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Gustavo Naves Franco
As Formas da Infâmia
política e estética na obra de Jorge Luis Borges
(1921-1955)
TESE DE DOUTORADO
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História Social da Cultura da
PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para
obtenção do título de Doutor em História.
Orientador: Prof. Ricardo Augusto Benzaquen de Araujo
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510830/CA
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Gustavo Naves Franco
As Formas da Infâmia
política e estética na obra de Jorge Luis Borges
(1921-1955)
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau
de Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social
da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências
Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Ricardo Augusto Benzaquen de Araujo
Orientador
Departamento de História
PUC-Rio
Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues
Departamento de História
PUC-Rio
Prof. Paulo Fernando Henriques Britto
Departamento de Letras
PUC-Rio
Prof. Leopoldo Garcia Pinto Waizbort
Departamento de Sociologia
USP
Prof. Sergio Miceli Pessoa de Barros
Departamento de Sociologia
USP
Prof. Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2009.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510830/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor ou
do orientador.
Gustavo Naves Franco
Graduou-se em História na Universidade Federal de Minas
Gerais (1997-2002). Mestre em História Social da Cultura pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003-2005),
com dissertação sobre a obra do escritor argentino Julio
Cortázar. Dedica-se a pesquisas e tem trabalhos publicados nas
áreas de História Contemporânea, História da América, Estudos
Literários e Estética.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Franco, Gustavo Naves
As formas da infâmia: política e estética
na obra de Jorge Luis Borges (1921-1955)
/ Gustavo Naves Franco ; orientador:
Ricardo Augusto Benzaquen de Araújo.
2009.
2 v.; 364 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em História)–
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Inclui bibliografia
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Agradecimentos
Ao prof. Ricardo Benzaquen de Araújo, pela orientação atenciosa e
paciente. Nos últimos sete anos, tive várias oportunidades de me surpreender com
a rara coexistência de generosidade, perspicácia e solidez intelectual em um
mesmo temperamento. Espero que este trabalho faça justiça, ao menos em parte, à
sorte de tê-lo como exemplo.
Aos integrantes da banca examinadora da tese, os professores Sérgio Miceli,
Leopoldo Waizbort, Paulo Henriques Britto e Antônio Edmilson Martins
Rodrigues, pela meticulosa leitura crítica do trabalho, que me permitiu eliminar
alguns equívocos em sua versão final, e proporcinou-me a chance de reelaborar
algumas de suas idéias centrais durante a discussão, em um diálogo que espero ter
prosseguimento de agora em diante.
Aos examinadores do projeto de qualificação, professores Luiz Costa Lima
e Paulo Henriques Britto, cujas sugestões e críticas aos primeiros esboços da tese
se mostraram cada vez mais decisivas na elaboração de sua versão final.
Ao prof. Adrián Gorelik, do Programa de Historia Intelectual da
Universidad de Quilmes, pelas indicações de leitura e esclarecimentos sobre a
história política e cultural argentina.
Aos professores José Reginaldo Gonçalves, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, e Karl Erich Schollhammer, do departamento de Letras da PUC-Rio,
que, na avaliação de minha dissertação de mestrado, deram novo estímulo e
direcionamento à continuidade da pesquisa sobre a literatura argentina.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Social da
Cultura da PUC-Rio, cujos cursos e disciplinas foram responsáveis pela maior
parte de minha formação acadêmica, ou com os quais tive uma convivência e um
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diálogo enriquecedores: Francisco Falcon, Luiz Costa Lima, Marcelo Jasmin,
Antonio Edmilson Martins Rodrigues, Margarida de Souza Neves, Ilmar Rohloff
de Mattos, João Masao Kamita, Ronaldo Brito, Flávia Schlee Eyler, Marco
Antônio Pamplona, Maria Elisa Mader, entre outros, que me fizeram encontrar
nesta instituição as melhores condições práticas e intelectuais para a evolução do
trabalho.
A Edna Maria Lima Timbó, pela disponibilidade para resolver e acelerar
trâmites institucionais, além de Cleuza Ventura, Anair de Oliveira e Cláudio
Santiago, por tornarem as visitas ao departamento sempre agradáveis e
proveitosas.
Aos professores do Departamento de História da Universidade Federal de
Minas Gerais, onde concluí o bacharelado, e adquiri uma base de conhecimentos e
leituras indispensáveis para todos os trabalhos subseqüentes. Em particular,
registro o agradecimento à professora Heloísa Starling, orientadora da monografia
de final de curso, e aos professores Luiz Haele Arnaut, Kátia Gerab Baggio e
Regina Horta Duarte, cujo apoio e amizade foram fundamentais para que a
escolha da carreira se mostrasse acertada.
Com todo o prazer por ter a oportunidade de fazê-lo, agradeço a Karina
Vásquez, da Universidad de Quilmes, de quem usufruí a hospitalidade, a
biblioteca, a amizade e a disposição para longas conversas sobre o assunto da
pesquisa e temas correlatos.
Também especialmente, agradeço a Imara Bemfica Mineiro, por uma
relação em que, ao carinho mútuo, foi acrescentado o interesse por objetos de
estudos próximos, e o compartilhamento de dados e referências.
Por outro lado, durante toda minha formação conheci colegas que se
tornaram grandes e queridos amigos, aos quais devo muito de minha alegria por
ter seguido este caminho. Devo citá-los inclusive como referências informais do
texto da tese, pois nestas relações obtive indicações de leitura bastante úteis, e
provavelmente não resisti a me apropriar de alguns dos comentários escutados em
nossas conversas. São eles: Luiza Larangeira Mello, Carolina Miceli, Daniel
Wanderson Ferreira, Leonardo Ayres Padilha, Felipe Charbel Teixeira, Marcelo
Mello Rangel, Bernardo Buarque de Hollanda, Fernanda Carvalho de Andrade,
Jonas Lana, João de Azevedo Duarte, Renata Schittino, Danrlei de Freitas
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Azevedo, Sérgio Xavier, Fabrina Magalhães Pinto, Daniel Pinha, Francisco
Gouvea de Souza, entre outros.
Agradeço às professoras do Laboratório de Idiomas da Universidade de
Buenos Aires, por seu esforço em aprimorar meu uso e compreensão da língua
espanhola, e em particular à professora Guadalupe Molina, pela simpatia com que
enfrentou esta tarefa menos simples do que parece. Aos vários colegas que se
tornaram amigos durante as duas viagens de estudo e pesquisa que fiz à
Argentina, agradeço por terem participado, com sua gentileza, seu bom humor e
sua alegria, de importantes momentos em minha vida profissional e pessoal,
deixando-me lembranças inestimáveis de nossa convivência.
Agradeço à professora Angela Perricone Pastura, da PUC-Rio, que, com a
cortesia e o entusiasmo que lhe são peculiares, se dedicou a missão ainda mais
inglória, a de melhorar meus rudimentos de francês.
Como se não bastassem os outros motivos, aos meus pais, Elizabeth de
Melo Naves e José Flávio Monteiro Franco, sou grato pelo incentivo constante e
irrestrito às minhas opções profissionais.
Poderia dizer o mesmo de outros familiares que foram motivos de
admiração desde minha infância, ou se incorporaram mais recentemente a esta
lista: Jane Monteiro Franco, Maria Lídia Monteiro Franco, Luiz Celso Rennó
Gomes, Murilo César Monteiro Franco, Mariângela Paiva Franco, Márcio
Gustavo de Melo Naves, Juza Graça Machado, Ricardo Mineiro, Mariana Campos
Mendonça, Juliana Bemfica, Glória Ferreira Gaspar Costa, Fernando Faro, entre
outros.
Agradeço ao amigo e diretor de teatro Anderson Aníbal, por não me deixar
esquecer que as coisas às vezes precisam de poucas palavras e de gestos simples
para serem ditas.
Agradeço a Susana Faro, que esteve ao meu lado durante todo o processo de
preparação da tese e, sobretudo, no ainda mais delicado e recompensador esforço
da criação de um filho.
O Tiago ainda não entende direito o que é uma tese de doutorado, não faz
idéia de quem foi Jorge Luis Borges, e não está interessado no assunto. Talvez por
isso ele tenha sido minha melhor e mais saudável companhia nos últimos meses.
Em tudo o que faço, está implícito o agradecimento a Érico Franco Mineiro,
pois sempre prestei muita atenção no que o meu irmão diz.
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Esta tese foi realizada com o apoio financeiro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnologia (CNPq) e da Fundação de Apoio à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
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Resumo
FRANCO, Gustavo Naves; Araujo, Ricardo Augusto Benzaquen de As
Formas da Infâmia: política e estética na obra de Jorges Luis Borges
(1921-1955). Rio de Janeiro, 2009. 364p. Tese de Doutorado
Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
O trabalho é apresentado como uma contribuição à bibliografia crítica sobre
a obra de Jorge Luis Borges, enfocando aspectos políticos da trajetória intelectual
do autor, e conferindo-lhes uma relevância específica em sua produção literária. A
princípio, são analisados poemas e ensaios publicados por Borges na década de
1920, em sua vinculação a um projeto romântico de renascimento da raça criolla,
que teve seu auge no momento da reeleição de Hipólito Yrigoyen à presidência da
Argentina, em 1928. em 1930, no entanto, o fracasso desta experiência e o
processo de degradação do ambiente político mundial trariam uma decisiva
inflexão na postura de Borges. A partir daí, seria configurada uma mais duradoura
identificação do escritor com um conjunto de práticas e valores associados ao
século XIX e à tradição britânica, por ele recebidos através da leitura de diversos
autores, sobretudo G. K. Chesterton. Simultaneamente, foi constatado que, com o
agravamento da crise européia, seus comentários em revistas e jornais portenhos
se voltam para a crítica e a sátira de projetos utópicos de organização social, de
matriz francesa ou germânica, ambos atrelados a paradigmas estéticos (o primeiro
ao articular os princípios da l’art pour l’art com o argumento pacifista, e o
segundo apropriando-se de hábitos expressionistas, em um programa de
renascimento da raça ariana). A delimitação destas três vertentes justifica uma
leitura dos contos escritos por Borges na primeira metade da década de 1940, com
ênfase para seu viés paródico, mas neles notando também o reconhecimento da
derrocada dos padrões morais, estéticos e políticos do legado inglês. Enfim, foi
examinado o diálogo de Borges com a literatura norte-americana, na medida em
que ele teria encontrado aí a representação de uma nova imagem do mundo, à qual
estariam associados contos como “La biblioteca de Babel” e “El Aleph”.
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Palavras-chave
Jorge Luis Borges; literatura argentina; história cultural sec. XX;
modernismo
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Abstract
FRANCO, Gustavo Naves. Araujo, Ricardo Agusto Benzaquen de.The
Forms of Infamy: politics and aesthetics in the work of Jorge Luis
Borges (1921-1955). Rio de Janeiro, 2009. 364p. Ph.D. Thesis
Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
The work is presented as a contribution to the critical bibliography on Jorge
Luis Borges, focusing political aspects of the author´s intellectual formation, and
attributing to them a specific relevance on his literary production. At first, it
consists on an exam of Borges’ poems and essays published on the 1920’s, in
their associations to a romantic project for the rebirth of a local and authentic race,
which had its climax with the re-election of Hipólito Yrigoyen to the presidency
of Argentina in 1928. However, the failure of this experience and the process of
degradation of the international politic conjuncture, during the next decade, bring
a decisive inflexion in Borges’ attitude. From then on, he would profess
identification to a conjugation of practices and values corresponding to the
ninetieth century and to the British legacy, received by him trough the reading of
various authors, G. K. Chesterton in special. Simultaneously, with the aggravation
of the European crisis, his works tend to the critic and satire of utopian projects of
social organization, in their French and Germanic origins, both dependent on
aesthetic paradigms (the first articulating principles of the art pour l’art and the
pacifist cause, the second converting expressionist habits in a program for the
rebirth of Arian race). The delimitation of these three frames justifies an
interpretation of the short stories written in the first half of the 1940’s, with
emphasis to their parodistic strains, but also their recognition of the decline of
moral, aesthetic ad political English patterns. At last, the dialog between Borges
and the North-American writers is stressed, so long as he found in them the
representation of a new image of the world, consolidated from 1945 on, and
where he discovered the possibility of a contemporary poetics, exemplified in the
mystical experience described in “El Aleph”.
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Keywords
Jorge Luis Borges; Argentine literature; cultural history 20th. century;
modernism.
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Sumário
1 . Introdução 13
2. Grandeza e Misérias de Buenos Aires (1921-1930) 30
2.1. Segredos da Terra, Castelos no Ar 36
2.2. O Alucinado Misterioso 49
2.3. Evaristo Carriego 63
3. A Época dos Tumultos (1930-1939) 78
3.1. Humilhados e Ofendidos 85
3.2. Ensaio de Sinceridade 104
3.3. A Paz Perfeita 133
4. A Sombra Planetária (1939-1945) 164
4.1. Anno Mirabilis 174
4.2. Crimes e Pecados 209
4.2.1. Os detetives suicidas 217
4.2.2. As alegrias do Padre Brown 228
4.2.3. Os deuses bárbaros 242
5. O Mundo de Kafka (1945-1955) 253
5.1. O Apocalipse segundo Borges 267
5.2. O Minotauro Apaixonado 289
5.3. Bem Está o que Acaba Bem 321
6. Conclusão 336
7. Referências Bibliográficas 353
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13
1
Introdução
Desde que foi reconhecida como um dos produtos mais instigantes do ofício
literário no século XX, a obra de Jorge Luis Borges tornou-se um foco de
convergência para diversas abordagens críticas, que fizeram da bibliografia a
respeito um corpus à parte de variações sobre um mesmo tema. Por outro lado,
seus textos serviram também como ponto de partida de novos questionamentos a
respeito do lugar do escritor e do estatuto da literatura no mundo contemporâneo,
proporcionando, a determinadas teorias, as imagens capazes de explicá-las em
poucas páginas, e, em outras ocasiões, explicitando, a estas mesmas teses, os
impasses diante dos quais uma nova reflexão torna-se incontornável. Deste modo,
os constantes e sempre renovados esforços interpretativos parecem decorrer
menos do aspecto provisório de seus resultados do que de um dado constitutivo
dos próprios textos do autor. A obra de Borges é um convite ao comentário, ao
mesmo tempo em que se esquiva a qualquer definição. E empreender um estudo
sobre os valores e idéias que nela se articulam parece-me uma tarefa de antemão
condenada a obter resultados aproximativos e parciais.
No entanto, dentre a enorme variedade de interpretações que a crítica
formulou sobre o assunto, algumas tendências podem ser verificadas. A mais
notável destas mudanças se deu com a crescente atenção conferida a temas
históricos, sociais e políticos nos enfoques do objeto, conforme sua relevância era
detectada na formação intelectual e na produção literária de Borges. A partir do
início da década de 1990, este viés adquiriu certa proeminência, sem que tivesse
sido ignorado por todos os trabalhos anteriores, e sem que questões mais
estritamente formalistas deixassem de ser um importante meio de elucidação de
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fatores envolvidos no debate. Uma revisão bibliográfica será feita, no decorrer
deste estudo, no propósito de apontar a maneira como ensaios e análises de
vertentes variadas contribuíram para a sua formulação. Mas, de um modo geral,
pode-se dizer que ele está de acordo com aquela tendência antes mencionada.
Os objetivos específicos de minha pesquisa estiveram relacionados à
tentativa de entender a trajetória intelectual do autor, e a evolução de sua obra
literária, no contexto da longa crise sócio-política que atravessou a primeira
metade do século XX no mundo ocidental. Tratava-se, por um lado, de mesurar o
impacto de uma série de transformações de médio e longo prazo no modo de
pensar e agir de Borges; e, por outro, de resgatar de seus escritos um possível
diagnóstico da tumultuada situação a ele contemporânea, elaborado de um ponto
de vista singular. Busquei então assinalar como, à medida que a crise se agravava,
Borges teria assumido uma posição de defesa da ordem ameaçada, com um viés
moralizante e conservador, expresso na proposta de retomada dos paradigmas
culturais que teriam marcado a experiência do século XIX, vinculados ao caráter
britânico. Paralelamente, a sátira e a paródia viriam a ser os gêneros apropriados
para suas representações de um fenômeno de decadência da linguagem artística e
política da época, conforme estas favorecessem o surgimento de imposturas
forjadas em um período de transtorno da tradição, tendo como matrizes, em
especial, os cenários culturais da França e da Alemanha. Por fim, procurei
entender como Borges acompanhou o processo de substituição da Inglaterra pelos
Estados Unidos como principal referência para a compreensão de uma nova
conjuntura. O que implicava uma resignada aceitação do declínio da tradição
inglesa, mas também uma abertura de possibilidades poéticas e ensaísticas para o
ofício do escritor no século XX.
Estes quadros sintéticos foram construídos, no decorrer da análise, de
acordo com mudanças pontuais na leitura que o escritor fazia do curso histórico
de seu país e do mundo. Tal como as resumidas a seguir.
Em um enquadramento inicial, refiro-me à conjuntura argentina no período,
sobretudo nas décadas de 1920 e 1930, quando se tornou evidente a ineficácia dos
agentes locais na tarefa de reverter um processo de desestruturação das
instituições do país, iniciado com as primeiras reações contra um programa
republicano e liberal de construção do Estado-Nação argentino, estabelecido no
século XIX. Os ensaios de juventude de Borges foram analisados como produtos
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característicos deste movimento reativo, atrelados a um projeto romântico de
renascimento cultural, cujo fenômeno mais marcante terá sido a reeleição do líder
popular Hipólito Yrigoyen à presidência da Argentina, em 1928. Enfatizo a
participação e a militância do escritor neste episódio inclusive porque, em um
desdobramento logo posterior, o fracasso do segundo governo de Yrigoyen teria
sido decisivo para uma importante mudança de perspectiva de sua parte.
Daí em diante, começa a ser sugerido, ainda no plano regional, um duplo
movimento, que constitui o principal foco de minhas atenções, e é o eixo
articulador do trabalho. Por um lado, ele diz respeito à evolução, na obra de
Borges, de uma crítica a novidades ideológicas radicais do século XX, voltadas
para uma reorganização revolucionária da sociedade, e forjadas durante a crise
dos paradigmas oitocentistas. No caso, trata-se de compreender este câmbio como
resultante de uma atitude reflexiva e autocrítica, que adquire crescente relevância
na trajetória do escritor a partir de 1930, e na qual ele teria reavaliado sua postura
como artista e intelectual na década precedente. Surge então o tema (não
destituído de nuances e ambigüidades) do papel das vanguardas modernistas como
precursoras de um conjunto de transformações e desdobramentos políticos,
apropriado para o tratamento da relação entre a poética e a ensaística de Borges
nos anos 20. E determinante, também, no debate de uma questão que percorre
todo este estudo: o da mobilização da estética como modelo de ordenamento da
sociedade, seja pelo viés apolíneo do simbolismo francês, seja pelo caráter
dionisíaco do expressionismo alemão, em suas respectivas expressões
programáticas e doutrinárias.
Com a leitura dos textos da História Universal de la Infamia (1933-34),
creio ter encontrado o direcionamento a partir do qual podiam ser exploradas estas
percepções, a princípio mais estritamente no âmbito da criação literária. Pois,
neles, técnicas estilísticas modernistas são mobilizadas para a representação de um
ambiente irrealista, habitado por personagens vazios, desprovidos de profundidade
moral ou psicológica, em uma paródia tanto de tendências artísticas da época,
quanto de tipos populares e líderes políticos. Com isso, ficava assinalada uma
carência perceptível em ambas as esferas: a do “senso de realidade” que, segundo
outros artigos publicados pelo autor no período, caracterizaria as épocas clássicas
da civilização ocidental. Note-se que, ao fazê-lo, Borges não proclamava a
superioridade de um realismo submetido a exigências empiristas ou cientificistas,
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mas as virtudes de um sentimento matizado, do qual se originam modulações
estilísticas, e o uso de uma delicada ironia, detectáveis, por exemplo, na prosa de
Michel de Montaigne, Miguel de Cervantes e Jonathan Swift.
Na seqüência, analisando um discurso radiofônico proferido por Borges em
1936, procurei demonstrar como o epíteto do “clássico” seria por ele aplicado ao
século XIX argentino, com sua literatura mais persuasiva do que impositiva, sua
confiança em valores compartilhados (porém negociáveis), sua vida pública
pragmática, e a criação de bases para um projeto nacional de longo prazo.
Enquanto, no século XX, os rigores formais e a expressividade visual propostos
pelas vanguardas corresponderiam à perda de um lastro de experiência, a uma
sensação de ruptura com a tradição, que favoreceria a configuração de simulacros
esteticistas, na linguagem da literatura como na da política, ambas inseridas em
um mesmo processo cultural. Mas, no discurso, formulado ele próprio de acordo
com os critérios da mediação, da moderação e do discernimento, ainda que sem
ignorar o princípio da autoridade, Borges dava a entender que este processo seria
reversível, na medida em que fossem recuperadas as qualidades daqueles
antepassados.
Este ponto se refere ao outro vetor do duplo movimento antes
mencionado. O primeiro, vale repetir, converge para a crítica e a sátira de
artefatos de grande apelo imagético, elaborados com excessos de sofisticação ou
brutalidade, fazendo com que o refinamento francês e o vitalismo germânico
fossem associados ao seu surgimento. O segundo, portanto, é relativo a uma
valoração positiva do legado contra o qual se voltavam estas criações, isto é, a
herança da cultura britânica, cujo predomínio no século XIX podia ser creditado à
solidez do common sense intercambiável com a categoria do “senso de
realidade” –, e às práticas da negociação e da mediação, próprias a uma índole
conservadora e reformista, que, todavia, pode lançar mão do uso da força em
situações extremas, quando se ameaçada por inimigos políticos radicais. Esta
conduta teria permitido a consolidação, no culo XIX, do mundo das nações,
dependente de uma eficácia prática na delimitação e preservação de fronteiras, no
que se refere à constituição dos estados nacionais, bem como do exercício
constante da diplomacia. Sem que fosse descartada a possibilidade da guerra, tal
como verificado no ambiente de relativa estabilidade da pax Brittanica
oitocentista.
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Não de menor importância, nas condições descritas, seria o resgate de certa
ingenuidade provinciana e burguesa, apegada a uma moral descomplicada,
expressa em preceitos básicos, e que desconfia de extravagantes constructos
filosóficos, artísticos e políticos. Ela teria a função de situar o espectador da época
em um ponto de vista irônico e cético, diante das sofisticadas operações lógicas ou
estéticas do modernismo francês, e das demandas de autenticidade ontológica e
projeção metafísica do modernismo alemão. A isto estaria associada uma
concepção da história como lugar da construção de sentido e significado para as
sociedades, e, portanto, mais uma vez, a proeminência da nação como unidade
política fundamental. Enquanto, nos dois outros casos, os desdobramentos
políticos dos costumes aristocráticos vanguardistas convergiam para os princípios
da Humanidade e da Raça, cada um, à sua maneira, eliminando diferenças
históricas e culturais, em favor de ideais abstratos ou mitologias de origem
atemporal.
Ao caráter anglófilo de Borges, enfim, são também atrubuídos os
qualificativos do pudor, da modéstia e da parcimônia, o hábito do understatement,
o cultivo de um tipo peculiar de humor. Haverá algumas oportunidades de
elucidar melhor as implicações políticas destes valores no decorrer do texto.
Todos eles são atributos que Borges, possuindo antepassados ingleses, e buscando
referências literárias e intelectuais na mesma fonte, teria incorporado à sua
conduta e à sua obra, em um mecanismo de encenação de tais características – um
processo de self-fashioning, de acordo com a utilização do termo por Stephen
Greenblatt, ou de representação de um papel na vida pública, segundo o critério da
sinceridade, vinculado à literatura britânica oitocentista, tal como definido por
Lionel Trilling. No caso, ambos caracterizam a composição de um “personagem”
por parte do agente social, e sua adequação a uma moralidade do dever e dos
serviços prestados ao Estado, de modo que ele integre um esforço coletivo e
patriótico, de preservação, reforma e progresso da nação, dentro dos limites
impostos pela ordem comunitária.
No entanto, quando, em 1936, Borges se colocava à disposição para assumir
um posto em uma ordem desta natureza, a desordem institucional argentina
contradizia a própria possibilidade da restauração. Durante toda a chamada
“década infame” da história do país, o governo instalado após o golpe que
destituiu Yrigoyen não teve autoridade nem competência efetivas para legitimar-
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se, tendo que exagerar no uso da repressão e da fraude eleitoral para se manter, e,
portanto, tampouco restituindo um direcionamento liberal e democrático ao país.
Marcado pela corrupção, por obscuras transações palacianas, e pela degradação da
cultura popular, o período pode ser entendido o que melhor ilustra o fenômeno de
declínio e queda da república da Argentina, o que confirma o diagnóstico, feito
por Borges na época, de que a “honra” nacional estava em jogo. Novamente,
temos aqui um valor que remete, pela maneira peculiar com que foi apresentado, a
noções de nobreza e respeitabilidade mais próximas do exemplo britânico do que
de seus equivalentes continentais. Por outro lado, além de não ter alcançado quase
nenhuma repercussão política com este tipo de convocatória, o autor tinha que
lidar também com a preferência, da parte dos intelectuais argentinos com que
dialogava, por outros modelos de ação e pensamento, em particular o francês. Isto
se torna claro se pensarmos, por exemplo, no grupo reunido em torno da figura de
Victoria Ocampo, editora da célebre revista Sur, publicada a partir de 1931.
As relações de Borges com este círculo aristocrático, ocioso e cosmopolita
foram um tema recorrente na pesquisa. E, em que pese a adequação de suas
contribuições à linha editorial da revista, que favorecia a especulação metafísica,
as discussões sobre a linguagem, e a l’art pour l’art, percebi que a pouca
assiduidade com que ele freqüentava o elegante salon litteraire da mansão dos
Ocampo sugeria um distanciamento e uma dissonância. Esta pode ter tido sua
origem em fatores sócio-econômicos, dada a situação financeira da família de
Borges, que o levou a executar diversos serviços provisórios e mal-remunerados
ao longo da década, até que se estabelecesse como funcionário de uma biblioteca
pública suburbana. Daí a menção, em certo momento de meu texto, de certa
“consciência de classe média”, que estaria presente em alguns escritos analisados.
Mas, para além das diferenças de classe e estilo de vida, havia o confronto por
raras vezes expressa abertamente entre uma visão anti-utilitária da cultura e da
arte, contrária aos paradigmas burgueses, e determinados componentes do
comportamento e da postura de Borges, capaz de “adaptar” seus escritos à linha
editorial de Sur, mas preservando reservadamente sua individualidade em relação
ao grupo. Daí a tensão sutil e insidiosa, mas nem por isso menos esclarecedora,
que pode ser percebida em alguns de seus comentários sobre Victoria Ocampo, e
vice-versa.
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Ficava assim delimitado o espectro de variáveis comparativas onde situar a
evolução da obra estudada, no que se refere à sua inserção no cenário da Buenos
Aires da década de 1930. A releitura crítica e reflexiva, por parte do escritor, de
seus ensaios de juventude, o havia afastado de uma tendência a identificar, nas
mitologias autóctones e no segredo da raça, o impulso para uma revolução
redentora; e isto o desviara, em definitivo, de uma eventual sistematização
ideológica deste pressuposto, correlata àquela que se daria, na Alemanha, com a
formulação da doutrina nazista. Em seguida, aparecia a possibilidade de que ele
fosse incorporado a um grupo de intelectuais e artistas mais inclinados a cultivar
costumes parisienses, tanto em seus padrões de sociabilidade, quanto em seus
hábitos criativos; porém, a crescente identificação de Borges com os costumes e
hábitos ingleses, em especial aqueles que se desenvolveram ao longo do século
XIX, o tornava pouco propenso a freqüentar este círculo, o qual se acreditava em
maior sintonia com as novidades e transformações, ocorridas e por ocorrer, no
século XX.
Desde logo, o isolamento o anacronismo teriam caracterizado a situação de
Borges na Argentina dos anos 1930, atenuados apenas pela própria maneira
flutuante, indireta e moderada, com que seus pressupostos eram declarados,
conforme tivessem um direcionamento propositivo. Quanto aos textos de teor
mais satírico, havia também o fato de que este traço nem sempre fosse percebido
um equívoco que ele raramente procurou desfazer –, contribuindo para a
receptividade dos mesmos nos círculos modernistas. O exercício da paródia, cabe
enfatizar, é característico da literatura moralista dos períodos de decadência,
implicando a consciência de um deslocamento histórico e cultural por parte do
autor, e o uso da alusão e da ironia em sua linguagem. Não obstante, se
transferimos o enfoque da análise para o panorama mundial, nos anos que
antecederam o início da Segunda Guerra, é possível encontrá-lo mais diretamente
comprometido com uma das alternativas em questão, isto é, aquela que via no
belicismo e no expansionismo alemão uma ameaça concreta à civilização
ocidental como um todo. E que, portanto, considerava necessária e urgente que a
Inglaterra a potência conservadora responsável pela manutenção do status quo
oitocentista – estivesse preparada para o confronto armado continental.
Borges não ignorava a seqüência de erros que havia gerado aquele distúrbio.
Em 1933, escreveu um comentário sobre o tratamento dos derrotados na Primeira
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Guerra, apontando para a criação de falsas imagens que confirmassem a
“superioridade moral” dos vencedores, na propaganda feita por estes para
consumo interno. Noutras ocasiões, denunciou o Tratado de Versalhes como um
ato de humilhação e vingança, que, como sabemos hoje e alguns observaram na
época –, teria como conseqüência uma demanda feroz pelo resgate do orgulho
pátrio germânico. Este, por sua vez, ao converter-se em orgulho racial, voltava seu
ressentimento contra a própria idéia de um mundo dividido em nações que se
reconhecessem mutuamente, orientando-se para um projeto de domínio global da
raça ariana. O que seria um efeito do declínio da capacidade da diplomacia
inglesa de criar um sistema de equilíbrio na ordem internacional, tornado evidente
em 1918. Feito o estrago, porém, caberia à própria Grã-Bretanha assumir a missão
de desfazê-lo, o que implicava o rearmamento e a disposição para o embate, não
mais em uma tentativa de conservar sua supremacia, mas em um gesto de
restauração de seu poder imperial.
Pois, dentro do “sistema de equilíbrio” que mencionei, a guerra seria um
extremo, mas não uma impossibilidade. Ela estava prevista como o último (porém
legítimo) recurso da autoridade estabelecida, no plano internacional, tanto quanto
a revolução restauradora o seria na política interna de um país. Mas, em função
das lembranças da guerra anterior, e de certa apatia generalizada, a opinião
pública inglesa persistiu durante anos em uma posição contrária ao rearmamento,
enquanto o governo adotava uma política de apaziguamento em relação a Hitler,
preferindo acreditar que suas declarações mais exaltadas eram bravatas de apelo
demagógico. Deste modo, até 1939, poucas foram as vozes que, mesmo na
Inglaterra, defenderam uma resposta imediata à ameaça alemã, que não deixasse
dúvidas quanto à confiança britânica na efetividade de seu poderio militar, e fosse
inclusive, potencialmente, capaz de evitar o choque bélico, mediante uma política
de contenção. Entre elas estava a de G. K. Chesterton, o intelectual que, no
século XX, talvez tenha sido o mais lúcido atualizador de uma tradição recebida
do século XIX, da qual sua obra viria a ser também um epílogo, conforme seus
escritos reunissem, com coerência, os elementos daquela herança, em uma última
vindicação consistente de seu alcance político, filosófico e artístico.
As primeiras menções a Chesterton nos textos de Borges datam do início da
década de 1930. Assim, à medida que se dava a consolidação da afinidade do
escritor argentino com a cultura britânica, teria crescido também seu respeito e sua
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admiração pelo autor de The End of Armistice (1936), último livro publicado em
vida por Chesterton, uma reunião de ensaios de reflexão e intervenção sobre a
conjuntura européia, diante da ascensão do nazismo. Borges citou-o em alguns de
seus comentários sobre o assunto, que, de 1936 em diante, tornaram-se freqüentes,
denotando uma preocupação constante com o furor hitlerista, e levando-o a
discutir as posturas de diferentes intelectuais em relação ao conflito iminente. E,
desta discussão, podem ser extraídas duas conclusões, que se esclarecem
mutuamente.
Segundo a primeira, o belicismo germânico era um fenômeno que postulava
a guerra pela guerra, isto é, a mobilização militar como finalidade, e não recurso,
da política, direcionando-se, portanto, para uma aventura expansionista
irreprimível, ao menos diplomaticamente. Já a segunda diz respeito à resposta de
parte considerável da intelectualidade francesa a esta ameaça, fundada em um
pressuposto inverso, mas, por isso mesmo, equivalente: o de que a supressão de
toda e qualquer forma de conflito era uma meta a ser buscada de modo
incondicional pelos homens, os quais deviam manter, em um horizonte visionário,
mas a ser conquistado mediante um salto repentino, a imagem de um mundo
totalmente pacificado, regido pelos ideais abstratos da Justiça, da Liberdade e da
Razão.
Devastação e suicídio. Com este binômio, Chesterton acusou uma inusitada
cumplicidade ideológica franco-germânica, assinalando as semelhanças entre as
duas orientações políticas. Ambas aplicavam critérios antes restritos à obra de arte
em programas de revolução da vida pública: de um lado, estavam a frieza apolínea
e o refinamento intelectualista, e, do outro, o vitalismo dionisíaco e o entusiasmo
bélico. Pacifismo e belicismo partiam também de modelos de conduta
aristocráticos, de elevação espiritual ou pureza do sangue, ao se voltarem contra
uma moralidade de classe média, associada à Inglaterra. E, ao postular a
Humanidade e a Raça como imperativos globais, eliminavam as diferenças
construídas historicamente pelas nações, em projeções cosmopolitas ou
ontológicas de uma totalidade de sentido, na qual a própria “França” e a própria
“Alemanha” deixariam de existir.
Por razões óbvias, na prática uma destas variantes estava destinada a
prevalecer sobre a outra, assumindo o monopólio do sentimento anti-burguês e
anti-britânico. Isto se deu em 1940, com a devastadora invasão de Paris pelo
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exército alemão, quando este não encontrou maiores resistências para dar o
primeiro grande passo em seu propósito de dominar o continente.
Um ano antes, Borges havia escrito o primeiro relato que integraria suas
mais famosas coleções de textos. “Pierre Menard, autor del Quijote”, dentro deste
quadro contextual, pode ser lido como uma sátira do ambiente cultural francês às
vésperas da ocupação, e uma análise dos mecanismos de indistinção entre os
rigores formalistas e o fervor da barbárie. Na ocasião, dada a postura isolacionista
norte-americana, ficava também nítida a responsabilidade da Grã-Bretanha em
defender-se de um ataque ao qual a França não estaria preparada para reagir
defendendo também, assim, o legado oitocentista. O que, de um modo bastante
pontual, terá fortalecido o desejo do autor de ver ressurgir a antiga potência, com
um gesto de reversão do curso declinante em que ela vinha seguindo. Passando a
um enfoque interpretativo mais abrangente, é possível inferir desta situação
particular o argumento geral de meu trabalho até este ponto, que corresponde ao
encerramento da segunda parte.
Ele se resume à consonância entre estes acontecimentos e a constituição de
um espectro de possibilidades literárias, que seria mobilizado na obra de
maturidade de Borges. Ressalto, desde logo, que aquelas relativas à poética e à
ensaística, tal como recebidas do exemplo britânico, teriam pouca utilidade até
1945, e mesmo depois disso seriam recuperadas somente em um processo de
adaptação a outra conjuntura. Mas, do ponto de vista em que ele se situava, a
desconstrução das imposturas associadas ao duplo movimento reativo contra os
valores ingleses se tornava possível, no sentido de que fosse apontado o que havia
de ridículo ou banal na linguagem que as expressava. Era incerta a possibilidade
de que o nacionalismo tradicional, a moralidade burguesa, a lírica da aspiração, e
tudo aquilo a que ele se referia como “inocentes ternuras” de tempos passados,
tivessem uma sobrevida na segunda metade do século. O inquestionável, para
Borges, era que as promessas de sua substituição por utopias do bem ou do mal
não passavam de discursos tão exaltados quanto vazios, tão grandiloqüentes
quanto triviais. E indicar sua inconsistência seria a função da sátira e da paródia,
gêneros aos quais do escritor se viu “condenado” por ter nascido na época errada,
a da decadência e queda da ordem a que sentia pertencer.
Pode-se objetar que esta é uma interpretação restritiva. Até certo ponto,
estou plenamente de acordo. Como tantas outras, ela parte de uma questão
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previamente delimitada, de um recorte dos textos a serem discutidos, da intenção
de elaborar um argumento sistemático e, assim, deixa de lado outras questões,
textos e possibilidades argumentativas. também nuances e contradições no
material pesquisado que nem sempre repercutiram na redação final (na maior
parte das vezes, simplesmente porque não teriam maior impacto na composição
do conjunto, sendo pequenas variações de ênfase, cuja análise minuciosa
prolongaria um trabalho já extenso, sem acrescentar-lhe nada de substancial).
Além disso, devem existir fontes, disponíveis ou por serem descobertas, capazes
de matizar a compreensão da trajetória de Borges, para além do que fui capaz de
fazê-lo. Como afirmei anteriormente, tudo o que espero ter alcançado é o maior
grau de aproximação possível a um entendimento do tema, aproveitando os
recursos que mobilizei com consciência de suas limitações, na tentativa de
ampliar os significados possíveis dos artigos estudados, e não de reduzi-los a um
julgamento esquemático.
Por este motivo, de maneira alguma pretendo dar a entender que a obra
ficcional de Borges tem como única chave de leitura o contexto político de sua
época. Apenas um temperamento paranóico seria capaz de ver, em cada uma de
suas manifestações literárias, uma alusão, reação ou comentário a acontecimentos
factuais específicos. Ainda assim, acontecimentos factuais podem ser sintomas de
transformações culturais de longa duração, com suas diferentes ressonâncias no
campo da sociedade, da linguagem e da política, sem que nenhum deles tenha
uma predominância estrutural sobre o outro. E uma das surpresas com que me
deparei na pesquisa foi um Borges bastante atento a tais transformações, muito
distinto da figura livresca e asilada em uma biblioteca, tal como sua imagem se
celebrizou durante décadas. Menciono estes dois pontos agora porque eles estão
em relação direta com o prosseguimento desta exposição introdutória, uma vez
descritas as bases sobre as quais o terceiro capítulo se desenvolve.
A paranóia, afinal, foi ela mesma um assunto sobre o qual me detive no
exame da produção literária de Borges no ano de 1940. Pois, naquela conjuntura
em particular, diante de várias indicações de que o domínio do continente europeu
pelos alemães seria o desfecho provável da guerra, a idéia de uma conspiração
internacional que elevasse esta conquista à escala planetária não era de todo
absurda. Ou melhor, era absurda, “fantástica”, “irrealista”, e como tal, segundo
Borges, de uma enorme pobreza imaginativa, equivalente à indigência que ele
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encontrava nas eufóricas formulações discursivas do nazismo. Mas vinha
adquirindo uma efetivação concreta aterrorizante, o que o teria levado a admitir,
em uma total inversão de papéis, que talvez os fanáticos estivessem com a razão.
Havia-se chegado, com isso, ao momento culminante de um transtorno
generalizado dos padrões de leitura da realidade considerados razoáveis, do ponto
de vista do pensamento oitocentista, e ao máximo declínio de um sentimento de
confiança, que teria caracterizado a atuação inglesa até o início do século XX. Isto
estimulava a percepção da história como um conjunto de acontecimentos
inelutáveis, posto que obedeceriam a um plano secreto e em vias de realizar-se,
cuja representação pode ser detectada em “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius”, escrito
pelo autor em 1940. Por contraste em relação ao que afirmei antes, portanto,
afirmo agora que neste caso, e somente neste caso, a obra ficcional de Borges
possui uma chave de leitura única, dado o estado de espírito com que o conto foi
escrito, sendo nele colocados em operação os mecanismos literários da paranóia e
da alegoria política. Gênero que, por sua vez, seria o índice da mais completa
degradação da literatura, conforme ela se originasse em uma tentativa de
interpretação totalizante dos signos do real.
Mas, na seqüência, a relativa distensão deste clima de entusiasmo e
desespero correlatos parece ter tido certa influência na composição de outras
narrativas. Da possibilidade de que elas fossem analisadas de acordo com um
conjunto mais aberto de referências, ainda que delimitado pelos objetivos restritos
de minha proposta. Para tanto, estabeleci um recorte de relatos, em particular os
do gênero policial, publicados por Borges durante a década de 1940, pois aspectos
formais e estilísticos dos mesmos se mostraram pertinentes na elucidação do
argumento. Tratava-se, então, de ver como as ficções do autor atualizavam e
exploravam algumas distinções relativas às idéias de “Inglaterra”, “França” e
“Alemanha”, segundo os modelos que procurei configurar, em consonância com o
percurso intelectual e político de Borges.
E, a partir dos contos policiais de Chesterton, foram delineados os traços de
um paradigma comparativo central, remetendo à tradição da comédia inglesa, com
sua sustentação na eficácia do common sense, suas evoluções baseadas na
confiança e na providência, sua ingenuidade e mediania moral. Contudo, este seria
um eixo de equilíbrio que se destacava, nos contos policiais de Borges, por sua
ausência, sobre a qual se erguiam sofisticados e extravagantes constructos
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simbolistas e expressionistas, tendo como referência a tragédia grega ou as
epopéias bárbaras. Pela via do horror trágico e da crueldade desumana, ambas
postulariam a radicalidade do mal, em contraste com a concepção de um espírito
compassivo e misericordioso, presente nas transações cômicas a que me refiro.
Mas, nos escritos examinados, não obstante o reconhecimento do vazio deixado
pelo abandono ou pela inexistência deste poder configurador, vejo também uma
inclinação satírica e paródica, informada pelo ceticismo quanto aos excessos
retóricos, e apontando para um fenômeno de banalização do trágico e do épico,
com ênfase na afetação gestual e oratória dos personagens.
Esta etapa encerra o argumento de que se ocupam os três primeiros
capítulos. Dele, depreende-se que, após ter buscado recuperar a substância do
projeto nacional oitocentista argentino, em uma intervenção direta na vida pública
local, e acreditar no renascimento do caráter britânico, diante dos eventos iniciais
da Segunda Guerra, Borges terminou por aceitar o fato de que ambos haviam
ficado definitivamente para trás. Porém, do segundo elemento, ao menos, ele
preservou ou reincorporou determinados atributos a ingenuidade”, a ironia, o
humor capazes de ver as extravagâncias estéticas e políticas do século XX em
uma perspectiva distanciada. Coube-lhe viver em uma época tumultuada,
irracional e violenta, o que implicou seu deslocamento do cenário político, e sua
resignação a ser um observador das transformações que então estavam ocorrendo.
Mas, deste posto de observação, como no caso de Montaigne, tornou-se um
comentarista perspicaz e incisivo ainda que poucas vezes sentencioso ou direto
– dos debates e choques culturais de seu tempo.
Outras duas ressalvas merecem ser feitas neste ponto. A primeira delas diz
respeito à idéia de “civilização ocidental”, tal como Borges a caracterizou: uma
sobreposição de ritos, inibições, lembranças, habilidades e bitos, associados a
cada uma das grandes nações européias, em suas configurações culturais e
históricas. A partir destes componentes e restrições, portanto, cada uma delas teria
dado sua contribuição à formação de um legado moderno, em que o melhor da
cultura italiana, por exemplo, estaria representado pela obra de Dante, o mesmo
valendo para Cervantes, no caso espanhol, Goethe, no caso alemão, e Montaigne
ou Voltaire, no caso francês. Assim, a caracterização muitas vezes pejorativa de
“Alemanha” e “França”, verificada em sua obra, devia-se a uma situação peculiar,
de degradação de costumes associados a estes contextos, que inclusive se voltava
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contra a herança clássica de cada um deles, ao deturpá-la e corrompê-la. Enquanto
o produto do esforço de seus verdadeiros artífices permanecia disponível, vivo e
revigorado, àqueles que prezassem o poder de encantamento dos grandes textos
literários de diferentes períodos.
A outra ressalva é decorrente desta. Trata-se do problema da aceitação, por
parte do autor, de que o momento do auge da tradição inglesa havia ficado para
trás. Entendo que isto implicava um gesto de desapego, de “abrir mão” de uma
supremacia cultural e histórica, condizente algumas virtudes do próprio caráter
britânico, tal como incorporadas por Borges (embora estas nem sempre fossem
exercidas pelos seus representantes, em particular no que se refere ao
imperialismo, mais ainda no momento em que este decaiu em uma questão
meramente auto-afirmativa). Neste sentido, a identificação da idéia de
“civilização” com a idéia de “Grã-Bretanha” seria contrária à ironia e ao
understatement que caracterizavam a segunda, convertendo-se em motivo de um
orgulho civilizatório sem base na realidade, e, portanto, inclinado a operar ações e
reações não apenas desmedidas, como também incompetentes, em termos práticos
(o Tratado de Versalhes é o melhor exemplo destas).
Certa vez, Borges mencionou uma frase de Bertrand Russel segundo a qual
a “civilização” não corria perigo por causa do declínio da Inglaterra, que bem
poderia ser substituída pela China, como centro irradiador de ritos, hábitos,
costumes, inibições e preconceitos locais. Hoje, o prognóstico não parece de todo
desacertado, e, levando-se em conta a observação weberiana de que os chineses
são os “ingleses do oriente”, ou vice-versa, talvez ele fosse o preferido pelo
escritor argentino. Mas, ainda que venha a cumprir-se, o se tendo como
intervalo um considerável período de inconteste predomínio da cultura norte-
americana, ao menos deste lado do globo. E considero que esta última e decisiva
mudança, dentro do recorte cronológico de meu trabalho a consolidação dos
Estados Unidos como potência mundial –, teacarretado também uma mudança
de atitude da parte de Borges. Este é o assunto do último capítulo.
Recorde-se então que a utopia pacifista francesa foi derrotada em 1940; a
utopia bélica germânica, em 1945. Entre uma coisa e outra, as hesitações e a
debilidade inglesa expuseram a necessidade da intervenção norte-americana no
conflito, de modo que seu desfecho fosse favorável às nações democráticas. E esta
intervenção determinou a culminância de um processo de longa duração, relativo
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à tradição anglo-saxônica, cujos efeitos podiam ser sentidos desde as últimas
décadas do século XIX: o de uma substituição dos paradigmas econômicos e
sócio-culturais predominantes no ocidente, com a emergência dos Estados Unidos
e o crepúsculo da Grã-Bretanha. Em grande parte, a reação alemã contra alguns
pressupostos do capitalismo contemporâneo eram devidas a tal desdobramento,
até porque a crise econômica dos anos 30 podia ser creditada à dinâmica do novo
sistema financeiro. Por isso mesmo, havia um sentido histórico no rompimento do
isolacionismo político dos EUA, de modo que o país reafirmasse sua supremacia
no panorama internacional.
O ano de 1945 é o marco deste processo. A partir daí, ficaria evidente uma
polarização que, até mesmo geograficamente, substituía a centralidade européia,
conquistada com a constituição do mundo das nações durante a idade moderna,
pelos extremos da democracia norte-americana e do comunismo soviético. No
âmbito deste trabalho, o primeiro destes modelos adquiriu maior relevância. É
verdade que, após o encerramento da Segunda Guerra, a Argentina seguiu um
curso político singular, por causa da ascensão do peronismo, que contrariava
tendências verificadas no resto do continente. Mas, com base em fontes a serem
citadas, devo argumentar que, ao entender o desfecho do conflito como um
momento de abertura a novas possibilidades literárias em sua carreira, Borges o
estava interpretando de acordo com uma imagem do mundo que ele havia
encontrado na literatura norte-americana, sobretudo nas obras de Hermann
Melville e Walt Whitmann.
A primeira serve como termo de comparação para uma leitura de “La
biblioteca de Babel”, conto escrito pelo autor em 1941, que, a meu ver, fornece o
quadro prévio relacionado ao assunto, no qual aquelas novas possibilidades
emergiriam. E neste caso, antes de tudo, era preciso ressaltar o aspecto
desordenado e caótico do universo ali descrito, bastante distinto da ordem
conservadora inglesa, e povoado por indivíduos atomizados, em constante busca
por uma salvação pessoal. O modo como Borges se situou na narrativa, na figura
de um habitante perplexo deste orbe ilimitado, tornou-se, assim, um enfoque
apropriado à seqüência do exame. Daí inserção, no conjunto da análise, de um
ponto de articulação entre a tradição britânica e os autores norte-americanos: a
obra de Franz Kafka. A justificativa do procedimento, desenvolvido no plano da
genealogia literária, está nos comentários de Borges sobre o autor tcheco, onde ele
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geralmente surge atrelado a representantes da cultura anglo-saxônica, seja através
de sua comparação com Chesterton, seja através de sua associação a Melville.
Segundo este caminho interpretativo, os protagonistas kafkianos seriam
criaturas exiladas do velho mundo, que não encontravam um lugar na ordem (ou
melhor: desordem) contemporânea. Porém, partindo exatamente desta condição,
Borges teria escrito o relato em que aplicaria suas mais genuínas intenções
artísticas. Nas palavras do escritor, “El Aleph (1948) era uma tentativa de
“conciliar os hábitos literários de Kafka e Walt Whitman”. Ou seja: um esforço no
sentido de alcançar a emoção poética diante do aspecto fragmentado e pulsante da
experiência do mundo novo, que tivesse como origem a própria perplexidade, e a
ela retornasse, após o instante de uma epifania. Na caracterização deste fenômeno,
certa sobrevivência dos costumes cômicos britânicos, como via para a
contemplação mística; mas sem que esta possa deter-se na união do poeta com seu
objeto de desejo, recaindo sempre, mais uma vez, em uma diferenciação e em uma
separação, o que configura um gesto de uma renúncia. Possíveis implicações
políticas, decorrentes deste entendimento do papel da poesia, são discutidas no
final da seção sobre o tema.
Por último, apresento uma leitura dos eventos que levaram Borges a
destacar-se como conferencista no final da década de 1940, quando ele passou a
se dedicar à mais bem-sucedida atividade de sua carreira. Esta foi uma
oportunidade de dar um desfecho, mesmo que inconclusivo, ao acompanhamento
da biografia do autor, que atravessa todo o estudo. Foi então igualmente retomado
o problema de sua inserção no cenário artístico e intelectual do pós-guerra,
entendido como um contexto lingüístico, com suas restrições e possibilidades.
Assim, na análise dos métodos discursivos de Borges, procurei demonstrar como
estes se dariam de acordo com uma tentativa de organização, mesmo que efêmera
e precária, de um universo de signos e palavras desordenadas. O que, novamente,
aponta para a “adaptação” de sua índole conservadora e oitocentista a um “mundo
norte-americano”.
Deixo para a conclusão do trabalho algumas observações que ainda
pretendo fazer a este respeito. Por ora, espero apenas que tenha sido elucidada sua
orientação geral, e alguns tópicos específicos em que ela se sustenta, para que
leitor esteja prevenido quanto ao tipo de abordagem que será feita. Optei por fazer
uma introdução mais extensa justamente para que ela seja um guia de leitura
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confiável, evitando maiores surpresas para aqueles que decidirem continuar daqui
em diante, e para que esta decisão não se no escuro. Todavia, com o
detalhamento da pesquisa, e a exposição mais detida das reflexões em que se
baseia o argumento, acredito que surgirão oportunidades de discuti-las sob outras
perspectivas, de modo que venham a adquirir maior fundamentação documental e
teórica.
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2
Grandeza e Misérias de Buenos Aires (1921-1930)
A década de 1920 foi em Buenos Aires um período de agitação cultural. A
expressão é apropriada por referir-se não exatamente a grandes realizações nos
campos da filosofia, da política ou da arte, e sim à sensação de inquietude que se
segue à derrocada de determinados padrões de conduta estabelecidos, e antecede
sua substituição por outros modelos de ação e de pensamento. Na maior parte do
mundo ocidental do pós-guerra, um vazio se havia instalado no lugar onde antes
estava a confiança nos valores legados pela tradição. E, no caso argentino em
particular, a idéia de uma pátria que vencera a barbárie, e se incorporara ao
conjunto das nações progressistas, se deparou com uma juventude que não se
identificava com seus pressupostos. De fato, em uma sociedade em processo de
transformação, conceitos e doutrinas formulados de acordo com outro contexto
pareciam perder o contato com a experiência, incapazes de servir como
mecanismos de entendimento e configuração da realidade. Surgia, assim, uma
nova geração, estimulada pelo ambiente de expectativa quanto às suas energias e
capacidades criativas, disposta a produzir toda uma nova concepção integradora
da cidade, do país e do mundo, a partir dos fragmentos que as antigas convicções
já não eram capazes de reunir em uma imagem coerente.
Jorge Luis Borges era então um jovem poeta que, após ter integrado um
grupo de vanguarda espanhol por um breve período, encontraria em sua terra natal
o primeiro grande impulso de sua carreira artística. De volta a Buenos Aires, após
uma viagem familiar motivada pela necessidade de tratamento médico do pai, viu
uma cidade em meio a processos de expansão territorial, mobilidade social e
aumento da população sobretudo com a entrada de imigrantes –, que estava se
transformando em uma metrópole moderna, com todos os problemas e promessas
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que esta transformação implicava. Segundo José Luis Romero, era a representante
mais notável entre as capitais latino-americanas que, de 1880 em diante,
adquiriram um aspecto de “irreprimível e ilimitada aventura”.
1
O que trazia
consigo o sentimento de um momento histórico particular, marcado pela
intensidade das mudanças, e pela abertura de possibilidades a serem exploradas
por quem estivesse disposto a assumir os riscos. Por outro lado, esta aceleração
gerou também reações, as quais apontavam para a retomada de valores e atributos
permanentes do caráter argentino, apresentados sob a forma de mitos de fundação,
que estariam sendo substituídos pela absoluta ausência de qualidades do homem
dos novos tempos. Mesmo que de maneira pouco sistemática, dada a urgência do
momento, novas idéias, teorias e utopias eram mobilizadas para dar conta de um
iminente renascimento cultural; a pressa podia comprometer sua consistência,
mas, de maneira alguma, limitava suas ambições.
“A modernidade é um cenário de perdas, mas também de fantasias
reparadoras”, escreveu Beatriz Sarlo ao tratar do assunto.
2
E os primeiros poemas
publicados por Borges caracterizariam este fenômeno de um modo singular.
Habitante de Palermo, e identificando os signos de suas origens na paisagem do
bairro, ele se propôs a tarefa de ser um poeta do subúrbio, e assim dar forma
àquela área de transição entre o pampa e a cidade. De um lado, estava a grande
planície silenciosa, que se estendia indefinidamente, nação mitológica do gaucho,
e que muitos viam como a fonte de todo o vigor da nação argentina; de outro, a
metrópole babélica, labiríntica, povoada por criaturas anônimas e exiladas. Mas a
peculiaridade urbanística de Buenos Aires fazia do arrabal uma área em que os
limites entre uma coisa e outra não eram muito nítidos, e na qual o gesto da
imposição de uma forma geométrica à cidade, operado de acordo com o modelo
francês, perdia eficácia ao se afastar do centro do mesmo modo como a suposta
vitalidade natural do pampa perderia força ao se aproximar da cidade.
3
Este
aspecto de zona intermediária se expressava também na constituição populacional
1
ROMERO, J. L. Latinoamérica. Las ciudades y las ideas. Buenos Aires: Siglo XXI Editores
Argentina, 2007 [1976], p. 247.
2
SARLO, B. Una Modernidad Periférica: Buenos Aires 1920 y 1930. Buenos Aires: Ediciones
Nueva Visión, 1988, p. 29.
3
Para um acompanhamento das intervenções e evoluções urbanísticas que criaram este cenário,
ver Adrián Gorelik, La Grilla y el Parque: espacio público y cultura urbana em Buenos Aires,
1887-1936. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 1998.
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dos subúrbios, povoados por uma classe média difusa, cujo lugar na nova ordem
sócio-política não estava muito bem assinalado.
E, ao vivenciar o processo de rebaixamento social e material de sua família,
de cepa criolla, com antepassados heróicos na história argentina, mas em
dificuldades financeiras, acentuadas pela condição de saúde do pai, Borges teria
encontrado precisamente ali o lugar para exercer um refinamento dos sentidos
característico dos epílogos de uma estirpe declinante.
4
Considerava-se herdeiro de
uma tradição, que dele exigia uma nova forma de síntese de seus valores. “Os
anos que vivi na Europa são ilusórios”, escreveu então em um poema. “Eu estava
(e sempre estarei) em Buenos Aires”.
5
Surgia, ainda de maneira tateante, a proposta de distinguir naquele universo
em expansão os elementos que preservariam uma substância imune a todas as
transformações, como peças desgarradas de uma totalidade que ameaçava
desfazer-se, mas exibia ainda nebulosas imagens de sua existência. O
empobrecimento da experiência deveria assim ter, como contrapartida, a
promoção dos mais insignificantes temas a motivos de júbilo e exaltação, para que
a percepção de uma falta fosse imediatamente compensada pelo seu contrário: a
elevação do espírito que reencontra um lar. Fervor de Buenos Aires, título do
primeiro livro de poemas publicado por Borges, escrito sob o impacto de seu
retorno, reflete justamente esta dinâmica, sem estabelecer-se em definitivo em
nenhum dos dois pólos. Poemas como “El Truco” e “Un Patio” são motivados
pelo reconhecimento de práticas e objetos cotidianos como impulsos de
especulação metafísica, ou focos de amorosa contemplação, capazes de abandonar
uma posição histórica, para assumir o caráter de idéias platônicas, eternas e
imutáveis. Mas estas mesmas práticas e objetos parecem sempre a um passo do
apagamento de sua figura, de modo que o poeta pode captá-las como imagens
fugidias, que nunca chegam a ser totalmente delimitadas no artefato estético.
Tendo Walt Whitman como modelo de genialidade artística, a pretensão de
Borges era a de tornar-se um escritor universal, em um sentido específico: o da
identificação do artefato poético com o cosmos, seus ritmos e modulações.
Também muito influenciado pela leitura de Schopenhauer, concebia este cosmos
4
A importância destes condicionamentos na trajetória intelectual de Borges foi ressaltada por
Sergio Miceli, em “Jorge Luis Borges: história social de um escritor nato”. Novos Estudos Cebrap,
São Paulo, n. 77, março de 2007.
5
BORGES, J. L. “Arrabal”. In:____. Fervor de Buenos Aires. OC, vol. 1, p. 35.
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como uma sucessão de ciclos que apagavam os limites da individualidade,
submergindo-a em uma elegante estrutura metafísica. Ao mesmo tempo, voltava-
se para os mais familiares indícios desta indiferença universal às singularidades
humanas: isto é, as imagens do subúrbio, nas quais reconhecia um misterioso
pertencimento de seu espírito ao torrão natal, e deste à eternidade. O meio e o
propósito não eram excludentes. Toda essência pode ser entendida como
universal, não estando sujeita a quaisquer limitações de tempo ou espaço em sua
existência autônoma. Regionalismo e metafísica seriam, no caso, uma coisa só,
pois é da própria terra que emerge a idéia absoluta, cabendo ao artista perscrutar a
terra, distinguir a idéia das contingências, e expressá-la em seus versos. O que, ao
mesmo tempo, torna a imagem e o cosmos duas coisas separadas: da mediação
entre ambas surge o poema.
No entanto, se a época exigia o restabelecimento de idéias gerais, que
servissem a um novo entendimento do mundo, para isso os poemas isolados de
Borges eram insuficientes. A experiência que eles propõem não chega nunca a
configurar estruturas estáveis para a re-fundação da comunidade, pois o efeito que
eles alcançam é da ordem do mistério, algo que não pode ser fixado como um
conceito, mas apenas sentido em uma fugaz experiência sensitiva. Por outro lado,
a se confirmarem algumas hipóteses deste trabalho, seria por causa desta limitação
que o autor, décadas depois, não excluiria Fervor de Buenos Aires do corpo de
suas obras completas, no qual também foram mantidas outras compilações de
poemas publicados na década de 1920. Mesmo considerando-os ineptos, ou
destituídos da vitalidade que exigiriam seus propósitos, Borges nunca deixaria de
sentir que algo os legitimava, mesmo que fosse apenas uma precária sensação do
belo. Ou a ambigüidade fundamental que os atravessava, conferindo, a toda
possibilidade de euforia, um contraponto dubitativo e hesitante, que impedia o
mistério de conformar-se como um segredo mítico, revelado pela leitura
iluminada dos signos da terra.
Contudo, nos ensaios que Borges escreveria no período, e excluídos de suas
obras completas décadas depois, dá-se uma operação que elimina toda parcimônia
ainda verificável em sua poética: a conversão do mistério em um projeto político,
apresentado sob a forma de uma cosmogonia.
Neste capítulo, pretendo avaliar os fundamentos e evoluções desta
transformação. Em primeiro lugar, trata-se de entender, em sua especificidade, um
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tipo de postura intelectual freqüente na época. Pois a transposição de intuições
estéticas em modelos utópicos de organização social tornava-se então uma prática
comum, que atraía as atenções de todo um público insatisfeito com valores
considerados antigos e degradados, e ecoava na produção dos jovens de Buenos
Aires, favorecendo polêmicas e adesões extremadas nas páginas de Martín Fierro,
Proa e Inicial, entre outras revistas da nova geração. Nem sempre estas
controvérsias expressavam uma vinculação séria a determinadas ideologias, ou
um entendimento claro de suas implicações práticas, sendo marcadas sempre por
uma inconstância que não excluía a brincadeira e o mero virtuosismo retórico.
Ainda assim, em seus ensaios, Borges oferecia um modelo visionário de
configuração social não totalmente destituído de coerência filosófica; e meu
propósito inicial, portanto, será o de esboçar uma breve análise dos elementos
deste modelo, de modo que algumas de suas derivações lógicas possam ser
demonstradas.
Em segundo lugar, devo notar que, apesar de elaborarem uma proposta com
aspectos metafísicos, artísticos e políticos indistintos, os ensaios de Borges
propagavam também uma revisão histórica entrevista em seus poemas com
um propósito bastante nítido, e vinculações partidárias imediatas. Mais
especificamente, exaltavam a figura de don Juan Manuel Rosas, o célebre
personagem demoníaco do Facundo de Sarmiento, como a legenda detentora dos
verdadeiros atributos do povo argentino, e uma legenda que teria um representante
político concreto na Buenos Aires da década de 20, o ex-presidente Hipólito
Yrigoyen. Desta conexão, teria surgido o entusiasmo com que Borges participou
da reeleição de Yrigoyen em 1928, sentindo-a como um momento de ressonância
épica na história da nação, bem como na trajetória de sua geração, e em seu
próprio percurso pessoal. Devem ser então examinados os mecanismos do vínculo
entre a ensaística de Borges, sua militância política, e a sociabilidade singular
relacionada ao culto do velho caudilho, sobretudo no que diz respeito aos
subúrbios da cidade, matéria de fascínio de jovens intelectuais do período, entre
eles Jorge Luis Borges.
O terceiro ponto refere-se aos eventos que se seguiram à arrebatadora
consagração de Yrigoyen pelo sufrágio. Isto é, ao crescente desgoverno que
tomou conta da sociedade argentina na ocasião, até que, em 1930, uma
restauração conservadora fosse amplamente aceita como remédio para os males
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35
do populismo radical. Mais especificamente, a seção tratará da obra que Borges
concebeu e elaborou durante estes anos, na medida em que nela possa ser
detectada uma modificação de seu ponto de vista sobre a cultura popular de
Buenos Aires, sem que isso significasse a dissolução de seu interesse na mesma, e
tampouco a aprovação do golpe militar. O desafio é captar, neste momento, um
câmbio de perspectiva sutil, mas amplamente sugestivo, em relação às qualidades
literárias e políticas que o autor apreciaria a partir daí. Mas somente um
desenvolvimento ulterior do estudo pode conferir o devido peso a este
argumento.
Por fim, estes três tópicos serão importantes para entender a contínua
reavaliação que Borges faria do papel de sua geração na vida intelectual argentina.
O tema deverá ser recorrente neste estudo, tanto quanto o foi em sua obra. Pois,
com variações de ênfase, ele voltaria sempre o olhar para a época de sua
juventude, assinalando por vezes as conseqüências trágicas de uma atuação
irresponsável, mas recordando também a Buenos Aires dos anos 20 como um
lugar pacífico, em que as trocas intelectuais se davam em um clima de amizade, e
até mesmo inocência. Uma pequena discussão sobre esta ambigüidade será feita
no final da última seção do capítulo.
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2.1
Segredos da Terra, Castelos no Ar
NINA: …e, depois disso, a matéria e o espírito se fundirão em uma harmonia maravilhosa
e terá início o reino da vontade universal.
Anton Tchekhov, A Gaivota
Inicio esta etapa com a hipótese de que os primeiros ensaios de Borges
correspondessem a uma tendência mais ampla no panorama intelectual de sua
época, a qual encontrava, na expressão artística, um reservatório de energias e
formas a ser mobilizado no momento de uma crise. Isto em uma perspectiva
generalizante. No que se refere aos casos particulares sem pretender formular
uma análise detalhada a respeito dos múltiplos personagens e argumentos que
integravam o debate –, segue a menção a alguns nomes que, além de
eventualmente serem encontrados nos escritos de Borges, servirão como termos
comparativos, por apresentarem semelhanças e diferenças a serem enfatizadas. O
que nos põe de acordo com um pressuposto decorrente dos trabalhos de Zeev
Sternhell, e reafirmado por outros pesquisadores, segundo o qual as grandes
forças de radicalização política do século XX teriam sido precedidas por um
movimento cultural bastante vasto, para o qual convergia o inconformismo radical
com a situação contemporânea. Mas exige também a delimitação de distinções no
interior deste movimento, de maneira que sejam compreendidos os princípios nos
quais, em certos casos, se fundamentaram novas práticas e regimes de governo.
6
A partir da evocação da herança clássica, o fenômeno pode ser identificado,
em um primeiro momento, na Itália e na França (porém, por vezes, sob alguma
influência da filosofia alemã do século XIX). O escritor italiano Gabrielle
d’Annunzio terá sido um de seus pioneiros. Leitor de Nietzsche, d’Annunzio
6
Cf. STERNHELL, Z., SZDAJER, M. y ASHERI, M.. El nacimiento de La ideología fascista.
Trad. Octavi Pellisa. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 1994. p. 2-4. Ver também GRIFFIN,
Roger. “The reclamation of fascist culture”. European History Quarterly, vol. 31, n. 4, 2001, p.
609-620.
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encontraria, em certa concepção da tragédia grega, o modelo ideal da sociedade
que deveria substituir os padrões burgueses e liberais, cujos poderes degenerativos
apontavam para a necessidade de se restabelecer uma unidade no plano da cultura
– no caso, a cultura italiana, que demandaria outro renascimento com urgência. E
a possibilidade de uma síntese trágica lhe oferecia justamente a iminência da
consagração de um novo homem e de um novo mundo, através de um sacrifício
purificador do espírito, capaz de resgatar, no passado, o instante em que este teria
se desvirtuado, e reverter esta revelação em uma catástrofe redentora. O que
implicava a predisposição heróica ao enfrentamento de uma morte violenta, por
parte dos indivíduos e de todo o corpo social. Todavia, na medida em que, no
plano político, este momento estava situado sempre adiante, como finalidade
nunca completamente alcançada, mesmo que fatalmente necessária, ele resultava
em um meio de intensificação da experiência cotidiana, que seria por si mesmo
um processo de revitalização cultural. A pátria entendida como tragédia era um
conjunto que mobilizava a totalidade de suas forças em um constante movimento
na direção de uma redenção coletiva; e estas mesmas forças intensivas deveriam
servir ao restabelecimento de Roma como sede de um império colonial. Segundo
alguns estudiosos, o estado fascista de Mussolini, que, a princípio, contou com a
participação de d’Annunzio, apropriou-se deste modelo para alimentar as
expectativas quanto aos seus desígnios mais imediatos. E a seguinte geração de
intelectuais italianos, marcada pelos ideais futuristas, em consonância com os
objetivos do regime, retomou a idéia de um movimento perpétuo que seria, ele
próprio, o signo de um revigoramento da cultura nacional.
7
Também entre os intelectuais franceses, foi difundida a idéia de que o curso
da sociedade burguesa seria interrompido por uma catástrofe iminente, sintetizada
em uma imagem de caráter tico. Com uma proposta de revisão do marxismo,
informada pela obra de Henry Bergson, Georges Sorel intuiu assim uma greve
geral arquetípica, que seria responsável por este acontecimento redentor,
atribuindo ao operário o gesto heróico e violento que operaria a passagem súbita
7
Cf. WITT, Mary Ann Frese. “D’Annunzio’s nietzschean tragedy and the aesthetic politics of
fusion”. In: ____. The Search for Modern Tragedy: aesthetic fascism in Italy and France. Ithaca:
Cornell University Press, 2001, p. 32-88. GUMBRECHT, H. U. I Redentori Della Vittoria: do
lugar de Fiume na genealogia do fascismo”. In: ____. Modernização dos Sentidos. Trad. Lawrence
Flores Pereira. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 182-220. GENTILE, Emilio. “The myth of national
regeneration in Italy: from modernist avant-garde to fascism”. In: AFFRON, Matthew, and
ANTLIFF, Mark (editors). Fascist Visions: art and ideology in France and Italy. Princeton:
Princeton University Press, 1997, p. 25-45.
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38
do capitalismo ao socialismo.
8
Este evento compreenderia uma representação
completa da soberania popular, sintetizada em um símbolo de significado
imediatamente acessível a todos, na mais intensa expressão de um ato
revolucionário. E, com isso, no lugar de estabelecer a grande mudança no plano
da Nação, Sorel o entendeu como o marco de uma reviravolta da Humanidade,
com toda a capacidade de abstração desta idéia que a tradição francesa lhe
concedia.
Cito estes dois exemplos, de conversão de uma experiência estética em um
ethos político, para indicar, por contraste, algumas características dos textos
programáticos de Borges a serem analisados. Pois neles não se encontram nem a
valorização futurista da velocidade, e nem a clarividente concisão simbólica de
Sorel. Como ficou assinalado, os primeiros poemas de Borges resultavam de uma
posição contemplativa do mundo, cujos símbolos se agrupavam em um cosmos
misterioso e difuso, que poderia servir ao projeto utópico de modo pouco
sistemático. E com isso quero sugerir que, ao encontrar no barrio, isto é, no torrão
natal, a matriz das energias de um renascimento cultural argentino, Borges
distinguia sua proposta das já mencionadas, aproximando-a de aspectos mais
propriamente encontrados na tradição germânica, e enfatizando a possibilidade de
se distinguir, entre os argentinos, os portadores de um segredo popular inviolável,
correspondente aos segredos que já então se atribuíam ao volk alemão. Nesta
perspectiva, seu criollismo corresponderia a uma noção ontológica, capaz de
adquirir uma dimensão metafísica no estágio em que então se encontrava. Mas,
antes de desenvolver melhor este ponto, pode ser útil avaliar algumas
características da produção crítica do jovem Georg Lukács.
Pois também Lukács entendeu que a alienação do homem na sociedade
moderna requeria um movimento de reunificação dos fenômenos da vida em uma
totalidade de significados estáveis. Este era para ele o problema da cultura, que
deveria ser o lugar de expressão das potencialidades humanas, em acordo com
uma autêntica organização comunitária. E, entre os produtos culturais que melhor
manifestavam este vínculo, estaria a obra de arte, capaz de articular, em sua forma
interna, uma representação das estruturas e ritmos da vida, de modo a converter-se
8
Cf. KAPLAN, Alice Yaeger. “Slogan Text: Sorel”. In: ____. Reproductions of Banality: fascism,
literature and French intellectual life. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986, p. 59-
74.
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39
na possibilidade do reconhecimento de todos os integrantes da comunidade no
artefato estético. Na sociedade esgarçada dos tempos modernos, porém, esta
capacidade de mediação estaria se perdendo, fazendo da expressão artística apenas
uma fugaz sugestão de um cosmos ordenado, de uma luminosidade incerta, que
reafirmava a alienação do homem, no mesmo movimento em que buscava
solucioná-la. E esta sociedade rumava para o total apagamento de qualquer
lembrança de sua antiga coesão.
9
Em absoluto contraste com este cenário estaria a aldeia burguesa que ele
encontrou na obra de Theodor Storm. Com o que a própria categoria do “burguês”
ganhava um contorno muito distinto do que tinha em outras situações, referindo-
se ao “habitante do burgo”, o membro de uma congregação de camponeses e
artífices enraizada na terra pátria, e não ao bourgeois capitalista, de uma
existência marcada pela mobilidade das transações monetárias. Trata-se do
portador do segredo de um povo; no caso, uma figura modesta e laboriosa, de uma
simplicidade provinciana, cuja vida tem o ritmo das atividades de um ofício,
designado pela comunidade como forma de integração de todos em um mesmo
conjunto harmônico e auto-suficiente. Suas atividades são controladas pelos
modelos da tradição, mas envolve também um profundo amor por tudo o que é
concreto e cotidiano, de acordo com o “sóbrio sentimentalismo” a que se refere
Lukács, ao designar um pathos da quietude e do sossego, que envolve uma alegria
contida e uma severa serenidade.
10
A contínua repetição dos mesmos ciclos
confere aos indivíduos uma sensação de segurança e estabilidade; e, ao mesmo
tempo, deles emana a compostura e o apego espiritual à terra, que asseguram a
continuidade dos mesmos ciclos.
De acordo com esta descrição, enfim, Georg Lukács qualificou aquilo que
seria a grande epopéia da vida burguesa”, criando a imagem de uma utopia cuja
dissolução estava sendo determinada pela vida moderna. E, partindo de um
pressuposto semelhante, Thomas Mann assumiu a tarefa de narrar o colapso da
9
Cf. MÁRKUS, György. “Life and the soul: the young Lukács and the problem of culture”. In:
HELLER, Agnès (ed.) Lukács Reappraised. New York: Columbia University Press, 1983, p. 3-21.
10
LUKÁCS, G.”The bourgeois way of life and art for art´s sake”. In: ____. Soul and Form.
Translated by Anns Bostock. Cambridge: The Mit Press, 1980 [1910], p. 69.
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ordem provinciana e compreender suas conseqüências tendo como referência,
em grande medida, como demonstrou Eric Heller, a filosofia de Schopenhauer.
11
Este ponto é fundamental para a apresentação que se segue dos ensaios de
Borges. Por um lado, porque a concepção que ele formulou dos criollos de sua
comunidade imaginária compreendia elementos determinantes de quietismo e
taciturnidade, em contraste com a agitação dos imigrantes italianos estabelecidos
em Palermo, o que fazia por evidenciar os verdadeiros atributos da pureza do
caráter fundador a ser resgatado. Por outro, porque, na década de 20, ao mesmo
tempo em que publicava seus textos criollistas, Borges dedicava-se à especulação
filosófica, em textos como “La encrucijada de Berkeley” e “La nadería de La
personalidad”, apontando os aspectos ilusórios da subjetividade, e o apagamento
da identidade do artista em um cosmos ilimitado, de acordo com sua compreensão
de Schopenhauer. Cabe então esclarecer a ligação entre uma coisa e outra.
Em um esboço rápido, acompanhando o percurso de Heller, mas restrito ao
que é significativo à análise, pode-se dizer que Schopenhauer apresentou o
universo como um drama do conhecimento, orientado por sucessivos graus de
refinamento da consciência. Em um primeiro momento, o homem emerge de uma
natureza irreflexiva, trazendo ao mundo um movimento desagregador, a reflexão;
a partir daí, toda a sua busca estaria voltada para a re-imersão de sua identidade
em um universo impessoal. Mas – isto me parece decisivo – a própria sofisticação
alcançada pela mente humana modifica o tipo de universalidade à qual ela aspira:
sem mais possuir a ingenuidade que o fazia pertencer à sua origem ontológica, ele
encontrará na Vontade a redenção libertadora de seus limites individuais. Trata-se,
assim, da intuição de uma segunda inocência capaz de eliminar os limites que
levaram à dissolução da primeira. O que se revela, afinal, como uma passagem do
mais concreto ao mais abstrato, como, por exemplo, a substituição da família pelo
clã, e deste pela espécie, entendida como manifestação pura da Vontade, e
configurando um cosmos de nascimentos e mortes incessantes, com infinitas
energias para se manter através do sexo. A própria categoria do “antepassado”,
antes restrita à estirpe, é estendida a todas as vidas particulares, e todas as vidas
particulares tornam-se insignificantes diante da magnitude de seu novo lar. A
rotina ordinária de uma existência controlada é substituída pela rotina impassível
11
Cf. HELLER, Erich. Thomas Mann: the ironic German. South Bend, Indiana:
Regnery/Geteway, Inc., 1979.
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das forças vitais. Dos ritmos cíclicos da primeira inocência passa-se ao grande
ritmo cósmico da segunda. O que privilegia as expressões artísticas mais
refinadas, capazes de representar o mundo neste vel de abstração, ou seja, a
poesia e a música. Os segredos da terra tornam-se castelos no ar.
“A música o precisa do mundo”, observou Borges em 1928, ao
comentar uma passagem de Schopenhauer.
12
Assim, a crise decorrente da
desagregação da antiga comunidade terrena encontraria uma resolução idealista,
com a configuração de uma comunidade cosmológica universal. E, neste
processo, acontece a transição entre a disciplina e o êxtase, a passagem da
contenção ao entusiasmo, características do espírito alemão. A saudade do solo
pátrio se converte em mistério; e a mística da raça, em excesso metafísico. Com
isso, se chega àquele “universo ilimitado de associações e alusões”, que seria, para
Carl Schmitt, o universo do romantismo político, tendo como modelo a arte
musical, capaz de provocar a confusão de todos os conceitos, e ainda assim
simular o segredo de uma ordem cósmica mais profunda e mais verdadeira.
13
Trata-se também, enfim, da relação, não isenta de contradições, entre a imagem de
uma Alemanha conservadora, luterana, e os ideais de um primitivismo bárbaro
que ganhariam força a partir do final do século XIX, principalmente com Richard
Wagner.
14
No que se refere a Thomas Mann, este pode ser visto como o problema
nunca totalmente resolvido de toda uma vida e de toda uma obra, que nos leva do
início de Os Buddenbrooks (1901) até o final de Doutor Fausto (1947). Vejamos
então como, de maneira distinta, porque restrita a um momento isolado de
entusiasmo, alguns aspectos desta articulação teórica entre ontologia e metafísica
podem ser identificados na produção literária do jovem Borges.
O primeiro fator da questão foi assinalado: a relação sentimental que
Borges estabeleceu com a modesta paisagem de Palermo ao retornar a Buenos
Aires, transfigurada na intuição de uma alma criolla, etérea e transcendente, a
partir de imagens esparsas, recolhidas em caminhadas pela cidade. O autor não
abandonou estes temas ao escrever seus primeiros textos em prosa, mas percebe-
12
BORGES, J. L. “La penúltima versión de la realidad” [1928]. In: ____. Discusión. OC, vol. 1, p.
213.
13
Cf. SCHMITT, Carl. Romanticismo Político. Trad. Luis A. Rossi y Silvia Schwarzböck.
Quilmes: Universidad Nacional de Quilmes Ediciones, 2001 [1919], p. 170-171.
14
Ver também a este respeito BERMAN, Russel A. “German Primitivism / Primitive German: the
case of Emil Nolde”. In: GOLSAN, Richard (ed.) Fascism, Aesthetics, and Culture. Hanover:
University Press of New England, 1992, p. 56-66.
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se, nos ensaios recolhidos em Inquisiciones, de 1925, uma tentativa de
transformá-los nos fundamentos de um renascimento cultural de maior
abrangência. Com isso, ele ganhou a atenção de seus contemporâneos, nas revistas
que marcaram a produção intelectual argentina no período.
15
Sergio Piñero, por
exemplo, recebeu o livro na revista Martín Fierro como um dos melhores
publicados até então no país, ocupando-se em assinalar, em defesa de sua
avaliação, que as sentenças tortuosas e o virtuosismo retórico de Borges não
deveriam ser julgados de acordo com critérios clássicos, mas pelo valor intrínseco
que possuíam. Outras duas observações feitas no artigo são importantes. Em
primeiro lugar, a de que o criollismo de Borges parecia-lhe surgir de uma
recordação distante, que, ao mesmo tempo, dava uma sensação de intimidade do
poeta com todas as coisas que abordava. Mas a isso ele acrescentava uma
ressalva: “Como filósofo, [Borges] talvez empastele um pouco a metafísica”.
16
E da associação entre o poeta e o filósofo, reunidos em uma figura
visionária, surgiriam os ensaios compilados em El Tamaño de mi Esperanza
(1926). Neste caso, o primeiro componente da fórmula podia ainda ser ressaltado
por outro contemporâneo que, ao resenhar o livro, ressaltava a simplicidade
patriótica da prosa de Borges, sua familiaridade nostálgica com as velhas casas
criollas, afirmando que “da gusto sentirse en el corazón de tanta felicidad”.
17
Desta mesma felicidade tranqüila, no entanto, surgia um autor mais exaltado com
as possibilidades redentoras do arrabal.
em “Queja de todo criollo”, um ensaio recolhido em Inquisiciones,
Borges postulava uma dupla índole das nações, uma de aspecto “aparencial”, e
outra de natureza essencial”, de modo que, na metrópole moderna, a primeira
ocultaria a segunda sob uma superfície tumultuosa. A multiplicação das línguas e
a mobilidade urbana estariam, portanto, sobrepostas a uma verdade mais profunda
e resistente a toda mudança; o dever do poeta argentino seria reencontrar esta
15
Para uma análise das condições de emergência destes círculos vanguardistas, em contraste com a
situação sócio-cultural brasileira, cf. MICELI, Sergio. “A vanguarda argentina na década de 20
(notas sociológicas para uma análise comparada com o Brasil modernista)”. In: MARGATO,
Izabel, e GOMES, Renato Cordeiro. (orgs.) O Papel do Intelectual Hoje. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004.
16
PIÑERO, S. ‘Inquisiciones’, por Jorge Luis Borges”. Martín Fierro, segunda época, año II,
número 18, junio 26 de 1925, p. 4.
17
BERNÁRDEZ, F, L. “Un Borges de entrecasa”. Martín Fierro, segunda época, año III, número
33, septiembre 3 de 1926, p. 4.
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verdade, e eternizá-la.
18
Subsequentemente, em “La pampa y el suburbio son
dioses”, Borges conferia aos elementos substanciais do título o atributo de “coisas
arquetípicas”, que dependiam somente da enunciação de seus nomes para criar na
alma do portenho um júbilo ancestral. E, de tão eficazes em causar reverência,
seguiam capazes de atingir até mesmo uma embotada mentalidade moderna, para
devolvê-la às suas origens atemporais, muito embora apenas o autêntico espírito
criollo fosse capaz de identificá-las.
19
E foi justamente a estes criollos que Borges dirigiu o famoso ensaio que
dava título ao volume, transformando mais efetivamente suas pretensões em uma
tarefa coletiva.
20
O tom de conclamação do texto não deixa dúvidas quanto a este
propósito, voltado para a mobilização de todas as energias dos portadores do
segredo, em função de uma obra comunitária de grandes proporções. Pois, embora
ele afirmasse que ainda não havia surgido na cidade “nenhum stico e nenhum
metafísico”, ou seja, “nenhum sentidor e entendedor da vida”, estava claro que
muitos deles apenas aguardavam um chamado para se manifestarem. Apontar a
viabilidade prática do projeto era menos importante; ao apelar para sentimentos
supostamente comuns, o objetivo do texto seria o despertar de forças latentes, que
bastariam para a realização da totalidade de seus desígnios. Como se o próprio
instinto de cada homem pudesse indicar o caminho a ser percorrido, e tudo fosse
somente uma questão de possuir o vigor necessário para realizar os trabalhos que
os aguardavam:
Buenos Aires, mais que uma cidade, já é um país, e temos que encontrar a poesia e
a música e a pintura e a religião e a metafísica adeqüadas à sua grandeza. Este é o
tamanho de minha esperança, que a todos nos convida a ser deuses e trabalhar em
sua encarnação (…) Criollismo, pois, mas um criollismo que esteja em diálogo
com o mundo e com o eu, com Deus e com a morte. Vamos ver se alguém me
ajuda a buscá-lo.
21
18
BORGES, J. L. “Queja de todo criollo”. In: ____. Inquisiciones, p. 139-146.
19
BORGES, J. L. “La pampa y el suburbio son dioses”. In: ____. El Tamaño de mi Esperanza, p.
21-25.
20
BORGES, J. L. “El tamaño de mi esperanza”. In: _____. El Tamaño de mi Esperanza, p. 11-14.
21
“Ya Buenos Aires, más que una ciudá [sic], es un país y hay que encontrarle la poesía y la
música y la pintura y la religión y la metafísica que con su grandeza se avienen. Ese es el tamaño
de mi esperanza, que a todos nos invita a ser dioses y a trabajar en su encarnación (…) Criollismo,
pues, pero un criollismo que sea conversador del mundo y del yo, de Dios y de la muerte. A ver si
alguien me ayuda a buscarlo”. BORGES, J. L. “El tamaño de mi esperanza”. In: _____. El
Tamaño de mi Esperanza, p. 11-14.
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44
Com isto, ficava percorrido o trajeto entre as casinhas de teto baixo de
Palermo e a noção de uma Buenos Aires mitológica, a ser forjada pela nova
geração, no momento em que, com maior ênfase, Borges projeta um salto
transcendente que vai do barrio à cidade, da cidade ao país, e deste a um cosmos
aparentemente disperso, mas que seria articulado por uma Idéia, a expressar-se em
todas suas artes, ciências e disciplinas. Os leitores de seus contos reconhecerão aí
desde o universo descrito em Tlön, Uqbar, Orbius Tertius, de 1940. Mas os
quinze anos que separam os dois textos não devem ser ignorados.
Ainda em 1926, enfim, devo notar que as idéias de Borges encontraram
também resistências, cujo exame talvez possibilite um melhor entendimento de
sua inserção no ambiente intelectual argentino, além de proporcionar novas
perspectivas sobre o que foi apontado até aqui. Acredito de duas delas sejam
particularmente esclarecedoras, começando por artigos publicados por Antonio
Vallejo, mais uma vez na revista Martín Fierro.
Em um deles, intitulado “Poesía y sentimentalismo”, Vallejo indica aquilo
que seria o truque primordial de Borges: confundir a emoção afetiva e a emoção
poética, dois fenômenos muito distintos, segundo o crítico. Neste sentido, seu
principal alvo seria a atribuição fraudulenta de uma aura de mistério a vocábulos
como “pampa” e “subúrbio”, passíveis de se tornarem material estético somente
por antecedentes de índole biológica ou social.
22
Isto é, Vallejo apontava o
contexto restritivo ao qual se referia a poesia de Borges, bem como os vínculos
raciais que ela despertava, com isso atingindo também, diretamente, as pretensões
filosóficas resultantes deste conjunto. E, em “Criollismo y metafísica”, ele voltava
suas atenções para o paradoxo insensato da espera pelo Zarathustra” em uma
nação recente como a Argentina, sendo esta uma expectativa senil” da Europa.
Por outro lado, o crítico não deixava de expressar sua preferência por outro tipo
de doutrina redentora, de matriz italiana, a ser apropriada pelos intelectuais de
Buenos Aires. No mesmo artigo em que censurava as esperanças de Borges, ele
defendia a idéia de um “criollismo ametafísico”, projetado para o futuro, de
acordo com a velocidade dos novos tempos, liberto de quaisquer raízes
sentimentais.
23
22
VALLEJO, Antonio. “Poesía y sentimentalismo”. Martín Fierro, segunda época, año III,
número 34, p. 8.
23
VALLEJO, Antonio. “Criollismo y metafísica”. Martín Fierro, segunda época, año III, números
27-28, mayo 10 de 1926, p. 3.
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45
Por fim, em um texto anterior a estes dois, no qual não se referia
abertamente a Borges, Vallejo havia resumido suas posições contrárias àquilo
que considerava um jactancioso e monótono romantismo.
24
O artigo foi publicado
no período em que o vanguardista italiano F. T. Marinetti visitava Buenos Aires,
recebendo várias homenagens da jovem geração portenha, e tendo edições inteiras
da revista Martín Fierro dedicadas a assuntos relacionados à sua visita (um
motivo a mais, afinal, para a realização de jantares e encontros literários, muito
freqüentes na época). Vallejo aproveitou então a oportunidade para expressar a
“intenção higiênica” da arte que defendia, de acordo não apenas com os ideais
futuristas, mas com as doutrinas renovadoras do mediterrâneo de forma geral. E o
direcionamento político desta arte ficaria claro a partir do momento em que, com
a restauração da saúde do homem argentino, seria alcançada uma verdadeira
independência da nação, e a “imposição mundial” de seus próprios valores.
A polêmica apresenta duas vertentes com um mesmo propósito, o de
recuperar uma sociedade desvirtuada e decadente, sendo que ambas concordavam
também no papel fundamental que a arte teria nesta reviravolta, pois tudo passava
pela evidenciação estética de qualidades essenciais. No entanto, enquanto, em um
caso, estas qualidades brotariam de uma vinculação afetiva à pátria, transformada
no reconhecimento de estruturas ainda mais profundas e arcaicas de
pertencimento dos indivíduos a uma ordem superior, no outro a aposta era em
uma produção artística capaz de eliminar todos os resquícios das convenções
burguesas, criando um ambiente propício ao fortalecimento do homem,
condizente com finalidades militaristas e, em última instância, imperiais. O
primeiro corresponde a inclinações do idealismo alemão, o segundo está
associado a hábitos da vanguarda italiana. A distinção é importante, para
compreendermos fatores específicos da postura de Borges na época, capazes de
explicar sua trajetória na década de 20; mas, de um modo geral, como foi
indicado, ambas as posturas correspondiam a um mesmo clima de ruptura, que
pode ser visto em uma perspectiva mais abrangente.
E foi esta a perspectiva adotada por Juan Antonio Villoldo, que na revista
Nosotros encarregou-se falar à “brilhante juventude” de intelectuais argentinos,
24
VALLEJO, Antonio. “Entre nosotros”. Martín Fierro, segunda época, año III, números 30-31,
p. 1.
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46
em um artigo de março de 1925.
25
Assumindo a posição de um defensor
esclarecido do legado cultural moderno, tal como consagrado pelos séculos
anteriores o que era também a orientação editorial da revista em que publicava,
consonante com sua inserção no establishment literário argentino –, Villoldo
percebia, nas novidades proclamadas pelos jovens autores, o sintoma de um
ambiente histórico peculiar, que merecia maiores atenções. Sendo assim, a
motivação principal do texto era a repercussão positiva que o fascismo italiano
estaria encontrando entre os integrantes da nova geração, mas, como veremos, ele
também incluía uma advertência contra o tipo de pensamento favorecido por
Borges. Depreende-se então, da retórica de Villoldo, um viés pedagógico,
dirigido a jovens cujo encanto com esta ou aquela doutrina podia não durar mais
que meses ou semanas, mas que começavam também a adaptar as tendências
européias para suas realidades com maior objetividade prática. “Passou, pois, o
momento da alusão irônica e da cega invectiva”, escreve o autor. “Uma elementar
razão de decência política nos obriga hoje a considerarmos o movimento fascista,
os problemas que acarreta, as valorações que implica e o sistema ideológico que
propõe”.
Sem entrar em detalhes sobre a análise que se segue, basta mencionar o
encerramento do artigo, em que o autor diz não ter nascido ainda alguém “capaz
de decifrar com olhos argentinos o enigma da terra”, para perceber como o
criollismo também estava em questão. Mas Borges respondeu a Villoldo
ignorando esta última nota, e procurando se isentar daquilo que via como uma
“acusação de fascismo”, ao dizer-se “mais portenho que argentino e mais do
bairro de Palermo do que de outros bairros”.
26
De maneira que, em poucos meses,
o crítico voltaria a fazer uma abordagem mais direta a Borges, no caso estendida
os diretores da revista Proa (entre os quais estavam também Ricardo Güiraldes,
Brandán Caraffa e Pablo Rojas Paz). A publicação havia sido criada em 1924
anunciando-se como a primeira expoente da união dos jovens em torno de um
“renascimento espiritual argentino”, sob a forma de “la prístina amalgama de los
sueños y los anhelos despertados de pronto como una música platónica” tudo
isso em oposição aos “valores inofensivos y borrosos” que seriam dominantes na
25
VILLOLDO, Juan Antonio. “Temas Políticos: la revisión fascista”. Nosotros, Año XIX, marzo
de 1925, número 190, p. 332-342.
26
BORGES, J. L. “De la dirección de Proa”. Nosotros, Buenos Aires, Año XIX, vol.49, número
191, abril de 1925.
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sociedade moderna. O editorial tem a marca do estilo dos ensaios de Borges, em
sua poética e imprecisa projeção de uma síntese metafísica; a partir daí,
entretanto, a revista publicaria também o “Manifesto Futurista” de Marinetti, o
que mostra como diferentes entendimentos dos mecanismos de renovação cultural
podiam conviver nas publicações da época, como acontecia na Martín Fierro,
mesmo que entre discussões e controvérsias.
Não pretendo discorrer mais uma vez sobre estas diferenças. Villoldo não
parece considerá-las ao apontar o mecanismo comum da transposição de
pressupostos estéticos ao âmbito da política. Assim, no começo do artigo de junho
de 1925, ele, em parte, reconhecia a declaração de Borges segundo a qual os
propósitos de Proa seriam estritamente literários, mas logo em seguida observava
que as páginas da revista não confirmavam o postulado, para então proceder às
ressalvas que lhe ocorriam diante desta ambigüidade. De um modo geral, seu
diagnóstico contemplava as possíveis conseqüências subjacentes de uma
determinada atividade intelectual, que flertava com a transformação da sociedade,
sem comprometer-se totalmente com suas conseqüências. Adotando uma
perspectiva mais declaradamente situada no campo da moral, portanto, ele
encerrava o artigo:
dizia Hugo, melhor do que ninguém: “Enquanto a pata do homem esgrimir a
pluma do ganso, as tolices frívolas engendrarão as tolices atrozes. Os livros fazem
os crimes. A palavra quimera tem dois significados: significa sonho e significa
monstro”, e talvez isto não tenha remédio (…) Mas [não quero] pôr um ponto final
a estas linhas sem deixar expressa a constância do respeito pessoal que me
inspiram os quatro jovens nomeados, [e transcrevo] para eles o sábio lema que
ornava as portas de Busyrane: “Seja ousado”, sobre a primeira, e sobre a segunda:
“Seja ousado, sempre mais ousado”, e logo em seguida na terceira porta: “Não seja
tão ousado”.
27
A passagem, enfim, marca uma posição que a partir daí se tornaria
característica da revista Nosotros em relação aos jovens da nova geração,
oscilando entre a condescendência, uma verdadeira admiração apreensiva, ou
27
“Ya lo decía Hugo mejor que nadie: ‘Mientras la pata del hombre esgrima la pluma del ganso,
las tonterías frívolas engendrarán las tonterías atroces. Los libros hacen los crímenes. La palabra
quimera tiene dos sentidos: significa sueño y significa monstruo’, y quizás esto no tenga remedio
(…) Pero [no quiero] poner punto final a estas neas, sin dejar expresa la constancia del respeto
personal que me inspiran los cuatro jóvenes nombrados, [y transcribo] para ellos el sabio lema que
ornaba las puertas de Busyrane: ‘Sé audaz’, sobre la primera, y sobre la segunda: ‘Sé audaz,
siempre más audaz’, y luego en la tercera puerta: ‘No seas demasiado audaz’.” VILLOLDO, Juan
Antonio. “Proa y el fascismo”. Nosotros, Año XIX, junio de 1925, número 193, p. 284-285.
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entre a resignação e o desdém. Mas, naquele momento, expressava uma postura
pouco favorecida pela sensação de abertura do mundo a novas experiências, que a
derrocada da ordem tradicional proporcionava. Sua inserção no debate demandava
uma atitude dissonante em relação ao espírito da época; e este é o motivo pelo
qual ela adquire alguma relevância histórica, na medida em que nos oferece uma
visão um pouco mais distanciada das calorosas discussões sob análise. E também
porque o conteúdo da observação de Hugo sobre sonhos e monstros viria, mais
tarde, a ser um dos principais temas da obra de Borges. Acredito que, desde já,
algumas das colocações sobre seus ensaios justificam a articulação entre os dois
termos, do ponto de vista das derivações possíveis de suas convicções e
esperanças. A próxima seção deve oferecer novos indícios a este respeito; ao
mesmo tempo em que, ao vincular a ensaística de Borges a uma situação política
particular, ela talvez nos aproxime um pouco mais das conclusões a serem
provisoriamente deduzidas.
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49
2.2
O Alucinado Misterioso
Mr. Hynes sat down again on the table. When he had finished his recitation there was a
silence and then a burst of clapping: even Mr. Lyons clapped. The applause continued for a
little time. When it had ceased all the auditors drank from their bottles in silence.
James Joyce, “Ivy Day in the Committee Room”
“Mostram as nações duas índoles”, escreveu Borges em “Queja de todo
criollo”. O texto prossegue afirmando que uma delas correspondia a uma
definição convencional, elaborada de acordo com contingências históricas e
interesses políticos, e geralmente estabelecida por algum famoso personagem das
letras locais; enquanto a outra seria a índole verdadeira, essencial, eterna,
entranhada na linguagem, nos costumes e na mitologia de um povo. A
contraposição é bastante clara: de um lado, está Domingo Faustino Sarmiento, e
seu texto clássico sobre a fundação da república, em que uma solução para as
guerras civis do século XIX era buscada através da narrativa de uma vitória das
forças civilizatórias sobre a barbárie; e, do outro, aquilo que esta própria vitória
teria sido incapaz de eliminar por completo, isto é, o verdadeiro espírito criollo,
contemplado por Borges.
O quadro evoca toda uma série de acontecimentos, que teriam levado ao
estabelecimento de Buenos Aires como centro de resistência e expansão de ideais
republicanos no território nacional. Dois deles, basicamente, devem ser
ressaltados: a predominância das forças unitárias sobre as federalistas e a
“Conquista do Deserto”, iniciada em 1879. O primeiro criou as condições para
uma relativa normalização do regime de governo, motivo das disputas narradas
por Sarmiento, em que a capital tentava manter um comando centralizador, contra
a resistência de caudilhos provinciais. o segundo possibilitara a ocupação do
pampa para finalidades agrícolas. Mas este processo, na visão do Borges de 1925,
teria resultado na imposição de formas de governo e de produção importadas, a
um povo que possuía características singulares, sempre mal compreendidas por
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50
aqueles que buscavam sufocá-las ou substituí-las. E a missão do homem de letras
argentino, de acordo com esta perspectiva, seria a de resgatar a autenticidade do
caráter popular, sem recorrer a formas de pensamento previamente delineadas. Ou
seja, através de uma intuição pura, decorrente de um pertencimento às tradições
locais mais profundas, este caráter viria a ser revelado.
Tratava-se, por um lado, de uma reação a tudo aquilo que era considerado
“moderno” na visão civilizatória de Sarmiento, e, por outro, da tentativa de buscar
na própria tradição o impulso de uma configuração cultural autêntica. O primeiro
destes movimentos já havia sido indicado por Leopoldo Lugones, célebre poeta de
uma geração anterior à de Borges, que em 1917 propôs a substituição do livro de
Sarmiento pelo Martín Fierro (1872), de José Hernández, como obra fundadora
do caráter nacional, privilegiando assim a figura do gaucho, em contraposição à
do burguês civilizado.
28
No entanto, a este movimento Borges acrescentava um
entusiasmo com possibilidades futuras da nação, que em muito se devia à
crescente participação na vida política argentina de um novo grupo particular: a
pequena classe média urbana, representada pela população dos subúrbios.
Com o apoio deste grupo, Hipólito Yrigoyen, ícone político de Borges, teria
sido eleito para a presidência do país pela primeira vez em 1916, assinalando uma
transformação social que não podia ser enquadrada no esquema de Sarmiento, e
portanto demandava novas reflexões sobre o contexto de sua emergência. Refiro-
me ao crescimento acelerado de Buenos Aires, que, a partir do final do século
XIX, tornou bairros como Palermo, e em especial suas adjacências mais afastadas
do centro, cada vez mais povoados por trabalhadores de baixa renda, insatisfeitos
com o controle oligárquico exercido pelas elites conservadoras. Este fenômeno
levou, em um primeiro momento, à criação de organizações políticas
revolucionárias, como a Unión Cívica Radical, que em 1890 fracassou em uma
tentativa de tomar o poder. Mas, com a instituição do sufrágio universal, prevista
como ponto fundamental do estabelecimento de um estado republicano, a própria
UCR tornou-se um partido regular, sob o comando carismático de Yrigoyen.
28
Sobre as leituras e reinterpretações do Martín Fierro na obra de Borges, a partir do debate com
Lugones, cf. Beatriz Sarlo, Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Seix Barral, 2003
[1993], p. 75-84. E, no que se refere às relações entre Lugones, Borges e outros jovens escritores
de sua geração, ver Ivonne Bordelois, Un triángulo crucial: Borges, Güiraldes y Lugones. Buenos
Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1999.
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51
Este comando representava a promessa de uma síntese, capaz de substituir a
dualidade característica da visão sarmentina pela unificação dos anseios nacionais,
representada na figura do líder. Ou seja: à novidade social do surgimento, mesmo
que ainda incipiente, das massas urbanas, deveria corresponder uma novidade
política, uma nova forma de liderança. Esta concepção, por outro lado, era um
plano de tal maneira ambicioso que não admitia uma delimitação precisa de seus
propósitos. Tendo em vista esta constatação, Tulio Halperín Donghi descreveu
nos seguintes termos o discurso de Yrigoyen ao assumir o cargo para o primeiro
mandato:
Era expressão de uma experiência existencial profunda e emocionante demais para
ser divulgada nos termos restritivos de qualquer programa político. À luz desta
experiência, a União Cívica Radical se erguia como “o alucinado misterioso (...)
irredutivelmente identificado com a própria pátria, serena perscrutadora de suas
aspirações e intérprete fiel de suas reivindicações imperiosas”.
29
E, neste ponto, o objetivo desta seção da análise deve ficar claro.
Anteriormente, busquei demonstrar como a poética do jovem Borges pôde se
converter no fundamento de um ideal político sobrecarregado de misteriosas
alusões sentimentais a uma identidade pátria, que, enfim, confluíam para uma
visão profética do futuro argentino, na forma de um cosmos vasto, mas integrado
pela expressão onipresente desta identidade. Esta postura podia ser decorrente da
percepção e experiência do declínio social de sua família, sendo, portanto, uma
reação contra as transformações modernizantes que sofria a capital; ao mesmo
tempo, ela demandava uma indicação dos possíveis representantes concretos, na
sociedade argentina, de seus ideais abstratos, implicando a transposição de
barreiras de classe. Agora, será o caso de verificar como esta perspectiva estava
associada a símbolos e atores políticos efetivos do período, que, com freqüência,
são mencionados nos textos do autor, como manifestações lendárias ou presentes
das aspirações do povo argentino. Neste caso, tanto o regionalismo metafísico de
Borges, quanto a retórica alucinada de Yrigoyen, corresponderiam a uma
expectativa difusa, mas nem por isso menos intensa, relativa ao papel da
29
“Era expresión de una experiencia existencial demasiado honda y removedora para poder
expresarse en los rminos limitativos de cualquier programa político. A la luz de esa experiencia,
la Unión Cívica Radical se erguía como “el alucinado misterioso (…) irreductiblemente
identificado con la patria misma, serena auscultadora de sus anhelos e intérprete fiel de sus
imperiosas reivindicaciones”. DONGHI, T. H. Vida y Muerte de la República Verdadera (1910-
1930). Buenos Aires: Ariel, 1999, p. 196.
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população dos subúrbios na nova ordem social de Buenos Aires. Uma expectativa
que teve uma primeira confirmação nas eleições de 1916, e que levaria Yrigoyen
de volta à presidência, com uma votação massacrante, doze anos depois, em um
episódio que por muitos foi considerado então o ápice de uma trajetória de
redenção.
A capacidade de mobilização eleitoral do yrigoyenismo se devia, em certa
medida, àquilo que George Mosse qualificou como um processo de
“nacionalização das massas”, ao tratar do caso alemão a partir do culo XIX.
30
Trata-se, em resumo, da promessa de conformar a nação de acordo com a
soberania da “vontade geral” ou seja, como uma estrutura unificada por um
princípio, onipresente em todas as ações de governo e eventos públicos, capaz de
eliminar as ambivalências e conflitos internos, em favor de uma auto-
representação do espírito popular. Em última instância, como indicam os
fundamentos teóricos deste ideal, elaborados por Rousseau, os festejos e
celebrações populares seriam a máxima expressão desta soberania, ao
proporcionar o enobrecimento dos corações dos homens, em uníssona exaltação
patriótica. O que demandaria também a disponibilidade de símbolos, lendas e
heróis que proporcionassem a imediata identificação de todos às mesmas
aspirações, podendo transformar-se em motivo de culto, ao despertar emoções que
seriam a base deste sistema de governo.
O propósito desta seção será, portanto, o de examinar algumas
características que fizeram de Yrigoyen o astro mais brilhante da constelação de
símbolos associados por Borges ao seu criollismo (na qual são relevantes também
as figuras de Juan Manuel Rosas e Macedonio Fernández). A partir daí, deve ser
mencionada sua participação no processo eleitoral de 1928, em que o brando
sentimentalismo característico do jovem escritor fica em evidência, gerando,
porém, uma atividade política entusiasta, que determinaria o fim de uma etapa em
sua trajetória, bem como o início de outro período na história política da
Argentina.
Vejamos então como a imagem de Yrigoyen, o símbolo esteticamente
adequado ao novo criollismo, possuía alguns traços específicos. O primeiro deles,
30
Cf. MOSSE, George L. La Nacionalización de las Masas: simbolismo político y movimientos de
masas en Alemania desde las guerras napoleónicas al Tercer Reich. Trad. Jesus Cuéllar Menezo.
Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2007 [1975].
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53
a princípio em desacordo com sua retórica profusa e dispersiva, dizia respeito
justamente àquela contenção espiritual que, para Borges, seria a marca do
autêntico criollo. Já em 1917, Horacio Oyhanarte havia atribuído aoder o
equilíbrio mental de uma “individualidade severa, sem afetações nem protocolos”,
capaz de tornar Yrigoyen a máxima interpretação do caráter argentino, ou sua
síntese em um “homem-idéia”, cuja simples aparência exibia a solução dos
problemas nacionais. “El presidente nacional es todo”, afirmava o comentarista.
“Y podemos estar frente a los conflictos venideros con la misma serenidad con
que se altivan hacia arriba las montañas”.
