
recuperação de uma subjetividade masculina. Dito de outra forma: tendemos a
assimilar à personagem a uma pessoa e à pessoa a um modelo implícito conhecido
por todos.
Em tempos de contestações das certezas e das grandes narrativas, alguns
teóricos anunciam, de acordo com Ryngaert (1996, p. 128-129), o fim da
personagem no texto ficcional e, podemos estender essa preocupação ao texto de
teatro. Diante da enfadonha rotina da psicologização, da identificação exacerbada
entre ficção e realidade, estariam os autores, atores e encenadores optando por um
certo distanciamento que esvazie a idéia de personificação. As vozes no texto
começam a ser distribuídas de maneira a não conferir um único papel ao ator, mas
uma gama de papéis ou estruturas de papéis, para que o intérprete não se
acostume (ou se acomode) a um tipo (protótipo ou arquétipo) determinado. O
objetivo dessa iniciativa seria pôr fim à tríade texto-personagem-ator, promovendo
um jogo de interações que ao invés de direcionar papéis, compartilha-os, tal como
encontramos no sistema Coringa de Augusto Boal
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.
Para Castagnino, a personagem já existe antes de ser escrita, ela habita o
branco do papel, tal como nós, indivíduos humanos, já encontramos nossas
perspectivas de vida esboçadas pela sociedade antes de nosso nascimento. O
nascimento de um ser ficcional é similar a um filme fotográfico que se revela: “à
medida que progride a reação química e os reativos atuam sobre as emulsões
fotófilas, vão perfilando-se nitidamente os traços captados no negativo”
(CASTAGNINO, 1971, p. 135).
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Modelo dramatúrgico criado por Augusto Boal para permitir a montagem de qualquer peça com
elencos reduzidos, alterando as tradicionais relações narrativas do gênero dramático, apoiado numa
proposta épica e crítica. São empregados quatro procedimentos: a desvinculação ator/personagem
(qualquer ator pode representar qualquer personagem, desde que vista a máscara correspondente),
perspectiva narrativa unitária (o ponto de vista autoral é assumido ideologicamente pelo grupo que
faz a encenação), ecletismo de gênero e estilo (cada cena tem seu estilo próprio - comédia, drama,
sátira, revista, melodrama, etc. - independentemente do conjunto, que se transforma numa colagem
estética de expressividades), uso da música (elemento de ligação, fusão entre o particular e o geral,
introdução do ingrediente lírico ou exortativo no contexto mítico e dramático). O Coringa é uma
personagem onisciente que altera, inverte, recoloca, pede para ser refeita sob outra perspectiva uma
cena, sempre que sinta necessidade de alertar a platéia para algo significativo, concentrando a
função crítica e distanciada. Função oposta ocupa o protagonista, o herói. Ele deve ser naturalista,
fechado em sua lógica causal e psicológica, sempre representado pelo mesmo ator, destinado a criar
e dar corpo à dimensão do particular típico, insuflando a ilusão cênica e materializando a dimensão
mítica, uma vez que se destina à identificação e ao fomento da empatia junto ao público. O conjunto
de tais procedimentos é especialmente épico, oriundo de Bertolt Brecht, mas não deixa de abrigar,
igualmente, uma tentativa de conciliar o historicismo proposto pelo distanciamento brechtiano com o
particular típico, como concebido por Lúkacs, outro teórico marxista que defende um herói mítico e
fechado sobre si mesmo.