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Título em ingles: “Bitter perfume: dancing by the senses.”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Contemporary dance ; Creation ;
Improvisation ; Senses ; Smell ; Taste.
Titulação: Doutor em Artes.
Banca examinadora:
Profª. Drª. Elisabeth Bauch Zimmermann.
Profª. Drª. Marcia Maria Hernandez Strazzacappa.
Profª. Drª. Julia Vitiello Ziviani.
Profª. Drª. Verônica Fabrini M. de Almeida.
Profª. Drª. Kátia Danailof.
Profª. Drª. Lenira Peral Rengel.
Profª. Drª. Sara Pereira Lopes.
Prof. Dr. Odilon José Roble.
Prof. Dr. Rogério Adolfo de Moura.
Data da defesa: 16-02-2009
Programa de Pós-Graduação: Artes.
Leal, Patrícia Garcia.
L473a Amargo Perfume: a dança pelos sentidos. / Patrícia Garcia
Leal. – Campinas, SP: [s.n.], 2009.
Orientador: Profª. Drª. Elisabeth Bauch Zimmermann.
Tese(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.
1. Dança contemporânea. 2. Criação. 3. Improvisação. 4.
Sentidos. 5. Olfato. 6. Paladar. I. Zimmermann, Elisabeth
Bauch. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de
Artes. III. Título.
(em/ia)
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Dedico a presente tese ao meu primeiro filho Thiago.
Meu filho, gerado em conjunto à escrita desta pesquisa, dançou no
ventre de sua mãe em meio a tantas mulheres, saboreou a delícia
dos chocolates e o doce amargo do cansaço produtivo, deu-me
inspiração, impôs-se nas criações simbólicas e nas eternas
conferências do seu crescimento a cada ensaio. Gerou ainda mais
vida em minha alma de artista e hoje sorri entre nós sua certeza de
vencedor.
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Agradecimentos
Uma obra como esta é sempre fruto de muitos encontros, breves, longos,
eternos. A solidão da escrita, da criação, não existe, pois mesmo nos momentos em que
fisicamente, sozinha me debrucei sobre as linhas ou sobre o chão do estúdio, estava plena
no coletivo que a arte traz a cada ser humano. Existir é sempre interiorização de muitos. Eu,
outro, sou eternamente grata.
Agradeço, primeiramente, ao meu grande amor Carlos, pelo incentivo
incondicional, pela certeza, pelo carinho, pela inspiração, pela arte gráfica, pelas fotos, pelo
nosso filho Thiago, que geramos com tanto carinho no decorrer desta pesquisa.
Obrigada aos meus pais, Luís e Bernadete, por sua presença marcante, porto
seguro aos meus sentimentos intensos, pela música, pelo amor mais quente, pelo exemplo e
o apoio a tudo que faço.
Obrigada a minha irmã Cybele pelas trocas e o interesse em comum que temos
pela pesquisa, pela amizade fraterna. Obrigada também ao carinho de meu cunhado Robson
e de minhas lindezas Liz e Iara, alegrias em minha vida.
Obrigada ao Toninho, à Lúcia (in memoriam) e aos meus cunhados queridos
Ana Cristina e Eduardo, que sempre me acolheram tão bem e com tanto carinho.
Aos meus avós maternos, Cida (in memoriam) e Edmundo, e aos meus avós
paternos, Carmen e Édison (in memoriam), agradeço imensamente pelos cheiros que
povoam o meu imaginário, pelo amor mais doce e pelo incentivo à arte.
Ao meu eternamente amigo-irmão Emerson, obrigada pelo carinho, pela
dedicação, pelas leituras e revisões tão afinadas às minhas buscas, por estar sempre
disponível.
Obrigada aos meus amigos, Flávia, Marcelo, Grazi, Fabi, Serginho, Socorro,
Márcio, Andréa, Dani, Denise, Renata, Fernanda, que esteja onde estiverem (Brasília,
Portugal, Espanha, Jaraguá do Sul ou Campinas), estão sempre presentes e me permitem,
pelo carinho, ser quem sou e perseverar no meu caminho.
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Obrigada aos meus amigos e mestres do yoga que me permitem ser mais, estar
mais presente, calma e servindo Nataraja. Em especial aos meus mestres Andrés, Sueli,
João Alberto, Izilda, Gisele, Taunay e Marcinha. E às minhas eternas companheiras de
conversa e sono: minha dinda Márcia, Marcela, Dani e Ana Paula. A todos os colegas de
minha formação; Carlos, Luciano, Malu, Kelen, Evandro, Simone, Inês, Elisa, Ana, Édson,
Miriam... entre tantas luzes yogues que iluminam os meus dias (e noites).
À Fapesp por sempre acreditar no meu trabalho, desde a iniciação científica.
Pela seriedade enquanto órgão de fomento, por tornar possível a pesquisa numa área tão
difícil como a dança, agradeço imensamente.
Agradeço à minha orientadora Elisabeth Zimmermann, pelas contribuições,
pelas oportunidades de pesquisa e de docência que me proporcionou, por dividir momentos
tão intensos de vida comigo.
Agradeço aos professores de minha banca por suas valiosas sugestões.
Obrigada à professora Márcia Strazzacappa pelas diversas oportunidades artísticas,
docentes, científicas, por ter permitido, incentivado e compartilhado uma das melhores
viagens da minha vida à Daci na Holanda (e depois... Paris!!!), pela sua dedicação à arte, à
educação, à dança. Obrigada à professora Júlia Ziviani sempre presente, extremamente
atenta aos meus movimentos, por me incentivar a ousar. À professora Verônica Fabrini
pelas indicações na área das artes cênicas, por sua arte intensa e seu exemplo de mulher que
faz acontecer. À professora Sara Lopes por me receber tão prontamente enquanto eu ainda
estava perdida em minhas próprias linhas, pela sua clareza, por sua paixão e dedicação a
tudo que faz.
Obrigada à professora e amiga Kátia Danailof, testemunha de todo meu
processo de pesquisa há anos, em nossas eternas conversas. Agradeço pela amizade, pelos
cafés e cinema, pelas leituras, sugestões de textos e pelo interesse mais sincero dos
apaixonados pelo seu ofício, um exemplo de seriedade e competência.
Aos muitos profissionais envolvidos nas produções artísticas desta pesquisa o
meu mais profundo agradecimento. Obrigada Marcelo, pela parceria musical de tantos
anos, por entender o que eu não posso dizer. Obrigada Rogério, luz sempre presente com
cheiro de cravo e tranqüilidade. Obrigada Amanda, por estar sempre disposta a apoiar a arte
ix
em suas mais variadas formas. Obrigada Érica por nossas trocas profissionais, nosso
interesse comum pela pesquisa, pelo figurino de meu primeiro processo criativo. Obrigada
Rodrigo, Carlos, Ju, Isac pelas lindas fotos. Obrigada Zell pela parceria geminiana nos
figurinos do vinho e do chocolate, pela paciência, pelo interesse e dedicação, pela
maquiagem, por me vestir tão bem em minha gravidez! Obrigada à Ângela, em conjunto ao
Carlos, pela arte dos projetos gráficos, pelos encontros, pelas conversas sobre o trabalho,
sobre a vida, sobre filhos. Obrigada a todos da Kinostúdio pela documentação e registro dos
espetáculos e pela arte das edições, agradeço em especial à Thaís, ao Alê e ao Cauê, por
esses anos de convivência. Obrigada Adriana e Valéria por disponibilizarem a Estação da
Dança e o Tugudum aos meus ensaios mais improváveis. Val, obrigada especialmente,
pelos eternos convites às Jams, por manter o espaço e diálogo sempre abertos, por acolher
meus espetáculos, pela amizade.
Obrigada, especialmente, à bailarina, professora, pesquisadora e amiga Carla
Morandi, pela assistência de direção mais certeira que já tive, por saber como, quando e
porque falar, por dedicar-se plenamente, pelo carinho, pelo respeito, pela amizade, flor que
se abre sem motivo, quando duas almas queridas se encontram.
Obrigada, Samuel, pelas pesquisas gustativas e táteis que geraram o espetáculo
Intenso. Obrigada por entregar-se como artista que não bebe, provando vinhos.
Obrigada ao Luiz Bueno e ao Fernando do Duofel pela inspiração musical
primeira em meu terceiro espetáculo Variações sobre chocolates. Obrigada por me
receberem tão prontamente, pela conversa, pelos shows, pela entrevista.
Às queridas bailarinas Bruna, Carol, Isis, Juliana, Patrícia, Mariama, Bella e
Karine, agradeço de coração pelo interesse pela metodologia que pesquiso, pela confiança,
pela dedicação, por encontrar sempre uma possibilidade em meio aos horários impossíveis.
Obrigada por se envolverem com a alma dos perfumes e o corpo dos sabores, no abraço e
carinho mais sinceros. Obrigada, também, por acompanharem de perto, dia a dia, o
crescimento de meu filhote em meu ventre, e por compreenderem as minhas necessidades
de mamãe grávida.
Obrigada às bailarinas e amigas, queridas, do Núcleo de Dança Contemporânea
de Campinas: Carol (República Cênica), Ló, Milena, Paula, Juliana, Tita (as Excaravelhas),
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Jussara (Salão do Movimento), Valéria (Tugudum), pelo interesse em comum, pela força,
pela difícil continuidade a cada dia, pela dança, pelo apoio, pela amizade. Por manterem as
reuniões em minha casa quando minha barriguinha começou a impedir-me.
Obrigada às professoras Ângela Nolf, Holly Carvell, Marisa Lambert, Daniela
Gatti, pelo apoio, pelas trocas, pela presença nos espetáculos. Agradeço a todos os alunos,
professores e funcionários do departamento de Artes Corporais, em especial à Cidinha e ao
Édison, sempre tornando tudo mais fácil e possível. Agradeço também aos funcionários do
Centro de Produções pela paciência, dedicação e confiança. Obrigada Rosângela, Ayrton,
Ivaldo. Obrigada também aos funcionários da Pós-graduação do Instituto de Artes: Vivien,
Magali, Ivaldo, Jayme, sempre dedicados e atenciosos, trazendo calma nos momentos de
desespero.
Obrigada aos funcionários do Espaço Cultural Casa do Lago, em especial ao
Avelino, por manter as portas sempre abertas e nos acolher a cada projeto, a cada idéia, a
cada novo espetáculo de forma tão calorosa.
Agradeço imensamente às trocas de pesquisa e entrevistas de minhas colegas
Silvia Geraldi, Ana Terra, Valéria Franco e Lenira Rengel, profissionais com quem
compartilho concepções e práticas na dança. Obrigada às professoras Carmen Soares,
Elisabeth Zimmermann, Milton de Almeida, Inaicyra Falcão e Cássia Navas pelas
disciplinas inspiradoras que semearam o solo para que minha pesquisa pudesse brotar.
Obrigada aos colegas, alunos e funcionários da Faculdade de Americana por
todo suporte e compreensão em meu processo de doutoramento e gravidez, em especial ao
meu coordenador Vagner Marcelino por seu apoio, paixão e incentivo à pesquisa científica
e à docência, por valorizar minha formação, a importância das humanidades e da dança no
curso de educação física, a interdisciplinaridade. Por ser um pai dedicado e, por isso,
compreensivo e generoso no meu período de gravidez e amamentação.
Agradeço aos alunos das artes visuais, música e artes corporais, das disciplinas
de Psicologia Aplicada às Artes, Tópicos Especiais em Dança e Laboratórios de Criação, da
Unicamp, pela acolhida, pelo interesse e dedicação e por contribuírem ao aprofundamento
de minha pesquisa de doutorado.
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Aos meus alunos e colegas da Faculdade Paulista de Artes que viram essa
pesquisa nascer em 2001 e se interessaram pelas minhas pesquisas criativas a 2005,
quando saí da Faculdade para dedicar-me ao doutorado, minha gratidão mais sincera.
Alunos eternamente presentes em minha vida e em minha tese, por meio dos depoimentos
que compõem as propostas metodológicas desta pesquisa, muito obrigada.
Ao público sem o qual minha arte-pesquisa não existiria, obrigada!
Agradeço imensamente a todos que de alguma maneira contribuíram para a
concretização desta pesquisa. Amargo Perfume: A vocês essas linhas, essas imagens e o
suor de cada apresentação realizada. Que traga novos perfumes, sabores diversos e
enobreça a arte do movimento.
xiii
Resumo
A presente pesquisa se configura a partir de processos criativos em dança, tendo
os sentidos do olfato e do paladar como estímulos primeiros à criação. Propõe uma escolha
específica no que se refere às técnicas corporais, utilizando a improvisação em sua
possibilidade integradora entre preparação corporal, interpretação e criação. O resultado da
pesquisa, além dos três espetáculos decorrentes dos processos criativos desenvolvidos, é a
configuração de propostas metodológicas em dança contemporânea.
Os primeiros perfumes destacados pela tese apresentam as referências de
pesquisa em relação aos sentidos do olfato e do paladar, justificando o recorte escolhido.
Referências interdisciplinares entre psicologia, história, literatura, cinema, neurociências,
ciências cognitivas, entre outras, evidenciam como estes sentidos aparecem e são tratados
nestas áreas do conhecimento focalizando, finalmente, sua utilização em metodologias
artísticas na dança e no teatro.
No que concerne aos processos criativos, o primeiro espetáculo desenvolvido,
Amargo Perfume, utilizou como estímulo de criação o cheiro do café. O segundo, intitulado
Intenso, enfatizou os sabores do vinho tinto cabernet. E o último espetáculo desenvolvido,
Variações sobre chocolates, utilizou não apenas os estímulos olfativos e gustativos, mas
também as informações táteis de chocolates diversos. Os dois primeiros trabalhos foram
configurados como solo e o último desenvolveu-se em grupo como necessidade de
aplicação das metodologias da pesquisa.
Degustando os sabores, as metodologias geradoras e decorrentes das criações,
que vêm sendo pesquisadas desde 2001, são apresentadas em duas partes. A primeira
relaciona diretamente os sentidos da percepção aos fatores do movimento de Laban em
processos de improvisação. A segunda focaliza mais a criação a partir dos sentidos do
olfato e do paladar, valorizando as contribuições e possibilidades destes sentidos,
especificamente, para a criação coreográfica. As propostas podem ser integradas, promover
interfaces e têm a improvisação como fundamento básico e agregador entre técnicas de
preparo corporal, de composição e interpretação cênica.
xiv
Uma última variação metodológica, nos moldes mais tradicionais de uma aula
de dança, com estrutura de chão, centro e diagonal, é apresentada em anexo como
contribuição aos mais diversos profissionais das artes corporais e cênicas.
Na discussão final, tessitura aromática saborosa, a presente pesquisa reflete
sobre as contribuições das criações e metodologias desenvolvidas para o cenário atual da
dança contemporânea, contextualizando as questões do corpo e da dança a partir do
referencial dos sentidos.
Palavras-chave: dança contemporânea – criação – improvisação sentidos olfato e
paladar
xv
Abstract
The present research was developed from creative processes in dance, that had
the senses of smell and taste as first stimuli for creation. Proposes a specific choice of
corporal techniques, using improvisation as a possibility of integrating body’s preparation,
interpretation and creation. The results of the research are three choreographies and the
configuration of methodological proposals in contemporary dance.
The first perfumes emphasized by the thesis present the references of the study
concerning the senses of smell and taste in different areas as psychology, history, literature,
cognitive science and others. Finally, different artistic methodologies involving the senses
are presented as a reference in theater and dance.
In concern of the creative processes, the first choreography developed, Amargo
Perfume, used the scent of coffee as a stimulus. The second, Intenso, emphasized the
flavors of red cabernet wine. And the last choreography developed, Variações sobre
chocolates, used not only the smelling and tasting stimuli, but also the touching information
of chocolates. Amargo Perfume and Intenso were conceived as solos. Variações sobre
chocolates was developed in group as a necessity of methodological application.
Tasting the flavors, the methodologies that have been researched since 2001,
are presented in two parts. The first one relates the perception’s senses to Laban factors of
movement in improvisation processes. The second one focuses on the creation from the
senses of smell and taste, valorizing the contributions and possibilities of these specific
senses to choreography composition.
The proposals can be integrated and have in improvisation the basis that
associate body’s preparation, interpretation and composition techniques.
One last methodological variation, in a floor work, centre and diagonal format,
is presented in annex like a contribution to the most different professionals in body and
scenic arts.
xvi
As final discussion, tasting and scenting touch, the present study reflects about
the methodological and creative contributions developed to the actual scenery of
contemporary dance, discussing about the body and the dance from the senses’ point of
view.
Key-words: contemporary dance – creation – improvisation – senses – smell and taste
xvii
Sumário
Primeiros perfumes.............................................................................................................01
Amargo Perfume.................................................................................................................23
Degustar os sabores.............................................................................................................35
Dançando pelos sentidos: propostas metodológicas em dança contemporânea........37
Consciência corporal.....................................................................................39
Improvisação.................................................................................................45
Improvisação pelos sentidos: uma abordagem a partir da Eukinética de
Laban ............................................................................................................53
Olfato e paladar – fluência.................................................................57
Visão – espaço...................................................................................64
Tato – peso.........................................................................................68
Audição – tempo................................................................................71
A dança pelos sentidos: criação coreográfica................................................74
Sobre a criação...................................................................................74
Percepção como materialidade coreográfica.....................................76
Em busca de uma matriz corporal......................................................78
Células, frases de movimento e estruturação coreográfica................82
Olfato e paladar: sentimento e sensação............................................87
Sentidos e significados: domínio do inconsciente.............................90
Intenso..................................................................................................................................95
Tessitura aromática saborosa..........................................................................................107
Um corpo contemporâneo em busca de sentido..........................................110
Dança de um corpo híbrido.........................................................................112
xviii
Alinhamento e consciência corporal............................................................114
Materialidade...............................................................................................115
Intérprete criador.........................................................................................116
Consciência, interpretação e criação...........................................................120
Pelo sabor da lentidão..................................................................................126
Variações sobre chocolates...............................................................................................129
Referências.........................................................................................................................141
Bibliografia........................................................................................................................149
Anexos................................................................................................................................163
Entrevistas...............................................................................................................165
Recursos para exploração de movimentos..............................................................176
Interpretação criativa pelos sentidos.......................................................................179
Descrição dos processos criativos...........................................................................187
1
3
Esse aroma tinha frescor; mas não o frescor das limas
ou das laranjeiras, não o frescor da mirra ou das folhas de canela ou
da hortelã ou da bétula ou da cânfora ou das agulhas de pinheiro,
nem da chuva de maio ou do vento da geada ou da água da fonte...
E ao mesmo tempo tinha calor; mas não como bergamota, cipreste
ou almíscar, nem como jasmim ou narciso, nem como lenha de
roseira e nem como íris... Esse cheiro era uma mistura de ambos, do
fugaz e do pesado, não uma mistura, mas uma unidade e, além
disso, restrita e fraca e, ainda assim, sólida e fundamental, como um
pano de fina seda cintilante... E, de novo, também não como a seda,
mas como leite doce feito mel em que um biscoito se dissolva - o
que, afinal, mesmo com a melhor das boas vontades, não se
conjugava: leite e seda! Incompreensível esse aroma, indescritível,
de modo nenhum classificável, a rigor nem sequer deveria existir
(SUSKIND, 2006, p.40).
Indefinível, inclassificável, misterioso, o sentido do olfato em conjunto ao
paladar são fios condutores do processo de pesquisa que se apresenta. Um interesse que
começou no ato de respirar ainda no mestrado, na relação dos sentidos com os fatores do
movimento definidos por Laban, em minha trajetória docente e no desenvolvimento
criativo a partir dos sentidos em meus espetáculos artísticos. Como uma forma de me
aproximar de meu próprio material investigativo criativo o corpo meus processos de
criação voltaram-se para a materialidade do movimento e do corpo como elemento primeiro
de manipulação, elaboração e construção cênica. Isto significa dizer que o movimento é que
gera o resultado significativo da criação. Neste percurso em busca de um sentido mais
próprio ao movimento, que não fosse definido externamente por roteiros ou por outras
linguagens como a escrita, encontrei nos sentidos da percepção enormes aliados.
Assim, a presente pesquisa investiga processos criativos em dança, tendo os
sentidos do olfato e do paladar como estímulos primeiros à criação. Propõe uma escolha de
técnicas corporais, processos de composição coreográfica e interpretação cênica, adequada
ao estudo de um processo criativo em dança contemporânea, utilizando a improvisação
como possibilidade de preparação corporal, de criação e de interpretação, pesquisando
sobre processos específicos de criação. O resultado final em termos de pesquisa, além de
espetáculos de dança, é a descrição qualitativa de propostas metodológicas em dança
contemporânea, baseadas nos sentidos.
4
Os primeiros passos deste trabalho a partir dos sentidos surgiram paralelamente
em minha experiência artística e docente. Como intérprete criadora na área de dança
contemporânea, meu percurso em busca da expressividade me aproximou da respiração e
das qualidades da fluência dos movimentos, definidas por Laban (1978). Em meu mestrado
tive como objeto de pesquisa uma preparação corporal baseada no ato de respirar, buscando
compreender as possibilidades que este preparo corporal trazia à criação. Para isso, ancorei
todo o trabalho corporal que foi pesquisado numa técnica que tem a respiração como
estrutura básica; a técnica de Martha Graham. Percebi que respirar de forma mais livre e
consciente auxilia na ampliação das possibilidades expressivas de intérpretes criadores.
Para o desenvolvimento e análise dos resultados expressivos decorrentes da
aplicação prática da pesquisa foram utilizadas as teorias de Laban. E em termos de fatores
do movimento a respiração se mostrou profundamente vinculada ao fator fluência. O
movimento está sempre fluindo no corpo humano, em graus variados de contenção e
liberdade. Uma das atividades relacionadas a este eterno fluir é a respiração.
Da pesquisa iniciada no mestrado vem meu interesse pelo fator fluência. Tendo
em vista sua relação com a respiração e, associando este fator do movimento aos sentidos,
através dos estudos de Serra (1990), que correlacionam as teorias de Laban ao
desenvolvimento psicomotor humano através de Kestenberg (1975)
1
, cheguei ao olfato e
ao paladar. Estes sentidos estão associados aos ritmos orais exercitados logo nos primeiros
dias de vida, quando o bebê experimenta, através dos ritmos da respiração, do batimento
cardíaco materno e do mamar, diferentes graus de liberdade e contenção da fluência dos
movimentos.
O fator fluência é o primeiro a aparecer durante o processo de desenvolvimento
psicomotor humano. E é a este estado primeiro que me debruço no doutorado. Acredito que
a distância que muitas vezes se apresenta no mundo da dança entre técnica e criação se
relacione, também, a uma distância em relação a este estado primeiro do desenvolvimento
do movimento. O contexto em que vivemos, a maneira como muitas vezes manipulamos
nossos corpos como algo que se tem, constrói, e não como algo que se é e vive, aumentam
1
Kestenberg (1975) relaciona o desenvolvimento das atitudes relacionadas aos fatores do movimento e suas
qualidades ao desenvolvimento psicomotor. Serra (1990) atualiza estes estudos com as contribuições de
outros autores como North, Rogers, Shilder, entre outros.
5
ainda mais esta distância. O excesso de fragmentação a que estamos constantemente
expostos também dificulta o processo de retorno a uma situação primeira, que favorece a
integração, a vivência de um corpo que não se divide em sujeito brasileiro, de sexo
feminino e objeto intérprete dançarino, mas é sempre um todo, inteiro e complexo.
Meu interesse pela fluência dos movimentos foi se transportando
gradativamente para o olfato. O interesse maior começou na respiração (durante o
mestrado) e fluiu (no doutorado) para o sentido olfativo, num primeiro momento, e para o
paladar e as percepções táteis, posteriormente. A compreensão qualitativa desses
movimentos olfativos é que evidenciou, a princípio, a fluência
2
. Contudo, no decorrer da
pesquisa os sentidos foram cada vez mais se colocando em primeiro plano.
Trabalhar criativamente a partir dos sentidos focaliza a relação concreta do
corpo com o mundo e permite a investigação das mais variadas nuances que essa percepção
pode gerar no movimento. No primeiro espetáculo que desenvolvi com estes
questionamentos, focalizei o sentido do tato em relação à parede. Se as paredes tivessem
sentidos (2003) se iniciou no vazio do estúdio e no contato da cabeça com a parede, e a
partir da sensação deste contato desenvolvi rios movimentos originados pela superfície
esférica da cabeça; movimentos curvilíneos, cilíndricos, espiralados. Estando os pés em
contato com o chão e a cabeça em contato com a parede, uma situação variável de tensão
entre estes apoios suscitou diversos movimentos de giro, espirais e curvas, onde a coluna
teve papel de destaque.
Nos trabalhos criativos atuais, que compõem a presente pesquisa, Amargo
Perfume (2005/6), Intenso (2007) e Variações sobre chocolates (2008), focalizo
respectivamente o olfato e o paladar, bem como a relação do paladar com o tato e o contato
corporal. Estas pesquisas criativas originaram as propostas metodológicas apresentadas na
segunda parte da tese.
Paralelamente ao meu trabalho criativo, também venho investigando a
aplicação desta pesquisa com os sentidos em minhas atividades docentes desde 2001,
quando fundamentei uma disciplina de improvisação na Faculdade Paulista de Artes. A
2
As relações entre os fatores do movimento, suas qualidades, atitudes internas no desenvolvimento
psicomotor e os sentidos será descrita em detalhes no próximo capítulo.
6
improvisação, na referida disciplina, foi estudada como possibilidade de ampliação de
repertório individual de movimentos, como técnica corporal, como estágio inicial à criação
e também como fim num processo de criação em improvisação. Estruturei o curso
buscando ampliar a consciência corporal das alunas e a partir daí suas possibilidades
técnicas, contextualizando seus corpos à suas histórias de vida, e utilizando os sentidos
como tema inicial de exploração dos movimentos. A escolha pelos sentidos veio a partir de
uma das referências teórico-práticas do curso: o método de Laban. E o desafio, neste caso,
era buscar uma abordagem adequada a alunas do último ano que haviam passado pelo
autor das mais diversas maneiras: através da exploração das ações básicas, da exploração
do espaço da Corêutica, do desenvolvimento da dinâmica expressiva proposta pela
Eukinética. Em suma, a teoria era conhecida, mas com algumas aulas pude perceber que ela
não se contextualizava como práxis. A teoria estava muito distante da vida, da história
sócio-cultural, da memória de cada corpo daquela disciplina. Por estes motivos decidi
utilizar Laban de uma forma diferenciada.
A utilização de Laban definiu o estímulo inicial para explorações de
movimentos durante toda a disciplina: os sentidos. Contextualizei a ênfase dada a cada
sentido de acordo com a relação dos fatores do movimento com o desenvolvimento
psicomotor humano, iniciando pelo olfato e paladar, relacionados ao fator fluência; a visão
ao fator espaço; o tato ao fator peso; e por fim a audição ao fator tempo.
Continuo, desde então, investigando as possibilidades da improvisação e da
criação pelos sentidos seja como preparação corporal, seja como fim criativo, ministrando
estas propostas metodológicas em diferentes contextos: na graduação das artes corporais da
Unicamp, por meio do programa de estágio supervisionado, em disciplinas como Tópicos
especiais em Dança e Psicologia do desenvolvimento; na graduação do curso de Educação
Física de Americana, na disciplina de Expressões corporais; em cursos e oficinas, bem
como aplicando estas propostas aos processos criativos que desenvolvo, enfatizando os
sentidos do olfato e do paladar.
7
Justifico a partir de agora este recorte de pesquisa: os sentidos do olfato e do
paladar (e o tato, em conseqüência). Destaco que não existe a percepção dissociada dos
sentidos. Segundo Sacks (1998)
Existe, obviamente, um ‘consenso’ dos sentidos - os
objetos são simultaneamente ouvidos, vistos, sentidos, cheirados; o
som, a visão, o cheiro e a sensação ocorrem juntos. Essa
correspondência é estabelecida pela experiência e a associação
(SACKS, 1998, p.19).
Desta forma, uma pessoa sem olfato pode sentir o cheiro de uma flor ao vê-la,
por associação, pelo consenso dos sentidos. Da mesma maneira, assim como não existe a
percepção dissociada dos sentidos, um movimento é sempre uma combinação qualitativa de
fatores, nunca apenas fluência. Por isso, mencionarei na segunda parte da tese os outros
sentidos, bem como os outros fatores para que a compreensão integral do movimento possa
acontecer. Contudo, darei ênfase maior ao olfato e ao paladar, por terem sido utilizados
como estímulos principais dos processos criativos - Amargo Perfume, Intenso e Variações
sobre chocolates - resultados criativos da presente pesquisa.
Olfato e paladar são sentidos químicos
3
e auxiliam na distinção de substâncias
químicas. Ambos estão intimamente ligados. O sabor da comida está ligado ao olfato,
sendo assim, quando estamos resfriados, impedidos de sentir cheiros, apresentamos
dificuldades em sentir o sabor dos alimentos. A distinção entre os dois sentidos é feita, em
parte, pela localização dos receptores com os quais as substâncias químicas reagem na boca
e na garganta para produzir as sensações do paladar e no nariz para produzir as sensações
olfativas. Além disso, o tipo de substância química que ativa cada sentido também difere
(DAVIDOFF, 2001).
O paladar oferece informações a respeito do alimento, o que permite buscar
substâncias nutritivas, vitais e ficar afastado de substâncias prejudiciais. O paladar também
exerce importante papel em relação à fome em conjunto a outros reguladores da
homeostase do organismo. Contudo, outros fatores são determinantes na ingestão de
3
Olfato e paladar são chamados sentidos químicos porque seus receptores perceptivos são excitados por
estímulos químicos, substâncias químicas presentes nos alimentos, no caso do paladar, e substâncias químicas
presentes no ar que respiramos, no caso do olfato (DAVIDOFF, 2001).
8
alimentos, como fatores culturais, sociais, genéticos. Bem como outras funções não muito
bem esclarecidas, como o afeto e o comportamento sexual, são associadas a esses sentidos.
Moura e Lopes (2008) apontam que o cheiro é mais importante na escolha de um parceiro
para mulheres do que a aparência. Discutem ainda a coincidência na avaliação da beleza e
do cheiro em pesquisas recentes; as pessoas avaliadas como mais belas, também são
avaliadas como tendo o odor mais atrativo.
O olfato fornece informações sobre substâncias químicas suspensas no ar
(solúveis em água ou gordura) em quantidades extremamente baixas. O olfato é o mais
enigmático dos sentidos, especulações científicas sobre o desenvolvimento separado e
anterior deste sentido em relação aos outros. Há vários métodos de classificação de cheiros,
mas nenhum universalmente aceito. As relações entre estrutura química e odor são
inconsistentes, a base física das sensações olfativas permanece um mistério. São
identificadas algumas sensações olfativas primárias como fragrante (uma rosa, por
exemplo), pútrido (algo estragado como ovos, por exemplo) e picante (canela). Contudo,
não um consenso entre os cientistas, pois enquanto a visão trabalha com quatro
pigmentos e o tato tem em média uma dezena de receptores, o olfato dispõe em torno de
mil receptores moleculares diferentes para distinguir cheiros, o que lhe mais sensações
possíveis do que todos os outros sentidos juntos.
O olfato também depende da hora do dia, sendo mais sensível antes do que
depois do horário do almoço, por exemplo. E apesar de ser reconhecido por muitos
cientistas como menos importante, bebês com menos de um ano podem distinguir entre o
cheiro da mãe e estranhos. O olfato também aponta ter importância no comportamento
afetivo e sexual. Deficiências neste sentido provocam a falta de desejo sexual
(DAVIDOFF, 2001; HERCULANO-HOUZEL, 2003; MORGAN, 1977). E historiadores
como Corbin (1987), baseado em discursos médicos, denomina o olfato como sentido da
afetividade, associando-o aos sentimentos humanos.
No que se refere ao paladar, são diferenciadas quatro qualidades palatais
primárias - azedo, doce, amargo e salgado - pela maioria dos cientistas. Recentemente,
foram descobertos receptores específicos para água e glutamato monossódico (gosto do aji-
no-moto) e estes passaram a ser também considerados gostos básicos (HERCULANO-
9
HOUZEL, 2003). Entretanto, a grande variedade de sensações do paladar geralmente
decorre de misturas. As sensações do paladar também sofrem influência de outros sistemas
sensoriais. A temperatura e a textura, por exemplo, modificam as sensações do sabor dos
alimentos, o que evidencia a integração dos sentidos e, neste caso, a influência tátil no
paladar. A influência do sal aumenta com a baixa temperatura e a textura mole de uma
melancia muito madura pode trazer o gosto de estragado. O sabor do alimento também
depende de onde ele é mantido na boca. A língua tem regiões sensíveis a diferentes sabores:
a ponta experimenta melhor o doce e o salgado, os lados o azedo e a parte de trás os sabores
amargos (DAVIDOFF, 2001). A percepção é um processo extremamente complexo, que
depende não somente de fatores químicos, ambientais, sócio-culturais, mas também do
sujeito que percebe. A percepção é, antes de mais nada, uma forma de interação com o
mundo.
Conhecemos e nos relacionamos com o mundo, primeiramente, pela percepção
sensível dos sentidos. Este saber provém do sabor, do saborear os elementos do mundo,
incorporá-los, trazê-los ao corpo (DUARTE JR., 2001). Isto é ainda mais evidente e literal
nos sentidos do olfato e do paladar. Os cheiros penetram nosso corpo mesmo que não
queiramos, pois não podemos parar de respirar senão morremos. Suskind, em seu romance
“O Perfume”, ilustra esta característica olfativa da seguinte forma; “o aroma é um irmão da
respiração. Com esta ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram
viver” (SUSKIND, 2006, p. 08). Também dependemos do alimento que saboreamos e
digerimos para estarmos vivos. Olfato e paladar encontram-se intimamente ligados à nossa
relação sensível com o mundo e com a vida, às nossas lembranças e à maneira como
significamos nossas experiências:
A memória olfativa com que contamos parece ser um
aspecto marcante de nosso estar-no-mundo, parece ser um forte
resquício animal preservado em nós e mesmo diferenciado pela
dimensão simbólica de que dispomos. /.../ Inegavelmente há cheiros
específicos em nossa memória: os da infância, da escola, de certas
férias, do perfume de um primeiro amor etc. Muito daquilo contido
em nossa lembrança é, sem sombra de dúvida, eminentemente
olfativo (DUARTE JR., 2001, p.99).
10
Além de associar-se às mais primevas apreensões do mundo como respirar pela
primeira vez ao nascer, sentir o cheiro da mãe, do leite, a percepção olfativa está
diretamente ligada ao paladar. Cheiros e sabores são percebidos juntos e quando um desses
é privado a compreensão do todo se compromete. O tato aparece como sentido associado
aos mencionados, pois a sensação de determinado cheiro também têm percepções táteis
como frio e quente nas narinas. E as percepções do paladar também integram sensações
táteis de maciez, aspereza, por exemplo. Desta forma, o primeiro local de reconhecimento
tátil dos objetos pela criança é a boca. Antes de ser capaz de manipular e focalizar os
objetos com os olhos, a criança conhece o mundo pela boca. A boca é uma extensão natural
que a criança faz de seu mundo interno, integrado, com o externo. Os olhos e as mãos a
projetam para fora. Serra (1990)
4
explica que, se num primeiro momento, a boca é o órgão
exploratório principal, a ela somam-se as qualidades de focalização do olhar e a habilidade
de preensão das mãos em momentos posteriores do desenvolvimento psicomotor. Duarte Jr.
(2001) complementa esta reflexão quando afirma que “as mãos parecem ser a extensão
natural de nossos olhos, completando com o toque o conhecimento iniciado pelo olhar”
(DUARTE JR., 2001, p.101).
Apesar de possuirmos uma acuidade perceptiva relativamente menor que a
maioria dos animais, desenvolvemos a capacidade de imprimir uma carga emocional
significativa à nossas percepções. Com esta grande diferenciação perceptiva em relação ao
que poderia ser somente instintivo ou somente uma função para nos manter vivos e bem
alimentados, nossa percepção agrega um importante elemento; o conteúdo simbólico,
bastante favorável à expressão artística. Neste sentido, de acordo com Kestenberg (1975),
ao associarmos a fluência dos movimentos ao olfato e ao paladar no desenvolvimento
psicomotor, os associamos em termos de atitude interna às emoções, aos sentimentos. Ao
valorizar olfato e paladar em termos de processo criativo, enfatizo a expressão de
4
Mais uma vez nos referimos aos estudos de Serra (1990) atualizadores de Laban e Kestenberg. Além destes
estudos, North e Serra preocuparam-se com as relações entre as combinações qualitativas dos fatores do
movimento de Laban e atitudes internas do ser humano. North (1975) associando os fatores combinados a
traços de personalidade. Serra (1997), mais especificamente, buscando a relação entre combinações
qualitativas e a personalidade criativa.
11
sentimentos. Sentimentos de uma ordem primeira, não-linear, intuitiva, uma inteligência
sensível. Sentimentos objetivados pela criação em movimentos simbólicos.
Emprestar sentido- ao mundo- depende, sobretudo, de estar atento
ao sentido - aquilo que nosso corpo captou e interpretou no seu
modo carnal. O sentir- vale dizer, o sentimento- manifesta-se, pois,
como o solo de onde brotam as diversas ramificações da existência
humana, existência que quer dizer, primordialmente, ‘ser com
significação’ (DUARTE JR., 2001, p. 130).
Eis o principal motivo da pesquisa que apresento: significar por meio do ser, do
sentir por meio dos sentidos. Dar expressão àquilo que o corpo experimenta e interpreta de
forma carnal, àquilo que o corpo sente, manipula, explora, objetiva, forma e manifesta
criativamente. forma a partir do que sente e expressa pela significação simbólica que
atribui ao sentimento. E que significações específicas podem estar associadas ao olfato e ao
paladar?
Convido o leitor, neste momento, a refletir um pouco sobre as significações
associadas ao olfato e ao paladar em obras literárias, históricas e no cinema. “No caminho
de Swan”, primeiro livro de “Em busca tempo perdido” do escritor francês Marcel Proust
(2004), encontramos uma sublime referência gustativa associada a um prazer tão grande
que resgata, segundo o autor, uma preciosa essência:
/.../ ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio,
ofereceu-me chá, coisa que era contra meus hábitos. A princípio
recusei, mas, não sei por que, terminei aceitando. Ela mandou
buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas
e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de São
Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste
dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro,
levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um
pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole,
de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci,
atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um
prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo
me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus
desastres, ilusória sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-
me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em
12
mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente,
mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que
estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava
infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha?
Que significava? De onde apreendê-la? (PROUST, 2004, p. 48-49).
Nesta passagem, Proust (2004) ressalta o poder de um sabor em resgatar uma
essência comparável ao amor, indefinível, inclassificável, somente acessível à memória por
esta percepção. O sabor desfaz toda uma tristeza de alma e a perspectiva de um inverno
sombrio, permitindo um prazer sem causa, essencial.