31
Alguns anos depois, enquanto Yrigoyen aguardava a oportunidade de voltar
à presidência (no momento em que esta era ocupada por uma facção menos
personalista da UCR), foi a vez de Jorge Luis Borges evocar o tema da
compostura e da circunspecção, em “Queja de todo criollo”. Tal como se segue:
O silêncio que beira o fatalismo encarna-se com eficácia nos velhos caudilhos que
abraçaram a alma de Buenos Aires: em Rosas e em Yrigoyen (…) A conduta que o
povo apreciou em Rosas, entendeu em Roca e admira em Yrigoyen é o escárnio da
teatralidade, ou do seu exercício burlesco. Em povos com maior avidez para a vida,
os caudilhos famosos são estrepitosos e gesticuladores, enquanto aqui são
taciturnos e quase desenganados.
32
E, em “El Tamaño de mi Esperanza”, ele dava uma demonstração mais
direta do papel que o então ex-presidente ocupava em sua releitura do caráter
argentino:
Sarmiento (índio bravo norte-americanizado, grande odiador e desentendedor do
criollo) nos europeizou com sua fé de arauto da cultura que dela espera milagres
(…) Nosso maior varão segue sendo dom Juan Manuel [Rosas]: grande exemplar
da fortaleza do indivíduo, grande certeza de se saber viver, mas incapaz de erigir
algo espiritual (…) Entre os homens que andam por minha Buenos Aires,
apenas um que está privilegiado pela lenda e nela se movimenta como em um carro
fechado; este homem é Yrigoyen.
33
31
OYHANARTE, Horacio. “El presidente actual es todo”. In: DONGHI, T. H. Vida y Muerte de
la República Verdadera, p. 569-570.
32
“El silencio arrimado al fatalismo tiene eficaz encarnación en los caudillos mayores que
abrazaron el alma de Buenos Aires: en Rosas y Yrigoyen (…). La significación que el pueblo
apreció en Rosas, entendió en Roca y admira en Yrigoyen es el escarnio de la teatralidad, o el
ejercerla con sentido burlesco. En pueblos de mayor avidez en el vivir, los caudillos famosos se
muestran botarates y gesteros, mientras aquí son taciturnos y casi desganados”. BORGES, J. L.
“Queja de todo criollo”. In: ____. Inquisiciones, p. 139-140.
33
“Sarmiento (norteamericanizado indio bravo, gran odiador y desentendedor de lo criollo) nos
europeizó con su fe de hombre venidero de la cultura y que espera milagros de ella (…) Nuestro
mayor varón sigue siendo don Juan Manuel [Rosas]: gran ejemplar de la fortaleza del individuo,
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54
Por fim, em uma carta de 1928, endereçada aos irmãos Enrique e Raúl
Tuñón, Borges escrevia sobre o que fazia de Yrigoyen o “reverso advinatorio” da
publicidade política usual, isto é, o seu comportamento discreto e enigmático, que
evocava o ambiente pacífico dos subúrbios de Buenos Aires, “lugar que tiene
clima de patria, hasta para los que no somos de él”, e no qual melhor se
expressaria “una profética y esperanzada memoria de nuestro porvenir”.
34
De maneira que Hipólito Yrigoyen teria sido, para Borges, a encarnação da
autenticidade criolla, sob a forma de um mistério. Nele, a natureza e o
temperamento dos homens de uma comunidade desfeita eram reencenados, no
centro das disputas políticas da argentina moderna, com o objetivo de solucioná-
las através do resgate das qualidades perdidas, que emanavam da figura do der.
Estas qualidades implicavam uma solidez interior do indivíduo, que correspondia
à posse de um segredo comunitário, e possibilitaria aquele enfrentamento
resignado e fatalista do destino, decorrente da incorporação de um ethos
inviolável. No entanto, se, para os primeiros colonos, esta seria uma fonte
inesgotável e universalmente compartilhada de autoconfiança, agora ela apenas se
mostrava em alguns exemplos admirados pelo povo, nos quais a substância do
segredo adquiria o aspecto de uma força oculta, a ser revelada para que a
comunidade se reintegrasse. E esta reintegração, Borges deixava claro, haveria de
ser espiritual, o que também indicavam os discursos de Yrigoyen uma saga em
que poetas, músicos e místicos assumiriam a tarefa não consumada por Rosas,
embora o próprio caudilho fosse para ela um elo fundamental.
Algumas observações merecem ser feitas sobre este personagem. Trata-se
do mais importante adversário de Sarmiento, suplantando até mesmo Facundo
Quiroga como motivo de fascínio e rejeição simultâneos, na medida em que nele a
barbárie feroz teria se convertido em um despotismo frio e demoníaco, alojado no
próprio governo central de Buenos Aires. A figura do “Restaurador” era
complementada por um refinamento da inteligência, e, neste sentido, Rosas seria
uma metamorfose da natureza campestre e colonial do gaucho em arte e sistema
gran certidumbre de saberse vivir, pero incapaz de erigir algo espiritual (…) Entre los hombres que
andan por mi Buenos Aires, hay uno solo que está privilegiado por la leyenda y que va en ella
como en un coche cerrado; ese hombre es Yrigoyen”. BORGES, J. L. “El tamaño de mi
esperanza”. In: ____. El Tamaño de mi Esperanza, p. 12-13.
34
BORGES, J. L. “Carta a Enrique y Raúl González Tuñón” [1928]. Clarín, 16.08.1979.
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55
“como o modo de ser de um povo encarnado em um homem com ares de gênio,
que domina os acontecimentos, os homens e as coisas”, afirmava Sarmiento. Isto,
porém, não impediu que, sob o comando de Rosas, entre os anos de 1835 e 1852,
a cidade fosse convertida em um território anárquico, fazendo do tirano uma
figura lendária, semelhante ao demônio metafísico de Goethe, que “se assemelha à
providência, e ao mesmo tempo faz proliferar a desordem”.
35
Assim, no exato período em que Sarmiento escrevia suas invectivas, Rosas
era, de fato, o maior risco às suas pretensões civilizatórias, dado o encanto
carismático que exercia sobre a população; encanto este ao qual o próprio
Sarmiento não estaria imune, de modo que todo o início de seu livro fosse
dedicado a uma espécie de exorcismo do misterioso poder do oponente, em favor
de uma proposta progressista iluminadora. O autor, no entanto, parece não cogitar
a destruição total do mistério que seu adversário propõe, consciente da maneira
como “el Esfinge Argentino” então era parte de uma mitologia popular.
“Chegará o dia em que o decifrem”, afirmava Sarmiento. Ao retornar a Buenos
Aires, em 1921, esta foi uma das primeiras tarefas de que se encarregou Borges.
“Rosas” foi publicado em Fervor de Buenos Aires. O poema começa com
uma imagem característica do quietismo suburbano de Borges, a de uma “sala
tranquila / cuyo reloj austero derrama / un tiempo ya sin aventuras ni asombro”.
Logo, porém sem alarde, surge a menção a um nome “familiar e temido”, que
preenche o instante de pressentimentos e visões. E, com isso, o texto vai aos
poucos se transferindo do ambiente silencioso inicial para a lembrança de outra
época, na qual se sobressai a figura do tirano como força motriz de uma
desgovernada violência:
Famosamente infame
seu nome foi desolação nas casas
idolátrico amor na gauchagem
e horror do talho na garganta.
Hoje o olvido apaga seu censo de mortes
se as pensamos como parte do Tempo,
essa imortalidade infatigável
que aniquila com silenciosa culpa as raças
e em cuja ferida sempre aberta
35
Cf. LUKÁCS, G. A Teoria do Romance. A teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico
sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades; Editora 34, 2000 [1920], p. 88.
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que o último deus haverá de estancar no último dia,
cabe todo o sangue derramado.
36
A partir deste ponto, o poema prossegue no tom dubitativo quanto ao
significado de eventos e personagens históricos singulares, diante das proporções
de uma verdadeira epopéia cósmica da espécie. O espaço vazio que suas primeiras
linhas sugerem fica assim totalmente preenchido pelos infinitos ciclos do Tempo,
um tempo que já não é mais a sucessão de instantes descontínuos do relógio, e sim
uma forma da Eternidade.
“Se perdió el quieto desgobierno de Rosas”, lamentava-se Borges em
1925.
37
Com isso, podemos ter uma noção mais clara do significado que o
caudilho assumia para o autor, como personagem mítico do criollismo. O caráter
fatalista, atribuído aos primeiros exemplares da estirpe, encontrava nele o impulso
poético para uma submersão de todos os indivíduos na desordem cósmica, que
seria, afinal, reveladora de uma Ordem absoluta do universo. Uma experiência
análoga, expressa em discursos sobrecarregados de metáforas e alusões nebulosas,
presidiria a transfiguração de Yrigoyen de um homem discreto e taciturno no
orador eloqüente e alucinado. O conceito político da soberania popular ganhava,
com isso, um status transcendente: o de um renascimento do espírito do povo
argentino, como divindade encarnada em todos os cidadãos da pátria.
Pode ser então introduzido no argumento um último personagem, da maior
relevância para Borges neste contexto. Parto da seguinte observação de Ricardo
Piglia: “De Yrigoyen me interessa o estilo. O barroco radical. Como é que
ninguém percebeu qu de seus discursos nasce a escritura de Macedonio
Fernández?”.
38
Macedonio foi um amigo de Jorge Guillermo Borges, que se tornaria, para o
filho deste, uma referência próxima e sempre disponível em assuntos filosóficos e
literários, sendo o mediador de conversas que muitas vezes reuniam também
outros integrantes da nova geração. O tema destas reuniões podia ser tanto os
36
BORGES, J. L. Rosas”. In: ____. Fervor de Buenos Aires. Trad. Glauco Mattoso e Jorge
Schwartz. OC [edição brasileira], vol.1, p. 26-27. “Famosamente infame / su nombre fue
desolación en las casas / idolátrico amor del gauchaje / y horror del tajo en la garganta. / Hoy el
olvido borra su censo de muertes, / Porque son venales las muerte / si las pensamos como parte del
Tiempo, / esa inmortalidad infatigable / que anonada con silenciosa culpa las razas / y en cuya
herida siempre abierta / que el último dios habrá de restañar el último día, / cabe toda la sangre
derramada”. BORGES, J. L. “Rosas”. In: ____. Fervor de Buenos Aires. OC, vol. 1, p. 31-32.
37
BORGES, J. L. “Queja de todo criollo”. In: ____. Inquisiciones, p. 145.
38
PIGLIA, R. Respiración Artificial. Buenos Aires: Anagrama, 2001 [1980], p. 19-20.
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57
acontecimentos políticos locais, quanto os aspectos ilusórios da identidade
individual, que Macedonio defendia com citações de Berkeley e Schopenhauer.
Também nele, a modéstia e o recato eram admirados como marcas pessoais,
acrescidas da gentileza no trato cotidiano e intelectual; porém articulados à
imagem de um escritor excêntrico, artífice de textos herméticos e impublicáveis,
muitas vezes com fortes traços humorísticos, que produzia como resultados de
uma reflexão pura sobre natureza das coisas, ou para confrontar os conceitos
teóricos e paradigmas literários da modernidade.
39
A personalidade e a obra de
Macedonio Fernández teriam larga repercussão não apenas na literatura de
Borges, como também na história literária argentina de um modo geral, de modo
que o assunto será ainda retomado um par de vezes. Por enquanto, interessa-me,
sobretudo, um episódio de 1926, em certa medida decorrente, como recordaria
Enrique Fernández Latour, da admiração de Macedonio por Yrigoyen.
40
Pois, apesar de professar ideais anarquistas ou talvez também por este
motivo –, Macedonio via na ascensão do novo caudilho uma oportunidade de
transformação das tradições políticas locais, na qual cogitava tomar parte. E, ao
mesmo tempo em que considerava o destino de Yrigoyen um signo da grandeza
pessoal do chefe do radicalismo, achava que ele precisaria de um conselheiro que
permanecesse à sombra dos trâmites regulares do governo cargo para o qual,
como afirma Latour, o próprio Macedonio se sentia indicado. Esta idéia contém
o teor conspiratório que estaria presente em sua re-elaboração mais ambiciosa: a
de tornar-se, ele próprio, presidente da república. O plano comportava aspectos
lúdicos, que lhe davam um ar de brincadeira, mas as cartas de Macedonio, citadas
por Latour, revelam uma intenção real de mobilizar seus jovens discípulos para a
missão. Enquanto o próprio Borges lembraria, muito tempo depois, que
Macedonio teria refletido sobre a realização do “vasto e vago projeto” por um ano
ou dois. “O mais importante (ele repetia) era a difusão do nome (...) Convinha
insinuá-lo na imaginação das pessoas de modo sutil e enigmático”. Com este
objetivo, pequenos cartões e tiras de papel seriam largados pelos bondes, cafés e
cinemas da cidade, contendo estranhas alusões ao nome igualmente estranho, em
39
Sobre o tema da linguagem de Macedonio, em termos análogos aos aqui mobilizados, ver
GARTH, Todd S. “Confused Oratory: Borges, Macedonio and the creation of the mythological
author”. MLN, vol. 166, n. 2, Hispanic Issue, 2001, pp. 350-370
40
LATOUR, E. F. “Macedonio Fernández, candidato a Presidente” [1966]. In: ____. Macedonio
Fernández, candidato a Presidente y otros escritos. Buenos Aires: Ediciones Agon, 1998, p. 17-
23.
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manobras cautelosas que não determinavam uma finalidade ou proposta imediata,
mas às vezes iam mais diretamente ao assunto, em slogans como Macedonio, un
misterio político de la próxima Presidencia. Isto prepararia o imaginário da
população para uma síntese ainda mais abrangente do espírito local, na medida em
que, neste caso, seria realizada por um filósofo.
Mas, naturalmente, a prática conspiratória angariava bem menos interesse
do que seu planejamento. Daí surgiu a concepção da primeira obra de literatura
fantástica à qual Jorge Luis Borges se dedicou em sua carreira. Tratava-se de um
texto a ser escrito em conjunto, pelos jovens que rodeavam Macedonio, e cujas
linhas gerais chegaram a ser fixadas, embora sua execução tenha se limitado aos
primeiros capítulos. Vejamos então como o próprio Borges viria a descrever o
argumento do livro:
Na obra se entrecruzavam dois argumentos: um, visível, os curiosos procedimentos
de Macedonio para ser presidente da República; outro, secreto, a conspiração
urdida por uma seita de milionários neurastênicos e talvez loucos, para alcançar o
mesmo fim. Estes resolvem socavar e minar a resistência das pessoas mediante
uma série gradual de invenções incômodas (...) Afinal o governo vem abaixo;
Macedonio e Latour entram na Casa Rosada, mas nada significa nada neste
mundo anárquico.
41
O registro é valioso, porque ele apresenta uma estrutura narrativa à qual
Borges recorreria novamente em sua obra posterior, baseada na constituição de
organizações secretas, que gradualmente fazem proliferar a desordem, para
assumir o controle de uma sociedade caótica. Por outro lado, no que se refere ao
período de sua juventude, que mais me interessa agora, a idealização de uma obra
coletiva reflete o clima de amizade característico da época, na qual a discussão de
um enredo prevalecia sobre e necessidade de colocá-lo no papel. E a categoria da
conspiração remete ainda ao tipo de sociabilidade boêmia sobre a qual algo ainda
deve ser dito.
Creio ser este a caminho através do qual poderemos retomar o raciocínio
sobre as transformações sociais e eventos políticos que culminariam com a
41
En la obra se entretejían dos argumentos: uno, visible, las curiosas gestiones de Macedonio
para ser presidente de la República; otro, secreto, la conspiración urdida por una secta de
millonarios neurasténicos y tal vez locos, para lograr el mismo fin. Éstos resuelven socavar y
minar la resistencia de la gente mediante una serie gradual de invenciones incómodas (…) Al final
el gobierno viene abajo; Macedonio y Latour entran en la Casa Rosada, pero ya nada significa
nada en ese mundo anárquico”. BORGES, J. L. “Macedonio Fernández” [1961]. In: ____.
Prólogos, con um prólogo de prólogos. OC, Vol. 4, p. 63.
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reeleição de 1928, para a qual Borges colaborou, fundando e presidindo um
“Comité Yrigoyenista de Intelectuales Jóvenes”, cuja sede ficava em sua própria
casa, e que teve como membros Macedonio Fernández (embora já não tão jovem),
Leopoldo Marechal, Roberto Arlt, os irmãos Tuñón e Francisco Luis Bernárdez,
entre outros, que assinaram uma lista de adesistas do jornal Crítica de 20 de
dezembro de 1927. Ou seja: se o projeto “Macedonio presidente”, e a escrita do
romance fantástico, vieram a ser abandonados, foi também porque uma
possibilidade mais imediata de participação no campo político se apresentou. E
uma participação, como veremos, estreitamente vinculada à vida cultural dos
subúrbios, nos quais se situava o massivo apoio eleitoral do radicalismo
personalista.
O caso apresenta algumas características da freqüente associação de jovens
intelectuais a camadas marginais da sociedade, com as quais compartilhavam o
descontentamento com estruturas e paradigmas herdados do século XIX, na
América Latina. E ele é um primeiro dado sobre uma relação que assumiria
diferentes aspectos no percurso literário de Borges. Nesta oportunidade, a
aproximação do processo eleitoral favoreceu uma identificação de seus anseios
com os de um mundo que, desde a infância, o fascinara, sendo o tema de toda uma
tradição oral sobre crimes e brigas de faca. Palermo era um dos cenários destas
histórias, que celebrizavam o compadrito como um tipo popular “famosamente
infame”, ao qual eram atribuídos feitos que, segundo o próprio Borges, ainda
aguardavam um grande poeta para serem eternizados em verso. Este era, portanto,
o protagonista de um ambiente singular, cujos traços principais devem ser aqui
minimamente esboçados, na comparação com ambientes e tipos correlatos da
boemia do início do século.
Nas classes baixas e médias que ocupavam as zonas marginais de
Palermo, conviviam dois estilos de vida distintos, mas relacionados. Um deles era
o da simplicidade e da decência circunspecta, capaz de gerar o mito da
autenticidade do bairro, em que a pobreza estava associada à virtude dos que
resguardavam as antigas tradições, diante do crescimento desordenado da cidade.
Em contraste com este ideal de modesta dignidade, no entanto, o outro constituía
um movimento reativo mais violento, em que a insatisfação com a realidade
presente gerava uma extravagante encenação de qualidades épicas e aristocráticas.
Isto se expressava na gestualidade afetada e vestimentas do compadrito, cujo
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dandismo ostentoso o tornava uma reprodução estetizada do gaucho, de acentuada
sensibilidade nervosa. Seu comportamento era também marcadamente sensualista,
sugerindo uma intimidade demoníaca com forças relacionadas ao sangue e ao
sexo. Em sua figura se perpetuaria a lenda de Rosas. E, para fins comparativos,
pode-se dizer que seu correlato no Brasil talvez seja a figura de Madame Satã.
Misturado a outros pequenos criminosos, prostitutas e artistas populares, o
compadrito povoava os armazéns das esquinas do arrabal de Buenos Aires, que
geralmente eram pintados de cores fortes, e tinham uma vida noturna
relativamente agitada, em uma atmosfera de desleixo, embriaguez, e hipertrofiado
sentimentalismo. A tristeza de fundo dos subúrbios era com isso transfigurada em
uma desordem comovente e vulgar, que flertava com a sordidez, mas reafirmava
padrões de gosto considerados autênticos. Trata-se, afinal, de uma versão
portenha de ambientes que viriam a ser conhecidos como os “inferninhos” da
sociedade moderna, onde predominava uma difusa sensação de irrealidade (a
noção seútil em um desenvolvimento posterior). E, como os cabarés de Paris e
os teatros de Viena, estes lugares reuniam uma ralé proscrita e inclinada ao
entusiasmo político, fosse pela imaginação conspiratória, ou pela identificação
com líderes que considerassem legítimos representantes das aspirações populares.
Um fenômeno em que a música cumpria um papel fundamental, ao sugerir, em
refrões conhecidos por todos, o pertencimento das existências desgarradas a uma
etérea comunidade, cujo porvir se anunciava.
42
Jorge Luis Borges, por seu apego a um sencillismo de cunho mais
tradicional, e também por seu temperamento e situação social, não foi uma
presença freqüente neste espetáculo, estabelecendo com ele uma relação ambígua.
Por ora, no entanto, é importante verificar como em certo momento suas posições
políticas estiveram em consonância afetiva com as de seus integrantes. Neste
sentido, María Esther Vázquez se refere a uma anotação do autor, que ele teria
deixado de incluir nas publicações do Cuaderno San Martín a partir de 1943,
sobre a véspera da eleição presidencial, quando teria saído para “sentir o clima”
de Buenos Aires, sendo atraído pelo som de uma viola que vinha de um sub-
42
Sobre os cabarés de Paris e os teatros de Viena, como referências comparativas desta descrição,
ver, respectivamente, CLARK, T. J. Um bar no Folies-Bergère”. In: ____. A Pintura da Vida
Moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Cia.
Das Letras, 2004 [1984], p. 278-343, e SCHORSKE, Carl E. “Política e Psique”. In: _____. Viena
Fin-de-Siècle: política e cultura. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cia. Das Letras, 1988 [1961],
p. 25-42
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comitê suburbano, no qual foi convidado e entrar. Borges descreve a cena como
se segue (utilizo uma tradução que deverá ser substituída pelo texto original):
Dentro, sob a efígie do velho homem, boa parte do submundo de San Bernardo
estava de posse da noite. De mão em mão passava o ressabido pinho e a cana, em
partilha de amizade. Chegou o violão e um jovem enlutado, escuro o achinesado
rosto sobre o domingueiro lenço de seda, virada para cima com precisão a aba do
chapéu. Cavaqueou e cantou a séria milonga, de que assumi uns versos.
43
Ele menciona ainda um trecho escutado na sequência: “Radicales los que
me oyen / del auditorio presente / el futuro presidente / será el doctor Yrigoyen”.
É de se presumir que isto expressava um desejo, uma aspiração, que congregava a
todos em torno do sentimento de uma vaga promessa de salvação. Borges, no
entanto, assinala, ainda neste mesmo comentário, suas reservas em relação ao
compadrito, dizendo que a ele não interessavam as verdadeiras tradições locais, e
sim o prestígio pessoal. E, em “Fundación Mítica de Buenos Aires”, primeiro
poema do Cuaderno San Martín, ofereceria sua visão do que seria para ele o
autêntico renascimento da cidade, sob a liderança de YRIGOYEN (em caixa alta
no próprio poema), ao som melancólico de um tango de arrabal.
Mas, desta mesma simplicidade, podia surgir, como vimos, uma exaltada
expectativa pela chegada dos novos tempos. Cabe então mencionar ainda um
testemunho tardio de F. L. Bernárdez, membro do comitê presidido por Borges,
sobre certas festas de sábado na rua Tronador, às quais ele se refere como
verdadeiras celebrações do espírito criollo, transfiguradas em um ritual sagrado,
conduzido pelo ritmo do tango, um paraíso wagneriano no fragoroso armazém
da esquina [un paraíso wagneriano en el fragante almacén de la esquina] (...) a
nos unir com maior convicção ao redor de certo ‘fervor de Buenos Aires’, que um
criollo recém-chegado de Genebra vinha desparramando, quase religiosamente,
em suas caminhadas noturnas pela cidade”.
44
A descrição é certamente exagerada,
mas o excesso é uma tendência do próprio cenário a que ela se refere. E a
recordação de Bernárdez está impregnada pelo sentimento de desmedida
confiança no destino da pátria, que foi característico da época, em determinados
setores da sociedade. Ela nos oferece uma imagem do transe que marcou um
43
Apud VÁSQUEZ, M. E. Jorge Luis Borges: esplendor e derrota. Trad. Carlos Nougué. Rio de
Janeiro: Record, 1999 [1996], p. 100.
44
BERNÁRDEZ, F. L. “Norah y Norah”. Clarín, 5 de diciembre de de 1968.
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62
período de desmedidas esperanças na política argentina. E é, portanto, apropriada
também para dar uma idéia do anticlímax que se seguiria à segunda eleição à
presidência vencida por Hipólito Yrigoyen.
O entusiasmo precedia o desengano. E Borges não ficou imune às suas
conseqüências. No entanto, em sua obra, parece-me ter acontecido uma mudança
muito distinta da usual, e muitas vezes súbita, conversão de uma conduta
romântica de juventude para a austeridade ideológica ou pragmática da idade
madura. Tampouco ele acompanharia os primeiros movimentos de maior
extremismo que puderam surgir de dentro mesmo da sustentação radical; e, sendo
assim, creio que entender esta transformação, em sua singularidade, é uma
necessidade fundamental para o prosseguimento da análise da trajetória política e
literária do autor.
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63
2.3
Evaristo Carriego
concibes que a mi edad me pueda seguir emocionando un disquito donde hay dieciséis
compases que guardan el gran corazón de un hombre que murió y se llamaba Bix?
Julio Cortázar, Diario de Andrés Fava
Como eventualmente se passa com os movimentos conspiratórios, mesmo
os que se utilizam de instrumentos democráticos, o processo que culminou com os
eventos de 1928 havia sido imaginado como um mecanismo de tomada do poder
no qual o programa de governo era o menos importante, considerando-se que a
ação da providência bastaria para colocar a nação no rumo de sua verdadeira
grandeza. Yrigoyen estava então com 76 anos, cada vez mais taciturno e
enigmático, mas também cada vez menos apto a lidar com os problemas
recorrentes do país, que tampouco parecia contar com quadros competentes no
partido vitorioso. Logo viria a quebra da bolsa de Nova Iorque no ano seguinte, e,
embora suas conseqüências fossem alcançar a economia local com mais força
no início da década de 1930, ela sugeria que a situação dos habitantes das
grandes metrópoles de todo mundo estava ameaçada de uma maior degradação.
No caso argentino em particular, o período anterior à crise havia sido
caracterizado pela idéia de que o país se tornaria o grande fornecedor de grãos de
um mundo em constante crescimento econômico, de modo que a sensação de ter o
acesso negado à terra prometida foi intensa em Buenos Aires. As esperanças não
iam apenas ser descumpridas; tudo ainda podia piorar bastante.
o período imediatamente posterior à eleição presidencial fora marcado
por um fenômeno de reversão de expectativas, em que as energias mobilizadas na
espera por um evento redentor de grandes proporções são dispersadas, e a
necessidade do prosseguimento da vida, em seus trâmites cotidianos, se impõe. E,
com o manejo desordenado da coisa pública por parte dos radicais, o descontrole
das instituições, e a inação de Yrigoyen, esta experiência se converteu em motivo
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de crescente frustração e contrariedade da população em relação aos integrantes
do governo. Logo, meios da imprensa, que os haviam apoiado abertamente no
processo eleitoral, assumiram uma postura crítica; e os setores da sociedade que
se ressentiam da prepotência do yrigoyenismo aproveitaram a ocasião para se
articular em torno de uma causa comum. Entre estes, estavam, a princípio, jovens
fascistas de influência franco-italiana, e antigos defensores do conservadorismo
portenho, que se reuniram, mesmo que provisoriamente, no apoio ao general José
Félix Uriburu, comandante de um golpe que, em 6 de setembro de 1930, não
encontraria maiores resistências para se realizar, embora o recurso à violência
contra os adversários políticos viesse a se tornar recorrente por parte do novo
regime.
O viés autoritário do golpe não era um consenso, mesmo entre suas
principais facções, ao menos no que dizia respeito à reconstrução do estado a
médio prazo. Mas todos concordavam que, em um primeiro momento, seria
necessário fortalecer o poder central e restabelecer a ordem no país. E aqueles que
se opunham ao retorno do sufrágio universal contavam com um argumento
sumário: o de que a própria democracia havia sido responsável pela degeneração
institucional vigente. De acordo com este raciocínio, se, entre 1916 e 1930, a
Argentina havia tido sua única experiência plenamente democrática até então, a
ruptura radical com este período era recomendada, como maneira de evitar que
suas conseqüências se repetissem. Este seria o pensamento do presidente
empossado e de seus seguidores mais próximos, que consideravam o golpe a
correção de um desvio no processo histórico argentino, na medida em que ele
estaria de acordo com uma trajetória iniciada nas guerras do século XIX o da
constituição do estado nacional por uma elite dominante –, mas não com o
direcionamento liberal e democrata, imaginado pelas próprias elites oitocentistas,
que a normalização da vida política teria permitido no século XX.
Segundo este ponto de vista, tudo deveria ser feito para impedir a re-
emergência dos fatores responsáveis pelo descaminho atual. Isso incluía medidas
repressivas sobre alguns partidários do radicalismo, que teriam insistido em
defendê-lo mesmo durante os momentos de maior desaprovação do governo, para
o que Uriburu teve poderes assegurados ao assumir o cargo. Mas o propósito
assumiu também a forma de uma campanha contra a imagem do presidente
deposto, de imediata repercussão. Tratava-se de fixar a imagem de Hipólito
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Yrigoyen como o líder de um bando corrupto, que tomara o controle total dos
recursos estatais com premeditada astúcia, e com um projeto de poder voltado
exclusivamente para interesses pessoais, sustentado por eleitores encantados com
o carisma populista do chefe radical. Com isso, o próprio golpe de 1930 podia
apresentar-se como uma gesta providencial, em sua função de retomar a
presidência das mãos de usurpadores.
Sobre estes acontecimentos, Jorge Luis Borges escreveu, pouco depois do
golpe, uma carta a Alfonso Reyes que vale uma citação mais longa:
Quanto à eliminação do Doutor, posso asegurar-lhe que, em que pese sua
necessidade, sua bondade final, sua justiça, ela nos deixou um desagradabilíssimo
ambiente. A revolução (ou quartelada com apoio público) é uma vitória do bom
senso sobre a inépcia, a freqüente desonestidade e a ofuscação, mas essas más
coisas correspondiam a uma mitologia, a uma felicidade: à imagem excêntrica do
Doutor, conspirador e tácito mesmo na Casa Rosada. Buenos Aires, agora, tem tido
que repudiar sua mitologia caseira, e ver motivos de entusiasmo em heroísmos em
que ninguém realmente acredita (...) Sacrificar o mito pela lucidez, que lhe parece?
Shaw, sem dúvida, aprovaria. Não sei se escrevo com precisão: antes (repito)
possuíamos idiotia, mas com barulhentos diários opositores, com seus vivas e
morras, com uma idolatria cômoda que florescia nas paredes, nas milongas e nas
letras de tango; agora, temos independência com lei marcial, uma imprensa
bajudalora, metidos a besta com seus inseparáveis distintivos e a ficção de que o
regime anterior era cruel e tirânico [grifo no original].
45
A carta revela um duplo movimento, nos quais identifico o cerne de uma
transformação substancial no ponto de vista de Borges entre os anos de 1928 e
1930. Por um lado, ele reconhece os resultados desastrosos do segundo mandato
de Yrigoyen: ou seja, que a ordem cosmológica a que estava destinada Buenos
Aires era, na verdade, uma grande bagunça. Porém, diante da imposição
autoritária e heróica de uma ordem efetiva, operada por militares neste contexto,
45
“En cuanto a la eliminación del Doctor, puedo asegurarle que, descartada su necesidad, su
bondad final, su justicia, nos vale ahora un desagradabilísimo ambiente. La revolución (o
cuartelazo con el apoyo público) es una victoria del buen sentido sobre la inepcia, la frecuente
deshonestidad y la ofuscación, pero esas malas cosas correspondían a una mitología, a una
felicidad: a la imagen estrafalaria del Doctor, conspirador y tácito mismo en la Casa Rosada.
Buenos Aires, ahora, ha tenido que repudiar su mitología casera, y frangollar motivos de
entusiasmo con heroísmos en los que nadie cree y con el tema – insignificante para el espíritu – de
que estos militares nos roban. Sacrificar el Mito a la lucidez, qué le parece? Shaw,
indudablemente, lo aprobaría. No si escribo con precisión; antes (repito) poseíamos idiotez,
pero con barulleros diarios opositores, con sus vivas y mueras, con una idolatría cómoda que
florecía en las paredes, en las milongas y las letras del tango; ahora, tenemos independencia con
ley marcial, una prensa adulona, la tuñonada con escarapela perpetua y la ficción de que el
régimen anterior era cruel y tiránico”. BORGES, J. L. Carta a Alfonso Reyes [1930]. Apud
PACHECO, Jose Emilio. “Borges y Reyes: una correspondencia. Contribuición a la historia de
una amistad literaria”. Revista de la Universidad de México, v. 34, n. 4, diciembre de 1979, p. 1-
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ele remonta às origens do mistério para reafirmar o que este possuía de
enternecedor, e mesmo patético, próprio a uma mentalidade suburbana, mais
apegada ao passado do que ávida de futuro. Isso enfatiza o aspecto pouco
sistemático, e improvisado, de um movimento do qual o novo regime
sobrevalorizaria a capacidade de organização, como modo de perpetuar-se no
controle da política nacional. A criação de uma ficção em torno de figura de
Yrigoyen, e de seus correligionários, atendia assim à necessidade de criar
condições para o acúmulo de poder. Ao que Borges contrapõe: não éramos cruéis.
Sequer éramos astuciosos. Éramos somente idiotas.
A força desta expressão não deve ocultar o que ela pode sugerir à análise.
Todavia, para que seu papel em meu argumento seja esclarecido, é necessário
esboçar o sentido de uma mudança igualmente importante para este estudo,
ocorrida no período mencionado, referente à produção literária de Borges. É o
caso de compreender como, neste momento, ele passa a adotar uma perspectiva
histórica em relação ao ambiente circundante, em contraste com o alcance épico e
metafísico a que sua mitologia caseira chegou a aspirar; e, a partir daí, creio que
será possível retomar o assunto da carta com maiores recursos à disposição.
O que nos leva a uma seqüência de projetos abortados, que termina com a
publicação do primeiro livro em prosa de Borges. Ela se inicia em 1925, quando,
nos últimos meses do ano, ele imaginava um vasto projeto literário, vinculado à
suas esperanças de então: o de escrever uma história em verso da Argentina, que
abarcasse todos os momentos da constituição da pátria, sob uma totalidade
orgânica, em reação à fragmentação decorrente do crescimento de Buenos Aires, e
correspondente à sensação experimentada por Borges de ser um “criollo final”.
Deste plano, ficaram apenas poemas isolados. Paralelamente, havia a idéia de se
criar, em conjunto com outros escritores, uma antologia sobre os bairros da
capital, em que cada um deles contribuiria com um poema para o volume a ser
publicado com um desenho (um mapa) de sua irmã Norah na capa. Mas tampouco
este propósito foi adiante, apesar da insistência com que seu idealizador abordava
os possíveis colaboradores, segundo descrição de Ulyses Petit de Murat.
46
Afinal,
após a publicação do Cuaderno San Martín, em 1929, Borges abandona a poesia,
para dedicar-se em seguida a outra tarefa, que, se guarda relação com as
46
Cf. WILLIANSON, E. Borges, una vida. Trad. Elvio E. Gandolfo. Buenos Aires: Seix Barral,
2006, p. 168.
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anteriores, é fundamentalmente distinta: a de escrever um texto biográfico. Como
objeto de suas pesquisas, ele escolheu um poeta popular do arrabal, que chegara a
freqüentar a casa de seus pais. Ao defender a opção diante do estranhamento da
mãe, ele argumentaria que, embora não fosse um artista de maior expressão,
Evaristo Carriego fora “amigo e vizinho” da família. Isto nos situa em uma
atmosfera de intimidade caseira, que atravessa todo o livro.
Pois Carriego oferecia a Borges a possibilidade de evocar uma Palermo
perdida, à qual o escritor renunciava em um gesto que era também uma declaração
de amor e gratidão. O texto surge da percepção de que as antigas formas de vida
do bairro estavam em processo de declínio, sem que nenhum projeto de resgate ou
renascimento destas formas através da poesia, da música ou da metafísica
pudessem evitá-lo. Nesta mesma operação, portanto, Borges negava o estatuto
ontológico e inviolável que havia antes atribuído ao espírito criollo dos subúrbios,
inserindo-o em um curso temporal, que consome todas as coisas, e as torna objeto
de uma aspiração sentimental, mas asceticamente resignada à perda. Em resumo,
tratava-se de uma substituição da epopéia cósmica pelo idílio; do reconhecimento
de uma fratura na realidade histórica, que o olhar do poeta recusava, e da
instalação da voz do prosador neste mesmo espaço de ruptura.
Conseqüentemente, este ponto de vista permitiria também a constatação dos
mecanismos pelos quais a vida nos subúrbios podia se tornar uma encenação de si
mesma. O distanciamento da narrativa criava o autor/espectador de uma
população que começava a trocar a decência pequeno-burguesa por formas mais
extravagantes ou ruidosas de expressão da dignidade pessoal. Na obra de
Carriego, Borges encontraria, em primeiro lugar, um poeta criador destas formas,
para depois perceber como ela evoluiu para um comentário mais reflexivo e
compadecido sobre a dissonância que apresentavam em relação ao contexto local.
Buscarei demonstrar, na seqüência, alguns modos pelos quais estas relações se
desenvolvem, acrescentando no percurso alguns detalhes que considero
relevantes.
O livro começa com uma breve narrativa da história de Palermo no século
XIX, com a menção ao momento em que Juan Manuel Rosas estabeleceu no
bairro sua corte ditatorial, fazendo dele o epicentro da uma Buenos Aires
convulsionada pela desordem. “Durou doze anos esse ardido Palermo, na soçobra
da exigente presença de um homem obeso e ruivo”, afirma o cronista, e nesta
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passagem percebe-se um tom de delicada ironia em relação à figura do
Restaurador. A seguir, Borges passa rapidamente pelos acontecimentos
posteriores, até chegar ao final do século, que seria o objeto de seu verdadeiro
interesse, ou, para ser mais específico, de seu encantamento sem esperanças.
“Direi sem restrição o que sei, sem omissão nenhuma, porque a vida é recatada
como um delito [porque la vida es pudorosa como un delito], e não sabemos quais
são as ênfases para Deus”, ele escreve, anunciando seu propósito de evitar
maiores exaltações. “Além disso, o circunstancial é sempre patético”.
Esta última observação está acompanhada de uma nota, em que uma
passagem do Decline and Fall of the Roman Empire de Edward Gibbon é citada,
segundo a qual o patético estaria quase sempre no detalhe e nas circunstâncias
marginais. O que nos oferece uma idéia de como Borges estava então
incorporando outras referências literárias a seus escritos, e marca o início de sua
crescente aproximação à tradição inglesa. Mas, por ora, basta observar que isto
significava o abandono de uma configuração ontológico-metafísica da história, em
que o processo de decadência era revertido pela transcendência estética, por outra
em que, ao declínio, se seguia um processo de esvaziamento da tradição, sob a
forma de um degradante espetáculo político. Um espetáculo contemplado, porém,
com uma ironia associada ao humor e à ternura pelos mais insignificantes
aspectos do mundo em dissolução. Em certo sentido, trata-se de uma compreensão
mais “rasteira” da história, imune à sedução da ontologia e da metafísica como
modelos discursivos unificadores. Mas, ainda assim, encantada com a variedade
de pequenos momentos dramáticos que o plano terrestre e o espectro das paixões
humanas podem oferecer.
Pois, como foi assinalado, a vinculação afetiva do narrador de Evaristo
Carriego ao tema de sua escrita implicava uma intimidade particular, em que o
sentimental se articulava com o afastamento irônico, e o desejo convivia com o
pudor, situando a voz narrativa em uma zona intermediária entre a completa
identificação com o objeto e um total estranhamento em relação a ele.
47
O que se
reverte em um pathos da distância e da proximidade, resultando na natureza
idílica do texto, que gradualmente toma forma, na medida em que se passa à
47
Sobre o pudor como componente fundamental da estratégia literária de Borges, remeto a um
ensaio de Alan Pauls, “Política del pudor”, em PAULS, A., y HELFT, N. El factor Borges: nueve
ensayos ilustrados. Buenos Aires: Fondo de Cultura Argentina, 2000, p. 47-56.
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descrição da Palermo da década de 1890, quando Carriego teria se instalado no
bairro:
Palermo era uma despreocupada pobreza. A figueira escurecia sobre o taipal; as
varandinhas de modesto destino entregavam-se a dias iguais; a perdida corneta do
vendedor de amandoim explorava o anoitecer (...) Havia felicidades também: a
jardineira do pátio, o andar orgulhoso do compadre, a balaustrada com espaços de
céu (...) No poente, havia becos empoeirados que se iam empobrecendo pela tarde
afora; havia lugares em que um galpão da estrada de ferro ou um vazio com pitas,
ou uma brisa quase confidencial, inaugurava mal e mal o pampa.
48
O tema da pobreza, como se vê, é recorrente. E cabe apontar que ele não se
refere apenas a aspectos estritamente materiais, correspondendo ao temperamento
da pequena burguesia que habitara a Palermo, com a qual Borges se identificava.
Ou seja: é também uma carência de recursos espirituais disponíveis à expressão
artística, despojada até mesmo do mistério, que, todavia, se apresenta como
origem de uma felicidade igualmente discreta, apegada à própria obtusidade
característica de seu lugar.
Neste ponto, vale retomar o jovem Lukács, que, em um escritor talvez tão
secundário em seu contexto quanto Evaristo Carriego, viu uma postura decorrente
da percepção de uma falta incontornável, simultaneamente fonte do desejo e
impedimento à sua satisfação. Sobre os personagens de Charles-Louis Philippe,
Lukács afirmou:
Sua alma está predestinada à pobreza. E a pobreza é uma forma de ver o mundo:
uma difusa aspiração, expressa em palavras claras, por algo diferente, e um amor
muito mais profundo por aquilo que se gostaria de deixar para trás; o desejo por um
colorido mais rico na monotonia cinza da vida, e ao mesmo tempo a percepção de
cores ricamente nuançadas nesta mesma monotonia do ambiente circundante.
49
O autor se refere, portanto, a um lugar de ruptura duplamente atravessado
por promessas de futuro e afeição ao passado. Este é o presente histórico que,
48
BORGES, J. L. “Palermo de Buenos Aires”. In: ____. Evaristo Carriego. Trad. Vera
Mascarenhas, Jorge Schwartz, Maria Carolina de Araujo e Victoria Rébori. OC [edição brasileira],
vol. 1, p. 110-1. “La higuera oscurecía sobre el tapial; los balconcitos de modesto destino daban a
días iguales; la perdida corneta del manisero exploraba el anochecer (…) Había felicidad también:
el arriate del patio, el andar entonado del compadre, la balaustrada con espacios de cielo (…)
Hacia el poniente había callejones de polvo que iban empobreciéndose tarde afuera; había lugares
en que un galpón del ferrocarril o un hueco de pitas o una brisa casi confidencial inauguraba
malamente la pampa”. BORGES, J. L. Palermo de Buenos Aires”. In: ___. Evaristo Carriego.
OC, vol. 1, p. 116-7.
49
LUKÁCS, G. “Longing and Form”. In: ____. Soul and Form, p. 90.
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70
situado no curso destrutivo do tempo, por breves momentos consegue detê-lo, e
dar forma ao próprio desejo, que contém em si mesmo uma beleza singular. No
entanto, se esta conduta é incapaz de rearticular o mundo sob o próprio poder de
criação, seu gesto derradeiro pode ser o de uma despedida. Tal como Borges
finaliza a primeira parte do livro:
Escrevo esses recuperados fatos, e me atrai com aparente arbitrariedade o
agradecido verso de Home-Thoughts [de Browning]: “Here and here did England
help me” (...) “Here and here did England help me”, aqui e aqui veio me ajudar
Buenos Aires. Essa razão é uma das razõs por que resolvi compor este primeiro
capítulo.
50
Mais uma vez, temos indício de como certo temperamento britânico se
insinua no livro, sob a forma dos atributos burgueses da decência, da parcimônia e
do pudor, aos quais era agora acrescentada a categoria do “lar”, dos “pensamentos
caseiros”. A associação entre a Inglaterra e Buenos Aires não me parece fortuita
ou casual, em que pese sua inesperada singularidade, que seria também a de traços
que se desenvolveriam, a partir deste momento, no caráter de Borges.
Isto feito, ele anuncia, em outro subtítulo, a etapa do livro mais
propriamente dedicada à vida de Evaristo Carriego. E o olhar do narrador se
dirigirá então às possibilidades criativas do subúrbio, em sua forma mais
impositiva e menos resignada. Em um primeiro momento, os próprios dados
biográficos do poeta apontam nesta direção, na medida em que, à linhagem
criolla, Carriego teria agregado o “elemento paradoxal” do sangue italiano de sua
mãe, algo que para Borges havia sempre significado um fator de desagregação na
tranqüila monotonia do arrabal. Assim, à pobreza de espírito até aí descrita,
somava-se a inquietude característica do imigrante, cujo problema seria o de
transformar estes atributos em um verdadeiro poder de criação. Carriego
acreditava ter uma obrigação com seu bairro pobre”, afirma neste sentido o
narrador. “Obrigação que o estilo velhaco da época traduzia em rancor [que el
50
BORGES, J. L. “Palermo de Buenos Aires”. In: ____. Evaristo Carriego. Trad. Vera
Mascarenhas, Jorge Schwartz, Maria Carolina de Araujo e Victoria Rébori. OC [edição brasileira],
vol. 1, p. 115. “Escribo estos recuperados hechos, y me solicita com arbitrariedad el agredecido
verso de Home-Thoughts [de Browning]: Here and here did England help me(...) Here and
here did England help me”, aquí y aquí me vino a ayudar Buenos Aires. Esa razón es una de las
razones por las que resolví componer este primer capítulo”. BORGES, J. L. “Palermo de Buenos
Aires”. In: ____. Evaristo Carriego. OC, vol. 1, p. 120.
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71
estilo bellaco de la fecha traducía en rencor], mas que ele sentia como uma
força”.
E, logo em seguida, Borges lembra que, junto a biografias romantizadas de
gauchos rebeldes e criminosos, a leitura mais freqüente de Carriego era o Quijote
de Miguel de Cervantes. A identificação que o biógrafo compõe é imediata: como
o fidalgo de La Mancha, Carriego possuía a tendência a transfigurar uma realidade
inóspita no cenário da encenação de ideais abstratos. Sua obrigação para com o
bairro seria a de vestir-lhe a pobreza com a indumentária que imaginava digna de
nobres e cavaleiros – ou, no caso, dos antigos heróis da resistência contra o estado
centralizador dos unitaristas. Tratava-se de ver nos compadritos, com sua
habilidade no manejo da faca, e sua insistente busca de prestígio, uma
representação de códigos de honra extintos, atribuídos ao gaucho, e que deviam
ser mobilizados na afirmação de uma opulência sobreposta à aridez de fundo.
O tema surge ainda na descrição de Don Nicolás Paredes, compadre de
Carriego, que foi uma das fontes orais para a realização do livro. E, por fim, ele é
a base da análise de dois livros de Carriego no terceiro capítulo. Assim, sobre as
Misas herejes, Borges afirma que é uma obra de aprendizagem, na qual, todavia,
uma retórica ornamentada por termos abstratos e grandiloqüentes alcançava o
aplauso popular, de modo que o livro não falava de Palermo, mas exatamente por
isso Palermo podia tê-lo inventado. (“O paradoxo é tão admirável quanto
inconsciente”, Borges assinala, referindo-se aos críticos da obra. “Discute-se a
autenticidade popular de um escritor em virtude das únicas páginas deste escritor
que agradam o povo”). Enquanto El alma del suburbio, examinado na seqüência,
seria uma expressão mais contida da exaltação de práticas, objetos e
personagens das orillas, como a guitarra, o truco e o fora-da-lei.
Mas a análise prossegue ainda com um capítulo dedicado inteiramente
àquela que seria a obra mais madura de Carriego – La canción del barrio, de 1912
–, na qual algumas diferenças em relação às anteriores são ressaltadas por Borges.
E acredito que esta distinção é a que mais contribui ao entendimento de como seu
próprio idealismo esteticista sofreu uma decisiva inflexão entre os anos de 1928 e
1930. O texto se inicia resgatando a descrição da primeira parte do livro, que se
sobressai mesmo diante da eventual morte de um compadrito nas ruas do bairro:
“Em geral, Palermo se conduzia como Deus manda, e era uma coisinha decente
[una cosa decentita], infeliz, como qualquer outra comunidade gringo-crioula”. E
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é esta Palermo que ressurge nos últimos poemas de Carriego, com o retrato de um
“pobrerío conversador”, que se reuniria em qualquer batismo ou velório, no
mesmo intuito de se evitar da solidão. Com isto, segundo Borges, a situação
espiritual característica dos subúrbios não seria nem mesmo a da pobreza
desesperada ou congênita do naturalismo russo leia-se Dostoievski –, mas sim a
de uma população apegada às míseras esperanças da loteria e do comitê, incapaz
de maiores atos de violência premeditada, e que buscava no álcool e nas milongas
dos armazéns rosados o acesso a uma existência menos tacanha, através de
emoções tão intensas quanto superficiais, e do inepto exagero no colorido da vida.
Uma mistura de tristeza e pretensão, de comoções fáceis e profundos
desapontamentos. E, assim, o foco recai sobre o infortúnio fundamental de se
pertencer ao subúrbio, destituído até mesmo dos arrebatamentos cênicos da
tragédia, que Borges exemplifica com uma citação de Shakespeare, sobre a
iminência de eventos estranhos e terríveis, que na paisagem de Palermo estaria
completamente deslocada. O que o leva à observação de que nem mesmo o terror
trágico podia ser extraído dos personagens do poeta: “Carriego apela solamente a
nuestra piedad”.
Este retrato é uma resultante de todos os anteriores. Juntos, eles compõem
uma análise que elimina a própria possibilidade de síntese que o criollismo dos
ensaios de Borges anunciava. Por um lado, a lenda de uma comunidade original,
composta por indivíduos taciturnos e determinados, lugar à imagem de uma
configuração social muito mais frágil, de homens não tão seguros e de uma
moralidade um tanto mais quebradiça. Uma comunidade na qual nenhum segredo
garante a substância do pertencimento à terra, embora desta mesma ausência surja
o desejo de reconciliação com o lar. Nisto, o silêncio fatalista, que era signo de
fortaleza pessoal, pode ser entendido como timidez e embaraço; a solenidade vira
mero disfarce de deficiências, indício da sensação de deslocamento e da falta de
naturalidade, escamoteadas na elaboração de um personagem austero e
enigmático. Comprometida a ontologia da raça, fica-o igualmente seu destino
metafísico, o que já se percebe em um personagem intermediário como Rosas, que
adquire algo de burlesco e caricato, dissonante em relação à sua representação
demoníaca. E, por fim, os heróis, poetas e semi-deuses que levariam a cabo a
tarefa de erigir o grande edifício cósmico da alma criolla revelam o que está por
trás da máscara: pequenos funcionários frustrados, pensadores excêntricos,
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marginais melindrosos, todos com o objetivo de transcender a desventura
cotidiana, na esperança de que uma outra forma de vida lhes estivesse reservada,
em algum outro lugar.
Embora o livro não deva ser compreendido como uma unidade cerrada
visto que inclusive receberia vários anexos ao longo dos anos, tornando-se uma
espécie de museu sobre Palermo –, o capítulo finaliza a análise da obra de
Evaristo Carriego. E resume a maneira como Borges, a partir daí, avaliaria não
somente a vida cultural do bairro, como também suas primeiras obras literárias,
entendidas como uma tentativa de transfigurar uma realidade desafortunada em
sofisticados artefatos estéticos. Em última instância, esta visão se estenderia a
toda a geração de jovens intelectuais da década de 20, através de uma empática
compreensão de suas limitações, que impedia o olhar crítico de recair no puro
desdém ou em uma distanciada condescendência. A este respeito deve ainda ser
mencionada uma última passagem, em que Borges se refere sobre o temperamento
de Carriego ao escrever La canción del barrio:
A ternura é apanágio dos muitos dias, dos anos. Outra virtude do tempo,
utilizada neste segundo livro e nem suspeitada ou verossímil no anterior, é o bom
humor. É condição que implica um delicado caráter: nunca se distraem os ignóbeis
com esse puro prazer simpático às debilidades alheias, o imprescindível ao
exercício da amizade. É condição que acompanha o amor: Soame Jenyns, escritor
de mil e setecentos, pensou com reverência que a parte de felicidade dos bem-
aventurados e dos anjos derivaria de uma refinada percepção do ridículo.
51
Nesta passagem, enfim, revela-se a apreciação de uma persona literária cujo
exemplo estaria presente na trajetória de Borges de modo duradouro. E a
percepção de sua própria poética dos anos 20 como um empreendimento
quixotesco começava a mostrar seus resultados, decorrentes de um olhar sobre
tudo o que ela possuía de patética e enternecedora evasão do prosaísmo da vida
cotidiana. O que implicava também outra compreensão do significado da nobreza,
com o abandono dos ideais heróicos vinculados à tradição mediterrânea, ou da
pureza racial e das cosmologias bárbaras, característicos do caso alemão, em favor
51
BORGES, J. L. “‘La canción del barrio’”. In: ____. Evaristo Carriego. Trad. Vera Mascarenhas,
Jorge Schwartz, Maria Carolina de Araujo e Victoria Rébori. OC [edição brasileira], vol. 1, p. 144.
“La ternura es corona de los muchos días, de los años. Otra virtud del tiempo, ya operativa en este
libro y ni sospechada o verosímil en el anterior, es el buen humorismo. Es condición que implica
un delicado carácter: nunca se distraen los innobles en ese puro goce simpático de las debilidades
ajenas, tan imprescindible en el ejercicio de la amistad. Es condición que se lleva con el amor”.
BORGES, J. L. “‘La canción del barrio’”. In: ____. Evaristo Carriego. OC, vol. 1, p. 148.
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de algo mais próximo do exemplo inglês, sempre que este articulasse a ternura e o
humor no trato das fraquezas humanas, as próprias e as alheias, impedindo que
uma hipertrofia do orgulho viesse a causar uma necessidade de constante auto-
afirmação.
A capacidade de incorporar estes traços seria atribuída por Borges à origem
anglo-saxã de seu pai, em um primeiro momento, para depois converter-se em
motivo de admiração por autores britânicos, como Robert Louis Stevenson e G.
K. Chesterton.
52
Ele iria também, em várias oportunidades, expressar uma
apreciação semelhante da personalidade de Macedonio Fernández, em que, à
excentricidade intelectual, é acrescentada uma nota de deliberada idiotia,
relativizando o alcance de suas teorias filosóficas, porém conferindo maior
significado à própria figura do filósofo. Mas, antes de mencionar seus textos a
este respeito, prefiro acompanhar uma seqüência temporal que nos permita avaliar
como se deu a configuração de uma visão de mundo em constante diálogo com
eventos históricos, além de relacionar-se com as obras de outros escritores. Neste
sentido, creio que somente a partir de meados da década de 1940 as conclusões
decorrentes deste exame serão mais bem aproveitadas.
Tentarei explicar este ponto no último capítulo, embora ele possa ressurgir
em outras ocasiões no decorrer deste estudo, principalmente por estabelecer um
contraponto fundamental com tendências verificadas no cenário político e literário
do ocidente. Em relação ao que se segue, meu propósito inicial é o de registrar
esta mudança de perspectiva, para, em primeiro lugar, entender melhor o conteúdo
da carta de Borges a Alfonso Reyes. Citada no início desta seção, ela estabelecia
um importante contraste entre o clima político e intelectual da década de 1920 e
aquilo que se anunciava para os anos posteriores. Este contraste gira em torno
de uma idéia cujas ambigüidades devem ser avaliadas: a de que o ano de 1930
marca o fim de uma idade da inocência no decurso da história argentina.
Isto vale, em primeiro lugar, para a descrição dos subúrbios como lugar de
uma vida pacífica e insípida, na qual o desespero existencial e o fanatismo político
dele decorrente não haviam tomado forma. Ou, ao menos, não tinham adquirido a
sistematicidade ideológica que caracterizaria as doutrinas mais radicalmente anti-
52
Sobre o tema genealógico das raízes inglesas da família de Borges, atrelado a uma associação da
cultura britânica a características como a excentricidade, a idiotia, a ingenuidade e o pudor (um
assunto ao qual voltarei algumas vezes) ver HADIS, Martín. Literatos y Excéntricos: los ancestros
ingleses de Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2006.
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democráticas do século XX, limitando-se a gerar o vago esteticismo da aspiração,
através do recurso a mitologias populares. Paralelamente, a produção literária dos
jovens escritores argentinos, entre os anos de 1921 e 1928 (ou ao menos de alguns
círculos próximos a Borges), pode ser considerada, em conjunto, pelo viés que
marcaria a visão do próprio autor sobre seus poemas. E, neste ponto, devo
aproveitar uma referência extemporânea, procedente do prólogo que ele escreveria
para a edição em suas Obras Completas de Fervor de Buenos Aires, tendo em
vista que contém o resumo de um desenvolvimento do mesmo raciocínio: “Como
os de 1969, os jovens de 1923 eram tímidos”, afirmaria o autor. “Envergonhados
de sua íntima pobreza, tratavam de escondê-la sob inocentes novidades
ruidosas”.
53
Mas Borges nunca acreditou que seus ensaios eram merecedores da mesma
avaliação, impedindo sempre que estes fossem reeditados. E tampouco a atuação
entusiástica como militante do radicalismo seria recordada, em seus textos
autobiográficos, sem um tom de arrependimento e retratação. Isto pode significar
que, de acordo com os eventos seguintes, ele percebeu uma etapa de transição,
na qual um verdadeiro comprometimento com utópicas doutrinas de redenção
ameaçava tomar corpo, porém sem ter ainda adquirido a o rigor ideológico que
marcaria a experiência dos anos 1930. Neste sentido, é importante notar que, para
Borges, os fenômenos culturais o se relacionariam de modo determinista com
os movimentos políticos mais importantes do culo, mas esta relação existia,
podendo ser compreendida pelo autor, a posteriori, através de sua própria
experiência na década de 1920. Ou seja: ele teria sido capaz de compreender de
uma maneira singular os fundamentos psicológicos e intelectuais do nazismo, por
exemplo, em grande medida porque, em algum momento de sua trajetória,
formulara algumas das experimentações e raciocínios que estavam na base de sua
elaboração enquanto movimento político.
A história deste processo de reconhecimento é um dos temas desta pesquisa,
e deve, portanto, ser acompanhada em seus momentos mais relevantes e
eventualmente dramáticos. No que se refere ao ano de 1930, percebemos na
correspondência sobre a queda de Yrigoyen um olhar ainda carregado de afeição
pela “imagen estrafalaria del Doctor” e pela “mitología casera” dos subúrbios, que
está estreitamente relacionado à leitura que Borges havia feito então da obra de
53
BORGES, J. L. “Prólogo” [1969]. In: ____. Fervor de Buenos Aires. OC I, vol. 1, p. 15.
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Evaristo Carriego. Nesta perspectiva, o que redimiria o governo derrubado das
acusações de tirania e crueldade era justamente sua notável inépcia, sua
incapacidade de levar a cabo um programa quimérico de consagração do espírito
do povo, que recaía sempre na hesitação ou no puro imobilismo, convertendo
Yrigoyen em um personagem muito mais anedótico do que messiânico.
Decerto, Borges reconhece a racionalidade da imposição do golpe
autoritário, diante de uma situação prática insustentável, isto é, da crescente
desorganização do governo e da sociedade argentina a partir de 1928. Mas sua
constatação sobre a natureza do radicalismo ganha outra relevância política a
partir do momento em que, se este era para ele merecedor de piedade, não o seria
do ódio e do rancor que marcou a reação imediata dos militares, em sua campanha
difamatória subseqüente ao golpe. Por mais que uma exultante felicidade tivesse
marcado o retorno ao poder do Doutor, pouco haveria nela de vitoriosa
arrogância, ou verdadeiro risco para as instituições, inclusive porque o
radicalismo não possuiria um projeto sistemático de perpetuação no poder. O que
havia de “monstruoso” nos sonhos populistas do bairrismo argentino tinha como
contraponto o que neles existia de ridículo. Não éramos sanguinários. Éramos
patetas.
Por outro lado, o ressentimento contra as formas tradicionais de governo,
que já existia de forma latente e difusa neste contexto, poderia justamente adquirir
maior força diante da campanha difamatória de Uriburu, principalmente tendo em
vista o uso de violentos meios de repressão que a acompanhou. Mas isto é
assunto para o próximo capítulo. Por ora, espero apenas ter esclarecido um ponto
de vista segundo o qual o encerramento da fase criollista de Borges foi um breve
período de fundamental importância em sua formação como escritor e intelectual.
É importante perceber que esta etapa proporcionou-lhe o surgimento de novas
alternativas de entendimento do mundo, que seriam ainda melhor elaboradas, de
acordo com circunstâncias pessoais e históricas; mas também que este processo
era resultante de uma considerável desilusão, relativa a tudo aquilo que tinha sido
fonte de entusiasmo para o autor nos anos anteriores, e de um deslocamento, da
posição de alguém que acreditava fazer parte de um inigualável fenômeno na
trajetória de um povo, para outra, mais testemunhal e cética, em relação aos
eventos seguintes. Uma posição da qual Borges apenas sairia quando o confronto
entre as novidades políticas do século XX e o legado liberal do culo XIX fosse
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percebido por ele como algo que exigia uma clara opção por uma das alternativas
em disputa. Entender como se deu esta transição é também um propósito do
prosseguimento deste trabalho.
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3
A Época dos Tumultos (1930-1939)
Em 1930, em meio ao “desagradabilíssimo” ambiente a que se referia
Borges na carta a Alfonso Reyes, começava aquela que viria a ser conhecida
como a “década infame” da história argentina, segundo a célebre definição de um
jornalista, posteriormente corroborada por historiadores. A expressão refere-se,
sobretudo, à ampla utilização da fraude eleitoral e da violência como meios de
perpetuação do novo governo, que não conseguiria justificar, a médio prazo, a
legitimidade conferida a ele por ocasião do golpe, em razão de disputas internas,
de práticas corruptas, e do poder atribuído a caudilhos provinciais. Mas ela
também diz respeito a um fenômeno mais amplo, de rompimento de vínculos e
padrões morais da sociedade civil, que, condenada a ser mera espectadora de
trâmites destituídos de respeito por qualquer norma por parte do governo, tornava-
se igualmente incapaz de discernir os fundamentos históricos das próprias idéias,
condutas e representações. Isto teria criado as condições para que toda demanda
de autenticidade fosse forjada por efeitos teatrais, gerando a percepção da vida
cultural e política da nação como uma farsa, em que maus atores faziam uso de
uma ênfase cada vez maior em seus gestos, para ocultar o vazio de legalidade, ou
experiência, sobre o qual representavam seus atos. Em seus aspectos micos, o
fenômeno transformava a vida pública de Buenos Aires em uma ópera bufa. Em
sua dimensão trágica, fazia com que ela se assemelhasse cada vez mais a um
aflitivo pesadelo.
Neste período, Jorge Luis Borges publicou seu primeiro livro de ficções, a
Historia Universal de la Infamia, uma reunião de textos breves que ocuparam as
páginas semanais de um suplemento literário popular do jornal Crítica. O próprio
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Borges era o editor do suplemento, tendo aceitado dirigi-lo diante de uma
necessidade de re-acomodação profissional e intelectual, que os eventos de 1928-
1930 lhe impuseram. Pois sua biografia de Evaristo Carriego, publicada duas
semanas após o golpe, fora recebida com pouco interesse, para não dizer
indiferença, pelo público de Buenos Aires. E, a esta altura, surgia a necessidade de
transformar seus talentos literários em fonte de recursos financeiros, aplicando-os
em atividades que fornecessem um mínimo de retorno neste sentido, mesmo que
não correspondessem ao prestígio alcançado com os livros de poesia editados na
década anterior.
Afinal, a época dos agitados e inocentes debates entre os jovens intelectuais
de Buenos Aires havia ficado para trás. O que implicava a busca por novos meios
de inserção na vida cultural da cidade, não apenas por questões materiais, mas
também porque as revistas da década de 20, nas quais se formara a identidade dos
grupos vanguardistas, tinham deixado de existir, fazendo com que seus
colaboradores tomassem rumos divergentes no direcionamento de suas carreiras.
Assim, enquanto alguns poucos se mantinham fiéis à dissidência radical, relegada
ao anonimato, e outros viam no viés autoritário do golpe a possibilidade real
mas a princípio frustrada de instalação de um governo fascista na Argentina,
muitos se aproximaram de outro grupo que vinha se formando na sociedade local,
por intelectuais de distintas origens e tendências, em torno da figura de Victoria
Ocampo, conhecida integrante de uma família tradicional, que se dedicava ao
estímulo de atividades artísticas e culturais. Tendo como principal foco de
convergência a revista Sur, além de jantares e saraus na casa de Ocampo, este
grupo procurava manter um espaço de discussão que respeitasse a relativa
autonomia de questões literárias e estéticas, diante das turbulências políticas do
país. Tratava-se de criar, e preservar, um ambiente a salvo do processo de
degradação social dominante, onde se pudesse discutir e divulgar a produção de
escritores locais, e também manter um constante diálogo com intelectuais
estrangeiros, o que denotava uma atitude cosmopolita.
Além de ocupar parte de seu tempo em diferentes atividades mal
remuneradas, como, por exemplo, a de editor da Revista Multicolor de los
Sábados, ou de secretário de redação da Compañia Chadopyf de Subterráneos de
Buenos Aires, Jorge Luis Borges tornou-se, a partir de 1931, um colaborador
regular da revista Sur, onde sua erudição e estilo obtinham maior reconhecimento.
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80
A publicação trimestral, sem fins lucrativos, e luxuosa para os padrões da época,
parecia adequada ao gosto de Borges por autores europeus pouco conhecidos na
Argentina, aos quais poderia dedicar ensaios e resenhas segundo suas próprias
opções. No entanto, embora fosse um dos autores mais freqüentes nas páginas da
revista durante a década de 30, Borges nunca manteve a mesma assiduidade no
salon litteraire da casa de San Isidro, para o qual foi “convidado” pela primeira
vez em 1932 (os convites de Victoria eram mais propriamente ordens). E onde
teria causado, nesta ocasião, uma pequena catástrofe, ao quebrar um abajur,
durante uma conversa com Adolfo Bioy Casares. mais tarde, a amizade que
então se iniciava entre esses dois personagens das letras argentinas também ficaria
livre de alguns notáveis mal-entendidos. Enquanto isso, o deslocamento de
Borges, entre os colaboradores da revista Sur, iria manifestar-se ainda em
controvérsias e polêmicas, que quase sempre preservavam o respeito e a cortesia
entre as partes. Mas, diante dos eventos que levaram à Segunda Guerra Mundial,
estas diferenças ficariam cada vez mais perceptíveis.
“Nuestras imposibilidades”, um dos primeiros textos que Borges publicou
em Sur, é um indício de que a relação entre o escritor e seu novo meio de
publicação requeria um processo de adaptação, por parte daquele, às
particularidades deste. Tanto o tema do artigo, quanto o ceticismo que já se
apresenta em seu título, diferiam das qualidades que, em um primeiro momento,
deveriam nortear a existência da revista. Mas, por este mesmo motivo, ele é muito
útil à compreensão do estado de espírito com que o autor adentrava uma nova
década, e uma nova fase de sua vida. a primeira frase apresenta-o como “uma
fracionária notícia das características mais imediatamente aflitivas do argentino”,
prosseguindo no exame de tópicos abordados por Borges na década anterior,
porém sob um ponto de vista influenciado por acontecimentos recentes, que
gradualmente aumentavam suas preocupações, e sua frustração, no que dizia
respeito ao objeto de sua análise. Este seria, em primeiro lugar, o “criollo da
cidades”, ou, segundo a denominação popular, o “guarango”, em suas
contradições e manias. Aquele que desprezava os Estados Unidos, e ao mesmo
tempo vangloriava-se de que em Buenos Aires ocorressem quase tantos
homicídios quanto em Chicago; intuía uma relação secreta entre a virilidade e o
tabaco; e orgulhava-se do “idealismo latino” e da “viveza portenha”, confundindo
a habilidade retórica das frases incisivas com um meio de produção de grandes
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pensamentos. Ou seja, era a versão mais estilizada, e vazia, de uma suposta
natureza dos habitantes de Buenos Aires. E, para arrematar as constatações
iniciais do artigo, Borges afirmava:
O criollo atual o de nossa provincia, pelo menos é uma variedade lingüística,
uma conduta que se exerce por vezes para incomodar, outras para agradar. Sirva de
exemplo o gaucho entrado em anos, cujas ironias e orgulhos representam uma
delicada forma de servilismo, posto que satisfazem a opinião corrente sobre ele...
54
Ao que é agregada uma série de exemplos e notas, sobre comportamentos
correlatos. Em uma delas, Borges menciona o sainete, forma teatral de influência
italiana, muito popular em Buenos Aires, para dizer que nele se agitavam, em vão,
personagens paródicos que sequer conseguiam morrer com verdadeira destreza
cênica: “Não são malvados o que implicaria uma dignidade –; são irrisórios,
momentâneos, e vazios”. Mais adiante, ele descreve os mecanismos do “faustoso”
ufanismo argentino, que sobrevalorizava o lugar da pátria entre outras nações, de
maneira ao mesmo tempo megalomaníaca e indigente, resultado da incapacidade
de imaginar outros cenários e tramas políticas, senão as que reafirmassem este
pressuposto. “Não apenas a visão geral é paupérrima aqui, mas também a
domiciliar, doméstica”, acrescenta ainda Borges, para falar sobre a imagem
esquemática com que o portenho vislumbrava a própria cidade, ignorando os
inconvenientes redutos que não entravam neste quadro. Como se não bastasse,
passagens sobre a tendência local de fruição dos fracassos alheios, sobre a
onipresença da inveja nas relações sociais, e sobre o hábito de vociferação de
injúrias aos pedestres, cultivado pelos que percorriam a cidade em automóveis.
Por fim, o autor se refere à tolerância e mesmo à admiração dos argentinos pelo
agente ativo da sodomia, atribuindo-as à percepção corrente de que este teria
“embromado” o companheiro.
Após dois extensos parágrafos, que são preenchidos por estes comentários,
o artigo é finalizado em outro mais curto e menos inflamado. Ele diz o seguinte:
54
“El criollo actual – el de nuestra provincia, a lo menos es una variedad lingüística, una
conducta que se ejerce para incomodar unas veces, otras para agradar. Sirva de ejemplo de lo
último el gaucho entrado en años, cuyas ironías y orgullos representan una delicada forma de
servilismo, puesto que satisfacen la opinión corriente sobre él…”. BORGES, J. L. “Nuestras
imposibilidades”. [Sur, Buenos Aires, año I, n. 4, primavera de 1931]. In: ____. Borges en Sur, p.
117-120.
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Penúria imaginativa e rancor definem nossa parte de morte. A primeira é
confirmada por um artigo bastante generalizável de Unamuno sobre La
imaginación en Cochabamba; o segundo, pelo incomparável espetáculo de um
partido conservador, que está forçando toda a república a aderir ao socialismo,
apenas por fustigar e penalizar um partido médio.
55
ainda uma breve sentença, em um tom mais pessoal: “Sou argentino
muitas gerações; formulo sem alegria estas queixas”.
Sem alegria, e com indisfarçável amargura. Tanto que “Nuestras
imposibilidades” é um raro e dissonante exemplo de enumeração de invectivas
mal-humoradas na trajetória literária de Borges. E, embora tenha sido reeditado
em Discusión, uma reunião de ensaios de 1932, foi também excluído de suas
Obras Completas. Neste sentido, o texto é o contraponto exato da “Queja de todo
criollo”, de 1925, pois, onde antes havia o lamento diante da perda dos
verdadeiros atributos do caráter argentino, por causa da invasão do elemento
estrangeiro, e o entusiasmo com sua possível recuperação autóctone, instalava-se,
agora, o mais completo pessimismo com as efetivas realizações deste mesmo
caráter. Resumia-se o risco da passagem de um fervor profético para as formas
mais estéreis da desesperança.
E, ainda assim, o artigo oferece indicações claras das bases sobre as quais
Borges construiria um pensamento mais complexo sobre o cenário social, político
e literário da Argentina e do mundo na década de 1930. Por este motivo, ele serve
à introdução deste capítulo. Nele, será inicialmente examinada a caracterização do
compadrito presente na produção do autor depois de 1930, que servirá de base à
leitura da Historia Universal de la Infamia, ampliando o espectro de sua
pertinência para congêneres deste tipo social, presentes em outras partes do
planeta. Através da compreensão deste tópico, devo indicar como Borges criaria
os fundamentos de uma visão crítica e satírica do fanatismo político emergente na
década, utilizando, para isso, formas literárias enrijecidas, que simulariam as
próprias limitações intelectuais e imaginativas dos representantes deste fenômeno,
destinado a ganhar enorme relevância com o aumento da influência do fascismo
55
“Penuria imaginativa y rencor definen nuestra parte de muerte. Abona lo primero un muy
generalizable artículo de Unamuno sobre La imaginación en Cochabamba; lo segundo, el
incomparable espectáculo de un gobierno conservador, que está forzando a toda la república a
ingresar en el socialismo, sólo por fastidiar y entristecer a un partido medio”. BORGES, J. L.
“Nuestras imposibilidades”. [Sur, Buenos Aires, año I, n. 4, primavera de 1931]. In: ____. Borges
en Sur, p. 117-120.
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italiano na sociedade de Buenos Aires, e a ter ainda maior alcance histórico com o
estabelecimento do regime nazista na Alemanha.
Em seguida, será o caso de indicar um caminho pelo qual Borges teria
imaginado uma saída para os impasses da vida pública local, de modo a conter o
avanço de correntes anti-democráticas e anti-liberais, e reorganizar o jogo de
forças políticas da capital, em torno de um projeto inacabado de constituição do
Estado argentino. Para isso, será esboçada uma descrição do ambiente em que se
dava este debate, e serão mencionadas algumas obras do pensamento social
argentino no período, em contraste com um discurso radiofônico proferido por
Borges em 1936, a ser articulado com uma linha de pensamento específica, da
qual ele seria um porta-voz praticamente isolado na ocasião. Com isso, aspectos
determinantes da formação do escritor poderão ser assinalados, em especial sua
dívida para com formas de ação e reflexão referentes à tradição britânica,
aludida na análise de Evaristo Carriego, mas, neste próximo caso, reforçada pela
proposta de resgate de valores oitocentistas, atrelados à memória de um século em
que certo equilíbrio geopolítico, entre unidades políticas nacionais, teria sido
promovido pela supremacia e pela mediação inglesa. Este ponto fornecerá a deixa
para o prosseguimento do trabalho, em uma seção um pouco mais extensa, na qual
devem ser conectados os assuntos discutidos até aí.
Pois, com o avanço da década, este mundo herdado do século XIX, no qual
ele ainda acreditava ser possível inserir seu país como uma esfera relativamente
autônoma, ficaria seriamente ameaçado por radicais adversários de todo o seu
legado institucional, cujos representantes tampouco se mostravam muito
convictos, ou perseverantes, na tarefa de defendê-lo de um ataque iminente. Não
obstante, isto criaria um intercâmbio mais intenso de idéias entre intelectuais de
diversas partes do globo, no qual um congresso internacional de escritores,
ocorrido justamente em Buenos Aires, desempenhou um papel peculiar, ao
confrontar o problema por um viés pacifista, que ilustrava em especial a reação da
intelectualidade francesa diante da ascensão do nazismo. Borges, sem ter
comparecido ao encontro, por razões que serão apontadas, seguiu o
desenvolvimento deste debate, e o expôs em resenhas a artigos, tendo também no
grupo Sur um exemplo próximo de como a imagem de um mundo isento de
conflitos podia surgir de uma índole esteticista, em oposição aos propósitos
beligerantes germânicos. Confrontados estes dois pólos utópicos, enfim, sua
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opção pela alternativa inglesa ficaria ainda mais enfatizada, desde que a Grã-
Bretanha recuperasse o suposto “vigor moral” com que teria criado as bases de
seu predomínio no século precedente, e o poder de mediação que a tornara a maior
responsável pela manutenção de certa estabilidade, em uma perspectiva realista.
Até que ponto este renascimento cultural foi verificado é outra história, não sem
repercussão para o tema da pesquisa, mas que será relatada no terceiro capítulo.
Por ora, espero apenas que, com o exame mais detalhado destes assuntos, neles
seja constatada a possibilidade de uma contribuição para o estudo da obra de
maturidade de Borges.
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85
3.1
Humilhados e Ofendidos
...feeling that the world owed him a loaf of bread and something more.
Patricia Highsmith, The Talented Mr Ripley
O primeiro conto de Borges levou seis anos para ser finalizado e publicado
em sua versão definitiva. A genealogia da narrativa remonta à edição da revista
Martín Fierro de 26 de fevereiro de 1927, na qual apareceu um breve esboço,
intitulado “Hombres pelearon”, depois reeditado em El Idioma de los Argentinos,
sua última reunião de artigos e ensaios no período. De modo que, até 1933,
Borges manteve a intenção de transformar esta nota descritiva em um relato mais
completo dos eventos nela sugeridos. Seus biógrafos costumam enfatizar o
perfeccionismo que ele aplicou na composição de “Hombres de las orillas”,
trabalhando meticulosamente o estilo da narrativa, e lendo trechos em voz alta,
para testar suas modulações, até que ela surgisse nas ginas da Revista
Multicolor de los Sábados, o suplemento literário semanal do qual era editor e
principal colaborador. Sob o título “Hombre de la esquina rosada”, com o qual
ficaria mais conhecido posteriormente, o conto seria ainda acrescentado a
sucessivas edições da Historia Universal de la Infamia. Entre os indícios iniciais
da idealização do texto, e sua efetiva divulgação pública, existe, portanto, um
lapso temporal significativo, que merece certa atenção.
Da leitura de “Hombres pelearon”, depreende-se que propósito original
estava de acordo com a fascinação do jovem escritor com as histórias que ouvia
sobre personagens e eventos lendários de Palermo, e com sua ambição de registrá-
los sob a forma escrita, de maneira fiel à tradição oral de que emergiam. Don
Nicolás Paredes, uma das fontes às quais ele recorreu na pesquisa sobre a vida de
Evaristo Carriego, foi o narrador desta tradição com quem Borges teve maior
intimidade. E a publicação do relato pode ser, em certa medida, creditada à morte
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do velho cronista, no início dos anos 30. O projeto implicava não somente a
descrição de acontecimentos passados, como também a reprodução da voz que os
transmitira, no intuito de representá-la (de torná-la presente) aos leitores do conto.
Com isso, deveria ser alcançado um efeito expressivo, que suplantasse a sensação
de perda resultante da dissolução dos antigos modos de vida no subúrbio, a serem
re-configurados em um artefato estético.
Assim, no lugar da atmosfera de elegíaca resignação, com que Borges teria
composto o primeiro capítulo do livro sobre Carriego, temos aqui um exemplo de
como ele mesmo encontrou na mitologia do arrabal uma ressonância épica, capaz
de eliminar as distâncias impostas pelo fluxo do tempo. Mas os resultados finais
do projeto devem ser considerados também em sua singularidade, e não apenas
como a objetivação de uma intenção artística pré-determinada. Daí a necessidade
de uma breve paráfrase.
O cenário de “Hombre de la esquina rosada” foi anteriormente descrito
em suas linhas gerais: um armazém, ou salón, coberto por chapas de zinco, e
pintado em cores reluzentes, em algum bairro às margens da cidade, onde se
reuniam compadres, músicos e prostitutas, para beber e dançar ao som de tangos
populares. “Nesta diversão estavam os homens, como em um sonho”, afirma o
narrador, antes de anunciar a intromissão no ambiente de um homem alto e
completamente trajado em negro, que parece estar buscando alguém, com
inflexível indiferença por todos os outros presentes. Logo, este homem declara
com uma voz altissonante seu objetivo, o de exigir a reparação de uma injúria
sofrida por seu nome e reputação:
Eu sou Francisco Real, um homem do norte. Eu sou Francisco Real, que chamam
de Curraleiro. Permiti a esses infelizes que me botasse a mão porque o que estou
procurando é um homem. Andam por aí uns boateiros dizendo que por estes
descampados anda um sujeito com fama de ser bom na faca e de ser durão, um tal
Batedor. Quero me encontrar com ele para que me ensine, a mim que não sou
ninguém, o que é um homem corajoso [Quiero encontrarlo pa que me enseñe a mí,
que soy naides, lo que es un hombre de coraje e de vista].
56
56
BORGES, J. L. “Homem da Esquina Rosada”. Trad. Alexandre Eulálio. In: ____. História
Universal da Infâmia. OC [edição brasileira], vol. 1, p. 362. “Yo soy Francisco Real, un hombre
del Norte. Yo soy Francisco Real, que le dicen el Corralero. Yo les he consentido a estos infelices
que me alzaran la mano, porque lo que estoy buscando es un hombre. Andan por ahí unos
bolaceros diciendo que en estos andurriales hay uno que tiene mientas de cuchillero, y de malo, y
que le dicen el Pegador. Quiero encontrarlo pa que me enseñe a mí, que soy naides, lo que es un
hombre de coraje e de vista”. BORGES, J. L. “Hombre de la Esquina Rosada”. In: ____. Historia
Universal de la Infamia. OC, vol. 1, p. 367.
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87
Algumas palavras e expressões do trecho correspondem ao lunfardo, dialeto
utilizado inicialmente como código secreto de quadrilhas e criminosos portenhos,
que depois se difundiu para a literatura e o teatro, no processo de elaboração da
autenticidade dos subúrbios.
57
E o conto prossegue em um parágrafo do narrador,
de grande apelo visual, em que a tensão gerada pelo anúncio de um duelo
iminente cria um quadro de estática suspensão dos ânimos:
Disse isso e não tirou os olhos do outro. Na mão direita agora reluzia uma faca
que com certeza tinha trazido na manga. Em volta, os que o haviam empurrado
foram abrindo caminho e todos nós olhávamos para os dois, num grande silêncio.
Até os beiços do mulato cego que tocava violino também se abriram.
58
Após o que, em resumo, Rosendo Suárez, o homem que teria sido desafiado,
se recusa a aceitar a provocação de Francisco Real, para imensa vergonha de
todos no salão, e particularmente do narrador. A própria mulher que acompanhava
Suárez coloca em suas mãos um punhal, e o incita ao duelo, porém sem sucesso.
Ela então o troca pelo bando do Corralero, que ordena que a música recomece, e
todos voltem a beber, antes de ir embora com seus parceiros e com a mulher. Mas
esta retorna, momento depois, precedendo a entrada no armazém do corpo
esfaqueado de Real, para estranhamento de todos, que sequer imaginam quem
teria sido o assassino. E, no final da história, o narrador a entender que ele
próprio teria sido responsável pelo crime, motivado pela necessidade de reverter
uma situação de constrangimento e desonra, criada pela covardia de Rosendo
Suárez. .
De maneira que o conto termina como uma unidade autônoma, e cerrada em
suas relações internas. Trata-se da recriação de todo um universo perdido, com
seus códigos de honra e sua valorização de uma idéia de dignidade, no breve
57
Para uma abordagem mais enfocada em aspectos da linguagem empregada no texto, cf.
CAMPOS, Vera Mascarenhas de. Borges e Guimarães: na esquina rosada do grande sertão. São
Paulo: Perspectiva, 1988.
58
BORGES, J. L. “Homem da Esquina Rosada”. Trad. Alexandre Eulálio. In: ____. História
Universal da Infâmia. OC [edição brasileira], vol. 1, p. 362. “Dijo esas cosas y no le quitó los ojos
de encima. Ahora le relucía un cuchillón en la mano derecha, que en fija lo había traído en la
manga. Alrededor se habían ido abriendo los que empujaron, y todos los mirábamos a los dos, en
un gran silencio. Hasta la jeta del mulato ciego que tocaba el violín acataba ese rumbo”. BORGES,
J. L. “Hombre de la Esquina Rosada”. In: ____. Historia Universal de la Infamia. OC, vol. 1, p.
367.
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espaço de um artefato estético. E, levando-se em consideração o preciosismo da
concatenação das frases curtas, a concisão do relato, e sua estrutura baseada na
revelação de um segredo, pode-se dizer que “Hombre da la esquina rosada” é, de
fato, uma narrativa tecnicamente impecável. O talento e o engenho nela
empregados são notáveis; mas, por este mesmo motivo, o conto não consegue
disfarçar sua total falta de naturalidade, tanto na fala dos personagens, quanto na
voz do narrador. Apontam para a explicitação do artifício a postura enrijecida de
Francisco Real, sua gestualidade afetada, e uma ação esquemática e coreográfica,
que se detém em quadros estáticos, ou explode em movimentos súbitos.
59
Pois
personagens e narrativa estão subjugados a modelos de conduta e estilo
inflexíveis, que buscam representar com perícia e requintes teatrais, capazes de
eliminar qualquer aprofundamento psicológico nos caracteres particulares, ou
quaisquer dúvidas sobre os valores e significados que estão em jogo no texto. A
excessiva gravidade retórica, que acompanha estes procedimentos, só faz por
acentuar sua submissão a uma cultura do exemplo. Mas a expressão concreta
destes ideais heróicos só depende de uma pequena mudança de ponto de vista para
ser vista em sua comicidade. O que nos leva à questão de até que ponto o relato
pode ser levado a sério.
Acredito que o problema não tem uma solução unívoca, embora um aspecto
de meu argumento deva estar claro a esta altura. Ele diz respeito ao espaço de
tempo transcorrido entre os primeiros esboços e a realização final do conto, e
corresponde ao fenômeno de degeneração do motivo épico, ou exemplar, em tema
de uma paródia. Mas tampouco este movimento se dá em uma transição repentina,
na medida em que depende de uma crescente desconfiança de escritor em relação
aos recursos estilísticos que utiliza, para alcançar este ou aquele efeito, gerando no
processo resultados ambíguos, em que o elemento satírico se introduz como
uma inevitável conseqüência da hipertrofia do artifício, e da tomada de
consciência deste fator por parte do artista. Que pode então sofrer com uma
espécie de reversão do toque de Midas: tudo o que ele toca se transforma em
caricatura. Borges enfrentaria a mesma questão com seus contos policiais nos
anos 40, e mencionaria “Hombre de la esquina rosada” em seu texto auto-
59
O fenômeno está relacionado a outras práticas culturais características da época, como o boxe a
as touradas, que podem servir como termos de comparação, tal como Hans Ulrich Gumbrecht as
descreveu e examinou em 1926 vivendo no limite do tempo (Trad. Luciano Trigo. São Paulo:
Record, 1999 [1997]).
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biográfico de 1968 como um resultado deste mecanismo, repetindo as mesmas
observações em um comentário a uma seleção de suas narrativas traduzidas para o
inglês.
60
Mas não apenas nestas referências tardias se sustenta a constatação.
Borges escreveu, no período, alguns ensaios dedicados a questões literárias nos
quais encontramos uma abordagem de assuntos correlatos, e dois deles seriam
particularmente esclarecedores a este respeito.
O primeiro teve também diferentes versões publicadas na imprensa de
Buenos Aires a partir de 1928, sendo recolhido em Discusión, de 1932, e então
intitulado “La supersticiosa ética del lector”. Ele se refere àquilo que seria uma
conseqüência perversa da “condição indigente” das letras argentinas no período,
isto é, o “culto ao estilo”, ou, mais especificamente, a apreciação do virtuosismo
técnico como instância final do juízo crítico de uma obra. “Os que sofrem desta
superstição entendem por estilo não a eficácia ou ineficácia de uma página, mas as
habilidades aparentes do escritor: suas comparações, sua acústica, os episódios de
sua pontuação ou sintaxe”, afirma Borges. “Exemplos normativos deste
charlatanismo da brevidade, deste frenesi sentencioso, podem ser encontrados na
dicção de Polônio, o célebre estadista dinamarquês de Hamlet, ou no Polônio
natural, Baltasar Gracián”, ele diz ainda, referindo-se ao autor de Agudeza y arte
de ingenio, que inclusive havia inspirado o movimento de vanguarda que integrara
na Espanha, e cuja postura era agora vista como a da subordinação da emoção à
ética, ou a “una etiqueta indiscutida más bien”.
61
Paul Valéry surge ainda no final
do ensaio, como a expressão francesa e contemporânea de uma lógica semelhante.
E, em contraposição, é mencionada a obra de Miguel de Cervantes, com sua prosa
“conversada e não declamada”, menos perfeccionista e incisiva, em contraste com
a própria fidalguia do Quixote, e, portanto, permitindo que esta fosse vista em
uma perspectiva irônica. Segundo o ensaísta, enfim, a mesma observação seria
válida no caso de Montaigne, para quem a “vaidade do estilo e da perfeição” não
estaria nunca sobreposta a outras motivações paralelas e genuínas do ofício
literário.
60
Cf. BORGES, J. L. “An autobiographical essay”. In: ____. The Aleph and Other Stories 1933-
1969, p. 238-139. e BORGES, J. L. “Commentaries. Streetcorner Man”. In: ____. The Aleph and
Other Stories 1933-1969, p. 264-266.
61
BORGES, J. L. “La supersticiosa ética del lector” [1932]. In: ____. Discusión. OC, vol. 1, p.
214-217.
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90
O segundo ensaio que quero comentar é “La postulación de la realidad”,
publicado em junho de 1931, e igualmente reeditado em Discusión. Seu tema é a
relação de escritores com a linguagem em seus diferentes níveis de expressividade
visual. Borges qualifica como “clássicos” aqueles que se limitam a registrar uma
seqüência de eventos, sem buscar sua representação pictórica particular e
imediata, na medida em que conceitos e signos correntes parecem suficientes para
dar conta da composição de um quadro histórico ou ficcional. Uma longa
passagem de Edward Gibbon é mobilizada para exemplificar esta atitude,
atribuída também a Voltaire, Jonathan Swift e Miguel de Cervantes. Por outro
lado, aquilo que, nesta distinção, caracterizaria o romantismo literário, era a
tendência à imposição de um efeito de verossimilhança através de palavras
incomuns e gestos eloqüentes. E, em um parágrafo sumário do ensaio, Borges
afirma:
A realidade que os escritores clásicos propõem é questão de confiança, como a
paternidade para certo personagem dos Lehrjahre. A que os románticos procuram
esgotar é, antes, de caráter impositivo: seu método contínuo é a ênfase, a mentira
parcial. Não inquiro ilustrações: todas as páginas de prosa ou de verso que são
profissionalmente atuais podem ser questionadas com sucesso.
62
O que implicava o diagnóstico de uma situação histórica, segundo as
limitações e possibilidades que esta colocava à criação literária, atreladas à maior
ou menor sensação de confiabilidade em uma linguagem compartilhada. Esta
situação estaria relacionada àquilo que pode ser acatado como verossímil na
representação artística, sendo que o processo de dissolução de um senso comum,
que permitiria trocas intelectuais de índole mais persuasiva, havia gerado o
recurso à imposição – e, em última instância, à impostura – como meio de alcance
do efeito de realidade.
Nesta perspectiva, algumas conclusões podem ser previamente deduzidas, a
partir da articulação entre os dois ensaios. Para Borges, o mundo clássico não
seria o de um conjunto fechado e inviolável de signos estáveis, mas um lugar em
62
BORGES, J. L. “A postulação da realidade” [1931]. Trad. Josely Vianna Batista. In: ____.
Discussão. OC [edição brasileira], vol. 1, p. 233. “La realidad que los escritores clásicos proponen
es cuestión de confianza, como la paternidad para cierto personaje de los Lehrjahre. La que
procuran agotar los románticos es de carácter impositivo más bien: su método continuo es el
énfasis, la mentira parcial. No inquiero ilustraciones: todas las páginas de prosa o de verso que son
profesionalmente actuales pueden ser interrogadas con éxito”. BORGES, J. L. “La postulación de
la realidad” [1931]. In: ____. Discusión. OC, vol. 1, p. 237.
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que o significado das coisas pode ser negociado com alguma segurança e
racionalidade, no que se refere às suas bases. E a transfiguração do “clássico” em
um ideal enrijecido seria característica das épocas românticas, em seu fascínio
com o épico e o aristocrático, gerando o surgimento de “profissionais” da arte do
simulacro, destituídos de todo lastro tangível no mundo concreto. Mas que, em
seu virtuosismo estético, ofereciam algo capaz de substituir a miséria da
experiência cotidiana por idéias e imagens muito mais atraentes, do ponto de vista
da demanda por sínteses modelares. À crescente ausência de critérios razoáveis
para o discurso intelectual, correspondia assim a concepção de fantasias utópicas e
ideais abstratos, nas quais a confiança em uma suposta ordem flutuante dava lugar
ao imperativo da ordem absoluta, alcançado justamente através do estilo, que
articula a linguagem como expressão de uma perfeição auto-suficiente. E, assim, a
superstição do leitor se voltava para as habilidades estilísticas do autor, ou seja, à
capacidade deste de configurar um universo paralelo, cujas relações internas
sugerissem a existência de códigos e normas ocultas, a serem desvendados em sua
coesão e univocidade.
Desde logo, o leitor de Borges que acompanhasse este raciocínio poderia
encontrar em “Hombre de la esquina rosada” um exercício de estilo que era
também uma sátira das letras contemporâneas. Este é um primeiro ponto a ser
ressaltado. No entanto, o texto não foi escrito para uma platéia atenta a tais
operações literárias, o que requer da análise uma empatia maior com outro tipo de
público. Pois o jornal Crítica, com o qual a Revista Multicolor de los Sábados era
distribuída, havia sido fundado na década de 20 por Natalio Botana como um
veículo midiático de massas, e logo se tornaria o diário mais vendido no país, sem
ignorar os efeitos que notícias escandalosas e sensacionalistas podiam ter no
aumento da tiragem. Deste modo, o que seu fascículo literário semanal
anunciava no próprio nome não eram apenas os novos atrativos da tecnologia da
impressão, mas também a promessa de um entretenimento popular de matizes tão
vívidos quanto os que cobriam as paredes dos armazéns das esquinas de Buenos
Aires.
Portanto, ao ser contratado por Botana, em 1933, para assumir a RMS,
Borges havia se comprometido com uma linha editorial pré-estabelecida, mas para
a qual teria algo a contribuir, em função de sua sensibilidade para as demandas
dos leitores aos quais ela estava voltada. Não lhe faltava o humor necessário para
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colocar-se nesta posição, e, acima de tudo, ele precisava aproveitar a oportunidade
de retorno financeiro, nas condições econômicas em que o país se encontrava após
a crise de 1929. A atividade consistia em recolher e produzir textos para o
suplemento, entre eles anedotas nas quais eventualmente figurava uma menção
erudita. Alguns dos contos, notas e artigos publicados sob pseudônimos trazem
marcas nítidas da autoria de Borges; outros merecem uma discussão caso a caso,
mas a seleção do que seria compatível com os propósitos da revista parece ter sido
sempre uma atribuição sua.
63
O próprio “Hombre de las orillas” foi inicialmente
atribuído a “Francisco Bustos”, quando surgiu ao lado de uma ilustração colorida,
que representava a cena final do relato, alcançando aquilo que Borges, anos mais
tarde, caracterizaria como uma “embaraçosa popularidade”. Em resumo, todo o
perfeccionismo aplicado na escrita do conto estava a serviço de um interesse
imediatamente pragmático, o de ocupar as páginas da RMS com uma narrativa
adequada ao gosto de seus compradores. Mesmo que este gosto fosse o indício de
uma desagradável condição histórica e social, segundo as reflexões paralelas da
ensaística do escritor, em certo grau confirmadas pela própria recepção do relato.
O que favorecia a repetição dos procedimentos formais utilizados em
“Hombre de las orillas” em outras peças literárias produzidas para a RMS. No
entanto, ao serem levados às últimas conseqüências de maneira sistemática, estes
procedimentos, mesmo que seguissem tendo a aprovação do público, seriam
mobilizados em um enquadramento mais explicitamente paródico, cujas ênfases e
imposturas eram declaradas sem maiores subterfúgios. Pois a aceitação popular do
falso e do inautêntico, travestidos em pretensas representações de autenticidade,
podia gerar aberrações estéticas e políticas cujos limites ainda estavam por ser
testados, o que correspondia a um clima moral que Borges havia encontrado em
suas leituras de Tácito e Gibbon (nomes aos quais aludiam quatro artigos sobre a
decadência do Império Romano, publicados na RMS entre setembro de 1933 e
março de 1934, de autoria atribuída a “José Tuntar”). Assim, o veículo se tornaria
cada vez mais um espaço onde Borges reafirmava seu diagnóstico do contexto
argentino, ao mesmo tempo em que publicava nele caricaturas de expressões
artísticas cuja produção este mesmo contexto estimulava.
63
Annick Louis empreendeu uma detalhada pesquisa sobre as colaborações de Borges para a RMS,
cujos resultados estão expostos em “Intructions pour apprendre à trouver Borges dans la Revista
Multicolor de los Sábados’” (LOUIS, A. Jorge Luis Borges: oeuvre et manoeuvres. Paris:
L’Harmattan, 1997, p. 67-120).
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Daí o surgimento dos textos pseudo-biográficos que integrariam a Historia
Universal de la Infamia. O primeiro deles, “El atroz redentor Lazarus Morel”,
apareceu na edição de 12 de agosto de 1933, assinado por Jorge Luis Borges. Na
seqüência, viriam “Monk Eastman, el proveedor de iniquidades”, “La viuda
Ching, pirata”, “El inverosímil impostor Tom Castro”, “El incivil maestro de
ceremonias Kotsuké no Suké” e “El rostro del profeta”, depois recolhido no livro
como “El tintorero enmascarado Hákim de Merv”. Todos eles se referem a vidas
de vigaristas, usurpadores e criminosos, resgatados de fontes históricas ou
ficcionais, narradas em frases curtas e incisivas, em um estilo brusco e ao mesmo
tempo refinado, que reproduz tanto a “graça e o pedantismo afrancesado” de um
dos protagonistas, quanto a crueldade e a sordidez de outros. De maneira que os
simulacros da cor local argentina eram substituídos por espectros igualmente
pitorescos de outras nacionalidades, equivalentes na prática do embuste e da
violência gratuita, em uma teatralidade contida ou agitada, que esconde, e
simultaneamente escancara, o vazio sobre o qual se instala o artefato literário.
Tom Castro, por exemplo, era apresentado como um antigo personagem
misterioso do século XIX, que retornava na condição de “mero fantasma e
passatempo de sábado”. E, na primeira frase do texto sobre a saga da viúva
Ching, o narrador afirma que a palavra corsárias corre o risco de despertar a
incômoda recordação de zarzuelas com piratas coreográficas, em mares de
indisfarçável papelão. O que resume o ambiente de irrealidade que torna o livro
um conjunto homogêneo, como se todas as histórias não passassem de farsas
inofensivas, um “jogo de máscaras em que não se sabe quem é quem”, e nas quais
jorram profusões de tinta vermelha, com a atuação de atores ruins, mas
eventualmente esforçados, para o deleite de uma platéia de cabaré entusiástica ou
entorpecida. E aqui, ao contrário do observado em Evaristo Carriego, a
possibilidade de detectar por trás de tudo isso um fundo de sofrimento nos é
negada, na mesma medida em que o excesso barroco toma conta do estilo, na
exibição e exaustão de seus recursos. “Os doutores do Grande Veículo ensinam
que o essencial do universo é a vacuidade. Têm plena razão no que se refere à
mínima parte do universo que é este livro”, afirmou Borges, com seu humor
peculiar, em um dos prefácios que escreveu para a coletânea. “Não é outra coisa
que aparência, que uma superfície de imagens”, acrescentou então, a respeito de
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todo o conjunto de textos da obra. Ou seja: “Patíbulos e piratas o povoam, e a
palavra infâmia retumba no título, mas sob os tumultos não há nada”.
Tudo se restringe, nesta perspectiva, à ostentação de habilidades e técnicas
literárias, sem outro propósito que o entretenimento de massas. Ao menos esta é a
conclusão resultante da análise textual relacionada aos interesses do meio de sua
publicação. No entanto, tendo em vista a inserção da Historia Universal de la
Infamia em um argumento mais amplo, cabe articulá-la com outras manifestações
de Borges sobre os temas e métodos narrativos que nela estavam em jogo. Para
isso, pode ser esclarecedor avaliar o caso específico do esboço biográfico sobre
Monk Eastman.
Pois, neste caso, estamos lidando com um mundo que era motivo de fascínio
e repulsa correlatos para Borges, tendo sido objeto de suas atenções em várias
oportunidades. Isto é, o mundo dos slums de Chicago e das gangues de Nova York
no final do século XIX, que ele comparava ao dos subúrbios e compadritos de
Buenos Aires no mesmo período. “Monk Eastman, el proveedor de iniquidades”
se inicia, de fato, com uma referência a esta comparação, acrescentando que a
história dos marginais norte-americanos era ainda mais estonteante e mais torpe
do que sua congênere portenha, possuindo “a confusão e a crueldade das
cosmogonias bárbaras, e muito de sua gigantesca inépcia”. A partir daí, o texto
prossegue com descrição da personalidade do “príncipe dos gangsteres”, uma
enumeração de seus disfarces e pseudônimos requintados, e o relatório de seus
feitos infames, extraídos da obra clássica de Herbert Asbury sobre o assunto
(porém em uma prosa que reduz a extensa crônica de Asbury a uns poucos traços
de caráter e cenas descontínuas, como a da “extravagante” luta de boxe em um
galpão, na qual teria sido decidida a longa disputa entre a gangue de Eastman e o
bando de Paul Kelly).
Mas, como foi observado, esta não foi a única ocasião em que Borges
expressou-se acerca deste universo. De modo que outros fatores podem ser
acrescentados ao quadro. Em primeiro lugar, vale recorrer a outra atividade que o
escritor exerceu na década de 30 para diferentes meios impressos, enquanto
prosseguia no comando da RMS: a crítica cinematográfica. Um mês antes de
publicar o texto sobre Eastman, ele escreveu as seguintes observações sobre o
filme She done him wrong (1933), para os Cuadernos Mensuales de Cultura de
Buenos Aires:
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Mae West, em seu papel de esplêndida guaranga, de mulher esritamente corpórea,
supera notoriamente Jean Harlow e nem seria preciso dizê-lo Marlene. Canta
uns blues desconsolados que quero voltar a escutar na terceita vez que veja o filme.
O ambiente, a Nova Iorque estrepitosa e popular do final do século, com seus
caudilhos paroquiais, seus rapazes de chapéu torto e revólver firme, suas
concorridas prostitutas de cintura estreita e penteado frágil, seus hinos metodistas
nasais, suas delações, bruscas iras e festas, é enternecedor.
64
Note-se como ecoa, nesta passagem, o último capítulo do exame da obra de
Evaristo Carriego. Aqui, sob os tumultos, há tristeza, desventura, fragilidade, e até
mesmo pudor, em meio a uma esplendorosa e desconsolada pobreza. , enfim,
uma representação das paixões terrenas no que possuem de chamamento à
compaixão, não como um sentimento fundamentado a priori em valores
religiosos, mas como matéria de uma poética secular, que floresce em situações
nas quais as máscaras não são suficientemente rígidas para esconder o rosto
humano que está por trás delas. No caso, o artifício e a inquietude ressaltam
justamente o fracasso da aspiração, e por isso mesmo tornam-se matéria de uma
experiência estética de maior profundidade. Parece-me que isto deixa de ser
possível nas narrativas da Historia Universal de la Infamia, não porque sejam o
resultado de uma sensibilidade mais embotada, mas em função do próprio
mecanismo que nelas é parodiado: o de uma crença no estilo que, em última
instância, elimina toda a profundidade problemática dos personagens, em favor de
uma concepção da atividade literária como busca da mais infalível perfeição da
forma.
E, como subordinação da emoção à etiqueta, esta era uma tendência que,
no campo social, encarnava-se no dândi, no compadrito e no gangster, todos eles
representações de ideais aristocráticos que não excluíam acessos de crueldade e
barbárie. Sendo que o estreitamento dos textos da Historia Universal de la
Infamia em estruturas modelares e expressionistas correspondia também à recusa
de uma realidade menos ordenada e enérgica ao mesmo tempo. A este respeito,
64
Mae West, en su papel de guaranga espléndida, de mujer solo física, supera notoriamente a
Jean Harlow y ni qdecirlo a Marlene. Canta unos blues desconsolados que quiero volver a
escuchar la tercera vez que vea al film. El ambiente, la Nueva York rumbosa y popular de fines de
siglo, con sus caudillos parroquiales, sus guapos de galera torcida y recto revólver, sus concurridas
prostitutas de cintura estricta y peinado frágil, sus himnos metodistas nasales, sus delaciones,
bruscas iras y fiestas, es enternecedor”. BORGES, J. L. “Cinco breves noticias”. [Selección,
Cuadernos Mensuales de Cultura, Buenos Aires, n. 3, julho de 1933]. In: ____. Textos Recobrados
1931-1955, p. 46-47.
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Borges escreveu em 1937 uma resenha sobre Studs Lonigan, de James T. Farrel,
descrevendo o romance como a história do filho de uma família humilde e beata
do South Side de Chicago, que, porém, acreditava ser um hard guy, e às vezes
lamentavelmente, segundo Borges – o era. Ao que se seguia o comentário:
Studs, como seus insuspeitos congêneres do Paseo de Julio ou de Boedo, vive em
terceira pessoa. Representa o papel do homem forte, do homem que não teme a
solidão e que não se preocupa nem com o governo nem com a opinião dos outros.
Talvez o que de mais real no compadre em qualquer América seja esta
irrealidade, essa ilusão.
65
Vale observar que a crítica é bastante positiva. Borges diz ter lido o livro
com fervor, com simpatia, com lástima, e outras vezes com asco, caracterizando-o
como um “conjunto poderosíssimo” de eventos e personagens, que atualizava um
tema recorrente do romance, o da desintegração de um caráter. E acrescenta que a
indignação ou o sarcasmo não corrompem a prosa de Farrel, capaz de ater-se à
narração dos fatos de um fenômeno moral sem recair no moralismo ou no
escárnio, além de conseguir também despertar o interesse do leitor na história e na
patologia de Lonigan, por sua intrínseca ambivalência. O pressuposto de que
Borges condenava a forma do romance por suas características peculiares
encontra ainda aqui um contraponto, que remete a um ensaio sobre a literatura
gauchesca incorporado a Discusión, segundo o qual julgar que determinado
gênero literário tem maior valor formal que outro seria uma superstição
modernista, em sua rejeição daquele que seria o produto mais característico das
letras do século XIX. Haveria, portanto, bons e maus romances, e o próprio
Martín Fierro, de José Hernández, com a descrição detalhada dos sentimentos e
dos impasses éticos de seu herói, seria um exemplo dos primeiros, e não o poema
épico que Leopoldo Lugones teria encontrado na obra.
66
Mas, retornando à linha de raciocínio interrompida, cabe recorrer
precisamente a uma avaliação menos favorável concedida por ele a um livro de
temática similar, porém configurado por outra abordagem narrativa. Refiro-me à
resenha publicada em 1938 sobre Portrait of a Scoundrel, de Eden Phillpots:
65
“Studs, como sus insospechados congéneres del Paseo de Julio o de Boedo, vive em tercera
persona. Representa el papel del hombre fuerte, del hombre que no teme la soledad y nada le
preocupa o lo gobierno como la opinión de los otros. Acaso lo más real del compadre en
cualquier América sea esa irrealidad, esa equivocación”. BORGES, J. L. ‘Studs Lonigan’, de
James T. Farrel”. [El Hogar, 8 de janeiro de 1937]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 258.
