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Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA
VI
África do século XIX
à década de 1880
UNESCO Representação no BRASIL
Ministério da Educação do BRASIL
Universidade Federal de São Carlos
EDITOR J. F. ADE AJAYI
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HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA
VI
África do século XIX à década de 1880
Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
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Coleção História Geral da África da UNESCO
Volume I Metodologia e pré-história da África
(Editor J. Ki-Zerbo)
Volume II África antiga
(Editor G. Mokhtar)
Volume III África do século VII ao XI
(Editor M. El Fasi)
(Editor Assistente I. Hrbek)
Volume IV África do século XII ao XVI
(Editor D. T. Niane)
Volume V África do século XVI ao XVIII
(Editor B. A. Ogot)
Volume VI África do século XIX à década de 1880
(Editor J. F. A. Ajayi)
Volume VII África sob dominação colonial, 1880-1935
(Editor A. A. Boahen)
Volume VIII África desde 1935
(Editor A. A. Mazrui)
(Editor Assistente C. Wondji)
Os autores o responveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro,
bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO,
nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e apresentação do
material ao longo deste livro não implicam a manifestão de qualquer opino por parte
da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, terririo, cidade, rego
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA
VI
África do século
XIX à decada
de 1880
EDITOR J. F. ADE AJAyI
Organização
das Nações Unidas
para a Educação,
a Ciência e a Cultura
História geral da África, VI: África do século XIX à década de 1880 / editado por J. F. Ade
Ajayi. – Brasília : UNESCO, 2010.
1032 p.
ISBN: 978-85-7652-128-0
1. História 2. História contemporânea 3. História africana 4. Culturas africanas 5. África
I. Ajayi, J. F. Ade II. UNESCO III. Brasil. Ministério da Educação IV. Universidade Federal
de São Carlos
Esta versão em português é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil, a
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação do
Brasil (Secad/MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Título original: General History of Africa, VI: Africa in the nineteenth century until the 1880s. Paris:
UNESCO; Berkley, CA: University of California Press; London: Heinemann Educational
Publishers Ltd., 1989. (Primeira edição publicada em inglês).
© UNESCO 2010
Coordenação geral da edição e atualização: Valter Roberto Silvério
Tradutores: David Yann Chaigne, João Bortolanza, Luana Antunes Costa, Luís Hernan de Almeida
Prado Mendoza, Milton Coelho, Sieni Maria Campos
Revisão técnica: Kabengele Munanga
Preparação de texto: Eduardo Roque dos Reis Falcão
Revisão e atualização ortográca: Ilunga Kabengele
Projeto gráco e diagramação: Marcia Marques / Casa de Ideias; Edson Fogaça e Paulo Selveira /
UNESCO no Brasil
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
Representação no Brasil
SAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, andar
70070-912 – Brasília DF – Brasil
Tel.: (55 61) 2106-3500
Fax: (55 61) 3322-4261
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13565-905 – São Carlos – SP – Brasil
Tel.: (55 16) 3351-8111 (PABX)
Fax: (55 16) 3361-2081
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Impresso no Brasil
SUMÁRIO
Apresentação ...................................................................................VII
Nota dos Tradutores ..........................................................................IX
Cronologia .......................................................................................XI
Lista de Figuras .............................................................................XIII
Prefácio ..........................................................................................XIX
Apresentação do Projeto .................................................................XXV
Capítulo 1 África no início do século XIX: problemas e perspectivas ...... 1
Capítulo 2 A África e a economia -mundo ............................................. 27
Capítulo 3 Tendências e processos novos na África do século XIX ........ 47
Capítulo 4 A abolição do tráfico de escravos .......................................... 77
Capítulo 5 O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos ..... 105
Capítulo 6 O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo ............... 147
Capítulo 7 Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do
Sul 1850 -1880 .................................................................... 169
Capítulo 8 Os países da bacia do Zambeze .......................................... 211
Capítulo 9 O litoral e o interior da África Oriental de 1800
a 1845 ................................................................................. 249
Capítulo 10 O litoral e o interior da África Oriental de 1845
a 1880 ............................................................................... 275
VI
África do século XIX à década de 1880
Capítulo 11 Povos e Estados da região dos Grandes Lagos ................. 317
Capítulo 12 A bacia do Congo e Angola .............................................. 343
Capítulo 13 O renascimento do Egito (1805 -1881) ............................. 377
Capítulo 14 O Sudão no século XIX .................................................... 411
Capítulo 15 A Etiópia e a Somália ....................................................... 435
Capítulo 16 Madagascar, 1800 -1880 .................................................... 477
Capítulo 17 Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia
e Líbia ............................................................................... 517
Capítulo 18 O Marrocos do início do século XIX até 1880 ................. 549
Capítulo 19 Novas formas de intervenção europeia no Magreb ........... 571
Capítulo 20 O Saara no século XIX ..................................................... 591
Capítulo 21 As revoluções islâmicas do século XIX na África
do Oeste ............................................................................ 619
Capítulo 22 O califado de Sokoto e o Borno ....................................... 641
Capítulo 23 O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878 ......... 699
Capítulo 24 Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné ............. 741
Capítulo 25 Estados e povos do Arco do Níger e do Volta .................. 771
Capítulo 26 Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no
século XIX ........................................................................ 813
Capítulo 27 O delta do Níger e Camarões ........................................... 843
Capítulo 28 A diáspora africana ........................................................... 875
Capítulo 29 Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia ..... 905
Membros do Comitê Científico Internacional para a Redação
de uma História Geral da África .......................................................931
Dados biográficos dos autores do volume VI .....................................933
Abreviações e listas de periódicos ......................................................939
Referências bibliográficas .................................................................941
Índice remissivo .............................................................................1001
VII
APRESENTÃO
“Outra exigência imperativa é de que a história (e a cultura) da África devem pelo menos ser
vistas de dentro, não sendo medidas por réguas de valores estranhos... Mas essas conexões
têm que ser analisadas nos termos de trocas mútuas, e influências multilaterais em que algo
seja ouvido da contribuição africana para o desenvolvimento da espécie humana”. J. Ki-Zerbo,
História Geral da África, vol. I, p. LII.
A Representação da UNESCO no Brasil e o Ministério da Educação têm a satis-
fação de disponibilizar em português a Coleção da História Geral da África. Em seus
oito volumes, que cobrem desde a pré-história do continente africano até sua história
recente, a Coleção apresenta um amplo panorama das civilizações africanas. Com sua
publicação em língua portuguesa, cumpre-se o objetivo inicial da obra de colaborar para
uma nova leitura e melhor compreensão das sociedades e culturas africanas, e demons-
trar a importância das contribuições da África para a história do mundo. Cumpre-se,
também, o intuito de contribuir para uma disseminação, de forma ampla, e para uma
visão equilibrada e objetiva do importante e valioso papel da África para a humanidade,
assim como para o estreitamento dos laços históricos existentes entre o Brasil e a África.
O acesso aos registros sobre a história e cultura africanas contidos nesta Coleção se
reveste de significativa importância. Apesar de passados mais de 26 anos após o lança-
mento do seu primeiro volume, ainda hoje sua relevância e singularidade são mundial-
mente reconhecidas, especialmente por ser uma história escrita ao longo de trinta anos
por mais de 350 especialistas, sob a coordenação de um comitê científico internacional
constituído por 39 intelectuais, dos quais dois terços africanos.
A imensa riqueza cultural, simbólica e tecnológica subtraída da África para o conti-
nente americano criou condições para o desenvolvimento de sociedades onde elementos
europeus, africanos, das populações originárias e, posteriormente, de outras regiões do
mundo se combinassem de formas distintas e complexas. Apenas recentemente, tem-
se considerado o papel civilizatório que os negros vindos da África desempenharam
na formação da sociedade brasileira. Essa compreensão, no entanto, ainda está restrita
aos altos estudos acadêmicos e são poucas as fontes de acesso público para avaliar este
complexo processo, considerando inclusive o ponto de vista do continente africano.
APRESENTAÇÃO
VIII
África do século XIX à década de 1880
A publicação da Coleção da História Geral da África em português é também resul-
tado do compromisso de ambas as instituições em combater todas as formas de desigual-
dades, conforme estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
especialmente no sentido de contribuir para a prevenção e eliminação de todas as formas
de manifestação de discriminação étnica e racial, conforme estabelecido na Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1965.
Para o Brasil, que vem fortalecendo as relações diplomáticas, a cooperação econô-
mica e o intercâmbio cultural com aquele continente, essa iniciativa é mais um passo
importante para a consolidação da nova agenda política. A crescente aproximação com
os países da África se reflete internamente na crescente valorização do papel do negro
na sociedade brasileira e na denúncia das diversas formas de racismo. O enfrentamento
da desigualdade entre brancos e negros no país e a educação para as relações étnicas
e raciais ganhou maior relevância com a Constituição de 1988. O reconhecimento da
prática do racismo como crime é uma das expressões da decisão da sociedade brasileira
de superar a herança persistente da escravidão. Recentemente, o sistema educacional
recebeu a responsabilidade de promover a valorização da contribuição africana quando,
por meio da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e
com a aprovação da Lei 10.639 de 2003, tornou-se obrigatório o ensino da história e
da cultura africana e afro-brasileira no currículo da educação básica.
Essa Lei é um marco histórico para a educação e a sociedade brasileira por criar, via
currículo escolar, um espaço de diálogo e de aprendizagem visando estimular o conheci-
mento sobre a história e cultura da África e dos africanos, a história e cultura dos negros
no Brasil e as contribuições na formação da sociedade brasileira nas suas diferentes
áreas: social, econômica e política. Colabora, nessa direção, para dar acesso a negros e
não negros a novas possibilidades educacionais pautadas nas diferenças socioculturais
presentes na formação do país. Mais ainda, contribui para o processo de conhecimento,
reconhecimento e valorização da diversidade étnica e racial brasileira.
Nessa perspectiva, a UNESCO e o Ministério da Educação acreditam que esta publica-
ção estimulará o necessário avanço e aprofundamento de estudos, debates e pesquisas sobre
a tetica, bem como a elaboração de materiais pedagógicos que subsidiem a formação
inicial e continuada de professores e o seu trabalho junto aos alunos. Objetivam assim com
esta edição em português da História Geral da África contribuir para uma efetiva educação
das relações étnicas e raciais no país, conforme orienta as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relões Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-
brasileira e Africana aprovada em 2004 pelo Conselho Nacional de Educação.
Boa leitura e sejam bem-vindos ao Continente Africano.
Vincent Defourny Fernando Haddad
Representante da UNESCO no Brasil Ministro de Estado da Educação do Brasil
IX
NOTA DOS TRADUTORES
NOTA DOS TRADUTORES
A Conferência de Durban ocorreu em 2001 em um contexto mundial dife-
rente daquele que motivou as duas primeiras conferências organizadas pela
ONU sobre o tema da discriminação racial e do racismo: em 1978 e 1983 em
Genebra, na Suíça, o alvo da condenação era o apartheid.
A conferência de Durban em 2001 tratou de um amplo leque de temas, entre
os quais vale destacar a avaliação dos avanços na luta contra o racismo, na luta
contra a discriminação racial e as formas correlatas de discriminação; a avaliação
dos obstáculos que impedem esse avanço em seus diversos contextos; bem como
a sugestão de medidas de combate às expressões de racismo e intolerâncias.
Após Durban, no caso brasileiro, um dos aspectos para o equacionamento
da questão social na agenda do governo federal é a implementação de políticas
públicas para a eliminação das desvantagens raciais, de que o grupo afrodescen-
dente padece, e, ao mesmo tempo, a possibilidade de cumprir parte importante
das recomendações da conferência para os Estados Nacionais e organismos
internacionais.
No que se refere à educação, o diagnóstico realizado em novembro de 2007,
a partir de uma parceria entre a UNESCO do Brasil e a Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/
MEC), constatou que existia um amplo consenso entre os diferentes participan-
tes, que concordavam, no tocante a Lei 10.639-2003, em relação ao seu baixo
grau de institucionalização e sua desigual aplicação no território nacional. Entre
X
África do século XIX à década de 1880
os fatores assinalados para a explicação da pouca institucionalização da lei estava
a falta de materiais de referência e didáticos voltados à História de África.
Por outra parte, no que diz respeito aos manuais e estudos disponíveis sobre
a História da África, havia um certo consenso em afirmar que durante muito
tempo, e ainda hoje, a maior parte deles apresenta uma imagem racializada e
eurocêntrica do continente africano, desfigurando e desumanizando especial-
mente sua história, uma história quase inexistente para muitos até a chegada
dos europeus e do colonialismo no século XIX.
Rompendo com essa visão, a História Geral da África publicada pela UNESCO
é uma obra coletiva cujo objetivo é a melhor compreensão das sociedades e cul-
turas africanas e demonstrar a importância das contribuições da África para a
história do mundo. Ela nasceu da demanda feita à UNESCO pelas novas nações
africanas recém-independentes, que viam a importância de contar com uma his-
tória da África que oferecesse uma visão abrangente e completa do continente,
para além das leituras e compreensões convencionais. Em 1964, a UNESCO
assumiu o compromisso da preparação e publicação da História Geral da África.
Uma das suas características mais relevantes é que ela permite compreender
a evolução histórica dos povos africanos em sua relação com os outros povos.
Contudo, até os dias de hoje, o uso da História Geral da África tem se limitado
sobretudo a um grupo restrito de historiadores e especialistas e tem sido menos
usada pelos professores/as e estudantes. No caso brasileiro, um dos motivos
desta limitação era a ausência de uma tradução do conjunto dos volumes que
compõem a obra em língua portuguesa.
A Universidade Federal de São Carlos, por meio do Núcleo de Estudos
Afrobrasileiros (NEAB/UFSCar) e seus parceiros, ao concluir o trabalho de
tradução e atualização ortográfica do conjunto dos volumes, agradece o apoio
da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD),
do Ministério da Educação (MEC) e da UNESCO por terem propiciado as
condições para que um conjunto cada vez maior de brasileiros possa conhecer e
ter orgulho de compartilhar com outros povos do continente americano o legado
do continente africano para nossa formação social e cultural.
