La Battaglia”, “Lutta Proletaria”, “Ideia Nova” e “Terra Livre”.
Coragem e sempre avante! (Ás Jovens costureiras de São Paulo II. TECLA
FABBRI, TERESA CARI, MARIA LOPES. A Terra Livre, São Paulo, 15 de agosto
de 1906, anno I, número 14, grifos nossos).
Possivelmente pela influência de manifestos como o dessas mulheres anarquistas, no
ano de 1907 as costureiras organizaram a Liga de Resistência das Costureiras (que era
proposta em reuniões desde novembro de 1906, como é possível notarmos no artigo a seguir),
que participava diretamente nas lutas libertárias do período. Nesse mesmo ano as costureiras
fizeram uma greve pela diminuição da jornada de trabalho para nove e nove horas e meia de
trabalho juntamente com aumentos salariais. Apesar dos piquetes e do intenso movimento a
greve foi intensamente reprimida pela polícia, que chegou a prender doze mulheres que
tentavam impedir que operárias fura-greves (crumiras, como colocava “A Terra Livre”)
entrassem no trabalho, e, por isso, acabou sem que conquistassem suas reivindicações.
Estas operarias tão vilmente exploradas em vários presídios da cidade, realizaram a
sua primeira reunião em casa duma companheira, não havendo grande concorrencia,
em resultado do equívoco de terem convocado duas reuniões! Falou um
companheiro, que exhortou as costureiras a perseverarem na iniciativa tomada,
procurando solidariamente melhorar a precária situação em que se encontram.
Resolveu-se publicar um manifesto assinado por dez das operarias presentes, para
convocar outra reunião, que se efetuará hoje, domingo, ás 3 da tarde, na sede da
Federação (Travessa da Sé, 2).
As costureiras serão, finalmente capazes de tenacidade e energia, abandonando a sua
habitual submissão resignada? Nós desejamos e esperamos que nenhuma dificuldade
as desanime e que saibam enfim obter um tratamento mais humano. (As
Costureiras. A Terra Livre, São Paulo, 19 de agosto de 1906, anno I, número 16).
O fato das mulheres anarquistas lutarem pela fundação de organizações próprias não
significava que estavam propondo uma fragmentação maior da classe operária, tão
heterogênea. Lutavam juntamente com os homens, porém acrescentando reivindicações
próprias (como vimos). Organizações como a das costureiras proposta por Tecla Fabbri,
Teresa Cari e Maria Lopes eram bem vistas entre os libertários também do sexo masculino,
que elogiavam atitudes como essa em inúmeros artigos dos jornais da imprensa libertária,
como no artigo publicado em 9 de outubro de 1906 em “A Terra Livre” e assinado por F. A.
da Costa.
Ás conscientes operarias
Tecla Fabbri, Teresa Cari, Maria Lopes
Sempre avante, companheiras!
O triunfo será vosso!
É me deveras simpatica a vossa iniciativa.
Os dois artigos por vós publicados nestas colunas e bem assim os de outros
companheiros tambem publicados neste e noutros jornaes, merecem os mais
rasgados elogios de toda a pessoa que se interessa pelo bem estar vosso, de vossas
companheiras e do proletariado em geral.
Bem mostrais que vos sabeis portar com denodo, defendendo uma causa tão vossa e
que só a vós e a vossas companheiras compete resolver.
Prossegui, portanto, e não cesseis de azorragar esses despostas ignobeis
sanguessugas que vos chupam até a ultima gota de sangue.
É a vossa classe uma das mais exploradas que existem em São Paulo, não é preciso
que eu o diga; a evidencia o prova. Que são essas vastas e luxuosas oficinas, senão o
vosso labor e o vosso suor? Não são luxuosas oficinas, tambem são algumas das
grandes lojas de fazendas, e proprietarias de magníficos predios.
Tudo isso, oficinas luxuosas, lojas de fazendas e bons predios, é trabalho vilmente
roubado a vossas companheiras.
A vida amarga que vós passais não é preciso que eu a exponha aqui, pois que é
conhecida de todos; entretanto, direi que é o mesmo que estar em uma prisão, pois
que além de trabalhardes até alta hora da noite, como muito bem dissestes em vosso
primeiro artigo, estais tambem muitas vezes privadas do descanso dominical e de
refeições a horas certas e regulares.
Não desistais de vossas pretensões e se para alguma coisa vos forem uteis as minhas
fracas forças, encontrarme-ei ao vosso lado. (Costureiras de São Paulo. F. A. DA
COSTA. A Terra Livre, São Paulo, 9 de outubro de 1906).
Ainda em 1906 as costureiras de sacos organizaram uma associação libertária como
noticiado também em “A Terra Livre”:
Os operarios que costuram sacos, quase todos do sexo feminino, depois do bello
exemplo dos de Santos e do Rio, resolveram também associar-se para a defesa dos
seus interesses e melhoramento das suas tristes condições.
Reuniram-se para tal fim num local particular da rua Oriente e falaram, ou ouviram
falar, sobre a necessidade da associação, um dos bem poucos meios de resistência
que restam aos explorados. (Costureiras de Sacos. A Terra Livre, São Paulo, 13 de
julho de 1906, anno I, número 12, grifos nossos)
“A Plebe” noticiava em agosto de 1917 a organização das mulheres, esposas de
operários ferroviários em greve, para reclamarem, junto com eles, “o direito ao pão para os
seus filhos” (A Plebe, o Paulo, 18 de agosto de 1917, anno I, número 10) e a fundação de
inúmeras ligas de resistência dentre as quais se destacavam a participação das mulheres, como
podemos notar no artigo a seguir. Essas ligas e uniões trocavam experiências e discutiam
assuntos da atualidade e acerca do anarquismo, o que mostra o que dissemos acima de que
não era a intenção de fragmentar mais a classe se organizar por ofício ou categoria, mas sim
reivindicar interesses específicos de cada um deles, juntamente com interesses de toda a
classe trabalhadora, além disso, ficam claros alguns dos propósitos das organizações
libertárias: proporcionar instrução e educação, ou seja, a preparação moral para a sociedade
ácrata e propagar as idéias anarquistas para se chegar à revolução social.
As ligas operarias trabalham; multiplicam-se as reuniões, nas quaes participa o
elemento feminino As iniciativas succedem-se umas ás outras:
É bello o enthusiasmo das classes operarias desta capital, onde as sedes de suas
organizações regorgitam de gente do trabalho que afflue com o louvável intuito de
trocar idéias sobre problemas sociaes e discutir assumptos de interesse e de
actualidade.
Não ha uma só Liga Operária a não experimentar a benefica influencia do momento.
Assim é que podemos registrar, com satisfação, algumas notas relativas aos
trabalhos e as iniciativas suggeridas e já postas em pratica pelas nossas associações
de resistência, cujo número cresce em proporção admiravel, causando-nos
verdadeiro jubilo.
Citemos, então, em primeiro lugar, o que tem feito a
Liga Operária da Mooca
Na sede desta agremiação se tem verificado grande movimento dos operários, tendo
sido realizadas varias reuniões de classe, todas com muito proveito e bastante
animação.
Também as operarias concorrem áquella sede, dando com isso a prova de que até
as mulheres se vão interessando pela causa da libertação dos escravos modernos.
Na quarta-feira á noite foi realizada uma palestra pelo companheiro João Penteado.
Sabemos que a commissão administrativa desta Liga pretende crear uma escola para
a educação e instrucção da infancia proletária.
Foi discutida e assentada a ideia de se estabelecer o trabalho de instrucção e
propaganda sobre assumptos sociaes, que constará de conferencias duas vezes por
semana, em sua sede, em dia e hora que serão previamente annunciados. (A Plebe,
São Paulo, 18 de agosto de 1917, anno I, número 10, grifos nossos).
As costureiras libertárias que lutavam por se organizarem em 1906 fundavam, em
abril de 1919, uma organização libertária: a União das Costureiras de São Paulo. Essa união
tinha como objetivo a defesa dos interesses dessa categoria e a luta auto-organizada contra a
exploração dos patrões e, além disso, estava pautada em um modelo de mulher oposto àquele
proposto pela burguesia da época: de que a mulher deveria ser dona-de-casa, rainha do lar e
ainda preocupada com a imagem e o status social (a mulher moderna, manequim moldado
pelos exploradores, segundo os libertários paulistanos), a mulher anarquista era a mulher
forte, que lutava com altivez contra a exploração e pela libertação da humanidade.
Eis uma notícia animadora e que atinge em cheio a consciencia de muitos operarios:
as costureiras desta capital acabam de se constituir em associação de classe,
reconhecendo assim que com a união, a solidariedade, a ajuda mutua é exeqüível
a reivindicação de direitos postergados.
No último domingo, essas escravisadas operarias realizaram uma concorrida reunião
na Rua da Quitanda, 4, e ahi deliberaram defender os seus interesses das garras
vampiricas dos patrões que enriquecem á custa do seu suor e do seu sacrifício,
orientando-se pelos methodos da acção propria, devidamente congregada, e
acabando desse modo com o regimen de usurpação agora usado contra a sua classe.
Quer dizer: as costureiras conscientes da sua dignidade e do seu valor, decidiram-se
a ser mulheres, na verdadeira concepção do termo e não manequins moldados pela
botique dos seus algozes de ambos os sexos. Ergueram a fronte com altivez e à
exploração disseram que já não eram escravas passivas e submissas. Bello gesto!
Magnífico exemplo!
Homens, operarios dissociados. Se acaso vos envergonhaste de que essas raparigas,
irmãs nossas no soffrimento e na miseria, adiantando-se a vos na marcha para a
emancipação, vinde também fundar, robustecer as vossas agrupações! (União das
Costureiras. A Plebe, São Paulo, 19 de abril de 1919, anno II, número 9, grifos
nossos).
O Centro Feminino de Jovens Idealistas foi outra organização de mulheres anarquistas
que teve intensa atividade desde a sua fundação, em 1917, até os fins da década de 20 do
século XX e do qual participou a libertária que citamos anteriormente Emma Mennocchi.
Essa organização atuou na Greve Geral de 1917 (ver capítulo 2) e em diversos movimentos
dos anos posteriores, organizou listas pró-presos e deportados, promoveu festivais de
propaganda e de solidariedade a operários ou suas famílias se estivessem doentes,
desempregados ou se fossem perseguidos por atuação em movimentações, contribuiu para a
fundação de escolas livres e ajudou a divulgar o teatro operário (como veremos mais tarde).
Em 8 de maio de 1920, por exemplo, publicou em “A Plebe” um pedido para que pessoas que
haviam pego as listas distribuídas por ele recolhessem recursos financeiros em favor de presos
e deportados e enviassem à redação desse jornal. Aliás, fizeram uma intensa campanha pró-
presos e deportados
87
em vários números desse jornal, como nos dois artigos publicados em
21 de agosto e 4 de setembro de 1920. Fica claro outro propósito das organizações anárquicas:
o exercício da solidariedade. Para as libertárias paulistanas, assim como para Kropotkin,
Malatesta, Emma Goldman e Voltairine de Cleyre, nas organizações e nas lutas cotidianas por
direito se aprende a viver e a exercer a solidariedade na prática, essa solidariedade será, para
elas, a base da nova sociedade, construída por indivíduos solidários entre si.
87
Em 1919 muitos operários que participaram da Greve Geral em São Paulo foram presos ou deportados depois
da forte repressão policial ao movimento.
Não póde ter-se apagado na mente dos trabalhadores de São Paulo a lembrança da
brutal reação policial, levada a cabo em outubro do ano passado. Não devem
tampouco, ter sido olvidado que dezenas de operarios foram arrancados brutalmente
do nosso convívio e enviados para além-mar.
Camaradas! São transcorridos já, desde então, dez longos mezes e ainda um número
bastante elevado daqueles companheiros se encontra sofrendo os rigores do carcere.
As cartas por eles enviadas nos ultimos tempos falam de maustratos e privação de
alimentos. Compreende-se que a burguezia e a policia de todos os paízes estejam em
absoluto acordo e unidos para perseguirem e torturarem os trabalhadores menos
submissos; defendem seus interesses egoístas. Mas o que não se póde compreender,
o que não ha nada que possa justificar é os trabalhadores ficarem de braços
cruzados, indiferentes, diante das torturas morais e físicas inflingidas a esses
companheiros.
Causas de absoluta necessidade, um dever inadiável que a nossa ação de
solidariedade por esses homens se faça sentir imediatamente.
O Centro Feminino de Jovens Idealistas tomou a seu cargo a iniciativa de levar a
efeito uma campanha de protesto por meio de uma serie de conferencias e angariar
ao mesmo tempo recursos econômicos que serão para atenuar as terríveis condições
em que aqueles operarios se encontram e também para conseguir judicialmente a sua
liberdade.
Que os trabalhadores de São Paulo, que todos que não se conformem com essa
injustiça tão revoltante, ajudem essa iniciativa, emprestando-lhe o seu concurso
moral e economico. (Apelo aos trabalhadores e aos homens de sentimentos.
CENTRO FEMININO DE JOVENS IDEALISTAS. A Plebe, São Paulo, 21 de
agosto de 1920, anno IV, número 78, grifos nossos).
Continuando a campanha em pról dos camaradas deportados que ainda permanecem
privados da liberdade em Portugal e na Hespanha, este Centro convida os
trabalhadores e o povo em geral para assistirem a grande reunião que se realizará na
próxima segunda-feira, 30 do corrente, ás 8 horas da noite.
Farão uso da palavra para expôr as condições em que se acham os companheiros
deportados diversos militantes do movimento operario de São Paulo.
Que ninguém falte. Tudo pela liberdade dos nossos companheiros. (Em prol dos
deportados. CENTRO FEMININO DE JOVENS IDEALISTAS. A Plebe, São
Paulo, 4 de setembro de 1920, anno IV, número 80).
Meses antes do Centro Feminino de Jovens Idealistas começar sua intensa campanha
de solidariedade em prol dos operários presos e deportados era fundado em São Paulo o
Centro Feminino, outra organização surgida através da livre iniciativa das libertárias dessa
cidade.
A 6 de fevereiro ás 10 horas, realizar-seuma reunião á Rua Joly, 220, para a qual
se pede a comparencia de todas as Companheiras com o fim de se organizar o
Centro Feminino de São Paulo. (Nucleos de Vanguarda. A Plebe. São Paulo, 31 de
janeiro de 1920, anno IV, número 50).
A década de 20 do século também foi marcada pela fundação da Federação
Internacional Feminina, que buscava, segundo colocava “A Plebe”, “organizar todas as
presenças femininas dispersas” (A Plebe, São Paulo, de maio de 1922, anno V, número
180) e todas as associações, uniões e ligas femininas para lutar por reivindicações
especificamente femininas. Não se tratava, no entanto, de uma organização somente
anarquista, mas muitas libertárias participaram dela até que as diferenças não falassem mais
alto, como propunha Malatesta ao afirmar que socialistas e anarquistas poderiam caminhar
juntos para lutar por interesses comuns à classe operária. Nesse sentido vale colocar que as
libertárias paulistanas, assim como seus companheiros do sexo masculino, se opuseram às
organizações feministas de caráter sufragista. Para elas, o voto não garantiria a libertação da
mulher e lutar pelo voto feminino significaria legitimar a exploração através do apoio aos
governos e a burguesia que o constitui, além do que, muitas associações desse tipo
respaldariam o nacionalismo e o militarismo contra o qual elas lutaram, por acreditarem que a
guerra era um massacre brutal entre irmãos da classe proletária em benefício dos governos.
Em um artigo publicado em “A Plebe” ainda em 1917, que não continha nenhuma assinatura,
havia uma crítica à “Liga Nacionalista das Mulheres Brasileiras” como podemos observar a
seguir:
[...] Uma dessas escolas a denominada 7 de setembro acha-se instalada à rua da
Cantareira, n. 39 e é regida por uma senhora, com certeza pertencente à Liga
Nacionalista das Mulheres Brasileiras...
Pois um dia destes, essa ilustre senhora do professorado paulista chamou todos os
pequenos confiados á sua guarda e educação e, após uma inflamada lenga-lenga a
respeito da patria e das batatas, entregou a cada um deles uma espingarda; - que,
nem por o ser somente no feitio, deixa de evidenciar a infâmia, a ignomínia e a
podridão das guerras. (A Plebe, São Paulo, 8 de setembro de 1917, anno I, número
13).
4.4 As mulheres libertárias e a propaganda, a arte e a educação como meios e táticas
revolucionárias
Nora: [...] a nossa casa nunca passou de um quarto de brinquedos. Fui sua boneca-
esposa, como fora boneca-filha na casa de meu pai. E os nossos filhos, por sua vez,
têm sido as minhas bonecas. Eu achava engraçado quando você me levantava e
brincava comigo, como eles acham engraçado que eu os levante e brinque com eles.
Eis o que foi nosso casamento. (IBSEN, 2007, p. 96 e 97).
Para a maioria das libertárias que atuaram no movimento anárquico de São Paulo a
violência não era o recurso privilegiado para que a revolução social pudesse ser alcançada.
Métodos violentos eram, portanto, conseqüência do processo revolucionário, como podemos
perceber nos textos de Voltairine de Cleyre que citamos anteriormente, mas não eram o meio
observado por essas libertárias como o mais de acordo com o fim que visavam alcançar a
revolução social e a construção de uma sociedade livre, que realizaria a completa libertação
da mulher, que seria possível através da libertação de toda a humanidade. Nesse sentido,
pensavam elas que a propaganda dos ideais anárquicos (individual ou coletivamente em
grupos, associações e uniões), assim como a arte (pautada na idéia da arte compromissada
com a transformação social e na estética anarquista) e a educação (libertária) eram meios e, ao
mesmo tempo táticas, essenciais para se chegar à revolução e a construção da sociedade
ácrata. Esses meios sim estariam em pleno acordo com os fins a serem alcançados.
Foram inúmeras as mulheres que expuseram seus ideais dessa forma aqui em São
Paulo inspiradas tanto nas idéias de anarquistas clássicos como nas das mulheres anarquistas
de fora do Brasil. Não podemos esquecer que o anarquismo sempre foi um movimento
internacional e, justamente por isso, as trocas entre os militantes de várias partes do mundo
eram constantes. Além desses meios e táticas, podemos dizer que as mulheres anarquistas
acreditavam que o exemplo, dado nas atitudes e na organização de suas vidas cotidianamente,
era outra forma de propagar o ideal e atingir um número cada vez maior de pessoas para
construção de uma outra organização social. Dessa forma, praticaram as uniões livres e se
organizaram para a luta cotidiana, como vimos acima (ainda nesse capítulo). Essas
concepções ficam evidentes quando observamos suas atuações como escritoras de artigos para
jornais libertários, nas escolas modernas e no teatro operário, que contou com a participação
de muitas mulheres, além obviamente, das suas organizações autogeridas.