66
Cf. BORGES, J.L. “La poesia gauchesca” [1932]. In: ____. Discusión. OC, vol. 1, p. 189-209.
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Duas imperfeições tem esta obra. Uma (venial) é a não desagradável mas
inverossímil pompa do diálogo; outra, a natureza esquemática, nominal, dos
personagens centrais e até do herói. Este, ao final do livro, deveria ser mais do que
apenas um canalha, deveria exceder esta definição com traços humanos. Não deixa
nunca, contudo, de ser um monstro moral, fabricado através de superlativos.
67
E, nesta crítica, é como se Borges estivesse se referindo aos próprios textos
da Historia Universal de la Infamia, com seus títulos grandiloqüentes e
protagonistas esquemáticos, reduções ao absurdo de elementos presentes em
“Hombre de la esquina rosada”. O que permite a releitura do livro como uma obra
de literatura “fantástica”, um bestiário composto por retratos de inacreditáveis
“monstros morais”. A deliberada superficialidade da narrativa reproduzia, assim, a
tendência à “irrealidade” de seus protagonistas, cujos modelos eram identificados
pelo autor em um contexto sócio-histórico, o que torna o “senso de realidade”
uma categoria aplicável tanto ao mundo concreto, quanto às suas representações
literárias. Sendo que a estas últimas, no entanto, cabia buscar um aprofundamento,
capaz de conferir complexidade humana àquilo que se apresentava como
estilização formal.
Inversamente, dava-se a cumplicidade de uma dupla reação, cuja caricatura
Borges formulou nas páginas da RMS: a de uma literatura que recusava qualquer
vinculação a um realismo considerado pobre e pouco sofisticado, ou dependente
de uma problemática psicológica, e a da negação de uma pobreza de origem por
indivíduos estetizados, que buscavam eliminar qualquer traço de incerteza, ou
insegurança, em sua auto-apresentação imagética.
Decerto, isto pode ser compreendido como uma reação à confiança cega no
cientificismo e no positivismo, convertidos em justificação dos exemplares mais
pretensiosos da literatura naturalista, que adquiria, ela mesma, um elevado grau de
irrealidade, diante do crescente questionamento de seus pressupostos. Assim
como os monstros morais da Historia Universal de la Infamia tinham sua origem
em uma sociedade que, prometendo o êxito aos mais capazes e dispostos a jogar o
jogo do triunfo econômico, considerava o fracasso como conseqüência merecida
67
“Dos imperfecciones tiene esta obra. Una (venial) es la no desagradable pero inverosímil pompa
del diálogo; otra, la naturaleza esquemática, nominal, de los personajes centrales y hasta del héroe.
Éste, al cabo del libro, debiera ser algo más que un puro canalla, debiera exceder con rasgos
humanos esa definición. No pasa nunca, sin embargo, de ser un mero monstruo moral, fabricado a
fuerza de superlativos”. BORGES, J. L. “‘Portrait of a scoundrel’, de Eden Phillpots.”. [El Hogar,
30 de setembro de 1938]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 416.
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da tibieza individual, e portanto motivo de desprezo pelos elementos proscritos de
suas operações regulares, aos quais restava assistir a ostentação de segurança e
auto-suficiência dos vencedores. O que era agravado pela despersonalização das
relações sociais, e pelo surgimento de uma pobreza urbana mais áspera, despojada
de qualquer esperança, em contraste com a fantasiosa convicção da alta burguesia
na estabilidade de seu mundo.
A percepção que Borges tinha deste último fenômeno pode ser detectada
ainda em uma resenha que escreveu para The French Quarter, de Herbert Asbury,
na qual, todavia, referia-se mais propriamente a The Gangs of New York, que para
ele seria o melhor livro do autor. “Algo de epopéia desesperada existia neste
bairro”, afirmava então, para depois explicar melhor a relação entre o desespero e
a epopéia na prosa do cronista norte-americano: “Seu tema era a coragem. A
coragem como último recurso de homens misérrimos e infames”.
68
Enfim, este comentário tem uma dimensão política que pode ser
mesurada se passarmos do âmbito de pequenos grupos localizados para o das
relações internacionais no período. Indicar como se esta operação na obra de
Borges é minha principal intenção nesta parte do trabalho.
Pois, em suma, acredito que as constatações precedentes apontam para o
modo como Borges compreendeu as condições de disseminação do fanatismo
político na modernidade, em tudo o que este possuía de legítimas reivindicações
da parte de indivíduos e nações marginalizadas, mas tendo como resultado uma
crescente “irrealidade” moral, com a sobrevalorização da estética como instância
de afirmação de enrijecidas virtudes ideais. A partir do entendimento deste
processo de estetização, em sua relação com a miséria e o ressentimento, ele
formularia uma leitura dos mecanismos doutrinários das ideologias fascistas
particularmente do nazismo que marcaria não somente seus textos de
intervenção daí em diante, mas também boa parte de sua produção ficcional nos
anos 40, em recorrentes representações da irrealidade e do fantástico. Isto lhe
permitiria também adotar, desde logo, uma postura de decidida resistência ao
ataque destas doutrinas contra o legado da civilização a que sentia pertencer,
porém não sem elaborar uma crítica do processo de sua decadência, que favorecia
a emergência de extravagantes doutrinas de salvação. Este ponto será discutido na
68
BORGES, J. L. “‘The French Quarter’, de Herbert Asbury” [El Hogar, 2 de abril de 1937]. In:
____. Borges en El Hogar, p. 43.
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seção seguinte; antes, para melhor exemplificar as afirmações deste parágrafo,
deve ser mencionado um texto de 1939, ponto de convergência de diversas outras
manifestações do autor sobre a genealogia do nazismo e os argumentos de seus
entusiastas.
O ensaio se chama “Definición del germanófilo”, e cabe ressaltar que o
simpatizante a que se refere o título constituía uma vertente concreta do debate
argentino na época, o que implicava uma consideração séria de sua retórica. Por
outro lado, Borges inicia o texto indicando o paradoxo da atribuição de
“germanofilia” a agentes que pouco conheciam a cultura alemã, identificando-se
com ela muito mais pelo ataque ao “imperialismo inglês” – considerado por
muitos uma das principais causas dos problemas econômicos do país –, do que por
razões de ordem cultural. “Do anterior cabe talvez inferir que o germanófilo é
realmente um anglófobo. Desconhece a cultura alemã, mas se resigna ao
entusiasmo por um país que combate a Inglaterra”, conclui então Borges. Ainda
assim, ele prossegue, era possível compartilhar com o germanófilo a condenação
do ultrajante Tratado de Versalhes, resultado de um sentimento de vingança, e de
um deliberado propósito de humilhação, que após a Primeira Guerra teria feito
proliferar entre os alemães um forte ressentimento contra os ingleses. Para a
perplexidade do ensaísta, no entanto, a esta delimitação das motivações do
conflito seu interlocutor acrescentava um “monstruoso razonamiento”, sobre
natureza da guerra em curso, segundo o qual esta seria enfim o meio de extinção
de uma moralidade cristã ou burguesa, a aurora de um novo mundo destituído de
antiquados escrúpulos e preconceitos, dominado por homens fortes, e pela lei
natural da vontade. “Eu murmuro que me resigno a passar da moral de Jesus à de
Zarathustra ou de Formiga Negra, mas que nossa rápida conversão nos impede de
nos compadecermos da injustiça que sofreu a Alemanha em 1919”, contrapõe, na
seqüência, o escritor. Este murmúrio dialético, porém, a esta altura já está abafado
pela exaltação histriônica das qualidades do nazismo feita pelo oponente. O que
proporciona àquele a observação de um “segundo prodígio”, de “natureza moral e
quase inacreditável”, descrito nos seguintes termos:
Descubro, sempre, que meu interlocutor idolatra Hitler, não apesar das bombas
zenitais e das invasões fulmíneas, das metralhadoras, das delações e dos perjúrios,
mas por causa desses costumes e desses instrumentos. Alegra-o o malvado, o atroz.
A vitória germânica não lhe importa; quer a humilhação da Inglaterra, o satisfatório
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incêndio de Londres. Admira Hitler como ontem admirava seus precursores do
submundo criminoso de Chicago (…) O hitlerista, sempre, é um rancoroso, um
adorador secreto, e às vezes público, da “esperteza” foragida e da crueldade. É, por
miséria imaginativa, um homem que postula que o futuro não pode diferir do
presente e que a Alemanha, vitoriosa até agora, não pode começar a perder. É o
homem ladino que anseia estar do lado dos que vencem.
69
Esta última passagem se refere a um cenário que será descrito na seção 3.1.
Por enquanto, o que mais me interessa é a postulação da barbárie como idolatria e
arrebatamento, em um clima de “desespero cultural”, segundo a expressão
divulgada por Fritz Stern, contraposta a uma moral mais compreensível do ponto
de vista da tradição cristã.
70
O que era um efeito do aviltamento desta moral em
um ato de humilhação e vingança na medida em que a Inglaterra seria uma de
suas portadoras –, mas nem por isso tornava aceitável o comportamento baseado
na “moral da gangue”, tal como Albert Camus o definiria em L’Homme Revolté,
caracterizando-o pela embriaguez frenética” do ódio desmedido com que
perseguia a aniquilação do inimigo, escamoteado em sistemas filosóficos de uma
lógica implacável.
71
Movimento e embriaguez são modos de ser de alguns personagens da
Historia Universal de la Infamia, em contraste com a compostura fria e afetada de
outros. Tanto o esteticismo quanto o vitalismo estão representados no livro.
Ambas as condutas, porém, expressam o mesmo nada sobre o qual se instalam os
tumultos. Neste sentido, o último relato da coletânea, sobre o profeta mascarado
Hákim de Merv, é bastante esclarecedor. Ele foi possivelmente inspirado em
alguma das seitas de fanáticos descritas por Gibbon a dos circunceliões, por
exemplo, mencionada no capítulo XXI do Decline and Fall, com sua doutrina de
horror à vida, práticas criminosas, tendências auto-destrutivas –, e é composto
69
BORGES, J. L. “Definição do germanófilo”. In: ____. Textos Cativos. Trad. Sérgio Molina. OC
[edição brasileira], vol. 4, p. 512-514. “Descubro, siempre, que mi interlocutor idolatra a Hitler, no
a pesar de las bombas cenitales y de las invasiones fulmíneas, de las ametralladoras, de las
delaciones y de los perjurios, sino a causa de eses costumbres y de esos instrumentos. Le alegra lo
malvado, lo atroz. La victoria germánica no le importa; quiere la humillación de Inglaterra, el
satisfactorio incendio de Londres. Admira a Hitler como ayer admiraba a sus precursores en el
submundo criminal de Chicago (…) El hitlerista, siempre, es un rencoroso, un adorador secreto, y
a veces público, de la “viveza” forajida y de la crueldad. Es, por penuria imaginativa, un hombre
que postula que el porvenir no puede diferir del presente, y que Alemania, victoriosa hasta ahora,
no puede empezar a perder. Es el hombre ladino que anhela estar de parte de los que vencen”.
BORGES, J. L. “Definición del germanófilo”. [Sur, diciembre de 1940]”. In: ____. Textos
Cautivos. OC, vol. 4, p. 469-471.
70
Cf. STERN, F. The Politics of Cultural Despair: a study in the rise of the Germanic Ideology.
Berkeley: University of California Press, 1974.
71
Cf. CAMUS, A. “A revolta dos dândis”. In: ____. O Homem Revoltado. Trad. Valerie
Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2005 [1951], p. 66-73.
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pelas declamações misteriosas e alucinadas do “apóstolo”, cujo glorioso rosto é
ocultado, exortando os discípulos à guerra santa e ao martírio. Pois a minuciosa
cosmogonia proclamada pelo profeta chegava às seguintes conclusões:
A terra que habitamos é um erro, uma incompetente paródia. Os espelhos e a
paternidade são abomináveis, porque a multiplicam e a afirmam. O asco é a virtude
fundamental. Duas disciplinas (cuja escolha deixava livre o profeta) podem
conduzir-nos a ela: a abstinência e o excesso, a luxúria ou a castidade.
72
Com isso, elimina-se a dualidade entre o asceta e o rei, que Borges abordou
em outros artigos, posto que ambos seriam expressões indiferenciadas de um
propósito de negação do mundo. A contenção apolínea e o barbarismo dionisíaco
se conjugam no desfecho trágico anunciado pelo visionário, o que bem poderia ser
a consagração de um autêntico e satânico mistério cósmico. Quando, porém, no
final da narrativa, surge a “prometida face do Apóstolo”, esta tem a “brancura
peculiar à lepra manchada”, “uma pesada cepa de tubérculos [que] comia-lhe os
lábios”, e a realidade física de sua fisionomia denota o ridículo e o farsesco de sua
figura, principalmente quando ele ensaia um “embuste final”, dizendo que o
abominável pecado dos homens os impedia de ver seu esplendor.
A cena é risível, e ao mesmo tempo assombrosa, dependendo do ponto de
vista. Por um lado, ela ressalta o que existe de pura canastrice no “carisma” de
Hákim de Merv. Por outro, dá a medida de sua convicção no papel que representa,
de seu encarceramento em uma crença que não admite refutações concretas, e, por
isso mesmo, torna-se sedutora para homens em busca de certezas incontestáveis,
tal como o germanófilo. As habilidades técnicas, os arrebatamentos retóricos e os
sistemas ideológicos dos personagens do livro sempre ocultam tal penúria
imaginativa e embotamento do intelecto. Não é de Macbeth, do Formiga Negra
ou de Zaratustra que estamos falando, mas de Adolph Eichmann. Ou seja, da
insistência obstinada em clichês vazios, da suspensão do senso de realidade e da
72
BORGES, J. L. “O tintureiro mascarado Hakim de Merv”. Trad. Alexandre Eulálio. In: ____.
História Universal da Infâmia. OC [edição brasileira], vol. 1, p. 358. “La tierra que habitamos es
un error, una incompetente parodia. Los espejos y la paternidad son abominables, porque la
multiplican y afirman. El asco es la virtud fundamental. Dos disciplinas (cuya elección dejaba libre
el profeta) pueden conducirnos a ella: la abstinencia y el desenfreno, el ejercicio de la carne o su
castidad”. In: BORGES, J. L. “El tinturero enmascarado Hakim de Merv”. In: ____. Historia
Universal de la Infamia. OC, vol. 1, p. 363.
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incapacidade de lidar com evidências contraditórias, que, segundo Hannah
Arendt, caracterizam a banalidade do mal.
73
“O nazismo padece de irrealidade, como os infernos de Erígena”, escreveu
Borges em 1944, em um artigo sobre a retomada de Paris pelos Aliados.
74
Entre
1933 e aquele ano, no entanto, vários eventos históricos e experiências pessoais
lhe permitiriam chegar a esta definição condensada, para a qual convergiram
outras percepções sobre fenômenos locais do contexto argentino, e que teria
representações mais completas, em relatos que serão ainda analisados. O que nos
leva apenas a conclusões provisórias nesta etapa do trabalho. Primeiro, a de que
cada peça da Historia Universal de la Infamia é a antecâmara de um inferno de
maiores proporções, e que cada compadre, gangster ou profeta de suas páginas
representa um papel que seria ainda encenado em escala planetária por Adolph
Hitler, na medida em que esta conduzisse o povo germânico na desesperada
epopéia de consagração do Terceiro Reich, depois de começar sua carreira política
como líder de um bando de fanáticos, em uma cervejaria de Munique, por volta de
1922. Borges reconheceu a gênese deste processo na configuração de simulacros
que pretensamente operavam segundo o imperativo da estética ou da ontologia,
mas eram somente o resultado da repulsa e do ódio a este mundo, sem que
nenhuma autêntica intuição de outro servisse de fundamento aos seus impulsos
destrutivos. Por este motivo, ele havia abandonado seu projeto criollista da
década de 1920, sem entendê-lo ainda como um correlato dos primeiros esboços
das teorias fascistas esta percepção viria mais tarde –, mas descobrindo nele a
mesma vacuidade essencial que encontraria no racismo alemão.
Em segundo lugar, como foi observado na leitura de Evaristo Carriego,
esta decomposição de sínteses teóricas e estéticas em seus vetores culturais
tornara-se possível, para o autor, em função de certa distanciada intimidade com o
ambiente do qual elas emergiam, habitado por setores marginalizados da
sociedade burguesa. No entanto, se antes isso era motivo de uma compreensão do
drama humano envolvido tal como podia ser objeto de uma crônica histórica
matizada, como a de Asbury, ou da representação deste drama em toda a sua
complexidade, como em Studs Lonigan, de James T. Farrel –, a Historia
73
Cf. ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José
Rubens Siqueira. São Paulo: Cia. das Letras, 1999 [1963].
74
BORGES, J. L. “Anotación al 23 de agosto de 1944”. [Sur, Buenos Aires, n. 120, octubre de
1944]. In: ____. Otras Inquisiciones. OC, vol. 2, p. 111-2.
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Universal de la Infamia formulava as estruturas geradas pela aspiração com um
grau de coerência que reduzia o artefato literário à expressão estilizada de
caracteres esvaziados, cujos aspectos esquemáticos correspondiam a uma recusa
do mundo cada vez mais drástica e feroz. Com isso, Borges ficava imune ao
encanto que esta reação exercia em muitos artistas e intelectuais do período,
ansiosos por redescobrir reservatórios de energia vital no mundo desencantado do
capitalismo, e que viam uma verdadeira ética carismática onde para ele existia
somente estupidez mental e violência estéril.
A partir daí, surge o problema da inserção de Borges nos debates da época
em uma chave propositiva, algo que o trabalho como editor e colaborador da RMS
não proporcionava, mas que seu entendimento do panorama político argentino e
mundial tornava necessário. Não que ele viesse a ocupar uma posição de destaque
neste sentido; muito pelo contrário. Refiro-me, portanto, a duas questões, a dos
valores nos quais ele tentou legitimar sua participação no contexto, e a de como
este mesmo contexto encontrava-se na ocasião muito pouco receptivo a estes
valores. Ambas serão trabalhadas na seção seguinte.
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3.2
Ensaio de Sinceridade
From bitter searching of the heart
We rise to play a greater part.
Frank Scott, “Villanelle For Our Time”
Diante do que foi exposto na última seção, podemos dizer que, a partir de
1930, Jorge Luis Borges ocupou um lugar de pouca repercussão na vida pública
de Buenos Aires, de modo contrário às expectativas geradas em sua juventude. E,
mesmo que seus textos produzidos para a RMS, e a edição do suplemento como
um todo, possam ser hoje vistos como vetores de uma análise conjuntural mais
ampla, não foi esta a finalidade a que corresponderam naquele momento (ou, ao
menos, não foi neste enquadramento que foram recepcionados). Mas o caso não
foi isolado. Por razões que serão examinadas a seguir, a interrupção da
experiência democrática dos anos 20 fez com que diversos setores e
personalidades da sociedade argentina fossem relegados à posição de espectadores
de um teatro político de péssimo gosto, que se prolongaria além do esperado no
decorrer da década. Ainda assim, Borges não deixou de referir-se a este fenômeno
de maneira mais direta, em alguns artigos esparsamente enviados para diferentes
veículos de comunicação, entre eles o mencionado “Nuestras imposibilidades”,
o que sugere o propósito de reuni-los, para verificar uma hipotética evolução de
seu pensamento em um sentido a ser explicitado adiante.
Considero relevante, em primeiro lugar, uma descrição feita pelo autor do
primeiro ato daquele espetáculo iniciado com o golpe de Uriburu. Ela se encontra
em um artigo escrito para o jornal Crítica de 29 de setembro de 1933, tendo como
motivação a leitura de Spreading Germs of Hate, obra então surgida em Londres,
sobre os recursos de propaganda utilizados pelas nações em conflito na Primeira
Guerra Mundial. Os ritos da prosa de seu autor, Jorge S. Viereck, o logo
questionados por Borges; mas as informações recolhidas no livro são por ele
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105
mobilizadas para uma série de reflexões subseqüentes, tratando da “repugnante
felicidade” com que as populações dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra
teriam consumido imagens muitas vezes falsas imagens da crueldade e da
sordidez do povo alemão, em batalhas e no tratamento de prisioneiros de guerra,
entre os anos de 1914 e 1918. Ele se refere, portanto, ao uso da mentira e do
simulacro como meios de afirmação de uma absoluta superioridade moral, que
justificasse as atrocidades cometidas pelo lado vencedor da guerra, culminando
com a deliberada e desmedida humilhação dos perdedores, imposta pelo Tratado
de Versalhes.
Cabe indicar, desde logo, que isto não implicava uma postura
incondicionalmente pacifista por parte de Borges, mas sim um entendimento do
conflito bélico como último instrumento de resolução de disputas políticas e
definição de fronteiras, que não excluísse o respeito e a preservação da dignidade
do adversário. Inclusive porque o orgulho forjado pela fraude só podia favorecer a
continuidade cíclica do embate, fazendo com que a arrogância alimentasse o
ressentimento, e o ressentimento se transformasse em ódio, gerando uma sensação
de eterno retorno, cujas origens podiam ainda ser remontadas à vitória alemã
contra a França em 1870. Mas não importava quem havia começado a briga: a
questão era que ninguém tinha ainda conseguido terminá-la de maneira
competente, e o mundo seguia enredado na lógica circular da vendeta, o que a
chegada ao poder do partido nacional-socialista alemão, naquele ano, só fazia por
corroborar. Quanto à situação interna da Argentina, o diagnóstico em questão
proporcionava uma analogia que Borges elaborou no seguinte trecho:
Que na segunda ecloda uma guerra e na terça este planeta estará nadando em
mitologias. De um lado faremos com que esteja a luz, do outro a perdição...
recentemente, por ocasião de um concorrido seis de setembro, nos animou um
obsceno apetite por prevaricações, subornos e escândalos. Antes, uns poucos
homúnculos haviam perdido ou deteriorado sua alma imortal no exercício do
roubo; logo, sua vergonhosa ocupação caiu em mãos provisórias e o que é pior
a República inteira se dedicou à infinita beatitude de falar mal deles.
75
75
Que estalla el lunes una guerra y el martes nadará en mitologías este planeta. De un lado
haremos que milite la luz, de otro la perdición… Ya una reciente vez, a raíz de un concurrido seis
de setiembre, nos animó un obsceno apetito de prevaricaciones, coimas y escándalos. Antes, unos
pocos homúnculos perdieron o deterioraron su alma inmortal con el ejercicio del robo; luego, su
vergonzante ocupación recaen manos provisionales y lo que es peor la República entera se
dedicó a la infinita beatitud de hablar de ellos”. BORGES, J. L. “Mitologías del odio”. [Crítica,
Buenos Aires, 29 de septiembre de 1933]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 56-60.
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106
É mencionado, em seguida, o mecanismo de criação de “falsas memórias”
sobre o governo radical de Yrigoyen, que o convertiam em uma máquina criminal
organizada e cheia de segredos ainda por serem revelados. Antes disso, porém,
havia sido feita uma afirmação sobre a propaganda na Primeira Guerra que
adquiria aqui nova ressonância: “Inferir do embuste destas histórias a inocência
total dos alemães seria de péssima lógica”.
Enfim, “Mitologías del odio” nos fornece subsídios suficientes para expor o
próximo argumento deste capítulo. Ele deve tratar, em uma primeira etapa, das
circunstâncias mais imediatas e locais em que Borges viu surgir uma escalada do
extremismo político, em gradações ainda inéditas na Argentina moderna, posto
que correlatas à incapacidade do governo militar em legitimar-se por outros
métodos que não fossem os da impostura e da repressão, enquanto permitia que as
disputas internas e a corrupção deteriorassem a racionalidade que teria justificado
o apoio quase irrestrito à sua emergência. Neste enquadramento, o problema era o
fracasso da nova ordem autoritária, transformada em um permanente e anárquico
estado de exceção, cuja dimensão fraudulenta acusava o vazio normativo sobre o
qual ela havia se instalado.
76
Nestas condições, veremos como Borges esboçou
uma frágil tentativa de intervenção, que demandava a retomada de uma força de
organização da sociedade e do Estado característica do século XIX argentino, e
que o teria sido também no mundo ocidental anterior aos tumultos iniciados em
1914, ainda sem solução à vista. Assim, se esta intervenção, em sua singularidade,
parecia totalmente condenada ao insucesso, isto nos permitirá entrever por
contraste o agravamento do quadro em que um apelo ao senso comum se
transfigurava em aberração, e o que, antes, era indício de anormalidade, podia ser
perfeitamente aceito como expressão de autênticas determinações políticas.
A continuidade do argumento requer a exposição de alguns dados
conjunturais. E, a princípio, pode-se afirmar que, mesmo em meio à brutalidade e
às denúncias, nem sempre embasadas, do golpe de 1930, o regime de Uriburu teve
uma verdadeira oportunidade de aproveitar o consenso em torno de sua eclosão
para restabelecer certa normalidade institucional na Argentina. As razões pelas
quais não o conseguiu podem estar vinculadas, por um lado, ao fato dele ter sido
76
Sobre a questão da fraude em particular, e sua disseminação em várias esferas do governo, ver
María Dolores Béjar, El Régimen Fraudulento: la política en la provincia de Buenos Aires, 1930-
1943. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005.
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apenas um triste epílogo da tradição nacionalista e conservadora do país, como
assinalou Fernando Devoto; e, por outro, à ainda incipiente eficácia da doutrina
fascista professada por alguns de seus apoiadores, impedidos de assumir o posto
para o qual se acreditavam destinados, segundo um estudo de Federico
Finchelstein.
77
Em qualquer um dos casos tanto o de uma revolução
restauradora, quanto o de uma absoluta mudança de paradigmas –, o projeto
autoritário teria falhado em dar um novo rumo político à nação, algo que
aconteceria com maior efetividade em 1943, com o golpe militar que abriu
caminho para a ascensão de Juan Domingo Perón ao poder. De maneira que,
durante mais de uma década, o regime esteve destituído de um programa
consistente, e de um direcionamento claro, pois tampouco as vertentes liberais
com que ele também dialogava assumiriam o controle necessário para reinstituir
uma democracia de fato no país.
Criava-se assim uma crise do marco republicano, com múltiplas facetas. O
descontrole do governo, com suas obscuras ou hesitantes transações palacianas,
favorecia uma instrumentação do poder executivo por deres regionais com
interesses próprios; a falta de clareza nas regras do jogo político traduzia-se em
uma repressão, igualmente desgovernada, contra ameaças aos privilégios que ele
gerava; e a população, excluída destes trâmites, abdicava à cidadania por
desinteresse, em uma equivalente degradação carnavalesca de suas instituições
lingüísticas e culturais.
78
O ressentimento dos radicais, por sua vez, alimentado
pelo furor acusatório do golpe, e pela ilimitada opressão subseqüente, era uma
fonte de energias que prometia ao regime uma resposta cada vez mais temida.
Três episódios são de particular interesse a um estudo sobre a maneira como
Borges acompanhou o desenvolvimento deste cenário.
O primeiro deles diz respeito a Manuel Gálvez, conhecido intelectual
portenho da época, que apoiara a eleição de Yrigoyen em 1928, para depois
reconhecer os méritos do autoritarismo de Uriburu, mas sempre aguardando o
surgimento de um novo der popular, que articulasse as duas tendências como
77
Cf. DEVOTO, F. J. Nacionalismo, Fascismo y Tradicionalismo en la Argentina Moderna.
Buenos Aires: Siglo Veintinuo de Argentina Editores, 2002, e FINCHELSTEIN, Federico. La
Argentina Fascista: los orígenes ideológicos de la dictadura. Buenos Aires: Editorial
Sudamericana, 2008.
78
Este ponto foi ressaltado por María Pia López, junto a outros tópicos culturais referentes ao
período, em “30/43: História, ensayo y literatura”. In: VIÑAS, D. [et. al.]. La década infame y los
escritores suicidas (1930-1943). Coordinado por María Pia López; dirigido por David Viñas.
Buenos Aires: Paradiso. Fundación Crónica General, 2007, p. 11-39.
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única solução de governabilidade em uma sociedade de massas. Neste sentido,
publicou, entre 1933 e 1934, uma rie de textos, depois reunidos em um livro
intitulado Este Pueblo Necesita..., em que exaltava o golpe, mas afirmava que ele
teria carecido de força para levar a cabo a tarefa de consolidação do fascismo na
Argentina. De modo que a expectativa pela entrada em cena de um homem
respeitado e amado pela população uma espécie de Mussolini criollo
permanecia em suspenso. Já a referência de Borges a Gálvez, em um artigo
chamado Infinita perplejidad”, enviado a Crítica em setembro de 1932, é sobre
uma questão menos central, mas ainda assim sugestiva, quanto à situação moral
em que se encontrava o país segundo seu ponto de vista, ressaltando também a
megalomania que ele passara a entender como um dado inerente à doutrina
fascista, e ao caráter de seus seguidores. Pois o artigo teria sido motivado por uma
suposta carta enviada por Manuel Gálvez à Academia Sueca, na qual ele
reclamava para si mesmo o prêmio Nobel de literatura daquele ano. E, após
expressar seu desconcerto diante do documento de “inusitada originalidade”,
Borges prosseguia: “Que a pátria necessita de honra ainda mais depois de ser
apequenada pelo golpe de Uriburu e pelas recentes apoteoses denuncistas é
inquestionável, mas podemos duvidar que Gálvez seja o homem predestinado para
este fim”.
79
O segundo episódio gira em torno de um evento de maior repercussão
nacional. Seu movimento inicial se deu com a morte de Hipólito Yrigoyen, em
meados de 1933, quando a multidão que acompanhou o cortejo fúnebre confirmou
os temores oficiais de que o radicalismo possuía um apoio popular intacto, e até
mesmo crescente, na medida em que se renovavam as lembranças dos anos 20. A
ascensão de Hitler também pode ter contribuído para a preocupação do governo
com as possíveis conseqüências da crise econômica, cujos efeitos haviam então
atingido seu ponto máximo. Assim, quando a UCR se reuniu para uma convenção
no final do ano, a ela se seguiu um levante, com ataques de civis armados a sedes
policiais e edifícios públicos, que foram, porém, logo reprimidos pelo exército,
em estado de alerta para a possibilidade da agitação. Meses depois, Arturo
Jauretche, um de seus participantes, publicava o poema “El paso de los libres”, em
79
BORGES, J. L. “Infinita perplejidad”. [Crítica, Buenos Aires, 21 de septiembre de 1932]. In:
____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 331-2.
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que eram rememorados os fatos do levante de 33, com prólogo de Jorge Luis
Borges.
Como se tornaria freqüente a partir daí, em situações semelhantes, Borges
formulou um elogio peculiar ao livro, no qual aproveitou para tecer considerações
de ordem pessoal. Estas se referiam ao tema da patriada, que ele distinguia do
cuartelazo, e na qual vislumbrava a decência de uma morte irrisória, e decretada
insignificante pelos anais históricos, dada a intrínseca vocação da patriada para o
malogro. “O acontecimento, em si, é patético”, ele acrescentava então, conferindo
ao assunto um ar quixotesco, em que conspiradores se dispunham a morrer por
uma causa perdida, sem que representassem um verdadeiro perigo, como no
último suspiro de vagas aspirações.
80
Parece-me que este é o último documento de
sua obra em que ele compôs uma descrição sentimental do radicalismo e de seus
representantes em muito tempo ao menos até que, em 1945, sob o pseudônimo
de Manuel Pinedo, publicou um poema, “El compadre”, no qual este personagem
era retomado como uma figura taciturna e rancorosa, dada a repentinos acessos de
fúria, mas que, tendo a pobreza como pano de fundo, estaria sempre “onde o
último retrato / de Yrigoyen presida austeramente / o vão comitê, fechado / com
rigor por virtuosas ditaduras”.
81
O intervalo de tempo que se nota, entre o prólogo
ao poema de Jauretche e esta nostálgica rememoração, talvez seja devido a
questões factuais.
E, em 1935, os resultados do descontrolado levante haviam indicado à
oposição radical que ela estava diante de duas alternativas: o retorno à
participação de seus candidatos nas eleições fraudadas, ou a criação de
movimentos clandestinos mais organizados, tanto em termos práticos quanto
ideológicos. A primeira delas foi escolhida pelo presidente do partido, Marcelo T.
de Alvear, antigo adversário de Yrigoyen, o que levou a uma coação ainda mais
aberta do governo contra a cidadania nas votações seguintes. Na direção da outra,
à qual se relaciona o terceiro ponto, seguiriam os dissidentes insatisfeitos com a
postura de Alvear, entre eles Arturo Jauretche, que naquele ano foi um dos
fundadores da Frente de Orientación Radical de la Joven Argentina (FORJA), de
índole revolucionária e ideário comunista. Horacio Salas, biógrafo de Borges,
80
BORGES, J. L. “El Paso de los Libres, de Arturo Jauretche. Prólogo”. In: ____. Textos
Recobrados 1931-1955, 107-8.
81
PINEDO, Manuel [Jorge Luis Borges]. “El compadre”. In: BORGES, J. L. y BULLRICH,
Silvina (selección). El compadrito. Buenos Aires, Emecé, 2000 [1945].
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conta ter tido acesso a uma lista elaborada na ocasião, em que o nome deste
figurava como um dos primeiros possíveis candidatos a integrar o movimento.
Naturalmente, o convite não foi aceito, e hoje até certa comicidade em
imaginar o escritor tímido e curto de vista pegando em armas para tomar a Casa
Rosada. Mas o caso nos diz algo sobre as ambigüidades de sua condição política
naquele momento de rearticulação de forças, ao mesmo tempo em que marca seu
afastamento definitivo do novo radicalismo pós-1930.
Trata-se, então, de verificar como, em meio a estas operações, Borges
começava a adotar uma linha de pensamento que teria outras formulações ao
longo de sua obra. Para adentrar este tópico, porém, talvez seja mais útil ter como
medida de comparação algumas das principais obras de interpretação da realidade
argentina lançadas no período, em suas semelhanças e diferenças.
No que se refere às primeiras, um ponto determinante: a percepção de
que, sob o caos das aparências em que a vida pública argentina tinha se
transformado, havia agentes e estruturas ocultas que, ao serem desvelados,
explicariam as frustrações nacionais, ou forneceriam as energias necessárias para
revertê-las. Este era o argumento de muitos daqueles que, ao enfrentar o
embotamento mental no qual grande parte da intelectualidade argentina estava
submersa, buscavam oferecer soluções ao problema da decadência do país,
mobilizando para isso a lógica do segredo, ou seja, afirmando a existência de
profundas e sistemáticas instâncias de significação, que seriam a chave
interpretativa capazes de desfazer a falsidade e inautenticidade generalizadas. De
grande repercussão, neste sentido, era o discurso anti-imperialista, que creditava o
declínio à ingerência de forças externas e malignas, particularmente o capital
britânico, onipresente, mas sempre escamoteado, na economia do país. Ramón
Scalabrini Ortiz e os irmãos Rodolfo e Julio Irazusta foram os mais conhecidos
divulgadores da doutrina, sendo que estes últimos, em La Argentina y el
imperialismo británico, defendiam a memória de Rosas, proclamando a
necessidade de que um líder carismático da mesma estatura resgatasse a pátria das
maquinações de que era vítima.
Não nada de substancial escrito sobre o tema por Borges. Mas, em um
texto da mesma época, redigido para publicação da Cia. de Subterrâneos de
Buenos Aires, quando foi inaugurada a última parte da linha Constitución-Retiro,
duas passagens interessantes. A primeira delas qualifica a presença de recursos
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externos nas grandes empresas argentinas uma “idiossincrasia” da economia local.
Nisto, insinua-se o questionamento da pressuposição de que esta era regulada por
secretas e premeditadas articulações alienígenas, ao atribuir o problema a
condições históricas peculiares. A segunda passagem, entretanto, dá a entender
que, ainda assim, aquela era uma situação a ser superada, para o que a construção
do metrô, mediante ampla subscrição popular, servia de exemplo, como realização
coletiva que prometia futuros desdobramentos.
82
Decerto, um teor
propagandístico na mensagem, mas creio que algumas das próximas
considerações desta seção irão atribuir-lhe um maior significado.
E, conectado ao discurso anti-imperialista, estava um outro assunto ao qual
Borges deu maior atenção: o anti-semitismo. Pois se, desde o início do século
XX, o sentimento de repulsa aos judeus havia estado presente em alguns episódios
de violência em Buenos Aires, como a “Semana Trágica” de 1919, foi somente
com a crise da década de 30 que ele estabeleceu-se como motivo uma indagação
séria sobre o verdadeiro papel daquele elemento no processo de deterioração
social da cidade e do país. Na medida em que este era considerado efetivamente
pernicioso, o argumento racial era acrescentado às doutrinas revolucionárias em
formação, que assim planejavam um ressurgimento da cultura autóctone, por meio
de um resgate da pureza encarnada nas massas criollas. Neste ambiente favorável
à paranóia, o próprio Borges chegou a ser acusado de dissimular supostas origens
judias, em um artigo da revista Crisal de 30 de janeiro de 1934, ao qual respondeu
dizendo-se obrigado a decepcionar a revista, posto que não teria encontrado
nenhum traço de sangue hebraico entre seus antepassados.
83
Por causa de
situações como esta, ele viria a dizer ainda que, se o anti-semitismo nunca deixava
de ser ridículo, em Buenos Aires o era ainda mais do que em Berlim.
84
Enquanto
isso, o acompanhamento da escalada da ideologia anti-semita na Europa ofereceu
ao escritor algumas outras ocasiões para discorrer sobre o tema.
O conhecimento da língua alemã proporcionou-lhe o acesso a obras
contemporâneas como um livro didático de Elvira Bauer resenhado para El Hogar
em 1937. No caso, a mera descrição do livro pareceu suficiente para ridicularizá-
82
BORGES, J. L. “El nuevo subterráneo”. [Obra, Revista Mensual Ilustrada, Buenos Aires, año 1,
n. 3, febrero de 1936]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 340-1.
83
BORGES, J. L. “Yo, judio”. [Megáfono, Buenos Aires, n. 12, abril de 1934]. In: ____. Textos
Recobrados 1931-1955, p. 88-89.
84
Cf. BORGES, J. L. “Mester de Judería, de Carlos M. Grünber. Prólogo”. In: ____. Prólogos con
un prólogo de prólogos. OC, vol. 4, p. 80-83.
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lo, como, por exemplo, na referência à ilustração de uma senhorita germânica,
perplexa diante de um judeu concupiscente que lhe oferecia um colar.
85
Com
maior grau de irritação, ele referiu-se também, na revista Sur, a uma cartilha
nazista que já estaria em sua quarta edição naquele ano, afirmando que lhe bastava
abri-la em qualquer página para ser tomado de justificada perplexidade. “O que
opinar de um livro como este?”, perguntava-se em seguida. Pessoalmente, fico
indignado, menos por Israel do que pela Alemanha, menos pela injuriada
comunidade do que pela injuriada nação. Não sei se o mundo pode prescindir da
civilização alemã. É lastimável que a estejam corrompendo como uma pedagogia
do ódio”.
86
O que contrapunha a questão da cultura nacional, baseada na
formação de uma identidade através do tempo, ao argumento pseudo-
antropológico da raça, fundado na pressuposição de estruturas naturais e estáveis,
que a história teria conspurcado. No entanto, tampouco esta operação tornava o
problema judeu um não-problema na visão de Borges, o que nos remete à
complexidade com que ele o caracterizaria em outras oportunidades. Em uma
delas – a resenha para The Jewish Problem (1938), de Louis Golding –, ele notava
como uma boa causa podia ser mal defendida, principalmente quando a lógica do
adversário era mobilizada na empresa, o que estaria em jogo naquela “inútil e
imprudente” demolição do anti-semitismo, que reclamava a superioridade dos
judeus em relação aos alemães, e, portanto, acatava a tese inimiga da postulação
de uma diferença radical entre ambos.
87
O que, por outro lado, não tornava inexistentes as diferenças reais,
resultantes de situações concretas. Este era o ponto de partida de The Jews, de
Hilaire Belloc, que, segundo Borges, colocava corretamente a questão, ao retratar
Israel como “uma nação inevitavelmente forasteira em cada país”, um impasse
que o século XIX havia deixado por resolver. E, em uma nota pessoal, o escritor
argentino observava: “É o que acontece neste país com os italianos e os
espanhóis: rege a convenção de que não o estrangeiros, embora os sinta como
tal o argentino”. Em seguida, eram mencionados possíveis modos de lidar com o
85
BORGES, J. L. “Trau Keinem Jud Bei Seinem Eid, de Elvira Bauer”. [El Hogar, 28 de mayo de
1937]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 310.
86
BORGES, J. L. “Letras alemanas. Una pedagogía del odio”. [Sur, Buenos Aires, Año VII, n. 32,
mayo de 193]7. In: ____. Borges en Sur, p. 145-146.
87
BORGES, J. L. “Una vindicación de Israel”. [El Hogar, 24 de marzo de 1939]. In: ____. Textos
Cautivos. OC, vol. 4, p. 448-9.
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problema, cogitados por Belloc a eliminação física, o desterro ou a absorção –,
todos eles rejeitados pelo inglês por diferentes razões, enquanto Borges, mesmo
sem expressar muita certeza, diz encontrar menos argumentos para recusar a
última. O movimento sionista não é contemplado na resenha.
88
De todo modo, ficam claros os recursos considerados disponíveis para
buscar uma solução, mesmo que àquela altura eles fossem anacrônicos. Pois tudo
converge para uma ação do Estado, nos moldes em que foram pensados os
projetos de construção nacional no século XIX, na tentativa de corrigir as falhas
deixadas pelo caminho neste processo, particularmente no caso argentino, em que
os problemas sociais gerados pela migração eram ainda recentes. Ou seja: tratava-
se de reconhecer a dificuldade imposta pelo problema, mas não sobrevalorizá-lo
ao ponto de tornar urgentes as atitudes mais extremas, acreditando em políticas
parciais e localizadas, que atenuassem os efeitos das diferenças, e evitassem
alimentar o ressentimento latente na população. Sem dúvida, estamos falando
apenas de uma orientação geral, e Borges em momento algum buscou fornecer
detalhes práticos relacionados a ela. Além disso, até mesmo o ambiente de
reflexiva deliberação em que ele situava sua discussão com Belloc estava então
completamente deslocado no tempo, o que Borges possivelmente compreendia,
mas talvez buscasse ignorar com premeditada “ingenuidade” (um procedimento
que, como veremos oportunamente, seria recorrente em sua obra).
Enfim, outro ensaio interpretativo que marcou os anos 30 deve ainda ser
inserido no diálogo, de maneira a acrescentar mais uma perspectiva contrastante
em relação à de Borges. Refiro-me a Radiografia de la pampa (1933), de Ezequiel
Martínez Estrada, membro do grupo Sur e poeta estimado, que não abdicou do
virtuosismo estilístico em sua primeira obra em prosa. Esta veio a ser uma
monumental releitura do Facundo de Sarmiento, bastante influenciada por leituras
de Friedrich Nietzsche e Oswald Spengler, em uma investigação contemplativa da
sociedade argentina e do imenso território sobre o qual ela havia sido instalada,
expressa em longas sentenças, virtualmente construídas sobre a intuição de um
princípio unificador, para fazer com que o mal de origem da nação declinante
viesse à tona.
88
BORGES, J. L. “The Jews, de Hilaire Belloc”. [El Hogar, 4 de marzo de 1938]. In: ____. Textos
Cautivos. OC, vol. 4, p. 369-70.
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As conclusões do empreendimento de Martínez Estrada serão apenas
esboçadas aqui de modo sumário. Desde logo, elas indicavam a eliminação da
dualidade entre civilização e barbárie, estabelecida por Sarmiento, declarando
uma mais profunda identidade entre as duas instâncias, e encontrando, nas
instituições constitutivas do projeto de modernização, apenas camadas
artificialmente sobrepostas à natureza aterrorizante da pampa, que, ao mesmo
tempo, dissimulariam e perpetuariam uma experiência coletiva preexistente. A
arcaica crueldade dos caudilhos espalhados pelas vastas extensões territoriais do
país sobrevivia, de forma ainda mais repulsiva, no refinamento das convenções
inautênticas da capital. Daí a onipresença de um mistério ontológico, que
Radiografia de la pampa pretendia desvelar. Por trás das aparências de uma
cultura pretensamente civilizada em sucessivos graus de ordenamento apolíneo, e
sentida como decadente, evoluía um cíclico retorno ao barbarismo, fundado na
indistinção entre uma coisa e outra, que condenava a Argentina a estar
eternamente encarcerada no seu inferno particular. Em certo sentido, o enigma de
Rosas, tal como proposto pelo próprio Sarmiento, ecoava nesta configuração, que
ampliava as deduções resultantes da coexistência de natureza a artifício na
conduta do ditador. Também influenciado por Freud, contudo, Martínez Estrada
via na decomposição analítica das estruturas sobrepostas o caminho para o
reconhecimento de uma mácula secreta, que teria condenado a Argentina a este
movimento circular, do qual sairia mediante uma trágica e redentora
transfiguração, que ele profetizava.
Pouco depois do lançamento do livro, Borges escreveu a seu respeito uma
avaliação positiva. Destacando a filiação da obra a um novo gênero “a
interpretação patética da história e inclusive da geografia” de um país, típica de
“alemães intensos” como Spengler e Keyserling –, ele mostrava-se admirado,
sobretudo, com o estilo de Estrada, qualificando-o como poeta inteligente e bom
prosador. Quanto a isso, seu julgamento não mudaria com o tempo, havendo
outras afirmações em sua bibliografia do encantamento estético que lhe teria
produzido a leitura de Radiografia de la Pampa, ao que atribuiria também a
sobrevivência de sua admiração pelo “poema cósmico” de Schopenhauer, a partir
da década de 30. Estes elogios, por outro lado, implicavam que estes autores não
deviam ser lidos como filósofos, ou segundo um critério de verdade, e sim como
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edificadores de magníficas construções ficcionais, elaboradas de acordo com os
seguintes termos expostos na resenha:
O circunstancial não interessa aos novos intérpretes da história, nem tampouco os
destinos individuais, em mútuo jogo de atos e paixões. Seu tema não é a sucessão,
é a eterndiade de cada homem ou de cada tipo de homem: o estilo peculiar de intuir
a morte, o tempo e os outros, o espaço em que se move e o mundo.
89
O circunstancial e os destinos individuais, no entanto, costumavam ser focos
do interesse de Borges, e instrumentos da estratégia com que ele muitas vezes
desmontava grandes cosmologias totalizantes, pessimistas e apocalípticas, de
modo a explicitar sua índole irrealista. Historia de la eternidad, uma compilação
de ensaios publicada em 1936, trazia no próprio título uma sugestão da
ambigüidade com que tratava o assunto, e nela estava incluindo um texto sobre o
Eterno Retorno em que havia um irônico comentário sobre a “descoberta” daquele
conceito pelo indivíduo Friedrich Nietzsche, nas florestas de Silvaplana, em
agosto de 1881. E, com isso, a idéia que proclamava a eliminação das
singularidades humanas, em sua infinita repetição cíclica, era atrelada a uma
narrativa singular, sobre um homem não menos especial. Pois Borges parece ter
cultivado uma verdadeira curiosidade pelo gênio idiossincrático de Nietzsche, em
todas as suas ambivalências, dedicando-se inclusive à leitura dos cadernos de
notas do autor, motivo de uma enternecida nota sobre o testemunho de sua solidão
publicada em La Nación. Algo semelhante ao que se nesta passagem sobre
Oswald Spengler, de 1936:
Seis anos demorou Spengler para escrever A Decadência do Ocidente. Seis
obstinados anos, em um faminto cortiço de Munique, em um aposento lúgubre que
dá para uma pobre paisagem de chaminés e de telhas manchadas. Oswald Spengler,
então, não tem livros. Passa as manhãs na biblioteca pública, almoça em refeitórios
para operários, toma, quando está doente, vastas e ardentes quantidades de chá. Por
volta de 1915 termina a revisão do primeiro volume. Não tem amigos.
Secretamente compara-se com a Alemanha, que também está só.
90
89
“Lo circunstancial no interesa a los nuevos intérpretes de la historia, ni tampoco los destinos
individuales, en mutuo juego de actos y de pasiones. Su tema no es la sucesión, es la eternidad de
cada hombre o cada tipo de hombre: el peculiar estilo de intuir la muerte, el tiempo el yo los
demás, la zona en que se mueve y el mundo”. BORGES, J. L. ‘Radiografía de la Pampa’, por
Ezequiel Martínez Estrada.” [Crítica, Revista Muticolor de los Sábados, Buenos Aires, año 1, n. 6,
16 de septiembre de 1933]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 52-53.
90
BORGES, J. L. “Oswald Spengler”. In: ____. Textos Cativos. Trad. Sérgio Molina. OC [edição
brasileira], vol. 4, p. 274-5. “Seis años tardó Spengler en escribir La decadencia de Occidente. Seis
obstinados años, en un hambriento conventillo de Munich, en una pieza brega que da a un pobre
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Retornando então à resenha de Radiografía de la Pampa, lemos que a obra
de Martínez Estrada excluía “os encantos novelescos da biografia e da anedota,
mas também os devaneios craneológicos de Lombroso”. Isto é: em uma rejeição
integral do que seriam os legados do século XIX, ela felizmente ignorava as
invenções mais estapafúrdias de uma era crédula e cientificista, mas, com isso,
ficava também comprometida a sensibilidade do narrador para as misérias parciais
de seres humanos isolados, submergidas no horror ontológico e demoníaco que o
autor postulava. No caso de um breve e elogioso da obra de um colega, tal era o
máximo grau de crítica que Borges se permitia, e creio que ele de fato identificava
méritos incontestáveis no livro. Mas, na hora de fazer suas próprias considerações
sobre a situação do país, e buscar uma saída para as imensas dificuldades em que
ele se encontrava na década de 30, sua relutância em acatar a validade efetiva da
interpretação de Estrada ficaria mais explícita.
Enfim, tudo o que foi dito até aqui nesta seção, principalmente através das
divergências de Borges em relação a outros agentes políticos e intelectuais do
período, deverá em seguida ser retomado em uma chave mais propositiva, capaz
de indicar o quadro de semelhanças em que se situava seu pensamento. Pois,
durante a celebração do quarto centenário de fundação de Buenos Aires, em 1936,
a central de difusão radiofônica do Teatro Colón promoveu a leitura de uma série
de textos, encomendados a intelectuais e políticos da cidade, que, naquele mesmo
ano, seriam reunidos em um tomo editado pelo governo municipal. Jorge Luis
Borges foi convidado a participar das homenagens pelo intendente Mariano de
Vedia y Mitre, e aceitou a incumbência com satisfação, preparando um longo
discurso, em certa medida limitado pelas convenções do gênero, mas também
bastante meticuloso na composição de um argumento sobre o papel da capital
argentina em meio às turbulências políticas da nação no período. Embora
raramente mencionado na bibliografia crítica sobre o autor, acredito que este é um
dos documentos mais completos no que diz respeito à consolidação de posturas
paisaje de chimeneas y tejas manchadas. Oswald Spengler, entonces, no tiene libros. Pasa las
mañanas en la biblioteca pública, almuerza en comedores para obreros, toma, cuando está
enfermo, vastas y ardientes cantidades de té. Hacia 1915 termina la revisión del primer volumen.
No tiene amigos. Secretamente se compara con Alemania, que también está sola”. BORGES, J. L.
“Oswald Spengler”. [El Hogar, 25 de diciembre de 1936]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4,
p. 254-255.
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que vinham sendo indicadas em seus textos anteriormente.
Devo então
descrevê-lo em suas linhas gerais, para depois justificar esta última afirmativa.
“Tareas y destino de Buenos Aires” foi escrito para a transmissão oral, e
tem, portanto, as costumeiras considerações iniciais voltadas para conquistar a
atenção do público, mesmo que Borges utilize o recurso com a não menos
habitual proclamação de que irá dispensá-lo. Em seguida, ele anuncia o tema do
discurso mas primeiramente através da negativa, prometendo que não o
aproveitaria para elaborar mais uma “fundação”, algo que já teria se tornado um
gênero literário característico da cidade. Assim, após citar alguns outros escritores
que o teriam praticado, menciona o poema de sua autoria, escrito dez anos antes,
sobre a “Fundación mitológica de Buenos Aires”, e inclusive o declama
integralmente, ou quase, com a omissão da estrofe em que Hipólito Yrigoyen era
saudado em letras maiúsculas. A declamação termina, portanto, com os mesmos
versos que na década de 20 conferiam ao objeto do poema um caráter eterno e
intemporal. “Entretanto, Buenos Aires teve um começo”, ele então aproveita para
dizer, por contraste, logo que retoma o prosseguimento do discurso. “Apesar deste
juízo alexandrino e sentimental, celebramos agora um centenário o quarto da
primeira fundação da pátria”.
91
Este enunciado contém um movimento muito significativo, que desloca o
texto de uma possível inserção na esfera do mito (ou de sua configuração estética)
para o terreno da discussão histórica. Além disso, Borges afirma ainda que a
questão sobre a natureza essencial da cidade apresentava o risco de suscitar mil e
uma respostas, “todas inverificáveis, todas diversas e todas igualmente
mitológicas”. O procedimento comum a todas elas seria o de confundir costumes,
idiossincrasias e preconceitos locais com “idéias” universais, que não admitiriam
nenhuma refutação intelectual. Esta diversidade de pareceres, “essas polêmicas
poucas vezes divertidas e finalmente nulas”, porém, deixavam clara a importância
simbólica que a cidade havia adquirido ao longo dos séculos, por ter sido palco
dos mais decisivos eventos da vida política da nação. Importância esta que Borges
Agradeço ao professor Adrián Gorelik, do Programa de Historia Intelectual da Universidad de
Quilmes, por ter chamado minha atenção para a importância deste texto na trajetória intelectual e
política de Borges.
91
BORGES, J. L. “Tareas y destino de Buenos Aires”. In: MUNICIPALIDAD DE LA CIUDAD
DE BUENOS AIRES. Homenaje a Buenos Aires en el Cuarto Centenario de su Fundación.
Buenos Aires, 1936, p. 515-532. Também em BORGES, J. L. Textos Recobrados 1931-1955, p.
139-153.
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acreditava concentrar-se ainda mais na Plaza de Mayo, ao constatar que “não
nenhum outro lugar de Buenos Aires tão saturado, tão curado de história, de
sensível tempo humano”.
Na seqüência, ele passa a aludir justamente aos dois principais episódios
desta história, que legitimavam a situação de destaque da capital. Sobre o
primeiro deles – a guerra de independência contra a Espanha –, diz ter consciência
do aspecto de disciplina escolar do tema, sujeitando aquele que o mobilizasse a
acusações de ingenuidade e crendice simplória. Ainda assim, ele recorre às
imagens mais tradicionais da heróica constituição da pátria, para contrapô-las a
outras que, na década de 30 do século XX, eram foco de maior prestígio, inclusive
por serem consideradas expressões de um espírito mais complexo e refinado; isto
é, as imagens do tempo de Rosas. E, ao descrever estas últimas, o discurso
constrói uma cena ruidosa e multicolor, cheia de som e fúria, na qual, todavia, está
explícita a intenção do orador de encontrar nela também o patético dos extremos
da ênfase e da agitação, em proclamações oficiais pontuadas de “vivas y mueras”,
no “deliberado atontamiento de los espíritus”, ou no vermelho insistente das
divisas e emblemas rosistas. “Esta época tosca [charra] nos fascina”, diz então
Borges, como que espantado com o fenômeno, sem dele isentar-se. E, para
resumir o ponto, ele admite: “Dito de outro modo, a estética se sobrepôs à ética”.
No entanto, era preciso ainda acrescentar a este diagnóstico uma observação
da maior importância. Pois se, por um lado, ele situava as reflexões do discurso na
linhagem unitarista, que teria enfim vencido Rosas, e criado as condições para a
república, por outro era nas próprias fundações literárias desta tradição que
Borges encontrava uma real ameaça à unidade nacional. Isso em função do
“prestígio satânico” conferido à figura do tirano por seus mais célebres
adversários: “O dom Manuel segundo Mármol e segundo Sarmiento é o que me
preocupa, não o desvanecido general Rosas do historiador Adolfo Saldías”.
Tratava-se, assim, de substituir uma visão romântica, que pintara as guerras do
século XIX com os matizes fortes de uma luta contra os poderes ocultos do mal,
por outra que retirava toda substância da violência e da desordem, apresentando-a
como um fenômeno contingente, causado por uma situação política particular.
Não havia nenhum mistério subjacente àquela grande confusão que teria se
proliferado sob o domínio de Rosas. E agora ela devia ser vista como mera
aparência, em tudo o que possuía de descontrolada embriaguez e afetação
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mistificadora, tendo no pano de fundo a figura apagada de um general infame.
Sob os tumultos não havia nada.
em um artigo publicado em La Prensa, poucos meses antes, pode-se
acrescentar, Rosas era caracterizado por Borges como um “burocrata estancieiro”,
em comparação com antigos chefes das hostes federais, como Facundo Quiroga.
92
Deste modo, a arte e o engenho, que Sarmiento via nele articulados ao impulso
vital, ficavam reduzidos pela análise à banalidade de uma etiqueta e uma logística
no manejo da máquina pública. Todavia, se, ainda assim, Rosas havia sido
transformado em um suposto portador do carisma gauchesco, um simulacro do
poder da pampa, como forma de controle da cidade, restava a Borges o problema
da arraigada concepção de que o solo argentino era o verdadeiro repositório de
uma força substancial, em eterno combate com a civilização, o que justificaria até
mesmo o fascínio por suas expressões mais degradadas. O próximo passo de um
discurso iconoclasta sobre estes símbolos devia então estar voltado justamente
para a figura do gaucho, “numen ou semideus” incorporado à tradição, síntese de
terrores e encantos mitológicos, cuja derrubada havia sido antes pretendida por
outros autores, mas com pouco sucesso.
E aqui, mais uma vez, ele parte para uma tentativa de compreensão do
fenômeno sob a perspectiva de suas origens culturais: “Não tento uma impossível
demolição. Outro propósito me chama: o de indicar (que seja de passagem) o que
de paradoxal e comovedor neste culto”. E, para isso, as guerras contra el
caudillaje, que sucederam a da independência, deviam ser entendidas em toda a
ambivalência de seus resultados. Se, por um lado, elas haviam proporcionado a
organização da república na luta contra os homens do campo que odiavam a
cidade, por outro teriam criado as condições do surgimento, na própria cidade, de
um produto cultural exclusivo de escritores urbanos: a literatura gauchesca. De
maneira que, tendo vencido a guerra, Buenos Aires concedia a seus heróis uma
estátua ou a nomeação de uma rua, mas preferia gastar suas maiores energias
criativas na imaginação do mito. A conclusão era de que a sociedade do século
XIX havia lutado contra um oponente real, claramente definido como um inimigo
político, que não merecia seu ódio, mas era uma ameaça concreta a seus valores. E
depois o havia recriado como um arquétipo abstrato, que não era um modelo para
92
BORGES, J. L. “La vuelta de Martín Fierro”. [La Prensa, Buenos Aires, 24 de noviembre de
1935]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 125-129.
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a conformação da realidade, e sim o necessário contraponto da decência e da
parcimônia decorrentes da normalização da vida pública.
Neste ponto, uma digressão mais longa deve ser feita, antes que o final do
discurso seja examinado.
Pois o que havia de “comovedor” nesta última constatação era o
reconhecimento de que a civilização estava atravessada por uma falta
intransponível, para a qual o otimismo com suas conquistas seria um substituto
insuficiente, e que estimularia sempre a transformação de uma alteridade radical
em matéria de sonhos. Na medida em que estes sonhos permanecessem como tais,
e o orgulho civilizatório não se convertesse em uma via de mão única, isso criava
um quadro de relativo equilíbrio, que não eliminava o conflito entre a ética e a
estética em favor de nenhum dos dois pólos, mas convivia com ele, na aceitação
do impasse, ao invés de buscar uma síntese redentora. E era justamente este
equilíbrio que o século XX havia rompido, exigindo uma nova configuração de
forças, um posicionamento mais decidido e claro dos atores políticos e intelectuais
diante das alternativas possíveis. O melhor esclarecimento do problema encontra-
se em uma resenha escrita por Borges muitos anos depois, e refere-se a um
contexto mais amplo, mas acredito que sua aplicação neste caso será justificada:
Obras que fingem defender coisas indefensáveis Elogio da Loucura, de Erasmo;
Sobre o Assassinato Considerado como uma das Belas-Artes, de Thomas de
Quincey; A Decadência da Mentira, de Wilde pressupõem épocas razoáveis,
épocas tão alheias à loucura, ao assassinato e à mentira que lhes diverte o fato de
que alguém possa vindicar esses males. O que pensaríamos, em compensação, de
épocas nas quais fosse necessário provar, com dialética rigorosa, que a água é
superior à sede e que a lua merce que todos os homens a contemplem, ao menos
uma vez antes de morrer? Nesta época vivemos.
93
Daí a preocupação com o satanismo, e a urgência em desconstruí-lo, através
da caracterização da impostura. Uma necessidade decorrente da dissolução de
uma esfera de racionalidade e confiança, sustentada por valores morais básicos, e
93
BORGES, J. L. ‘Fausto’, de Estanislao Ocampo.” In: ____. Prólogo com um Prólogo de
Prólogos. Trad. Josely Vianna Baptista. OC [edição brasileira], vol. 4, p. 33-37. “Obras que fingen
defender cosas indefendibles Elogio de la locura, de Erasmo; Sobre el asesinato como una de
las bellas artes, de Thomas de Quincey; La decadencia de la mentira, de Wilde presuponen
épocas razonables, épocas tan ajenas a la locura, al asesinato y a la mentira, que les divierte el
hecho de que alguien pueda vindicar esos males. Qué pensaríamos, en cambio, de épocas en las
que fuera necesario probar, con dialéctica rigurosa, que el agua es superior a la sed y que la luna
merece que todos los hombre la miren, siquiera una sola vez antes de morir? En esa época
vivimos”. BORGES, J. L. ‘Fausto’, de Estanislao Ocampo” [1969]. In: ____. Prólogo com um
prólogo de prólogos. OC, vol. 4, p. 34-37.
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em certa medida negociáveis, que permitia a expressão de seus contrários com
alguma elasticidade, mas, em última instância, preservaria a clareza de raciocínio
requerido para representá-los como adversários. Esta mesma clareza, por outro
lado, passava a ser entendida como obtusidade moralista, ou carência de
sofisticação intelectual, no momento que seus fundamentos eram abalados. Assim,
a respeito da idéia de progresso, um dos principais alvos da crítica modernista,
Borges havia escrito em 1933:
Essa idéia instável pode bem pode corresponder à realidade, mas o abjeto século
dezenove a apadrinhou. Somos do século XX id est, somos evoluídos demais
para dar crédito a falácias grosseiras como a evolução. Que essa ingenuidade fique
para os varões dos daguerreótipos desvanecidos e das botinas de elástico.
94
De modo que o “ingênuo” aparecia como carente de engenho, de
refinamento estético ou metafísico (em um comentário não destituído de
engenhosidade e sofisticação). “Denegrir o século XIX é um dos passatempos, ou
um dos desafogos, do nem sempre agradável século XX”, ele escreveria ainda em
1939. Ou seja, quando o “passatempo” a que se referia estaria tomando um viés
político decisivo, prestes a chegar a um clímax devastador.
95
Não que ele considerasse, a priori, uma superioridade moral ou científica
dos valores positivos oitocentistas em relação aos novos postulados. A diferença
residiria, sobretudo, na maneira enfática e impositiva com que estes se afirmavam,
o que substituía o debate intelectual pela divulgação de manifestos e slogans
impactantes, mas que careciam de consistência teórica. Daí o que Borges
escreveria em “Vindicación del 1900”, de 1945:
Pela boca de um jornalista, o século XX qualificou de “estúpido” o século XIX;
talvez não seja ilícito recordar que as doutrinas pelas quais estão morrendo os
homens do século XX nazismo e comunismo são invenções do século XX. O
nazismo procede notoriamente de Fichte e Carlyle; o marxismo deve ter algum tipo
de relação com Karl Marx; o estúpido século XIX foi, antes de nenhuma outra
coisa, um século de libérrima discussão; não argumento contra ele, contra suas
94
“Esa idea inestable bien puede corresponder a la realidad, pero el abyecto siglo diecinueve la
apadrinó. Somos del siglo veinte id est, ya somos demasiado evolucionados para dar crédito a
groses falacias como la evolución. Quede esa ingenuidad para los varones de los daguerrotipos
desvanecidos y de los botines de elástico”. BORGES, J. L. “La eternidad y T. S. Eliot
(fragmento)”. [Poesía, Revista Internacional de Poesía, Buenos Aires, v. 1, n. 3, julio de 1933]. In:
____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 48-51.
95
Borges, J. L. “De la vida literaria”. [El Hogar, 19 de mayo de 1939]. In: ____. Borges en El
Hogar, p. 156.
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preferências ou instituições, que não tenha sido formulado por alguém desse
mesmo século.
96
O que Borges lamentava, portanto, era a arrogante desqualificação do
opositor, convertida em estratégia discursiva, e que esvaziava as mesmas teorias
que seus agentes pretendiam defender, dada a necessidade de que estas fossem
apresentadas de modo a alcançar uma repercussão urgente e imediata. quem
prefira ser intimidado a ser convencido”, ele observaria em um artigo de 1938.
97
Mas sabia muito bem que isto podia implicar um determinado grau de idealização
do século XIX, uma tentativa de contrapor a imagem de um passado mais ameno
à experiência do presente. Por isso, teria terminado o “Vindicación del 1900” com
as seguintes palavras: “Nossa época é, ao mesmo tempo, implacável, desesperada
e sentimental; é inevitável buscar distração na carinhosa falsificação de épocas
pretéritas”.
Em resumo, o século XIX tornara-se para Borges uma categoria na qual se
alojava uma imagem de um mundo clássico, caracterizado pela mediação do
diálogo, e cuja racionalidade era creditada a uma apreciação da realidade
histórica, mas que, porém, fora corrompida por um século XX romântico,
idealista e ávido consumidor de mitologias. O que, nunca é demais reafirmar,
correspondia à degeneração do realismo e do historicismo em superstições
pseudo-científicas, igualmente consumidas como respostas fáceis para problemas
complexos, nas quais a deliberação racional era substituída pela redução
fetichista. Paralelamente, na medida em que ética e estética, instâncias
complementares em função das insuficiências de cada uma, tornavam-se o
imperativo de uma intransigente moralidade individual e o modelo de
conformação universal que se excluíam mutuamente, ambos adquiriam um caráter
cruel e desumano. O primeiro, por ser um princípio de total isolamento dos
indivíduos, que condenava os menos capazes a uma humilhante frustração. E o
96
“Por la boca de un periodista, el siglo XX ha calificado de “estúpido” al siglo XIX; tal vez no
sea ilícito recordar que las dos doctrinas por las que están muriendo los hombres del siglo XX
nazismo y comunismo son invenciones del siglo XIX. El nazismo procede notoriamente de
Fichte y de Carlyle; el marxismo no carece de toda relación con Karl Marx; el estúpido siglo XIX
fue, antes de ninguna otra cosa, un siglo de libérrima discusión; no hay argumento contra él, contra
sus preferencias o instituciones, que no haya sido formulado por alguien en ese mismo siglo”.
BORGES, J. L. “Vindicación del 1900”. [Saber Vivir, Buenos Aires, Año V, n. 53, 1945]. In:
____. Textos Recobrados 1931-1955, 224-228.
97
BORGES, J. L. “ ‘Die Vorsokratiker’, de Wilhelm Capelle”. [El Hogar, 29 de abril de 1938]. In:
____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 385.
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segundo por conter uma promessa de absoluta comunhão transcendental, em cujo
âmago residia a barbárie.
A propósito, creio enfim ter reunido elementos suficientes para um
primeiro esboço, em um plano ampliado, do argumento proposto neste estudo, de
acordo com os objetivos, os instrumentos de abordagem e a delimitação
cronológica do trabalho. Neste sentido, observo que ele foi iniciado com um
enfoque sobre os escritos de juventude do autor, cuja produção ensaística de
meados da década de 20 seria uma resposta a demandas de um período de
instabilidade e transformação cultural. Textos como “El tamaño de mi esperanza”
foram interpretados na chave de sua associação a um projeto de renascimento
patriótico, de grande apelo popular, tendo na época e na figura de Rosas sua
referência mitológica. Mas um projeto incapaz de se sustentar no poder, dada a
inabilidade de seus executores e representantes. E o instante de sua derrocada, de
acordo com as reflexões feitas, seria crucial na evolução do pensamento e da
atitude de Borges. Nele, detectamos a adoção de uma postura mais distanciada em
relação aos mecanismos de estetização da vida nos subúrbios, que, por sua vez,
correspondiam ao surgimento de doutrinas que prometiam aos descontentes a
instauração de novos modelos de coesão social, em reação ao processo de
expansão e fragmentação verificado na cidade moderna.
Tal postura era devida, de acordo com a análise, à percepção de um vazio,
de um empobrecimento material e espiritual, relativo ao declínio da tradição,
fazendo com que Borges lançasse um compadecido olhar ao objeto contemplado.
E, naquele momento, notei como o recurso a autores britânicos servia a esta
mudança. Mas, sobretudo, com um efeito negativo, isto é, implicando ceticismo e
ironia quanto à substância de artificiosos constructos estéticos, ou sofisticados
sistemas filosóficos, como embasamento de atos e teorias políticas. Tratava-se de
recuperar, de um ponto de vista informado pelo legado inglês, um tom moderado
e dubitativo quanto à autenticidade destes paradigmas, mas não sem articulá-lo a
uma poética do afeto e do humor, que via um sofrimento genuíno no que se
apresentava como estilização formal.
Evoluções posteriores a 1930, em conseqüência de crises econômicas e
políticas, teriam mudado o quadro que permitia este delicado equilíbrio. À
degradação da vida pública local e internacional, seguiu-se um acirramento, por
parte de grupos sociais e nações excluídas, de demandas por uma vida mais
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autêntica, e um estado catalisador de mudanças radicais. Aos primeiros, foram
associadas, na seção anterior, as figuras do gangster e do compadrito; no que
concerne às nações, tinha destaque a situação alemã (o caso francês será
incorporado ao debate na próxima seção). Diante disto, pretendo defender que
Borges, ao fazer sua intervenção pública em 1936, recorreu novamente a valores
que associava à Grã-Bretanha, com a qual possuía vínculos familiares, e que em
determinado momento teria se tornado um exemplo decisivo em sua formação
como escritor e intelectual. E, neste caso, a idéia de “século XIX” e a de
“Inglaterra” podem ser consideradas equivalentes. Nelas, estão contidas uma
noção de senso comum como eixo sólido de intercâmbios sociais, a valorização da
política e da história, um entendimento do progresso como resultado de atos
conservadores e reformistas alternados, e a gestão da unidade nacional como uma
tarefa que exige esforços contínuos.
98
O cultivo do “pudor” e da “decência”, por
sua vez, se refere a padrões de conduta vitorianos, que pela voz de Borges
adquirem conotações políticas, intelectuais e literárias. Também uma relativa
confiança no futuro, paralela a um estado de alerta para com os perigos do
presente, é importante nesta caracterização.
Ou seja: diante das incertezas vividas na Argentina da década de 1930, ele
teria visto a necessidade e a oportunidade de restituir o curso histórico da nação a
uma trajetória interrompida, a qual implicava manobras políticas específicas,
decorrentes de um conjunto delimitado de práticas e valores. Vejo nesta atitude
um importante fator para a compreensão de sua formação como ficcionista, e que,
desde já, nos levam a buscar em seus escritos as possíveis atualizações destes
paradigmas. Em outro momento, a meu ver, a resignação com o aspecto
anacrônico ou impraticável de tais virtudes seria determinante, o que afastaria o
autor do âmbito da política, e o faria lidar com o problema no campo da
linguagem. Agora, ressalto que o gesto da restauração é característico, estando
previsto pelos valores mencionados, conforme cogitem a possibilidade de reverter
um processo de dissolução. Tratava-se de preencher novamente o vazio sobre o
qual haviam surgido os tumultos; nesta chave prosseguirá a leitura. Cabe,
portanto, recuperar alguns dos raciocínios que teriam conferido consistência
98
Para uma discussão mais completa e matizada sobre o pensamento político e o nacionalismo
latino-americano no século XIX, que ainda assim corrobora algumas destas percepções, cf.
PALTI, Elías José. El Tiempo de la Política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Siglo XXI
Editores Argentina, 2007.
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teórica às práticas em processo de desaparecimento, tanto em suas expressões
concernente ao século XIX de um modo geral, quanto às que estão mais
diretamente ligadas ao pensamento inglês.
E, assim como as idéias de Fichte e Marx teriam se tornado pontos de apoio
para experiências políticas posteriores, no século XVIII podem ser encontradas
formulações que elucidam experiências subseqüentes. Em 1784, por exemplo,
Kant publicou sua Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista
Cosmopolita, um ensaio dedicado ao problema da formação dos Estados nacionais
e de suas relações mútuas, no qual a disposição humana natural para a associação
e para a divisão, ou seja, a insociável sociabilidade do homem, era vista como
geradora de antagonismos responsáveis pela própria constituição da sociedade
civil, posto que as tensões promovidas por esta ambivalência deviam ser
resolvidas mediante o estabelecimento de acordos legais.
99
Mas, da variedade
destes acordos, surgia a questão da administração do direito entre os estados, cuja
solução seria a criação de um corpo político internacional, que fizesse valer uma
lei válida para todos, e garantisse certa segurança para uma oposição em si
saudável, e que portanto não devia ser simplesmente eliminada, sob o risco de que
a extinção do perigo comprometesse as forças necessárias a um projeto de longo
prazo.
Pois a tarefa de pacificação do planeta era de antemão impossível para a sua
geração e para as gerações próximas e, no entanto, devia permanecer como um
horizonte motivador dos trâmites presentes. Nestes, Kant já vislumbrava com
algum otimismo pequenos sinais de evolução, compreendidos em uma perspectiva
histórico-filosófica, que os inserisse no plano da natureza para o homem, isto é, no
plano da Providência, com o qual dialogavam os esforços terrenos. Deste modo,
se a confiança, como vimos na seção anterior, era para Borges um atributo das
épocas clássicas, nesta configuração residia o anúncio de um período que
mereceria tal epíteto. Mas deixaria de merecê-lo ao acreditar que a plena
realização dos desígnios de pacificação da humanidade era uma possibilidade
imediata, e não um ideal orientador de dificultosas negociações provisórias.
99
Utilizo a seguinte edição: KANT, Immanuel. Idéia de uma História Universal de um Ponto de
Vista Cosmopolita. Organização Ricardo R. Terra. Trad. Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. São
Paulo: Martins Fontes, 2003 [1784].
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126
Deste modo, é identificada, na contrariedade e complementaridade entre as
instâncias da união e da separação, a origem de um corpo político intermediário,
conformado segundo uma índole associativa, que, entretanto, podia afirmar-se
através de divisões e escolhas. A nação era a estrutura que surgia deste
mecanismo: nela os particulares estariam congregados em torno de projetos
comunitários, capazes de operar com um espectro delimitado de diferenças
internas, e em um delicado equilíbrio externo, dado pelo reconhecimento da
multiplicidade destes projetos.
Por outro lado, como notaria Carl Schmitt em O Conceito do Político
(1927), a fundação destas células devia-se a atos de violência e exclusão,
necessários para o estabelecimento da ordem constitucional, da qual estariam
proscritos os inimigos extremos do regime a ser instaurado. E que, portanto,
deviam ser compreendidos como gestos de uma competência prática, sem
nenhuma vinculação com a idéia de uma identidade nacional ontologicamente
determinada pelo solo pátrio.
100
Mas, uma vez que a ordem constitucional é criada
através de uma decisão eficaz, supõe-se que o estado de exceção possa ser
substituído por um quadro de relativa normalidade, em que as tensões
remanescentes são administradas por meios legais, sem que a supressão do
conflito torne os homens públicos inoperantes diante de novos desafios. Isto é,
sem que na verdade o estado de exceção seja completamente suspenso, e o mesmo
ato responsável pela fundação do Estado tenha que ser sempre repetido, em
múltiplas ações menores, aparentemente isoladas.
Desde logo, garantias irrealistas de estabilidade e prosperidade podem
converter-se em condições para a derrocada deste quadro, transformando gestos
confiantes em mero automatismo, e sobrepondo à decisão autoritária o seu oposto
perfeito: um liberalismo irrestrito, que se confunde com a indeterminação. Neste
caso, cria-se o risco de que as gerações nascidas em tal conjuntura passem a flertar
com universos paralelos de significação, transformando-os, em última instância,
em modelos de oposição aberta contra o lamentável estado de degradação do
legado tradicional. Sobre isto, Borges escreveu, em 1937, um prólogo para uma
100
Cf. SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Trad. Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes,
1992 [1927]. Ver também, sobre este ponto específico, FERREIRA, Bernardo. “O sujeito da
ordem”. In: ____. O Risco do Político: crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de
Carl Schmitt. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004, p. 98-128.
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127
Antología Clásica de la Literatura Argentina, em que ressaltava a “energia moral”
e o “vigor intelectual” com que os escritores nacionais do século XIX haviam
participado das decisões políticas responsáveis pela organização da sociedade e
das instituições argentinas. Sendo que, após 1880,
os pensadores podem se mover, se o desejarem, no campo da teoria pura; o artista
pode isolar-se, se o desejar, na torre de marfim. Mas os homens da década anterior,
desde a revolução de Maio até a conquista do deserto e a federalização de Buenos
Aires, tinham que pôr suas teorias à prova na ação; tinham que viver a filosofia que
professavam; a literatura intervinha nas contendas políticas. Isto confere à obra
daqueles escritores, desde Funes e Monteagudo até Avellaneda e Estrada, uma
extraordinária força vital.
101
O que conferia outro aspecto à “amenidade” com que antes foi qualificado o
século XIX. All the sad variety of hell era, inclusive, a expressão que Borges
costumava utilizar para referir-se às guerras entre unitários e federais,
esclarecendo, porém, que considerava aquele inferno uma etapa necessária para a
delimitação das fronteiras e o estabelecimento da ordem institucional no país.
Realmente ameno, então, teria sido o período que ia de 1880 e 1930, no qual a
atividade especulativa era favorecida pelas conquistas das décadas anteriores. E
era direcionada, inclusive, contra a estabilidade decorrente destas conquistas,
expressando um desejo pelo risco e pela aventura, em constructos a princípio
puramente formais, mas que se tornariam um reservatório de utopias para a
reorganização da sociedade, no momento em que esta enfrentasse uma crise mais
aguda. Muito do que Borges escreveu a partir daí sobre a geração de 20 baseava-
se em uma compreensão deste mecanismo, como na resposta redigida naquele
mesmo ano a um texto de Cambours Ocampo, que exaltava o “heroísmo” dos
jovens das revistas Proa e Martín Fierro, entre outras, as quais teriam “arrasado a
Bastilha dos preconceitos literários”, na opinião do articulista. “Não sei o que
opinarão meus companheiros de apoteose acerca desta promoção”, dizia Borges.
“Quanto a mim, posso jurar que a gratidão não exclui o estupor, a inquietação, o
101
“…los pensadores pueden ya moverse, si lo desean, en el campo de la teoría pura; el artista
puede, si lo desea, aislarse en la torre de marfil. Pero los hombres de la década anterior, desde la
revolución de Mayo hasta la conquista del desierto y la federalización de Buenos Aires, tenían que
poner a prueba sus teorías en la acción; tenían que vivir la filosofía que profesaran; la literatura
intervenía en las contiendas políticas. Eso da a la obra de aquellos escritores, desde Funes y
Monteagudo hasta Avellaneda y Estrada, extraordinaria fuerza vital”. BORGES, J. L. “Prólogo à
Antología Clásica de la Literatura Argentina [1937]” In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p.
163-165.
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128
leve remorso e a extrema incomodidade”. E, na seqüência, ele caracterizava
aquelas publicações como meios de divulgação de “alarmantes metáforas
cósmicas”, tanto em versões irreverentes, como a de Antonio Vallejo, quanto em
versões piedosas, como a que havia sido proposta por ele mesmo. Acrescentando
a seguinte nota:
Na memória, o sabor desses anos é muito variado; eu juraria, no entanto, que
predomina o agridoce sabor da falsidade. Da insinceridade, se uma palavra mais
cortês se requer. De uma insinceridade peculiar, em que colaboram a preguiça, a
lealdade, a diabrura, a resignação, o amor-próprio, o companheirismo e acaso o
rancor. Não culpo ninguém, nem sequer meu eu da época; tento apenas através
do “grande espaço de tempo” a que alude Tácito – um exercício cristalino de
introspecção.
102
A partir desta citação, enfim, a relação entre o século XIX argentino e o
papel da Inglaterra no pensamento de Borges pode ser explorada. Ela indica uma
releitura de sua obra de juventude através de sua inserção em um ambiente de
decadência, no qual a agitação e a inquietude com as transformações culturais
correntes geram falsas soluções para problemas complexos. Foi verificado como o
autor, a partir de 1930, viu esta tendência agravar-se na vida pública local,
análoga à de um contexto maior. A esta percepção, portanto, estava associado o
exercício de introspecção que o faria mudar de atitude, no sentido de corrigir
equívocos próprios, e de todo um conjunto de vetores históricos, que haviam
levado o país e o mundo à situação vivida em 1936.
Assim, enquanto a questão da autenticidade ocupava o centro dos debates
públicos na Argentina da década de 30, Borges reclamava para si o valor da
sinceridade, alcançado através de um exame autobiográfico, e da exposição de
suas conclusões, na tentativa de recuperar uma integridade pessoal, fundada em
princípios mais simples e honestos. Pois este qualificativo, associado por Lionel
Trilling à sociedade inglesa do culo XIX, pressupõe uma carência de
sofisticação, correlata à compostura e à dignidade com que são praticadas tarefas
102
BORGES, J. L. “As ‘novas gerações’ literárias”. In: ____. Textos Cativos. Trad. Sérgio Molina.
OC [edição brasileira], vol. 4, p. 300-302. “En el recuerdo, el sabor de esos años es muy variado;
yo juraría, sin embargo, que predomina el agridulce sabor de la falsedad. De la insinceridad, si una
palabra más cortés se requiere. De una insinceridad peculiar, donde colaboran la pereza, la lealtad,
la diablura, la resignación, el amor propio, el compañerismo y tal vez el rencor. No culpo a nadie,
ni siquiera a mi yo de entonces; ensayo meramente – a través del ‘grande espacio de tiempo’ a que
alude Tácito un ejercicio cristalino de introspección”. BORGES, J. L. “Las ‘nuevas
generaciones’ literarias”. [El Hogar, 26 de febrero de 1937]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4,
p. 279-281.
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129
em favor do bem comum; uma confiança na ordem das coisas, que previne o
pensamento de perder-se em sutilezas metafísicas; e a manutenção da probidade
moral, mesmo em um universo destituído de convicções religiosas, no qual a idéia
do dever possa ser mantida sem que esteja vinculada a um fim absoluto.
103
Em
sociedades em processo de abertura e expansão, tudo isto ganha um sentido de
preservação e restauração da vida comunitária, considerando-se que, para isto,
basta ser acionada a boa-vontade de indivíduos, comprometidos com a realização
de um trabalho impessoal. Ou seja, dispostos a aceitar um papel na sociedade e
executá-lo com eficiência. Enquanto o critério de autenticidade julga como falsas
as estruturas culturais, e requer sua substituição por outros modelos, o homem
sincero oferece a elas a contribuição de seus talentos e aptidões, de modo a mantê-
las e aprimorá-las para as gerações futuras.
E isto, afinal, em parte explica a postura assumida por Borges no
discurso comemorativo do quarto centenário da fundação de Buenos Aires.
Através dele, a ascensão do radicalismo, que apoiara, era vista como o resultado
do declínio da tradição responsável pela organização da república. O que
favorecia o surgimento de falsas soluções para os problemas nacionais, posto que
formuladas em um âmbito estritamente teórico. No momento em que tal
conjunção de fatores havia revelado toda sua incompetência em lidar com
situações concretas mais complicadas, no entanto, a reação autoritária teria sido
fruto do ressentimento e do ódio, cujas manifestações indicavam a mais completa
falta de racionalidade, bem como a mesma ausência de aptidão prática para
restabelecer a ordem institucional. O que criaria um panorama crescentemente
instável, no qual proliferava um idealismo de viés sistemático, articulado pela
coerência ideológica, prometendo corrigir todas as imperfeições da realidade
concreta. Àquela altura, portanto, o artigo de maior escassez no contexto político
e intelectual do país seria o discernimento das complexidades de sua situação
histórica, expresso de uma maneira desapaixonada, que, todavia, não abandonasse
a certeza de que havia valores básicos a serem preservados. Valores estes que
residiam em certa noção de nobreza, indissociável da simplicidade, tal como
Borges imaginava que haviam sido no espírito dos fundadores da pátria.
No exame de Evaristo Carriego, foi indicado que tal simplicidade relaciona-
se com uma forma específica de afeto. Deste modo, o discurso de “Tareas y
103
Cf. TRILLING, Lionel. Sincerity and Authenticity. Cambridge: Harvard University Press, 1972.
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130
destino de Buenos Aires” era finalizado com uma íntima e parcimoniosa
declaração de amor por uma cidade e sua história, que conjurava as recordações
de antepassados mortos nas guerras de independência ou sob a ditadura de Rosas,
professando o “dever da esperança” de que Buenos Aires seria capaz de reunir,
mais uma vez, as forças requisitadas para confrontar uma situação de risco. O que
era uma declaração de otimismo, uma declaração de confiança, uma secularizada
declaração de fé, segundo a qual um povo sensato e humilde enfrentaria o “rosto
desconhecido” de seu “secreto porvir”, resignando-se a ser “um entre muitos”,
isto é, recuperando o projeto de fazer da Argentina uma nação entre outras no
cenário político internacional, com toda a humildade que este propósito exigia, e
toda honra que sua realização poderia conferir.
A cortesia e o declarado pudor do discurso, portanto, não seriam somente
uma concessão ao meio em que seria divulgado; tornavam-se também
complementos retóricos da ingenuidade, que seria preciso resgatar do passado,
diante do transtorno das mais simples convicções. Uma tentativa de organizar os
tumultos com alguma clareza e lucidez. O estilo médio da oratória, conversado e
não declamado, que simulava vacilações e incertezas, correspondia à noção de um
senso comum de bases instáveis, sobre as quais, no entanto, seria possível buscar
um consenso, sem recair na pura hesitação liberal ou relativista. Neste sentido,
parece-me que a platéia de Borges era uma criação ficcional, que mesmo a
transmissão do discurso via rádio permitia. Concretamente, não era possível
imaginar sua existência nos anos 30 em Buenos Aires. Ou melhor, apenas era
possível imaginá-la, na suposição de que nos lares onde o discurso estivesse
sendo escutado sobrevivessem os homens aos quais ele se destinava. E, de modo
análogo, o próprio orador seria o produto de uma atividade de self-fashioning,
para usar a expressão divulgada por Stephen Greenblatt, com que Borges teria
buscado adaptar-se à ocasião.
104
Com isso, na teatralização da vida política de Buenos Aires daqueles anos,
marcada pela polaridade entre um autoritarismo corrompido e promessas
messiânicas de salvação nacional, Borges, por um momento, ocupou um papel
que havia sido deixado vago: o de um constitucionalismo moderado, esperançoso
na possibilidade de que o projeto de consolidação da democracia liberal fosse
104
Cf. GREENBLATT, Stephen. Renaissance Self-fashioning: from More to Shakespeare.
Chicago: The Chicago University Press, 1984.
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131
levado a cabo na Argentina, tendo em vista que suas bases haviam sido
estabelecidas com solidez no século anterior, sendo apenas necessário despertar
energias adormecidas. Incorporando então as conquistas do passado, este projeto
olhava para o futuro, mas um futuro que chegaria através do esforço reformista
contínuo, não em uma trágica redenção purificadora. O que demandava um
sentimento de relativa coesão entre campo das experiências e o horizonte de
expectativas, cujo eixo de articulação devia ser preenchido pelo diálogo constante,
que impedisse o total descolamento das duas esferas, mas as considerasse como
um conjunto maleável, que permitisse transformações graduais.
Naquele momento, contudo, o rompimento deste vínculo era
demasiadamente nítido para que sua representação tivesse condições efetivas de
repercutir na realidade. O que ameaçava converter o discurso de Borges em uma
peça meramente retórica, que “carinhosamente” falsificava a imagem da nação,
sob a forma de uma república em vias de integrar-se à civilização do ocidente,
quando o curso do presente no país, e daquela mesma civilização, apontava em
outras direções.
É provável que ele estivesse bastante consciente disso, dada a amargura e a
desesperança com que acompanhava os desdobramentos do golpe, bem como o
ânimo depressivo de suas anotações pessoais no período. Mas o dever para com a
pátria é peremptório: ele exige que tais circunstâncias sejam ignoradas. Além
disso, acho que, com toda sinceridade, Borges gostou de desempenhar aquele
papel, no momento em que foi chamado a fazê-lo. Depois de ter sua participação
na esfera pública limitada à edição de um suplemento literário sensacionalista, no
início da década, ele teria visto, no convite do intendente municipal, uma
oportunidade de encarnar o intelectual responsável, otimista e ativo, em sintonia
com as tarefas e o destino que aguardavam a nação, cujo modelo havia encontrado
em figuras do século XIX. Podemos então imaginar como ele trabalhou
cuidadosamente cada frase do discurso, de maneira a adaptá-las às modulações de
sua voz, paramentado com as vestes de antepassados ilustres, repleto de
compostura, cortesia e discernimento. Sua entrada em cena durou mesmo muito
pouco, foi apenas uma fala secundária, dirigida a um público desinteressado. Mas,
naquele dia em que foi à difusora do Teatro Colón, para proferir suas palavras ao
povo argentino, imagino que o tímido e fracassado escritor, que ele sentia ser,
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converteu-se em um homem confiante e cheio de força moral, de quem a família
podia se orgulhar.
algo de patético nisto tudo, sem dúvida. Talvez tenha sido ligeiramente
ridículo. Mas, do ângulo em que a coisa pode ser vista hoje, na insignificância do
episódio existe uma espécie de grandeza. Uma grandeza comovente.
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133
3.3
A Paz Perfeita
JIM KURRING: Sometimes people need a little help. Sometimes people need to be forgiven.
And sometimes they need to go to jail.
Paul Thomas Anderson, Magnolia
Como em outros casos analisados até aqui, e de acordo com o que pode ser
deduzido do final da última seção, o discurso radiofônico nela abordado foi mais
um infrutífero empreendimento de Borges no sentido de encontrar um
direcionamento para sua vida intelectual, profissional e literária. No primeiro
capítulo, vimos como “El tamaño de mi esperanza” pode ser compreendido como
o ponto de convergência de um projeto estético e político logo frustrado pelo
fracasso do segundo mandato de Hipólito Yrigoyen; e, da relação entre Evaristo
Carriego e a Historia Universal de la Infamia, depreende-se que a poética
compassiva encontrada por Borges na obra de Carriego tornara-se obsoleta diante
de sua percepção de um alarmante quadro social. Na medida em que este quadro
estava relacionado à debilidade moral do governo argentino no período, a
intervenção esboçada com o “Tareas y destino de Buenos Aires” tinha como
horizonte uma possível reorganização das forças locais, e a retomada de um
projeto nacional inacabado, na qual o orador estava claramente disposto a assumir
algumas responsabilidades (e eventualmente um cargo no governo). Mas, tendo
em vista que a situação política do país se transformaria com maior efeito sete
anos depois, e em um sentido muito diferente do imaginado por ele, a expressão
mais direta daquela proposta ficou relegada a um momento isolado da trajetória
do escritor, assim como não obteve grande efeito nos debates públicos de Buenos
Aires na década de 30 de um modo geral.
Devo argumentar, contudo, que todos estes passos descontínuos integram
um mesmo conjunto de fatores, cuja ressonância na formação literária de Borges
ainda estava por se fazer notar de maneira menos intermitente. Pois, até esta etapa,
o enfoque capaz de articulá-los em uma postura de maior abrangência foi apenas
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134
mencionado em casos isolados, da mesma maneira como a presença de questões
internacionais nas discussões argentinas havia sido ainda pouco comum na
primeira metade da década. Somente a eclosão da Guerra Civil Espanhola em
1936 modificou esta tendência, dadas as relações históricas entre os dois países;
Borges, no entanto, seguiu concedendo muito mais atenção a Adolph Hitler do
que ao general Francisco Franco. E a crescente importância daquele no cenário
mundial tornou suas leituras e seus escritos cada vez mais voltados para os
problemas imediatos colocados pelas demandas territoriais e ideológicas do
regime alemão. Desde logo, pretendo, em seguida, examinar a evolução do
posicionamento do autor a este respeito, em comparação com o de outros
escritores e intelectuais do período, na medida em que eventos concretos
conferiam maior significado às simpatias políticas que estes professavam. E, com
isso, será possível reformular alguns tópicos precedentes, em um novo eixo
interpretativo, de acordo com uma configuração histórica em que teorias
científicas, filosóficas e estéticas haviam adquirido enorme relevância prática, ao
evoluírem para projetos de transformação total da sociedade, sustentados por
instituições e governos beligerantes, que contavam com o apoio de agentes
culturais não apenas em seus países, mas também em muitos outros mais
afastados do epicentro de uma crise planetária.
Em resumo, se na Historia Universal de la Infamia foi constatada uma
análise crítica das pretensões de autenticidade com que operavam os personagens
do livro, depois reformulada por Borges para denunciar as imposturas do nazismo
e doutrinas congêneres, em “Tareas y destino de Buenos Aires” percebemos
vários dos elementos que associariam seu pensamento a uma forma específica
(entre outras possíveis) de reação ao fenômeno germânico. E, com os eventos
imediatamente posteriores ao pronunciamento do discurso em fevereiro de 1936,
mais uma vez a apropriação de hábitos e tendências da intelectualidade inglesa
por parte do autor iria se manifestar, paralelamente ao aguçamento de uma
sensação de urgência histórica. Mas é necessário destacar que, de modo correlato
ao verificado na seção anterior, este diálogo era feito com a tradição oitocentista,
neste caso referente ao contexto de certo equilíbrio de forças mediado pela
supremacia britânica, e que, portanto, sofrera enorme desgaste desde o fim da era
vitoriana. havia se iniciado um extenso período de incerteza quanto às
possibilidades reais de manutenção daquela ordem e daquele predomínio, no qual
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135
emergiram vários sistemas utópicos para a substituição do antigo modelo, entre os
quais o ideal de uma paz universal, de matriz francesa, que, apesar de sua total
oposição ao militarismo alemão, foi igualmente objeto de crítica e inclusive de
sátira na obra do escritor argentino.
Segundo esta teoria, o árduo caminho previsto por Kant, para que gerações
futuras pudessem viver em um mundo de tensões controladas por um corpo
político internacional, podia ser substituído por outra via de acesso, mais direta e
revolucionária, à completa pacificação da humanidade. E, neste caso, os estados
nacionais deixavam de ser instâncias intermediárias para a realização, sempre
incompleta, de um propósito final apenas pensável, tornando-se obstáculos ao
salto projetado na direção do fim da história. Nos termos deste estudo, este é um
último fator de maior repercussão a ser acrescentado ao argumento, e que
permitirá, enfim, uma abordagem prevista dos contos produzidos por Borges na
década de 1940. Mas, antes de tudo, ele requer o esboço prévio de uma
conjuntura, e a indicação de alguns dados factuais.
O quadro conjuntural se refere às circunstâncias, mencionadas, do
término da Primeira Guerra. Pois, naquele momento, a vitória dos países aliados
de maneira alguma significou um retorno à organização geopolítica anterior ao
conflito, até mesmo porque as condições impostas aos derrotados agravariam uma
situação de desequilíbrio, que este mesmo arranjo não comportava. De acordo
com esta perspectiva, a relativa pax Brittanica do século XIX teria sido construída
sobre bases instáveis, e constantemente negociadas, as quais evoluíram segundo
uma efetiva identificação dos interesses comerciais do império com os de outras
nações. E requeriam, para sua manutenção, alguma reciprocidade e auto-sacrifício
da parte da instância hegemônica. Neste cenário, o recurso à guerra tinha sua
legalidade reconhecida, dada a segurança dos britânicos em seu poder militar,
enquanto, ao mesmo tempo, era evitado, sempre que possível, por práticas que
atenuavam as tensões latentes, considerando-se os benefícios comuns decorrentes
da preservação da paz. Após 1918, porém, o recurso à guerra foi considerado
ilegítimo pelo direito internacional, o que era uma tentativa fantasiosa de
manutenção do status quo, pois tornava o comprometimento com a paz uma
exigência moral descolada da realidade de cada país. Principalmente a daqueles
que viram neste preceito uma simples imposição formal, e perceberam a
fragilidade de um sistema que precisava de artifícios legais para se manter.
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Paralelamente, segundo o balanço do historiador e diplomata E. H. Carr, teria
surgido, no âmbito acadêmico inglês do entre-guerras, uma utopia liberal
internacionalista, segundo a qual uma harmonia de interesses”, dada a priori,
seria suficiente para garantir a continuidade da expansão verificada nas cadas
anteriores. O que convertia um dado concreto e variável em uma peça teórica
estática, em absoluto desacordo com a necessidade de identificar conflitos
potenciais, e buscar para eles soluções negociadas.
105
Assim, uma crise de longa duração se instalava para as democracias
ocidentais, em grande parte por causa da incapacidade destas de agir com
competência localizada, para resolver problemas pontuais. Neste sentido, pode-se
dizer que uma maior insegurança em relação à própria vitória determinou os
termos do Tratado de Versalhes, cujo objetivo era criar um ambiente de absoluta
estabilidade, através da eliminação de qualquer ameaça à ordem vigente, o que
implicava o rebaixamento oficial de uma grande potência, a Alemanha, à condição
de agente passivo dentro do jogo político internacional. Isto, contudo, teve como
resultado a instalação da desacreditada e caótica República de Weimar, na qual
proliferavam os apelos messiânicos ao orgulho patriótico ou racial, entre eles o do
círculo de conspiradores fanáticos reunidos em torno de Hitler. Este pregava
então uma doutrina visionária de reorganização da comunidade germânica, que
previa o expurgo dos judeus, acusados de serem os responsáveis pela catástrofe
nacional, e uma expansão territorial ilimitada, dada a necessidade de conquista de
“espaço vital” a ser ocupado pela raça ariana. Portanto, quando chegou ao poder,
em 1933, Hitler já havia expressado claramente muito do que dele se podia
esperar nas ginas do Mein Kampf e em outros panfletos. Ainda assim, persistia
o argumento diplomático, por parte daqueles que preferiam evitar o
enfrentamento, de que estes textos expressavam ambições demagógicas e
retoricamente formuladas, as quais seriam naturalmente restringidas em um
governo nacional-socialista.
Além disso, a mesma crise econômica que agravou os problemas sociais
alemães, e favoreceu a ascensão nazista, fazia com que os líderes de outras nações
estivessem naquele período muito mais preocupados com problemas internos do
105
Cf. CARR, E. H. Vinte Anos de Crise: 1919-1939. Uma introdução ao estudo das relações
internacionais. Trad. Luiz Alberto Figueiredo Machado. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2001 [1939].
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137
que com ameaças estrangeiras. Esta situação foi modificada com um
pronunciamento de 1935, em que Hitler anunciava o rompimento do Tratado de
Versalhes, com planos de constituição de uma aeronáutica e expansão do exército,
ao que se seguiu a promulgação das Leis de Nuremberg, que retiravam todos os
direitos civis dos judeus, e os reduziam à condição de excluídos sociais. A partir
daí, ficava explicitada a principal novidade da política interna alemã, muito mais
fundamentada na questão da raça do que qualquer projeto nacionalista do século
anterior, quando certa diversidade era admitida, através da assimilação, no interior
das fronteiras de cada país, e o anti-semitismo podia ser um sentimento freqüente,
mas destituído de sistematicidade ideológica.
Quanto à política externa, o anúncio questionava de maneira bastante direta
o pressuposto da inviolabilidade dos tratados, contando com o reconhecimento,
então razoavelmente generalizado, de que o acordo específico com que ele rompia
era insustentável. Da mesma maneira, ficava exposta a ineficácia da tentativa de
manutenção da paz por meios legais, bem como o caráter fictício da doutrina da
harmonia de interesses econômicos, construções jurídicas ou teóricas incapazes de
resistir aos fatos que os contradiziam.
De modo que, àquela altura, o panorama mundial apresentava uma clara
distinção entre potências autoritárias agressivas, como a Alemanha, a Itália e o
Japão, que pretendiam desafiar ou mesmo destruir a ordem internacional,
possuindo para isso grande sustentação popular, e os agentes que seriam
responsáveis pela sua manutenção, entre os quais se destacava a Grã-Bretanha, a
maior interessada na preservação do modelo estabelecido durante o século XIX.
Não obstante, o período de inércia, incerteza e confusão que marcou as primeiras
reações britânicas às manifestações de hostilidade do Terceiro Reich estendeu-se
até 1938, quando foi assinado o Acordo de Munique, uma última e talvez
desesperada tentativa do primeiro-ministro Neville Chamberlain de “apaziguar”
Hitler. Com isto, era também protelado um dispendioso projeto de rearmamento
inglês, que não contava com o apoio da opinião pública, e teria o efeito indesejado
de despertar as lembranças da guerra anterior. Mas esta postura comprometia a
confiança ainda existente no papel de “polícia do mundo” atribuído ao exército e,
sobretudo, à marinha da Inglaterra, antes a mais sólida representação do poder
conservador imperial, cuja simples disponibilidade para o combate ajudava a
evitar turbulências de maior escala.
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Daí o entendimento de que as negociações então empreendidas eram sinais
de debilidade, e não mecanismos de troca de exigências e concessões, sustentadas
por uma força concreta, cujo uso era preferencialmente evitado. O que teria
levado alguns agentes políticos e intelectuais ingleses a reclamar um
posicionamento mais claro de seu país, porém sem muito sucesso em um primeiro
momento. Enquanto isso, a França adotava uma conduta que pouco fazia por
constranger as pretensões alemãs, e que será abordada mais adiante. Já os Estados
Unidos mantinham uma postura isolacionista, que só seria revertida em condições
extremas, criando um panorama favorável ao prosseguimento das conquistas
territoriais previstas por Hitler, sem que isto tenha passado despercebido por
diversos observadores em várias partes do globo.
Neste ponto, pode ser retomado o objeto desta pesquisa. Pois, para os
agentes democráticos ou liberais que compreenderam com alguma antecedência as
implicações práticas do ideário nazista e se afligiam com a constatação, por
apego a privilégios estabelecidos, mero conformismo ou em função de um sincero
comprometimento intelectual –, este era um quadro que motivava sérias
apreensões. Na sociedade argentina, como assinalei no final da primeira seção do
capítulo inicial, os editores da ressurgida revista Nosotros, Alfredo Bianchi e
Roberto Giusti, encontravam-se nesta situação. Por isso, em março de 1936, ainda
antes da ocupação militar da Renânia pelo exército alemão, a direção da revista
fez circular, entre intelectuais argentinos, uma pesquisa interrogando as opiniões
de cada um sobre as possibilidades de que a América, e mais especificamente a
Argentina, seguissem um curso civilizatório e progressista, diante do naufrágio do
velho mundo, imaginado como “uma catástrofe que só admite comparação com a
ruína do Império Romano”.
106
Sob a ressonância igualmente apocalíptica do título
“América y el destino de la civilización occidental”, as respostas recebidas foram
publicadas em sucessivas números da revista, sendo que a de Jorge Luis Borges
apareceu já na edição de abril daquele ano.
É um dos textos mais sucintos entre os dedicados às perguntas de Bianchi e
Giusti. A princípio, uma breve passagem sobre os Estados Unidos, em que
Borges considera injustificada a aflição dos editores em relação ao destino dos
norte-americanos, que possuiriam recursos materiais e espirituais próprios para
106
BIANCHI, Alfredo y GIUSTI, Roberto. “Encuestas de Nosotros”. Nosotros, segunda época,
año I, n. 1, tomo I, Buenos Aires, abril de 1936, p. 40-1.
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139
sobreviver a uma eventual calamidade européia. Mas o caso da Argentina era
visto em outra perspectiva. Isto porque, já nesta época, o autor pensaria de acordo
com o que seria exposto em um artigo sobre Max Nordau, de 1951, no qual
afirmava que o cidadão argentino, por prescindir de uma tradição consolidada,
estava livre para ser “voluntariamente francês, voluntariamente inglês,
voluntariamente italiano, ou o que seja”. Ao mesmo tempo, na resposta a
Nosotros, ele ironizava a acepção de uma “civilização ocidental” que fosse um
conjunto fechado de práticas e produtos culturais, qualificando-a como “uma
desordem de ritos, inibições, lembranças, habilidades e hábitos”, o que lhe
permitia fazer distinções entre as variantes que integravam esta desordem, tendo
como termo de comparação as diferentes inibições, recordações, aptidões e
hábitos de cada nacionalidade. Deste modo, Borges aproveitou a oportunidade
para falar sobre suas próprias afinidades, em relação aos diferentes exemplos de
conduta que identificava como disponíveis para o sujeito político sul-americano,
enfatizando, por um lado, seu respeito à tradição britânica, e, por outro,
elaborando uma crítica da alternativa francesa, o que se tornaria freqüente em sua
obra a partir de então.
“O inglês pode dizer: My country, right or wrong, mas não identifica os
interesses do universo com os do Império Britânico”, escrevia então Borges. “O
francês, por outro lado, é o homem que identifica o interesse do universo com o
da sous-prefecture”. Daí a contraposição entre uma atitude declaradamente
nacionalista, ciente de sua inserção em um mundo de desacordos e embates entre
variantes do mesmo sentimento, e uma perspectiva visionária, que eliminava as
fronteiras deste mundo, em favor de um ideal de perfeição que não admitia
limitações e divisões terrenas. Diante da questão colocada pelos editores de
Nosotros, está claro que, para ele, a primeira destas posturas poderia dar uma
resposta mais efetiva à ameaça alemã, por mais que estivesse ela própria sujeita ao
um processo de declínio, pois suas forças poderiam ser restauradas, à medida das
necessidades presentes. Enquanto a segunda seria marcada por excessos de
sofisticação oratória, que ocultavam uma tibieza há mais tempo enraizada na
cultura parisiense. O tema é relevante por nos fornecer um valioso indício de
como o primeiro conto mais conhecido de Borges “Pierre Menard, autor del
Quijote” – passou a ser forjado a partir de meados da década, e pode ser resumido
na constatação de um caráter idealista e abstrato que, associado à cultura
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140
francófona, seria considerado, por alguns observadores, em grande medida
responsável pelas condições que o regime hitlerista encontrou para fazer seu
primeiro ataque decisivo na frente ocidental. Para desenvolver este ponto, será útil
resgatar a narrativa de um episódio ocorrido em Buenos Aires, também em 1936,
embora Borges nele não tenha participado diretamente.