Na apresentação das datas da pré-história convencionou-se adotar dois tipos
de notação, com base nos seguintes critérios:
• Tomando como ponto de partida a época atual, isto é, datas B.P. (before
present), tendo como referência o ano de + 1950; nesse caso, as datas são
todas negativas em relação a + 1950.
• Usando como referencial o início da Era Cristã; nesse caso, as datas
são simplesmente precedidas dos sinais - ou +. No que diz respeito aos
séculos, as menções antes de Cristo e “depois de Cristo” são substituídas
por “antes da Era Cristã”,da Era Cristã”.
Exemplos:
(i) 2300 B.P. = -350
(ii) 2900 a.C. = -2900
1800 d.C. = +1800
(iii) século V a.C. = século V antes da Era Cristã
século III d.C. = século III da Era Cristã
CRONOLOGIA
XIII
Lista de Figuras
LISTA DE FIGURAS
Figura 1.1 Dança cerimonial em Mbelebele, campo militar zulu, em 1836 .......................... 22
Figura 3.1 As missões cristãs e o islã, 1800 -1860..................................................................54
Figura 3.2 Igreja da missão da Church of Scotland em Blantyre (Malaui) ........................... 56
Figura 3.3 Tiyo Soga .............................................................................................................58
Figura 3.4 Escola da vila Charlotte, Serra Leoa, cerca de 1885 ............................................61
Figura 4.1 Mapa da costa ocidental da África .......................................................................86
Figura 4.2 Um grupo de mulheres oromas a bordo do HMS Daphne depois de sua
libertação de um veleiro leste -africano ............................................................... 102
Figura 4.3 Escravos libertados no domínio da Missão das universidades em Mbweni,
perto de Zanzibar – pagamento dos salários ......................................................102
Figura 6.1 Bonecas à venda no Cabo no início do século XIX, representando um
homem e uma mulher san .................................................................................. 152
Figura 7.1 Mapa da África do Sul indicando os Estados e os povos, 1850 -1880 ...............172
Figura 7.2 Membros de um comando bôer, por volta de 1880 ............................................ 206
Figura 8.1 Mapa étnico e político da África Central, 1800 -1880 .......................................214
Figura 8.2 Jumbe de Khota Khota .......................................................................................... 222
Figura 8.3 Mercadores árabes da região norte do lago Malaui ............................................ 224
Figura 8.4 Um Ruga -ruga (caçador de escravos) ................................................................. 228
Figura 8.5 Os shangana de Soshangane chegam a Shapanga para recolher o imposto
anual devido pelos portugueses ........................................................................... 237
Figura 8.6 Tocador de tambor e dançarinos na corte de Sipopa, rei dos lozi, 1875 ............ 241
Figura 8.7 Sipopa, um dos chefes da rebelião lozi contra os kololo em 1864 .....................241
XIV
África do século XIX à década de 1880
Figura 9.1 O litoral e o interior: povos e principais rotas comerciais, 1800 -1850 ............... 251
Figura 9.2 O litoral setentrional e o interior: as rotas comerciais, 1850 .............................. 256
Figura 9.3 Extração em prensas do óleo de gergelim em Mogadíscio, 1847 ....................... 257
Figura 9.4 Sa‘īd ibn Sultan, sultão de Zanzibar (1804 -1856) .............................................259
Figura 10.1 O Oceano Índico no século XIX .....................................................................277
Figura 10.2 O comércio na África Oriental no século XIX ................................................ 282
Figura 10.3 Penteados e cortes de cabelos nyamwezi .......................................................... 285
Figura 10.4 Mercadores nyamwezi na estrada ..................................................................... 285
Figura 10.5 Mirambo em 1882 ou 1883 ............................................................................. 295
Figura 10.6 A região dos Grandes Lagos, 1840 -1884 .........................................................297
Figura 10.7 Itinerário das migrações em direção ao Norte dos nguni de Zwangendaba,
dos maseko nguni e dos msene ........................................................................ 300
Figura 10.8 Os massai e seus vizinhos, 1840 -1884 ............................................................. 304
Figura 11.1 A região dos Grandes Lagos ............................................................................ 319
Figura 11.2 O Buganda em 1875: a capital do kabaka ........................................................322
Figura 11.3 O kabaka Mutesa, rodeado de chefes e dignitários .......................................... 322
Figura 11.4 A casa do Tesouro e os ornamentos reais do rumanyika, rei do Karagwe ........ 326
Figura 11.5 Batalha naval no Lago Vitória entre os Baganda e o povo das Ilhas
Buvuma, 1875 ..................................................................................................329
Figura 11.6 Circuitos comerciais da região dos Grandes Lagos .......................................... 331
Figura 12.1 A África Central do Oeste no século XIX ....................................................... 344
Figura 12.2 Uma aldeia da província de Manyema, a Nordeste do Império Luba .............. 346
Figura 12.3 Tambores reais do reino kuba, no século XIX ..................................................351
Figura 12.4 Munza, rei dos mangbetu, em 1870 ................................................................. 356
Figura 12.5 Kazembe em 1831 ...........................................................................................356
Figura 12.6
A África Central do Oeste: espaços comerciais por volta de 1880 .................. 358
Figura 12.7 Mulher da aristocracia kimbundu com sua escrava, nos anos 1850 ................. 359
Figura 12.8 Guerreiro kimbundo e mulher da aristocracia, nos anos 1850 ......................... 359
Figura 12.9 Chifre de elefante esculpido, da metade do século XIX ................................... 360
Figura 12.10 Uma caravana de mercadores ovimbundo durante um pouso ........................ 363
Figura 12.11 Estátua chokwe representando Chibinda Ilunga, o lendário fundador do
Império lunda ................................................................................................. 367
Figura 12.12 O mwant yav Mbumba .................................................................................. 372
Figura 13.1 O Império egípcio de Muhammad ‘Alī (1804 -1849) ....................................... 380
Figura 13.2 Muhammad ‘Alī ............................................................................................... 383
Figura 13.3 Ibrāhīm, filho de Muhammad ‘Ali e seu general -em -chefe ............................. 384
Figura 13.4 O shaykh Rifā ‘al -Tahtāwī ................................................................................389
Figura 13.5 A chegada do primeiro trem ligando o Cairo a Suez, 14 de dezembro
de 1858 ............................................................................................................ 395
Figura 13.6 O bombardeio de Alexandria, julho de 1882 ................................................... 407
XV
Lista de Figuras
Figura 14.1 O Sudão sob o domínio turco, 1820 -1881 ....................................................... 412
Figura 14.2 Sennar em 1821: a capital do antigo sultanato dos funj ................................... 415
Figura 14.3 Um acampamento de caçadores de escravos turco -egípcios no Cordofão .......415
Figura 14.4 Navios mercantes de Cartum sobre um afluente do Bahr al Ghazal ao
Norte das terras dinka ...................................................................................... 422
Figura 14.5 A zeriba de um mercador em Mvolo, com um estabelecimento dinka fora
de seus muros ................................................................................................... 422
Figura 14.6 Uma vila shilluk após um ataque de caçadores de escravos .............................. 424
Figura 14.7 Um músico zande ............................................................................................426
Figura 14.8 O reforço da administração e a modernização turco -egípcias .......................... 433
Figura 15.1 A Etiópia no início do século XIX ..................................................................437
Figura 15.2
Dajazmach Webé do Tigre .............................................................................. 440
Figura 15.3 O rei Sahla Sellasé de Shoa ............................................................................. 443
Figura 15.4 O emir Ahmad ibn Muhammad do Harar, 1794 -1821 ................................... 451
Figura 15.5 O imperador Teodoro inspecionando o canteiro de obras de uma estrada ......454
Figura 15.6 O grande canhão “Sebastopol” do imperador Teodoro ....................................458
Figura 15.7 Eclesiásticos etíopes durante a década de 1840 ...............................................459
Figura 15.8 Uma interpretação moderna da cena do suicídio do imperador Teodoro em
frente a sir Robert Napier ................................................................................ 466
Figura 15.9 O imperador Johannès IV ................................................................................ 469
Figura 16.1 Madagascar e seus vizinhos .............................................................................. 479
Figura 16.2 Vista de Antananarivo nos anos 1850 .............................................................. 480
Figura 16.3 Madagascar, 1800 -1880 ...................................................................................483
Figura 16.4 A expansão do reino merina, 1810 -1840 ......................................................... 488
Figura 16.5 Adrianampoinimerina, morto em 1810. ........................................................... 491
Figura 16.6 O rei Radama I, 1810 -1828 .............................................................................491
Figura 16.7 A rainha Ranavalona I, 1828 -1861 .................................................................. 491
Figura 16.8 O rei Radama II, 1861 -1863 ...........................................................................491
Figura 16.9 A rainha Rasoherina, 1863 -1868 .....................................................................491
Figura 16.10 A rainha Ranavalona II, 1868 -1883. ..................................................................491
Figura 16.11 O palácio da rainha em Antananarivo, começado em 1839 por Jean
Laborde a pedido da rainha Ranavalona I ......................................................495
Figura 16.12 O palanquim da rainha Rasoherina diante de uma palhota venerada ............507
Figura 16.13 Acampamento de Ranavalona II .................................................................... 511
Figura 16.14 Fundição e forjamento do ferro em Madagascar, nos anos 1850 ................... 512
Figura 16.15 Mulheres escravas tirando água e pilando arroz em Madagascar ................... 515
Figura 17.1 Interior da mesquita de Ketchawa (erguida em 1794), em Argel .................... 520
Figura 17.2 Uma escola corânica em Argel, 1830 ............................................................... 522
Figura 17.3 Membros do nizāmī [exército] tunisiano com uniformes de estilo europeu .... 539
Figura 17.4 O túmulo de Muhammad ben ‘Alī al -Sanūsi, fundador da Sanūsiyya ............. 544
XVI
África do século XIX à década de 1880
Figura 17.5 Mulheres da alta sociedade argelina servidas por uma escrava negra ............... 546
Figura 18.1 O sultão ‘Abd al-Rahmān (1822-1859) em 1832 ............................................550
Figura 18.2 As regiões históricas do Marrocos no século XIX ...........................................552
Figura 18.3 O sultão Hasan I (1873 -1894) ......................................................................... 560
Figura 18.4 Rial de prata cunhado em Paris em 1881 para Hasan I ................................... 563
Figura 19.1 Abd al -Kādir .................................................................................................... 579
Figura 19.2 Soldados de ‘Abd al -Kādir: a infantaria ...........................................................580
Figura 19.3 Soldados de ‘Abd al -Kādir: a cavalaria ............................................................. 580
Figura 19.4 A guerra franco -marroquina: a batalha de Isly, 1844 ....................................... 581
Figura 19.5 A submissão de ‘Abd al -Kādir .......................................................................... 582
Figura 20.1 O comércio nos confins do deserto .................................................................. 605
Figura 20.2 A kasba [citadela] de Murzuk, no Fezzān, em 1869 ........................................ 606
Figura 20.3 A sociedade oasiana: mulheres no mercado de Murzuk, 1869 .........................608
Figura 20.4 Os minaretes da mesquita de Agadès ..............................................................609
Figura 20.5 Artigos de marroquinaria tuaregue à venda em Tomboctou nos anos 1850 ....614
Figura 22.1 O califado de Sokoto, o Borno e os seus vizinhos ............................................ 643
Figura 22.2 Carta de Muhammad Bello, califa de Sokoto, 1817 -1837 ............................... 648
Figura 22.3 Artigos do artesanato huassa colecionados por Gustav Nachtigal, em 1870 ...682
Figura 22.4 O xeque Muhammad al -Amīn al -Kānemi ......................................................685
Figura 22.5 Um dos lanceiros kanembu do xeque al -Kanēmi ............................................. 689
Figura 22.6
Blusa bordada de uma mulher do Borno, feita nos anos 1870 .......................... 694
Figura 23.1 As páginas iniciais de al -Idtirar, supostamente o único livro escrito por
Seku Ahmadu ...................................................................................................702
Figura 23.2 O Macina em seu apogeu, 1830 ....................................................................... 705
Figura 23.3 Ruínas de uma torre de defesa do tatá [fortaleza] de Hamdallahi ................... 707
Figura 23.4 Sepultura de Seku Ahmadu em Hamdallahi ...................................................709
Figura 23.5 Império Torodbe em seu apogeu ...................................................................... 717
Figura 23.6 De Dinguiraye a Hamdallahi ........................................................................... 727
Figura 23.7 Entrada do palácio de Ahmadu, em Ségou -Sikoro .......................................... 736
Figura 23.8 Ahmadu recebendo a corte do seu palácio ........................................................ 740
Figura 24.1
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné ............................................. 743
Figura 24.2 Chefes da região costeira de Mandinka na Gâmbia em 1805. ......................... 748
Figura 24.3 Vista de Timbo, capital de Futa Djalon, c. 1815 .............................................. 753
Figura 24.4 Barqueiros kru ................................................................................................... 761
Figura 24.5 Casas kru ........................................................................................................... 761
Figura 25.1 Povos e cidades da África Ocidental mencionados no texto ............................ 773
Figura 25.2 A banqueta de ouro dos ashanti ....................................................................... 774
Figura 25.3 A corte das finanças, Kumashi, 1817 ............................................................... 781
Figura 25.4 O primeiro dia da festa anual do Odwira, em Kumashi, 1817n Murray,
Londres .............................................................................................................782
XVII
Lista de Figuras
Figura 25.5 Personagens mascarados mossi, provavelmente “sacerdotes da terra”
representando a autoridade aborígene, no início do século XIX ...................... 786
Figura 25.6 Mogho Naaba Sanem festejado pelos seus sujeitos em 1888 ........................... 786
Figura 25.7 Tipos de casa bambara, 1887 ...........................................................................795
Figura 25.8 Um mercador ambulante mossi, 1888 .............................................................. 801
Figura 25.9 Mapa de Kintampo, cidade comercial do interior da Costa do Ouro .............. 802
Figura 25.10 Salaga em 1888. .............................................................................................803
Figura 25.11 Uma oficina de carpintaria da missão de Balê, em Christiansborg (Accra) ... 810
Figura 26.1 Escultura representando um guerreiro sobre os ombros de um babalaô .......... 815
Figura 26.2 O país iorubá-aja e o antigo Império Oyo (início do século XIX) ..................817
Figura 26.3 A porta da cidade iorubá de Ipara, no país ijebu, aproximadamente
em 1855 ............................................................................................................819
Figura 26.4 Vista de Ibadan, em 1854, em primeiro plano as instalações da Church
Missionary Society ............................................................................................822
Figura 26.5 Altar no recinto do rei, Benin .......................................................................... 829
Figura 26.6 Vista da cidade de Benin na época da invasão britânica, 1897 ........................830
Figura 26.8 Estátua de um homem em pé, braço direito levantado e esquerdo dobrado,
considerada uma representação simbólica do rei Ghezo (1818-1858) .............838
Figura 26.9 O rei Glélé (1858-1889), simbolicamente sob a forma de um leão ................. 838
Figura 27.1 O delta do Níger e Camarões no século XIX .................................................. 844
Figura 27.2 Uma localidade itsekiri no rio Benin, nos anos 1890 ....................................... 846
Figura 27.3 Nana Olomu de Itsekiri ................................................................................... 847
Figura 27.4 O rei Jaja de Opobo ......................................................................................... 852
Figura 27.5 A casa do rei Bell, na década de 1840 ..............................................................865
Figura 27.6 Ouassengo, comerciante de Ogoué, empunhando presas de elefante,
acompanhado das suas mulheres ...................................................................... 870
Figura 27.7 Antchuwe Kowe Rapontchombo (o “rei Denis”), soberano das margens do
Ogoué, com a sua grande mulher 871
Figura 28.1 Figura masculina de tipo negróide suportando nas costas o peso de um
cris indonésio preso à cintura, provavelmente proveniente da região do atual
Vietnã e datado, é verossímil, do século XVII ...................................................878
Figura 28.2 O tráfico de escravos da África do Leste nos anos 1850, visto por sir
Richard Burton ................................................................................................ 880
Figura 28.3 Serviçal negra e eunuco negro com a criança do seu mestre na Índia
Oriental, no século XIX ................................................................................... 885
Figura 28.4 Toussaint Louverture, líder da revolução de Santo-Domingo e patrono da
independência do Haiti ....................................................................................902
XIX
Prefácio
PREFÁCIO
por M. Amadou - Mahtar M’Bow,
Diretor Geral da UNESCO (1974-1987)
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie esconderam do
mundo a real história da África. As sociedades africanas passavam por socie-
dades que não podiam ter história. Apesar de importantes trabalhos efetuados
desde as primeiras décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius,
Maurice Delafosse e Arturo Labriola, um grande número de especialistas não-
africanos, ligados a certos postulados, sustentavam que essas sociedades não
podiam ser objeto de um estudo científico, notadamente por falta de fontes e
documentos escritos.