4.4.1 A propaganda libertária através dos jornais: Izabel Cerruti, Leda Rafaxelli, Canda
Otero, Matilde Magrassi e Ilia criticavam a sociedade capitalista e propagavam os ideais
da sociedade futura
Vae num crescendo animador a atividade em todos [os] centros de propaganda e
acção proletária.
Na Liga do Cambucy teve lugar, segunda-feira, ema animadora assembléia, em que
o elemento feminino se mostrou também muito enthusiasta. (A Plebe, São Paulo, 8
de setembro de 1917, anno I, número 13).
Nos jornais anarquistas não havia nenhuma indicação sobre a vida dos libertários que
lhe enviavam artigos para serem publicados
88
, mas através desses artigos é possível entender
sobre os pensamentos e a militância de inúmeras libertárias. Em 22 de setembro de 1906, por
exemplo, “A Terra Livre” publicava um artigo de uma anarquista chamada Ilia, da qual nada
sabemos, mas cujas idéias podemos resgatar. Em tal artigo essa libertária denunciava a
sociedade capitalista, baseada na miséria e na opressão e colocava a luta libertária como o
meio de despertar a consciência contra as injustiças sociais, como haviam colocado
Bakunin, Kropotkin e Malatesta, ao afirmar que os anarquistas tinham também como missão,
através de suas lutas e do exemplo, levar outros indivíduos ao “despertar de consciência”.
Propagava que a luta dos libertários deveria ser contra os capitalistas, padres e governantes,
para que no fim dessa, conseguissem alcançar seu principal objetivo: a construção de uma
sociedade de indivíduos livres e irmãos, guiados pela igualdade e pelo livre acordo, em que
88
Salvo raras exceções: anuncio da morte de algum militante, com informações sobre sua vida e as atuação no
movimento operário, como no caso de Neno Vasco; alguma notícia sobre o lançamento de algum folheto ou
livros de militantes que podiam conter informações sucintas da vida do mesmo, como o artigo de “A Plebe” de
27 de janeiro de 1923, que anunciava a futura edição de uma revista chamada “Renascença”, cujo editora era a
Professora Maria Lacerda de Moura.
não haja os privilégios, baseados na miséria de uma maioria, presentes na sociedade
capitalista. E defendia ainda que a sociedade futura deveria ser anarco-comunista, tal qual
defendiam Kropotkin e Malatesta: a cada um aquilo que lhe for necessário e as terras e bens
de produção seriam de uso comum dos trabalhadores - consumidores.
No reinado da opressão e do despotismo, através da miseria e do vício, a ideia
libertaria abre caminho, apesar dos obstaculos e das fronteiras e tende para o triunfo
necessário da igualdade entre os homens, que, livres e irmãos, se guiarão pela
equidade e pelo livre acordo.
O povo, finalmente, começa a despertar do sono de inconsciencia em que esteve
mergulhado tanto tempo, a sacudir o fardo das injustiças sociaes sob o qual esteve
curvado tão pacientemente; os homens lançam-se á conquista do pão com um
entusiasmo decidido, distinguindo e mostrando aos outros o verdadeiro caminho que
conduz ao bem-estar. Depois de largos seculos de submissão e obscurantismo, nos
cerebros entenebrecidos bruxoleia a luz guiadora que aponta o caminho seguro duma
emancipação real.
As nossas doutrinas são de paz e armonia e anunciam o advento da sociedade livre e
igualitária do trabalho, coroada pelo amor e pela justiça, supremo anceio dos
homens livres das preocupações que a sociedade actual inculcou no espírito das
multidões, semeando o odio e a guerra, e fazendo delles o esteio da exploração e do
engano.
Muitos são, todavia, os que nos combatem sem nos conhecerem, repudiando as
nossas ideias que elles não estudam, forjando assim as suas próprias grilhetas e
estorvando cegamente a nossa marcha, mas este obstaculo tende constantemente a
desaparecer, e nós teremos energia para continuar na brecha, para seguir o caminho
da verdadeira civilização, que significa abolição dos privilégios duma minoria
contra a massa dos desherdados, que com a sua miseria tem que sustentar o luxo e o
ocio dos zangans da colmeia social, conhecidos com o nome de capitalistas, padres,
governantes e outros parasitas, que vivem do suor e do sangue dos unicos
produtores, da classe trabalhadora. É esta a classe que é necessario libertar dum jugo
esmagador, estabelecendo, em logar das duas classes inimigas, uma só: a dos
produtores consumidores, a dos trabalhadores, donos em comum da terra e dos
meios de produção. (A Caminho. ILIA. A Terra Livre, São Paulo, 22 de setembro
de 1906, anno I, número 17, grifos nossos).
Para propagar os ideais anárquicos, principalmente, no caso de São Paulo do anarco-
comunismo, como fazia Ilia, muitas libertárias criavam pequenas histórias como é possível
notar no texto de Leda Rafaxelli. Para os anarquistas no geral, o roubo tem motivações
econômicas o indivíduo é levado a ele pelas péssimas condições de vida a que é submetido
na sociedade capitalista portanto, é um vício da sociedade de classes. Essa libertária deixava
clara essa concepção em um de seus textos, publicado em “A Terra Livre”. Nessa pequena
“fábula” ela contava a história de um velho camponês que era levado a cometer pequenos
furtos pela sua condição de miséria e de incapacidade física para o trabalho para comprovar a
idéia anarquista e afirmar que a maneira de acabar com esse vício social deveria ser a
organização de uma sociedade baseada na igualdade e liberdade e não em privilégios de uma
minoria em detrimento da imensa maioria.
O tio Maso atravessou, com ar medroso a praça da aldeia natal, evitou a luz dos
raros lampeoes deu uma longa volta para não passar diante da venda ainda aberta
naquella tenebrosa noite invernal, e, tomando a estrada principal calmamente a
passos lentos nos campos.
Era um coitado. Velho, inapto para o duro trabalho do campo. Virava-se,
sobrevivendo por acaso a sua numerosa família. Talvez os seus dois filhos menores,
emigrados um para a América e outro para a África, tivessem morrido mas não
sabia delles ha muito tempo - o que vinha a ser mesmo. O velho pai esquecido
nada podia esperar delles e, ao seu cerebro fossilizado não tinha a lembrança de
ter mais dois filhos [novos] e validos.
Era o lento desfazer da família sob as jaulas da miseria e da escravidão do trabalho.
Agora, o velho Maso, o antigo campones famoso pela sua resistência sob sol de
findo no tempo das ceifas vivia de esmolas e pequenos furtos.
A princípio fora feliz. Quem o conhecera homem, ancião, mas sobrio e
trabalhador tinha pena delle. Depois achara que ia furtando numa tapada vizinha,
propriedade dum conde rico, para quem elle e seus filhos tinham trabalhado. Era um
bosque espesso e vazio que abrigava muita caça. E o velho campones fizera-se
caçador furtivo, conseguindo esconder lebres e outros animaes apanhados a laço em
largos sacos, que ia passando para o outro lado da sebe e levava depois a cidade para
vender. Mas da última vez não tivera sorte e fora surpreendido pelo guarda
campestre e denunciado.
Passara três meses na cadeia imbecilizado, com o único pensamento de nunca mais
se arriscar a caçar furtivamente naquella tapada. E em sua mente cansada passava
uma rápida ideia de desalento; como me arranjarei para viver?
Saíra do cárcere no dia anterior e sentia uma certa vergonha disso. Agora na aldeia
mostravam-no uns aos outros com sorrisinho de escarneo.
- Velho imoral! Queria viver sem trabalhar.
Ninguem pensava porém, que os seus velhos braços já não podiam agüentar a
enxada...
Pedira esmola e recolhera apenas dois pedacitos de pão. Tivera então saudades da
sopa quente da prisão.
Passou a tarde na Igreja, sentado num banco como uma coisa esquecida. Ao
anoitecer, assaltado pela fome furiosa dos velhos, saltou, e ainda com algum vigor,
saiu da Igreja como um animal bravo sai do covil. Mas aonde ir?
Um dia penetrante passava pelo campo humilde e o velho fraco interriçado, voltou
para a estreita igreja decidido a dormir ali. Mas não pensava no sacristão e pos-se
bem a vista deixando-se cair sobre o primeiro banco. Foi visto e espulso com mil
injurias.
- Olá velho ladrão! Aqui dentro é que tu não has de roubar nada, fica certo!
E de novo se viu fora, mais fraco, mais esfomeado que nunca. Agora o frio punha-
lhe um arrepio em todo o corpo e vencia-o um desejo agudo de se estender e dormir.
Mas tudo estava humido e gelado, as estradas estavam lamacentas, e, quando
procurou acercar-se dum palheiro um grande cão rosnou ameaçador.
Então num reviver do pensamento refinado e sensibilizado pelo soffrimento disse
consigo:
- Voltarei para a cadeia!
Deixou a estrada principal e atravessou os campos. Contava estar na tapada ao
romper d’alva. Agachar-se-ia por trás das moitas e o guarda o veria e denunciaria. Já
decidido, não desejando mais que o carcere, o velho retomou o caminho
cambaleando sem se importar da fome nem do frio que lhe entorpecia os membros.
Os campos, nessa noite negra, estavam submersos na treva... Elle so pensava nellas,
nas terras do conde rico sobre as quaes trabalhara desde rapaz, com os filhos ao lado,
em quando o sol resplandecia, caindo-lhes sobre as nucas vergadas, como uma
mordedura de fogo.
Agora tudo era gélido e negro, e elle velho, só esfomeado.
De repente, sacudido, por uma vertigem de debilidade com um rouquejar de fome,
tropeçou e caiu.
Caiu com a face para a terra, essa terra que elle fecundara com a sua energia, com o
seu trabalho.
Quando de manhã foi encontrado morto, hirto, muitos se admiravam:
- Que diabo quereria roubar nestes campos gelados e nus o velho ladrão? (O
Ladrão. LEDA RAFAXELLI. A Terra Livre, São Paulo, 28 de março de 1907,
anno II, número 29).
Os anarquistas paulistanos tinham grande preocupação com o lazer instrutivo dos
operários. Muitas mulheres defenderam essa concepção libertária nos jornais anárquicos.
Canda Otero, por exemplo, escreveu um artigo para o jornal “O Internacional” em maio de
1924 criticando o carnaval como um passatempo burguês que atrapalhava os operários e
que não possuía nada de instrutivo.
O primeiro carnaval começou com uma verdadeira loucura. Os burgueses cansados
de permanecerem debruçados sobre o panno verde das casas de tolerância ou nos
braços das meretrizes e nos cabarés para “quebrara monotonia da vida, procuram
então em luxuosas carruagens percorrer os bairros proletarios numa algazarra
insuportavel, perturbando o socego daquelles que o dia inteiro esguiam suas energias
na produção em benefício do capitalista usurpador.
Assim, desses três dias de loucuras e corrupções vem a quarta-feira de cinzas, dia
em que os fanaticos do catholicismo logo de manhã cedo correm à Igreja para a
hipocrita do vigário, com um cinismo revoltante [...] [este] os absolvem de todas as
immoralidades commetidas nos dias anteriores.
Entra-se na quaresma, temporada em que os catholicos não podem comer carne,
salvo aquelles que possuem dinheiro para comprar. [...]
Chega a semana santa [...] E vem também o sabbado de “Aleluia” com os seus
tangos e maxixes ao som de bem afinados fieis. [...]
Por ultimo chega o segundo carnaval que se intitula Paschoa.[...]
Tanto um quanto outro é a mesma aglomeração de idiotas. (Os dois carnavaes.
CANDA OTERO. O Internacional, São Paulo, 1° de maio de 1924, anno IV, número
73).
No mesmo tom de crítica ao catolicismo que podemos perceber no trecho citado
acima, essa libertária, assim como fez Emma Goldman, fazia uma severa crítica ao poder que
a Igreja Católica exercia na sociedade. Canda Otero criticava a Igreja Católica espanhola,
afirmando que ela estava aliada ao governo ditatorial e ajudava a perseguir proletários - que
não cometiam crimes, mas sim exigiam seus direitos e não buscavam a Igreja - e os livre
pensadores. Nesse artigo fica claro também como o movimento anarquista era internacional,
já que essa libertária denunciava um fato ocorrido na Espanha.
No paiz dos vinte mil conventos, onde a ditadura militar está aliada, ou para melhor
dizer serve de joguete à clericalha! Paiz esse onde reina a inquisição moderna: os
calabouços encontram-se atulhados de innocentes proletarios accusados de crimes
que não praticam, essas, para se deter a marcha do livre pensamento prejudicial a
todos os parasitas, torna-se necessário fulizar e encarcerar a todo aquelle que não se
submeter ou não estiver de accôrdo com a Santa Igreja.
Nesse vendaval destruidor de todos os ideaes nobres e humanitarios, não é o
simples operario a víctima dos sanguinários dirigentes desse povo, são também as
grandes mentalidades como a de Miguel Unamuno que, pelo simples motivo de se
condoer da infeliz sorte em que se encontra o povo hespanhol, foi o bastante para
que o Directorio Militar julgal-o presença indesejável e jogal-o para o desterro como
se fosse um cão leproso. Mas, como se costuma dizer: “Ha malo que vem para bem”
e este caso talvez seja um desses, pois, com o desterro de Unamuno e outros seus
companheiros, a inquisição que actualmente triunfa na Hespanha, encontra a queda
mais depressa e, assim como outro sol de mais liberdade brilhará com todo seu
explendor, digno para um povo heroico como é o povo hespanhol.
O desterro dessa mentalidade nova vem por todo o universo produzindo eco por
todas as grandes inteligencias provocando a revolta em todos os espiritos
escravizados, os quaes protestam contra a ação perversa commetida pelo dictador
Primo de Rivera.
De todo o globo partiram protestos contra essa injustiça, porém todos os apellos
foram calados porque os vampiros são inimigos das liberdades publicas e bem estar
do povo em geral.
O Unamone e seus desventurados companheiros, víctimas de uma seita parasitaria
ou como todos os que aspiram a liberdade atraves duma transformação social
encaram o sofrimento que passam neste desterro se transformando em energias mais
vivas ainda para que futuramente possam quebrar as algemas que advenham a
humanidade para a comunhão do talento e libertação collectiva dos povos.
(Infâmia!. CANDA OTERO. O Internacional, São Paulo, de abril de 1924, anno
IV, número 71).
Como já foi dito anteriormente, as libertárias utilizavam os jornais operários que
circulavam em São Paulo para propagar as suas idéias anarquistas e, somando-se a isso,
utilizavam-nos como forma para divulgar os métodos revolucionários que acreditavam serem
os mais eficazes e capazes de desencadear a revolução social. Izabel Cerruti, por exemplo,
escreveu um artigo publicado em “A Plebe”, em que discorria sobre a Greve Geral de 1917.
Segundo ela, a greve era um movimento de justiça de direito do trabalhador, ou seja, um
movimento em que os trabalhadores buscavam tomar aquilo que era fruto de seu próprio suor.
Aliás, para ela, os patrões e o Estado que os apoiava, eram os usurpadores dos indivíduos e,
era para reivindicar seus direitos que os proletários se colocavam em greve. O mesmo Estado,
que no momento atuava como repressor do movimento com o discurso de estar defendendo os
interesses de todos. Izabel Cerruti ainda colocava os fura-greves como traidores; comentava a
repressão policial e destacava o papel dos soldados - assim como vemos no artigo “Apelo aos
Soldados!”, no capítulo 2 desse trabalho que sofriam com a organização social tanto
quanto os operários, que com o papel humilhante de “cão de guarda” dos patrões, nesse
sentido ela pregava que a propaganda anarquista deveria ser intensificada entre os soldados,
para que aderissem à causa da emancipação humana.
Em face dos acontecimentos ha pouco desenrolados, senti um mixto de indignação e
piedade. De indignação, principalmente pela maneira despótica com que aquelles
que entendem ser senhores do mundo tentaram suffocar o movimento de justiça em
que se lançaram os operarios.
Esse procedimento não constitui, aliás, uma novidade, razão pela qual não nos
surprehendeu, pois que se verifica em toda a parte: para os famintos que ousarem
pedir pão existem as balas!
O que não deixou de ser novidade e de me surprehender foi ver o sisudo Estado,
cuja missão é propugnar pelos interesses dos magnatas, fazer, então, como o gato,
que dá o tapa e esconde a mão...
Vendo que se tratava de um caso serio, pois o movimento ia intensificando-se cada
vez mais e sabendo bem de quanto é capaz a massa acossada pela fome, fingiu-se
seu amigo e ao mesmo tempo que affirmava justificar o movimento, verberava o
procedimento dos exaltados.
E assim tecia considerações: “Que é preciso reconhecer que as auctoridades são
necessarias, e ainda o serão provavelmente por muito tempo, e que a policia sendo
talvez um mal, será um mal necessario, enquanto houver indivíduos que pretendam
fazer valer a sua vontade á força, contra a vontade e o direito alheio...”
Esse período denota a excitação do orgam burguez que, com as suas reticencias,
allude ao direito alheio. “Não cantará o gallo trez vezes e elle será o renegado”.
Direito alheio? Mas qual direito os ineffaveis senhores se referem? Ao direito do
trabalhador ou ao direito do capitalista?
Quer referir-se ao deste ultimo? Mas que direito lhe assiste?
O verdadeiro direito, senhores, está em e primeiro, com o trabalhador; para
justificar, pois, a vossa asserção a respeito da necessidade da policia para garantir
direitos, devia ella colocar-se ao lado das causas justas.
Não é, por certo, garantindo o trabalho aos traidores, nem prendendo os operarios ou
fechando suas associações, impedindo-os dessa forma, de se reunirem para discutir
as proprias questões, que se ampara a sua causa.
Como aquelles que pretendem fazer valer o direito alheio, bem sabeis que
garantindo a policia e trabalho aos traidores, impede a victoria do direito operário,
cujos esforços prejudica, em detrimento de suas justas aspirações.
Dahi as exaltações, aliás bem justificáveis, pois se a polícia affirma garantir o
trabalho, de facto nada garante ao operário, que, por isso, ás vezes, perda a calma.
E quem, então, não justifica a sua attitude? Somente os felizes mortos que
desconhecem os terríveis effeitos da miseria, causa de todas as perturbações.
E ainda pretende o severo paladino do “direito alheio” e do direito de propriedade
que os trabalhadores procedam com calma, de accôrdo com os meios legaes, estando
fartamente sabido que dessa forma não conseguirão dar um passo no sentido de
romper o circulo que os opprime.