Em “Chocolate(2000), filme do sueco Lasse Hallström, Vianne e sua filha
Anouk chegam a uma cidade conservadora do interior da França para abrir uma
chocolateria. A cidade, meio sem vida, é bastante tradicionalista, todos sabem o que se
espera deles e agem de acordo com esses padrões. Vianne e Anouk fora dos padrões,
andarilhas, sem uma família convencional, chegam com o vento, vestidas de vermelho em
contraste aos trajes cinzentos dos moradores. A cidade, a princípio, reprova a abertura de
uma chocolateria, principalmente na época da quaresma. E não faltam obstáculos, fofocas e
intrigas feitas no sentido de expulsar a ameaça da produtora de cheirosos e saborosos
chocolates. A reprovação e a ameaça revelam o medo diante do novo, do inusitado, do
prazer, do proibido. Contudo, os chocolates vão, aos poucos, transformando as pessoas.
Aproximam, dão coragem, retiram o ranço. Vianne tem o delicioso costume de procurar o
chocolate preferido de cada pessoa. E, mesmo aos que se recusam a ir à loja, vai oferecendo
pequenos mimos saborosos, que transformam lentamente as pessoas. Enamoram casais,
trazem coragem à mulher que apanha do marido a sair de casa, reaproximam a avó do neto
e da filha... O perfume e o sabor dos chocolates são associados a prazer, liberdade,
movimento, encontro, aproximação, amor, vida. Da mesma forma, o permitir-se este
saborear também é associado a caos, pecado, desordem.
De forma semelhante, em “A festa de Babette” (1988), de Isak Dinesen,
Babette, uma empregada francesa, sem ter família a quem recorrer, é acolhida em troca de
seus serviços por duas irmãs filhas de um pastor. Babette passa 14 anos vivendo com as
irmãs em um vilarejo pobre e conservador que, mesmo com a morte do pastor, tenta manter
seus serviços religiosos. Babette ganha na loteria e decide fazer um grande banquete
13
francês no centenário do pastor. A comunidade acha um despropósito, um desperdício,
pecado e até sacrilégio. Resolvem aceitar para não desagradar ou ofender Babette, mas
prometem não saborear nada em respeito ao pastor. Contudo, durante o banquete exótico de
Babette, ao sabor de vinhos, tartaruga, codorna, queijos, frutas, doce, licor, as pessoas vão
se transformando. Os rostos vão se ruborizando, os olhares se aproximam. Todos
saboreiam, se entregam, sorriem, se olham, olhos entre olhos. As palavras de afeto e
carinho aparecem no lugar de discursos religiosos, as gentilezas entre inimigos. O sorriso e
a emoção florescem.
O perfume e o sabor dos alimentos evocam a aproximação e significação social
não apenas na arte do cinema e na literatura, mesmo na história esta característica é
evidenciada. Luis da Câmara Cascudo (1983), em seu clássico “História da alimentação no
Brasil”, ressalta algumas características sociais da alimentação, considerando a refeição
como elemento pacificante. Salienta ainda a questão simbólica do beber a alguém, como
homenagem ou brinde, como um cerimonial sagrado (Como em “Festa de Babette”, o
banquete em homenagem ao pastor). Para salientar o alimento e sua importância no
convívio social, Cascudo (1983) reflete sobre os alimentos, que em termos nutricionais
poderiam ser desnecessários, mas que devido à sua função sócio-cultural ganham imenso
destaque e significado:
Os bolos e os doces, não sendo alimentos reais, tornados
indispensáveis no convívio humano, denunciarão um estágio
compreensivo e cordial na continuidade da comunicação social.
Esses doces aparecem em quase todos os povos, oferecidos como
preliminar na recepção começada. Coisas rápidas, leves, gostosas,
facilitando o entendimento pela degustação das doçuras iniciais.
Comer juntos é, decorrentemente, aproximar-se, compreender-se
(CASCUDO, 1983, p. 658).
Voltando aos exemplos do cinema, “Tempero da vida” (2003), de Tassos
Boulmetis, é outro bom exemplo de significações relacionadas ao olfato e ao paladar. O
garoto Fanis é criado em uma família onde as refeições e seus preparos estão extremamente
vinculados às relações pessoais, principalmente familiares, e são preparadas em clima de
festa e mistério entre temperos exóticos. O filme começa com uma bonita imagem de um
14
bebê um pouco desatento e relutante em mamar e sua mãe adicionando um pouco de açúcar
ao bico do seio facilitando o processo. A imagem permanece durante todo o filme,
ressaltando a importância de se agregar os temperos certos a cada vivência, a cada fase da
vida.
O garoto Fanis é extremamente próximo ao avô, que tem uma loja de secos e
molhados com muitos temperos. O avô ensina ao neto sobre a vida, sobre os astros, sobre
geografia, sempre através dos temperos. Diz que cominho deixa as pessoas introspectivas e
canela as faz olharem nos olhos. Ensinamento que faz o neto adicionar canela às
almôndegas da mãe, aproximando-a do pai. O avô também ensina astronomia através do
tempero. Traz o tempero ao neto e pede que ele o associe ao astro devido. A pimenta que
tudo ilumina e pode ser adicionada a qualquer tipo de prato é associada ao sol. À terra que
tudo nos e nutre associa-se ao que sabor aos alimentos: o sal. E assim o menino vai
crescendo entre temperos e significados vividos, torna-se um grande cozinheiro e depois
professor de astrofísica. A afetividade é mais uma vez elemento de destaque neste filme e,
como nos outros, os paradoxos se contrapõem. O prazer e o desprazer. O encontro e a
distância. O permitido e o proibido. Os temperos têm o poder de aproximar ou distanciar,
dependendo das circunstâncias. Assim como aproxima os pais, Fanis separa o tio de uma
noiva que julga não servir para ele, utilizando-se de temperos específicos, segredos de
família, adequados a cada ocasião.
Nos exemplos citados observo que o apelo ao olfato e ao paladar associa-se a
prazer, fortes emoções, sentimentos à flor da pele, vida bem vivida. O tempero certo é
capaz de resultar no fim de uma briga. Contudo, da mesma maneira que os bons perfumes e
sabores estão associados ao prazer, à vida e ao amor, os maus cheiros estão associados ao
desprazer, à sujeira, ao caos, à morte.
Na obra do historiador Alain Corbin (1987) verificamos este lado dos maus
odores e a construção de um imaginário social sobre os odores no séculos XVIII e XIX.
Época dos miasmas nas cidades no século XVIII, o mau cheiro era percebido como perigo,
devido às mortes, às doenças e seu cheiro pútrido. Acontece assim a acentuação da
sensibilização olfativa, no sentido analista da vigilância contra a ameaça da ordem social, o
que evolui para as desodorizações, tornando o olfato cada vez mais intolerante e a higiene
15
progressivamente mais valorizada. Corbin (1987) analisa esse importante papel fiscalizador
do olfato no século XVIII e a evolução social decorrente a isso na história contemporânea:
O olfato informa plenamente a respeito desse grande
sonho de desinfecção e sobre as intolerâncias novas. Ele diz, melhor
que os outros sentidos, o retorno implacável do excremento, a
epopéia das cloacas, a sacralização da mulher, uma simbólica do
vegetal; ele permite uma nova leitura desses grandes eventos da
história contemporânea que são a ascensão do narcisismo, o
recolhimento para dentro do espaço privado, a destruição do
conforto selvagem, a intolerância para com a promiscuidade.
(CORBIN, 1987, p.294).
Também ambientado na França do século XVIII, o romance “O Perfume”
(1985) de Suskind mostra a saga de Grenouille, um homem nascido sem cheiro, em busca
do melhor e mais perfeito perfume, numa França destacada por muitos maus cheiros:
Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente
concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam
a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as
cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação,
salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos
colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos. /.../ Os
homens fediam a suor e a roupas não lavadas; da boca eles fediam a
dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos,
quando não eram mais bem novos, a queijo velho, a leite azedo e
a doenças infecciosas. /.../ Pois à ação desagregadora das bactérias,
no século XVIII, não havia sido ainda colocado nenhum limite e,
assim, não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva,
manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer, que não fosse
acompanhada de fedor (SUSKIND, 2006, p.11)
Grenouille, de olfato extremamente apurado, nasce no meio dos peixes,
rejeitado pela própria mãe, passa inúmeras privações, sofrimentos, doença. Torna-se
perfumista e assassino de mulheres jovens, buscando apreender o melhor perfume para ser
um homem completo e amado. É preso e odiado por seus crimes e adorado pelos aromas
que cria. É amado, venerado e assassinado pela multidão enfeitiçada pelo seu mais perfeito
perfume produzido e utilizado em si mesmo.
16
Sentido paradoxal, o olfato contrapõe o mau cheiro e a higiene, a intimidade
afetiva e a animalidade. Vanguarda do paladar, o nariz avisa sobre os venenos da
atmosfera, analisa a qualidade do ar. Sentido do desejo, do apetite e do instinto. Sentido da
animalidade e da conservação. Permite farejar os perigos mortais e, ao mesmo tempo, é o
mais individual dos sentidos, sendo dificilmente confiável em suas percepções efêmeras e
relativas. Sentido do prazer e da delicadeza, os paradoxos olfativos não impedem o
reconhecimento da sua importância em relação aos sentimentos, à afetividade.
A fugacidade e mais ainda a descontinuidade das impressões
olfativas atrapalham a memorização e a comparação das sensações.
Tentar educar o olfato é buscar uma decepção./.../ Entretanto, desde
a Antiguidade, os médicos não cessam de repetir que, dentre todos
os órgãos dos sentidos, o nariz é o mais próximo do cérebro e,
portanto, da ‘origem do sentimento’. Além disso, ‘todos os
filamentos de seus nervos, de suas papilas, são livres, plenos de
espíritos’ /.../ Daí, a extrema delicadeza das sensações olfativas; e
ela, por oposição à acuidade propriamente dita, cresce juntamente
com a inteligência do indivíduo. O delicioso odor das flores ‘parece
ser feito apenas para o homem’.
Sentido dos afetos e dos mistérios que estes encerram-
Rousseau disentido da imaginação e do desejo-, o olfato atinge
mais o psiquismo do que a audição ou a visão; ele parece mergulhar
nas raízes da vida. Logo, ele deverá surgir como o sentido
privilegiado da reminiscência, o revelador da coexistência do eu e
do mundo, o sentido da intimidade (CORBIN, 1987, p. 14).
Não são poucas as referências sobre sentimentos e emoções na literatura
pesquisada sobre olfato e paladar entre diversos autores seja nas artes, na história, na
literatura, psicologia ou mesmo nas ciências médicas. E o que são emoções? E
sentimentos? Muitos autores empregam ambos os termos como sinônimos, outros não.
Damásio os diferencia da seguinte forma:
A emoção é a combinação de um processo avaliatório
mental, simples ou complexo, com respostas dispositivas a esse
processo, em sua maioria dirigidas ao corpo propriamente dito,
resultando num estado emocional do corpo, mas também dirigidas
ao próprio cérebro, resultando em alterações mentais adicionais
(DAMÁSIO, 1996, p. 168).
17
A percepção de todas as mudanças que constituem a resposta emocional
caracteriza o sentimento. Alguns sentimentos estão relacionados às emoções, mas outros
não. “/.../ todas as emoções originam sentimentos, se se estiver desperto e atento, mas nem
todos os sentimentos provêm de emoções” (DAMÁSIO, 1996, p. 172). Os sentimentos que
provém de emoções, denominados sentimentos de emoções, ocorrem à medida que
tomamos consciência das alterações corporais provocadas por uma emoção, acompanhando
sua evolução, as mudanças no estado corporal e os pensamentos a esse respeito. Felicidade,
tristeza, cólera, medo, nojo e variações destes primeiros como euforia e êxtase (felicidade),
melancolia e ansiedade (tristeza), pânico e timidez (medo) são sentimentos de emoções.
Os sentimentos que não provém de emoções são denominados sentimentos de
fundo e originam-se de estados corporais de fundo como o sentimento da própria vida, a
sensação de existir. Podem se revelar agradáveis e desagradáveis e são os que ocorrem com
mais freqüência. “O sentimento de fundo é a imagem da paisagem do corpo quando essa
não se encontra agitada pela emoção” (DAMÁSIO, 1996, p. 181). As sensações articulares,
musculares, viscerais, a postura, a velocidade dos movimentos, o tom de voz, bem como a
nossa imagem corporal são determinados pelos sentimentos de fundo. Os que mais se
destacam são: fadiga, energia, excitação, bem-estar, mal-estar, tensão, descontração,
arrebatamento, desinteresse, estabilidade, instabilidade, equilíbrio, desequilíbrio, harmonia,
discórdia. Sentimentos de fundo e consciência estão intimamente vinculados (DAMÁSIO,
2000).
Os sentimentos permitem-nos perceber e atualizar sensações encarnadas e
pensamentos e imagens sobre nosso corpo a partir de situações como a percepção de um
cheiro ou um sabor, e atribuir a essa experiência qualidades positivas ou negativas, de
prazer ou de dor, o que possui um desenvolvimento individual e subjetivo.
Um sentimento em relação a um determinado objeto baseia-
se na subjetividade da percepção do objeto, da percepção do estado
corporal criado pelo objeto e da percepção das modificações de
estilo e eficiência do pensamento que ocorrem durante todo o
processo (DAMÁSIO, 1996, p. 178).
18
Segundo Jung (1974) esta característica de subjetividade perceptiva associada
ao sentimento reflete sua expressão de avaliação, de juízo de valor. O sentimento, segundo
este autor, é uma função de julgamento caracterizada pelo sujeito. O sentimento classifica
os conteúdos percebidos no mundo, por meio de sensações de satisfação, gosto, aceitação
ou rejeição, conforto ou desconforto, ou seja, reações de valor, de julgamento definidas
subjetivamente (JUNG, 1974; WHITMONT, 1995).
Compreendo, então, que ao utilizar os sentidos da percepção, enfatizando o
olfato e o paladar, me aproximo da consciência e da expressão de emoções e de
sentimentos, bem como da consciência da própria existência, de ser. A percepção dos
sentidos baseia-se na subjetividade da percepção, objetivada em forma criativa, no caso das
artes. Nesta direção, a partir deste momento, percorro referências das artes cênicas e
corporais, que se preocuparam, em suas buscas criativas e metodológicas, com a percepção
dos sentidos. Não é raro encontrar alguma referência aos sentidos como estímulo para o
desenvolvimento criativo. Autores como Robatto (1994), Haselbach (1988), Humphrey
(1959), Smith-Autard (1996), Blom (1988), Strasberg (1996), entre outros, sugerem a
utilização dos sentidos para estimular a criação de movimentos. Contudo, os sentidos mais
amplamente discutidos são: a visão e a audição. O tato também possui mais referências em
relação à propriocepção e ao contato, sobretudo com o surgimento e desenvolvimento do
contato improvisação. As referências diretas e exclusivas ao olfato e ao paladar, no entanto,
são mais tímidas.
Smith-Autard (1996) em sua obra Dance Composition considera em seus
métodos de construção no que intitula the beginnings os estímulos para composições de
dança, classificando-os como estímulos auditivos, visuais, ideacionais, táteis ou
kinestésicos. Os estímulos são considerados como fontes geradoras de idéias de movimento
para composições. Em termos de percepção dos sentidos somente são ressaltados o tato, a
visão e a audição. Olfato e paladar nem são mencionados.
Humphrey (1959) também discorre longamente sobre possibilidades
coreográficas visuais relacionadas ao espaço como simetria e assimetria, alinhamento,
desenho e também sobre elementos auditivos referentes a ritmo, pulsação. Atribuo a
valorização maior dada ao visual e ao auditivo na dança ao resultado da criação em cena,
19
geralmente considerado como visual e auditivo. Contudo, a preocupação cada vez maior
com a consciência corporal em domínios como o da educação somática considera, cada vez
mais, todos os aspectos que envolvem o corpo humano: desde aspectos sócio-culturais e
históricos até anatômicos, fisiológicos (SOTER, 1998; STRAZZACAPPA, 2001). E, neste
domínio, os órgãos dos sentidos começam a ser mais destacados e conhecidos, bem como
sensibilizados para o desenvolvimento criativo.
No body-mind-centering criado por Bonnie Bainbridge Cohen, a dinâmica da
percepção é considerada como receptora de informações internas e externas ao nosso corpo,
permitindo a reflexão e exploração sobre como filtramos, modificamos, aceitamos,
rejeitamos e usamos essas informações. Cohen considera a boca como a primeira
extremidade, fundação para o desenvolvimento das demais; mãos, pés, e considera que se
desenvolve intimamente associada ao nariz (COHEN, 2008). O contato improvisação,
criado por Steve Paxton, que se utiliza de técnicas de ginástica, aikidô e meditação, valoriza
a percepção, a atenção e o reflexo num processo de comunicação pelo toque, uma
experiência profunda não racional e intuitiva (PAXTON, 1999).
Nas artes cênicas Lee Strasberg (1990) no desenvolvimento de seu método,
decorrente de sua experiência como ator com Stanislavski e seus desenvolvimentos como
diretor, menciona a importância dada aos sentidos no American Laboratory Theatre, em
que os atores eram estimulados a treinar os sentidos para criar a realidade cênica:
O treinamento deve começar com os cinco sentidos: visão,
audição, tato, paladar e olfato, acrescidos dos sentidos cinéticos ou
motores. O treinamento dos sentidos representava uma parte vital
do exercício consciente do ator. Todas as relações humanas são o
resultado de experiências sensoriais. /.../ Sem os sentidos, não existe
vida (STRASBERG, 1990, p.98).
Segundo Strasberg, Stanislavski considerava os cinco sentidos como elementos
principais para despertar a memória emocional do ator e referia-se, principalmente, aos
sentidos da visão e da audição. O treinamento dos sentidos, neste caso, eram feitos através
da imaginação em relação à vivência dos sentidos. Ao adaptar esses exercícios em seu
método, Strasberg realizava os exercícios primeiramente com objetos reais e
20
posteriormente com objetos imaginários. E um dos primeiros exercícios que propunha ao
ator era presentificar toda a experiência de seu desjejum.
Kazuo Ohno, representante da dança butoh também menciona em entrevista a
importância dos sentidos para nos trazer uma dança mais próxima da vida, do sentimento e
não do excesso de pensamento, de desejo e de posse:
Pode-se usar todos os órgãos na dança: o coração, os rins, os
braços etc. Essas coisas todas /.../ Todos os sentidos têm que ser
usados na dança. coisas que não se em, mas que existem.
Ainda que não as toquemos, elas podem ser tocadas. Em vez de
pensar, desejar, querer, possuir coisas, é preciso usar mais os cinco
sentidos. /.../ Não se deve dançar com a cabeça, mas dançar
buscando a origem da vida, da pessoa mesmo, de si mesmo. A
origem da dança deve ser a não-idéia. O importante é o sentimento
(LUISI; BOGÉA, 2002, p.94)
Os processos criativos desenvolvidos para a presente pesquisa se utilizam, em
termos de sentidos, do olfato, do paladar e do tato, com maior ênfase. Amargo Perfume
inicia o processo valorizando o olfato, tendo como estímulo criativo o café. Intenso valoriza
mais o paladar, e em conseqüência, o tato, a partir do vinho tinto cabernet. E Variações
sobre chocolates integra os sentidos do olfato, paladar e tato, a partir da apreciação de
chocolates. O objetivo inicial em termos de ênfase criativa eram os sentidos do olfato e do
paladar, que acontecem integrados. Com a experiência do paladar, principalmente,
percebemos vários aspectos do gosto que são táteis. O tanino, por exemplo, substância que
se encontra no vinho, é um poderoso adstringente, que promove a constrição dos tecidos do
corpo. O sabor adstringente não é propriamente um sabor químico, mas uma questão de
tato, enquanto origem, contudo não deixa de ser um sabor legítimo e é representado pelo
córtex gustativo (HERCULANO-HOUZEL, 2003). Outra questão importante nas escolhas,
muitas vezes inconscientes, dos estímulos criativos dos espetáculos desenvolvidos é o
sentimento, as emoções. “As regiões do cérebro que processam sinais relativos à comida
andam de mãos dadas com outras que atribuem valores emocionais, bons ou ruins, a tudo o
que se faz” (HERCULANO-HOUZEL, 2003, p.211). Como mencionei anteriormente,
21
valorizar olfato e paladar é valorizar a expressão de sentimentos e emoções, e a consciência
da própria existência, de ser.
Em minhas lembranças cheiros e gostos sempre foram preponderantes. Desde o
cheirar como beijo de minha avó materna; primeiro cheirava o rosto, o pescoço, beijava,
muitas vezes, beliscava de leve, depois segurava no abraço satisfeito do encontro. Para
manter-se por perto, mesmo com sua partida, borrifava seu perfume em meu travesseiro,
ficava sempre comigo em meus sonhos, vigiando meu sono.
Meu pai e seu apreço por café, cheiro eterno em minha lembrança. Café sempre
foi motivo de encontro das pessoas em minha família. Mal chegavam meus tios e a
pergunta ressoava da porta: “Tem café nessa casa?” Café sem açúcar para o avô, melado
para os tios, com adoçante para mamãe, diabética. Café ausência nas rodelas do copo
misturadas ao cheiro de jornal. Café para meus pais, sempre no copo. Mais tarde, para mim,
sempre na xícara.
Minha mãe, em suas eternas fiscalizações de banho de criança, cheirava-nos
todo corpo em eternas gargalhadas. O carinho mais doce e incondicional, a certeza e a
segurança de que tudo está bem, certo, seguro. Cheiro de amor. Cheiro de chuva, de
infância, piquenique na sala. As hortênsias azuis com suas pétalas em pranto, os tatuzinhos-
bola se escondendo da chuva embaixo da porta, azedinhos. O grande banquete de figos
comidos qual caviar, de colherinha. Delícia cristal de açúcar e canela, bolinhos de chuva.
Massa italiana de domingo, passada no cilindro, muitas, muitas vezes.
Meu avô paterno e seu eterno perfume azzaro, sempre perfumado, amor
incondicional. Minha avó paterna e suas roupas de lavanda, sua casa de artista com cheiro
de tinta óleo, livros, jornal, gatos, e gosto de café bem fraco e pimentões frescos do quintal.
...Até minha eterna mania de cheirar quase tudo que toco e como, ser o nariz de casa
reconhecedor das comidas estragadas. Cheiro de namorado e de namoro, gosto de amor,
vinho tinto, sabor de entrega, de êxtase. Cheiro de dor, de perigo, gosto de saudade,
agridoce. Tudo que passamos na vida... podemos não ver, mas cheiramos. Outras coisas,
tantas, saboreamos. Finalmente, as eternas refeições, carinho de família. Encontrar-se para
comer, sempre!! Comer, fazer comida, sair para comer, falar sobre comida, como fazer, o
tempero, o preparo, quanto tempo... Ai... Que fome!
22
Perfumes muitos, fragmentos aromáticos na busca de um buquê sobre o
processo criativo sentido. Muitas referências, poucas reflexões específicas. Que a presente
pesquisa possa contribuir um pouco no preenchimento dessa lacuna saborosa e perfumada
da criação em dança. Para isso, apresento na segunda parte dessa tese metodologias
geradoras e decorrentes dos processos criativos que a compõem, destacando a improvisação
como possibilidade integradora entre preparação corporal, interpretação e criação,
reconhecendo-a como técnica e discutindo suas possibilidades a partir dos sentidos, a
princípio contextualizados aos fatores do movimento de Laban e, posteriormente, mais
focalizados na criação, enfatizando olfato e paladar nos processos criativos desenvolvidos.
A terceira parte da tese apresenta suas discussões mais relevantes a partir dos
processos criativos e as metodologias apresentadas, refletindo sob uma perspectiva sentida
de olhar para o corpo e para a dança na contemporaneidade, refletindo sob a relevância e as
contribuições das propostas metodológicas apresentadas e discutindo a possibilidade da
improvisação em integrar preparação corporal, interpretação e criação em um único
momento, abrangendo cnicas de preparo corporal, bem como técnicas interpretativas e
criativas.
Um trabalho acadêmico e artístico apresenta, ainda, algumas dificuldades para
abranger todas as justificativas criativas, sensíveis. Por este motivo, integra a presente tese,
não somente o registro videográfico das obras que compõe o trabalho em DVD na íntegra,
como também textos poéticos sobre Amargo Perfume, Intenso e Variações sobre
Chocolates. Estes textos são apresentados entre as três partes que compõem a tese,
promovendo pequenos momentos poéticos e respirados ao longo de reflexões acadêmicas
mais extensas. Optei por apresentá-los em conjunto a imagens, aproximando o leitor do
conteúdo mais simbólico de cada trabalho, no encontro entre a arte e a reflexão acadêmica.
Entre o objetivo e o subjetivo. Entre o controle e a entrega. Amargo Perfume que compõe o
eterno paradoxo da pesquisa artística.
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Dançando pelos sentidos:
Propostas metodológicas em dança contemporânea
Brinque com sua comida. Vire-a do avesso e de cabeça
para baixo. Transforme o quente em frio e o áspero em macio.
Cheire a comida. Cutuque-a. Prove-a na ngua. Coma para evocar
lembranças, para compartilhar, para se divertir. Satisfaça o coração
e a alma que o estômago vem atrás. Alimentação não é matemática,
é emoção (Bottura, 2008, p. P5).
Criar para mim é como nutrir-me, é alimento, é ar, é fundamento essencial ao
existir. Talvez por estas razões tenha me aproximado dos cheiros, dos sabores, do contato
mais primevo do corpo com o mundo. E tudo, enfim, se resume a ‘como’. ‘Como’ no
movimento, minha tão amada fluência, que associo a ar, a cheiro, a gosto primeiro. ‘Como’,
em termos de pesquisa revela-se em metodologias. Decorrentes e geradoras dos processos
criativos pesquisados, bem como de minha trajetória docente e interpretativa criativa, as
propostas que apresento neste capítulo devem ser provadas, sentidas, cheiradas, deglutidas.
Abertas, qual bocas à espreita de um novo e saboroso bocado, permitem diálogos,
interfaces, integram processos.
Desde 2001, venho desenvolvendo e aprimorando propostas metodológicas em
dança baseadas nos sentidos. Por um lado, estas propostas surgiram como uma necessidade
de facilitar aos meus alunos a compreensão e vivência das qualidades do movimento
definidas por Laban. Encontrei na pesquisa dos sentidos uma referência indireta para que o
corpo possa experimentar sutilezas qualitativas.
Por outro lado, como pesquisadora e intérprete, os sentidos me auxiliaram a
compreender o movimento como estímulo principal. O movimento dos sentidos, como
início de minhas composições, trouxe um trabalho mais efetivo com e através do
movimento e, a partir deste, acontece o surgimento dos significados. Como intérprete
criadora essa possibilidade me agrada pela materialidade resultante como linguagem
coreográfica. O movimento pesquisado é que gera as significações do processo criativo, o
que atribui uma densidade qualitativa bastante efetiva aos movimentos.
38
Meu trabalho técnico como intérprete é vinculado à criação, mas em minha
formação isto nem sempre foi assim. Iniciei minha formação com aulas que valorizavam o
domínio de certos tipos de movimento. E a criação, neste contexto, era apenas uma
execução de passos adquiridos com muito esforço, mas sem nenhuma consciência criativa
ou significativa. Com essa insatisfação, em minha experiência docente, procurei não apartar
a criação do domínio técnico, mas apenas valorizar um conteúdo mais investigativo em
relação às possibilidades de execução dos movimentos, sempre com o objetivo de
desenvolver um processo de criação como conseqüência deste trabalho. Neste sentido, a
improvisação é um eixo que percorre todas as perspectivas metodológicas que apresento
integrando preparação corporal, interpretação e criação.
A divisão que proponho a seguir apenas contextualiza um trabalho vinculado
aos fatores do movimento definidos por Laban, decorrente do início de minha pesquisa em
relação aos sentidos, e um trabalho focalizado mais diretamente nos sentidos do olfato e do
paladar para a criação
5
. Contudo, são trabalhos que dialogam e podem desenvolver
interfaces. A improvisação, utilizada como preparação corporal, interpretação e criação,
está presente nas propostas metodológicas, contudo, com ênfases diferenciadas. Na
improvisação pelos sentidos a ênfase é a improvisação, como recurso investigativo e como
recurso criativo. Na dança pelos sentidos a ênfase é a criação direta a partir dos sentidos do
olfato e do paladar, em que o domínio do processo criativo pressupõe a improvisação e,
portanto, domínio interpretativo criativo
6
. As propostas apresentadas integram preparação
corporal, interpretação e criação, a partir da improvisação, permitindo a compreensão da
5
Apresento ainda, em anexo, uma sugestão metodológica mais contextualizada às aulas de dança usualmente
denominadas de técnicas, com estrutura de chão, centro e diagonal. Optei por não apresentar esta sugestão no
decorrer da tese, pois entendo que sua base está no conteúdo aqui desenvolvido apenas direcionado para um
formato mais conhecido de aula, contribuindo, assim, com os mais diversos profissionais e linhas
investigativas de dança. No contexto da presente pesquisa, considero preparação corporal, interpretação,
criação - integrados à improvisação- como técnicas corporais, conforme será detalhado a seguir.
Mauss define como técnicas corporais as maneiras pelas quais os homens sabem servir-se de seus corpos
(MAUSS, 2003).
6
Na sugestão metodológica em anexo, a interpretação criativa pelos sentidos, a ênfase é o domínio dos
movimentos- o que pressupõe a improvisação como recurso técnico investigativo e a composição como
proposta de compreensão do material pesquisado.
39
co-existência entre estes três aspectos no contexto pesquisado. Contudo, os momentos
criativos evidenciam, por vezes, uma ênfase maior em um determinado aspecto ou outro, o
que será discutido em detalhes neste capítulo. Nas propostas metodológicas há dois
fundamentos essenciais: a consciência corporal e a improvisação. Por este motivo, estes
fundamentos serão apresentados inicialmente como elementos comuns e, posteriormente, as
ênfases serão diferenciadas em cada uma das metodologias mencionadas.
Consciência corporal
Klauss Vianna (2005), Moshe Feldenkrais (1977), Ivaldo Bertazzo (1996), entre
outros autores, nos advertem sobre a importância da conscientização dos movimentos para
um trabalho corporal efetivo. Ressalto, nas presentes propostas metodológicas, a
importância da consciência corporal sem a qual não é nem mesmo possível a realização do
trabalho que proponho. Isso porque, sem a consciência da percepção dos sentidos como
movimento e a compreensão da dinâmica destes movimentos no corpo, não é possível
qualquer investigação interpretativa e/ou criativa pelos sentidos. O universo da consciência
corporal é extremamente vasto e profundo. Para o presente trabalho apenas ressalto alguns
aspectos fundamentais para o trabalho criativo com os sentidos, deixando a sugestão de
alguns autores aos interessados em investigar mais detalhadamente o assunto.
O primeiro passo, como nos lembra Bertazzo (1996), é tirar do automático.
Perceber nos gestos mais simples, a todo o momento da vida diária, o caminho dos nossos
movimentos, a tensão empregada, as posturas e partes do corpo mais utilizadas. “O gesto
humano é de tal modo complexo que, sem a consciência de sua construção - isto é,
utilizando apenas o ‘piloto automático’-, será inevitável perdermos as coordenadas básicas
desse gesto” (BERTAZZO, 1996, p.13).
Cotidianamente utilizamos nossos sentidos para nos relacionarmos com o
mundo. Porém, poucas vezes temos consciência deste movimento de vida. Muitas vezes o
intérprete criador busca uma idealização externa para sua dança, o que mais o aprisiona do
que desenvolve. Sem reconhecer seu próprio corpo, ao intérprete criador resta uma couraça
muscular de tensões profundas e gestos mecanizados, condicionamentos. A busca das
40
metodologias baseadas nos sentidos é a expressão do ser, do individual, do singular
contextualizado ao coletivo em suas amplas e conscientes possibilidades artísticas. E a
valorização do olfato e do paladar abrem perspectivas por vezes esquecidas não apenas na
vida cotidiana, mas também no trabalho criativo.
Vianna (2005) salienta a importância e as conseqüências da consciência
corporal:
O que importa, sempre, é levar a consciência corporal
até os alunos, porque penso que bem mais importante do que
conhecer o espírito é saber que o corpo existe, está aqui comigo e
dependo dele para viver. Cada um começa a descobrir o próprio
corpo, seu ritmo, e somente esse corpo pode começar a dançar,
interpretar, expressar-se. /.../
Por meio da observação e da percepção dos movimentos
mais elementares, criamos um código com nosso corpo, começamos
a sensibilizar as partes mortas e a liberar as articulações. /.../
Considerando inteligente um corpo consciente, o autor acrescenta:
Um corpo inteligente é um corpo que consegue adaptar-
se aos mais diversos estímulos e necessidades, ao mesmo tempo em
que não se prende a nenhuma receita ou fórmula preestabelecida,
orientando-se pelas mais diferentes emoções e pela percepção
consciente dessas sensações (VIANNA, 2005, p.139, 122,126).
Alinhamento postural
A consciência corporal envolve vários aspectos interdependentes, entre eles a
nossa postura corporal. Para promover o espaço para a criação de movimentos, precisamos
conhecer e manter as nossas estruturas corporais. Neste sentido, precisamos observar nosso
alinhamento postural. Vários autores nos auxiliam nesta questão, entre eles Ehrenfried
(1991), Campignion (1998), Denys-Struyf (1995), Béziers e Piret (1992), Bertazzo (1996),
entre outros. No que se refere às metodologias apresentadas, comento brevemente aspectos
que considero importantes para a consciência corporal, mas tenho como fundamento
essencial o trabalho investigativo com os sentidos. Os sentidos do olfato e do paladar
acrescentam extrema atenção ao alinhamento da coluna a partir da cabeça e pescoço,
atuação dos maxilares e valoriza também essa referência integrada ao movimento
respiratório.
41
Considero, na auto-observação postural, a colocação alinhada da coluna,
respeitando suas curvaturas naturais, lombar e cervical, o alinhamento do topo da cabeça
com a coluna e os arcos dos pés, e o alinhamento dos ombros com o ílio, joelhos e
tornozelos. O alinhamento coerente do corpo preserva sua mobilidade e a função de suas
estruturas, permitindo uma condição favorável à criação e ao desenvolvimento dos
movimentos. Forma e função são interdependentes. A forma de uma estrutura depende de
seu específico e harmonioso funcionamento.
O movimento acontece para manter e atualizar a forma,
para fazer com que a matéria não se deteriore, para que ela
mantenha sua integridade. Toda a forma de vida se mantém pelo
contínuo exercício do movimento. Até mesmo nossos ossos,
percebidos falsamente como estáticos, contém movimento: a matriz
óssea é continuamente moldada pela ação dos músculos e da
gravidade para não se descalcificar, para não perder sua função na
organização de nosso corpo, para nos permitir ficar em etc
(BERTAZZO: 1996, p. 38).
Um corpo bem alinhado é um jogo dinâmico entre as estruturas corporais. E,
neste processo, uma importante facilitadora e integradora em busca do alinhamento é a
respiração
7
. O diafragma, ator principal na respiração, depende da estática vertebral e
interfere nesta. Isto porque está suspenso à coluna dorsal, enquanto a caixa torácica está
suspensa à coluna cervical. O desenvolvimento da respiração em toda sua amplitude entre
as cavidades torácica e abdominal promove um bom empilhamento da coluna e o equilíbrio
entre as cadeias musculares do corpo (CAMPIGNION, 1998).
Outro aspecto fundamental para um bom alinhamento postural é o espaçamento
articular. Para garantir o funcionamento das estruturas óssea e muscular não basta garantir o
empilhamento alinhado, é preciso também preservar os espaços intervertebrais e articulares,
promovendo a lubrificação através do líquido sinovial e, consequentemente, facilitando o
desempenho dos tendões, articulações e da musculatura.
7
Em meu mestrado, já publicado em livro, investiguei estas relações no capítulo 2: Leal (2006).
42
Flexibilidade e alongamento
Antes de realizar alongamentos preparatórios a uma prática de dança, incentivo,
primeiramente, uma flexibilização do corpo a partir da coluna. Mobilizo o corpo a partir do
centro, favorecendo a flexibilidade das vértebras no sentido da aproximação e do
distanciamento entre o cóccix e o occipital, desenvolvendo, também, suaves torções. Estes
movimentos estão extremamente relacionados ao olfato e ao paladar e aos primeiros
movimentos de controle e liberdade que experimentamos ao nascer, associados com ações
como mamar e cheirar (SERRA, 1990). Estes dois movimentos - enrolamento e torção - são
essenciais no desenvolvimento da coordenação motora. E se organizam por simetria, no
caso do enrolamento, e assimetria, no caso da torção (BÉZIERS e PIRET, 1992).
A partir desta flexibilização e do reconhecimento dos alinhamentos do corpo,
promovo alongamentos preservando a harmonia da musculatura. Utilizo para os
alongamentos, a coordenação dos movimentos com a respiração. Dirigindo o corpo para a
postura de alongamento na inspiração e permanecendo e cedendo gradativamente ao
alongamento na expiração. Utilizo o conceito yogue -‘firme, porém relaxado’- ao
permanecer numa postura, otimizando o equilíbrio de musculaturas agonistas e
antagonistas. Desenvolvendo a respiração profundamente, permitindo a entrega e a
extensão muscular a cada expiração, e o alinhamento harmonioso entre ossatura,
articulações e musculatura a cada inspiração.
Apoios, relação do corpo com a gravidade (tônus)
O movimento do corpo está condicionado à força da gravidade. Perceber a
atração que esta força imprime no corpo em direção ao chão e a devida tensão necessária
para manter as mais diversas posições do corpo é mais um aspecto relacionado à
consciência corporal.
Para favorecer esta conscientização incentivo primeiramente o trabalho de
soltura articular. As sensações olfativas agradáveis em conjunto a respiração facilitam
consideravelmente o espaçamento das articulações. Com o menor esforço possível e o
máximo de apoios com o chão, o intérprete criador mobiliza suas articulações, percebendo
as alavancas do corpo e a relação entre forma e função de cada parte do corpo através das
43
conexões, ou seja, das articulações. Este exercício previne possíveis lesões na medida em
que lubrifica as articulações e aquece a musculatura. Depois da soltura articular,
desenvolvo a sustentação diminuindo a quantidade e superfície dos apoios e aumentando,
gradativamente, a necessidade de tensão muscular. As várias sensações táteis do paladar
facilitam a compreensão da aplicação diversa do tônus muscular como apoio ao próprio
corpo, em relação ao chão ou em contato com o outro.
O reconhecimento do esforço necessário para o desenvolvimento de cada
movimento se constrói por meio do conceito de relaxamento ativo. Ou seja, a habilidade de
relaxar as partes do corpo que não estão sendo requisitadas e manter a tensão nas que
realmente são necessárias para a realização do movimento (DENYS-STRUYF, 1995).