Se a Ilíada e a Odisséia podiam ser devidamente consideradas como fontes
essenciais da história da Grécia antiga, em contrapartida, negava-se todo valor
à tradição oral africana, essa memória dos povos que fornece, em suas vidas, a
trama de tantos acontecimentos marcantes. Ao escrever a história de grande
parte da África, recorria-se somente a fontes externas à África, oferecendo
uma visão não do que poderia ser o percurso dos povos africanos, mas daquilo
que se pensava que ele deveria ser. Tomando freqüentemente a “Idade Média”
européia como ponto de referência, os modos de produção, as relações sociais
tanto quanto as instituições políticas não eram percebidos senão em referência
ao passado da Europa.
Com efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador
de culturas originais que floresceram e se perpetuaram, através dos séculos, por
XX
África do século XIX à década de 1880
vias que lhes são próprias e que o historiador só pode apreender renunciando a
certos preconceitos e renovando seu método.
Da mesma forma, o continente africano quase nunca era considerado como
uma entidade histórica. Em contrário, enfatizava-se tudo o que pudesse refor-
çar a idéia de uma cisão que teria existido, desde sempre, entre uma África
branca” e uma “África negra que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se
frequentemente o Saara como um espaço impenetrável que tornaria impossíveis
misturas entre etnias e povos, bem como trocas de bens, crenças, hábitos e idéias
entre as sociedades constituídas de um lado e de outro do deserto. Traçavam-se
fronteiras intransponíveis entre as civilizações do antigo Egito e da Núbia e
aquelas dos povos subsaarianos.
Certamente, a história da África norte-saariana esteve antes ligada àquela da
bacia mediterrânea, muito mais que a história da África subsaariana mas, nos
dias atuais, é amplamente reconhecido que as civilizações do continente africano,
pela sua variedade lingüística e cultural, formam em graus variados as vertentes
históricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços seculares.
Um outro fenômeno que grandes danos causou ao estudo objetivo do passado
africano foi o aparecimento, com o tráfico negreiro e a colonização, de estereótipos
raciais criadores de desprezo e incompreeno, tão profundamente consolidados
que corromperam inclusive os próprios conceitos da historiografia. Desde que
foram empregadas as noções de brancos” e negros”, para nomear genericamente
os colonizadores, considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram
levados a lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado
pela pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria, entre outras, e
condenado ao trabalho forçado, o africano passou a simbolizar, na consciência de
seus dominadores, uma essência racial imaginária e ilusoriamente inferior àquela
do negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos afri-
canos, no espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história em cuja apreciação
das realidades históricas e culturais não podia ser senão falseada.
A situação evoluiu muito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em
particular, desde que os países da África, tendo alcançado sua independência,
começaram a participar ativamente da vida da comunidade internacional e dos
intercâmbios a ela inerentes. Historiadores, em número crescente, esforçaram-
se em abordar o estudo da África com mais rigor, objetividade e abertura de
espírito, empregando obviamente com as devidas precauções fontes africanas
originais. No exercício de seu direito à iniciativa histórica, os próprios africanos
sentiram profundamente a necessidade de restabelecer, em bases sólidas, a his-
toricidade de suas sociedades.
XXI
Prefácio
É nesse contexto que emerge a importância da História Geral da África, em
oito volumes, cuja publicação a Unesco começou.
Os especialistas de numerosos países que se empenharam nessa obra, pre-
ocuparam-se, primeiramente, em estabelecer-lhe os fundamentos teóricos e
metodológicos. Eles tiveram o cuidado em questionar as simplificações abusivas
criadas por uma concepção linear e limitativa da história universal, bem como
em restabelecer a verdade dos fatos sempre que necessário e possível. Eles esfor-
çaram-se para extrair os dados históricos que permitissem melhor acompanhar
a evolução dos diferentes povos africanos em sua especificidade sociocultural.
Nessa tarefa imensa, complexa e árdua em vista da diversidade de fontes e
da dispersão dos documentos, a UNESCO procedeu por etapas. A primeira
fase (1965-1969) consistiu em trabalhos de documentação e de planificação da
obra. Atividades operacionais foram conduzidas in loco, através de pesquisas de
campo: campanhas de coleta da tradição oral, criação de centros regionais de
documentação para a tradição oral, coleta de manuscritos inéditos em árabe e
ajami (línguas africanas escritas em caracteres árabes), compilação de inventários
de arquivos e preparação de um Guia das fontes da história da África, publicado
posteriormente, em nove volumes, a partir dos arquivos e bibliotecas dos países
da Europa. Por outro lado, foram organizados encontros, entre especialistas
africanos e de outros continentes, durante os quais discutiu-se questões meto-
dológicas e traçou-se as grandes linhas do projeto, após atencioso exame das
fontes disponíveis.
Uma segunda etapa (1969 a 1971) foi consagrada ao detalhamento e à articu-
lação do conjunto da obra. Durante esse período, realizaram-se reuniões interna-
cionais de especialistas em Paris (1969) e Addis-Abeba (1970), com o propósito
de examinar e detalhar os problemas relativos à redação e à publicação da obra:
apresentação em oito volumes, edição principal em inglês, francês e árabe, assim
como traduções para línguas africanas, tais como o kiswahili, o hawsa, o peul, o
yoruba ou o lingala. Igualmente estão previstas traduções para o alemão, russo,
português, espanhol e chinês
1
, além de edições resumidas, destinadas a um
público mais amplo, tanto africano quanto internacional.
A terceira e última fase constituiu-se na redação e na publicação do trabalho.
Ela começou pela nomeação de um Comitê Científico Internacional de trinta e
1 O volume I foi publicado em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano, kiswahili,
peul e português; o volume II em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano, kiswahili,
peul e português; o volume III em inglês, árabe, espanhol e francês; o volume IV em inglês, árabe, chinês,
espanhol, francês e português; o volume V em inglês e árabe; o volume VI em inglês, árabe e francês; o
volume VII em inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e português; o VIII em inglês e francês.
XXII
África do século XIX à década de 1880
nove membros, composto por africanos e não-africanos, na respectiva proporção
de dois terços e um terço, a quem incumbiu-se a responsabilidade intelectual
pela obra.
Interdisciplinar, o método seguido caracterizou-se tanto pela pluralidade
de abordagens teóricas quanto de fontes. Dentre essas últimas, é preciso citar
primeiramente a arqueologia, detentora de grande parte das chaves da história
das culturas e das civilizações africanas. Graças a ela, admite-se, nos dias atuais,
reconhecer que a África foi, com toda probabilidade, o berço da humanidade,
palco de uma das primeiras revoluções tecnológicas da história, ocorrida no
período Neolítico. A arqueologia igualmente mostrou que, na África, especifi-
camente no Egito, desenvolveu-se uma das antigas civilizações mais brilhantes
do mundo. Outra fonte digna de nota é a tradição oral que, até recentemente
desconhecida, aparece hoje como uma preciosa fonte para a reconstituição da
história da África, permitindo seguir o percurso de seus diferentes povos no
tempo e no espaço, compreender, a partir de seu interior, a visão africana do
mundo, e apreender os traços originais dos valores que fundam as culturas e as
instituições do continente.
Saber-se-á reconhecer o mérito do Comitê Científico Internacional encarre-
gado dessa História geral da África, de seu relator, bem como de seus coordena-
dores e autores dos diferentes volumes e capítulos, por terem lançado uma luz
original sobre o passado da África, abraçado em sua totalidade, evitando todo
dogmatismo no estudo de questões essenciais, tais como: o tráfico negreiro, essa
sangria sem fim”, responsável por umas das deportações mais cruéis da história
dos povos e que despojou o continente de uma parte de suas forças vivas, no
momento em que esse último desempenhava um papel determinante no pro-
gresso econômico e comercial da Europa; a colonização, com todas suas conse-
qüências nos âmbitos demográfico, econômico, psicológico e cultural; as relações
entre a África ao sul do Saara e o mundo árabe; o processo de descolonização e
de construção nacional, mobilizador da razão e da paixão de pessoas ainda vivas
e muitas vezes em plena atividade. Todas essas questões foram abordadas com
grande preocupação quanto à honestidade e ao rigor científico, o que constitui
um rito não desprezível da presente obra. Ao fazer o balanço de nossos
conhecimentos sobre a África, propondo diversas perspectivas sobre as culturas
africanas e oferecendo uma nova leitura da história, a História geral da África
tem a indiscutível vantagem de destacar tanto as luzes quanto as sombras, sem
dissimular as divergências de opinião entre os estudiosos.
Ao demonstrar a insuficiência dos enfoques metodológicas amiúde utiliza-
dos na pesquisa sobre a África, essa nova publicação convida à renovação e ao
XXIII
Prefácio
aprofundamento de uma dupla problemática, da historiografia e da identidade
cultural, unidas por laços de reciprocidade. Ela inaugura a via, como todo tra-
balho histórico de valor, a múltiplas novas pesquisas.
É assim que, em estreita colaboração com a UNESCO, o Comitê Cientí-
fico Internacional decidiu empreender estudos complementares com o intuito
de aprofundar algumas questões que permitirão uma visão mais clara sobre
certos aspectos do passado da África. Esses trabalhos publicados na coleção
da UNESCO, História geral da África: estudos e documentos, virão a cons-
tituir, de modo útil, um suplemento à presente obra
2
. Igualmente, tal esforço
desdobrar-se-á na elaboração de publicações versando sobre a história nacional
ou sub-regional.
Essa História geral da África coloca simultaneamente em foco a unidade his-
tórica da África e suas relações com os outros continentes, especialmente com as
Américas e o Caribe. Por muito tempo, as expressões da criatividade dos afro-
descendentes nas Américas haviam sido isoladas por certos historiadores em um
agregado heteróclito de africanismos; essa visão, obviamente, não corresponde
àquela dos autores da presente obra. Aqui, a resistência dos escravos deportados
para a América, o fato tocante ao marronage [fuga ou clandestinidade] político
e cultural, a participação constante e massiva dos afrodescendentes nas lutas da
primeira independência americana, bem como nos movimentos nacionais de
libertação, esses fatos são justamente apreciados pelo que eles realmente foram:
vigorosas afirmações de identidade que contribuíram para forjar o conceito
universal de humanidade. É hoje evidente que a herança africana marcou, mais
ou menos segundo as regiões, as maneiras de sentir, pensar, sonhar e agir de
certas nações do hemisfério ocidental. Do sul dos Estados-Unidos ao norte do
Brasil, passando pelo Caribe e pela costa do Pacífico, as contribuições culturais
herdadas da África são visíveis por toda parte; em certos casos, inclusive, elas
constituem os fundamentos essenciais da identidade cultural de alguns dos
elementos mais importantes da população.
2 Doze números dessa série foram publicados; eles tratam respectivamente sobre: n. 1 − O povoamento do
Egito antigo e a decodicação da escrita meroítica; n. 2 − O tráco negreiro do século XV ao século XIX;
n. 3 – Relações históricas através do Oceano Índico; n. 4 – A historiograa da África Meridional; n. 5 – A
descolonização da África: África Meridional e Chifre da África [Nordeste da África]; n. 6 Etnonímias
e toponímias; n. 7 – As relações históricas e socioculturais entre a África e o mundo árabe; n. 8 – A meto-
dologia da história da África contemporânea; n. 9 – O processo de educação e a historiograa na África;
n. 10 – A África e a Segunda Guerra Mundial; n. 11 – Líbya Antiqua; n. 12 – O papel dos movimentos
estudantis africanos na evolução política e social da África de 1900 a 1975.