Saibam os primitivos melindrados em sua mentalidade burgueza que a verdadeira
luctadora - a conselheira das massas opprimidas é a fome, - a grande anarchia e
revolucionaria, que neste momento anda pelo mundo, qual novo antechristo,
pregando as novas doutrinas e impellindo as multidões redemptoras á rebellião.
O que é de lamentar, e não deixa de me despertar o sentimento de piedade, é a
situação humilhante do soldado, victima desta madrasta sociedade e, pôr certo, mais
digno de comiseração.
O soldado é do povo e com o povo soffre as consequencias da organização
social! Vemol-o no cumprimento de suas tristes attribuições, obediente e submisso,
soffre os rigores dos intemperies enquanto no seu lar a miseria domina, mantendo
seus filhos mal educados e faltos da necessaria educação.
No entanto, quando se verifica um levante popular contra as injustiças dos
potentados, vemol-o como automato, attender á voz dos commandantes assassinos e
fazes descargas sobre os seus irmãos de infortunio!
Infeliz! Não devemos conservar-lhe odio por isso, pois todos conhecem o castigo
que lhe está reservado se transgredir as ordens de seus superiores.
A sua condição é peior que a do operario; bem humilhante é a sua funcção nesta
sociedade, pois além de misero escravo, deve representar o papel de cão de guarda.
Devemos prestar-lhe a nossa ajuda para que elle possa despedaçar as cadeias da
escravidão e nos preste mão forte na causa da emancipação social.
Com esse intuito, urge intensificar a propaganda libertadora entre os que vestem
farda, sendo de grande proveito a organização de grupos, com o fim de, por meio de
modicas contribuições mensaes, fazer no seu meio larga e constante distribuição das
nossas publicações.
Se assim se proceder, conseguiremos formar uma consciencia livre no soldado,
apressando a victoria de nossas aspirações.
então nos veremos livre, desta atmosphera de vilanias, de oppressão e de crime
em que nos mantem o capitalismo, estabelecendo um regimen de felicidade para
todos. (A greve a propósito da attitude do grande orgam Propaganda que se
impõe. IZABEL CERRUTI. A Plebe, São Paulo, 11 de agosto de 1917, anno I,
número 9, grifos nossos).
Seguindo esse mesmo pensamento de defesa da Greve Geral, Izabel Cerruti escreve
outro artigo, juntamente com Américo Cerruti, para “A Plebe” em agosto de 1917
parabenizando as ações do CDP - fazia isso depois de doar quantias, durante a greve, para
esse Comitê, como vimos acima ; exaltando a solidariedade entre os operários que tanto
pregavam as libertárias da época e colocando que os trabalhadores que fizeram a Greve
Geral anarquista tinham escrito uma nova fase da história da classe operária paulistana.
Congratulando-nos com o enthusiastico movimento operario, que marcou na história
uma nova phase para a vida do povo trabalhador de São Paulo, enviamos as
expressões do nosso reconhecimento aos esforços ao Comite de Defesa Proletaria,
os quaes com verdadeiro heroismo e fervorosa abnegação, mantiveram-se firmes no
seu posto, até a completa solução em proveito da justa e alta causa arrostando com
os perigos a que expunham a sua vida e a sua liberdade.
E dando um bravo! Á classe trabalhadora de São Paulo, saudamos também os
martyres tombados, cujo sangue firmou a solidariedade, que nos levará a novas
conquistas, até o raiar da nova era prestes a despontar na história triste da
humanidade que saudaremos com a completa victoria do sublime ideal anarquista!
Vivam a egualdade e a fraternidade humana! (Solidariedade por intermédio d’ A
Plebe. IZABEL CERRUTI e AMERICO CERRUTI. A Plebe, São Paulo, 4 de
agosto de 1917, anno I, número 8).
Em 1920 essa libertária escreveu um artigo publicado em “A Plebe” onde resumia e
propagava suas idéias a respeito do anarquismo como verdadeira possibilidade de libertação
total da mulher e de consolidação desta de forma fraterna e solidária com os companheiros de
ambos os sexos, através da luta e da construção da sociedade anárquica. Contrapunha os
ideais anárquicos ao feminismo liberal por meio de uma crítica contundente à Federação
Internacional Feminina e à Revista Feminina, que, segundo Izabel, lutava somente pelo
sufrágio universal, o que era uma farsa da sociedade burguesa, e era contrária aos ideais
libertários. Essas idéias, muito parecidas com as de Emma Goldman, influenciaram muitas
anarquistas brasileiras. Ela afirmava que a mulher tinha um papel fundamental como sujeito
histórico ao buscar a sua total “integralização” na vida social, afirmando assim a concepção
de História proposta pelos anarquistas desde os tempos do anarquismo clássico. Sustentava
que era o capitalismo o responsável pela escravidão da mulher (por isso a transformação
social significaria a sua libertação) e que a emancipação intelectual era essencial para a
emancipação total da mulher, que seria fruto de sua própria ação.
Como se a emancipação da mulher se resumisse em tão pouco... O programa
anarquista é mais vasto nesse terreno; é vastíssimo: quer fazer compreender a
mulher, na sua inteira concepção, o papel grandioso que ela deve desempenhar,
como factora histórica, para a sua inteira integralização na vida social. (...)
Antes de tudo, e isso é o essencial ela deve fazer uso do seu raciocínio para se despir
dos vãos temores, dos tolos preconceitos e dos ridículos escrúpulos que lhe incutiu a
falsa moral de Deus e da Patria, para assim obter o seu pensamento emancipado.
Uma vez com o pensamento emancipado a mulher deve estudar, ha de investigar a
causa da sua escravidão social e ha de, sem grande esforço, compreender que essa
causa tem sua razão de ser nas cadeias do capitalismo que a prende ao homem,
constrangida a mover-se com ele num círculo vicioso, num ambiente saturado de dor
e imoralidade. A Revista Feminina propõe propugnar pela emancipação da mulher
conseguindo para ela o direito de empenhar-se em lutas eleitorais. É isto que
chamam de emancipação feminina? (...) Qualquer reforma nas leis vigentes que
venha a conferir-lhe direitos políticos iguais ao homem não a põe a salvo das
chacotas e humilhações, não a livra de ser espezinhada pelo sexo forte e prepotente,
enquanto perdurar a moral social que constrange e protege a prostituição.
Nós os anarquistas com clara noção da verdadeira e moral, esforçamo-nos para
que um dia seja realidade uma organização social mais perfeita do que a atual, para
que a honra das famílias seja assegurada ao amor livre. (IZABEL CERRUTI, São
Paulo, A Plebe, 20 de novembro de 1920, apud: LEITE, 1984, p. 42, grifos nossos).
Aliás, sobre o anarquismo como possibilidade de emancipação total da mulher, que
ocorreria com a libertação de toda a humanidade do jugo do capitalismo e do Estado, Izabel
Cerruti falava na inauguração do Centro Feminino de Educação, dois anos após o artigo
citado acima - em 1922
89
:
A emancipação da mulher não está na igualdade desta perante o homem, nas
prerrogativas políticas, de mando e de trabalho, mas sim na emancipação da
Humanidade da tutela política e na igualdade econômica e social de todo gênero
humano.
A mulher não é escrava do homem (salvo em casos anormais), mas sim escrava
juntamente com o homem de mil preconceitos, e vítima, como ele, da exploração
exercida pelos potentados de ambos os sexos, tanto sobre o homem como sobre a
mulher.
Igualá-la aos homens é ficar onde estamos. Nós devemos é lutar ao seu lado e junto
aos homens para que a emancipação da mulher seja um fato, não para a mulher, ou
para o homem, mas para todas as pessoas (inclusive crianças e adolescentes) para a
Humanidade, porque os dois sexos se integram e se completam. (Discurso de
Inauguração. IZABEL CERRUTI. São Paulo, 1922, apud: CORREA, 1986, p. 65,
grifos nossos).
Assim como Izabel, Matilde Magrassi, outra libertária que atuou no movimento
anarquista paulistano no início do século XX, afirmava que as mulheres deveriam lutar contra
seus verdadeiros inimigos (capitalismo, Igreja e Estado) e, para isso, deveriam unir-se de
maneira livre, segundo a organização autogerida defendida pelos anarquistas.
Compreendereis que é inteiramente inútil que confieis aos padres as nossas dores.
Aconselhando-vos a resignação, o que ele faz é impedir-vos de reagir contra quem
vos oprime. (MATILDE MAGRASSI. O Amigo do Povo, o Paulo, 17 de janeiro
de 1904, apud: RAGO, 1985, p. 96 e 97).
É tempo que a mulher operária faça também nesta cidade o que vai fazendo em
tantas outras cidades civilizadas (...). Uni-vos, formai sociedades de resistência,
procurai conquistar bem-estar, despertai do longo letargo no qual tendes estado
adormecida até hoje. (MATILDE MAGRASSI. O Amigo do Povo, São Paulo, 27 de
junho de 1903, apud: RAGO, 2000, p. 595, grifos nossos).
Outra maneira que as anarquistas utilizavam para propagar seus ideais era através das
festas libertárias, que para elas, além de lazer instrutivo, eram um espaço para se propagar
idéias e se exercer a convivência entre trabalhadores. Geralmente essas festas contavam com a
apresentação de peças teatrais e bailes, como vimos no capítulo 2 e veremos mais adiante. Em
janeiro de 1907 “A Terra Livre” anunciava a realização de uma festa promovida pela Liga de
Resistência das Costureiras de São Paulo:
89
Esse discurso resume bem o que pensavam as mulheres anarquistas aqui em São Paulo e em todo o mundo.
A Liga de Resistência das Costureiras realizará, no dia 12 do corrente, uma festa em
beneficio da sua caixa. A festa constará de representação, tombola e do confirmado
baile. (A Terra Livre, São Paulo, 6 de janeiro de 1907, anno II, número 24).
Vale lembrar ainda que a propaganda anarquista feita através dos jornais poderia
conter textos de homens libertários que destinavam-se às mulheres, estimulando sua
associação e luta. Isso mostra que os anarquistas, de ambos os sexos, tinham uma grande
preocupação em “caminharem” juntos no movimento operário, sem colocar homens e
mulheres em posições antagônicas, mas sim como companheiros na luta pela libertação total.
Um exemplo muito claro, nesse sentido, foi um texto publicado em “A Terra Livre”, em
junho de 1906, momento em que ocorriam inúmeras greves, assinado somente com as letras
G.L. Trata-se de um longo diálogo fictício entre duas companheiras de trabalho (Mariquinhas
e Joanna), que nem eram anarquistas nem socialistas, e não há como sabermos quem o
escreveu e, nem sequer, se foi escrito por um homem ou uma mulher, porém, e de qualquer
forma, o texto incitava as mulheres operárias a lutarem para conquistarem seus direitos e para
alcançarem à sua libertação total. Ficavam evidentes muitas das críticas que os libertários e
libertárias faziam à sociedade da época: à ação violenta de patrões, através de espiões que
ouviam conversas de operários, e da polícia; à Igreja, suas riquezas acumuladas
(principalmente pelos padres) e o poder que exercia em grande parte dos operários ao afirmar
que eles deveriam esperar uma vida melhor somente após a morte, limitando-os assim para a
luta, como colocava Emma Goldman. Estimulavam a instrução e a leitura e pregavam o
anarquismo comunista, através do qual se realizaria a libertação total da mulher, afirmando-a
como igual ao homem.
A Caminho do Trabalho (entre companheiras)
- Vamos lá, Joanninha, que já vão sendo horas.
- Vamos indo, Mariquinhas da minha alma, para esse inferno... Estou bem cansada
disto. Não se ganha nem para comer, e a gente em casa não faz senão passar
necessidades... É uma vida de amarguras!
- Olha Joanna: isto não é viver no mundo. A culpa, também, é nossa. Estou farta de
te falar, a ti e as companheiras todas, mas vocês não querem ouvir...
- Cala a boca, que vem ali um espião.
- não me importo de espiões, nem do diabo que os carregue! Que vão para o
Inferno e que vão contar tudo, se quiserem. Isto não é vida. Estou desejando que
chegue o dia de ver todos esses sabujos corridos á pedra.
- Está enganada. Mariquinhas, esses cachorros estão bem guardados pelos patrões.
- E os patrões, quem é que os guarda?
- Os soldados, a polícia...
- Isso mesmo dizem os anarquistas...
- Os anarquistas? A proposito, Mariquinhas: outro dia ouvi dizer a um espião que os
socialistas e anarquistas são uns canalhas e uns desordeiros, e pensam em fazer
mal... Será verdade?
- E tu vais dar ouvidos aquelles cachorros? Se não houvesse socialistas e anarquistas
e todos fossem humildes e resignados, os patrões faziam de nós o que lhes viesse á
cabeça, e a nossa miseria seria ainda maior. Tudo é pelos patrões: governo, juízes,
soldados, espiões... e a grande manada de operarios ovelhas... Contra elles e por
nós, somos nós mesillos, aquelles que temos um pouco de conhecimento dos nossos
direitos e de dignidade. Ora os anarquistas são dos nossos, e muitas vezes expõem a
vida contra uma fera... E por isso é que os ricos e graudos dizem mal delles e
procuram arranjar que os ignorantes lhes tenham odio: os patrões e governantes não
querem ser incomodados nas suas empresas, querem explorar à sua vontade. Olha os
socialistas e anarquistas que conheces e olha os patrões: verás logo quaes são os
nossos. Vê as burguesas da fabrica, como andam todas no luxo... a nossa custa.
- É verdade, tens razão. Bem dizia o padre, outro dia, na Igreja, quando fez o
sermão: quando nós morrermos, ficaremos vingados. Soffremos com paciencia em
vida: mas depois se verá que tem razão... Disse coisas tão bonitas! Para falar não
como aquelles padres!
- Ah! Joanna! É por essas e outras que nos vemos neste estado... Pois tu ainda
acreditas nos padres?! Queres que te diga?
Padres, frades, bispos, toda essa canalha da Igreja, tudo isso é um bando de
alcoviteiros dos patrões. Ajudam os patrões a explorar e vivem também á custa do
nosso suor, vendendo-nos muito caro, os seus latinorios e suas mentiras... Dizem
que devemos soffrer em vida, porque querem gozar sem trabalho, á nossa custa, em
companhia dos patrões. Não vês como são amigos. Não vês como os ricos são
religiosos? Se o prazer e a riqueza levam ao inferno, por que é que os padres, os
bispos, o papa, não tratam de converter os ricos religiosos... á pobreza e não são
pobres?...
- Sim... mas escuta, Mariquinhas, sempre devemos respeitar os padres porque são
ministros de Deus, e é preciso ir á missa, ir á confissão...
- E de que te serve tudo isso? E como podes tu, acreditando em Deus, que, como
dizem os crentes, não se engana, nunca erra, não pode mudar de resolução, é sempre
justo, como podes pensar que os teus pedidos sirvam para fazer mudar de ideias? Se
é Deus, se é como dizem, que tem de julgar sempre do mesmo modo não dando
ouvidos nem aos insultos nem as suplicas, não se deixando arrastar nem pela lisonja
nem pelo despeito. Sabes por que ha Igrejas? Pelo mesmo motivo que ha vendas:
porque ha negociantes que vivem dellas... E todos que se deixam roubar. Os padres,
os negociantes da religião, amparam a Igreja que é o seu ganha-pão. E a confissão?
Vês esses espiões que o nosso patrão mantem para nos vigiarem, para lhes contarem
os nossos protestos as nossas palavras de descontentamento? Pois os padres fizeram
ainda melhor: inventaram a confissão. Assim, surprehendem os segredos, dirigem as
almas, governam as casas, apanham heranças. É uma boa polícia!...
- Então os anarquistas e os socialistas não vão á Igreja? Não tem santos?
- E tu confias nos santos? Não tens de trabalhar constantemente para ganhar um
pouco de pão? O que devem fazer todos é esperar tudo de si mesmo... Se nós
confiassemos só nos nossos braços e na nossa união, o precisavamos de nos
ajoelhar diante de qualquer santo de pau ou carne, nem o nosso trabalho seria tão
duro e tão pouco proveitoso...
- Sabes uma coisa? Eu também, desde que comecei a ler os jornaes que tens me
dado e que dizem tantas verdades, e um livrinho chamado “Porque somos
anarquistas” tenho perdido a minha nos santos e, quando vou á Igreja, já nem
rezo: ponho-me a pensar, a pensar...
- Que aquillo tudo é uma mentira e os padres são uns ladrões, não é?
- Tanto não digo, mas... Ah! É verdade Mariquinhas: sabes o que me disse a mim e a
outras companheiras um anarquista?... Chegou-se a nós, com bons modos, e assim,
em conversa, disse-nos que os patrões, os governos e os trabalhadores ignorantes e
traidores que os ajudam estão todos aliados contra os pobres; que os anarquistas
querem que as terras, as máquinas, as casas, as estradas de ferro, todas as coisas que
servem para produzir e transportar, sejam de todos e administrados pelos mesmos
que, se servem dellas; que assim se produzirá muito mais do que hoje, porque não
haverá quem tenha interesse em parar o trabalho só pra vender mais caro, e porque
não se trabalhará para um patrão, mas para satisfazer os consumidores, que todos
trabalharão e todos consumirão não sendo preciso de dinheiro; que hoje as fábricas e
as terras dão em quanto haja quem compre e depois param e não servem para
nada, ainda que haja muita gente com fome, nua e sem casa; que os homens são
muito estupidos, consentindo isto; que a mulher terá os mesmos direitos que o
homem e será senhora de si... Que precisamos ser unidos e resolutos! E outras
coisas. Eu fiquei com vontade de saber mais...
- E tu fingias que não sabias de nada dos anarquistas!... Mas está a penitenciária.
Outra vez conversaremos. (A Caminho do Trabalho (entre companheiras). G.L.
A Terra Livre, São Paulo, 28 de junho de 1906, anno I, número 11, grifos nossos).
4.4.2 As mulheres anarquistas e as Escolas Modernas: Anna de Castro Osório, Angelina
Soares e Maria Lacerda de Moura lutavam pela organização delas e defendiam os
métodos de ensino racionalista inspirados em Francisco Ferrer
Entre a feminista ultra, forma híbrida, sexual e a massaia no sentido romano da
palavra: stetti em casa e filo lana, existe justo meio: a verdadeira mulher: a mulher,
nem patroa, nem escrava, nem femina, nem angélica, nem asséptica, nem messalina,
mas amante e amada. (JOSEFINA STEFANI BERTACHI. A Terra Livre, São
Paulo, 15 de junho de 1906).
