
211
atribuídos a livros sobre temas mais familiares ao público local, todos eles
romances esquecidos desde então.
Com isso, já naquele momento, duas avaliações díspares prenunciavam
traços que se tornariam marcantes na recepção da obra de Borges, durante a maior
parte do século XX.
181
De um lado, estavam o entusiasmo modernista com a
transformação da arte, com a recuperação de padrões “clássicos” de composição
estética, e o fascínio por complicados artifícios “irreais”, de grande apelo
intelectual, ou ambições filosóficas. De outro, o repúdio tradicionalista à
excentricidade da produção contemporânea, com seus frívolos e gratuitos truques
de linguagem, que afastariam o artista da função social de representar o seu
ambiente imediato. A primeira considerava intercambiáveis e indiferentes os
conteúdos a serem trabalhados pela força modeladora do artista, reagindo contra o
pressuposto de que a literatura devia reproduzir uma realidade histórica, e
estabelecendo paradigmas teóricos para a configuração da matéria literária.
Enquanto a segunda via, na temática de uma obra, algo muito mais importante do
que qualquer procedimento formal, encontrando nas sínteses e análises dos
vanguardistas meros caprichos auto-referentes, aos quais contrapunha um
realismo supostamente mais sólido e gerador de coesão cultural.
181
A primeira delas seria desenvolvida a partir do estudo pioneiro de Ana Maria Barrenechea, La
Expresión de la Irrealidad en la Obra de Borges ( Buenos Aires: Centro Editor de América
Latina, 1984 [1957]), encontrando grande repercussão no estruturalismo francês (cf, por exemplo,
GENETTE, Gérard. La utopía literaria [1970]. In: BARRENECHEA, Ana Maria, REST, Jaime,
UPDIKE, John y otros. Borges y la Crítica. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina,
1981). A segunda foi representada, sobretudo, por uma coletânea de artigos intitulada Contra
Borges, e compilada por Juan Fló (Buenos Aires: Editorial Galerna, 1978). A partir do início da
década de 1990, com a publicação de Borges, um escritor en las orillas, de Beatriz Sarlo (Buenos
Aires: Ariel, 1995 [1993]), e Fuera de Contexto? Referencialidad histórica y expresión de la
realidad em Borges (Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1996 [1993]), há um crescente
reconhecimento da insuficiência de ambos os enfoques interpretativos, o que favorece a
compreensão da obra do escritor argentino como lugar de confluência entre temas literários,
filosóficos, históricos e políticos, expondo ambigüidades e tensões culturais detectáveis em cada
uma destas esferas. Seguramente, comentários anteriores já haviam apontado nesta direção, como
de Davi Arriguci Jr., em “Da Fama e da infâmia (Borges no contexto literário latino-americano)”,
reunido no livro Enigma e Comentário: ensaios sobre literatura e experiência (São Paulo: Cia. das
Letras, 1987, pp. 193-226). E muitos que se seguiram aos trabalhos de Sarlo e Balderston
indicaram desdobramentos possíveis desta linha de investigação, entre eles os estudos de José
Eduardo González (Borges and the Politics of Form. New York and London: Garland Publishing,
1998) e Julio Pimentel Pinto (Uma Memória do Mundo: ficção, memória e história em Jorge Luis
Borges. São Paulo: Estação Liberdade, 1998), com os quais esta pesquisa, no meu entendimento,
possui afinidades mais importantes do que eventuais discordâncias. O último autor mencionado
tratou também de tais percursos e guinadas na bibliografia crítica tratada em um artigo recente (cf.
PINTO, J. P. “Borges, itinerários da crítica: irrealismo, leituras, história”. Fragmentos,
Florianópolis, números 28/29, jan-dez 2005, p. 13-19). E, para um acompanhamento sintético dos
paradigmas críticos aplicados à leitura de Borges no século XX, ver SOUZA, Eneida Maria de. O
Século de Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510830/CA