XXIV
África do século XIX à década de 1880
Igualmente, essa obra faz aparecerem nitidamente as relações da África com
o sul da Ásia através do Oceano Índico, além de evidenciar as contribuições
africanas junto a outras civilizações em seu jogo de trocas mútuas.
Estou convencido que os esforços dos povos da África para conquistar ou
reforçar sua independência, assegurar seu desenvolvimento e consolidar suas
especificidades culturais devem enraizar-se em uma consciência histórica reno-
vada, intensamente vivida e assumida de geração em geração.
Minha formação pessoal, a experiência adquirida como professor e, desde
os primórdios da independência, como presidente da primeira comissão criada
com vistas à reforma dos programas de ensino de história e de geografia de
certos países da África Ocidental e Central, ensinaram-me o quanto era neces-
sário, para a educação da juventude e para a informação do público, uma obra
de história elaborada por pesquisadores que conhecessem desde o seu interior
os problemas e as esperanças da África, pensadores capazes de considerar o
continente em sua totalidade.
Por todas essas razões, a UNESCO zelará para que essa História Geral da
África seja amplamente difundida, em numerosos idiomas, e constitua base
da elaboração de livros infantis, manuais escolares e emissões televisivas ou
radiofônicas. Dessa forma, jovens, escolares, estudantes e adultos, da África
e de outras partes, poderão ter uma melhor visão do passado do continente
africano e dos fatores que o explicam, além de lhes oferecer uma compreensão
mais precisa acerca de seu patrimônio cultural e de sua contribuição ao pro-
gresso geral da humanidade. Essa obra deveria então contribuir para favorecer
a cooperação internacional e reforçar a solidariedade entre os povos em suas
aspirações por justiça, progresso e paz. Pelo menos, esse é o voto que manifesto
muito sinceramente.
Resta-me ainda expressar minha profunda gratidão aos membros do Comitê
Científico Internacional, ao redator, aos coordenadores dos diferentes volu-
mes, aos autores e a todos aqueles que colaboraram para a realização desta
prodigiosa empreitada. O trabalho por eles efetuado e a contribuição por eles
trazida mostram com clareza o quanto homens vindos de diversos horizontes,
conquanto animados por uma mesma vontade e igual entusiasmo a serviço da
verdade de todos os homens, podem fazer, no quadro internacional oferecido
pela UNESCO, para lograr êxito em um projeto de tamanho valor científico
e cultural. Meu reconhecimento igualmente estende-se às organizações e aos
governos que, graças a suas generosas doações, permitiram à UNESCO publi-
car essa obra em diferentes línguas e assegurar-lhe a difusão universal que ela
merece, em prol da comunidade internacional em sua totalidade.
APRESENTAÇÃO DO PROJETO
pelo Professor Bethwell Allan Ogot
Presidente do Comitê Cientíco Internacional
para a redação de uma História Geral da África
A Conferência Geral da UNESCO, em sua décima sexta sessão, solicitou
ao Diretor-geral que empreendesse a redação de uma História Geral da África.
Esse considerável trabalho foi confiado a um Comitê Científico Internacional
criado pelo Conselho Executivo em 1970.
Segundo os termos dos estatutos adotados pelo Conselho Executivo da
UNESCO, em 1971, esse Comitê compõe-se de trinta e nove membros res-
ponsáveis (dentre os quais dois terços africanos e um terço de não-africanos),
nomeados pelo Diretor-geral da UNESCO por um período correspondente à
duração do mandato do Comitê.
A primeira tarefa do Comitê consistiu em definir as principais características
da obra. Ele definiu-as em sua primeira sessão, nos seguintes termos:
• Em que pese visar a maior qualidade científica possível, a História Geral
da África não busca a exaustão e se pretende uma obra de síntese que
evitará o dogmatismo. Sob muitos aspectos, ela constitui uma exposição
dos problemas indicadores do atual estádio dos conhecimentos e das
grandes correntes de pensamento e pesquisa, não hesitando em assinalar,
em tais circunstâncias, as divergências de opinião. Ela assim preparará o
caminho para posteriores publicações.
• A África é aqui considerada como um todo. O objetivo é mostrar as
relações históricas entre as diferentes partes do continente, muito amiúde
XXVI
África do século XIX à década de 1880
subdividido, nas obras publicadas até o momento. Os laços históricos
da África com os outros continentes recebem a atenção merecida e são
analisados sob o ângulo dos intercâmbios mútuos e das influências mul-
tilaterais, de forma a fazer ressurgir, oportunamente, a contribuição da
África para o desenvolvimento da humanidade.
• A História Geral da África consiste, antes de tudo, em uma história das
idéias e das civilizações, das sociedades e das instituições. Ela funda-
menta-se sobre uma grande diversidade de fontes, aqui compreendidas
a tradição oral e a expressão artística.
• A História Geral da África é aqui essencialmente examinada de seu inte-
rior. Obra erudita, ela também é, em larga medida, o fiel reflexo da
maneira através da qual os autores africanos vêem sua própria civilização.
Embora elaborada em âmbito internacional e recorrendo a todos os
dados científicos atuais, a História será igualmente um elemento capital
para o reconhecimento do patrimônio cultural africano, evidenciando
os fatores que contribuem à unidade do continente. Essa vontade em
examinar os fatos de seu interior constitui o ineditismo da obra e poderá,
além de suas qualidades científicas, conferir-lhe um grande valor de
atualidade. Ao evidenciar a verdadeira face da África, a História poderia,
em uma época dominada por rivalidades econômicas e técnicas, propor
uma concepção particular dos valores humanos.
O Comitê decidiu apresentar a obra, dedicada ao estudo sobre mais de 3
milhões de anos de história da África, em oito volumes, cada qual compreen-
dendo aproximadamente oitocentas páginas de texto com ilustrações (fotos,
mapas e desenhos tracejados).
Para cada volume designou-se um coordenador principal, assistido, quando
necessário, por um ou dois codiretores assistentes.
Os coordenadores dos volumes são escolhidos, tanto entre os membros do
Comitê quanto fora dele, em meio a especialistas externos ao organismo, todos
eleitos por esse último, pela maioria de dois terços. Eles encarregam-se da ela-
boração dos volumes, em conformidade com as decisões e segundo os planos
decididos pelo Comitê. São eles os responsáveis, no plano científico, perante
o Comitê ou, entre duas sessões do Comitê, perante o Conselho Executivo,
pelo conteúdo dos volumes, pela redação final dos textos ou ilustrações e, de
uma maneira geral, por todos os aspectos científicos e técnicos da História. É
o Conselho Executivo quem aprova, em última instância, o original definitivo.
Uma vez considerado pronto para a edição, o texto é remetido ao Diretor-Geral
XXVII
Apresentação do Projeto
da UNESCO. A direção da obra cabe, dessa forma, ao Comitê ou ao Conselho
Executivo, nesse caso responsável no ínterim entre duas sessões do Comitê.
Cada volume compreende por volta de 30 capítulos. Cada qual redigido por
um autor principal, assistido por um ou dois colaboradores, caso necessário.
Os autores são escolhidos pelo Comitê em função de seu curriculum vitae.
A preferência é concedida aos autores africanos, sob reserva de sua adequação
aos títulos requeridos. Além disso, o Comitê zela, tanto quanto possível, para
que todas as regiões da África, bem como outras regiões que tenham mantido
relações históricas ou culturais com o continente, estejam de forma equitativa
representadas no quadro dos autores.
Após aprovação pelo coordenador do volume, os textos dos diferentes capítu-
los são enviados a todos os membros do Comitê para submissão à sua crítica.
Ademais e finalmente, o texto do coordenador do volume é submetido ao
exame de um comitê de leitura, designado no seio do Comitê Científico Inter-
nacional, em função de suas competências; cabe a esse comitê realizar uma
profunda análise tanto do conteúdo quanto da forma dos capítulos.
Ao Conselho Executivo cabe aprovar, em última instância, os originais.
Tal procedimento, aparentemente longo e complexo, revelou-se necessário,
pois permite assegurar o máximo de rigor científico à História Geral da África.
Com efeito, houve ocasiões nas quais o Conselho Executivo rejeitou origi-
nais, solicitou reestruturações importantes ou, inclusive, confiou a redação de
um capítulo a um novo autor. Eventualmente, especialistas de uma questão ou
período específicos da história foram consultados para a finalização definitiva
de um volume.
Primeiramente, uma edição principal da obra em inglês, francês e árabe será
publicada, posteriormente haverá uma edição em forma de brochura, nesses
mesmos idiomas.
Uma versão resumida em inglês e francês servirá como base para a tradução
em línguas africanas. O Comitê Científico Internacional determinou quais
os idiomas africanos para os quais serão realizadas as primeiras traduções: o
kiswahili e o haussa.
Tanto quanto possível, pretende-se igualmente assegurar a publicação da
História Geral da África em vários idiomas de grande difusão internacional
(dentre os quais, entre outros: alemão, chinês, italiano, japonês, português, russo,
etc.).
Trata-se, portanto, como se pode constatar, de uma empreitada gigantesca
que constitui um ingente desafio para os historiadores da África e para a comu-
nidade científica em geral, bem como para a UNESCO que lhe oferece sua
XXVIII
África do século XIX à década de 1880
chancela. Com efeito, pode-se facilmente imaginar a complexidade de uma
tarefa tal qual a redação de uma história da África que cobre no espaço, todo
um continente e, no tempo, os quatro últimos milhões de anos, respeitando,
todavia, as mais elevadas normas científicas e convocando, como é necessário,
estudiosos pertencentes a todo um leque de países, culturas, ideologias e tra-
dições históricas. Trata-se de um empreendimento continental, internacional e
interdisciplinar, de grande envergadura.
Em conclusão, obrigo-me a sublinhar a importância dessa obra para a África
e para todo o mundo. No momento em que os povos da África lutam para se unir
e para, em conjunto, melhor forjar seus respectivos destinos, um conhecimento
adequado sobre o passado da África, uma tomada de consciência no tocante aos
elos que unem os Africanos entre si e a África aos demais continentes, tudo
isso deveria facilitar, em grande medida, a compreensão mútua entre os povos
da Terra e, além disso, propiciar sobretudo o conhecimento de um patrimônio
cultural cuja riqueza consiste em um bem de toda a Humanidade.
Bethwell Allan Ogot
Em 8 de agosto de 1979
Presidente do Comitê Científico Internacional
para a redação de uma História Geral da África
C A P Í T U L O 1
1
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
O presente volume pretende apresentar de forma geral a história da África
no século XIX, ou seja, antes da corrida maciça dos europeus e da colonização.
É, em grande parte, sobre o assim chamado
1
“século pré -colonial” que versa o
esforço desempenhado após a Segunda Guerra Mundial para renovar a inter-
pretação da história da África, esforço este de que a História geral da África,
publicada pela UNESCO, representa, sem dúvida, o ápice. A partir do momento
em que se admitiu o fato de as mudanças ocorridas na África não remontarem
à época colonial, despertou -se um considerável interesse no que concerne ao
século que precede à colonização. Os historiadores consagraram vários traba-
lhos aos acontecimentos revolucionários do século XIX, tais como as reformas
de Muhammad Ali no Egito, a reunificação da Etiópia sob os imperadores
Tewodros e Menelik, o Mfecane dos Estados sotho -nguni na África Central e
Austral, ou as jihad da África Ocidental. Tais acontecimentos, assim como outros
de importância comparável, serão estudados nos próximos capítulos. Contudo,
os traços gerais do século XIX, bem como o significado global deste século na
história da África, permanecem controversos.
Em grande parte da África, o século XIX é mais bem conhecido e estudado
do que os períodos anteriores. Isso se deve à abundância e à confiabilidade rela-
1 P. D. Curtin, S. Feierman, L. ompson e J. Vansina, 1978, p. 362.
África no início do século XIX: problemas
e perspectivas
J. F. Ade. Ajayi
2
África do século XIX à década de 1880
tiva das fontes orais, assim como às novas fontes representadas pelos documen-
tos escritos decorrentes da intensificação da atividade dos europeus na África:
relatos de viajantes, de missionários, de comerciantes, de agentes diplomáticos e
outros representantes dos países europeus que penetraram, em muitos casos pela
primeira vez, em diversas regiões do interior do continente. Houve uma tendên-
cia, como no caso da tradição oral, para situar neste século privilegiado todas
as mudanças importantes sofridas pela África antes da colonização. Felizmente,
a dinâmica da evolução da África no decorrer dos precedentes períodos foi
analisada nos outros volumes da presente História, permitindo assim refutar o
mito” de uma África estática. Porém, o corolário desse mito subsistiu: acredita-
-se ainda que as mudanças ocorridas no século XIX seriam necessariamente
diferentes das mudanças anteriores, podendo apenas ser explicadas por fatores
antes desconhecidos. Portanto, é importante estudar aqui em que medida as
mudanças do século XIX prolongariam as do século XVIII, e em que medida
novos fatores, ligados à intensificação da atividade dos europeus e à crescente
integração da África ao sistema econômico mundial, poderiam explicá -las.
A tendência para explicar, exageradamente ou exclusivamente, as mudanças
ocorridas na África durante o “século pré -colonial” em função da intensificação
da atividade dos europeus coloca o segundo problema característico do estudo
deste período. A crescente integração da África ao sistema econômico mundial é
muitas vezes considerada, o somente como um elemento importante, mas antes
como o principal acontecimento da história da África no século XIX. Em vez de
ser considerado como um prenúncio, o século XIX aparece então como o início
do período colonial. Conforme a asserção do falecido professor Dike em Trade
and Politics, segundo a qual a história moderna da África Ocidental é, em grande
medida, a história de cinco séculos de comércio com os europeus”
2
, considerou -se
por muito tempo que o crescimento do comércio com os europeus, a organização
das rotas comerciais e o desenvolvimento (em mercados que se multiplicavam na
própria África) das trocas, destinadas a alimentar o comércio externo, eram os
principais, senão os únicos, fatores de mudança na história da África oitocentista.
