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da terra, do barro (, ). Nos séculos e , o “Novo Mundo” foi
personifi cado através do corpo de uma mulher nua. A admiração pela natureza e o de-
sejo de conquistá -la tinham um paralelo com a admiração pela beleza feminina e com
o desejo de possuí -la (, , p. ). No século , Freud
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relacionou a mu-
lher à terra, ao materno e à morte, bem como associou o feminino à mudez e à morte.
É possível pensar, então, na Vênus Negra da lenda como relacionada ao amor e à
morte, tanto por sua beleza como por sua mudez. Mas ela também pode ser relaciona-
da ao silêncio
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presente na criação. Já a imagem do trabalho de Ana Mendieta sobre
a Vênus Negra, a silhueta escavada na terra, fi gura algo que já está na lenda, mas que
nela não aparece tão claramente, ou seja, a relação da Vênus com o erotismo, a morte e
a criação. Destruição e criação estão interligados. A imagem que brota da terra, contor-
nada por cinzas, remete tanto a uma silhueta como a uma abertura, uma vagina, tanto à
morte, à ausência, como ao vazio potencial pelo qual pode ser engendrada a criação.
O feminino é apenas sugerido pela Vênus Negra de Ana Mendieta, através da
abertura, do vazio que vem da escavação e da combustão da silhueta. O feminino não
está numa forma, mas no seu processo de criação ou, ainda, num momento de recep-
ção estética
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. Muitas vezes Ana Mendieta foi vista como uma feminista, uma cubana
exótica ou como alguém que buscava na arte uma forma de curar o trauma do exílio
e, ainda, uma pós -moderna devido a seu hibridismo, uma vítima do patriarcado, uma
pioneira de estratégias pós -minimais. Muito além desses rótulos, considero -a uma ar-
tista com uma obra de grande complexidade, que conjuga senso estético com dimensão
política. A artista nos apresenta uma Vênus não fálica e a faz brotar da terra, dos vazios,
da fusão com a terra, com a natureza. Heresia?
27 Ver o texto “O Tema dos Três Escrínios” de Freud (1913). Esse texto de Freud O tema dos três escrínios (1913) parte
da análise de cenas de Shakespeare, de histórias gregas e de contos de fadas em que está presente o tema da
escolha de uma mulher entre três irmãs. Ele nos apresenta três representações da mulher que correspondem às “três
formas assumidas pela fi gura da mãe no decorrer da vida de um homem – a própria mãe, a amada que é escolhida
segundo o modelo da própria mãe, e por fi m, a Terra Mãe, que mais uma vez o recebe” (FREUD, 1913, p. 325).
Nesse texto, Freud aponta que, nos sonhos, muitas vezes a mudez é uma representação da morte. Além disso, ele
se pergunta por que, nessas histórias e lendas, a escolha de um homem entre uma de três mulheres sempre recai
na terceira delas, ou seja, a mais bela e aquela que representa a morte. A beleza seria um véu fálico para recobrir
a morte. Freud propõe que o homem com sua “atividade imaginativa a fi m de satisfazer os desejos que a realidade
não satisfaz” (
FREUD, 1913, p. 322) seria o responsável pela substituição da Deusa da Morte pela Deusa da Beleza.
Essa substituição teria sido promovida pela rebeldia do homem contra o reconhecimento de que, ao fazer parte da
natureza, está sujeito à lei da morte. Cabe salientar que essas são representações da mulher feitas por um homem
que viveu na transição do século XIX para o XX, período em que se iniciaram profundas transformações sociais.
28 Essa questão do silêncio será discutida mais adiante na quarta parte dessa dissertação ( item 4.3).
29 Para uma discussão mais detalhada sobre o feminino e a recepção estética, ver a quarta parte desta dissertação.
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