Béziers e Piret (1992) comentam sobre o equilíbrio do tônus muscular para
garantir a posição em pé, o corpo ereto, em relação à gravidade:
O corpo ereto, em determinadas condições, jogando
com a gravidade, fica em devido ao seu tônus, devido apenas às
contrações correspondentes às oscilações dinâmicas do ser vivo.
Não é preciso usar grande força muscular para ficar em pé, estável,
mas um equilíbrio adequado. Afinal, o importante não é tonificar,
mas colocar os músculos naquela posição de funcionamento em que
possam se equilibrar espontaneamente (BÉZIERS e PIRET, 1992,
p.11).
A consciência da tonicidade suficiente para a realização do movimento se
desenvolve mais facilmente no reconhecimento do corpo como unidade integrada e
flexível, onde basta uma alteração em uma pequena parte para que todo o corpo se adapte a
esta modificação. Essa consciência em relação à integração remete a outros elementos
associados à relação do corpo com a gravidade: uma carga pré-expressiva, que colore os
movimentos, está relacionada ao indivíduo em sua história e contribui no desenvolvimento
simbólico, sendo, portanto, imprescindível à consciência.
Segundo Godard (2002)
A organização gravitacional de um indivíduo é
determinada por uma mistura complexa de parâmetros
44
filogenéticos, culturais e individuais. Trata-se tanto da passagem da
fase quadrúpede à vertical na história da humanidade e na evolução
da marcha quanto de uma história individual inserida em
determinado ambiente cultural. /.../
Todos esses elementos contribuem para tecer a relação
simbólica que vai vincular, no indivíduo, atitude corporal,
afetividade e expressividade, sob a pressão flutuante do meio em
que está inserido (GODARD, 2002, p. 20).
Ritmo interno: pulsação e respiração
Um último aspecto importante que destaco no desenvolvimento da consciência
corporal é a compreensão e sensibilização no que se refere aos ritmos internos. Essa
percepção é fundamental para ampliar as possibilidades de consciência e de criação a partir
dos sentidos do olfato e paladar, os mais interiorizados e subjetivos dos sentidos. A
percepção da pulsação e da respiração, como ritmos geradores das dinâmicas de
consciência corporal, facilita um desenvolvimento mais orgânico dos movimentos, bem
como o conhecimento do próprio corpo em seus aspectos singulares e individuais. Com este
desenvolvimento fica mais fácil focalizar o trabalho perceptivo olfativo e gustativo.
Desenvolver alongamentos iniciais no ritmo próprio a cada um permite uma conexão e uma
concentração do indivíduo naquilo que faz, impedindo esforços demasiados ou uma
imitação de movimentos pela abstração. Desta forma, o intérprete criador vai ampliando a
consciência que tem de seu próprio corpo, de suas possibilidades, de seus limites, para
posteriormente poder relacionar-se com o outro e com o espaço-tempo da dança.
Os princípios de consciência corporal apresentados convergem aos conceitos da
educação somática. A educação somática relaciona sinergicamente a consciência, o
biológico e o ambiente, ou seja, considera o corpo do indivíduo contextualizado às suas
especificidades e à sua relação com o espaço onde se encontra. Neste sentido, os aspectos
motores, sensoriais, perceptivos e cognitivos são considerados simultaneamente e há uma
maior valorização do processo corporal do que de um resultado formal final. As práticas de
educação somática facilitam o desenvolvimento técnico expressivo do intérprete criador e
previnem possíveis lesões. Existe também um amplo respeito às condições e características
45
individuais de cada um. Partindo de representantes da educação somática como Vianna
(2005) e Feldenkrais (1977), os princípios de consciência corporal destacados visam o
desenvolvimento corporal, considerando o indivíduo em seus múltiplos aspectos,
valorizando a busca por um corpo preparado, pronto ao processo criativo. Pronto no sentido
de prontidão, não no sentido de receitas ou fórmulas pré-estabelecidas. O trabalho
consciente permite a cada corpo em suas especificidades e sua história, um ponto de partida
para o trabalho criativo (STRAZZACAPPA, 2001; SOTER, 1998)
8
.
Improvisação
A improvisação é um grande eixo condutor das criações que compõem a
presente pesquisa, bem como das propostas metodológicas que apresento neste capítulo. O
termo improvisação, com tantas discussões e bibliografia em várias áreas das artes, ainda
aparece associado ao fazer sem elaboração prévia. Ao me deparar com uma associação
como esta, compreendo os grandes preconceitos e deturpações que a improvisação em
dança carrega, mesmo com o público da área. No contexto cotidiano a palavra é
comumente utilizada no sentido de falta de preparo e habilidade. Contudo, para improvisar
em dança é preciso colecionar ampla experiência motora, capacidade de conexão e
transformação dos movimentos e muita técnica. A improvisação requer do bailarino mais
habilidade e experiência profissional do que para executar uma composição coreográfica
fechada. Isto porque a composição exige o aprendizado de movimentos e estruturas
previamente definidas, a improvisação exige muito mais repertório, vocabulário de
movimentos, técnica e a capacidade de lidar com a criação e a interpretação no momento de
sua execução, transformando, renovando e descobrindo a cada instante novos caminhos. A
improvisação pode conter estruturas estabelecidas, mas elas se concretizam no momento da
cena, transformando-se continuamente. Uma aluna, em seu depoimento, considera as
necessidades da improvisação:
8
Mais uma vez destaco que as considerações feitas sobre a consciência corporal visam apenas apresentar os
aspectos relevantes em relação aos sentidos, apresentando apenas alguns conceitos fundamentais para as
propostas metodológicas mencionadas.
46
Na realidade para improvisar é necessário ter uma boa
estrutura, trazendo com isso a segurança para enfrentar o caminho
da liberdade. A técnica da improvisação pode ser comparada a
qualquer outra técnica de dança, havendo um alto grau de pesquisa
prática e teórica. Contrariando mais uma vez o conceito geral, para
improvisar é necessário grande esforço e muita dedicação do
bailarino. A estrutura deve estar o mais clara possível para poder
deixar as portas abertas para o novo, para o espontâneo, que poderá
surgir naquele instante, estando o corpo receptivo para a criação
9
.
No contexto da presente pesquisa, considero improvisar uma técnica, ou melhor
técnicas que integram preparação corporal, interpretação e criação. Os três aspectos
caminham juntos, contudo podem evidenciar ênfases diversificadas em cada processo. Por
exemplo, na exploração e seleção de movimentações para a criação, a improvisação é
utilizada como meio criativo. Neste caso temos ênfase na criação. Na seleção de material
pode-se verificar a dificuldade de realização de alguns movimentos, assim a improvisação
pode servir como recurso investigativo, trabalhando a espacialidade do movimento, suas
qualidades, ações. Da mesma maneira, quando colocado em cena, o material criativo em
improvisação enfatiza o aspecto interpretativo, ou seja, da execução criativa dos
movimentos em cena. Percebo que a improvisação permite a integração entre preparação
corporal, interpretação e criação, apresentando ênfases de acordo com cada momento, mas
nunca separando esses aspectos. Outros profissionais da dança contemporânea reconhecem
essa característica integradora, contextualizando-a ao seu fazer artístico:
Utilizo o exercício do improviso não somente como
aprimoramento técnico, mas também como constante construção de
um repertório de movimento, que não deixa morrer a vivacidade
criativa que se faz necessária. A improvisação não se restringe ao
aspecto da criação de um espetáculo, ela é parte integrante do
resultado artístico, utilizo- a principalmente como estética e
linguagem (FRANCO, 2008)
10
.
9
Depoimento extraído de relatório de aluna da disciplina Técnica livre de dança IV Improvisação pelos
sentidos, ministrada entre de 2001 a 2005 na Faculdade Paulista de Artes, em São Paulo.
10
Valéria Franco em entrevista concedida e anexada à presente tese. As entrevistas utilizadas na pesquisa
visam seu recorte específico como identificação de trabalho com a improvisação, bibliografia viva de
profissionais que contribuem para a definição de conceitos.
47
Nas propostas metodológicas que apresento, bem como nos processos criativos
que as geraram, preparação corporal, interpretação e criação se integram em conjunto à
improvisação, enquanto técnicas corporais, a partir dos sentidos. Neste contexto,
compreendo que não existe interpretação sem criação, não existe criação sem preparação
corporal, e todos estes elementos envolvem técnicas corporais. Em minha experiência como
bailarina, por vezes preparação corporal e criação se apartaram, o que dificultava
enormemente o processo criativo, que aparecia definido por um estilo distanciado das
exigências criativas. A improvisação assim tornava-se difícil e viciada em um repertório
cristalizado de movimentos. Entendo que o ponto de partida de qualquer arte é a criação,
por isso, quando integro o processo de preparação corporal, interpretativo e criativo por
meio da improvisação e dos sentidos, permito maior coerência metodológica e artística.
Um conhecimento bastante sólido sobre o movimento é requisito básico para
ser capaz de improvisar. Fazendo uma comparação com a música, no jazz quando um
instrumentista improvisa, ele precisa ter um profundo conhecimento musical, precisa
entender detalhadamente de harmonia para desenvolver seu improviso melódico, conhecer
as escalas musicais, ritmo, métrica, entre outros requisitos, para saber por onde pode
caminhar e estabelecer conexões, transformações no momento do improviso. Da mesma
maneira, na dança, para improvisar, devemos conhecer o movimento, suas possibilidades
dinâmicas e qualitativas de expressão, sua estruturação em relação ao espaço, suas
possibilidades de fraseado e variações em complementaridade, antagonismo, acumulação...
Consciência corporal, consciência das estruturas do corpo e sua organização, amplo
conhecimento da história sócio-cultural em que este corpo está inserido e as implicações
que isto traz na construção simbólica também são fundamentos à improvisação. Neste
sentido, a improvisação é uma ampliação da consciência. Ao improvisar o intérprete criador
amplia a consciência em relação ao próprio corpo, ao outro, ao espaço, ao público,
conjugando consciência, técnica, interpretação e criação em um único momento.
O depoimento de alguns artistas sobre a utilização da improvisação em seus
processos de criação, amplia a discussão que apresento:
48
Na minha vivência artística, a improvisação foi na
maior parte das vezes utilizada como procedimento criativo, sendo
aplicada em diferentes fases do processo de criação: como estímulo
à imaginação e à sensibilidade (“abertura” de canais de percepção);
como forma de investigar e/ou potencializar idéias e motivos
inspiratórios ligados a alguma temática ou assunto; para
levantamento de material (vocabulário de movimentos,
principalmente; mas também sonoridades, elementos cênicos etc); e
para resolver “problemas” (testar novas soluções cênicas, por
exemplo; ou para composição de elementos coreográficos e
dramatúrgicos). Algumas vezes (embora com menor freqüência),
utilizei também a improvisação durante o momento da performance,
como forma de “acontecimento cênico”, e não apenas como meio
de “processar as informações” que serão organizadas previamente à
cena.Gosto muito da definição do Alwin Nikolais para
improvisação. Para ele, a improvisação é, ao mesmo tempo,
“coreografia do instante” e “performance do instante”. Assim,
compor e performar (“interpretar” o que se compõe) são ações
intimamente ligadas (GERALDI, 2008)
11
.
O depoimento da bailarina, docente e pesquisadora Sílvia Geraldi ressalta o
papel da improvisação e sua estreita relação com o processo criativo seja como estímulo,
meio ou fim criativo. Como definem Blom e Chaplin (1988), a improvisação funde criação
com execução (interpretação), sendo o criativo movimento do momento. A improvisação é
um fenômeno em constante mudança e não linear, por isso, segundo os autores, a própria
linguagem em palavras torna-se inadequada para falar de improvisação. O movimento não
tem, necessariamente, um equivalente em palavras. É preciso compreender a sua estrutura
em sua linguagem própria. O movimento é o meio da improvisação. Podemos considerá-lo
a partir de três aspectos:
- o sinestésico: as sensações, a experiência e a percepção física do intérprete
criador.
- a individualidade de quem improvisa: seu tipo físico, sua auto-imagem,
escolhas estéticas, seus aspectos históricos, sociais, culturais.
- a forma decorrente da estrutura desenvolvida
11
Sílvia Geraldi em entrevista concedida em março de 2008.
49
Improvisar é, sobretudo, modificação constante no momento presente. É
gerúndio: desenvolvendo e modificando. E nesta transformação constante, a improvisação
constitui-se efêmera em múltiplas possibilidades. (BLOM e CHAPLIN, 1988)
Na reflexão de uma aluna
Isso é a improvisação, estar consciente das
transformações, das possibilidades, de ser um corpo vivido, /.../
aberto às sensações e ao movimento e a partir disso fazer conexões.
Conexões de movimentos da (minha) memória, das pesquisas
individuais e coletivas. Sabendo reconstruir, transformar
12
.
Ao refletir sobre o trabalho de improvisação desenvolvido por um dos maiores
precursores da dança expressionista, Rudolf Laban, Isabelle Launay define:
Improvisar para Laban é, de um mesmo movimento,
buscar e encontrar, decompor e unificar, esquecer e rememorar,
mas, sobretudo, não se lembrar. /.../ Improvisar é se dedicar a
esquecer, para se dar a chance de ver afluir as múltiplas
possibilidades de sua mobilidade”. /.../ Quando improvisa o
dançarino “vive uma experiência que implica em uma
aprendizagem do saber-morrer (e portanto do saber- viver), do
saber-desaparecer como promessa de rememoração e de experiência
verdadeira (LAUNAY, 1998, p. 80-81).
Improvisar exige amplo domínio da situação presente e consciente, e exige
também uma boa dose de desapego. Para permitir que a movimentação se transforme e crie
novas articulações, o intérprete criador precisa dedicar-se a esquecer, no sentido de permitir
que aconteça a desarticulação, a transformação, a criação de novas conexões e significados.
O esquecimento é essencial para que nossa memória aconteça, isto porque é saturável, para
manter os mecanismos que evocam e formam memórias, precisamos perder algumas
preexistentes para dar lugar a novas (IZQUIERDO, 2004). Assim, para que possamos fazer
12
Depoimento extraído de relatório de aluna da disciplina Técnica livre de dança IV Improvisação pelos
sentidos, ministrada entre de 2001 a 2005 na Faculdade Paulista de Artes, em São Paulo.
50
novas conexões e utilizá-la para ganhar domínio e consciência, bem como capacidade de
criação nas movimentações, precisamos esquecer.
A improvisação pode se apresentar de várias formas. Formas mais ou menos
estruturadas. Com condução ou sem condução externa. Com a definição de um percurso
estabelecido coletivamente ou por meio de uma direção. Blom e Chaplin (1988)
13
definem
alguns formatos de improvisação:
- Contínua alimentação: é quando as instruções são dadas o tempo todo durante
o transcorrer da improvisação por um líder numa contínua estimulação aos participantes.
- Pré-estruturada: é a improvisação em que todas as informações são dadas
antes do seu início, o que pode ser feito por um líder ou pode ser decidido em grupo.
- Demonstração: é quando o líder demonstra uma qualidade de movimento, uma
forma inicial, uma frase, que motiva a investigação de todos na improvisação.
- Conteúdo e estrutura aberta: neste formato a idéia é abrir espaço à livre
exploração do movimento, bem como das maneiras de organizá-lo. Podendo ou não ter um
líder ou observador, sendo em grupo ou solo...
A escolha de um formato de improvisação depende do objetivo em sua
utilização. A improvisação também pode servir a vários fins: como recurso de exploração
de movimentos para uma composição coreográfica, como recurso investigativo de um tipo
de movimento para desenvolvimento técnico interpretativo, como resultado artístico final.
Nas propostas metodológicas que apresento a seguir utilizo os diferentes
formatos de acordo com as ênfases de cada trabalho. Na improvisação pelos sentidos
utilizo, mais freqüentemente, a contínua alimentação, mantendo as informações que possam
facilitar o intérprete criador no processo de exploração e descoberta dos movimentos a
partir dos sentidos. Na dança pelos sentidos prefiro a improvisação pré-estruturada, que
permite uma concentração maior do intérprete criador no conteúdo simbólico a ser
desenvolvido no processo criativo, mas também utilizo o processo de contínua alimentação,
quando necessário. Quando a ênfase é a investigação técnica do movimento para a criação,
o formato de demonstração é mais utilizado, e também a contínua alimentação. Sempre que
existe um resultado criativo maior, prefiro a improvisação pré-estruturada como um
13
As traduções são de minha responsabilidade.
51
prenúncio da situação cênica. Seja na execução de uma frase de movimentos criada, ou na
exploração de movimentos explorados, quando existe um conteúdo maior de movimentos
elaborados, dou preferência à improvisação pré-estruturada, como numa jam session, por
exemplo. No contexto da presente pesquisa, dificilmente utilizo o formato de estrutura e
conteúdo abertos, pois o próprio estímulo inicial e as metodologias estabelecem estruturas.
Este último formato pode ser utilizado em encontros de improvisação e como uma maneira
de voltar o foco para o corpo, num brainstorm de movimentos no início de um processo
criativo, por exemplo. Contudo, este formato exige intérpretes com muita maturidade e
experiência, com iniciantes corre-se o risco do esvaziamento de recursos técnicos e do
conteúdo expressivo, da falta de padrão para um sólido desenvolvimento do movimento.
Em síntese, a improvisação pode ser utilizada de duas maneiras: como meio de
desenvolvimento do movimento seja com objetivo investigativo ou criativo, ou como
resultado artístico final; aliando criação e interpretação em um único momento. Smith-
Autard (1996)
14
define que no processo de composição a improvisação permite a
manipulação e adaptação de movimentos selecionados para criar mais material, para fazer
desenvolvimentos. Além de servir como meio de seleção e exploração de movimentos para
uma composição, a improvisação pode ser exercitada para a exploração de movimentos no
sentido da ampliação de repertório e no aprimoramento interpretativo criativo. Finalmente,
como fim, a improvisação pode ser uma escolha enquanto estrutura cênica final de um
espetáculo de dança, bem como pode ser exercitada por meio de encontros de
improvisação, as chamadas jam sessions.
A palavra final que escolho para definir improvisação é transgressão, pois
improvisar significa modificação, quebra de padrões, novas padronagens, articulação e
desarticulação, significação e resignificação. Improvisar depende da capacidade de
envolvimento consciente, de entrega ao momento presente e de uma imensa habilidade para
a transformação. A improvisação sempre envolverá riscos, regras abandonadas e diretrizes
que levarão a respostas livres e irrestritas, porém envolvendo elementos de evolução
(SMITH-AUTARD, 1996, p. 91).
14
As traduções são de minha responsabilidade.
52
Para a presente pesquisa improvisar significa considerar preparação corporal,
interpretação e criação como elementos integrados entre si e integrados às técnicas
corporais. Consideramos a improvisação não como técnica, mas como técnicas corporais
sob vários aspectos:
1. técnica de criação: quando utilizada como meio para dar forma ao
processo criativo, por exemplo, na experimentação e seleção de material
coreográfico.
2. técnica de preparação corporal: quando utilizada para ampliação de
repertório, vocabulário, bem como ampliação das possibilidades qualitativas e
espaciais dos movimentos.
3. técnica de interpretação: quando utilizada como fim, seja em jam
sessions ou como resultado expressivo valorizando a capacidade em manter uma
cena em improvisação, por meio da interpretação cênica, lidando com a
materialidade do movimento, o relacionamento com o público e a dramaturgia do
espetáculo no momento de seu acontecimento.
53
Improvisação pelos sentidos: uma abordagem a partir da Eukinética de
Laban
A primeira abordagem de minha pesquisa em relação aos sentidos, no que se
refere à docência, teve início na construção de uma disciplina de improvisação
fundamentada na Eukinética de Laban. Correlacionando os fatores do movimento aos
sentidos, esta metodologia permite um caminho mais indireto em busca da compreensão
qualitativa do movimento.
Rudolf Laban nasceu na Bratislava, Hungria, no dia 15 de dezembro de 1879.
Filho de militar, mas opondo-se à família que se empenhou para que ele seguisse a carreira
de oficial do exército, estudou pintura, escultura e arquitetura. Na área de dança estudou
princípios de Delsarte, teve contato com a eurritmia de Dalcroze
15
, fez aulas de balé
clássico, e sempre se interessou pelas mais variadas danças que conheceu por meio das
viagens que seu pai fazia: danças camponesas, africanas, indígenas. Laban se desenvolveu
como bailarino, coreógrafo e, antes de tudo, como grande observador e estudioso do
movimento. É considerado um dos maiores representantes da dança expressionista e um
dos fundadores da dança-teatro alemã. Sua maior preocupação em relação ao movimento
era a exploração máxima de suas possibilidades, numa valorização e respeito ao individual
e singular gesto expressivo. Como pesquisava o movimento, e não necessariamente o
movimento específico da dança, Laban criou um método de análise do movimento, atuando
em diferentes áreas como educação, artes, saúde, indústria, o que permite que seus
ensinamentos tenham um caráter múltiplo e interdisciplinar (RENGEL, 2000;
FERNANDES, 2002 e GUIMARÃES, 2006).
Como elucida Mommensohn (2006), Laban
trouxe de volta a atenção sobre o movimento cotidiano, o homem
comum, o ser humano e suas contradições, suas singularidades,
15
François Delsarte concentrou suas reflexões nos mecanismos corporais de tradução de estados sensíveis
interiores. Estabeleceu um catálogo de gestos que correspondem a estados emocionais. Émile Jaques-
Dalcroze descobriu uma nova abordagem do movimento; a rítmica. Cria uma educação psicomotora com base
na repetição de ritmos (BOUCIER, 1987).
54
dando um salto por sobre o formalismo idealizado do balé, das
cortes e contos de fadas, para a expressividade de cada um, o estudo
do corpo particularizado pela noção de indivíduo
(MOMMENSOHN, 2006, p. 15-16).
Um dos maiores fundamentos de Laban para a compreensão do movimento é o
esforço ou a expressividade, base de sua Eukinética
16
. Esforço para Laban não tem uma
conotação de força, mas de expressividade. Quando se refere a esforço, Laban evidencia a
expressão externa do movimento decorrente de uma atitude interna. Isto significa dizer que
o movimento se inicia a partir de uma condição interna do indivíduo e se concretiza
externamente através do esforço. Os elementos que caracterizam o esforço são os fatores do
movimento: fluência, espaço, peso e tempo. Como define Rengel (2000):
Esforço é a pulsão resultante das atitudes internas que
ativam o movimento, imprimindo-lhe variadas e expressivas
qualidades. Esforço é o ritmo dinâmico do movimento do agente
17
.
A partir de uma atitude interna do agente para com os fatores do
movimento e de sua maneira de responder ao mundo, desenvolve-se
o esforço que comunica a qualidade expressiva do movimento.
Atitude, esforço e movimento não se dão necessariamente em
sucessão, ao contrário, ocorrem simultaneamente. Esforço é tanto
intelectual, emocional, quanto físico. /.../ Esforço não foi formulado
no Método de Laban em termos quantitativos, refere-se a aspectos
qualitativos, a características únicas a cada agente e vistas em
diferenças de uso de tempo e peso, de padrões espaciais e fluência
que o agente demonstra em suas preferências pessoais, em suas
atividades de trabalho ou elabora criativamente (RENGEL, 2000, p.
60).
A Eukinética de Laban estuda, assim, os esforços, a expressividade, a dinâmica
qualitativa dos movimentos. A improvisação pelos sentidos se desenvolveu com o intuito
de facilitar a compreensão e incorporação das qualidades de movimento dos fatores
definidos pela Eukinética- fluência, espaço, peso e tempo- relacionando-os com os
16
Os estudos de Laban são abrangentes, além dos esforços, envolvem harmonia espacial, metodologia de
ensino de dança educativa através de seus temas de movimento, notação dos movimentos, a Labanotação etc.
Para o contexto pesquisado, focalizamos a Eukinética.
17
Rengel define agente como sinônimo de pessoa, ser humano, indivíduo, bailarino, ator, educador etc.
55
sentidos: olfato e paladar, visão, tato e audição. As qualidades são dinâmicas e oscilam
entre nuances de gradações opostas:
- fluência livre a limitada (ou controlada)
- espaço multifocado (ou flexível) a direto
- peso leve a firme (ou forte)
- tempo lento (ou sustentado) a rápido (ou súbito)
Livre, multifocado, leve e lento são consideradas qualidades indulgentes ou
entregues. Controlada, direto, firme e rápido são consideradas qualidades não-indulgentes
ou condensadas (SERRA, 1990 e FERNANDES, 2002).
Figura 1 - Gráfico do sistema Effort-Shape.
Fonte: Laban, 1976, p.13.
Flexível
Fluência
Espaço
Peso
Tempo
Leve
Firme
Direto
Limitada
Livre
RápidoLento
56
Tabela 1 - Associação entre fatores do movimento, qualidades, atitudes e sentidos
Fator do
movimento
Qualidade
Participação
interna
Afeta o
poder
humano de
Relativo a
Sentido
associado
Fluência
Livre a
controlada
precisão/progressão
Sentimento Como
Olfato e
paladar
Espaço
Direto a
multifocado
atenção pensamento Onde
Visão
Peso
Firme a leve intenção Sensação O que Tato
Tempo
Rápido a
lento
decisão Intuição Quando Audição
Fonte: Laban, 1978, p.186
18
.
18
As informações das primeiras cinco colunas podem ser encontradas na Tabela VII da referida obra de
Laban. A última coluna foi acrescentada a partir da pesquisa criativa e metodológica dos sentidos. A
participação interna colocada na terceira coluna foi definida a partir do encontro de Laban com as teorias de
Jung em 1912, de acordo com Hodgson & Preston-Dunlop (1990).
57
Olfato e paladar – fluência
A fluência é o primeiro fator do movimento a ser desenvolvido pela criança até
os 2, 3 meses, dependendo de condições individuais e ambientais. A criança começa a
experimentar movimentos de contração e expansão, e é exercitando a fluência em seus
movimentos, que ela desenvolve a sensação de integração corporal, a sensação de unidade.
Estes primeiros movimentos do corpo estão extremamente relacionados ao mamar e ao
respirar. E, desta forma, vinculados a sensações olfativas e gustativas integradoras. A
integração corporal no bebê tem o auxílio do ritmo oral da sucção ao mamar e está apoiada
nos ritmos da própria mãe: pulsação cardíaca, respiração. O ritmo oral é associado ao
prazer e, por isso, mais tarde a criança tende a reproduzir este ritmo em benefício de seu
próprio conforto, chupando o dedo ou se balançando, por exemplo (KESTENBERG, 1975;
SERRA, 1990).
A fluência determina as qualidades de fruição do movimento, de um fluxo mais
liberado até o mais controlado possível, que define a pausa do movimento. Quando se sente
confortável e tranqüila ao mamar, a criança se abre, se entrega. Seus movimentos são
contínuos e prazerosos. O cheiro da mãe e a sensação de conforto e segurança se refletem
numa respiração tranqüila, caracterizando as sensações olfativas. O mamar envolve as
sensações gustativas integradas ao cheiro e ao processo respiratório. Se sente qualquer
desconforto, a criança se retrai, contraindo a musculatura e limitando a amplitude de seus
movimentos. Da mesma forma, a respiração se modifica e a sensação olfativa pode ser de
expulsão do ar, como a gustativa de desprazer e recusa do leite. Assim, a fluência livre
facilita movimentos de expansão para fora, relaciono-a com sensações olfativas e gustativas
prazerosas. A fluência controlada facilita os movimentos para dentro, mais próximos do
corpo, bem como as contrações, relaciono-a com sensações gustativas e olfativas de
desprazer ou de cautela, contenção (KESTENBERG, 1975; SERRA, 1990, LEAL,
2000/2006).
A fluência está relacionada com a tensão do corpo e o resultado desta na
progressão dos movimentos. Isto significa que a fluência demonstra a relação entre os
músculos tencionados, não simplesmente a presença de tensão ou não no corpo
58
(FERNANDES, 2002). A fluência se refere à tensão utilizada para deixar o movimento
fluir ou para controlá-lo, restringi-lo. Segundo Laban
O elemento de esforço de fluência “controlada” ou
obstruída, consiste na prontidão para se interromper o fluxo normal
e na sensação de movimento de pausa. /.../ O elemento de esforço
de fluência “livre” consiste num fluxo libertado e na sensação de
fluidez do movimento (LABAN, 1978, p. 125).
A fluência demonstra a precisão do movimento e afeta seu controle para a
expressão de sentimentos, emoções. Olfato e paladar estão extremamente ligados aos
sentimentos, à afetividade, à sexualidade. Ao perder estas percepções o indivíduo perde o
desejo sexual. A fluência estabelece um grau de liberação do movimento e evidencia uma
comunicação entre dentro e fora. Da mesma maneira, o cheiro e o gosto conectam o
ambiente externo com o interno. O mundo é trazido para dentro do corpo e assimilado nesta
relação entre interior e exterior através de sensações de prazer e desprazer que se traduzem
na liberação ou restrição dos movimentos.
A fluência afeta o movimento como um todo e modifica os três demais fatores
espaço, peso e tempo, bem como estes a influenciam. A preparação interior de uma ação
corporal externa se concretiza, segundo Laban (1978) através da fluência e sua expressão
concreta no corpo. “A fluência é considerada como alimentadora dos outros fatores,
porque, por vezes, é possível observar em movimentos que qualidade de espaço, peso e
tempo permanecem cristalizadas e só a fluência muda” (RENGEL, 2000, p. 65).
O trabalho com os sentidos do olfato e do paladar como facilitadores para
obtenção das qualidades do fator fluência é um trabalho indireto e, por isso mesmo, diminui
a ansiedade do bailarino em conquistar as qualidades de liberdade e controle da fluência.
Ao se preocupar com as sensações provocadas pelo cheiro e pelo gosto, o intérprete criador
acaba exercitando, pelas intrínsecas relações entre fator do movimento e sentido, as
qualidades objetivadas. Outra questão importante é que a ênfase num fator do movimento e
59
em um sentido específico serve apenas para facilitar a focalização, o movimento integra os
sentidos e as dinâmicas do esforço
19
.
Inicio o trabalho de improvisação focalizando o olfato separadamente do
paladar, o reconhecimento das ações e qualidades de movimento provocadas por um
estímulo olfativo, e o posterior desenvolvimento e aprofundamento das movimentações
descobertas. O depoimento de uma aluna esclarece o processo:
Quando senti o cheiro de café me veio uma sensação de
enjôo no mesmo momento. É um cheiro que eu não gosto... nem do
pó, nem do café coado. Então iniciei as movimentações partindo do
centro, com algumas contrações abdominais, tendo algumas vezes
ânsia de vômito. Em alguns momentos deixei esta sensação passar
para o corpo todo e mantive principalmente as contrações, que
acabaram marcando um tempo de quebra nos movimentos.
Ao experimentar o chocolate granulado, senti primeiro
o gosto doce, depois percebi o que era. Me deu uma sensação de
calma e prazer. Estava sentada de pernas cruzadas e fiz rotações
com o tronco, num balanço circular com supless. A fluência era
livre e o peso leve
20
.
O processo tem início de olhos fechados para evidenciar o sentido que está
sendo trabalhado, o primeiro reconhecimento se em relação ao prazer e ao desprazer, ao
gostar ou não gostar, atitudes extremamente ligadas aos graus de libertação ou
contenção/controle da fluência e, por associação, ligadas à maneira como a respiração, a
partir de um cheiro específico, acontece. O desprazer, o desconforto, provoca
movimentações interrompidas, controladas como as contrações mencionadas no
depoimento. O prazer provoca uma sensação de calma que gera um movimento identificado
como livre e leve. Fica evidente a integração entre as qualidades do movimento que não
acontecem isoladas, mas em combinações qualitativas. Um sentido evoca mais
19
Ao enfatizar olfato e paladar percebo uma possibilidade indireta de ênfase qualitativa entre os esforços dos
fatores fluência e peso. A ênfase em dois fatores do movimento é denominada ação de esforço incompleta e se
caracteriza quando há uma atitude mais determinada para a combinação de dois fatores do movimento
(SERRA, 1979; RENGEL, 2003). A ação de esforço incompleta é também denominada estado expressivo
(FERNANDES, 2000).
20
Depoimento extraído de relatório de aluna da disciplina Técnica livre de dança IV Improvisação pelos
sentidos, ministrada entre de 2001 a 2005, na Faculdade Paulista de Artes, em São Paulo
60
enfaticamente qualidades de um fator do movimento, apenas como ponto de partida para a
improvisação e para facilitar a compreensão sinestésica das dinâmicas do movimento. É
importante ressaltar que essa proposta pressupõe um conhecimento prévio da Eukinética,
mesmo que introdutório, para facilitar a percepção dos movimentos. Além disso, a proposta
da improvisação pelos sentidos utiliza a Eukinética de Laban como um fundamento, mas
não se limita a ela. Facilita a compreensão das qualidades dos movimentos, mas propõe um
processo de investigação que tem nos sentidos sua estrutura de pesquisa.
A percepção olfativa, bem como os outros sentidos, evoca memória afetiva,
lembranças, imagens. Costumo sugerir que o intérprete criador perceba essas lembranças,
mas não construa o movimento diretamente a partir delas, mas a partir da sensação de
movimento provocada pelo sentido em questão. A percepção muitas vezes é definida pela
associação de memória. Por exemplo, um cheiro associado a uma lembrança ruim,
provavelmente provocará um controle da fluência dos movimentos. Neste sentido, o
movimento pode ser desenvolvido normalmente. O problema acontece quando a lembrança
dirige o movimento excluindo o sentido em questão. Por exemplo, ao lembrar de uma
imagem de cara provocada pelo cheiro do café, o intérprete começa a desenhar rculos
com o corpo no chão. Neste exemplo uma confusão em termos do início do movimento
a partir do cheirar. O cheiro foi descartado, uma imagem definiu o gesto e não o cheiro, os
movimentos resultantes do cheirar. Exemplifico com um depoimento:
Na primeira experiência com olfato, experimentei o
orégano. A primeira imagem que me veio em mente foi a lembrança
do meu padrasto fazendo pizza. Meu padrasto é uma pessoa com
quem eu não tenho uma relação muito boa. Foi difícil desenvolver
uma movimentação a partir do orégano. O que consegui partiu de
fluência controlada, peso firme e do fator tempo que foi
aumentando gradativamente. Sensações de incômodo e
impaciência
21
.
Neste caso a lembrança define a sensação olfativa, não muita percepção do
estímulo causado pelo cheiro propriamente. Esta percepção vem contaminada pela memória
21
idem
61
afetiva. De qualquer forma, a fluência controlada marca a movimentação relacionando-se
com um cheiro sentido de forma não prazerosa.
Um outro exemplo demonstra a construção mais direta a partir da percepção do
sentido e as movimentações decorrentes desta percepção:
Com os olhos fechados senti um cheiro doce que foi
direto na nuca, senti um arrepio, era como se as vértebras do
pescoço estivessem se contorcendo por causa do cheiro. Meu nariz
estava um pouco entupido, o que alterou meu olfato, era um cheiro
de chocolate, agradável, me deu uma sensação muito boa, fresca,
me estimulou a fazer rolinhos na coluna, dobrando vértebra por
vértebra, e contração nos ombros, era um movimento fluido e às
vezes controlado, do lento ao repentino. /.../ Aprofundei mais essa
sensação no corpo, continuei os rolinhos na coluna, de lento a
rápido, fluência livre, depois passei os rolinhos para os braços,
depois nas pernas, e com o corpo todo, se transformando em
pulos repentinos. Utilizei o nível baixo, com pouco deslocamento
pelo espaço, usando várias direções
22
.
O desenvolvimento do movimento fica mais claro, a percepção olfativa como
ponto de partida é bem reconhecida e é o próprio movimento de origem da improvisação. O
ponto de partida é o movimento respiratório ao cheirar determinado elemento, o
reconhecimento qualitativo dos movimentos a partir da percepção olfativa. A memória
afetiva sempre afetará a percepção e vice-versa, mas uma diferença na construção do
movimento a partir da sensação física do sentido ou a partir de uma lembrança. Ambos os
caminhos são possíveis e válidos, mas na metodologia da improvisação pelos sentidos
minha opção é utilizar a percepção como um primeiro movimento, o primeiro estímulo à
improvisação enquanto movimento primeiro. O movimento perceptivo reconhecido,
desenvolvido, pode então utilizar uma imagem, mas então o movimento estará bem
consciente e definido a priori como demonstra a situação a seguir:
22
idem
62
“Era um cheiro muito forte, deu um incômodo no nariz, parecia pesado, reto
contínuo e me veio a imagem de fábrica, de máquina, de movimentos bruscos e retos. /.../
Imagem de contínuo, precisão, repetição mecânica”
23
.
O desenvolvimento da improvisação pelo paladar segue os mesmos princípios
que a improvisação a partir do olfato. Inicio o processo separando os dois sentidos para a
verificação de diferenciações e, posteriormente, os integro. Olfato e paladar são sentidos
intimamente relacionados e as percepções de um dependem do outro. Por isso, quando
estamos gripados, não sentimos o gosto das coisas. Contudo, as movimentações
provenientes destas percepções são bastante distintas, o que torna interessante a dissociação
para ampliação da percepção e posterior integração.
Exemplifico, com um depoimento, um processo iniciado pelo paladar:
Com o paladar aconteceu uma coisa muito interessante,
estava tampando o nariz para não sentir o cheiro, e não consegui
identificar o que estava provando, não senti o gosto, senti apenas a
textura na boca e derretia, então descobri que era chocolate pela
textura, dava uma sensação de desmanchar, escorrer, era gostoso,
molinho. Meu primeiro movimento foi deitar, depois me deu
vontade de rolar pelo chão, vários rolamentos, às vezes fluido, às
vezes pausado, escorrer as pernas, os braços, deslocar no chão como
se desmanchasse, era confortável e quentinho. /.../ Passei o deslizar
no chão para o nível alto, as mãos deslizando nas pernas, um
deslizando no outro, movimentos bem fluidos e soltos
24
.
Quando trabalhado isoladamente o paladar gera sensações mais próximas ao
tato. Sem perceber o cheiro e sem ater-se à identificação do elemento em questão, o
estímulo passa a ser a textura do contato com a boca e com a língua, bem como a sensação
prazerosa ou não do engolir.
Mesmo quando olfato e paladar são trabalhados em conjunto, existe uma
predominância de origem do movimento em relação a um ou outro sentido, como no caso a
seguir:
23
idem
24
idem
63
No olfato e paladar juntos, experimentei uma banana. A
primeira ação foi mastigar, depois derreter, prensá-la. /.../ Na
posição fetal, nível baixo, movimentos reduzidos, controlados,
lentos. Me remeteu a lembrança de criança, porque ao chupá-la
parecia papinha
25
.