Em setembro daquele ano, a capital argentina sediou um congresso
convocado pelo Pen Club International, a associação de escritores fundada no
início do século pelo escritor inglês H. G. Wells, entre outros, para defender a
liberdade de expressão de maneira coordenada em diferentes partes do globo.
Com os acontecimentos que vinham então sendo motivo de preocupações a este
respeito, o encontro tinha sido marcado pela associação em caráter extraordinário,
para criar a oportunidade de uma discussão mais ampla, sobre a disseminação do
fascismo e suas implicações para a atividade literária. Ironicamente, contudo, o
evento não contou com a presença do próprio Wells, talvez já descrente das
possibilidades reais de um entendimento transnacional entre os escritores, e
obtendo uma recepção pouco atenta às suas alegorias de uma possível expansão
mundial da ordem totalitária (este tópico está reservado para o capítulo seguinte).
O evento tampouco atraiu figuras importantes como George Bernard Shaw e
Thomas Mann, que em geral alegaram razões particulares para não comparecer.
Lideradas respectivamente por F. T. Marinetti e Jules Romains, as
delegações italiana e francesa, que mantinham maior contato com os círculos
intelectuais portenhos, tiveram assim a oportunidade de ocupar o palco armado
para o congresso, por mais paradoxal que fosse o papel do primeiro na discussão a
ser feita. a presença de Marinetti seria suficiente para afastar Borges, cuja
notória repulsa ao líder vanguardista remontava aos anos 20, sendo devida não
apenas a questões estéticas e políticas, como também a uma diferença radical de
temperamento, dados os extremos de parcimônia e histrionismo, ou de
acanhamento e audácia, a serem detectados em ambas as personalidades (o
argentino sempre tivera dificuldades para falar em público, o que ficaria ainda
mais evidente diante da agitação e da desenvoltura de Marinetti). Mas a omissão
de Borges pode também ser explicada por todo um conjunto de fatores que faria
do encontro um verdadeiro espetáculo de massas, sob a forma de uma festa de
congraçamento entre artistas. Nem por isso, o que nele ocorreu deixa de ser
bastante elucidativo para os propósitos deste trabalho. Poucas semanas depois de
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141
terminarem as atividades, Roberto Giusti publicou na revista Nosostros uma
vívida descrição dos debates, que é hoje um dos melhores registros disponíveis do
congresso. Ele merece uma paráfrase detalhada.
107
O texto de Giusti é perpassado por um sentimento de júbilo com o fato de
que um episódio de tal significação tivesse ocorrido em Buenos Aires, na medida
de seu contentamento com a conciliação final entre os escritores, que lhe parecia
auspiciosa, quanto às perspectivas da paz entre os povos. Mas ele não deixa de
registrar, com algum estranhamento, certas peculiaridades do congresso. Entre
elas, a constituição do público, em que viu meninas enfatuadas atrás de
autógrafos, políticos em busca da construção de uma imagem pública, amantes de
espetáculos circenses, e uma serena evangelista hindu. Todos eles, contudo,
“possuídos de verdadeiro interesse e emoção desbordante”, o que teria ficado
explícito na participativa atenção que concederam à polêmica instalada entre
franceses e italianos. Esta se iniciara logo na primeira sessão, com o veto dos
primeiros à presidência pretendida por Marinetti, prosseguindo com o discurso de
abertura de Jules Romains. Teria ocorrido então um momento de “grande beleza e
dramaticidade”, segundo Giusti, em que o antagonismo democracia versus
ditadura era proclamado com a subseqüente expressão do sonho de “uma
liberdade iluminada pelo espírito”, que fizesse vibrar, harmonicamente, na alma
de todos, o desejo da paz mundial. Para ilustrar suas impressões, o cronista
acrescenta ainda a citação de um poético artigo que o próprio Romains publicou
depois em La Prensa. Neste, o francês lembrava a reação imediata de alegria e
gratidão do público quando ele declarou sua crença na causa da emancipação
humana enquanto Marinetti, nas palavras do editor de Nosotros, se remexia
impaciente em sua cadeira, vermelho de cólera reprimida.
Mas, como ficou assinalado, no banquete final foi repartido “o pão da
amizade entre os inimigos da véspera”, e entre soluços e beijos”, mais uma vez
nas palavras de Roberto Giusti, o congresso teria alcançado um saldo favorável
para um projeto maior de conciliação entre as nações. “Comédia literária?
Perguntar-se-á algum pessimista (...) Meu parecer é que foram satisfeitas
necessidades políticas e diplomáticas superiores aos sentimentos pessoais dos
escritores”, afirmava então o editor. Ele diz ainda que esta intenção unificadora já
107
GIUSTI, Roberto F. “El Congreso de los P.E.N. Clubs. Comentario a puertas cerradas”.
Nosotros, segunda época, año II, tomo II, n. 6, setiembre de 1936, p. 48-64.
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142
estivera presente desde o começo do encontro, quando foi decidido que uma
mensagem de Wells, expressando a posição de escritores britânicos, não seria lida
em público. E o mesmo ânimo altruísta teria motivado outras falas “sutis e
graciosamente ditas”, como um discurso de Victoria Ocampo, “alta expressão da
cultura feminina”, que com “mente alerta”, “mentalidade vibrante”, e “fineza e
sentimento da hora grave que atravessamos”, buscava elucidar o tema da função
do escritor na sociedade.
Em meio a este trecho, porém, uma voz dissidente é mencionada no relato
de Giusti. Este então recorda que o “delegado Laxness”, da Islândia, sem
nenhuma elegância ou habilidade, teria qualificado o conjunto da discussão como
um amontoado de “tonterías metafísicas”. Então o texto prossegue:
Bizantinismos? Teologias? quem diga: enquanto fuzilamentos na Espanha e
a ameaça de uma espantosa guerra universal, estamos aquí falando do porvir da
poesia! Eu lhes respondo que são unilaterais, incapazes de ver mais do que um
aspecto das coisas, de conciliar em sínteses superiores momentos distintos da
mente e da ação; digo-lhes que negam o espírito e sua função essencial.
108
O que era mais um indicativo da adesão do articulista ao modo como o
pensamento francês, tal como representado no congresso, imaginava uma
superação das dificuldades presentes. Apenas uma síntese superior, que
acarretasse uma transformação radical da sociedade planetária em um todo
homogêneo e pacificado, seria capaz de apresentar-se como uma solução
definitiva para o ciclo beligerante no qual o mundo se enredara. E esta síntese
requeria, para sua formulação, o uso das mais elevadas faculdades do espírito,
uma poética que alcançasse a imagem modelar e inspiradora da humanidade
redimida. Mas, diante do nível de abstração com que estas nteses eram
imaginadas, um dos propósitos desta etapa do trabalho é assinalar que, caso fosse
obrigado a tomar partido nesta discussão, Borges muito provavelmente estaria ao
lado de Halldór Laxness, um escritor socialista islandês, que viria a ganhar o
prêmio Nobel de literatura de 1955.
108
“Bizantinismos? Teologías? Hay quien dice: Mientras se fusilan en España y amenaza una
espantosa guerra universal, venimos a hablar del porvenir de la poesía! Yo les contesto que son
unilaterales, incapaces de ver [más que] un solo aspecto de las cosas, de conciliar en síntesis
superiores momentos distintos de la mente y de la acción; les digo que niegan el espíritu y su
función esencial”. GIUSTI, Roberto F. El Congreso de los P.E.N. Clubs. Comentario a puertas
cerradas”. Nosotros, segunda época, año II, tomo II, n. 6, setiembre de 1936, p. 48-64.
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143
Mas, felizmente, não será necessário operar com uma diferença tão
fervorosa de pontos de vista, o que permite a percepção de nuances e movimentos
dubitativos nos escritos de Borges. Neste sentido, a publicação de Historia de la
Eternidad, também em 1936, marcou o fim de um período em que o escritor
dedicava-se com mais freqüência à composição de ensaios de natureza
estritamente filosófica ou metafísica, cuja motivação era atribuída a um gosto
pessoal, e declaradamente anacrônico, por polêmicas escolásticas, retendo muito
de sua admiração pelo estilo de Macedonio Fernández, e sem ter nenhuma
perspectiva de sucesso editorial (consta que o livro vendeu exatos 27 exemplares
nas semanas posteriores ao seu lançamento). Borges abandonaria estes exercícios
em parte porque, sendo praticados como formas de divertimento, eles ainda assim
mobilizavam energias com as quais o autor deixaria de contar durante uma crise
pessoal e profissional, de que tratarei mais adiante.
Mas também seu entendimento das complicações européias deve ter
contribuído para o redirecionamento de suas atenções. Decerto, na resposta à
pesquisa dos editores de Nosotros sobre a iminência da guerra, ele dava ainda
pouca credibilidade a perspectivas muito angustiadas com o futuro próximo,
embora fizesse notar seu conhecimento da opinião menos tranqüilizadora de H. G.
Wells. Já em dezembro, portanto três meses depois de realizado o congresso do
PEN Club, uma resenha de sua autoria sobre um livro recente de Bertrand Russel
não continha nenhuma ressalva à constatação de que “uma guerra internacional
não é menos inevitável que horrível, e está muito próxima”. Através de outros
escritos congêneres surgidos a partir daí, portanto, cabe examinar como ele se
inseriu no debate do qual esteve ausente na ocasião do encontro de escritores.
Neste sentido, será útil isolar suas referências a intelectuais que personificavam
posições diferentes naquele contexto.
Quanto aos italianos, em primeiro lugar, é preciso reafirmar que as idéias e
ações do regime de Mussolini tinham grande repercussão na sociedade argentina.
Um vínculo cultural reafirmado pela imigração favorecia este movimento,
incluindo a criação de órgãos de imprensa sob a orientação direta do governo
italiano, voltados para a constituição de grupos fascistas em Buenos Aires.
109
Assim, em maio de 1936, com a tomada do palácio do governo etíope por
Mussolini, uma multidão tomou o centro da capital argentina, comemorando o
109
Cf. PRISLEI, Leticia. Los Orígenes del Fascismo Argentino. Buenos Aires: Edhasa, 2008.
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144
feito com uma retórica exaltada e confiante na “necessidade da Causaque ele
acionava.
Borges, no entanto, nunca havia dado maior crédito às eventuais conquistas
ou aos fundamentos intelectuais desta causa, e considerava apenas ridículas as
expressões artísticas a ela vinculadas, o que incluía as ostentosas e espetaculares
celebrações do regime, que mencionou ao resenhar uma enciclopédia forjada para
a pedagogia da cultura italiana” em 1938.
110
Pouco antes, já havia se referido ao
epíteto de “guarango eloqüente” atribuído a Gabrielle D’Anunnzio por G. A.
Borgese, escritor italiano radicado nos Estados Unidos, que escrevera uma análise
da ascensão do fascismo em seu país natal.
111
E, em seguida, a respeito de
Marinetti, Borges observou que era “quiçá el ejemplo más célebre de esa categoria
de escritores que viven de ocurrencias, y a quienes rara vez se les ocurre algo”.
112
Portanto, o grandioso rissorgimento de Roma, anunciado por Mussolini em suas
aparições públicas, era para ele o triunfo de um simulacro de extremo mau-gosto,
marcado por uma inaptidão corrupta que, afinal, seria ela própria responsável pela
deposição do duce durante a guerra. Enquanto a atitude dos escritores
comprometidos com o regime não passava de mera agitação vanguardista, decerto
causa de certa repugnância, mas destituída de obras ou argumentos que
merecessem crítica e refutação. Ou seja: em nenhum outro caso estava tão claro o
que havia sob os tumultos.
Por outro lado, Borges concedeu maior atenção à posição de interlocutores
alemães que, por razões claras, não haviam comparecido ao congresso, mas
constituíam uma vertente de certa relevância para a compreensão dos
fundamentos teóricos do regime nazista, e seriam seus possíveis representantes
em um evento como aquele. Neste caso, ganhava destaque a obra de Ernst Jünger,
analisada mais recentemente por Russel Bermann como um locus exemplar da
convergência de estética e política no modernismo alemão.
113
Borges, por sua vez,
resumiu um dos principais raciocínios do autor no seguinte trecho:
110
BORGES, J. L. “Enciclopedia Práctica Bompiani”. [El Hogar, 28 de octubre de 1938]. In:
____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 424-5.
111
BORGES, J. L. “De la vida literaria” [El Hogar, 4 de febrero de 1938]. In: ____. Borges en El
Hogar, p. 93.
112
BORGES, J. L. “De la vida literaria” [El Hogar, 4 de marzo de 1938]. In: ____. Textos
Cautivos. OC, vol. 4, p. 371.
113
Cf. BERMAN, R. “Written Right Across Their Faces: Leni Riefenstahl, Ernst Jünger, and
Fascist Modernism”. In: ____. Modern Culture and Critical Theory: art, politics, and the legacy of
the Frankfurt School. Madison: The University of Winscosin Press, 1988, p. 99-117.
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145
Para Ernst Jünger, a guerra não é um instrumento: é um fim. É a experiencia mais
intensa de que o homem é capaz; é uma atividade desinteressada com a arte ou a
religião (...) “A capacidade de ensimesmar-se na guerra como no céu estrelado ou
em uma música – escreve Jünger – foi concedida a muito poucos. Os outros, os que
não sentem na guerra a afirmação, e sim a própria dor, estes a vivem como
escravos, não como homens”.
114
Poucos meses depois, referindo-se a Der Totale Krieg, de Erich Ludendorf,
ele apresentava uma tese resultante deste juízo: a de que, sendo a guerra a mais
elevada expressão da vontade vital dos povos, as instituições políticas de uma
nação deviam estar subordinadas às instâncias militares, que podiam ignorar as
finalidades externas à própria mobilização bélica, constituindo assim uma esfera
autônoma, e destituída de qualquer entrave ao seu pleno desenvolvimento.
115
De
acordo com esta conclusão, a expansão territorial do Terceiro Reich deixava de
ser um objetivo cujo alcance dependia da força do exército germânico, para
tornar-se uma conseqüência das operações necessárias à manutenção do
dinamismo desta força. E, por este motivo, o iminente conflito tinha outro aspecto
em relação a eventuais embates entre nações verificados anteriormente, quando a
tentativa de ampliação de fronteiras determinava o uso do poder militar, e não o
contrário.
Deste modo, em seu radicalismo posto que assentada em um princípio
vitalista elementar –, tal formulação teórica excluía qualquer justificativa da luta
que estivesse sujeita a contingências históricas e interesses materiais, em favor de
uma concepção purificada das razões para lutar. A guerra tinha como única
motivação a própria guerra. Ou, como escreveu Jünger: “A questão de saber em
que século se luta, por que idéias e com que armas, desempenha um papel
secundário”. Em sua resenha, Borges observou como esta distinção reproduzia o
modelo da experiência estética, e o dilatava de tal modo que ele não mais estaria
restrito a momentos isolados do cotidiano, mas seria responsável pela organização
da vida em sua totalidade. em 1930, Walter Benjamin havia feito o seguinte
114
“Para Ernst Jünger, la guerra no es un instrumento: es un fin. Es la experiencia más intensa de
que el hombre es capaz; es una actividad desinteresada como el arte o la religión (…) La facultad
de ensimesmarse en la guerra como en el cielo estrellado o en una música escribe Jünger ha
sido concedida e muy pocos. Los otros, los que no sienten en la guerra la afirmación, sino el
propio dolor, ésos la viven como esclavos, no como hombres”. BORGES, J. L. “‘Der Kampf als
Inneris Erlebnis’, de Ernst Jünger”. [El Hogar, 1 de octubre de 1937]. In: ____. Borges en El
Hogar, p. 70-71.
115
BORGES, J. L. “ ‘Der Totale Krieg’, de Erich Ludendorff. [El Hogar, 21 de enero de 1938]. In:
____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 360-1.
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146
comentário sobre a última frase citada de Jünger: “Essa nova teoria da guerra, que
traz escrita na testa sua origem na mais furiosa decadência, não é outra coisa do
que uma desinibida extrapolação para temas militares da teoria da art pour l’art”.
E, naquela ocasião, o ensaísta tampouco deixou de notar como outra postura, na
aparência totalmente contrária à de Jünger, tinha suas origens no mesmo
fenômeno, postulando a equivalência do militarismo alemão e de ideais pacifistas
estereotipados.
116
Este é o ponto de maior importância para a argumentação desta etapa do
trabalho. A guerra pela guerra, a paz pela paz: no momento em que era requerido
do artista o comprometimento com uma das alternativas do cenário político
internacional, e a completa substituição dos parâmetros sociais recebidos do
século anterior parecia ser um curso irreversível, estes se tornariam paradigmas
adequados aos hábitos do expressionismo alemão e do simbolismo francês (em
um desdobramento geral, cujos casos particulares implicam nuances e exceções).
Sem dúvida, existiam diferenças entre os dois pólos, particularmente no que se
refere à relevância de cada um para a ação dos governos a que estavam
vinculados, embora a indiferença do estado francês à crescente ameaça alemã
possa ser também creditada ao ambiente cultural em que o pacifismo proliferava.
E, na visão de Borges, creio que as semelhanças entre ambos vieram a ser muito
mais notáveis, a tal ponto que eles se converteriam em expressões intercambiáveis
de desespero e entusiasmo.
Pois, em ambos os casos, o desejo de mudança podia ser creditado a um
descontentamento com a situação presente que somente admitia soluções
extremas, sendo que, ao feroz ressentimento alemão, correspondia a sensação de
fastio e declínio longamente experimentada na cultura francesa, após a derrota
para os britânicos em 1815. De maneira que, ao plebeísmo” britânico, segundo a
expressão de Nietzsche, ambos contrapunham aspirações aristocráticas, que
demandavam uma retórica de estilo elevado para sua divulgação, tivessem elas
como referência uma nobreza guerreira e purificada da raça, ou os padrões de
refinamento e sofisticação intelectual de uma classe ociosa. As duas linhas de
pensamento convergiam também em um universalismo visionário, cujas raízes
116
BENJAMIN, W. “Teorias do fascismo alemão. Sobre a coletânea Guerra e Guerreiros, editada
por Ernst Jünger [1930]”. In: ____. Obras Escolhidas. Volume 1: Magia e Técnica, Arte e Política.
Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 61-72.
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ontológicas ou projeções metafísicas desconheciam os limites terrenos das
unidades políticas tradicionais; e nisto residia uma possibilidade de síntese das
dualidades que teriam atravessado a experiência do homem moderno, capaz de
restituí-lo a uma comunidade orgânica, ou fundar uma etérea associação de
indivíduos íntegros e livres, cujas imagens podiam ser contempladas na obra de
arte.
Com isso, ficava comprometida a “secular amizade entre as letras da
Inglaterra e da França”, que Borges ilustrou com a admiração de Shakespeare por
Montaigne, e a influência de Jonathan Swift sobre Voltaire.
117
Junto a uma
afirmação de Charles Morgan, por ele posteriormente citada, segundo a qual “a
França é uma idéia necessária à civilização”, a repetida menção a estes autores em
sua obra relativizava as tendências “francófoba” de Borges, indicada por Juan
José Saer.
118
Mas, paralelamente, esta inclinação era corroborada tanto por dados
idiossincráticos (sua indiferença aos encantos de Paris na primeira viagem à
Europa, por exemplo), quanto pelo entendimento de que a tradição ensaística do
sens commun francês havia sido substituída por outro modelo, de traços muitos
distintos, cujos rigores neoclássicos não admitiam as flutuações, e os movimentos
hesitantes, de uma prosa deliberativa.
119
“Basta que um homem de letras francês professe uma doutrina para que a
aplique até o fim, com uma espécie de feroz probidade”, Borges escreveria sobre
Racine e Mallarmé. Mas, podemos acrescentar, mesmo no interior desta linhagem
um processo de declínio podia ser percebido. Pois, se no primeiro caso, a figura
trágica do rei, colocada acima das minúcias cotidianas e da balbúrdia histórica, era
um artifício estilizado que se adequava à noção da corte absolutista como uma
obra de arte social, no segundo o virtuosismo técnico e a elegância estilística
desembocavam apenas na criação de complexas e extravagantes engenhocas
literárias, ou na “metódica e ansiosa elaboração de obras de aparência caótica”,
cujo único propósito era o assombro e a simulação de uma “ordem superior” a ser
desvelada pela crítica. Assim, ao reassumir um viés político, instigada pela
orientação pacifista de livros como Au-dessus de la mêlée (1915), de Romain
117
BORGES, J. L. ‘Ce Vice Impuni, la Lecture’, de Valéry Larbaud” . [El Hogar, 19 de febrero
de 1937]. In : ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 276-277.
118
Cf. SAER, J. J. “Borges francófobo[1992]. In: ____. SAER, J. J. El Concepto de Ficción.
Buenos Aires: Seix Barral, 2004, 30-37.
119
Para uma análise da literatura francesa com ênfase na idéia do sens commun e nos métodos
ensaísticos, ver Marc Fumaroli, La Diplomatie de l’Esprit. Paris: Hermann, 1994.
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Rolland, ou voltando-se para a defesa de valores atemporais como a Justiça e a
Liberdade, na linha do La Trahison des clercs, de Julien Benda (1927), tudo o
que a poesia francesa alcançaria produzir, de acordo com estas reflexões, seriam
magníficas construções retóricas totalmente dissociadas de uma realidade menos
perfectível do que a linguagem. um comentário de Borges sobre um poema de
Jules Romains que serve à discussão do problema.
A resenha de homme blanc foi publicada na revista El Hogar em
setembro de 1937. Nela, Borges antes de tudo saúda Romains por ter sido “o
demolidor de Felippo Tomaso Marinetti no Congresso dos PEN Clubs”, episódio
cuja notícia certamente lhe causara enorme satisfação. No entanto, a respeito da
obra comentada, e caracterizada como uma epopéia, a resenha não apresentava o
mesmo entusiasmo. Alguns versos específicos são citados:
Fin de toute oppression. L´homme délivre de l´homme.
Régne du droit sur la force, et du travail sur l’argent.
Pleine respiration de la foulle intelligente.
120
E Borges lamenta que o poeta tenha recaído na mera oratória. Uma oratória
sublime, sem dúvida alguma, que com as mais nobres intenções vislumbrava um
mundo harmônico, justo e belo. O problema era que, nas alturas a que o frenesi
visionário elevava o aedos, o plano sub-lunar tornava-se um lugar de paixões tão
pobres e mesquinhas, que sequer merecia ser defendido daqueles que igualmente
o rejeitavam, mas de maneira mais contundente e destrutiva. Além disso, fica a
impressão de que os horizontes contemplados por Romains o impediam até
mesmo de ver o que se passava ao lado.
Outra fonte teórica do pensamento pacifista era a doutrina da não-resistência
ao mal, formulada pelo conde Leon Tolstoi no final do século XIX. Esta pregava
o abandono de um mundo corrompido pelo dinheiro e pela falsidade, e a fundação
de novas comunidades, em que o indivíduo poderia reencontrar sua verdadeira
natureza, e exercer as virtudes da castidade e do intelecto. Curiosamente, o
escritor britânico Aldous Huxley foi o principal reformulador destas reflexões no
período do entre-guerras, em trabalhos como Ends and Means (1937), no qual
combatia a insensatez da guerra, evocando o “fundo nativo de bondade” e o “amor
120
Apud BORGES, J. L. ‘L´Homme Blanc’, de Jules Romains”. [El Hogar, 17 de septiembre de
1937]. In : ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 337-8.
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149
pela justiça” de todos os homens. Borges comentou estes textos elogiando os
raciocínios lógicos e perfeitamente encadeados de Huxley, porém sem expressar
uma aprovação mais ampla de suas idéias. E, ao discutir a obra do autor de um
modo geral, ele sentenciou: “A fama de Aldous Huxley sempre me pareceu
excessiva. Entendo que sua literatura é daquelas que se produzem com
naturalidade na França e com algum artifício na Inglaterra (...) Parece-me que
Huxley está sempre falando com uma voz emprestada”.
121
Algo semelhante
poderia ser dito do galês Bertrand Russell, também um brilhante artífice de
raciocínios lógicos, e autor de tratados sobre geometria e matemática, cuja análise
da ascensão do fascismo foi citada por Borges em mais de uma ocasião, mas sem
que as deduções pacifistas de suas reflexões fossem por ele acatadas.
De maneira que o escritor argentino parece ter transitado entre leituras
diversas, em busca de um ponto de apoio para seu posicionamento. As opiniões
provenientes da literatura francófona lhe pareciam insatisfatórias; e, conforme
escritores britânicos aderiam a uma linha de pensamento similar, eles perdiam os
atributos capazes de apelar às suas previamente adquiridas simpatias anglófilas.
Em G. K. Chesterton, porém, ele encontraria um interlocutor talvez mais
apropriado às suas inclinações, que considerava todo equilíbrio uma condição
provisória, fazendo com que inevitáveis instabilidades produzissem movimento, e
o movimento produzisse uma estabilidade momentânea, na qual os conflitos
pudessem ser administrados com alguma segurança. E, assim, creio que a
duradoura influência do pensamento de Chesterton na obra de Borges, ponto ao
qual retornarei algumas vezes daqui em diante, foi naquele momento
decisivamente acentuada. Há, inclusive, uma indicação de que Borges teria tido,
em certo momento de sua vida, a expectativa de conhecê-lo pessoalmente,
havendo a possibilidade de que Chesterton fosse à Argentina, o que com grande
probabilidade aconteceu nos meses que antecederam o congresso de 1936. Mas o
escritor inglês, então com 61 anos, permaneceu em Londres, falecendo poucos
meses depois da realização do evento, em um fato não destituído de carga
simbólica.
Pois o autor, depois esquecido por círculos artísticos e acadêmicos, ou
conhecido apenas como criador de contos policiais, havia adentrado o século XX
121
BORGES, J. L. ‘Stories, Essays and Poems’, de Aldous Huxley”. [El Hogar, 16 de abril de
1937]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 299.
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como um dos mais legítimos representantes do período de maior vigor da cultura
britânica oitocentista, cuja restauração defendia com uma inteligência sólida, e
uma rara habilidade argumentativa. De modo que, pouco antes de sua morte, ele
era em seu ambiente uma voz um tanto isolada, mas que conferia grande
consistência às suas convicções, entre elas a da necessidade de que a Grã-
Bretanha tivesse uma linha de ação melhor definida em relação à Alemanha ou
mais exatamente em relação à Prússia, como veremos a seguir para corrigir o
estrago feito, em grande parte por ela mesma, no final da guerra anterior. Segundo
Chesterton, nenhuma verdadeira vitória é absoluta, contendo em si mesma o
reconhecimento de uma derrota parcial, porque a qualquer tipo de conquista
corresponde uma perda, e certo grau de frustração é inerente a todas as realizações
humanas. Com isso, tampouco a vitória se converteria em um orgulhoso
instrumento de humilhação, que causasse a emergência de um antagonismo
fanático da parte dos derrotados. Este preceito, como sabemos, havia sido
ignorado no Tratado de Versalhes, mas, para ele, isto demandava uma lúcida ação
restauradora, e não a passividade culpada sob disfarces pacifistas.
Os textos analíticos de Chesterton sobre o problema, ou mais propriamente
de intervenção, foram reunidos em The End of Armistice (1936), último livro
publicado em vida pelo escritor, cujo título era uma referência direta à conjuntura
européia da época.
122
A obra se tornaria uma das mais citadas sempre que o
assunto surgia nos escritos de Borges, e muitos indícios da influência daqueles
ensaios em sua produção literária podem também ser encontrados em outros
textos. Sendo assim, vale apresentar alguns tópicos centrais de que eles se
compõem.
Antes de tudo, em “Who is dictator?”, “The heresy of race”, “The truth
about tribes” e “One word more”, é examinada a diferença entre a Nação e a Raça
como critérios para o estabelecimento de unidades políticas. Sendo que a
preferência de Chesterton pela primeira alternativa certamente não resultava de
maiores simpatias pelo judaísmo, tendo ele escrito textos manifestando sua
repulsa a práticas e personagens historicamente associados ao caráter semita,
como The Utopy of Usurers. No entanto, estava claro para ele que o nazismo
estava muito além de ser uma expressão localizada de anti-semitismo, posto que
122
Trabalho com a seguinte edição: CHESTERTON, G. K. The End of Armistice [1936]. In: ____.
Collected Works V: Family, Society, Politics. San Francisco: Ignatius Press, 1987, p. 523-662.
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151
seu principal elemento seria o orgulho tribal, em que o indivíduo, purificado de
máculas exógenas, está vinculado a uma linhagem sanguínea, que configura uma
imagem sacralizada do clã, que por sua vez compreende as energias da totalidade
da espécie. Em decorrência disto, todo homem se torna aquilo que ele próprio
venera: algo essencialmente distinto, em sua opinião, do respeito nacionalista por
uma bandeira, que representa uma instância mediadora e separada do homem, a
qual pressupõe o reconhecimento de outras unidades fundadas sobre o mesmo
princípio, e seria, em condições regulares, compatível com a humildade pessoal.
Por sua tendência a transformar-se em um absoluto, portanto, o dado racial
ignora todas as fronteiras estabelecidas, substituindo os múltiplos preconceitos e
valores de cada nação, definidos em um curso temporal, pela indefinida sensação
do indivíduo de pertencimento a uma comunidade eternizada. “Neste tipo de
atmosfera antropológica”, o autor então se pergunta, “qual é a sua nação? Onde
está o solo germânico? Ou melhor, onde ele não está?”. Borges faria o mesmo
raciocínio em um texto de 1940, referindo-se a “perigosos etnólogos” alemães,
que defendiam anexação de outros países não apenas quando consideravam os
seus povos como uma raça inferior, mas também quando afirmavam o profundo
enraizamento destes na raça germânica.
123
Anthropology gone mad, enfim, foi a
fórmula encontrada por Chesterton para definir a ideologia racial, “que leva o
homem a estar sempre buscando conterrâneos em terras alheias”.
Por esta razão, ele via a ascensão do nazismo primeiro como uma revolta da
“tribo prussiana” contra a Alemanha, e, em seguida, contra a Europa como um
todo. O que implicava a possibilidade do surgimento de fenômenos similares em
outros países. Mas, diante da suposição de que algo do gênero ocorresse em seu
próprio território, Chesterton recorria a um instrumento tipicamente britânico, e
totalmente contrário aos excessos de auto-glorificação, isto é, o humor. Assim, em
“If it were England”, ele imaginava-se na condição de um ditador inglês que,
como Herr Hitler, pretendesse dominar e transformar rapidamente o país:
Agora me imaginem colocando em ação minha missão política, usando a gravata
dos Old Boys, ou a gravata da Guarda, ou alguma elegante combinação das duas; e
fazendo meu primeiro discurso, sobre como nós sabemos como Jogar o Jogo
123
BORGES, J. L. “Algunos pareceres de Nietzsche”. [La Nación, Buenos Aires, 11 de febrero de
1940]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 178-182.
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152
enquanto os irlandeses negróides e os franceses imundos não conseguem entender
que Cricket é igual a Caráter e Caráter é igual a Cricket.
124
Neste ponto, vale lembrar que a célebre corpulência de Chesterton havia
sido o tema de uma anedota publicada por Borges na Revista Multicolor de los
Sábados, e dava um tom de comédia física à situação descrita.
125
Os aspectos
farsescos da pregação nazista, para a qual contribuía também a figura franzina do
ditador prussiano, adquiriam então uma contraprova igualmente risível. Mas tanto
Chesterton, quanto Borges, observariam que uma das características mais
impressionantes dos agentes do fascismo de um modo geral era sua incapacidade
de entender uma piada, o que os tornava imunes a este tipo de procedimento, na
medida em que confundiam dignidade e honra com total ausência de modéstia. E,
como foi notado, para Borges este um problema central de qualquer diálogo
com os germanófilos de seu tempo: eles se levavam terrivelmente a sério.
Por último, interessa verificar como o universalismo pacifista era abordado
no livro. E, quanto a isto, em “Third thoughts are best”, Chesterton manifestava
uma de suas principais preocupações: “O panorama europeu é sombrio; e tudo
indica que os pacifistas conseguirão nos arrastar para a guerra”. Pois, na medida
em que o rearmamento britânico era protelado, em razão de uma confiança cega
na doutrina da harmonia de interesses, ou simplesmente por causa da hesitação
gerada pela memória da catástrofe anterior, a guerra tornava-se cada vez mais
provável, tendo em vista que os alemães não se sentiriam coagidos a manter suas
pretensões dentro de certo limite. E então a força anárquica do prussianismo a
força da disciplina divorciada da autoridade – encontraria as condições ideais para
sua expansão. Mas, acima de tudo, Chesterton identificava no âmbito francês uma
tendência doentia à inação, de tal maneira contrastante com os impulsos vitais
germânicos, que chegava a ser seu reverso perfeito, gerando com isso uma
verdadeira cumplicidade entre duas inclinações diametralmente opostas. Depois
de relembrar um famoso encontro entre Voltaire e Frederico II, em “The evil
friendship”, ele observava em outro ensaio: “O pacifista e o prussianista se
124
“Behold me setting forth on my political mission, wearing the Old Boys Tie, or the Guard´s
Tie, or some gentlemanly combination of the two; and making my first speech; about how we
understand how to Play the Game while the negroid Irish and the lousy French cannot understand
that Cricket is Character and Character is Cricket”.
125
“Una señorita, acercándose al voluminoso G. K. Chesterton, exclamó: ‘Oh Mr. Chesterton, q
maravilla ser célebre, donde quiera que vaya, la gente sabe quién es usted’. El gran hombre movió
la cabeza: ‘Si no lo saben dije desconsoladamente lo preguntan’”. (In: BORGES, J. L. Borges
en Revista Multicolor, p. 48).
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153
complementam perfeitamente (...) Não me surpreende que, na prática, eles tenham
formado uma aliança”. Uma aliança em que o princípio de indeterminação era
comum às vastas aspirações de uns e outros; e que correspondia às semelhanças
entre um clima de fastio e um sentimento de desespero cultural, ambos ansiosos
pela resolução súbita e definitiva de uma crise, que só a morte pode tornar
possível.
Suicídio e destruição: neste binômio residia para Chesterton a cumplicidade
entre pacifismo e belicismo. O que ele sugeria, desde logo, não era um imediato e
desgovernado ataque militar inglês à Alemanha, mas a criação de condições em
que exigências pudessem ser feitas ao regime nazista, e este tivesse que acatá-las
recorrendo ao mínimo de racionalidade do qual nem mesmo Hilter estaria
destituído. Shipwrecks are not avoided by doing something, but by doing the right
thing, o autor afirmou, em “Thinking about Europe”. O que, por outro lado, não
excluía a disposição para o embate armado; e quando, em 1938, Borges publicou
uma tradução de Lepanto, poema de Chesterton sobre as cruzadas e a defesa da
cristandade, este gesto, mais do que nenhum outro, indicava uma adesão àquele
ponto de vista.
126
A partir daí, o autor passou a integrar comitês e assinar
manifestos contra o nazismo, e as células partidárias anti-semitas ou fascistas
existentes no cenário argentino, tentando, com isso, influir também em um
possível alinhamento do governo com uma das potências em rota de colisão no
panorama internacional. Em 1939, publicou a “Definición del germanófilo”,
ensaio já analisado na primeira parte deste capítulo, no qual a influência de
Chesterton pode ser constatada.
Resta examinar como a sociedade de Buenos Aires reproduzia também
condutas características da intelectualidade francesa, e de que maneira ele lidava
com este fenômeno. Mas, antes disso, cabe assinalar que, como demonstram as
notas de referência precedentes, quase todos os artigos de Borges mencionados
nesta seção foram publicados na revista El Hogar, voltada para a classe média de
Buenos Aires, e comandada pelo grupo editorial Haynes, de capital anglo-saxão.
O autor mantinha um vínculo meramente profissional com a revista,
encarregando-se quinzenalmente de uma página sobre autores e livros
estrangeiros, e recebendo para isso uma remuneração fixa, o que não impedia que
126
CHESTERTON, G. K. “Lepanto”. Traducción de Jorge Luis Borges. [Sol y Luna, Buenos
Aires, n.1, 1938]. In: BORGES, J. L. Textos Recobrados 1931-1955, p. 168-177.
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nesta relação existisse certa afinidade, preservada pela distância. Por outro lado,
de uma natureza completamente distinta era seu intercâmbio com o grupo Sur,
que editava um periódico mais dispendioso e menos dependente de vendas em
larga escala, sendo mantido, sobretudo, com os recursos de sua fundadora,
Victoria Ocampo. Dada a proeminência desta personagem, alguns antecedentes
sócio-culturais relevantes para a formação do grupo podem ser destacados.
Estes remontam ao final do século XIX. Pois, com a resolução das guerras
civis no interior, um velho patriciado rural estabeleceu-se na capital, porém
deixando de ocupar uma posição politicamente relevante durante o processo de
modernização empreendido no país a partir de 1880. Buscando manter um estilo
de vida aristocrático na cidade, que as distinguisse da massa emergente, aquelas
famílias então adotaram hábitos e costumes que estimulavam o refinamento dos
sentidos e o cultivo de sofisticadas faculdades mentais. E, assim, enquanto
investimentos ingleses impulsionavam a economia local e o surgimento das
classes médias urbanas, um beau monde era criado em Buenos Aires segundo
modelos culturais importados de Paris, entre eles as últimas novidades no campo
das artes, da moda ou da gastronomia. Praticante de uma indolência francamente
desdenhosa do utilitarismo burguês, e de sua imersão em um esforço regulado
pelo dinheiro e por ambições de ascensão social, este meio atraía também artistas
e intelectuais de diferentes extratos, que se sentiam igualmente marginalizados
pela modernização capitalista. Portanto, quando a revista Sur foi criada, em 1931,
por uma integrante de uma tradicional família oligárquica, rodeada por membros
rebeldes das elites modernizadoras, sua linha editorial estava de acordo com este
histórico de associações e descontentamentos.
Um dos pontos chave era o princípio da autonomia da arte, tal como
postulado pelo simbolismo francês, que favorecia o virtuosismo técnico na
elaboração do objeto estético, e a discussão teórica de seus mecanismos internos.
A publicação patrocinava o talento de jovens locais, e a divulgação de obras de
vanguarda surgidas no território europeu, ganhando com isso um aspecto
cosmopolita. E, tendo sua primeira edição lançada apenas três meses depois do
golpe de Uriburu, ela pôde também trazer, para seu quadro de colaboradores,
agentes desencantados com a experiência populista da década anterior, bem como
outros ideologicamente mais próximos as fascismo italiano, antigos colaboradores
da extinta Martín Fierro. Muitos destes foram incorporados ao salão literário de
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155
San Isidro – talvez um fenômeno cultural mais importante do que a própria revista
–, no qual uma sociabilidade elegante, alheia a tensões políticas, transformava o
próprio salão em um objeto esteticamente trabalhado por seus participantes.
Tópicos da ordem do dia eram também ali debatidos, mas a ausência de uma
efetiva dinâmica de alianças e rupturas políticas na Argentina dos anos 30 fazia
com que estes debates não tivessem grande incidência prática. Deste modo, até
pelo menos meados da década, o círculo pôde dedicar-se a diálogos situados em
um plano estritamente especulativo.
Borges, como foi dito, nunca foi um freqüentador assíduo daquelas
reuniões, e Horacio Salas afirma inclusive que ele nunca cansava de demonstrar
seu desconforto com os jantares oferecidos por Victoria, quando sua presença era
requisitada. De fato, em um ambiente em que se destacavam figuras de grandes
recursos oratórios, como o poeta Oliverio Girondo, seu retraimento vacilante e
falta de desenvoltura social podiam ficar mais explícitos (Edwin Williamson,
por sua vez, atribui o primeiro grande fracasso amoroso de Borges à interferência
de Girondo em sua relação com Norah Lange). Ele também considerava uma
superstição, esnobe e elitista, a preferência disseminada no grupo por autores
herméticos como James Joyce, T. S. Eliot e Ezra Pound. Não obstante, a
habilidade que possuía para a formulação de problemas lógicos, e exposição de
sistemas metafísicos, se mostraria bastante adequada ao periódico. Assim,
após o deslocado “Nuestras imposibilidades”, os ensaios por ele publicados em
Sur em geral tornaram-se peças de investigação filosófica ou lingüística, à
maneira dos que seriam recolhidos em Historia de la Eternidad, ou comentários
sobre obras de autores até então pouco conhecidos na Argentina, conforme sua
erudição servisse aos propósitos de ilustração do público. Também para Sur ele
podia enviar traduções sem muito apelo comercial, mas de uma peculiar qualidade
técnica, que implicavam o emprego de um esforço considerável em uma atividade
de teor lúdico e amadorístico, na qual a compensação material ocupava um papel
secundário.
127
Contudo, questões justamente de ordem financeira terminariam por acentuar
as diferenças existentes. Isto porque, embora a família de Borges tivesse suas
127
Para uma análise mais aprofundada das traduções de Borges publicadas na revista Sur, ver
Patricia Willson, “Jorge Luis Borges, el traductor vanguardista”. In: ____. La Constelación del
Sur. Traductores y traducciones en la literatura argentina del siglo XX. Buenos Aires: Siglo XXI
Editores de Argentina, 2004, p. 111-182.
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origens em patrícios que haviam lutado nas guerras do século XIX, esta
ascendência não lhe garantira propriedades ou uma herança, ao mesmo tempo em
que seu pai, também ele inclinado à especulação metafísica, não obtivera êxito
econômico com as oportunidades abertas na moderna Buenos Aires. É verdade
que, até certo ponto, pareceu possível a Borges seguir executando pequenas
tarefas, como a edição da Revista Multicolor de los Sábados e da página quinzenal
em El Hogar, mas estes eram trabalhos de pouca remuneração, enquanto a
participação em Sur não podia nem mesmo ser considerada um trabalho. E, em
1937, como relataria em um texto autobiográfico, estava na hora de que
contribuísse com um salário fixo para a renda familiar. Através de amigos, ele
obteria a indicação ao um posto de assistente da Biblioteca Miguel Cané, em uma
parte cinzenta e afastada da cidade, que lhe forneceria um pequeno soldo durante
anos de “sólida infelicidade”. Naquele mesmo texto, publicado originalmente em
inglês, Borges descreve uma cena referente ao emprego na biblioteca que ilustra
seu estado de espírito na época:
Durante estes anos, eventualmente nós, funcionários municipais, éramos
recompensados com presentes como um pacote de um quilo de mate para levar
para casa. E às vezes, ao entardecer, enquanto eu caminhava os dez quarteirões até
a linha do trem, meus olhos estavam cheios de lágrimas. Esses pequenos presentes
vindos de cima sempre me faziam lembrar como minha era triste e servil a minha
existência.
128
E esta variante de um sermo humilis, que invoca a piedade do leitor,
lembrando a prosa de Charles Dickens, transformava ele próprio em um
personagem da fase final da obra de Evaristo Carriego: o pequeno funcionário do
governo, que havia tido sonhos grandiosos de fama e redenção, para depois se
deparar com a realidade de uma existência tacanha e suburbana, às margens tanto
dos mecanismos burgueses de ascensão social, quanto das esferas da alta cultura
intelectualizada. Decerto, a passagem citada contou com um lapso de tempo para
configurar-se nestes termos; mas quando, em uma resenha surgida no número de
23 de julho de 1937 de El Hogar, Borges se referia ao “preço imperceptível e
comovedor de sessenta centavos” pelo qual um livro de Olaf Stapledon estava
128
“Now and then during these years, we municipal workers were rewarded with gifts of a two-
pound package of maté to take home. Sometimes in the evening, as I walked the ten blocks to the
tramline, my eyes would be filled with tears. These small gifts from above always underlined my
menial and dismal existence”. BORGES, J. L. “An Autobiographical Essay”. In: ____. The Aleph
and Other Stories 1933-1969, p. 241-2.
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157
acessível em uma edição da Pelican Books, ele propunha uma espécie de
cumplicidade de classe com os leitores daquela revista, não destituída de
indicações de sua situação material na época.
129
Oportunamente, voltarei a tratar da inserção deste tipo de discurso em sua
obra. Por ora, a passagem sobre sua condição como funcionário do município
serve para indicar um contraste, entre a experiência cotidiana a que ela se refere, e
a sociabilidade que moldava os diálogos do grupo Sur. De modo que, quando
instado a escrever sobre a fundadora da revista, além de enfatizar a ousadia, o
caráter forte, e mesmo o autoritarismo de Victoria, Borges lembrou que ela “via
na cultura um prazer, um complexo agrado do ócio, nunca uma obrigação”.
130
em uma conversa com Adolfo Bioy Casares, com quem teve uma amizade que
será abordada no próximo capítulo, ele diria o seguinte sobre o livro Diálogos con
Borges, publicado por ela em 1969: “Me mostra com Victoria Ocampo, na
inauguração de Sur, em um aniversário de Sur, com o conde de Seyès e com a
condessa de Cuevas: eu não imaginava que tivesse tido uma vida tão estranha”.
131
Mas, sob estes traços caricaturais, alojava-se uma inteligência mordaz, e a
capacidade de organizar um ambiente de vívido convívio social, em oposição ao
comportamento de Borges, que podia ser também tomado como uma expressão
britânica de esnobismo. Pois, de tanto evitar a indiscrição e a associação a grupos
literários, ele cultivava uma reserva muito semelhante à auto-suficiência, talvez
levemente arrogante e acusativa no que diz respeito às “frivolidades” alheias.
Creio que algo desta distinção está presente no seguinte comentário de Victoria:
“Em relação a Borges, levo uma vantagem: eu o conheço. A recíproca é
improvável. E o admiro. A recíproca é impensável”.
132
Desde logo, neste relacionamento existiam nuances que mereceriam um
artigo à parte, até porque o escritor publicaria a maioria de suas ficções na revista,
assim como o grupo Sur é um objeto de estudos muito mais rico do que pode
sugerir esta breve caracterização. Mas, tendo em vista um aspecto da questão,
basta marcar a distinção entre o caráter aristocrático dominante no grupo,
129
BORGES, J. L. “ ‘Last and First Men’, de Olaf Stapledon”. [El Hogar, 23 de Julio de 1937]. In:
____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 324.
130
BORGES, J. L. “Juicios de Borges sobre Victoria Ocampo”. In: ____. CHIAPPINI, Julio.
Borges y la Revista Sur. Buenos Aires: Zeus, 1994, p. 18.
131
CASARES, A. B. Borges. Edición al cuidado de Daniel Martino. Buenos Aires: Destino, 2006,
p. 1268.
132
OCAMPO, V. “Testimonios (1971-1974)”. In: ____. CHIAPPINI, Julio. Borges y la Revista
Sur, p. 13.
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158
sobretudo em seu uso de um discurso elevado (e respectivos acessos de exaltação
ou apatia), e a condição profissional de Borges, à qual correspondia um
understatement comprometido apenas por indícios de sentimentalismo. Isto
aponta para a configuração de diferentes universos de significação, a serem
delimitados criticamente, para que as opções políticas neles implicadas sejam
mais bem compreendidas. Pois, afinal, a posição de observador que Borges
assumiu em relação ao grêmio esteticista de San Isidro contribuiria para que ele
formulasse um famoso texto, no qual o verdadeiro início de sua carreira como
contista seria identificado, e em que, mais uma vez, nos deparamos com uma
importante alusão de sua parte aos impasses da conjuntura mundial.
“Pierre Menard, autor del Quijote” apareceu na revista Sur de maio de 1939,
um gesto cuja ironia suplantava a da publicação das peças da Historia Universal
de la Infamia em um semanário popular. O conteúdo do conto é bem conhecido,
mas alguns detalhes de sua composição devem ser ressaltados.
A princípio, o narrador se refere ao conjunto da obra de um falecido
escritor, apresentando-a como o motivo de sua intervenção. Sobretudo depois das
omissões e adições a ela impugnadas no catálogo de um jornal protestante (grifo
no original), mesmo que os “deploráveis leitores” deste veículo fossem
certamente poucos, além de calvinistas ou circuncisos. Ele então declara: Dir-se-
ia que ainda ontem nos reunimos diante do rmore final e entre os ciprestes
infaustos, e o Erro trata de conspurcar sua Memória... Decididamente, uma
breve retificação é inevitável”. E, para tanto, são evocados dois “altos
testemunhos”. Primeiro, o da baronesa de Bacourt, em cujos “inesquecíveis
vendredisele próprio teria tido a honra de conhecer Pierre Menard. E depois, o
da condessa de Bagnoregio, um dos “mais refinados espíritos do principado de
Mônaco”, que teria sacrificado à “veracidade ou à morte” segundo as palavras
da condessa a reserva que a distinguia, ao enviar para a revista Luxe uma carta
aberta sobre o assunto.
Parece-me que isto é o suficiente para qualificar o estilo do texto, e sua
terminologia, como uma sátira da linguagem utilizada nos elegantes círculos
literários de Buenos Aires e Paris. E, em seguida, surge a lista da “obra visível” de
Menard, de acordo com as correções do narrador, na qual se destacam sonetos
simbolistas, um exame das leis métricas essenciais da prosa francesa, monografias
sobre Descartes e Leibniz, discussões sobre a técnica do xadrez, o esboço de uma
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159
explanação da gica simbólica de Georg Boole, uma tradução de Quevedo, uma
“obstinada análise” dos hábitos sintáticos de Toulet, etc.. Nota-se que, além de ter
um gosto particular por rígidas estruturas de linguagem e pensamento, Menard é
basicamente um diletante: sua produção está totalmente isenta de acusações de
utilitarismo. Nela também uma invectiva contra Paul Valéry, que, segundo o
narrador, seria o “reverso exato” da verdadeira opinião de Menard sobre o poeta,
com quem ele teria uma “antiga amizade”, a qual permitiria esta inversão retórica.
Valéry, por sinal, foi identificado por Juan José Saer como o melhor exemplo da
persona literária satirizada por Borges neste conto, não apenas por uma questão
de antipatia pessoal, mas também em função do fascinado interesse do argentino
pelas extraordinárias maquinações do autor do “Cimitière marin”.
133
Mas o “extraordinário”, neste caso, como Saer observou, pode qualificar
também excessos que têm como único objetivo a afetada exibição de habilidades
fora do comum. “Meu propósito é meramente assombroso”, teria dito Menard,
enfim, sobre aquela que seria sua “obra invisível”, isto é, a reescritura, palavra por
palavra, do Quixote de Miguel de Cervantes, não através da recriação das
condições de sua elaboração original um procedimento descartado por ser
“demasiado fácil” –, mas como resultado de uma sofisticada operação mental,
comparável a uma “demonstração teológica ou metafísica”. Neste sentido, a opção
pelo Quixote ressaltaria o contraste entre um romance escrito em um estilo”
que beirava a negligência, segundo Borges, e o livro que sairia da pena de
Menard, plenamente articulado pela necessidade, o que o tornaria um tesouro para
a análise crítica de cada um de seus elementos internos. A este tipo de análise
procede então narrador do conto, tendo diante de si alguns esboços e fragmentos
recuperados, muito mais “sutis” do que os seus correspondentes cervantinos, o
que seria revelado no cotejo das versões de ambos os escritores.
Em uma palavra, talvez não muito cortês: tudo não passa de uma tontería. À
gravidade e aos escrúpulos com que o assunto é tratado equivalem ao pedantismo
dos primeiros parágrafos do texto; mas há uma passagem que merece maior
atenção. Nela, é discutido o capítulo XXXVIII de primeira parte do livro, o “que
trata do curioso discurso que fez Dom Quixote sobre as armas e as letras”, a favor
133
Para uma exploração mais detalhada deste jogo de identidades e diferenças, cf. Sergio
Pastormerlo, “El irreverente reverenciado”. In: ____. Borges Crítico. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2007, p. 95-114.
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das armas e contra as letras em Cervantes, e igualmente elaborado, por diferentes
motivos, em Menard.
134
No primeiro caso, atribui-se o conteúdo do discurso ao
fato de que o autor da obra era um velho militar; no segundo, é com algum
espanto que o crítico encontra uma argumentação daquele teor em “um
contemporâneo de La Trahison des Clercs e de Bertrand Russell”. Mas ele
termina por aceitar a explicação da boronesa de Baucourt, que evoca a influência
de Nietszche, e, ao mesmo tempo, recorda a invectiva de Menard contra Paul
Valéry, para assinalar uma característica consonante com a “divina modéstia” do
autor: o hábito de propagar idéias que eram o estrito reverso das preferidas por
ele. Assim, depois de um longo trecho, fica muito pouco claro qual seria a
alternativa defendida por Menard, o que não deixa de servir a uma última
observação do comentarista: “O texto de Cervantes e o de Menard são idênticos,
mas o segundo é quase infinitamente mais rico (mais ambíguo, diriam seus
detratores; mas a ambiguidade é uma riqueza)”. Em contraste com uma escrita
simplória e negligente, portanto, a fineza do estilo de Menard permitia um jogo
com os signos literários em que estes perdiam substância para poderem ser
livremente transfigurados em seus opostos. No artefato estético, guerra e paz eram
pólos indiferenciados e intercambiáveis, ambos submetidos a uma nobre e
desinteressada atividade artística.
E, no final do conto, o narrador apresenta a justificativa de uma tarefa que
reconhece como “complexíssima e de antemão fútil”. Nas palavras do próprio
Pierre Menard:
Pensar, analisar, inventar não são atos anômalos, são a normal respiração da
inteligência. Glorificar o ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e
alheios pensamentos, recordar com incrédulo estupor o que o doctor universalis
pensou, é confessar nossa languidez ou nossa barbárie. Todo homem deve ser
capaz de todas as idéias e suponho que no futuro o será.
135
134
Daniel Balderston elaborou uma análise do conto também enfocada na relação entre esta
passagem e a conjuntura mundial. Ver “Menard y sus contemporâneos: el debate sobre las armas y
las letras”, In: ____. BALDERSTON, Daniel. Fuera de Contexto? Referencialidad histórica y
expresión de la realidad em Borges. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1996 [1993], p. 35-68.
135
BORGES, J. L. “Pierre Menard, autor do Quixote”. Trad. Carlos Nejar. In: ____. Ficções. OC
[edição brasileira], vol. 1, p. 497. “Pensar, analizar, inventar no son actos anómalos, son la normal
respiración de la inteligencia. Glorificar el ocasional cumplimiento de esa función, atesorar
antiguos y ajenos pensamientos, recordar con incrédulo estupor lo que el doctor universalis pensó,
es confesar nuestra languidez o nuestra barbarie. Todo hombre debe ser capaz de todas las ideas y
entiendo que en el porvenir lo será”. BORGES, J. L. “Pierre Menard, autor del Quijote”” [1939].
In: ____. Ficciones. OC, vol. 1, p. 482.
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161
Deste modo, tal como o profeta Hakim de Merv, da Historia Universal de la
Infamia, pregava a abstinência e a dissolução como manifestações de repulsa ao
mundo, Menard via tanto na inação, quanto no movimento irrefreável, meios de
acesso a uma esfera na qual as limitações individuais seriam superadas. Intelecto e
força eram equivalentes; languidez e barbárie se complementavam. deve estar
claro a que tipo de correlação Borges podia estar se referindo neste ponto, na
medida em que ele é articulado ao conjunto de suas reflexões no período, o que
conferia ao relato um significado mais aterrador do que podem sugerir seus
aspectos satíricos. E, para reforçar o argumento, a simples e breve nota final do
narrador é determinante: Nîmes, 1939.
Em setembro daquele ano começaria a Segunda Guerra Mundial. A invasão
da Polônia pelo exército alemão acarretou uma maior mobilização de tropas
adversárias, e alguma mudança no tratamento que o regime nazista vinha
recebendo de seus inimigos potenciais. Mas, sem que o significado da manobra
estivesse muito nítido, seguiu-se o período da chamada phoney war, carregado de
expectativa e ansiedade em relação aos próximos movimentos de Hitler, ao menos
na Inglaterra, onde ganhavam maior legitimidade aqueles que haviam defendido o
rearmamento com antecedência. Na França, o curso regular da sociedade foi
menos alterado pelas notícias. Já em Buenos Aires, a revista Sur manteve a
posição antifascista adotada desde a guerra civil espanhola, publicando uma
edição inteiramente dedicada ao tema, porém voltada mais para análises teóricas
do que para questões pragmáticas, de modo que a contundência do comentário de
Borges destoava dos ensaios de outros autores. Nele, mais uma vez, era afirmado
o respeito e a admiração do escritor pela Alemanha; mas, logo a seguir, vinha uma
frase que não admitia nenhuma leitura dúbia: “Espero que os anos tragam a
venturosa aniquilação de Hitler, atroz filho de Versalhes”.
Porém, os acontecimentos seguintes indicariam exatamente o contrário. Em
maio de 1940, a tempestade anunciada pela tensão do clima político europeu se
iniciou, com a súbita ofensiva alemã na frente ocidental, violando as neutralidades
de Holanda e Bélgica, causando o recuo desordenado das tropas aliadas para a
costa, e avançando em um ritmo implacável na direção de Paris. Até aquele
momento, nenhum outro fato demonstrara de modo tão intenso as reais
possibilidades de um triunfo da vontade prussiana, e a queda da capital francesa,
poucas semanas depois, confirmou o sucesso de uma operação impetuosa e
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arriscada, consagrando a liderança interna de Hitler, e lhe concedendo enorme
crédito para que seguisse colocando em prática seu projeto de poder
internacionalista. A velocidade com que a vitória foi conquistada, no entanto,
foi possível diante do despreparo das forças oponentes, em parte atribuída à falta
de uma sólida motivação para a defesa, que contrastava com a convicção
ideológica dos alemães. E isto, por conseqüência, reafirmava um princípio
fundamental da doutrina nazista: o de que à raça ariana estava reservada a missão
de dominar o planeta, pois os outros povos já nem mesmo sabiam pelo que valia a
pena lutar. Neste sentido nada era mais desprezível do que as inclinações
pacifistas, associada à mera covardia pelos prosélitos da guerra e da coragem. A
convergência no propósito de transformação radical do mundo verificada entre
franceses e alemães, afinal, não fora feita para durar, pois implicava duas utopias
excludentes, que mais cedo ou mais tarde deviam ser postas à prova no plano da
realidade. E, neste caso, era presumível que uma delas saísse do teste fortalecida,
ao empreender uma completa aniquilação da outra.
Decerto, houve entre os cidadãos da França aqueles que resistiram, e
também os que não demoraram a fazer um exame crítico das causas da
calamidade, como Jaques Maritain em Atravers du désastre, lançado em 1941,
na tentativa de encontrar uma explicação para o ambiente de normalidade” que
precedeu a invasão alemã em Paris. Pois, no geral, a maioria dos habitantes sequer
se deu conta da situação até que fossem instados à capitulação ou à fuga, e a
própria Victoria Ocampo se tornaria uma exasperada anfitriã de fugitivos da
catástrofe, comentando com assombro como seus hóspedes teriam passado seus
últimos dias em solo francês, a discutir o cumprimento ideal das cortinas, ou uma
lista das mulheres mais bem vestidas de Paris.
136
Mas, para Borges, a principal
lembrança que ficaria do episódio foi a de relatos segundo os quais membros da
elite parisiense teriam “recebido” as forças de ocupação, sem ocultar certo júbilo
com o fato de que finalmente alguma coisa estava sendo feita para reverter o
estado de letargia em que o país estava submerso. “Estes nazis franceses, estes
partidários da violência, nunca me pareceram muito coerentes”, ele diria para
136
Cf. DONGHI, T. H. La Argentina y la Tormenta del Mundo: ideas e ideologías entre 1930 y
1945. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004, p. 164.
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163
Bioy Casares em 1966.
137
Incoerentes não, ambíguos, responderia o narrador de
“Pierre Menard”.
Com este conto, enfim, a fase mais importante da produção literária de
Borges havia se iniciado, e sua formação intelectual tinha alcançado um ponto
decisivo, ao mesmo tempo em que o início da guerra acelerava o processo de
resolução da crise. Acredito que a simultaneidade entre estes dois dados está
longe de ser casual. Parte dos relatos que mais tarde dariam fama internacional ao
autor foi igualmente escrita de acordo com a observação de acontecimentos
políticos, os quais, por outro lado, eram vistos por ele como desdobramentos de
fenômenos culturais de maior abrangência, que, naquele instante, mais do que
nunca, tinham suas implicações históricas explicitadas. Para a compreensão deste
mecanismo, terão contribuído as experiências pessoais de Borges, bem como seu
diagnóstico da sociedade argentina no período anterior à guerra, onde os agentes
que determinavam o curso dos eventos mundiais tinham congêneres autóctones;
mas só mesmo em 1940 tudo isto iria articular-se em torno de um problema
inescapável, de proporções inéditas na modernidade, que receberia em sua obra de
maturidade um tratamento mais condensado, em relação ao que se pode inferir das
dispersas citações utilizadas até este ponto da pesquisa. A partir de agora,
portanto, não sem perder de vista a dimensão contextual do assunto, será possível
examiná-lo com um enfoque mais preciso e independente de fatos isolados. Muito
embora restasse a importante questão da permanência da Inglaterra no conflito,
que, além de ter um peso considerável em termos práticos, para Borges assumiu
um caráter especial. Com ela podemos passar à próxima etapa do trabalho.
137
Apud CASARES, A. B. Borges, p. 1103.
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4
A Sombra Planetária (1939-1945)
No dia 10 de maio de 1940, exatamente enquanto era iniciada a ofensiva
ocidental alemã, Winston Churchill assumia o cargo de primeiro-ministro
britânico, após ter sido um constante opositor das políticas adotadas por seu país
em relação a Adolf Hitler, desde que este havia chegado ao poder. Assim, se
acontecimentos recentes haviam aumentado a estatura de Churchill dentro do
governo inglês, a derrocada da França, durante seus primeiros dias no cargo, foi
uma decisiva confirmação da necessidade do enfrentamento que ele defendera,
porém em um momento em que talvez fosse tarde demais. Diante de sucessivos
relatórios que anunciavam uma catástrofe de proporções imprevistas no
continente, e da ameaça de um ataque para o qual Londres não estaria preparada
enquanto grande parte de seu contingente militar encontrava-se na mais precária
situação, ao recuar desordenadamente para a costa francesa –, por um par de
semanas a sensação foi de que somente um milagre poderia reverter o curso em
que a guerra estava seguindo com incrível rapidez.
Círculos influentes chegaram a cogitar um acordo, no qual viam a única
possibilidade de sobrevivência do Estado britânico, e o próprio primeiro-ministro
teve que lidar com esta alternativa; mas, sabendo que isto implicaria a instalação
na Inglaterra de um governo títere comandado pelos nazistas, após um instante de
incerteza o gabinete de Churchill insistiu no prosseguimento da guerra.
138
A ajuda
americana passou então a ser solicitada junto a Franklin Delano Roosevelt, com
138
Os trâmites, vacilações e debates que marcaram este processo estão detalhadamente descritos
em KERSHAW, I. “Londres, primavera de 1940: a Grã-Bretanha decide combater”. In: ____. Dez
decisões que mudaram o mundo (1940-1941). Trad. Berilo Vargas, Celso Mauro Paciornik, Clóvis
Marques e Fernanda Abreu. São Paulo: Cia. das Letras, 2008 [2007], p. 39-86.
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uma freqüência que dava mostras de desespero, mas contendo também
declarações de que a Grã-Bretanha resistiria mesmo sozinha, pelo menos até que
suas forças fossem suficientes para conter o avanço alemão. Em seguida, nem as
piores previsões se tornaram realidade, nem o aguardado milagre aconteceu, o que
estendeu a angústia vivida naquele momento por vários meses.
“Escrevo em julho de 1940”, anotou Jorge Luis Borges durante este período,
em um tom pessoal que muito raramente incluía em suas resenhas. “A cada manhã
a realidade se parece mais a um pesadelo”.
139
E, de fato, na medida em que ele via
no nazismo uma expressão do horror, mesmo que em sua forma mais banalizada,
o cenário mundial naquela ocasião indicava que o real podia estar sendo
substituído pelo fantástico com uma velocidade assustadora. No mês anterior,
Mussolini havia anunciado a entrada da Itália na guerra; o Japão estava
aproveitando as turbulências européias para investir em um programa
expansionista asiático; e, acima de tudo, ainda eram muito poucos os sinais de que
o ímpeto juvenil alemão seria confrontado pela velha Grã-Bretanha, que podia
muito bem estar apenas gastando suas últimas forças em uma luta solitária.
Pois, em meio a negociações internas com o congresso e com a opinião
pública, Roosevelt protelava a intervenção solicitada, e Churchill tinha que arcar
com as conseqüências de sua decisão, convocando para isto um esforço de guerra
que se converteu em uma mobilização nacional sem precedentes, mas nem por
isso suficiente como demonstração de força, tendo um significado simbólico
possivelmente maior do que sua efetividade prática. A pressuposição de que os
ingleses, em última instância, sempre fariam a coisa certa no momento certo,
estava então ameaçada de ter sua última confirmação revertida em um ato
retardado de heroísmo inconseqüente. Talvez, sob suas declarações de princípios e
predisposição à morte na batalha, eles estivessem apenas desempenhando sem
muita convicção o papel histórico que se esperava que representassem em tais
circunstâncias. Por outro lado, podia ser também que a demora em tomar uma
atitude fosse devida a contingências pontuais, e que no instante da decisão de
permanecer na guerra houvesse começado um verdadeiro renascimento da fênix
imperial. Aqueles que haviam visto como a Inglaterra enfrentara outras crises
semelhantes, mesmo que de menor magnitude, não duvidavam de sua capacidade
139
BORGES, J. L. “ ‘The new adventures of Ellery Queen’, de Ellery Queen”.[ Sur, Buenos Aires,
Año IX, n. 70, Julio de 1940]. In: ____. Borges en Sur, p. 232.
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de recuperação, sendo inclusive pensável que, naquela oportunidade, ela viesse
enfim a desvelar as medidas reais de seu poder e de sua glória.
No final do ano Borges publicou o seguinte poema:
PARA LA NOCHE DEL 24 DE DICIEMBRE DE 1940, EN INGLATERRA
Que la antigua tiniebla se agrande de campañas,
Que de la porcelana cóncava mane el ponche,
Que los bélicos “crackers” retumben hasta el alba,
Que el incendio de un leño haga ilustre la noche.
Que el tempestuoso fuego, que agredió las ciudades
Sea esta noche una límpida fiesta para los hombres,
Que debajo del muérdago esté el beso. Que esté
La esperanza de tus espléndidos corazones.
Inglaterra. Que el tiempo de Dios te restituya
La no sangrienta nieve, pura como el olvido,
La gran sombra de Dickens, la dicha que retumba.
Porque no hacen dos mil años que murió Cristo,
Porque los infortunios más largos son efímeros,
Porque los años pasan, pero el tiempo perdura.
140
Parece-me que o poema prescinde de uma análise detalhada. Mas cabe
enfatizar como a menção a Charles Dickens é reveladora do sentimento de
inocente confiança que emerge com a voz discursiva, e da imagem do mundo a ela
correspondente. Pois o vulto que assoma no último verso da terceira estrofe é o do
gênio inglês do século XIX, the last of the great men, segundo a expressão
utilizada por G. K. Chesterton para referir-se ao romancista,
141
coerentemente
ressurgido em um poema natalino, quando o espírito de tudo aquilo que ele
representava corria um enorme perigo, mas buscava reunir forças para ultrapassar
mais uma provação seguir em sua travessia terrena. Dickens era um dos autores
prediletos da mãe de Borges, e seus livros ocupavam prateleiras da biblioteca do
140
BORGES, J. L. “Para la noche del 24 de diciembre de 1940, en Inglaterra”. [Saber Vivir,
Buenos Aires, n. 4/5, noviembre/diciembre de 1940]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p.
183.
141
Ver CHESTERTON, G. K. Charles Dickens, The Last of the Great Men. New York: The Press
of the Reader’s Club, 1942 [1906].
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pai, em que o escritor passara parte da infância e da juventude. De modo que ele
conhecia bem a estrutura de romances como Bleak House (1852-53) e Great
Expectations (1860-61), nos quais o trauma da orfandade, por mais que reverta
todas as expectativas em relação à vida, impele o indivíduo a construir relações
por seu próprio esforço, para que ele possa encontrar, na idade madura, a
felicidade que lhe foi negada. E, em meio a demônios e vilões, havesempre um
benfeitor oculto, que exerce uma paternidade exigente e ao mesmo tempo terna,
acompanhando com certo distanciamento as desventuras da criança em seu
contato com um mundo hostil, mas sempre pronta a socorrê-la no momento de
uma crise mais aguda. Com isto, -se a formação do caráter do herói, sem que
ele saiba que seu percurso é sempre supervisionado pela Providência, e ainda
assim mantendo-se confiante na superação de obstáculos que podem parecer
fatais. O apelo deste mecanismo está em um tênue equilíbrio, entre uma promessa
de redenção e as inúmeras negações da integridade do mundo que se encontram
pelo caminho, enfrentadas durante um longo intervalo de tempo, capaz de abalar
as mais firmes convicções. No final, a é recompensada pela imensa alegria da
inserção do protagonista em uma família, com os mirabolantes desenlaces em que
Dickens, de repente, consegue conferir a todos os seus inúmeros personagens um
lugar na ordem das coisas. Mas sua genialidade estava justamente em despertar
nas mentes adultas a crença nas virtudes da perseverança, contra todas as
evidências de um universo que parece a ponto de fragmentar-se, e onde o mal
parece atuar livremente. Ou seja: em Dickens, por mais que isto possa parecer
uma brincadeira de mau-gosto, Deus nunca abandonou o mundo. Ele só estava
escondido.
Nada mais condizente com a idéia de que tudo podia ser apenas um sonho
ruim, causado por um longo período de letargia, do qual o Império estava agora
ressurgindo mais forte e mais seguro, ao som de campanas que convocavam todos
os cidadãos ingleses para uma nova cruzada. Nada mais contrário aos fatos. A
resistência britânica teve o efeito prático de conter o ímpeto alemão, quando Hitler
começava a acreditar que não haveria barreiras à expansão do Reich no ocidente;
mas, nem por isso, ela deixou de simbolizar o fim de uma era, com a dignidade
que se podia esperar do derradeiro gesto de um legislador exausto, que em seus
últimos anos de vida cometera todo tipo de equívocos, mas tinha enfim uma
oportunidade de se redimir.
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Somente em março de 1941, com uma lei que regulamentava o empréstimo
de instrumentos militares dos Estados Unidos aos Aliados, o cenário se tornaria
mais incerto para ambos os lados. E, no final do ano em que também decidiu
invadir a União Soviética, Hitler declarou guerra a Washington, antecipando-se à
generalização do conflito, tendo recuperado a audácia megalomaníaca do seu
temperamento de jogador, e prevendo que fazendo apostas mais altas poderia
sair vitorioso. Tal como Churchill havia imaginado, portanto, o prolongamento do
embate armado na Europa comprometeu as inclinações isolacionistas norte-
americanas, e fez com que entrasse em cena o agente capaz de decidi-lo a favor
das nações democráticas. Enquanto, na frente oriental, a planejada conquista de
“espaço vital” para a raça ariana sofria com a súbita recuperação do poder de
resistência do adversário, depois de o exército germânico ter estado muito
próximo da tomada de Moscou.
Ainda durante o ano de 1942, porém, o desfecho da guerra global era uma
incógnita, sendo que a derrota do Eixo passou a ser vislumbrada com maior
clareza em um momento seguinte, quando a atuação dos Estados Unidos e da
Rússia alcançou seu ponto culminante. Em suma, tudo se encaminhou em um
sentido diferente do que era declamado no poema de Borges. Os alemães seriam
derrotados, mas os grandes vencedores, deste lado do globo, cultuavam outra
espécie de divindade, praticavam outro tipo de liberalismo, tinham seus ideais
registrados em outras fontes literárias, e em sua sociedade aberta proliferava uma
espécie de radicalismo que a moderação inglesa desconhecia.
Nesta perspectiva, o século XX havia começado com a intervenção norte-
americana em solo europeu na Primeira Guerra Mundial; seguiu-se o intervalo da
crise, em que a restauração do passado, representada pelo conservadorismo inglês,
a interrupção da história, representada pelo mito racial alemão, e a aceleração do
tempo, relacionada aos paradigmas da sociedade e da economia norte-americanas,
foram os modelos disponíveis para a conformação de uma nova ordem mundial.
Borges nutria um profundo carinho pela primeira destas alternativas, abominava a
segunda, e – dos males o menor – teve que aceitar a última.
Isto no plano internacional. A política argentina seguiu curso próprio. Mas
estes dois tópicos serão discutidos no quarto capítulo. Neste, o que interessa é
notar que, embora tenha se permitido um momento de candura, coragem e
esperança no natal de 1940, o estado de ânimo mais freqüente de Borges na época
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era o de um desespero que beirava a paranóia. A segurança expressa nos versos
para o povo inglês é o reverso exato da sensação de instabilidade que ele
experimentava, para a qual contribuíam problemas pessoais, a situação da vida
pública local, e as informações que chegavam por meio de agências de notícias.
Sua carreira profissional parecia então ter atingido um ponto em que ele parecia
estar repetindo a trajetória malograda do pai, e com alguns detalhes agravantes,
como o mísero salário recebido na biblioteca Miguel Cané. Nada apontava para a
retomada do projeto de construção da nação argentina, que ele havia proposto
quatro anos antes, havendo indícios de que a reação contra a incompetência do
governo em oferecer uma perspectiva de futuro viria, com maior probabilidade, de
grupos fascistas ou comunistas de Buenos Aires. E, mesmo que aquele projeto
pudesse ser retomado, o seria no instante em que o mundo das nações em que ele
deveria inserir o país deixava de existir, para, de acordo com um prospecto
plausível em 1940, dar lugar ao predomínio ariano, voltado para a destruição de
tudo o que podia restar desta tradição.
mesmo lendo Dickens para continuar acreditando. Possuindo um vínculo
a princípio de origem familiar, mas em grande medida cultivado, com o conjunto
de práticas e valores associados ao século XIX inglês, Borges optara pelo
comprometimento com sua preservação, e na pior hora possível. Tornara-se um
burguês, no sentido britânico e oitocentista do termo, sem que pudesse sê-lo de
verdade, a não ser sob a forma de um fracassado funcionário público, cujo “dever”
era apenas o de fazer fichas catalográficas e ver se os livros estão todos no lugar.
Nestas circunstâncias, sua homenagem natalina era um apelo quase fanático pela
reconquista da inocência perdida, pela restituição de uma ordem na qual ele
pudesse encontrar seu posto, pelo miraculoso despertar de um terrível pesadelo.
Contudo, para fazer justiça à sua inteligência, vale dizer que apenas naquele breve
lapso poético ele demonstrou tal disposição para a credulidade, e que, no geral,
tinha a amarga consciência de estar acordado, de que nada ia terminar de uma
hora para a outra. Além disso, Borges sabia que não era Chesterton, que por sua
vez não era Dickens, e, mais ainda, sabia que naquelas condições os antigos
ideais nacionalistas haviam sido corrompidos pelo fascismo, de maneira que
nenhuma sinceridade faria com que voltassem a ser o que eram. Tudo isto diz
respeito, portanto, à sua “obra invisível”: a que poderia ter escrito se não tivesse
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nascido na época errada. Na condição em que se encontrava, ele teve que se
resignar a ser Jorge Luis Borges.
E para isso contaria com talentos intelectuais e estilísticos especiais, que
gradualmente iriam revelar-se na seqüência de narrativas que passou a publicar a
partir de 1939. Pois ser Jorge Luis Borges também significava manejar a
linguagem do artifício e da estetização de modo a produzir resultados
assombrosos, mesmo que fosse como mero passatempo ou diversão erudita. Por
outro lado, ao longo de sua trajetória, sempre que o escritor havia esboçado textos
deste tipo, com o ânimo da juventude ou o rigor técnico de uma mente inventiva,
a isto teria se seguido a percepção da obra resultante como uma impostura, em
que excessos de sofisticação ocultavam uma pobreza de espírito; e agora, mais do
que nunca, ele constatava o alcance da expressão política de tais procedimentos,
de modo que cabia a ele trabalhar com os próprios recursos e argumentos do
inimigo, para expôr sua vacuidade. À altura de suas habilidades, portanto,
estavam a sátira, a paródia e a análise crítica de sínteses falseadas e inconsistentes,
forjadas em meio à crise para aproveitar um momento de confusão, no qual as
mais absurdas teorias podiam ser aceitas como legítimas representações de
necessidades da espécie ou da humanidade. Desta operação, que aprimorava
alguns procedimentos aplicados nos textos breves da Historia Universal de la
Infamia e em “Pierre Menard, autor del Quijote”, creio ter surgido vários dos
contos do autor, aos quais parte de sua fama pode ser atribuída.
A confirmar esta leitura, estão as indicações de que Borges consideraria a
própria notoriedade depois alcançada mais um sintoma de um ambiente histórico
peculiar, que preferia os simulacros complexos e as imagens fortes aos produtos
da razão discursiva, e via na obra por ele produzida a apresentação confiável de
esquemas metafísicos ou cosmológicos, autenticamente arraigados em linhagens
filosóficas e literárias. Muitos comentários críticos foram feitos neste sentido,
inclusive durante a vida e por amigos do escritor, que nunca se ocupou de refutá-
los publicamente com muito esforço, a o ser em ocasiões isoladas. Da índole
britânica, ele teve que abandonar as tendências nacionalistas, um direcionamento
político que o fascismo e o nazismo corrompiam em suas doutrinas; mas dela teria
preservado a capacidade de desconstruir mitos inconsistentes e inautênticos,
através da paródia e da sátira, bem como um irônico understatement, abrindo
caminho para as mais variadas interpretações de seus textos.
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Muito do que foi dito até aqui está resumido em um discurso que o autor
pronunciou ao receber um prêmio da Sociedad Argentina de Escritores por sua
primeira reunião de narrativas, em 1945. O prêmio era uma espécie de
compensação por ele ter sido ignorado em vários outros concursos de âmbito local
nos anos anteriores, e Borges aproveitou a oportunidade de fazer considerações
sobre sua obra e trajetória. O último parágrafo do texto é particularmente
esclarecedor:
Quero acrescentar algumas palavras sobre um problema que o nazismo coloca ao
escritor. Mentalmente, o nazismo não é outra coisa que a exacerbação de um
preconceito de que adoecem todos os homens: o da certeza da superioridade de sua
pátria, de seu idioma, de sua religião, de seu sangue. Dilatada pela retórica,
agravada pelo fervor ou dissimulada pela ironia, essa cândida convicção é um dos
temas da literatura. Não menos cândido que este tema seria o propósito de aboli-lo.
Não podemos, contudo, esquecer que uma seita perversa contaminou essas antigas
e inocentes ternuras, e que freqüentá-las, agora, é consentir (ou propor) uma
cumplicidade. Careço de qualquer vocação para o heroísmo, mas desde 1939
procurei não escrever uma linha sequer que permita essa confusão. Minha vida de
homem é uma imperdoável série de mesquinharias; quero que minha vida de
escritor seja um pouco mais digna.
142
O discurso conjuga, afinal, uma série de tópicos já debatidos, aos quais devo
eventualmente retornar. Mas, por ora, sem acrescentar mais ao que está dito com
clareza nesta última citação, restam as últimas considerações introdutórias do
capítulo.
Nele, pretendo abordar uma amostra das narrativas publicadas por Borges
nos anos 40, sobretudo na primeira metade década, em uma ótica consonante com
as observações precedentes. A primeira parte está atrelada a uma conjuntura
política cuja observância é indispensável e justamente neste seu caráter
impositivo reside o eixo central da análise. Pois trata-se do ano em que a vitória
alemã na guerra, seguida do domínio global nazista, teve que ser cogitada como o
142
“Quiero añadir algunas palabras sobre un problema que el nazismo propone al escritor.
Mentalmente, el nazismo no es otra cosa que la exacerbación de un perjuicio de que adolecen
todos los hombres: la certidumbre de la superioridad de su patria, de su idioma, de su religión, de
su sangre. Dilatada por la retórica, agravada por el fervor o disimulada por la ironía, esa
convicción candorosa es uno de los temas de la literatura. No menos candoroso que este tema sería
cualquier propósito de abolirlo. No hay, sin embargo, que olvidar que una secta perversa ha
contaminado esas antiguas e inocentes ternuras y que frecuentarlas, ahora, es consentir (o
proponer) una complicidad. Carezco de toda vocación de heroísmo, de toda facultad política, pero
desde 1939 he procurado no escribir una línea que permita esa confusión. Mi vida de hombre es
una imperdonable serie de mezquindades; yo quiero que mi vida de escritor sea un poco más
digna”. BORGES, J. L. “Agradecimiento a la Sociedad Argentina de Escritores”. [Sur, Buenos
Aires, año XIV, n. 129, julio de 1945]. In: ____. Borges en Sur, p. 303-4.
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prospecto mais favorecido pelos fatos, algo que tomou conta do imaginário
ocidental por um intenso período de horizontes trágicos. Mas, se Borges foi
também acometido pela idéia que tal desfecho era inevitável, ele o teria
configurado, a se confirmarem as hipóteses levantadas, com um enfoque que
ressaltava o componente de miséria e estupidez nele implicado, através da relação
entre realidade histórica e irrealismo fantástico, na qual o segundo fator tomava o
lugar do primeiro, substituindo a riqueza e a diversidade do mundo pela
indigência de construções esteticamente estupendas. Seguramente, o “fantástico”
também teria sido um assunto cândido e inocente em épocas passadas; mas,
naquela situação específica, ele receberia um novo tratamento, de acordo com seu
novo estatuto prático. E, vinculada à imagem da seita, da sociedade secreta, enfim,
vinculado à categoria do segredo, que estaria na base destes constructos, estava
sua exposição por um método alegórico, que pressupõe uma chave oculta para
uma leitura de símbolos superficiais. Deste modo, trata-se não exatamente de
entender como uma conjuntura externa era reproduzida em sua obra, mas de
verificar como esta se apropriava de mecanismos de construção de sentido que
haviam se tornado dominantes em uma época. E de como sua própria imaginação
teria sido, em determinado momento, empobrecida por estes mecanismos, por
força de um cárcere do qual talvez ninguém pudesse escapar.
Na segunda parte, uma seleção maior de relatos será mobilizada, no intuito
de indicar como o acompanhamento da formação intelectual e artística de Borges
nos leva a perceber neles certos padrões e recorrências. Devo centrar o debate na
questão da radicalidade e da banalidade do mal, em sua relação com o trágico e o
paródico, em contraposição a uma noção de equilíbrio presente na comédia
inglesa. Então, todo o percurso deste estudo poderá ser resgatado, mas em outro
enquadramento, por um lado menos comprometido com eventos militares e
políticos sincrônicos à produção literária de Borges, e por outro relativo a câmbios
sócio-culturais mais amplos. Ainda assim, o ano de 1945 marcaria com exatidão o
instante de consolidação de uma nova ordem mundial se é que o termo “ordem”
se aplica neste caso, o que será discutido. A partir daí, procurarei assinalar como
foi possível ao autor recuperar, em seus escritos, algo daquelas “antigas ternuras”,
desfeitas as circunstâncias descritas acima, principalmente depois do desfecho da
Segunda Guerra. Mas, se isto acarreta um olhar voltado para o passado, é também
necessário entender como sua identidade pessoal e artística, construída em torno
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173
de uma espécie de opção pela Grã-Bretanha, podia dialogar com um mundo
dominado pela doutrina norte-americana. Este tópico servirá como ponto de
interseção entre este capítulo e o último.
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174
4.1
Anno Mirabilis
Os astrônomos de Perínzia se encontram diante de uma difícil escolha: ou admitir que
todos os seus cálculos estavam errados e que suas cifras não conseguem descrever o céu,
ou revelar que a ordem dos deuses é exatamente aquilo que se espelha na cidade dos
monstros.
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis
A recente publicação dos diários de Adolfo Bioy Casares, em 2006, foi um
acontecimento editorial de grande relevância para os estudos sobre a história
intelectual da Argentina moderna e, mais particularmente, para qualquer
abordagem da vida e da obra de Borges. Pois, nas mil e tantas páginas do
volumoso livro, citado neste trabalho um par de vezes, estão reunidas apenas
entradas que se referem a longas conversas entre os dois amigos, e uns poucos
convidados eventuais, durante jantares freqüentes a partir de 1948, quando o
próprio Bioy já mantinha um contato menos freqüente com o grupo Sur. Nestes
diálogos, temas literários eram predominantes, com a discussão de livros e
passagens evocadas pela portentosa memória de ambos; são mencionados autores
e obras que pouco ou nada significam para o leitor contemporâneo; neles surgiam
também questões políticas, sobre as quais Borges e Bioy costumavam expressar
concordância; e, enfim, nota-se que eram constantes as private jokes e
comentários bem-humorados sobre personagens e eventos da sociedade local.
De maneira que a leitura do texto deixa a impressão de que havia uma inata
sintonia entre o modo de pensar de seus dois protagonistas, cuja amizade se
iniciara no início da década de 30, para, depois disso, motivar diversas
colaborações, e mútuos artigos elogiosos. Mas, nestas mesmas colaborações e
artigos, indícios de que esta predisposição teria sido conquistada através dos
anos, contando com a generosidade e a admiração de ambas as partes, e não sem
que diferenças possam ser hoje percebidas, no intuito de esclarecer um ponto
importante para o prosseguimento do trabalho.
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175
A diferença mais aparente estava na origem social e alguns tópicos
correlatos: Bioy Casares pertencia a uma tradicional família proprietária de terras
e gado, podia dedicar-se exclusivamente à literatura de ficção, era casado com
Silvina Ocampo (irmã de Victoria), e transitava com desembaraço no grupo Sur,
além de ser mais jovem e mais entusiasmado com as novas teorias estéticas. De
Borges, sabemos como não se enquadrava nas mesmas categorias econômicas,
não tivera os mesmo sucessos afetivos, não portava as mesmas inclinações para a
sociabilidade, e perdera o ânimo vanguardista inicial. No entanto, o foco da
discussão pode ser deslocado para um romance que Bioy publicou em 1940, após
ter passado três anos fazendo esboços e debatendo seu argumento, até chegar à
versão final de La Invención de Morel. Trata-se da crônica de um náufrago que,
em uma ilha deserta, descobre uma sociedade secreta, cujos integrantes na
verdade são imagens holográficas, projetadas por uma máquina, criada para
eliminar os efeitos da mortalidade sobre os homens, e eternizá-los em uma vida
ociosa e contemplativa. Com isso, a própria ilha se converte em uma metáfora do
orbe autônomo da arte, em suas cíclicas relações internas, conformadas em um
relato de extraordinário rigor narrativo, influenciado pela obra de Edgar Allan
Poe, pela filosofia de Henry Bergson, e remetendo no título a The Island of Dr.
Moreau (1896), o romance fantástico de H. G. Wells.
em sua primeira edição, o livro era apresentado por um prólogo de Jorge
Luis Borges, que ressaltava algumas destas características. Ele então mobilizou a
contraposição entre o romance “realista” ou “psicológico”, que mimetizaria a
desordem do mundo concreto, e o romance “de aventuras”, no qual os
mecanismos da magia seriam transfigurados em um jogo preciso de semelhanças
e analogias, posto em ação pelo artífice de um cosmos pleno de sentido, sem
nenhuma parte injustificada. Associadas aos procedimentos dos primeiros,
estavam as “inaptas ou ingênuas” soluções de Shakespeare, Cervantes ou
Dostoievski na resolução de histórias confusas e informes; à segunda categoria,
correspondiam enredos impecáveis em seu acabamento estético, livres de
qualquer impasse ético que viesse a comprometer seu apuro formal. “Discuti com
o autor os pormenores da trama, que li mais de uma vez; não me parece uma
imprecisão ou uma hipérbole qualificá-la como perfeita”, dizia afinal Borges, com
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176
sincera admiração e respeito pelo colega.
143
E, naquele momento, parece ter sido
justamente o cultivo da sinceridade, com seu poder de adaptação a situações
sociais prefiguradas, e valorização da amizade a despeito de convicções pessoais,
que permitiu-lhe elaborar o prólogo como um artigo imparcial, sem convertê-lo
em uma peça retórica ou irônica, à qual estaria inevitavelmente atrelada a
acusação de hipocrisia. De um homem sincero, espera-se que tudo o que diga seja
verdade. Entretanto, ele não está obrigado a dizer toda a verdade.
Perceba-se, portanto, que Borges somente constata a perfeição da obra, em
uma apreciação da destreza de seu autor, na comparação com a “negligência” de
outros, sem expor um juízo mais amplo sobre as virtudes da perfectibilidade.
144
Isto ele havia feito em 1938, ao comentar um livro de contos folclóricos chineses,
nos quais o acaso contribuía para uma feliz irregularidade das composições, o que
Borges não verificava em seus correspondentes deste lado do globo:
O conto ocidental é uma espécie de artefato simétrico, dividido em
compartimentos. É de uma simetria perfeita. Haverá coisa que se pareça menos
com a beleza do que a simetria perfeita? (Não quero fazer uma apologia do caos;
entendo que em todas as artes nada agrada tanto quanto as simetrias imperfeitas).
145
E, naquele mesmo ano, em um artigo sobre Oscar Wilde, ele afirmaria que
os textos do autor não teriam “outra virtude além da perfeição”, o que prejudicava
o interesse na leitura. Enquanto a vida de Wilde, em sua opinião, teria sido
configurada por uma dramaticidade inexistente em sua obra, bem como sua
personalidade teria sido palco de complexas tramas morais, merecendo ser
vislumbrada como seu grande legado à cultura moderna.
146
De acordo com estes antecedentes, parece-me que a avaliação da obra de
Bioy Casares por Borges não era orientada por um juízo crítico, mas por um juízo
técnico, que reconhecia o funcionamento correto das engrenagens postas em
143
BORGES, J. L. “Prólogo” [1940]. In: CASARES, A. B. La Invención de Morel. Buenos Aires:
Emecé Editores, 2006 [1940], p. 7-10.
144
Alberto Giordano desenvolveu um elucidativo argumento sobre o assunto em uma seqüência de
artigos, tais como “Borges: la forma del ensayo”, Punto de Vista, año XIV, n. 40, jul. 1991, pp.
32-40, e “Borges: la ética y la forma del ensayo”, Punto de Vista, año XXIV, n. 70, ago. 2001, pp.
29-34.
145
“El cuento occidental es una especie de artefacto simétrico, dividido en compartimientos. Es de
una simetría perfecta. Habrá cosa que se parezca menos a la belleza que la simetría perfecta? (No
quiero hacer una apología del caos; entiendo que en todas as artes nada suele agradar como las
simetrías imperfectas”. BORGES, J. L. ‘Chinese Fairy Tales and Folk Tales’, traducidos por
Wolfram Eberhard”. [El Hogar, 4 de febrero de 1938]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p.
146
BORGES, J. L. “Una biografía de Oscar Wilde”. [El Hogar, 18 de noviembre de 1938]. In:
____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 427.
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177
operação no romance, sem discutir seu alcance literário. E, deste modo, o prazer
proporcionado ao leitor seria mais propriamente de ordem intelectual, na
identificação da absoluta coerência interna dos elementos narrativos, a tal ponto
que, em um paradoxo apenas aparente, a proclamação da estética como instância
modeladora de um universo autônomo impedia que este mesmo universo fosse
invadido pela poesia ou pelo drama. O papel antes desempenhado por agentes
mágicos, nos arranjos do conto de fadas, no romance cortês e no relato de
aventuras da tradição ocidental, era conferido a um onipresente método científico,
capaz de modelar o mundo em sua totalidade, eliminando todas as suas
misteriosas zonas de sombra com uma luz uniforme. E, com isso, também a
individualidade de caracteres e personagens submergia em uma estrutura lógica
homogênea, erguida por um sistema de encaixes e analogias, cuja perfeição podia
parecer sobrenatural, ou mesmo monstruosa, mas era obra de demiurgos humanos
e mortais.
Em suma, se para Borges a realidade do ano de 1940 se assemelhava cada
vez mais a um pesadelo, nestas observações estão alguns indícios do que ele
entendia por este último termo. A seguir pretendo desenvolver este ponto. Creio
que na confluência do fabuloso e do científico está a chave da compreensão do
próximo conto a ser examinado com maior detalhe, tendo em vista os modelos
antropológicos, matemáticos ou metafísicos que serviam à literatura fantástica da
época, tal como esta era analisada por Borges. Associada a este enfoque, está a
maneira como ele acompanhou a vida política de seu tempo e daquele ano em
particular –, ancorado no conhecimento que tinha desta vertente literária
específica, até produzir a sua própria alegoria do assalto ao real por sistemáticas
teorias totalizantes. Mas, antes de qualquer outra coisa, pode ser útil mencionar
mais um dado relativo à sua amizade e colaboração com Adolfo Bioy Casares.
Pois foi também em 1940 que ambos os escritores, contando com a
participação de Silvina Ocampo, publicaram uma Antologia de la Literatura
Fantástica, pela Editorial Sudamericana, reunindo relatos próprios e alheios, em
torno da categoria aludida no título. Coube a Bioy fazer o prólogo, e aproveitar a
oportunidade para corresponder aos elogios de Borges, em um intercâmbio que,
de ambas as partes, pode ter sido motivado tanto pela amizade quanto pelas
conhecidas estratégias de troca de apreciações laudatórias entre escritores.
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178
Ele então caracterizou os relatos do perceiro incluídos na coletânea entre
eles “Pierre Menard, autor del Quijote” e “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” como
“exercícios de incessante inteligência e de feliz imaginação, carentes de
melodrama, de todo elemento humano, patético ou sentimental, e destinados a
leitores intelectuais, estudiosos de filosofia, especialistas em literatura [grifo no
original]”.
147
Previsivelmente, portanto, a melhor maneira encontrada por ele para
explicitar sua admiração por aqueles contos foi fazer considerações que seriam
aplicáveis à própria produção, talvez com uma ou outra mudança de ênfase, mas,
no geral, reafirmando os méritos atribuídos a La Invención de Morel. E,
considerando-se que um aplauso equivocado pode ser melhor que nenhum
aplauso, além da deselegância de se corrigir um erro desta natureza, Borges não se
ocupou de refutar publicamente o argumento. Por outro lado, o próprio Bioy se
encarregaria de fazê-lo, muitos anos depois.
A antologia foi reeditada em 1965, com uma extensa postdata de Adolfo
Bioy Casares. E neste artigo, de imediato, o escritor caracterizava sua descrição
dos contos de Borges, presente no prólogo anterior, como “uma fórmula
admiravelmente adequada aos mais ligeiros lugares-comuns da crítica”,
deplorando que, desde então, não tivessem faltado provas de sua eficácia e
durabilidade, de maneira que o viés nela adotado se disseminasse em meios
acadêmicos e literários, conforme se consolidava a fama internacional do escritor
a que se referia.
148
Quanto à sua própria interpretação precedente, Bioy a atribui
na postdata a um “acaso bem intencionado fervor sectário”, creditado à
degeneração do romance realista em particular na América Latina a coleções
informes de tipos, lendas, vozes locais, em detrimento da trama. “Como panacéia
recomendávamos o conto fantástico”, ele acrescenta, mas para logo em seguida
reconhecer que este movimento reativo poderia ter como resultado obras tão
redutoras quanto as que pretendia abolir. “Desde logo, o romance psicológico não
foi ameaçado pelos nossos embustes: tem perduração assegurada, pois, como um
inesgotável espelho, reflete diversos rostos nos quais o leitor sempre se
reconhece”, afirma ele, enfim. E também defende seu argumento com uma breve
análise do conto “Josefina, a cantora, ou A cidade dos ratos”, de Franz Kafka,
147
CASARES, A. B. “Prólogo”. In: BORGES, J. L. [et al.]. Antología de la Literatura Fantástica
[1940], p. 12-13.
148
CASARES, A. B. “Postdata”. In: BORGES, J. L. [et al.] Antología de la Literatura Fantástica
[1965], p. 15.
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incluído na coletânea, e no qual, em suas palavras, “a descrição dos caracteres, o
delicado exame idiossincrático da heroína e de seu povo, importam mais do que a
circunstância fantástica de que os personagens sejam ratos”.
Bioy Casares poderia ter mencionado também a história da metamorfose de
Grete Samsa, a menina acanhada que floresce como uma mulher ativa, diligente e
controladora após seu irmão ter se transformado em um inseto. Não que, em si
mesmo, este último fato seja desimportante; trata-se apenas de observar que o
brilhante estudo de Kafka sobre as relações familiares não se resume às primeiras
páginas.
E o raciocínio de Bioy é complementado com a ressalva de que tampouco o
conto fantástico corria risco de extinguir-se, pelo desdém daqueles que
reclamavam uma literatura mais grave, em busca de respostas para as
perplexidades do homem moderno. Pois ele corresponderia a um desejo menos
angustiado e mais permanente do homem: o de escutar bulas maravilhosas ou
aterrorizantes, sem comprometimento com a vida cotidiana, cujo valor estava no
simples prazer que sua leitura podia proporcionar (ou proporcionado pelo
acompanhamento de um filme, teria acrescentado Borges, que sempre viu em
Hollywood a mais importante fábrica de sonhos moderna). Desta forma, era
restabelecido um princípio de moderação e equilíbrio entre os gêneros artísticos,
cada qual com seu lugar e função na sociedade, sem que nenhum deles precisasse
de uma defesa intransigente dos próprios princípios para encontrar repercussão,
valendo antes a qualidade de cada produto do que sua dívida para esta ou aquela
teoria exclusivista. Uma teoria desta natureza, porém, teria justificado o desacerto
da avaliação de Bioy Casares na abertura da edição de 1940 da antologia, bem
como os seus primeiros trabalhos ficcionais. E podemos localizar uma inflexão
em sua perspectiva a este respeito já em 1956, quando, ao receber a notícia de que
seu romance de estréia havia recebido votos em uma pesquisa sobre o livro “mais
representativo” da tradição novelística argentina, ele fez o seguinte comentário:
La Invención de Morel representativa? Sem dúvida, mas não como a palavra
surge na pesquisa”.
149
Àquela altura, portanto, ele e Borges deviam estar de acordo sobre o que
La Invención de Morel representava: o espírito de um tempo em que o fantástico
havia se transformado em um instrumento de negação da realidade tão eficiente,
149
CASARES, A. B. Borges, p. 221.
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que determinadas ideologias políticas mobilizavam instrumentos muito parecidos
com os da fabulação utópica para prometer uma maravilhosa ou aterrorizante
redenção àqueles que as abraçassem. E, mesmo que Bioy não tivesse em momento
algum expressado a menor simpatia por este tipo de doutrina, restringindo seu
campo de atuação à esfera da arte, ele veio a entender que a mesma ânsia por uma
vida esteticamente transfigurada que movia seus personagens movia também o
jogo político da época, com implicações sociais cujo prospecto em 1940 era o da
eliminação de todo elemento humano da face da terra, para que esta pudesse ser
habitada por uma raça imortal de seres superiores.
Enfim, Bioy abominava o nazismo, mas sua dedicação à l’art pour l’art, à
invenção de orbes auto-suficientes, em suas relações internas, se dava em um
período que permitia toda espécie de insuspeita contaminação entre o literário e o
político, dado o clima de fastio, ou desespero cultural, que estimulava a busca de
soluções da mesma ordem em ambas as instâncias. A predominância da imagem
sobre a escrita, da eternidade sobre o tempo, do rigor científico sobre as incertezas
morais: tudo isso eram fatores que a ilha do Dr. Morel compartilhava com a
imagem de um mundo nazificado, embora a apropriação de hábitos e costumes da
literatura francesa por Bioy subtraísse de sua escrita os aspectos vitalistas do
prussianismo.
Entretanto, embora esteja estreitamente relacionado a este, o principal
problema que pretendo abordar nesta seção é outro, para o qual o que foi discutido
tem uma função preparatória. Foi sugerido que Borges entendia o nazismo como
uma ideologia política forjada sobre a identificação entre ciência e estética,
propagando ideais de perfectibilidade e pureza, que, mesmo no território ficcional,
seriam empobrecedores, e cujos líderes careciam do senso de realidade necessário
para detectar a riqueza de nuances contraditórias do real, a incoerente diversidade
do mundo. Surge então o tema de como a própria reação ao nazismo podia
confirmar a força deste modelo cognitivo. Isto é, de como os limites entre o real e
o irreal podiam estar de tal maneira comprometidos, em certo momento histórico,
que o próprio senso de realidade capaz de diferenciá-los tivesse se tornado um
atributo anacrônico, conforme nuances e incoerências de fato deixassem de existir
no mundo.
Pois, ao mesmo tempo em que o artifício ganhava um poder estruturante
positivo no âmbito da política, o gênero fantástico havia se tornado nos anos 30
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181
um instrumento de denúncia desta conjuntura, adequado às mais apocalípticas
perspectivas. E a obra de H. G. Wells, por exemplo, se em um primeiro momento
estava associada à desinteressada elaboração de universos singulares, cada vez
mais assumia um viés político e um caráter alegórico, apontando para o risco que
corriam as nações democráticas diante do rearmamento alemão. Esta mudança de
atitude não deixava de ser natural: acostumado a criar incríveis tramas ficcionais,
Wells aplicava à realidade o mesmo mecanismo de articulação dos elementos
narrativos utilizado em seus livros, descobrindo ali um enredo tão rigoroso e
inverossímil quanto o de suas fantasias literárias. O que, em outras ocasiões, teria
sido para ele um inocente desvio da normalidade burguesa, se revertia na
representação do modelo adotado por uma reação feroz contra esta normalidade.
E, se a imagem da sociedade secreta, e a idéia da conspiração, haviam sido sempre
motivos fabulares, elas agora se encaixavam perfeitamente à visão de um mundo
regido pela fabulosa escalada do nazismo.
Agora, sabemos que, por mais que apreciasse os primeiros trabalhos de H.
G. Wells, Borges via a perfeição do conto fantástico ocidental com alguma
reserva; resta saber se, admirando Wells como intelectual e escritor, ele
encontrava no prospecto do domínio global germânico um vetor aplicável a
acontecimentos correntes. A questão, portanto, é a maneira como Borges
acompanhou a evolução da obra deste autor e autores correlatos, a partir do
momento em que assumiram a tarefa de representar o real no que este teria de
mais absurdo: isto é, a medida de sua disposição em concordar com o diagnóstico
contextual assim formulado. Há uma interdependência entre esta questão e a
examinada na seção anterior, tendo em vista que ambas estão vinculadas ao
período do pré-guerra, quando o pensamento de Borges estava sujeito a constantes
modulações e mudanças. Ambas convergem para a produção dos primeiros contos
do escritor argentino. No entanto, em função da peculiaridade do relato a ser
analisado a seguir, deve ser ainda abordado um tema que ficou de fora das
considerações precedentes, resultante da mobilização do fantástico como critério
de leitura de eventos históricos. Refiro-me à contaminação do olhar por um
sentimento alarmista, que estimula a inserção de cada fato ou personagem
concreto em um conjunto fechado de trâmites orientados por uma intenção
planejadora; ou seja, a um problema indissociável da utilização do fantástico
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como instrumento de esclarecimento e contra-reação política, o da relação entre a
alegoria e a paranóia.
Os fundamentos teóricos do assunto serão discutidos mais à frente. Antes,
pode ser útil entender como ela surge nos escritos de Borges. E, para isso, vale
recordar a ressalva incluída por ele na resposta à revista Nosotros, quando
perguntado sobre a iminência de um conflito bélico planetário no começo de
1936: “A desordem de ritos, de lembranças, de inibições, de habilidades e hábitos
que integram a cultura ocidental não está à mercê de uma guerra ainda que os
romances de H. G. Wells digam o contrário”.
150
Tal avaliação corresponderia ao
otimismo reformista que ele então buscava cultivar para com o futuro de seu país,
e o do mundo no qual ele deveria se integrar, como vimos na seção 2.2; por mais
que soubesse da crise que o ocidente atravessava, Borges acreditava no
restabelecimento da ordem internacional o que implicava pressupor sua
tendência à desordem –, tanto quanto queria acreditar na reconstrução das
instituições argentinas.
151
E a resistência em acatar previsões catastróficas estava de acordo com o
resguardo da crença em um senso comum, de índole conservadora e progressista
ao mesmo tempo, cujo processo de dissolução poderia ser revertido, antes que se
confirmassem os piores prospectos. Nesta perspectiva, as distopias futurológicas
que, radicalmente opostas aos ideais redentores da política contemporânea,
buscavam representá-los sob modelos aterrorizantes, eliminavam as zonas de
sombra e de ambivalência da realidade tanto quanto seus equivalentes utópicos,
fazendo uso de uma restritiva perfeição formal na elaboração de suas tramas, que
Borges atribuía à necessidade de causar determinado efeito de verossimilhança,
150
BORGES, J. L. “América y el destino de la civilización occidental”. [Nosotros, segunda época,
Buenos Aires, año 1, n. 1, abril de 1936]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 342-343.
151
Apesar das óbvias diferenças contextuais e circunstanciais, o comportamento parece ser
análogo ao exposto por Hans Ulrich Gumbrecht no estudo do caso de Erich Auerbach, com ênfase
na preservação de certa compostura diante da iminência da catástrofe. Cf. ‘Pathos da Travessia
Terrena’ – o cotidiano de Erich Auerbach” In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE
JANEIRO. V Colóqio UERJ: Erich Auerbach. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 91-125. Para a
sugestão de um quadro comparativo em relação a outros intelectuais europeus, ver o texto
subseqüente, na mesma coletânea, de Ricardo Benzaquen de Araújo: “À sombra do vulcão
comentário a ‘Pathos da Travessia Terrena’ o cotidiano de Erich Auerbach’, de H. U.
Gumbrecht”, p. 126-135. No âmbito político argentino, acredito, segundo indicação de Túlio
Halperín Donghi, que na figura do senador Lizandro de La Torre, autor de artigos como “Grandeza
y Decadencia Del Facismo”, podem ser encontrados pontos de contato com a postura adotada por
Borges (cf. DONGHI T. H. La Argentina y la Tormenta del Mundo: ideas e ideologías entre 1930
y 1945. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004, p. 123-4).
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verificada em obras de épocas declinantes. Em suma, o que ele relutaria em
admitir era o esgarçar completo de uma esfera de racionalidade e confiança, o
qual legitimasse o pessimismo destas obras, sendo simultaneamente corroborado
por elas, na medida em que substituíam a diapasão irônica de antigos moralistas,
como Voltaire e Jonathan Swift, pelo impacto pictórico dos novos adivinhos da
catástrofe.
A contraposição à realidade de um modelo de perfectibilidade social era
correlata à sua apresentação como um caos de aparências regido por forças
malignas. Ambas partiam de um modelo moral rígido, de intenção pedagógica e
iluminista, cujo exato oposto era o mundo tal como contemplado pelo escritor, o
que o levava a assumir uma postura de negação radical do mesmo. Utopia e
distopia seriam igualmente produtos de espíritos visionários, capazes de
configurar a exemplaridade do não-existente com o mesmo método que
desvelavam a imperfeição do real. Mas, em 1936, Borges não encontrava sistema
algum na loucura de seu tempo histórico, o que tornava reversível o seu rumo em
direção à guerra, na medida em que a negociação aparasse as arestas de uma
ordem que, por pressupor o conflito, saberia como operar com ele.