Destarte, atribui -se a transformação do Egito ao choque causado pela chegada
2 K. O. Dike, 1956, p. 1. Tal asserção era claramente exagerada, até mesmo em relação à própria posição de
Dike em seu estudo do Delta do Níger no século XIX, pois neste são destacados os fatores internos de
mudança. S. I. Mudenge (1974, p. 373) critica assim a tese de Trade and Politics: “Uma vez estabelecida
a existência de relações comerciais com o estrangeiro, quando se trata de expor as consequências destas,
Dike negligencia o estudo do efeito real desse comércio sobre o sistema político, assim como de suas
relações com a produção e o consumo internos em cada Estado; ao contrário, ele concentra todos seus
esforços na descrição das rotas comerciais, dos mercados e dos produtos trocados.
3
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
de Bonaparte, em vez de considerar o complexo conjunto de fatores internos
que haviam originado, já no século XVIII, um movimento nacional em torno do
albanês Muhammad Ali. Ao se apoiar no renascimento egípcio, Muhammad Ali,
impedira o poder otomano de assentar de novo seu domínio direto sobre o Egito.
Da mesma forma, -se no Mfecane não um produto da própria dinâmica da
sociedade nguni do Norte, mas antes uma vaga reação à presença dos europeus,
reação esta que teria dado origem a pressões sobre a fronteira ocidental do Cabo
ou ao desejo de comerciar com os portugueses na baía de Delagoa. No início do
século XIX, a notável conjunção desses acontecimentos com as jihad da África
Ocidental e o despertar da Etiópia exigem uma explicação global
3
. Mas, em vez
de buscar essa explicação na dinâmica das sociedades africanas, os historiadores
acreditam poder encontrá -la na industrialização da Europa e na influência da
economia mundial sobre a África.
É, portanto, necessário, neste capítulo de introdução, concentrar nossa atenção
no que realmente era a África no início do culo XIX e destacar as características
e as tendências gerais deste período, a natureza e a importância dos elementos sub-
sistentes do passado, as inovações e outros elementos novos, e, por fim, as tendências
para o futuro. É apenas ao abordar logo esse problema que poderemos entender,
no fim do presente volume, o que foi a evolução da África noculo XIX e em que
medida devemos considerar a presença dos europeus como “uma condição prévia e
necesria ao desenvolvimento cnico, cultural e moral das sociedades africanas”
4
,
ou, pelo contrário, como a principal causa de subdesenvolvimento da África.
A demograa e os movimentos populacionais
5
No início do século XIX, os principais grupos linguísticos e culturais que
compunham a população da África haviam se estabelecido muito tempo
3 Ver a tentativa de I. Hrbek em 1965 (publicada em 1968): “É surpreendente o número de acontecimentos
de grande alcance ocorridos na África entre 1805 e 1820; ainda que não tenham ligações entre eles,
constituem um movimento distinto na história da África.” Ele cita as jihad dos fulbe da África Ocidental,
o levante dos zulus e o do Buganda, a fundação do Egito moderno por Muhammad Ali, a expansão
do Imerina em Madagascar, o levante dos omani em Zanzibar e a abolição do tráco de escravos. Ver
I. Hrbek, 1968, p. 47 -48. Os historiadores, que almejam doravante por uma síntese aplicável a todo o
continente, acreditam, muitas vezes de forma simplicadora, que a explicação global reside na integração
progressiva da África à economia global.
4 T. Hodgkin, 1976, p. 7, a respeito do ponto de vista daqueles que ele chama “os sábios administradores
imperialistas”.
5 Essa seção inspira -se em grande parte de dois capítulos da presente História, escritos respectivamente
por J. Vansina (cap. 3, vol. V) e J. C. Caldwell (cap. 18, vol. VII).
4
África do século XIX à década de 1880
nos diferentes territórios dos quais reivindicavam a posse. Na maior parte do
continente, essa partilha havia se findado antes do século XVII. No século XIX,
os diferentes grupos, após terem assentado suas posições, haviam alcançado uma
certa estabilidade. Nos séculos XVII e XVIII, foi apenas no Chifre da África e
na África Oriental (com exceção do centro da região dos Grandes Lagos), bem
como em Madagascar, que importantes migrações ocorreram rumo a regiões
relativamente pouco povoadas. Mesmo nessas regiões, as populações haviam
atingido, no início do século XIX, uma estabilidade que implica o domínio do
espaço.
Entenderemos aqui por migração o deslocamento extraordinário de um
grande número de pessoas em vastos territórios e durante um longo período. Os
deslocamentos regulares efetuados, a fim de garantir sua sobrevivência, por cria-
dores de animais transumantes, por cultivadores praticantes de culturas alterna-
das, por caçadores e aqueles que vivem da colheita, que percorriam determinados
territórios à procura de caça, de mel ou até de palmeiras das quais comiam as
frutas, por pescadores que seguiam as migrações sazonais dos peixes, por merca-
dores e artesãos especializados, como os ferreiros, que exerciam sua atividade em
colônias longínquas, todos esses deslocamentos ainda ocorriam, mas geralmente
não implicavam uma mudança definitiva e não apresentavam o caráter de uma
migração, no sentido que demos à palavra. Todavia, a pressão demográfica ligada
ao tipo de uso das terras, muitas vezes resultante de um crescimento popula-
cional normal durante um período de relativa prosperidade, ou a imigração
provocada por vários fatores guerra, desmoronamento dos sistemas políticos,
seca prolongada, epidemia ou outra catástrofe natural podiam acarretar pro-
cessos de expansão progressiva. Ocorreu um grande número dessas expansões
no século XIX. Algumas, como a dos fang na zona das florestas equatoriais,
desencadearam -se em função de movimentos anteriores ao século XIX; outras,
como a dos chokwe de Angola, foram provocadas pela modificação das relações
comerciais no século XIX. Os movimentos populacionais de maior amplitude
eram ligados ao declínio ou ao avanço dos sistemas estatais. Limitavam -se a
uma região, como aquele que se seguiu à queda do Antigo Oyo na parte ioruba
da Nigéria Ocidental, ou se estendiam em toda uma parte do continente, como
aquele dos nguni do Norte que, na África Austral, se seguiu ao Mfecane. As
populações em movimento muitas vezes tiveram que ocupar e cultivar terras que,
até então, haviam sido consideradas de qualidade inferior, e, por conseguinte,
desenvolver culturas e técnicas agrícolas adequadas a seu novo meio.
Estima -se habitualmente em 100 milhões de habitantes a população total da
África no início do século XIX. Este número é arbitrário, pelo menos em parte,
5
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
e resulta de uma extrapolação fundada nos poucos dados demográficos relativos
ao período posterior a 1950. Tal estimativa pode se revelar muito diferente do
número real. Porém, do ponto de vista histórico, as questões essenciais referem-
-se menos ao número exato da população do que às tendências demográficas e
às suas relações com os sistemas econômicos, a atividade agrícola e a repartição
geográfica da população em relação aos recursos do solo.
Em virtude da organização da agricultura, do grau de desenvolvimento das
técnicas e da higiene, bem como da forte mortalidade infantil causada pelas
doenças, os demógrafos supõem geralmente que a população total não podia
aumentar muito. O crescimento anual teria se situado habitualmente na faixa
dos 0,5% (ao passo que alcança atualmente entre 2,5 e 3,5%), ou seja, cada ano,
o número dos nascimentos teria ultrapassado o dos óbitos de 50 por mil habi-
tantes. A população teria assim duplicado em um milênio. Na África do Norte,
visto que a população permanecia estável e que se praticava uma agricultura
intensiva, e a irrigação nas regiões férteis, principalmente nos oásis, a população
aumentava regularmente durante os períodos de prosperidade. Entretanto, tudo
indica que esse crescimento não compensava as secas e as epidemias, de modo
que a população podia dificilmente permanecer estável. Nas pastagens do Sudão,
da África Central e Austral, as populações transformavam constantemente suas
técnicas. Elas associavam a criação ao cultivo do solo ou praticavam diver-
sos tipos de agricultura mista, capazes de garantir a subsistência da crescente
população. Os habitantes das regiões mais arborizadas também desenvolveram
tipos de agricultura permitindo o crescimento demográfico. No século XVIII,
a população atingia uma forte densidade em regiões como a Baixa Casamansa,
o país dos igbo no Sudeste da Nigéria, as pastagens de Camarões e a região
dos Grandes Lagos da África Oriental. Contudo, acrescentando -se às catás-
trofes naturais, o tráfico de escravos e as guerras mortíferas por ele acarretadas
causaram perdas demográficas de grande escala e, notadamente, a diminuição,
durante um longo período, do número de mulheres em idade de procriar. Tais
perdas fizeram com que a população total da África diminuísse nos séculos XVII
e XVIII. Esse despovoamento, desigualmente repartido, atingiu de forma mais
ampla aqueles que eram menos capazes de se defender, então concentrados no
oeste e no centro -oeste da África.
Ainda não se analisaram todos os efeitos desse despovoamento. As hipóteses
a seu respeito continuam a alimentar uma viva controvérsia
6
. Considera -se hoje
6 Ver J. E. Inikori (org.), 1982a e 1982b, p. 29 -36.
6
África do século XIX à década de 1880
que o crescimento rápido da população, associado a recursos escassos e a uma
produtividade limitada, é uma das principais características do subdesenvolvi-
mento
7
. Porém, isso apenas se verifica no caso de economias interdependentes.
No caso das economias relativamente independentes do início do século XIX,
foi sobretudo o subpovoamento que constituiu um fator de subdesenvolvi-
mento. Tudo indica que algumas comunidades africanas, ao compará -las com
suas vizinhas, tiraram proveito do tráfico de escravos. Conseguiram conservar
sua capacidade de resistência ao explorar a fraqueza de outras comunidades.
Assim fizeram durar sua prosperidade o tempo suficiente para implementar
sólidos sistemas econômicos, nos quais o crescimento demográfico aumentava
a produtividade e garantia o desenvolvimento. É, contudo, provável que essas
mesmas comunidades tenham sofrido do empobrecimento de suas vizinhas e
da insegurança que reinava em suas fronteiras. Nenhuma sociedade ou econo-
mia poderia ter escapado do traumatismo e do desalento geralmente causados
pelas consideráveis perdas demográficas acarretadas pelo tráfico de escravos e as
guerras correlatas
8
. O tráfico parece fornecer a melhor explicação pelo fato de a
África, entre todos os continentes, ter tido as mais instáveis e frágeis estruturas
políticas e econômicas do século XIX. As fronteiras dos Estados e os centros
administrativos deslocaram -se aparentemente ao ritmo de uma constante flutu-
ação. Se considerarmos os métodos e as técnicas em uso na época, os agricultores
não teriam tirado o melhor proveito da maioria das terras.
O século XIX não alterou de vez a situação demográfica em seu conjunto.
A campanha em favor da abolição do tráfico só produziu seus efeitos de forma
demorada. De início, o processo de abolição resultou menos na redução da
exportação de escravos do que na concentração do tráfico em um número redu-
zido de portos. Lenta no início, a queda nas exportações tomou, após 1850,
proporções consideráveis. Porém, o tráfico rumo a Zanzibar e ao Oceano Índico
aumentava à medida que diminuía o das Américas. Ademais, o crescimento
das exportações que substituíram o tráfico fez com que, na própria África, se
precisasse de um número muito maior de escravos para conseguir marfim, para
recoltar o óleo de palma, os amendoins, o mel, os cravos -da -índia e, mais tarde,
a borracha e o algodão, bem como para transportar todos esses produtos. O
século XIX assistiu, portanto, ao crescimento considerável do tráfico interno e
do trabalho servil, o que teve desastrosas consequências sobre os procedimen-
tos de exploração. Alguns historiadores afirmam que a população diminuiu
7 L. Valensi, 1977, p. 286.
8 J. E. Inikori, 1982b, p. 51 -60.
7
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
pela metade, no período de uma geração, em determinadas regiões de Angola
antes de 1830, e da África Central e Oriental pouco após 1880. Entretanto, a
abolição da escravidão permitiu parar com a deportação maciça dos africanos.
Tudo indica que, no começo do século XIX e pela primeira vez desde o século
XVII, a população tendeu a crescer no conjunto do continente
9
. Esse movimento
acentuou -se entre 1850 e 1880, depois declinou um pouco no início da colo-
nização, antes de prosseguir, lentamente de início e depois em um ritmo mais
acelerado, a partir dos anos 1930. Esse crescimento demográfico do início do
século XIX, devido a fatores tanto internos quanto externos, foi, por si mesmo,
um importante fator de mudaa, particularmente em regiões que, como a
África Oriental e Austral setecentista, não foram atingidas, ou muito pouco,
pelo tráfico de escravos.
O crescente interesse dos europeus pela África
Quaisquer que sejam as dúvidas a respeito do número da população da África
no início do século XIX ou das consequências do crescimento demográfico da
época, um elemento do qual temos certeza: os europeus mostraram, então,
pela África um crescente interesse, cuja importância como fator de mudança na
história da África foi certamente exagerada.
Tal interesse levou de início os europeus a empreenderem, aproximadamente
a partir do fim do século XVIII, expedições visando recolher informações mais
precisas sobre as principais características geográficas do continente africano:
fontes dos rios, situação das montanhas e dos lagos, repartição da população.
Buscava -se também saber quais eram os maiores Estados, os mais importan-
tes mercados e as principais produções agrícolas e industriais. A Revolução
Francesa, as guerras napoleônicas e os esforços dos países coligados nota-
damente da Inglaterra, enquanto principal potência marítima para conter a
expansão francesa tiveram repercussões sobre a África. Os franceses, para os
quais o Egito representava a porta do Extremo Oriente, ocuparam Alexandria
e Cairo. Os ingleses tomaram a colônia holandesa do Cabo. Em seguida, ao
tomar amplitude, o movimento em prol da abolição da escravidão permitiu
à Inglaterra, cuja supremacia marítima se afirmava cada vez mais, intervir na
África o quanto queria, sob o pretexto de uma missão a cumprir. Em 1807, o
Governo inglês proibiu o tráfico de escravos aos mercadores ingleses e fez da
9 UNESCO, História Geral da África, vol. VII, cap. 18; ver também J. C. Caldwell, 1977, p. 9.
8
África do século XIX à década de 1880
cidade de Freetown, fundada por escravos alforriados, uma colônia da Coroa e
a base de uma campanha naval dirigida contra o tráfico ao largo da África Oci-
dental. Os franceses foram expulsos do Egito, mas, aproveitando -se da fraqueza
do Império Otomano, continuaram a buscar vantagens, entre outras comerciais,
na África do Norte, onde a luta contra os piratas magrebinos servia de desculpa
para seus empreendimentos. Após sua derrota, os franceses tiveram que aderir
ao movimento abolicionista, e isso foi mais uma razão para eles se interessarem
nos portos e nas feitorias da África Ocidental. No século XIX, o abolicionismo,
as missões e a busca por produtos cujo comércio era mais honorável do que
o dos escravos tornaram -se, portanto, elementos importantes da situação
política da África.