Mesmo com a integração dos dois sentidos há, neste exemplo, uma opção clara
pelos estímulos gustativos. Com a aplicação da improvisação pelos sentidos pude
reconhecer, também, a repetição de algumas ações relacionadas a cada sentido. Algumas
diretamente associadas à própria percepção envolvida, por exemplo, mastigar,cheirar...
Outras mais indiretas. Apresento as ações associadas aos sentidos em cada caso:
Tabela 2 - Ações associadas aos sentidos do olfato e do paladar.
Sentido Ações associadas
Olfato Inspirar/inalar e expirar, respirar,
cheirar, expandir e contrair/recolher,
inflar, murchar, ondular, sufocar,
espirrar, esfregar, girar, arrastar,
contorcer, coçar, rir.
Paladar Salivar, engolir, esfregar, lamber,
degustar, escorregar, mastigar,
balançar, conduzir, deslizar,
contrair, ondular, bater, esticar,
chupar, morder, triturar, cuspir,
derreter, esparramar.
25
Idem
64
Visão – espaço
Depois de passar por uma fase de integração e de internalização dos estímulos
da percepção, principalmente através da boca, o bebê começa a focalizar o mundo exterior.
O fator espaço começa a aparecer por volta dos 2, 3 meses de idade nas atitudes mais
direcionadas ou multifocadas da criança. E, para focalizar, a visão é utilizada em gradações
diversas de uma atenção mais restrita e direcionada e uma atenção mais ampliada e flexível.
Os fatores do movimento não estão separados, vão se somando e se associando
conforme o desenvolvimento psicomotor. Assim, com a habilidade desenvolvida com a
fluência, e utilizando-se da precisão dos movimentos, a criança focaliza o ambiente, um
objeto, e busca-o com as mãos, levando-o à boca. É clara a associação de combinações
entre os fatores fluência e espaço. E a utilização do conhecido órgão de percepção
integrando agora a focalização feita pela visão e a habilidade de buscar com as mãos, mas
ainda sem intencionalidade (esta só será adquirida com o desenvolvimento do fator peso).
O fator espaço define as qualidades de atenção ao espaço, de direta a
multifocada, considerando as diversas gradações qualitativas entre uma e outra. As
qualidades de atenção do movimento afetam o pensamento e a organização de idéias.
Permite a comunicação através de uma atitude em relação ao espaço externo.
Ao observar o mundo, a criança começa a compreender a separação entre
dentro e fora, percebe que a mãe e ela não são a mesma pessoa, e começa a identificação do
eu e do outro. O espaço criado internamente pelo mamar, respirar, pelos ritmos orais
experimentados com a fluência agrega-se ao focalizar o mundo exterior e buscar alcançá-lo
com as mãos, iniciando o desenvolvimento da cinesfera, o espaço vital da criança.
(LABAN, 1978; KESTENBERG, 1977; SERRA, 1990; LEAL, 2000/2006, RENGEL,
2000, FERNANDES, 2002).
Visualizar está intimamente ligado a uma atitude em relação ao meio. Como
esclarece Fernandes: “A visão é a principal responsável pela atenção ao espaço” (2002, p.
109). Contudo, uma vez que os fatores do movimento e os sentidos acontecem integrados,
um vai auxiliando e se relacionando com o outro. Quando focaliza um objeto, a criança usa
a visão em qualidade de espaço direto, para alcançar e agarrar o objeto usa diferentes graus
de controle e liberdade da fluência, e utiliza o tato em conjunto à musculatura, que um
65
pouco mais adiante trará as possibilidades de intenção mais firme ou leve. Explorando o
espaço no plano horizontal, a criança vai compreendendo a amplitude e definindo sua
posição mais próxima ou mais distanciada em relação aos objetos. Observa-se o uso das
mãos ainda como integrador entre precisão e atenção, a boca ainda é a referência de
exploração e conhecimento. Quando começa a atirar objetos no chão com maior ou menor
intensidade, o fator peso começa a se mostrar evidente, com o uso do contato e da
musculatura desenvolvendo a intencionalidade.
A partir de um estímulo visual associo a produção de movimentos diretamente
ao relacionamento do corpo com o espaço. A imagem produz uma tendência a uma
focalização mais direcionada ou mais multidirecionada em relação ao meio. Além disso, a
mimeses corporal é bastante instintiva, ao focalizar uma imagem, o intérprete criador tende
a reproduzir sua forma no corpo ou em um fluxograma, ou seja, no caminho que o
movimento desenvolve no espaço. As linhas retas aparecem associadas à qualidade de
espaço direto e as linhas curvas aparecem associadas às qualidades de espaço flexível (ou
multifocado).
O depoimento de uma aluna auxilia na compreensão do processo:
Trabalhei com bala de goma colorida, primeiro com o
sentido da visão, fiz um movimento que era alongar os braços e pôr
as mãos no chão fazendo a forma da bala, e desse movimento parti
para formas redondas, circulares, criei várias bolinhas com o corpo,
usei muito o nível baixo, movimentos rápidos e controlados, vários
círculos
26
.
Percebo neste exemplo, a reprodução de uma forma, que a princípio se
configurou como forma plástica, ou seja, uma postura estática (ROBATTO, 1994). A
compreensão da forma no corpo gera uma sensação de volume. E a partir da sensação da
forma no corpo foram desenvolvidas as movimentações circulares, arredondadas,
integrando qualidades de outros fatores.
26
idem
66
Em outro exemplo, ao invés de assumir uma forma visualizada, a alternativa
passa a ser compreender a imagem através de linhas, utilizando um fluxograma em partes
do corpo:
A partir da minha imagem, criei as linhas. Experimentei
movimentos simples com o no chão, tanto inteiro, como no
metatarso, como se carimbasse e arranhasse o chão. Esses
movimentos fizeram surgir espirais com os pés que subiam para as
partes do corpo (cabeça, braços, tronco)
27
.
A utilização da visão como ponto de partida incentiva exploração de níveis,
planos, direções no espaço, volumes, formas, linhas retas e curvas. A sensação de um
volume, de uma linha, de uma direção, agrega qualidades de tempo, peso e fluência, bem
como remete a sensações de outros sentidos, como a sensação tátil de perfurar provocada
por uma imagem, no exemplo a seguir:
A realização foi feita com a foto de uma planta com
mar e ilha ao fundo. No nível alto desenvolvi movimentos
ondulatórios em tempo lento conduzido pelos braços que estavam
cruzados frente à face. Quando fui para o nível baixo percebi que os
movimentos passaram a ser conduzidos pelos pés /.../.
Quando olhei melhor para a foto, percebi que no tronco
da planta havia um galho quebrado semelhante a um espinho.
Então, iniciei outra célula de movimento em tempo rápido,
quebrada e com fluência controlada. Era como se houvesse algo me
perfurando em diversas partes do corpo, tais como: estômago, peito,
braços, costas e joelho. /.../ É muito interessante pontuar as diversas
possibilidades que temos e perceber como podemos criar
movimentações totalmente diferentes através de um mesmo
estímulo utilizando simetria e assimetria, o fluxograma, as
dimensões, os planos, as direções no espaço, as formas plásticas
etc
28
.
Uma das dificuldades sentidas no trabalho com a visão são as imagens mentais
pré-concebidas. Talvez pela banalização social deste sentido ou por sua utilização de forma
27
idem
28
idem
67
idealizada e padronizada, acontecem equívocos na percepção visual. Ao se referir a um
movimento visualizado, uma aluna comenta: “Na minha imaginação o corpo não tinha
profundidade, era como se fosse uma folha, mas na realidade o corpo era largo, pesado,
profundo /.../”
29
.
Este tipo de equívoco pode acontecer com qualquer um dos sentidos, mas em
minha experiência, aconteceu com uma freqüência muito maior com o sentido da visão.
Outra característica percebida no trabalho com esse sentido foi uma reação bastante rápida,
imediata ao estímulo. Provavelmente causada pela maior familiaridade das pessoas com
esse tipo de percepção, embora muitas vezes equivocada.
O desafio em relação à visão é realmente tirar do automático, reaprender a ver.
Observar com olhos de ver e não com imagens e reações pré-concebidas. O processo a
partir da visão me parece extremamente mental, como mencionei o fator espaço se
relaciona ao pensamento. As práticas associadas a este sentido/fator do movimento se
revelaram bastante lógicas, uma arquitetura do corpo no espaço.
Tabela 3 - Ações associadas ao sentido da visão.
Sentido Ações associadas
Visão Olhar, ver, observar, marcar,
focalizar, curvar, circular, lançar,
riscar o espaço, ondular, espiralar,
esticar.
29
idem
68
Tato – peso
Usando a habilidade que já domina em relação à exploração do espaço a criança
começa a integrar a este processo a manipulação intencional de objetos. O intuito agora não
é somente ir em direção ao espaço, mas segurar, soltar, torcer os objetos que encontra e
explora, atualizando o ritmo anal. Nesta fase, aproximadamente entre 1, 2 anos de idade, a
criança começa a controlar os esfíncteres e variados graus de tensão do corpo, que
permitirão a ela caminhar com mais ou menos segurança. Começa o controle do centro de
gravidade e a conquista da verticalidade na posição em pé. A criança experimenta a
resistência à gravidade, percebendo melhor as partes de seu corpo e desenvolvendo sua
vontade, sua persistência, sua assertividade. Dominar o fator peso também significa
estabilidade, controle da verticalidade e da psique.
Exercitar as qualidades do fator peso significa modificar os graus de
intencionalidade do movimento; de firme a leve, com as diversas nuances possíveis entre
uma qualidade e outra. As qualidades do fator peso afetam o movimento em termos de
sensação, e informam sobre o “o que” do movimento.
(LABAN, 1978; KESTENBERG, 1975; SERRA, 1990; RENGEL, 2000).
Partindo das sensações táteis, das mais superficiais na pele até as mais
profundas na musculatura, a improvisação pelos sentidos permite desenvolver força e
sensibilidade como resultados de uma compreensão perceptiva entre as qualidades de
firmeza e leveza associadas ao tato.
A sensação tátil permite reconhecer a força necessária para se manter em pé,
para carregar ou empurrar um objeto, para dar um abraço em alguém. Exploro as
qualidades de peso investigando a percepção tátil através de objetos, tocando o solo, as
paredes de um estúdio, tocando o próprio corpo, o corpo do outro. A sensação de maciez,
rigidez, elasticidade, fragilidade, porosidade, entre outras, vão permitindo a experiência das
qualidades do fator peso associadas aos outros fatores do movimento a partir do tato. Um
depoimento esclarece o processo:
Meu objeto era uma pluma: ela era leve, suave, sutil e
quase não exercia pressão sobre a minha pele; e em alguns
momentos me causou um certo arrepio. Minha parceira começou
69
passando-a pelo meu braço e depois veio para o rosto. Meu primeiro
movimento foi uma sutil movimentação do tronco para o lado e
meus lábios se abriram, como se quisessem sorrir, pois foi uma
sensação muito gostosa. /.../ Eram todos movimentos com fluência
livre e peso leve; a utilização do espaço foi pequena, em volta de
mim /.../ o tempo era lento, com um pequeno momento de tempo
rápido
30
.
É importante ressaltar que as sensações táteis são exploradas em todo o corpo,
em toda a superfície da pele. É comum, ao explorar um objeto, o aluno se concentrar nas
mãos, mas ao experimentar as sensações táteis em outras partes do corpo, encontra novas
sensações e, por conseqüência, diversas dinâmicas e combinações qualitativas. A utilização
do contato com o outro é também um recurso possível e enriquecedor no desenvolvimento
do tato na improvisação pelos sentidos. A partir do toque incentivo o reconhecimento de
diferentes intencionalidades: leveza, força, segurança, delicadeza, poder. O conhecimento e
a troca, através do contato, permitem o exercício qualitativo do fator peso em suas mais
diversas possibilidades. O testemunho de um trabalho feito em duplas com contato,
exemplifica essas possibilidades:
Na segunda parte da aula trabalhamos em duplas e foi
muito interessante notar como a sensação do peso pode ser
transferida para a outra pessoa. No meu caso, minha intenção era
mais constante, uma pressão que se mantém linear, com a mesma
firmeza ao longo do tempo; a da minha parceira era bem mais
leve, mais rápida e multifocada /.../ Conforme fomos interagindo,
tanto eu absorvia a sensação do movimento que ela trazia
(propunha), quanto o contrário. Em alguns momentos a pressão era
igual, nós duas tínhamos uma mesma direção com igual peso
(parecia haver um ‘choque’), em outros, isso quase não existia e
parecia somente restar aquela intenção interna, uma memória
mesmo que ficou no corpo
31
.
30
Depoimento extraído de relatório de aluna da disciplina Tópicos especiais em dança, ministrada no primeiro
semestre de 2007 na graduação das Artes Corporais da Unicamp, em Campinas.
31
Idem.
70
A utilização do tato como estímulo inicial nesse trabalho qualitativo apresenta
especificidades na experiência de sensações pelo intérprete criador. A sensação tátil do
elemento em questão pode ser trabalhada em uma parte do corpo, no corpo todo ou ainda
em relação ao espaço ou ao outro. Ao experimentar um tecido elástico, por exemplo, as
possibilidades podem ser trabalhar essa resistência e flexibilidade nos braços; levar a
sensação de volume, dimensão e elasticidade para todo corpo, como que o transformando
no tecido; ou ainda, através do toque, a possibilidade pode ser transferir as sensações para o
corpo do outro ou para o espaço. Muitas vezes verifico a integração das especificidades
sensoriais no exercício da improvisação, prática que sugere sempre a transformação
permanente.
Tabela 4 - Ações associadas ao sentido do tato.
Sentido Ações associadas
Tato Apertar, balançar (pêndulo), tocar, passar,
apertar, esfregar, jogar, escorregar, raspar,
pisar, articular, dobrar, esticar, limpar,
torcer, cair e recuperar-se, levantar e
soltar, contrair e relaxar.
71
Audição – tempo
Depois de dominar sua verticalidade, experimentando a posição em pé, a
criança inicia um percurso de deslocamento no espaço. A princípio, este deslocamento tem
as características experimentadas com o fator peso, a criança se desloca como um bloco
sólido, fazendo valer sua vontade. Gradativamente, por volta dos três a quatro anos e meio,
a criança começa a invadir mais o plano sagital em suas incursões pelo espaço, correndo
desenfreadamente, parando ao encontrar um obstáculo. É o início do desenvolvimento das
qualidades de urgência ou indulgência do fator tempo. A criança vai ganhando as
possibilidades de aceleração e desaceleração, bem como flexibilidade, características da
fase uretral. Começa o domínio no controle da urina, a princípio com as qualidades
adquiridas do fator peso, soltando ou segurando. Com o desenvolvimento do tempo, o
controle do fluxo ganha as possibilidades de aceleração e desaceleração.
A compreensão do tempo faz as ações da criança ganharem operacionalidade.
Com o fator peso a criança podia exercitar sua vontade, mas não poderia operacionalizá-la
no tempo. Com as qualidades do fator tempo a criança entende as relações de causa e
efeito, ação e reação, compreende as ações no decorrer do tempo. Desta maneira, é possível
brincar com um amiguinho, emprestar um brinquedo, pois existe o entendimento de que
este brinquedo vai voltar. Antes desta compreensão, a criança brinca junto, mas não com.
Nesta fase, surge o aprendizado do planejamento, a criança é capaz de iniciar e terminar
certas tarefas, pois existe a aquisição de habilidades como decidir, antecipar, protelar. As
ações ganham finalidade, criam sentido. A modulação do tempo não permite a efetiva
operacionalização das intenções, mas aumenta a tolerância às frustrações.
(LABAN, 1978; KESTENBERG, 1975; SERRA, 1990).
O fator tempo está relacionado às qualidades de urgência do movimento,
relaciona-se com o ‘quando’ do movimento. As nuances de variação qualitativa
apresentam-se de mais sustentada a mais súbita. “As qualidades do fator tempo
demonstram a intuição, afetando o movimento em termos de decisão” (LEAL, 2000, p. 66).
72
Segundo Laban:
O elemento de esforço ‘súbito’ consiste de uma
velocidade rápida e de uma sensação de movimento, de um espaço
curto de tempo, ou sensação de instantaneidade.
O elemento de esforço “sustentado” consiste de uma
velocidade lenta e de uma sensação do movimento de longa
duração, ou sensação sem fim (LABAN,1978, p. 120).
Associo, na improvisação pelos sentidos, as qualidades do fator tempo às
percepções auditivas. Um estímulo sonoro pode ser de duração longa, pode ser breve,
instantâneo, pode desenvolver acelerações e desacelerações. Perceber essas variações no
som, por meio de ruídos, músicas, sons do cotidiano, palavras, permite o exercício das
qualidades do fator tempo. Uma leitura pausada de um poema pode evocar movimentos de
decisão mais sustentada, prolongada. Os sons rápidos do cotidiano como buzinas, freadas,
gritos, espirros, tossidas podem evocar decisões ágeis de movimentos, transformações
abruptas de dinâmicas de aceleração, por exemplo. E as modificações do tempo associam-
se a outras variações qualitativas. Algumas possibilidades de exploração são evidenciadas
nos relatos abaixo:
O objeto proposto foi um molho de chaves, a princípio
tive um certo agrado pelo som vindo daquele objeto, mas a
insistência de estímulos fez com que logo o som me trouxesse uma
grande sensação de incômodo. /.../ A cabeça procura o molho de
chaves de maneira desconfiada, praticamente só os ouvidos que
mexem, traz um leve sorriso que aos poucos vai se transformando
numa feição de desagrado. /.../ Cabeça se aproxima do ombro,
ombro busca tapar os ouvidos, revezando os lados conforme o
estímulo dado. Fluência controlada, tempo lento. O som se torna
cada vez mais incômodo, fazendo com que eu comece a tentar me
desligar um pouco dele, acabando assim ouvindo e sendo
influenciada por alguns outros sons externos (como a oficina de
percussão que estava acontecendo no departamento de artes
cênicas). Pernas cruzadas, cabeça pende para baixo, olhando para o
centro do corpo em um balanço. Fluência livre, tempo rápido, peso
leve.
73
Eu faço um círculo na sala andando e ajoelhando,
balançando os ombros no ritmo ‘chic, chic, chic, chic, ta, ta, ta, ta’.
Esse som é uma mistura de um som que ficou das células, com um
som que eu escutei enquanto as explorava. /.../ tempo ritmado, nem
lento, nem rápido, e em toda minha frase existe uma fluência
controlada que em alguns momentos fica livre e em alguns
momentos com quebras. Nós percebemos que os sons que causavam
repulsa tendem a ter um tempo mais rápido e uma fluência mais
controlada, e os sons que causavam um agrado eram marcados por
tempos mais lentos e uma fluência mais livre
32
.
Os exemplos evidenciam as combinações entre qualidades de movimento, a
partir de estímulos sonoros e variações de tempo e ritmo. Na minha experiência com a
improvisação pelos sentidos, os sons se associam à dinâmica rítmica dos movimentos. Um
estímulo sonoro organiza o gesto no tempo, e isto se reflete em termos rítmicos. A fluência
organiza pulsações internas, não métricas, relacionadas ao ritmo interno. O tempo,
associado ao som, organiza o ritmo externo, métrico. Outra característica observada em
relação ao som é a capacidade de colocar em deslocamento. Olfato, paladar e tato tendem a
levar o movimento para dentro, próximo do corpo. Visão e audição levam o movimento
para fora, ganhando o espaço. O olfato e o paladar organizam a integração do indivíduo, o
tato facilita o relacionamento. A audição somada a esse processo promove o deslocamento
do relacionamento dos indivíduos, que a visão concretiza no espaço.
Tabela 5 - Ações associadas ao sentido da audição.
Sentido Ações associadas
Audição Escutar, ouvir, tremer, amassar, sacudir,
espalhar, articular, ondular, pontuar,
pulsar, descolar, abrir e fechar, contrair e
expandir, esfregar.
32
Idem.
74
A dança pelos sentidos: criação coreográfica
Nesta proposta metodológica, que pode integrar-se à anterior, focalizo a criação
e utilizo, diretamente, os sentidos do olfato e do paladar como estímulos primeiros à
criação. A partir da vivência destes sentidos em processos criativos fundamentei as
diretrizes apresentadas a seguir. De início, contextualizo questões como a criação e suas
etapas, a estruturação dos movimentos em matrizes células, temas e frases, bem como
recursos utilizados para estes desenvolvimentos a partir dos sentidos mencionados.
Posteriormente, discuto sobre a aproximação que a escolha em termos de percepção traz no
que se refere a sensações e sentimentos como determinantes no processo criativo, refletindo
sobre como os significados da obra acontecem com esta possibilidade metodológica.
Sobre a criação
Criar significa dar forma, formar, dar existência, dar origem a alguma coisa.
Quando cria, o intérprete criador torna objetivo um conteúdo subjetivo (LANGER, 1953).
Conscientiza-se do subjetivo, compreendendo, organizando e tornando-o objetivo, forma
estética. O processo de criação é a estruturação da forma estética, cuja materialidade, na
dança, é o próprio movimento. Para dar forma a um conteúdo é preciso, primeiramente,
conhecê-lo e depois configurá-lo. Neste sentido, a percepção consciente é premissa básica à
criação. Utilizar os órgãos dos sentidos como estimuladores iniciais ao processo criativo é
ampliar e desenvolver a possibilidade da percepção consciente, da qual dependem
quaisquer processos de criação. Criar abrange a capacidade de compreender, relacionar,
configurar, simbolizar. Impelido, como ser consciente, a compreender a vida, o homem é
impelido a formar” (OSTROWER, 1987, p. 9).
Vários autores discutem as fases da criação, entre eles May (1992), Smith-
Autard (1996), Ostrower (1987), entre outros. Algumas denominações das fases do
processo de criação variam, no entanto, todos citam uma fase de exploração, uma fase de
seleção do material explorado, onde alguns localizam o insight criativo ou a iluminação, e,
finalmente, a fase de formação, elaboração e estruturação do processo. Para a maioria dos
autores a improvisação está localizada na exploração do material criativo. Considero que a
75
improvisação aparece neste momento, mas também pode se manter de forma estruturada
como resultado de um processo criativo em improvisação.
Nos processos de criação que compuseram a presente pesquisa a improvisação
foi gradativamente sendo utilizada como fim no processo criativo e incorporada a todo o
processo de criação como meio interpretativo criativo. Em Amargo Perfume, a
improvisação aparece no preparo corporal, desenvolvimento de repertório de movimento,
habilidades motoras qualitativas e espaciais do movimento, bem como meio para
exploração e desenvolvimento de matrizes, células e frases de movimento. No resultado
final, mais composto, apenas a última parte do espetáculo tem uma estrutura de roteiro em
improvisação. Em Intenso a improvisação aparece também nas três fases, contudo com
mais ênfase no resultado final, em que apenas uma cena é inteiramente composta por frases
definidas e fechadas de movimento. As outras três têm estruturas mais roteirizadas na
primeira e última cena e mais abertas na terceira cena, em que apenas o espaço é definido e
temáticas variadas se interpõe em improvisação no momento do espetáculo. Variações
sobre chocolates é o momento criativo de maior abertura à improvisação em cena. A
improvisação aparece como técnica de preparo corporal, como técnica de improvisação,
como técnica de criação e como fim expressivo em várias nuances: mais roteirizadas,
definidas em paralelo com partes compostas e também em momentos de jam sessions em
cena, abertos a partir de temáticas trabalhadas, passíveis de transformações e
resignificações no momento da cena.
Na dança pelos sentidos localizo as seguintes etapas metodológicas:
1. Reconhecimento da matriz de movimento
Neste momento localizo um ponto de origem do processo criativo, o
movimento de percepção dos sentidos como fundamento para a criação.
2. Desenvolvimento de células de movimento
Na definição de células de movimento promovo a definição de pequenas
estruturas e uma seletividade intuitiva de movimentos potenciais para o
desenvolvimento coreográfico.
3. Exploração e desenvolvimento de frases e temas de movimento
76
Na exploração dos elementos selecionados, o processo criativo é mais
elaborado, aprofundando a investigação coreográfica através de frases de
movimento e variações compostas ou improvisadas.
4. Definição da estrutura coreográfica em composição ou em improvisação
Na estruturação criativa final as partes exploradas, compostas ou
improvisadas, articulam-se na formação de um conteúdo simbólico, forma
estética fruto da materialidade coreográfica pesquisada. Esta estrutura pode
ser apresentada como composição coreográfica ou como improvisação,
mantendo a possibilidade de exploração e transformação dos movimentos.
Percepção como materialidade coreográfica
Minha pesquisa interpretativa a partir dos sentidos surgiu da necessidade de um
estímulo concreto, o material mais próprio da dança, o movimento do corpo. Essa
necessidade apareceu por uma insatisfação criativa tendo em vista coreografias realizadas
por meio de roteiros pré-estabelecidos. Ao realizar uma obra coreográfica o roteiro ia
sempre além do meu corpo, havia uma idealização que, muitas vezes, me impedia, me
bloqueava criativamente. O material coreográfico estava fora do corpo, faltava
incorporação significativa das propostas. Na tentativa de escutar mais o próprio corpo,
buscando a independência e valorização de sua linguagem, comecei a trabalhar com os
sentidos.
Nesta pesquisa enfatizei o olfato e o paladar e, em conseqüência à relação com
o paladar, o tato, pois nestes sentidos a referência da percepção é, claramente, um
movimento e, portanto, um motivo para o processo criativo. Compreendo que ver e ouvir
também são movimentos. Contudo, é bastante difícil identificar uma matriz de movimento
do ouvir, ver. A matriz olfativa, gustativa ou tátil, é bastante evidente. Quando cheiro o
café, por exemplo, o próprio cheirar, o tempo da inspiração e da expiração, esse movimento
de expansão e contração do corpo a partir do ar, todos estes elementos são movimentos
claros da própria percepção olfativa. De forma semelhante, a gustação depende de
movimentos, abrir a boca, chupar, morder, lamber, matrizes de movimento que uso como
origem do trabalho. Ver e ouvir provocam reações corporais, mas estes sentidos têm, em
77
nossa sociedade, um apelo imenso e muitas vezes estereotipado. Ao bailarino as referências
visuais e auditivas são tão comuns, fortes e ‘viciadas’, que o caminho novo por meio do
cheiro e do sabor parece facilitar a descoberta da criação. De qualquer maneira, o trabalho
aqui apresentado pode ser aplicado aos outros sentidos, mas a ênfase da pesquisa e o ponto
de partida para o desenvolvimento criativo foram os sentidos do olfato e do paladar.
Iniciar um processo de criação a partir dos sentidos significa sentir.
Desenvolver a consciência corporal mais fina e sutil durante a percepção. Permitir que o
movimento resultante da percepção seja a materialidade primeira do processo criativo. Ao
sentir um cheiro, como já exemplifiquei, percebo que já existe um movimento em ação, que
é inspirar o ar com um cheiro específico para dentro dos pulmões. Dependendo do cheiro, a
inspiração é longa, lenta, forte, interrompida. Todo o corpo responde a essa percepção, os
músculos da face, as abas do nariz, o peito, o abdome... Considero essa materialidade
primeira - o movimento decorrente da percepção - como o estímulo primordial para o
processo de criação. Criar, desta maneira, é sentir, é saborear o corpo, é conhecer a
linguagem própria aos movimentos e permitir que essa linguagem se desenvolva.
Neste processo não existe representação de nada, não existe uma busca criativa
em representar algo, no sentido de fazer aparecer, imitar, criar à semelhança de. Não existe
roteiro prévio, quem aponta a direção é o corpo, é o movimento. O que se desenvolve é o
conhecimento da motricidade, o reconhecimento e desenvolvimento da linguagem corporal
coreográfica. E no desenvolvimento dessa linguagem vão surgindo os significados, o
movimento desenha a cena, não é moldado por uma concepção pré-definida. Percebo que
ao focalizar as percepções e movimentações decorrentes do olfato e do paladar, investigo
conscientemente o movimento e permito que o inconsciente brote em sentidos e
significados de forma indireta, enquanto me atenho ao movimento e seus elementos.
Outros caminhos são possíveis e trazem bons resultados. Minha opção se pauta
na experiência interpretativa e criativa da consciência plena - como diria Martha Graham
(1993) - de uma “pequena linguagem secreta” do corpo e do movimento. Da valorização
desta linguagem, independente e inominável em outras linguagens. Possível de ser
traduzida, mas não realizada de outra forma que não o próprio movimento. A dança pelos
sentidos é a opção pela sensação de leveza e não pelo que parece leve, é a opção pelo
78
mover e não pelo tentar dizer, é a opção pelo controle consciente e não pela execução
alienada por meio de uma imagem ideal. Dançar pelos sentidos é concreto, imperfeito,
finito. Materialidade definida em linguagem. Linguagem corporal.
Em busca de uma matriz corporal
O trabalho criativo através dos sentidos do olfato e do paladar começa com o
reconhecimento de uma matriz de movimento. Considero como matriz um ponto de origem,
onde o processo criativo se inicia. O estímulo primeiro, a primeira consciência da
movimentação que irá se desenvolver. A matriz corporal é o próprio movimento da
percepção. No caso do trabalho a partir do olfato, a matriz corporal é o primeiro movimento
do cheirar determinado elemento. Entender a matriz corporal é desenvolver a consciência
mais miúda a respeito da percepção em questão. Ao cheirar um elemento, nós o
reconhecemos, lembramos de fatos da nossa vida, julgamos se o cheiro é agradável ou não,
fazemos comparações. Para o reconhecimento da matriz corporal, tudo isso é consciente,
mas não focalizado, o foco é o movimento. A construção da matriz é a capacidade de
perceber e depois, mesmo sem o elemento, desenvolver o movimento primeiro do cheirar
ou do saborear. É a capacidade executar o movimento com a devida tensão no pescoço,
com o mesmo fluxo de ar e os devidos apoios no chão. Para isso, é preciso sentir muitas
vezes até ser capaz de reconhecer o próprio movimento.
Em Intenso desenvolvi uma matriz a partir do vinho tinto cabernet. Ao degustar
o vinho projetei a nuca para trás, concentrei o líquido na parte de trás da língua, senti a
firmeza na língua no contato do sabor amargo. Na inspiração meu abdome foi projetado em
direção às costas. Desta primeira matriz, desenvolvi toda a primeira cena do espetáculo em
contato com um tapete, valorizando o toque mantido de forma prolongada.
Nossa ânsia em reconhecer e denominar atrapalha o processo de
desenvolvimento e reconhecimento de uma matriz. Os julgamentos, por vezes, dirigem os
movimentos racionalizando-os. Por exemplo, se experimento uma bala, lembro de um
momento que julgo alegre em minha infância e inicio movimentos de saltos como os que
fiz quando criança, não estou reconhecendo meu próprio movimento de percepção
gustativa. O reconhecimento exige estar completamente presente e consciente da
79
percepção, perceber o fluxo de pensamentos e julgamentos, sem focalizá-los e ater-se ao
mais sutil movimento, ampliar a percepção.
O trabalho de reconhecimento da matriz de movimentos na presente
metodologia aproxima-se da proposta de pratyahara e dhyana fundamentadas pelo yoga,
num dos textos indianos mais tradicionais sobre o assunto; os yoga-sutras de Patanjali. Em
algumas traduções pratyahara aparece como abstenção dos sentidos. De acordo com a
interpretação de Mehta (1995), pratyahara significa ato de recolhimento, também pode ser
traduzido como abstração, como um processo de eliminação. É o lugar de encontro entre o
mundo exterior e o interior, e para que esse processo possa acontecer é preciso ser capaz de
eliminar o supérfluo, permanecendo apenas os aspectos relevantes de uma situação.
Pratyahara envolve todo o processo de percepção; os sentidos como
transmissores de sensações ao cérebro, que processa e transforma essas sensações em
percepção. Para que esse processo ocorra devidamente, é necessário que não haja
interrupções ou limitações geradas pelo condicionamento antecipado da mente. Pratyahara
torna os sentidos flexíveis, capazes de funcionar com plena liberdade, permite o movimento
dos sentidos, o fluxo da vida. O propósito de pratyahara é a reeducação dos sentidos para
uma receptividade plena sem a interferência antecipada da mente. Freqüentemente a mente
interfere, julga e nomeia antes que a ação perceptiva tenha se completado, os sentidos
perdem sua iniciativa. Pratyahara confere iniciativa aos sentidos.
Quando os sentidos recebem sua devida parte, porque a
intervenção da mente foi interceptada, seu alcance e sua intensidade
de resposta aumentam tremendamente. São capazes de comunicar
ao cérebro um número muito aumentado de dados das sensações
(MEHTA, 1995, p. 162).
Da mesma maneira, quando busco o reconhecimento consciente do movimento
primeiro da percepção dos sentidos, estou buscando uma ampliação da consciência em
relação ao movimento sem a distorção e/ou bloqueio que podem ser causados pelas
denominações, julgamentos antes do processo perceptivo ser consciente. Busco o melhor
desenvolvimento de sentidos tão esquecidos como o olfato e o paladar, focalizando-os
totalmente, compreendendo os movimentos decorrentes desta percepção sem negar a
80
memória, os processos mentais, as lembranças que ocorrem, mas simplesmente focalizando
a memória na percepção, sentindo de forma concentrada essa percepção e seus
movimentos. Como mecanismo saturável, a memória depende de escolhas, possíveis a cada
indivíduo. Somos aquilo que podemos lembrar, o que inclui o que decidimos esquecer,
conscientemente ou não. A arte de esquecer é fundamental em nossa memória e dela somos
feitos em conjunto a nossos sentimentos, projetos, amores, nossa forma peculiar de ser que
têm fundamento em nossas lembranças. Em nossa mente mais esquecimento do que
memória (IZQUIERDO, 2004). Por isso, a questão é escolha, focalização. Na criação
artística se não somos capazes de escolher, ficamos limitados a um tipo de movimento,
limitados à transformação e renovação de nossa própria linguagem. A bailarina,
pesquisadora e docente Julia Ziviani reflete sobre essa questão em seu processo criativo:
O sulco que se repete, à exaustão. Irritantemente, sem
trégua. Pergunto-me se a causa deste eterno retorno do ruído, desta
persistência da automaticidade do gesto, se deve ao fato dele
fazer parte deste corpo. Entranhado na sua memória. Pois parece
que ‘o gesto certo’ está grudado em mim, na minha pele.
Bloqueando o carnal que possibilitaria o aparecimento de outros
meio-tons, texturas, dinâmicas. Ao contrário da solução para o toca-
discos, suspender ou dar um leve empurrão no braço onde está
encaixada a agulha, pulando trechos, se for o caso, não posso cortar,
ou saltar, ou costurar minha performance. Estou à mercê do gesto
que retorna, contra o qual - ou contra cuja mesmice - preciso
concentrar-me, física e também mentalmente. Ou ele se insurgirá
independentemente da minha vontade (VITIELLO, 2004, p. 15).
Para sermos capazes de escolher na presente proposta metodológica,
desenvolvemos uma reeducação em relação à percepção dos sentidos. Esse processo de
reeducação dos sentidos pressupõe também um processo de focalização no ponto de origem
do movimento causado pela percepção. Essa focalização aproxima-se do processo
meditativo ou dhyana, também traduzido como atenção. Dhyana é o processo de
observação do fluxo de pensamentos, sem interrupção, julgamentos ou identificações.
Observar sem denominar ou avaliar é dhyana (MEHTA, 1995).
81
Para que este estado de atenção aconteça a necessidade de um relaxamento
na ação. Dhyana é um estado de atenção sem esforço. Uma possibilidade de repousar na
espera, permanecer no presente, um retorno ao nosso centro. Meditar ou dhyana, neste
sentido, é a possibilidade de nos desligarmos da mente automática e repousarmos no
coração (FEUERSTEIN, 2005). No processo de desenvolvimento da matriz coreográfica o
objetivo final não é a meditação, mas a criação, contudo este conceito yogue, em conjunto à
pratyahara nos auxiliam a compreender a utilização dos sentidos, bem como a qualidade de
atenção necessária na presente proposta metodológica.
O intérprete se abre à percepção dos sentidos e pode observar seu fluxo de
pensamentos sem se envolver com eles, focalizando o movimento decorrente da percepção
dos sentidos. Este processo facilita o reconhecimento da matriz e valoriza a materialidade
do movimento no processo criativo.
A matriz corporal é sempre um movimento pequeno, mas profundamente e
detalhadamente conhecido, o que lhe densidade para o desenvolvimento coreográfico
posterior. Também diferencio matriz de célula de movimentos. A matriz é um ponto de
origem, que dá ao movimento argumento, concretude. O desenvolvimento das células e
frases de movimento pode se distanciar muito da matriz, mas o reconhecimento do ponto de
origem do movimento facilita a argumentação coreográfica e substância, materialidade
ao movimento. Para citar um exemplo, ao experimentar um cravo e sentir o sabor picante
pinicando a língua de forma multifocalizada posso desenvolver uma célula de movimento
nas mãos reproduzindo o movimento difuso da língua pelos dedos das mãos.
Posteriormente, posso criar uma frase de movimentos em que atravesso o palco me
deslocando de forma difusa usando a referência do picante por todo o corpo no espaço.
Neste exemplo fica claro que a matriz é a origem da pesquisa perceptiva, no caso, pelo
paladar. A lula é a escolha de um movimento potencialmente passível de
desenvolvimento coreográfico. Contudo, o conhecimento da matriz dá ao movimento
definição, substância, argumento. A consciência traz sinestesicamente o desenvolvimento
da matriz em linguagem corporal.
82
Células, frases de movimento e estruturação coreográfica
A partir de uma matriz podem ser desenvolvidas uma ou mais células de
movimento. A célula de movimento é uma escolha de desenvolvimento coreográfico em
potência. Uma célula pode ser um único movimento ou alguns movimentos que sintetizam
um interesse para investigação coreográfica. A definição de uma célula pode focalizar
apenas um aspecto da matriz de movimento ou a ampliação dessa matriz no corpo todo ou
em parte dele.
Uma célula de uma matriz decorrente da percepção de um sabor azedo, por
exemplo, pode ser um movimento de contração que teve início com a matriz no rosto e
pescoço e se desenvolveu no corpo todo, mas pode ser também um pequeno movimento do
corpo para trás sem nenhum movimento de contração, percebido na matriz inicial e isolado
para desenvolvimento coreográfico.
A partir da definição de células começa o processo de investigação, pesquisa,
exploração, que gera frases de movimento. As células são constituídas por um ou alguns
poucos movimentos, que são potenciais para o processo de desenvolvimento coreográfico.