E, dentro deste contexto, o fantástico não seria um gênero apropriado nem
para a projeção de uma sociedade sem defeitos, nem para a exposição dos defeitos
da sociedade: ela apenas constituía uma possibilidade de esquecê-la por alguns
momentos. A verdadeira autonomia da estética em relação à política consistia
nesta despretensiosa função, na qual nenhuma confusão entre as duas esferas era
estimulada. O que, porém, seria de uma notável raridade, tal como se depreende
desta passagem, do mês de março daquele mesmo ano:
Suspeito que o exame geral da literatura fantástica revelaria que é muito pouco
fantástica. Percorri muitas Utopias: desde a epônima de More até Brave New World
e não conheci uma única de ultrapasse os limites caseiros da sátira ou do sermão
e que descreva pontualmente um falso país, com sua geografia, sua história, sua
religião, seu idioma, sua literatura, sua música, seu governo, sua controvérsia
matemática ou filosófica... sua enciclopédia, enfim: tudo muito articulado e
orgânico, como era de se esperar, e (devo ser muito exigente) nada que prescinda
da alusão às penalidades injustas de que padeceu o capitão Alfred Dreyfus.
152
152
“Sospecho que un examen general de la literatura fantástica revelaría que es muy poco
fantástica. He recorrido muchas Utopías: desde la epónima de More hasta Brave New Worldy no
he conocido una sola que rebase los límites caseros de la sátira o del sermón y que describa
puntualmente un falso país, con su geografía, su historia, su religión, su idioma, su literatura, su
música, su gobierno, su controversia matemática y filosófica… su enciclopedia, en fin: todo ello
articulado y orgánico, por supuesto, y (me consta que soy muy exigente) sin alusión a los trabajos
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Há, sem dúvida, certo exagero na declaração, contrastante com a idéia,
divulgada por Borges em outros textos, de que no século XIX, entre outras
épocas, o mítico e o fantástico haviam sido antes objeto de divertimento que
veículo de pregação. O fenômeno estava associado ao surgimento da literatura
gauchesca em Buenos Aires, e e às obras de Lewis Carrol e Rudyard Kipling, por
exemplo: a primeira decorrente da normalização do processo de constituição do
estado argentino, e as últimas correspondentes ao auge da autoridade britânica.
Ambas, no entanto, antecedendo a derrocada dos regimes que proporcionavam
sua emergência, justamente a partir do ponto em que parecessem mais sólidos e
estáveis.
Neste sentido, o caso Dreyfus assinalava o início de uma nova era:
conforme o fantástico não prescindisse da alusão alegórica aos seus trâmites, ele
retomava a inclinação alarmista e moralizante, agora se enrijecendo cada vez mais
em certos modelos de esclarecimento, com a composição de tramas destinadas à
revelação de estruturas subjacentes à crise. Pois o episódio, ocorrido na França no
final do século XIX, gerou toda uma literatura política predisposta a ver nele o
resultado de um obscuro complô anti-semita, tanto quanto nas origens do caso
estavam suspeitas de que uma conspiração judaica estava em vias de controlar o
estado francês.
153
Assim, ao mesmo tempo em que a aversão aos judeus se
direcionava para a sua transformação em uma ideologia sistemática, a defesa do
judaísmo passava a ver campanhas articuladas com premeditação onde podia
existir somente um tradicional sentimento de repulsa. Uma coisa alimentava a
outra: ao medo de que as nações européias sentiam de serem vítimas do elemento
desagregador semita, equivalia o medo de que as leis dos estados constitucionais
não fossem suficientes para conter a ilegalidade da ideologia racial. E o medo
faz parte da formação do movimento totalitário neste duplo direcionamento: ele o
justifica e é por ele justificado.
Deste modo, o sentenciosidade com que Borges afirmava o caráter evitável
da guerra traduziria uma segurança postulada por princípio: é preciso acreditar
injustos que padeció el capitán de artillería Alfredo Dreyfus”. BORGES, J. L. “ ‘La Estatua
Casera’, de Adolfo Bioy Casares”. [Sur, Buenos Aires, año VI, n. 18, marzo de 1936]. In: ____.
Borges en Sur, p. 130-131.
153
Cf. ARENDT, H. “O Caso Dreyfus”. In: ____. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto
Raposo. São Paulo: Cia das Letras, 1989 [ 1949], p. 11-143.
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que a guerra será evitada, pois o contrário significa submeter-se à lógica do
inelutável, que caracteriza a penúria imaginativa dos que pensam que o futuro não
pode diferir do presente. Uma dose de temor, porém, deve estar por trás desta
postura, colocando o agente político de prontidão para responder às ameaças à
estabilidade. Entre estas respostas, a guerra é o último e legítimo recurso no
plano internacional, assim como a revolução restauradora está para o risco à
unidade nacional: esgotados os mecanismos diplomáticos e parlamentares, elas
operam uma restituição da autoridade fundadora, por meio do estado de exceção.
Na segunda seção do capítulo anterior, vimos como o pensamento de Borges, em
meados da década de 30, presumia um componente de realismo que abarcava
estes raciocínios, referidos à conjuntura local; na terceira, a questão das relações
entre os estados foi discutida de acordo com referências similares. Todas elas,
porém, implicam a normalidade institucional como um ponto ao qual se pode
sempre retornar, mesmo que através da aceitação de sua inviabilidade presente.
Até 1939, isto parecia seguir valendo para Borges; mas agora, expandindo o
recorte para o ano seguinte, trata-se de examinar como esta perspectiva podia estar
equivocada, em uma situação de completo transtorno das categorias que a
sustentavam, quando a própria noção do estado de exceção podia ter perdido sua
substância, tornando-se definidora da realidade do mundo.
Era a possibilidade deste transtorno que a calma e a parcimônia inglesas
rejeitavam por princípio, na sua insistência em pressupor que alguma
racionalidade guiava as ações de Hitler. Paradoxalmente, talvez ele tivesse sido
evitado, se maior crédito tivesse sido concedido ao pânico fantasioso de Wells.
Quanto a este último, Borges emitiu juízos variáveis ao longo do período.
Eventualmente, lastimava o fato de que o escritor inglês tivesse abandonado sua
vocação para a “pura invenção de sucessos imaginários”, dedicando-se a
divagações políticas; e, um ano depois do fim da guerra, reafirmaria este
diagnóstico em um ensaio de elogio ao “primeiro Wells”, que, “antes de resignar-
se à especulação sociológica”, teria sido um admirável narrador, em obras como
The Time Machine (1895) e The First Men on the Moon (1901).
154
Mas nem por
isso Borges deixou de prestar atenção à maneira como os trabalhos tardios do
escritor tinham uma formulação peculiar, mais complexa do que uma leitura
154
BORGES, J. L. El primer Wells” [Los Anales de Buenos Aires, año 1, n. 9, septiembre de
1946]. In: ____. Otras Inquisiciones. OC, vol. 2, p. 79-81.
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rasteira poderia sugerir. Assim, no comentário sobre The Croquet Player,
publicado em fevereiro de 1937, ele discorria sobre o efeito alegórico do livro
rememorando a pergunta da esfinge a Édipo: qual é o animal que tem quatro patas
pela manhã, duas à tarde, e três à noite? Sua intenção era demonstrar que, na
resposta à charada, ao contrário de restabelecer-se em sua unidade e significação
originais, o conceito de “homem” era inesperadamente transfigurado, no
reconhecimento deste como um assombroso animal mutante. Daí a conclusão:
Neste libro, os procedimentos literários de Wells coincidem com os da Esfinge
tebana. A Esfinge descreve com toda prolixidade um monstro variável: esse
monstro é o homem que a ouve. Wells descreve uma região de pântanos
envenenados onde ocorrem fatos atrozes; essa região é Londres ou Buenos Aires, e
os culpados somos você e eu.
155
Deste modo, o horror do qual Wells oferecia uma imagem em seu livro era
obra de criaturas terrestres, com que cada leitor podia se identificar. E o tema da
responsabilidade coletiva surgia como conseqüência de um transtorno moral
generalizado, que conduziria o ocidente até uma situação limite poucos anos
depois. Os ideólogos e burocratas da máquina totalitária eram monstruosos e, ao
mesmo tempo, pessoas comuns, cujos processos mentais fundamentavam-se numa
relação entre profundas frustrações e aspirações grandiosas; muitas outras pessoas
comuns de todo o planeta haviam estado sujeitas a este esquema de
comportamento, a partir dos primeiros sintomas da falência da tradição, agravada
por sucessivas crises políticas e econômicas. Borges compreendia este processo,
e via, em sua própria obra de juventude, uma ânsia pela transfiguração do real que
podia a ele ser creditado, embora pouco tivesse ultrapassado os limites da pura e
irresponsável especulação, como muitos outros produtos literários de seus pares,
que assim teriam sido preparados em uma fase de transição, na qual as
conseqüências de se levar a cabo os projetos imaginados não tinham que ser
realmente encaradas. Surgia então a pergunta: até que ponto todos estes agentes
seriam também culpados pelo desdobramento da crise na direção que podia ser
155
BORGES, J. L. “ ‘The Croquet Player’, de H. G. Wells”. In: ____. Textos Cativos. Trad. Sérgio
Molina. OC [edição brasileira], vol. 4, p. 291. “En este libro los procedimientos literarios de Wells
coinciden con los de la Esfinge tebana. La Esfinge describe con toda prolijidad un monstruo
variable: ese monstruo es el hombre que la está oyendo. Wells describe una región de pantanos
envenenados en la que ocurren hechos atroces; esa región es Londres o Buenos Aires, y los
culpables somos y yo”. BORGES, J. L. ‘The Croquet Player’, de H. G. Wells”. [El Hogar, 5
de febrero de 1937]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 270.
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187
entrevista em 1937? Wells parecia ter uma resposta inequívoca. Mas é válido
destacar que, dada a complexidade do problema, somente um intelecto paranóico
podia dar a ele uma solução desta natureza, compreendendo o desenrolar da
história como um fenômeno articulado por determinações universais.
Por razões como esta, no ano seguinte, Borges afirmaria ainda que os
últimos trabalhos de Wells “não passavam” de sátiras ou alegorias, ou seja: que,
mesmo operando com aquele engenhoso mecanismo de identificação, seu alcance
literário era reduzido por uma moralidade destituída de visão do particular. E,
como contraponto, apresentava Out of the Silent Planet (1938), de C. S. Lewis
hoje mais conhecido como o autor de Chronicles of Narnia –, uma “obra de tipo
de psicológico”, na qual as reações de determinado personagem diante do
intolerável e do atroz importavam mais do que as descrições de uma vertiginosa
paisagem fantástica, ou a atribuição da responsabilidade por seu avanço a todo um
povo ou civilização.
156
A diferença é sutil, mas crucial: a trama relata um processo
de supressão da individualidade, mas, ainda assim, o indivíduo é o foco da trama.
O esquema é alegórico – “estranho influxo da influência de nosso tempo: o
vermelho Marte, na ficção de C. S. Lewis, é um planeta pacifista”, diz Borges –,
mas seu desenvolvimento diz respeito justamente à submissão do herói à miséria
da alegoria. De modo que ele também termina por identificar-se com o intolerável
e o atroz, mas esta identificação seria antes um processo narrativo singular do que
um pressuposto sociológico geral.
Isto pode explicar porque Out of the Silent Planet é uma chave de leitura
para “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius” uma alegoria que é também sobre a terrível
identificação de um indivíduo, Jorge Luis Borges, com a estrutura de sua
narração. Cabe, portanto, expor em linhas gerais o argumento de Lewis. Ele se
articula em torno dos seguintes componentes: Dr. Ramson, o protagonista, chega a
Marte, participando, à força e contragosto, de uma missão colonizadora,
comandada por um ideólogo que pretende conquistar o planeta vermelho,
evocando a superioridade da raça humana ou ao menos de seus mais aptos
exemplares para legitimar seu propósito. E, diante da índole pacífica dos
marcianos, este ideólogo acredita que não terá dificuldades em obter êxito. A
empresa fracassa. Mas, após seu retorno à Terra, Ramsom está convencido de que
156
BORGES, J. L. “Un primer libro memorable”. [Sur, Buenos Aires, año IX, 10 de febrero de
1939]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 441.
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precisa alertar o resto da humanidade da existência de uma rede conspiratória e
maligna, que estaria por trás daquela primeira missão. E, para tanto, solicita a um
amigo que escreva sua história sob a forma de um relato ficiconal. Enfim, é
descrita uma elucidativa conversa entre ambos, na qual eles concluem que o
melhor seria publicar a crônica como uma obra de literatura fantástica, sugerindo
que, em seu esquema, residia uma possibilidade de esclarecimento dos leitores
sobre possíveis sucessos reais de empresas semelhantes. Segundo o narrador:
Foi o Dr. Ramsom quem primeiro percebeu que nossa única chance era publicar
em forma de ficção o que não receberia atenção como fato (…) À minha objeção
de que, se aceito como ficção, [a narrativa] seria por este mesmo motivo tomado
como falsa, ele replicou que haveria indicações suficientes para os poucos leitores
os muito poucos que no presente estivessem preparados para se aprofundar no
assunto [grifo no original].
157
E, em 1940, Borges publicava sua própria narrativa sobre o momento
histórico que o mundo atravessava, atribuindo a motivação da escrita de “Tlön,
Uqbar, Orbius Tertius” a circunstâncias relatadas no início do conto:
O fato ocorreu faz uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo naquela noite e
deteve-nos uma extensa polêmica sobre a elaboração de um romance em primeira
pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas
contradições, que permitissem a poucos leitores a muito poucos leitores a
adivinhação de uma realidade atroz ou banal.
158
O prosseguimento do relato será retomado mais adiante. Por ora, a
ressonância do texto de Lewis no de Borges, através da proposição de uma
charada cuja solução estaria restrita a um grupo restrito de iniciados, traz consigo
uma referência às categorias do segredo e da sociedade secreta que deve ser
aproveitada. A partir dela, creio que será possível entender como, se a princípio
Borges relutou em mobilizar o método alegórico para sua própria leitura e
157
“It was Dr Ransom who first saw that our only chance was to publish in the form of fiction
what would certainly not be listened to as fact (…) To my objection that if accepted as fiction, it
would for that very reason be regarded as false, he replied that there would be indications enough
for the few readers the very few who at present were prepared to go farther in the matter”.
LEWIS, C. S. Out of the Silent Planet. London: HarperCollins Publishers, 2005 [1938], p. 197.
158
BORGES, J. L. “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”. Trad. Carlos Nejar. In: ____. Ficções. OC
[edição brasileira], vol. 1, p. 475. “El hecho se produjo hará unos cinco años. Bioy Casares había
cenado conmigo esa noche y nos demoró una vasta polémica sobre la ejecución de una novela en
primera persona, cuyo narrador omitiera o desfigurara los hechos e incurriera en diversas
contradicciones, que permitieran a unos pocos lectores a muy pocos lectores la adivinación de
una realidad atroz o banal”. BORGES, J. L. “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” [1940]. In: ____.
Ficciones. OC, vol. 1, p. 461-482.
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representação do mundo, ele terminou por ser persuadido da validade do
procedimento, ao mesmo tempo em que transformava esta aceitação em um tema
literário. Aquela relutância se deveria a um dilema que atravessa quase toda sua
trajetória: a consciência de que a sátira e a paródia são gêneros literários típicos de
períodos de decadência, simultânea à percepção de que a sátira e a paródia eram
os únicos gêneros disponíveis a um escritor de sua índole, em sua posição
histórica, e de acordo com identidade social que ele incorporava.
O que nos oferece a oportunidade de situar “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius”
em relação ao desenvolvimento de sua obra até aquele momento, segundo o que
foi exposto nos capítulos anteriores.
Primeiramente, devem ser recordadas as noções de superstição literária e
virtuosismo estilístico, com as quais Borges caracterizava a extinção dos
sustentáculos de uma prosa baseada na confiança e na razão. No início da década
de 30, ele havia escrito a Historia Universal de la Infamia de modo a ilustrar, com
fortes efeitos pictóricos, o que havia de ridículo nos procedimentos formais
daquele tipo; mas, nem por isso, os textos deixavam de servir para o consumo de
massas, inclusive porque criavam a sensação de que um segredo se escondia sob
seus tumultos, de grande apelo para o público a que se destinava. Assim, se as
épocas clássicas presumiam valores compartilhados e negociáveis, e que de
antemão prescindiam de uma representação impactante, a dissolução de suas bases
criava um ambiente cada vez mais instável, no qual truques retóricos podiam se
passar por fontes de significados ocultos. Por outro lado, o temperamento do
autor, mesmo neste contexto, o levava a acreditar que outro destino e outras
tarefas o aguardavam.
É da natureza da e da esperança resistir às evidências que seus
fundamentos se perderam. O homem sincero e confiante deve antecipar-se à
tentação do desespero. Isto justifica a composição de um discurso como “Tareas y
destino de Buenos Aires”, em meio às atribulações por que passava a Argentina
na década de 30: por mais que o projeto constitucionalista estivesse à beira de um
colapso, esta podia ser somente mais uma provação fortalecedora de seus
princípios. Não é o caso de se perguntar até que ponto Borges de fato cogitava
este encaminhamento, pois a sinceridade permite que determinado grau de
convicção seja forjado em meio à incerteza, de modo a ser transmitido e
propagado em um povo, da mesma maneira que requer certa encenação de
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insegurança na estabilidade, para que esta não se converta em um pressuposto
estático. Todavia, enquanto ele pronunciava suas palavras, a Europa enfrentava o
agravamento de uma crise em grande medida causada pelo excesso de otimismo
britânico, representado pela doutrina da harmonia de interesses, na qual a força da
providência assumia um caráter apriorístico, e alheio à realidade dos fatos. Em
retrospecto, isto transforma o discurso de 1936 em um epílogo da tradição
oitocentista, mesmo que ele se apresentasse como motor de recuperação da
mesma. A partir daí, seus conteúdos seriam re-contextualizados pelo orador
apenas em manifestações pontuais.
Mas o seriam, na tradução do poema de Chesterton sobre as cruzadas, e no
poema dedicado ao natal inglês de 1940 peças em que o propósito motivador da
oratória pode ser claramente detectado, e onde eram expressas expectativas
congêneres, associadas à idéia de um ressurgimento das habilidades práticas dos
ingleses, na medida em que estes abandonassem suas certezas teóricas. Por outro
lado, a evocação do nome de Dickens podia ser um último e maníaco recurso
contra a constatação de que, se antes havia um delicado equilíbrio entre a negação
e a afirmação da integridade do mundo, este tinha se rompido. E, com este
rompimento, os pólos da ordem e da desordem perdiam os mediadores que
possibilitavam sua interação, tornando-se virtualmente tão afastados quanto
indistintos. À mais completa instabilidade, corresponde a ânsia por esquemas
categóricos para a explicação do universo, tal como, por exemplo, a idéia de que
uma conspiração perfeitamente articulada está por trás da confusão do orbe.
Em “Pierre Menard, autor del Quijote”, reencontramos um autor condenado
à paródia, isto é, ciente de sua situação sócio-histórica, em que a identificação do
embuste tomava o lugar da construção do futuro. Se alguma esperança podia ser
preservada, antes de tudo era preciso acatar a tarefa mais vil de ser um mero
demolidor de utopias. Não obstante, em sua intenção moralizante, o satírico e
o paródico podem reter um bem-humorado descompromisso, e uma disposição
ingenuamente perplexa com as extravagâncias humanas, da qual a obra de Edward
Gibbon oferece talvez o melhor exemplo. O mesmo não pode ser dito da alegoria
política, situada no último nível do declínio da confiança, referindo-se a uma
conjuntura alarmante, em que não há espaço para brincadeiras. E, sobretudo
depois de 1939, Borges se viu na iminência de ter que abandonar até mesmo o
humor empregado em seus textos. Pois, em 1940, ele passou a ver bastante
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verossimilhança nos romances de H. G. Wells. E o pior é que ele foi convencido
disto não somente pelo romancista, mas, sobretudo, pelas espantosas criaturas que
pareciam afinal estar dando uma forma à realidade, mesmo que de modo um tanto
caótico, guiados pela pobreza de sua ciência e pela exuberância de suas visões. O
poder da máquina totalitária, ela mesma originada na instabilidade e na paranóia,
está em seu auge quando seus inimigos passam a acreditar na eficácia de suas
configurações.
Por este motivo, “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius” pode ser considerado um
conto estéril, de um realismo grosseiro, pois nem que quisesse o autor conseguiria
se desvencilhar da gica em que a conjuntura o enredava. O que pretendo avaliar
a seguir, portanto, são os mecanismos que conferiam tal força persuasiva ao
modelo cognitivo cuja vitória até então parecia acontecer não apenas no plano
militar, mas também no âmbito da imaginação humana, em diversas partes do
planeta. E, para isso, devo resgatar determinadas reflexões sobre assuntos já
mencionados, em um desvio talvez extenso, mas, com sorte, esclarecedor.
Antes de tudo, serve à análise o estudo de Georg Simmel sobre o segredo e
as sociedades secretas.
159
Nele, se o primeiro fator surge como força de
preservação do encanto e do mistério no mundo – e, portanto, como motivo de um
certo desconcerto, de uma certa humildade do homem em relação aos outros e à
natureza –, o segundo estabelece, com o princípio do sigilo, uma rede de
orgulhosos iniciados, sob o modelo de um artifício extravagante e esquemático,
isto é, um constructo formal derivado de complexas operações de planejamento e
sistematização. Deste modo, o próprio conteúdo do segredo perde importância,
diante das estruturas rituais que o envolvem, o protegem e lhe são sobrepostas, ao
ponto de se tornarem autônomas, sem dúvida pressupondo um centro carismático
de onde emanam seus significados, mas que precisa permanecer oculto, para não
perder a eficácia como fonte de explicação da realidade. E, quanto maior a
abrangência da sociedade secreta, quanto maior sua alusiva incidência no
cotidiano, mais a realidade e a história ficam submetidas à fantástica interpretação
que o segredo lhes impõe “fantástica” por ser causa de admiração, fascínio e
assombro em suas operações estéticas, e porque recusa os padrões morais comuns
159
Utilizo a seguinte edição: SIMMEL, G. “El secreto y la sociedad secreta” [1908]. In: ____.
Sociología: estudios sobre las formas de socialización. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1939, p. 331-
392.
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dos não-iniciados, substituindo-os pela suposta organicidade de uma nova ordem
total, e um mecanismo de despersonalização que legitima o crime, como meio de
se criar e manter a coesão interna do grupo.
Em Os Demônios (1871), o romance de Dostoievski, este processo é
encenado, com ênfase no caráter prescindível da própria formulação do segredo.
Assim, ele se converte no mote de uma trama conspiratória, capaz de causar o
transtorno de toda uma comunidade, como que encantada pela emergência de um
ainda desconhecido sistema doutrinário, cujo porta-voz é o jovem Piotr
Verkhovenski. Borges comentou a obra em um prólogo escrito no fim de sua
vida, rememorando como, quando a leu pela primeira vez, os personagens adultos
do enredo – aqueles que deveriam conter o ímpeto conspirador de Verkhovenski –
lhe pareceram ser os mesmos “argentinos irresponsáveis” que, em determinado
momento, teriam estimulado as vanguardas estéticas e acolhido as ideologias
políticas do século XX, sem compreender seus fundamentos teóricos e
conseqüências objetivas.
160
No romance, quando estes resolvem reagir, é tarde
demais, e o assassinato planejado por Verkhovenski como ato de fundação de sua
célula revolucionária local aconteceu, contando com a participação de criaturas
frustradas e ressentidas, mobilizadas por ele para o arremate da tarefa. Note-se
que Varvara Petrovna, uma das figuras citadas por Borges em sua analogia, é uma
temperamental dama aristocrática e liberal da pequena cidade em que se
desenvolvem os eventos, com traços de personalidade e posição social
notavelmente semelhantes aos de Victoria Ocampo. Embora seu retrato seja mais
caricaturesco no que se refere à sua fascinação pelas correntes artísticas
novidadeiras, e em sua promoção de festas e salões literários afrancesados em um
rincão desolado no meio do território russo.
Albert Camus viu em Os Demônios um esboço dos métodos de assalto à
vida pública utilizados pela doutrina nazista; mas foi Hannah Arendt, partindo de
algumas conclusões de um trabalho pioneiro de Franz Neumann, que se
aprofundou no exame do partido nacional-socialista como uma “sociedade secreta
à luz do dia”, em uma linha de análise que teve prosseguimento na obra de Martin
Broszat.
161
Neste sentido, Arendt ressalta que, na origem do nazismo, estava a
160
Cf. BORGES, J. L. “‘Los Demonios’, de F. Dostoievski [1985]”. In: ____. Biblioteca Personal.
OC, vol. 4, p. 496.
161
As obras mencionadas são as seguintes: ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto
Raposo. São Paulo: Cia das Letras, 1989 [1949], e BROSZAT, M. The Hitler State: the foundation
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idéia de uma conspiração secreta dos judeus, supostamente urdida através dos
tempos por uma seita internacional, para assumir o controle de estados
independentes, e supostamente registrada nos “Protocolos dos Sábios do Sião”,
um documento apócrifo que teria adquirido grande potência persuasiva na
Alemanha a partir da cada de 1920. A autora então comenta que, embora este
tipo de literatura política clandestina tivesse desempenhado certo papel em outras
ocasiões na Revolução Francesa, por exemplo –, os nazistas agiam
fervorosamente como se ela possuísse valor científico, e pudesse ter sua
pertinência confirmada pela observação, demandando, com isso, uma contra-
conspiração para ser combatida. A ficção de um mundo totalmente dominado pelo
capital semita e anglo-saxão, e permeado pela inautenticidade desordenada das
relações monetárias, teria servido, portanto, de estímulo para o surgimento do
regime hitlerista, em torno de um segredo de raízes raciais e ontológicas, que
projetava a imagem de um cosmos em constante movimento.
Os rituais públicos do Terceiro Reich repercutiam esta duplicidade: por um
lado eram imensas e simétricas manifestações de lealdade ao sigilo
compartilhado, e por outro, através da sensação de intensidade vital causada pelas
representações ritualísticas, não chegavam nunca a um ponto de repouso que
estabilizasse os conteúdos por ela anunciados. Isto tornava a existência uma
espécie de jogo, no qual sobrevivia a certeza da posse de um segredo em última
instância indefinível, posto que fundado em uma lei natural, sem expressão
completamente adequada na linguagem, tão grandiosa quanto insuficiente na
eloqüência de seus enunciados. Daí o poder do partido totalitário como uma
“organização viva”, em contraste com o mecanismo morto do partido burocrático;
daí seu desapego por leis positivas, que podiam ser mudadas a qualquer momento,
pois seriam modos intercambiáveis de uma legalidade absoluta, desatrelada das
normas escritas de uma constituição nacional.
Isto explicaria, em grande medida, o amorfismo do regime nazista, com sua
ausência de estruturas hierárquicas estáveis, sua indefinição quanto a instâncias
decisórias intermediárias, e sua confusão administrativa, assinalada pela maioria
dos estudiosos. E neste ponto o cerne da questão é o conceito de totalitarismo.
162
and development of the internal structure of the Third Reich. Translated by John W. Hiden.
London and New York: Longman, 1985 [1969].
162
Baseio a discussão sobretudo nestes textos: KERSHAW, I. “The essence of Nazism: form of
fascism, brand of totalitarianism, or unique phenomenon” e “Hitler: ‘Master of the Third Reich’ or
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Pois ele diferencia o fenômeno observado dos regimes autoritários, em que uma
ordem é imposta à realidade a partir da intervenção de uma força normativa
estabilizadora, que não pode dispensar a hierarquia para ter efetividade (e parece-
me que, também por este motivo, a evolução do governo nacional-socialista o
distanciou dos desígnios atribuídos à sua emergência por Carl Schmitt, em uma
etapa inicial). Decerto, a vontade do führer desempenhava um papel indispensável
para o funcionamento da máquina, e seu desejo era a Lei, mas uma Lei que, de
acordo com a dinâmica totalitária, podia encarnar-se em qualquer lugar, a
qualquer momento, sendo o “segredo” a ser interpretado por todos os cidadãos, de
maneira indiferenciada. Assim, constantes alterações nos cargos governamentais
preservavam a mística das sociedades secretas, criando universo aparentemente
tumultuoso, que, contudo, seria governado por uma lógica identificável pelos
iniciados no conhecimento esotérico original. O edifício totalitário não possuía
uma estrutura nítida porque caminhava em direção à Estrutura absoluta; seus
sofisticados e extraordinários artifícios formais podiam ser caóticos na superfície,
mas estavam envoltas por uma aura onipresente, reafirmando a crença de que
eram o resultado de uma disposição sobre-humana, ocultada aos olhos de pessoas
comuns.
163
Enfim, pode ser feita uma constatação de grande relevância para a análise
subseqüente: a de que o objetivo de um movimento totalitário pode ser o do
domínio global, sendo que sua primeira manifestação em um país isolado
funciona apenas como uma espécie de teste para suas verdadeiras ambições. Ao
caráter absoluto da lei que o governa corresponde o desconhecimento de
diferenças sócio-históricas e fronteiras territoriais; todo o planeta torna-se para ele
um vasto território onde deve ser aplicada a vigência do segredo. De modo que
‘Weak Dictator’?”. In: ____. The Nazi Dictatorship: problems and perspectives of interpretation.
London: Edward Arnold, 1985, p. 18-41 e 61-81. ARAUJO, R. B. “Totalitarismo, igualdade e
liberdade”. In: ____. Totalitarismo e Revolução: o integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1987, p. 77-104. GENTILE, E. “El edificio inconcluso. El estado totalitario del
fascismo”. In: La Vía Italiana al Totalitarismo. Trad, Luciano Padilla. Buenos Aires: Siglo XXI
Editores, 2005 [2001], p. 263-286.
163
A principal referência sobre o assunto é o famoso texto de Walter Benjamin intitulado “A obra
de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” [1934]. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica,
Arte e Política ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 165-196. Na vasta bibliografia sobre o autor e o tema, remeto a um
artigo de Russel Bermann, intitulado “The Aestheticization of Politics: Walter Benjamin on
Fascism and Avant-garde” que serviu ao propósito deste exame. In: BERMAN, R. Modern
Culture and Critical Theory: art, politics, and the legacy of the Frankfurt School. Madison: The
University of Winscosin Press, 1988, 27-41.
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este, mesmo tendo origem ontológica na terra pátria, termina por avançar no
sentido de uma síntese metafísica, alcançando uma dimensão universalista, sem
restrições de caráter temporal ou espacial. E a tal desdobramento equivale uma
intensificação ainda maior dos processos destinados a evitar o “desencantamento”
com o regime, entre eles o do estabelecimento da guerra total prevista por Ernst
Jünger, em que, mais do que nunca, o caos e a barbárie são fruto de um
imperativo vitalista, no qual reside o pressuposto de uma ordem superior.
Paralelamente, tal intensificação dá-se com o aumento do sentimento de
insegurança que é indissociável de configurações desta natureza, dada a
impossibilidade de uma estabilização, que implicaria sua ruína; e, quanto maior a
insegurança, maior o impulso paranóico que está na fonte do movimento
totalitário, mas somente no auge de sua atuação o qualifica como tal. Por este
motivo, apenas ao Terceiro Reich o conceito de totalitarismo pôde ser aplicado
sem ressalvas, e, mesmo neste caso, tendo em vista os acontecimentos posteriores
ao início da Segunda Guerra Mundial, que o dissociaram definitivamente de
fenômenos fascistas como o italiano.
Foi em 1940 que o projeto expansionista alemão atingiu um clímax para o
qual se encaminhou de acordo com este mecanismo, o que deve justificar a
digressão feita. Internamente, a suspensão de padrões morais regulares, e a criação
de um ambiente inverossímil, em uma perspectiva utilitária ou cotidiana, seriam
ainda radicalizadas nos campos de extermínio, infernos sistemáticos instalados
para causar o maior sofrimento possível às suas vítimas; mas isto se revelaria
aos olhos do resto do mundo anos depois. Após a invasão da França, no entanto, a
sensação de que o planeta estava em vias de ser dominado por uma seita de
fanáticos, convertida em corporação internacional, foi amplamente disseminada,
segundo uma gica do segredo que afinal eliminava todo os mistérios
inexplicáveis do mundo, em favor de uma explicação da história como
determinação de forças ocultas plenamente cognoscíveis. Naquele momento, em
conseqüência das vitórias militares germânicas, mais corações e mentes eram
conquistados pela doutrina da concatenação universal dos elementos, em torno de
uma necessidade implacável. Por mais atroz ou intolerável que fosse esta idéia,
ela veio a possuir uma aplicabilidade prática capaz de convencer até mesmo os
espíritos menos propensos a acatá-la, por temperamento ou convicção. Para não
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falar daqueles que, de antemão, já estavam dispostos a regozijar-se com sua
pertinência.
Em seu diário, Adolfo Bioy Casares registrou um episódio que pode ser
retrospectivamente creditado a este clima delirante, fornecendo ao mesmo tempo
pistas para o esclarecimento de uma passagem citada na primeira seção do
capítulo precedente. Nas palavras de Bioy, que valem uma transcrição mais longa:
Sábado, 12 de maio [1956]. Borges, Mauricio e Martín Müller, e Wilcock jantam
aqui em casa. Os Müller contam que Martínez Estrada está meio peronista, meio
comunista: em Montevidéu falou da falta de liberdade que agora em Buenos
Aires, de que tudo anda tão mal que não lhe restam dúvidas que o melhor seria a
volta de Perón ao poder. Isto me fez lembrar que, no começo da Segunda Guerra,
quando a Inglaterra defendia sozinha o mundo livre, nos reunimos no restaurante
chinês La Pagoda, na esquina de Diagonal com Florida, para assinar um manifesto
a favor dos aliados. Nesta manhã, os primeiros a chegar fomos Borges, Petit de
Murat, Martínez Estrada e eu. Borges e eu explicamos nosso propósito. Martínez
Estrada disse que queria fazer uma ressalva ou, pelo menos, um chamado à
reflexão. Perguntou-nos se não havíamos pensado que talvez houvesse alguma
razão, e talvez também alguma justiça, no fato de uns perdessem e outros
triunfassem, se não havíamos pensado que de um lado estava a força, a juventude,
o novo em toda sua pureza, e do outro a decadência, a corrupção de um mundo
velho (...) Petit de Murat se levantou e disse que para nós o assunto era mais
simples: “De um lado estão as pessoas decentes, de outro uns filhos da puta”. “Se é
assim”, respondeu Martínez Estrada tomando uma cor que passou do cinzento ao
amarelo, “assino com vocês, com o maior prazer”.
164
Era este tipo de comportamento que, em “Definción del germanófilo”,
Borges havia atribuído à penúria imaginativa dos que postulavam que o porvir não
podar diferir do presente, e que a Alemanha, vitoriosa até aquele momento, o
poderia começar a perder. A passagem demonstra também como as
argumentações expostas por ele no artigo não podiam mesmo ter nenhum efeito
em uma discussão com simpatizantes portenhos da causa nazista, em contraste
164
“Sábado, 12 de mayo [1956]. Comen en casa Borges, Mauricio y Martín Müller, y Wilcock.
Los Müller cuentan que Martínez Estrada está medio peronista, medio comunista: en Montevideo
habló de la falta de libertad que hay ahora en Buenos Aires, de que todo anda tan mal que no le
quedan dudas de que lo mejor sería que volviera Perón. Esto me recorque, al comienzo de la
Segunda Guerra, cuando Inglaterra defendía sola al mundo libre, nos reunimos en el restaurante
chino La Pagoda, en Diagonal y Florida, para firmar un manifiesto a favor de los aliados. Esa
mañana, lo primeros a llegar fuimos Borges, Petit de Murat, Martínez Estrada e yo. Entre Borges y
yo explicamos nuestro propósito. Martínez Estrada dijo que él quería hacer una salvedad o, por lo
menos, un llamado a la reflexión. Nos preguntó si no habíamos pensado que tal vez hubiera alguna
razón, y quizá también alguna justicia, para que unos perdieran y otros triunfaran, si no habíamos
pensado que de un lado estaba la fuerza, la juventud, lo nuevo en toda su pureza, y del otro, la
decadencia, la corrupción de un mundo viejo (…) Petit de Murat se levantó y dijo que para
nosotros el asunto era más simple: ‘De un lado está la gente decente, del otro los hijos de puta’. ‘Si
es así contestó Martínez Estrada tomando un color que pasó de grisáceo a amarillento firmo
con ustedes encantado’’. CASARES, A. B. Borges, p. 162.
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com a retórica muito mais eficaz de Ulises Petit de Murat. Note-se, porém, que a
excitação nervosa implicada no comportamento de Martínez Estrada pode ser um
dado mais importante para a compreensão do período que o conteúdo de suas
reflexões. Pois ela corresponde a um ambiente no qual a intensidade dos
acontecimentos transforma a própria história em jogo e aventura, encaminhando-a
para um desfecho aterrorizante e trágico, aguardado pelo indivíduo com uma
expectativa cada vez mais febril. A isto se refere a lembrança de Borges sobre
como teria recebido a notícia da tomada de Paris pelos alemães:
Um germanófilo, cujo nome não quero lembrar, entrou em minha casa; postado à
porta, anunciou a grande notícia: os exércitos nazistas tinham ocupado Paris. Senti
um misto de tristeza, de nojo, de mal-estar. Algo que não entendi me conteve: a
insolência do júbilo não explicava nem a estentorosa voz nem a brusca
proclamação. Acrescentou que muito em breve esses exércitos entrariam em
Londres. Toda oposição era inútil, nada poderia deter sua vitória. Então
compreendi que ele também estaba apavorado.
165
Para uma justa compreensão do objeto deste exame, portanto, é preciso reter
a noção de que, fosse ele causa de mal-estar ou desespero, todos estavam sujeitos
à paranóia, inclusive Jorge Luis Borges. Ou, de acordo com uma frase do
Facundo de Domingos Faustino Sarmineto: “Acontece que o terror é uma
enfermidade do ânimo que assola as populações, como a cólera, a viruela, a
escarlatina. Ninguém se livra, ao fim, do contágio”.
166
A idéia de que o avanço
dos acontecimentos já não podia ser detido, indo na direção de uma conquista do
orbe pela raça ariana, tinha uma permeabilidade capaz de ocupar todas as cabeças
com os cenários infernais dos romances de H. G. Wells. E Borges, por mais que
assinasse manifestos e tentasse manter a confiança nos aliados, estava igualmente
submetido às evidências de que seus piores pesadelos podiam estar se
concretizando, por obra de um conjunto de fatores talvez mais poderoso do que
qualquer impedimento moral ou mobilização militar.
165
BORGES, J. L. “Anotação ao 23 de Agosto de 1944”. In: ____. Outras Inquisições. Trad.
Sérgio Molina. OC [edição brasileira], vol. 2, p. 116-7. “Un germanófilo, de cuyo nombre no
quiero acordarme, entró ese día en mi casa; de pie, desde la puerta, anunció la vasta noticia: los
ejércitos nazis habían ocupado París. Sentí una mezcla de tristeza, de asco, de malestar. Algo que
no entendí me detuvo: la insolencia del júbilo no explicaba ni la estentórea voz ni la brusca
proclamación. Agregó que muy pronto esos ejércitos entrarían en Londres. Toda oposición era
inútil, nada podría detener su victoria. Entonces comprendí que él también estaba aterrado”.
BORGES, J. L. “Anotación al 23 de agosto de 1944”. [Sur, Buenos Aires, n. 120, octubre de
1944]. In: ____. Otras Inquisiciones. OC, vol. 2, p. 111-2.
166
SARMIENTO, D. F. Facundo. Prólogo de Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Booket, 2006.
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198
Isto é o que se depreende do prólogo para um livro de Carlos Grünberg, em
que ele, em meio aos eventos daquele ano, se referia ao “perverso e incrível
mundo de 1940”, entendendo a lucidez do autor como exceção em um tempo de
delírios, “cuja vasta sombra continental e quiçá planetária está se cerrando
sobre nós”.
167
E era este sentimento que, em 1941, teria gerado uma paranóica
afirmação de sua parte, segundo a qual, desde 1925, era praticamente impossível
encontrar um contemporâneo que não fosse nazista embora muitos negassem o
fato, ou preferissem ignorá-lo.
168
O segundo relato da tardia carreira de Borges como contista foi então escrito
sob o risco de ser também o último. E tampouco ele se isentava da
responsabilidade conferida a tantos outros pela conjuntura mundial na ocasião. No
entanto, a dramaticidade destas percepções transfigurou-se ali em um texto frio e
metódico, que, com a técnica de um psicopata, sobrepõe as peças de uma estrutura
narrativa perfeita, e ao final revela uma realidade atroz e banal subjacente.
Devo acompanhá-lo em suas evoluções mais importantes, de acordo com o
propósito da análise.
O título do relato é uma composição tríptica, que alude à síntese
cosmológica de uma dualidade: Tlön, Uqbar, Orbius Tertius.
169
E, a seguir, o
universo de tautologias a que ele se refere começa a ser construído com a
recuperação de uma máxima anteriormente proclamada na obra de Borges pelo
profeta Hákim de Merv, na Historia Universal de la Infamia, mas agora
relembrada como a declaração do líder de uma seita de Uqbar, que teria
considerado os espelhos e a cópula abomináveis, porque aumentam o número de
homens sobre a terra. A frase é atribuída, por Bioy Casares, no diálogo de
abertura, a uma entrada da Anglo-American Cyclopaedia, no qual figurariam
maiores informações sobre o assunto; e o conto é conhecido o bastante para que
167
BORGES, J. L. “Prólogo”. In: GRÜNBERG, Carlos M. Mester de Judería. Buenos Aires,
Editorial Argilópolis, 1940, e BORGES, J. L. Prólogos con un Prólogo de Prólogos. OC, vol. 4, p.
80-83.
168
BORGES, J. L. “Dos libros”. [La Nación, 10 de diciembre de 1941]. In: ____. Otras
Inquisiciones. OC, vol. 2, p. 107-111.
169
Sigo uma linha de análise indicada por James E. Irby em “Borges and The Idea of Utopia”. In:
DUNHAM, L. and IVASK, Ivar (editors). The Cardinal Points of Borges. Norman: University of
Oklahoma Press, 1971, p. 35-46. Dos trabalhos mais recentes que abordaram o conto, dialogo,
sobretudo, com as perspectivas adotadas por José Eduardo González, em Borges and the Politics
of Form. New York and London: Garland Publishing, 1998, p. 169-200, e Annick Louis, em
Borges Face Au Fascisme: les fictions du contemporain. La Courneve : Aux Lieux d’Être, 2007,
p. 23-150.
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seja necessário descrever as peripécias livrescas subseqüentes, em que Borges, o
narrador, investiga a existência do verbete, primeiro se desapontando ao encontrar
tomos da enciclopédia sem nenhuma referência ao suposto país, e depois
conferindo o exemplar de Bioy, para ali, de fato, encontrá-las. Destas, ele registra
apenas um traço memorável: o de que a literatura de Uqbar seria de caráter
fantástico, e suas epopéias nunca remetiam à realidade, mas somente à região
imaginária de Tlön. E, afinal, ele acaba se deparando como que por acaso com
algo que ultrapassava suas expectativas, isto é, o décimo primeiro tomo de outra
publicação do mesmo gênero enciclopédico, mas inteiramente dedicada a Tlön,
cuja capa apresentava a inscrição em uma figura oval: Orbius Tertius. Segue-se o
excitado comentário:
Fazia dois anos que eu descobrira num tomo de certa enciclopédia pirática uma
sumária descrição de um falso país; agora me proporcionava o acaso algo mais
precioso e mais árduo. Agora tinha nas mãos um vasto fragmento metódico da
história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e seus naipes, com
o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e seus
mares, com seus minerais e seus pássaros e seus peixes, com sua álgebra e seu
fogo, com sua controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerente,
sem visível propósito doutrinal ou tom paródico.
170
Desde logo, tudo indica que o singular empreendimento, científico e
fantasioso ao mesmo tempo, seria o trabalho de um grupo de diletantes, que, por
puro deleite na arte da invenção, dedicava-se à criação daquele universo
imaginário. Algo que parece se confirmar na seqüência:
Quem são os inventores de Tlön? O plural é inevitável, porque a hipótese de um
único inventor de um infinito Leibniz trabalhando na treva e na modéstia fora
descartada unanimemente. Conjectura-se que este brave new world é obra de uma
sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de
poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras...
dirigidos por um obscuro homem de gênio.
171
170
“Hacía dos años que yo había descubierto en un tomo de cierta enciclopedia pirática una
somera descripción de un falso país; ahora me deparaba el azar con algo más asombroso y más
arduo. Ahora tenía en las manos un vasto fragmento metódico de la historia total de un planeta
desconocido, con sus arquitecturas y barajas, con el pavor de sus mitologías y el rumor de sus
lenguas, con sus emperadores y sus mares, con sus minerales y sus pájaros y sus peces, con su
álgebra y su fuego, con su controversia teológica y metafísica. Todo ello articulado coherente, sin
visible propósito doctrinal o tono paródico”.
171
“Quiénes inventaron a Tlön? El plural es inevitable, porque la hipótesis de um solo inventor
de un infinito Leibniz obrando en la tiniebla y en la modestia ha sido descartada unánimemente.
Se conjetura que este brave new world es obra de una sociedad secreta de astrónomos, de biólogos,
de ingenieros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de
geómetras… dirigidos por un oscuro hombre de genio”.
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200
Mas o leitor provavelmente terá se recordado de como o jovem Borges, em
um de seus primeiros ensaios, havia convocado seus pares a encontrar “a música,
a pintura, a religião e a metafísica” adequadas à grandeza de uma Buenos Aires
renascida: “Este é o tamanho de minha esperança, que a todos nos convida a ser
deuses e trabalhar em sua encarnação”. O idealismo de Berkeley, um dos temas
recorrentes em seus primeiros artigos, é transposto também para o conto, como o
princípio unificador do projeto da enciclopédia; e o “apaixonado e lúcido”
Schopenhauer surge na elucidação de um dos aspectos da linguagem de Tlön, o
que insere o projeto dos enciclopedistas em um quadro maior de referências. Mais
adiante, o narrador menciona ainda insólitos objetos que eventualmente
apareceriam na paisagem do país, os hrönir, exageradas aberrações de artefatos de
uso cotidiano, as quais causariam uma desconcertante interferência na vida de
seus habitantes; e isto reproduz o mecanismo conspiratório concebido para a
campanha de Macedonio Fernández à presidência da Argentina na década de 20,
tal como registrado na obra inacabada de Borges e seus amigos, mas que agora
tomava parte de um plano muito mais sério e ambicioso. Diversos nomes
familiares são então inseridos na polêmica sobre as verdadeiras origens e
significados deste plano, entre eles os de Ezequiel Martínez Estrada, Drieu La
Riochelle um intelectual fascista francês, que Borges conhecera por intermédio
do grupo Sur –, Bertrand Russel, etc.. Herbert Ashe, que “em vida padeceu de
irrealidade, como tantos ingleses”, é um personagem fictício com um papel
central na trama, assim como uma certa princesa de Faucigny Lucinge, que
encontra um hrönir no ambiente terrestre, naquela que teria sido “a primeira
intrusão do mundo fantástico no mundo real”.
Resta saber como, da aparente confusão causada por este tipo de
interferência, e da polifonia cacofônica dos diferentes ofícios e disciplinas de
Tlön, podia emergir um conceito sintético do universo, uma imagem
sistematicamente forjada do orbe. Quanto a isto, diz o narrador:
A principio, acreditou-se que Tlön era um mero caos, uma irresponsável licença da
imaginação; agora se sabe que é um cosmos e que as íntimas leis que o regem
foram formuladas, ainda que de modo provisório. Basta-me recordar que as
contradições aparentes do Décimo Primeiro Tomo são a pedra fundamental da
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prova de que existem outros: tão lúcida e tão justa é a ordem que nele se
observou.
172
Fica assim exposto o método interpretativo que orienta o entendimento do
projeto tlöniano, com a redução de todas as suas ambigüidades e paradoxos a uma
estrutura lógica pressuposta, cuja validez se reforça pelas deliberadas imprecisões
empregadas na revelação do segredo. O que torna possível ao comentarista
estender-se na análise da perfeita articulação teórica dos elementos que compõem
a obra. Em alguns trechos, como no que se refere à linguagem, esta descrição
assume um tom antropológico.
173
Mas, sem maior dificuldade, o relato passa para
um estilo de tratado lógico ou metafísico, contemplando a geometria, a filosofia, a
literatura de seu objeto. Comum a todos estes temas é a subtração da
individualidade, da temporalidade e do elemento humano, expressa
exemplarmente na idéia de um sujeito único, eterno e anônimo, que seria
responsável pela totalidade da produção literária disponível e por ser escrita. Mas
proceder a uma paráfrase detalhada de cada uma das disciplinas seria ignorar a
ironia que atravessa todo o conto, e assim manifestada pelo narrador: “Esta não é
história de minhas emoções, e sim de Uqbar e Tlön e Orbius Tertius”.
Com efeito, a primeira parte termina como se tudo não passasse de um
desinteressado colóquio de especialistas ocorrido em Salto Oriental, 1940. Mas a
ela era acrescentada, naquele ano, um pós-escrito de “1947”, que transformava
o relato em uma distopia futurista:
Reproduzo o artigo anterior tal como apareceu na Antología de la literatura
fantástica, 1940 [ou na revista Sur, segundo a primeira versão do conto], sem outro
corte senão o de algumas metáforas e de uma espécie de resumo zombeteiro que
agora se tornou frívolo. Ocorreram tantas coisas desde essa data... Limitar-me-ei a
recordá-las.
174
172
“Al principio se creyó que Tlön era un mero caos, una irresponsable licencia de la imaginación;
ahora se sabe que es un cosmos y las íntimas leyes que lo rigen han sido formuladas, siquiera en
modo provisional. Básteme recordar que las contradicciones aparentes del Onceno Tomo son la
piedra fundamental de la prueba de que existen los otros: tan lúcido y tan justo es el orden que se
ha observado en él”.
173
Este ponto em particular foi assinalado por Roberto Gonzáles Echevarría, em Mito y Archivo:
una teoría de la narrativa latinoamericana. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1998, p.
223-228.
174
“Reproduzco el artículo anterior tal como apareció en la Antología de la literatura fantástica,
1940 [ou na revista Sur, segundo a primeira versão do conto], sin otra escisión que algunas
metáforas y que una especie de resumen burlón que ahora resulta frívolo. Han ocurrido tantas
cosas desde esa fecha… Me limitaré a recordarlas”.
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Trata-se do esclarecimento do enigma de Tlön, segundo novas descobertas.
Ele remontaria ao início do século XVII, na Inglaterra, quando uma sociedade
secreta e benévola, tendo George Berkeley entre seus afiliados, se propusera a
inventar um país. Após um hiato de dois séculos, ela ressurgiria na América sob o
mecenato de um milionário niilista e defensor da escravidão, que sugere a
elaboração de uma enciclopédia metódica sobre um planeta ilusório, com a
condição de que esta não compactuasse “com o impostor Jesus Cristo” (Ezra
Buckley não acreditava em Deus, mas queria demonstrar ao Deus não existente
que homens mortais são capazes de conceber um universo). Em 1914, trezentos
colaboradores recebem o último volume da Primeira Enciclopédia de Tlön, e,
pouco a pouco, os estranhos objetos a que ela se refere começam a disseminar
pelo mundo, a princípio causando mera curiosidade, mas depois chamando a
atenção de intelectuais e da imprensa. Que, na década de 40, publica diversos
manuais, antologias, resumos, versões literais, reimpressões autênticas e
reimpressões falsas da “Obra Maior dos Homens”, alçando o plano original da
sociedade a um patamar mais elevado, o qual sequer poderia ter sido previsto por
seus idealizadores:
Quase imediatamente, a realidade cedeu em mais de um ponto. O certo é que
desejava ceder. dez anos, bastava qualquer simetria com aparência de ordem
o materialismo dialético, o anti-semitismo, o nazismo para encantar os homens.
Como não se submeter a Tlön, à minuciosa e vasta evidência de um planeta
ordenado? Inútil responder que a realidade também está ordenada. Quem sabe o
esteja, mas conforme leis divinas traduzo: leis não-humanas que nunca
percebemos completamente. Tlön é um labirinto, mas é um labirinto urdido por
homens, um labirinto forjado para que o decifrem os homens.
175
Mas o narrador acrescenta que, enquanto o contato com Tlön desintegrava
este mundo, a humanidade, encantada com seu rigor, esquecia e tornava a
esquecer que era um rigor de enxadristas, e não de anjos. O conjectural “idioma
primitivo” de Tlön já estava então penetrando nas escolas; a história nelas
ensinada era substituída por um passado fictício, do qual nada se sabia com
175
“Casi inmediatamente, la realidad cedió en más de un punto. Lo cierto es que anhelaba ceder.
Hace diez años bastaba cualquier simetría con apariencia de orden el materialismo dialéctico, el
antisemitismo, el nazismo – para embelesar a los hombres. Cómo no someterse a Tlön, a la
minuciosa y vasta evidencia de un planeta ordenado? Inútil responder que la realidad también esté
ordenada. Quizá lo esté, pero de acuerdo a leyes divinas traduzco: a leyes inhumanas que no
acabamos nunca de percibir. Tlön será un laberinto, pero es un laberinto urdido por hombres, un
laberinto destinado a que lo descifren los hombres”.
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segurança, nem mesmo que era falso; todas as áreas do conhecimento sofriam
reformas revolucionárias; uma dispersa dinastia de solitários havia mudado a face
da terra, e sua tarefa prosseguia, com intensidade cada vez maior, até que
desaparecessem do mundo o idioma inglês, o idioma francês e o mero espanhol.
“O mundo será Tlön”, anota enfim Jorge Luis Borges, para em seguida arrematar:
“Eu não faço caso, eu sigo revisando nos quietos dias do hotel Adrogué uma
indecisa tradução quevediana do Urn Burial de Browne”.
Este desfecho favorece várias interpretações, dependendo de ênfases
relativas ao papel da tradução na carreira de Borges, às suas leituras de Quevedo e
Thomas Browne, às ambigüidades da modéstia e do diletantismo que ele declara.
Não pretendo esmiuçar o tópico. Porque, no contexto das referências anteriores, o
que mais importa é sua declaração de indiferença: o tom resignado ou desdenhoso
com que o texto é finalizado, um reverso exato do pânico que de certa maneira
também se faz presente na narrativa. As duas coisas o o excludentes, assim
como a apatia e a paranóia são ambas reações mórbidas, correlatas à certeza de
um destino que não pode ser modificado, contra o qual nada pode ser feito, na
medida em que funciona como uma engrenagem independente da ação de
indivíduos isolados. Com o sujeito impassível que escrevia o conto, portanto,
convive o maníaco persuadido a crer na ordenação do real segundo uma lógica
totalizante.
Tal ausência de distinção entre pólos de conduta opostos reproduziria, no
nível estilístico, uma duplicidade que percorre todo o relato, onde a barbárie se
insinua na mais elegante discussão acadêmica, sem que, todavia, a questão da
violência seja levantada em momento algum. Borges costumava dizer que, em
uma charada para a qual a resposta seria a palavra “xadrez”, “xadrez” era a única
palavra que não poderia constar de modo algum na formulação da pergunta. Daí a
conclusão provisória de que “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius” é uma alegoria do
horror, demandando uma “chave” interpretativa para ser compreendido; e que por
isso mesmo, por possuir esta chave, pode ser entendido como o relato mais
miserável de Borges.
Para uma segunda inferência, cabe mencionar o estudo de Paul de Man
sobre a relação entre a idéia de sociedade estética e o teatro de marionetes, onde a
perfeição dos movimentos de personagens inanimados é indissociável do fato que
eles não têm vida, fazendo com que na beleza coreográfica resida uma violência
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latente, e convertendo o ato em uma dança macabra.
176
O mesmo princípio pode
ser aplicado à categoria da sociedade secreta, cuja expansão ocorre no sentido de
transformar todos os homens em fantoches de seus desígnios arquitetônicos, e
para fazê-lo deve torná-los indiferentes ao crime com que se dá seu ato fundador.
Em Tlön, Uqbar, Orbius Tertius”, a história mundial torna-se palco deste
espetáculo, com o que o jovem Borges, seus amigos, mestres, desafetos e
“argentinos irresponsáveis”, de um modo geral, dão todos sua contribuição para a
obra maior dos homens sem nem mesmo saber que fazem parte de um rigoroso
plano cosmopolita para a transformação radical do mundo, e sem acreditar que
fosse possível detê-lo, depois de evidenciada a velocidade de sua concretização.
Pois, junto à disseminação da mania e da paranóia, a eliminação de nuances e
diferenças é outra grande conquista do totalitarismo, no que se refere à inclusão de
todos em sua esfera autonômica. Borges traça uma caricatura de si mesmo como
um narrador sensato e parcimonioso, incitando uma interpretação intelectualista
da narrativa, com seus trâmites literários e enciclopédicos – no qual ressoa, apenas
insidiosamente, a voz de uma personalidade transtornada.
Mas, se o relatório é de uma banalidade atroz referindo-se a paisagem tão
exuberante quanto indigente, tão grosseira quanto perfeita, tão refinada quanto
embrutecida –, é porque, de fato, o indivíduo que o redigiu não via a realidade de
outra maneira. Em uma completa inversão de fatores, tornada possível pelos
distúrbios de uma época histórica, o conto é fantástico por ser realista, ou ao
menos por buscar um retrato fiel do real como contemplado pelos olhos do
narrador, no qual as misérias da fábula se encaixavam com exatidão. Nunca antes
a literatura de Borges havia sido uma filha tão legítima de seu tempo. Podemos
então pressupor que ele escreveu a narrativa a contragosto, percebendo a pobreza
do material tanto quanto havia percebido a vacuidade dos textos da Historia
Universal de la Infamia, mas agora cogitando seriamente uma total coincidência
entre o barbarismo esteticista e a realidade. Quanto a isso, ele escreveria o
seguinte, no momento em que Hitler declarasse guerra aos Estados Unidos:
A noção de um atroz complô alemão para conquistar e oprimir todos os países do
orbe é (apresso-me em confessá-lo) de uma irreparável banalidade. Sofre de
penúria imaginativa, de gigantismo, de uma grosseira inverossimilhança (...)
176
MAN, Paul de. “Aesthetic Formalization: Kleist’s Über das Marionettentheater”. In: ____. The
Rhetoric of Romanticism. New York: Columbia University Press, 1984, p. 263-190.
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Desagraçadamente, a realidade não possui escrúpulos literários (...) Le vrai peut
quelque fois n’être pas vraisemblabe: o inverossímil, o verdadeiro, o indiscutível, é
que os diretores do Terceiro Reich buscam o o império universal, a conquista do
orbe (...) É infantil impacientar-se; a misericórdia de Hitler é ecumênica; em breve
(se ele não for impedido pelos entreguistas e pelos judeus) gozaremos todos dos
benefícios da tortura, da sodomia, do estupro e das execuções em massa.
177
É interessante notar como, até em um trecho como este, se introduz a voz da
inocência, da sinceridade e da obtusidade burguesas, tal como incorporada por
Borges. O problema com a realidade era que lhe faltava decoro, e a alusão ao sexo
na enumeração dos crimes nazistas remetia à mentalidade vitoriana. O sujeito que
visse, na conjuntura presente, o resultado de uma conspiração prussiana, devia ter
vergonha de declarar seu diagnóstico, sob pena de abrir mão da solidez de um
educado commom sense, e compactuar com as mais medíocres interpretações da
história; mas teria que fazê-lo ao entender que educação e senso comum haviam
sido banidos do mundo real, para dar lugar às obscenidades do totalitarismo, em
que a disciplina substituía a civilidade, e a megalomania tomava o posto do
discernimento.
O indivíduo que escreveu “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius” era também este
escritor anacrônico e constrangido com os eventos que lhe coube relatar, dos quais
omitiu os fatos mais sórdidos, deixando ao leitor a tarefa de adivinhá-los. No
entanto, neste procedimento não deixava de haver certa malícia e grande destreza
técnica, de maneira que mesmo a inocência não passava de um constructo
artificioso, forjado na figura de uma persona literária autoconsciente. E esta
persona era o sujeito britânico destituído de toda confiança na racionalidade e na
justiça, que teria marcado sua experiência oitocentista. O leitor de Dickens
despojado de sua na intervenção da providência, e, o que é mais grave,
possuído pelos demônios de quinta categoria gerados pela estupidez de seu tempo.
Para finalizar esta etapa, deve ser citado outro conto do corpus de narrativas
de Borges onde uma referência explícita ao nazismo. Sob o título de
“Deutsches Requiem”, ele foi publicado em 1946, e trata-se do depoimento de um
177
“La noción de un atroz complot de Alemania para conquistar y oprimir todos los países del orbe
es (me apresuro a confesarlo) de una irreparable banalidad. Adoloce de penuria imaginativa, de
gigantismo, de crasa inverosimilitud (...) Desgraciadamente, la realidad no carece de escrúpulos
literarios (...) Le vrai peut quelque fois n’être pas vraisemblabe; lo inverosímil, lo verdadero, lo
indiscutible, es que los directores del Tercer Reich procuran el imperio universal, la conquista del
orbe (…) Es infantil impacientarse; la misericordia de Hitler es ecuménica; en breve (si no lo
estorban los vendipatrias y los judíos) gozaremos de todos los beneficios de la tortura, de la
sodomía, del estupro y de las ejecuciones en masa”. BORGES, J. L. “La guerra em America”.
[Sur, Buenos Aires, año XII, n. 87, diciembre de 1941]. In: ____. Borges en Sur, p. 31-32.
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suposto oficial alemão, que, naquele mesmo ano, estaria aguardando sua
execução, após ser condenado à morte por fuzilamento. Este se apresenta como
Otto Dietrich zur Linde, descendente de combatentes da Primeira Guerra Mundial
e da guerra franco-prussiana, apaixonado pela música e pela metafísica, leitor de
Schopenhaeur, Nietzsche e Spengler, sendo que, na obra do primeiro, teria
encontrado a revelação de uma ordem secreta da história, a qual prodigiosamente
eliminava as diferenças entre os homens e as divindades. E, como uma
conseqüência desta ordem, ele interpretava a própria morte, dado que ela estaria
de acordo com um plano sobre-humano, no qual sua individualidade não possuía
qualquer importância, embora a covardia dos ingleses, em certo momento, tivesse
ameaçado defraudá-lo.
Incapacitado para a luta por um tiro recebido na perna antes do início do
conflito – e que, segundo uma das várias notas do “editor” que publicava o
manuscrito, teria tido “conseqüências muito graves” –, Linde fora nomeado
subdiretor de um campo de concentração. Onde, em suas palavras, o aguardava
uma missão ainda mais árdua do que a batalha armada. Pois ali, diante da figura
de um poeta judeu por ele lido e admirado, enfrentaria o risco de incorrer em um
vício característico das culturas decadentes, isto é, o vício da piedade. Então, com
total dedicação, e opondo-se aos baixos instintos morais que o acometiam, o
oficial determina um regime disciplinar especialmente pensado para transformar o
mundo de David Jerusalem em um inferno terrestre, destruindo o poeta para
destruir os resquícios de compaixão que habitavam uma detestada zona de sua
própria alma. Ao sucesso desta operação, se segue a derrota da Alemanha, mas
algo singular ocorre com Linde, que se diz tomado por inesperada felicidade com
este desfecho, encontrando para ela a seguinte explicação:
A história dos povos registra uma continuidade secreta (…) Hitler acreditou lutar
por um país, mas lutou por todos, até por aqueles que agrediu e detestou. Não
importa que seu eu o ignorasse; sabiam-no seu sangue, sua vontade. O mundo
morria de judaísmo e dessa enfermidade do judaísmo que é a em Jesus; nós lhe
ensinamos a violência e a na espada (...) Muitas coisas que destruir para
edificar a nova ordem; agora sabemos que a Alemanha era uma dessas coisas.
Demos algo mais que nossa vida, demos o destino do nosso querido país. Que
outros maldigam e outros chorem; a mim me alegra que nosso dom seja orbicular e
perfeito.
178
178
BORGES, J. L. “Deutsches Requiem”. Trad. Flávio José Cardozo. In: ____. O Aleph. OC
[edição brasileira], vol. 1, p. 646. “La historia de los pueblos registra una continuidad secreta (…)
Hitler creluchar por un país, pero luchó por todos, aun por aquellos que agredió y detestó. No
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Fecha-se o ciclo. “Deutsches Requiem” é a forma acabada da infâmia. Otto
Dietrich zur Linde é a versão final dos profetas, compadritos e hard guys que a
partir de 1930 teriam assumido o encargo de anunciar os novos tempos, com
disposição heróica, severidade ideológica, ou erudição acadêmica, tudo isso
convergindo para um monstruoso raciocínio, composto por fórmulas
aparentemente complexas e assombrosas, mas que acusam o enrijecimento dos
processos mentais em modelos imunes à realidade dos fatos. Suicídio e
devastação são mais uma vez equivalentes no depoimento; e as circunstâncias em
que ele teria sido escrito remetem à imagem do cárcere, apropriada ao fenômeno
de que trata a história.
Creio ser equivocada a interpretação segundo a qual o conto revela uma
contaminação dos tribunais militares do pós-guerra pelo revanchismo nazista,
dando seqüência ao eterno retorno da barbárie na modernidade, de acordo com as
previsões de intelectuais pacifistas como Aldous Huxley. Em primeiro lugar,
porque isso implicaria a identificação da voz do autor com a de um personagem
em cuja psicologia ele estava interessado, sem dar crédito às deduções teóricas de
sua loucura, que como tal devia ser configurada. Além disso, Borges recebeu as
notícias que indicavam o encerramento do conflito com satisfação, como
anunciava a libertação de Paris em 1944:
Essa jornada populosa deparou-me três heterogêneos assombros: o grau físico de
minha felicidade quando soube da libertação de Paris; e descoberta de que uma
emoção coletiva pode não ser indigna; o enigmático e notório entusiasmo de
muitos partidários de Hitler.
179
importa que su yo lo ignorara; lo sabían su sangre, su voluntad. El mundo se moría de judaísmo y
de esa enfermedad del judaísmo, que es la fe de Jesus; nosotros lo enseñamos la violencia y la fe
de la espada (…) Muchas cosas hay que destruir para edificar el nuevo orden; ahora sabemos que
Alemania era una de esas cosas. Hemos dado algo más que nuestra vida, hemos dado la suerte de
nuestro querido país. Que otros maldigan y otros lloren; a mí me regocija que nuestro don sea
orbicular y perfecto”. BORGES. J. L. ““Deutsches Requiem” [1946]. In: ____. El Aleph. OC, vol.
1, p. 617-23.
179
BORGES, J. L. “Anotação ao 23 de Agosto de 1944”. In: ____. Outras Inquisições. Trad.
Sérgio Molina. OC [edição brasileira], vol. 2, p. 116-7. “Esa jornada populosa me deparó tres
heterogéneos asombros: el grado físico de mi felicidad cuando me dijeron la liberación de París; es
descubrimiento de que una emoción colectiva puede no ser innoble; el enigmático y notorio
entusiasmo de muchos partidarios de Hitler”. BORGES, J. L. “Anotación al 23 de agosto de
1944”. [Sur, Buenos Aires, n. 120, octubre de 1944]. In: ____. Otras Inquisiciones. OC, vol. 2, p.
111-2.
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208
A partir daí, ele passa a se indagar sobre as razões deste entusiasmo,
concluindo que os germanófilos estavam de tal forma aprisionados em um
esquema cognitivo, que nenhum dado da realidade seria capaz de desfazê-lo: tudo
o que eles podiam ver eram peças a confirmarem seus ideais de morte e
devastação. Do assombro do autor com a resistência deste mecanismo surgiria
“Deutsches Requiem”.
Além disso, Borges sabia que o problema colocado por uma ordem
internacional decorrente da vitória dos aliados só poderia situar-se no pólo oposto:
era o problema da liberdade. Também este assunto será abordado no capítulo
final. Por enquanto, a liberdade só pode ser vista como solução. Assim, entre 1940
e 1945, a evolução do panorama mundial desfez o ambiente de delírio e paranóia
de que ele foi tima, entre outros que chegaram a acreditar no prospecto de uma
conquista do globo pela raça ariana, para não falar dos que estavam predispostos a
contribuir para a realização deste projeto. O que faz de “Deutsches Requiem” um
conto mais lúcido do que “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius”, em função do explícito
desacordo entre a voz narrativa e o mundo real, não como uma relação entre o que
é interno e externo ao relato ficcional, mas como uma relação que é o próprio
princípio configurador do relato. Entretanto, se entendo que a idéia de lucidez tem
alguma aplicabilidade neste caso, é porque suponho compartilhar com meus
leitores ao menos um sentimento quanto ao significado da palavra, mesmo que
não a possamos reduzir a um conceito, e de preferência não o reduzindo. Wishful
thinking, dirão os mais céticos quando a adequação desta expectativa à realidade.
Mas é certo que, em 1940, uma realidade que cedia e queria ceder à loucura
atingiu um ponto de virada de uma intensidade singular.
Fair is foul and foul is fair, diziam as parcas a Macbeth, anunciando uma
tragédia que transcende os limites da racionalidade humana. Estupidez é
inteligência e inteligência é estupidez, ecoaram suas vozes séculos depois, quando
o ressentimento e a técnica tomaram o lugar da paixão e da magia, transformando
em farsa política o que só alcança verdadeira expressão através da música. Hoje,
estas novas parcas podem nos parecer ridículas, exageradas, ou simplesmente
falsas. Mas, para compreender o que foi aquele tempo – aquele ano, aqueles
meses, aqueles dias é preciso conseguir pensar e sentir, como Borges pensou e
sentiu, que elas podiam estar com a razão.
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209
4.2
Crimes e Pecados
Esta seção tem como principal objetivo oferecer uma proposta de análise de
alguns contos publicados por Borges na cada de 1940, de maneira a trabalhar
assuntos discutidos, mas com maior ênfase na questão da linguagem por ele
mobilizada para criar suas ficções, na medida em que estas tragam alusões menos
diretas à conjuntura imediata de sua publicação. Por um lado, isto implicará uma
mudança nos métodos de abordagem, mais voltada para uma discussão sobre
estilos e gêneros literários, e o diálogo constante com estudos e ensaios dedicados
a este tópico, em detrimento da atenção antes dada ao curso histórico argentino e
mundial. Por outro lado, pretendo demonstrar a viabilidade de que o argumento
geral do trabalho, tal como desenvolvido até aqui, seja verificado também nos
objetos com que passo a lidar.
Ele pressupõe a configuração de determinados quadros de valores, que
teriam expressões tanto no âmbito da política quanto no da literatura, sem haver
uma predominância estrutural de um sobre o outro. Isto conforme categorias tais
como “moral”, “estética”, e “ética”, por exemplo, possam ser aplicadas no exame
de ambas as esferas, consideradas instâncias de significação independentes, mas
sujeitas a interpenetrações, por estarem inseridas em um quadro mais amplo, onde
ocorrem transformações concernentes às diversas áreas de atuação humana, e ao
qual pode ser dado o nome de “cultura”. No caso, com ênfase na questão das
culturas nacionais, vistas em uma perspectiva comparatista, que terá se mostrado
adequada no decorrer da investigação, segundo a maneira como o autor
organizava seus comentários e reflexões. Neste sentido, podemos associar, à
cultura britânica, a categoria da moral, com suas respectivas atualizações políticas
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210
e artísticas, enquanto a estética, no período trabalhado, teria predominância nas
culturas francesa e germânica (fosse pelo viés apolíneo do simbolismo e do
pacifismo, fosse pelo caráter dionisíaco do expressionismo e do belicismo).
A associação da ética à cultura norte-americana, e as apresentações literárias
deste paradigma e de seus dilemas, serão exploradas no último capítulo. Por ora,
acredito que, terminada a análise de “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius”, os relatos
subseqüentes do escritor argentino podem ser avaliados em recortes
interpretativos mais abrangentes. Inclusive porque, a partir daquele momento,
determinados procedimentos teriam sido recorrentes em suas narrativas,
caracterizando boa parte de sua obra. Procedimentos estes que partiam de
experiências anteriores, mas apenas na década de 1940 criaram um corpus
ficcional mais amplo, com algumas novas nuances e distinções, o que permite este
novo enfoque. No qual será dada atenção especial a um gênero literário
específico, que considero privilegiado para os objetivos da análise. Feita esta
ressalva, prossigo com a exposição dos resultados de minha pesquisa.
Em dezembro de 1941, Borges publicou uma compilação de suas seis
narrativas escritas nos três anos anteriores, entre elas “El jardín de los senderos
que se bifurcan”, que encerrava o volume e lhe emprestava o título. Na ocasião,
Adolfo Bioy Casares repetiu na revista Sur o elogio antes declarado no prólogo à
Antologia de la Literatura Fantástica, acrescentando que, após descobrir as
possibilidades literárias da metafísica, Borges as estava aplicando aos ideais de
rigor e elegância inerentes ao relato policial, criando assim um novo gênero
artístico. Divulgada por alguns outros artigos aprobatórios, a obra foi logo
considerada uma postulante aos Premios Nacionales de Literatura, que seriam
concedidos, em poucos meses, por uma comissão oficial, de que fazia parte
Roberto Giusti. Mas não coube a Borges nenhum dos primeiros lugares do
concurso, o que Giusti se encarregou de justificar em uma nota da revista
Nosotros, de julho de 1942, segundo a qual os juízes teriam considerado
inapropriado recomendar ao povo argentino “uma obra exótica e decadentista”,
que oscilava “entre o conto fantástico, uma jactanciosa erudição recôndita e a
narrativa policial”, tendo como resultado uma “literatura desumanizada”, feita de
“jogos cerebrais obscuros e arbitrários”.
180
Por contraste, os prêmios foram
180
Apud WILLIAMSON, E. Borges: una vida, p. 293.
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211
atribuídos a livros sobre temas mais familiares ao público local, todos eles
romances esquecidos desde então.
Com isso, naquele momento, duas avaliações díspares prenunciavam
traços que se tornariam marcantes na recepção da obra de Borges, durante a maior
parte do século XX.
181
De um lado, estavam o entusiasmo modernista com a
transformação da arte, com a recuperação de padrões “clássicos” de composição
estética, e o fascínio por complicados artifícios “irreais”, de grande apelo
intelectual, ou ambições filosóficas. De outro, o repúdio tradicionalista à
excentricidade da produção contemporânea, com seus frívolos e gratuitos truques
de linguagem, que afastariam o artista da função social de representar o seu
ambiente imediato. A primeira considerava intercambiáveis e indiferentes os
conteúdos a serem trabalhados pela força modeladora do artista, reagindo contra o
pressuposto de que a literatura devia reproduzir uma realidade histórica, e
estabelecendo paradigmas teóricos para a configuração da matéria literária.
Enquanto a segunda via, na temática de uma obra, algo muito mais importante do
que qualquer procedimento formal, encontrando nas sínteses e análises dos
vanguardistas meros caprichos auto-referentes, aos quais contrapunha um
realismo supostamente mais sólido e gerador de coesão cultural.
181
A primeira delas seria desenvolvida a partir do estudo pioneiro de Ana Maria Barrenechea, La
Expresión de la Irrealidad en la Obra de Borges ( Buenos Aires: Centro Editor de América
Latina, 1984 [1957]), encontrando grande repercussão no estruturalismo francês (cf, por exemplo,
GENETTE, Gérard. La utopía literaria [1970]. In: BARRENECHEA, Ana Maria, REST, Jaime,
UPDIKE, John y otros. Borges y la Crítica. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina,
1981). A segunda foi representada, sobretudo, por uma coletânea de artigos intitulada Contra
Borges, e compilada por Juan Fló (Buenos Aires: Editorial Galerna, 1978). A partir do início da
década de 1990, com a publicação de Borges, um escritor en las orillas, de Beatriz Sarlo (Buenos
Aires: Ariel, 1995 [1993]), e Fuera de Contexto? Referencialidad histórica y expresión de la
realidad em Borges (Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1996 [1993]), um crescente
reconhecimento da insuficiência de ambos os enfoques interpretativos, o que favorece a
compreensão da obra do escritor argentino como lugar de confluência entre temas literários,
filosóficos, históricos e políticos, expondo ambigüidades e tensões culturais detectáveis em cada
uma destas esferas. Seguramente, comentários anteriores já haviam apontado nesta direção, como
de Davi Arriguci Jr., em “Da Fama e da infâmia (Borges no contexto literário latino-americano)”,
reunido no livro Enigma e Comentário: ensaios sobre literatura e experiência (São Paulo: Cia. das
Letras, 1987, pp. 193-226). E muitos que se seguiram aos trabalhos de Sarlo e Balderston
indicaram desdobramentos possíveis desta linha de investigação, entre eles os estudos de José
Eduardo González (Borges and the Politics of Form. New York and London: Garland Publishing,
1998) e Julio Pimentel Pinto (Uma Memória do Mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis
Borges. São Paulo: Estação Liberdade, 1998), com os quais esta pesquisa, no meu entendimento,
possui afinidades mais importantes do que eventuais discordâncias. O último autor mencionado
tratou também de tais percursos e guinadas na bibliografia crítica tratada em um artigo recente (cf.
PINTO, J. P. “Borges, itinerários da crítica: irrealismo, leituras, história”. Fragmentos,
Florianópolis, meros 28/29, jan-dez 2005, p. 13-19). E, para um acompanhamento sintético dos
paradigmas críticos aplicados à leitura de Borges no século XX, ver SOUZA, Eneida Maria de. O
Século de Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
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212
Ambas as visões concordam em um ponto: a leitura crítica de uma obra
depende de um critério de adequação do objeto particular a normas
universalmente válidas e pré-concebidas. Ou seja, mais uma vez estamos diante
de juízos técnicos, em que o maior ou menor grau de aproximação do texto a um
ideal, dado a priori, determina a apreciação da obra. Pouco importa se este ideal se
vincula a um plano abstrato ou empírico, pois, para se tornarem instâncias
regulatórias, os dois operariam na chave da negação do outro para adquirir
legitimidade, funcionando como pólos excludentes – e, desde logo, equiparáveis –
de uma normatividade estanque. No que se refere a Borges, as duas avaliações me
parecem insuficientes, no que creio estar de acordo com um viés interpretativo
mais geral, adotado por seus comentadores nos últimos anos (ver nota 165).
E ainda assim elas são, a meu ver, e de certo modo, complementares. A
primeira destacaria corretamente a proeminência de recursos técnicos sutis e
engenhosos nas narrativas do autor, que, em suas inúmeras inter-referências
internas, alusões a conhecimentos esotéricos, descrições de polêmicas
escolásticas, e excesso de símbolos e enigmas, produziriam um “efeito de
complexidade” ininterrupto, que é responsável pelo encantamento ou pela
repulsa do leitor. Dada a concisão dos textos, este fica então como que
hipnotizado pela promessa de um desfecho no qual todas estes elementos irão
reunir-se em um significado único e surpreendente. De modo que ele, o leitor, se
encontra na iminência da revelação de um segredo, que perpassa toda a história,
de natureza mística ou intelectual, capaz de levá-lo à exaustão de suas faculdades
mentais, ou ao paroxismo da compulsão interpretativa.
182
O rigor e a elegância
aplicados na composição das tramas estimulam a expectativa pelo seu
ordenamento final em uma totalidade de sentido. À confusão superficial dos
signos, contrapõe-se a impressão de que ela é apenas a aparência de um sistema
182
A questão é discutida em um estudo de L. A. Murillo, The Cyclical Night: Irony in James Joyce
and Jorge Luis Borges. Cambridge: Harvard University Press, 1968, e está relacionada ao papel da
alusão no estilo de Borges, foco do trabalho de Ronald Christ, The Narrow Act: Borges’ Act of
Allusion. New York: New York University Press 1969. Os dois trabalhos se destacam na
percepção da vertigem como um efeito distintivo do aparato de símbolos e citações empregado nas
narrativas, bem como em suas enumerações, causando uma desintegração da linguagem como
lugar de distinções e identidades ordenadas (ver também, a este respeito, FOUCAULT, M. As
Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas.Trad. Salma Tannus Muchail. São
Paulo: Martins Fontes, 2002 [1966], p. IX-XXII). O tema foi mais recentemente abordado em
ensaios reunidos de Silvia Molloy, Las Letras de Borges y otros ensayos. Rosario: Beatriz Viterbo
Editora, 1999, e em uma investigação de Lisa Block de Behar, Borges, la pasión de una cita sin
fin. México, D.F.: Siglo Veitiuno Editores, 1999.
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por ser desvelado. No entanto, o efeito pode ser o inverso, com a sugestão de
vagos e vastos universos, contida em micro-cosmos de absoluta perfeição formal.
Nos dois casos, de fato, o conteúdo das histórias pouco importa, e sim o
dinamismo deste movimento, entre os pólos da ordem e do caos, cujo repouso
significaria a perda do encantamento estético característico dos relatos. Este
encantamento, por outro lado, poderia ser alcançado através da hipertrofia dos
fatores que estavam em sua origem, reduzindo a escrita a reproduzir
incessantemente os mesmos artifícios, e condenando-a a tautológicas
maquinações verbais.
Isto nos encaminha para a parcela de razão que possuía a comissão
julgadora dos Premios Nacionales de Literatura da Argentina, segundo este
raciocínio. Com efeito, grande parte da obra de Borges é constituída de jogos
cerebrais obscuros e arbitrários, com suas circunvoluções auto-referentes, seus
maneirismos ornamentais, sua floresta de símbolos e citações. Muitos se
embrenharam nesta mata em busca do “segredo de Borges” e nela estão perdidos
até hoje; outros saíram brandindo descobertas definitivas sistemas neo-
platônicos, complexos sexuais, a questão do nazismo que serviriam para
explicar o conjunto da obra sob uma luz uniforme. Mas revelações deste tipo
correm sempre o risco de serem tentativas de evitar o vazio, ou o fato de que
possa não haver nada sob os tumultos eruditos de Borges. De modo que a
comissão julgadora do concurso estaria parcialmente certa ao qualificá-los como
artefatos “exóticos”, que incitavam, no plano literário, os extremos da crença
modernista em uma alteridade radical como fonte secreta de ordenamento da vida.
Mas, crédula por sua vez em uma normalidade irreal do curso da história, a
comissão não podia ver nisto nada além de um desvio de padrões de conduta
estabelecidos, isto é, loucura e heresia, rotuladas como tais sem nenhum senso de
humor. Faltaria-lhe o distanciamento necessário para ver na prosa de Borges um
espetáculo consciente de suas artimanhas cenográficas, e ela, portanto, teria
ignorado o enquadramento, a moldura em que o autor instalava seus jogos.
Embora importe mais a maneira como esta moldura, gradualmente, passou a
delimitar os próprios relatos, algo do que foi dito até aqui neste trabalho terá
antecipado sua descrição, e algumas outras referências podem ser feitas com o
mesmo propósito. Temos, por exemplo, um irônico comentário de Borges sobre o
obscurantismo e a imprecisão que caracterizaria a linguagem filosófica de sua
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214
época, anotado em uma resenha de 1939, sobre um pensador que então gozava de
prestígio nos círculos especializados: “Ninguém pode entender a filosofia de
nosso tempo sem entender Whitehead, e ninguém pode entender Whitehead”.
183
no âmbito literário, além de ocupar-se com um desmonte bem-humorado das
“charlatanerías simbolistas” de Mallarmé e Paul Valéry, ele acompanhou os
desdobramentos da escrita de James Joyce em uma prosa cada vez mais
hermética, um processo que atingiria a qualidade literária de suas obras na
proporção inversa. Sem dúvida, o Ulisses era um monumento forjado por um
invejável dom verbal e por uma “feliz onipotência da palavra”, que Borges
comparava à de Shakespeare, mas, quanto ao romance seguinte de Joyce, o
mesmo não podia ser dito: Finnegans Wake é uma concatenação de truques
cometidos em um inglês onírico e que não é difícil qualificar como frustrados ou
incompetentes”, ele observou em 1940.
184
Assim, cada vez mais, a produção artística moderna parecia-lhe reduzida a
truques, charadas e alegorias, à elaboração virtuosística de árduos labirintos, que
simulavam a posse de um segredo, cuja compreensão estava reservada a
enxadristas e críticos. Seus próprios textos, decerto, muitas vezes reproduziam
esta tendência, mas isto era antes um motivo de frustração do que de entusiasmo
para o autor, direcionando-o quase invariavelmente para o território da paródia,
em relação aos outros e em relação a si mesmo. Por razões particulares, enfim,
Borges talvez possa ser incluído em uma lista em que constam os nomes de Anton
Tchekhov e Franz Kafka: a de escritores que, no mais das vezes, estavam
descontentes com seus relatos, porque sabiam que a literatura merecia ser outra
coisa. Mas sabiam, também, que lhes coube viver em uma época miserável, na
qual outra coisa talvez não fosse possível.
Na seção 4.2, terá chegado o momento de indicar como Borges, em
determinado ponto de sua carreira, acreditou-se destinado a uma experiência
literária de fato valiosa, em contraste com tudo o que havia produzido antes. Por
enquanto, pretendo enfatizar como ele insinuou aquele descontentamento. Em
uma de suas mais esclarecedoras entrevistas, por exemplo, uma passagem em
que é discutido o uso de metáforas inusitadas e surpreendentes nos poemas de
183
BORGES, J. L. “ ‘Modes of Thought’, de A. N. Whitehead”. [El Hogar, 29 de marzo de 1939].
In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 459.
184
BORGES, J. L. “El último libro de Joyce”. [El Hogar, 16 de junio de 1939]. In: ____. Textos
Cautivos. OC, vol. 4, p. 464.
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Fervor de Buenos Aires. Borges então caracteriza o procedimento como um mero
jogo de estilo, embora o efeito causado por ele pudesse sugerir que tivesse alcance
filosófico: “A coisa toda é feita de truques com as palavras”, ele declara. “Apenas
com as palavras?”, pergunta o entrevistador. “Apenas com as palavras”, responde
Borges.
185
O autor diria algo semelhante sobre alguns dos contos que escreveu na
década de 40, com a diferença que, neles, o ânimo com que havia composto os
ensaios de sua juventude teria sido substituído pela resignação, o que confere
outro teor aos resultados obtidos com a concatenação de inusitadas alusões
livrescas.
A este câmbio está atrelado o entendimento de que a expectativa com que a
literatura do século XX foi aguardada, para tomar o posto da monotonia e da
obtusidade burguesas, teve como resposta não a autêntica grandeza e consagração
da arte, mas um apequenar-se mais agudo desta em simulacros de suas ambições
originais. “Sinto dizer que “O homem no umbral” é também uma espécie de trick
story, um jogo com o tempo”, Borges escreveu nos comentários a uma
compilação em inglês de suas narrativas, repetindo uma advertência que
confrontava justamente aquele tipo de expectativa, após aplicá-la a outros textos
da coletânea.
186
Que ficássemos avisados: o que estava em jogo eram apenas
palavras. Dizê-lo era uma questão de sinceridade.
Por outro lado, ele não se sentia obrigado a desculpar-se por todas as
narrativas, e isto porque outras delas traziam consigo, como uma espécie de
advertência interna, indícios do que possuíam de convencional ou caricato. Ou por
adquirirem alguma profundidade, com a inserção de personagens humanizados,
que deixavam de ser apenas títeres sem vida nas mãos de um artífice habilidoso. E
tais personagens, de certa maneira, parecem ser sempre variações de Jorge Luis
Borges. O comportamento deles, diante dos enigmas e mistérios colocados pela
situação textual, equivaleria às facetas com que o autor encarava um
encarceramento em fórmulas trucadas de composição; e ver a si mesmo nesta
perspectiva era, para ele, também ver toda uma geração de intelectuais e artistas,
cujas personalidades e idiossincrasias muitas vezes lhe interessavam mais do que
os produtos de suas laboriosas invenções.
185
CHRIST, R. Borges’ Act of Allusion, p. 259.
186
BORGES, J. L. “Commentaries”. In: ____. The Aleph and Other Stories 1933-1969. Edited and
Translated by N. T. di Giovanni. New York: Dulton, 1970, p. 275.
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Ressalte-se ainda que determinados truques e jogos, presentes em seus
contos, estão correlacionados à linguagem política da época, em uma situação de
paralelismo e elucidação mútua, dentro de esferas culturais mais amplas, tal como
que procurei indicar no começo desta seção. Tendo isto em vista, observo que, na
organização deste capítulo, serão criadas três subdivisões, às quais,
respectivamente, e para usar um recurso expositivo, podem ser associadas as
idéias de França”, “Inglaterra” e “Alemanha”. No primeiro caso, centrado em
determinada tradição do relato policial, e sua atualização paródica na obra de
Borges, retomo a questão da cumplicidade entre esteticismo e vitalismo, ou entre
suicídio e barbárie, presente no exame feito da Historia Universal de la Infamia,
com maiores desdobramentos na seção 3.3. Na segunda parte, busco, na produção
literária de G. K. Chesterton, outro modelo para o mesmo nero, a ser usado
como termo de comparação, de onde algumas deduções sobre o problema do mal
no objeto nos relatos de Borges possam eventualmente ser extraídas, de acordo
com a influência do pensamento do escritor britânico em sua formação intelectual.
Na terceira subdivisão, retomo o enfoque sobre hábitos literários germânicos, para
que algumas últimas observações a respeito possam ser feitas.
Será aproveitado, portanto, um esquema construído no decorrer da tese, e
acredito que aqui ele poderá articular-se em torno de um foco de atenção. Sem
perder de vista o ambiente histórico em que evolui a trajetória acompanhada,
trata-se agora de analisar objetos que não demandam um diálogo ininterrupto com
a conjuntura imediata de sua produção, remetendo a mudanças mais profundas e
duradouras. Entre outras coisas, as ficções de Borges nos oferecem uma imagem
do mundo, filtrada por sua experiência, seus hábitos, preconceitos e talento
literário, tal como ela o observou durante a longa crise que coincide com o
período de sua formação. Por fim, pretendo indicar como o mundo pós-1945 surge
em seus relatos. Para este tópico me voltarei no encerramento do capítulo, embora
ele seja mais propriamente o tema da última etapa do trabalho.
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4.2.1
Os detetives suicidas
Desde logo, cabe ressaltar que “El jardín de los senderos que se bifurcan”
foi a única narrativa policial “séria” publicada por Borges mas “séria” em um
sentido específico, limítrofe em relação ao paródico.
187
O conto trata da
consumação de um plano perfeito, elaborado por um espião chinês que, a serviço
dos alemães durante a Primeira Guerra Mundial, precisava enviar, desde a
Inglaterra, uma mensagem aos seus superiores, informando a localização de um
parque de artilharia britânico, para que este fosse bombardeado. Sabendo que sua
identidade fora descoberta, e que estava prestes a ser capturado, Yu Tsun pensa
um meio de enviar o aviso a Berlim enquanto possível, mesmo que isto
significasse sua entrega aos inimigos. De maneira que ele redige sua história
enquanto aguarda a morte em uma prisão, mas orgulhoso de ter realizado sua
tarefa com perícia, ao procurar e assassinar um indivíduo que tinha o mesmo
nome da cidade a ser atacada, fazendo assim chegar à Alemanha a notícia do
crime.
Uma espantosa casualidade justifica o título da história. Stephen Albert, o
homem escolhido para morrer, é um sinólogo que possui o legado de um
antepassado de Yu Tsun: o livro que seria ele mesmo o labirinto a cuja elaboração
Ts’ui Pên, o antepassado, dedicara sua vida, no intuito de deixar para a
posteridade uma imagem do universo tal como concebido por ele. A obra teria
resultado em um romance aparentemente caótico, que acompanha infinitas
187
Toda a argumentação seguinte dialoga com a contribuição de John T. Irwin ao debate sobre o
tema, em um livro cuja leitura recomendo a investigadores de quaisquer assuntos relacionados
(The Mystery to a Solution: Poe, Borges, and the analytic detective story. Baltimore and London:
Johns Hopkins University Press, 1994).
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bifurcações no tempo, supondo diversos desenlaces para cada situação vivida por
seus protagonistas, o que por sua vez leva infinitamente à abertura de novas
alternativas. Isto, porém, não salva Stephen Albert de cumprir seu papel no plano
de Yu Tsun, que o fulmina com um disparo, depois de escutar a explicação do
livro, contrapondo, à multiplicidade de opções figurada no romance, o
cumprimento exato de seu sacrifício pela causa alemã. A causa importa-lhe
menos, porém, do que a própria execução formal do plano, pela qual sua vida e a
de Stephen Albert são sacrificadas.
Em que pese a estranheza da trama, portanto, “El jardín de los senderos que
se bifurcan” busca um efeito literário convencional, o da resolução de um enigma
através da plena articulação dos elementos de um enredo, consumada no momento
de um crime. Referências históricas o situam em um território recorrente na obra
de Borges: o pano de fundo da guerra, o jovem que os Anais de cito no
vagão de um trem por onde passa Yu Tsun, e as declarações deste de que em
breve o mundo seria habitado somente por dândis e bandoleiros, executores de
empresas tão atrozes quanto a que ele havia concebido. O que caracteriza Yu Tsun
como um personagem da Historia Universal de la Infamia, um “monstro moral”
destituído de profundidade psicológica, entregue a maquinações que tudo
submetem à perfeição estética. Mas, nem por isso, o conto abandona as funções
do gênero policial para converter-se em uma alegoria política; no final, o que
interessa é o suspense gerado pela seqüência de eventos, que, em meio a
especulações sobre a narrativa e o tempo, cria um ambiente onírico, favorável ao
efeito ordenador da cartada decisiva. Porém, para alcançar este efeito,
casualidades extravagantes e diálogos labirínticos se faziam indispensáveis, para o
“convencimento” de um leitor acostumado às convenções do gênero, e que as
considerava simplórias ou banais. Daí o impasse: ao mobilizar recursos como
aqueles para ter impacto, o conto policial ficava a um passo de se tornar uma
caricatura de si mesmo.
O processo traz a marca da decadência, e a menção a Tácito no interior da
narrativa já delimita o território em que se movem os personagens.
188
O que
pretendo demonstrar é como esta condição, apenas insinuada em El jardín...”,
188
Para uma leitura do conto mais atenta ao tema da estilização da violência da Primeira Guerra,
ver BALDERSTON, D. “El ‘labirinto de trincheras carente de todo plan’ en ‘El jardín de senderos
que se bifurcan’. In: ____. Fuera de Contexto? Referencialidad histórica y expresión de la
realidad en Borges. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1996 [1993], p. 69-92.
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converteu-se no traço mais característico dos contos policiais de Borges, na
medida em sua parafernália simbólica se multiplicava. Acompanhar esta evolução
é ver, no plano literário, uma dinâmica correlata à que o autor identificou no curso
político da época; vale reforçar, entretanto, que não se trata de um reflexo ou da
influência unidirecional de uma instância sobre a outra, e sim de movimentos
distintos que dialogam com as mesmas forças históricas. E, assim como Borges
teria enfrentado os exageros e simulacros políticos de seu tempo recorrendo ao
humor, ele transformaria em motivo de derrisão determinadas evoluções do
discurso literário. Mas tampouco a relação entre o ridículo e o atroz estaria
ausente neste caso, e também aqui pode ser útil assinalar brevemente os
antecedentes oitocentistas da questão.
Pois, em suas resenhas do final da década de 30 sobre livros de escritores
populares como Milward Kennedy e Michael Innes, Borges havia apontado
aquela que seria a “crescente dificuldade do gênero policial”: a capacidade
adquirida pelos leitores de se anteciparem às soluções das tramas.
189
E esta
dificuldade podia ser atribuída a um processo cultural de longa duração. Na
perspectiva de Borges, a fórmula clássica do conto policial havia sido registrada
por G. K. Chesterton, privilegiando a “simplicidade” de histórias com soluções
elementares, em comparação com a “complexidade” de combinatórias
sofisticadas; para os leitores mais refinados do século XX, contudo, o
procedimento resultaria apenas ingênuo; eles buscavam o fascínio com a
perspicácia analítica e o encanto das estruturas lógicas, não a conveniência de
arremates previsíveis do ponto de vista do bom senso, o que transfere a matriz do
gênero para a obra de Edgar Allan Poe. Melhor ainda se, à argúcia da análise
clarividente, pudesse ser articulada a sugestão de enigmas ainda mais complexos.
Em “El jardín de los senderos que se bifurcan”, esse molde se aplica ao plano de
Yu Tsun, fazendo com que a identidade entre o nome de sua vítima e do alvo
alemão resolva o enigma da história o que, no entanto, não a restringe aos
limites analíticos do gênero, pois a dispersão da narrativa em um caos atordoante,
que precede o crime, oferece a pista de que o que está em jogo é algo maior: o
enigma do universo.
189
Ver BORGES, J. L. ‘Sic Transit Gloria’, de Milward Kennedy”. [El Hogar, 3 de septiembre
de 1937]. In: ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 334, e BORGES, J. L. ‘Hamlet, Revenge!’,
de Michael Innes’’. [El Hogar, e de diciembre de 1937]. In : ____. Textos Cautivos. OC, vol. 4, p.
355-6.
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O truque consistia em dar a uma mera charada o aspecto de um mistério
cósmico. Para a perplexidade do leitor, o que parece ser somente em conto policial
inclui um tratado sobre metafísica. Todavia, se, neste caso, os dois
encaminhamentos da narrativa são divergentes e irreconciliáveis, restava a tarefa
de explorar as possibilidades da técnica em busca da eliminação desta diferença.
O que, por outro lado, implicaria no esgotamento da fórmula, alcançado por
Borges em questão de dois contos, de acordo com o processo por ele descrito em
um prólogo para a Historia Universal de la Infamia:
Eu diria que é barroca a etapa final de toda arte, quando esta exibe e dilapida seus
meios. O barroquismo é intelectual e Bernard Shaw declarou que todo trabalho
intelectual é humorístico. Este humorismo é involuntário na obra de Baltasar
Gracián ; voluntário ou consentido, na obra de John Donne.
190
O que “Hombre de la esquina rosada” havia significado para as narrativas
da Historia Universal de la Infamia, portanto, “El jardín de los senderos que se
bifurcan” viria a ser para “La muerte y la brújula”, o relato policial publicado na
seqüência por Borges. E se o humor, nos primeiros, podia ser involuntário em
várias gradações, nos outros se tornava consentido, embora tanto nas narrativas de
1933-1934, quanto no relato de 1942, a banalização satírica de procedimentos
formais estivesse vinculada à representação de um aflitivo quadro social. Sei que
isto pode estar se tornando repetitivo, mas, ao menos neste caso, não em função
da inépcia responsável por outras deficiências ou exageros deste trabalho. Para
Jorge Luis Borges, era o mundo que havia se tornado tautológico após 1930,
mesmo que aquele pudesse ser o mais intolerável dos tédios.
Os excessos de “La muerte y la brújula” começam pelo nome dos
personagens. Erik Lönnrot, o detetive apresentado como um diletante com algo de
aventureiro, um Auguste Dupin com temperamento de jogador, traz na última
sílaba de sua designação uma palavra alemã para a cor vermelha. E Red
Scharlach, “el Dandy”, reitera, no nome e no sobrenome, a proeminência que tons
rubros adquirem no decorrer da história. Este último é quem desencadeia a ação,
190
BORGES, J. L. “Prólogo à edição de 1954”. In: ____. História Universal da Infâmia. Trad.
Alexandre Eulálio. OC [edição brasileira], vol.1, p. 315. “Yo diría que es barroca la etapa final de
todo arte, cuando éste exhibe y dilapida sus recursos. El barroquismo es intelectual y Bernard
Shaw ha declarado que toda labor intelectual es humorística. Este humorismo es involuntario en la
obra de Baltasar Gracián; voluntario o consentido, en la de John Donne”. BORGES, J. L. “Prólogo
a la edición de 1954”. In: ____. Historia Universal de la Infamia. OC, vol. 1, p. 307-308.
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ao cometer um crime que chama a atenção de Lönnrot por suas circunstâncias
peculiares, particularmente a frase encontrada ao lado do cadáver de um
participante do congresso talmúdico que estaria ocorrendo em Buenos Aires: La
primera letra del Nombre ha sido articulada. A partir daí, outros dois mortos são
encontrados em diferentes lugares da cidade, que a princípio parecem aleatórios,
mas corresponderiam, segundo as mensagens do criminoso, à segunda e à última
letras do “nome”, o que cria um ambiente cabalístico para o prosseguimento e a
resolução da trama. A hipótese de um complô anti-semita é levantada na imprensa
local para explicar os crimes, ao que tudo indica terminados. Mas Lönnrot não se
contenta com a explicação e continua a caçar o criminoso, convencido de que ele
ainda premeditava outro atentado.
Afinal, traçando com tinta vermelha as coordenadas dos locais dos crimes
anteriores, ele descobre que formavam um triângulo eqüilátero. Mas, a partir da
lembrança do termo grego tetragrámaton referente a uma variável dos “nomes
de Deus”, tal como propagado em segredo pela seita dos Hasidim, JHVH –,
conclui que o quarto crime ocorreria no centro do círculo inscrito no triângulo.
Assim chega a Triste-le-Roy, uma estância do sul da cidade, certo de que evitaria
outro assassinato e prenderia o malfeitor. Antes de alcançar a câmara onde este o
aguardava, porém, ele se perde em uma estranha edificação:
Vista de perto, a casa da chácara de Triste-le-Roy possuía muitas inúteis simetrias e
repetições maníacas: a uma Diana glacial em um nicho lôbrego correspondia em
outro segundo nicho outra Diana; uma sacada refletia-se em outra sacada; duplas
escalinatas abriam-se em dupla balaustrada (...) Por ante-salas e galerias saiu a
pátios iguais e repetidas vezes ao mesmo pátio. Subiu por escadas poeirentas a
antecâmaras circulares; infinatamente multiplicou-se em espelhos opostos; cansou-
se de abrir ou entreabrir janelas que lhe revelavam, fora, o mesmo desolado jardim
de várias alturas e vários ângulos.
191
Este tipo de enumeração, feita de exaustivas variantes em torno de um
mesmo espaço vazio, é também um recorrente recurso do gênero para anunciar
191
BORGES, J. L. “A morte e a bússola”. In: ____. Ficções. Trad. Carlos Nejar. OC [edição
brasileira], vol. 1, p. 563. “Vista de cerca, la casa de la quinta de Triste-le-Roy abundaba en
inútiles simetrías y en repeticiones maniáticas: a una Diana Glacial en un nicho lóbrego
correspondía en un segundo nicho otra Diana; un balcón se reflejaba en otro balcón; dobles
escalinatas se abrían en doble balaustrada (…) Por antecomedores y galerías salió a patios iguales
y repetidas veces al mismo patio. Subió por escaleras polvorientas a antecámaras circulares;
infinitamente se multiplicó en espejos opuestos; se cansó de abrir o entreabrir ventanas que le
revelaban, afuera, el mismo desolado jardín”. BORGES, J. L. “La muerte y la brújula” [1942]. In:
___. Ficciones. OC, vol. 1, p. 541.
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que, no cerne do mistério, a morte aguarda o detetive. Sem maiores surpresas, é
isto o que acontece em “La muerte y la brújula”. Com dois capangas de sua
gangue, Scharlach está aguardando Lönnrot no centro da casa, e segue-se o
diálogo em que o dândi esclarece seus motivos e métodos. Os primeiros são
atribuídos ao encarceramento de seu irmão pelo detetive três anos antes, quando
ele próprio recebera uma bala na perna durante um tiroteio, após o que teria se
refugiado em Triste-le-Roy, cultivando o ressentimento e o ódio que o levariam a
elaborar o plano. Conhecendo a atração de Lönnrot por segredos esotéricos,
aproveita a morte casual do congressista talmúdico, em um assalto por dinheiro da
gangue, e das palavras que este teria escrito no início de um texto antes de morrer:
La primera letra del Nombre ha sido articulada. Os assassinatos seguintes são
então executados no propósito de atrair o detetive para a quinta, na medida em que
a solução tríptica seria satisfatória para o público, mas não para alguém em busca
dos indícios de um enigma mais sofisticado. Lönnrot escuta tudo isto sentindo
uma “tristeza impessoal, quase anônima”, na atmosfera de um crepúsculo de tons
avermelhados. Por fim, Scharlach retrocede alguns passos e, cuidadosamente,
abre fogo contra ele.
O conto intercala a exatidão do esquema de Scharlach, que previa o
reconhecimento de seus truques pelo intelecto de Lönnrot, e a atmosfera
melancólica e onírica em que se dá seu encerramento, na absurda arquitetura de
Triste-le-Roy. Esta seria a fórmula consagrada, e decaída, do conto policial
segundo Borges. Mas, da identidade entre a vítima e o assassino, ou do detetive e
do criminoso, dada a similaridade de seus nomes, e a convergência de seus
raciocínios, surge o vínculo com a matriz mais antiga do gênero: a tragédia
grega.
192
Explorar esta relação pode ser útil para ampliar o quadro de referências
da análise, e entender porque o texto está engastado nos moldes aristocráticos do
simbolismo francês, reencenando sua cumplicidade com os aspectos místicos do
expressionismo alemão.
Pois, por excelência, Édipo Rei é a história do homem que resolve uma
charada para tornar-se vítima da própria determinação heróica e do próprio
intelecto agudo. Para ele, conhecer a identidade do assassino é conhecer a si
mesmo, e vice-versa, em um processo no qual a hybris, o orgulho do soberano,
192
Cf. John T. Irwin, The Mystery to a Solution: Poe, Borges, and the analytic detective story.
Baltimore and London: Johns Hopkins University Press, 1994, p. 201-228.
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cumpre um papel determinante. Assim, é revelada uma criatura parricida e
incestuosa, responsável pelos crimes que transtornaram a ordem natural das
coisas, cujo sacrifício é exigido pelos deuses, em um sistema de compensação
inelutável, que sobrepõe a fatalidade trágica à pretensa liberdade do indivíduo.
Trata-se de um dos mais cruéis pesadelos forjados pela mente humana: a idéia de
que o mundo é uma armadilha, na direção da qual o herói caminha movido pelo
desejo de conhecer a verdade, mas ignorando que esta verdade irá aprisioná-lo em
um destino do qual ele nunca esteve efetivamente desligado. O incesto confere
enorme impacto à percepção desta impossibilidade de ruptura, tendo em vista a
imagem da fronteira familiar como um cárcere, ao qual o destino restringe o raio
de ação do herói, atribuindo a todos os seus atos um significado preciso dentro do
esquema de sua ruína. Sem dúvida, a arquitetura, o enredo, o plot de Édipo Rei
pode ser um tanto inverossímil e extravagante em sua perfeição formal mas,
como resultado de um capricho divino, ele exige apenas sua aceitação como uma
força sem sentido e eticamente neutra para a compreensão humana, uma lei
indiferente ao sofrimento pessoal. E, por isso mesmo, se torna o impulso de uma
aterrorizada e piedosa identificação do coro, que assiste ao espetáculo da
manipulação do personagem trágico como um títere cego, sem que ninguém possa
fazer nada a respeito.