Convém não exagerar, nem a potência dos europeus na África no início do
século XIX, nem o ritmo com o qual adquiriram posses” ou penetraram no
interior do continente antes de 1850. Os portugueses pretendiam dominar os
territórios que vão de Angola a Moçambique. No interior das terras, haviam
fundado postos militares e prazos (explorações agrícolas), e dominavam inter-
mitentemente a região que se estendia de Loje, a Sul do Cuanza, até Casanga
(Kasanga), a Leste, além de suas feitorias situadas na costa, entre Ambriz e
Moçâmedes. Em Moçambique, a dominação portuguesa limitava -se, em 1800,
à Ilha de Moçambique. Nessa ilha, os mercadores brasileiros e mulatos desem-
penhavam um papel mais importante do que os administradores portugueses.
A crescente demanda por escravos do fim do século XVIII e do início do XIX
levou -os a abandonarem o sistema dos prazos. A segurança das rotas comerciais
era principalmente garantida pelos pombeiros. Porém, esses mulatos descalços,
que vendiam produtos brasileiros, não poderiam ter exercido seu comércio caso
este não tivesse sido tolerado pelos chefes e mercadores africanos
10
. Após 1815,
os franceses haviam restabelecido suas feitorias da Senegâmbia, notadamente
em Saint -Louis e Gorée. No Waalo, eles tentaram fundar, sem sucesso, uma
exploração agrícola defendida por um posto militar em Bakel. Na África do
Norte, tomaram Argel em 1830. Vinte anos foram necessários para derrotar a
resistência dos argelinos liderados pelo emir Abd Al -Kādir (Abd El -Kader).
Na colônia inglesa formada por Freetown e pelas aldeias de agricultores vizi-
nhas, a aculturação dos escravos alforriados deu origem à cultura “crioula”. A
crescente prosperidade dessa colônia e a emigração de seus habitantes para
Bathurst, Badagri, Lagos, e mais adiante, estendeu sobre a costa a influência
10 A. F. Isaacman, 1976, p. 8 -11.
9
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
dos mercadores e dos missionários ingleses que, em um ou dois lugares como
Abeokuta, começaram a penetrar no interior do continente por volta de 1850.
Na Costa do Ouro, os ingleses, ainda submetidos à concorrência dos comer-
ciantes dinamarqueses e holandeses, opuseram -se aos esforços de dominação
dos ashanti, notadamente ao explorar o temor que estes últimos inspiravam
aos fanti, incentivando -os a unirem -se sob a proteção da Inglaterra. Na África
Austral, ainda que os fazendeiros ingleses não tivessem conseguido se implantar
em Natal, a colônia do Cabo estendeu -se consideravelmente graças à secessão
dos trekboers rebeldes que avançaram para o interior do continente, obrigando
assim os ingleses a segui -los, ainda que fosse apenas para impedir seu extermínio
pelos exércitos dos novos Estados africanos. Dessa forma, os ingleses pareciam
ser os árbitros da situação e os verdadeiros senhores da região. Mas a África do
Sul permaneceu, até meados do século XIX, uma colônia dividida e povoada
por fazendeiros pobres, muitas vezes à mercê de seus vizinhos africanos, os quais
não eram menos divididos.
Foram feitas várias tentativas no intuito de repetir o sucesso dos ingleses
em Freetown: os americanos fundaram uma colônia na Libéria e os franceses
em Libreville. O crescente interesse dos ingleses e dos franceses sobre a Índia
e o Oceano Índico Aden, Ilha Maurício, Madagascar e o novo sultanato de
Zanzibar começou a ter repercussões na África. Contudo, é preciso lembrar
que os europeus e os americanos chegavam à África pelo mar, concentrando -se
assim nas costas. Penetraram pouco no interior do continente antes de 1850,
enquanto os principais acontecimentos do início do século XIX na África, tais
como o Renascimento Etíope, o Mfecane ou as jihad da África Ocidental,
surgiram todos, com exceção da reforma de Muhammad Ali, no interior do
continente.
A presença dos missionários contribuiu muito para o notável sucesso dos
ingleses em Freetown. Respondendo às exigências da situação e após terem
superado as hesitações inspiradas por sua pietista, missionários de cultura
alemã, oriundos de Brema e, sobretudo, de Basileia, participaram da valorização
dessa colônia britânica. Da mesma maneira que os missionários ingleses, eles
entenderam que a exploração das fazendas, o estudo dos idiomas autóctones, o
ensino, a construção e o comércio ofereciam maiores possibilidades de ação do
que a predicação. Foi construído um certo número de missões, e alguns missio-
nários de primeiro plano desempenharam, a título individual, um papel impor-
tante nos conflitos raciais. Porém, o sucesso de Freetown nunca foi igualado.
Surgiram diversas organizações encarregadas da propagação do cristianismo. O
ensino básico e os estudos linguísticos inaugurados pelos primeiros missionários
10
África do século XIX à década de 1880
apenas frutificariam mais tarde. Na África, as missões cristãs constituíram um
fator de mudança mais importante na segunda metade do século XIX do que na
primeira. Em 1850, Livingstone efetuava sua primeira expedição missionária.
A Congregação dos Padres do Espírito Santo foi fundada em 1847, a dos Padres
Brancos em 1863.
Na primeira metade do século XIX, a atividade dos comerciantes europeus
ampliou -se de forma muito mais rápida e alcançou territórios muito maiores do
que a influência dos missionários. Isso se deveu em grande parte ao fato de esse
comércio ser a continuação do tráfico de escravos que ocorreu antes do século
XIX. Os primeiros a praticarem o comércio legítimo foram os negociantes, que
haviam antes praticado o tráfico, ou que permaneciam negreiros. Tal fato merece
ser destacado, que as estruturas das novas relações comerciais eram muito
semelhantes àquelas do tráfico. A moeda desempenhou um papel cada vez maior
após 1850, mas, na primeira metade do século, o comércio do óleo de palma,
dos amendoins, do marfim e dos cravos -da -índia, baseava -se no tráfico interno
e no crédito: era preciso, após ter pagado adiantado em gêneros aos mercadores
africanos, tomar medidas para proteger o investimento e garantir a entrega dos
bens assim adquiridos. Os negociantes europeus permaneciam na costa, onde
comerciantes africanos do interior traziam -lhes mercadorias. Da mesma forma,
intermediários africanos, inclusive pombeiros ou comerciantes árabes e suaílis,
traziam para a costa produtos negociados no interior em troca de mercadorias
compradas a prazo no litoral. Enquanto duraram essas formas de organização, as
trocas comerciais permaneceram estruturadas da mesma forma que nos séculos
anteriores. A colheita das frutas da palmeira, da goma arábica e do mel, e até a
caça aos elefantes, empregavam um maior número de africanos do que a captura
de escravos e sua venda aos europeus. Por outro lado, nas principais regiões de
comércio na costa ou a proximidade das rotas comerciais –, as populações afri-
canas modificaram progressivamente a composição de suas classes dirigentes e a
maneira pela qual seus membros eram escolhidos. Os acontecimentos do século
XIX favoreceram, em especial, a chegada ao poder de alguns grupos de guer-
reiros. Os descendentes de escravos alforriados consagravam -se muitas vezes ao
comércio: o número e a importância desses comerciantes crioulos cresceram nos
anos 1870. Não devemos, contudo exagerar a rapidez e a amplitude da mobili-
dade social. Os chefes tradicionais não renunciaram facilmente a seus privilégios.
Pelo contrário, em todo lugar onde era possível, eles assentaram sua posição ao
se apoiar em guerreiros, ou mesmo em mercadores europeus ou crioulos. Os
guerreiros ou mercadores crioulos desejosos de tomar parte nos privilégios do
chefe deviam respeitar as estruturas existentes a reger a competição política. Eles
11
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
deviam recrutar uma importante comitiva, composta principalmente de escravos
e clientes, e adquirir as riquezas cuja distribuição lhes permitiriam ascender ao
poder. Assim, uma vez que a diversificação dos produtos trocados não acarretou
nenhuma transformação do sistema de relações comerciais, não ocorreu, pelo
menos durante a primeira metade do século XIX, a revolução econômica e social
que se podia esperar.
O comércio europeu crescia rapidamente
11
. Porém, tal expansão só foi possí-
vel em virtude do sistema já existente das relações comerciais locais e regionais.
Desse fato decorre um certo número de consequências que cabe destacar aqui.
A primeira foi o fato de o comércio local e regional depender muito menos das
impulsões vindas do exterior que da dinâmica interna das comunidades africa-
nas e, em especial, de seus sistemas de produção agrícola, artesanal e industrial.
Outra consequência, pelo menos no início, consistiu no fato de o comércio
externo ocupar, na vida da maioria das populações africanas, um lugar muito
menos importante do que o comércio interno. A imporncia do comércio
externo não foi, contudo, negligenciável, que o controle desse comércio foi,
talvez, em certos casos, um fator decisivo de superioridade. É difícil estabelecer
em que medida o desenvolvimento do comércio exterior contribuiu para o enri-
quecimento de alguns chefes africanos, ou permitiu -lhes obter produtos essen-
ciais que não poderiam ter conseguido de outra forma. Dentre esses produtos, os
mais importantes para a maioria dos Estados africanos eram as armas de fogo.
Os esforços dos europeus para controlar, em seu próprio interesse, o comércio
das armas de fogo fizeram com que um grande número de chefes atribuísse ao
comércio exterior – que era um dos meios para adquirir essa mercadoria – uma
importância que, na realidade, não era tão grande, pois a posse de fuzis nem
sempre bastava para garantir a superioridade militar.
Outro problema colocado pelo desenvolvimento do comércio exterior é o de
suas repercussões, não somente no que diz respeito ao comércio local e regional,
como também no que tange à agricultura. Qualquer seja a importância atribuída
por determinados chefes ao comércio exterior, se considerarmos a atividade das
populações africanas em seu conjunto, é certo que tal comércio não influenciou
verdadeiramente a agricultura, ao menos durante a primeira metade do século
XIX. A agricultura empregava uma grande maioria da população, ela provia as
necessidades básicas, como a de comer, de se vestir e de se alojar, e seus produ-
tos eram amplamente usados nas fabricações artesanais e industriais. Por isso é
11 Encontra -se um resumo útil, embora verse sobre o conjunto do século pré -colonial, em P. D. Curtin e
al., 1978, particularmente nas páginas 369 e 376 e no capítulo 14, p. 419 -443.
12
África do século XIX à década de 1880
inconcebível que se possa atribuir -lhe menos importância do que ao comércio
em geral e ao comércio exterior em particular.
Os sistemas de produção agrícola
Convém destacar o fato de, no início do século XIX, a economia de todas as
comunidades africanas fundar -se na produção de alimentos por meio de uma
ou mais atividades: cultivo do solo, criação de animais, pesca e caça. Todas as
outras atividades comércio, política, religião, produção artesanal e industrial,
construção, exploração de minas – eram secundárias em relação à agricultura, e
sem esta, não poderiam ter existido
12
. Além de a agricultura ocupar, nesta época,
um lugar central na vida econômica da imensa maioria dos africanos, os diver-
sos sistemas de produção agrícola permitem, em grande medida, compreender
a estrutura das relações sociais e políticas no seio das comunidades, as relações
das comunidades entre si, e sua atitude frente ao comércio exterior. É, portanto,
de se surpreender que os historiadores tenham concentrado toda sua atenção
no comércio exterior
13
, sem indagar sobre esses sistemas que fundamentavam
as sociedades africanas.
A maioria das pesquisas que podem ser consultadas sobre a agricultura na
África no século XIX considera -a do ponto de vista das economias coloniais.
Norteadas por preocupações teóricas e ideológicas, tais pesquisas procuram
mais participar de uma discussão sobre o subdesenvolvimento do que entender
a evolução da agricultura africana oitocentista. Veem nos diferentes sistemas de
produção agrícola a base uniforme de uma “economia natural” e, no advento do
mercantilismo, o prelúdio do capitalismo periférico, característico do período
colonial. Poucas pesquisas baseiam -se em dados empíricos para mostrar o fun-
cionamento e o desenvolvimento de determinadas comunidades agrícolas do
século XIX. Ademais, não permitem considerar, independentemente do ponto
de vista acima referido, as diferentes regiões da África, e ainda menos fazer
uma síntese aplicável a todo o continente. Podemos, contudo, graças às infor-
mações nelas contidas, submeter a um novo exame as principais características
da agricultura, enquanto fundamento das sociedades africanas, e os fatores que
a modificaram.
12 D. Beach, 1977, p. 40, a respeito dos shona.
13 Ver P. J. Shea, 1978, p. 94: “O comércio e a produção são, evidentemente, ligados, mas estimo que seja
preciso se interessar, em primeiro lugar, pela produção.”
13
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
O estudo de algumas comunidades rurais da Tunísia, entre 1750 e 1850
14
,
trouxe à tona algumas características, essencialmente aplicáveis às regiões sub-
metidas à influência otomana, mas também encontradas nas demais regiões da
África: o regime fundiário; o sistema familiar de produção e de troca; as pressões
exercidas pelo governo central que, em troca dos impostos que arrecadava, prote-
gia seus súditos, mas não garantia quase nenhum serviço público; e o constante
perigo que representavam, para a saúde, as epidemias de peste, de cólera e de
varíola. O autor desse estudo escolheu considerar o período que se estende de
1750 a 1850 para destacar a continuidade dos fatos nele compreendidos, bem
como para mostrar claramente que a fraqueza da economia tunisiana remontava
mais ao século XVIII do que ao XIX e, portanto, que não se podia atribuí -la à
intervenção dos europeus. Por enquanto, deixaremos de lado esse problema e o
fato de existir, no Magreb e no Egito, sem falar do resto da África, uma grande
variedade de formas sociais e políticas. As principais características da situação
tunisiana não menos merecem ser examinadas, no quadro de uma apresentação
geral dos problemas africanos.