E as frases de movimento? Como são constituídas? De quantos movimentos são
compostas? Assim como na linguagem escrita, na linguagem coreográfica existe uma
grande diversidade de estilos, alguns intérpretes são mais sintéticos e utilizam frases de
movimentos mais curtas, outros são prolixos e usam frases maiores. O importante não é,
neste caso, quantificar, mas compreender para ampliar a consciência criativa do intérprete
e, com isso, permitir que ele tenha fundamentos para estruturar sua composição. O tempo
de uma frase de movimento é a medida de seu argumento coreográfico. Podemos verificar
na estrutura de uma frase uma pequena microestrutura de início, meio e fim, algo que se
apresenta, desenvolve e conclui. Humphrey (1959) usa o termo frase para denominar a
organização do movimento no tempo. O tempo de uma frase para a coreógrafa seria o de
uma respiração confortável, de um crescer e decrescer do sentimento. O desenvolvimento
de uma frase pressupõe um crescimento de energia, seguido de um descanso, ou uma
queda.
83
As funções do corpo humano são ‘fraseadas’ desta
maneira: o coração bate e descansa, os pulmões enchem e esvaziam,
os músculos demandam descanso a partir do esforço, assim como
uma tensão sustentada resulta muito rapidamente em exaustão.
outras frases mais longas, como o dia preenchido de energia,
seguido pela noite repousante; ou o projeto que exige meses de
esforço, seguido pelas férias (HUMPHREY, 1959, p. 67)
33
.
O importante não é a exata quantificação, mas a compreensão do ciclo
argumentativo da frase coreográfica que fundamenta o processo criativo, tornando-o mais
compreensível e estruturado. A pesquisa das frases de movimento pode ser espontânea
como uma continuidade das células escolhidas ou pode ser dirigida. Quando crio não
costumo pensar ou requisitar à direção recursos para a exploração de movimentos, as
células naturalmente me levam às investigações e posteriormente me conscientizo de como
as desenvolvi. Com meus alunos, contudo, muitas vezes, percebo dificuldades em como
explorar uma movimentação, então os dirijo. Em ambos os casos, neste momento, deixo um
processo mais intuitivo de seleção de material acontecer. Alguns recursos usados para
explorar a movimentação
34
:
a) em diferentes partes do corpo, usando o corpo como um todo
b) com diferentes ações corporais
c) em diferentes relacionamentos com o espaço: níveis, planos, direções,
cinesfera, solo, duo, grupos.
d) com diferentes qualidades corporais
- fluência: de livre a controlada
- espaço: de direto a flexível
- peso: de firme a leve
- tempo: de súbito a sustentado
33
As traduções são de minha responsabilidade.
34
Estes recursos de exploração são bastante conhecidos, apenas desenvolveremos aqui questões mais
diferenciadas em relação aos sentidos enfatizados. Aos interessados descrevemos cada um dos recursos
mencionados em anexo.
84
As combinações possíveis a serem trabalhadas:
a) Estados expressivos (combinações das qualidades de dois fatores)
b) Impulsos expressivos (combinações das qualidades de três fatores)
c) Impulsos de ação ou ões básicas do movimento (combinações entre os
fatores espaço, peso e tempo) (FERNANDES, 2002).
A partir das células de movimento surgem frases bem definidas e também
temas mais abertos de movimento, utilizados principalmente em variações em
improvisação. As frases também podem ser utilizadas em improvisação em conjunto a
outros movimentos e mesmo sendo recompostas e redefinidas no momento da cena. Depois
de compostas algumas frases e temas de movimento, inicio o trabalho de desenvolvimento
de variações coreográficas. Neste processo, os elementos principais a serem trabalhados são
a complementação, o antagonismo e a repetição. Pela ocorrência nos processos criativos
desenvolvidos, nos ateremos à repetição, que foi o recurso mais amplamente utilizado,
mesmo que intuitivamente a partir das percepções dos sentidos
35
.
A repetição é um importante recurso de variação coreográfica e pode se
apresentar de várias formas. A repetição pura e simples de uma mesma frase de movimento
várias vezes gera a dinâmica de frase circular. Esta variação pode enfatizar um conteúdo
coreográfico, fazer surgir sutilezas que não são perceptíveis numa única execução, bem
como pode, pela simples repetição, alterar o padrão de compreensão e entendimento do
vocabulário coreográfico, evidenciando uma mudança qualitativa no movimento.
A repetição por colagem altera a ordem dos movimentos apresentados
inicialmente, gerando novas construções coreográficas e significativas, ampliando as
possibilidades dinâmicas dos movimentos. Um movimento inicialmente apresentado pode
aparecer no meio da frase, repetir-se, alternar-se com o último movimento, e assim por
diante.
A repetição por acumulação apresenta a frase coreográfica numa ordem prevista
e mantida, mas vai agregando os movimentos aos poucos. Apresenta, por exemplo, os três
35
Aos interessados algumas considerações sobre a complementação e o antagonismo são apresentadas em
anexo.
85
primeiros movimentos, retoma do início até o quarto movimento e continua a repetição até
apresentar toda a frase coreográfica. Toda a segunda cena de Intenso foi composta desta
maneira para o público, apresentando pouco a pouco toda uma variação coreográfica pelo
acúmulo de informações. Em Amargo Perfume também ocorre essa acumulação composta.
As percepções olfativas e gustativas apresentam essa acumulação. Quando estamos
apreciando um perfume, inspiramos por várias vezes o cheiro e vamos notando cada vez
mais informações. O sabor também, a cada bocado que provamos, percebemos um tempero
diferente, um detalhe e vamos somando as percepções.
Os elementos de variação podem ser agregados, integrando seus aspectos. Por
exemplo, uma repetição pode manter o movimento, complementando-o com colagens, bem
como pode contrastar com a repetição em frase circular com alteração de dinâmica. Outros
elementos podem ser utilizados. Tentei ressaltar aqui os mais utilizados e freqüentes
durante meu processo de pesquisa criativa e metodológica.
Depois de desenvolvidas frases e variações em seqüências maiores de
movimento começo o desenvolvimento da estrutura coreográfica. Busco a estrutura a partir
do reconhecimento do relacionamento entre as seqüências criadas, se estão isoladas em
fragmentos, se contrapõem ou complementam-se. A lógica de sentidos da obra coreográfica
é definida numa estrutura que pode se apresentar como composição ou em improvisação.
Ressalto, mais uma vez, a importância da materialidade coreográfica para a definição da
estrutura final da composição. A lógica de sentidos a que me refiro se origina desta
materialidade em sua linguagem própria, corporal, e que diz respeito às dinâmicas
qualitativas dos movimentos, ao relacionamento com o outro e com o espaço, e ao
desenvolvimento coreográfico no tempo. A estrutura final não precisa ser linear, nem
narrativa, mas estes elementos podem aparecer. O fundamento de origem, contudo, é
sempre a materialidade coreográfica. Se um resultado em termos de significação em
palavras, este se origina dos movimentos experimentados e criados e não o contrário.
A repetição nas artes corporais e cênicas tem papel fundamental, não apenas
como elemento decisivo para a conscientização dos movimentos, aprimoramento técnico,
mas, principalmente como elemento de transformação qualitativa e significativa no
86
processo criativo.O processo de repetição é bastante conhecido no metiér da dança, como
argumenta Fernandes (2000):
Durante anos na vida dos dançarinos, a repetição diária
de exercícios e de seqüências de movimento preestabelecidas é um
método básico para o aprendizado técnico. Durante o processo
criativo de peças de dança, a repetição é usada por alguns
coreógrafos como instrumento formal de composição, conectando
movimentos e frases de movimentos. A repetição é também usada
por muitos coreógrafos para ensinar a seqüência aos dançarinos, que
repetem os movimentos com seu criador e depois sozinhos, para
memorizá-los. Desse modo, a repetição é usada pelo professor de
dança, pelos coreógrafos, ou pelo próprio dançarino, para construir
ou rearranjar e confirmar vocabulários de movimento no corpo
dançante (FERNANDES, 2000, p. 42).
Ao repetir uma pequena célula ou frase de movimentos, o intérprete criador
conscientiza-se mais e mais das mais diversas sutilezas do movimento: as partes do corpo
envolvidas, o grau de tensão muscular, a utilização do volume do corpo e sua relação com o
espaço, a dinâmica qualitativa do gesto. O conhecimento detalhado do movimento permite
o domínio técnico criativo e a manipulação do material coreográfico. Contudo, o papel
decisivo da repetição na presente metodologia se constitui na possibilidade de
transformação.
Ao descrever o processo de construção cênica do Wuppertal Dança-Teatro (de
Pina Bausch), Fernandes (2000) explica que através da repetição extensiva, cenas pessoais
transformam-se em forma estética e, assim, durante o espetáculo cenas repetitivas evocam
múltiplos significados:
A repetição do mesmo movimento traz mais e mais
distorções, provocando múltiplas e imprevisíveis interpretações e
experiências. /.../ A repetição evoca um significado reflexivo sobre
sua estrutura inerentemente oca e paradoxal. Ao conceber sua falta
de significado como significado, a repetição contradiz-se e se
reafirma, antes de tudo, como a forma estrutural do mutável, do que
não aceita conteúdos ou formas finais e definitivas (FERNANDES,
2000, p. 126, 111).
87
A repetição auxilia o intérprete criador a transformar em forma estética uma
matriz, uma célula de movimentos; desenvolve a conscientização corporal em relação ao
material pesquisado, e também possibilita modificações dinâmicas, qualitativas. A
repetição como escolha cênica do material coreográfico final permite ao público uma
aproximação maior em relação aos movimentos e sua construção poética, bem como
permite a transformação e multiplicação das possibilidades de significação da materialidade
construída.
Olfato e paladar: sentimento e sensação
Como discutimos no capítulo anterior, optar pelos sentidos do olfato e do
paladar como estímulos geradores do processo criativo nos aproxima do sentimento. Como
já compreendemos a partir de Damásio (1996), sentimentos relacionados com a consciência
de estados emocionais e sentimentos relacionados com a própria vida, com a sensação de
existir (sentimentos de fundo). De uma maneira ou de outra o sentimento envolve
consciência em relação a estados corporais, associações com situações, bem como
pensamentos relativos a esses acontecimentos.
Um sentimento em relação a um determinado objeto
baseia-se na subjetividade da percepção do objeto, da percepção do
estado corporal criado pelo objeto e da percepção das modificações
de estilo e eficiência do pensamento que ocorrem durante todo esse
processo (DAMÁSIO, 1996, p. 178).
O sentimento depende de uma capacidade consciente de julgamento subjetivo.
Percebemos que este universo está em destaque ao enfatizarmos os sentidos do olfato e do
paladar, mas como isso modifica o processo de criação, a construção simbólica, a definição
ou não de significados? Para compreendermos estas questões utilizaremos as funções
psíquicas definidas por Jung
36
e utilizadas por Laban nas correlações com os fatores de
36
Para os interessados nas funções psíquicas de Jung em suas possíveis contribuições para a dança, publiquei
o artigo “Uma luz Junguiana à criação artística” nos Cadernos de s -Graduação do Instituto de Artes da
Unicamp (LEAL, 2005).
88
movimento e atitudes associadas, desenvolvidas na improvisação pelos sentidos. Jung
(1974) classifica padrões de relações e atitudes para definir tipos psicológicos. Considera
esses tipos apenas didaticamente separados, pois sua manifestação é bastante diversa e
geralmente híbrida. Utilizo as funções psíquicas aqui não com o interesse de definir tipos
psicológicos, mas para compreender como funciona um processo criativo que valoriza
sentidos específicos como o olfato e o paladar.
Jung (1974) distingue quatro funções básicas: pensamento (reflexão) e
sentimento, sensação e intuição. Sensação e intuição são funções de percepção, enquanto
pensamento (reflexão) e sentimento são funções de julgamento.
A reflexão e o sentimento, então, têm a ver com o
sistema de ordem ou de valor ao qual submetemos as descobertas
ou os resultados das funções de percepção. A reflexão e o
sentimento organizam os resultados da sensação e da intuição
dentro de algum tipo de sistema ordenado (WHITMONT, 1995, p.
126).
Quando percebemos o estímulo olfativo e gustativo estamos utilizando a
sensação, que é justamente a percepção concreta de objetos e pessoas por meio de nossos
cinco sentidos. Uma função mais objetiva e consciente. Quando julgamos aquilo que
percebemos atribuindo um valor, utilizamos o sentimento. Um julgamento de valor
subjetivo. A sensação ser agradável ou desagradável, gostarmos ou não gostarmos de
determinado sabor ou cheiro é uma realização do sentimento. Que pode ser consciente ou
inconsciente, mas tem sempre um julgamento subjetivo. O sistema de ordem estabelecido
pelo sentimento é mais de envolvimento, de valor para o sujeito, exprime nossa interação
com o mundo em gradações de rejeição e aceitação. Jung (1974) reúne as funções psíquicas
por pares de opostos, que são exclusivos. Se sentimento está sendo utilizado com maior
desenvoltura, o pensamento passa a ser chamado de função inferior, ou seja, permanece em
estado inconsciente primitivo. E, geralmente, duas funções, uma de percepção e uma de
julgamento, combinam entre si.
89
Segundo Jung (1974),
Sentimento: é o conteúdo ou material da função de
sentir, mediante a discriminação de um sentir determinado. /.../ O
sentimento é, em primeiro lugar um processo que se verifica entre o
eu e um dado conteúdo, processo que concede ao conteúdo um
valor determinado, no sentido de aceitação ou recusa (agrado ou
desagrado) /.../ O sentir é, portanto, uma espécie de critério
julgador, mas diferente do juízo intelectual, na medida em que não
revela propósitos de estabelecimento de uma conexão conceptual,
mas apenas um intuito de aceitação ou recusa subjetiva. /.../ O sentir
‘simples’, corrente é concreto, quer dizer, aparece misturado com
elementos de outras funções como as percepções, por exemplo, com
bastante freqüência (JUNG, 1974, p. 539, 540).
No início do processo criativo com a percepção olfativa e gustativa valorizamos
a sensação mais concreta, a percepção de como o cheiro e o gosto nos invadem e
modificam os movimentos. Em conjunto a essa percepção aparece o sentimento, julgando
aquilo que é percebido e modificando, também, o caráter do movimento.
Todo o foco na percepção e identificação do movimento conscientemente
envolve a sensação, mas o sentimento sempre está presente conscientemente ou não.
Percebo também que ao desenvolver as movimentações em células, frases, temas, muitas
vezes o sentimento permanece e a sensação lugar à intuição, o corpo caminha de forma
intuitiva dando continuidade a uma sensação concreta primeira, que fica registrada no
corpo, mas que toma continuidade de forma menos óbvia. As possibilidades, as
probabilidades de movimentos apresentam-se, posteriormente a uma percepção dos
sentidos mais direta, como se elas fossem presenças, ou seja, por meio da intuição. “A
intuição é uma forma de percepção que chega a nós diretamente do inconsciente”
(WHITMONT, 1995, p.128).
Os vários momentos da criação permitem variações entre as funções, contudo
valorizar os sentidos do olfato e do paladar enfatiza o desenvolvimento da sensação e do
sentimento. Permitir que o movimento flua e se desenvolva, envolve a intuição.
Compreendê-lo e manipulá-lo em relação ao tempo e ao espaço envolve pensamento,
90
reflexão. A ordem primeira dos fatos, a ênfase que sobressai a partir dessa escolha de
estímulo criativo é sensação e sentimento.
Sentidos e significados: domínio do inconsciente
A partir da experiência criativa desta pesquisa, apresento as ocorrências do
movimento relativas aos sentidos trabalhados. O olfato nos aproximou dos movimentos
respiratórios, da dinâmica rítmica do eterno ir e vir do ar, das pulsações, da fluência mais
liberada ou mais controlada em várias nuances. Enfatizar a criação a partir de referências
olfativas evidenciou, no corpo, nariz, boca, garganta, pulmões, coluna. O olfato evocou
uma utilização do corpo em preenchimento ou esvaziamento de dentro para fora.
O paladar, por manter a apreciação um tempo maior dentro da boca, enfatizou
ainda mais os movimentos do rosto, da boca, expressões do gosto estranho, bom, ruim,
delicioso. A boca em papel de destaque desenvolve movimentos em progressão pela coluna
e pélvis. A nuca e pescoço são extremamente enfáticos. A sensação tátil da língua provoca
associações nas mãos e nos pés e dessas extremidades com outras partes do corpo e com o
chão. A sensação tátil do paladar evoca o contato e a possibilidade do toque no outro, em
outra pele.
Entendo todas essas materialidades corporais como significações primeiras e
fundamentais com as quais trabalhamos durante as criações. O foco para criar, organizar,
simbolizar o material criativo veio, primeiramente, destas significações mais concretas da
materialidade do próprio movimento, da própria percepção e do próprio corpo. Contudo,
um contexto significativo relativo principalmente a sentimentos apareceu, mas de forma
indireta. Ou seja, nesta metodologia não houve a intenção direta de trabalharmos, por
exemplo, com a representação do amor, mas a sugestão significativa do amor apareceu em
Intenso em decorrência ao trabalho corporal resultante da apreciação do vinho tinto. Por
vezes, chegamos a narrativas, como quando coloco as xícaras e fico esperando por alguém
sentada na cadeira em Amargo Perfume, mas isso foi resultado de células de movimento
que se organizaram por seu conteúdo corporal qualitativo, que resultaram nesta cena. Da
mesma maneira, as matrizes, temas e improvisações de Variações sobre chocolates foram
91
sendo organizadas intuitivamente pelas características dos próprios movimentos, e
sugestões significativas como infância, sensualidade, maturidade e deleite foram surgindo.
O trabalho criativo gerado pelo olfato e paladar revela, em primeiro lugar, a
materialidade mais própria da dança; sua fluência, sua plasticidade, sua configuração
espacial. Indiretamente chega à narrativa, ao sentido em palavras, à significações abstratas
37
abertas e humanas como a solidão, o desespero, a sensualidade, o amor. Este caminho
indireto permite que o inconsciente e as questões mais coletivas germinem, enquanto a
consciência do intérprete criador focaliza na sensação e nos significados mais concretos do
próprio corpo. Focaliza-se a sensação, revela-se o sentimento. Não nego, portanto, que o
resultado criativo chegue a uma narrativa, chegue a uma representação polissêmica de
sentimentos, de idéias, mas isso acontece indiretamente. “A convicção do poeta de estar
criando com liberdade absoluta seria uma ilusão de seu consciente: ele acredita estar
nadando mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível” (JUNG, 1991, p.
63).
É desta maneira também que trabalho com referências da memória. Ao sentir
um sabor o intérprete é invadido por lembranças que o podem contaminar superficialmente,
moldando antecipadamente seus gestos e mantendo-os numa esfera muito pessoal. Ao pedir
que focalize nas sensações mais concretas do sabor, da textura na língua, na mastigação e
os movimentos decorrentes dessa ação, permito que o intérprete permaneça mais tempo em
suspenso com o material criativo antes de defini-lo e deixo a memória agir sob o domínio
do inconsciente. Percorro o caminho mais concreto no fazer consciente, para abrir espaço
ao maior e coletivo inconscientemente. Desta forma, as lembranças, memórias, recordações
são resignificadas, transformadas no decorrer da manipulação material da linguagem
coreográfica consciente, por meio da atuação simbólica do inconsciente. Porque esta é a
natureza do mbolo, grandeza viva e inconsciente. Se definimos conscientemente e
antecipadamente o material criativo perdemos sua potência simbólica. “O símbolo vivo
formula uma essencial grandeza inconsciente e quanto mais difundida ela estiver, tanto
37
Segundo Jung (1974) sentir é tanto mais concreto quanto mais subjetivo e pessoal, singular, particular. O
abstrato é mais geral, objetivo. Assim, “uma definição intelectual jamais conseguirá refletir suficientemente o
que é específico do sentimento” (JUNG, 1974, p. 541).
92
mais generalizados serão seus efeitos, pois que fará vibrar em cada um a corda afim”
(JUNG, 1974, p. 546).
Este caminho permite lidar com questões amplas, talvez ainda não
compreensíveis conscientemente, o que facilita e qualifica o trabalho do intérprete criador.
Ao focalizar o processo criativo a partir de suas vivências pessoais, o intérprete não
limita seu repertório, mas seu público. Além disso, por vezes não é capaz de lidar com
certos assuntos pela carga emocional envolvida. “A verdadeira obra de arte tem inclusive
um sentido especial no fato de poder se libertar das estreitezas e dificuldades insuperáveis
de tudo o que seja pessoal, elevando-se para além do efêmero do apenas pessoal”. (JUNG,
1991, p. 60). Focalizar o movimento permite acessar questões humanas mais amplas,
aproximando o público, o espectador da construção final da obra. Polissêmica, sem o
interesse em ser restrita nos significados que provoca (objetivando sim os movimentos que
desenvolve), valorizando a modificação constante da obra quando vai a público, este foco
metodológico permite ao espectador as interpretações, permite que o público se aproxime
pela sua subjetividade de identificação seja pela significação da materialidade própria do
movimento, seja pela significação em idéias, seja pela narrativa que e constrói em
conjunto aos intérpretes criadores.
Percebo, muitas vezes, uma necessidade ávida do público de compreender os
sentidos, os significados em palavras, uma história, um enredo. Será que isso é necessário?
Ou será apenas um hábito cultural de um momento histórico que não valoriza o ser, o
sentir? Quando valorizo a materialidade da própria dança, sinto que valorizo a própria
dança. Olfato e paladar me parecem facilitar esse processo. Entendo também que sem
algumas construções narrativas, algumas representações não consigo me aproximar de certo
público, talvez mais racionalista. Contudo, gostaria de trazê-lo pela apreciação do
movimento, pela contemplação mais simples e concreta do corpo em movimento no espaço.
Será isso possível? Deixo aqui minhas reflexões e dúvidas, abrindo-as com o pensamento
de Jung (1991):
Talvez a arte nada ‘signifique’ e não tenha nenhum
‘sentido’/.../ Talvez ela seja como a natureza que simplesmente é e
não ‘significa’. Será que ‘significação’ é mais do que simples
93
interpretação, que ‘imagina mais do que nela existe’ por causa da
necessidade de um intelecto faminto de sentido? Poder-se-ia dizer
que arte é beleza e nisso ela se realiza e se basta a si mesma. Ela
não precisa ter sentido. A pergunta sobre sentido nada tem a ver
com a arte. Se me colocar dentro da arte, tenho que submeter-me à
verdade dessa afirmação. (JUNG, 1991, p. 66).
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- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples
(BANDEIRA, 2006, p. 53).
Apreciar os perfumes fundamentais e os sabores do fazer criativo em suas
possibilidades olfativas e gustativas me permite a percepção do percurso em direção à
contemporaneidade. Como sujeito dessa realidade e, ao mesmo tempo, objeto, parte
integrante deste mundo, teço, a partir do sentir definido nesta pesquisa, meu olhar sobre o
corpo e a dança contemporânea, e localizo as especificidades de minha proposta de
pesquisa neste contexto, refletindo sobre as principais contribuições do trabalho, neste
sentido.
A perspectiva estudada em relação aos sentidos, os processos criativos
desenvolvidos, bem como as metodologias apresentadas modificam toda uma maneira de
olhar e me posicionar em relação ao mundo. Tessitura sentida na pele do corpo, aromas que
presentificam minha memória, sabor que me permite a reflexão a partir de meu ser sujeito-
objeto contemporâneo. Possibilidade de perfume, ao mesmo tempo em que cheira. Sabor
aos olhos de outros, que aprecio em meu paladar. Textura de aromas e sabores vividos,
sentidos.
Percorri um caminho que se iniciou de dentro para fora. Da sensação mais
primordial e sem compreensão consciente, num primeiro momento, para a concretização
criativa, a análise e a definição metodológica. Permita-me o leitor construir, neste
momento, o caminho de volta observando, depois de todo o caminho percorrido, o contexto
exterior no qual me integro e de onde parti, me aproximando da dança de minha época sob
a tessitura de meu olhar, revelando a singularidade de minha trajetória.
Inicio essa reflexão a partir de minha percepção do corpo contemporâneo e suas
características. Esta percepção e sensação de um corpo presente e parte desta cena causou
inquietudes geradoras do caminho de pesquisa percorrido. Muitas vezes, a compreensão de
si inicia-se pela negação, por aquilo que não queremos, por uma realidade que nos oprime,
mas também nos transforma e faz germinar uma necessidade criativa. Ao chegar à reflexão
sobre a dança contemporânea me posiciono sobre as questões das quais mais me aproximo
com minhas escolhas e referências pesquisadas. Finalmente, contextualizo, neste cenário,
110
minha pesquisa artística, refletindo sobre suas possíveis contribuições para pesquisadores,
educadores e artistas na cena contemporânea. Considero fundamental a todo processo de
finalização de pesquisa esse olhar para fora, justificando o trabalho desenvolvido e
pontuando seus resultados processuais para a arte, para a cultura, para a história, para a
sociedade de sua época.
Um corpo contemporâneo em busca de sentido
A contemporaneidade nos apresenta uma série de valores e discussões
importantes sobre corpo e dança contemporânea. Importantes historiadores e educadores
vêm discutindo, cada vez mais, questões a respeito do corpo. O corpo está na 'moda', e por
ocupar papel de destaque na presente pesquisa, considero, neste momento, algumas
questões para refletir sobre o corpo e a dança contemporânea em suas especificidades,
contextualizando conceitualmente os processos de criação, bem como as propostas
metodológicas que constituíram a pesquisa apresentada.
Ao refletir sobre o corpo na contemporaneidade, concordo com a historiadora
Denise Sant'Anna (2001) quando levanta a valorização crescente da problemática do corpo
humano acompanhada por uma exploração comercial crescente, aonde o imperativo da
saúde e beleza perfeitas se impõe na onipresença da mobilidade corporal em expansão.
Essa mobilidade corporal, cada dia mais crescente e reinante, se inicia com o
advento da velocidade nas competições esportivas em meados do século XIX, aparece nas
artes impressionistas com o advento da fotografia e o estabelecimento do instante nas artes,
se reafirma no progresso das fábricas e máquinas e implanta novas liberdades e agonias na
contemporaneidade.
Signo de liberdade e progresso, a velocidade dos trens provoca acidentes e
evoca uma nova visualização das paisagens em movimento. A duração é substituída pelo
instante, a clareza das imagens pelo flou, a materialidade dos corpos pela
desmaterialização. O corpo contemporâneo é flexível, distorcido, fluido, elástico e sem
limites.
111
Como argumenta Sant’Anna (2001), a essa valorização da velocidade e da
liberdade soma-se uma busca desmedida pelo prazer e pelo bem estar. Vivemos uma era do
culto ao prazer e à beleza como quase deveres obrigatórios deste corpo obcecado pelo
conhecimento cada vez mais pormenorizado de si, pela manipulação e controle no anseio
do bem-estar individual. A essa aparente liberdade ocasionada pelo crescente conhecimento
e controle corporal opõe-se a solidão e incerteza do ser humano na construção de sua
subjetividade. Subjetividade que está cada vez mais na aparência, no que o homem
apresenta em seu exterior, na sua pele.
As relações baseadas na velocidade e no controle cada vez maiores em relação
ao corpo também devem ser múltiplas, o corpo deve estar sempre em relação, com o maior
número de pessoas e a tecnologia multiplica essa possibilidade. A imagem da rede de
conexões assemelha-se à imagem da pele, uma superfície de grande amplitude, mas pouca
profundidade. A contemporaneidade substitui a experiência sensorial pela abstração através
de recursos tecnológicos, novos modos de consciência. Velocidade, abstração, relatividade.
O corpo contemporâneo impaciente, apressado, mostra-se veloz e transparente. O intuito é
Evitar que o corpo seja um obstáculo para poder entrar
em todos os lugares, navegar em meio a diferentes culturas. Por
isso, o homem voltado à transparência também é inquieto e incerto,
criativo, flexível. Buscando desvencilhar-se do peso de tudo que
tende a repousar sobre si, ele tem que carregar muito corpo, muita
memória, muita identidade. Ele se vê ameaçado constantemente
pela vertigem da compulsão consumista e pela depressão
aniquiladora (SANT’ANNA, 2001, p.25).
Somada a essa questão da velocidade como máxima possibilidade na
exploração dos limites do corpo, emerge uma outra questão imanente: o controle. Tantas
possibilidades, tantas relações possíveis, tanto obrigatório bem-estar e felicidade,
demonstram também um imenso controle sobre o corpo. O corpo está sob vigilância e
controle contínuos, mas muitas vezes imperceptíveis, quase naturais, como as
possibilidades de intervenção sobre o corpo são na atualidade. O máximo de intervenções
possíveis para mantê-lo jovem, saudável, magro... ‘naturalmente’. Como nos define
Foucault (1979), a ‘microfísica do poder’, o controle nos mínimos e, neste caso, quase
112
imperceptíveis detalhes. E um controle que tem como resultado uma aparência ‘natural’.
Como os denomina Soares (2003) os chamados corpos in natura’, corpos onde os
procedimentos de correção são pouco visíveis.
Soares e Fraga (2003) discutem esse controle minucioso sobre um corpo cada
vez mais fragmentado e local de máxima exploração de limites, a partir dos discursos cada
vez mais especializados sobre o corpo. Ressaltam os processos corretivos da postura, cada
vez mais presentes, sem que sejam visíveis (como os espartilhos), de forma aparentemente
natural e obsessiva. Uma obsessão pelo estar alinhado, pelos corpos alinhados. Observam
estes processos de correção postural, procedimentos destinados a endireitar o físico,
denominando-os ‘pedagogia dos corpos retos’. Essa tendência que se verifica nos discursos
especializados sobre o corpo, desde o século XIX, vem se acentuando. As virtudes dos
corpos alinhados, lisos, esbeltos vêm sendo reafirmadas num contínuo processo de controle
corretivo que, gradativamente, foi se construindo de forma cada vez menos visível, contudo
incontestável. Dos espartilhos à ginástica, às intervenções estéticas e cirúrgicas, o
endireitamento do corpo pressupõe qualidades não atribuídas ao físico, mas também
qualidades morais e sociais como a retidão do caráter, a robustez, a compostura. Uma
relação direta se fez entre o caos e a desordem social com os corpos curvos, as carnes moles
e os fracos de espírito. A grande diferença apresentada pela contemporaneidade é que os
mecanismos de endireitamento e controle foram sendo progressivamente incorporados.
“/.../ um longo e penoso processo de coerção e disciplinamento fez-se carne; entranhou-se
nos corpos através de um arsenal educativo voltado para a retidão das formas e dos
costumes /.../” (SOARES e FRAGA, 2003, p. 86).
Dança de um corpo híbrido
Como local de máxima e rápida exploração de limites, o corpo na dança
contemporânea sofre de uma híbrida formação técnica: educação somática, artes marciais,
balé clássico, dança moderna, circo... A dança contemporânea perdeu as linhagens, perdeu
as fronteiras (LOUPPE, 2000). Se por um lado isso parece ampliar e diversificar os
113
intérpretes, por outro, parece não garantir uma sólida formação necessária nesta área das
artes corporais. O híbrido é o resultado de uma combinação única e acidental, que valoriza
o indivíduo, a liberdade, gerando, porém, uma crise de identidade subjetiva e a chamada
‘síndrome de Frankenstein’.
Para Le Breton (1995) a ‘síndrome de Frankenstein’ se aplica aos corpos
modificados continuamente na contemporaneidade e frutos de crises de tempo e espaço
como a de ter a voz viajando pelo espaço, o pensamento na internet, o sangue no
laboratório. O corpo extravasando seus próprios limites e sofrendo interferências de outros
corpos e tecnologias (implantes, por exemplo). Em relação a esse acontecimento Le Breton
(1995) adverte uma sensação de falta de identidade, uma inquietação com “a questão dos
limites do homem e do uso do corpo humano como um material biológico disponível” (LE
BRETON, 1995, p.52) o que intitula ‘síndrome de Frankenstein’. Utilizo o termo aqui no
mesmo sentido de falta de uma identidade necessária para o amadurecimento do intérprete,
pelas múltiplas e rápidas experiências em técnicas diversas, formando esse corpo híbrido
que tem na falta de linhagem, ou talvez de identidade, sua essência.
As contínuas experiências diversificadas apontam sobre uma ansiedade e uma
vontade de poder sobre o corpo. Dominar mais técnicas traz uma ilusão de poder imenso,
de multiplicidade interpretativa criativa, de controle sem limites, quase um corpo
romântico, no sentido de ser mais que humano, quase espiritual. Contudo, toda modificação
no corpo acarreta uma modificação no seu entorno. Assim, podemos ver na dança
contemporânea um reflexo de seus corpos e seus indivíduos.
O corpo é o vetor da individualização, ele estabelece a
fronteira da identidade pessoal; confundir essa ordem simbólica que
fixa a posição precisa de cada indivíduo no tecido social significa
apagar os limites identificadores do fora e do dentro, do eu e do
outro; essa confusão coloca radicalmente em questão a afirmação de
si e faz duvidar sobre a natureza do outro. A igualdade do homem
consigo mesmo, a identidade de si, implica a igualdade com seu
corpo. A condição do homem é corporal. Subtrair-lhe alguma coisa,
ou lhe acrescentar, coloca esse homem em posição ambígua,
intermediária. As fronteiras simbólicas são rompidas. /.../
Pensar o corpo é outra maneira de pensar o mundo e o
vínculo social; uma perturbação introduzida na configuração do
114
corpo é uma perturbação introduzida na coerência do mundo (LE
BRETON, 1995, p.64- 65).
Neste alto domínio técnico coloca-se a questão da superação de limites, de um
corpo que busca sua própria superação, uma precisão absoluta dos movimentos, o que
Ribeiro (1994) chama de corpo hi-fi’, ou seja, um corpo virtuoso, de alta fidelidade, que
supera limites utilizando-se, até mesmo, da tecnologia para isso.
Alinhamento e consciência corporal
No desenvolvimento interpretativo e criativo da dança contemporânea é cada
dia mais eminente a importância dada à consciência corporal, e cada vez mais detalhado e
minucioso o conhecimento orgânico sobre o corpo. Linhas provindas da fisioterapia
misturam-se ao preparo técnico do bailarino cada dia mais consciente do funcionamento
anatômico-fisiológico do seu corpo. O conhecimento científico parece ganhar espaço
crescente no fazer artístico num controle e domínios cada vez maiores do conhecimento
corporal.
Linhas como a de cadeias musculares, fundamentam as práticas corporais de
Ivaldo Bertazzo e seus cidadãos dançantes, os fundamentos da coordenação motora de
Béziers e Piret são essenciais na prática interpretativa e criativa da Cia. Nova Dança. Nas
graduações de Dança além da anatomia, cinesiologia e fisiologia, os alunos têm
conhecimentos de Ginástica Holística, Bartenieff, Feldenkrais, Alexander, entre outros
métodos que se preocupam e se debruçam sobre a consciência do corpo e a educação
somática.
Além de um maior conhecimento sobre o corpo, a consciência corporal permite
um maior conhecimento de si, não somente de estruturas orgânicas, mas de sensibilidades,
de histórias de vida. O intérprete ao ser chamado a conhecer melhor sua estrutura orgânica,
conhece melhor a sua história de vida, suas pulsões e desejos, suas emoções e sua
afetividade, questões que são encarnadas e não podem se dissociar do corpo. Ribeiro (1994)
denomina este corpo como corpo ‘livro’, ou seja, o corpo próprio de cada intérprete, sua
115
biografia. E aqui as questões da consciência superam a superficialidade da aparência e do
alinhamento, e tornam-se mais profundas e subjetivas.
Não pretendo aqui julgar linhas de trabalho. A consciência corporal mostra-se
muitos anos eficiente e importante nas práticas corporais. O que pretendo é apenas
observar o percurso da dança contemporânea a partir do contexto permitido pela pesquisa
que apresento. Considero-me parte integrante dessa totalidade e, como bailarina e
pesquisadora de dança contemporânea, participante destes acontecimentos e
questionamentos.
Materialidade
Na dança contemporânea existe uma crescente valorização por sua
materialidade própria. Esta valorização tem início com o advento da dança pós-moderna, ou
também denominada nova dança (GARAUDY, 1980) que, indo contra os preceitos de
revelar emoções e sentimentos da dança moderna, considera o próprio movimento sua
expressão. Na dança contemporânea esse preceito encontra seu auge com a valorização da
materialidade do corpo no aspecto expressivo. O movimento e suas características em
relação ao espaço, duração, intensidade, sua materialidade kinética, sua dinâmica, fatores
lógico-sensoriais, tensões musculares, experiências sensório-intelecto-emocionais, a
energia do fluxo corporal, enfim, toda materialidade corpo é plano primeiro na dança
contemporânea (CRÉMÉZI, 1997).
E além da valorização da própria materialidade, a dança contemporânea
valoriza o próprio e contínuo percurso, ou seja, o processo. Estabelecendo um paralelo
histórico, observo no balé clássico uma valorização à finalização dos gestos, à pose final.
Na dança moderna valoriza-se a transição e continuidade dos movimentos. A dança pós-
moderna ou nova dança (GARAUDY, 1980) dá lugar ao acaso, à impermanência do
efêmero momento. A contemporaneidade chega ao ápice deste processo valorizando não
apenas a produção cênica final ou sua possibilidade única, transitória, mas todo o percurso.
A dança contemporânea expõe o processo criativo. A materialidade em suas transformações
na criação coreográfica. A materialidade como linguagem, fluxo pulsional da motricidade.
116
Os recursos da materialidade em processo, em improvisação, em exploração máxima são
valorizados como linguagem artística.
As técnicas corporais em dança contemporânea são muitas e variadas, mas têm
em comum um profundo conhecimento da estrutura orgânica do corpo como fruto da
materialidade desta estética.
Coloco aqui o testemunho do processo criativo e metodológico da presente
pesquisa neste sentido. O trabalho a partir dos sentidos, enquanto metodologia de dança
contemporânea baseia-se na materialidade da dança, neste caso, na percepção dos sentidos,
na relação desta percepção com os fatores do movimento: fluência, espaço, peso e tempo. A
concretude material dos elementos intrínsecos à dança vem em primeiro lugar no processo
de criação. O intérprete criador lida, primeiramente, com as sensações físicas causadas pelo
cheiro, pelo gosto, pela textura, pela imagem, pelo som. Elabora sua movimentação
compreendendo estas sensações por meio das qualidades de controle, liberdade, aceleração,
leveza, direção dos movimentos. E a partir desta materialidade primeira e sua manipulação
criativa surgem as contextualizações simbólicas. Esta possibilidade metodológica permite,
no domínio consciente das sensações geradas pelos sentidos, o fluir dos sentimentos e do
conteúdo simbólico inconscientemente. A focalização do consciente na materialidade do
movimento permite tratar simbolicamente de temas de relevância maior, coletivos,
humanos, e não fechando a criação a questões pessoais.
Intérprete criador
Na dança contemporânea o papel do coreógrafo como detentor dos sentidos da
criação vem se relativizando e, cada vez mais, maior importância é dada às contribuições
do intérprete. O intérprete não é mais mero executor de uma proposta coreográfica, mas é
chamado a colaborar como criador na cena contemporânea. Muitas vezes, o papel do
coreógrafo passa a ser de um diretor que conduz o processo criativo. E o intérprete criador
passa a ser um pesquisador do processo contribuindo com a sua singular história de vida,
com suas especificidades anatômicas, dinâmicas e espaciais. “O intérprete- mais ainda que
o coreógrafo- é freqüentemente o guardião do sentido/.../ é pelo bailarino que as coisas
117
circulam e nos atravessam /.../ sem jamais criar raiz numa significação unívoca”
(NEDDAN, 1997, s.p.).