193
Daí o papel comunitário da tragédia antiga: o de representar, para um
coletivo anônimo de cidadãos, o surgimento de uma consciência psicológica da
vulnerabilidade da condição humana, no momento histórico em que o herói
deixava de ser um modelo para ser um problema. Nela se sobressai a função
empática do drama, que percorre todo um espectro de tensões e dúvidas antes da
desgraça fulgurante, tensões e dúvidas que apenas se insinuavam na
caracterização do guerreiro épico. Neste sentido, ela operaria como um foco de
convergência para diversos olhares, que nele reconhecem dilemas e temores
comuns, decorrentes de um contexto de incertezas, onde atuam poderes
193
Cf. RICOUER, P. “El Dios malvado y la visión ‘trágica’ de la existencia”. In: ____. Finitud y
Culpabilidad. Trad. Cristina de Peretti, Julio Díaz Galán y Carolina Meloni. Madrid: Editorial
Trotta, 2004 [1960], p. 357-376, e VERNANT, J. P. “O momento histórico da tragédia antiga:
algumas condições sociais e psicológicas” e “Tensões e ambigüidades na tragédia grega”. In:
VERNANT, J. P., e VIDAL-NAQUET, P. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. Trad. Anna Lia A.
de Almeida Prado, Filomena Yoshie Hirata Garcia e Maria da Conceição M. Cavalcante. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1999 [1981], p. 1-6 e 7-24.
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irreconhecíveis. Estes são os poderes do mito, que, por definição, são desumanos.
Desta maneira, o trágico postula a radicalidade do mal.
Ou seja: no confronto entre um cosmos mítico, lendário, habitado por
classes nobres e militares, e um indivíduo fragilizado pela angústia e a
interrogação de seu lugar no mundo, a tragédia oferecia uma oportunidade de
identificação do espectador com o sofrimento do herói, subjugado pela absurda
execução do plano divino. Porém, ao recuperar os padrões da narrativa trágica
para a short story moderna, Edgar Allan Poe lançou-se à tarefa de erguer
estruturas tão fantásticas quanto a da travessia edipiana, sem ter a mesma atenção
com o infortúnio de seus personagens. “The Fall of the House of Usher” trata do
confinamento de dois irmãos, aristocratas e incestuosos, em uma casa condenada
à catástrofe por uma profecia antiga; “William Wilson”, do tema do duplo como
identidade entre perseguidor e perseguido, que se encontram em uma violenta
cena final; e Auguste Dupin é um implacável decifrador de enigmas, cujos
raciocínios analíticos mantêm-se no terreno da lógica pura. Em nenhum dos casos,
encontramos uma situação dramática que torne a personalidade ou o padecimento
dos protagonistas mais importantes do que a solução do enigma. Mas, enfim, estas
peças parecem ter sido criadas com propósitos estéticos, no sentido técnico da
expressão, o da engenharia virtuosística de máquinas auto-suficientes. E, por esta
razão, nasceram sob o risco da transfiguração satírica: diante de tão minuciosas
catedrais, sejam elas sustentadas pela lógica de seus segredos ou pela
complexidade de seus mistérios, somos defrontados com uma absoluta ausência
de tragicidade, no sentido humano do termo. Sem demérito para os textos, no que
se propõem a alcançar, fica a impressão de que tudo pode não passar da mais pura
diversão literária.
Mas se humor, em Poe, ele é involuntário; em Borges, pouco a pouco,
torna-se premeditado. Entre ambos, está a apropriação da obra do escritor norte-
americano operada pelo simbolismo francês (de acordo com uma genealogia que o
próprio Borges apontou em algumas ocasiões). E, neste último caso, o artefato
estético adquiria o grave estatuto de um meio para a salvação pessoal, fosse
através da dispersão do sujeito em um caos atordoante de correspondências
simbólicas, que promete sua reintegração na unidade do Ser (Baudelaire), fosse
pela ascética conquista da natureza pela consciência, que lhe subtrai a substância
material, criando um universo formal purificado dos desejos e das paixões
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humanas (Mallarmé).
194
Assim, o que antes estimulava a criação de contos e
poemas isolados da vida cotidiana, agora passava a prometer a substituição desta,
com formas de uma existência mais nobre e heróica, mesmo que, em ambos os
vetores, ela se direcionasse inelutavelmente para a experiência da morte. Mas, de
acordo com Paul de Man, o principal legado destes autores para a literatura do
novo século não seriam as representações do sucesso desta busca, mas o relato de
seu desespero e de suas frustrações, quando eles “deixavam cair a máscara” e
percebiam que mesmo a promessa de unidade contida na idéia da morte era uma
ficção teatral, que não ultrapassava o âmbito da linguagem. E, portanto, os
devolvia ainda vivos a um mundo mais prosaico, ou menos suscetível de ser
capturado pelas operações do intelecto.
Enredados na esfera da arte como caminho para uma falsa redenção, e
fazendo apostas compulsivas, que cada fracasso fazia por aumentar, os
simbolistas teriam se enredado em um jogo perverso, de simetrias e repetições,
com o qual não conseguiam romper. Confrontavam com orgulho a irrevogável
dualidade do ser, e anunciavam o resgate da unidade perdida, através de um
esforço sobre-humano do corpo ou da consciência, para se depararem com um
vazio no lugar onde deveria estar o segredo, no instante da revelação de que o
mundo fora abandonado pelos deuses. A partir daí, uma bifurcação levava a duas
condutas distintas. A primeira era gerada pelas forças da compulsão, aliada a
transformações do quadro social, fazendo com que a crença nos atributos
redentores da estética alcançasse novos patamares, estendendo-se a projetos de
administração política e renascimento cultural. A este processo estão associadas a
banalização do mal e a estetização da política. A segunda trazia as marcas de um
aprendizado, ao escancarar a vacuidade das promessas esteticistas, ao mesmo
tempo em que exibia e esgotava seus recursos. Nesta direção, creio ter seguido a
obra de Borges.
Deste ponto de vista, o que de angustiante nos efeitos paródicos de La
muerte y la brújula” se deve ao fato do conto articular, na moldura de uma mera
história de detetives, os mecanismos de cognição da história como eterno retorno
das mesmas farsas, no qual estariam aprisionados agentes incapazes de mudar o
194
Cf. MANN, Paul de. The double aspect of symbolism”. In: ____. Romanticism and
Contemporary Criticism. The Gauss Seminar and other papers. Baltimore: The Johns Hopkins
University Pres, 1984.
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seu curso, ou entregues a ele com uma convicção maníaca. Quanto a isso, algumas
conexões imediatas podem ser sugeridas, como, por exemplo, entre a cor
vermelha e seu papel nas representações do radicalismo argentino, uma relação
extensamente ilustrada por Sarmiento, ou entre o tetragrámaton e a suástica
nazista, um símbolo solar encontrado em várias culturas pré-cristãs. Todavia,
importa menos determinar a origem destes signos do que entender como eles são
manipulados na narrativa, como traços exagerados de um enigma risível, posto
que se reduz a um plano de vingança, pensado para atrair um amante de sistemas
lógicos e mistérios cabalísticos. E nem por isso o conto deixa de ter uma
ressonância trágica, se atentarmos para a condição dos personagens como
marionetes de um só destino aterrorizante: “O assassino e o assassinado, cujas
mentes funcionam da mesma maneira, podem ser o mesmo homem”, afirmou
Borges ao comentá-lo, acrescentando que, de certo modo, Lönnrot era um
personagem suicida.
195
Em retrospectiva, a constatação traz consigo a lembrança de maio de 1940,
como uma etapa do movimento infinito de um ciclo de agressões e reações entre
dois inimigos, França e Alemanha, aprisionados no código da vendeta. E o relato
serviria também para que Borges descrevesse sua própria situação após a ascensão
de Juan Domingo Perón ao poder na Argentina, subseqüente à derrota dos regimes
fascistas na guerra, quando ele afirmaria sentir-se mais uma vez capturado pelas
simetrias e repetições de Triste-le-Roy. Mas nenhuma destes focos de análise
esgotaria as possibilidades de interpretação de “La muerte y la brújula”, que
configura, de maneira mais ampla, uma imagem do mundo como pesadelo
tautológico, labirinto de espelhos e caminhos que se bifurcam, talvez um tanto
banal em seus excessos arquitetônicos e estilísticos, mas por isso mesmo ainda
mais impiedoso com aqueles que estão submetidos ao infortúnio de habitá-lo. O
rei triste de Borges remete ao monarca melancólico do drama barroco, segundo a
leitura de Walter Benjamin, que antecedeu sua famosa descrição da figura de
Baudelaire: um sujeito submerso na percepção do tempo como uma caprichosa
eternidade, o esteta entediado com a multiplicação das alegorias, que se deixa
perder na floresta de símbolos do labirinto urbano, e encontra no niilismo e no
195
BORGES, J. L. “Commentaries”. In: ____. The Aleph and Other Stories 1933-1969. Edited and
Translated by N. T. di Giovanni. New York: Dulton, 1970, p. 269.
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suicídio o “selo de uma vontade heróica” apropriada aos tempos modernos. E o
pior é que esta eternidade mítica não é trabalho dos deuses, mas dos homens. Daí
sua aterradora trivialidade.
Enfim, o que o relato tem de patético é também o que ele tem de terrível.
Lógica e mística nele se conjugam na imagem de um cosmos regulado pelo eterno
retorno. Mas, por outro lado, isto converge apenas para a criação de uma
“atmosfera” depressiva, na qual Borges via o maior mérito da história, sem que o
elemento humano possa ser percebido a não ser em sua ausência, e nenhuma
verdadeira consternação trágica seja decorrente de sua leitura. A apatia e a
indiferença de Lönnrot diante do próprio destino desestimulam uma interpretação
fundada na natureza de seu sofrimento, e, se o caprichoso sistema de Scarlach é o
mal, não se trata do mal radical responsável pelo infortúnio de uma nobre alma,
mas de um plano mesquinho gerado pelo ressentimento e pelo ódio. Desta
diferença se encarrega o componente satírico da trama, o que torna o modelo
edipiano insatisfatório para a interpretação da narrativa, e, sobretudo, para o
prosseguimento da argumentação sobre o assunto. Neste sentido, é o caso de
verificar de que maneira a comédia podia servir como uma referência do relato
policial, e como isto pode ser um vetor relevante para o tratamento do tema.
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4.2.2
As alegrias do Padre Brown
Em suma: tendo em vista o esgotamento da tática simbolista ou
expressionista empregada na elaboração dos relatos, e sua transfiguração em uma
vaga atmosfera caricaturesca, a tradição inglesa mais uma vez serviria à
continuidade da trajetória de Borges. Refiro-me a Chesterton e, por extensão, à
criação mais célebre do escritor britânico, o padre Brown. Antes de seguir adiante,
portanto, será válido recordar alguns traços marcantes da personalidade e das
histórias deste personagem, no intuito de demonstrar como, também neste caso, a
“inocência” britânica terminou por servir de remédio ou uma forma de proteção
com que o argentino enfrentou a sensação de viver em meio a imposturas e
simulacros. No entanto, veremos como isto nos leva antes à indicação de um falta
do que de um fundamento em seus textos: a falta de simplicidade. Trata-se então
de identificar o conjunto de práticas e valores a que esta simplicidade está
vinculada.
Podemos começar com um comentário de Borges, escrito em 1937, sobre
um texto autobiográfico de Chesterton:
Desnecessário falar da magia e do brilho de Chesterton. Eu quero deter-me em
outras virtudes do famoso escritor: sua admirável modéstia e sua cortesia. Os
literatos que em nosso solene país condescendem ao gênero autobiográfico falam
de si mesmos em um tom distante e reverencial, como se falassem de um ilustre
parente que vez por outra encontram nos velórios; Chesterton, ao contrário,
convive íntima e jovialmente com Chesterton e até ri dele.
196
196
“Innecesario hablar de la magia y del brillo de Chesterton. Yo quiero ponderar otras virtudes
del famoso escritor: su admirable modestia y su cortesía. Los literatos que en nuestro solemne país
condescienden al género autobiográfico, nos hablan de si mismos en un tono remoto y reverencial,
como si hablaran de un ilustre pariente que a veces encontraron en los velorios; Chesterton, al
contrario, intima jovialmente con Chesterton y hasta se ríe de él”. BORGES, J. L.
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O que nos situa no âmbito da comédia. E, a este respeito, note-se que,
além de permear o estilo de sua prosa, o cômico é um princípio estruturante nas
narrativas de Chesterton, assim como dos romances de Charles Dickens, cuja arte
elas de certa maneira exibem, sintetizam e esgotam.
Pois, em Dickens, os enredos começam pela alusão ao demoníaco como
agente de desintegração do mundo, com imagens de detalhes assustadores ao
olhar infantil que as percorre: a cicatriz no rosto de um bandido, lareiras
crepitantes, risadas macabras, cervejarias decrépitas. Mas, no fim das contas, tudo
é alucinação. Os demônios não passam de criaturas viciosas, nunca
verdadeiramente nocivas à ordem do universo. Não há grandes maldições ou
sortilégios. No máximo, alguma demência e fanatismo na perversidade dos
vilões, mas ela pode ser creditada a um histórico de humilhações e ofensas, que os
tornam dignos da piedade de consternados e cândidos heróis, no instante em que
eles alcançam uma visão de conjunto, e consolidam sua na justiça e na
providência. Enfim, a radicalidade do mal está banida destas histórias, e o
transtorno que as atravessa é a corrupção, expressa com clareza em maus hábitos e
defeitos físicos, signos de cobiça, avareza ou mesquinhez, mas não de uma
personalidade ou índole maligna. A teodicéia de Dickens seu esquema de
justificação da presença do mal no mundo é tão abrangente que se detém apenas
onde falham todas as teodicéias cristãs: o sofrimento infantil.
197
Nas passagens em
que este é mais agudo e injustificável, sua voz é a do coro trágico antigo. No mais
das vezes, porém, ele está bem satisfeito com os indícios de que uma inteligência
racional e caridosa regula as desventuras do homem.
O engraçado está em como o vício e o desequilíbrio penetram com várias
gradações as almas de personagens intermediários, e transfiguram os ambientes
que eles habitam. Com seus esquisitos auxiliares, advogados presunçosos, e
confusos trâmites judiciários, o mundo de Dickens oferece oportunidade para todo
“‘Autobiography’, de G. K. Chesterton”. [El Hogar, 1 de octubre de 1937]. In: ____. Textos
Cautivos. OC, vol. 4, p. 341.
197
Sobre o tema da teodicéia, ver WEBER, M. “Theodicy, Salvation, and Rebirth [1922]”. In:
____. WEBER, Max. Sociology of Religion [Religionssoziologie, from Wirtschaft und
Gesellschaft]. Translated by Ephraim Fischoff, introduction by Talcott Parsons, foreword by Ann
Swidler. Boston: Beacon Press, 1991, p. 138-150. Mais especificamente sobre as teodicéias cristãs,
ver RICOUER, P. “El mito ‘adámico’ y la visión ‘escatológica’ de la historia”. In: In: ____.
Finitud y Culpabilidad. Trad. Cristina de Peretti, Julio Díaz Galán y Carolina Meloni. Madrid:
Editorial Trotta, 2004 [1960], p. 377-418.
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tipo de riso com pequenas fraquezas e idiossincrasias humanas, e as
constrangedoras trapalhadas delas decorrentes. Percorrer este mundo é mover-se,
com desconcerto e embaraço, em um labirinto de escritórios bagunçados, pilhas
de petições, balbúrdia oratória, e daí surge o efeito cômico das expressões faciais
perplexas, que “não vêem maneira alguma de endireitar as coisas”. Este viria a ser
o mundo de Kafka mas apenas a partir do instante em que estivesse
completamente entregue a uma agitação sem sentido algum, convertendo o
desamparo em uma condição existencial irreversível do indivíduo, condenado ao
infinito vagar pelos corredores de um universo desgovernado. Em Dickens,
subsiste a crença em uma razão que se diverte com estes breves percalços, e
assegura a execução de um plano benévolo e pedagógico. Que, afinal, repercute
no plano do direito, onde se consolida o derradeiro e justo arranjo de enredos e
processos.
Chesterton concentra estes vetores em histórias abreviadas, de acordo com
uma disposição intelectual, que se expõe em um protagonista arquetípico. Por isso
elas estão destituídas da alegre riqueza de personagens e situações de Dickens,
ilustrando com maior premeditação o que antes fluía com naturalidade. Outro
traço diferencial é a contraposição do caráter de sua figura central com congêneres
de outras nacionalidades, o que se tornará particularmente valioso para a análise
subseqüente de um conto de Borges. Assim, na primeira história de The
Innocence of Father Brown (1911), ele surge no contraste com a figura de
Aristide Valentin, o investigador francês que chega à Inglaterra para realizar a
“maior prisão do século”, na caça a um bandido internacionalmente célebre, que
estaria refugiado. Valentin é qualificado como um acumulador de êxitos
baseados em raciocínios lógicos exatos, em consonância com o rigor típico do
pensamento francês, que, segundo o narrador, se distingue não por postular novos
paradoxos, mas por ir até o fim na dedução de um truísmo. E ele é igualmente um
observador atento e frio do que se passa à sua volta, de modo que, no navio em
direção a Londres, nota a presença de vários clérigos, os quais estariam indo
participar de um encontro na capital inglesa, sendo que um deles, em particular,
fica registrado em sua memória:
O Congresso Eucarístico sem dúvida havia retirado da estagnação provinciana
muitas criaturas como esta, confusas e desamparadas, como toupeiras fora da toca.
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231
Valentin era um cético no rigoroso estilo francês, e não podia ter amor algum por
padres. Mas podia sentir pena deles, e este em particular teria causado pena em
qualquer um. Carregava um guarda-chuva grande e esgarçado, que deixava cair
constantemente no chão. Não parecia saber qual era a extremidade certa do seu
bilhete de retorno. Explicou a todos na embarcação, com uma simplicidade pueril,
que tinha que ser precavido, pois havia algo feito de prata verdadeira “com pedras
azuis” em um de sues pacotes de papel marrom.
198
A caracterização denota uma fragilidade e uma desorientação tipicamente
cômicas, nos detalhes da imagem e do comportamento do padre, que, em sua
“ingenuidade”, declara para todos portar um objeto valioso. No entanto, mais do
que um efeito cênico, ela implica uma relação com a transcendência, que se torna
nítida na seqüência dos relatos, consolidando a idéia de que o desconcerto de
Brown é uma expressão de humildade, presente na falta de jeito em lidar com
minúcias práticas e regras de etiqueta. Por outro lado, na passagem sobre as
pedras preciosas, reside outro indício decisivo para a composição do personagem:
sua plácida confiança nos desígnios de uma ordem divina, impossível de ser
fixada em sua totalidade por agentes humanos, mas que, através da mediação
textual, se executa em cada um dos contos de Chesterton, agenciada por seu
personagem central. Trata-se de uma segurança articulada às próprias vacilações
do padre, e nunca abalada ao ponto de lhe colocar em dúvida quanto à efetividade
da providência, tornando aquilo que parece ingênuo em uma espécie de desafio
aos homens de má-fé, que tentarão desvirtuar o curso normal das coisas, e assim
darão o pretexto para o desenrolar das tramas.
Não pretendo parafrasear nenhuma delas em especial, e sim entender uma
dinâmica que é mais ou menos apreensível no conjunto, a partir desta conexão
entre o humor e a graça. Deste modo, aquela mesma criatura atrapalhada com
guarda-chuvas e tíquetes se converte, em todos os relatos, no solucionador de
enigmas intrincados, que ele como oportunidades de exercitar uma razão
fundada no alcance universal da justiça. “A razão é sempre razoável, mesmo no
último limbo, na fronteira perdida de todas as coisas”, diz o padre Brown em uma
198
“The Eucharistic Congress had doubtless sucked out of their local stagnation many such
creatures, blind and helpless, like moles disinterred. Valentin was a sceptic in the severe style of
France, and could have no love for priests. But he could have pity for them, and this one might
have produced pity in anybody. He had a large, shabby umbrella, which constantly fell on the
floor. He did not seem to know which was the right end of his return ticket. He explained with a
moon-calf simplicity to everybody in the carriage that he had to be careful, because he had
something made of real silver ‘with blue stones in one of his brown-paper parcels”.
CHESTERTON, G. K. “The Blue Cross” [1910]. In: ____. The Complete Father Brown Stories.
London: Wordsworth Classics, 1992, p. 17-32.
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polêmica. E, tanto quanto a resolução do mistério, discussões neste território
atiçam o seu espírito argumentativo, estando nelas inserida uma tese sobre a
natureza da verdade, consagrada pela robustez do senso comum, mas, em última
instância, proveniente de uma teologia.
Para expô-la, Chesterton recorre a um terceiro personagem: o bandido que,
após ser capturado por Brown na medida em que este se antecipa a Valentin,
demonstrando a insuficiência da lógica aplicada a assuntos humanos –, regenera-
se e torna-se também, em narrativas posteriores, um investigador de casos
criminais. Flambeau é um francês com traços germânicos, que combina argúcia
matemática com acessos de violência, e pode ter inspirado a criação de Red
Scharlach, inclusive pela correspondência de seus nomes. em sua primeira
aparição, sob o disfarce de um participante do congresso eucarístico, ele discute
com o padre Brown a infinitude do universo; afirma que o enigma do cosmos é
insondável, e que existem outros mundos, outras formas de existência, que
preservam significados ocultos para a mente do homem, com as quais este
somente pode se relacionar através do fascínio e da adoração. Enquanto o
protagonista de Chesterton, com uma serena convicção descrente de tais fantasias,
discorre sobre aquilo que pode ser compreendido como seu próprio delírio
ecumênico, mas ainda assim introduz no debate uma sobriedade inexistente na
fala do suposto colega:
O universo é infinito apenas fisicamente, não infinito no sentido de escapar às leis
da verdade (...) A razão e a justiça alcançam a a estrela mais remota e solitária.
Olhe para essas estrelas. Elas não parecem ser diamantes e safiras singulares? Bem,
você pode imaginar qualquer botânica ou geologia delirante que quiser. Pense em
florestas de magnetita com folhas de brilhantes. Pense que a lua é uma lua azul,
uma singular e enorme safira. Mas não pensar que toda esta excêntrica
astronomia faria a menor diferença para a razão e a justiça da conduta. Em
planaltos de opalas, e precipícios engastados em pérolas, você ainda encontraria
um cartaz com o dizer: “Não roubarás”.
199
199
“The universe is only infinite Olhe physically, not infinite in the sense of escaping from the
laws of truth (…) Reason and justice grip the remotest and the loneliest star. Look at these stars.
Don´t they look as if they were single diamonds and sapphires? Well, you can imagine any mad
botany or geology you please. Think of forests of adamant with leaves of brilliants. Think the
moon is a blue moon, a single elephantine sapphire. But don’t fancy that all that frantic astronomy
would make the smallest difference to the reason and justice of conduct. On plains of opal, under
cliffs cut out of pearl, you would still find a notice-board, ‘Thou shalt not steal’.”
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Note-se como a imagem do diamante remonta ao rigor formal francês, e a
“botânica” mencionada condiz com uma idéia de natureza presente no
romantismo alemão. Sendo que, a ambos, é contraposto um ideal de equilíbrio e
moderação. De modo que a razão e a justiça são, por um lado, mais misteriosas do
que a lógica analítica, e por outro mais simples do que os excessos místicos. E
estão acessíveis a todos, em uma linguagem direta e pouco sofisticada, para
expressar uma lei moral sica, que não indica o caminho para a santidade, mas
serve para constranger a ação de patifes. No caráter mediano desta lei se assentam
as bases do senso comum, e estas sustentam o equilíbrio da comunidade, que é o
equilíbrio sempre ameaçado, e sempre restituído, nas narrativas de Chesterton.
Por fim, a apreensão destas leis não requer opulência imaginativa, nem os
extremos do escrúpulo técnico. Ela depende, sobretudo, do discernimento, uma
qualidade humana muitas vezes falseada por fantásticas teorias e constructos
estéticos. Ou, como diz o padre Brown para explicar como desmascarou
Flambeau em seu disfarce de clérigo: “Você atacou a razão. Isso é má teologia”.
Desta maneira, o conto policial de Chesterton é inaugurado com a descrição
de um crime que, em sua aparente insensatez, ameaça a crença em uma lei
racional, estabelecendo uma fissura entre o mundo empírico e a verdade. Ao
enigma são propostas soluções geométricas ou sobrenaturais, que enrijecem ou
dispersam a imagem de um universo regulado pela razão; mas o padre Brown
termina por encontrar uma resposta capaz de reagrupar os elementos do texto de
acordo com seu poder de mediação. E, mesmo que ele se sinta em algum
momento desnorteado com as complicações da história, haverá sempre a em
uma súbita e feliz revelação da coincidência entre a ordem das coisas e a
providência: “A coisa mais incrível sobre os milagres é que eles acontecem”, diz o
narrador de “The Blue Cross”, referindo-se a esta espécie de fenômeno, que,
sendo caracterizado como um mistério, nem por isso precisa ter um aspecto
complexo ou sofisticado. Tal como o padre Brown discorre em “The Wrong
Shape”:
A mente moderna sempre mistura duas idéias diferentes: mistério no sentido do
que é maravilhoso, e mistério no sentido do que é complicado. Esta é metade da
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dificuldade que ela tem com os milagres. Um milagre é surpreendente; mas é
simples. É simples porque é um milagre.
200
Daí a estrutura cuja recorrência foi observada por Borges.
201
a
postulação do enigma, com nuances sobrenaturais ou fantásticas, que parecem
tornar obsoletos os procedimentos investigativos usuais de um Auguste Dupin;
estes indícios fantasmagóricos se acumulam, e geralmente estão nos títulos das
histórias, como “The Queer Feet” ou “The Invisible Man”; mas, por todo o tempo,
o padre Brown, por mais distraído ou desastrado que pareça, está no controle da
situação, formulando para ela uma resposta sensata, talvez não tão engenhosa ou
aterradora quanto era de se esperar “temo que vocês vão achar tudo muito
prosaico”, ele inicia um de seus discursos a respeito –, porém verdadeira e justa
segundo uma inteligência providencial, que, afinal, também não é muito
complicada.
O detetive não deixa de demonstrar, em algumas ocasiões, como seria capaz
de construir brilhantes hipóteses com o material de que dispõe. Em “The honour
of Israel Gow”, por exemplo, ele enumera uma série de possíveis soluções para o
enigma da morte de um nobre escocês em seu fantasmagórico castelo, todas elas
igualmente interessantes e enganosas. “Dez falsas filosofias se encaixam ao
universo; dez falsas teorias se encaixarão ao castelo de Glengyle. Mas nós
queremos a verdadeira explicação do castelo e do universo”, afirma ele, para
finalizar a exposição, antes de proceder às considerações finais. Neste mesmo
conto, todavia, acontece algo que merece nossa atenção: por um instante o padre
Brown tem sua abalada, ao constatar que a solução verdadeira do caso parece
dissociada dos critérios da razão e da justiça. E ele então decide dormir,
explicando a atitude em um diálogo com o policial que o acompanha:
“Dormir! Dormir. Chegamos ao fim da linha. Vocês sabem o que é o sono? Vocês
sabem que todo homem que dorme acredita em Deus? O sono é um sacramento;
porque é um ato de e é um alimento. E precisamos de um sacramento, mesmo
que seja um sacramento natural. Aconteceu-nos algo que acontece muito raramente
com os homens; talvez a pior coisa que possa acontecer a eles.
200
“The modern mind always mixes up two different ideas: mystery in the sense of what is
marvellous, and mystery in the sense of what is complicated. That is half its difficulty about
miracles. A miracle is startling; but it is simple. It is simple because it is a miracle”.
CHESTERTON, G. K. “The wrong shape”. In: ____. The Complete Father Brown Stories, p. 102-
116.
201
Ver BORGES, J. L. “Modos de G. K. Chesterton”. [Sur, Buenos Aires, año VI, n. 22, julio de
1936]. In: ____. Borges en Sur, p. 18-23.
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Os lábios de Craven se entreabriram: “O que você quer dizer?”
“Nós encontramos a verdade; e a verdade não faz sentido”.
202
No entanto, presumivelmente, no dia seguinte, após uma boa noite de sono,
Brown tem uma iluminação, originada da prosaica menção a um dentista, que lhe
restitui a tranqüilidade, e encaminha o texto para a zona de conforto em que
costumam terminar suas tarefas:
Amigos, passamos a noite no inferno; mas agora o sol nasceu, os pássaros estão
cantando, e a luminosa imagem do dentista reconforta o mundo (…) Ah, deixem-
me ser bobo por um momento. Vocês não imaginem como estive infeliz. E agora
sei que não havia nenhum grande pecado em toda esta história. Talvez apenas um
pouco de insensatez – e que se importa com isso?
203
De tal maneira que o breve intervalo de dúvida apenas sugere, e logo desfaz,
a perspectiva de uma angústia mais duradoura. E ele não basta para causar a
impressão de que estamos enfim livres da indulgente – e muitas vezes exasperante
confiança do padre Brown. Por causa da escassez de movimentos como este, e
da suspeita de que por sua vez eles denotam uma falsa insegurança, os contos de
Chesterton podem causar no leitor contemporâneo uma sensação de monotonia ou
aborrecimento, com sua credulidade simplória na normalidade das coisas, que eles
reafirmam constantemente. Em comparação com os relatos de Poe, como foi
indicado, eles tiveram uma repercussão muito efêmera e restrita no culo XX,
talvez peço licença para a menção duvidosa reverberando nas tramas infantis
do Scooby-doo, onde a substituição farsesca do mistério sobrenatural por uma
resolução da ordem do humano serve para reiterar, em cada desenho, a segurança
em um final feliz (segundo Virginia Woolf, afinal, quase toda a literatura inglesa
do século XIX era literatura para crianças). Mas é preciso qualificar aquela
“monotonia” como um elemento constitutivo do pensamento de Chesterton, e ver
202
“‘Sleep! Sleep. We have come to the end of the ways. Do you know what sleep is? Do you
know that every man who sleeps believes in God? It is a sacrament; for it is an act of faith and it is
a food. And we need a sacrament, if only a natural one. Something has fallen on us that falls very
seldom on men; perhaps the worst thing that can fall on them’.
Craven’s parted lips came together to say: ‘What do you mean?’
‘We have found the truth; and the truth makes no sense’.” CHESTERTON, G. K. “The honour of
Israel Gow”. In: ____. The Complete Father Brown Stories, p. 90-101.
203
“Friends, we have passed the night in hell; but now the sun is risen, the birds are singing, and
the radiant form of the dentist consoles the world (…) Oh, let me be silly a little. You don´t know
how unhappy I have been. And now I know that there was no deep sin in this business at all. Only
a little lunacy, perhaps – and who minds that?”.
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como ela se destaca contra um pano de fundo que aponta para seu contrário.
Sendo, portanto, uma qualidade a ser entendida no contraponto com a emergência
de outros paradigmas interpretativos, para enigmas criminais e cosmológicos,
decorrentes de crenças profanas mais atraentes e arrebatadoras.
Enfim, se a tragédia antiga remetia à possibilidade de um deus maligno a
comandar os assuntos humanos e à noção de um mal radical, em sua
neutralidade ética –, a comédia inglesa, desde Shakespeare, teria expressado a
idéia de que um certo controle do mundo foi conferido aos homens, aos quais
cabe serem honrados e justos no escopo de suas atribuições, como indica o
discurso final de Próspero em The Tempest. E se, no primeiro caso, o orgulho do
soberano o encaminha à perdição, e à queda na armadilha trágica, no segundo o
desconcerto e a humildade antecedem o advento da graça, quando mesmo a mais
simplória das criaturas assume o domínio da situação dramática. Para tanto, ela
lança mão de sua inocência e sinceridade – a capacidade de acatar verdades
ordinárias e preceitos basilares, atrelada a uma exposição sem floreios dos
mesmos, que requer equilíbrio entre cortesia e autoridade, delicadeza e convicção,
embaraço e competência –, e assim torna-se imune aos encantos das explicações
extravagantes, nas quais o desejo de autenticidade se transforma em produtor de
imposturas.
De tal maneira que, no máximo, os expoentes do autêntico são maníacos e
lunáticos, vendo forças ocultas e gigantes mitológicos onde apenas desvios de
conduta e moinhos de vento. A razão não é um segredo reservado aos iniciados de
uma seita, mas a faculdade do espírito compartilhada por todos os homens sãos.
Para Chesterton, ortodoxia significava lucidez, mas esta correspondência, vale
repetir, é reservada, segundo Borges, para as épocas razonables, em que é
desnecessário provar com lógica rigorosa que os homens não devem roubar e
matar. Épocas em que a noção de sanidade mental é descomplicada, e um escritor
romântico como Thomas de Quincey, em seus estudos sobre mistérios cabalísticos
e sociedades secretas, pode vindicar abertamente a loucura e o delírio, como
desvios da normalidade burguesa e cotidiana, sem difundi-los como meios
legítimos e decisivos de acesso à verdade ou à explicação do universo.
Devo salientar que nenhum destes argumentos será transposto para a
análise da obra de Borges com o peso que o discurso religioso lhes confere. Muito
pelo contrário: no lugar onde em Chesterton havia uma garantia do equilíbrio do
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mundo e da regularidade de seus movimentos, em Borges se instala o vazio sobre
o qual se o distúrbio da antiga ordem. Mas, se vamos falar de um mundo
abandonado por Deus, é bom saber que Deus é este que o abandonou, para assim
compreender de que modo a ausência é sentida; e, se vamos falar de um mundo
assombrado pelos demônios, as observações precedentes servem para indicar
como Borges, leitor de Chesterton, viu tais entes malignos como alucinações e
devaneios de um época tumultuosa. Sem insistir na anacrônica crença em uma
inteligência divina a arranjar os negócios terrenos, ele reteve da inocência e da
parcimônia britânicas a incredulidade nos poderes do diabo, principalmente
depois de passados os anos de maior angústia com a idéia de que o horror podia
estar mesmo tomando conta do planeta. E, assim, pôde recuperar sua bem-
humorada lucidez, para desfazer fantasmagorias e reduzi-las, então
definitivamente, à condição de material para a sátira. Trata-se, enfim, de indicar
como o modelo narrativo de Chesterton lhe serviu para fazer esta operação.
“Abenjacán el Bojarí, muerto em su laberinto”, o último conto policial de
Borges a ser discutido, foi publicado em 1945, e está livre das ambivalências que
faziam “La muerte y la brújula” oscilar entre o ridículo e o trágico – o que
provavelmente se relaciona com um cenário internacional desanuviado das
tensões dos anos anteriores, por mais que na política argentina surgissem outros
pesadelos, de acordo com a visão do autor. Paralelamente, o cenário do relato é o
verão inglês de 1914, isto é, o momento exatamente anterior ao início da longa
crise que marcou o declínio da tradição britânica, e justamente por sua datação e
localização o conto torna nítida a ausência de um detetive como o Padre Brown,
em uma trama que reproduz, em vários aspectos, o enquadramento de suas
intervenções. Isto está relacionado a uma conferência proferida por Borges no
mesmo ano da publicação do relato, onde, em retrospecto, ele descrevia o fastio
de sua geração com a brandura de uma velha moralidade:
vinte anos atrás, meu país pôde suspeitar que as indescifráveis divindades lhe
haviam reservado um mundo benigno, e reversivelmente alheado de todos os
antigos rigores. Então, eu me lembro, Ricardo Güiraldes evocava com nostalgia (e
exagerava, epicamente) as durezas da vida dos tropeiros; a mim e a Francisco Luiz
Bernárdez nos alegrava imaginar tiroteios entre contrabandistas de álcool na alta
cidade de Chicago; eu perseguia com vã tenacidade, com propósito literário, os
últimos rastros dos cuchilleros das margens da cidade. Tão manso, tão incorrigível
pacífico nos parecia o mundo, que brincávamos com anedotas ferozes, e invejámos
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o “tempo de lobos, tempo de espadas” que haviam conseguido outras gerações
mais venturosas.
204
Sabemos também como, neste contexto, a dureza e os rigores do processo
de fundação do Estado argentino haviam ficado para trás, assim como o vigor
ainda presente no pensamento de Chesterton sofria na Inglaterra um processo de
esvaziamento, degenerando em normas e teorias estanques, correspondentes à
calmaria que precede as grandes crises, ou ao otimismo irrealista com uma
racionalidade que vinha perdendo sua substância comunitária. Assim, em
“Abenjacán el Bojarí”, tomam parte dois investigadores, ambos “jovens,
apaixonados e distraídos”, e “fartos de um mundo sem a dignidade do perigo”. O
primeiro, Dunraven, é autor de uma epopéia e cultiva uma barba escura, enquanto
o segundo, Unwin, teria publicado um estudo sobre um teorema imaginário de
Fermat, e apreciava problemas matemáticos. Auguste Dupin e Roderick Usher,
Monk Eastman e Pierre Menard, Red Scharlach e Erick Lönnrot: a dupla
representa o embate e a identidade entre rigor lógico e dissipação mística que
atravessa a obra ficcional e crítica de Borges. Mas ela representa, sobretudo,
Valentin e Flambeau, sem que nenhum clérigo sensato pudesse penetrar na
narrativa, estando vinculado àquele mundo estúpido, obtuso e indigno, que eles
queriam tanto deixar para trás.
No que se refere ao enigma e à trama policial descrita, o tom é abertamente
jocoso, tratando da história de um rei de cabelos vermelhos, assassinado com seu
leão e seu escravo em uma insólita construção que lhes servia de morada: “Espero
que a história seja lida pelo humor”, Borges diria anos depois. “Não posso esperar
que ninguém leve a sério tais caprichos pictóricos”.
205
A solução da charada é o
que menos importa, e toda a atenção se volta para os personagens que tentam
desvendá-la. Estes se definem como tipos muito bem identificáveis, em uma
204
“Hace veinte años, pudo sospechar mi país que las indescifrables divindades le habían deparado
un mundo benigno, y reversiblemente alejado de todos los antiguos rigores. Entonces, lo recuerdo,
Ricardo Guiraldes evocaba con nostalgia (y exageraba, épicamente) las durezas de la vida de los
troperos; a Francisco Luiz Bernárdez y a mí, nos alegraba imaginar que en la alta ciudad de
Chicago se ametrallaban los contrabandistas de alcohol; yo perseguía con vana tenacidad, con
propósito literario, los últimos rastros de los cuchilleros de las orillas. Tan manso, tan
incorrigiblemente pacífico, nos parecía el mundo, que jugábamos con feroces anécdotas y
deplorábamos ‘el tiempo de lobos, tiempo de espadas’ que habían logrado otras generaciones más
venturosas”. BORGES, J. L. “Aspectos de la literatura gauchesca”. [Número, Montevideo, 16 de
enero de 1950. Conferencia leída en el Paraninfo de la Universidad de Montevideo, 29 de octubre
de 1945]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 221-3.
205
BORGES, J. L. “Commentaries”. In: ____. The Aleph and Other Stories 1933-1969. Edited and
Translated by N. T. di Giovanni. New York: Dulton, 1970, p. 273-4.
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239
passagem introdutória, na qual Unwin pergunta por que as circunstâncias do
crime, ocorrido vinte e cinco anos antes, em uma casa na localidade que
visitavam, seguiam sendo obscuras, ao que se segue a resposta de Unraven, e um
diálogo:
- Por diversas razões – foi a resposta. – Em primeiro lugar, esta casa é um labirinto.
Em segundo lugar, vigiavam-na um escravo e um leão. Em terceiro lugar,
desvaneceu-se um tesouro secreto. Em quarto lugar, o assassino estava morto
quando o assassinato ocorreu. Em quinto lugar...
Unwin, cansado, o deteve.
- Não multipliques os mistérios. – disse. – Estes devem ser simples. Lembra a carta
roubada de Poe, lembra o quarto fechado de Zangwill.
- Ou complexos – replicou Dunraven. – Lembra o universo.
206
Tampouco devemos multiplicar as digressões interpretativas. A esta altura,
deve estar claro que “Abenjacán el bojarí” se insere na linhagem da prosa de
Chesterton, retirando-lhe o ponto de equilíbrio, e que isto, contudo, não torna
menos excêntricas as resoluções do problema favorecidas por seus dois detetives.
É um debate sobre as convenções do gênero destituído do que havia de
“convencional” no pensamento do Padre Brown, e construído sobre a falta de um
senso comum capaz de fornecer respostas às questões do texto, que estimula a
imaginação a buscar desenlaces sensacionais, ou de “simplicidade” estritamente
lógica e geométrica. Dez falsas teorias se aplicam ao caso de Abenjacán; dez
falsas filosofias, a partir de 1914, se aplicariam ao universo. No entanto, não
razão ou justiça alguma a que se possa recorrer para elucidar a verdade, e a
explicação encontrada no final é apenas um frustrante jogo de disfarces, em que o
criado do rei teria construído o labirinto para atraí-lo a uma armadilha. Como
sempre, a solução do mistério é prosaica e inferior ao próprio mistério, mas o pior
é que, do ponto de vista da inteligência, ela não faz nenhum sentido.
206
BORGES, J. L. “Abenjacan, o Bokari, morto em seu labirinto” [1945]. In: ____. O Aleph. Trad.
Flávio José Cardozo. OC [edição brasileira], vol. 1, p. 668.
“Por diversas razones. Em primer lugar, esa casa es um laberinto. Em segundo lugar, la vigilaban
um esclavo y um león. Em tercer lugar, se desvaneció um tesoro secreto. Em cuarto lugar, el
asesino estaba muerto cuando el asesinato ocurrió. En quinto lugar…
Unwin, cansado, lo detuvo.
- No multipliques los mistérios le dijo. Éstos deben ser simples. Recuerda la carta robada de
Poe, recuerda el cuarto cerrado de Zangwill.
- O complejos – replicó Dunraven. – Recuerda el universo”. BORGES, J. L. “Abenjacán El Bojarí,
muerto en su laberinto”. In: ____. El Aleph. OC, vol. 1, p. 641-46.
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240
Ou seja: convertida em um assunto estritamente factual, empírico e
científico, a verdade se degrada em uma concatenação linear de causalidades, que
nada tem a ver com a razão, no sentido mais amplo do termo. Por outro lado, a
percepção desta insuficiência motiva o nonsense de ficções metódicas ou
apaixonadas, criadas com pretensões filosóficas, mas que se destacam por seu
fascínio estético, não por sua efetividade prática. Diante disso, o raciocínio
desenvolvido nesta etapa pode ser recuperado, de modo a preparar sua reinserção
no plano mais geral do trabalho.
Os símbolos, as metáforas, as alusões e os vertiginosos exageros
cabalísticos dos contos policiais de Borges seriam tumultos sobrepostos ao
esfacelamento de uma concepção moral da ordem do mundo, associada ao século
XIX inglês, que serviu ao estabelecimento de um império, e cuja explanação se
encontra, entre outros lugares, na obra de Chesterton. Esta ordem implicava falhas
e distensões, na medida em que possuía certa maleabilidade, dada pelo caráter
mediano de seus fundamentos, negociáveis dentre de certos limites; ela se baseia
em um acordo apropriado à índole falível dos homens, e tem sua pertinência
confirmada exatamente quando está prestes a desfazer-se, criando o ambiente de
confiança que Borges atribuía às épocas clássicas. E a confiança é um elemento
constitutivo da comédia, de acordo com a estrutura convencional da forma, em
que tudo parece ir mal para depois terminar bem. Quando esta estrutura se
enrijece em um convencionalismo automático e inócuo, porém, ela perde seu
alcance consensual, fica esvaziada de sentido, torna-se mais impositiva que
persuasiva, e suas composições demandam a interferência de um deus ex
machina, a caminho de tornar-se mais máquina do que deus. Os contos de
Chesterton se situariam no limiar deste processo.
Paralelamente à decadência britânica, o século XX assistiu à mobilização de
configurações trágicas, que, do campo da estética, passaram ao campo da política,
convertendo-se em uma indicação do curso da história. Contra o plebeísmo inglês,
insurgiram-se as noções da perfectibilidade humana e da nobreza da raça,
atreladas ao caráter heróico do personagem trágico, e, como ele, confinadas à
pureza do sangue e à circularidade do mito. Todavia, tanto o mal radical, de raiz
racial e ontológica, como o bem absoluto, de projeção cosmopolita e metafísica,
aos quais determinados agentes estavam dispostos a entregar sua individualidade e
sua liberdade, em troca de uma existência plena de sentido, assumiram formas
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241
artificiais que apenas simulavam um segredo inexistente. O cosmos misterioso das
sagas épicas era uma confusão, e a clareza analítica do pensamento ordenador
era pura matemática. Segundo Borges, não salvação na confusão ou na
matemática.
Mas Borges, além de diagnosticar esta impossibilidade, e ver com
repugnância os movimentos coletivos que insistiam em ignorá-la, registrou
também em seus textos o que existia de preciosamente patético nas expressões
individuais do fenômeno. E, com isso, recuperou uma capacidade de
enternecimento com os devaneios e aspirações do personagem cômico, que
desloca o estilo satírico, ou mesmo paranóico, de seus contos, para um diálogo
com Chesterton. Este movimento é essencial para a continuidade do estudo que
proponho, mas, como em toda perspectiva comparatista, ele deve ser feito não
apenas em função da semelhança, mas também da diferença. Pelo mesmo motivo
que o padre Brown se tornaria uma figura anacrônica no século de Borges, a
produção literária do autor argentino não podia simplesmente reproduzir o tipo de
solução que ele encontrava para seus enigmas; não podia, de fato, reproduzir
solução alguma. Com isso, aos poucos, vamos nos aproximando do delineamento
de outro contexto para a leitura de seus contos, mas quero apenas mencionar este
ponto para voltar a discuti-lo logo adiante. Antes, considero justificável oferecer
ao menos mais um exemplo de como este argumento pode ser elaborado por outro
caminho, aumentando um pouco o espectro dos relatos a serem trabalhados.
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242
4.2.3
Os deuses bárbaros
um anexo a “Abenjacán el Bojarí”, na forma de uma parábola à qual o
texto faz alusão, intitulada ‘Los dos reyes y los dos laberintos’.
207
Conta como o
rei da Babilônia certa vez teria reunido seus magos e arquitetos para construir a
mais sutil das edificações, no propósito de atordoar aqueles que a adentrassem:
“Esta obra era um escândalo, porque a confusão e a maravilha são operações
próprias de Deus e não dos homens”, comenta o narrador. E, ao receber uma visita
do rei dos árabes, o rei da Babilônia o faz penetrar no labirinto, para jactar-se de
sua obra diante do espírito grosseiro e rústico do hóspede. Este, por sua vez, após
perder-se nela durante todo um dia, não profere nenhuma queixa, dizendo apenas
que existia também em seu país um magnífico labirinto, o qual mostraria ao
colega para retribuir-lhe a acolhida, quando houvesse oportunidade. Retornando à
Arábia, ele reúne seus exércitos, para promover a impiedosa devastação dos reinos
babilônicos, e captura seu soberano. Que é amarrado na corcova de um camelo, e
levado ao deserto, onde o rei dos árabes declara ser aquele o seu labirinto, e que
nele não havia galerias a percorrer, muros que vedassem o passo, portas para
forçar, mas apenas a imensidão em estado bruto, na qual seu prisioneiro seria
abandonado para morrer de fome e de sede. Aqui termina a história.
A parábola consagra, em duas imagens definitivas, as teorias e condutas
sobrepostas à falência da prática do equilíbrio de antagonismos
208
: esteticismo e
207
O autor já havia incluído esta lenda em seus artigos pelo menos em duas oportunidades,
atribuindo-a a diferentes fontes. Ver BORGES, J. L. “Labirintos”. [Obra, Revista Mensual
Ilustrada, Buenos Aires, año I, n. 3, febrero de 1936]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p.
156-158, e BORGES, J. L. Uma leyenda arábica”. [El Hogar, 16 de junio de 1939]. In: ____.
Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 465.
208
Utilizo a expressão de acordo com a análise de Ricardo Benzaquen de Araújo sobre a influência
do pensamento inglês na obra de Gilberto Freyre, presente na conclusão de seu estudo sobre o
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243
vitalismo, abstração geométrica e potência ontológica, refinamento intelectual e
violência primitiva, a utopia da paz e a utopia da guerra, o bem universal e o mal
radical. No mesmo sentido, a atitude do rei babilônico tem algo do orgulho
francês com as maravilhas urbanísticas de sua capital, enquanto na rusticidade do
rei dos árabes residem traços do arquétipo germânico, gerando uma relação de
ostentação e ressentimento, que culmina na destruição da Babilônia. Na trama,
repercute também o contraste entre a cidade e a natureza, entre civilização e
barbárie, que se destacava no pensamento argentino.
Terminado o ciclo dos relatos policiais, portanto, note-se que o mesmo
percurso poderia ter sido em um sentido inverso e idêntico, a partir dos contos que
Borges situa no deserto, no pampa, e outras paisagens primitivas. Se aqueles
transitavam de charadas criminais para a perplexidade metafísica, estes
apresentam vagas profusões de símbolos que podem reduzir-se a meras charadas.
Em “Las ruinas circulares’, de 1940, o esquema é cumprido com exatidão. O texto
utiliza os recursos estilísticos da fine writing para criar uma atmosfera onírica, de
matizes orientalistas, onde se desdobra a história de um homem dedicado à tarefa
de gerar outro, com o material de seus sonhos. Mas detalhes humorísticos se
inserem na descrição de um trabalho tão árduo, e de antemão fútil, como o de
Pierre Menard: a necessidade de sonhar cada fio de cabelo da criatura, o conserto
de uma deficiência em seu ombro direito, a impostação verbal de algumas
passagens. E, ao final, tudo não passa de uma trick story, com a revelação de que
aquele que sonhava também era sonhado, e assim por diante.
Mas, por um breve instante, o relato consegue causar uma vertiginosa
sensação de irrealidade e encarceramento na eterna recorrência. Borges trabalharia
este tema mais extensamente em “El Inmortal” (1947), protagonizado por um
soldado romano, da época do declínio do império, o qual faz uma viagem em
busca da lendária cidade dos homens imperecíveis. Esta viagem o leva a uma
espécie de coração das trevas The Adventures of Arthur Gordom Pym, de Poe,
The Purple Land, de W. H. Hudson, e Heart of Darkness, de Joseph Conrad, são
algumas das referências do relato –, mas os comentários do narrador a este
autor. Cf. “Conclusão: Dr. Jekyll and Mr. Hyde”. In: BENZAQUEN, R. B. Guerra e Paz: Casa-
Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Ed. 34, 2005 [1994], p.
183-207.
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244
respeito são característicos da prosa de Borges.
209
Recordando sua descoberta de
uma obra abandonada, retratada com palavras semelhantes às usadas na descrição
da quinta de Triste-le-Roy, e que ele depois revela ser a famosa cidade, o soldado
afirma:
“Este palácio é obra dos deuses”, pensei primeiramente. Explorei os inabitados
recintos e corrigi: “Os deuses que o edificaram morreram”. Notei suas
peculiaridades e disse: “Os deuses que o edificaram estavam loucos”. Disse isso,
bem sei, com incompreensível reprovação que era quase remorso, com mais horror
intelectual que medo sensível (...) “Esta cidade”, pensei, “é tão horrível que sua
mera existência e perduração, embora no centro de um deserto secreto, contamina o
passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros. Enquanto perdurar,
ninguém no mundo poderá ser valoroso ou feliz”.
210
E, depois deste trecho, ele constata que os imortais” eram na verdade os
inativos trogloditas de uma tribo que vivia além da cidade, embora ele houvesse
esperado encontrar um povo industrioso e sábio. Após erguerem a complexa e
insensata construção, eles teriam se entregado a uma existência puramente
espiritual e contemplativa, esquecendo-se do mundo físico, e indiferentes a
sucessos e infortúnios pessoais, na medida em que um sistema de precisas
compensações tomava conta de sua psicologia. Cada um deles era apenas um
exemplar da espécie e, neste aspecto, o conto ilustra a filosofia de
Schopenhauer, com sua imersão em uma abstrata esfera mítica, onde primitivismo
e quietude se confundem, e a música é a arte que prescinde do mundo ao
conformar a sofisticada geometria do cosmos. Assim como a violência seria um
duplo da lógica nos relatos policiais, aqui a abstração implica uma relação estreita
com a barbárie. Mas tudo isto interessa também pelas destituições que acarreta.
Tal como se lê:
209
Este tipo de narrativa constitui toda uma tradição literária, abordada por Luiz Costa Lima em O
Redemunho do Horror: as margens do ocidente. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003.
210
BORGES, J. L. “O immortal”. In: ____. O Aleph. Trad. Flávio José Cardozo. OC [edição
brasileira], vol. 1, p. 598. Este palacio es fábrica de los dioses, pensé primeramente. Explolos
inhabitados recintos y corregí: Los dioses que lo edificaron han muerto. Noté sus peculiaridades y
dije: Los dioses que lo edificaron estaban locos. Lo dije, bien lo sé, con una incomprensible
reprobación que era casi un remordimiento, con más horror intelectual que miedo sensible (…)
Esta Ciudad (pensé) es tan horrible que su mera existencia y perduración, aunque en el centro de
un desierto secreto, contamina el pasado y el porvenir y de algún modo compromete a los astros.
Mientras perdure, nadie en el mundo podrá ser valeroso o feliz. BORGES, J. L. “El Inmortal”
[1947]. In: ____. El Aleph. OC, vol. 1, p. 571-583.
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245
A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens (...) Tudo, entre os
mortais, tem o valor do irrrecuperável e do inditoso. Entre os Imortais, ao
contrario, cada ato (e cada pensamento) é eco de outros que no pasado o
antecedram, sem princípio visível, ou fiel presságio de outros que no futuro o
repetirão até a vertigem. Não coisa que não esteja como que perdida entre
infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma vez, nada é preciosamente
precário.
211
E o precioso, o precário, está naquilo que os sistemas totalitários eliminam
de sua esfera de atuação: a singularidade do indivíduo, sua liberdade e a rareza de
cada percurso biográfico. Pode não haver nada de heróico nestes atributos; do
ponto de vista dos ideais de pureza e perfectibilidade, o principium individuationis
é, de fato, um signo do desprezível. Eles não poderiam encontrar dignidade onde
vêem somente o degradante exílio de um universo mítico primevo, ou a
incapacidade de desenvolver as qualidades humanas universais. Todavia, na
perspectiva do que de incompleto, de falível na condição humana, as
existências individuais são tocantes em suas carências. E são, pelo mesmo motivo,
cômicas, não em uma perspectiva que no personagem da comédia baixeza e
indignidade, mas naquela que o transforma em um herói precioso e patético,
atrapalhado com o nonsense do mundo.
Por último, vale lembrar “El Sur”, de 1953, o último conto publicado pelo
escritor argentino no período de que tratamos. E aqui, mais uma vez, estamos no
terreno das referências auto-biográficas de Borges. A narrativa descreve a
preciosa e precária morte do secretário de uma biblioteca municipal de Buenos
Aires, em 1939, causada por um acidente que o teria deixado febril e delirante em
uma cama de hospital, o que lhe permite sonhar o próprio fim, de acordo com sua
índole romântica (e reproduz, portanto, um episódio ocorrido no final de 1937,
que quase tirou a vida do autor, quando ele teve uma septicemia decorrente de um
corte na cabeça).
Decerto, também esta é uma trick story o truque está em relatar fatos
imaginários como reais, e assinalar a inversão no final. Porém ela é mais do que
isso, e viria a ser considerada pelo autor uma de suas melhores. Para tanto
211
“La muerte (o su alusión) hace preciosos y patéticos a los hombres (…) Todo, entre los
mortales, tiene el valor de lo irrecuperable y de lo azaroso. Entre los Inmortales, en cambio, cada
acto (y cada pensamiento) es el eco de otros que en el pasado lo antecedieron, sin principio visible,
o el fiel presagio de otros que en el futuro lo repetirán hasta el vértigo. No hay cosa que no esté
como perdida entre infatigables espejos. Nada puede ocurrir una sola vez, nada es preciosamente
precario”.
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246
contribuíram sua retomada de um estilo marcado pela nostalgia, e por um singular
sentimentalismo, presentes no percurso do protagonista em direção ao subúrbio da
capital, no retrato da pobreza multicor do armazém onde ele “escolhe” morrer, e
em alguns outros comoventes detalhes circunstanciais. Nem o deserto, nem a
cidade: “El sur” termina naquela zona intermediária, que na década de 20 havia se
proclamado a síntese das duas coisas, mas onde Borges identificou pela primeira
vez a miséria que estava por trás desta aspiração. De modo que, em seu amor
àquela vida tacanha e àquele cenário modesto, ele teria feito ressurgir, nesta
história, a Palermo de Evaristo Carriego, onde a inépcia preservava algo da
inocência de épocas passadas, por mais que nenhuma competência ou autoridade
efetiva pudesse reverter este atributo em seu contrário. A luz crepuscular com que
se encerra o conto seria apenas um tímido reflexo de um período de glória, e
também o anúncio de tempos mais sombrios.
Em que pesem as diferenças entre os escritos de Jorge Luis Borges e
Thomas Mann, afinal, “El sur” traz notáveis semelhanças com Morte em Veneza,
do autor alemão e até por isso a distinção fica mais acentuada. Juan Dahlmann,
o herói do relato, tem como antepassado um pastor luterano germânico, o que se
relaciona com o temperamento místico do jovem Borges, sua afeição à terra
pátria, e a apropriação de mitologias do solo e do sangue. Como Gustav von
Aschenbach, ele se encaminha ao “sul” como que guiado por uma força maligna,
para lá encontrar sua morte anunciada; e o sul, nos dois casos, é um lugar pintado
em cores vivas, que ocultam sua palidez funérea. Uma espessa camada de
maquiagem se sobrepõe aos rostos dos personagens e às paredes dos armazéns,
denotando os estertores de uma paixão esgotada em gestos superficiais.
No entanto, comparada à ironia de Mann, com que o vejo manejar um estilo
épico para tratar de um fim irrisório, a de Borges oscila entre extremidades mais
próximas, nos tênues movimentos de aproximação e afastamento, de intimidade e
consternação. Comparada à morte de Aschenbach, a de Juan Dahlmann é
confortável e ele apenas aceita seu destino como se lhe tivesse sido concedido
por uma divindade simpática aos seus sentimentos. Ao contrário do burguês
alemão, taciturno e obstinado em sua fidelidade ao volk, ele pratica um
criollismo algo voluntario”, e possui um temperamento mais ingenuamente
provinciano. Não deixa de ser o funcionário de biblioteca, que todos os natais
recebe uma porção de mate, e vai para casa chorando de humilhação. No desfecho
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de sua vida há certa justiça e alguma benevolência, sacramentada por uma simples
agulha, tendo em vista que uma injeção aplicada no hospital lhe oferece a
oportunidade de sonhar um duelo, com que terminarão os seus dias em um
armazém suburbano.
Neste ponto, ele é um personagem de Chesterton. Inclusive porque os traços
sobrenaturais da narrativa são eliminados em favor de uma explicação humana.
Todavia, a triste comédia que terá sido sua existência terrena é redimida em um
epifania tão fugaz, tão crepuscular, que a luz incidindo sobre seu derradeiro ato é
antes o signo de uma ausência do que de uma presença. Além disso, em sua
vinculação à biografia de Borges, o conto trata de um não-acontecimento. Após o
acidente que ele próprio sofreu em 1937, e que o deixou delirando entre a vida e a
morte por vários dias, o autor voltou a ser o pequeno funcionário público que
cumpria deveres absurdos, a serviço de um estado desfeito, e sem um Deus que
lhe oferecesse qualquer conforto. “Minha vida é uma interminável série de
mesquinharias”, ele afirmou em 1945. Neste ponto, era um personagem de Kafka.
Com isto nos aproximamos do próximo tema do trabalho. Mas, para
preparar sua inserção, quero ainda tratar de uma narrativa em que a antinomia
entre civilização e barbárie, entre a cidade e o deserto, entre abstração e violência,
surge na obra de Borges sem nenhuma intenção paródica. Pois se, no plano das
coletividades, estes elementos representavam modelos de organização social
indesejáveis, no que concerne aos indivíduos eles podiam ser signos de um
destino imune a questionamentos de ordem moral isto é, eles podiam ser
autênticos. No âmbito da política, a relação entre sigilo e autenticidade era
produtora de imposturas e monstruosidades; no território das existências
particulares, o segredo é um tesouro não partilhável, mas fundador da
singularidade do sujeito. E, neste sentido, ele deveria ser respeitado.
A “Historia del guerrero y de la cautiva” (1949) se inicia com uma menção
à lenda de um guerreiro lombardo que, durante o assédio a Ravena, quando caiu o
Império Romano, teria mudado de lado e morrido defendendo a civilização que
atacava. Borges imagina-o um símbolo do fascínio que a cidade podia exercer
sobre um espírito brutal; mas não o imagina um traidor, e sim um iluminado, um
converso. A força que o leva a trocar uma vida selvagem pela “complexa
maquinária” de Roma é, por definição, insondável. E o mesmo vale para a história
narrada a seguir, supostamente recebida da tradição oral da família de Borges,
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sobre a também lendária mulher, de origem inglesa, que vivia entre os gauchos e
índios do pampa, onde, segundo uma suposição corrente, era mantida prisioneira.
O desfecho do relato revela que esta teria sido, na verdade, uma opção da mulher,
para a lástima, escândalo e exasperação da avó britânica de Borges, que não podia
considerar digna a vida no deserto. “A esta barbárie se havia rebaixado uma
inglesa”, comenta o narrrador, do ponto de vista da velha senhora. Mas, logo em
seguida, ele retifica:
A figura do bárbaro que abraça a causa de Ravena, a figura da mulher européia que
opta pelo deserto podem parecer antagônicas. No entanto, um ímpeto secreto
arrebatou os dois, um ímpeto mais fundo que a razão, e os dois acataram esse
ímpeto que não souberam justificar. Talvez as histórias que contei sejam uma única
história. Para Deus, o anverso e o reverso desta moeda são iguais.
212
De maneira que, no contraste com a moralidade vitoriana, esteticismo e
barbarismo surgem aqui como modelos de conduta que o pensamento inglês não
consegue compreender, mas que têm justificação própria e autônoma. E um traço
distintivo do conto, neste aspecto, é que o guerreiro e a cativa correspondem aos
seus destinos com absoluta indiferença por tais padrões morais, o que nos impede
de caracterizar a conduta de ambos como decorrentes do ressentimento francês ou
alemão contra a Grã-Bretanha. O narrador parece instalar-se na posição de um
sujeito que não entende este tipo de vocação, mas o reconhece a autenticidade do
“ímpeto mais profundo do que a razão”, algo que estaria além dos hábitos de sua
mentalidade e da de sua família, sem que, por isso, fosse motivo de sátira ou
horror. Este reconhecimento da alteridade denota alguma flexibilização na postura
do autor, no que se refere a paradigmas herdados, com os quais, neste caso, podia
estabelecer uma relação seletiva, inclusive por deles se apropriar através de uma
estratégia de self-fashioning. Enfim, Borges não era tão obtuso quanto algumas
vezes queria parecer.
Resta saber o que ele fez com o “ímpeto secreto” que ele mesmo teria
sentido ao entrar em contato com os elementos da cultura anglo-saxônica, o que
212
BORGES, J. L. “História do guerreiro e da cativa”. In: ____. O Aleph. Trad. Flávio José
Cardozo. OC [edição brasileira], vol.1, p. 623. La figura del rbaro que abraza la causa de
Ravena, la figura de la mujer europea que opta pelo desierto, pueden parecer antagónicas. Sin
embargo, a los dos arrebató un ímpetu secreto, un ímpetu más hondo que la razón, y los dos
acataron ese ímpetu que no hubieran sabido justificar. Acaso las historias que he referido son una
sola historia. El anverso y el reverso de esta moneda son, para Dios, iguales”. BORGES, J. L.
“Historia del guerrero y de la cautiva” [1949]. In: ____. El Aleph. OC, vol. 1, p. 596-599.
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nada tem a ver com o confronto com outras formas de vida, mas diz respeito a
uma questão totalmente pessoal. Presumivelmente, a partir do final da Segunda
Guerra este problema se tornaria mais claro para ele, cujo temperamento
conservador se viu em definitivo diante de um mundo no qual não havia muito
a se conservar. Sem dúvida, a exatidão da data é antes um instrumento de
organização deste estudo do que um limite a ser aplicado à realidade sem
ressalvas. Mas ela possui certa pertinência, que nos permitirá recuperar os passos
da trajetória percorrida até aqui, para então concluir o capítulo.
Em Evaristo Carriego, o escritor se apropriou pela primeira vez do legado
inglês, na chave de uma piedosa atenção aos infortúnios de criaturas
desamparadas; em “Tareas e destino de Buenos Aires”, teria recorrido à herança
oitocentista como uma orientação propositiva, para proclamar sua confiança e
no futuro do país. O avanço do nazismo, diante da inércia francesa, viria a
confirmar sua fidelidade ao exemplo britânico; por este motivo, ele podia
representar aquelas dualidades em uma perspectiva irônica e paródica, apontando
o que existia de cumplicidade e semelhança em sua mútua exclusão, e o que havia
de grotesco em suas ambições épicas e descomedimentos oratórios. Por volta de
1940, ele chegou a crer que o grotesco podia ser a nova forma do real; mas, nos
anos seguintes, esta impressão foi se desfazendo, ao menos em seu alcance
planetário. De modo que, em “Abenjacán el bojarí”, ele voltaria a tratar das
matrizes comportamentais do fenômeno com um olhar afetuoso e compadecido.
certo carinho, certa gentileza na descrição que ele nos oferece de Unwill e
Dunraven, assim como havia em várias passagens de Evaristo Carriego. Ambos
são jovens tímidos que buscam escamotear com idéias mirabolantes uma íntima
pobreza.
Esta foi uma postura que o autor teve que abandonar, e depois recuperou,
nos quinze anos que separam os dois textos. Na Historia Universal de la Infamia,
que se segue à biografia de Carriego, a estilização formal mais rígida equivale a
uma miséria mais cruel, que favorecia a disseminação do fanatismo ideológico,
diante do qual o instinto de compaixão viria a ser substituído pela necessidade de
enfrentamento. Em 1945, Borges podia transformar novamente seus protagonistas
em figuras de uma inocente comédia, ao situá-los no ambiente ameno que fora o
de sua juventude, retomando a dinâmica com que havia descrito o pobrerío
conversador de Palermo. Por outro lado, se o movimento feito durante a década
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de 30 anunciava a incorporação de um conjunto de valores mais sólido à sua obra,
associados à conservação e reforma de instituições existentes, à negociação e ao
conflito, à vacilação e decisão, agora, no lugar onde deviam estar estes valores,
instala-se um vazio. Seus contos policiais carregam o reconhecimento de uma
nova imagem do mundo. Por isso sua comédia não encontraria uma resolução
justa e simples aos olhos de Deus, da inteligência ou do bom senso. O século XX
estava apenas começando.
Em determinado momento de sua jornada, Juan Dahlmann, de “El sur”,
passa a suspeitar que está viajando para o passado, não apenas para o sul (a
própria casa em que teria morado Hipólito Yrigoyen surge na paisagem do conto).
Esta é a solução oferecida a um personagem cuja existência se situa no limiar
entre duas épocas. Se permanecesse vivo, estavam-lhe reservados dias de uma
interminável e absurda função em uma repartição pública, e não uma contribuição
efetiva para o esforço de construção do estado nacional argentino, ao qual ele
pudesse sentir-se integrado, com humildade e perseverança patriótica. Ficaria
assim explícita a derrocada das esperanças registradas por Borges no discurso de
1936. Para poupar sua criação deste desgosto, o autor lhe concede uma morte
romântica, cujos traços fabulosos são de uma puerilidade enternecedora. No
entanto, ele próprio o autor teve que seguir existindo em uma sociedade na
qual nenhuma tarefa parecia ter-lhe sido reservada, e novos paradigmas culturais
suplantavam a antiga inocência do estilo de vida dos subúrbios.
Será discutido mais adiante em que medida estes paradigmas tinham
também seus aspectos cômicos. Mas a dimensão trágica do século XX, no sentido
grego do termo, ter-se-ia exposto em uma degradada variante: a da engenharia de
meticulosas máquinas com que os homens assumiam a tarefa reservada aos
deuses, ou sua entrega a mistérios cósmicos transfigurados em sistemas
ideológicos. A restituição de uma classe de pretensos nobres, guerreiros e
geômetras à esfera do mito revelou-se um enredo assombroso apenas em sua
banalidade, inserindo um elemento de repulsa na piedade que ele poderia
despertar. Ainda assim, antecipando brevemente a continuidade do trabalho, cabe
compreender este processo como um resultado de forças históricas até certo ponto
determináveis.
Pois, se o totalitarismo foi a expressão extrema de um impulso anti-
democrático, anti-burguês e anti-cristão, ele encontraria seu principal adversário
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em uma democracia burguesa e cristã muito distinta da que predominou durante o
auge do Império Britânico. A propósito, o liberalismo inglês teve suas origens no
século XVIII articulado a ideais de harmonia e ordem presentes, por exemplo, no
pensamento de Adam Smith; a uma poética da simpatia e da compaixão,
amplamente disseminada nos romances de Dickens; e a certa confiança na justiça
e na racionalidade do mundo, cujo epílogo seria a obra de Chesterton. Entre o
indivíduo lançado no mundo através da experiência libertadora da orfandade, e o
todo pensável de uma teologia racional, há instâncias mediadoras que atenuam sua
desproteção: para a Humanidade, a nação, para o Dever, o trabalho, para Deus, o
sacramento. Seguramente, sobrevalorizar a efetiva capacidade de anteparo destas
instituições, em relação à pobreza material e espiritual dos homens, é somente
falsificar carinhosamente tempos difíceis, os Hard Times do título do romance de
Dickens. Mas, para fins comparativos, elas devem ser levadas em consideração,
principalmente no contraste com práticas constitutivas da sociedade norte-
americana.
A crise do modelo inglês está associada ao esfacelamento destes pontos de
mediação ou sua reprodução mecânica, despojada do espírito existente em suas
fundações. Isto acontece quando o critério da autoridade, no qual eles não
deixavam de sustentar-se, perde a legitimidade dada por ações competentes e por
uma mediação eficaz; quando a razão elementar degenera em um racionalismo
restritivamente empirista; quando o patriotismo se converte em pretexto de uma
exploração colonial ilimitada; e quando o trabalho torna-se apenas um meio de
obtenção de dinheiro, à medida que o sistema capitalista se desfaz de
constrangimentos morais e sistêmicos. Ao mesmo tempo, os sacramentos perdem
o efeito alentador da graça e do perdão, em um mundo do qual Deus parece estar
cada vez mais afastado. O crescimento das massas urbanas, ao acelerar este
processo, por meio de sua força desagregadora, deixa-lhe como subproduto a
multidão de seres atomizados da metrópole contemporânea. Daí a tentativa de
revertê-lo com uma proposta de organização social com um sentido oposto: o da
aglutinação e coesão dos indivíduos em uma totalidade orgânica absoluta,
configurada segundo o princípio estético da despersonalização, isto é, a integração
sem intermediários de cada sujeito na forma acabada do Ser. Seja ela alcançada
através de um critério racial eticamente neutro, ou de uma imagem visionária da
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humanidade pacificada, em última análise também neutralizante de todos os
dilemas éticos.
Por outro lado, as reações francesa e alemã contra o processo de dissolução
da sociedade burguesa oitocentista se chocariam com um novo conjunto de
valores, fundado em uma radical vigência da ética, e convertido no próprio motor
de desagregação da velha ordem moral. Este é o enquadramento em que pretendo
situar a discussão da obra de Borges a partir deste ponto. Creio que ele é adequado
à análise de narrativas muito distintas das estudadas até aqui, seja quando estas
oferecem uma imagem do mundo consonante com seus pressupostos, seja quando
se relacionem à possibilidade de uma poética neste contexto.
Para tanto, serão mobilizadas referências freqüentes nos artigos, resenhas,
ensaios e contos de Borges, mas que ainda não receberam aqui um tratamento de
acordo com sua relevância em sua formação intelectual e literária, por estarem
mais diretamente associadas ao assunto que agora antecipo. Refiro-me,
naturalmente, sobretudo a literatos responsáveis pelo registro de hábitos, costumes
e preconceitos vinculados à idéia de “Estados Unidos”, que então se tornava
fundamental para a idéia de civilização, constituindo a mais importante novidade
em uma época de grandes transformações. Mas refiro-me, em especial, àquele
escritor cuja obra, no entendimento de Borges, representaria com maior êxito
inclusive em seus fracassos os dilemas do homem contemporâneo em um
universo em expansão. Isto é, Kafka. Enfim, de acordo com a divisão interna da
tese, pode-se dizer que o ano de 1945 consolidou uma mudança no cenário
econômico, político e social internacional que, se não é discutida nos textos de
Borges com a mesma atenção até agora verificada nos temas trabalhados, surge
em suas alusões, citações e comentários sobre autores capazes de auxiliar a
compreensão deste processo, e que, portanto, merecem ser aproveitados.
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253
5
O Mundo de Kafka (1945-1955)
Inicio agora um desfecho que ao menos assim espero possa vir a ser
também um momento de abertura, cujos raciocínios por um lado demandem maior
embasamento, além de correções e ajustes, e por outro indiquem caminhos para
futuras investigações. Pretendo também, com isso, estabelecer um diálogo com
tendências recentes no âmbito dos estudos literários, voltadas para uma
compreensão da natureza da experiência estética no mundo contemporâneo. Devo
partir, portanto, da identificação de determinadas relações no plano da história da
literatura, de onde talvez possam surgir observações de caráter mais geral.
Em um espectro ampliado, o capítulo contém apontamentos para uma
tentativa de compreensão dos fundamentos e impasses da cultura norte-americana,
tal como observada por Borges, através do recurso a determinadas fontes
literárias, para as quais a obra de Franz Kafka é usada como termo de comparação
(um método a ser justificado nesta nota introdutória). De modo mais pontual, o
argumento é voltado para possíveis impactos do pós-guerra no ambiente literário e
intelectual da América Latina. Pois, apesar do curso político singular, mesmo
dentre os países vizinhos, que seguiu a Argentina na década de 1940, com o
surgimento do peronismo, entendo que a primeira reação de Borges diante da
vitória dos Aliados teve mais a ver como os horizontes do panorama global,
marcado pela crescente influência dos Estados Unidos, do que com questões de
âmbito mais restrito. Apenas em um instante posterior, e por motivos que tentarei
delimitar no final deste capítulo, a figura de Juan Domingo Perón assumiria maior
relevância na trajetória do autor.
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254
Feita esta observação, note-se que, nos dois capítulos anteriores, estive
trabalhando com o recorte cronológico que vai de 1930 a 1945, no propósito de
estabelecer alguns parâmetros gerais para uma possível compreensão do período,
a partir da análise textos de Borges. Neste percurso, o intervalo entre o início da
primeira grande guerra e o final da segunda pôde ser caracterizado como uma
longa crise, marcada pela decadência do império britânico, e pela emergência, em
território europeu, de doutrinas filosóficas, científicas e esteticistas, que tentaram
oferecer, a problemas políticos, respostas de um radicalismo equivalente à
angústia de uma época de transição, agravada pela crise econômica. A discussão
do fenômeno terá favorecido uma espécie de enredamento crítico em suas
circunstâncias, nuances e evoluções parciais um pouco como os próprios
movimentos militares e sócio-culturais da época criavam um clima de
aprisionamento em armadilhas e recorrências, subtraindo ao espectador individual
a imagem do porvir.
Passada esta etapa, o deslocamento do enfoque para o pós-guerra oferece ao
pesquisador uma bem-vinda oportunidade de lidar com todo um novo conjunto de
referências, que contribuam para a compreensão de fatores que, a partir de então,
se tornariam decisivos na formação da identidade de muitos escritores. Creio que
Borges concedeu a estes fatores uma atenção singular, em especial ao ler e
comentar autores associados à idéia de “Estados Unidos”. Caso isto se verifique,
esta será a primeira justificativa deste capítulo.
Mas se, por um lado, quero destacar como o autor entendeu o surgimento de
um “mundo norte-americano”, por outro pretendo também sugerir como ele se
sentia muito pouco em casa neste mundo. Inclusive porque a descrição que dele
nos oferece é a de um mundo em que ninguém está em casa, em função do
movimento de deslocamento, de abandono do lar, que o instaura e o define. Isto é:
mesmo que aguardada com expectativa, a sensação de liberdade causada pelo fim
da guerra presumiria a experiência da inadequação. Sobretudo, em se tratando de
um sujeito que, apenas com muita dificuldade, conseguira se desprender de seu
apego ao legado inglês, cuja autêntica expressão mais do que nunca havia ficado
no passado, com suas exigências de vigor moral, valorização do humor e da
sinceridade, práticas de negociação, cultivo da confiança, e promessas de alegrias.
Ainda assim, tentarei demonstrar como, com sutileza e consciência deste
dilema, Borges recorreria à herança britânica para “adequar-se”, mesmo que
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255
precariamente, a um contexto que presumia seu alheamento. A via para esta
reconciliação seria uma experiência estética de caráter místico, a qual dependia de
componentes cômicos para sua configuração no artefato literário, o que nela
inseria um elemento de ruptura e diferenciação, impedindo sua projeção
unidirecional em modelos sintéticos ou cosmológicos. Antes disso, contudo, é
preciso apontar o caminho por ele trilhado para alcançar uma visão da conjuntura
mencionada, e o traçado de uma genealogia literária parece ser o método mais
condizente com suas manifestações sobre o assunto. Ela exigirá certo desvio da
argumentação, para que seja verificada a hipótese de que o novo mundo, tal como
contemplado pelo indivíduo exilado da velha ordem, era o mundo de Kafka. A
seguir, portanto, será feita uma digressão, que me parece necessária ao
prosseguimento do trabalho.
Recordo então que América, ou O Desaparecido, o primeiro romance de
Franz Kafka, foi escrito durante os anos da Primeira Guerra Mundial. O
protagonista da narrativa é Karl Rossmann, jovem inocente e encantador de uma
família alemã de baixa classe média, mandado aos Estados Unidos por seus pais
após ter engravidado uma faxineira. Na cena inicial, ele chega ao porto de Nova
Iorque avistando a “estátua da deusa da liberdade”, banhada por uma intensa luz
solar, enquanto é empurrado pela numerosa multidão que deixa o navio. Depois
disso, passa por toda sorte de acasos, embaraços e peripécias em sua jornada pelo
país, começando pelo episódio da perda de uma mala no porto, que o leva a ter um
longo diálogo com o foguista da embarcação (este capítulo chegou a ser publicado
isoladamente por Kafka). Entra em contato também com um tio, rico e excêntrico,
que oferece uma acolhida ao mesmo tempo feliz e inusitada ao sobrinho; junta-se
a trambiqueiros, patifes, bufões e artistas ambulantes; flerta com simplórias
camareiras e ascensoristas; e, afinal, descobre no “Grande Teatro Natural de
Oklahoma” uma promessa de repouso e bem aventurança, pois nele “todos são
bem-vindos para participar na grande peça do mundo”. Mas, neste ponto,
pequenos detalhes sobre o funcionamento do teatro parecem ir contra este
expectativa. E as páginas em que ele é descrito oferecem mais motivos de
estranhamento do que de conforto para o leitor.
No dia 8 de outubro de 1915, após ter lido algumas passagens do David
Copperfield de Dickens, Kafka anotou em seu diário:
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“O foguista” é uma simples imitação de Dickens, e o será ainda mais o romance
projetado. História da mala, o protagonista que alegra e encanta, os trabalhos
humildes, a amada na casa de campo, as casas esquálidas, etc., mas sobretudo o
método. Agora me dou conta que minha intenção era escrever um romance de
Dickens, enriquecido unicamente com as luzes mais penetrantes provenientes de
meu tempo, e com as outras, mais tênues, provenientes de meu interior, onde estão
escondidas.
213
E, em um prólogo de 1938, Borges caracterizou desta maneira a obra de
Kafka:
Em quase todas as suas ficções hierarquias, e essas hierarquias são infinitas.
Karl Rossmann, herói do primeiro de seus romances, é um pobre rapaz alemão que
abre caminho em um inextrincável continente; por fim é admitido no Grande
Teatro Natural de Oklahoma; esse teatro infinito não é menos populoso que o
mundo, e prefigura o Paraíso (Traço muito pessoal: nem mesmo nessa figura do
céu os homens conseguem ser felizes, e há ligeiras e diversas demoras).
214
De tal modo que América está em uma posição bastante singular na história
da literatura. É um epílogo e também um começo; na tradição à qual se vincula, o
último romance do século XIX, e o primeiro do século XX. Nele, o “método de
Dickens” se traduz na acumulação de ações e personagens insólitos, que aparecem
e desaparecem durante a busca por um novo lar do forasteiro libertado de suas
origens, levando-o a encontrá-lo em um desfecho redentor. Seu modelo possui
contornos cômicos, mas na alegria do encerramento persiste a suspeita de que
alguma coisa não anda bem. O Grande Teatro Natural de Oklahoma por pouco
não é o paraíso mas este pouco significa uma grande mudança. Ele é uma falha
insidiosa e sutil, mas por isso mesmo mais notável e desconcertante, no tipo de
arranjo alcançado nos finais de Dickens, que agora são atingidos pelas luzes, e
pelas sombras, do tempo de Kafka. De acordo com o percurso que seguimos, o
signo da desconfiança em relação a estes desfechos terá se insinuado em um
instante anterior do trabalho, também sob a forma de um breve lapso, mas então
213
KAFKA, F. Diarios (1910-1923). Edición a cargo de Max Brod. Trad. Feliu Formosa.
Barcelona: Fabula Tusquets, 1995, p. 338.
214
BORGES, J. L. “Franz Kafka. A Memorfose”. In: ___. Prólogo com um Prólogo de Prólogos.
Trad. Josely Vianna Baptista. OC [edição brasileira], vol. 4, p. 112-4. “En casi todas sus ficciones
hay jerarquías y esas jerarquías son infinitas. Karl Rossmann, héroe de la primera de sus novelas,
es un pobre muchacho alemán que se abre camino en un inextrincable continente; al fin lo admiten
el el Gran Teatro Natural de Oklahoma; ese teatro infinito no es menos populoso que el mundo y
prefigura al Paraíso. (Rasgo muy personal de Kafka: ni siquiera en esa figura del cielo acaban de
ser felices los hombres y hay leves y diversas demoras)”. BORGES, J. L. “Prólogo”. [KAFKA,
Franz. La Metamorfosis. Traducción y prólogo de Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Editorial
Losada, 1938]. In: ____. Prólogo con un Prólogo de Prólogos. OC, vol. 4, p. 105-7.
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reversível. Refiro-me a “The Honour of Israel Glow”, o conto em que o Padre
Brown se aproxima do desespero, ao encontrar, para um enigma, uma solução que
não parece fazer sentido.
“É lícito afirmar que Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) teria podido ser
Kafka”, escreveu Borges em um prólogo de sua Biblioteca Personal.
215
A
declaração está presente em outros artigos do autor, e esclarecida em “Sobre
Chesterton”, um ensaio de 1947, recolhido em Otras Inquisiciones, onde ele
compara duas parábolas, uma extraída do Pilgrim’s Progress, de John Bunyan, e a
outra de O Processo, de Kafka. Na primeira, pessoas cobiçosas olham para um
castelo guardado por muitos guerreiros, em cuja porta um guardião para
registrar o nome daqueles que são dignos de entrar. Então um homem intrépido se
aproxima deste guardião e diz: “Anote meu nome, senhor”, para depois abrir a
porta com sua espada e entrar no castelo. Na segunda em “Diante da lei”,
também publicada por Kafka como um texto autônomo –, um homem pede para
ter acesso à lei, diante do guardião de uma porta, que diz haver, depois da sua,
muitas outras, todas elas vigiadas por guardiões sempre mais fortes que os
anteriores. Este homem senta-se para esperar. Passam-se os dias e os anos, e,
antes de morrer, ele pergunta ao guarda como era possível que, durante todo
aquele tempo, ele tivesse sido o único a querer entrar. O guardião lhe diz que
somente a ele estava destinada aquela porta. E que ela então seria fechada.
“Chesterton dedicou sua vida a escrever a segunda destas parábolas, mas
algo nele sempre o levou a escrever a primeira”, afirma Borges, para finalizar o
ensaio.
216
A observação talvez não seja de todo correta: as parábolas de
Chesterton operam com movimentos dubitativos, oscilando entre a vacilação e a
decisão, que o personagem de Bunyan parece desconhecer. Algo nele o inclinaria
a reescrever, na forma de parábolas, os romances de Dickens. Enquanto o texto de
Bunyan, um dos fundadores da tradição calvinista, associada à cultura norte-
americana, tem como motivação uma fé mais enérgica, mas também mais sujeita a
crises intensas de consciência, tal como Nathaniel Hawthorne e Hermann Melville
a descreveriam em suas obras. Voltarei a este ponto, que será um tema relevante
na primeira seção do capítulo. Por ora, fica a impressão de que, através do
215
BORGES, J. L. ‘La Cruz Azul y otros cuentos’, de Gilbert Keith Chesterton”. In: ____.
Biblioteca Personal. OC, vol. 4, p. 483.
216
BORGES, J. L. “Sobre Chesterton”. [Los anales de Buenos Aires, n. 20-22, octubre–diciembre
1947]. In: ____. Otras Inquisiciones. OC, vol. 2, p. 76-79.
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258
contraste, Borges pretendia destacar justamente o que havia de hesitante nos
relatos do escritor britânico, isto é, a desconfiança que, eventualmente, neles
surgia, quanto ao êxito da ação de seus personagens e do acabamento de seus
enredos (uma desconfiança que se tornaria acentuada no caso de Kafka). Assim,
fica sugerido um quadro comparativo, de semelhanças e diferenças, com o qual
pretendo operar.
217
Em Dickens, veríamos atuar um deus absconditus, que, porém, sempre
revela a justeza e a confiabilidade de suas deliberações, mesmo que o mundo
possa parecer caótico. Seus heróis lhe devotam uma modesta e perseverante,
que os torna capazes de organizar o mundo com correção e justiça, ao mesmo
tempo em que são incorporados no esquema de uma inteligência universal. A
diversidade dos caracteres particulares, a atenção para as idiossincrasias e
infortúnios destes, na perspectiva da alegria dos encerramentos, transforma seus
livros em populosas e divinas comédias, que consumam todas as promessas de
sucesso no decorrer das tramas. Até mesmo a tragédia da orfandade anuncia um
preenchimento, um fulfilment do vazio deixado pela ausência paterna, pois, se é a
experiência mais radical da desgraça, está na outra extremidade da experiência da
mais completa felicidade.
Chesterton teria se apropriado deste esquema, mas tornando-o, por assim
dizer, mais esquemático. O que está diretamente associado ao comentário de
Borges: confrontada com o horizonte da desconfiança, a razão se enrijece em uma
fórmula, para ser preservada nas discussões escolásticas, e no tour de force
sempre repetido em seus contos. Chesterton acreditava nas melhores soluções
para os dramas humanos, mas já sabia que o simples e o verdadeiro podiam
escapar-lhe de repente. Outra parábola que não escreveu, mas poderia ter escrito, é
sobre como o padre Brown certa noite vai dormir, seguro de que o sacramento do
sono lhe trará as respostas que necessita, e acorda no dia seguinte, perdido e
transtornado, ao perceber que em seu sono escutara apenas um estranho silêncio.
Quando Joseph K. é detido uma manhã em seu quarto, sem ter feito mal a
ninguém, a transição parece estar completa. É a lei que age sobre ele, mas a lei
217
Em um ensaio intitulado “Burckhardt and Nietzsche”, Eric Heller expõe um argumento que
estabelece entre estes dois autores uma relação semelhante à que Borges propõe para a leitura de
Chesterton e Kafka (Burckhardt poderia ter sido Nietzsche, mas algo nele o detinha antes do salto
final nesta direção). Cf. HELLER, E. The Disinherited Mind: essays in modern German literature
and thought. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1975, p. 67-90.
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não faz nenhum sentido. Presume-se que exista, em algum lugar fora do alcance
de sua compreensão, e que não possa ser simplesmente ignorada. Mas, ao levá-la
em consideração, o herói se mete em várias complicações, que mais confundem
do que esclarecem os trâmites do processo. O que ele escuta são os ecos dos ecos
de uma lei, que emana de uma fonte inacessível, mas à qual, com todas as forças
que lhe restam, tentará corresponder com petições e defesas inúteis, até o
esgotamento de todos os seus recursos. Nesta perspectiva, o problema de Kafka
não seria a submissão a uma máquina estatal ou jurídica tirânica, mas o fato de
que, em última instância, seus personagens estão livres em um mundo no qual
mesmo as ordens de detenção não passam de enigmáticos mandamentos, sem
maiores conseqüências imediatas.
“Homens, não mais do que um em sua obra”, escreveu Borges. “O homo
domesticus, que anseia por um lugar, mesmo que humilíssimo, em uma Ordem
qualquer; no universo, em um ministério, em um asilo de lunáticos, ou no
cárcere”.
218
Ou, como observou Luiz Costa Lima, o problema de Kafka é que seus
personagens se defrontam com o esfacelamento da legalidade, mas nem por isso
podem agir como se ela não existisse. Eles vivem em meio à desordem, e
acatariam até mesmo uma sentença de prisão como um bem-vindo indício da
efetividade do estado de direito.
219
E, neste contexto, a busca de um lugar em uma ordem qualquer torna
infinita a sua trajetória, em meio a escritórios abarrotados, advogados maliciosos,
teólogos obscuros, eles mesmos tão perdidos, que nenhuma certeza podem
oferecer quanto aos caminhos da lei. A este respeito, vale lembrar que Borges foi
um dos primeiros comentadores a constatar o humor dos “pormenores
estrafalarios” de Kafka, um humor que, no meu entendimento, repercute o do
romancista inglês, e dele se diferencia decisivamente. Cenas recorrentes nos
romances de Dickens, nas quais seus personagens caminham roçando os ombros
nas paredes em oficinas superlotadas, por exemplo, corresponderiam a uma
passagem de O Processo, mencionada por Borges, na qual K. adentra uma sala de
audiências, de teto tão baixo que as pessoas carregam almofadas para não
218
BORGES, J. L. “Prólogo”. In: ____. Prólogo con un Prólogo de Prólogos. OC, vol. 4, p. 105-
7.
219
Cf. LIMA, L. C. “Kafka, diante da lei”. In: ____. Limites da Voz: Montaigne, Schlegel, Kafka.
Edição revista pelo autor. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005 [1993].
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260
machucar a cabeça.
220
Mas o que, no primeiro caso, é uma enumeração de
absurdos, tal como registrados do ponto de vista de uma criança, no segundo se
trata de uma realidade objetivamente constatada, e por um adulto lúcido. O mundo
de Kafka não tem conserto. Por isso, ao mesmo tempo em que pode ser
absurdamente engraçado, é também embaraçosamente opressivo.
Sendo assim, as luzes do tempo de Kafka, e seus traços pessoais,
significariam uma libertação dos moldes em que operava a razão oitocentista. E
ele teria representado a passagem não como uma conquista, mas como um trauma.
De certa maneira, os romances de Kafka são os romances de Dickens, mas
destituídos de seus começos e finais, e justamente esta destituição transforma por
completo o percurso intermediário. Não por acaso, este movimento se iniciaria
com a narração da história de um migrante europeu chegando aos Estados Unidos.
Ou seja, um personagem característico do século XX, em seu desamparo das
estruturas de proteção social, vigência do direito, e conforto religioso, que a crise
do pensamento britânico converteu em costumes envelhecidos. Depois disso, o
autor prescindiria da alusão a dados históricos tão nítidos em sua escrita, mas, por
isto mesmo, tornaria sua obra ainda mais abrangente na capacidade de configurar
uma nova imagem do mundo. De modo que, em determinados aspectos, este
mundo é aquele que começou a assomar no horizonte do final do século XIX,
continuou sua marcha durante a derrocada européia a partir de 1914, e consolidou
sua predominância em 1945. Para o qual, segundo esta linha de raciocínio, a
ambientação do judaísmo antigo, a que remete a obra de Kafka, torna-se um
possível recurso comparativo.
Neste sentido, a opção de Borges por Bunyam, para estabelecer uma
linhagem de autores cujo desdobramento nos leva a Kafka, é bastante elucidativa.
Como foi notado, ela nos faz recordar que o Pilgrim’s Progress é um texto central
para a tradição calvinista, que está nas origens da formação da identidade norte-
americana. Max Weber, uma referência obrigatória a partir deste momento,
ressaltou este ponto, assim como as relações entre o judaísmo antigo e o
protestantismo, dada a relevância do Velho Testamento em ambos os fenômenos.
O autor sinaliza algumas semelhanças e diferenças entre estes dois conjuntos na
220
BORGES, J. L. The Trial’, de Franz Kafka”. [El Hogar, 6 de agosto de 1936]. In: ____.
Textos Cautivos. OC, vol. 4, p. 327.
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Ética Protestante, das quais me aproveito para voltar à comparação entre Bunyan
e Kafka, tendo Chesterton como termo de mediação.
221
Pois, em comparação com a vida de Cristo, que é consumação, fulfilment,
cumprimento das promessas de um Deus piedoso e disposto a encarnar na Terra, a
paisagem das antigas escrituras é de um enlouquecido transtorno, causado pela
distância e até mesmo pela ausência de um Deus enigmático e implacável. Esta
distância é instauradora da liberdade do homem, mas uma liberdade entendida no
sentido negativo do termo, como a falta de uma orientação ética fundamental. O
calvinismo teria resolvido o problema postulando uma arbitrária divisão do
mundo entre eleitos e danados, equiparáveis aos winners e losers da terminologia
secular, mas de acordo com uma decisão divina sem critérios aparentes, causadora
de enorme tensão nas consciências. Ainda assim, se você acredita que é um dos
primeiros, se escuta uma voz dentro de si convocando-o à ação, uma confiança
mais feroz do que qualquer fé na razão e na justiça lhe dá forças para abrir
caminho a golpes de espada e penetrar no castelo. Até mesmo por que penetrá-lo
implica a confirmação do estatuto de eleito do indivíduo, segundo o arbítrio
divino.
Entretanto, tal confirmação nunca poderia consumar-se completamente,
tornar-se uma certeza, o que implicaria uma convergência impensável entre a
verdade e o mundo, entre a vontade de Deus e a compreensão dos homens. Creio
que a percepção deste impasse, associada à índole característica de seus
personagens, proporciona um motivo freqüente nos romances de Kafka. Pois se,
ao buscar certezas e convicções, tudo o que você ouve são as acusações de uma lei
que não lhe permite qualquer defesa, e a balbúrdia babélica das interpretações
contraditórias desta lei, aí você fica aguardando na porta, até que sua morte
chegue sem ela ter sido aberta. Você é Joseph K.. Note-se que o problema deste
não é saber-se definitivamente condenado, o que implicaria um acesso ao
entendimento da lei. A questão é que uma missão sua defesa foi-lhe atribuída,
interrompendo sua vida cotidiana, doméstica, sem que ele saiba em que direção
seguir para executá-la.
221
Para a discussão subseqüente, a ser estendida a toda a primeira seção do capítulo, utilizo as
seguintes edições: WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. Trad. José
Marcos Mariani de Macedo; revisão técnica, edição de texto, apresentação, glossário,
correspondência vocabular e índice remissivo Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Cia. das Letras,
2004 [1920], e WEBER, Max. Ancient Judaism. Translated and Edited by. Hans H. Gerth and Don
Martindale. New York: The Free Press, 1958 [1922].
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262
Depreende-se disto que os fundamentos do protestantismo, com suas
decisivas repercussões na economia e na sociedade do século XX, geram um
ambiente cultural que, para o egresso da antiga ordem, é o da traumática
dissolução de um status quo, sem que outro modelo de organização ou conduta
exista, a princípio, para substituí-lo. Desta forma, parece-me que a obra de Kafka
narra a história de um indivíduo que, ao penetrar neste universo, depara-se com
um labirinto onde está despojado de indicações seguras para voltar para casa. Ele
tampouco detém a convicção ética necessária para se tornar um conquistador de
novas terras ou um empreendedor de sucesso. Assim, se a dinâmica da hesitação e
da decisão, presente em Chesterton com o auxílio da providência, é rompida, sua
tendência é a margear a paralisia, ao transitar, desorientado, por entre os destroços
do velho mundo.
A seguir, pretendo oferecer maiores coordenadas para o aproveitamento
deste debate, e indicar como o tema surge na obra de Jorge Luis Borges. Espero
substituir a imprecisão destas últimas observações por um argumento mais
consistente, o qual, no entanto, suspeito merecer ainda maiores pesquisas e
leituras, de modo que o apresento como um esboço de eventuais desdobramentos.
Para este objetivo, deverá contribuir a inserção no trabalho de alguns nomes de
escritores norte-americanos, geralmente atrelados aos do autor tcheco nos artigos
de Borges, em especial Hawthorne e Melville (há também associações por ele
feitas entre Kafka e Henry James, um tema que será deixado para outra
oportunidade).
222
Enfim, quero justificar mais uma vez a organização do estudo proposto,
acrescentando-lhe o componente que orientará as próximas discussões. Ela
pressupõe um diálogo entre formas literárias e modelos de organização sócio-
política, que se estimulam e esclarecem mutuamente, sendo produtos autônomos
da criatividade humana, em suas diferentes linguagens e esferas de atuação. Até
agora, este enfoque permitiu a formulação de três quadros de valores
(“Inglaterra”, França” e “Alemanha”), com os quais a obra de Borges se
relacionaria por meios variáveis: o manifesto programático, a prosa idílica, o
discurso ensaístico, a paródia e a alegoria, para citar alguns exemplos, que
222
Para uma indicação de paralelismos nas obras de Kafka e James, de acordo com sua atualização
de temas e procedimentos narrativos das escrituras, o que poderia servir de base à análise de
alguns comentários de Borges a respeito, cf. Frank Kermode, The Genesis of Secrecy: on the
interpretation of narrative. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1979.
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iluminam tais configurações com vieses e resultados distintos. Das conclusões
provisórias deste trajeto, ofereço em seguida um resumo, tentando reunir seus
pontos fundamentais.
Em primeiro lugar, por uma questão de identificação pessoal, cultivo de
hábitos e preconceitos, e estratégias de auto-representação, o legado inglês veio a
ser a referência central da análise de sua trajetória. Ao longo da década de 30, a
disposição ao trabalho de reconstrução do estado argentino, aliada à esperança no
futuro da nação, foi entendida nesta perspectiva, bem como o posicionamento do
escritor nos debates que antecederam o início da Segunda Guerra Mundial. Nos
dois casos, como indicativos de um temperamento simultaneamente conservador e
progressista, que institui a estabilidade para avançar em suas propostas, mas às
vezes encontra no estado de exceção a única saída para a restauração da
normalidade institucional. Por outro lado, enquanto esta seria uma expressão
positiva daquela tradição, a percepção de seu esvaziamento, da perda de sua
efetividade, afinal, se tornou mais importante para a seqüência do exame. Pois, no
vácuo deixado neste processo, seriam desenvolvidas formulações teóricas
visionárias, forjadas para substituir uma ordem decadente.
O que pode ser visto como o resultado de um antagonismo latente durante
todo o século XIX, gerador de conflitos solucionáveis até certo ponto, mas
tornados mais agudos no século XX, conforme a própria estabilidade era
presumida teoricamente. E se, em seus ideais de moderação e parcimônia, e no
aspecto mediano de sua moralidade, o pensamento inglês favorecia um frágil
equilíbrio em torno do eixo de suas mediações (a nação, a corporação, o
sacramento), a maior reação contra ele viria dos extremos que não eram abarcados
por seus preceitos: o Bem absoluto e o Mal radical, a paz perfeita e a utopia da
guerra, que ou eliminavam ou hipertrofiavam o papel do conflito, segundo os
mitos da Humanidade ou da Raça, substituindo a Nação como unidade política
fundamental. No entanto, Borges entendeu que faltava substância e vigor à
proclamação da autenticidade destes constructos, algo que pode ser atribuído ao
caráter reativo dos mesmos, com sua apressada reciclagem de ideais
aristocráticos, convertidos em pedantismo retórico, ou na banalidade da violência.
Ele veria como sua própria obra de juventude ilustrava uma relação entre
desespero e estetização, ou entre inquietude e megalomania, na qual teriam se
originado estas doutrinas. Em um primeiro momento, isto teria sido motivo de
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264
uma enternecida consternação, presente na biografia de Evaristo Carriego. Mas a
rigidez ideológica que tais doutrinas viriam a adquirir implicava a necessidade de
confronto com seus propagadores mais fanatizados.
Este ciclo termina com a derrota do nazismo, e todo o sentimento de alívio e
júbilo que ela podia proporcionar. Mas, então, ficou sugerido que o inimigo mais
poderoso de Hitler não era o império declinante, e sim um regime que, com as
energias de uma potência em ascensão, e certo fervor sectário, situava-se nas
antípodas do totalitarismo. Pois, enquanto este último agente projetava a imagem
de um cosmos orgânico, onde as individualidades seriam eliminadas, o modelo
sócio-político norte-americano teria o indivíduo como unidade fundamental de
sentido de sua doutrina. O primeiro resultava em uma grande confusão, mas
supunha-se que ela seria a aparência de uma ordem mais profunda; o segundo
presumia a anárquica confusão do mundo como o campo de atuação de sujeitos
conquistadores, enquanto condenava outros, os menos convictos de sua missão
terrena, a uma interminável espera por um lugar na ordem das coisas.
Tendo isto em vista, pode-se compreender a insurgência alemã já como uma
reação aos novos paradigmas do liberalismo anglo-saxônico, conforme este se
radicalizava em um sentido oposto ao que o idealismo germânico estava inclinado
a orientar-se. Pois, comparada à revolução industrial, que manteve dentro de
certos limites o abandono à própria sorte das massas urbanas, o que aconteceu no
século XX foi o verdadeiro big bang do capitalismo, um apocalipse financeiro.
Borges, o funcionário de quinta categoria de um estado em decomposição,
esteve por muitos anos em uma posição favorável à percepção destas
transformações. E ao dizer, no final de sua vida, que Kafka era “o grande
escritor clássico de nosso atormentado e estranho século”, ele estava se referindo à
lucidez com que o autor de O Processo havia descrito a nova imagem do mundo,
em uma perspectiva que ele próprio viria a assumir.
223
Sendo assim, na primeira
seção deste capítulo, seexaminado o conto “La biblioteca de Babel”, isto é, o
conto declaradamente “kafkiano” de Borges, que também remete à obra de
Melville, e está mais diretamente associado à sua experiência como empregado da
biblioteca Miguel Cané. Nele, manifesta-se a perplexidade da voz narrativa com a
idéia de um universo caótico e ilimitado, regido por leis desconhecidas, e onde se
223
BORGES, J. L. ‘América. Relatos Breves’ de Franz Kafka”. In: ____. Biblioteca Personal.
OC, vol. 4, p. 482.
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movimenta uma multidão de indivíduos atomizados, cada um em uma missão
particular, para a qual o sucesso parece impossível. Tratar-se-ia, portanto, de um
texto situado no quadro de referências que mencionei, com um olhar
aterradamente voltado para o futuro.
Mas, nem por serem inacessíveis, a verdade e a lei deixariam de ser
buscadas, assim como são perseguidos o amparo de um lugar em qualquer espécie
de ordem: a culpa é signo de individualidade e alheamento, mas também fonte do
infinito desejo de retorno para um lar. E este desejo poderia levar a uma
descoberta, insinuada em raros lampejos: a de que, entre o particular e o universal,
entre o mundo concreto e a esfera do sentido, existem pontos de conexão
dispersos, cuja contemplação confere significado a momentos especiais da
travessia do sujeito. Refiro-me à possibilidade de uma experiência poética, que
restitua ao indivíduo uma via de imersão na totalidade, ao mesmo tempo em que a
nega, por seu caráter precário e efêmero. Dela, buscarei depreender uma relação
entre a comédia e a mística, o que, por um lado, nos devolve à influência de
Chesterton sobre Borges, mas também aponta uma felicidade possível no mundo
de Kafka. Na segunda seção, procuro demonstrar como Borges relatou uma
experiência desta natureza, com o propósito de escrever o texto que justificaria
toda a sua carreira literária. Mas pretendo também argumentar que, dada a própria
dinâmica da epifania, “El Aleph”, o maior feito poético de Borges, é também uma
história sobre suas maiores frustrações.
Na última parte, o problema da inserção do autor no cenário político e
cultural argentino seretomado. Ele pressupõe o entendimento de sua biografia
como uma seqüência de mesquinharias e insucessos, entre os quais se incluía a
escrita de “El Aleph”, entendimento este favorecido pelo próprio Borges, em
variadas auto-representações, disponíveis em diferentes gêneros discursivos. Estas
faziam dele um personagem kafkiano, mas traziam consigo a possibilidade de
mudança de seu estatuto como intelectual, que será analisada. Veremos então que,
àquela série de infortúnios, seria acrescentada a sua lendária “promoção” a
inspetor de aves e coelhos do mercado municipal de Buenos Aires, sob o regime
de Perón, em um episódio de nítidos aspectos cômicos, em que pese o desgosto do
escritor com o regime instalado na Argentina do pós-guerra. Esta situação de
antagonismo entre o escritor e o governo duraria até 1955, quando, com a
deposição do presidente, Borges finalmente assumiria um cargo de certa
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importância como funcionário estatal. Na ocasião, foi reafirmado seu
compromisso com um projeto de nação presente em “Tareas e destino de Buenos
Aires”, que, até aquele ano, ele não tivera oportunidade de colocar em prática. No
entanto, por motivos que indicarei, será dada maior ênfase à sua atenção como
conferencista, iniciada em 1948, como instância decisiva e surpreendente na
consagração de uma identidade intelectual, dentro das condições culturais tratadas
no decorrer do capítulo, por razões a serem examinadas.
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5.1
O Apocalipse segundo Borges
THE PROPHET: And wait for what? God? He’s not coming back.
Tony Kushner, Angels in America
Quando, em 1923, D. H. Lawrence publicou os seus Studies in Classic
American Literature, o título do livro conferia ao objeto de seu exame um
estatuto até então impensado. Falar em uma literatura “clássica” norte-americana
podia ser uma precipitação em vários níveis, entre eles o de comparar nomes
como os de Nathaniel Hawthorne, Hermann Melville e Walt Whitman àqueles que
haviam se estabelecido como cânones da civilização moderna: Dante, Goethe,
Voltaire, Dickens. Cada um destes últimos integrava um legado cultural que,
através da modernidade, se formou em consonância com a idéia de “Europa”;
portanto, era notável que, pela primeira vez, em muitos séculos, alguém conferisse
tal peso a algo que surgira para além dos limites desta tradição. Por outro lado,
Lawrence referia-se justamente ao esgotamento da tradição européia para
justificar seu epíteto, um esgotamento que teria sido tema da obra de Borges, tal
como observamos no decorrer dos últimos capítulos. Em diversas ocasiões, os
textos do escritor argentino traziam referências satíricas a autores italianos,
alemães, franceses, e até mesmo ingleses contemporâneos, para não dizer de
quando elas remontavam à degeneração de hábitos estéticos em sistemas políticos
correntes. Mas, salvo casos isolados, a mesma tendência não se confirma em suas
alusões e comentários à literatura e à sociedade norte-americanas. Isto não é
necessariamente signo de uma predileção, de uma aprovação de sua parte: é
apenas o índice de um diagnóstico. Ou, como afirmou Lawrence: Os europeus
modernos estão todos tentando ser radicais. Os americanos que mencionei
simplesmente eram”.