O regime fundiário das comunidades tunisianas do início do século XIX era
submetido à lei islâmica. Contudo permitia, tanto em teoria como em prática,
um grande leque de interpretações por parte do governo central, dos kā‘id ou das
famílias interessadas. Em função da prática da agricultura intensiva caracterís-
tica dos oásis”, as terras tinham um valor econômico superior ao resto da África.
Portanto, era maior a tentação de trocá -las por dinheiro. Porém, o elemento
essencial consiste no fato de, no início do século XIX, a propriedade privada do
solo geralmente não ser reconhecida, o que constituía uma diferença fundamen-
tal em relação ao sistema feudal da Europa. Na Tunísia, bem como em outras
partes da África, a terra pertencia à comunidade ou ao rei, na medida em que
este último estava encarregado dos interesses daquela. No nível local, o kā‘id, ou
qualquer outro representante competente da autoridade, atribuía aos agricultores
o uso das terras. Tal direito de atribuição gerava, por vezes, algumas rivalidades.
Comunidades vizinhas, mesmo quando pagavam um tributo ou impostos ao
mesmo suserano, disputavam -se às vezes o direito de explorar diretamente as
terras ou de distribuí -las entre os agricultores. Todavia, o princípio fundamental
era a impossibilidade de compra ou venda do solo. No século XIX, a evolução
tornou -se mais rápida, principalmente com a chegada dos europeus. A separação
dos campos por cercas e o desenvolvimento das explorações agrícolas contribu-
14 L. Valensi, 1977.
14
África do século XIX à década de 1880
íram para a generalização do comércio das terras. Por vezes, o governo central,
ao mesmo tempo em que mantinha, em teoria, o fundamento jurídico do regime
fundiário, buscou tirar proveito do valor econômico do solo. Da mesma forma,
as famílias que sofriam dificuldades financeiras procuravam às vezes garantir um
empréstimo ao ceder a seus credores, ao menos temporariamente, uma porção
de terreno. Essas práticas apenas modificaram progressivamente o sistema de
produção agrícola herdado do século XVIII, e raramente alteraram de forma
significativa o fundamento teórico do regime fundiário.
Destacaremos mais uma vez a diversidade, do ponto de vista dos modos de
produção agrícola, apresentada pelas diferentes áreas ecológicas da África, quer
se trate dos sistemas de propriedade e de sucessão, das ferramentas básicas, dos
tipos de culturas, do uso do solo, da divisão das tarefas entre homens e mulheres,
ou ainda, da especialização das diferentes comunidades no que concerne à esco-
lha das culturas, às técnicas agrícolas ou à criação de animais. Porém, existe outra
característica da situação tunisiana que se pode aplicar ao conjunto da África.
Essa característica evidencia o erro que consiste em falar, a respeito da agricul-
tura africana, de uma “economia de subsistência” ou de uma economia natural”.
Essas expressões têm como origem a ideia falsa, segundo a qual as comunidades
rurais da África eram comunidades estáticas formadas por “tribos independentes
ou quase”
15
. que se recolheram fatos refutando a hipótese do isolamento das
comunidades, alguns defensores do conceito de agricultura de subsistência, ao
mesmo tempo em que reconhecem a importância predominante da circulação
dos bens e dos serviços, tentam doravante dar à subsistência uma definição base-
ada em uma concepção ideológica. Eles sustentam que os agricultores africanos
praticavam uma agricultura de subsistência, mas que não eram camponeses,
que, mesmo ao praticar trocas, a busca do lucro não era seu principal objetivo.
Eles definem os camponeses como pequenos produtores agrícolas que garantem
a sua subsistência ao vender uma parte de sua safra e de seu rebanho”. Ademais,
eles consideram que o surgimento do campesinato resulta necessariamente da
formação de novos mercados e da busca do lucro
16
. A história da Tunísia mos-
tra muito bem que na África do início do século XIX, os sistemas de produção
agrícola eram organizados de tal maneira que as comunidades não podiam ser
independentes. A diversidade dos solos, das tradições familiares, das preferências
15 E. P. Scott, 1978, em particular as páginas 449 e 453, cujas notas relatam a longa controvérsia baseada
na oposição entre agricultura de subsistência e troca, e entre o caráter “formal” e o caráter “real” das
trocas.
16 R. Palmer e N. Parsons, 1977b, p. 2 -5.
15
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
individuais e das técnicas, tinha como efeito a diversidade das culturas. O cultivo
do solo, a fabricação artesanal e a criação de animais, formavam combinações
cuja variedade incitava as famílias a satisfazer suas necessidades básicas, trocando
entre si suas produções. Cada família cedia parte de seu excedente em troca do
que ela necessitava, mas não produzia, e conservava o restante em previsão de
uma seca ou de outra catástrofe.
No início do século XIX, não existiam, em nenhuma região da África, inclu-
sive nas mais afastadas, comunidades que pudessem ser consideradas totalmente
autossuficientes ou independentes. Em sua pesquisa sobre o reinado de Womu-
nafu no Bunafu, D. W. Cohen mostrou que mesmo uma pequena comunidade
isolada dispunha de bens e de serviços que apenas especialistas podiam lhe
oferecer
17
. O Bunafu era uma região afastada do norte do Busoga que, segundo
Cohen, nunca até então fora submetida a algum tipo de poder administrativo.
Um certo número de chefes acompanhados por suas famílias e seus partidários,
ali se havia estabelecido no fim do século XVIII e no início do XIX. Tal pene-
tração era ligada às últimas fases das migrações dos luo. Estes, oriundos das
fontes do Nilo, viram se juntar a eles grupos expulsos das margens setentrionais
do Lago Vitória e de pequenos Estados, como Luuka, pela expansão do reino
do Buganda. Esses migrantes evitavam os Estados já constituídos e procuravam
regiões pouco povoadas. Suas casas eram espalhadas em vez de serem agrupadas
em aldeias. o havia verdadeiras feiras onde trocar seus produtos de forma
regular. Os casamentos, os ritos e outras formas de relações sociais fizeram com
que nascesse entre eles o sentimento de constituir uma comunidade. Após um
período de luta pelo poder, um dos pretendentes conseguiu impor sua autori-
dade a todo o grupo, mas, em termos de vida social, cada família permanecia
organizada em torno de suas terras. Como afirma Cohen:
a dispersão dos domínios [...] favorecia o surgimento e a preservação de tradições
heróicas, cujo tema central era o arroteamento dos territórios, fundando assim a
perenidade do poder e dos direitos dos descendentes do arroteador sobre tal terri-
tório. O princípio estabelecido consistia no fato de cada ontem ser o senhor de seu
domínio, da mesma forma que o rei era o senhor de seu reino. O domínio era um
mundo fechado, que fosse ou não circundado por uma cerca; dentro dos limites de
seu domínio, cada homem era soberano
18
.
17 D. W. Cohen, 1977, p. 48; ver também mapa 11.2 abaixo.
18 Ibid., p. 43.
16
África do século XIX à década de 1880
Não é necessário mostrar, de forma detalhada, como e sob que forma um
poder supremo se destacou a partir das tradições rivais, relativas aos fundadores
das diferentes famílias do Bunafu. O que é preciso sublinhar é o fato de, no
século XIX, os domínios serem as unidades do sistema de propriedade fundiária
e de produção. Porém, mesmo no Bunafu, apesar das cercas que os circunda-
vam e da distância que os separavam uns dos outros, os domínios não eram
autossuficientes. Em um período de duas gerações teceram -se relações sociais
e culturais, formando assim uma rede em que os bens e os serviços circulavam
com uma notória facilidade. Recém -chegados, como o mukama Womunafu e
seus companheiros, introduziram técnicas, conhecimentos e produtos novos.
A demanda por determinados produtos, notadamente usados na agricultura,
como o sal, a olaria e os objetos de ferro, dava por vezes origem à organização
de uma feira, onde os habitantes traziam, a fim de trocá -los por esses produtos,
tecidos de casca de árvore, peles ou animais vivos. Outros levavam diretamente
o excedente de sua produção a pescadores ou a artesãos especializados, como os
forjadores ou os oleiros. Os bens e os serviços circulavam também sob a forma
de pagamentos para determinados ritos, ou na ocasião dos casamentos e de
outros acontecimentos da vida social, sem falar dos saques, roubos e sequestros.
O estudo de Cohen apresenta -nos, como ele mesmo diz, uma série de quadros
da vida econômica de uma região que, no início do século XIX, ainda não era
submetida a qualquer poder administrativo. Essa economia não era ‘canalizada’
pelo comércio internacional ou inter -regional, mas baseava -se em uma rede de
circulação, de distribuição e redistribuição especialmente densa e extensa
19
.
Até mesmo no Bunafu, as mudanças do século XIX acarretaram obrigações e
possibilidades novas. À medida que as famílias cresciam, as culturas se estendiam
a terras antes negligenciadas. Tentaram -se novas culturas de que se desconfiava
até então; algumas dentre elas tomariam mais tarde uma grande importância. O
“horizonte econômico das comunidades crescia à medida que o comércio estrei-
tava os laços das aldeias com os portos da costa e os mercados ultramarinos. O
desenvolvimento das relações comerciais provocou mudanças sociais e políticas.
Tais relações tenderam a reforçar a posição dos chefes, que podiam enriquecer
mais rapidamente com a taxação do comércio do sal, do ferro e do cobre – sem
falar do marfim, da cera de abelha e do óleo de palma – que com a arrecadação
de tributos sob a forma de produtos agrícolas e de trabalho obrigatório. Porém,
os chefes podiam dificilmente apropriar -se de todos os benefícios do comércio.
19 Ibid., p. 47 -48.
17
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
A fim de buscar fortuna, um grande número de indivíduos deixou o lugar de
residência imposto a eles pela tradição, aumentando assim a mobilidade social.
Essas lentas mudanças não constituíam verdadeiras novidades, mas resultavam,
antes, da acentuação de uma tendência e da generalização de um comportamento
que se podia observar no século XVIII. Não devemos, portanto, exagerar o
efeito do comércio exterior. Como o mostra J. -L. Vellut, a história da África no
século XIX não se reduz à maneira pela qual o continente enfrentou as flutua-
ções da economia mundial; trata -se também da história da lenta diversificação
dos recursos naturais explorados pelos africanos
20
. É imprescindível destacar
esse fator interno, ao mesmo tempo influenciado por fatores externos e na base
da reação suscitada por estes. Como indicado por Cohen no capítulo sobre a
região dos Grandes Lagos até agora considerada pelos historiadores como
um conjunto de Estados centralizados reagindo a forças externas essa região,
no século XIX, não era apenas um conjunto de Estados, pequenos e grandes,
mas também um mundo em que o indivíduo e a família não cessavam, de mil
maneiras, e por vezes insensivelmente, de mudar de atitude frente à autoridade
do Estado, à participação social, à produção e ao comércio
21
.
É interessante comparar, no início do século XIX, a organização da agricul-
tura nos arredores da antiga cidade de Kano, no norte da Nigéria, com aquela
que prevalecia no Bunafu, essa região do norte do Busoga ainda não submetida
à autoridade administrativa. As feiras ocupavam um lugar maior na economia
do Kano, pois essa cidade tornara -se, desde muito, um dos centros do comércio
local, regional e internacional, graças a suas atividades manufatureiras: fabricação
e tingimento dos tecidos e curtição. Entretanto, seria um erro concentrar nossa
atenção nas correntes determinadas pelas feiras e pelas rotas comerciais, em vez
de interessarmo -nos na rede de relações sociais e culturais de que dependiam tais
rotas e feiras. O soberano, a classe dirigente e os mercadores de Kano desem-
penhavam um papel considerável na vida econômica dessa cidade fortificada,
também influenciada pelo islã. Todavia, tanto em Kano quanto no Bunafu e
nas comunidades rurais da Tunísia, a produção agrícola, quer se tratasse das
culturas de base ou das diversas espécies de algodão e de plantas tintureiras,
dependia essencialmente dos plebeus dos domínios rurais, que constituíam a base
do sistema de produção. Como o apontou Abdullahi Mahadi, em uma pesquisa
recente, na região de Kano, o maigida, ou seja, o chefe de um domínio, agia
como o governador de uma cidade”. O pessoal de sua casa recebia dele comida
20 J. -L. Vellut, cap. 12 abaixo.
21 D. W. Cohen, cap. 11 abaixo.
18
África do século XIX à década de 1880
e vestimentas; ele presidia os acontecimentos de sua vida social; cada ano, ele
determinava a extensão das terras a serem cultivadas, assim como o tipo de cul-
turas que receberiam; ele decidia quanto tempo seria empregado no trabalho da
exploração coletiva (gandu) e nas explorações individuais (gayauna). O trabalho
não era nitidamente dividido por gênero. Todo mundo participava da semeadura:
os homens cavavam buracos no solo para ali depositar as sementes, ao passo que
mulheres e crianças as recobriam de terra. Os adultos dos dois sexos cuidavam da
capina enquanto as crianças guardavam os carneiros, as cabras e outros animais
domésticos. As mulheres juntavam no meio do campo os feixes colhidos pelos
homens. Além da rede de relações sociais e culturais que, em alguns casos, impli-
cavam o trabalho em comum e a troca dos produtos, havia o que era chamado de
gayya (trabalho comunitário), realizado pelos habitantes de uma aldeia de forma
voluntária mas um bom cidadão devia participar conscienciosamente quando
um excedente de mão de obra era requisitado para a semeadura, a colheita, a
construção de uma casa ou outra atividade dessa importância
22
.
Como mencionado acima, no que diz respeito ao controle da economia e
da vida das comunidades reais, o Estado, encarnado pelo emir e seus represen-
tantes oficiais, desempenhava em Kano um papel mais ativo do que no Bunafu.
