Duas almas musicais, dois talentos reconhecidos: Souza Lima e Villa-Lobos,
compositores e pianistas, aclamados em Paris e no Brasil. Dois artistas e uma obra de arte,
juntos, sem que esta última fosse sequer conhecida ou já se pudesse antever o seu talento
para a polêmica.
A música parece mesmo ser um elemento sempre presente na arte de Tarsila, a
delinear seus contornos, de formas redondas, curvas fartas, dedos, pernas, morros, plantas,
casas, cidades e trens. E cores, fundos de infinitos azuis, figuras rosadas, verdes caminhos,
amarelos quentes, cores de interior, muitas cores. Como um balé ou uma ópera guarani, as
cores das pinturas musicais de Tarsila se apresentam diante dos olhos do espectador e, este,
por sua vez, se deixa levar pela fantasia e poesia da dança de suas sólidas imagens. Sólidas e
coloridas, mas leves como papel, a contrastar com a luminosidade de um céu azul.
O certo é que todos os povos se emocionam com a linguagem musical, que é, como o gesto
natural, uma linguagem universal em relação ao sentimento. Para isso a música deve, como
o gesto natural, preencher as condições de universalidade, deve ser simples, melódica como
o canto dos pássaros que cantam aqui, na China, nos confins do mundo
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E o choro indígena, assim como o canto Pica-Pau de Villa-Lobos, parecem ter
encantado Paris e consagrado seu compositor, levando para o primeiro mundo os sons e a
melodia da floresta tropical, repleta de animais incomuns de variadas cores, tal qual os
estranhos animais dos sonhos da pintora modernista.
Mas, se alguém um dia deu cores às vogais em sua poesia, por que não se pode dar
notas às cores? “A negro, E branco, I carmim, U verde, O azul”
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, assim escreveu Rimbaud,
letras que transformam palavras em cor, som em pura poesia. Parecem bailar diante dos olhos
e junto aos ouvidos, sonoras, a devorar o espaço com o seu compasso, pulso e repouso,
alternando-se em plena harmonia. Seria possível talvez, criar um ritmo diferente para cada
uma delas: para as cores primárias, um minueto; para as cores secundárias, uma valsa; para
as terciárias, uma polka. Talvez, ainda, para as cores análogas, fosse adequado um tango; as
cores complementares poderiam ser representadas por um flamenco; já as quentes, por um
samba bem marcado, e para cores caipiras, um baião. E para um Abaporu, uma canção de
ninar, ou, quem sabe, uma grande ópera.
Surgiriam contornos em curvas sonoras, cores vivas e vibrantes, como uma canção
cantada ao pé do ouvido, a circular pelo colorido sem volume da tela. Envolvendo tons e
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AMARAL, Tarsila do. Música, em: BRANDINI, Laura Taddei (org.). Crônicas e Outros Escritos de Tarsila do Amaral.
São Paulo: Editora Unicamp, 2008, p. 231.
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Poema Vogais de Rimbaud. Disponível em: www.ufrgs.br/proin/versao.../rimbaud/index07.html - acessado em
09/09/09.
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