Os anarquistas, desde seus primeiros militantes e teóricos, sempre tiveram grande
preocupação com o ensino e a educação, por observarem-os como pilares das sociedades.
Segundo eles, a educação na sociedade capitalista servia aos interesses do Estado e das classes
dominantes, ou seja, funcionava como respaldo à ordem social vigente, pautada na autoridade
que ditaria padrões e modelos de vida -, nas divisões sociais, no individualismo exacerbado
e no exercício de poder. Justamente por isso, propuseram uma outra maneira de pensar a
educação, uma maneira libertária. Desde os escritos de Proudhon e das práticas educacionais
da Comuna de Paris (1871) ficavam evidentes as propostas anárquicas para a educação em
dois sentidos: em primeiro lugar, a educação libertária era vista por eles como um mecanismo
de luta ainda na sociedade capitalista, para a superação dessa, através do questionamento do
modelo econômico, político e social; da emancipação intelectual dos indivíduos; da
preparação moral para a sociedade ácrata (como portadora de valores como os de
solidariedade, apoio mútuo e organização livre) e, em segundo lugar, ela era pensada no
âmbito da sociedade futura, portanto quando as classes e as relações autoritárias tivessem
sido abolidas.
Foi de acordo com a primeira maneira de pensar a educação que muitos anarquistas
atuaram em São Paulo e, principalmente, as mulheres anarquistas. A idéia de que a
emancipação intelectual da mulher era um dos passos fundamentais para a sua emancipação
total, de que os valores da igualdade deveriam ser fixados ainda na sociedade atual, assim
como o questionamento do machismo como fruto do próprio sistema capitalista (Estado e
burguesia) estavam em pleno acordo com os ideais da educação libertária e ela seria o meio
para construir uma sociedade livre, sem que, para isso, fossem necessários meios violentos.
Por isso, foi grande a atuação das mulheres nas escolas libertárias fundadas em São Paulo,
assim como era grande a preocupação das associações de mulheres anarquistas de fundarem
grupos de estudos e escolas libertárias (como o Centro Feminino de Educação). Assim como
Mikhail Bakunin, essas libertárias defenderam e organizaram em São Paulo:
[...] uma escola que estará, portanto, em constante luta com essa sociedade
[capitalista] na qual ela está inserida. (BAKUNIN, apud: GALLO, 1993, p. 23).
No entanto, por aqui, os métodos de Bakunin com relação à educação não foram
amplamente aplicados
90
e aceitos. As escolas libertárias daqui optaram pelos métodos
educacionais de Francisco Ferrer - o modelo das Escolas Modernas. Ferrer criou em
Barcelona, Espanha, a “Escuela Moderna”, onde era aplicado um ensino racionalista, sem
idéias religiosas, que privilegiava os estudos científicos e a idéia de um ensino integral:
manual, intelectual e moral, como colocamos em capítulos anteriores. Ele assumia a idéia
de educação como processo de desenvolvimento da criança através dos mais diversos
aprendizados, portanto, os conhecimentos e práticas que ela acumulasse fariam com que, no
final do processo educacional, ela fosse diferente daquilo que era no início. A educação era
vista, então, como ação para a formação integral do homem livre (que nunca estaria completo,
e sim almejaria sempre mais conhecimentos) tornar a criança um homem livre. Essa ação
seria coletiva e voltada para a construção de uma coletividade livre e autônoma.
A divulgação das idéias pedagógicas de Francisco Ferrer, sua metódica e fácil
aplicação uniu-se aos anseios de instrução e cultura do proletariado do Brasil. A
iniciativa foi dos anarquistas, em geral, elementos mais preparados dentro dos
sindicatos e dos Centros de Cultura Social.
O trabalhador consciente, aquele mesmo que agitava, protestava, promovia greves,
pregava a transformação social, preocupava-se também com alfabetizar, instruir e
cultivar seus filhos, companheiros de ofício, de infortúnio, substituindo o arcaísmo
escolar-clerical e burguês, pela pedagogia racionalista de Ferrer.
À margem das leis do Estado, contando apenas com a solidariedade e ajuda
financeira dos companheiros de trabalho e de idéias, o assalariado anônimo, de mãos
calosas e gestos rudes, perseguido, muitas vezes renegado pela sociedade burguesa,
deu-nos exemplos de grandezas ímpares, fundando escolas nos bairros ou nos locais
de reuniões.
[...]
Seu trabalho começava nas escolas de militantes, de oradores fundadas nos
sindicatos; nas seções de leituras comentadas nos locais de trabalho, à hora do
almoço, nos debates ideológicos, em conferências e palestras, controvérsias nos
círculos de estudos, nos grupos de teatro-social, nas escolas de alfabetização e de
artes e ofícios, com estímulo permanente ao estudo e a superação do obscurantismo.
(RODRIGUES, 1992, p. 48 e 49, grifos nossos).
90
Bakunin acreditava que a criança era um “adulto em miniatura”, mas que não poderia ainda viver em plena
liberdade. A educação infantil deveria começar com princípios de autoridade, para que a criança fosse capaz de
agregar valores sociais e, ao mesmo tempo, passar a questionar essa autoridade, ao longo de sua educação. A
autoridade iria sendo retirada, já que os questionamentos com relação a ela iriam aumentando, até chegar no
ponto em que ela seria totalmente abolida, no final do processo educacional, quando fossem adolescentes. Ou
seja, através de um processo dialético, a autoridade iria sendo questionada até ser completamente substituída pela
autonomia individual e pela liberdade totais.
A partir de 1909
91
as Escolas Modernas tiveram um grande impulso em São Paulo.
Muitas delas foram formadas nessa época, como a Escola Moderna (Avenida Celso Garcia), a
Escola Moderna n°1 (Belenzinho) e a Escola Moderna n°2 (Rua Müller) e, para arrecadar
recursos financeiros para seu funcionamento, foram feitas inúmeras festas e campanhas nos
jornais operários. No geral, elas se organizaram próximas às fábricas, em bairros operários,
para que o maior número de trabalhadores (em sua maioria crianças) tivessem acesso a elas,
eram ministradas aulas de manhã e a noite, também com esse intuito e eram destinadas à
crianças de ambos os sexos (o que também a difere das escolas tradicionais, que se dividiam
em masculinas e femininas). Sua manutenção era feita pelos próprios trabalhadores, que
colaboravam mensalmente com quantias em dinheiro para a compra de materiais e livros.
Pode-se dizer que até 1913 as atividades de tais escolas eram fortes, mas isso não quer dizer
que elas deixaram de existir após essa data; apesar das perseguições do governo e da polícia
elas resistiram durante todo o período aqui trabalhado. Inúmeras libertárias participaram da
fundação, organização e até dando aulas nessas escolas, dentre elas podemos citar Teresa
Maria Carimi, que defendeu a fundação da Escola Moderna da Água Branca, fundada pelos
vidreiros da fábrica Santa Marina, e Angelina Soares
92
, que também escrevia artigos em
jornais anárquicos, fazia palestras, participava do teatro anarquista, discursava em comícios e
festas operárias e fundou grupos de cultura social, enquanto trabalhava como professora em
escolas libertárias em São Paulo, desde 1914. No trecho abaixo podemos perceber como essas
escolas funcionavam, bem como as matérias que eram ensinadas, nesse caso podemos
observar que o ensino para meninos ocorria em horário diferente do ensino para as meninas, o
que nos leva a concluir que isso ocorria por causa das diferentes abordagens de um assunto
nas matérias que eram ministradas para um ou outro.
Instituto de educação e instrução segundo o método racionalista mantido pela
associação
93
Escola Moderna de S. Paulo.
91
Nesse ano Francisco Ferrer foi condenado e fuzilado na Espanha e, em São Paulo, a 17 de novembro, foi
fundado o Comitê Pró-Escola Moderna do Brasil, com sede na Rua Gomes Cardim, n°5, São Paulo.
92
Angelina Soares era irmã de Florentino de Carvalho, anarquista muito ativo no movimento operário em São
Paulo e em outras partes do país. Ele escrevia textos para jornais, para o teatro operário e também dava aulas nas
escolas anarquistas, trabalhando ativamente para a fundação e organização dessas durante as primeiras décadas
do século XX.
93
O Comitê Pró-Escola Moderna tinha a sua sede na rua Gomes Cardim, 5, São Paulo. Seu primeiro secretário
foi o Contabilista Leão Aymoré, tinha como seus componentes: Galileu Sanchez, Francisco Fiume, José Sans
Duro, Vitorino Cordeiro, Gigi Damiani, João Felipe, José Romero, Francisco Gattai, Júlio Sorelli, Francisco de
Paula e Edgard Leuenroth. La Barricata, de 17-8-1913 semanário anarquista de São Paulo (n°407) falava da
Escola Livre para meninos e meninas, à rua Cotejipe, 26 Belenzinho, São Paulo. Por sua vez A Lanterna de 25-
10-1913 falava da “festa de inauguração de duas escolas montadas pela Escola Moderna de São Paulo. Foi no
Salão Gil Vicente e usaram da palavra, Florentino de Carvalho [irmão de Angelina Soares], Leão Aymoré e João
Penteado. (RODRIGUES, 1992, p. 97, notas).
As suas aulas tanto diurnas como noturnas estão funcionando com regular
freqüência dos alunos e a inscrição para a matrícula se acha aberta, mediante a
contribuição mensal de 4$000 para as aulas diurnas e 4§000 para noturnas.
O fornecimento de livros e materiais é feito gratuitamente aos alunos da escola a fim
de facilitar aos operários a educação e instrução de seus filhos segundo o método
racionalista.
Horário das aulas:
De dia: das 8 ao meio-dia para a seção masculina e das 12,30 às 16,30 para a seção
feminina.
De noite: das 19 às 21 horas.
O programa com que foram iniciados seus trabalhos consta de português, aritmética,
geografia, história do Brasil e princípios de ciências naturais.
O seu programa, todavia, como está determinado, será ampliado de acordo com as
necessidades futuras e com a aceitação que o ensino racionalista for tendo por parte
dos homens livres da capital e do interior do Estado. O Diretor. (RODRIGUES,
1992, p. 50, grifos nossos).
Segundo Edgard Rodrigues (1992) um dos objetivos das escolas livres ainda na
sociedade capitalista era “libertar a criança do progressivo envenenamento moral pelo ensino
baseado na bajulação política e religiosa do governo” (RODRIGUES, 1992, p. 54) que tinha
como espaço de exercício as escolas oficiais do Estado. Certamente era com esse pensamento
e em plena concordância com os ideais de Ferrer que as libertárias atuaram.
Eu detesto qualquer derramamento de sangue, trabalho para a regeneração da
Humanidade e desejo o bem pelo Bem. (FRANCISCO FERRER, apud:
RODRIGUES, 1992, p. 48).
Dentre essas defensoras das escolas livres, pautadas nas idéias e métodos de Francisco
Ferrer também estava a libertária Anna de Castro Osório. Dela não sabemos nada para além
do nome, mas através de um artigo publicado em “A Terra Livre” no ano de 1907, é possível
observarmo-la como ativa defensora da fundação e organização das Escolas Modernas na
cidade de São Paulo ao citar o exemplo de uma escola desse tipo organizada e em
funcionamento em Portugal. Anna de Castro parte da crítica ao modelo de escola oficial,
pautada na vigilância, na disciplina rígida, no castigo e na obediência cega à autoridade,
passando por uma crítica ao machismo de homens que acreditam ter sua suposta superioridade
pautada na razão e no pensamento e que, justamente por isso, reafirmam a idéia de que
mulheres, crianças e loucos tem de estar em prisões (em escolas rígidas, hospitais, conventos
e casamentos) até chegar a exaltação da resistência de mulher, loucos e criminosos e à defesa
de uma educação pautada no racionalismo, nos questionamentos, na liberdade, na felicidade,
na livre iniciativa, na formação de individualidades autônomas, tal qual defendia Francisco
Ferrer e Mikhail Bakunin e ao contrário da proposta educacional da Primeira República, que,
segundo ela, era uma educação baseada no autoritarismo, no medo (principalmente ao impor
exames classificatórios) e em idéias teocráticas, assim como na violência e coação física
(como a palmatória) e moral.
Eis um titulo que ha de surprehender muita gente no nosso país, para o qual a escola
é sinônimo de prisão e de castigo.
A Escola Livre!... Mas isto deve ser para a maior parte uma utopia de poeta e para o
resto um disparate, que nem merece discussão.
Crianças, doidos, mulheres e criminosos, m merecido o soberbo desprezo do
homem, que se julga superior e desdenha de ter a sua atenção no estudo das
condições moraes e materiaes em que vive essa grande multidão humana, que são
como párias duma sociedade em que elle é a classe dirigente e pensante, nem
sempre equivalendo ao seu orgulho, e muitas menos vezes correspondendo á
justiça, que se arrogou como distribuidor.
Para a grande maioria dos homens, ainda hoje, apesar do muito que a consciencia
humana tem melhorado na sua relatividade social quanto mais apertadas forem as
prisões materiaes e moraes, onde se guardam essas criaturas inferiores, melhores
resultados futuros elle julgaria tirar para a propria felicidade.
Por isso a criança tem o colegio com todos os seus horrores e entre os colegios é tido
como modellar aquelle em que a disciplina e a vigilância o mais completadas pelo
terror material, como pelo terror religioso.
Os doídos, pobres doentes cuja irresponsabilidade devia inspirar respeito e
consideração, ainda sofrem maus tratos e escarneos e não vai longe o tempo em que
o hospital não era a casa de saude mas a casa dos suplícios.
As mulheres, que elle na sua soberania de macho não escolhesse para o seu gozo
material, não tinham outro emprego senão o convento, a prisão, a vigilância.
As que no casamento tinham acolhida encontravam no lar (no gineceu) uma prisão
pouco menos asfixiante, e muito mais trabalhosa do que claustral.
E para todas a religião, ainda hoje tida, não como uma aspiração superior da alma,
não como uma necessidade íntima de certos temperamentos ideologicos, mas como
um freio, uma sujeição moral a juntar a todas as outras que fazem da mulher uma
criatura irresponsavel. Inutil freio, tantas vezes tomado nos dentes e não obstando as
desvairadas fugas para fora do caminho direito!...
Os criminosos, com todo o peso do crime, que degenerecencias sucessivas lhes
trouxeram por fatalidade de temperamento, tinham que soffrer porque fizeram
soffrer, serem torturados porque torturaram, vingança odiosa de toda uma sociedade
que se ofendera no seu comodismo.
Mas, os doidos, graças aos sabios e medicos especialistas, vão tendo um mais
consciencioso tratamento.
Os criminosos também vão tendo muito quem por elles se interesse e tente mostrar
que a sociedade não tem o direito repugnante do castigo, mas tão somente o direito
de se defender e preservar os fracos da companhia perniciosa desses atrasados,
desses doentes moraes, que se hão de curar uns, melhorar outros, e outros por
incuráveis ser utilizados assim, mas dando-lhes a maior soma de felicidade
compatível com o estado de vigiados.
As mulheres também vão protestando, ainda timidamente, como colectividade,
mas enfim uma parte consegue libertar-se da rotina e embora menores e tuteladas
perante o código, colocadas segundo a lei civil no plano inferior dos irresponsáveis,
o que é certo é que vão progredindo e impondo-se á consideração emanada do
homem.
a criança é que continua a ser, salvo as excepções, educada como nos velhos
tempos, dogmaticos em que a vontade individual era tida como um defeito que a
todo transe era necessario espurgar.
diz o velho refrão “a criança e o pepino torce-se de pequenino”. E as crianças,
torcidas e retorcidas nas mãos inabeis dos educadores, seguem fatalmente dois
caminhos ou se submetem, se afeijam e deformam moralmente até chegar a
hipocrisia mole dos centenares de criaturas que a cada passo topamos por ahi, ou se
tornam uns revoltados para os quaes a vida só traz pesares e atritos.
Para o criterio português educar não é tornar a criança amavel, alegre, feliz e
expansiva não é!
Para grande parte dos educadores, ainda hoje, educar é aborrecer, contrariar, tornar
bem patente os despotismo autoritario. O ideal da educação tem sido convencer a
criança que o estudo é um castigo que Deus põe nas mãos dos pais e dos
professores, como lhes pôs a palmatória. É a velha teoria teocrática de que o homem
vem ao mundo para pagar culpas que não cometeu. E assim o trabalho foi
convertido em condenação e exploração, em vez de ser transformado em pura fonte
de gozo e alegrias saudáveis.
A criança pergunta, na sua insaciável sede de tudo aprender, ella, coitada a nada
sabe e nada compreende!?
- A criança é considerada ameaçadora e curiosa, incorrigível e mandada fechar no
mais absoluto silencio!
A criança gosta de ler coisas que lhe prendam a imaginação mal desperta, ver
ilustrações que lhe falem aos olhos e ao espírito, rabiscar os desenhos que realizam o
sonho das suas almazitas ingênuas e primitivas!
- O professor e os pais retiram-lhes logo com enfado esses motivos de alegria
espiritual e mandam-nas autoritariamente para o livro de leituras oficial para o
caderno da escrita e dos problemas, para o desenho do compendio necessários para
o exame!
Porque o exame, o terrível, está sempre suspenso sobre a cabeça da criança como
uma ameaça terrível, como o dia do julgamento para o criminoso. Vai-se para um
pouco inconscientemente e sem saber bem o que vão procurar e volta-se de lá, se
calhou bem com o alívio de quem tomou um remedio e com a ideia firme de fechar
os livros sobre estudos que já não são precisos porque o exame esta passado.
E assim, de disciplina em disciplina, a criança vai fechando com raiva, a cada exame
feito, a materia estudada “para cumprir”, chegando-se por este modo ao fim do curso
sem nada saber do princípio.
E como não ha de existir o horror ao estudo se a criança tem como pronta a ameaça
quando faz qualquer maldade no colegio e na escola?!
Foi assim que a escola se converteu... em presidio.
Parece que a alma negra de uma legião de inquisidores anda por ahi encarnada nas
pessoas dos pais e dos mestres, a torturar e a aleijar as pequenas almas em formação.
(A Escola Livre (A propósito do projecto de C.L. em Portugal). ANNA DE
CASTRO OSORIO. A Terra Livre, São Paulo, 2 de abril de 1907, anno II, número
30, grifos nossos).