224
224
LAWRENCE, D. H. Studies in Classic American Literature. New York: Doubleday &
Company, 1951 [1923], p. 8.
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E, na era dos extremos, esta diferença viria a ser determinante. De um lado,
estariam o exagero, a exaltação e o fanatismo, como últimos recursos de mentes
exaustas; do outro, poderia haver exagerados, exaltados e fanáticos, mas isto seria
o começo, não o fim de uma era. Ainda segundo Lawrence, desde que homens
obstinados começaram a cruzar o atlântico para colonizar a Nova Inglaterra, seu
propósito tinha sido o de construir ali um novo mundo, impulsionados por uma
força vigorosa, quase desumana, que proclamava a extinção de velhos hábitos e
preconceitos, e a rebelião contra as instituições morais, estatais e religiosas de
seus antepassados. Sua ética era uma ética de homens livres que, todavia,
submetiam-se com total devoção a um único mandamento, o de conquistar o
mundo para a maior glória de um Deus exigente. Renunciaram à pátria, à família,
ao lar, para se dedicarem a uma missão ao mesmo tempo incontornável,
incondicional e incompreensível. Por estarem unicamente a serviço desta missão,
tornaram-se estrangeiros em sua própria terra; e, por isso mesmo, a terra inteira se
tornou o território da aplicação da sua vontade, que era a vontade de Deus.
Eles profetizavam uma nova era, e seu Deus era um Deus trágico. De acordo
com o previsto para a seqüência do exame dos contos de Borges, estes pontos são
fundamentais. Pretendo analisá-los em contraposição às categorias do trágico e do
profético tal como recebidas da matriz grega, que tiveram maior ressonância na
Europa moderna (particularmente na Itália, na França e na Alemanha), enquanto
sua expressão de origem judaica repercutiu no ambiente protestante norte-
americano, sendo ambas configurações extremadas em relação ao universo da
comédia britânica, que dialogava com os códigos morais mais flexíveis do
catolicismo.
Para tanto, recordo que, no início do trabalho, foi brevemente discutida a
concepção da tragédia como via de renascimento cultural, segundo intelectuais
como Gabrielle d’Annunzio e Georges Sorel, influenciados pela obra de
Nietzsche, que recorrera ao helenismo para elaborá-la. Em outro momento, foi
feita uma leitura dos contos policias de Borges, como paródias dos excessos
simbolistas e expressionistas das vanguardas européias, onde a articulação entre a
contenção formal e a violência correspondia à promessa de uma ntese do
apolíneo e do dionisíaco. De modo que, também neste caso, dava-se a
cumplicidade do rigor formal e da dissipação cósmica, ou da causa pacifista e do
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impulso bélico, equivalentes em seus aspectos utópicos e ideais aristocráticos, tal
como exposto na seção 3.2.. o funcionamento da máquina totalitária foi
descrito tendo em vista a sensação de intensidade que ela devia gerar em seus
integrantes, em função do dinamismo inerente à sua organização, que parecia
guiá-la para uma catarse trágica. De onde é possível inferir que, ao entrar em linha
de choque com os Estados Unidos, em certo aspecto o nazismo estaria
reencenando, no campo militar, o antigo antagonismo entre helenismo e
hebraísmo, fundado em outro tipo de noção do trágico.
Um tanto arbitrariamente, na obra de juventude de Hegel pode ser
localizada uma origem desta divergência na modernidade, ou o ponto a partir do
qual ela sofreria um contínuo acirramento. Pois, no texto de Hegel sobre o
“espírito do judaísmo”, de 1800, indicações úteis à compreensão das distintas
expressões da tragédia.
225
Trata-se de um comentário à história de Abraão, que,
sob o comando de uma voz severa e enigmática, abandona sua casa e se separa de
sua família, convencido de que os deuses caseiros, os lares, eram crendices que
dividiam os povos e lhes exigiam uma devoção supersticiosa, enquanto seu guia
reivindicava total devoção, sendo também ilimitado em sua autoridade: razão pela
qual toda a terra se torna o lugar de um único e absoluto Deus. Mas, para
estabelecer este domínio, Ele deve permanecer invisível, porque tudo que é visível
tem fronteiras: daí a predominância do Verbo sobre a Imagem, o papel central da
voz divina como veículo de ordens abruptas, que devem ser interpretadas como
manifestações da Lei. Tampouco esta Lei poderia ser fixada em códigos morais
(que resumem a obediência devida a alguns tópicos específicos), sob o risco de
abrandar-se e corromper-se, na observância automatizada de seus preceitos.
A voz que guia Abraão é, simultaneamente, uma exigência e uma
lembrança, advertindo-o de que o restante dos homens vive no esquecimento da
vigência da ética, uma norma que não admite a transigência, e exige que os
homens sejam santos, o apenas honrados ou honestos. Deste modo, ela o lança
em uma jornada incerta e solitária, cujo episódio de origem é a trágica e
traumática instalação de uma crise. E o submete a uma lei à qual ele nunca poderá
corresponder com absoluta convicção, sem que a dúvida quanto aos seus
225
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. “El espíritu del cristianismo y su destino” (versión
definitiva 1798-1800). [I] El espíritu del judaísmo”. In: ___. Escritos de Juventud. Trad. Jo
María Ripalda y Zoltan Szankay. Madrid: Fondo de Cultura Económica de España, 1978, p. 287-
302.
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270
conteúdos se instale mais uma vez em sua consciência, de modo que ele esteja
sempre na iminência de uma catástrofe, sob o risco de voltar à crise instalada pela
profecia. E, por razões como esta, Hegel afirmava que “a tragédia do povo judeu
não é uma tragédia grega; não pode suscitar nem temor nem compaixão, pois
ambos surgem unicamente do erro e do destino de um ser belo. Sua tragédia
pode suscitar o horror”.
Note-se a diferença: a profecia grega declara a consumação de um plano
esteticamente perfeito, e eticamente neutro, para o qual não diferenças entre o
que é, o que foi e o que será. Ela é uma espécie de rememoração do futuro, que
situa todo o tempo em um mesmo plano espacial, sendo, portanto, proclamada por
aedos e adivinhos visionários, os que têm acesso ao mito e vêem a história como
uma armadilha, da qual o indivíduo não tem como escapar. na profecia bíblica,
segundo a expressão de Maurice Blanchot, “não é o futuro que é dado, mas o
presente que é retirado”, o que faria dela uma força de desorientação individual.
226
A palavra profética é um escândalo até mesmo para o profeta, um despropósito,
um absurdo. “E és tu, senhor, que me dizes isto?”, ele chega a perguntar.
A contestação é signo de um despreparo, mas também de um apego às
convenções que definem o que é justo, lúcido e racional: antes de se transformar
em um outro homem, o profeta duvida da seriedade, ou mesmo da sanidade de
Deus. Afinal, neste quadro de referências, nada que tem a ver com Deus é muito
confortável. Os profetas não procuram o êxtase, eles o recebem como uma
eleição, através de uma escolha dissociada de quaisquer méritos ou qualidades, e
este episódio pode ser sentido como uma violência, uma violação, uma catástrofe.
Além disso, ao tornar-se um receptáculo da voz divina, ele anuncia uma crise de
proporções inéditas, na medida da ira de uma potência desconhecida e misteriosa,
que substitui as divindades familiares e locais.
Assim, enquanto a tragédia grega projetava-se em direção a uma catarse
definidora da condição humana em relação ao plano divino, pela via da restituição
do indivíduo a um universo mítico, a tragicidade bíblica é devastação e abertura,
recomeço do mundo desviado da norma ética original. E, antes que este mundo
possa ser reconstruído segundo a fidelidade a esta norma indivisível, há um
momento de puro desconcerto da criatura que se depara com um comando desta
226
BLANCHOT, M. “A palavra profética”. In: ____. O Livro por Vir. Trad. Leyla Perrone-
Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 113-124.
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271
natureza. Ehych asher ehych, I am what I am, Eu sou o que sou: quando se
apresenta ao profeta no livro do Êxodo, é como se Deus falasse uma língua
estrangeira, que em qualquer idioma soa como uma tradução, porque nenhuma
língua familiar ou tribal serve à compreensão do nome de Deus. Fica assim
inaugurado o mundo babélico das várias interpretações sobre o significado da
palavra divina, cuja irrupção é também signo de uma distância, da quebra da
aliança que teria permitido o entendimento de sua fala.
E, retomando as referências e leituras de Borges, Hermann Melville surge
como o autor moderno que, talvez mais do que nenhum outro, se propôs e
reescrever as escrituras, naquela que seria sua obra mais ambiciosa, situando-a em
uma terra devastada, de profetas em estado de transe e maníacos aventureiros,
lançados ao mar infinito, em missões inexplicáveis. Moby Dick é, decerto, uma
extravagância como o “excessivo Ulisses de Joyce”, a “inacessível Montanha
Mágica de Thomas Mann”, nas definições de Borges
227
–, mas isto porque o
universo que ele descreve parece ser ele mesmo uma extravagância divina, algo
que parece feito para confundir e desorientar os homens. Ou, como diz o narrador
no capítulo XLIX, uma atordoante practical joke, da qual o sujeito pode suspeitar
que foi criada unicamente no propósito de permanecer incompreendida, tornando
vãs todas as tentativas de controle e entendimento do mundo. Para este sentimento
contribui a percepção de que a empresa monomaníaca do capitão Ahab, sua
obstinada perseguição à baleia, é uma empresa sem sentido, governada por uma
divindade delirante, em um oceano cruelmente absurdo e insensato.
Ou, como escreveu Borges, em um texto de 1944:
O símbolo da Baleia é menos capaz de sugerir que o cosmos é malvado do que de
sugerir sua imensidão, sua desumanidade, sua bestial ou enigmática estupidez.
Chesterton, em uma de suas narrativas, compara o universo dos ateus a um
labirinto sem centro. Tal é o universo de Moby Dick: um cosmos (um caos) não
perceptivelmente maligno, como o que intuíram os gnósticos, mas também
irracional, como o dos hexâmetros de Lucrécio.
228
227
Cf. BORGES, J. L. ‘Le Gardien d’Epaues’, de Robert Francis”. [El Hogar, 14 de mayo de
1937]. In : ____. Borges en El Hogar, p. 49.
228
BORGES, J. L. “Herman Melville. Bartleby. In: ____. Prólogo com um Prólogo de Prólogos.
Trad. Josely Vianna Baptista. OC [edição brasileira], vol. 4, p. 125-127. “El símbolo de la Ballena
es menos apto para sugerir que el cosmos es malvado que para sugerir su vastedad, su
inhumanidad, su bestial o enigmática estupidez. Chesterton, en alguno de sus relatos, compara el
universo de los ateos con un laberinto sin centro. Tal es el universo de Moby Dick: un cosmos (un
caos) no sólo perceptiblemente maligno, como el que intuyeron los gnósticos, sino también
irracional, como el de los hexámetros de Lucrecio”. BORGES, J. L. “Prólogo”. [MELVILLE, H.
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272
Com isso, nos aproximamos de encerrar um preâmbulo necessário à leitura
proposta de “La biblioteca de Babel”.
229
Antes, porém, vale ressaltar um ponto,
que a menção a Chesterton sugere. Em comparação com a atuação regular e
reconfortante do Deus católico no mundo, a narrativa atordoante de Melville
implica a possibilidade de um Deus que seja pura negação da ordem. Em última
instância, um não-Deus: uma ausência, que seria indício de um abandono
definitivo, um silêncio que repercute como entrega dos homens à própria sorte,
desumano em sua recusa a oferecer a chave de interpretação da Lei, mas que,
ainda assim, é sentido como espaço a ser preenchido, porque a ausência de Deus
não é sua não-existência, mas o distúrbio causado pela falta de Sua palavra.
Ao fenômeno do desencatamento do mundo a eliminação da magia, ou da
graça sacramental, como mecanismo de compensação às insuficiências humanas
pode ser creditada esta angustiada tensão, na qual a descrença assoma como uma
fatalidade trágica, causada pelo desaparecimento de Deus. Note-se que, neste
sentido, ele não acarreta necessariamente uma diminuição do sentimento
religioso, e, muito pelo contrário, pode implicar sua intensificação. No plano
literário, algo semelhante acontece quando os limites tradicionais da forma são
desfeitos – e nem por isso a consumação formal do romance deixa de ser buscada,
preservando um desejo que pode deparar-se com sucessos parciais e grandes
frustrações.
Enfim, o propósito de toda esta discussão é o de preparar a introdução no
trabalho de um conceito fundamental para certa leitura da obra de Kafka, e, em
determinado momento, para a compreensão do pensamento de Borges: o da
teologia negativa
230
, concernente à idéia de que, em um mundo abandonado por
Deus, os fragmentos irracionais e desconexos do mundo são também rastros
deixados por Sua passagem, ecos de ecos do Verbo responsável pela criação. A
Bartleby. Traducción y prólogo de Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Emecé Editores, 1944] In:
____. Prólogos con un Prólogo de Prólogos. OC, vol. 4, p. 118-9.
229
Sobre De Rerum Natura, a obra a que faz referência a recordação de Lucrecio, e sua capacidade
de elucidar aspectos desta discussão (que não devo desenvolver, por desconhecer o poema, e
privilegiar o diálogo com autores ingleses e norte-americanos modernos), ver Francis Wolff,
“Tudo é corpo ou vazio”. In: ____. NOVAES, A. (org.) Poetas que Pensaram o Mundo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 65-81.
230
Sobre a teologia negativa como critério de leitura da obra de Franz Kafka, além do já
mencionado estudo de Erich Heller, ver LÖWY, M. “Theologia negativa e utopia negativa: Franz
Kafka”. In: ____. Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central: um estudo de
afinidade eletiva. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989 [1988], p. 67-84.
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273
liberdade existe como desprendimento de um vínculo; ela é causada por uma
completa separação entre o real e o verdadeiro, mas cogita-se o encontro de sinais
deixados pela união entre ambos.
Mas esta implicação será mais aproveitada na seção seguinte, com a
tentativa de entender que tipo de experiência estética este universo pode
proporcionar. Por ora, quero ressaltar que, se os universos de Melville e Kafka,
como Borges os qualificou em conjunto,
231
são ambos angustiosos e desesperados,
é porque a intensidade com que o sujeito se lança à tarefa de interpretar estes
signos tem como resultado sua ainda mais atroz perdição no labirinto, podendo ter
como efeito tanto a monomania de Ahab quanto a apatia de alguns heróis
kafkianos. Mais adiante, a introdução de outro relato de Melville no argumento
deve conferir novas nuances a esta analogia.
Enfim, em um texto de 1939, no qual se refere às “imaginações horríveis” já
criadas pelo homem, Borges se refere às idéias platônicas como uma
“anormalidade”, que podemos associar a outros pesadelos freqüentes em sua obra
a partir daí: o das sociedades secretas, dos relatos policiais, das cosmologias
míticas. Em todas elas, o indivíduo é subjugado por uma ordem tautológica,
independente da ação do sujeito, a quem cabe somente submeter-se à articulação
do todo. Entretanto, o artigo é dedicado à descrição de outra quimera, também
“anormal” do ponto de vista do senso comum, onde a atuação individual está
desimpedida para ler das mais variadas formas a escrita do mundo, mas por isso
mesmo encontra aí uma atividade que só aumenta sua sensação de deslocamento:
Procurei resgatar do esquecimento um horror subalterno: a vasta biblioteca
contraditória, cujos desertos verticais de livros se estendem no incessante jogo de
multiplicarem seus signos, e que tudo afirmam, tudo negam e confundem, como
uma divindade que delira.
232
O trecho anuncia, portanto, a composição, que seria executada dois anos
depois, de “La biblioteca de Babel”. Devo expor o conto em suas linhas gerais, de
modo a ressaltar alguns tópicos nele presentes que podem ser esclarecidos pelas
231
Cf. BORGES, J. L. ‘El Hechizado’, de Francisco Ayala”. [Sur, Buenos Aires, año XIV, n.
122, diciembre de 1944]. In: ____. Borges en Sur, p. 281.
232
“Yo he procurado rescatar del olvido un horror subalterno: la vasta Biblioteca contradictoria,
cuyos desiertos verticales de libros corren en el incesante albur de cambiarse en otros y que todo lo
afirman, lo niegan y lo confunden, como una divindad que delira”. BORGES, J. L. “La biblioteca
total”. [Sur, Buenos Aires, año IX, n. 59, agosto de 1939]. In: ____. Borges en Sur, p. 24-27.
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274
observações anteriores, além de preparar, na paráfrase, algumas inferências
eventualmente capazes de nos fazer avançar um pouco mais no exame do
assunto.
233
A abertura do relato nos oferece uma minuciosa descrição do universo, “que
outros chamam a Biblioteca”, deixando claro, desde logo, que ambos os termos
são intercambiáveis. Como se recordará o leitor, o narrador se refere a um número
indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais interligadas, com vastos poços
de ventilação no meio, de modo que de cada hexágono se vêem os pisos inferiores
e superiores, interminavelmente, todos eles ocupados por prateleiras e prateleiras
de livros. Borges inclui neste parágrafo alguns divertidos “pormenores
estrafalarios”, como os minúsculos gabinetes, anexados a todas as galerias, onde
um homem pode dormir em e fazer suas necessidades. Mas, no geral, o texto
tem o efeito de oprimir o leitor com a sensação do contraste entre a grandiosidade
de tal universo e a pequenez da figura humana, algo que a utilização da primeira
pessoa a partir do segundo parágrafo só faz por enfatizar:
Como todos os homens da biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em
busca de um livro, talvez o catálogo dos catálogos; agora que meus olhos quase
não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do
hexágono em que nasci.
234
E, na seqüência desta apresentação, começa a exposição das polêmicas
sobre a natureza e a forma da biblioteca:
Afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argúem que as salas
hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa
intuição do espaço. Alegam que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal.
(Os místicos pretendem que o êxtase lhes revele uma mara circular com um
grande livro circular de lombada contínua, que siga toda a volta das peredes; mas
seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.)
233
A análise a ser feita dialoga, sobretudo, com a proposta por Susana Kampff Lages, em “Jorge
Luis Borges, Franz Kafka e o labirinto da tradição”. São Paulo, Revista de Letras (UNESP), v. 33,
p. 13-21, 1993. Outras referências que a ela estão vinculadas serão citadas na próxima seção deste
capítulo.
234
BORGES, J. L. “A biblioteca de Babel”. In: ____. Ficções. Trad. Carlos Nejar. OC [edição
brasileira], vol.1, p. 516. “Como todos los hombres de la Biblioteca, he viajado en mi juventud; he
peregrinado en busca de un libro, acaso del catálogo de catálogos; ahora que mis ojos casi no
pueden descifrar lo que escribo, me preparo a morir a unas pocas leguas del hexágono en que
nací”. BORGES, J. L. “La biblioteca de Babel”. [1941]. In: ____. Ficciones. OC, vol. 1, p. 499-
505.
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275
Basta-me, por ora, repetir o preceito clássico: “A Biblioteca é uma esfera cujo
centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível”.
235
Feitas estas considerações, a questão da origem da biblioteca é levantada.
Mas, neste ponto, o narrador é sentencioso: ela “só pode ser obra de um deus”. A
magnitude do edifício, sua massiva sobreposição de pisos regulares, cujo fim e
finalidade o olhar não alcança, parecem feitas para indicar “a distância que
entre o humano e o divino”. Como o mar de Melville, a biblioteca é uma
inquietante e volumosa acumulação da matéria, que de qualquer ponto de
observação se revela como resultado de uma força desconhecida. A biblioteca é
sublime.
Mas o deus que criou este despropósito parece -lo abandonado há muito
tempo, deixando-o entregue aos homens, como se tivesse sido feito para que nele
se perdessem. O aspecto informe e caótico de todos os livros, que apresentam
indeterminadas variações de vinte e cinco símbolos ortográficos, com “léguas de
insensatas cacofonias, de estultices verbais e incoerências”, surge como um
castigo babélico, cruel e indiferente ao distúrbio das consciências humanas. Mas
uma descoberta teria transformado por completo o estilo de vida neste universo: a
de que, nele, não dois livros idênticos, uma premissa incontroversa, que leva à
conclusão de que todas as combinações possíveis, entre todos os símbolos, estão
presentes nas prateleiras, em todos os idiomas. A isto equivale a promessa de que
o sentido e a justificação da vida de cada indivíduo estejam registrados em algum
livro, a ser buscado com fervorosa intrepidez, mesmo que ele se encontrasse a
milhas de distância de seu hexágono natal, lançando os sujeitos a jornadas febris.
Ou, como afirma o narrador, em um parágrafo que creio demandar a citação mais
extensa:
Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira
impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens sentiram-se senhores de
um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja
eloqüente solução não existisse: em algum hexágono. O universo estava
235
“Yo afirmo que la Biblioteca es interminable. Los idealistas arguyen que las salas hexagonales
son una forma necesaria del espacio del espacio absoluto o, por lo menos, de nuestra intuición del
espacio. Razonan que es inconcebible una sala triangular o pentagonal. (Los místicos pretenden
que el éxtasis les revela una mara circular con un gran libro circular de lomo continuo, que da
toda la vuelta de las paredes; pero su testimonio es sospechoso; sus palabras, oscuras. Ese libro
cíclico es Dios.) Bástame, por ahora, repetir el dictamen clásico: La Biblioteca es una esfera cuyo
centro cabal es cualquier hexágono, cuya circunferencia es inaccesible”.
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justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança.
Naquele tempo falou-se muito das Vindicações: livros de apologia e de profecia,
que para sempre vindicavam os atos de cada homem do universo e guardavam
arcanos prodigiosos para seu futuro. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce
hexágono natal e precipitaram-se escadas acima, premidos pelo vão propósito de
encontrar sua Vindicação. Esses peregrinos disputavam nos corredores estreitos,
proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, jogavam os
livros enganosos no fundo dos túneis, morriam despenhados pelos homens de
regiões remotas. Outros enlouqueceram… As Vindicações existem (vi duas que se
referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez não imaginárias), mas os que as
procuravam não recordavam que a possibilidade de que um homem encontre a sua,
ou alguma pérfida variante da sua, é computável em zero.
236
E o texto prossegue em um tom cada vez mais apocalíptico. Refere que, “à
desmedida esperança, sucedeu, como é natural, uma grande depressão”,
favorecendo o aparecimento de seitas como a dos “Purificadores” –, cultos
como o do “Homem do Livro” –, sustentando a crença de que a desordem, as
peregrinações sem sentido, os fluxos migratórios, as discórdias heréticas, o
fanatismo, as epidemias e a loucura eram a norma na Biblioteca: “Afirmam os
ímpios que o disparate é normal e que o razoável (ou mesmo a humilde e pura
coerência) é uma quase milagrosa exceção”. Deste modo, avulta a imagem de uma
história universal caótica, trágica, feita de episódios desconexos, cuja realidade
incontornável é tão problemática quanto irredimível. Por último, o narrador,
resignado a assistir a este espetáculo, especula que a Biblioteca pode ser ilimitada
e periódica, fazendo com que, se um eterno viajante a atravessasse em qualquer
direção, comprovaria, ao cabo dos séculos, que os mesmos volumes se repetem,
na mesma desordem. Que, repetida, seria uma ordem, ou a Ordem: “Minha
solidão se alegra com esta elegante esperança”.
O conto nos oferece, portanto, a imagem de um mundo impossível de ser
fixado em uma imagem: um labirinto cujo centro pode estar em qualquer lugar, e
236
“Cuando se proclamó que la Biblioteca abarcaba todos los libros, la primera impresión fue de
extravagante felicidad. Todos los hombres se sintieron señores de un tesoro intacto y secreto. No
había problema personal o mundial cuya elocuente solución no existiera: en algún hexágono. El
universo estaba justificado, el universo bruscamente usur las dimensiones ilimitadas de la
esperanza. En aquel tiempo se habló mucho de las Vindicaciones: libros de apología y de profecía,
que para siempre vindicaban los actos de cada hombre del universo y guardaban arcanos
prodigiosos para su porvenir. Miles de codiciosos abandonaron el dulce hexágono natal y se
lanzaron escaleras arriba, urgidos por el vano propósito de encontrar su Vindicación . Esos
peregrinos disputaban en corredores estrechos, proferían oscuras maldiciones, se estrangulaban en
las escaleras divinas, arrojaban los libros engañosos al fondo de los túneles, morían despeñados
por los hombres de regiones remotas. Otros se enloquecieron… Las Vindicaciones existen (yo he
visto dos que se refieren a personas del porvenir, a personas acaso no imaginarias) pero los
buscadores no recordaban que la posibilidad de que un hombre encuentre la suya, o alguna pérfida
variación de la suya, es computable en cero”.
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não está em lugar nenhum. Uma desordem de hábitos, inibições, polêmicas, ritos,
vindicações, profecias, disparates, para a qual cada indivíduo é um novo começo,
uma nova possibilidade de interpretação do universo que pode ser uma
armadilha, pode ser um vazio, pode ser uma ordem –, sendo que todas elas
fracassam diante da enigmática e desconcertante falta de sentido do mundo.
Talvez estas observações sejam suficientes para que seja dado um passo adiante
na exposição planejada.
No início deste trabalho, vimos como o jovem Borges via na expansão da
cidade moderna um processo que ameaçava resultar no caos, contra o qual ele
mobilizava mitos locais capazes de gerar coesão cultural; na seqüência,
acompanhamos a maneira como ele abandonou e transformou mitos desta espécie
em motivo de horror e escárnio. Mas isto não quer dizer que a potência explosiva
do capitalismo deixasse de ser fonte de pesadelos. Portanto, meu argumento é que,
ao escrever um relato que remetia aos distúrbios das escrituras antigas, Borges
estava tratando da experiência trágica que melhor descrevia a condição do sujeito
ou, ao menos, a sua condição no ambiente contemporâneo. A evolução deste
quadro havia gerado reações, que projetavam sínteses idealistas, e prometiam uma
coincidência entre o mundo e a verdade – mas que, destituídas de senso de
realidade, transformavam sonhos e ambições quiméricas em programas políticos
voltados para a conformação do mundo nos moldes da Idéia. La biblioteca de
Babel” expõe a relativa insignificância destes projetos: no interior do texto, o
nazismo teria sido apenas um entre tantos disparates similares. Deste modo, o
universo da biblioteca estimula um discurso histórico que, nas palavras de Edward
Gibbon, seria “pouco mais do que o registro dos crimes, loucuras e desventuras da
humanidade”.
No estabelecimento de um diálogo com autores norte-americanos, porém, o
conto propõe inferências sócio-históricas específicas. De certo modo, os
procedimentos que serviram à imaginação do relato, em 1941, seriam apropriados
para tratar de transformações de longo prazo e grande impacto no panorama
ocidental, a terem sua importância confirmada quatro anos depois. Eles
implicavam tanto a ênfase na busca da salvação pessoal, ou na procura por
vindicações motivada por um deslocamento ético-vocacional, quanto a
inadequação do indivíduo, em um contexto no qual o êxito desta jornada tem
chances praticamente nulas de acontecer. Afinal, Borges veria aquelas
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transformações na posição de um egresso do século XIX, de um migrante recém-
chegado à América, de um personagem de Kafka, o que torna ainda mais
marcante o sentimento de inadequação. Sua situação profissional na época, os
anos de “sólida infelicidade”, como empregado de uma biblioteca suburbana,
apenas ressaltava este ponto. Por um lado, ela presumia o insucesso, então mais
do que consolidado, do plano de integrar-se a um esforço de construção nacional,
favorecido por seu temperamento e predileções, mas impraticável no período. Por
outro, ameaçava-o com o desalentador anonimato na metrópole em expansão,
onde as virtudes da modéstia eram revertidas em tibieza de caráter.
Este é um pano de fundo no qual quero situar ainda mais algumas
observações. Acredito que, a partir deste mesmo despojamento, e desta mesma
idiotia, podem ser extraídos novos direcionamentos para a compreensão da
trajetória intelectual e literária de Borges. Mas, para tanto, um enfoque maior deve
ser dado a personagens, um pouco diferentes dos fanáticos viajantes de
hexágonos, e com os quais o autor se identificava, ou que ele próprio viria a criar.
Pois, ao voltar-se principalmente para a ilustração de um modelo filosófico
mesmo que “modelar” e “filosófico” sejam adjetivos talvez pouco apropriados
neste caso –, “La biblioteca de Babel” se inclui naquela categoria dos textos de
Borges que não passam de caricaturas de idéias gerais mesmo que ele se refira
justamente a um contexto no qual as idéias gerais são o que menos importa.
Enfim, ele nos apresenta a biblioteca vista de cima, ainda que na perspectiva de
um observador isolado, pois o que sobressai são os movimentos históricos mais
amplos, de maneira que a idéia de história se torna um correspondente conceitual
da narrativa, entendida como o lugar onde a instabilidade e a variedade do mundo
lhe conferem um caráter trágico e problemático.
Agora, inclusive para caracterizar melhor o que foi dito a este respeito,
pretendo substituir a lente grande-angular, utilizada nesta descrição, por uma
teleobjetiva. Isto é, imaginar a possibilidade de enfocar um habitante da
biblioteca em sua travessia terrena. Dê-se a esta habitante o nome do protagonista
de um conto publicado por Nathaniel Hawthorne no século XIX, e comentado por
Borges em um de seus mais completos e extensos ensaios sobre um autor
específico, onde afirma que os vinte e quatro capítulos de The Scarlet Letter
continham várias passagens memoráveis, mas nenhuma delas o teria comovido
tanto como “a singular história de Wakefield”. A partir daí, a exposição feita
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sobre a palavra profética deve ganhar uma nova conotação, preparando a
continuidade do capítulo, no intuito de entender como surge uma via para a
mística e para a poética neste universo transtornado. Para tanto, a caracterização
de “Wakefield” como uma narrativa “comovente” tem certa importância.
Resumindo, Hawthorne relata com total objetividade a história de um
homem que decide ausentar-se de casa por uma semana, sem motivo aparente. Ele
aluga um apartamento próximo ao seu, onde o espera sua mulher, e igualmente
sem nenhuma razão manifesta prolonga esta situação por vinte anos. Enfim,
envelhecido e irreconhecível, resolve bater à porta de casa, onde o acreditam
morto – com o que se encerra a história. Borges refere-se a “Wakefield” como um
mistério cujas interpretações seriam inumeráveis, acrescentando em seguida que
“nesta breve e ominosa parábola que data de 1835 estamos no mundo de
Hermann Melville, no mundo de Kafka. Um mundo de castigos enigmáticos e
culpas indescifráveis”.
237
Na sequência, ele alude à ambientação comum a todos
estes autores, isto é, “as iras e castigos do Velho Testamento”, ou, segundo um
outro comentário seu sobre o autor tcheco: “Seu tema é a relação com um deus e
um cosmos incompreensíveis. O deus do final do livro de Jó, o deus que manda o
Leviatã, é o deus de Kafka”.
238
Mas, no texto sobre Hawthorne, ressalta também
as semelhanças do estilo daqueles escritores, quando inserem, no distanciamento
em relação aos seus personagens, uma certa compaixão, que o Deus do Velho
Testamento desconhece, da mesma forma como os infortúnios por eles sofridos
não atingem a dimensão catastrófica da profecia bíblica.
Pois indivíduos como Wakefield estão despojados tanto do conforto do lar,
quanto da possibilidade de se converterem em santos, seguindo um caminho ético
com retidão e heroísmo. Por isso Borges se refere à trivialidade do protagonista de
Hawthorne, cujo percurso é o de um homem comum, a quem tudo foi retirado, e
nada é dado em troca. Por um lado, é uma história de renúncia, martírio, privação,
que remete a lendas de homens que abandonam suas famílias, para enfrentarem
imensos mares e bibliotecas populosas; mas tudo se em umas poucas e
enternecedoras páginas, com a descrição de um sujeito qualquer, que parece
237
BORGES, J. L. “Nathaniel Hawthorne” [1948]. In: ____. Otras Inquisiciones. OC, vol. 2, p.
59.
238
Apud CASARES, A. B. Borges, p. 553.
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impulsionado pela mais débil e insensata das motivações, e se perde para nunca
mais se encontrar – na babélica metrópole moderna.
E, assim como “Wakefield” está para The Scarlett Letter na obra de
Hawthorne, “Bartleby” parece estar para Moby Dick na obra de Melville. Os
romances de ambos retratam os delírios e obsessões de heróis fanatizados, como o
capitão Ahab e o reverendo Dimmesdale, intransigentes em suas vocações, e
intrépidos em suas conquistas, capazes de se tornarem santos e heróis, mas
condenados à dúvida trágica, e à desumanidade do espaço em que transitam.
Integrando, neste aspecto, um corpus de lendas sobre a tensa relação entre o
indivíduo problemático e a afastada divindade que lhe atribui uma missão em um
universo caótico. Enquanto “Wakefield” e “Bartleby” parecem pressupor o caráter
vão de qualquer empresa deste tipo, ao tratar de indivíduos simplórios, incapazes
de dar um curso ético determinado às suas vidas. E, a partir deste ponto, acredito
que surgem novos elementos para discussão sobre a persona literária de Borges,
mais uma vez através do recurso à tradição cômica inglesa, mas, neste caso,
adaptada a outro contexto, e contando com outras matrizes análogas.
Pois, ao transferirem seus textos breves para a cidade, aqueles escritores as
situam em um terreno de criaturas desgarradas e sem qualquer vínculo com a
transcendência, na exposição de uma mundanidade concreta incapaz de suscitar
terror: como o Evaristo Carriego de “La canción del barrio”, eles são idiotas que
apelam para nossa piedade. Note-se também que, na relação entre “Wakefield”
e “Bartleby”, uma espécie de passagem do velho para o novo mundo:
Hawthorne situa sua narrativa em Londres, enquanto a de Melville acontece na
mais populosa Nova Iorque. Mas nem por isso ela deixa de aludir à influência do
legado britânico, da qual se desprende e ao mesmo tempo à qual recorre, no
tratamento dado à figura do excêntrico e absurdo escriturário de Wall Street, sem
família ou lugar no mundo, que se limita a dizer I would prefer not to sempre que
qualquer tarefa diferente das habituais lhe é requisitada. Eis o comentário de
Borges sobre o texto:
Bartleby define um gênero que, por volta de 1919, Franz Kafka reinventaria e
aprofundaria: o das fantasias da conduta ou do sentimento ou, como agora
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rudemente se diz, psicológicas. Além do mais, as páginas iniciais de Bartleby não
pressentem Kafka; antes, aludem ou repetem Dickens...
239
O influxo de Dickens nos escritos de Melville é também identificável em
contos como “The two temples” e “Poor man’s pudding and rich man’s crumbs”,
o que converte sua obra em um lugar em que se a mesma cisão observada no
primeiro romance de Kafka. De um lado, está o homo domesticus, humilde e em
busca de uma posição na ordem do mundo do outro o mundo enorme e
desordenado da metrópole contemporânea. E, transferindo a constatação de
Borges do final para o início do relato, Giles Deleuze elaborou um raciocínio que
ecoa não somente o artigo do argentino sobre “Bartleby”, mas nos faz recordar
igualmente seu comentário sobre América:
Tudo começa como num romance inglês, em Londres e de Dickens. Mas a cada
vez algo estranho se produz e turva a imagem, afeta-a de uma incerteza essencial,
impede que a forma “pegue”, mas também desfaz o sujeito, lança-o à deriva e
desfaz qualquer função paterna (...) Tudo começava à inglesa, mas continua-se à
americana, seguindo uma linha de fuga irresistível.
240
É uma questão de ênfase: Borges se surpreende ao ainda encontrar traços de
Dickens no final da história, e Deleuze mostra como estes traços serão apenas
débeis reflexos de uma luz evanescente. Mas o texto do ensaísta francês
desenvolve com maior detalhe as implicações do fenômeno, apontando para o
aspecto irredutível da originalidade do personagem de Melville, expressa na
fórmula repetida de sua recusa, um murmúrio absolutamente idiossincrático, que
desafia qualquer explicação psicológica ou interpretação formal. Trata-se de uma
voz à qual tudo o que resta é postular-se como enigma, e que como tal se define,
isto é, como a impossibilidade de toda definição. Enfim, nesta mísera afirmação
da individualidade, através de uma misteriosa negativa, residiria uma negação
primária de todos os códigos morais, modelos estéticos ou profecias éticas
positivas que servem à organização de nações, cosmologias ou doutrinas.
239
“Bartleby define ya um género que hacia 1919 reinventaría y profundizaría Franz Kafka: el de
las fantasías de la conducta y del sentimiento o, como ahora malamente se dice, psicológicas. Por
lo demás, las páginas finales de “Bartleby” no presienten a Kafka; s bien aluden o repiten a
Dickens…”.
240
DELEUZE, G. “Bartleby, ou a fórmula”. In: ____. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart.
São Paulo: Editora 34, 1997, p. 80-103.
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Daí a novidade que um “Wakefield” ou um “Bartlebypodem representar
na história da literatura, no recurso a um esquema de um deslocamento profético,
que pode levar ao ímpeto conquistador ou a grandes crises de consciência, mas
neste caso resulta apenas na mais pura perplexidade do indivíduo. Um indivíduo
sem um Lar, que o defina segundo seu lugar na família, sem um Estado, que lhe
atribua encargos e tarefas, sem uma Raça, que o acolha no seio da terra, e sem um
Deus que sentido à sua trajetória mundana. Chegamos assim àquele que talvez
seja o tema mais característico da literatura norte-americana do século XX: a
solidão. Pois, nos Estados Unidos, a expansão das cidades, o capitalismo
financeiro e a transfiguração da ética vocacional em busca de lucro pessoal teriam
criado multidões urbanas e anônimas, que o século XIX europeu apenas viu surgir
dentro de certos limites. Mas nem por isso esta deixava de ser a direção em que
seguiam outras metrópoles. É o que se depreende de um artigo intitulado Los
escritores argentinos y Buenos Aires”, publicado por Borges na a revista El Hogar
em fevereiro de 1937:
Nós portenhos carecemos de todo encanto exótico e somos demasiado numerosos
para a prestação de socorros mútuos. Um homem pode esperar que outro homem o
ajude; ninguém pode esperar que oitocentos mil homens o ajudem. Somente na
Boca do Riachuelo organizou-se uma espécie de clã: isto é, no único ponto de
Buneos Aires que em nada se parece com Buenos Aires, no único bairro onde
concorrem turistas de outros bairros... O escritor portenho que não teve a precaução
de ser da Boca essozinho. Nem mesmo os prestígios da miséria podem salvá-
lo.
241
A partir deste ponto, pode ser retomada a questão da identidade de Borges
como escritor moderno, tendo em vista o fracasso de sua identificação com todos
os paradigmas estruturantes do mundo presentes em sua obra. O isolamento e a
miséria são causa e efeito desta impossibilidade: eles o tornam incapaz de
identificar-se com uma totalidade, e qualquer tentativa neste sentido resulta em
um retorno ao começo, onde se instala a perplexidade original do homem diante
241
BORGES, J. L. “Os escritores argentinos e Buenos Aires”. In: ____. Textos Cativos. Trad.
Ségio Molina. OC [edição brasileira], vol. 4, p. 293-5. “Los porteños carecemos de todo encanto
exótico y somos demasiados para el préstamo de socorros mutuos. Un hombre puede esperar que
lo ayude otro hombre; nadie puede esperar que lo ayuden ochocientos mil hombres. Sólo en la
Boca del Riachuelo se ha organizado una especie de clan: vale decir, en el único punto de Buenos
Aires que en nada se parece a Buenos Aires, en el único barrio al que concurren turistas de otros
barrios… El escritor porteño que no ha tomado la precaución elemental de ser boquense está solo.
Ni siquiera los prestigios de la miseria pueden salvarlo”. BORGES, J. L. “Los escritores
argentinos y Buenos Aires”. [El Hogar, 12 de febrero de 1937]. In: ____. Textos Cautivos. OC,
vol. 4, p. 272-4.
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de um mundo que não aceita qualquer ordenamento. Ou, como em uma frase do
diário de Kafka: “A infelicidade de estar sempre começando; a falta de ilusões
sobre o fato de que tudo é um princípio e nem sequer um princípio”, o que explica
uma observação de Walter Benjamin, segundo a qual os personagens de Kafka
parecem sempre esgotados, e ao mesmo tempo no início de uma longa jornada.
242
No século XX, o mundo tornou-se incrivelmente velho, tendo acumulado em sua
história todo tipo de doutrina religiosa e sistema filosófico para explicar o
inexplicável. No entanto, seria preciso começar novamente, a partir do instante em
que nada alcança dimensões doutrinárias ou filosóficas, isto é, aquele que instaura
a liberdade do homem no mundo.
Wakefield, neste enquadramento, é a expressão exata de algo que é um
começo e nem sequer um começo, dada a total idiossincrasia de seu ato, enquanto
a fala de Bartleby revela uma espécie de idiotia adâmica, na desarticulada
pronúncia de uma linguagem bruta e original. Por outro lado, em se tratando de
Borges, estas constatações convergem para a releitura que ele faria do papel de
Macedonio Fernández, como sua principal referência intelectual no âmbito
argentino. Pois Macedonio, de modo análogo ao escritor retratado em “Examen de
la obra de Herbert Quain” (1941), também uma narrativa auto-biográfica de
Borges, estava sempre começando projetos literários que nunca terminava, como
que encantado pelo possibilidade de conferir ao mundo todas as formas
imagináveis, e simultaneamente desnorteado com a liberdade que as possibilitava.
Este traço pessoal viria a ser mais relevante para Borges do que quaisquer escritos
preservados do autor. É possível depreender um interesse de tal natureza da
rememoração anedótica de um episódio singular, publicada originalmente em
inglês:
Macedonio gostava de compilar pequenos catálogos orais de pessoas de gênio, e
em um deles eu fiquei surpreso de encontrar o nome de uma muita amável dama
que conhecíamos, Quica González Acha de Tomkinsom Alvear. Olhei para ele
boquiaberto. Por algum motivo eu não achava que Quica estivesse à altura de
Hume e Schopenhauer. Mas Macedonio disse, “Os filósofos estão sempre fazendo
tentativas de enteder o universo, enquanto Quica simplesmente o sente e o entende.
Quando ele se virava para ela e perguntava, “Quica, o que é o Ser?”, Quica
respondia, “Eu não sei do que você está falando, Macedonio”. “Viu só?”, ele então
dizia para mim, “ela entende tão perfeitamente que não chega sequer a perceber
242
Cf. BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte” [1934].
In: ____. Magia e Técnica, Arte e Política ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.
Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 137-164.
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que estamos perplexos [she understands so perfectly that she cannot even grasp the
fact that we are puzzled]”.
243
Amazed, puzzled, stupefied: estão são termos que, em seus equivalentes em
espanhol, são freqüentes nos comentários de Borges sobre Melville e Kafka.
Quanto aos poemas de Chesterton, em que o autor encontrou um anúncio desta
linhagem, ao dizer que o autor inglês antecipava a obra de Kafka, ele afirmou
também que estavam imbuídos de um constante assombro com a seguinte
percepção: “Há algo mais terrível e maravilhoso do que ser devorado por um
dragão; é ser um dragão. algo mais estranho que ser um dragão: é ser um
homem”.
244
Este estranhamento seria a primeira reação de assombro do sujeito solitário
e aturdido com a obra delirante da criação. Porém, qualquer retórica elevada corre
o risco de afastar-nos do viés cômico que perpassa todos seus comentários a este
respeito, no qual se insere uma nota de desesperança e enternecimento, conforme
a ressonância trágica de eventos iniciais e apaixonada glória de desfechos
redentores estejam banidos da face da terra. Get in trouble, a orientação básica da
comédia física para seus atores, parece então bastante adequado para tratar da
experiência do homem na modernidade, ao postular o universo não como uma
ordem, não como uma armadilha, tampouco como um caos, mas como uma
grande encrenca. Não obstante, no realismo estritamente concreto e mundano daí
resultante, pode persistir o real como um mistério, em função dos lampejos de
comoção e enlevo que a realidade do sujeito desamparado por si só pode acarretar.
Tudo isso, enfim, sugere uma referência à figura de Sócrates, de acordo com
os elementos patéticos com que foi descrita sua pobreza, sua modéstia e suas
excentricidades. E, de fato, em consonância com o privilégio conferido à palavra
oral por Macedonio Fernández, Borges o associava tanto ao filósofo quanto a
Jesus Cristo, rememorando o círculo de jovens que se reunia ao redor do mestre
243
“Macedonio was fond of compiling small oral catalogs of people of genius, and in one of them
I was amazed to find the name of a very lovable lady of our acquaintance, Quica González Acha
de Tomkinsom Alvear. I stared at him open-mouthed. I somehow did not think Quica ranked with
Hume and Schopenhauer. But Macedonio said, “Philosophers have had to try and understand the
universe, while Quica simply feels and understands it”. He would turn to her and ask, “Quica,
what is Being?”. Quica would answer, “I don’t know what you mean, Macedonio”. “You see”, he
would say to me, “she understands so perfectly that she cannot even grasp the fact that we are
puzzled”. BORGES, J. L. An Autobiographical Essay, p. 230.
244
BORGES, J. K. “Modos de G. K. Chesterton”. [Sur, Buenos Aires, año VI, n. 22, Julio de
1936]. In: ____. Borges en Sur, p. 23.
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em sua juventude.
245
“Seu gênio sobrevive em poucas páginas escritas; sua maior
influência foi de natureza socrática. Eu realmente o amei, de minha parte idolatria,
tanto quanto outras”, ele escreveria em suas memórias.
246
E a voz de Macedonio
foi a lembrança do mestre que ele reteve com maior carinho, de modo que, ao
redigir um prólogo para uma reunião de seus escritos, discorreu sobre as
modulações interrogativas, a generosa moderação, e a eloqüência de poucas
palavras, que conformava sua fala, sem que ele jamais pontificasse, ou lançasse
mão de afirmações magistrais. Mais adiante, Borges recorda também a
especulativa solidão de seu personagem, em detalhes biográficos comoventes e
circunstanciais:
O tom habitual era de cautelosa perplexidade (…) Era como se Adão, o primeiro
homem, pensasse e resolvesse no Paráiso os problemas fundamentais (...) O acaso
o levava a quartos modestos, sem janelas ou com uma janela que dava para um
sufocado pátio interno, em pensões do Once ou do bairro dos Tribunales; eu abria
a porta e aí estava Macedonio, sentado em uma cama ou em uma cadeira de
espaldar reto (...) Dava-me a impressão de não ter se movido durante horas e de
não sentir o encerramento, um pouco mortiço, do ambiente (...) A dietética e as
guloseimas o interessavam.
247
Para o prosseguimento do trabalho, será preciso reter, de caracterizações
como esta, as nuances anedóticas, o olhar enternecido, a delicadeza do estilo.
Pretendo assinalar que, desfeitas todas as convicções e sistemas doutrinários,
brota daí a via para uma poética, abandonada por Borges por volta de 1930, e
recuperada após 1945, sem deixar de ter uma função política específica. Enfim,
para finalizar esta seção, deve ficar indicado que, ao referir-se a Wakefield,
Bartleby ou Macedonio, Borges estava falando também talvez principalmente
245
Sobre esta apropriação do socratismo, e relação entre as figuras de Sócrates e Cristo, Pierre
Hadot oferece uma excelente introdução, que remete a uma bibliografia mais vasta. Ver “A
Figuras de Sócrates”. In: HADOT, Pierre. O Que é Filosofia Antiga? Trad, Dion Davi de Macedo.
São Paulo: Edições Loyola, 1999 [1995], p. 47-68.
246
BORGES, J. L. An autobiographical essay, p. 230.
247
BORGES, J. L. “Macedonio Fernández”. In: ____. Prólogo com um Prólogo de Prólogos.
Trad. Josely Vianna Baptista. OC [edição brasileira], vol. 4, p. 58-67. “El tono habitual era de una
cautelosa perplejidad (...) Era como si Adán, el primer hombre, pensara e resolviera en el Paraíso
los problemas fundamentales (…) El azar lo llevaba a piezas modestas, sin ventanas o con una
ventana que daba a un ahogado patio interior, en pensiones del Once o del barrio de los
Tribunales; yo abría la puerta y ahí estaba Macedonio, sentado en la cama o en una silla de
respaldo derecho. Me daba la impresión de no haberse movido durante horas y de no sentir no
encerrado, y un poco mortecino, del ámbito (…) La dietética y las golosinas lo interesaban”.
BORGES, J. L. “Prólogo”. [FERNÁNDEZ, M. Macedonio Fernández. Buenos Aires: Ediciones
Culturales Argentinas, Biblioteca del Sesquicentenario, 1961]. In: ____. Prólogo con un Prólogo
de Prólogos. OC, vol. 4, p. 57-65.
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286
de si mesmo. Na verdade, ele estava sempre falando de si mesmo. Uma das
poucas vezes que o admitiu – demonstrando certo desalento com o fato de que isto
fosse tão pouco claro – foi no seguinte diálogo:
RONALD CHRIST: Alguns leitores acham que suas histórias são frias, impessoais,
um pouco como as dos novos escritores franceses. Era essa sua intenção?
JORGE LUIS BORGES: Não (triste). Se isso aconteceu, foi por falha de minha
parte, porque eu as senti profundamente. E as senti tão profundamente que as
contei, bem, usando símbolos estranhos, para que as pessoas não descobrissem que
todas elas eram mais ou menos autobiográficas. As histórias eram sobre mim, sobre
minhas experiências pessoais. Deve ser a timidez inglesa, não é?
248
E uma história em que o autor parece tratar mais abertamente de um
estado de ânimo pessoal, mesmo que mais uma vez através de um estranho
símbolo. Refiro-me a um relato publicado em 1948, cujo narrador é o Minotauro.
Em sua leitura, podem ser recuperados alguns dos temas tratados nesta etapa: o
mundo como um labirinto incompreensível e ilimitado, a inadequação de um
sujeito estupidificado com a existência, e o afetuoso humor que pode ser gerado
nestas circunstâncias. Sobre o protagonista da narrativa, Borges afirmaria que se
trata de um freak, de um half-wit, uma criatura bruta porém simplória, de gestos
grosseiros e desastrados, que maneja uma linguagem peculiar. E, relacionando a
narrativa à sua sensibilidade na época, ele também observou: “É uma história
triste, sobre a solidão e a estupidez...”.
249
“La casa de Astérion” parece estar para “La bibilioteca de Babel”, na obra
de Borges, assim como “Wakefield” e “Bartleby” estão para os grandes romances
de Hawthorne e Melville. É um discurso de três ou quatro páginas, proferido por
um monstro infeliz, que habita um labirinto desolado. Na abertura, ele diz
conhecer as acusações de soberba e misantropia que lhe dedicavam seus
detratores, mas declara que as portas de sua casa estavam abertas a quem quisesse
entrar embora o espanto que sua figura infundia nos rostos dos homens, e o
248
RONALD CHRIST: Some readers have found that your stories are cold, impersonal, rather like
some of the new French writers. Is that your intention?
JORGE LUIS BORGES: No. (sadly). If that has happened, it is out of mere clumsiness, because I
have felt them very deeply. I have felt them so deeply that I have told them, well, using strange
symbols, so that people might not find out that they were all more or less autobiographical. The
stories were about myself, my personal experiences. I suppose it’s the English diffidence, no?
CHRIST, R. “Interview”. In: ____. The Narrow Act: Borges’ Act of Allusion. Preface by Jorge
Luis Borges. New York: Lumen Books, 2005 [1969], p. 281-2.
249
Apud RODRÍGUEZ MONEGAL, E. Jorge Luis Borges: a literary biography. New York: E. P.
Dutton, 1978, p. 45.
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pânico que ele próprio sentira ao enfrentar a multidão das ruas, fossem
desfavoráveis à socialização. “O fato é que sou único [El hecho es que soy
único]”, proclama o narrador. “Não me interessa o que um homem possa
transmitir a outros homens; como o filósofo [Sócrates], penso que nada é
comunicável pela arte da escritura”. Daí a oralidade empregada no texto, em que
Astérion prossegue descrevendo seus intermináveis dias e noites, nos quais, como
uma criança, improvisava distrações e brincadeiras para evitar a solidão
(distrações e brincadeiras que, uma vez terminadas, o faziam sentir-se mais
infeliz e só).
“Não apenas imaginei estes jogos; também meditei sobre a casa”, ele
continua, referindo-se aos corredores, galerias e pátios que teria explorado desde a
infância. Estes se sucediam em arbitrárias e incontáveis composições de catorze
elementos; e, por muito tempo, a eles estivera circunscrito seu conhecimento do
mundo. Até que uma noite, arriscando-se no exterior do labirinto, tinha avistado
um templo e o mar, para depois voltar os olhos ao céu estrelado, e entender que
também eram catorze eram infinitos os mares e os templos: “Tudo está muitas
vezes, catorze vezes, mas há duas coisas no mundo que parecem estar só uma vez:
acima, o intrincado sol; abaixo, Astérion”. O trecho em que este raciocínio se
desdobra é a melhor ilustração do que de simultaneamente simplório, afetado e
solene no discurso, que termina com as conjecturas de Astérion sobre o próprio
destino. Ele então diz aguardar que sua salvação chegasse pelas mãos de um
redentor anunciado pelos antigos. E, no final, Borges transfere a narração para
fora da casa de Astérion, com uma breve cena em que Teseu, ao sair do labirinto,
conta a Ariadne que o Minotauro sequer teria se defendido antes de morrer.
Mas, para seguir adiante e concluir esta exposição, é necessário parar no
ponto em que uma redenção desta natureza não teria ocorrido para o autor,
segundo a identidade literária que ele então formulava. E saber que, se há algo de
sentimental no viés interpretativo adotado, é porque a prosa de Borges propõe esta
aproximação, em que pese toda a parcimônia e o understatement que a configura,
convidando o leitor a intimar com seus personagens. A solidão, os infortúnios, as
trapalhadas e a debilidade do Minotauro são componentes do retrato do escritor
exilado, sem rumo e sem origens; também o são o humor compassivo, a
sensibilidade e a ternura, a solenidade e a idiotia. Isto é o que havia restado das
desmedidas esperanças do jovem ensaísta, da confiança do orador radiofônico, do
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288
sarcasmo do satirista, e das energias dos viajantes de hexágonos. Falta saber
como, justamente a partir destas qualidades e limitações, outras ambições pessoais
e literárias podiam motivar novos empreendimentos na carreira de Borges.
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289
5.2
O Minotauro Apaixonado
Coração, bússola doida.
Dinis Machado, O que Diz Molero
Em fevereiro de 1945, no primeiro número de uma nova revista de Buenos
Aires, foi publicada uma entrevista com Jorge Luis Borges, composta por
perguntas simples e diretas, acerca do ofício literário, de modo que pudessem dar
início a uma série de matérias, nas quais outros escritores locais respondessem às
mesmas indagações. Diante da primeira questão, sobre os motivos que o levavam
a escrever, Borges afirmou: “Porque não posso não escrever sem este sentimento
de desventura que engendram a covardia e a deslealdade”. Nem por isso, de
acordo com o prosseguimento da resposta, podemos inferir que a lealdade e a
coragem com que ele teria enfrentado este destino houvessem sido causa de uma
bem-aventurança. Com algum desânimo, o autor diz acreditar-se um bom inventor
de argumentos e tramas, mas que lhe fora vedada a “espontânea e negligente”
facilidade de outros escritores, os quais, estes sim, podiam ter a literatura como
uma fonte de felicidade. Por outro lado ou exatamente por este motivo –, à
segunda pergunta da entrevista, sobre qual seria sua maior ambição literária,
Borges respondeu:
Escrever um livro, um capítulo, uma página, um parágrafo, que seja tudo para
todos os homens, como o Apóstolo (1 Coríntios 9:22); que prescinda de minhas
aversões, de minhas preferências, meus costumes; que nem sequer aluda a este
contínuo J. L. Borges, que surja em Buenos Aires como poderia ter surgido em
Oxford ou Pérgamo; que não se alimente de meu ódio, de meu tempo, de minha
ternura; que reserve (para mim como para todos) um incerto ângulo de sombra; que
corresponda de algum modo ao passado e até mesmo ao secreto porvir; que a
análise não possa esgotar; que seja a rosa sem porquê, a rosa platônica intemporal
do Viajante Querubínico de Silesius.
250
250
“Escribir un libro, un capítulo, una página, un párrafo, que sea todo para todos los hombres,
como el Apóstol (1 Corintios 9:22); que prescinda de mis aversiones, de mis preferencias, de mis
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290
a última pergunta era referente aos textos que o escritor estaria
preparando naquele momento. Borges diz que, para um remoto e problemático
futuro, imaginava uma narrativa que conciliasse “os hábitos literários de Franz
Kafka e Walt Whitman”. Mas, no porvir imediato, seguiria com suas invenções
habituais, como, por exemplo, um conto fantástico sobre uma cidade de imortais
(analisado na seção 3.2.2), do qual contava com os primeiros esboços, e talvez
mais relatos policiais paródicos, a serem escritos em colaboração com Adolfo
Bioy Casares.
O que nosa oportunidade de fazer algumas reflexões. Em primeiro lugar,
a data da entrevista não deve ser ignorada: suas perguntas e respostas são
condizentes com uma sensação de abertura para o futuro, de ressurgimento de
esperanças e expectativas, que o final da Segunda Guerra traria para populações e
indivíduos de diversas partes do globo. O rosto deste porvir podia ainda ser um
enigma, mas o principal era que sua mera possibilidade tivesse sido recuperada,
depois de um momento em que a circularidade mítica ameaçara tomar o lugar da
história. Tendo em vista o que foi exposto no segundo e terceiro capítulos, pode-
se deduzir que, no humor e nos planejamentos de Borges, este fato teve uma
importante repercussão.
No entanto, ele estava então com 45 anos, e havia forjado uma identidade
intelectual e literária justamente durante a longa crise do século XX, uma
identidade que reconhecia mais com resignação do que com contentamento. Em
uma época de invenções esdrúxulas e racionalidade deficiente, tornara-se ele
próprio um produtor de complexos e escandalosos artefatos formais, construídos
sobre o vazio deixado pela falência da razão. Sem escapar aos excessos
esteticistas e vitalistas de seu tempo, dedicara-se à tarefa de exagerá-los ainda
mais, revelando o que havia de monstruoso, quimérico ou banal no resultado dos
sonhos de uma arte e de uma sociedade regeneradas. Desde logo, quando, naquele
momento, Borges pensava quais seriam seus próximos trabalhos, referia-se a
costumbres; que ni siquiera aluda a este continuo J. L. Borges; que surja en Buenos Aires como
hubiera poder surgido en Oxford o en rgamo; que no se alimente de mi odio, de mi tiempo, de
mi ternura; que guarde (para como para todos) un ángulo cambiante de sombra; que
corresponda de algún modo al pasado y aún al secreto porvenir; que el análisis no pueda agotar;
que sea la rosa sin por qué, la platónica rosa intemporal del Viajero querubínico de Silesius”.
BORGES, J. L. “De la alta ambición de el arte”. [Latitud, Buenos Aires, año 1, n. 1, febrero de
1945]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 344-5.
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contos que, em grande medida, preservariam hábitos e procedimentos
consolidados em sua carreira.
No que diz respeito a outras alternativas isto é, aquelas que surgiram com
o processo de distensão social e política no cenário internacional –, elas decorriam
de uma libertação, mas uma libertação que não necessariamente acarretava o
prospecto de um verdadeiro renascimento artístico. Na seção anterior, procurei
esboçar as condições da emergência de uma poética no contexto do pós-guerra,
quando se confirmou o poder de uma força configuradora da nova imagem do
mundo, mas as conclusões daí resultantes não parecem muito promissoras. Sem
dúvida, estando finalmente livre de apreensões e exigências imediatas, relativas ao
ambiente de um quase inédito transtorno das consciências e instituições, Borges
podia especular sobre o dia em que realizaria uma obra gloriosa, capaz de
justificar sua existência, com certa exaltação e jubiloso fervor. Mas isto
permanecia reservado a um horizonte longínquo, quando se desse o mágico e
surpreendente encontro de uma frase, ou um verso, no qual suas idiossincrasias e
aversões não tomassem parte, tendo um significado simbólico universal.
Enquanto, por ora, ele teria que aceitar ser idiossincrático, balbuciante, reiterativo
e só. Ele teria que aceitar sua individualidade, desprovida da alegria e da beleza
dos grandes achados estéticos. Ou, como diz um famoso trecho de “Nueva
refutación del tiempo” (1946): “O mundo, desgraçadamente, é real; eu,
desgraçadamente, sou Borges”.
251
E ser Borges, em certos aspectos, era ser um
desastre.
Ainda assim, para um futuro talvez menos distante do que aquele, mesmo
que “remoto e problemático”, era possível imaginar uma narrativa diferente de
quase tudo o que havia produzido até aquele instante. Ao mencioná-la, Borges
acrescentou que não podia ser mais explícito na descrição de sua idéia inicial; a
ressalva se justifica pela estranheza que o projeto, naturalmente, podia suscitar
nos leitores. Tratava-se de conciliar, em uma única história, um dos mais
angustiados escritores da literatura moderna com o mais feliz, exaltado e
eloqüente poeta da experiência da alta modernidade. O primeiro deles, Franz
Kafka, iniciara sua obra com um movimento que, ao inserir zonas de sombra, e
inquietantes demoras, na reprodução de inocentes alegrias e sucessos, tratava de
251
BORGES, J. L. “Nueva refutación del tiempo”. In: ____. Otras Inquisiciones. OC, vol. 2, p.
143-158.
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292
uma ordem em vias de fragmentar-se, situando nos Estados Unidos um primeiro
sentimento de dúvida quanto à sua sobrevivência, o que em seus livros posteriores
seria representado de formas ainda mais labirínticas. Já Walt Whitman, o “poeta
da democracia americana”, nas palavras de Borges, pressupunha esta
fragmentação, havia nascido em meio a este tumulto, regozijava-se com suas
possibilidades, identificava-se com ele, e cantava-o com imensa satisfação em
seus versos. Em suma: por absurdo que possa parecer, o projeto literário de
Borges trataria de como um homem pode ser feliz e valoroso no mundo de Kafka.
Ao contrário de tantas outras peças planejadas e abandonadas por ele, esta
ganhou corpo e nome, convertendo-se em um dos seus mais célebres contos, que
seria publicado pela primeira vez na revista Sur de setembro de 1945. Partindo
destas observações, meu propósito, nesta subdivisão do trabalho, é o de oferecer
maiores elementos de pesquisa e referências teóricas para uma determinada leitura
do relato. E, se afirmei que o texto se distinguiria de quase todos os outros que ele
havia publicado, é porque tenho em mente uma narrativa anterior, que pode
orientar o início da exposição do argumento. Ela apareceu em 1936, na forma de
um anexo à Historia de la Eternidad, e integra um conjunto de escritos
relacionados àquela mais alta ambição literária de Borges, mencionada no início
da seção, como etapas preparatórias ou artigos de especulação sobre o tema. Mas,
naquele mesmo ano, como foi verificado, quaisquer maiores desdobramentos de
sua trajetória neste sentido foram interrompidos pelo agravamento da conjuntura
política, para serem retomados somente após 1945. Deste modo, cabe fazer uma
breve paráfrase, para depois explicar a inserção do texto no assunto tratado neste
capítulo.
O conto se chama “El acercamiento a Almotásim”, sendo apresentado como
uma descrição e um comentário do romance The Approach to Al-Mu’tasim,
supostamente escrito pelo advogado indiano Mir Bahadur Alí. Sobre o
“protagonista visível” do romance de Bahadur, tal como imaginado por Borges,
ficamos então sabendo que é um estudante de direito, que se envolve em um
tumulto civil entre muçulmanos e hindus nas ruas de Bombaim, e atinge um
inimigo. Em seguida, ele “pensa que se mostrou capaz de matar um idólatra, mas
não de saber com segurança se o muçulmano tem mais razão do que o idólatra”.
Inicia-se, com isso, sua peregrinação incerta, ou, mais precisamente, a narração de
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293
“uma biografia que parece esgotar os movimentos do espírito humano”. Para
resumir,
o argumento é este: um homem, o estudante incrédulo e fugitivo que conhecemos,
cai entre pessoas da classe mais vil e se acomoda a elas, numa espécie de certame
de infâmias. Subitamente como o milagroso espanto de Robinson ante a pegada
de um humano na areia percebe certa mitigação dessa infâmia: uma ternura,
uma exaltação, um silêncio, num dos homens detestáveis (…) Repensando o
problema, chega a uma convicção misteriosa: “Em algum ponto da terra um
homem de quem procede essa claridade; em algum ponto da terra está o homem
que é igual a essa claridade”. O estudante resolve dedicar sua vida a encontrá-lo.
252
O romance terminaria no momento em que o estudante encontra uma porta,
e ouve a voz de “Almotásim” instando-o a passar. Seguem-se as observações de
Borges. Comparando duas edições diferentes do livro, ele na primeira a idéia
pouco estimulante de um Deus unitário, mas considera esta outra: “A idéia de que
o Todo-Poderoso está em busca de Alguém, e este Alguém de Alguém superior
(ou simplesmente imprescindível e igual), e assim até o fim ou melhor, o sem-
fim do Tempo, ou em forma cíclica. Almotásim quer dizer, etimologicamente,
‘o buscador de Amparo”. Em uma nota comparativa, acrescenta ainda uma
menção uma lenda registrada por um místico persa, sobre uma população de
pássaros que, cansada de sua anarquia, parte em uma longa jornada em busca do
Simurg, o rei de todos os pássaros, para enfim descobrir que “eles são o Simurg e
que o Simurg é cada um deles”.
Temos, desta maneira, os seguintes componentes narrativos: um herói que,
impulsionado por um questionamento ético, abandona seu lar, sua família, seus
deuses caseiros, lançando-se em uma viagem de salvação pessoal; um mundo
tumultuado, marcado por uma “vertiginosa pululação de dramatis personae”,
como o descreve o comentarista, onde o encontro de uma tal vindicação parece
impossível; e um desfecho levemente reconfortante, que se aproxima da exaltação
mística, mas se detém diante da porta onde esta felicidade poderia ser encontrada.
252
BORGES, J. L. “A aproximação a Amotásim” [1936]. In: ____. História da Eternidade. Trad.
Carmem Cine Lima. OC [edição brasileira], vol. 1, p. 460-1. “El argumento es éste: Un hombre, el
estudiante incrédulo y fugitivo que conocemos, cae entre gente de la clase más vil y se acomoda a
ellos, en una especie de certamen de infamias. De golpe – como el milagroso espanto de Robinson
ante la huella de un pie humano en la arena percibe alguna mitigación de esa infamia: una
ternura, una exaltación, un silencio, en uno de los hombres aborrecibles (...) Repensando el
problema, llega a una convicción misteriosa: En algún punto de la tierra hay un hombre de quien
procede esa claridad; en algún punto de la tierra está el hombre que es igual a esa claridad. El
estudiante resuelve dedicar su vida a encontrarlo”.
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294
No primeiro movimento, repercute o deslocamento causado pela profecia, a
dúvida em relação aos códigos morais estabelecidos, mas com uma tão enigmática
postulação de sua causa original, que o torna semelhante ao de um Wakefield. Na
visão geral do universo a ser percorrido pelo herói, estamos na biblioteca, na
caótica metrópole, na violenta e desordenada história. E, no final, estamos diante
de uma porta da qual se imagina que seja sucedida por outras portas,
indefinidamente, todas elas deixando entrever o brilho de uma fonte de luz, da
qual emana a possibilidade de uma reconciliação entre o homem e o mundo. O
protagonista da história se detém em frente a esta porta. Neste ponto, estamos em
“Diante da lei”, de Kafka.
Contudo, se o caminho da “aproximação a Almotásim” não é percorrido
com o mesmo sucesso alcançado em lendas sobre santos e heróis, sendo pontuado
por embaraços e hesitações, e interrompido antes da conquista da graça, ele
tampouco nos leva a um final tão desanimador quanto o de Joseph K.. Traz
indícios de que a mitigação da infâmia, a reparação da culpa, uma eliminação da
distância entre o indivíduo e a lei, e portanto a suspensão de seu isolamento, é
algo factível de acontecer, sob a forma de pequenos milagres inesperados: um
silêncio, uma ternura, uma exaltação. Estes surgem como que espalhados pelo
orbe sem muito critério, e exigindo uma atenta distinção de sua emergência em
meio à bagunça; mas tornam identificáveis breves instantes de felicidade, em que
o tragicômico desconcerto do protagonista encontra uma fugaz sensação de
amparo. Por outro lado, a sugestão da infinita sucessão de divindades aponta para
o fato de que, neste mundo, toda conquista é também uma perda, de que em lugar
algum o buscador reencontrará seu lar definitivo. A não ser que, como os pássaros
lendários, venha a descobrir que o mundo inteiro é sua casa, em toda a sua
anarquia e multiplicidade, pois na realidade concreta das coisas e dos seres reside
um jubiloso mistério, e seu próprio entorno imediato retém todo o segredo da
criação.
“El acercamiento a Almotásim” compreende praticamente todos os tópicos
vinculados à minha proposta de exame de “El Aleph”, através de alusões e
recursos textuais que receberiam ênfases um pouco diferentes anos depois.
253
253
Os próximos aspectos a serem destacados repercutem a constatação da importância da gnose no
pensamento de Borges, ressaltada por Luiz Costa Lima, em “Aproximação de Jorge Luis Borges”
[1984]. In: ____. Trilogia do Controle. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 683-724, e George
Steiner, em “Language and gnosis”. In: ____. After Babel: aspects of language and translation.
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295
Antes de tudo, o conto ressalta a relação entre a teologia negativa e a gnose,
presente no pensamento de Kafka, e na tradição em que ele se sustenta, que
considera o segundo termo uma via de acesso ao conhecimento e à graça em um
mundo decaído. Nesta tradição, o autor tcheco é talvez um dos mais radicais
artífices de um mundo complexo e vazio, um mundo de tumultos e ausências, em
que a lei só alcança a realidade como reflexos de reflexos de uma absolutamente
distante fonte de luz. Mas alcança, mesmo que de forma enviesada: o problema é
que seus protagonistas estão tão ansiosos para resolver de vez seus processos, ou
chegar ao centro do castelo, que ficam cegos para as possibilidades de um
entendimento mútuo em meio ao desespero. Creio ser possível identificar, nos
romances de Kafka, quase imperceptíveis lampejos de solidariedade, nos olhares e
palavras das criaturas mais corrompidas e vis (afinal, como notou Erich Heller,
todas as criaturas são corrompidas e vis no mundo de Kafka). Em especial as
mulheres a esposa de um oficial que dialoga com Joseph K., antes que ele entre
em uma sala de audiências, ou a enfermeira Leni, por exemplo são descritas
como personagens baixos, desprezíveis, mas capazes de mínimos e delicados
gestos de cortesia, que nunca recebem muita atenção do protagonista, envolvido
unicamente com a elaboração de uma defesa definitiva perante o tribunal. E estes
gestos, que compreenderiam uma mística, parecem-me fundamentais, em sua
fragilidade, para a estruturação da obra do autor.
Isto porque conteriam uma beleza condizente com a idéia de que, em um
mundo separado de Deus por complexas hierarquias de divindades decaídas, o
mínimo que se possa conseguir, em termos de atribuição de sentido e significado
às ações humanas, é sempre uma surpreendente conquista. Esta idéia tem sua
origem nos gnósticos, mencionados em “La biblioteca de Babel”, e justifica os
precários e preciosos achados poéticos com os quais um viajante de hexágonos
poderia se deparar em uma jornada, além de ser o princípio estruturante de “El
acercamiento a Almotásim”. Ela inverte a questão da teodicéia, ao pressupor a
New York and London: Oxford University Press, 1975, p. 49-109. Ver também SOSNOWSKI,
Saul. Borges e a Cabala: a busca do verbo. Trad. Leopoldo Pereira Fulgencio Júnior e Roney
Cytrynowicz. São Paulo: Perspectiva, 1991 [1986], e ALAZRAKI, Jaime. Kabbalistic Traits in
Borges’ Narrative. Studies in Short Fiction, VIII, n. 1, Winter, 1971, pp. 78-92. Para um estudo
atento ao diálogo de Borges com a cultura judaica em geral, ver AIZEMBERG, E. Borges, el
tejedor d”El Alephy otros ensayos: del hebraísmo al poscolonialismo. Madrid: Iberoamericana,
1997.
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desordem e as imperfeições do mundo como definidoras de sua natureza, isto é,
postulando uma teologia negativa para a apreensão da realidade. Mas, ao mesmo
tempo, surge o espanto com o fato de que a variedade caótica do universo seja o
lugar de imprevisíveis instantes de contentamento, cuja viabilidade a aparência
desenganada do orbe parece estar sempre a negar.
Ao vincular o judaísmo antigo e o ambiente contemporâneo, tratando do
conceito de teologia negativa, um ensaio de Paul Fiddes serve à articulação dos
dois enfoques deste debate.
254
O autor compara o choque do livro de com a
experiência arrasadora da alta modernidade, quando, à segurança de um sujeito
certo de seu lugar no mundo, se segue o choque do abandono e do desamparo.
Entretanto, o que nas escrituras é uma intervenção direta e cruel do divino na
esfera do humano, torna-se, na metrópole, e de acordo com as referências com que
trabalho, o mais enigmático silêncio, as derivas despropositadas de um Wakefield
ou um Bartleby. Eles estão sós, e abandonados, diante de um cosmos
inapreensível, semelhante a uma practical joke, forjada para transtornar suas
consciências. E, a partir deste tipo de ruptura, toda conformação sistemática da
vida segundo modelos éticos ou estéticos é impensável; qualquer proposta neste
sentido tende a revelar-se insuficiente para abranger a complexidade das coisas. O
reconhecimento desta insuficiência, segundo Fiddes, é gerador de humildade,
conforme a lei e a forma do universo estejam fora do alcance dos homens, o que
eles percebem e tornam a perceber, em cada fracasso de suas especulações
totalizantes. Desta humildade, enfim, pode emergir uma postura de observação, e
a descoberta de traços significativos, que em toda parte afirmam, ao mesmo tempo
em que negam, presenças que são também ausências, nunca uma coisa sem a
outra.
255
A auto-suficiência e a arrogância de Joseph K. (“Não creio que possa me
ajudar”, ele repete para os funcionários subalternos do tribunal), sua tentativa de
controlar todos os incontroláveis trâmites judiciários que o envolvem (os
254
FIDDES, P. S. “The quest for a place which is ‘not-a-place’: the hiddenness of God and the
presence of God”. In: p. DAVIES, Oliver, and TURNER, Denys. Silence and the World: negative
theology and incarnation. New York: Cambridge University Press, 2002, p. 35-60.
255
Sobre o tema, que constitui um campo de estudos contemporâneo para o qual convergem
diferentes abordagens, remeto o leitor a duas obras de referência: Hans Ulrich Gumbrecht,
Production of Presence: what meaning cannot convey. Stanford, California: Stanford University
Press, 2004 (que privilegia o enfoque filosófico do assunto, com base na tradição hermenêutica
alemã), e George Steiner, Real Presences. Chicago: University of Chicago Press, 1991 (que
propõe uma articulação entre teologia e lingüística, de acordo o modelo gnóstico).
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primeiros capítulos de O Processo parecem-me insistentes neste ponto), podem
ter, portanto, bastante responsabilidade no aspecto vão de sua trajetória. No
esforço de resolver definitivamente seus problemas, ele termina por desconsiderar
soluções modestas e provisórias, o conforto de uma frase ou de um gesto que
atenuem seu sofrimento.
Solidarity of plight in diversity of state: com esta fórmula, Frank Kermode
define o que imagina ser o maior alcance da arte em um cosmos fragmentado e
sem limites, referindo-se àqueles episódios em que a literatura nos oferece o
súbito pressentimento de um salto, em meio à agitação ou a trivialidade cotidiana,
isto é, a criação de um nculo que se sobreponha à solidão pressuposta. Mas um
vínculo que, em sua fugacidade e perecimento, permanece sendo da ordem do
mistério. Não se trata do segredo revelado, e estabelecido como a base de uma
comunidade; trata-se do reconhecimento de que, como criaturas desviadas e
decaídas em suas individualidades, os homens ainda assim percebem frágeis
sinais de uma comunhão, os quais não chegam a ser compreendidos
conceitualmente, mas têm certo impacto no âmbito da experiência sensitiva.
Para situar o fenômeno em um espaço imaginário, o espaço da ficção,
Kermode recorre à noção de aevum um lugar intermediário entre o divino e o
humano, habitado por anjos hierarquicamente menores, mas não totalmente
miseráveis em sua condição posterior à queda. E, para usar uma denominação
corrente, mesmo que talvez um pouco desgastada, pode-se dizer que, na crítica
moderna, tais percepções receberam o nome de epifanias, em particular a partir
dos estudos do inglês Walter Pater, eventualmente citado por Borges em seus
ensaios posteriores a 1945.
256
Vários destes textos se referem a poetas britânicos
do século XIX, apresentando coleções de símbolos supostamente intemporais,
como o rouxinol de Keats e a flor de Coleridge, que seriam atualizações de outros
símbolos anteriores, ou anúncios de achados poéticos da mesma natureza,
proclamados posteriormente. De modo que, nestes luxuosos compêndios de
256
Kermode transfere para o plano literário uma categoria utilizada por Ernst Kantorowicz em seu
estudo sobre a teologia política medieval (cf. “On continuity and corporations”, em
KANTOROWICZ, E. The King’s Two Bodies: a study in mediaeval political theology. Princeton,
New Jersey: Princeton University Press, 1957, p. 273-313). Sobre a noção de epifania, e sua
emergência em ambientes de baixo status social ou espiritual, condicionada por embaraços
cotidianos, nas obras de Wodsworth e Joyce, ver Lionel Trilling, The heroic, the beautiful, the
authentic”. In: ____. Sincerity and Authenticity. Cambridge: Harvard University Press, 1972, p.
81-105. Para uma reflexão sobre o tema mais especificamente dedicada a James Joyce, partindo
de Dubliners, mas alcançando seus trabalhos posteriores, cf. ECO, Umberto. The Aesthetics of
Chaosmos. Translated by Ellen Esrock. Cambridge: Harvard University Press, 1989.
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298
citações eruditas, Borges estabelece uma relação de identidade que é também de
separação, para a qual a atuação do tempo não deixa de ser determinante. Mas, no
propósito de inserir o tópico na tradição romanesca com que venho trabalhando,
cabe enfatizar, por determinado viés analítico, uma interconexão aludida, e que
também será apropriada à leitura de “El Aleph”, isto é, aquela que relaciona a
comédia e a mística.
A própria paisagem em que Borges situa “El acercamineto a Almotásim”,
como veremos, pode auxiliar na exploração deste ponto, ao remeter à literatura
inglesa sobre a Índia, um sub-gênero do século XX. O conto de certo modo
antecipa The Razor’s Edge (1944), de Somerset Maugham, que trata da
peregrinação de um jovem no Oriente, com seus sumiços e reaparições súbitas,
em busca de um guia espiritual; e, entre as preferências literárias de Borges, a
obra de E. M. Foster, autor de A Passage to India (1924), parece bastante
adequada para guiar o prosseguimento da pesquisa. A respeito deste livro em
particular, Borges escreveu que seria o resultado de uma reflexão sobre “o
problema que levou os gnósticos a imaginarem uma divindade minguante ou
cansada, posta a improvisar o mundo com material impuro: o problema da
existência do mal”.
257
Mais adiante, neste mesmo artigo, ele traz indicações do
motivo pelo qual o romance de Foster seria em certa medida ignorado pela crítica
do modernismo literário: “A intensidade, a lúcida amargura, a onipresente graça
de A Passage to India são inquestionáveis. Assim como o prazer de sua leitura.
Sei de leitores muito austeros que nunca serão convencidos da importância de um
livro tão ameno”.
O romance descreve o encantamento inicial, e o subseqüente transtorno, de
uma jovem inglesa ao movimentar-se no território indiano, onde seu marido
trabalha a serviço do governo britânico. Assim, a um primeiro deslocamento, e ao
fascínio com o aspecto sublime de uma natureza primeva, ilimitada, anterior a
toda diferenciação (simbolizada pelo vazio das cavernas de Marabar), Foster
sobrepõe o intrincado sistemas de castas, o excesso de todo tipo de marcas e
distinções sociais, causadores de embaraços e constrangimentos, que converteriam
a história em uma comédia de erros. Porém, como observou Kenneth Burke em
um ensaio sobre o tema, esta confusão demanda e favorece atos de improviso e
257
BORGES, J. L. “E. M. Foster”. [El Hogar, 28 de mayo de 1937]. In: ____. Textos Cautivos.
OC, vol. 4, p. 308.
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299
desenvoltura, nos quais, muito delicadamente, ressurge o senso de uma mística,
indicando uma possível convergência entre sociedade e natureza, entre o artifício
e a transcendência. Burke defende que, uma vez compreendido como acúmulo de
dificuldades, devidas a distinções de status e categorias hierárquicas, o romance
oferece uma série de possibilidades compensatórias, conforme sejam descobertas
formas de contornar ou transpor tais obstáculos, em cuidadosos movimentos de
gentileza. O comentarista então observa:
uma mística neste tipo de cortesia. E é neste ponto que ‘mistério’ e ‘confusão’
se sobrepõem. Porque sempre oportunidades para alguma expressão de cortesia,
quando as pessoas se confrontam com respeito (ou se aproximam com cuidadosa
polidez) enquanto experimentam, ao mesmo tempo, um constrangedor senso de
disparidade (...) Em tal cortesia mistério, não importa que suas origens sejam
cômicas. E aqui o mistério é reforçado por conotações de mistério cósmico,
centradas nas cavernas de Marabar.
258
Portanto, o texto de Foster oscilaria, sem deter-se em nenhum dos pólos,
entre a percepção da unidade cósmica de todas as coisas – que, no entanto,
apresenta-se também como uma ausência, um silêncio –, e o cômico desconcerto
dos personagens, diante das hierarquias que fragmentam e negam esta unidade,
causando uma série de tumultos e desentendimentos, que se acumulam no
decorrer do livro. Nestes tumultos se originam gestos precisos que remetem
àquela unidade, sem nunca poder afirmá-la, a não ser na experiência imediata de
seu acontecimento. Por isso, no final da história, o narrador introduz o seguinte
comentário, referindo-se a seus personagens principais:
Talvez a vida seja um mistério, e não uma confusão; eles não sabiam dizer. Talvez
as centenas de Índias que nos cansam fazendo muito barulho em torno de ninharias
e brigando por causa de bagatelas sejam uma só, e o universo que elas refletem seja
um só. Eles não tinham meios para julgar.
259
258
“There is a mystique of such gallantry. And it’s the point at which ‘mystery’ and ‘muddle’
overlap. For there is always the opportunity for some kind of gallantry, when persons confront one
another with respect (or polite tentativeness) while they experience at the same time a compelling
sense of disparateness (…) In such gallantry there is mystery, no matter how comic may be its
origins or implications. Here the social mystery is reinforced by connotations of cosmic mystery,
centering in the Marabar Caves”. BURKE, K. “Social comedy and cosmic mystery: A Passage to
India”. In: ____. Language as Symbolic Action: essays on life, literature, and method. Berkeley:
University of California Press, 1966, p. 223-239.
259
FORSTER, E. M. Uma Passagem para a Índia. Trad. Cristina Cupertino. São Paulo: Globo,
2005.
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300
Em resumo, para trabalhar com referências recorrentes, pode-se dizer que
a comédia inglesa repercute nesta configuração, e que simultaneamente seus
limites são implodidos. O enredo que se estende da orfandade ao amparo, ou do
crime à resolução sacramental de um enigma, sustentado pela na providência,
com sua série de trapalhadas intermediárias, perde as fronteiras estruturais que os
contos de Chesterton explicitavam. Em Kafka, esta implosão é o elemento
determinante da narrativa: da antiga forma sobram apenas os destroços, e não há
nenhum milagre capaz de redimir os seus finais. No entanto, junto à recuperação
de uma postura de humildade, desenvoltura e cortesia, reaparece uma indicação de
episódios significativos, quase milagrosos em sua precariedade. No entanto, por
este motivo, eles são sempre frustrantes: não nada que afirmem que não seja
também rejeitado por eles, nenhum dogma ou convicção que possa deles ser
extraído. A necessidade de improviso os torna imprevisíveis, e a sutileza os faz
dependentes de uma atenção disposta a detectá-los. Mesmo que não haja nenhuma
garantia de reincidência. Pois, por definição, o mistério é aquilo que não alcança
estabilidade. E, portanto, não inspira muita confiança.
Mas pode inspirar o arrebatamento. E este ponto é decisivo para a análise de
“El Aleph”. Ele nos leva ao ponto culminante do sentimento místico: a paixão.
Trata-se da possibilidade de articular um sermo humilis com a gloria passionis,
sem que esta seja uma meta redentora definitiva, conforme o trajeto esteja
destituído de uma moldura exemplar, dado pelas vidas dos santos.
260
Decerto,
sistemas e doutrinas podem ser resultantes deste percurso, tal como, no primeiro
capítulo, acompanhamos a conversão da mística do jovem Borges, de seu amor
pela terra pátria, presente em seus poemas sentimentais, em um programa
ideológico, registrado em seus ensaios. Mas, neste ponto, fica desfeita a dinâmica
entre a perda e o desejo, entre o desamparo e a conquista, entre a humildade e o
enlevo, em que oscila este fenômeno em particular. ele se converteria em um
impulso maníaco, que insere todos os elementos da realidade em um cosmos
delirante, assumindo uma natureza patológica e mórbida, e eliminando as
individualidades em favor da comunidade ontologicamente pensada. Do amor
260
Cf. AUERBACH, E. “Sermo humilis e Gloria passionis”. In: ____. Ensaios de Literatura
Ocidental: filologia e crítica. Organização de Davi Arrigucci Jr. E Samuel Titan Jr. Tradução de
Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2007, p. 29-
76.
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pela terra pátria teriam surgido as cosmogonias juvenis de Borges; mas, cabe
ressaltar, um remédio contra este tipo de loucura pode ser o próprio amor.
Em especial, no enquadramento deste raciocínio, o amor por outra pessoa. À
multiplicação das divindades subalternas, verificada nos gnósticos, corresponde a
possibilidade de amar o que de divino no humano, assomando em silêncios,
ternuras e exaltações, mesmo das criaturas mais vis e corrompidas. E, em
circunstâncias especiais, convergindo para a promessa de uma união (a qual
sempre implica a separação e o retorno à esfera da carência, onde se renova o
desejo). Quanto à relação entre a cortesia e o amor, a pressuposição, de origem
socrática, de que a primeira é fruto de uma modesta e atenciosa devoção,
eventualmente ridícula, eventualmente sublime, denotando um movimento de
conquista que é também o de uma renúncia, o reconhecimento de um vínculo que
é também sua dissolução. A eficácia destes gestos transfigura a patética solidão do
sujeito, torna belo o que é engraçado, confere encanto à sua figura. Mas ela,
igualmente, contém o princípio da negação e da privação, da impossibilidade de
uma comunhão plena, em seus movimentos de aproximação e afastamento, que
seriam também os da diferenciação cômica e da união mística.
Filho de Poros e de Penia, isto é, da pobreza e do recurso, o amor é anseio
por aquilo que falta, e improvisação de expedientes para transpor a distância que
separa do outro. “Nunca aspiramos por aquilo que nos é completamente estranho
e tampouco por aquilo que nos pertence”, diz Lukács em seu texto sobre a
aspiração, apresentado como uma releitura do Banquete de Platão, e citado na
seção sobre Evaristo Carriego. “Eros está no meio: a aspiração cria um vínculo
entre aqueles que são diferentes entre si, mas ao mesmo tempo ela destrói
qualquer esperança de que eles se tornem um só; tornar-se um é voltar para casa, e
a verdadeira aspiração nunca teve um lar”.
261
Macedonio Fernández, o Sócrates de Borges, seria também rememorado por
seu temperamento afetuoso e apaixonado. Introduz-se, assim, uma via para a
beleza em suas excentricidades e idiossincrasias. “Negada uma matéria
imperecível por trás das aparências, negado um eu que percebe as aparências,
Macedonio afirmava, contudo, uma realidade, e esta realidade era a paixão, que se
261
LUKÁCS, G. “Longing and form” . In: ___. Soul and Form. Translated by Anns Bostock.
Cambridge: The Mit Press, 1980 [1910], p. 92-93.
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302
manifestava através da arte e do amor”, afirmou Borges.
262
E ele observava
também como os sistemas e fantasias idealistas, de projeção metafísica, sobre os
quais Macedonio especulava, cediam diante de sua tendência a enamorar-se,
quando o arrebatamento com o mundo concreto o distanciava do rigor lógico
daquelas construções. Desde Evaristo Carriego, por sinal, Borges atribuía a
atividade filosófica sistemática, e a postulação de hipóteses fantásticas de
explicação do mundo, a um fastio que o homem apaixonado desconhece. De
modo que ele também teria seguido o exemplo de Macedonio ao abandonar suas
leituras de Berkeley, e ausentar-se das reuniões semanais, por causa do amor por
Concepción Guerrero, como relata Edwin Williamson. A este movimento,
corresponde uma frase de W. H. Hudson, que ele gostava de citar: “Muitas vezes
na vida iniciei o estudo da metafísica, mas em todas elas fui interrompido pela
felicidade”.
263
Que fique claro, porém, a fragilidade de tal contentamento, sobretudo em se
tratando de Jorge Luis Borges, cuja vida amorosa foi uma notória seqüência de
fracassos. Ou uma grande comédia, para usar um termo apropriado, como ele
mesmo reconheceria em “El Aleph”.
264
Concepción Guerrero foi apenas a
primeira de uma longa lista de mulheres, representadas no conto por Beatriz
Viterbo, entre as quais se incluíam Norah Lange e Estela Canto (esta última mais
diretamente associada à narrativa), todas elas objetos de uma inábil, vacilante, às
vezes tíbia, e às vezes excessiva dedicação amorosa. No caso, era a morte de
Viterbo que oferecia o motivo para o início da história. Vejamos como se esta
introdução:
Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma
imperiosa agonia que não cedeu um instante nem ao sentimentalismo nem ao
medo, observei que os painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não
sei que anúncio de cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante
e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série
262
BORGES, J. L. “Prólogo”. In: FERNÁNDEZ, M. Macedonio Fernández. Buenos Aires:
Ediciones Culturales Argentinas, Biblioteca del Sesquicentenario, 1961, e BORGES, J. L. Prólogo
con un Prólogo de Prólogos. OC, vol. 4, p. 64.
263
Apud BORGES, J. L. “Nota sobre La Tierra Púrpura’”. In: HUDSON, Guillermo Henrique.
Antología. Buenos Aires: Losada, 1941, e BORGES, J. L. Textos Recobrados 1931-1955, p. 184-
6.
264
A subseqüente análise do conto privilegia o tipo de enfoque adotado por Julio Ortega em ‘El
Aleph’ y el lenguaje epifánico”. In: ____. ROWE, W., CANAPARO, C., LOUIS, A. Jorge Luis
Borges. Intervenciones sobre Pensamiento y Literatura. Buenos Aires: Paidós, 2000, pp. 93-104.
Ver também BLANCHOT, M. “O infinito literário: ‘El Aleph’”. In: _____. O Livro por Vir. Trad.
Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005 [1959], p. 136-140.
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infinita. Mudará o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que,
alguma vez, minha devoção a exasperara; morta, eu podia consagrar-me à sua
memória, sem esperanças mas também sem humilhação.
265
Logo adiante, o narrador menciona ainda o hábito que tivera de dar a
Beatriz “módicas oferendas”, livros em especial, que sempre descobria, intactos e
esquecidos, nas estantes da casa dos Viterbo. Estes constrangedores detalhes,
relativos à indiferença com que suas demonstrações de afeto eram recebidas,
conferem reiterados traços cômicos à sua figura. Na pungente e melancólica
declaração do primeiro parágrafo, há também uma solenidade que não deixa de
ser divertida. No entanto, é difícil não sentir algum compadecimento diante deste
loser sentimental, cuja inclinação para o enlevo amoroso está sugerida em cada
palavra do texto.
O relato prossegue com a visita de Borges à casa onde teria morado Beatriz,
e seu encontro com o irmão desta, Carlos Argentino Daneri. A função paródica
deste personagem foi por diversas vezes apontada, em sua dedicação à escrita
de um poema futurista, maneirista, regionalista, universalista e terrivelmente
aborrecido, já imaginado de acordo com os elogios que a obra mereceria da
crítica. Instado a escrever um prólogo, o narrador reconhece os únicos méritos que
era capaz de encontrar no poema: a perfeição formal e o escrúpulo científico.
Daneri e seu empreendimento literário reúnem várias características de outros
escritores e projetos satirizados por Borges em diversas ocasiões, mas dele
também é dito que, com toda a sua pompa e afetação, exerce um cargo subalterno
em uma biblioteca desimportante dos subúrbios de Buenos Aires o que torna ele
próprio, Borges, uma matriz de onde podia surgir um Carlos Argentino Daneri.
Por outro lado, nesta narrativa em particular, a Borges estava reservado
outro destino. A iminente demolição da casa dos Viterbo, que acentua a atmosfera
de perecimento e perda do conto, leva Daneri a mencionar a existência de um
“Aleph” no sótão, que ele teria descoberto na infância, e agora utilizava para
265
BORGES, J. L. “O Aleph” [1948]. In: ____. O Aleph. Trad. Flávio José Cardozo. OC [edição
brasileira], vol. 1, p. 686-99. “La candente mañana de febrero en que Beatriz Viterbo murió,
después de una imperiosa agonía que no rebajó un solo instante ni al sentimentalismo ni al miedo,
noté que las carteleras de fierro de la Plaza Constitución habían renovado no qué aviso de
cigarrillos rubios; el hecho me dolió, pues comprendí que el incesante y vasto universo ya se
apartaba de ella y que ese cambio era el primero de una serie infinita. Cambiará el universo pero
yo no, pensé con melancólica vanidad; alguna vez, lo sé, mi vana devoción la había exasperado;
muerta, yo podía consagrarme a su memoria, sin esperanza, pero también sin humillación”.
BORGES, J. L. “El Aleph” [1948]. In: ____. El Aleph. OC, vol. 1, p. 658-69.
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compor sua epopéia. O narrador vai à casa, de imediato, para conferir o achado. E,
enquanto aguarda sozinho na sala, antes de descer as escadas, um grande e
familiar retrato de Beatriz, do qual se aproxima, com “ternura e desespero”,
aproveitando um momento em que, presumidamente, não seria observado, e
dizendo em seguida, de modo patético: “Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena
Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para sempre, sou eu, eu, Borges”. Para
seu constrangimento, porém, Daneri entra na sala pouco depois, e o incita a ir
logo até o sótão: “Desçamos; em breve você poderá entabular um diálogo com
todas as imagens de Beatriz”.
Enfim, eles descem, e Borges recebe as instruções necessárias para ver o
Aleph, em meio à escuridão e à desordem, colocando-se em posição de decúbito
dorsal, permanecendo imóvel, e voltando os olhos para o décimo nono degrau da
escada. Daneri deixa o sótão, fecha a porta; Borges fica aguardando o fenômeno.
A situação em que, neste momento, se encontra o protagonista, é de um humor
notadamente kafkiano. inclusive uma almofada, para torná-la menos
desconfortável, como as que utilizam o público das salas de audiência de tetos
baixos em O Processo. Neste ponto, porém, como constatou René de Costa,
Borges “passa do cômico para o cósmico”.
266
Isto é: mesmo naquela embaraçosa
postura, naquele escuro sótão, diante daquela prosaica escada, ele realmente o
Aleph.
Segue-se este comentário:
Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de
escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um
passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito
Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? Os místicos, em análogo
transe, o pródigos em emblemas: para significar a divindade, um persa fala de
um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma
esfera cujo centro está em todas partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel,
de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao
Ocidente (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação
têm com o Aleph.). É possível que os deuses não me negasssem o achado de uma
imagen equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade.
Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um
conjunto infinito.
267
266
COSTA, R. El Humor en Borges. Madrid: Cátedra, 1999, p. 30.
267
“Arribo, ahora, al inefable centro de mi relato; empieza, aquí, mi desesperación de escritor.
Todo lenguaje es un alfabeto de símbolos cuyo ejercicio presupone un pasado que los
interlocutores comparten; cómo transmitir a los otros el infinito Aleph, que mi temerosa memoria
apenas abarca? Los místicos, en análogo trance, prodigan los emblemas: para significar la
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Não obstante, o narrador, arrebatado pela lembrança daquele instante, tenta
recolher e transmitir algo da experiência:
Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma
prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era
Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi
todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as
mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi
cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos
equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não
esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um
círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara
de Adrogué, uma exemplar da primeira versão inglesa de Plinio,
268
etc. Isto é o suficiente para recuperar um pouco do espírito da coisa. E é o
espírito da coisa que interessa, o sentimento de maravilha, perplexidade e êxtase
com a realidade como um todo, e com cada um de seus elementos,
simultaneamente apreendidos. A visão do inconcebível universo, em sua
variedade e unidade, cujo registro avança, caudalosamente, em direção a um
fracasso inevitável. “Senti infinita veneração, infinita lástima”, afirma o narrador,
ao terminar o parágrafo.
Todos os desdobramentos do conto parecem orientar-se para a máxima
intensificação da dinâmica da falta e do desejo, do desejo e do arrebatamento, do
arrebatamento e da privação. Através de delicadas operações estilísticas, que
compreendem o patético e o burlesco, a prosa alcança o lugar onde tudo pode ser
conquistado e tudo é perdido, devolvendo o indivíduo, enriquecido pela
experiência, à esfera da carência e do desamparo. “Nossa mente é porosa para o
divinidad, un persa habla de un pájaro que de algún modo es todos os pájaros; Alanus de Insulis,
de una esfera cuyo centro está en todas las partes y la circunferencia en ninguna; Ezequiel, de un
ángel de cuatro caras que a un tiempo se dirige al oriente y al occidente, al norte y al sur (No en
vano rememoro esas inconcebibles analogías; alguna relación tienen con el Aleph.) Quizás los
dioses no me negarían un hallazgo de una imagen equivalente, pero este informe quedaría
contaminado de literatura, de falsedad. Por lo demás, el problema central es irresoluble: la
enumeración, siquiera parcial, de un conjunto infinito”.
268
“Vi el populoso mar, vi el alba y la tarde, vi las muchedumbres de América, vi una plateada
telaraña en el centro de una negra pirámide, vi un laberinto roto (era Londres), vi interminables
ojos inmediatos escrutándose en mí como en un espejo, vi todos los espejos del planeta y ninguno
me reflejó, vi en un traspatio de la calle Soler las mismas baldosas que hace treinta años vi en el
zaguán de una casa en Fray Bentos, vi racimos, nieve, tabaco, vetas de metal, vapor de agua, vi
convexos desiertos ecuatoriales y cada uno de sus granos de arena, vi en Inverness a una mujer que
no olvidaré, vi la violenta cabellera, el altivo cuerpo, vi un cáncer en el pecho, vi un círculo de
tierra seca en un vereda, vi una quinta de Adrogué, un ejemplar de la primera versión inglesa de
Plinio,”.
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esquecimento”, comenta afinal Borges, após mais alguns apontamentos sobre sua
relação posterior com Daneri, e ressaltando o ato de memória que configura o
relato, em si mesmo um gesto de apropriação e renúncia. “Eu mesmo estou
falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz”.
E, retomando o argumento interrompido, cabe observar que, ao passar do
cômico ao cósmico, cuja fragmentação restitui um caráter trágico à experiência da
criatura, Borges está passando de Kafka a Whitman. A inclusão da imagem das
multidões americanas, logo no começo da descrição do Aleph, remete a este
movimento, que seria o da ênfase em uma mística possível, mas notada apenas em
sua ausência, nos escritos do autor tcheco. O problema insolúvel que Borges se
propõe o da enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito foi a missão
enfrentada com êxito, e equivalente insucesso, pelo poeta norte-americano. Que,
por sua vez, estava associado a uma tradição anteriormente representada, nos
Estados Unidos, pelo pensamento de Ralph Waldo Emerson. Ao fundo de todos
eles, no entanto, está Dante, que, como será constatado, é uma referência
fundamental para “El Aleph”. Tendo em vista as reflexões que esta linhagem
propõe, em sua inserção na obra de Borges, e na proposta deste estudo, pretendo
fazer uma digressão a respeito.
Antes de tudo, cabe recorrer a um artigo de Borges sobre Emanuel
Swedenborg, que, segundo o argentino, Emerson escolhera para representar o
“protótipo do místico”, em uma conferência de 1845. Isto por ter percorrido, de
maneira exemplar, a história de um homem comum a quem, em circunstâncias
prosaicas, é outorgada uma visão privilegiada da verdade, a ser difundida entre os
homens. Sobre o vulto profético que teria perseguido Swedenborg pelas ruas de
Londres, no século XVIII, Borges rememora: “Anunciou-lhe que seu espírito
recorreria céus e infernos e que poderia conversar com os mortos, com os
demônios e com os anjos”. Mais adiante, neste mesmo texto, é discutido o aspecto
distintivo da verdade revelada por estes meios, isto é, a maneira como ela
prescinde de dialética ou intimidação para ser proclamada:
À maneira de Emerson (“Arguments convince nobody”) ou de Walt Whitman,
[Swedenborg] acreditava que os argumentos não persuadem ninguém e que basta
enunciar uma verdade para que os interlocutores a aceitem. Sempre rejeitava a
polêmica (…) William White observou, agudamente, que outorgamos com
docilidade nossa fé às visões dos antigos e tendemos a rejeitar as dos modernos, ou
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zombamos delas (...) Em que precisa data cessaram as visões verdadeiras e foram
substituídas pelas apócrifas? Gibbon disse o mesmo acerca dos milagres.
269
O que nos encaminha a uma comparação do Aleph com fenômenos
semelhantes de outras épocas. Mas, antes de avançar neste sentido, será útil
recuperar um artigo de Borges sobre o próprio Whitman, onde ele afirma que, sob
a influência de Emerson, o poeta teria se lançado à tarefa de ser o porta-voz da
aurora de um novo mundo.
270
E, para tanto, viria a elaborar uma criatura híbrida,
biforme – por um lado, o modesto jornalista Walt Whitman, que, anônimo e
desajeitado, caminhava pelas ruas de Manhattan, tirando o chapéu para
transeuntes, e, por outro, o homem que ele queria ser e não foi, um Walt Whitman
que surge em seus versos, apaixonado, aventureiro, “recorredor de América”. Esta
imagem duplicada ilustra a ambivalência do amor, como filho da pobreza e do
recurso, favorecendo atos de cortesia e momentos de exaltação. O autor de Leaves
of Grass teria dedicado sua vida ao desejo, sempre insatisfeito, de captar uma
realidade da qual estava alheado e que, ao mesmo tempo, sentia intimamente
pulsar, como um chamado à elevação do espírito. Encantado com o movimento
das ruas, com os odores e sons da metrópole eletrizante, ou com um simples
crepúsculo suburbano, no qual estes odores e sons ressoavam ao longe, teria
apreendido a caótica realidade como uma espécie de sinfonia, cujo ritmo que
reverberava em seu coração.
Neste aspecto, a felicidade que os poemas de Whitman transmitem,
particularmente na leitura em voz alta, seria a mesma que, segundo testemunhos e
biógrafos, Borges teria sentido ao escrever as passagens finais do Aleph (que
gostava também de ler para si mesmo, durantes os três os quatro dias em que se
ocupou de sua composição). Mas a felicidade de Whitman é igualmente uma
antecâmara da lástima, tal como mencionada no final da narrativa de Borges: logo
269
BORGES, J. L. “Emanuel Swedenborg. Mystical Works”. In: ____. Prólogo com um Prólogo
de Prólogos. Trad. Josely Vianna Baptista. OC [edição brasileira], vol. 4, p. 163-72. “A la manera
de Emerson (Arguments convince nobody) o de Walt Whitman, [Swedenborg] creía que los
argumentos no persuaden a nadie y que basta enunciar una verdad para que los interlocutores la
acepten. Siempre rehuía la polémica (...) William White ha observado agudamente que otorgamos
con docilidad nuestra fe a alas visiones de los antiguos y propendemos a rechazar las de los
modernos o nos burlamos de ellas (...) En qué precisa fecha casaron las visiones verdaderas y
fueron reemplazadas por las apócrifas? Lo mismo dijo Gibbon de los milagro”. BORGES, J. L.
“Prólogo”. [SWEDENBORG, Emanuel. Mystical Works]. In: ____. Prólogo con un Prólogo de
Prólogos. Oc, vol. 4, p. 154-5.
270
BORGES, J. L. “Prólogo”. [WHITMAN, Walt. Hojas de hierba. Buenos Aires: Editorial
Juárez, 1969]. In: _____. Prólogo con un Prólogo de Prólogos. OC, vol. 4, p. 168-171.
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que nos sentimos em sintonia, em consonância, em posse do universo, e com ele
identificados, o universo inteiro como que se esvai por entre os dedos, torna-se,
mais uma vez, pura desordem e dispersão.
Prosseguindo no texto sobre Whitman, Borges observa que a experiência
poética seria a forma contemporânea do milagre.
271
E, se deslocamos o debate
para o fenômeno mais modesto, mais precário, e talvez mais precioso da epifania,
“El Aleph” pode ser entendido como um relato sobre as possibilidades da arte em
um universo múltiplo e fragmentado. Que leva estas possibilidades, decerto, às
últimas conseqüências, mas por isso mesmo presume e legitima eventos de menor
impacto, desta mesma natureza. Tal como ela é definida no artigo:
Em uma polémica de café sobre a genealogía da arte, sobre as diversas influências
da educação, da raça e do meio ambiente, o pintor Whistler limitou-se a dizer: Art
happens (A arte acontece), o que equivale a admitir que o fato estético é, por
essência, inexplicável. Assim o entenderam os hebreus, que falavam do Espírito;
assim os gregos, que invocaram a musa.
272
Não estamos aqui para explicar nada, no que se refere a este fenômeno. O
Aleph, o símbolo, prescinde de toda análise, de toda prova e de toda refutação.