Mesmo não participando diretamente da criação coreográfica, o intérprete
modifica e acrescenta informações únicas ao material apresentado pelo coreógrafo.
Simplesmente por suas características anatômicas singulares, bem como por suas
especificidades interpretativas. Entretanto, compreender a importância participativa do
intérprete na cena contemporânea significa percorrer uma progressão histórica no
reconhecimento e valorização do bailarino enquanto guardião do sentido.
O balé clássico destaca seus solistas com grande ênfase, mas a principal
qualidade destes é a execução impecável e virtuosa do material produzido pelo coreógrafo.
Martha Graham, grande representante da dança moderna americana, propunha às suas
bailarinas que encontrassem a melhor maneira de desenvolver uma proposta de movimento
em seus corpos e costumava alterar sua proposta inicial caso alguma bailarina encontrasse
um caminho mais interessante ao movimento proposto (GRAHAM, 1993; LEAL, 2000).
Merce Cunningham, como representante da dança pós-moderna, elaborava seqüências de
movimentos que seriam ordenadas pelos bailarinos em cena, aleatoriamente, no
momento do espetáculo. Os bailarinos de Pina Bausch, na cena contemporânea, constroem
todo o material coreográfico inicial a partir de perguntas formuladas pela coreógrafa, que
posteriormente, ordena e modifica este material atribuindo sua formulação simbólica final.
Percebo, no decorrer destes movimentos, uma importância e uma participação
cada vez maiores do intérprete na dança. Cada vez mais a materialidade coreográfica surge
do corpo do intérprete criador, dialoga com ele. E o diretor, coreógrafo ou assistente,
ordem ao caos, promove o desenvolvimento significativo, estabelece ou auxilia na
apreensão do conteúdo simbólico. Coerente à valorização da materialidade, a dança
contemporânea valoriza sua sede: o corpo do intérprete criador.
Aparece também a questão da interface, as fronteiras são menos definidas.
Assim como na mistura de linguagens, a música dialoga com a dança, a dança com o teatro
a as artes visuais, as fronteiras se relativizam. O diálogo abre-se às múltiplas relações
possíveis. Retomando as idéias da historiadora Denise Sant’Anna (2001), a busca pelo estar
em relação constante, com o maior número de possibilidades, de forma ágil e flexível, faz-
118
se presente novamente. A idéia de relacionar diferentes linguagens artísticas não é
exclusividade da dança contemporânea, mas na contemporaneidade esse relacionamento se
faz de forma peculiar. Em amplo espectro, entre diversas linguagens, em multiplicidade
ágil e crescente, e com o apagamento de fronteiras entre uma arte e outra, provocando
híbridos, delimitações frágeis entre uma linguagem e outra.
O processo ganha uma maior valorização em relação ao produto final. E a
improvisação, seja como estrutura de pesquisa de movimento, seja como produto final de
criação de uma obra, tem cada vez maior valorização.
A improvisação demonstra a imagem do flou, da flexibilidade, da fluidez, do
instante e não da duração. Outra característica marcante na dança contemporânea: a
fluência dos movimentos, a continuidade, a organicidade, presentes, mais comumente, em
tempo rápido. O movimento de dança contemporânea perde a fixidez, o estático, evoca o
zappeamento das imagens midiáticas, a velocidade das comunicações, evoca o instante
impermanente, mutável e relativo.
A valorização do intérprete criador como sujeito que dança vislumbra um
formato que se apresenta freqüentemente na cena contemporânea: o solo. Como esclarece
Louppe (2004) a dança contemporânea afirma a presença do sujeito na integralidade de seu
ser, de seus gestos. O solo permite um laboratório aos limites corporais conhecidos,
favorece a exploração e a descoberta, o reconhecimento da unicidade singular do sujeito,
um modo particular de conceber e se relacionar com o mundo.
Desde a modernidade, em trabalhos como da expressionista alemã Mary
Wigman, podemos perceber a presença do formato solo como uma possibilidade de
aproximação do intérprete de um conteúdo mais primitivo e da investigação profunda do
movimento. A contemporaneidade testa limites, experimenta, dissolve fronteiras, cria
interfaces. A pesquisa é um elemento particularmente favorecido pelo solo e pequenos
grupos. A necessidade de trabalho com a materialidade própria da dança, a necessidade de
pesquisas aprofundadas em relação à dança como linguagem justificam a presença
marcante dos solos, duos e trios no cenário contemporâneo.
Por vezes, a opção pelo formato solo é recebida pelo público como pouco
comunicativa, hermética. Em alguns casos, o aprofundamento do contato consigo e a
119
materialidade subjetiva de cada corpo podem provocar o excesso de individualização do
processo, dificultando a conexão com a platéia. Contudo, não me parece ser este o principal
motivo do incômodo do público em geral com a dança contemporânea. Ao optar por
colocar em primeiro plano sua própria materialidade como linguagem, a dança
contemporânea resgata sua auto-suficiência e não depende de narrativas, dos libretos ou da
linguagem escrita para ser compreendida. A apreensão estética da dança contemporânea
pressupõe uma familiaridade e uma valorização dos elementos próprios da dança: a fluência
dos movimentos, sua intensidade, o volume dos corpos, os planos e direções espaciais... E
num momento em que o corpo está na ‘moda’, um discurso mais aprofundado a partir do
próprio movimento parece incompreensível, isto porque a tentativa de compreensão não se
faz pela integridade corporal, suas sensações, emoções e cognição, mas pela racionalização
e tentativa de compreensão pela linguagem das palavras. A dança contemporânea exige de
seu público uma aproximação de linguagem. A apreensão estética se pelos elementos
próprios da linguagem da dança. A significação primeira de qualquer movimento é o
próprio movimento em sua materialidade constitutiva.
Outro fator importante que o formato solo destaca é a pesquisa, a investigação
das possibilidades corporais, suas diferenciações, seus limites, suas imposições. É
interessante observar historicamente a relação entre a valorização de processos
investigativos e o surgimento de formações acadêmicas em dança. A dança que surge nas
universidades dialoga com artistas sem formação universitária e vice-versa. Mesmo antes
da possibilidade do ensino formal universitário, artistas preocuparam-se com ensino de
técnicas de dança e investigações criativas. Mas o ambiente acadêmico é o lugar por
excelência da pesquisa, do ensino e do construir e conceber o conhecimento. Interfaces para
a dança contemporânea: a interpretação, o ensino, a pesquisa, a criação. O bailarino
contemporâneo exerce amplos papéis, inclusive produzindo, por vezes, seu próprio
trabalho.
Dos três momentos criativos que pesquisei, dois configuraram-se como solo e
em um deles procurei experimentar a metodologia em grupo. A partir da metodologia
proposta, a princípio o diálogo de grupo não é simples, uma vez que olfato e paladar levam
o intérprete a sensações e situações bastante internalizadas. O diálogo acontece pela
120
semelhança e pelo toque. O tato é um sentido primordial para o contato e relaciona-se
diretamente às sensações olfativas de toque no nariz, bem como às sensações gustativas de
textura, calor, volume dos alimentos em relação à língua, aos lábios. Principalmente as
sensações evocadas pelo paladar, no diálogo com outros corpos se faz pela pele. As
sensações vividas na boca são transferidas para o contato. Quando em formação solo, essas
sensações aparecem em relação ao contato de partes do corpo, com o chão e nas
diferenciações de tônus muscular. As percepções olfativas se apresentam mais relacionadas
ao fluxo dos movimentos, bem como uma relação de sustentação ou aceleração do tempo.
Consciência, interpretação e criação
Sintetizo a partir destas três categorias consciência, interpretação e criação
as principais questões discutidas sobre a dança contemporânea a partir de nossa tessitura
aromática saborosa pesquisada:
No que se refere à consciência corporal, é cada vez maior e mais
pormenorizado o conhecimento específico da dança em relação ao corpo. O conhecimento
científico aproxima-se, neste aspecto, da arte por meio da anatomia, da fisiologia, da
cinesiologia. A dança aproxima-se também de outras áreas do conhecimento como a
medicina, a fisioterapia e a psicologia, entre outras. O conhecimento do próprio corpo é
dever não apenas do professor de dança ou do coreógrafo, mas do bailarino. A atuação no
desenvolvimento de um corpo alinhado a partir de uma perspectiva ideal de alinhamento
anatômico, que antes poderia ser imposta de fora para dentro, desenvolve-se de dentro para
fora, pela consciência do próprio bailarino e de forma aparentemente natural. Os
mecanismos de educação do corpo não se limitam aos momentos criativos ou aos
laboratórios, mas se estendem ao cotidiano dos indivíduos numa modificação permanente
pela eterna vigilância aos detalhes. Como elucida Bertazzo (1998), o preço da liberdade é a
eterna vigilância.
O conhecimento do próprio corpo desenvolve um aprofundamento no que se
refere à materialidade da própria dança. Quanto maior o conhecimento, maiores as
121
possibilidades encontradas para os movimentos. O conhecimento do corpo também revela
aspectos da história de vida de cada um, aspectos que enriquecem a interpretação dos
bailarinos. À medida que se conscientiza de seus limites, possibilidades, origens,
características anatômicas, o bailarino pode se utilizar criativamente destes elementos no
processo criativo.
Na cena contemporânea a questão parece ser sempre mais: mais possibilidades,
mais agilidade, mais flexibilidade, mais criatividade, mais controle. Ficam, contudo, alguns
questionamentos:
No que se refere à interpretação encontra-se a pluralidade de técnicas e a
constante ânsia por novos conhecimentos, o que provoca um híbrido intérprete. Ou seja, um
intérprete que coleciona experiências em muitas técnicas, mas não apresenta sólida
formação em nenhuma, o que provoca uma crise de identidade. Ou será a fragmentação a
identidade da dança contemporânea?
Por um lado, o excesso de diferentes técnicas parece desenvolver uma
superficialidade interpretativa, mas por outro democratiza a escolha de uma técnica mais
condizente a cada processo criativo, da mesma forma como constrói na versatilidade uma
identidade interpretativa. É claro que, para vivenciar substancialmente uma técnica, o
bailarino precisa ser capaz de incorporá-la e não apenas de reproduzir sua imagem
superficialmente. Fica, portanto, a questão: a dança contemporânea consegue uma vivência
técnica múltipla e substanciosa?
Ao desenvolver um processo criativo em grupo com bailarinas do terceiro ano
da graduação da dança da Unicamp
38
pude perceber que, apesar de demonstrarem um
considerável conhecimento técnico, esse conhecimento não permitia que se expressassem a
partir da perspectiva dos sentidos. Percebo que uma busca expressiva específica, exige um
38
Este processo de pesquisa, que durou uma média de dois anos, teve início com o desenvolvimento de
disciplinas que ministrei na Unicamp, sob a coordenação da Profa. Dra. Elisabeth Zimmermann, nas
disciplinas de “Tópicos especiais em Dança” e “Psicologia do desenvolvimento aplicado às artes”. Teve
continuidade, a partir do interesse das alunas dessas disciplinas, primeiramente num grupo de pesquisa sobre a
improvisação pelos sentidos e depois enquanto processo criativo. A criação se desenvolveu com nove
bailarinas, e depois, pela necessidade de horários e ensaios, ficou com sete. Contudo, o envolvimento
desenvolvido no trabalho foi tão integrador que, mesmo o participando como intérpretes, as bailarinas que
saíram participaram da produção como sonoplastas, contra-regras etc. Os detalhes de todo esse processo
podem ser conferidos no anexo “Variações sobre chocolates”.
122
preparo corporal e um treinamento técnico específicos. A improvisação também era
extremamente difícil, principalmente enquanto resultado final de momentos em cena. A
perspectiva do foco na materialidade do movimento também foi motivo de angústia pela
necessidade de referências externas e anteriores em termos de leituras e significações.
Deixar o sentido ser gerado pelo próprio movimento, o que me parecia até mais orgânico
para um bailarino, foi uma vivência difícil de compreender, em alguns momentos. Tudo
precisou ser elaborado e incorporado na prática diária de cada laboratório de criação e a
cada apresentação.
De qualquer maneira, talvez estejamos em meio a um processo histórico ainda
inacabado e, por isso, impreciso, mas o simples fato de novas técnicas serem aceitas e
utilizadas permite a expressão criativa de diferentes corpos e estilos. A simples convivência
das diferenças numa pluralidade formativa, sem a obrigatoriedade do uníssono, sem a
obrigatoriedade da homogeneidade, vislumbra como momento enriquecedor à arte do
movimento.
Finalmente, no que se refere à criação, a dança contemporânea valoriza a
investigação, a pesquisa, a presença de cada corpo intérprete criador na busca criativa por
sentidos significativos fundados na materialidade própria à linguagem coreográfica. A
história e a trajetória de cada corpo são importantes na investigação criativa da cena. É
necessário ao bailarino mais do que simples habilidade técnica para realizar um movimento
específico. O bailarino precisa ser profundamente conhecedor de sua estrutura corporal,
precisa conhecer a concretude dinâmica de seus movimentos na sua anatomia, precisa ser
capaz de articular seus movimentos mais complexos no espaço em suas diferentes
configurações, precisa compreender seu corpo como volume integrado a um espaço maior.
A amplitude das informações aumentou muito. Resta saber se também se aprofundou.
Na linguagem contemporânea os papéis se relativizam. As interfaces acontecem
não somente entre linguagens artísticas, mas entre funções artísticas. Um diretor de teatro
pode dirigir uma obra de dança, um músico pode atuar coreograficamente, o intérprete cria,
coreografa, o coreógrafo interpreta, recria, reelabora, dirige... as fronteiras se expandiram.
123
A partir das categorias apresentadas contextualizo meu próprio trabalho de
criação e metodologia em dança contemporânea:
No que se refere à consciência corporal, as propostas metodológicas de dança
pelos sentidos permitem um profundo conhecimento da percepção das sensações corporais
a partir dos sentidos, desenvolvendo uma amplitude maior na escuta do próprio corpo, seja
para ampliar o conhecimento da materialidade corporal, seja para tornar o corpo mais
receptivo a possíveis estímulos criativos, seja para desenvolver movimentações, seja para
aprimorar um repertório de movimentos estabelecido. O que ocorre nesse processo é que
as categorias em questão não acontecem separadas, mas estão integradas. Contudo, é
possível a ênfase ou o início de um processo a partir de uma das três. O fundamental
quando se menciona a consciência corporal no trabalho pelos sentidos é salientar sua
importância neste processo, mais especificamente no que se refere às possíveis relações
entre a percepção dos sentidos com as estruturas corporais, a dinâmica do movimento e o
relacionamento do corpo com o espaço a partir desta perspectiva. Iniciar o processo de
conhecimento pelos sentidos é uma escolha, uma possibilidade apresentada como ponto de
partida ao processo criativo como objetivo final. E essa escolha se justifica pela
proximidade da percepção dos sentidos à materialidade própria da linguagem da dança.
Conhecer o próprio corpo é compreender suas próprias relações, consigo e com o mundo. E
essas relações do corpo são percebidas por meio dos sentidos. É através do olfato e do tato
que sentimos os primeiros carinhos maternos. É pelo paladar que experimentamos o leite.
Pela audição reconhecemos as vozes daqueles que amamos. Pela visão nos damos conta do
mundo à nossa volta. Estar atento aos sentidos permite, assim, o resgate dos conhecimentos
mais profundos da história de um corpo: lembranças, memórias, as percepções mais
concretas em relação a si e ao ambiente, a atualização constante da imagem corporal...
Gosto, forma, cheiro, textura e som são elementos que o bailarino pode utilizar de sua
percepção corporal para desenvolver sua linguagem kinética.
A perspectiva metodológica dos sentidos envolve o desenvolvimento de uma
consciência, em geral, pouco desenvolvida. A consciência em relação aos cheiros e aos
sabores, a como eles se relacionam com o corpo, como transformam a mobilidade e o
alinhamento, como desenvolvem as relações entre tempo e espaço. Focalizar no olfato e no
124
paladar valoriza também, além dos movimentos do próprio rosto, os movimentos da coluna
e da pélvis, extremamente relacionada com a boca. A boca relaciona-se e modifica todo o
corpo. Segundo Bertherat (1997),
Ela detém a chave do equilíbrio neuromuscular do
corpo todo. Se os maxilares se trancarem, a musculatura do
pescoço, das costas ou das pernas será vítima dessas contrações e
terá grande dificuldade para soltar-se. /.../ A boca é forte,
musculosa, muito sensível. Sempre à frente desde o primeiro
instante de nossa vinda ao mundo, ela prende, suga, come, beija,
profere palavras. É violenta, é muito suave, é tudo ao mesmo
tempo. /.../ Fronteira entre o exterior e o interior, nossa boca
também é fronteira entre o consciente e o inconsciente
(BERTHERAT, 1997, p. 22).
O favorecimento de um contato extremamente íntimo e interno consigo a partir
de percepções orais permite tocar em questões simbólicas profundas em relação a
sentimentos; não apenas sentimentos relacionados à emoções (felicidade, tristeza, medo,
nojo, euforia, ansiedade), mas sentimentos relacionados ao mais fundamental: existir.
Como definimos anteriormente, os chamados sentimentos de fundo, que podem se
revelar agradáveis ou desagradáveis e estão relacionados às sensações articulares,
musculares, viscerais, à postura, ao tom de voz, à nossa imagem corporal (DAMÁSIO,
1996 e 2000).
No que se refere à interpretação, dançar através dos sentidos foi uma pesquisa
que iniciei a partir das referências de Laban e seus fatores do movimento, mas que vai além
deste método, atribuindo aos sentidos uma perspectiva própria de trabalho. Buscando
ferramentas para chegar às qualidades dos fatores do movimento de Laban, encontrei nos
sentidos uma alternativa facilitadora e ampla. A utilização proposta pelas metodologias
desenvolvidas permite uma integração na utilização da improvisação como possibilidade
criativa interpretativa. Estes aspectos nunca estão separados neste trabalho, apenas são
enfatizados em cada parte do processo. Percebemos que desenvolver um processo criativo
por meio desta metodologia exige a improvisação como preparo corporal, como
possibilidade intermediária de exploração criativa e também como recurso final
125
interpretativo em cena. A improvisação, neste caso, pode ser utilizada como preparação
corporal no desenvolvimento qualitativo e espacial dos movimentos através dos sentidos;
pode ser utilizada como criação na exploração de movimentos para uma composição
coreográfica, e pode ser utilizada como fim interpretativo em jams ou espetáculos
roteirizados em improvisação. Interpretar neste sentido sempre pressupõe criação e
concentra a capacidade de transformação e consciência do movimento e do espaço no
momento da cena.
Nesse processo outros conhecimentos foram sendo incorporados, as interfaces
se apresentaram em referências como Bartenieff, Vianna, Bertazzo, yoga, Graham, Laban,
Humphrey, entre outras. Na utilização criativa em improvisações e composições
coreográficas, a utilização dos sentidos foi se definindo como método e as teorias de Laban
sempre se mostraram como instrumental facilitador e decodificador dos movimentos por
meio de suas qualidades e das relações destas com os sentidos.
No contexto metodológico pesquisado, interpretar não resulta em representar
algo, ou substituir algo por um movimento na tentativa de uma tradução. Interpretar na
perspectiva dos sentidos significa desenvolver conscientemente movimentações geradas por
este estímulo e esse processo resultar em expressão simbólica. Assim, quando desenvolvo
uma matriz de movimento a partir do cheiro e do sabor, não busco referências externas ao
que foi utilizado, muito menos representar um conteúdo previamente determinado, o
movimento pesquisado a partir das sensações vividas, conscientemente reconhecidas,
exploradas qualitativamente, espacialmente, é que resulta de forma tal a revelar o conteúdo
significativo. O movimento é que revela o símbolo, não o buscamos, permitimos que se
manifeste, o concretizamos pela objetivação do conteúdo subjetivo sentido a partir das
percepções olfativas e gustativas. Interpretar e criar, desta maneira, valoriza a linguagem
mais própria à dança, sem intermédios. Valoriza, primeiramente, a concretude da forma
estética mais pura em movimento.
No contexto criativo, a pesquisa e investigação da própria materialidade física
ficam evidentes nas propostas metodológicas pelos sentidos. Pesquisar a percepção de um
sabor, por exemplo, encontrando sua relação com os movimentos gerados e suas qualidades
e concretização espacial, permite o desenvolvimento criativo e investigativo a partir do
126
próprio corpo e do próprio movimento. Nesse processo, não modelos externos. Não é
possível ao coreógrafo ou ao diretor prever ou impor uma percepção ao intérprete. A
percepção é única e acontece de acordo com a história, a memória e o relacionamento do
individual com o coletivo, do corpo com o mundo, do eu com o outro. Assim, o intérprete
nesta metodologia é atuante enquanto criador. As fronteiras se expandem, as relações
concretizam-se em múltiplas interfaces do intérprete criador.
Pelo sabor da lentidão
Iniciei o presente capítulo refletindo sobre a velocidade dos corpos na
contemporaneidade e a fragilidade da superficialidade e da falta de identidade que essa
agilidade acarreta. Finalizo, pois, estas reflexões considerando a possibilidade de processos
de criação e propostas metodológicas que têm como opção a lentidão. A lentidão como
escolha possível de uma arte que se quer significativa. A lentidão como sinônima de sabor,
de saber, de saborear. A perspectiva de uma linguagem que se constrói aos poucos e no
profundo, pouco a pouco assimilado, conhecimento do corpo. Saber que se constrói na
vivência mais íntegra e não apenas no acúmulo quantitativo de uma multiplicidade de
informações. Corpo que não busca ansiosamente a superação constante de seus limites, mas
que os reconhece, considera e, sob essa perspectiva, gera a transcendência. Mais uma vez,
recorremos às conceituações de Sant’Anna (2001) para compreender a lentidão como
/.../ a espessura do tempo, o peso de sua presença, a riqueza ofertada
pela variação de seus ritmos. Nesse aspecto a lentidão também se
aproxima do ócio, definido como espaço-tempo singular, irredutível
ao dever de descansar para o trabalho ou ao direito de usufruir do
lazer após o labor (SANT’ANNA, 2001, p. 18-19).
Olfato e paladar são sentidos que se aproximam de questões espessas e
essenciais à vida. As primeiras relações que desenvolvemos com o mundo são feitas através
da boca e do nariz, no reconhecimento do cheiro da mãe, no sugar o leite, na apreciação
primeira dos objetos a partir desse contato essencial. A boca sintetiza uma capacidade de
integração do corpo, bem como a respiração também. Com a boca comemos, falamos,
beijamos, sorrimos. Os músculos envolvidos nessas ações, muitas vezes não conscientes,
127
podem acarretar a tensão desnecessária nas conexões com rias outras partes do corpo. A
utilização consciente dessa musculatura promove ampla liberdade e fluência dos
movimentos pelo corpo, principalmente no que se refere à coluna e à pélvis. Da mesma
forma, a atenção a cheiros diversos promove a consciência de diferentes formas do fluxo
respiratório pelo corpo; tempos respiratórios, ampliação da capacidade respiratória, e a
integração desses movimentos promove o alinhamento postural pela relação direta com a
coluna vertebral (LEAL, 2006).
A consciência gerada pelo trabalho específico com olfato e paladar também se
relaciona à consciência mais profunda da existência, os denominados sentimentos de fundo.
Sentimentos relacionados a sensações e imagem corporal, relacionados às articulações,
pele, musculatura... Sentimentos de fundo e consciência estão intimamente vinculados, se
os favorecemos, valorizamos a consciência corporal e vice-versa. Olfato e paladar também
estão vinculados aos sentimentos de emoções (DAMÁSIO, 1996 e 2000). Enfatizar estes
sentidos permite, assim, acessar os sentimentos mais profundos enquanto possibilidade
expressiva simbólica. A metodologia desenvolvida, neste sentido, valoriza a consciência
das sensações olfativas e gustativas e da materialidade dos movimentos decorrentes destas,
permitindo o aflorar inconsciente e simbólico dos sentimentos numa dimensão coletiva.
O tato como conseqüência aos sentidos do olfato e do paladar aparece como
possibilidade de integração corporal e também como possibilidade de diálogo corporal por
meio do contato. As sensações táteis dos estímulos olfativos e gustativos são comumente
transferidas para a pele e para a musculatura nas relações do corpo consigo, com o chão,
com o corpo do outro, com o ambiente. O tato acrescenta informações importantes e
relevantes ao olfato e ao paladar e demonstra ser um sentido facilitador na comunicação da
intencionalidade da sensação subjetiva objetivada em forma estética.
O recorte da presente pesquisa demonstra a opção por um processo integrado
entre técnicas de preparação corporal, interpretação e criação catalisado pelas percepções
dos sentidos e pelo conhecimento lento e contínuo que este processo faz germinar. A
linguagem da dança pelos sentidos promove a presença, a atitude sem ansiedade, a
construção passo a passo, a reflexão do saber, o sabor sentido e significativo.
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163
165
Transcrição seletiva de entrevista feita com Lenira Rengel – 07/2007
O que eu tenho feito muito com o Laban é juntar com ciências cognitivas,
filosofia, neurociências. /.../ o movimento é um sexto sentido. /.../ Você tem toda razão de
falar em olfato e paladar quando fala que a fluência é integração, que fluência é peito, a
mãe, o cheiro do leite e vai aprendendo a sugar, a mamar, depois a comer. Tem várias
habilidades que você vai conquistando partindo da fluência, depois pro espaço, peso e
tempo. Quando você vê esses neurocientistas falando de desenvolvimento aparece um
pouco isso mesmo, daria pra gente pensar em Laban, pra fazer essa relação com os
fatores. Acho que tem tudo a ver essa sua relação, mas tem que tomar cuidado para não
separar muito. Dar uma atualizada na Kestenberg, na Mônica (Serra) /.../ Daí ele (Alain
Berthoz) vai falar assim, tem os receptores da pele, que aí tem a ver com o tato, mas a gente
recebe pela pele, ele chama isso dos órgãos receptores. Ele fala assim, tem a propriocepção,
não é uma auto-percepção, ele acontece nos ligamentos, ele vai falar de todo sistema
vestibular, então ele vai questionando isso de um sentido. /.../ Ele vai colocar isso no
movimento. /.../ Ele vai falar que a percepção é uma ação. /.../
O espaço com a visão é super importante, mas o espaço precisa do sistema
vestibular, então vai precisar de audição também, porque eles estão funcionando juntos. /.../
Acho que é legal você definir isso de significação porque pra muita gente esse
teu trabalho /.../ esses processos que você vai tendo são espécies de significações, nem que
elas não tenham um nome, nem que não seja consciente /.../ Eu tomo café vai me mexer
com estômago, pra você vai mexer com a coluna, são percepções de certo modo já
significadas, é um tipo de significado que ficou pro teu corpo /.../ às vezes a gente não
consegue se livrar disso, o que é bonito de entender é que o corpo tem certas coisas
inconscientes que mesmo que você queira estar se desligando, elas vêm, porque taí, na
célula. /.../ Outro tipo de significação. /.../ É um tipo de significação. /.../
Essa memória que você deixa, ela está sendo refeita, ela é hoje. Você se remete
lá, mas você traz essa memória para hoje. Ela sempre é refeita. /.../ O tempo real é a tua
lembrança do passado, é o que você projeta no futuro. /.../
166
Ela está sempre (a fluência). Por isso ela é a cor mesmo, ela é emoção
mesmo. E ela te sempre fluindo. /.../ O fator mais complicado de entenderem /.../
Antes da primeira guerra em 1912 /.../ quando o Laban em 1912 conheceu a
teoria do Jung, o Laban falou fluência é emoção... quando o Laban teve contato com a
teoria do Jung é que ele formatou os fatores. /.../ “As tentativas e começos intuitivos do
Laban encontraram sua confirmação em Zurich, durante os anos da primeira guerra
mundial ele encontrou o psicólogo analítico Carl Gustav Jung, que tinha acabado de
estabelecer seus próprios métodos em contraste com a psicanálise do Freud” (lendo a
referência da Valerie Preston Dunlop). /.../
Eu improviso muitos anos. /.../ uma coisa que a gente fazia com a D.
Maria desde 77, antes eu fazia performance /.../ antes de ir para a D. Maria tinha
esse conceito de happening, de performance, como uma coisa que acontecia na hora /.../ Eu
já tinha essa prática de chegar na hora e improvisar. /.../ Essa coisa de saber trabalhar com o
acaso. E fui para a D. Maria e comecei a perceber que a improvisação era para criar, não
era para jogar fora. /.../ A improvisação, ela é a própria dança, você pode dançar
improvisando e isso eu faço desde os 18 anos. /.../ A improvisação pode ser um fim, você
vai ver música, Jam Session, é improvisado, é um espetáculo. Agora essa improvisação ela
vira um fim se você tem repertório, se você tem bagagem /.../
Como eu vou explicar para um leigo que a dança você também cria? Laban.
Laban no sentido que ele codificou coisas que qualquer corpo faz. /.../
Tendo um repertório de espaço, de diversas qualidades de movimento /.../ uma
coisa mais ampla, com mais nuances /.../ a improvisação tem que ter repertório, vocabulário
/.../ ela desenvolve a habilidade técnica, não chega a ser uma técnica /.../ se a gente falar
entre aspas técnicas de improvisação /.../ você pode criar um caminho para improvisar, eu
criar outro caminho /.../ agora você tem uma cnica de Martha Graham /.../ a técnica é
aquela. /.../ A improvisação vai te dar riqueza espacial, vai te fazer viver com o acaso...
167
Transcrição seletiva de entrevista feita com o Duofel – 12/03/2007
Fernando: Primeiro, é o seguinte, os dois são autodidatas, então todo nosso processo
começou já com a criação, procurando como se faz para tocar um instrumento, descobrindo
os acordes, e montando a nossa própria estrutura /.../ Essa foi a nossa principal
identificação; a criação. Antes de sermos instrumentistas, nós somos compositores. /.../
Luiz: É um certo mistério de como as coisas vêm. A gente não tem conhecimento de como
elas vêm. É como receber uma carta, sabe? Ela entra, ela chega, você pega, começa a ler a
carta, mas alguém escreveu, mandou, foi ao correio. Teve uma rie de coisas antes disso.
Eu acho que a música também, ela deve vir de algum lugar. /.../ O primeiro dado
importante, você estar aberto, nosso caso a gente realmente escuta ou escutou todo tipo de
música /.../ porque todas essas músicas, elas vão mexer em algum lugar do seu corpo, e
também tem a questão dos sentidos. A música ela entra, você escuta, você registra,
registrou no seu computador auditivo, guardou aquela música, guardou acordes, guardou
sonoridades, e quando a gente começa a tocar, essas coisas vêm. /.../ O exercício diário de
estar com o instrumento é, na verdade, o poder da criação. /.../ O mais importante é você
estar aberto para receber todo tipo de informação.
/.../
A nossa improvisação é diferente da improvisação jazzística, a gente nunca cria um tema
para improvisar, a gente vai criando partes das músicas. Às vezes pode ser uma simples
linha harmônica e melódica que surja /.../ e um vai propondo, o outro vai propondo /.../ é
dessa maneira que ela evolui.
/.../
Fernando: /.../ Sempre tem uma estrutura para você improvisar. Tem que ter uma certa
estrutura ou uma sugestão /.../
/.../
Luiz: Se eu for escrever isto daqui eu não vou escrever (uma música especifica sobre
Manaus que demonstram), cada dia sai de um jeito. /.../ A gente marca umas coisas, de
saída e de volta.
168
Fernando: /.../ de tanto você tocar, aquilo se torna uma coisa, se torna uma estrutura. É
normal se fazer 10 compassos, ou 11, ou 9 /.../
Luiz: /.../ É uma coisa que a gente sente. Tá longo, tô cansado /.../ Agora você sabe qual é a
medida mesmo? A medida é quando a gente leva para o palco.
/.../ é uma questão de interação você e a platéia /.../ você tem que ter um repertório para
isso. /.../
Fernando: Esse CD que nós fizemos foi justamente para mostrar o momento de criação,
esse experimenta /.../ para mostrar como é que a gente cria nossas músicas /.../ procurando
/.../
Luiz: /.../ é como a gente trabalha, é tocando, buscando afinação, tá lá.
/.../
No processo eletrônico (do CD Experimenta) é o contrário, os DJs propuseram as batidas,
sem nada; tum, tum, tum...daí a gente trazia pra cá, ouvia aquilo,criava células, não a
música inteira, partes de música pra eles picotarem.
/.../
Fernando: Coisa na música eletrônica que nunca rolou, fazer uma música eletrônica sem
bateria, sem nada, feito com arco de rabeca, violão de 6 /.../ é uma música eletrônica,
que é uma música diferente, não tem nem nome pra colocar /.../
Luiz: Esse é o lado criativo maior. A gente chama de improvisação acho que a partir de
alguma coisa /.../ em prefiro falar na criação, a criação é que vem juntando pedaços,
juntando coisas, improvisação penso diferente, improvisação talvez é uma coisa de e
gente se utilizar do nosso conhecimento que a gente tem de harmonia, de melodia, de
ritmos e fazer realmente alguma coisa que a gente pode fazer agora /.../ vamos misturando,
vamos improvisar. Mas com o objetivo de improvisar simplesmente sem saber o que vai
ser.
/.../
Luiz: Quando surge a música, ela sugere alguma coisa, isso parece aquilo. /.../
Fernando: /.../ O que pra você pode se revelar diferente.
/.../
169
Luiz: Agora no trabalho dos meninos de rua não.
Fernando: Foi sugestivo. /.../ Contar história em cima dos títulos para as pessoas se
localizarem. Isso aqui “Pé de moleque”, o moleque pedindo no sinal vermelho. /.../
/.../
Luiz: A música é um negócio muito sério. Ela é capaz de destruir gerações. /.../ A música
ruim /.../ a música entrou, você registra. E ela é capaz de te perturbar. /.../ É um negócio
sério, é um negócio muito sério. A música que é feita para se fazer dinheiro, ela tem um
perfil. A nossa música, a gente descobriu isso muito cedo, nosso negócio não era fazer
dinheiro, era fazer música. E uma busca por uma música nova. /.../
/.../
Nós fizemos uma super universidade, que foram três anos com o Hermeto Pascoal, fizemos
universidade da música com ele. Com ele a gente viu esse universo criativo /.../ o convívio
com o Hermeto pra gente foi uma universidade, que a gente que nunca fez nem uma escola
de música teve essa graça. /.../
Fernando: Por sermos autodidatas a gente tinha essa medo /.../ se sentia inferior e ele
mostrou exatamente o contrário, é como você escrever uma carta, você sabe falar, você
fala, você sabe escrever, você escreve. /.../ E que tudo é possível dentro da música, nada é
impossível. Então pra gente foi ótimo, deu a segurança que a gente precisava.
/.../
Luiz: uma coisa mecânica na criação que eu acho que é o cotidiano, que é a disciplina. Isso
é fundamental. É igualzinho fazer academia. Você vai lá, você não tem músculo nenhum,
você todo raquítico, começa a puxar todo dia, se você pára, cansa, perde. Então essa
disciplina na criação é super importante. Você abrir o teu espaço e abrir a mente, no caso de
quem é um instrumentista, estar com o instrumento. É assim que você vai entender a
coisa.
170
Transcrição de entrevista feita com Sílvia Geraldi – 03/2008
01. Como você define improvisação a partir da sua vivência criativa.
Na minha vivência artística, a improvisação foi na maior parte das vezes
utilizada como procedimento criativo, sendo aplicada em diferentes fases do processo de
criação: como estímulo à imaginação e à sensibilidade (“abertura” de canais de percepção);
como forma de investigar e/ou potencializar idéias e motivos inspiratórios ligados a alguma
temática ou assunto; para levantamento de material (vocabulário de movimentos,
principalmente; mas também sonoridades, elementos cênicos etc); e para resolver
“problemas” (testar novas soluções cênicas, por exemplo; ou para composição de elementos
coreográficos e dramatúrgicos). Algumas vezes (embora com menor freqüência), utilizei
também a improvisação durante o momento da performance, como forma de
“acontecimento cênico”, e não apenas como meio de “processar as informações” que serão
organizadas previamente à cena.
Gosto muito da definição do Alwin Nikolais para improvisação. Para ele, a
improvisação é, ao mesmo tempo, “coreografia do instante” e “performance do instante”.
Assim, compor e performar (“interpretar” o que se compõe) são ações intimamente ligadas.
Mas sem dúvida a improvisação é, a meu ver, um modo particular de fazer dança, que exige
um tipo de preparo e disposição interna diferenciados por parte daquele que a realiza; são
habilidades específicas que devem ser desenvolvidas pelo dançarino-coreógrafo, como, por
exemplo: a capacidade de estar atento ao momento presente (escutar e colocar-se em
situação de “jogo”), de julgar aquilo que se está construindo no momento mesmo da sua
produção, de realizar escolhas “de significado”, isto é, que conduzam a uma lógica de
composição/performance capazes de comunicar intenções específicas.
02. Qual a relevância da improvisação nos seus processos criativos? Como você a utiliza?
Quais são seus elementos de referência para improvisar?
A improvisação foi adquirindo um papel cada vez mais importante nos meus
processos de criação. Creio que sua utilização varia de acordo com a pesquisa que eu estou
encaminhando. Não é uma forma fixa.
171
Por exemplo, no meu espetáculo-solo “Butterfly” (2000), a improvisação foi
utilizada do começo ao fim do processo, desde o momento em que entramos no estúdio
para criar o espetáculo até o momento da cena, porque acreditamos (o diretor e eu) que ela
era um elemento importante na dramaturgia da obra. Então, utilizamos a improvisação para
jogar com idéias, situações, vocabulários de movimentos, palavras, músicas, objetos de
cena; e também para organização final da obra. Ela era inclusive usada para momentos de
aquecimento corporal dos ensaios ou preparo técnico específico (especialmente nos
primeiros meses do processo de montagem do espetáculo), antes de iniciarmos a etapa de
criação propriamente dita.
Como disse antes, os elementos de referência usados para a criação do
espetáculo foram variados: a ópera “Madame Butterfly” foi sem dúvida o principal
elemento; porém, utilizamos também obras literárias (em especial, os Fragmentos de um
discurso amoroso” de Roland Barthes); boleros e guarânias, como elemento sonoro que
dialogava com a ópera; a palavra falada, tomando como base a poesia de Ana Cristina
César que acabou fazendo parte da cena; a seleção de alguns objetos que essa mulher
manipulava (alguns acabaram sumindo de cena e transformando-se em gestual ou ações
corporais; outros sobreviveram e entraram na cena concretamente). Após uma fase inicial
de levantamento, quando algum vocabulário começou a se constituir, a improvisação
passou a ser usada para manipular esse repertório em situações ou circunstâncias
específicas, determinadas previamente; ou ainda para desdobramento do material em novas
possibilidades. No momento posterior, a improvisação entrou como recurso organizativo
das partes ou cenas do espetáculo – aí jogávamos com pedaços maiores e mais estruturados.
