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menino passa a ter uma visão crítica da sociedade e passa a melhor interagir com
o diferente.
Nesse novo repertório, alguns livros merecem destaque e, dentre eles, o
livro O Amigo do rei, de Ruth Rocha, publicado em 1993 e reformulado em 2009.
Nessa história, percebe-se uma primeira quebra de paradigma. O rei não é como
o imaginado pela criança de 4 anos, do fato narrado acima, ou seja, gordo,
branco, bonachão. O rei de que trata Ruth Rocha, em seu livro, é negro, escravo,
de nome Matias e tem como amigo o filho do senhor da fazenda em que Matias
era escravo. Matias chamava seu amigo Ioiô, uma abreviação da palavra Sinhô,
bem característica da linguagem oral, usada pelos escravos na época. A história é
ambientada no final do século XIX, período marcado pelas lutas abolicionistas e,
como diz Ruth Rocha, “naquele tempo, ainda existia a escravidão”.
O curioso dessa história está na forma como é narrada, como um conto
oral. A autora/narradora conta uma história comum, como já dito anteriormente, a
de um escravo-menino que, junto do filho do “sinhô”, fogem da fazenda, por terem
sido castigados. Porém, em meio a esse cenário de história igual a outras tantas,
ela vai descrevendo os abusos acometidos na época e as ações empreendidas
para a extinção da escravidão. No meio da história, a autora surpreende o leitor
quando o menino escravo torna-se rei. Desde o início do enredo, Matias tem
consciência de que um dia seria rei, porque seu pai já o havia sido na África e,
como fazia parte da tradição, um rei sempre transfere o título para o filho homem.
Isso acontece quando os meninos encontram, no meio da mata, guerreiros
imponentes, pintados, enfeitados e armados. Esses eram escravos fugitivos que
viviam no quilombo e é para lá que os meninos são levados. Os quilombolas, ao
verem o menino Matias, reconhecem-no e se curvam para saudar o novo
soberano. Assim, Matias torna-se um grande rei e Ioiô torna-se um dos
guerreiros, que lutaram junto com negros, mulatos e brancos pela abolição da
escravatura, no Brasil.
Ruth Rocha trata de uma passagem triste, sangrenta, violenta e abusiva da
história do Brasil, sem se apropriar de imagens de escravo e de escravidão que
fortalecem o estereótipo de negro indolente ou submisso à sua condição de
escravo. Apresenta uma imagem de negro guerreiro, líder abolicionista,
conhecedor de suas origens e, principalmente, do que repassa suas histórias aos