Anna de Castro Osório foi ativa divulgadora da idéia de que o anarquismo seria o
principal meio de libertação total da mulher, que deveria receber uma educação libertária para
que pudesse promover sua própria emancipação, assim como de toda a humanidade, como
colocavam libertárias como Emma Goldman, Voltairine de Cleyre e Louise Michel fora do
Brasil. Em um artigo escrito, em 1923, para a “Revista Renascença”, editada e dirigida por
Maria Lacerda de Moura, ela criticava o feminismo sufragista, afirmando que ele não levaria
à libertação alguma, nem para as mulheres, nem para os homens e seria uma forma de
desvirtuar a luta pela emancipação total e promover mais desigualdades entre os dois gêneros,
ressaltando qualidades somente das mulheres sem colocar que os homens e mulheres tem
defeitos e qualidades, ou seja, eles são próprios da humanidade, quando quem criaria essas
diferenças sexuais seria o próprio sistema de exploração do homem pelo homem.
Mas, como sempre, os princípios foram desvirtuados imediatamente e a grande
maioria das mulheres que protestam contra a tirania sexual do homem, pretendem
impor a tirania sexual feminina. (A mulher e os seus direitos no futuro. ANNA DE
CASTRO OSORIO. Revista Renascença, São Paulo, fevereiro de 1923, anno 1,
número 1, grifos nossos).
Maria Lacerda de Moura
94
, que tinha formação como normalista e trabalhava como
professora, também defendia, no ano de 1924 em “A Plebe”, uma concepção de educação
diferente da educação oficial da época. Não a denominava como educação libertária, mas
ressaltava a importância da associação entre pedagogia e psicologia, entendendo a última
como uma ciência da alma e criticando o positivismo
95
(concepção científica de maior
relevância durante a primeira República no Brasil) ao colocar em dúvida a possibilidade da
neutralidade do conhecimento científico. Aliás, para essa anarquista, o primeiro passo da
libertação da mulher e de toda humanidade deveria se dar através de uma educação mais livre
e igualitária (sem preconceitos e noções preconcebidas e sem distinções de gênero apoiadas
por teorias positivistas), que levaria à sua emancipação intelectual. No artigo a seguir, Maria
Lacerda cita vários autores e estudiosos de psicologia (como Binet, Ribot e Lange) e seus
conceitos em torno dela, para, a partir daí, relacioná-la à pedagogia, que para se educar
seria essencial conhecer os fenômenos psíquicos e afetivos dos educandos. Termina por
concluir que a pedagogia não seria nada sem psicologia e higiene.
Psychologia Pedagogica do grego: psyché-alma; logos-tratado. A definição da
psychologia como sciencia da alma está abandonada, mesmo porque Lange queria a
psychologia sem alma como Ribot. Essa expressão não quer dizer a negação da
existencia da alma. Os seus autores não a negam sim a affirmam, observam apenas
os factos e fazem disso uma sentencia. É a sentencia “neutra”, se é possivel o termo,
deante das escolas muitos sophistas.
psychologia sciencia da “introspecção” não é mais aceita por Binet. Não
caracteres pelos quaes se pretendia separar a extrospecção da introspecção, diz o
autor de “A Alma e o Corpo”.
Psychologia estudo dos factos de consciencia, também não lhe atraias porquanto
exclue os factos inconscientes e a expressão é vasta, e elastica.
Binet define a psychologia: “estuda certo número de leis a que chamamos mentaes
para oppor às leis da natureza externa de que differem, mas, falando em propriedade
elas merecem a qualificação de mentaes pois são, pelo menos as que se conhecem
melhor leis das imagens e as imagens são elementos materiaes. Embora isto pareça
absolutamente paradoxal, a psychologia é uma sciencia de materia, a sciencia de
uma porção de materia que tem a propriedade de preadaptação”.
Se a Pedagogia se propõe a educar e para isso se precisa dela, tal o ensino ás
necessidades, á vocação e á natureza do educando é bem claro que não fará obra
educativa se não interessar fortemente pelos phenomenos da consciencia, dos
sentimentos e da vontade do educando, se não fizer estudos e observações de
psychologia.
94
Como vimos no capítulo anterior, Maria Lacerda de Moura sempre privilegiou os métodos pacíficos de ação
revolucionária, aliás sempre se colocou como adepta da resistência pacífica, como Leon Tolstói. Justamente por
isso deu muita ênfase na educação libertária como meio revolucionário.
95
Maria Lacerda de Moura criticava ferrenhamente o positivismo em sua obra “A mulher é uma degenerada?
(1924). Nela essa libertária colocava que as teorias científicas positivistas tentavam provar cientificamente uma
suposta degenerescência natural da mulher com o único intuito de oprimi-la, colocando-a em uma posição de
constante submissão e ignorância, mas sem qualquer fundamento. Essa concepção fazia com que houvesse,
segundo ela, controle sobre a mulher (desde a mãe até a prostituta), e para que a mulher se libertasse de tal
opressão deveria buscar, antes de tudo, sua emancipação intelectual através de uma educação mais livre e da
leitura, bem como da convivência social.
Mas a psychologia pedagogica não é psychologia abstrata, analytica. Willian James
como professor Minster Lerz diz: “a attitude do educador em relação a criança
deve ser viva e concreta”.
Eis porque nada seria a Pedagogia sem principalmente a Psychologia e a Hygiene.
(Sciencias basicas e auxiliares da Pedagogia. MARIA LACERDA DE MOURA.
A Plebe, São Paulo, 17 de maio de 1924, anno VI, número 236, grifos nossos).
Nesse sentido, Maria Lacerda colocava no primeiro número de sua revista
“Renascença” de 1923, amplamente divulgada entre os operários (noticiada em “A Plebe”
durante os anos 20 com grande freqüência), que era essencial “educar a mulher para o útil e
não para o ócio” (MARIA LACERDA DE MOURA. Revista Renascença, São Paulo,
fevereiro de 1923, anno1, número 1), para que assim ela pudesse se emancipar.
4.4.3 As mulheres anarquistas e o teatro operário
El arte es la afirmación de la vida contra la muerte de las formas, de los clichés, del
orden. Y el poeta es agente de la destrucción de la sociedad. (READ, apud:
RESZLER, 1974, p. 18 e 19).
Como dissemos anteriormente, muitos anarquistas acreditavam que as artes poderiam
ser meios eficazes de propagação de suas idéias, no entanto, a arte livre de pressões históricas
e estéticas, ou seja, sem limites seria a forma de arte capaz de levar a tal. O artista, nessa
concepção, deveria estar comprometido com o social e sua transformação, sem colocar-se de
maneira privilegiada ou como profissional mesmo na sociedade capitalista
96
. Nesse sentido,
os libertários sempre privilegiaram o conteúdo, a mensagem a ser passada àqueles que
assistiam e participavam de determinada expressão artística, e não a estética na arte, assim a
experiência e o alcance final era mais importante do que a própria obra. Essa concepção
esteve presente no teatro libertário (no Brasil, feito por operários). Em primeiro lugar esse
teatro era composto por indivíduos, que, na maioria das vezes, não eram profissionais, com
múltiplos “dons” (habilidade com pinturas e montagens de cenários geralmente
improvisados -, luzes, figurinos, sonoplastia, costuras e atuação) e que se reuniam livremente
e pelo puro gosto pelo espetáculo e/ou compromisso com a propaganda, com a mensagem que
se queria levar a um maior número de pessoas e, em segundo lugar, propunha o abandono da
passividade, o que levava a intervenção do público no ato criador e na representação final.
Dessa forma os princípios anárquicos da livre associação e organização, assim como da
espontaneidade e a negação das hierarquias (como de atores profissionais e amadores) e
96
Para os libertários essa era a concepção de arte ainda na sociedade capitalista, porém na sociedade anarquista
ela seria um pouco diferente. Todo homem seria naturalmente um artista, porém as pressões e desigualdades da
sociedade capitalista fariam com que o potencial artístico não pudesse se manifestar. Em uma sociedade
completamente livre esse potencial poderia manifestar-se livremente e, concomitantemente a outros trabalhos
manuais e intelectuais, segundo a necessidade de cada indivíduo expressar-se, assim a arte assumiria, em sua
totalidade, a liberdade e o artista estaria em todos os indivíduos e não em poucos privilegiados.
autoritarismos, estavam presentes também no teatro, que, aliás, para eles seria sempre obra da
coletividade humana (uma ação coletiva), de grupos de homens unidos livremente em torno
de uma atividade artística.
Habrá siempre individuos que sentirán la inquietud de hacer piezas teatrales, otros la
de interpretarlas y tales individuos se buscarán y associarán sus aptitudes. Qué
tendria de malo que aquellos que tienen el gusto del espectáculo veinieran; cada uno
según la posibilidad de sus apititudes; a aportar el concurso de su ayuda para la
decoración, la puesta en escena, la confección de vestuario o cualquiera outra ayuda
accesoria? (JEAN GRAVE, apud: RESZLER, 1974, p. 67, grifos nossos).
Segundo Francisco Foot Hardman (2002) essas concepções de artes cênicas
encontradas em anarquistas europeus, desde Proudhon, passando pelas idéias sobre artes de
Bakunin, Kropotkin e Malatesta, que apresentamos em capítulos anteriores, estariam
intimamente ligadas ao surgimento e desenvolvimento de um teatro libertário no Brasil, que
ganhou força no começo do século XX em São Paulo, principalmente. Proudhon, um dos
primeiros anarquistas a tratar desse tema, defendia a idéia de arte em situação”, ou seja, “um
ritual da experiência coletiva vivida” (HARDMAN, 2002, p. 101), que fundamentaria o
espetáculo teatral como um todo e Jean Grave, partindo dessa mesma idéia, afirmava que o
teatro era uma forma de arte do povo, pelo povo e para o povo, e deveria ser baseado na
superação das diferenças entre artistas, obra e público, que tudo estaria envolvido nessa
experiência coletiva, o espectador, por exemplo, quando envolvido na execução de uma obra
teatral teria um “gozo intelectual” (GRAVE, apud: HARDMAN, 2002, p. 101) muito maior
do que se estivesse em uma posição passiva. Essas idéias foram muito presentes no teatro
operário paulistano, que utilizou tal concepção para construir o teatro como meio para a
propagação de ideais libertários e, por conseguinte, se chegar à revolução social anárquica.
Observamos tal presença em Gigi Damiani - anarquista que atuou em São Paulo (do qual
falamos no capítulo 2 do presente trabalho) - construía e pintava cenários para o teatro
libertário paulistano e escrevia peças libertárias amplamente representadas por aqui - como
Osteria Della Vittoria -, assim como em Neno Vasco (anarquista cujas idéias e atuações
conhecemos também no capítulo 2 desse trabalho), que escreveu “Pecado de Simonia” e
“Greve dos Inquilinos”, representadas durante aproximadamente quarenta anos no teatro
operário. O trabalho teatral dos dois privilegiava as idéias anarquistas e não somente a estética
e estavam carregados de crítica social, segundo o pressuposto de “arte do povo, pelo povo,
para o povo”. Para os anarquistas a arte era uma experiência coletiva.
[Com a expansão urbano-industrial] Aparecia o teatro [em São Paulo, com outras
formas culturais e artísticas], triplamente credenciado: como informante das novas
maneiras de ser e de viver européias, como elemento de “cultura” propiciadora de
“status” e, mais do que tudo talvez, como pretexto para uma vida social que se
pretendia elegante e mesmo luxuosa. [...] Os “filodrammattici” representavam sua
parte, ainda marginalizados em relação ao grupo dominante, mas de presença social
e cultural bastante definida, fornecendo um cabedal valioso que se iria
progressivamente inserindo no substrato paulista, a ponto de conferir-lhe mais tarde
sua figura peculiar. (SILVEIRA, 1976, p. 108).
Podemos dizer que as origens (ou melhor dizendo, as influências básicas) do teatro
libertário em São Paulo estão nos “filodrammattici” (filodramáticos)
97
, que eram sociedades
organizadas por artistas amadores, vindos da Itália para temporadas de representações em São
Paulo ou formados nessa cidade (desde os fins do século XIX)
98
, com objetivos teatrais e
voltadas para os imigrantes italianos. Suas platéias eram compostas por trabalhadores, o que
dava a essa atividade teatral um caráter de convivência social e estímulo à solidariedade entre
trabalhadores imigrantes. Ambos (filodrammattici e teatro libertário), com suas semelhanças e
diferenças, revelavam a cultura operária produzida aqui durante a Primeira República, que
representavam os anseios, símbolos e códigos dessa classe e se colocava em oposição à
cultura burguesa da época sempre afrancesada e de criações de status e padrões sociais.
O repertório que os elencos italianos trouxeram nesse fim de século [XIX] e
princípios do atual [XX], numa visão sumarizada poderia definir-se como ainda
romântico, mas já acrescido das novidades realistas e naturalísticas. [...] No drama, a
verdade é que o naturalismo e o verismo acrescentavam novos dados apenas à
forma, porquanto a tendência romântica para o grandiloqüente, os sentimentos
desmedidos, os acontecimentos insólitos, o ímpeto libertário e de idéias morais
persistia como rescaldo. (SILVEIRA, 1976, p. 32, grifos nossos).
A organização de grupos filodramáticos se dava de maneira livre e espontânea, sem
hierarquias: os artistas com mais experiência teatral orientavam aqueles que tinham vontade
de atuarem. Sem dúvida alguma essa idéia era vista pelos anarquistas “com bons olhos”,
assim como o eram os conteúdos e as tendências seguidas (romantismo, realismo e
naturalismo), que eles defendiam uma arte livre e comprometida. E as peças representadas
não eram apenas vistas, mas também discutidas e analisadas por aqueles que as assistiam.
Foram inúmeras as peças de cunho libertário representadas por grupos filodramáticos
italianos aqui em São Paulo. “A Casa de Bonecas” (ou “Casa di Bambole”, em italiano, como
foi representada por aqui) de Ibsen (1879), por exemplo, foi representada pela primeira vez
por aqui entre 7 e 30 de setembro de 1899, no Teatro Politeama e seria representada durante
toda a Primeira República por esses grupos e por grupos libertários justamente por conter uma
temática que estava muito presente nas discussões anarquistas e feministas da época: o
97
Sem deixar de colocar que eles conviveram como atividades teatrais diversas. Os filodrammattici podiam ser
libertários ou não.
98
Os primeiros espetáculos dos “filodrammattici” em São Paulo foram representados em 1895. Segundo Miroel
Silveira (1976) eles “faziam os emigrados sentir-se novamente em casa pela “italianitá”, e fora ela pelo sonho
artístico que poderosamente semeavam” (SILVEIRA, 1976, p. 37).
casamento burguês e a opressão da mulher através dele
99
. Essa representação de 1899 foi feita
pelo grupo “Compagnia Drammatica Italiana Clara Della Guardia” sob a “direção” (seria
melhor dizer orientação) de Andrea Maggi (primeiro ator e diretor artístico) e com atuação e
participação de mulheres como Laura Vestri, Amália Bassi, Elisa Berti, Clemenza Cristofari,
Eugenia Rizzoto, Maria Fingh, Ernestina Vaschetti; Elma Cannonnier, Giulia Bonfiglioli e
Clara Della Guradia, que foi muito conhecida em São Paulo por seu talento e carisma. Um
dos últimos diálogos dessa peça (entre a personagem principal, Nora, e seu marido Helmer)
leva-nos a compreender o conteúdo do que era representado pelos grupos filodramáticos, onde
a preocupação com o conteúdo e com a mensagem (no caso a libertação da mulher de uma
instituição que a oprime - o casamento sob sanção da Igreja e do Estado) a ser passada a quem
assiste era privilegiada com relação à estética da obra, assim como pensavam os libertários.
Helmer: Abandonar o seu lar, seu marido, seus filhos! Você não pensa no que dirão
as pessoas?
Nora: Não posso pensar nisso. Sei unicamente que para mim isso é indispensável.
Helmer: Ah! É revoltante! Voseria capaz de negar a tal ponto seus deveres mais
sagrados?
Nora: E quais são meus deveres mais sagrados, no seu parecer?
Helmer: E sou eu quem precisa dizer isso? Não serão os que você tem para com seu
marido e seus filhos?
Nora: Tenho outros tão sagrados como esses.
Helmer: Não tem. Quais poderiam ser?
Nora: Meus deveres para comigo mesma.
Helmer: Antes de mais nada, você é esposa e mãe.
Nora: Já não creio nisso. Creio que antes de mais nada sou um ser humano, tanto
quanto você... ou pelo menos, devo tentar vir a -lo. Sei que a maioria lhe dará
razão, Torvald, e que essas idéias também estão impressas nos livros. Eu porém já
não posso pensar pelo que diz a maioria nem pelo que se imprime nos livros. Preciso
refletir sobre as coisas por mim mesma e tentar compreendê-las. (IBSEN, 2007, p.
98, grifos nossos).
Os filodrammattici se diferenciam do teatro libertário no sentido em que o primeiro
ressaltava um sentimento nacionalista a italianitá através de peças que ressaltavam
personagens como Garibaldi e Mazzini e que exaltavam a unificação italiana e o
Risorgimento. Porém, além do que dissemos acima, se aproximava do teatro libertário ao
promover uma convivência livre entre trabalhadores imigrantes e um lazer criativo, educativo
e crítico para o grande contingente populacional urbano da época, formado, em grande parte,
por italianos. Nesse sentido, vale lembrar que surgiram em São Paulo muitos grupos
99
Em linhas gerais, “A Casa de Bonecas” (2007) passa-se no ambiente familiar de Nora, personagem principal
da história, que é casada com um banqueiro e tem filhos com ele. A vida de Nora gira em torno do cuidado do
lar, dos filhos e do marido e da preocupação com a aparência e as aparições em eventos da “alta sociedade”
(bailes a fantasia, por exemplo), até que ela cai em um jogo de chantagem ao ser cobrada por uma dívida que
contraiu para ajudar o marido a curar-se de uma doença em anos anteriores. Nora, ao ser descoberta pelo marido,
revolta-se contra a sua intolerância e contra seu próprio casamento, rompendo definitivamente com o papel a que
estava submetida (da mulher rainha do lar), afirmando que devia abandonar marido e filhos para buscar a si
mesma como indivíduo, instruindo-se, trabalhando, enfim... vivendo sua própria vida de maneira autônoma.
filodramáticos libertários, que uniam as duas tendências teatrais e eram destinados à platéia
anarquista italiana.
Uma das mulheres mais atuantes no teatro filodramático foi Itália Fausta. Faustina
Polloni, nome com que foi registrada, nasceu provavelmente em 1889, porém não há certeza
nem com relação a essa data, nem com relação ao local: se em São Paulo ou Verona (Itália).