Mas “El Aleph”, o conto, é feito de movimentos imprescindíveis para tal
acontecimento, de modo que o Aleph tampouco é o símbolo cósmico, a rosa
platônica a que aspirava Borges, que, por definição, prescindiria de qualquer
preparação para ser proclamada pela voz poética. Sendo assim, a narrativa fica no
meio do caminho entre o ensaio, entendido como tentativa, procura, aspiração, e a
própria obra de arte. “Poeta é o homem que alcança uma melodiosa expressão
verbal de emoções genuínas ou imaginadas”, Borges afirmaria em um escrito de
1955, continuando em um tom resignado: “É evidente que não pertenço a esta
estirpe, e assim estou obrigado a descrever as circunstâncias em que se
271
Para uma discussão recente e mais aprofundada sobre a relação entre arte e religião na
modernidade, que ofereça uma bibliografia mais vasta, ver Rowan Willians, “God and the artist”.
In: ____. Grace and Necessity: reflections on art and love. Harrisburg: Morehouse, 2005, 134-
170.
272
BORGES, J. L. “Walt Whitman. Folhas de Relva”. In: ____. Prólogo com um Prólogo de
Prólogos. Trad. Josely Vianna Baptista. OC [edição brasileira], vol. 4, p. 180-4. “En una polémica
de café sobre la genealogía del arte, sobre los diversos influjos de la educación, de la raza y del
medio ambiente, el pintor Whistler se limitó a decir: Art happens (El arte sucede), lo cual equivale
a admitir que el hecho estético es, por esencia, inexplicable. Así lo comprendieron los hebreos, que
hablaban del Espíritu; así los griegos, que invocaban la musa”.
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produziram tal ou qual emoção”.
273
Esta mesma atividade mediadora, porém, não
deixa de ser a função do artista, no campo de possibilidades em que transitamos.
Pois ela pressupõe uma sobreposição de impedimentos, constrangimentos e
obstáculos à comunicação do sentimento poético, que antes ressalta, do que
elimina, a necessidade de transpor uma distância. Os “laboriosos procedimentos”
a que se refere Borges seriam os cuidadosos, delicados, e, por vezes, desajeitados
movimentos de uma aproximação ao objeto do desejo, culminando na iminência
de um encontro fulgurante, mas de uma luz que se apaga ao iluminar todo o
mundo concreto, deixando apenas a lembrança de seu brilho. Neste ponto, a
epifania difere da revelação mística apropriada pelo missionário como verdade a
ser difundida. Pois ela diz respeito exatamente àquilo de que o sujeito não pode
tomar posse; e, portanto, a um fenômeno que devolve o poeta, ou o ensaísta e
prosador que aspira à poesia, à condição de aspirante a poeta, embora por um
momento, por mínimo e trabalhoso que seja, ele se torne aquilo que deseja ser.
Cria-se o ciclo que vai da privação ao arroubo sentimental, e deste de volta à
privação. Mas o universo de procedimentos e conquistas, entre uma coisa e outra,
não deve ser ignorado. Ele implica humildade e modéstia; ele estimula a gentileza
e a cortesia; ele demanda esforços e improvisos; está fadado ao fracasso e ao
recomeço. Tudo isto traz à tona, mais uma vez, a discussão sobre as expectativas
relacionadas à arte no modernismo. As vanguardas imaginaram um mundo em
que a arte e a realidade fossem plenamente coincidentes, e então, segundo Borges,
projetaram utopias que sofriam de um megalomaníaco irrealismo; já o Aleph pode
ser uma imagem grandiosa, mas o alcance de determinadas experiências estéticas,
vinculadas às circunstâncias de sua emergência, pode ser bem menos ambicioso.
Entre os pólos do cômico e do cósmico, minúsculos episódios são capazes de
desvelar uma passagem, ao mesmo tempo em que devolvem as coisas à esfera de
uma “desgraçada” mundanidade cotidiana.
Mas, para evitar mal-entendidos, é preciso enfatizar que a simplicidade não
é entendida como instrumento suficiente na composição do objeto artístico, de
acordo com estas reflexões. Um conto ou poema simples podem ser um conto
vazio ou um poema banal. Dizer que a arte acontece é pressupor acontecimentos
autênticos, por frágeis que sejam, que nenhum artifício seria capaz de simular a
273
BORGES, J. L. “Anotación”. [Nueve Poemas. Buenos Aires: Ediciones ‘El Mangrullo’, Impr.
Francisco A. Colombo, 1955] . In: ____. Textos Recobrados 1931-55, p. 325-6.
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partir do nada. Mas que, uma vez ocorridos, no plano concreto, ou no terreno da
imaginação, requerem um meticuloso trabalho de composição, para serem
apresentados em sua autenticidade. A convergência do mundano e do verdadeiro,
em que se a articulação entre confusão e mistério, a percepção de um ritmo
equivalente à desordem, seria, portanto, um acontecimento real. Desde que a
realidade seja tomada como o lugar de interseção entre a vileza e a graça, entre a
corrupção e a harmonia. Esta constatação demanda um breve rodeio, para ser
aproveitada.
Enfim, Borges não era Walt Whitman, que por sua vez quis ser “Walt
Whitman” e não foi “Walt Whitman”. O que pressupõe uma relação de identidade
e diferença, de aproximação e afastamento, como em uma sucessão de
“Almotásims”, no espaço e no tempo de uma biblioteca ilimitada. Mas as alusões,
procedimentos e trama de “El Aleph” indicam ainda a inclusão de Dante na lista
concernente à narrativa.
274
O nome da mulher amada pelo protagonista, o
movimento de descida ao sótão, e algumas das constatações precedentes, tornam
inevitável a menção à Divina Comédia; assim como o fato de que Borges, em um
ensaio de 1949, tenha se referido à obra como um desenho mágico, uma “figura”,
da qual “nada do que na Terra está dela excluída”, alcançada pelo poeta pela
via do sentimento amoroso. Isto cria a oportunidade de introduzir, no argumento
desta etapa, um novo diálogo crítico, através do qual possa ser possível recuperar
assuntos já tratados. Devo apresentá-lo de modo breve, talvez apressado, no
intuito de não exigir demais da disponibilidade do leitor, mas deixando uma
abertura para possíveis desdobramentos e debates, a serem suscitados pelo tema.
Pois, para quem, como no meu caso, entrou em contato com o poema de
Dante sobretudo por intermédio dos ensaios de Erich Auerbach, a questão do
realismo na representação literária se impõe a partir do momento em que a Divina
Comédia é mencionada.
275
O problema terá surgido em outros momentos da
pesquisa, quando, por exemplo, tratou-se de sugerir uma possível insuficiência
interpretativa de duas vertentes na avaliação da obra de Borges. Uma elogiava a
274
O assunto foi abordado por Jon Thiem, em Borges, Dante and the poetics of total vision”.
(Comparative Literature, vol. 40, n. 2, 1988, p. 97-121), e Leopoldo Bernucci, em “Biografia e
visões espculares: Borges e Dante. IN: BORGES no Brasil. Organizado por Jorge Schwartz. São
Paulo: Editora Unesp: Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 77-99.
275
Refiro-me, em especial, ao ensaio sobre Dante incluído no Mimesis, de 1946, que se sobressai
como eixo de articulação da obra mais conhecida de Auerbach (cf. “Farinata e Cavalcante”. In:
AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 2002, p. 151-176).
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perfeição formal de seus relatos, raciocínios e cosmologias, destituídas de todo
elemento humano, gerando uma fantástica sensação de irrealidade; a outra os
rejeitava por negligenciarem fatores sócio-históricos, cuja representação seria o
dever do escritor. Sobre a primeira, ficou assinalada a tendência a ignorar traços
paródicos ou satíricos, presentes nos contos analisados, bem como a chave
alegórica, em que a eliminação do elemento humano do artefato literário
correspondia a uma equivalente redução no âmbito da sociedade e da história.
Quanto à segunda, ao transformar a realidade histórica, empírica, na matriz
normativa da mimesis, operaria com a mesma precipitação e parcialidade.
Neste quadro, o Dante de Auerbach surge como o portador de um
“sentimento de realidadeque configura o terreno, o concreto, o real e o histórico
como componentes internos da obra, não como referências externas específicas,
determináveis empiricamente. E o faz através de um aprofundamento na
temporalidade e na individualidade, que o mundo como lugar de feitos,
fracassos e esforços cotidianos, cada um, isoladamente, sem propósito e sem
significado, mas reunidos, sob o olhar do poeta, em uma “totalidade que não é
completude”, que torna significativos minúsculos atos e gestos de seus
personagens, inserindo-os em um plano universal (mas que pode ser
apreendido via detalhes e pormenores dispersos). Em Dante, segundo Auerbach, o
além é palco da história, viva e pulsante, cômica e trágica, que mistura os estilos
na apresentação de história de cada um. Suas criaturas não deixam de ser baixas,
vis e corrompidas; habitam infernos populosos e desgovernados; são movidos por
vícios e paixões, desejos e mesquinharias; o disparate é a regra, não a exceção na
Divina Comédia. Mas tudo isso seria descrito com tal intensidade, que o
meramente corriqueiro adquire a plenitude de sentido conferida à totalidade do
orbe. Enquanto esta totalidade, por ser apenas entrevista via episódios singulares,
é ao mesmo tempo fragmentada e incompleta, demandando a experiência poética
para ser apreendida.
Recentemente, o sociólogo Leopoldo Waizbort se encarregou de investigar
os fundamentos do pensamento de Auerbach, e expor algumas de se suas
implicações para uma crítica literária informada por esta noção de realismo. Entre
elas está a proeminência do método comparativo, uma dedução que creio ter
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312
aproveitado no decorrer deste trabalho.
276
Quero ressaltar ainda dois pontos
comentados por Waizbort, em função de sua relevância para a minha pesquisa: o
lugar que as escrituras ocupam no Mimesis de Auerbach, como passagem do
lendário para o histórico, com ênfase na intensidade da experiência individual, em
suas humilhações, vacilações e alegrias; e o modo como o filólogo vê, na outra
ponta do livro, a literatura do século XX permeada pela sobreposição de
comentários a pequenos episódios, misteriosos e significativos, recuperados pela
consciência rememorante, que busca fixar significados, ao mesmo tempo em que
os está sempre perdendo.
O brilho que, em instantes privilegiados, atinge estes focos de atenção,
assemelha-se a uma insinuação daquela luz que abrangia a totalidade em Dante.
Inclusive porque qualquer fato cotidiano, qualquer episódio terreno, qualquer
episódio do orbe, podem vir a receber seus reflexos, por mais irrisório que seja.
Mas, em sua precariedade, estes acontecimentos fogem a abordagens diretas,
requerendo movimentos insinuantes e cautelosos de aproximação, capazes de
detectar matizes de luz e de sombras. São momentos de esclarecimento,
indissociáveis da iminência de sua dissolução; e acompanhar o apagamento desta
claridade é sentir um profundo e desafortunado amor por aquilo que se está
perdendo, às vezes transformado em entusiasmo, por uma inesperada revelação, às
vezes margeando a depressão, porque estamos diante as portas da lei de Kafka.
Em nenhum destes extremos, porém, resolve-se o contínuo movimento da
aproximação e da distância. Talvez, por isso, não seja muito correto exagerar os
milagres do passado. No final das contas, segundo Borges, nem Dante, o
indivíduo, teria sido “Dante”, o símbolo, aquele que o desafortunado amante de
Beatriz queria ser.
Pois todos estes fenômenos convergem para um entendimento da condição
humana como marcada pela carência e pelo desejo, pela perplexidade e pela
iluminação, pelo infortúnio e pela felicidade. Ao menos era isto que Borges
parecia ter em mente quando, em 1955, escreveu “Infierno, I, 82”, texto publicado
na revista cubana Cielón, e depois recolhido em El Hacedor. O primeiro parágrafo
276
A segunda e a terceira parte do livro correspondem, respectivamente, a um exame da influência
de Auerbach na elaboração da obra crítica de Antonio Candido, tendo como principal enfoque a
noção de realismo, e a um estudo mais diretamente voltado para aspectos do pensamento do
filólogo alemão. (cf. “Senso das coalescências e sentimento da realidade” e “Extraprograma:
filologia e sociologia”. In: WAIZBORT, L. A Passagem do Três ao Um: crítica literária,
sociologia, filologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 87-264 e 265-320).
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se refere à história de um leopardo, ao qual teria sido concedido, em uma noite do
século XII, o entendimento do próprio destino e posição no orbe, para que depois
ele acordasse novamente ignorante e bestial, “porque a máquina do mundo é
demasiado complexa para a simplicidade de uma fera”. Transcrevo o segundo e
último parágrafo:
Anos depois, Dante morria em Ravena, tão injustiçado e tão como qualquer
outro homem. Em um sonho, Deus lhe declarou o secreto propósito de sua vida e
de seu lavor; Dante, maravilhado, soube por fim quem era e o que era e abençoou
suas amarguras. A tradição refere que, ao despertar, sentiu que tinha recebido e
perdido uma coisa infinita, algo que não poderia recuperar e nem mesmo
vislumbrar, porque a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade
dos homens.
277
Na mesma coletânea, há um outro escrito curto, intitulado “Paradiso, XXXI,
108”, que se inicia com as seguintes palavras: “Diodoro Sículo conta a história de
um deus despedaçado e disperso. Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao tentar
lembrar-se de uma data, não sentiu alguma vez ter perdido uma coisa infinita?”.
Ambas as passagens foram redigidas na mesma época, após um período de
deprimente evolução da cegueira de Borges. Ou seja: o infinito mundo que ele
havia entrevisto em “El Aleph” estava se apagando diante de seus olhos. lhe
restaria, mesmo, a memória deste mundo, exaltada em versos e pequenos poemas
em prosa, nos quais eram também reafirmados o estupor causados por seu
desaparecimento.
Afinal, Borges, com suas idiossincrasias e veleidades, sua soberba e auto-
suficiência, suas inclinações moralistas e frustrações pessoais, possuiria uma
qualidade independente de tudo isso: era um poeta, um apaixonado, um místico.
Ou então queria ser um poeta, o que o colocava no meio do caminho entre o idiota
cômico e o cantador do cosmos; queria ter vivido grandes paixões, embora sua
vida houvesse sido uma estúpida sucessão de mesquinharias; queria intimar com
os pobres mistérios do mundo, apesar de ter-se dedicado a parodiar a opulência de
277
BORGES, J. L. “Inferno, 1, 32”. In: ____. O Fazedor. Trad. Josely Vianna Baptista. OC
[edição brasileira], vol. 2, p. 205. “Años después, Dante se moría en Ravena, tan injustificado y tan
solo como cualquier otro hombre. En un sueño, Dios le declaró el secreto propósito de su vida y de
su labor; Dante, maravillado, supo al fin quién era y qué era y bendijo sus amarguras. La tradición
refiere que, al despertar, sintió que había recibido y perdido una cosa infinita, algo que no podría
recuperar, ni vislumbrar siquiera, porque la máquina del mundo es harto compleja para la
simplicidad de los hombres”. BORGES, J. L. “Infierno, I, 32”. In: ____. El Hacedor. OC. Vol. 2,
p. 196.
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seus exageros. Nos poemas de sua juventude, esta característica está presente; nos
ensaios subseqüentes, ela ameaça converter-se em fanatismo e mania ideológica;
mas, em Evaristo Carriego, é contrabalançada por uma moderação do
temperamento, para a qual a delicadeza e o arrebato não seriam termos
excludentes.
De 1930 em diante, contudo, o encaminhamento de sua carreira nesta
direção foi interrompido. Vieram a crise econômica, a década dos tumultos, a
época da infâmia. Vieram os Monk Eastman, os Pierre Menard, os enciclopeditas
de Tlön. Aquele Borges ressurgiria, neste intervalo, em “Acercamiento a
Almotásim”, mas justamente quando o avanço de obstinados programas de
purificação racial, ou etéreas idéias de pacificação do planeta, tomaram conta dos
debates, da imaginação e da literatura corrente, em particular da imaginação e da
literatura de Borges. Enquanto isso, a sátira, de cunho moralizante, e a alegoria, de
fundo paranóico, foram os gêneros com os quais ele operou. A partir de 1945, ele
novamente circunstâncias favoráveis ao idílio, o compadecido resgate de
tempos passados. Mas, na ordem na desordem do mundo que então se
instalava, seus maiores esforços seriam os de fixar, por frustrante que fosse, a
experiência de uma visão orbe, como lugar do “sempre alegre e sempre
deprimente pathos da travessia terrena” (a expressão é de Auerbach), objeto de
sua grande lástima, de sua enorme veneração.
Deste modo, parece-me correto afirmar que o prospecto de uma cegueira
progressiva, e geneticamente herdada, foi uma das motivações para a escrita de
“El Aleph”. Mas creio haver outra, vinculada a estes desdobramentos políticos,
que também merece atenção. Foi constatado um resgate de temas místicos nos
artigos, entrevistas e narrativas de Borges, que se dá paralelamente ao desfecho da
Segunda Guerra; observou-se uma conexão possível entre estes temas e a imagem
do mundo decorrente da nova conjuntura. A vitória dos Estados Unidos sobre a
Alemanha teria sido a vitória de uma doutrina, eticamente embasada, sobre outra,
que buscava a transfiguração estética do mundo. E, na medida em que a
universalização do ethos capitalista gera uma sociedade de sujeitos perdidos e
atomizados, procurei indicar, neste capítulo, como a poética oferece alternativas
de amparo à solidão do indivíduo, lançado em uma jornada de salvação
pessoal. Porém, resta a pergunta, cujo debate complementa estas últimas
observações: por que escrever poesia e com tal urgência tendo em vista as
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atrocidades cometidas em nome de uma vida mais bela e heróica? É o caso de se
indagar, portanto, o que justifica, e até mesmo demanda, a emergência de uma voz
poética em um mundo depois de Auschwitz.
A melhor resposta que conheço está em um breve ensaio de G. K.
Chesterton sobre Leon Tolstoi, de 1904. Creio que basta parafraseá-lo, com certo
respeito por sua construção, nuances e modulações, para expor um tratamento do
problema consonante com o pensamento de Borges. Mas um par de apontamentos
a respeito dos dois personagens envolvidos no texto por ser útil, para preparar sua
exposição. Neste sentido, sobre Chesterton, vale notar que, em que pese a
monotonia de seus contos, e seu apego a uma anacrônica credulidade, era um
argumentador de rara perspicácia e recursos estilísticos. E, sobre Tolstoi, recordo
a estatura intelectual, a autoridade ética e o poder de conformação estética que o
levaram a assumir, no final do século XIX, uma aura de líder carismático e profeta
visionário, quando peregrinos de todo o mundo viajavam até sua fazenda, Yasnaia
Polyana, em busca de conselhos práticos e iluminação do espírito.
E, referindo-se justamente àquela justificável relevância de Tolstoi no
panorama cultural da época, Chesterton inicia seu comentário.
278
Ele afirma que a
dimensão de tal influência não podia ser medida nem pelos romances do escritor,
por esplêndidos que fossem, nem pelo conteúdo ético de seus preceitos
filosóficos. Mas sim por notícias chegadas do Canadá, onde uma seita de cristãos
anarquistas, exilados da Rússia, havia libertado todos seus animais, professando a
imoralidade de possuí-los ou controlá-los. Isto, para Chesterton, trazia antes de
tudo uma lembrança de como o mundo era recente e jovem; todo tipo de inédita
teoria, toda espécie de filosofia de vida ainda estavam por surgir, sem importar o
que dissessem ou pensassem os políticos da época, no conforto de seus gabinetes,
confiantes na permanência e estabilidade de seus paradigmas. Pois estas teorias,
estas fantasias, ele acrescenta, eram vias de acesso à única felicidade concebível
sob o sol: o entusiasmo. Algo que no século XVIII recebera o nome de loucura, e
que os gregos antigos atribuíam à presença de um deus.
A atitude da seita dos Doukhabours, por outro lado, chamava-lhe a atenção
não somente pelo exaltado heroísmo, como também – ou em especial – pela
consistência com que fora executada. Ela demonstrava como um princípio moral
278
CHESTERTON. G. K. “Tolstoi” [1904]. In: CHESTERTON, G. K. Collected Works V:
Family, Society, Politics. San Francisco: Ignatius Press, 1987.
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podia ser posto em prática e levado às últimas conseqüências lógicas, sem
prejuízo da coerência teórica no confronto com a realidade. E, neste ponto,
embora o houvesse conexão direta entre os sectários do Canadá e o pensador
russo a não ser a nacionalidade de origem –, Tolstoi surgia como o melhor
exemplo do gênio em posse de uma visão de mundo sólida, consistente e
incorruptível (sua capacidade de aplicá-la a extensos romances, de arquitetura
impecável, reafirmaria a fortaleza de seu caráter). Nele, opiniões sobre cada
assunto, e juízos sobre qualquer fato, floresciam como que naturalmente, brotando
do solo de uma convicção serena, de maneira que tudo podia ser abarcado por
seus princípios, e incorporado à demonstração de sua doutrina. Tolstoi era um
evento em si mesmo, no espectro de variações do humano. A tal ponto que
Chesterton acrescenta: “Quando lidamos com um formador de opiniões desta
consistência [a body of opinion like this], estamos lidando com um incidente na
história da Europa infinitamente mais importante que o surgimento de Napoleão
Bonaparte”.
Então, o ensaio passa a tratar do significado do surgimento de um Tolstoi no
espectro ampliado de sua repercussão histórica. O assunto interessa, em primeiro
lugar, segundo o comentarista, por favorecer uma reflexão sobre a atitude dos
modernos diante da religião. Seria uma demonstração de que a denúncia do
sentimento religioso como estimulante do fanatismo, proclamada por céticos e
secularistas, era de uma perversa parcialidade: a religiosidade podia ser banida da
face da terra, e ainda assim existiriam teorias e filosofias suficientes para povoar o
mundo de fanáticos. Segundo Chesterton, o caso dos Doukhabours e o de Tolstoi
seriam exemplares. Os militantes sectários partiam da idéia, independente de toda
teologia, de que devemos amar ao próximo e não usar a força contra ele donde
se deduzia a imoralidade das bolsas de couro e dos carros puxados a cavalo. O
segundo negara todas as igrejas, e todos os livros sagrados, para fundar um
sistema moral purificado e cristalino, declarando também o amor como
instrumento de reforma da sociedade, e concluindo logicamente que não devemos
deter um homem que esteja espancando uma criança sob nossos olhos (Chesterton
remete a implicações da doutrina da não-resistência ao mal, fundamento de
algumas vertentes políticas pacifistas).
A lista prossegue com teorias científicas que, levadas às últimas
conseqüências lógicas, resultariam em fogueiras inquisitórias de magnitude ainda
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desconhecida; e ideais de transfiguração da vida em obra de arte, cujas evoluções
estavam ainda por ser descobertas. “Há estetas modernos que se exporiam ao
perigo como Adamitas se pudessem fazê-lo de modo elegante”, afirma o autor.
“Há moralistas modernos, de inclinações cientificistas, que queimariam vivos seus
inimigos, e estariam bem contentes de poder fazê-lo através de algum novo
procedimento químico”. Surgia aqui, portanto, em 1904, o tema da cumplicidade
entre o suicídio e a devastação, entre a contenção apolínea e a dispersão
dionisíaca, que o levaria a ter uma leitura particular dos acontecimentos que
antecederam a Segunda Guerra.
Afinal, religião e fanatismo estavam longe de ser uma dupla exclusivista.
Tampouco os excessos da ciência ou da estética eram equivalentes a
desdobramentos necessários e inevitáveis do sentimento religioso, de modo geral.
E, nem por isso, qualquer religião em particular seria um remédio para os delírios
da intransigência: afirmá-lo comprometeria todo o argumento do ensaio. Desde
logo, no último parágrafo, Chesterton faz outro movimento, que legitima a
inserção do texto como resposta à questão antes mencionada. Creio que a
passagem merece uma citação integral:
A verdade é que Tolstoi, com seu imenso gênio, com sua fé colossal, com sua vasta
intrepidez e seu vasto conhecimento da vida, é deficiente em uma faculdade e em
uma faculdade apenas. Ele não é um místico: e portanto tende a enlouquecer. Fala-
se das extravagâncias e frenesis produzidos pelo misticismo: eles são apenas uma
gota no oceano. No geral, e desde o início dos tempos, o misticismo manteve os
homens sãos. O que os levou à loucura foi a lógica. É significativo que, com tudo o
que foi dito sobre a excitabilidade dos poetas, até hoje apenas um poeta inglês
enlouqueceu, e enlouqueceu por causa de um sistema lógico de teologia. Foi
Cowper, e sua poesia retardou-lhe a insanidade por muitos anos. Então a poesia, na
qual Tolstoi é deficiente, tem sido sempre algo tônico e sanativo. A única coisa que
afastou os homens dos extremos da sociedade secreta e do navio pirata, do clube
noturno e da câmara letal, foi o misticismo – a percepção de que a lógica é
enganadora, de que as coisas não são o que parecem.
279
279
“The truth is that Tolstoy, with his immense genius, with his colossal faith, with his vast
fearlessness and vast knowledge of life, is deficient in one faculty and one faculty alone. He is not
a mystic: and therefore he has a tendency to go mad. Men talk about the extravagances and
frenzies produced by mysticism: they are a mere drop in the bucket. In the main, and from the
beginning of time, mysticism has kept men sane. The thing that has driven them mad was logic. It
is significant that, with all that has been said about the excitability of poets, only one English poet
ever went mad, and he went mad from a logical system of theology. He was Cowper, and his
poetry retarded his insanity for many years. So poetry, in which Tolstoy is deficient, has always
been a tonic and sanative thing. The only thing that has kept the race of men from the mad
extremes of the convent and the pirate-gallery, the night-club and the lethal chamber, has been
mysticism – the belief that logic is misleading, and that things are not what they seem”.
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318
A partir daqui, prossigo com minhas deduções. Sendo, a primeira delas, a de
que a mística e a poesia operariam no campo da política por via negativa, como
tratamento da obstinação ideológica, inclusive aquela que nasce dos mistérios da
terra, mas se projeta para a formulação de cosmologias. Elas geram uma exaltação
indissociável do despojamento, uma conquista que presume a perda, e só na
iminência da renúncia chega realizar-se. Assim como, em um universo caótico e
sem sentido aparente, sugerem a afirmação de uma ordem subjacente a todas as
coisas, mesmo sem poder fixá-la em uma imagem estável, e submetendo-a ao
curso do tempo. Neste caso, são também negações, mas da falta de sentido e
significado do mundo, por mais efêmeras, por mais desalentadoras que sejam suas
aparências.
Em termos de organização social, nada se constrói a partir da mística e da
poesia. Elas deixam de ser o que são se isto acontecer. Mas o que elas impedem
que ocorra a aplicação de estruturas lógicas à realidade é o que está em jogo.
De acordo com esta leitura, os campos de concentração teriam surgido de notáveis
deficiências nesta área, e de uma confusão generalizada sobre a perfectibilidade
do mundo, causada por razões econômicas, sociais e políticas, que explicariam
porque, durante tantos anos, a poesia não tinha lugar nem condições de
manifestar-se. Refeitas estas condições, porém, o resgate da voz poética era uma
medida profilática: tratava-se de apontar uma beleza que, de forma precária e
preciosa, nos reconcilia com a imperfeição do mundo. Até porque a liberdade
novamente conquistada não continha, a princípio, nada de poético muito pelo
contrário. E resignar-se à falta de sentido do mundo implicaria o risco de um
enlouquecimento mais solitário e menos entusiasta, cujos sintomas são a catatonia
e a depressão.
É provável que, ao escrever “El Aleph”, Borges estivesse mais dedicado a
reconciliar-se consigo mesmo e com as próprias imperfeições. Mas desde que, em
sua juventude, a amargura e o desencanto com a realidade imediata o levara a
redigir manifestos políticos de caráter fantástico, ele sabia que este processo
implica um cuidado de si, que possui ressonância social. Ele era mortal; estava
ficando cego; as mulheres o ignoravam; ele nunca tinha sido um poeta. Em maior
ou menor grau, todos estes são motivos para que a pessoa se revolte e enlouqueça,
a não ser que consiga manter a sanidade através de gesto de renúncia, de
despedida, que é igualmente um gesto de adoração. O que, em um quadro
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ampliado, seria um movimento de aceitação da morte, atrelada a uma exaltação da
vida, o ato de reter e deixar partir uma coisa infinita, isto é, o mundo. A
reconciliação aconteceu: mas apenas no breve intervalo da escrita de um parágrafo
ou dois, em que ele foi Dante, foi Walt Whitman, foi alguém que Dante e Walt
Whitman teriam desejado ser. Depois o que podia ser um tanto revoltante ele
voltou a ser Jorge Luis Borges.
Este Jorge Luis Borges, em 1948, elaborou um ensaio sobre Quevedo.
Quevedo, um poeta do século de ouro espanhol, foi, de certa forma, o Tolstoi de
Borges. Mas foi também um gênio cuja fama não teria se equiparado à do
intelectual russo. O argentino então se perguntava por que a um escritor de tantos
recursos, e inigualável dom verbal, havia sido reservado um reconhecimento
apenas sectário, circunscrita a círculos de iniciados. Queria entender o que havia
atrofiado a glória de um intelecto tão prodigioso. Uma das respostas, segundo
Borges, estava em um ensaio de Chesterton sobre G. F. Watts, também de 1904.
Onde está dito que a linguagem teve suas origens nos sentimentos humanos, não
na técnica ou na ciência: “Nunca o entendeu assim Quevedo, para quem a
linguagem foi, essencialmente, um instrumento lógico”, contrapõe Borges. Nem o
temperamento do espanhol, nem sua literatura, acrescenta o comentarista,
permitiam, ou sequer toleravam, o menor idiotismo, o menor desafogo
sentimental. E, em parte, isto explicaria seu destino póstumo: o aplauso público é
pouco indulgente para os que não fazem concessões desta ordem. Acima de tudo,
porém, estava o fato de que Quevedo não teria oferecido, em sua obra, um
símbolo que se apoderasse da imaginação das pessoas, atravessando o tempo com
o renovado frescor dos clássicos, como os círculos infernais de Dante, a violência
e a música de Shakespeare, o Quixote e seu fiel escudeiro, a baleia de Melville, os
labirintos de Kafka. Ao que tudo indica, uma coisa (o símbolo) não vem sem a
outra (os idiotismos, ou os desafogos sentimentais).
Borges, por sua vez, em um século de infâmias, desejou a fama, a glória e o
aplauso, e quis criar um símbolo eterno, maravilhoso, impessoal. O pré-requisito,
pelo menos, ele cumpriu, com fabricado esmero: escreveu um conto que é o
desafogo sentimental, solene e enternecido, de um idiota apaixonado. Trata-se da
história de um modesto funcionário público, a quem um dia foi outorgada uma
visão privilegiada da realidade, para que depois ele a difundisse entre os homens,
ao proclamar que a guardava como um tesouro, sob a forma de uma preciosa e
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precária lembrança, em meio à uma vida de humilhações, infortúnios e
desassossego. Mas não temos como compartilhar o que ele viu naquele dia, a não
ser através da mediação de um texto literário. De modo que o relato es hoje
incorporado ao imaginário de muitos leitores antes pelo que oculta do que pela
imagem de desvela. Nunca é demais repetir: “El Aleph” é um fracasso. E esta
talvez seja a razão de seu sucesso, como símbolo de uma experiência com a qual,
de uma maneira ou de outra, todos podemos nos identificar.
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5.3
Bem Está o que Acaba Bem
…as you are now, in this place, always and forever – like a flaming light.
Lorrie Moore, “Which Is More That I Can Say About Some People”
As duas primeiras subdivisões deste capítulo foram dedicadas a textos de
Jorge Luis Borges que, a meu ver, estão relacionados a transformações de longo
prazo no cenário sócio-cultural da alta modernidade. Transformações estas cujo
epicentro irradiador seria os Estados Unidos, a partir de onde influenciaram a
sociedade e a cultura de outros países, com maior impacto na metade ocidental do
globo, e crescente importância ao longo do século XX. No entanto, para finalizar
o estudo proposto, será válido dar alguma atenção à situação específica da
Argentina no pós-guerra, um tanto dissonante na comparação com a de outros
países, onde a vitória dos Aliados proporcionou uma retomada de valores
democráticos e liberais (em que pesem as alterações do modelo econômico
capitalista decorrentes da crise de 1929). Enquanto, de modo contrário a esta
tendência, em Buenos Aires instalou-se um governo em maior sintonia com ideais
de organização estatal e soberania popular presentes na doutrina fascista, após um
breve intervalo, entre o final da guerra e a efetiva ascensão de Juan Domingo
Perón ao poder.
A discussão será feita no propósito de compreender-se a inserção de Borges
neste contexto, na medida em que tal procedimento crítico revele alguma
pertinência. Devo ressaltar desde já, porém, que esta será uma etapa mais breve,
por dois motivos principais.
O primeiro se refere às dimensões que a exposição dos resultados da
pesquisa assumiu até este momento; parece-me que seria pouco apropriado
estendê-la ainda mais no sentido indicado. Inclusive porque não disponho de
conhecimentos, e recursos documentais ou bibliográficos, para fazê-lo, em
particular no que se refere à evolução do ambiente político da Argentina no
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322
período.
280
O que nos leva ao segundo motivo: creio que a própria obra de Borges
não oferece pontos de conexão fortes com o assunto, o que, por um lado, é
confirmado pela escassez de estudos mais diretamente voltados para o tema, e, por
outro, pode ser desmentido por investigações futuras, ou estudos existentes, que
não tive a oportunidade de ler. Mas, no geral, fico com a impressão de que o autor
reproduziu, em seus poucos textos e comentários relativos ao assunto, os métodos
utilizados para satirizar o fascismo italiano e o nazismo alemão, com as
recorrentes acusações de estetização da realidade,
281
de banalização da
violência,
282
e da degradação dos antigos padrões morais da pátria, “com a mera
disciplina usurpando o lugar da lucidez”.
283
Seria estéril iniciar agora um debate sobre até que ponto o regime de Perón
foi, de fato, uma simples transposição de hábitos e estruturas desta natureza para o
solo argentino. Deste modo, tudo o que poderia extrair destes artigos são
confirmações de hipóteses trabalhadas anteriormente, relativas a aspectos do
pensamento e da literatura de Borges. Daí a necessidade de uma justificativa para
a introdução do tema. E, segundo o propósito desta seção, ela está em aspectos
biográficos da trajetória profissional do autor. Pretendo, posteriormente, indicar
como a abordagem articula-se ao capítulo como um todo, tendo em vista a
repercussão dos fatores nele analisados na carreira de Borges; a princípio, deve ser
lembrada a situação em que ele se encontrava neste contexto.
Refiro-me ao fato de que, mesmo tendo um ou outro relato publicado no
exterior, e tendo alcançado certo prestígio local, Borges não possuía então
nenhum rendimento substancial e regular proveniente do ofício literário. Contava,
portanto, com o salário recebido na biblioteca Miguel Cané, para dar conta de ao
menos algumas despesas domésticas. Não se trata de exagerar a penúria de sua
família, mas as circunstâncias que o haviam levado a aceitar o emprego também
não tinham mudado desde então. Elas eram resultantes de um processo de
decadência financeira e social sofrido por outras famílias criollas da época,
280
Para uma introdução ao tema, que remeta a documentos e outras referências bibliográficas, ver
Carlos Altamirano, Bajo el Signo de las Masas. Buenos Aires: Emecé Editores, 2007.
281
Cf. BORGES, J. L. “L’Illusion Comique”. [Sur, Buenos Aires, n. 237, noviembre-diciembre de
1955]. In : ____. Borges en Sur, p. 55-57.
282
Cf. BORGES, J. L. y CASARES, A. B. “La Fiesta del Monstruo”. In: BORGES, J. L. Obras
Completas en Colaboración, p. 392-402.
283
BORGES, J. L. “Palabras pronunciadas por Jorge Luis Borges en la comida que le ofrecieron
los escritores”. [Sur, Buenos Aires, año XX, n. 142, agosto de 1946]. In: ____. Borges en Sur,
303-304.
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agravada pela crise econômica, e consolidada, no seu caso, pela morte do pai. Sem
que, em nenhum momento, Borges tivesse demonstrado possuir energias ou
talentos suficientes para revertê-lo, ou sem que a conjuntura, referente à expansão
do capitalismo financeiro, favorecesse o uso de seus talentos e energias para este
fim.
No intervalo de que tratamos, o ambiente político de Buenos Aires foi
marcado pela incerteza quanto à forma de governo a ser adotada, após a deposição
de Hipólito Yrigoyen. Vários presidentes se sucederam, alternando reformas de
viés liberal com medidas de repressão autoritária, mas em nenhum dos casos
assumindo o controle efetivo do horizonte de expectativas do país. Em 1943, um
golpe militar criou as bases para a ascensão de Perón; ainda assim, acredito que,
até 1946, Borges preservou suas esperanças no restabelecimento de um regime
constitucional sólido, nos moldes dos projetos nacionais oitocentistas, cuja versão
argentina havia sido interrompida com os tumultos ocorridos durante o século
XX. Vários manifestos por ele assinados na época proclamavam este desejo, o
qual estaria, em parte, de acordo com o curso internacional, na defesa de
paradigmas democráticos e liberais. Transcrevo uma passagem de um destes
panfletos:
Nos campos de batalha, o nazismo está vivendo seus últimos momentos. Enquanto
todas ass nações com um senso da dignidade humana se uniram para aniquilar essa
força do mal, nosso país foi conduzido ao isolamento por uma sucessão de
governos dissociados da vontade popular (...) Como artistas e escritores
conscientes do momento que passamos, lutaremos na medida de nossas forças para
que se restabeleçam em nossa pátria as liberdades fundamentais.
284
Parece-me que a retomada deste paradigma poderia implicar a recuperação,
na visão do autor, de valores e práticas da tradição britânica, que ele tanto
estimava. Entre eles, uma ética do dever expressa em serviços prestados ao
Estado, entendido como unidade política entre outras no plano internacional, mas
capaz de articular seus cidadãos em um esforço progressista conjunto. De modo
284
“En los campos de batalla, el nazismo está viviendo sus últimos momentos. Mientras todas las
naciones con un sentido de la dignidad humana se unieron para aniquilar esa fuerza del mal,
nuestro país fue conducido al aislamiento por una sucesión de gobiernos divorciados de la
voluntad popular (…) Como artistas y escritores conscientes de la hora, lucharemos en la medida
de nuestra fuerza para que se restablezcan en nuestra patria las libertades fundamentales”.
BORGES, J. L. [et. al.]. “Manifiesto de escritores y artistas”. [Antinazi, Por una Argentina Libre y
Democrática, Buenos Aires, año 1, n. 5, 22 de marzo de 1945]. In: ____. Textos Recobrados 1931-
1955, p. 347-9.
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que um evento desta ordem poderia resolver também a situação financeira de
Borges, caso lhe fosse destinado um cargo nesta estrutura, em reconhecimento de
sua disposição a executar tarefas em benefício da pátria.
O diagnóstico pode ser confirmado pela reação de Borges ao ser nomeado
diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, após a deposição de Juan
Domingo Perón, em 1955. Na ocasião, ele declarou: “Creio que todos nós,
argentinos, temos hoje um único dever, primordial e inescapável: superar receios
e anistiar rancores, para unir-nos na e na esperança”.
285
O que remetia aos
motivos centrais de “Tareas e destinos de Buenos Aires”, cuja análise, feita na
seção 3.2, teve como propósito enfatizar o estilo negociador e as propostas de
mediação contidas no discurso, atrelada à versão mais tradicional do
nacionalismo. Deste modo, parece-me equivocado situar na década de 1950 uma
possível metamorfose de Borges em um agente oficialista, conservador e
patriótico; desde 1930 sua índole e suas reflexões o teriam inclinado nesta
direção, embora circunstâncias históricas tivessem tornado a escolha anacrônica.
De maneira que, quando isto aconteceu, um tanto tardiamente, à parcimônia de
seu temperamento seria acrescentado um tom radiante e triunfalista: “Ressoam em
mim poemas da revolução que logo sairão à luz”, ele afirmou em outra entrevista,
intitulada “El flamante director de la biblioteca”. E logo adiante, nesta mesma
matéria, dizia que todos seus futuros escritos, mesmo que se passassem na
Finlândia, teriam alguma relação com os sucessos daquele ano. Mas que, para
tanto, não pretendia recorrer a uma documentação copiosa, pois se Homero o
houvesse feito, por exemplo, nunca teria escrito a Ilíada.
286
É perceptível o patetismo, o exagero e o ridículo de tais declarações. E mais
evidente ainda, em retrospectiva, é a dissonância entre as expectativas de Borges e
o futuro não muito distante do país. Perón retornaria ao poder, e a epopéia de
revolução de 1955 nunca seria escrita. Mas isto já ultrapassa os limites desta
pesquisa. Sobre o assunto, resta apenas apontar que, após o momento inicial de
exaltação, Borges recuperou certa noção da conjuntura em que se situava, e de
como nela ele seguia sendo uma figura um tanto deslocada, conforme persistissem
285
BORGES, J. L. “[Entrevista]: Jorge Luis Borges rechazó el ‘salario del miedo’ de la dictadura”.
[Crítica, 1º de octubre de 1955]. In: ____. Textos Recobrados 1931-1955, p. 365-368.
286
BORGES, J. L. “[Entrevista de Rafael R. de Stefano]: El flamante director de la biblioteca”.
[Revista Propósitos, Buenos Aires, año V, n. 704, 3 de noviembre de 1955]. In: ____. Textos
Recobrados 1931-1955, p. p. 365-8.
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as tensões, rancores e ódios da vida política local, mesmo que ele não estivesse
isento de tê-los alimentado. Isto é o que se depreende de um bem-humorado
comentário, registrado no diário de Bioy Casares em 1958, sobre o fato de ambos
terem assinado um manifesto, junto a outros agentes políticos locais, que
condenava os protestos contra uma visita de Richard Nixon à América do Sul,
realizada naquele ano. “Parecemos um grupo de velhos tories”, observou então
Borges. “De old fogeys”, complementou Bioy.
287
Mas, enfim, devo argumentar que o mais importante acontecimento no
percurso profissional de Borges não foi a nomeação para um cargo estatal, mesmo
que de certa importância, em 1955, e sim o início de sua atividade como
conferencista, sete anos antes. Esta lhe renderia resultados mais substanciais e
permanentes, tanto em termos materiais quanto no que se refere ao
reconhecimento público (além de lhe ter proporcionado uma série de viagens pelo
mundo, sempre acompanhado pela mãe ou outras mulheres, em função das
dificuldades causadas pela cegueira). A atividade lhe conferia também uma nova
identidade intelectual, em que ele se reconhecia com satisfação, tendo encontrado
um lugar onde seus talentos e energias estavam de acordo com as necessidades do
ofício, a tal ponto que ele viesse a realmente se destacar em sua execução. E isto
implica a recuperação de questões trabalhadas no decorrer deste capítulo, na
medida em que o êxito alcançado era de ordem pessoal, independente de maiores
amparos ou estruturas do governo. Com isso, os sentimentos de solidão, estupidez
e inutilidade, que Borges associava à escrita de contos como La casa de
Astérion”, seriam de repente atenuados, e até mesmo revertidos em seus
contrários. De modo que, para entendermos este giro, é exatamente da imagem do
escritor solitário, tíbio e inútil que devemos partir.
Tudo começou em 1946, quando, com a instalação do novo governo, ele foi
destituído de seu posto na biblioteca Miguel Cané, sendo-lhe designado um cargo
em um mercado de víveres, frutas e hortaliças. A manobra não devia ter outro
propósito do que simplesmente demovê-lo de sua condição de funcionário
público, conforme, como era de se esperar, ele se recusasse a assumir a nova
função. É pouco provável que o próprio Juan Domingo Perón tenha se ocupado de
propor a remoção; a idéia deve ter partido de algum membro do governo, que
preservasse ressentimentos específicos em relação a Borges, aproveitando a
287
Apud CASARES, A. B. Borges, p. 441.
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oportunidade para a vingança e a humilhação. Tampouco o autor entendeu o
episódio como um ato político sério, contra qualquer tipo de ameaça que ele
pudesse representar, na posição em que se encontrava na biblioteca Miguel Cané.
Desde o início, a maneira como o relatou de modo algum lhe conferia uma aura de
martírio ou heroísmo, antes enfatizando a motivação mesquinha do gesto, atrelada
ao que havia de insignificante ou inofensivo em sua própria atuação política. Tal
como explicaria a um jornalista de Montevidéu, em 25 de julho de 1946:
Como tenho a mania de assinar tudo aquilo que é assinável, aconteceu que assinei
tudo quanto é manifesto que me trouxeram os amigos. Esses manifestos ingênuos
em que se afirma que a verdade deve triunfar e que a liberdade é livre, como diz o
camponês (...) poucos dias me mandaram chamar para comunicar-me que eu
tinha sido deslocado de meu posto de bibliotecário para o de inspetor de aves
leia-se galináceos em uma mercado da rua Córdoba (...) Disseram que não se
tratava de uma questão de idoneidade, mas de uma sanção por eu andar por
dando uma de democrático, e ostentando minha assinatura em tudo quanto é
declaração que saía. Compreendi, então, que a idéia era me molestar ou
simplesmente me humilhar.
288
O discurso compreende uma auto-representação pela via da ingenuidade, do
senso comum, e de um perplexo estranhamento dos trâmites envolvidos, que
Borges costumava manejar com destreza e engenho. Complementados por uma
nota de ironia, não destituída de rancor, este elementos foram mantidos em suas
rememorações do caso, como esta que se segue:
Em 1946, um presidente de cujo nome não quero me lembrar subiu ao poder. Logo
um dia depois, fui honrado com a notícia de que tinha sido “promovido” de meu
cargo na biblioteca para o de inspetor de galináceos e coelhos nos mercados
públicos. Fui à prefeitura para descobrir o que estava acontecendo. “Olhe aqui”, eu
disse, “é um tanto estranho que, dentre todos na biblioteca, exatamente eu tenha
sido considerado merecedor desta posição”. “Bom”, o funcionário respondeu,
“você esteve do lado dos Aliados. Esperava o quê?”.
289
288
“Como a me da por firmar todo lo firmable, resulta que firmé cuanto manifiesto me trajeron
los amigos. Esos manifiestos ingenuos en que se afirma que la verdad debe triunfar y que la
libertad es libre, como dice el paisano (…) Hace pocos días me mandaron llamar para
comunicarme que había sido trasladado de mi puesto de bibliotecario al de inspector de aves
léase gallináceas en un mercado de calle Córdoba (…) Se me respondió que no se trataba de
idoneidad sino de una sanción por andarme haciendo el democrático ostentando mi firma en toda
cuanta declaración salía por ahí. Comprendí, entonces, que se trataba de molestarme o de
humillarme simplemente”. BORGES, J. L. “[Entrevista]: Jorge Luis Borges, escritor que
enorgullece a la Argentina, fue enviado a inspecionar gallinas”. [Diário El Plata, Montevideo, 25
de julio de 1946]. In: ____. Textos Recobrados 1931-55, p. 350-2.
289
“In 1946, a president whose name I don’t want to remember came into power. One day soon
after, I was honored with the news that I had been ‘promoted’ out of the library to the
inspectorship of poultry and rabbits in the public markets. I went to the City Hall to find out what
it was all about. ‘Look here’, I said, ‘it’s rather strange that among so many others at the library I
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Neste caso, é também possível que a ênfase em sua posição durante a guerra
fosse um gesto de reconhecimento, já que, àquela altura, os Estados Unidos
haviam se tornado o país de onde recebia mais convites para conferências e
palestras. E, disto tudo, é possível inferir que o antagonismo de Borges em relação
a Perón teve suas origens tanto em questões de princípios, quanto em
circunstâncias mais prosaicas e que as segundas tiveram certa relevância. Por
mais que detestasse o novo líder, seus métodos e aquilo que ele representava,
talvez Borges tivesse preferido preservar seu salário mensal, a fazer uma oposição
mais aberta ao regime, caso lhe fosse permitido escolher. Emir Rodríguez
Monegal conta como ele veio a converter-se em um símbolo da oposição ao
peronismo de modo inesperado, tendo em vista a timidez, que o tornava pouco
apto a este destino; e Edwin Williamsom ressalta a angústia provocada pelo
desemprego, que teria durado vários meses, sem que nenhuma ocupação rentável
surgisse para resolver o dilema.
290
Naquele instante, portanto, o importante era
encontrar um trabalho, qualquer que fosse, que correspondesse a gastos diários, e
a determinada noção de dignidade. Ou não exatamente qualquer trabalho: a
princípio, dar aulas e palestras estava fora de questão.
Em um par de ocasiões, mencionei as dificuldades de Borges para falar em
público. A primeira, quando notei que a difusão radiofônica de “Tareas y destinos
de Buenos Aires” foi o mecanismo que lhe teria permitido fazer um discurso oral,
para uma audiência mais vasta, sem ficar completamente desconcertado. A
segunda, quando foi observada sua ausência no congresso do PEN Club de 1936,
onde tais limitações ficariam sublinhadas, em contraste com a eloqüência de F. T.
Marinetti, Jules Romains, etc.. A estes nomes, podem ser acrescentados outros,
que se tornaram objeto da antipatia da Borges, não somente por razões intelectuais
ou políticas, mas também pela afetação oratória e exageros retóricos: Benito
Mussolini, Adolf Hitler, Juan Domingo Perón. Todos eles personagens públicos
capazes de encantar as massas, com afirmações magistrais e imagens impactantes,
ostentando uma convicção inabalável em suas doutrinas, e integrando grandes
should be singled out as worthy of this new position’. ‘Well’, the clerk answered, ‘you where on
the side of the Allies – what do you expect?’”. BORGES, J. L. An Autobiographical Essay, p. 244.
290
Cf. RODRÍGUEZ MONEGAL, E. Jorge Luis Borges: a literary biography. New York: E. P.
Dutton & Co., 1978, p. 193, e WILLIAMSON, E. Borges: una vida. Trad. Elvio E. Gandolfo.
Buenos Aires: seix Barral, 2006, p. 331 passim.
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espetáculos forjados para causar uma sensação de intensidade e poder. Enquanto
Borges sofria até mesmo de gagueira. Daí a hilaridade a que se referia na seguinte
citação, extraída de um comentário sobre a conjuntura mencionada:
Eu agora estava desempregado. Muitos meses antes, uma velha senhora inglesa
havia lido minhas folhas de chá e dito que em breve eu ia viajar, falar, e asssim
fazer grandes somas de dinheiro. Quando contei isso para minha mãe, nós dois
demos risada, porque falar em público estava muito além de minhas capacidades.
Neste contexto, um amigo veio socorrer-me, e fui nomeado professor de literatura
inglesa na Associação Argentina de Cultura Inglesa. Convidaram-me também para
dar aulas de literatura clássica norte-americana no Colégio Livre de Estudos
Superiores.
291
Como se vê, nos temas dos primeiros cursos oferecidos por Borges
repercute sua vinculação à tradição literária anglo-saxônica. Talvez o domínio que
ele havia adquirido sobre o assunto ao longo da vida tenha contribuído para que
ele se sentisse menos inseguro ao avaliar proposta. Mas a súbita conversão de
Borges em professor e palestrante, que o levaria a ganhar dinheiro e viajar o
mundo, não aconteceu sem ser precedida por instantes de tensão. Ele aceitou os
primeiros convites por falta de alternativas, ou pelo menos assim divulgava o fato,
pois viria a construir seus métodos e identidade como conferencista justamente a
partir de uma inadequação pressuposta. E, permanecendo por enquanto no vel
factual e anedótico, consta que Borges teria inclusive recorrido a um psicólogo, o
dr. Kohan-Miller, por sentir-se cada vez mais atormentado com a aproximação da
palestra de estréia (e que, em outras ocasiões, havia procurado o médico, para
resolver problemas de timidez em relação às mulheres). Recebeu então, segundo
Williamsom, o conselho de tomar algo forte, uma caña, antes de seguir para o
evento. Parece não haver registros de que ele de fato o tenha feito.
Mas também é pouco provável que a angústia e o pânico de Borges tenham
sido apenas construções a posteriori, pensadas para criar um enredo, uma certa
narrativa, tendo o episódio como material. A apresentação inicial no Colegio
Libre demandou um longo trabalho na composição de um texto, para que ele se
291
“I was now out of a job. Several months before, an old English lady had read my tea leaves and
foretold that I was soon to travel, to speak, and to make vast sums of money thereby. On telling
my mother about it, we both laughed, because public speaking was far beyond me. At this
juncture, a friend came to the rescue, and I was made a teacher of English literature at the
Asociación Argentina de Cultura Inglesa. I was also asked at the same time to lecture on classic
American literature at the Colegio Libre de Estudios Superiores”. BORGES, J. L. An
autobiographical essay, p. 244.
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sentisse seguro durante a exposição oral. Mas o texto resultou longo demais,
possivelmente monótono, após várias revisões e ajustes, e isto teria lhe impedido
de já deixar preparadas as próximas palestras, o que também era motivo de
ansiedade, na medida em que outros oito estavam previstas, sob o risco de
exigirem esforços igualmente desmedidos e inúteis. Caso a primeira não fosse um
fracasso definitivo e estrondoso. Utilizo a ênfase tal como ela surge nas memórias
do autor:
Quando foi chegando a hora, fui ficando cada vez mais atordoado. Minha série de
nove aulas seria sobre Hawthorne, Poe, Thoreau, Emerson, Melville, Whitman,
Twain, Henry James, e Veblen. Escrevi a primeira. Mas não tive tempo de escrever
a segunda. Além disso, pensando na primeira aula como o Juízo Final, achei que
somente a eternidade viria depois. Mas ela correu até bem – milagrosamente.
292
Ou seja: ele chegou, leu o texto que havia preparado, e nenhuma catástrofe
aconteceu. Maria Ester Vázquez relata que, dada a extensão do ensaio, a platéia
realmente esteve à beira da monotonia, mas certa monotonia nunca deixaria de ser
constitutiva da estratégia oral de Borges.
293
Ademais, os milagres costumam ser
simples, como dizia Chesterton: eles são simples porque são milagres. E, mesmo
destituída de suas bases teológicas, a conduta do escritor britânico, e de seus
personagens, seria incorporada por Borges, em suas falas, através das virtudes da
simplicidade, do discernimento e da reflexão ponderada, na qual se insinuavam
momentos de articulação das múltiplas referências isoladas, apontando para uma
totalidade que não chega a completar-se, sem recair mais uma vez na
fragmentação. Nisto, se configura um equilíbrio delicado, oscilando
constantemente entre a afirmação e a negação da ordem.
Por outro lado, a terminologia empregada para retratar a ameaça de uma
catástrofe doomsday, o apocalipse, o juízo final – serve para nos lembrar de que
se tratava de um texto sobre Hawthorne, cujo universo de iras e castigos também
teve sua expressão secularizada na obra do escritor argentino, a se confirmarem
minhas hipóteses das últimas seções. Estamos novamente, portanto, diante do
problema de sua inserção em um mundo transtornado e sem limites, onde os
expedientes retóricos da cortesia podem evitar a instalação do caos, guiando um
292
BORGES, J. L. An autobiographical essay, p. 245.
293
VÁZQUEZ, María Esther. Jorge Luis Borges: esplendor e derrota. Trad. Carlos Nougué. Rio
de Janeiro: Record, 1999, p. 193.
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cuidadoso trabalho de reunião de pontos dispersos, para que sejam criados
vínculos e significados comuns, em meio à confusão generalizada.
Mais uma vez, refiro-me ao modo como Borges recorreu ao exemplo
socrático, ao exemplo de Macedonio Fernández, para manejar a linguagem e
delinear uma imagem de si. Porém, neste caso, mais propriamente através do uso
da voz, e sem projetar-se em direção a um arrebatamento de igual intensidade à
alcançada em suas frustrantes investidas como amante ou poeta. Seus discursos
não atingiam os mesmos cumes do enlevo e da exaltação presentes em “El
Aleph”; mas operariam com movimentos pendulares semelhantes, entre o cômico
e o belo, entre o desconcerto e a desenvoltura, sem chegar a nenhuma das
extremidades destes duplos, na prática de um estilo médio que remete a
Montaigne, a articular o baixo e o elevado, com uma atitude mediadora. Sobre
seus métodos e modulações ao executar os discursos, ficaram alguns testemunhos
reveladores. Vejamos, primeiro, um registro de Bioy Casares:
Quinta-feira, 21 de julho (1949). Hoje, pela primeira vez, escutei uma conferência
de Borges. Falou sobre George Moore. Falou com tanta naturalidade que me fez
pensar que a dificuldade de falar em público devia ser fictícia. Não fala com ênfase
de orador: conversa, raciocinando com liberdade e inteligência.
294
E, em segundo lugar, outra entrada do diário, quando a fama de Borges
estava mais difundida, embora houvesse os que não apreciavam seu estilo:
Sábado, 2 de abril (1960). Vou à biblioteca. Borges uma conferência sobre
livros essenciais. Eu digo a mim mesmo: “Como estão equivocados os que
afirmam que ele não fala bem: não fala com eloqüência retórica, fala pensando e
pensa com liberdade, com profundidade, com riqueza. Eu nunca poderia falar
assim; pensar, diante de tanta gente escutando, assim.
295
Por fim, o relato de Rodríguez Monegal, mais detalhista em suas
observações, sobre um conjunto de palestras presenciadas:
294
“Jueves, 21 de julio (1949). Hoy, por primera vez, una conferencia de Borges. Habsobre
George Moore. Habló tan naturalmente que me hizo pensar que la dificultad de hablar en público
debía ser ficticia. No habla con énfasis de orador: conversa, razonando libre e inteligentemente”.
CASARES, A. B. Borges, p. 35.
295
“Sábado, 2 de abril (1960). Voy a la biblioteca. Borges da una conferencia sobre libros
esenciales. Yo me digo: ‘Que equivocados los que afirman que no habla bien: no habla con
elocuencia retórica, habla pensando e piensa con libertad, con profundidad, con riqueza. Nunca
podría yo hablar así; pensar, ante mucha gente que escucha, así”. CASARES, A. B. Borges, p.
612.
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A palestra tinha seu próprio ritual. Borges sentava-se muita quietamente, nunca
olhando diretamente para a platéia e dirigindo seus olhos cegos para um ponto
distante. Enquanto falava, ele costumava juntar as mãos em movimentos pequenos
e precisos, como quem faz uma oração, ou discretamente as movimentava ao redor
de si; palestrava em voz baixa, até um tanto monótona, como se fosse um padre ou
um rabino (...) A imobilidade, o tom baixo, a concentração quase fanática nas
palavras ditas – isto era a palestra, e não o usual histrionismo dos oradores (...) Em
poucos anos, Borges se tornou um dos mais famosos palestrantes na região do Rio
da Prata.
296
De modo que, pela via da deliberação racional, concentrada e lúcida, ele não
deixava de alcançar uma espécie de transe em suas falas. Este é o ponto em que o
indivíduo frágil e desajeitado lugar ao um explicador do cosmos. E, ao repetir
estes gestos, com artificiosa espontaneidade, para públicos numerosos, o half-wit
solitário e balbuciante viria a encontrar uma inédita felicidade. Isto é o que se
depreende das páginas em que o assunto é tratado nas memórias do autor, talvez
as mais alegres de toda a obra, por estarem despojadas do sentimento de lástima,
nunca completamente dissociado da descrição do Aleph. E por não terem o
aspecto irrealista dos pronunciamentos posteriores aos eventos de 1955, nos quais
ele se comparava à figura de Homero. Elas partem de cômicos embaraços e
constrangimentos; mas se encerram com estas palavras:
Então, aos quarenta e sete anos, vi uma nova e excitante vida abrir-se para mim.
Viajei para cima e para baixo pela Argentina e pelo Uruguai, dando palestras sobre
Swedenborg, Blake, os místicos persas e chineses, budismo, poesia gauchesca,
Martin Buber, a Cabala, as Mil e Uma Noites, T. E. Lawrence, poesia medieval
germânica, as sagas islandesas, Heine, Dante, expressionismo, e Cervantes. Ia de
cidade em cidade, passando a noite em hotéis que nunca veria de novo. Às vezes
minha mãe ou uma amiga me acompanhavam. Não apenas acabei ganhando mais
dinheiro do que na biblioteca, mas tive prazer com o trabalho, e senti que ele me
justificava.
297
296
“The lecture had its own ritual. Borges sat very quietly, never looking directly at the audience
and focusing his half-blind eyes on a distant spot. While lecturing, he would join his hands in
small, precise movements of prayer or discreetly move them around; he would deliver his speech
in a rather monotonous, low voice, as if he were a priest or rabbi (…) The immobility, the low
tone, the almost fanatical concentration on the spoken words all that was the lecture and not the
usual histrionics of the orator (…) In less than a few years Borges has become one of the most
successful lecturers in the River Plate area”. MONEGAL, E. R. Borges: a literary biography, p.
396.
297
“So, at forty-seven years, I found a new and exciting life opening up for me. I traveled up and
down Argentina and Uruguay, lecturing on Swedenborg, Blake, The Persian and Chinese mystics,
Buddhism, gauchesco poetry, Martin Buber, The Kabbalah, the Arabian Nights, T. E. Lawrence,
mediaeval Germanic poetry, the Icelandic sagas, Heine, Dante, expressionism, and Cervantes. I
went from town to town, staying overnight in hotels I’d never see again. Sometimes my mother or
a friend accompanied me. Not only did I end up making more money than at the library, but I
enjoyed the work and felt that it justified me”. BORGES, J. L. An autobiographical essay, p. 245.
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Poucas vezes Borges consentiu em escrever algo semelhante, que se que
aproximasse de tal maneira da ostentação de um sucesso. Em parte, porque teve
poucas oportunidades e motivações para tanto, mas também pelo cultivo do
understatement, aliado ao hábito de falar de si mesmo usando estranhos símbolos
e cifras. Em sua perspectiva, cogitar ter encontrado a própria justificação era de
uma rara ousadia, requerendo palavras claras e diretas, mesmo sob risco de
denotarem orgulho e altivez. O que a medida de como, naquela ocasião, ele
teria descoberto em seu novo status profissional uma fonte não de alegria,
como também de dignidade.
No mais das vezes, porém, preservaria em seus textos as nuances dubitativas
usuais, empregadas na composição de peças flutuantes e enigmáticas, mesmo as
que igualmente se referiam àqueles desdobramentos biográficos. Isto está
relacionado a uma postura que evita o comprometimento com afirmações
sintéticas, ao mesmo tempo em que reúne, através da análise, um conjunto de
referências, que indica uma via para a ntese. Tendo isto em vista, entendo que
“Historia de los ecos de un nombre”, um ensaio de 1955, reencena os
acontecimentos vividos por Borges a partir de 1946, mas nesta última chave, a
que sobrepõe comentários e mais comentários a um fundo secreto e desconhecido,
às vezes aproximando-se de uma revelação magistral do segredo, mas sempre
recaindo mais uma vez na dispersão e na perplexidade.
298
Trata-se, de acordo com
este enquadramento, de um texto autobiográfico, sobre as misérias e a grandeza de
ser Jorge Luis Borges, ou os profundos desapontamentos e as comoções pontuais
de sua trajetória. Mas tudo se passa como se ele estivesse falando de outra coisa.
De imediato, o ensaio se inicia remetendo à resposta de Deus a Moisés,
relatada no livro do Êxodo, ao ser indagado a respeito de Seu nome: Eu sou o que
sou, Ehych asher ehych (o ensaísta lembra que, para o pensamento mágico, ou
primitivo, ou místico, os nomes não são símbolos arbitrários, mas parte vital
daquilo que definem). Ele prossegue então com uma lista das variadas
interpretações do nome de Deus, que, revelado, não é mais causa de conforto do
que de desassossego para os homens. A teologia católica dele teria deduzido que
somente Deus existe de fato: os homens, sem Deus, não são nada, enquanto Deus,
298
BORGES, J. L. “Historia de los ecos de un nombre”. [Cuadernos por el congreso de la libertad
de la cultura. París, noviembre-diciembre 1955, p. 10-12]. In: ____. Otras Inquisiciones. OC, vol.
2, p. 136-139.
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sem os homens, é Deus. Por outro lado, para hebraístas como Martin Buber, a
resposta seria um desvio, um irônico expediente divino para demonstrar o caráter
vão da pergunta. Pois o verdadeiro nome de Deus estaria além da compreensão
humana, e tudo o que esta poderia obter, ao indagá-lo, era uma maior
desorientação da consciência e do pensamento. Borges finaliza este trecho,
portanto, com a imagem de um mundo instável, onde ao transtorno causado pelo
subterfúgio divino corresponde o desconhecimento, pelos indivíduos, do
significado de seus próprios nomes. Neste contexto, é possível cogitar uma
terceira interpretação, a de que Deus tampouco soubesse exatamente o que estava
dizendo. Acrescente-se a relação, de identidade e diferença, entre o Eu sou o que
sou de Deus, o idiossincrático I would prefer not to de Bartleby, e o El hecho es
que soy único de Astérion. Para que, na seqüência, seja inserido no conjunto desta
discussão o parágrafo central do ensaio:
Multiplicado pelas línguas humanas Ich bin der ich bin, Ego sum qui sum, I am
that I am –, o sentencioso nome de Deus, o nome que, a despeito de constar de
muitas palavras, é mais impenetrável e mais firme do que os que constam de uma
única, cresceu e reverberou pelos séculos, até que em 1602 William Shakespeare
escreveu uma comédia. Nessa comédia entrevemos, muito lateralmente, um
soldado fanfarrão e covarde, um miles gloriosus, que, por meio de um estratagema,
consegue ser promovido a capitão. O ardil é descoberto, o homem é degradado
publicamente, e então Shakespeare intervém e põe em sua boca palavras que
refletem, como em um espelho caído, aquelas outras que a divindade pronunciou
na montanha: “Não serei mais capitão, mas hei de comer, e beber, e dormir como
um capitão; isto que sou me fará viver”. Assim fala Parolles e bruscamente deixa
de ser um personagem convencional da farsa cômica para ser um homem e todos os
homens.
299
Neste movimento, o texto se projeta em direção a uma síntese, a uma
resposta altiva e digna, por parte da vil criatura singular, aos embaraços,
constrangimentos e misérias da vida terrena. E, no recurso à oralidade, como
299
BORGES, J. L. História dos ecos de um nome”. In: ____. Outras Inquisições. Trad. Ségio
Molina. OC [edição brasileira], vol. 2, p. 142-5. “Multiplicado por las lenguas humanas Ich Bin
der ich Bin, Ego sum qui sum, I am what I am –, el sentencioso nombre de Dios, el nombre que a
despecho de constar de muchas palabras, es más impenetrable y más firme que los que constan de
una sola, creció y reverberó por los siglos, hasta que en 1602 William Shakespeare escribuna
comedia. En esta comedia entrevemos, asaz lateralmente, a un soldado fanfarrón y cobarde, a un
miles gloriosus, que ha logrado, a favor de una estratagema, ser ascendido a capitán. La trampa se
descubre, el hombre es degradado públicamente, y entonces Shakespeare interviene y le pone en la
boca palabras que reflejan, como en un espejo caído, aquellas otras que la divinidad dijo en la
montaña: “Ya no seré capitán, pero he de comer y beber y dormir como un capitán; esta cosa que
soy me hará vivir”. Así habla Parolles y bruscamente deja de ser un personaje convencional de la
farsa cómica y es un hombre y todos los hombres”.
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veículo da transformação do cômico no belo (utilizado também por Shakespeare
em Midnight Summer’s Dream, por exemplo), vejo repercutir a então recente
experiência profissional de Borges. Mas, daí em diante, o autor como que se
distancia novamente dos objetos de seu discurso, introduzindo um signo de
separação, no que prometia ser o indício de uma identidade. Ele se refere a
Jonathan Swift, que, velho, louco e moribundo, teria murmurado antes de morrer,
não se sabe se com desespero ou com resignação: I am what I am, I am what I am,
I am what I am. Comentário de Borges: “Nada mais patético que sua aplicação
das misteriosas palavras de Deus”.
Por último, são rememoradas palavras supostamente ditas por
Schopenhauer, na proximidade da morte, quando ele teria declarado que, se
alguma vez se acreditara infeliz, isto teria acontecido em função de um equívoco.
Ele não era o professor suplente que não havia obtido a titularidade, não era o
acusado em um processo de difamação, não era o humilhado pelo desdém de uma
namorada, não era o enfermo que não podia sair de casa – era o autor de O Mundo
como Vontade e Representação, que tinha dado uma resposta ao enigma do Ser,
da qual os pensadores dos séculos futuros se ocupariam. Borges cita a fala na
íntegra, para depois fazer seu último comentário:
Justamente por ter escrito O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer
sabia muito bem que ser um pensador é tão ilusório quanto ser um doente ou um
desdenhado e que ele era outra coisa, profundamente. Outra coisa: a vontade, a
obscura raiz de Parolles, a coisa que era Swift.
300
Assim como Borges foi o funcionário ofendido e o conferencista famoso.
Além de ter sido o poeta dos subúrbios, o militante radical, o biógrafo de
Carriego, o satirista de hard guys, o orador radiofônico, o autor de Pierre Menard.
E o moralista paranóico, o detetive prosaico, o Minotauro atrapalhado, e o homem
que escreveu “El Aleph”. Sendo que todas estas coisas são tumultos sobrepostos a
outra, que chamamos de Jorge Luis Borges, sem que isto tenha um significado
muito nítido ou estável. O próprio escritor, em seus jogos de identidades e
diferenças, de união e separação, de equilíbrio e dispersão, terá nos subtraído a
300
“Precisamente por haber escrito El mundo como voluntad y como representación,
Schopenhauer sabía muy bien que ser un pensador es tan ilusorio como ser un enfermo o un
desdeñado y que él era otra cosa, profundamente. Otra cosa: la voluntad, la oscura raíz de Parolles,
la cosa que era Swift”.
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possibilidade de definir este nome que ecoa. Talvez a quantidade de comentários
existentes sobre sua obra decorra deste fator, que é também um convite à
continuidade do trabalho interpretativo. À qual ofereço esta contribuição.
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6
Conclusão
Desde que foi reconhecida como um dos produtos mais instigantes do
ofício literário no século XX, a obra de Jorge Luis Borges tornou-se um foco de
convergência para diversas abordagens críticas, que fizeram da bibliografia a
respeito um corpus à parte de variações sobre um mesmo tema. Este trabalho foi
apresentado como um esforço interpretativo que, na proposta de integrar-se a tal
conjunto de reflexões, esteve atento à especificidade dos textos do autor,
conferindo uma ressonância sócio-política às idéias e significações neles
implicados, através da mobilização de determinados quadro contextuais, que os
próprios escritos de Borges ajudaram a compor. Entretanto, uma vez terminada
esta tarefa, dentro dos limites temáticos e cronológicos que determinei para seu
encerramento, creio ser possível, e inclusive recomendável, o esboço de uma
conclusão menos dependente de um objeto de análise singular. Para isso, serão
retomados de maneira sintética alguns dos resultados obtidos com a pesquisa, mas
para que eles sirvam a uma discussão que extrapola o âmbito da crítica sobre a
obra de Borges.
Refiro-me, sobretudo, às diferenças e interpenetrações internas à cultura
anglo-saxônica, tal como o assunto surgiu no último capítulo. Pois acredito ser
este o enfoque comparativo que melhor pode nos ajudar a compreender
determinadas possibilidades e contradições da sociedade e da literatura
contemporâneas, em relação a outros que foram debatidos no decorrer do trabalho.
Parto do pressuposto de que diversas das transformações históricas
experimentadas no século XX podem ser compreendidas do ponto de vista da
substituição, nem sempre completa ou irreversível, de paradigmas ingleses por
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critérios norte-americanos na condução da vida pública, econômica e cultural em
diversas partes do globo. Isto porque, dada a influência exercida por estes
modelos em tais esferas, eles teriam adquirido uma relevância prática cujo
entendimento por parte de críticos culturais é indispensável para que seja atingida
uma visão de conjunto da história do ocidente, em seus movimentos estruturais de
longo prazo.
Decerto, esta é uma leitura panorâmica, e restritiva em mais de um sentido.
Primeiramente, vale ressaltar o óbvio, isto é, que ela se atém a uma linha de
continuidades e rupturas vinculada um tanto exclusivamente a valores e idéias
predominantes em determinada faixa do globo, ignorando alternativas
radicalmente contrárias que possam ter surgido ou venham a surgir (em se falando
da segunda metade do século, a alternativa soviética é uma notável ausência na
discussão a ser feita, mas incluí-la neste texto demandaria outro tipo de orientação
à análise). Dentro dos limites da proposta, portanto, o foco está mesmo voltado
para variações referentes a sociedades liberais e capitalistas, considerando-se que
a crescente apropriação destes parâmetros por governos e populações aumenta
a necessidade de que eles sejam compreendidos em seus fundamentos. E, neste
sentido, a duplicidade indicada pela dissociação entre “Inglaterra” e “Estados
Unidos”, além de ser eventualmente um caminho útil a esta compreensão,
desestimula a denúncia de que um “pensamento único” estaria por trás do
fenômeno do capitalismo contemporâneo, conforme se verifiquem distinções
basilares entre ambas as esferas de significados. Nas últimas décadas, por sinal, a
abertura e o êxito econômico da China, com seu lento, restritivo e controlado
processo de liberalização política, fez por incluir outras variáveis nesta
discussão.
Por outro lado, algumas das reações mais importantes à vertente anglo-
saxônica tomada de modo geral foram mencionadas no decorrer do trabalho. No
plano da história das idéias, apareceu então o tema da correspondência entre dois
movimentos extremos de repúdio ao mundo burguês, o que teria motivado uma
atípica cumplicidade, embora a Alemanha e a França fossem inimigos declarados
na Segunda Guerra. Acontece que ambos puderam ser creditados a ambientes de
desespero e fastio cultural, os quais favoreciam a noção de que um salto repentino
seria responsável por uma mudança definitiva do curso histórico planetário,
atrelada ou à promessas de pacificação plena da humanidade, ou ao prospecto de
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um revigoramento da espécie pela via do belicismo. E o primeiro destes fatores
não deixou de ser apropriado à momentânea reafirmação do segundo, na medida
em que denotava um apático desinteresse na defesa do legado da modernidade
européia.
O vitalismo germânico suplantou a lógica pacifista francesa em 1940,
consolidando-se como a mais séria ameaça à tradição oitocentista. Porém, cinco
anos depois, sua derrota não seria menos contundente. E tais acontecimentos
chamam a atenção para o aspecto pontual da repercussão de tais doutrinas, tendo
em vista o período do pós-guerra, quando, mesmo que elas tenham ressurgido
aqui e ali com graus distintos de sistematização, jamais alcançaram a mesma
amplitude verificada nos anos 30. E, para sua caracterização como fenômenos
isolados, contribui a ressalva de que, enquanto seus raciocínios decorriam de
traços do temperamento francófono ou prussiano, eles o faziam somente às custas
de corrompê-los ou degradá-los, em fórmulas de pensamento enrijecidas e
caricaturescas, ou imposturas que pouco e nada acrescentavam à herança clássica
que atualizavam. “França” e “Alemanha” continuam sendo idéias necessárias à
civilização, cuja negação ou abandono irrestrito implicaria um empobrecimento
de nossa visão sobre a experiência da modernidade. Contudo, o mesmo talvez não
seja verdade sobre os agentes que converteram tais idéias em inconsistentes
simulacros de suas melhores expressões. Uma das coisas mais desconcertantes
sobre Hitler é o fato dele ter sido absolutamente desnecessário.
Ao mesmo tempo, o papel assumido pelos EUA na campanha dos Aliados
confere ênfase ao fato de que a antiga ordem conservadora sofria um processo de
declínio, e nos permite situar na primeira metade do século XX o momento em
que também a “Inglaterra” tornou-se uma idéia, com menor incidência prática na
realidade do que tivera no período anterior. Decerto, um dos objetivos desta
conclusão é reiterar a percepção de que dela permaneceram determinadas
orientações, de conduta política e criação artística, das quais podem ser deduzidos
referenciais para a análise de ações e textos posteriores à decadência do império
britânico; ações e textos que não necessariamente tiveram sua origem em solo
inglês, não necessariamente sofreram uma influência direta de intelectuais e
autores ingleses, mas de algum modo configuraram contrapontos à aceitação
incondicional da nova imagem do mundo, passíveis de serem entendidos como
gestos de recuperação de hábitos e costumes que associo ao século XIX. Mas
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devo explorar este ponto logo adiante. Por ora, e a partir das últimas observações,
creio que o diagrama abaixo oferece uma imagem resumida do percurso histórico
discutido, com seus embates, mutações e continuidades:
E, tendo em vista os fundamentos, valores, unidades políticas, formas
literárias, entre outros componentes, que podem ser vinculados a cada um destes
vetores, componho o seguinte quadro:
INGLATERRA ALEMANHA FRANÇA EUA
Moral cristã Estética
dionisíaca
Estética
apolínea
Ética protestante
Nação Raça Humanidade Indivíduo
Conservadorismo Totalitarismo
bélico
Idealismo
pacifista
Liberalismo/reacionarismo
Providência Ontologia Lógica Teologia negativa
Novo testamento Barbárie
arcaica
Antiguidade
clássica
Velho testamento
Comédia e lírica Epopéia Oratória Tragédia bíblica
Vale dizer que a proeminência que os países assumem no interior dos
quadros isolados é circunstancial; ela diz respeito a um método expositivo que
adotei neste estudo em particular, podendo ser modificada de acordo com outros
interesses ou fontes de pesquisa (Max Weber, por exemplo, provavelmente
situaria modalidades religiosas no topo da lista; Erich Auerbach teria destacado as
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formas literárias; Georg Simmel talvez começasse com as variedades do modo de
produção e uso de artefatos de cozinha, daí desdobrando seu raciocínio para
categorias políticas, intelectuais e filosóficas). E, se estão sublinhados os dois
conjuntos do mundo anglo-saxão, isto acontece porque, como antecipei, as
relações entre ambos são as que me interessam agora. Trata-se então de elucidar,
ao menos em parte, o que de recorrente nas interseções e diferenças entre cada
um dos pares deste grupo, para que um argumento geral a respeito possa
apresentar-se.
Antes de tudo, a própria questão religiosa merece um esclarecimento,
porque a vinculação da moral cristã a uma nação que se auto-definiu como
protestante pode suscitar dúvidas. Mas o fato de que o anglicanismo nunca se
desprendeu completamente de suas bases no catolicismo romano é usualmente
reconhecido; e ele se tornou evidente em particular no final do sec. XIX e início
do sec. XX, quando autores como G. K. Chesterton, Hillaire Belloc, C. S. Lewis e
J. R. R. Tolkien promoveram na Inglaterra um revival da ortodoxia cristã, com
uma consistência intelectual ancorada na solidez da tradição. Tal movimento
reformador, por sua vez, ao voltar-se contra forças centrípetas e excessos liberais,
dá o tom daquilo que pode ser considerado o instinto conservador britânico.
Refiro-me a uma tentativa de controle das potencialidades políticas, econômicas e
culturais de um dado contexto, que permite a realização de avanços e um razoável
progresso destes vetores, mas detém-se diante do risco de crise que estes mesmos
avanços e progressos m como conseqüência, na medida em que uma ordem se
veja ameaçada de dissolução.
E assim a noção de “conservadorismo”, tal como surge no quadro da
Inglaterra, pode ser desde mais bem qualificada. É importante notar que ela
implica o movimento e a mudança, e, portanto, refere-se a uma atuação criativa,
delimitadora de “formas”, a operar-se sobre um terreno de certa instabilidade.
Pois, sem pressupor determinado grau de abertura econômica, política ou
dramática –, gestos desta natureza não adquirem maior relevância. Mas eles o
gestos de conservação porque impedem que esta abertura, de caráter liberal,
chegue ao ponto de romper limites considerados regulares. Um difícil equilíbrio é
aqui buscado, demandando vigilância, cuidado e competência para sua prática,
mas um equilíbrio que merece este nome ao admitir o papel do conflito, da
transformação e da fragmentação para se efetivar.
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Desde logo, se por um lado a moderna Grã-Bretanha apresentou uma
experiência diferenciada na Europa moderna, em relação às tendências mais
centralizadoras e mais autoritárias do absolutismo francês e espanhol, por outro
ela também teve traços distintos daqueles que viriam a se manifestar no caso
norte-americano. Parece-me que a citada noção de crise é a que melhor
exemplifica a distinção. No modelo inglês, processos mais agudos desta natureza
seriam algo a ser evitado mediante negociação e reforma, isto é, por uma
controlada mediação moderadora, podendo recorrer a restaurações e ao
autoritarismo ortodoxo em casos extremos, mas preferindo não permitir que as
coisas cheguem a este ponto. Enquanto o universo de hábitos e paradigmas dos
EUA possibilitaria o surgimento de um progressismo tão entusiasta quanto
arriscado, no âmbito dos avanços democráticos, científicos e produtivos. A este
movimento estaria relacionada a radicalização das inclinações liberais anglo-
saxônicas; e o contraponto de tal vetor seriam as tendências mais fortemente
reacionárias da sociedade norte-americana. Note-se que neste caso não estamos
falando mais em conservação de estruturas existentes, nem mesmo da restauração
de experiências de um passado próximo, mas da evocação de alianças situadas em
um plano a-histórico, como aquela em que um Deus exigente e implacável teria
exigido a total fidelidade de suas criaturas para com seus preceitos éticos.
Como procurei indicar no decorrer do trabalho, o entendimento destas
duas dinâmicas é reforçado pelas contraposições entre nacionalismo e
individualismo, entre o o Novo e o Velho Testamento, entre a ação da Providência
e a idéia do abandono do mundo por Deus, entre a comédia inglesa e as
modalidades do trágico na literatura norte-americana. Diante disso, pode ser
exposta uma formulação que percorre todo este argumento comparativo, segundo
a qual, no segundo quadro descrito, dá-se um movimento de bipolarização das
forças já verificadas no primeiro.
Parto do princípio de que a moral já conteria em si mesma um ideal ético e
uma ameaça de danação. Mas possibilitava uma transcrição da Lei em códigos de
conduta que operavam no intervalo entre uma coisa e outra. as exigências de
santidade e heroísmo, a separação inegociável entre eleitos e condenados, sucesso
e fracasso, winners and losers, ignorava as chances de que algum conforto fosse
alcançado em situações intermédias. Do mesmo modo, no primeiro caso, entre a
suposição de uma autoridade inconteste e a defesa da liberdade do indivíduo,
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estaria o corpo agregador do estado nacional, como garantia de direitos
adquiridos, e o agente restritivo baseado na noção do common sense. Enquanto,
nos EUA, as energias centrípetas e centrífugas deste esquema teriam extrapolado
suas flutuações e alternâncias consideradas “normais”. Pois estamos falando de
uma sociedade cujo discurso pode margear o anarquismo em sua defesa da
liberdade do indivíduo, e ao mesmo tempo busca na articulação de indivíduos
isolados o meio para a realização de uma obra de grandes proporções. Uma obra
que, por sua vez, está sempre sujeita à derrocada, em função do próprio ritmo
alucinante com que é posta em movimento.
Imaginar que um destes vetores poderia existir sem o outro compromete o
entendimento da contribuição de ambos, vistos em conjunto, ao espectro de
experiências humanas. No propósito de entender as práticas conservacionistas
inglesas, pude utilizar a imagem do “equilíbrio de antagonismos” para caracterizá-
las; agora, estou me referindo a um desequilíbrio entre forças antagônicas de
coesão e dispersão que, se não deixam de ter um feixe de variações médias entre
elas, ignoram-no em favor de um intenso dinamismo entre as extremidades do
pêndulo. Contraposto à “monotonia” do mundo burguês oitocentista, este
ambiente presume maiores riscos e está sempre ameaçado por um atordoante
descontrole. Em comparação com o parcimonioso ideal da manutenção ou
atualização de uma ordem, ele se expõe ao trágico esfacelamento de todo
ordenamento, em sua expansão para além dos limites tradicionais.
Como era de se esperar, em se tratando de uma cultura monetarista, a
esfera econômica ilustra esta observação melhor do que nenhuma outra. Nela, fica
demonstrado como, se o capitalismo do século XIX já sofria com variações
cíclicas entre períodos de crescimento e recessão, estas eram ainda modulações
flutuantes, que se mantinham próximas a um eixo mediano, de modo que fosse
conservada a confiança em um gradual desenvolvimento de suas potencialidades.
Contudo, com o aumento da participação norte-americana na economia mundial,
ganhou novas dimensões, nos anos 1930, a categoria da depressão: uma brusca
linha descendente, que se segue a uma época de euforia, e marcada pela descrença
generalizada no futuro, por uma angústia que adquire profundidades existenciais.
Mas é melhor deixar ao assunto para os que dele entendem. Mobilizo-o
apenas para reforçar a idéia de que os mecanismos de liberalização e retorno à
ordem, de progresso e restauração da autoridade centralizadora, são semelhantes
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no universo anglo-saxônico. Todavia, diferentes níveis de exposição a abalos
sísmicos dissociam seus dois representantes. Em um dos casos, temos uma
contínua atenção a ameaças de dissolução, que favorece medidas de ajuste e
reforma da sociedade, e o prosseguimento da vida em um curso regularizado; no
outro, os pólos da segurança e da incerteza se sobressaem à zona de
ambigüidades, de hesitações momentâneas e decisões habilidosas, existente entre
ambos, de modo que o fenômeno da crise, em que se dá a iminência do cataclisma
e a exigência de decisões contundentes, talvez seja aquele em que seu rosto se
revela.
Ao falarmos em crise, estamos falando de literatura. Não relato que
prescinda de um evento ou uma seqüência de eventos desta natureza para o
desdobramento de suas ações, ao menos no que se refere à literatura proveniente
do universo judaico-cristão (foi discutido como certa tradição oratória francesa, de
viés neoclássico, podia eliminar sua possibilidade, recorrendo a abstrações
lógicas, humanitárias ou pacifistas. E como a hipertrofia do mesmo conceito,
expresso no ideal da guerra permanente, que atualizava a imagem da barbárie
arcaica, pôde, em um determinado período da história literária e política alemã,
comprometer sua caracterização como um momento especial no curso do tempo).
E o primeiro apontamento decorrente das últimas observações é a respeito
do lugar ocupado pela catástrofe, pelo apocalipse, na literatura norte-americana da
segunda metade do século passado. Entre outras obras, ele remete à de Philip
Roth, possivelmente o autor que mais bem representou o transtornado espírito de
seu tempo, por meio das múltiplas calamidades que acometem seus personagens:
a atuação agressiva de transformações históricas sobre a biografia do indivíduo, as
conseqüências desproporcionais de pequenos deslizes sobre suas trajetórias, a
degradação física acelerada e súbita. Em Portnoy’s Complaint (1969), demandas
auto-impostas de retidão ética convivem ou melhor: se chocam bruscamente
com atos de dissipação sexual, aos quais se segue a compulsão da penitência (a
ironia de Roth tampouco se mantém no espectro das modulações sutis, e o efeito
da descrição gritante de contrastes é uma hilaridade compulsiva). Mas seus
romances podem também começar com a pintura de paisagens idílicas, sendo que
por trás de toda esta segurança insurgem potências desumanamente destrutivas, tal
como na American Pastoral (1997), em que a um terror trágico, decorrente do
esmagamento do sujeito austero e fiel a seus princípios pela força cruel do
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incontrolável, o tom da narrativa. A ruína corpórea, financeira, profissional e
familiar recebe de Roth um tratamento impiedoso. E ele raramente apela para
nossa compaixão.
Ainda no âmbito dos relatos apocalípticos, quero fazer uma menção mais
isolada, mas que considero fundamental para o entendimento das possibilidades
artísticas que se apresentam, de acordo com o que foi exposto. Pois Angels in
America (1992), a peça teatral de Tony Kushner convertida em minissérie para a
TV, possui vários elementos que a fazem integrar esta discussão. Há a catastrófica
irrupção de uma epidemia, tomada como anúncio do juízo final, com a
proliferação de pústulas, castigos, arrependimentos, visões, profetas e loucos. A
conflagração da crise é expressamente um signo do abandono dos homens por
Deus, e requer a interrupção do movimento, do progresso, das migrações, do
desejo, para ser mitigada. Mas o que chama a atenção neste caso é que, após o
intenso tour de force no qual se estende a angústia e a confusão das consciências,
emerge uma confiança renovada no futuro, mesmo que sobre ruínas que jamais
voltarão a ser reunidas em uma imagem estável do mundo. Reafirma-se a opção
pelo movimento, pelo progresso, pelo desejo, tendo em vista que são origens tanto
do mal quanto do bem, da doença e das promessas de cura, da AIDS e do AZT.
No horizonte relativamente desanuviado do final da história, após todo tipo de
vilezas e descaminhos terem sido contemplados, após decisões graves e
transformadoras terem sido executadas, retorna-se a algum grau de “normalidade”
no curso da vida. Se é que se pode falar de normalidade neste caso, e se é que se
pode falar em retorno.
Mas, para cada grande narrativa trágica e catastrófica da experiência norte-
americana, um relato menor que confere uma atenção mais compadecida à
inserção do “homem comum” neste contexto. Para cada Moby Dick um
“Bartleby”, para cada Scarlett Letter há um “Wakefield”. O próprio Roth publicou
em 2006 um romance mais curto e menos ambicioso, intitulado Everyman, em
que experiência de um personagem médio diante da morte iminente é narrada com
uma prosa que evoca certo enternecimento. E neste ponto posso ser mais
específico naquilo que seria a “preservação” de hábitos e costumes “ingleses” na
literatura da segunda metade do século XX. As aspas se justificam em ambos os
casos porque, no lugar do primeiro termo, melhor seria falar em recriação de tais
critérios em uma nova chave; e, no lugar do segundo, é mais apropriado
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pensarmos, por exemplo, na singular influência de Anton Tchekhov entre toda
uma geração de contistas norte-americanos.
Pois, por um lado, uma determinada noção de moralidade, o cultivo de
maneiras corteses, a índole reformista, e a valorização da ciência, da civilização,
da cultura, de certo modo tornaram Tchekhov um herdeiro do século XIX. Tais
atributos se consolidaram em sua biografia no momento em que ele deixou de
reconhecer a doutrina de Tolstoi como um meio para a emancipação das classes
camponesas e baixas da Rússia. “Não pode haver senão uma única moral, a que
nos foi dada no tempo de Jesus Cristo, que impede pessoas como você ou eu ou
Barantsevich de roubar, mentir, etc.”, ele escreveu nesta época a um amigo,
menos para defender o cristianismo do que para opor-se às altas exigências de
heróica intransigência que Tolstoi exigia dos novos homens. “Meu senso de
honestidade me diz que mais amor pela humanidade na eletricidade e no barco
a vapor do que na castidade e na abstenção da carne”, Tchekhov afirmou em outra
ocasião, que se refere à mesma polêmica.
Também a habilidosa composição de
caracteres medianos, ou mesmo simplórios, e o senso cômico aliado a sóbrios
apelos à compaixão e à piedade do leitor, o vinculam à tradição do catolicismo
literário britânico, e mesmo das narrativas cristãs de um modo geral.
Por outro lado, antes mesmo que, na Inglaterra, Chesterton reformulasse
esta tradição sobre bases ortodoxas por mais que seu pensamento
compreendesse certo grau de liberalização –, Tchekhov incorporou a seus escritos
a percepção de que o desamparo e o desconcerto do sujeito, diante de um universo
fragmentado, não teriam como resposta nenhuma ação providencial e autoral
vinda de cima. A liberdade do homem ordinário abandonado por Deus e pelo
Estado era então tomada como uma conquista irreversível e um problema
insolúvel. Deste modo, ao invés de conservar ou restaurar uma ordem pré-dada,
através de desenlaces providenciais, em que o personagem desafortunado encontra
conforto em sacramentos e alegrias redentoras, era necessário o esforço de se
construir, a partir de um material pobre e escasso, e com o devido distanciamento,
as relações nas quais, de uma desordem pressuposta, pudessem ser apenas
sugeridas novas modalidades seculares de antigos valores comuns.
As citações foram extraídas da excelente biografia de David Magarshack (Chekhov, a life.
Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1952), em que o tema das relações pessoais e
intelectuais entre Tchekhov e Tolstoi é detidamente abordado.
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Por mais que possam ser engraçados, os contos de Tchekhov se situam no
contexto mais amplo de um mundo e uma linguagem tragicamente dispersos. A
crise é sempre o pano de fundo, o que torna sua expressão mais ostensiva até
mesmo desnecessária em cada relato. A solidão e a angústia são pontos de partida,
que, porém, permitem a criação de precárias e preciosas histórias, nas quais se
insinuam também seus contrários, em raros momentos de entendimento,
reconciliação ou felicidade, os quais sempre cedem mais uma vez à força
massacrante do entorno. Isto confere à sua prosa um teor realista, no sentido mais
amplo do termo; e talvez por este motivo ele tenha sido resgatado, no ambiente
literário dos EUA, por escritores que se dedicaram a representar a realidade da
baixa classe média das pequenas cidades e dos subúrbios norte-americanos, como
Sherwood Anderson, Raymond Carver, Alice Munro, entre tantos outros.
Do primeiro, pode-se dizer que adquiriu merecida fama como pioneiro de
toda uma geração, embora não tenha sido o mais brilhante destes autores. Carver,
por sua vez, foi responsável por uma obra em que a pobreza, o alcoolismo, o
desemprego, o desespero existencial, e um manejo quase grosseiro da linguagem,
são as bases de êxitos literários em que não deixam de estar presentes o
enternecimento, a cortesia, e uma delicada articulação de signos e imagens. Uma
narrativa como “Distance” faz emergir, de uma situação tão prosaica quanto
conflituosa, a improvisada afirmação do lar e da família como lugar de conforto e
felicidade para o sujeito comum. Porém “lar” e “família” são construções
invariavelmente precárias no mundo de Carver, situadas em um terreno de
instabilidade permanente, o que fica explícito em histórias como “Where I’m
Calling From”, Fever”, “Menudo”, etc.. O último relato do autor foi uma
narrativa sobre a morte de Tchekhov.
Alice Munro, ao que me parece, encontrou ao longo de sua trajetória a
mais completa expressão da complexidade de um mundo em que a tragédia é um
dado, e onde mortes, doenças, desenganos e rupturas abruptas desarticulam por
princípio qualquer “ordem” ou “forma” a ser buscada. Não obstante, sua
linguagem organiza este caos com uma sensibilidade e uma força de composição
singulares, de modo que, em meio a tal confusão, se multiplicam significados e
conformações possíveis, tão incertos quanto precisos, e portanto misteriosos, em
suas manifestações pontuais.
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Enfim, a menção destes nomes serve também para que seja recordado o do
israelense Amós Oz, indiretamente associado a esta linhagem. Porque também
ele, na Jerusalém de meados do século, recorreu a Tchekhov para lançar outro
olhar à realidade em que estava inserido, depois de ter se surpreendido com a
leitura de um volume de contos de Sherwood Anderson, tal como relata em sua
autobiografia. E, daí em diante, seus romances se tornaram construções
metodicamente dedicadas à tentativa de conferir novo sentido a valores como a
compaixão, a alegria e o desejo, sendo estes três integrantes de um “pacote” que,
segundo um personagem de Conhecer uma Mulher (1989), precisa ser apropriado
em conjunto: uma coisa não vem sem a outra. Mas, sem evocar uma doutrina ou
sistema teológico que a priori legitime estes preceitos, Oz compôs um corpo
narrativo no qual eles precisam necessariamente surgir do fenômeno dramático ou
literário. E isto com um poder de convencimento equivalente ao talento, à
sinceridade e ao trabalho construtivo empregados no texto.
Em se falando de Oz, pode ser retomada também o tratamento da questão
da política, deixada em suspenso nos últimos parágrafos. Pretendo, neste caso,
enfatizar brevemente como, paralelamente à carreira do autor como ficcionista,
sua postura em relação ao conflito entre Israel e Palestina foi formulada com a
defesa de práticas que estariam associadas a mecanismos oitocentistas,
“britânicos”, para a resolução de crises.
Cabe então enfatizar que, se a criação do Estado de Israel foi um projeto
mal supervisionado pela Inglaterra, no momento de sua decadência como força
imperial, talvez este seja um problema a ser resolvido justamente através da
aplicação de parâmetros que deveriam ter sido eficazes em um primeiro momento.
Assim como o Tratado de Versalhes foi um ato de humilhação catalisador de
ressentimentos, cujas piores conseqüências poderiam ter sido evitadas com uma
administração mais competente da ordem internacional, também neste caso certos
erros históricos demandam mais do que o apontamento de vítimas e culpados para
serem corrigidos. Tampouco o pacifismo incondicional é aqui de grande utilidade,
razão pela qual o ambiente pode se beneficiar com o cultivo de alguns valores e
práticas analisados no segundo capítulo deste trabalho.
Refiro-me à habilidade necessária para a demarcação e conservação de
fronteiras, que não prescinda da autoridade ou da força como meios de contenção
de energias irracionais mas saiba operar com negociações e concessões, como
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substituto do uso de uma autoridade e de uma força desmedidas, inclusive para
que tais energias não adquiram uma aparência de legitimidade. Refiro-me ao
reconhecimento das nações como unidades políticas fundamentais, a serem
construídas historicamente, criando um sistema de equilíbrio que pressuponha o
conflito, e esteja atento às suas possibilidades de radicalização. E, afinal, à
aceitação de que nenhum verdadeiro sucesso é possível sem que uma dose de
frustração o acompanhe. Por este motivo, Oz compara a situação no Oriente
Médio a uma peça de Tchekhov, em que os agentes em jogo terão que acatar as
limitações impostas às suas pretensões e demandas pela realidade concreta, e
negociar com esta realidade para que algum tipo de avanço seja alcançado, mesmo
quando nenhuma paz perfeita se mostre no horizonte imediato.
Trata-se, portanto, mais uma vez, da necessidade do controle vigilante de
uma crise, para que circunstâncias explosivas não atinjam um ponto de
irreversibilidade. Penso que em nenhum outro quadro, atualmente, fica mais
expresso como determinadas inclinações conservadoras, e os atributos criativos
que são intrínsecos às suas melhores expressões, podem contribuir para o
desenlace de um drama. Muito destas inclinações podem ser deduzidas dos
romances do próprio autor. Mas é um equívoco entendê-los como alegorias
políticas, em função não apenas da autonomia do ficcional, como também do fato
de que o procedimento alegórico decorre de uma apreensão paranóica da
realidade, que o próprio Oz insiste em desconstruir. É verdade que um teor
moralista na composição de personagens eventualmente caricaturais, mas a
moralidade que assim se insinua é da ordem do mediano: não aquela que postula
uma luta entre forças do Bem e forças do Mal, mas reconhece em todos os
“homens comuns” algo de patético e anedótico, capaz de suscitar simpatia, e
favorecer um reconhecimento das fragilidades humanas, inapropriadas para a
incorporação de uma ética “superior” no trato cotidiano.
Além disso, toda e qualquer sugestão de uma doutrina sistemática, ou
representação de austeridade moral que beira a fanática compostura, sucumbem
em sua prosa a uma poética que desfaz convicções e certezas. Sempre que seus
protagonistas se aferram a uma auto-representação demasiadamente segura ou
confiante, eles estão na iminência de serem desconcertados pelos transtornos do
desejo. Há, portanto, uma mística na obra de Oz, associada ao papel do amor em
suas narrativas: a compaixão e a alegria são seus correlatos indispensáveis. E, não
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por acaso, em Como Curar um Fanático (2002), seu famoso manifesto contra as
posições extremadas de ambos os lados do conflito no Oriente Médio, repercute o
comentário de Chesterton sobre Tolstoi, citado no quarto capítulo deste trabalho.
Também aqui o poder sanativo da imaginação e da poesia é evocado. Também
aqui ele adquire uma conotação política, na medida em que serve à cura de uma
patologia, antes decorrente do pensamento lógico de modo geral, do que desta ou
daquela crença religiosa em particular.
Nesta perspectiva, a literatura adquire uma dupla função. Ela tem um viés
construtivo, de estabelecimento de “ordens” provisórias em meio à confusão
generalizada do mundo liberal e capitalista, conferindo uma espécie de amparo à
experiência do homem comum neste mundo, mas sem oferecer-lhe mais do que
breves e alusivos instantes de entendimento e repouso isto é, sem ignorar o
caráter trágico desta experiência, tomado como um condicionamento do real.
Parece-me que a recepção de Tchekhov nos EUA se deve, em parte, ao modo
como o primeiro incorporou tal condicionamento à sua obra, para, a partir daí,
investigar as suas efetivas possibilidades estéticas. Já um autor como Amós Oz, se
não deixa de operar com procedimentos semelhantes, deles extrai maiores
projeções sociais, dadas as exigências de uma situação em que entendimentos e
acordos precisam ser alcançados com maior efetividade prática, ao mesmo tempo
em que conflitos e diferenciações devem ser pressupostos, pois sua eliminação é
impossível. Desde logo, sempre que uma totalidade de sentido se insinua em seus
textos, ele recorre à potência fragmentadora da literatura e do drama, preservando
assim uma zona de ambivalência em se situam sua poética e sua mística.
Esta zona de ambivalência é uma zona intermediária. Sua constante
recriação torna-se necessária para que sirva de contraponto aos extremos da
depressão e do entusiasmo. Pois estamos falando de uma arte que opera no eixo
das mediações, do sensus communis kantiano, tornada tanto mais necessária
conforme um “senso comum” tenha se perdido, e assim demande esforços
pontuais para ganhar uma nova mesmo que efêmera ressonância. Tudo isso
diz respeito, portanto, à tentativa de reencontrar um eixo articulador das
extremidades do pêndulo, feito de anteparos construtivos, da delimitação de
formas, mas igualmente sujeito a contínuas dissoluções e à falta de controle, a ser
permanentemente perdido e reconquistado. Refiro-me, portanto, a algo que aponta
para resoluções apenas provisórias e pontuais, no ambiente de uma crise
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estabelecida como pano de fundo para todas as ações humanas, onde um princípio
de moderação busque evitar que ela atinja proporções catastróficas.
E com isso pretendo indicar também como tais soluções “moderadas”
podem ser pouco úteis em determinadas circunstâncias; em particular, nas
circunstâncias em que, depois de liberadas pela força expansiva dos vetores sócio-
culturais norte-americanos, determinadas energias muito tempo saíram do
tipo de “controle” que a índole conservadora entende ser sempre recuperável.
Tomemos, por exemplo, a crise mais aguda a que este movimento pode ainda nos
levar, referente à questão climática. Pois a sombra atmosférica e planetária que se
anuncia pode não ser de responsabilidade exclusiva dos Estados Unidos, mas tem
sua origem em um desgovernado progresso econômico; um progresso favorecido
pelos mecanismos da ética protestante, que serviu de “modelo” para o sistema
produtivo do ocidente durante o século XX. O tema, desde logo, tem a
desagradável capacidade de demonstrar como os norte-americanos foram além de
simplesmente imaginar a história como uma narrativa apocalíptica. De modo
coerente com suas bases culturais, eles a produziram nesta chave, assumindo
cegamente o risco de dar o mundo o aspecto de uma terra devastada.
No momento, poucos são os que não se posicionam de modo
conservacionista no debate. Idealizações abstratas, imagens do “outro mundo
possível”, tornam-se risíveis diante de um fenômeno tão concreto, que exige
intervenções tão imediatas; e mesmo os partidários do caos, que apreciam a
estética dos ataques terroristas, mudam de postura com a ameaça de um maremoto
mais próximo de suas casas. Deste modo, normalmente com ênfase no advérbio
–, fala-se em diminuição da emissão de gases, em contenção do desmatamento e
dos empreendimentos industriais, no acompanhamento vigilante dos indicadores
climáticos: enfim, de uma retomada do controle, por parte do homem, das ações
que levaram à crise presente, e do negociado estabelecimento de limites para sua
atuação como agente histórico. Sem dúvida, cada um dos êxitos alcançados neste
sentido tem validade assegurada, e seria extremamente inapropriado menosprezar
estes esforços. O problema é que, dada a própria natureza do transtorno, a simples
moderação pode ser insuficiente. Talvez não haja solução à inglesa, de acordo
com as coordenadas do bom senso, que resolva o assunto no ponto em que ele se
encontra.
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É lícito cogitar que uma crise à americana requer soluções idem. Antes de
sair de cena como potência imperial, a Grã-Bretanha teve uma última chance de
reafirmar seus valores, praticar suas virtudes e corrigir seu maior erro histórico,
resistindo com dignidade às investidas germânicas contra a civilização. Agora que
os Estados Unidos, com alguma probabilidade, deixarão de ocupar o mesmo posto
rotativo, cabe esperar que suas potencialidades não estejam de todo esgotadas. E,
dada a carência de habilidades demonstrada por este país para a contenção e a
preservação, ou sua tendência a extrapolar padrões de conduta regulares, alguma
surpresa poderá surgir sob a forma de uma inovação científica e tecnológica, por
exemplo. Nada que precise dar o assunto por encerrado de uma hora para a outra,
mas algo que restabeleça a confiança na capacidade do homem de enfrentar
graves desafios com resistência e criatividade. Uma inovação que, no plano
prático como no simbólico, possa reverter estragos causados pela ciência e pela
tecnologia do século XX.
Wishful thinking, dirão os mais céticos quanto a um possível desenlace a
ser buscado por esta via. No entanto, projetos de captação de carbono na
atmosfera, e de produção de energia limpa por meio da fusão nuclear, são hoje
menos extravagantes do que pareceriam anos atrás. Ou então não deixaram de ser,
em momento algum, extravagâncias e despropósitos, para as usuais dimensões do
humano; e, por isso mesmo, virão a ser a resposta para um distúrbio que vai além
de tais dimensões. Portentosos desastres e inesperadas ressureições, que se
elaboram de maneira gradual, mas subitamente ganham corpo e forma: desta
matéria é feito o mundo norte-americano no que tem de melhor e de pior. Suas
crises são da ordem da desmedida, do grandioso e do sublime. Mas beleza no
modo como minúsculos e insignificantes seres humanos se reerguem por suas
próprias forças do esmagamento e da exaustão.
“Nada está perdido para sempre”, diz Harper, uma personagem de Angels
in America. “Neste mundo vivemos uma espécie de doloroso progresso, enquanto
aspiramos por aquilo que passou e sonhamos com o que está por vir”. Assim, após
todo tipo de equívocos, turbulências e vilezas terem sido contemplados na
história, passado o momento da mais transtornadora sensação de que o mundo ia
se acabar, no final ressurge esta demonstração de fé, mesmo em meio aos
destroços de um orbe assolado pela peste, por guerras e pela loucura. A fala se
segue ao relato de um sonho: aquele em que, sobrevoando a camada de ozônio
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esgarçada e prestes a se romper definitivamente, Harper ascenderem da terra
almas de pessoas mortas, que entrelaçam as mãos e os tornozelos, formando uma
rede. E estas almas são compostas da mesma matéria que o ozônio, de modo que a
camada as absorve e é restaurada.
É possível que esta imagem uma das mais belas de que tenho notícia
venha a ser um dia mais do que um achado poético. Ou, como diria Jorge Luis
Borges, ao terminar seu conto sobre a imensa, desgovernada e delirante biblioteca,
e imaginar que por trás disso tudo poderia estar uma ordem ainda por ser revelada
aos homens: meu coração se alegra com esta elegante esperança.
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