Por fim, a improvisação persistiu durante a execução cênica as partes ou cenas
mantiveram-se fixas, mas dentro de cada cena o vocabulário era organizado no “calor” do
momento, sempre a partir de regras específicas que dessem conta de manter em foco a
busca expressiva.
Numa criação posterior (2003), parti de um conto Adolfo Bioy Casares “La
invención de Morel” como assunto ou inspiração para nova montagem. As obras
172
principais de referência são sempre “motivose são usadas livremente, nunca pretendi que
fossem traduções, releituras ou mesmo adaptações de uma linguagem a outra (literatura
para dança, ópera para dança etc). Tento sempre capturar elementos essenciais, orientadores
da criação, que me interessam. É claro que entra um ingrediente importante: a minha
subjetividade, como eu olho para aquele assunto específico, que perspectivas dele me
interessam como artista, mas também como ser humano, isto é, como aquilo se liga de
alguma forma às minhas vivências humanas. Então, creio que tem um ingrediente
fundamental que articula todos esses materiais que sou eu mesma minha história,
biografia, subjetividade que aquela “assinatura pessoal” à criação, que é o que me
interessa.
Lembrei de uma frase bonita do Tarkovski, o cineasta russo, que ficou muito na
minha cabeça durante o último processo de criação que eu vivi, que é assim: É errado
dizer que o artista ”procura” o seu tema. Este, na verdade, amadurece dentro dele como
um fruto, e começa a exigir uma forma de expressão”. É mais ou menos isso que sinto e
que vivo durante a criação de uma obra. E como nem sempre isso está “pronto” dentro da
gente, a improvisação vem dar aquela força para explorar novas possibilidades de tratar de
determinado tema ou assunto, em suas diferentes dimensões.
03. Você considera a improvisação uma técnica? Por que? Explique.
Creio que a improvisação possa ser encarada como técnica ou técnicas (no
plural) num certo sentido técnicas de criação, nesse caso. Mas creio que ela seja mais que
um meio para alguns artistas; ela é a própria obra se fazendo, ela é a linguagem em
produção no tempo-espaço do aqui-agora, ela é um “fim” nesse caso (mesmo que a obra
nunca fique pronta e seja diferente a cada vez). Como eu respondi na primeira pergunta: ela
pode ser “acontecimento cênico”, dança/arte que se inventa durante sua própria feitura.
Entretanto, extrapole ou não o simples caráter técnico, a improvisação está sempre
relacionada a procedimentos técnicos, a “regras” ou “leis” de construção que são da ordem
do fazer técnico. Penso que a formulação dessa definição esteja intimamente relacionada à
aplicação que a improvisação terá no processo de cada artista.
173
Independente disso, do ponto de vista da minha experiência artística, a
improvisação “aparece” conforme a obra “pede”. Não acredito que exista apenas uma
forma de fazer ou criar dança e gosto de ter liberdade para usar ou não procedimentos
artísticos conhecidos ou experimentar outros modelos. Então, o proceder vai se definindo
durante no processo, não há um “a priori” e é diferente para cada nova experiência criativa.
174
Transcrição de entrevista feita com Valéria Franco – 04/2008
01. Como você define improvisação a partir da sua vivência criativa.
A improvisação no meu trabalho é uma ferramenta que age como elemento de
simbiose das linguagens da dança do teatro e da música, tanto na construção de uma
dramaturgia espetacular, quanto no experimento e aperfeiçoamento corporal cênico.
No improviso cênico existe um jogo de percepção e adaptação constante, em
que as histórias se constituem (diálogo corpóreo musical cênico) a medida que nascem os
elementos surpresas e que estes são resolvidos.
02. Qual a relevância da improvisação nos seus processos criativos? Como você a utiliza?
Quais são seus elementos de referência para improvisar?
A improvisação é parte intrínseca do meu fazer artístico. Eu utilizo-a em todos
os aspectos do meu trabalho criativo, desde a concepção até a apresentação de um
espetáculo. É através dela que se dá toda a pesquisa, e é onde se estabelece o diálogo
corpóreo musical cênico.
Utilizo o exercício do improviso não somente como aprimoramento técnico,
mas também como constante construção de um repertório de movimento, que não deixa
morrer a vivacidade criativa que se faz necessária.
A improvisação não se restringe ao aspecto da criação de um espetáculo, ela é
parte integrante do resultado artístico, utilizo- a principalmente como estética e linguagem .
A dramaturgia dos espetáculos que crio nascem dos laboratórios de improviso,
onde muitas vezes é estabelecido diálogo entre as linguagens. Os espetáculos são
compostos mesclando coreografia e momentos de improviso. As coreografias não são
totalmente marcadas, ou seja, sempre dentro do roteiro fica um espaço para o improviso.
Esses momentos de improviso são o lugar onde se estabelece um vínculo maior com a
platéia.
Os elementos básicos que trabalho além da linguagem corporal própria são:
- Percepção (do público, do espaço cênico, e dos artistas em cena envolvidos),
- Jogo ( captar, receber e responder ao jogo que se estabelece em cena ( incluindo platéia )
175
- Elemento surpresa ( resposta e diálogo, como lidar com a adversidade).
- Relação músico música instrumento dança ( a idéia é que a cena seja construída
através do diálogo destes elementos e linguagens . A cena acontece sem que nenhuma
linguagem ou elemento se sobreponha ou exerça domínio sobre a outra).
03. Você considera a improvisação uma técnica? Por que? Explique.
Sim, eu considero a improvisação uma técnica. Utilizo-a para a pesquisa na
construção de uma linguagem corporal própria. Neste processo, o fazer é técnico
porque exige uma consciência corporal e um aprimoramento do controle muscular
para a execução das variadas dinâmicas de movimento, ou seja, não somente
domínio total do movimento, mas domínio deste *repertório de movimentos.
Quando o improviso vai para a cena, ele continua sendo técnico porém se torna uma
linguagem de comunicação .
quando me refiro a repertório, quero dizer uma combinação infinita de
possibilidades de movimentos conscientemente executados.
Outras trocas profissionais e consultas foram feitas contudo não foram aqui
transcritas por não terem sido utilizadas diretamente como referência bibliográfica da tese.
176
Recursos para exploração de movimentos
a) em diferentes partes do corpo, usando o corpo como um todo
O primeiro recurso que utilizo no desenvolvimento de frases de movimento é o
que se apresenta espontaneamente com mais freqüência, levar a movimentação
experimentada em uma célula coreográfica para novas partes do corpo ou para todo o
corpo. Em minha experiência com essa metodologia, percebi que os estímulos olfativos,
por sua relação com a respiração, costumam gerar um movimento integrado a todo o corpo,
em que os movimentos essenciais de contração e expansão são freqüentes. O contato de
elementos gustativos com a língua costuma ser reproduzido isoladamente em outras partes
do corpo e em outras possibilidades de contato: do corpo com o chão ou com a parede, com
outro corpo, com o próprio corpo. Quando o que se leva em conta como célula coreográfica
é a ação de engolir e a sensação de como um alimento entra no corpo, a tendência de
exploração volta a ser integrada no corpo todo, mas pode ser desenvolvida perifericamente
nos membros também. Um exemplo muito freqüente é a ondulação do corpo a partir do
engolir, que pode se desenvolver de forma central a partir da coluna, bem como pode se
desenvolver nos braços, por exemplo.
b) com diferentes ações corporais
Este recurso exige, por parte do intérprete criador, o reconhecimento da ação
em que se desenvolve sua célula original para a exploração de novas possibilidades com
novas ações corporais. É possível agregar uma ação ao que já se desenvolve ou desenvolver
a proposta coreográfica em uma ação diferente. Por exemplo, a um movimento de rotação
da cabeça, pode se somar um giro do corpo todo, agregando ações corporais. Ou, num outro
exemplo, o movimento inicial de contração e expansão, modifica-se para um salto. É
importante notar que os recursos se entrecruzam, ou seja, ao modificar uma ação, outras
partes do corpo são mais solicitadas, modifica-se a relação com o espaço, as qualidades do
movimento se alteram. O reconhecimento do recurso utilizado na exploração como
motivador das alterações facilita a consciência do movimento e permite ao intérprete
criador a clareza de seu desenvolvimento criativo.
177
c) em diferentes relacionamentos com o espaço: níveis, planos, direções,
cinesfera, solo, duo, grupos.
Este recurso localiza o relacionamento do movimento com o ambiente. Seja
com o espaço externo, interno, definindo a cinesfera do movimento; seja com o outro,
promovendo um duo, um solo, o contato, seja com deslocamento nas mais variadas
dimensões e direções espaciais. Aqui são utilizados os níveis alto, médio e baixo, os planos
horizontal, vertical e sagital, e as direções dimensionais- frente, atrás, alto, baixo, esquerda,
direita em todas as combinações entre duas (direções diametrais) ou três direções (direções
diagonais), por exemplo, alto-direta, baixo-esquerda-frente, num total de vinte e sete
direções de orientação espacial (LABAN, 1990).
No reconhecimento do desenvolvimento do movimento em níveis, planos e
direções definem-se relacionamentos com o próprio espaço vital, a cinesfera, em diversas
amplitudes, bem como as possibilidades solo, duos, trios e grupos.
d) com diferentes qualidades corporais
Neste recurso, promovo a análise das qualidades do movimento apresentado na
célula coreográfica e as possibilidades de exploração e investigação seja por semelhança,
acentuando as qualidades percebidas; seja por oposição, experimentando o antagonismo
extremo em termos qualitativos, seja adicionando novas qualidades e mantendo outras com
novas combinações. As qualidades do movimento, definidas por Laban (1978), a partir dos
fatores, que são trabalhadas:
- fluência: de livre a controlada
- espaço: de direto a flexível
- peso: de firme a leve
- tempo: de súbito a sustentado
As combinações possíveis a serem trabalhadas:
d) Estados expressivos (combinações das qualidades de dois fatores)
e) Impulsos expressivos (combinações das qualidades de três fatores)
f) Impulsos de ação ou ões básicas do movimento (combinações entre os
fatores, excluindo a fluência) (FERNANDES, 2002).
178
e) Complementação
A complementação pressupõe uma continuidade do processo coreográfico no
mesmo sentido, como o nome já diz, um trabalho complementar em termos argumentativos.
O exercício coreográfico desta variação é somar elementos a uma dinâmica específica e
definida, adicionando elementos que possam acrescentar informações coreográficas de um
mesmo teor, aprofundando a argumentação criativa estabelecida. A complementação
facilita o processo de reconhecimento temático do movimento por parte do público,
ampliando a informação coreográfica pela afirmação, pela adição, pela concordância, pela
semelhança, pela complementaridade.
f) Antagonismo
O antagonismo é um processo praticamente inverso ao da complementação.
Neste caso a variação coreográfica se constrói pelo contraste, pela oposição. A
argumentação coreográfica apresentada ganha força e expressividade através de uma
contraposição que traz elementos opostos em termos coreográficos. O antagonismo pode
gerar uma estrutura AB, ou seja, um primeiro momento em uma dinâmica específica
seguido de um segundo momento que se contrapõe ao primeiro. Esta estrutura
argumentativa pode ser finalizada com uma retomada do primeiro argumento
caracterizando uma estrutura ABA; pode somar os argumentos, caracterizando uma
estrutura ABA+B; bem como pode gerar uma terceira e conclusiva argumentação,
caracterizando uma estrutura ABC. O antagonismo é um importante elemento na
constituição da dinâmica de um espetáculo, por gerar o conflito, a oposição, pode se
desenvolver em clímax coreográfico. No processo de construção de uma coreografia, como
sugere Humphrey (1959) em sua clássica obra “The art of making dances”, devemos
sempre fugir da monotonia, buscando contrastes. O antagonismo pode auxiliar muito, neste
sentido.
179
Interpretação criativa pelos sentidos
O desenvolvimento corporal desta possibilidade metodológica segue a dinâmica
‘usual’ de uma aula de dança - chão, centro, diagonal-, com a integração da improvisação e
da composição em sua estrutura. Esta proposta surgiu com o objetivo de integrar o
desenvolvimento técnico à criação artística, utilizando a improvisação como estrutura de
investigação técnica e como sustentação e fundamento para o desenvolvimento criativo. A
dinâmica prática apresentada a seguir é mais linear do que a aplicação real da metodologia.
A divisão e a seqüência das práticas, da maneira como são apresentadas, visam facilitar a
compreensão, mas não ocorrem de forma apartada. As partes vão sendo integradas, tem
ênfases diferenciadas de acordo com o desenvolvimento de cada dia. A apresentação de
uma metodologia visa ampliar as discussões sobre a poética da dança e também contribuir
às buscas de profissionais da área, mas toda e qualquer metodologia é um referencial vivo e
flexível, se constrói no presente e no encontro de cada indivíduo consigo e com a
coletividade em que se aplica.
A prática é ancorada, gradativamente, pelos sentidos. E aqui, mais uma vez,
ressaltamos que os sentidos foram sendo associados a determinadas partes e numa
determinada ordem que foi mais pertinente aos objetivos previstos. Contudo, outros
caminhos são possíveis, bem como a utilização de vários sentidos ao mesmo tempo,
ampliando as possibilidades interpretativas e criativas. Neste caso, a intenção foi começar
aos poucos, de dentro para fora. Iniciando o conhecimento a partir de dentro do corpo, a
partir dos sentidos do olfato e do paladar. Levando esse conhecimento para fora, para o
mundo, para a relação do corpo com o espaço, utilizando a visão. Permitindo a observação,
o encontro e o contato com o outro através do tato. E, finalmente, criando uma dinâmica
com o tempo, a partir das referências sonoras.
Trabalho de chão: olfato e paladar
A dança moderna descobriu e afirmou a utilização do chão no trabalho
corporal. Em oposição a um trabalho idealizado e etéreo, com a utilização das pontas no
balé clássico romântico, a dança moderna valoriza o contato com a terra, com o humano e
180
visceral. Na dança contemporânea podemos verificar, ainda, uma larga utilização do chão,
principalmente no que se refere à possibilidade de conscientização corporal e também no
desenvolvimento fluido de movimentações em diversos apoios, rolamentos, suspensões,
entre outros movimentos. Nesta proposta metodológica ressalto a importância do chão, seja
como ponto inicial de contato consigo, desenvolvimento da consciência corporal, seja como
possibilidade mais ampla de apoios do corpo, facilitando desenvolvimentos investigativos.
O trabalho corporal começa pelo chão.
Essa é a primeira fase, a da germinação, a da entrega. Só
quando descubro a gravidade, o chão, abre-se espaço para que o
movimento crie raízes, seja mais profundo, como uma planta que
cresce com o contato íntimo com o solo.
Só dessa forma surge a oposição, a resistência que vai abrindo
espaço entre os ossos, seguindo sua direção nas articulações. À
medida que vou sentindo o solo, empurrando o chão, abro espaço
para minhas projeções internas, individuais, que, à medida em que
se expandem, me obrigam a uma projeção para o exterior
(VIANNA, 2005, p. 93-94).
Inicio o trabalho com a valorização da consciência corporal através da
percepção do próprio corpo; suas partes, o contato com o chão, a percepção das estruturas -
líquidos, sceras, ar, ossos, músculos e pele-, o espaço interno e externo. Desenvolvo
pequenos exercícios de alongamento e alinhamento, e então, inicio o trabalho investigativo
dos movimentos a partir dos sentidos do olfato e do paladar. A dinâmica acontece não
necessariamente nessa ordem, muito menos de maneira fragmentada. Não existe
alongamento sem alinhamento, os exercícios estão integrados. Da mesma forma, a própria
dinâmica investigativa do movimento a partir do olfato ou do paladar pode gerar os
alongamentos, alinhamentos e percepções necessárias ao desenvolvimento da consciência
corporal. O que acontece, por vezes, é uma ênfase consciente em determinado objetivo em
um ou outro momento.
181
Estrutura e investigação
A dinâmica do trabalho de chão acontece numa integração entre estrutura e
investigação , ou seja, a experimentação dos sentidos do olfato e do paladar gera uma
estrutura a ser estudada e desenvolvida. Num novo momento, um tema de movimento
estruturado gera novas investigações por meio dos sentidos. A investigação sensorial traz
uma necessidade de domínio técnico de uma estrutura, bem como uma estrutura técnica
ancora, condições e base de sustentação para que uma investigação mais aprofundada
possa acontecer. Nos referimos à estrutura para ressaltar um padrão de movimento a ser
aprendido e desenvolvido. A investigação enfatiza a pesquisa individualizada dos
movimentos a partir dos sentidos. O fluxo entre uma possibilidade e outra é contínuo e
permite diversas variações.
Investigação
Dou início à investigação pelo aprofundamento da respiração conscientemente
e pela percepção olfativa de um elemento. A entrada e saída do ar com este cheiro
específico geram um primeiro movimento decorrente da maneira de respirar o perfume do
elemento em questão. Esta modificação da respiração causada pelo cheiro do elemento é o
estímulo inicial para a investigação de possibilidades de movimento provocadas por esta
percepção. Pelo envolvimento do sentido do olfato e pela estrutura orgânica da respiração
são recorrentes movimentos como expansão e contração, dilatação e aproximação,
sustentação e soltura, projeção e recolhimento. Os aromas mais agradáveis resultam em
movimentações curvilíneas, arredondadas e espiraladas, além de balanços e movimentações
pendulares. Costumam apresentar grande projeção e entrega. Os cheiros desagradáveis
provocam a fragmentação e constrição dos movimentos, contração da musculatura,
expulsão, recolhimento e pausa do movimento.
Após a exploração dos movimentos gerados pelo cheiro, acrescento a
informação gustativa do elemento em questão. O paladar, pela percepção tátil da língua,
agrega diferentes tonicidades ao movimento induzidas por esta percepção. Muito
comumente aparecem movimentos de contato do corpo consigo e com o chão,
reproduzindo a sensação tátil entre a língua e o elemento trabalhado. De aspereza, de
maciez, de dureza etc. Aparecem ações como esfregar, tocar, acarinhar, chacoalhar. O gosto
182
em si provoca movimentos semelhantes em relação ao olfato no que concernem sabores
agradáveis ou desagradáveis. Contudo, os movimentos mais internos e os próximos ao
corpo são mais enfáticos principalmente na região do centro de gravidade e na região do
rosto e pescoço. Olfato e paladar resgatam movimentações extremamente internalizadas,
que se desenvolvem de dentro para fora. O olfato, através da respiração, pode projetar e
expandir o movimento pelo volume de ar. O paladar parece entranhar a sensação no corpo,
preenchendo, integrando, tencionando.
Temas de estrutura
Ao trabalho investigativo do movimento a partir do olfato e do paladar no chão
somo um trabalho técnico de chão, que denomino estrutura. Esta estrutura objetiva não
apenas o desenvolvimento técnico de conteúdos específicos de um trabalho de chão em
dança contemporânea, mas também alicerçar e desenvolver tecnicamente o conteúdo
investigado tendo os sentidos do olfato e do paladar como estímulo. Desta forma, estrutura
e investigação, técnica e improvisação, interpretação e criação alimentam-se mutuamente.
A investigação gera a pesquisa da estrutura, o conhecimento técnico gera as possibilidades
criativas. Para o trabalho de chão consideramos algumas ações de movimento como temas
básicos para definição de estruturas. Estes temas foram sendo definidos pela exploração de
elementos através do olfato e do paladar, bem como por elementos técnicos encontrados no
trabalho de chão da dança moderna e contemporânea: contração e expansão, enrolamento e
espirais da coluna, balanços, soltura e sustentação, projeção do movimento, deslizamento,
apoio e rolamentos. Estes temas podem ser colocados no trabalho como uma seqüência
fixa a ser memorizada, compreendida e repetida e, a partir do domínio técnico da mesma
pode-se iniciar a investigação. A investigação, da mesma forma pode sugerir um tema
como balanço, por exemplo, e este ser desenvolvido em uma estrutura.
Cinesfera reduzida: visão
Denomino como cinesfera reduzida o trabalho comumente chamado de centro
em uma prática de dança. Prefiro esta denominação por compreender este trabalho como
um intermediário entre uma preparação mais internalizada, cheia de apoios facilitadores da
consciência corporal, no chão; e o trabalho mais expansivo no espaço com deslocamentos.
183
O trabalho de cinesfera reduzida atua no alcance do corpo a partir de seu centro e através
de seus membros para todos os lados e para todos os níveis, sem deslocamentos ou
projeções maiores. Neste momento o intérprete criador, que compreendeu e se
conscientizou de seu corpo e suas estruturas de dentro para fora, começa a compreender
este corpo em relação ao mundo, portanto, em relação ao espaço, e, primeiramente, a partir
do próprio espaço vital, ou seja, sua cinesfera. No desenvolvimento humano, é através da
focalização de forma mais ou menos direta que se inicia o relacionamento com o espaço
circundante. E esta focalização acontece através da visão. Por isso, neste momento da
prática da interpretação criativa, enfatizo a visão como sentido sensibilizador entre
investigação e estrutura.
Investigação
A investigação a partir da visão pode ter um elemento como estímulo um
objeto, uma imagem fotográfica, uma pintura, uma pessoa-, ou pode ter simplesmente o
próprio espaço como imagem estímulo. Através da focalização de uma parte do estúdio
como uma grande parede branca, por exemplo, o intérprete pode desenvolver movimentos
ampliados, buscando os limites de sua cinesfera no plano vertical. A interpretação de uma
imagem é absolutamente subjetiva, mas como nos sentidos do olfato e do paladar, podemos
observar algumas tendências. A mais recorrente na visão é a imitação da forma focalizada.
Assim, quando focaliza o encontro da parede com o chão, o intérprete tende a reproduzir a
dobra sugerida em seu corpo. Para uma imagem ampla, a recorrência do intérprete é
ampliar seu espaço corporal. Ao visualizar curvas, o corpo busca o curvilíneo em suas
possibilidades motoras. E ainda que não seja solicitado aos intérpretes se olharem, pouco a
pouco os movimentos se repetem, um começa a imitar o movimento do outro. A mimese
imagética é instintiva, mas nem sempre consciente. Trazer à consciência a imagem do outro
é mais uma possibilidade de investigação do movimento a partir da visão.
Temas de estrutura
O trabalho de chão a partir do olfato e do paladar valoriza mais o centro do
corpo, a coluna, a pelve, a cabeça, com pequenas projeções dos movimentos a partir desse
centro e da respiração. Ampliando esta possibilidade, em cinesfera reduzida, a partir da
estruturação do interno e central acontecem as projeções através dos membros e para fora.
184
Como uma somatória. De dentro projeto para fora, da projeção trago o movimento
novamente para o centro. As estruturas temáticas mais recorrentes neste sentido são a
extensão e o flexionamento, o enrolar e desenrolar, o rotacionar e o espiralar, o
desenvolver, o lançar, o equilibrar e desequilibrar, o elevar-se.
Além destas ações como estruturas temáticas, utilizo a ossatura do corpo como
ponto de partida para a percepção das direções no espaço em todos os níveis. A estrutura
temática valoriza as ações selecionadas em conjunto a uma exploração espacial a partir da
sensação direcional dos ossos do corpo. Mais uma vez, estrutura e investigação se
complementam. A investigação pode, por meio de uma imagem visual, suscitar uma ação,
uma direção. Estes elementos podem servir de base para o desenvolvimento de uma
estrutura. Da mesma maneira, uma estrutura elaborada pode incentivar investigações a
partir de determinadas ações e direções ósseas, a partir de sensações visuais.
Cinesfera ampliada:audição
Denomino cinesfera ampliada o trabalho mais conhecido em dança como
diagonal. Como o próprio nome indica, neste momento, o movimento, que foi sendo
construído a partir de dentro do corpo e tomando proporções um pouco maiores em
cinesfera reduzida, encontra o ápice do desenvolvimento espacial com deslocamentos
contextualizados no tempo e no espaço.
Em cinesfera reduzida, valorizo a percepção espacial a partir do próprio corpo.
Em cinesfera ampliada, valorizo a percepção do espaço externo e do relacionamento com o
ambiente e com o outro, numa dimensão de tempo.
Investigação
A investigação neste momento é estimulada pela audição. Ao perceber
estímulos sonoros diversos como ruídos, vozes, percussão, música, o intérprete vai
construindo sua relação com o espaço através do tempo. Por exemplo, um som muito agudo
e curto como de um apito, repetido várias vezes, pode estimular o intérprete a investigar o
espaço por meio de saltitos em tempo rápido. Um longo som grave pode direcionar o
intérprete a um rolamento de duração alongada pelo chão. O som permite uma decisão do
movimento em relação ao espaço. A percepção provocará a dinâmica entre uma decisão em
185
relação ao tempo: súbita, de duração alongada, breve, lenta, acelerada, de velocidade
moderada etc.
Temas de estrutura
Os deslocamentos espaciais em tempos diversificados são a temática mais
recorrente na estrutura da cinesfera ampliada. Em termos de ações corporais utilizo
caminhadas, rolamentos, quedas e recuperações, giros, espirais e saltos. A compreensão de
variações de tempo também integra a estrutura não apenas na diferenciação entre lento e
rápido, acelerando e desacelerando, mas também na compreensão de ritmos variados como
binário, ternário, quaternário, pulso, ritmo constante e variável. O ritmo se faz presente
desde o início da prática e tem na respiração e na pulsação poderosas referências internas
de percepção e conscientização rítmica. Contudo, a dimensão mais externalizada entre
espaço e tempo é mais valorizada no último momento da prática em um desenvolvimento
progressivo: consciência de si, do próprio corpo e seu espaço vital, conhecimento espacial a
partir do corpo e suas possibilidades direcionais e dimensionais, desenvolvimento do
movimento no espaço e no tempo.
Tato: um sentido integrador
A percepção tátil pode ser utilizada em qualquer momento da aula e, por isto,
considero o tato um sentido integrador. O tato permite e incentiva o relacionamento. Pode
ser utilizado de forma mais intimista, no início do trabalho de chão, através de massagens
ou pequenos contatos que favorecem a percepção de si através do outro. Pode favorecer o
desenvolvimento de algumas investigações relacionadas ao paladar, somando à percepção
do sabor, a percepção e utilização das qualidades do contato de algum elemento com a
língua: a aspereza, a rugosidade, a maciez, o volume, a dureza, a flexibilidade. Algumas
ações da estrutura do chão podem ser investigadas pelas qualidades táteis da língua
transferidas ao toque com o outro em ações como acariciar, pressionar, encostar, esfregar,
deslizar...
Em cinesfera reduzida o contato pode favorecer explorações do espaço próprio
e do outro, do espaço coletivo. A sensação da pele, dos músculos e dos ossos do corpo do
186
outro pode facilitar a percepção do corpo como um volume no espaço, dando dimensões às
direções espaciais.
Em cinesfera ampliada o tato abre os caminhos para o relacionamento e o
contato em variações com deslocamento espacial, trazendo a referência da textura, da
tensão muscular no tempo trabalhado pela audição. O tempo do contato, o tempo sem
contato, as várias possibilidades solo e coletivas.
Tabela 6 - Estrutura e investigação.
Investigação Temas de estrutura
Trabalho de chão
Olfato e paladar
(tato)
contração e expansão,
enrolamento e espirais da
coluna, balanços, soltura e
sustentação, projeção do
movimento, deslizamento,
apoio e rolamentos
Cinesfera reduzida
Visão
(tato)
extensão e flexionamento,
enrolar e desenrolar,
rotacionar e espiralar,
desenvolver, lançar,
equilibrar e desequilibrar,
elevar-se
Cinesfera ampliada
Audição
(tato)
deslocamentos, caminhadas,
rolamentos, quedas e
recuperações, giros, espirais
e saltos
187
Descrição dos processos criativos:
Amargo Perfume
O primeiro processo criativo que desenvolvi para esta pesquisa durante meu
doutoramento foi Amargo Perfume, e teve como estímulo inicial o cheiro e o gosto do café.
No início, focalizar essas sensações foi bastante difícil, primeiramente porque os sentidos
dependem um do outro e acontecem integrados e, em segundo lugar, porque somos um
pouco presos ao excesso de valorização da imagem em nossa sociedade. Não vejo um
problema em trabalhar com a visão, mas nesta pesquisa busquei enfatizar o olfato e o
paladar que permitem uma investigação de linguagem da sutileza das nuances de fluência
no corpo.
Iniciei o processo degustando ca em alguns lugares fora do laboratório de
pesquisa; em cafés, restaurantes e bares. Desta forma, a imagem dos ambientes se ressaltou
em minha movimentação e até as denominações das células coreográficas foram
influenciadas pela imagem. Outros sentidos também apareceram, nas referências táteis,
auditivas. Por exemplo, por meio da imagem de círculos feitos pela xícara de café no jornal,
comecei a experimentar movimentos circulares. Ao sugar o café quente com cuidado,
desenvolvi uma dinâmica respiratória padrão para improvisações. A imagem dos círculos é
uma referência visual. Da mesma maneira, a informação tátil de pegar a xícara e cruzar as
pernas, limpar a boca com o guardanapo foram informações bastante marcantes num
primeiro momento. As percepções do cheiro e do gosto vêm integradas às percepções
visuais, ao som da xícara, da colher, ao toque quente ou frio, ao formato da xícara e da
cadeira. O processo é inteiro. Comecei usando aquilo que me era mais intenso e fui, aos
poucos, voltando a ênfase àquilo que é meu motivo primeiro: o olfato e o paladar.
Hoje, ao final de algumas criações feitas a partir deste método que venho
desenvolvendo, percebo que este solo tem no olfato seu primeiro e maior estímulo. E este
fato me levou a desenvolver um segundo processo criativo valorizando o paladar. Mais uma
vez, ressalto a integração destes sentidos. Não gosto sem cheiro, são percepções
extremamente integradas. Sem o cheiro somos incapazes de reconhecer o sabor de alguns
188
alimentos. No entanto, o movimento provocado pelo ar resulta bem diferenciado em relação
ao gosto, que se aproxima de percepções táteis. Com essa compreensão o segundo processo
criativo valorizou a percepção tátil do paladar e o contato ganhou importância.
Amargo Perfume teve início no desenvolvimento de algumas células de
movimento, pequenas estruturas motivadas pelo estímulo inicial. Na exploração destas
células o elemento da repetição e da construção circular de motivos coreográficos foi sendo
sedimentada. A repetição circular pressupõe que as frases de movimento desenvolvidas a
partir das células iniciais não terminam, mas voltam ao início. Associei este movimento ao
cheirar algo agradável. Inspiramos longamente aquele perfume e soltamos o ar
prazerosamente, várias e várias vezes de forma cíclica. Estas frases desenvolvidas
formaram uma primeira estrutura coreográfica – A.
Estrutura A
Nesta estrutura desenvolvi cinco frases coreográficas básicas, que foram
trabalhadas em sua sutileza qualitativa. A repetição transforma a forma através de variações
sutis das qualidades. Existe uma variação entre o controle e a entrega na estrutura das frases
de movimento, entre estas, e, até mesmo em relação à obra como um todo. Se pensarmos
em qualidade de movimento esta dinâmica varia entre fluência controlada e livre em
combinações variadas com peso leve, sustentação e aceleração do tempo, entre outras.
Primeiramente, a estrutura qualitativa é desenvolvida, é descoberta como uma
conseqüência da célula inicial de cada frase de movimento. A necessidade de espaço dessas
qualidades vai desenhando a relação da dinâmica com a estrutura no espaço enfatizando as
linhas retas nos momentos de controle e precisão dos movimentos e deixando as curvas
descreverem a entrega e a sensação de prazer.
Descrevo abaixo um pouco do conteúdo significativo das frases de movimento
para facilitar esta percepção. Contudo, é importante destacar que o conteúdo significativo é
o último a se revelar neste processo. Tudo se inicia pela percepção concreta do cheiro e da
materialidade qualitativa dos movimentos resultantes deste estímulo inicial. A configuração
das frases de movimento evolui e com a melhor estruturação coreográfica nascem os
189
conteúdos significativos. Polissêmicos, estes significados são apresentados aqui para
facilitar a compreensão da construção criativa.
Tagarelar com as mãos
Algo que se quer dizer, mas que é impossível. O gesto com as mãos mostra a
tentativa do dizer, e acima de tudo o prazer do dizer, de uma boa conversa no momento de
um bom café. Um gesto que revela o prazer do encontro ao tomar café. O segundo gesto
que se inicia com a mão, passando para o quadril, evoca um olhar mais direto, feminilidade,
uma paquera, um curtir-se. Uma lambida do pé no chão convida o espectador a chegar mais
perto e o tagarelar mais retilíneo e direto, próximo ao chão traz uma sensação de respeito e
entrega ao outro. Um braço que enrosca na cintura traz de volta essa expansão social para
si. Recolhe a expansão como num incômodo, um controle, mas bem estar consigo. O braço
esquerdo à frente em linha reta dá o limite da aproximação, breca, silencia.
Limpar a boca
Esta frase revela um despudor maior, uma entrega menos contida que a anterior.
Une-se a uma sensação de cansaço e a preguiça gostosa do não fazer, do deixar-se estar. As
lambidas do no chão revelam um certo deboche e um jogo de sedução. As linhas retas
dão lugar, gradativamente, às curvas. O toque do corpo consigo, evidencia a pele e revela
um caráter sedutor ao movimento.
Cansaço gostoso
A sensação de entregar-se ao cansaço evolui revelando a feminilidade da
entrega ao chão. clica, esta entrega com quedas e recuperações traz uma sensação de
alegria e dinâmica. O trabalho de apoios com o chão é enfatizado resgatando certo conflito
com as variações rítmicas. A repetição é trabalhada com a somatória gradativa dos
movimentos, que vão sendo repetidos com acréscimos. A repetição transforma por meio da
acumulação coreográfica.
190
Cheiro do café
Sensação de continuidade e prazer como se o cheiro do café fosse um carinho
na coluna. Tomar café é um momento espaço/tempo na vida. Um descanso, uma pausa,
onde o espaço/tempo se expande, fica em suspenso. As pessoas, assim, se encontram, se
ouvem, se relacionam. O movimento circular aparece na cabeça evoluindo para a pelve,
continuando em movimentos de ‘ s’ pela coluna e espirais do corpo no espaço.
191
Estrutura espacial
FRENTE
Figura 2 – Fluxograma 1 - Amargo Perfume, estrutura A.
A estrutura espacial desenvolvida aparece como conseqüência das dinâmicas
qualitativas trabalhadas. A primeira frase de movimentos é apresentada quase como uma
introdução usando o alinhamento diagonal com o desenvolvimento dos movimentos em
cinesfera mais contida nos pontos demarcados.
192
FRENTE
Figura 3 – Fluxograma 2 – Amargo Perfume, estrutura A.
Em seguida uma dinâmica em várias direções evoca, ainda de forma
introdutória, uma primeira célula de movimentos em improvisação.
193
FRENTE
Figura 4 – Fluxograma 3 – Amargo Perfume, estrutura A.
Finalmente, a primeira parte da estrutura A é desenvolvida com duas frases de
movimento e a seqüência de repetições e transformações qualitativas, valorizando no
deslocamento geral duas retas horizontais paralelas, numa sensação que se inicia pela
quebra do movimento controlado e evolui para a continuidade evocada pelas curvas
descritas pelo corpo num deslocamento horizontal e espelhado.
194
FRENTE
Figura 5 – Fluxograma 4 – Amargo Perfume, estrutura A.
A segunda parte da estrutura A se inicia após um breve silêncio da música e
uma entrada no fundo do palco. A variação se constrói mais enfaticamente do lado
esquerdo do palco, evocando o circular e espiralado.
A estrutura espacial em conseqüência às dinâmicas qualitativas evocadas pela
percepção olfativa reafirmam a dinâmica entre entrega, soltura e controle. Entre fluência
mais controlada e livre. Na estrutura espacial o controle evoca as linhas retas e mais o nível
alto, o que num crescendo de liberdade da fluência, gradativamente, vai trazendo as curvas,
os círculos, as espirais e a presença maior do nível baixo.
Após um período experimentando esta primeira estrutura surgiu uma
contraposição, cujo estímulo básico foi a degustação do café frio, formando uma segunda
estrutura – B.
195
Estrutura B
Aqui também quatro frases coreográficas básicas fundamentam uma estrutura
de repetição cíclica, mas a qualidade dos movimentos é contrastante à primeira estrutura
coreográfica A: aparecem graus variados de controle da fluência, peso firme e aceleração
e desaceleração do tempo. O espaço, em conseqüência à dinâmica qualitativa, evidencia a
reta e a concentração espacial nos momentos de controle e fluxogramas curvilíneos nos
momentos caóticos. Neste segundo momento, a significação evidencia a espera, a solidão, a
melancolia. Um encontro esperado, que não acontece. O desespero. O amadurecimento. O
controle da fluência em nuances variadas é predominante em uma combinação com peso
firme e variação de aceleração do tempo e desaceleração ao final da cena. A poética
esclarece a estrutura. E algumas associações significativas facilitam a descrição do processo
criativo:
A espera
A cena se inicia com a colocação de quatro xícaras no palco. Inicio a sensação
de espera ao colocar um vestido sobreposto ao que estou e sentar em uma cadeira. A
movimentação na cadeira inquieta-se gradativamente. A dinâmica repetitiva se transforma
com a aceleração do tempo. O desespero e o sufoco evidenciam-se na respiração ofegante e
presa no peito e nos ombros e seu auge acontece com o repentino levantar da cadeira.
Pequenos passos curvilíneos
Ao sair da cadeira o desespero da ausência cresce com uma dinâmica acelerada
em um caminhar confuso em linhas circulares. Uma movimentação em percurso caótico e
desorientado. A evidência está no caminho circular perfazendo todo o espaço e na
movimentação acelerada com algumas pausas bruscas e retomadas do caminhar curvilíneo.
O caminhar se constitui de passos pequenos e acelerados. O espaço de deslocamento vai se
reduzindo, pouco a pouco, para uma linha reta. Continua se reduzindo até focalizar num
ponto do espaço. O auge do conflito se desenvolve a partir de uma queda ao chão.
196
Luta e desespero
O debater-se, em saltos e alterações de apoios sobre o chão, marca o clímax
conflituoso da estrutura B da coreografia. Desenvolve-se em progressões de repetições e na
transformação desta repetição em uma pequena estrutura em improvisação a partir da
temática da cena.
Aceitação
O desfecho se na aceitação da ausência através da maturidade. As xícaras
são recolocadas frente ao público, testemunha da ausência vivida. O movimento
gradativamente desacelera, volta à posição sentada de espera na cadeira, mas dessa vez
evocando uma melancólica aceitação com dinâmica sustentada e leve.