Foi tecelã e chegou a chefiar uma seção de tecelagem, mas, assim que expandiu suas
atividades como atriz passou a dedicar sua vida somente ao teatro, passando de amadora a
atriz profissional, atuando pela Companhia Dramática Nacional. Como atriz amadora atuou,
desde criança
100
, nos grupos filodramáticos em peças de cunho libertário (como “Pedra que
Rola”
101
e “Quem os Salva” de José Oiticica), anti-burguês e anti-clerical. Seu pai, Alexandre
Polloni, comprou um salão chamado Excelsior em São Paulo, que renomeou como “Salão
Itália Fausta”, esse salão era alugado para inúmeras festas operárias por associações
anarquistas ou mesmo pelos jornais, com o intuito de propagar idéias libertárias. Inúmeras
peças do teatro anarquista foram representadas. O autor Miroel Silveira (1976), citado
anteriormente, chegou a entrevistar Itália Fausta no fim de sua vida. A ele essa artista
libertária afirmou que dedicou toda a sua vida e seu mais profundo amor ao teatro após -lo
experimentado pala primeira vez.
[...] Depois de provar o palco nunca trabalhou em outra coisa que não fosse teatro,
nunca dedicou ao amor mais do que o mínimo indispensável que lhe era pedido,
nem mesmo se deixou limitar pelas exigências da vida familiar ou pelos
preconceitos de seu tempo, que cercavam a mulher-artista de tabus e rótulos
desvalorizadores. (SILVEIRA, 1976, p. 70).
Não, não estou arrependida, porque o teatro é ainda a única coisa que consegue me
absorver e interessar completamente. Eu me movimento é pelo teatro ou pela
causa do teatro; tudo o mais me é indiferente... Olhando para o passado, vejo que
nunca amei ninguém. o teatro, que me deu muitos dissabores mas não me fez
nenhuma traição. Amar a arte é uma garantia, porque é amar acima das
contingências da vida. (ITÁLIA FAUSTA. Correio do Povo, Porto Alegre, 1949,
apud: SILVEIRA, 1976, p. 75).
O filodrammattici, portanto, foi uma atividade teatral, cujas representações se davam
somente em língua italiana e eram voltados para um único grupo étnico-social os imigrantes
italianos, a coletividade italiana. Sua atividade podia ou não ser de cunho libertário (existiram
em São Paulo inúmeros grupos filodramáticos libertários
102
como veremos mais adiante), no
100
Segundo Miroel Silveira (1976) Itália Fausta fez sua primeira aparição como atriz em 1898, portanto com
nove anos de idade e atuou somente nos filodrammattici até 1906, quando estreou como atriz profissional no
Teatro Verdi, em Piracicaba no papel de Mariana de “Amor de Perdição”, romance de Camilo Castelo Branco.
101
“Pedra que Rola”, assim como “Quem os Salva”, de José Oiticica foram representadas em São Paulo
inúmeras vezes durante o ano de 1921, pelo menos.
102
Como o Núcleo Scolastico Filodrammatico Libertário, o Grupo Filodramático Social, o Germinal,
Pensamento e Ação, Os libertários.
entanto, seus objetivos se aproximavam imensamente do teatro anarquista organizado nessa
cidade: primeiramente pelo comprometimento com o conteúdo e mensagens das peças a
serem representadas (seja com temáticas libertárias, emancipação da mulher, seja com
temáticas de exaltação da “italianità”, através da abordagem do patriotismo italiano, do
“risorgimento”, unificação italiana e suas figuras emblemáticas como Garibaldi e Mazzini),
mas principalmente por ter como objetivo propagar idéias através da elevação do acesso à
cultura e ao lazer educativo para operários imigrantes na “nova cidade”; por promover a
solidariedade, o apoio e o socorro mútuo entre imigrantes (no caso, italianos); por ter
preocupação com a crítica à organização social capitalista em seus textos; por ter um
conteúdo político-ideológico; e, acima de tudo, por pregar que a arte deveria ser do “povo,
pelo povo e para o povo”, ou seja, que deveria ser feita por trabalhadores livremente e
espontaneamente organizados para a promoção da fraternidade, da recreação sadia, do
convívio social, da instrução e educação. Segundo os estudiosos do teatro brasileiro Sábato
Magaldi e Maria Thereza Vargas (2001) os filodrammattici portavam principalmente idéias
anarquistas e grande parte dos grupos era composto por libertários italianos.
O teatro anarquista (operário ou social, como também era chamado) nasceu em São
Paulo, segundo o historiador e militante do anarquismo brasileiro Edgard Rodrigues (1992),
em fins do século XIX e cresceu no mesmo ritmo que o movimento anarquista (ritmo esse,
intenso até 1930), sofrendo, assim como ele, com as perseguições da polícia e do governo
durante a Primeira República.
Começou humildemente entre amigos e companheiros de idéias, em forma de teatro
repentista, enfocando episódios, retratando a exploração do homem pelo homem.
Formava cenas com patrão e empregado; ateu e religioso; camponeses e fazendeiros;
política e anarquismo; ensino estatal e livre; governo e povo; o poder da greve como
método de luta e de solidariedade; o militarismo e o soldado, frente a frente, em
diálogos candentes, debates de persuasão ideológica. (RODRIGUES, 1992, p. 107).
Seu primeiro objetivo era, sem dúvida, divulgar (propagar) as idéias anarquistas,
propondo assim o combate aos poderosos e ao Estado juntos, responsáveis pelas
desigualdades e pela exploração, ou seja, o teatro era visto, por muitos libertários e libertárias
em São Paulo, como um meio capaz de levar à revolução social de forma pacífica. No
entanto, assim como os filodrammattici, visavam desenvolver o diálogo, o debate e descobrir
capacidades e talentos dos próprios operários; promover a livre convivência e a
confraternização da “grande família operária”; proporcionar o lazer instrutivo, educativo e
comprometido; educar e reeducar; criticar a sociedade capitalista; preparar os indivíduos
moralmente para a sociedade anarquista futura, cujas visões futuras (que expressavam
aspirações coletivas) eram representadas em suas peças teatrais; e, promover a solidariedade
humana através do teatro - ato coletivo -, aliás, nesse sentido, as representações de peças
teatrais eram utilizadas, em São Paulo, como meio para arrecadação de recursos financeiros
para companheiros deportados, presos, desempregados, doentes ou mesmo para que se
pudesse mandar dinheiro para algum movimento revolucionário, como a Revolução Russa de
1917, ou para a publicação de jornais - solidariedade local, nacional e internacional.
Por um lado a arte é um veículo certo para projetar a imagem de uma sociedade
ideal, cuja característica básica é a harmonia coletiva subsistindo através da absoluta
liberdade individual. Por outro lado, os princípios filosóficos do anarquismo pensam
a arte como uma função natural, comum a todos os indivíduos e vinculada à
necessidade expressiva. Está intimamente ligada ao cotidiano e, portanto, a prática
política necessária para a transformação social. É ao mesmo tempo um instrumento
de crítica e de projeção. (VARGAS, 1980, p. 19 e 20, grifos nossos).
As representações desse tipo de teatro social eram feitas por grupos de amadores, que,
utilizavam-se de passagens do cotidiano operário para passar sua mensagem, que a partir do
surgimento desse teatro também passava a se dar em língua espanhola e portuguesa,
abrangendo mais imigrantes do que os filodrammattici. Havia muito improviso a começar
pelos espaços de representação: não havia um espaço onde funcionasse o teatro operário, mas
sim salões alugados ou pertencentes às associações ou sindicatos livres onde eram encenadas
as peças, geralmente em dias de festas operárias, alguns desses salões possuíam telões e
móveis, que eram utilizados nos cenários. As caracterizações e figurinos eram confeccionados
pelos próprios operários, interessados pelo teatro, geralmente eram reaproveitados em mais de
uma peça, visto que havia uma representação generalizada de figuras como a do patrão, a do
operário, a do policial, afinal de contas, a mensagem do texto (cuja base estava no conflito
entre opressores e oprimidos) era muito mais importante do que a imagem dos personagens ou
a estética da peça. Aliás, os atores pertenciam aos mais variados ofícios (gráficos, costureiras,
tecelãs, sapateiros, etc), assim como se dava com aqueles que ficavam responsáveis pelos
figurinos, som e cenários; eles uniam-se, segundo os preceitos anarquistas sobre a arte: gosto
puro pelo espetáculo e comprometimento político-ideológico, que todo homem era um
artista e poderia sentir vontade de expressar-se artisticamente em algum momento. As
associações de classes podiam ter seus próprios grupos teatrais, ou mesmo ceder o seu espaço
para os ensaios, que ocorriam geralmente depois do trabalho dos operários que faziam parte
dos grupos teatrais, mas isso não quer dizer que os grupos ficavam presos a tais associações e
também que não havia grupos independentes delas, a partir de 1908, por exemplo, formaram-
se grupos fora delas, cujo principal objetivo era a propaganda libertária. O espetáculo final,
que tratava de temas cotidianos, era apresentado nessas próprias associações ou em festas
organizadas por elas, que geralmente começavam às vinte horas de sábado e iam até às quatro
ou cinco horas do domingo. O público era ativo em todos os espetáculos, segundo Maria
Thereza Vargas (1980), que estudou profundamente o teatro libertário em São Paulo, nada
indica que havia um silêncio respeitoso à manifestação artística, pelo contrário, o público
estabelecia diálogo sonoro com o espetáculo, ou seja, a peça era “permeável às reações da
platéia” (VARGAS, 1980, p. 37), inclusive, a idéia era incitar o público a tomar partido de
uma situação. Assim, não havia um “gênio criador do espetáculo” (SOUZA, 2003, p. 24), um
artista privilegiado, mas sim uma obra coletiva dos trabalhadores (grupos teatrais e platéias),
que tinham dentro de si um artista. Vale lembrar também que não havia, nesse tipo de teatro
uma hierarquia entre diretor e atores, assim como não havia uma evolução individualizada,
que atores protagonistas em uma peça, atuavam em papéis secundários em outras.
[...] O raciocinador [conflito social] é menos um argumentador maçante do que um
arrebatado polemista que inflama o público pela eloqüência. Na peça os
significantes do discurso libertário são suporte de um novo imaginário, base de uma
linguagem subjetiva de uma encenação. (CHALMERS, 1992, p. 107, grifos nossos).
A participação das mulheres anarquistas foi enorme no teatro operário de São Paulo.
Aliás, nesse sentido, podemos dizer que ele foi uma arma eficaz em suas mãos visto que
muitas das peças representadas tinham “temáticas femininas”: tratavam do casamento burguês
e promoviam uma crítica a tal, como sendo uma instituição responsável pela opressão da
mulher; exaltavam o amor livre e sua importância para a construção de uma sociedade livre,
solidária e igualitária; e, defendiam a maternidade livre e consciente. Segundo Maria Thereza
Vargas (1980) e Antonio Dimas de Souza (2003) essa participação tornava-se mais evidente a
partir de 1909, juntamente com a participação das crianças. Ainda segundo eles, a parte
doutrinária da festa operária era quase que inteiramente executada por mulheres e crianças,
como ocorreu com a festa pró-Escola Moderna em 1909, onde havia somente um homem
como conferencista e, mesmo assim, tratando do tema “A mulher e o livre pensamento”.
Porém isso não quer dizer que essa atuação e essas temáticas não estivessem presentes em
anos anteriores a 1909. Em 1901, por exemplo, “A Lanterna” (São Paulo, 21 de janeiro de
1901), noticiava a representação de “Electra” de Párez Gladós, que tinha caráter anti-clerical,
mas que tratava sutilmente da emancipação da mulher e continha mulheres no elenco. Apesar
de ser uma companhia profissional que a representou foi assistida por operários.
Essas representações lideradas por mulheres e crianças concentram-se em trabalhos
artísticos e de propaganda relacionados a pedagogia ou com a situação da mulher na
sociedade. Tornam-se constantes de 1910 até 1918, promovendo e sustentando duas
Escolas Modernas que se instalam na cidade. (VARGAS, 1980, p. 38, grifos
nossos).
Podemos citar inúmeras peças com essas temáticas femininas citadas acima, mesmo
que escrita por homens, e que contavam com a atuação de mulheres. Neno Vasco, em
“Pecado de Simonia”, cuja primeira representação se deu em 1912, mas que foi amplamente
representada nas festas operárias durante toda a Primeira República na cidade de São Paulo e
em outras partes do Brasil, falava sobre o direito ao amor sem casamento e sobre a família
sem hierarquias e autoritarismos. A heroína da história era uma moça, que explicava para a
mãe as bases de seu relacionamento, rompendo com o autoritarismo familiar representado
pela figura dos pais.
Rosa (mãe): Ah! Pensas que já não tenho mãos para te sovar como d’antes?
Eva (revoltada): Mamã! Não quero que levante a mão para mim! (a mãe fica um
tanto surpresa. Eva continua com voz ainda firme, mas molhada de lágrimas): -
Mamã! Eu exumo-a muito. Tenho-lhe respeito... amor... Sempre procurei dar-lhe
alegria... Desde que o Antônio, coitado, fez-se soldado, e anda não sei onde, sem
escrever... sem querer saber da família... da mãe... sou eu que tenho trabalhado
constantemente... para que nada falte nessa casa. Porque a mamã, coitada, pouco...
Rosa: Fizeste a tua obrigação.
Eva: Fiz assim porque quis... porque tenho amor, mamã... Ninguém me obrigou... E
quero continuar... Mas o que eu não quero é que me trate como uma escrava... que
chegue ao ponto de me bater... Não quero, não quero.
Rosa: Mas eu sou tua mãe!
Eva: E eu sou tua filha! (pausa) Veja se pode convencer-me de que estou mal
encaminhada, de que eu não tenho razão. Não sou teimosa. Nunca o fui. (Pausa. A
mãe olha-a admirada. Mais meiga.) Mamãe pense bem: por que foi toda esta questão
entre nós? Pense bem: eu tenho razão! (Pecado de Simonia. NENO VASCO, apud:
VARGAS, 1980, p. 68 e 69, grifos nossos).
O drama social “Avatar”, escrito pelo anarquista rio-grandense Marcelo Gama (1878
1915), nesse mesmo sentido, tratava do amor livre e também contava com a atuação de
mulheres. A personagem central era uma moça (Luzia) que mantinha um relacionamento livre
com um cabo (Marcos), que trabalhava na polícia para sustentar o filho que tinham, porém,
ele tinha problemas com o capitão da polícia e acabara por matá-lo em sinal de revolta,
passando a questionar seu próprio trabalho, o de soldado. Marcos, então, foi condenado, mas
para não ser preso matou o filho (afirmando livrá-lo do fardo de viver) e se matou. O final
infeliz da peça servia para provocar na platéia uma reação a um fato do seu cotidiano, para
estimular a luta pela libertação através da revolução social anarquista.
Querendo decifrar a trajetória agônica do casal, diz uma das personagens:
Tia Rosa: É porque deste à luz numa noite aziaga.
Demais, não és casada.
Luzia: E que tem isso?
Não sou mãe e de mãe não tenho coração?
Tia Rosa: É que não... sei que não és uma mulher à-toa, mas bem deves saber que
Deus não abençoa um filho que nasceu assim... sem casamento.
Luzia: Não creio... Pode ser maldito o nascimento deste ser que brotou do
verdadeiro amor?
Deus por que não maldiz então o fruto, a flor, que dos beijos que o sol no seio da
terra nascem, para mamar na seiva que ela encerra? Deus por que não maldiz então o
passarinho que ao ar livre nasceu na quentura do ninho de um par que se casou no
altar da natureza?
Deus, se está em todos nós, bem conhece a pureza deste amor que nos prende,
perto de seis anos, para a Miséria, a Dor, a Fome, os Desenganos! Somos casados,
sim... Casou-nos a Desgraça!
[Chega Marcos, o companheiro de Luzia, e conta seu desentendimento com o
capitão]:
Marcos: Afinal, resolvi
Falar ao capitão da quarta companhia.
Lá fui, à casa dele. Entrei, ele escrevia,
Mas em tudo o que eu faço o diabo se atravessa! Vê o que é não ter sortes
Ao vestir-me, com pressa
Abotoei errada a blusa... assim... assim...
Quando eu ia falar, ele olhou para mim, apontou para a blusa e disse com desprezo:
“Endireite-se, cabo, e recolha-se preso”. Endireitei então a blusa e humildemente
quis lhe falar de novo. Ele, mais fortemente:
“Recolha-se, disse!” Eu preso! que horror! Dominou-me de todo a minha
grande dor. O miserável via apenas o botão:
Não me podia ver cá dentro o coração.
Estava sobre a mesa um pequeno punhal.
Matei, porque me impôs a isso o coração.
Pois se matar foi sempre a minha profissão!
Quantas vidas roubei, desde que sou soldado?
Inúmeras, sem conta, e era recompensado!
Pelas mortes que fiz no furor das batalhas,
Enchiam-me de orgulho e davam-me medalhas!
Pela primeira vez mato por precisar,
E sou um criminoso e me vão fuzilar!
Então que tenho eu sido em minha vida inteira? Um instrumento vil?! Eu, por uma
bandeira, ou vaidade, ou capricho às vezes de um mais forte, espalhei sempre o mal,
ao serviço da morte! E por um filho amado, o meu único bem, não podia dispor da
vida de ninguém?!
Já não quero viver, Luzia, eu te confesso;
A morte é para mim a suprema cobiça.
Só conheci na vida uma inteira justiça.
A justiça do sol, para todos igual.
Já não quero viver, viver é o maior mal!
Quero mesmo morrer, mas antes de morrer libertarei da vida esse pequeno ser.
Resta-me esse poder: posso ao mundo poupá-lo.
Luzia: Marcos! Meu Deus! Que vais fazer?
Marcos (junto ao berço): Salvá-lo! (Avatar. MARCELO GAMA, apud: VARGAS,
1980, p. 65 a 67, grifos nossos).
“Bandeira Proletária”, de Marino Spagnolo, encenada pelo Grupo Teatro Social em
São Paulo pela primeira vez em 28 de outubro de 1922 no Salão das Classes Laboriosas
103
,
tratava-se de um drama em três atos que abordava temas como a exploração sexual da mulher,
a hipocrisia burguesa - observada através do casamento monogâmico -, o controle de
natalidade, as vilanias do clero e levantava os problemas do alcoolismo. Ao que tudo indica
essa peça foi encenada por diversas vezes durante, pelo menos, a década de 20 do século XX;
nela, as mulheres atuaram e comentaram seu valor para a propaganda capaz de levar à
emancipação humana. Maria Lacerda de Moura, por exemplo, escreveu o prefácio para a peça
impressa. Nesse texto, essa libertária ressaltava a concepção de arte anarquista (onde a
preocupação com o conteúdo é maior do que a preocupação estética); destacava a importância
103
A Plebe de 4 de novembro de 1922 comentava a estréia de “Bandeira Proletária” com entusiasmo.
da propaganda, e não do autoritarismo, para os libertários; colocava a importância da peça
para a causa da emancipação feminina, da maternidade livre e consciente, do amor livre. Cabe
colocar ainda que a concepção das mulheres anarquistas de que homens e mulheres não estão
em posições opostas está presente no texto de Maria Lacerda. Para ela, assim como o era para
Emma Goldman e Voltairine de Cleyre, a sociedade burguesa, respaldada pelo Estado, foi
quem colocou as diferenças “naturais” entre homens e mulheres de forma que a mulher fosse
inferiorizada e explorada, no lar, na indústria, enfim... na sociedade.
Não entro na técnica da peça de teatro. Não me detenho a examinar uma página de
literatura. Não há a menor preocupação desse gênero no sentimento do trabalhador
manual que antes dos adornos para embelezar a vida quer esverrumar todas as
chagas sociais, escalpelar a dor, abarcar todo o problema humano, se fora possível,
numa palavra mágica, a fim de preparar depressa o advento da redenção do homem
pelo homem. A arte desses párias é a tortura vivida, triturada com o pão de cada dia.
Não tem interesse em agradar: busca uma solução. A ntese dessa idéia global está
no pensamento contido na peça de teatro de Marino Spagnolo: “Triste é saber a
causa de todos os males e não poder suprimi-la”. Os idealistas proletários m a
generosa ingenuidade de supor que a revolução social resolverá de um golpe, com a
violenta derrocada, os problemas humanos.
Não contam nem mesmo com o despotismo animal, com a autoridade instintiva
dentro da natureza humana. “Conhecer-se”, “realizar-se” não satisfazem à exigência
da sua pressa em tornar a terra num paraíso. E preterem oferecer-se em holocausto,
mártires sacrificados ao triunfo da nobre idéia para alimentar o fogo sagrado no
coração dos companheiros mais jovens. Dir-se-ia que querem sentir para não
pensar... Condenando o álcool, Marino Spagnolo o explica para quem é miserável,
mostrando até onde pode ir o crime da sociedade industrial. Todas as teses do
problema social estão contidas nesta peça de teatro. Tudo passa, de repente, numa
pincelada forte, simples, enérgica, ingênua como a vida dos párias idealistas, desta
civilização de parasitas que governam e acumulam. E escravos que trabalham
espionam os outros escravos e têm fome e são também desgraçados. “Bandeira
Proletária”, em síntese, é o problema do amor, da maternidade livre e consciente, é a
liberdade de amar; é finalmente a emancipação feminina; é o problema do troglodita
feroz que “mata por amor”; é o problema angustioso do caftismo, exercido
também pela mulher do povo, acionada pelo instinto de fêmea e pela perversidade
da ignorância cultivada, pelos séculos dos séculos através do catolicismo romano e
das superstições e prejuízos milenares da veracidade e de cúpidos; é o problema da
prostituição, é o dinheiro miserável que compra e vende tudo inclusive o amor, o
pensamento e a consciência; é o alcoolismo, é o jogo; é a perseguição sistemática e
interminável, digo internacional, aos militantes da revolução social; é finalmente, a
bandeira vermelha ensangüentada no martirológico dantesco dos párias; é o direito
de greve, é a luta sem tréguas pelo pão de cada dia e pelo advento da revolução
social.
É triste, é humano, é quase sobre-humano. O final do segundo ato diz bem dessa
tragédia sem quartel quando Paulo acaba de saber que a sua adorada companheira
deixou-se seduzir pela prostituição, resvalando nos braços do industrial que a
persegue e isso enquanto ele esteve preso durante seis meses. Atordoado,
desgraçado revoltado, de um salto incita os companheiros à luta com o entusiasmo
de quem renasce nessa hora.
Não sei da técnica teatral, mas sei que a alma dos párias do sonho da redenção social
tem reagido assim, em todos os séculos, diante de todas as tiranias.
E um prodígio de energia latente.
Marino Spagnolo focaliza “dever masculino de ajudar a mulher a se erguer de sua
ignorância, do servilismo, das futilidades e adornos que ela julga necessários para
preencher a sua vida e fazer a sua felicidade e são as causas de todas as tragédias
portanto é o que impede de se libertar para sempre da escravidão do sexo”.
está o máximo problema. Daí surgem os matadores de mulheres. E o sacrifício
inaudito de milhões de seres humanos. Nos noticiários policiais das gazetas é o
escravo, é o proletário o boi de tiro que sacrifica estupidamente a sua companheira,
sob os mais fúteis e absurdos pretextos de honra e dignidade os ídolos vorazes da
sociedade burguesa.
Ninguém mata por amor.
O amor é fonte de vida e sabe compreender, se chegou a ser amor... o que mata é o
ódio, a paixão, a bestialidade, o instinto de propriedade animal, a ferocidade do
troglodita enjaulado na sociedade voraz. A mulher tem sido sempre enganada
miseravelmente. Nos lares pobres, nos lares burgueses, rica ou pobre, culta ou
ignorante, por toda a parte a vida da mulher é o mesmo calvário silencioso e
anônimo que os homens não compreendem porque o egoísmo masculino foi
cultivado pela escravidão feminina e porque a sociedade fez do homem e da mulher
duas raças sociais que não se entendem.
A natureza estabeleceu diferenças profundas entre os dois seres humanos e a
sociedade ou a civilização unissexual aproveitou-se dessa tragédia feminina para
reduzir a mulher à escravidão, a animal doméstico, a presa de um senhor exigente.
Até nos bordéis da alta sociedade a mulher que tem alma vive num calvário, ainda
mesmo que a auréola do prestígio brilhe na moldura das aparências, com o esplendor
feérico da alegria ruidosa e da prosperidade econômica, a ainda mais escrava, a
duplamente escrava.
Não se tenha a ilusão de que a classe burguesa lhe diminui as agruras. Poucos são os
homens livres, poucos são os proletários que conseguiram penetrar esse angustioso
segredo do problema feminino, na tragédia social.
Todos sonham uma acracia para os homens.
Ninguém sabe das angústias desenroladas no coração da mulher de todas as classes
sociais.
E a proletária é ainda a mais sacrificada. Escrava do homem, escrava social e serva
da burguesia...
Marino Spagnolo o sentiu. E o denuncia. Eu lhe sou infinitamente reconhecida, em
nome do meu sexo.
No dia em que o proletariado não matar a sua companheira, considerá-la um ser
igual ao homem, com todos os direitos à liberdade, até mesmo o direito de errar e
reconhecer esse erro que eu chamaria apenas uma experiência; no dia em que o
homem der a mão à mulher, ainda mesmo àquela que parece ter resvalado mais
baixo na prostituição, a mulher, nesse dia, saberá recompensar o seu gesto com
muito amor e dedicação e reconhecimento porque, nesse dia ambos estarão
emancipados. E, então, a humanidade sentirá o arrepio casto da beleza para
subir mais alto e então entoar o hino da redenção humana.
Conheço Marino Spagnolo. Sei que é um bom companheiro, sincero, leal, generoso.
Não escrevo um prefácio para seu drama. Abraço, reconhecida, a um irmão.
Comovida, aperto as mãos de um homem. (MARIA LACERDA DE MOURA, apud:
VARGAS, 1980, p. 75 e 76, grifos nossos).
A peça“ O Semeador”- drama em três atos amplamente representada em São Paulo
durante a Primeira República - de Avelino Fóscolo (1906) também abordava o amor livre e
fazia uma crítica ao casamento burguês. A história girava em torno de um jovem, filho de um
fazendeiro, que transformava a propriedade do pai em uma colônia anarquista, onde
solidariedade e amor livre eram os valores fundamentais e a base do convívio social. Laura,
uma das personagens principais do drama fazia uma crítica à moral burguesa, consolidada no
casamento, que encobria os vícios torpezas dessa classe social.
Laura: Posso me sacrificar, galgar sem protesto, para bem de outrem, o meu
calvário; mas repugna à minha dignidade libertária, mentir, ser hipócrita, tecer esta
trama de embustes [o casamento] em que se embalam os ricos, enganando-se e
iludindo o mundo com uma moral que é simples máscara, por vezes para encobrir o
vício e as torpezas de uma sociedade corrupta. (FÓSCOLO, apud: SOUZA, 2003, p.
42, grifos nossos).
Podemos destacar ainda a atuação no teatro operário de outras mulheres anarquistas
como foi o caso de Maria Antonia Soares, Maria Angelina Soares, Olga Biasi, Maria Garcia,
Carolina Boni, Emília Martins, Helena Santini, Lúcia Santini, as irmãs Aurora e Luiza Nevoa
(cuja participação maior se deu em 1912), Vitoria Guerreiro, E. Camillis, Matilde Cruz,
Esmeralda Barrios, Nena Valverde, Pilar Soares, Matilde Soares, Cândida Alarcón, Mercedes
Neves, Nieves Simón, Margarida Salles, Adelina Santos, Odessa Pavilla, Rosa Corti, Nilsa
Molina, Nilsa Pires, Ebe Madoglio, I. Amato, I. Italy, Angelina Valverde e Maria Valverde
Dias
104
. Nada sabemos a respeito delas além de seus nomes, no entanto, através da imprensa
libertária do período podemos ter indicações sobre sua participação no teatro no que diz
respeito à atuação como atrizes é possível sabermos que papel encenaram e em que peças,
além dos dias e locais em que foram representadas, e, no caso de algumas peças é possível
saber com quantas mulheres contava o elenco, como por exemplo, a peça cômica em um ato
“O Arco-Íris”, representada, em 1905, pelo Grupo Dramático Cervantes, que contava com
cinco mulheres e onze homens no elenco ou a peça “Casamento escandaloso” (representada
pelo grupo 1°de Maio), em que atuou Clara Telles, mas não sabemos em que papel. A seguir
temos exemplos dessas atuações (vale notar neles a atuação das mulheres anarquistas também
como cantoras e nas récitas de poesias):
Apresentação do Nucleo Filodrammatico Libertario, com Elvira Camilli
105
e outros,
ao Cassino Penteado, em 30 de abril de 1903. (O Amigo do Povo, São Paulo, 11 de
abril de 1903, apud: MUNAKA, 1992, p. 17, grifos nossos).
Grupo Dramático Cervantes. Dia 7 do corrente, às 20:30, o drama social em três atos
de José Dicenta “João José”.
Personagens:
Rosa: Henriqueta Jamon
Tonuela: Ángustias Costillas
Isidra: Heloisa Costillas
Mujer 1ª: Rosa Ribas
Mujer 2ª: Maria Ribas
Juan José: André Solé
Paço: Antonio Lopez
Andrés: Martin Solé
Cano: José Solé
Ignácio: José Cannona
Perico: Isidoro Diego
Taverneiro: João Rivera
Cabo de presídio: César Carda
Bebedor 1°: José Orega
Bebedor 2°: José Carola
104
Essa anarquista atuou no teatro operário ligado ao Centro de Cultura Social durante a década de 40 do século
XX. Foi citada aqui por sua importância para o teatro operário e por sua família já ter participado dele em
momentos anteriores da história (durante a Primeira República).
105
Elvira Camilli participou ativamente do Núcleo Filodramático Libertário, atuando em várias outras peças.
Um Moço: José Cotilhas. (O Livre Pensador, São Paulo, 19 de abril de 1905, n°78,
apud: VARGAS, 1980, p. 83 e 84, grifos nossos).
Festa Socialista
Dia 18 de novembro, sábado, no Salão Germânia (Rua D. José de Barros). A festa é
organizada pelo Circolo di Studi Social Francisco Ferrer. A representação fica a
cargo do Corpo Dramatico Simpatizzanti Dell all’Arte, dirigido pelo ator Giuseppe
Turola.
1°Senza Patria P. Gori
Personagens: Giorgio (G. Turola); Tonio (A. Vegani); Annita (M. Sabieri);
Giovanna (A. Fabbri); Arturo (A. Avaloni); O Andrea (I. Genaro); Peppinno (O.
Panighel)
2°Intermezzo
3°Conferenza
4°Farsa in um atto
Personagens: Attilio Belcherubino (E. Faggiano); Cora Henbruck (I. Camilli);
Giovanni (V. Righetto). (La Battaglia, São Paulo, 5 de novembro de 1910, apud:
VARGAS, 1980, p. 97, grifos nossos).
Grande festival artistico e literario
Apresentação do Grupo Dramatico Os Modestos, como Amílcar R. Martins, Tino
Filho e Maria Antonia Soares, ao Salão Celso Garcia, em 11 de setembro de 1920.
Festival em benefício de “A Obra”, com hino, conferência de Florentino de
Carvalho e récitas. (MUNAKA, 1992, p. 89, grifos nossos).
Grande Festival Artístico e Literario
- Organizado pelo Grupo Dramático “Os Modestos”, em benefício de “A Obra”
- Realizar-se hoje à noite, no Salão Celso Garcia.
Programa:
[...]
- “Sob o desmoronar dos milênios” – Poesia de Octavio Brindão, pela Srta.
Virginia Palácios
6° - “Cara Piccina” – cançoneta pela Srta. Ida Meneghetti
7° - “Povo” – poesia pela Srta. Atea Tommasini
[...]
11° - “Os Vampiros” – poesia de Raimundo Reis, pela Srta. Atea Tommasini
[...]
13°- “Mamma mia, che vô sapé?” – pela Srta. Ida Meneghetti
[...]
17° - “Lolita” – serenata acompanhada pela Srta. Ida Meneghetti
[...]
19° - “Rebeldia” de Ricardo Gonçalves pela Srta. Atea
20° - “Sride la Vampa – do Tovatore”, de Verdi, pela Srta. Ida Meneghetti
21° “O Vagabundo episódio de M. Laranjeira. Distribuição:
Vagabundo: Amilcar R. Martins
Operário: Tino Filho
Mãe Maria Antonia Soares.
Nota: não haverá baile. (A Plebe, São Paulo, 11 de setembro de 1921, grifos nossos).
Pró “A Vanguarda”
- Segunda-feira, 17 de janeiro, às 19h45min;
- Grande festa em benefício da publicação do diário do proletariado
1- Exibições de filmes cinematográficos;
2- Guerra à Guerra drama em 3 atos, do companheiro Thomaz Moldero,
Personagens:
Thomaz Carvalho (pescador) Sr. Luiz Tino
Beatriz M. Carvalho (sua esposa) Sra. E. Camillis
Rosa Carvalho (filha deste) Srta. Matilde Cruz
Arthur Carvalho (filho deste) Sr. F. Eiras
Antonio Silva (enjeitado lavrador) Sr. J. Veiga Carvalho.
Um representante do Ministério da Guerra - Sr. C. Casanova. (A Plebe, São Paulo, 6
de janeiro de 1921, grifos nossos).
Muitas mulheres libertárias escreveram textos encenados em São Paulo por grupos
libertários. Vera Starkoff, por exemplo, escreveu “La Via d’Uscita”, representada por diversas
vezes pelo Grupo Filodramatico Libertario (cujo elenco contava com a presença de mulheres),
que tinha sua sede situada na Praça Dr. José Roberto, Ponte Pequena. Sobre essa libertária
nada podemos saber para além de seu nome e do título de sua obra, divulgada pelos jornais
anarquistas; não é possível saber também sobre o conteúdo específico da obra, apenas que era
uma obra libertária. Sabemos que foi representada em uma festa de propaganda libertária no
Salão Alhambra, pelo Grupo Filodramático Libertário, como podemos observar no trecho a
seguir:
Festa Libertária Em beneficio do “La Battaglia”
Dia 31 do corrente, às 20h, no Salão Alhambra. Pelo Grupo Filodramatico
Libertário:
Programa:
La Via d’ Uscita – Vera Starkoff
2° Ribellone O Baldi
3° Triste Carnavale
Baile Familiar. (A Terra Livre, São Paulo, 30 de dezembro de 1905, anno I,
número 1, grifos nossos).
Filomena S. Collado foi outra escritora de um drama amplamente representado em São
Paulo durante a Primeira República “Crimen Jurídico”. Em 13 de junho de 1906 “A Terra
Livre” noticiava:
Festa Dramatica
O Grupo Dramatico “Maximo Gorki” realizará, no sábado, 23 do corrente, às 8
horas da noite, no Salão Alhambra (Galeria de Cristal), uma festa com o seguinte
programa:
Estreia do drama em 3 actos um epílogo original de Filomena S. Collado, intitulado
Crimen Jurídico
A acção passa-se nos Estados de São Paulo e Mato Grosso.
Representação da farça num acto:
El Teniento Cura
Completará a festa um baile familiar. (A Terra Livre, São Paulo, 13 de junho de
1906, anno I, número 10, grifos nossos).
Além da atuação nos grupos de teatro anarquista como atrizes, escritoras de peças ou
mesmo participando da confecção de cenários e figurinos, as mulheres anarquistas investiram
na organização de festas e festivais operários (esses eram promovidos com mais freqüência
principalmente após 1917 e eram grandes festas ao ar livre, com a participação de muitos
trabalhadores) que colocavam a arte teatral no centro das atividades, afirmando-a como um
meio importante e eficaz de propaganda anárquica, além, evidentemente, de ser uma forma de
exercer a solidariedade e a convivência livre saudável
106
entre os proletários. O Centro
Feminino de Jovens Idealistas, por exemplo, organizou inúmeras festas e festivais onde foram
representadas peças como “O Pecado de Simonia”, de Neno Vasco, em fins da década de 10 e
por toda a década de 20 do século XX. No entanto, essas festas e festivais foram palco para a
propaganda das mulheres libertárias através, também, das conferências e discursos; neles
foram ressaltadas a importância da luta cotidiana e das lutas revolucionárias como forma de se
chegar à emancipação total, para as mulheres e homens, colocados como irmãos e
companheiros de luta pela liberdade e pela igualdade.
4.4.4 As mulheres anarquistas e sua atuação como propagandistas em festas e festivais
operários
Procurar o meio de pôr os seres de acordo com o amor e a fraternidade, sem
distinção de sexo, é a grande tarefa da humanidade. (FRANCISCO FERRER, apud:
GALLO, 1993, p. 10).
Em 1902, o jornal “O Amigo do Povo”, editado por Neno Vasco, noticiava uma festa
em comemoração ao primeiro aniversário do Circolo Educativo Libertário Germinal. Essa
festa foi realizada no Teatro Andrea Maggi, em São Paulo, no dia 13 de setembro do mesmo
ano e, como era comum nas festas operárias, contou com a representação de peças teatrais,
recitação de poesias, baile familiar e conferências, que, nessa ocasião foram proferidas por A.