197
Estrutura espacial
FRENTE
Figura 6 – Fluxograma 1 – Amargo Perfume, estrutura B.
A estrutura B se inicia com a colocação das xícaras num formato retangular,
uma a uma, por meio de entradas e saídas do palco pelas coxias laterais.
198
FRENTE
Figura 7 – Fluxograma 2 – Amargo Perfume, estrutura B.
Desenvolve-se na espera encenada na cadeira na frente esquerda do palco,
evoluindo para o caminhar acelerado e curvilíneo por todo o espaço.
199
FRENTE
Figura 8 – Fluxograma 3 – Amargo Perfume, estrutura B.
O espaço do deslocamento se concentra, pouco a pouco. Explode numa
variação em nível baixo marcada pelos apoios e saltos. E termina na desaceleração que
conduz a cena de volta à cadeira, com leveza de movimentos.
O desfecho final do trabalho retoma a estrutura - A modificada em
improvisação, destacando a fluência livre dos movimentos, a sensação de prazer e de
entrega, em motivos de movimento gerados pela estrutura A, com algumas
contaminações da estrutura –B , mas na qualidade de movimentos da estrutura – A.
Retomada do A
A retomada da primeira estrutura acontece numa cena criada em improvisação
por meio de motivos de movimento. Os motivos retomam movimentos da primeira parte do
espetáculo e destacam as características qualitativas deste primeiro momento, ressaltando
200
ainda mais as curvas, as espirais, a liberdade no fluxo dos movimentos, a entrega num
tempo mais acelerado ou sustentado. O público participa da cena neste momento, quando
ofereço xícaras de café. O espetáculo é finalizado com a degustação do café em cena e com
o desenvolvimento de movimentos em conjunto a essa degustação na cadeira. Todo o
deleite de saborear uma boa xícara de café é evocado em conjunto ao encontro com o outro
(o público) como parte desse prazer.
A estrutura em improvisação ressalta um amplo domínio do vocabulário criado
e a possibilidade de resgatar novos conteúdos e significações a cada cena, a cada execução,
a cada público envolvido. A flexibilidade, o fugidio, o efêmero são evocados no encontro
da interpretação com o espectador, na integração da técnica com a criação.
201
Estrutura espacial
FRENTE
Figura 9 – Fluxograma 1 – Amargo Perfume, retomada do A.
Mais uma vez, o espaço se desenha como uma necessidade imposta pela
expressão, pela dinâmica qualitativa dos movimentos. Como os movimentos se realizam
mais fluidos, livres, leves... a espiral e o circular mostram-se evidentes no espaço. Assim,
algumas regiões circulares são definidas espacialmente como territórios de determinados
temas/ motivos de movimento. O lado esquerdo do palco tematiza o cheiro e a fumaça do
café em movimentos circulares e serpenteados, por todo corpo a partir da coluna. No centro
do palco a projeção máxima em linha reta infinita do cheiro prazeroso que prolonga ao
máximo a inspiração se contrapõe à entrega ao chão, ao contato fluido cheio de apoios que,
de tempos em tempos, é suspenso por novo inspirar e projetar o movimento em linha reta.
O lado direito do palco tematiza os gestos relacionados ao tomar café, ao encontro com o
outro e consigo. Evoca certa sensualidade nas curvas desenhadas pelas mãos e braços pelo
rosto, envolta do corpo, no ar. Nesses pequenos movimentos forma-se a cumplicidade com
202
o público entre deslocamentos e gestos, retomando, resignificando conteúdos apresentados
e oferecendo um cafezinho, literalmente.
Dinâmica Qualitativa
O café é um momento de prazer, do permitir-se. Pode ser medíocre na pequenez
burguesa da etiqueta, dos gestos senhoris. Mas também pode ser elegante e sedutor. Os
gestos femininos ao mesmo tempo em que são belos e sensuais, demonstram um
fechamento, uma censura, o pudor, o controle. O sabor e o prazer do café, bem como o
tagarelar se contrapõem, em termos de qualidade, a esse controle. O controle está ligado
aos pequenos gestos de braço, precisos, ao cruzar das pernas, à mão posta à frente como em
sinal de parada, brecando um impulso de prazer.
O prazer, o permitir-se, a delícia, aparece no soltar lentamente a cabeça para
trás, nos movimentos fluidos e sustentados, nos movimentos de cansaço preguiçosos. O
controle não é exacerbado, aparece com sutileza, o que seu caráter dúbio, ambíguo, ao
mesmo tempo sedutor. Um não que quer dizer sim.
Em termos de qualidade, a primeira parte do trabalho apresenta nuances de
fluência livre e/ou controlada, peso leve e algumas sustentações de tempo. Na segunda
parte do trabalho aparece o controle da fluência em peso firme e a aceleração gradativa e
desaceleração do tempo. Os sabores mais prazerosos se associam às dinâmicas qualitativas
de deleite: fluência livre em tempo lento e peso leve. Os sabores desprazerosos são mais
associados ao controle da fluência em peso firme e tempo rápido. O espaço se concretiza
como conseqüência às qualidades desenvolvidas. Associando-se a reta ao maior controle e
as curvas à entrega, ao descontrole e também ao prazer.
Células e repetições
Optei por apresentar linearmente a estrutura de criação na seqüência de
execução do espetáculo para facilitar a compreensão do processo criativo. Contudo, o
203
desenvolvimento dos laboratórios de criação é mais caótico e mescla a experimentação da
improvisação como uma técnica corporal, como preparação qualitativa de repertório de
movimentos, como exploração de conteúdos para criação de frases coreográficas e como
fim criativo em si na criação de estruturas em improvisação como elaboração coreográfica
final. Iniciei as explorações de forma extremamente coreográfica, como que de trás para
frente. Primeiramente, criando uma célula coreográfica a partir da sensação da matriz
olfativa. A partir destas células e no reconhecimento de suas potencialidades para gerar
material coreográfico foram sendo criadas pequenas frases de movimento. Entendo como
célula um pequeno conjunto de movimentos com alto potencial de desenvolvimento
coreográfico e significativo. A matriz sintetiza a origem qualitativa e simbólica dos
movimentos a serem criados.
A partir das matrizes e células coreográficas foram geradas frases de
movimento precisamente coreografadas e cíclicas, ou seja, cujo fim é o próprio início. É
importante observar que a primeira estrutura a surgir depois das matrizes e células foram
frases coreográficas bem estabelecidas e não seqüências abertas à improvisação. As
seqüências em improvisação foram as últimas a serem geradas e colocadas no espetáculo.
Manter uma estrutura coreográfica em improvisação em cena requer muito material
coreográfico, muito repertório e, diferente do que possa parecer, muita precisão. Assim,
manter uma estrutura previamente coreografada é mais simples do que uma estrutura em
improvisação, que requer maior habilidade técnica e criativa.
A estrutura coreográfica também não se desenvolveu de forma linear. Frases
foram aparecendo sem conexão ou ordem, e a repetição constante e cíclica trouxe o
conteúdo de transformação qualitativa. Percebo, assim, que a repetição é parte importante
na metodologias pelos sentidos. Permite a conscientização e o reconhecimento das matrizes
de movimento, num primeiro momento. Permite o desenvolvimento técnico no percurso
qualitativo e espacial. E permite o desenvolvimento criativo com a determinação precisa
dos gestos, bem como sua reelaboração em novas nuances e significados. A repetição é
fundamental para o aprimoramento técnico, para o aprimoramento da percepção corporal de
forma complexa e permite a transformação dos movimentos pela sutileza das qualidades.
204
Trilha sonora e estrutura ABA
Amargo Perfume apresenta uma estrutura bem estabelecida coreograficamente
e, também, bastante utilizada musicalmente: a estrutura ABA, mais especificamente, neste
caso, ABA’. Esta estrutura apresenta um motivo expressivo, seu contraponto e, finalmente,
a retomada do primeiro motivo com algumas transformações. Em Amargo Perfume o
primeiro momento A apresenta movimentações que, de uma forma geral, evoluem de uma
fluência mais controlada a uma fluência mais livre. O tempo também tem uma evolução de
lento e pausado a moderado e contínuo. Espacialmente, movimentações mais direcionadas
e precisas, desenhando linhas retas, evoluem para uma dinâmica mais flexível e curvilínea,
espiralada. Em termos significativos, a coreografia apresenta, gradativamente, a entrega e o
deleite ao encontro com o sabor do café, com o outro. Iniciando a cena com certa contenção
de gestos e sedução, evoluindo, aos poucos, à entrega e ao prazer. A música acompanha a
estrutura coreográfica apresentando, neste momento, frases mais longas e de som contínuo
num tempo moderado.
No segundo momento coreográfico B, é feito o contraponto qualitativo à
primeira estrutura apresentada. Enquanto a estrutura A apresenta, gradativamente, a entrega
ao encontro, o deleite, em forma de fluência livre dos movimentos, a estrutura B apresenta,
gradativamente, a ansiedade e o desespero da ausência, por meio da fluência controlada, do
peso firme e da aceleração do tempo. O segundo momento coreográfico se inicia com o
controle dos movimentos de espera, precisos, transformando-se, pouco a pouco, em
desespero com a aceleração do tempo. Os movimentos crescem no espaço confuso e
multifocado em tempo ágil. O controle é novamente ressaltado com repetições gestuais
obsessivas que vão sendo reduzidas a um espaço retilíneo cada vez menor. O desespero
entra em clímax com o máximo da aceleração do tempo em intencionalidade firme. O
desfecho cênico reduz a tensão resgatando a aceitação melancólica com a desaceleração do
tempo, o deslocamento mais pausado e os gestos mais leves e cansados. A estrutura musical
acompanha, em termos rítmicos, todas as evoluções no que se refere à velocidade,
aceleração e pausas. As frases musicais são mais curtas. Iniciam com pequenos sons entre
longas pausas em silêncio e vão evoluindo, curtos, cada vez mais próximos numa dinâmica
205
quase percussiva. A dinâmica se suaviza assim como a coreografia numa estrutura mais
melódica e lenta.
A retomada do primeiro momento coreográfico é bastante peculiar. Seja na
música ou na coreografia as frases não são retomadas da mesma maneira. O que é
retomado, antes de tudo, é a qualidade apresentada na estrutura A. Na música, os sons mais
alongados e contínuos são retomados. Na coreografia, temas de movimento da estrutura A
servem de motivo para improvisações. Algumas influências da estrutura B aparecem,
porém transformadas qualitativamente pela estrutura A. Assim, predominam os
movimentos fluidos, curvilíneos, espiralados. A entrega, o deleite e a leveza dos gestos no
encontro cada vez mais próximo com o público na degustação do café servido. Dança e
música se encontram num paralelo qualitativo, proposto pelo movimento. Primeiramente,
toda a estrutura coreográfica foi composta. Depois, a trilha sonora foi criada em conjunto às
proposições dos movimentos. Durante o processo de criação, a música foi resignificando e
assinalando as qualidades dos movimentos numa troca entre som e gesto, que resultou no
espetáculo.
Figurino e adereços cênicos
Os elementos cênicos utilizados no espetáculo são uma mesa com cafeteira,
vidro de café, jarrinha de água, colher e xícaras, duas cadeiras e quatro xícaras que, no
segundo momento do espetáculo são dispostas no palco.
O figurino é composto de dois vestidos leves, desenvolvidos tendo em vista a
estrutura cênica. O primeiro vestido, rosa, ressalta a sensualidade, o prazer e a entrega
abordados na primeira parte do espetáculo. O segundo vestido, preto transparente, apenas
muda a tonalidade do primeiro, ressaltando o contraste do segundo momento do espetáculo
em relação ao primeiro, momento em que surgem como temática a ausência, a espera, a
angústia, a náusea, a solidão, a melancolia, o amadurecimento. Na retomada do A, apenas o
primeiro vestido é utilizado.
206
FICHA TÉCNICA:
Direção, concepção e interpretação: Patrícia Leal
Assistência de direção: Carla Morandi
Trilha Sonora: Marcelo Martinez Vieira
Figurino: Érica Almeida
Iluminação: Patrícia Leal, Carla Morandi e Rogério Candido
Sonoplastia: Carla Morandi
Fotografia: Carlos Milhor (pág. 01, 23 a 25) e Valéria Franco (pág. 23 a 34)
Filmagem e edição: kinostudio
Duração média do espetáculo: 27 - 30 min.
207
Intenso
Intenso foi desenvolvido de forma bem diversa de Amargo Perfume.
Primeiramente, pela ênfase olfativa do primeiro trabalho, tentei valorizar mais o paladar
nesta segunda obra. Iniciei os laboratórios de criação cheirando e degustando vinho tinto
cabernet, o que resultou no desenvolvimento das primeiras matrizes e células de
movimento. Num primeiro momento, a matriz mais marcante, bastante presente no
resultado criativo final foi um movimento de levar o abdome às costas numa inspiração,
resultado da sensação do amargo tanino pressionando a língua, uma referência também
tátil.
As sensações táteis do paladar foram bastante evidentes, as explorações de
movimento evocavam o contato entre partes do corpo mão, costas com o chão, pernas e
pés, pés no chão. Por isso, resolvi explorar o contato e convidei o bailarino Samuel Faez a
desenvolver laboratórios comigo. Foram dois meses de laboratórios em dupla, com muita
exploração do contato para o surgimento final coreográfico em formato solo.
Nos laboratórios em dupla exploramos elementos relacionados com o paladar
do vinho: uvas, canela, cravo, frutas. A maneira de experimentar os elementos também
variou. Primeiramente, cada um explorava o elemento sozinho, construía matrizes e células
de movimentos e mostrava ao outro. Depois, e o que foi mais marcante nos laboratórios,
começamos a experimentar um elemento, focalizávamos nas sensações do paladar e
imprimíamos na pele do outro as nossas sensações. Foi extremamente rico. As sensações
mais fortes do amargo na língua geravam o toque firme e muito presente, que ao se
desfazer fazia o outro derreter, cair ou simplesmente não querer sair do lugar. Criamos uma
séria de abraços decorrentes dessas sensações.
A canela teve uma particularidade por sua sensação refrescante que gerou mais
movimento, um toque que impulsionava o outro e nos levava a deslocamentos em espirais.
A uva, por conta do morder e da casca também provocou movimentações peculiares de
quebra articular e amassamento com as mãos e os pés.
Com o foco mais direcionado ao vinho percebemos que a qualidade do
movimento do outro em relação ao nosso toque geralmente é oposta. Por exemplo, se
208
recebíamos um toque forte, tínhamos a tendência a suavizar o tônus. Com essa percepção,
experimentamos manter a qualidade de toque que recebíamos, o que trouxe uma sensação
bastante intensa de resistência e sustentação.
Após os laboratórios em dupla, comecei a trabalhar com todos os elementos e
células em solo. A presença do outro, da figura masculina, contudo, ficou extremamente
marcante. Projetei essa presença física no corpo, na própria pele, no chão, internamente no
tônus muscular e em dois elementos cênicos que surgiram: um tapete e uma longa saia de
vários metros.
Diferentemente do trabalho com o café, o vinho não é um elemento que apareça
de forma direta em cena. Gerou a coloração de toda a cena em conjunto à temática
evidenciada no final do processo o amor compondo figurino e adereços cênicos em
vermelho. O vinho foi utilizado como elemento estímulo de criação, mas a referência
construída para a cena provém das sensações do paladar e seus desenvolvimento no corpo.
Intenso subdividiu-se em quatro momentos:
No primeiro momento desenvolvido inteiramente sob um tapete de 2m.
redondo. A presença da primeira matriz da sensação do amargo na língua é bastante
evidente com movimentos das costas colando no tapete. A sensação de presença e da pele
do outro é evocada pelo curtir cada toque das mãos com o tapete, das mãos com o corpo,
em movimentos contínuos, leves, extremamente sustentados. As pausas de movimento são
bastante utilizadas e vão diminuindo gradativamente com a aceleração lenta e progressiva
do movimento em conjunto a um desenvolvimento evolutivo no espaço. Começo a cena
deitada, enfatizando mãos, braços e cabeça; evoluo para a posição sentada com a presença
mais visível do tronco e depois de no nível alto aparecem mais movimentações das
pernas também. A cena tem uma estrutura dinâmica e espacial, mas permite variações de
movimentos em improvisação.
O segundo momento é bem coreografado e se constitui pela repetição
acumulativa de uma frase de movimento no nível baixo valorizando o apoio e o deslize do
corpo com sua própria pele e com o chão. O movimento acontece valorizando a linha de
fundo do palco e sua horizontalidade. O pescoço e a cabeça se destacam por movimentos de
curva e espirais que evoluem para outras partes do copo. É um momento de sedução, de
209
deixar-se à mostra, vulnerável, à entrega. O tônus provocado pelo vinho começa a aparecer
nessa cena com o trabalho firme de apoios e deslizes, que começa lento, mais contínuo e
vai acelerando em consonância com a trilha sonora. Uma transição no nível alto mantém a
horizontal no sentido contrário em um momento mais improvisado que valoriza o contato
das mãos e braços pelo corpo e as espirais.
O terceiro momento ápice, clímax do trabalho apresenta um tema mais
conflituoso, instintivo e paradoxal entre o frágil do humano e o instinto do bicho, o desejo e
a recusa, a força da suavidade e a fragilidade da força. A cena é inteiramente em
improvisação com temas de movimento que são desenvolvidos predominantemente na linha
de frente do palco, inclusive no tapete, numa dinâmica mais acelerada, controlada com
variações entre firmeza e leveza.
O quarto e último momento, finaliza a obra num roteiro também em
improvisação num deslocamento em diagonal do fundo do palco para o tapete no
centro/frente numa movimentação bastante sustentada em conjunto com a música, assim
como o início do espetáculo, mas desta vez com o toque incorporado na firmeza da
musculatura em fluência livre. A cena termina quando canto a canção tema “Azul”, de
minha autoria, sobre a qual toda a estrutura da trilha sonora foi desenvolvida. A canção
retoma, em termos de movimentos, a leveza do peso, principalmente nos braços.
210
Estrutura espacial
FRENTE
Figura 10 – Fluxograma 1 - Intenso, primeiro momento.
A estrutura espacial de Intenso acontece de forma crescente. Neste primeiro
momento se inicia quase no lugar e vai expandindo dentro do espaço do tapete nas
diagonais direita-frente/esquerda fundo e esquerda-frente/direita-fundo e nos veis alto
médio e baixo.
211
FRENTE
Figura 11 – Fluxograma 2 – Intenso, segundo momento.
O segundo momento explora mais predominantemente a horizontalidade das
linhas primeiramente em nível baixo e no sentido contrário em nível alto.
212
FRENTE
Figura 12 – Fluxograma 3 – Intenso, terceiro momento.
O terceiro momento é o mais expansivo em relação ao espaço e dinâmicas,
usando boa parte do palco ressaltados pelas elipses no fluxograma. A exploração evolui da
esquerda, passando pelo centro frente, centro fundo para a direita do palco. Os vários
planos são utilizados e destacam-se o alto e o baixo. A horizontalidade da linha de frente do
palco se sobressai.
213
FRENTE
Figura 13 – Fluxograma 4 – Intenso, quarto momento.
O último momento do espetáculo valoriza a diagonal fundo-direita/frente-
esquerda e, depois novamente o centro frente e o tapete. Neste momento uma grande saia
vermelha é estendida em cena em conjunto ao movimento, preenchendo o palco de
vermelho.
Dinâmica Qualitativa
A dinâmica qualitativa deste segundo trabalho cuja ênfase maior foi a
percepção do paladar com suas decorrências táteis demonstrou variações entre leveza e
firmeza de peso em sustentação de tempo com fluência livre nos momentos iniciais e finais
do espetáculo. E variações entre graus diversos de firmeza e leveza, controle e liberdade de
fluência e dinâmicas crescentes de aceleração do tempo, de forma constante no segundo
momento do trabalho e de forma mais variada no terceiro momento.
214
O olfato parece trazer uma referência mais direta à fluência dos movimentos
que no paladar também aparece mais combinada com o tato e, portanto, em termos
qualitativos com o fator peso. O sustentação do tempo e as pausas também mostraram-se
bastante evidentes e relacionadas com a sensação de curtir o sabor, o toque, o amor, a
sedução. O tempo também foi valorizado e integrado ao trabalho desenvolvido em conjunto
à trilha sonora.
Estrutura crescente em improvisação
A improvisação desde o primeiro trabalho coreográfico vem se fazendo cada
vez mais presente no resultado final em cena. Em Amargo Perfume apenas um último e
pequeno momento permitia uma estrutura em improvisação. Em Intenso apenas um
momento é totalmente coreografado. Os demais permitem a improvisação como resultado
criativo seja de forma mais estruturada com definições espaciais bem definidas, seja com
temas e regiões espaciais a serem exploradas de forma mais aberta. Este estrutura exige
uma presença muito intensa em todo o trabalho e um contínuo trabalho técnico de
improvisação em estúdio para manutenção e desenvolvimento constante de repertório. A
presença da platéia fica ainda mais marcante com essa liberdade, o que permite maior
interação e diálogo.
Trilha sonora e estrutura
A trilha sonora, desta vez, foi composta mais de perto, antes mesmo da
estrutura coreográfica ficar pronta. Assim, tanto os movimentos trouxeram elementos para
a música como as experimentações musicais modificaram a dinâmica dos movimentos.
A pesquisa musical começou com uma melodia “Azul”, de minha autoria, que
para mim, traduzia bem os aspectos simbólicos do trabalho. Ainda não estava definido que
ela seria usada diretamente no trabalho ou cantada, mas acabou virando um eixo sobre o
qual o músico Marcelo Martinez Vieira compôs arranjos e harmonias, bem como as
variações apresentadas na trilha. O instrumento utilizado para a trilha foi o viloncelo, bem
215
como alguns vocalizes. A dinâmica de silêncios e acelerações também ampliou de forma
significativa a amplitude qualitativa dos movimentos. A canção se fez presente no final do
espetáculo pelo canto ao vivo em cena.
As músicas foram gravadas de forma a não cristalizar o processo criativo, mas
apenas dando uma referência de tempo por onde eles pudessem se desenvolver. E o fato de
ter sido desenvolvida no estúdio, nos ensaios, repetições e experimentações nessa interface
entre música e dança, tornou sua presença em cena extremamente orgânica, como parte do
próprio corpo, integrada a ele.
Figurino e adereços cênicos
Os elementos cênicos utilizados no espetáculo são um tapete vermelho de 2m.
de diâmetro e composto de largos retalhos em malha, dando um efeito de tapete de rosas,
com bastante textura e variações cromáticas com projeção de luz; e também uma grande
saia de 5m por 4m., de um vermelho um pouco mais claro em cetim, que compõe o cenário
com o tapete, inicialmente disposta ao fundo do palco de forma compactada. Apenas na
última cena, a saia vai sendo aberta, preenchendo a cena em conjunto aos movimentos
realizados.
O figurino é composto por um vestido vermelho mais escuro que o tapete, de
uma única manga, com bastante textura com uma sobreposição de tecido rendado sob liso e
uma saia em várias camadas com bicos de diferentes tamanhos. O figurino destaca a cor
elemento primordial do trabalho o vermelho - e a feminilidade. A assimetria destaca a
pele de diferentes maneiras, em diferentes momentos. Permitindo em certos momentos o
mostrar a pele, em outros o esconder. As texturas foram trabalhadas para evidenciar as
sensações táteis trabalhadas a partir das referências do paladar.
216
Ficha Técnica:
Direção, concepção e interpretação: Patrícia Leal
Assistência de direção: Carla Morandi
Trilha Sonora: Marcelo Martinez Vieira
Figurino: Zel
Iluminação: Rogério Candido
Sonoplastia: Carla Morandi
Fotografia: Carlos Milhor (capa, pág.35, 94 a 98), Rodrigo Zanotto (pág. 92, 99, 102) e
Juliana Melhado (pág. 93, 100, 101)
Filmagem e edição: kinostudio
Duração média do espetáculo: 23 - 25 min.
217
Variações sobre chocolates
Variações sobre chocolates teve início a partir do interesse de alunas da
graduação das artes corporais em aprofundar a vivência na presente pesquisa a partir de
uma disciplina que ministrei Tópicos Especiais em Dança- em conjunto a minha
orientadora. A partir desse interesse formamos, no primeiro semestre de 2007, um grupo de
pesquisa em improvisação estudando as referências metodológicas que desenvolvi. O
chocolate apareceu como interesse e potencialidade de investigação. Desenvolvemos
laboratórios com pesquisa de matrizes, células de movimentos e Jam Sessions com esse
material pesquisado. Como já havia desenvolvido dois espetáculos solo e tinha interesse em
experimentar a metodologia de pesquisa em um grupo maior, convidei a turma para
continuar o trabalho no segundo semestre com o objetivo de desenvolver um espetáculo em
grupo.
Desta forma, no segundo semestre de 2007, iniciamos a construção desse
espetáculo com um grupo de nove mulheres. Meu intuito, enquanto diretora, era
desenvolver um espetáculo bastante aberto à improvisação, desenvolvendo apenas alguns
roteiros que nos guiassem em cena. As intérpretes criadoras mostraram, contudo, extrema
dificuldade em improvisar e manter esse material de improvisação em transformação
permanente. O desenvolvimento das matrizes de movimento a partir de chocolates variados
foi bem tranqüila, todas conseguiam retomar e focalizar nos movimentos decorrentes do
olfato e do paladar.
Neste trabalho surgiu a integração entre os sentidos no resultado criativo,
trabalhamos tanto o olfato, como o paladar e, em conseqüência o tato. Contudo, a
exploração dessas matrizes acontecia e se perdia. Ou ficava bastante limitada à própria
matriz, sem maiores desenvolvimentos. Percebi, com isso, a necessidade de criar algumas
variações mais compostas a partir das matrizes em pequenas composições em grupo. Isso
trouxe mais segurança e clareza dos movimentos para as intérpretes criadoras. Mas ao
voltar à improvisação aberta sentiam imensa dificuldade em desenvolver o material que
tinham, ficavam sempre repetindo os mesmos movimentos. Percebo que improvisar
218
definitivamente é uma técnica, a capacidade de desarticular, transformar, criar novos
vocabulários não é simples para quem não tem essa prática.
Outra dificuldade apresentada foi a relação com o espaço e com outras pessoas
no momento da improvisação. Era difícil fazer relações, perceber a hora de entrar e sair.
Muitas vezes o espaço se conturbava e, em outros momentos, não havia relações entre as
integrantes da cena. Percebi que o olfato e o paladar trazem o foco do movimento
extremamente para dentro e projetar isso espacialmente nem sempre é fácil. Trabalhamos
bastante com isso, desenvolvendo movimentações temáticas aos pares, usando toques e
direções orais.
Em novembro de 2007 apresentamos um pequeno processo deste trabalho no
Unidança a partir de um roteiro prévio. Neste roteiro tentei mesclar alguns momentos mais
compostos ou mais definidos espacialmente em improvisação, com momentos mais abertos.
Percebi que o resultado funcionou em termos de espetáculo, mas que as movimentações
concentravam-se muito no rosto, boca, mãos. Faltava chegar mais no corpo. Os momentos
improvisados de forma mais aberta mostraram um progresso no desenvolvimento dos
movimentos e da capacidade de improvisação, mas ainda as conturbações espaciais e a falta
de medida para as saídas e entradas foi um problema. Nos momentos abertos a
movimentação chegou um pouco mais ao corpo. Os movimentos do rosto mostraram-se
bastante interessantes, embora difíceis de iluminar. A interação com o público no final do
espetáculo foi bem recebida e rica em possibilidades para futuras explorações.
A partir desse primeiro processo organizei as modificações e desenvolvimentos
necessários para configuração e estréia do espetáculo em junho de 2008, agora com sete
integrantes. Houve a necessidade de ensaios mais prolongados para dar tempo à
improvisação e sua incorporação qualitativa aos movimentos. Iniciamos um processo de
descoberta em termos de significados e sentidos que nossas movimentações poderiam
gerar. Até então não pensamos conscientemente nisso, apenas nos movimentos e suas
qualidades em relação ao objeto chocolate, que se fez presente em cena. Percebi algumas
temáticas bastante abrangentes e reorganizei o roteiro do espetáculo a partir delas.
A primeira parte do espetáculo traz temas relacionados ao início da vida,
infância, sono, brincadeiras, denominei-a como “Chocolate ao leite”. Nessa primeira parte
219
começamos com pequenos movimentos de cheirar e saborear e uma cena maior ao centro
com uma temática em improvisação em grupo no chão. Trabalhamos com movimentos de
expansão e recolhimento em espiral, em tônus firme e fluência livre, mostrando e
escondendo partes do corpo, principalmente pescoço, cabeça, boca e mãos. Numa segunda
cena, mais composta, exploramos movimentos relacionados ao dormir. Valorizando as
verticais exploramos, em improvisação, temáticas de movimento de balanço e dedilhados,
brincadeiras em contraposição a um grupo mais lento em balanço no centro.
Na segunda parte do espetáculo o grupo que está no centro permanece e a
movimentação se transforma em uníssono mudando a temática. Neste segundo momento,
que denominei “Mousse” trabalhamos mais com a sensação de feminilidade, sensualidade,
do ser mulher, das curvas e espirais trazidas pelo cheiro bom e pelo saborear delicioso do
chocolate derretendo na boca. O uníssono em variações se abre saindo do palco e outro
grupo trabalhando em improvisação temática em multifoco e espirais entra. Tem início o
primeiro momento mais aberto de improvisação sem definições especiais, apenas a temática
da cena, uma pequena Jam.
Na terceira parte do espetáculo, uma linha é construída com várias integrantes
sentadas na frente do palco como deixa para o término da Jam. É também uma linha
improvisada a partir de uma temática de movimentos que têm profunda relação da cabeça
com as mãos, mas que tem uma definição de roteiro espacial. Essa primeira movimentação
bela e ao mesmo tempo triste, brincalhona e ao mesmo tempo angustiada, acolhedora e ao
mesmo tempo solitária, traz a terceira temática ao espetáculo: a maturidade, o paradoxo do
ser humano, o sabor que delicia e ao mesmo tempo enjoa. É denominada “Chocolate
Amargo”. À linha segue um segundo momento de maior abertura em Jam, mas desta vez
com movimentação valorizando o contato. As movimentações desta cena foram construídas
em duplas não a partir da sensação direta do chocolate, mas a partir do toque do outro a
partir da sensação do paladar do chocolate. O chocolate com menta trouxe as
contraposições qualitativas: firme e leve, controlado e livre, lento e rápido. Esse momento
termina com uma dinâmica espacial em grupo até que todos saiam de cena.
A quarta e última parte do espetáculo evidencia o deleite e o convite ao público
a esse prazer. O chocolate aparece na cena sendo saboreado, um uníssono composto se
220
desenvolve com todo o grupo e depois as movimentações de várias partes do espetáculo
vão sendo mostradas em conjunto ao saborear. O público é convidado e esse deleite com o
oferecimento de chocolates.
221
Estrutura espacial
FRENTE
Figura 14 – Fluxograma 1 – Variações sobre chocolates, primeira parte.
A estrutura espacial de Variações sobre chocolates é mais aberta que os outros
espetáculos devido aos momentos mais abertos de improvisação. Esta estrutura se inicia
com a utilização de várias partes do palco alternadamente por intérpretes criadoras que
entram e saem de cena. A primeira cena mais definida espacialmente acontece no centro e
nível baixo do palco, seguida por uma cena na frente esquerda e fundo direita, depois
acontecem as movimentações em linhas verticais em conjunto com o centro.
222
FRENTE
Figura 15 – Fluxograma 2 – Variações sobre chocolates, segunda parte.
A segunda parte do espetáculo começa com um uníssono no centro/fundo que
vai se abrindo enquanto outras integrantes vão entrando e ocupando o espaço de forma
multifocalizada de fora para dentro. A partir daí, como a improvisação não tem roteiro
espacial, ocorre uma utilização bastante diversa e não previsível do mesmo.
223
FRENTE
Figura 16 – Fluxograma 3 – Variações sobre chocolates, terceira parte.
A terceira parte do espetáculo também tem poucas definições espaciais
definitivas. A cena começa com uma linha na frente do palco, explorando gradativamente e
alternadamente os níveis baixo, médio e alto. Depois um momento de Jam de contato,
relativiza e diversifica a utilização espacial. E a cena termina com um movimento em grupo
com deslocamento pelo espaço em linhas retas e diagonais (indicado pelas setas).
224
FRENTE
Figura 17 – Fluxograma 4 – Intenso, quarto momento.
O último momento do espetáculo valoriza, primeiramente a horizontal frente do
palco com várias entradas. Primeiramente três intérpretes, depois uma ao centro, mais duas.
A cena evolui para muitas entradas que vão levar o grupo todo ao centro no
desenvolvimento de um uníssono. Depois, mais uma vez a estrutura espacial é aberta, com
entradas e saídas, com idas e vidas do público para a cena, finalizando valorizando mais a
boca de cena do palco num relacionamento com a platéia.
Dinâmica Qualitativa
A dinâmica qualitativa do espetáculo é bastante variada. As variações mais
olfativas trazem maior ênfase à fluência livre e prolongada em peso leve, o agregar do
paladar traz as variações de tônus para gradações de leve e também firme. O saborear está
mais associado ao tempo lento em fluência livre e algumas ações aparecem a partir dessa
225
combinação como balanço, deslizes e toques entre diferentes partes do corpo. Nas
brincadeiras evocadas principalmente por chocolates com algum elemento crocante aparece
o tempo rápido. Foco direto e mulltifoco aparecem de maneiras variadas mas, de maneira
geral, predomina o multifoco. A integração das sensações dos sentidos (olfato, paladar e
tato) parece evocar a fluência livre, variações de peso, multifoco e tempo moderado,
contudo as variações são muitas, ainda mais nas improvisações abertas.
Estrutura crescente em improvisação
Conforme fui desenvolvendo os espetáculos e pesquisado as metodologias,
objetivei cada vez mais a integração da improvisação a todo processo interpretativo
criativo, bem como sua utilização cada vez mais aberta como resultado cênico final. Em
Variações sobre chocolates esta possibilidade chega ao ápice no processo pesquisado. Pela
primeira vez, além de estruturas roteirizadas, utilizo verdadeiras Jams em cena. Contudo,
num espetáculo concebido mesmo estes momentos contam com alguma estrutura, no caso,
temática de movimentos em improvisação. Nos momentos mais estruturados, a
improvisação é definida não apenas pelo tema, mas também pelo espaço e, por vezes,
também pelo tempo musical da trilha sonora.
Manter uma cena em improvisação apenas por uma temática de movimentos é
extremamente difícil e desafiador. Requer mais ensaio que cenas compostas, mais variações
possíveis, mais vocabulário... tudo para que se possa fazer acontecer o agora no momento
da cena em interação com a energia do público. Tecnicamente falando exige muito, muita
técnica, muito repertório, muito conhecimento sobre improvisação e composição, muita
consciência corporal, muita presença cênica e atenção ao espaço e ao outro. Ao mesmo
tempo, é extremamente prazeroso e libertador pelas possibilidades sempre novas e a
interação de cada dia, a cada interpretação criada.
226
Trilha sonora
A trilha sonora composta originalmente para o espetáculo é de Marcelo
Martinez Vieira e mescla as sensações do chocolate e as temáticas do espetáculo utilizando-
se das sonoridades do violoncelo, do piano, do clarinete e do violino. A música compõe
com instrumentos variados, diferentes momentos do espetáculo. Também ressalta uma
característica de improvisações nos momentos de Jam, mais abertos à improvisação em
cena. A última música, a única com uma referência de percussão salienta o momento de
interação e descontração com o público, sendo mantida mesmo depois do agradecimento
final. Nas palavras do compositor:
O trabalho de composição e produção da trilha sonora de
Variações sobre chocolates levou em conta aspectos da criação e
improvisação coreográficas, mas também partiu da observação e
escuta das sensações vindas da fruição do chocolate e das imagens
exploradas no espetáculo, de maneira similar à proposta de pesquisa
da coreógrafa Patricia Leal. Neste sentido, junto à criação sonora
que partiu da observação das células de movimento realizadas,
foram escolhidas tonalidades, sons, frases musicais e dinâmicas que
de alguma maneira recriam e/ou transmitem sensações e ambiências
que o compositor experimenta e percebe e que são advindas das
imagens que o tema “Chocolate” lhe inspira. Assim, privilegia-se
uma gama de tonalidades não muito aberta nem muito clara,
figuram intervalos musicais que não são dissonantes porém
tampouco são obviamente consonantes, com acordes abertos e com
uma harmonia que, apesar de tonal, não segue um ciclo comum nem
previsível, assim como o chocolate, tendo um gosto extremamente
agradável, possui também um grau de acidez que se manifesta
invariavelmente. Os gestos musicais e os “climas” criados nas
diferentes partes do espetáculo foram também em grande parte
resultado de um processo de improvisação musical direcionada, e a
escolha dos sons e instrumentos foi pensada a partir das sugestões
de textura e sabor que também inspiraram os movimentos
realizados
40
.
40
Marcelo Martinez Vieira em depoimento dado sobre a composição da trilha sonora do espetáculo Variações
sobre Chocolates em junho de 2008.
227
Figurino
Os figurinos adicionaram ao espetáculo um elemento de bastante feminilidade
ressaltada pelo vestido em transparência e com detalhes em rendas e fitas, bem como a
individualidade de cada intérprete, mantendo um modelo geral em termos de vestido, mas
detalhes de acabamento, decote, alças de forma individualizada. A cor bege com estamparia
-e detalhes em dourado, marrom, salmão, ocre, terra- evidenciou a temática do espetáculo e
a pele das intérpretes, bastante evidente nas movimentações desenvolvidas. A transparência
do vestido em conjunto com a iluminação provocou efeitos ora opacos e mais suaves, ora
translúcidos e mais plásticos, conferindo, de acordo com o momento da obra, suavidade,
docilidade, e também sensualidade, maturidade. Os cabelos presos em penteados também
individualizados procuraram deixar à mostra o pescoço, os ombros, o colo e o desenho do
rosto, tão importantes e salientados pelos movimentos.
Ficha Técnica:
Direção: Patrícia Leal
Intérpretes criadoras: Isabella Lima, Isis Andreatta, Juliana Melhado, Mariama Palhares,
Karine Coldibelli, Patrícia Árabe e Patrícia Leal (Thiago, aos 6 meses de concepção).
Trilha Sonora: Marcelo Martinez Vieira (composição, produção, gravação, mixagem,
pianos e violoncelo) - 

Figurino: Zel
Projeto de iluminação: Rogério Candido
Operação de luz: Rogério Candido e Amanda Morato
Sonoplastia: Bruna Peres
Contra-regragem: Carolina Minozzi, Bruna Peres
Fotografia: Rodrigo Zanotto (pág. 103, 123 a 134)
Projeto Gráfico: Ângela Gonçalves e Carlos Milhor
Filmagem e edição: kinostudio
Duração média do espetáculo: 40 - 50 min.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
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