Bandoni e Elisabetta Valentini. Nada podemos saber sobre essa libertária, além de seu nome e
da sua defesa do anarquismo
107
. Geralmente tais conferências tratavam-se de propaganda
anarquista, mas também eram vistas como instrumento instrutivo e educativo e abordavam
questões da atualidade, como a luta pela redução de jornadas, melhores condições de trabalho
e moradia, carestia da vida e emancipação feminina, que aliás, era um tema corrente em
conferências proferidas também por homens anarquistas durante toda a Primeira República
em São Paulo, como por exemplo Ricardo Figueiredo, que, em 1910, proferiu uma
conferência sobre “A mulher e o livre pensamento”; na mesma ocasião Josephina Stefani
Bertachi falou sobre a natureza da sociedade capitalista e as meninas Zuma Calza e Ida
Gennari recitaram poesias, assim como o fez Beatriz Gennari. Tal festa foi organizada pelas
mulheres anarquistas da Sociedade Feminina de Educação Moderna e contava com a presença
de crianças.
106
Havia uma grande preocupação por parte dos anarquistas de promover um lazer saudável e instrutivo,
colocado como oposto ao álcool e ao jogo, condenados pelos anarquistas.
107
Virgínia Palácios, já citada anteriormente como declamadora de poesias, foi outra anarquista que proferia
inúmeras conferências libertárias. Também sobre ela não é possível sabermos nada para além de seu nome e do
conteúdo de suas falas.
Sociedade Feminina de Educação Moderna
Hoje, às 8:00 da noite, no Salão Celso Garcia (Rua do Carmo, 37).
Programa:
1° Incoraggiamento versos de Rocca, pela menina Zuma Calza
2° Vispa Tereza por crianças de doze anos
3° Il Mattino, ricchi e poveri, de O. Parini, recitado pela Sra. Beatriz Gennari
4° Ringraziamente pela menina Ida Gennari
Poucas palavras da Sra. Josephina Stefani Bertachi sobre a natureza e o escopo
dessa sociedade
Conferência em português pelo Sr. Ricardo Figueiredo sobre o tema: A Mulher e
o Livre Pensamento
7° Baile. (A Lanterna, São Paulo, 30 de abril de 1910, número 29, grifos nossos).
No mesmo ano a Sociedade Feminina de Educação Moderna ainda realizou uma festa
com recitação de uma poesia anarquista (“Alla Conquista Dell’Avvenire” de Gori) por outra
mulher, porém, no artigo publicado em “A Lanterna” não o seu nome. Essa festa foi
promovida em benefício da Escola Moderna do Brás. Vale ressaltar que essa festa foi
realizada no Salão Germânia, onde muitas festas foram realizadas no período aqui retratado.
Em outra festa, realizada em 26 de setembro de 1914, no Salão Alhambra (Rua Marechal
Deodoro, 2), a libertária E. Gattai foi que declamou a mesma poesia.
A Sociedade Feminina de Educação Moderna realiza hoje, às 22:30, no Salão
Germânia, uma festa em benefício da sua primeira escola, já instalada no Brás
Programa:
1° Santa Religione
2° Alla Conquista Dell’ Avvenire de Gori, recitado por uma Senhora
3° Quermesse e baile. (A Lanterna, 4 de novembro de 1910, grifos nossos).
Festa de Propaganda
- Salão Alhambra à rua Marechal Deodoro, 2 (Largo da Sé) será realizada no dia
10 de outubro [de 1914] a terceira festa familiar;
- Promoção do Centro Libertário de São Paulo.
Programa:
1 - La República comédia social de Gigi Damiani;
2 “Alla Conquista Dell’ Avvenire”, de Pietro Gori, declamada pela companheira
E. Gattai;
3 Conferencia;
4 Baile Familiar. (A Lanterna, São Paulo, 26 de setembro de 1914, grifos nossos).
Outra conferencista muito aclamada nos meios libertários foi Maria Lacerda de
Moura. Como dissemos no decorrer desse trabalho, essa anarquista acreditava nos meios
pacíficos para se chegar à revolução social e, por isso, apostou na educação libertária e na
propaganda. O jornal “O Internacional”, denominado “orgam dos empregados em hotéis,
restaurantes, confeitarias, bares, cafes e classes annexas” (O Internacional, São Paulo, de
abril de 1924), publicado duas vezes por mês, noticiava inúmeras conferências de Maria
Lacerda de Moura, sempre elogiando sua oratória e a forma como defendia a organização dos
operários, mesmo sem fazer parte de nenhuma delas, a emancipação feminina e o anarquismo,
alcançado através da educação e dos meios pacíficos de atuação dos trabalhadores.
Na espectativa de uma brilhante conferencia da erudita e liberal escriptora
Far-seouvir, em uma conferencia, a festa que realizar-se-a num sabbado próximo,
a emérita escriptora professora Maria Lacerda de Moura.
Entre as mulheres intelectuais mais em evidencia no Brasil e que se identificam com
as aspirações proletarias, sem duvida, Maria Lacerda de Moura, occupa um logar de
destaque quer pelo cabedal de experiencia que possue, quer pela sua amavel
sinceridade de alma rebelde contra as machinações burguesas, elevando o seu nome
cada vez mais entre a massa dos trabalhadores.
A autora de Renovação”, embora retrahida dos syndicatos operarios observa,
todavia, a marcha evolutiva das organizações, instigando-as a fortalecerem-se em
bases seguras para o advento de sua prosperidade no conceito das aspirações da
collectividade explorada.
Cada injustiça que se pratica a proletarios, essa escriptora floram-lhe dos labios
palavras de abnegação em sorrisos de candura, fortificando os animos abatidos,
reerguendo a moral dos vencidos na luta contra o egoísmo e a escravidão.
E é, pois, dos labios dessa vigorosa mulher que se encerra em si toda a grandeza dos
sonhos libertarios, que os filiados á Internacional hão de ouvir do seu verbo
inflammado decantar todas as grandezas em decadencia da sociedade em que
vivemos.
Á illustre escriptora nossas homenagens. (O Internacional, São Paulo, de abril de
1924, anno IV, número 71, grifos nossos).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo das páginas desse trabalho pudemos observar as vidas e militâncias de
inúmeras mulheres que por muito tempo não tiveram nem sequer seu nome citado nas páginas
da História escrita. Essas mulheres viveram suas vidas sem guiar-se por padrões estabelecidos
por uma classe dominante e mesmo pelo governo, aliás, atuaram, em seu cotidiano, em suas
manifestações artísticas e atuações grevistas, questionando a própria necessidade da existência
de um governo, de qualquer tipo que seja, e pregando a destruição de todas as classes sociais.
O anarquismo, para elas, era muito mais do que uma teoria ou um movimento, significava a
realização completa de suas libertações, que poderiam ocorrer com a libertação de todos os
seres humanos. Viveram o ideal em suas vidas pessoais e no cotidiano, exercendo
solidariedade e mantendo relações livres com os que as cercavam, mas não o viam como uma
“prática de si” e sim, como uma idéia que as impulsionava à luta direta (violenta ou não) ao
lado de seus companheiros do sexo masculino. Não pregaram uma supremacia da mulher
sobre o homem e sim uma convivência solidária e harmônica entre eles, em que se
respeitassem a personalidade, a autonomia e a individualidade de cada um.
Seus pensamentos, no entanto, não foram apagados e suas palavras silenciadas com a
repressão ao movimento operário anarquista promovida pelo Estado Novo (após 1930), além
de sempre presente na história dos movimentos sociais, o anarquismo e o anarco-feminismo
influenciaram militantes de gerações posteriores, como os movimentos feministas das décadas
de 60, 70 e 80 do século XX no Brasil e no mundo - e vêem-se presentes em discussões de
mulheres até hoje, no século XXI. Assim como as libertárias da Primeira República,
militantes feministas destas décadas questionaram o militarismo e as guerras, como a Guerra
do Vietnã, apontaram a opressão da cultura dominante e das religiões cristãs sobre as
mulheres, principalmente das classes mais baixas, denunciaram as contradições do
“comunismo” da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), escreveram textos
desconstruindo teorias científicas que afirmavam a inferioridade natural da mulher, como o
fez Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” (1970), lutaram por uma maternidade mais
consciente e fruto da vontade da mulher, como fizeram Emma Goldman e Maria Lacerda de
Moura, nesse sentido, promoveram (e promovem até hoje) intensas discussões sobre a
legalização do aborto, e queimaram sutiãs em sinal de protesto, como fizeram as feministas
norte-americanas, dentre elas Beth Friedman. Ainda hoje, mulheres lutam contra a violência
doméstica (física ou moral) exercida contra elas, inúmeras manifestações feitas contra tal
fizeram com que alcançassem leis que enquadrassem tal violência como crime, lutam também
pela igualdade e contra os preconceitos, afirmando que lésbicas, por exemplo, tem direito a
unirem-se livremente e, se o desejarem, que tenham essa união reconhecida por lei, nesse
aspecto, pregam que as uniões devem ser livres e baseadas no respeito, no amor e na
solidariedade, como afirmavam as anarquistas do período aqui estudado. Reivindicações de
melhores salários e iguais aos dos homens, que desempenhem a mesma função no emprego, e
a defesa da livre organização das mulheres trabalhadoras ainda estão presentes na pauta de
operárias atuantes em manifestações, greves, enfim...
Certamente esses são ecos das idéias e militâncias das mulheres anarquistas dos fins
do século XIX e início do XX, atuantes em São Paulo e no mundo, como Louise Michel,
Voltairine de Cleyre, Emma Goldman, Maria Lacerda de Moura, Iza Rutt, Izabel Cerruti,
Anna de Castro Osório, Tecla Fabbri, Maria Lopes, Teresa Cari, dentre outras. Através do que
pudemos perceber, elas não foram meras vítimas sujeitadas por relações de poder ou pelas
inúmeras transformações econômicas, políticas, sociais e culturais do período, mas sim
sujeitos do movimento operário e da História.
Ninguém melhor que o oprimido está habilitado a lutar contra a sua opressão.
Somente nós, mulheres organizadas autonomamente, podemos estar na vanguarda
dessa luta, levantando nossas reivindicações e problemas específicos. Nosso
objetivo ao defender a organização independente das mulheres não é separar, dividir,
diferenciar nossas lutas das lutas que conjuntamente homens e mulheres travam pela
destruição de todas as relações de dominação da sociedade capitalista. (A carta
política, 1976, apud: PINTO, 2003, p. 54 e 55).
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A Plebe. São Paulo, 1917 1930.
A Terra Livre. São Paulo, 1905 1906.
O Internacional. São Paulo, 1924.
Revolução Social. São Paulo, 1923.
ANEXOS
ANEXOS
ANEXO 1 CRONOLOGIA DO MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL
(FEMINISMO SUFRAGISTA)
1832
Nísia Floresta publica “Diretos das mulheres e injustiça dos
homens”.
1873
Francisca Senhorinha da Mota Diniz publica o primeiro número de
“O Feminino” em Minas Gerais.
1888
Encenada no Rio de Janeiro a peça de teatro “O Voto Feminino”,
de autoria de Josephina Álvares de Azevedo.
1910
Fundação do Partido Republicano Feminino.
1917
O Partido Republicano Feminino organiza uma passeata de 90
mulheres.
1918
Bertha Lutz retorna de seus estudos na Europa.
1919
O senador Justo Chermont, por pressão das sufragistas, apresenta
projeto de lei que dá o direito de voto às mulheres.
1920
Bertha Lutz participa da Conferência Pan-Americana em
Baltimore, Estados Unidos.
1921
Fundada a Federação Brasileira para o Progresso Feminino
(FBPF).
1922
I Congresso Internacional Feminista da Federação Brasileira para
o Progresso Feminino (FBPF) Rio de Janeiro.
1926/27
Novo projeto de sufrágio feminino, de autoria do senador Juvenal
Lamartine, pressionado pela Federação.
1927
Abaixo-assinado com 2.000 assinaturas levado pelas líderes da
Federação ao Senado pedindo aprovação do projeto que dava o
direito de voto às mulheres.
1929
Natércia da Silveira funda a Aliança Nacional das Mulheres.
1930
A Federação Brasileira para o Progresso da Mulher promove o II
Congresso Internacional.
1932
O Novo Código Eleitoral dá o direito de voto à mulher no Brasil.
(PINTO, 2003, p. 107).
ANEXO 2 MOVIMENTOS ASSOCIATIVOS FEMININOS (SUFRAGISTAS,
MARXISTAS E ANARQUISTAS)
1910-9
Partido Republicano Feminino
Tribuna Feminina (RJ) - Leolinda Daltro
1917
Associação da Mulher Brasileira
Selda Potocka
1918
Liga pela Emancipação Intelectual da
Mulher
Revista da Semana (RJ) Bertha Lutz
1919
Confederação da Mulher Brasileira
Maria Lacerda de Moura (MG)
1919
Liga Comunista Feminina
O Corymbo (RS)
1919
Aliança Feminina
Revista Feminina (SP) - Amélia
Rodrigues
1919
Federação Bandeirantes do Brasil
Revista Bandeirantes (RJ)
1919
Universidade Feminina Literária e
Artística
O Estado de São Paulo (SP) Júlia
Lopes de Almeida
1920
Grupo Feminino de Estudos Sociais
Voz do Povo (RJ)
1920
Centro Feminino de Jovens Idealistas
A Plebe (SP)
1920
Legião da Mulher Brasileira
Revista Feminina (SP) Mary Saião
Pessoa
1920
Núcleo Feminino
Voz do Povo (RJ)
1921
Federação Internacional Feminina
O Estado de São Paulo (SP) A Tribuna
(Santos SP) Maria Lacerda de
Moura
1921
“As mulheres no magistério”, Lourenço
Filho
O Estado de São Paulo (SP)
1922
Centro Feminino de Educação
A Plebe (SP) Izabel Cerruti
1922
Federação Brasileira para o Progresso
Feminino
Bertha Lutz (RJ)
1922
Liga Paulista pelo Progresso Feminino
Carlota P. Queiroz (SP)
1922
Associação Cristã de Moças
A. Carneiro Leão (RJ)
1923
União Feminina Paulista
Renascença (SP) Jovina Rocha
Álvares
1923
Liga das Senhoras Católicas
Revista Feminina (SP)
1923
Grupo de Emancipação Feminina
Nosso Jornal (RJ)
1925
Partido Liberal Feminista
Revista Feminina (SP) Julieta
Monteiro Soares da Gama
1929
Federação Internacional de Mulheres
Universitárias (XII Congresso)
O Malho (RJ)
(LEITE, 1984, p. 38 e 39).
ANEXO 3 ORAÇÃO MARIA LACERDA DE MOURA
Minh’alma flutua por sobre o Cosmos...
O mundo é criação do meu Sonho...
Eu sou o Criador de mim mesma...
Através de mim perpassam todas as correntes de Amor, refletidas no Arco-íris de Luz da
Grandeza Espiritual dos Cosmos incriados.
Sou um centro irradiador de poder sobre mim mesma, um ritmo no hino Cósmico, uma nota
perdida na orquestra infinita da Beleza, na concepção máxima a que pode atingir a Mente
Humana.
O Amor O Deus único nos parques silenciosos das minhas Catedrais interiores canta,
dentro de mim, o poema da Vida Eterna.
Os ídolos não os reconheço.
Porque...
Só para amar foi feita a Vida...
Cada ser é um elo da grande corrente do Amor Universal.
Os erros e os crimes de lesa-felicidade humana não estou disposta a continuá-los com a
cumplicidade do meu Ser.
Não matarás é o segredo da Esfinge na evolução humana.
Jamais levantarei a pureza dinâmica das minhas mãos para macular o meu Ser no sangue de
meu irmão.
Governo todo o meu mundo interior.
Eu sou a Ética e o Juiz da minha própria evolução. Através do meu ser coam-se todas as luzes
e todas as cores e todas as flâmulas de energia do lampadário ondulante da Vida em todas as
suas estupendas manifestações.
Eu sou um átomo de Luz, um criador de serenidade, um dispersador de Forças no grande
concerto Cósmico. Eu sou um ritmo colorido e flamante, em Arco-Íris, refletido no Oceano do
Amor e da Sabedoria. Eu sou o Artista Absoluto, criador dos meus Sonhos, escultor do meu
Pensamento, burilador da estátua do meu Ser, domador do corcel da minha Vida.
Sou forte, tenho uma vontade enérgica e perseverante coragem e quero ser um canal por onde
perpassem todos os ritmos da Beleza máxima e da máxima Sabedoria.
Sou invencível porque sou o Amor.
Nada pode ser contra mim.
E ninguém, absolutamente ninguém, me pode prejudicar.
Matei em mim o Medo, o Ódio, a Inveja, a Vingança, o Orgulho, a Vaidade.
Não quero mais despertar a besta-fera adormecida, enjaulada nas criptas profundas do meu
inconsciente instintivo.
O Amor transborda no lampadário dos Astros ou no lampejo cintilante do olhar materno,
divinizado pela maternidade espiritual.
Saibamos extrair o Amor dos escombros, das ruínas, dos erros e crimes perpetrados por todas
as civilizações de bárbaros.
Não sejamos cúmplices dos carrascos do gênero humano.
Glória à Liberdade!
Não mais nos sirvamos de capatazes e escravos, lacaios do dominismo ou do servilismo e da
covardia do rebanho social.
A minha pátria é meu coração.
A minha pátria é a minha Razão.
A minha pátria é o Universo.
A minha pátria não tem fronteiras: vai até o coração imenso de todo o gênero humano e
considerado nas unidades individuais.
A minha Religião é a Religião do Amor e da Beleza. A minha metafísica livre é embalada no
“sorriso da dúvida e na música do sonho”. É um poema... Não tenho Religião, porque
minh’alma é profundamente religiosa... da Religião do Amor, da Beleza, da Sabedoria.
Venham a mim, ó meus irmãos, amigos e inimigos. A todos eu amo com a Sabedoria do
Coração.
Apertemo-nos as mãos no gesto altivo e nobre e grande e forte da Solidariedade Individual
para a Paz os humanos para novos e mais altos destinos no seio da Harmonia Cósmica.
Glória à Liberdade!
Glória à Sabedoria!
Glória à Beleza!
Glória ao Amor!
Glória a suprema Beleza do Amor no coração dos seres humanos.
Glória a tudo que vive e soluça e canta e sonha na escalada magnífica para além do Tempo e
do Espaço...
Glória a todas as estupendas maravilhas do Universo de que cada Ser livre é um Centro
irradiador de Força e Beleza, de Amor e Sabedoria.
(Oração. MARIA LACERDA DE MOURA. A Plebe, São Paulo, 31 de dezembro de 1932,
apud: PRADO, 1985, p. 32 a 34).
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