A esse respeito, a situação de Kano assemelhava -se à da Tunísia. O emir era
considerado o dono do solo. Ele podia também regulamentar a aquisição, o uso
e a alienação das terras. Ele tinha o poder de proibir o uso da terra àqueles de
seus súditos que haviam voluntariamente desobedecido, falharam no cumpri-
mento de suas obrigações tributárias, ou cometiam, de forma corriqueira, ações
contrárias aos interesses da sociedade, tal como o roubo. Ao mesmo tempo, o
emir tinha o dever de garantir a seus súditos leais a posse de suas terras, de tal
forma que os chefes de domínios acreditavam geralmente ser o dono delas. Mas
nem por isso acreditavam que a posse garantida pelo emir pudesse outorgar -lhes
o direito de alienação, ainda que fosse geralmente permitido alugar ou sublocar
suas terras. Apoiando -se nessa concepção segundo a qual o emir era o dono do
solo, soberanos empreendedores incitaram vários grupos, notadamente oriundos
do Borno, de Azben ou do Nupe e que podiam introduzir em Kano diversas
técnicas agrícolas ou industriais, a instalarem -se em diferentes partes do reino,
onde substituíram as populações autóctones geralmente incitadas a deixar a
região que habitavam. O rei outorgava domínios aos chefes, aos principais digni-
tários e mercadores. Estes ali empregavam seus escravos e clientes para o cultivo
22 A. Mahadi, 1982, especialmente o cap. 6,Agricultural and Livestock Production”.
19
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
do solo, a criação de animais e a produção industrial. Outros trabalhadores foram
recrutados por meio do sistema que instituía o trabalho voluntário, o gayya.
O êxito obtido pela jihad no início do século XIX trouxe importantes mudan-
ças à potica ecomica de Kano. Provocou notadamente a aplicação do sistema
jurídico do is a sharia ao regime fundrio. Os califas deram mais importância
às diversas medidas destinadas a promover a prosperidade industrial e comercial. É
de destacar que essa potica se fundamentava na organização da agricultura vigente
no século XVIII. Como o afirma Mahadi,o sistema fundrio anterior ao século
XIX não sofreu alterações essenciais. O aspecto da continuidade primava sobre o
da mudança
23
. A shari‘a, ao reconhecer o direito do emir de distribuir terras, fazia
do solo um posvel objeto de comércio que “Kano continuava a considerar ilegal”.
O mais notável efeito da aplicação da sharia ao regime fundiário teria sido o de
favorecer, por meio da herança, a divisão do gandu (domínio explorado coletiva-
mente por uma linhagem) em lotes pertencentes, cada um, a uma família, e, por
conseguinte, de reduzir a extensão dos lotes, que constituíam, para os plebeus, a base
da produção agrícola. Ao mesmo tempo, a noria expano da agricultura exten-
siva praticada pela classe dirigente e os principais negociantes agravou a escassez
de terras, particularmente a proximidade de Kano e das outras cidades, o que levou
os pequenos agricultores a estabelecerem -se em regiões mais afastadas, a abando-
narem a agricultura para a fabricação artesanal e industrial, ou a submeterem -se
totalmente aos grandes proprierios, juntando -se a sua clientela.
As estruturas do poder
Os exemplos de Kano e do Bunafu mostram, sob duas formas diferentes, a
influência que a estrutura política podia ter sobre o desenvolvimento da agri-
cultura na África do início do século XIX. No primeiro caso, o sistema político
era centralizado e amplamente estruturado. No outro, um poder mais difuso
exercia -se de maneira informal. Não retomaremos aqui a distião, outrora
proposta pelos antropólogos, entre as sociedades com Estado” e as sociedades
sem Estado”. Os habitantes do Bunafu tinham a impressão de viver sob a
autoridade de um governo. Quando das lutas em torno do surgimento de um
novo sistema político no Bunafu, os imigrantes, que haviam fugido de sistemas
políticos hierarquizados e fortemente estruturados, inspiraram -se na lembrança
que guardavam de tais sistemas. Outros continuavam a acreditar nos poderes do
23 Ibid., p. 566 -567.
20
África do século XIX à década de 1880
mukama, esse chefe carismático eleito e habitado pela divindade, ou na influência
dos fogos, ritualmente acesos na casa real, sobre a fecundidade das mulheres e a
fertilidade do solo. Vellut mostrou que era preciso substituir a distinção baseada
na presença ou na ausência de um Estado por uma distinção entre
dois modelos de poder: o dos reinos, hierarquizado, definido e tributário, ou, no outro
extremo, o do governo por comitês de anciãos ou de autoridades locais, mais iguali-
tário e informal. Esses dois modelos eram complementares e, na prática, existia uma
grande variedade de situações intermediárias, hesitações e compromissos diversos. As
exigências do meio e das atividades econômicas, bem como das circunstâncias histó-
ricas e até mesmo de pessoas, favoreceram um tipo de organização aproximando -se
ou do modelo realista (com suas qualidades de ordem, de segurança), ou do ideal
democrático, mais flexível, menos coercivo
24
.
É preciso acrescentar que o sistema estatal não foi sempre aquele que garan-
tiu a ordem da forma mais eficiente. Transcendendo o sistema de linhagens
característico das sociedades descentralizadas, diversas instituições que haviam
se desenvolvido nas áreas religiosas, judiciária e econômica puderam, graças a seu
caráter global, cumprir a função de enquadramento, necessária à preservação da
ordem, ou substituir o Estado em decomposição
25
. Podemos citar, por exemplo,
o poro e associações similares na Alta Guiné ou as diversas “sociedades secretas”
de Camarões e do Gabão, na bacia do Cross e na zona da floresta equatorial.
No caso dos aro, a influência de um grupo de oráculos, amplamente difundida
nas colônias aro e por sociedades secretas” locais, forneceu a base judiciária e
econômica da unificação de uma grande parte do país igbo. As mudanças econô-
micas do século XIX agiram nas estruturas do poder, não somente ao modificar
a estrutura dos Estados, como também ao reforçar, em vários casos, as estruturas
não políticas que abrangiam o conjunto da sociedade.
Os acontecimentos advindos no início do século XIX revelam uma tendên-
cia à centralização dos sistemas políticos e à consolidação da autoridade real.
Ao passo que se desagregavam os impérios por demais extensos, como o dos
lunda, o Antigo Oyo e o Império Mossi do mogho naaba, foram substituídos por
novos Estados, menores e submissos a regimes mais autoritários. Muhammad
Ali fortaleceu seu poder no Egito, o que enfraqueceu ainda mais o Império
Otomano. Ele sonhava com a substituição dele por um império afro -árabe,
mas tal projeto, apesar dos esforços de seu filho, nunca se concretizou. ‘Uthmān
24 J. -L. Vellut, cap. 12 abaixo.
25 J. N. Oriji, 1982.
21
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
dan Fodio conseguiu transformar o califado de Sokoto em um grande império,
mas o verdadeiro poder político foi delegado aos emires. O Mfecane provocou
uma reação em cadeia que resultou na constituição de um conjunto de peque-
nos reinos centralizados, não somente na África Austral, como também na
África Central e mesmo Oriental. Em sua análise das causas do Mfecane, L.
D. Ngcongco mostra a que ponto o sistema de produção agrícola do Nguni do
Norte era centralizado, e como a sociedade nguni, sob o impulso do Estado, se
adaptou às exigências impostas pela transformação desse sistema.
Os cultivadores nguni do norte haviam progressivamente desenvolvido um
sistema de exploração mista. Eles viviam em moradias dispersas e não em aldeias
como os sotho -tswana. O chefe da linhagem paterna morava geralmente na
propriedade familiar, com duas ou três mulheres acomodadas, cada uma com
seus filhos, em uma casa separada. Os homens cuidavam do rebanho e caçavam,
enquanto as mulheres se dedicavam às culturas. O sistema de uso do solo permi-
tia ao rebanho ter acesso, alternadamente, aos pastos doces e aos pastos amargos:
Na primavera e no início do verão, os pastores nguni podiam levar seu rebanho para
pastar no cume’ das altas terras e, a partir de meados do verão, eles desciam de volta
com seus animais até o fundo dos vales cobertos de ervas tenras. A diversidade do
clima permitira também a esses agricultores escolher os terrenos os mais apropriados
à cultura do sorgo, do milhete ou do milho
26
.
O milho introduzido no século XVIII substituíra -se, no início doculo XIX,
às culturas tradicionais como base da alimentação. Esses fatores parecem ter acar-
retado uma relativa prosperidade e um crescimento demográfico que, ao agravar a
concorrência em torno da posse das terras, provocaram, por sua vez, novas tensões
sociais e políticas. Os chefes, fossem eles soberanos ou tributários, formavam
uma hierarquia. Seus grandes domínios participavam das atividades comunitárias,
fossem elas rituais, culturais ou militares. Ao que tudo indica, os soberanos dos
nguni do norte tomaram emprestado dos sotho -tswana seus rituais de iniciação
centralizados. Ademais, eles usaram esses rituais para recrutar jovens dos dois
sexos como mão de obra comunitária e, mais tarde, para formar tropas de jovens
guerreiros que, por vezes, passavam até dez anos no domínio real antes de voltarem
a suas casas, casarem e retomarem o trabalho da terra. Tal sistema permitia limitar
o crescimento demográfico e regular os movimentos populacionais. As atividades
militares dessas tropas tomaram amplitude à medida que a concorrência pela
apropriação do solo degenerava em verdadeiras guerras.
26 L. D. Ngcongco, cap. 5 abaixo.
22
África do século XIX à década de 1880
 . Dança cerimonial em Mbelebele, campo militar zulu, em 1836. [Fonte: J. D. Omer -Cooper, e Zulu aftermath, 1966, Longman, London (o original
encontra -se em A. F. Gardiner, Narrative of a journey to the Zoolu country, 1836, London). Ilustração: Longman, © Slide Centre Ltd, Ilminster.]
23
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
Os impulsos internos
O Mfecane, considerado uma das principais causas das grandes mudanças
na África do século XIX, explica -se em primeiro lugar pela maneira com que o
desenvolvimento social e econômico se adaptou, antes do século XIX, à evolução
histórica. O exame minucioso dos dados de que dispomos atualmente desmentiu
todas as tentativas de explicação global ligando o Mfecane à presença dos euro-
peus no Cabo, à crescente influência da economia pastoril capitalista praticada
pelos trekboers, ou à atração pelo comércio estabelecido pelos portugueses na
baía de Delagoa. Os impulsos na base do Mfecane vinham principalmente da
própria África. Isso também se verifica no que diz respeito a outros grandes
acontecimentos do início do século XIX, tais como as reformas de Muhammad
Ali e as jihad da África Ocidental.
O movimento nacional que levou Muhammad Ali ao poder e do qual este
último, graças a sua habilidade, soube permanecer o inspirador e dirigente, foi
muitas vezes atribuído ao abalo causado pela missão egípcia” de Bonaparte.
Trata -se, contudo, de uma concepção errônea, como o mostra A. Abdel -Malek
em seu capítulo intitulado “O renascimento do Egito (1805 -1881)”: “O século
XVIII egípcio aparece como um laboratório do que seria o Egito renascente
27
O sentimento nacional sustentado pela elite egípcia nas grandes cidades, em
especial Cairo e Alexandria, e pelos shaykh e os ulamā nos centros islâmicos
como al -Azhar, deu origem às revoltas de outubro de 1798 e de abril de 1800,
enfraquecendo a posição dos franceses e provocando sua partida. O mesmo
movimento derrotou a tentativa dos mamelucos pró -otomanos para restabele-
cer seu domínio sobre o Egito. Portanto, foi o sentimento nacional egípcio que
permitiu as reformas de Muhammad ‘Ali e explica a vontade deste último e de
seu filho de dar ao Egito um governo verdadeiramente nacional, independente
tanto do sultão otomano, quanto dos europeus, e capaz de administrar um
império afro -árabe.
Essa vontade de renovação e de reforma manifestou -se também junto aos
diferentes soberanos que tomaram parte da aventura do Mfecane, ou que ten-
taram restaurar o Império da Etiópia, ou entre os shaykh do Sudão Central e
Ocidental, que tiraram das tradições do islã os princípios de uma reforma social
e política. Em grande parte graças aos escritos que deixaram os combatentes da
jihad e os viajantes europeus, temos um conhecimento suficiente do conjunto
27 A. Abdel -Malek, cap. 13 abaixo.
24
África do século XIX à década de 1880
de forças e ideias que provocaram essa série de movimentos revolucionários,
iniciada, no século XVIII, no Futa Toro, no Futa Djalon e no Bondu para
terminar, no século XIX, em Sokoto, no Macina e em Dinguiraye. É, portanto,
inútil tentar avaliar o lugar ocupado pela economia europeia neste conjunto
de forças e ideias: mercantilismo na época do tráfico negreiro, ou capitalismo
na época da abolição da escravidão e das viagens de descoberta. A jihad rece-
beu seu impulso dos próprios africanos. Os soberanos que tomaram parte da
jihad esforçaram -se para desenvolver a produção agrícola, tanto nas explorações
familiares tradicionais, quanto nos grandes domínios explorados por escravos
ou por clientes. Também incentivaram a indústria e o comércio. Melhoraram
as rotas comerciais e a segurança dos comerciantes. A imensa maioria das mer-
cadorias que circulava ao longo dessas rotas era destinada ao comércio local e
regional, mas os chefes da jihad também criaram rotas para os mercadores que
atravessavam o Saara e para os peregrinos que iam ao Sudão Oriental, ao vale
do Nilo e a Meca. É cada vez mais evidente que, mesmo antes da retomada
oitocentista do comércio com os europeus, essas medidas relativas ao comércio
interno implantaram rotas comerciais que atravessavam todo o continente
28
.
Claro, os europeus rapidamente tomaram conhecimento do resultado dessas
medidas, das quais se apressaram em tirar proveito. Pelo fato de não disporem
de documentos igualmente numerosos a respeito das regiões situadas mais ao
Sul, os historiadores caíram com mais frequência na tentação de superestimar
a influência que teve sobre a economia do Antigo Oyo a participação desse
Estado no tráfico negreiro, no século XVIII, por intermédio da região dos egba
e de Porto -Novo
29
. Até agora, contudo, essas hipóteses sobre as consequências
da abolição da escravatura não conseguiram explicar a derrocada das bases eco-
nômicas, políticas, religiosas e sociais do império, nem as numerosas tentativas
feitas no século XIX no intuito de alicerçar novas estruturas em diversas ideias
políticas e religiosas. É mais provável que, como nos Estados onde foi travada
a jihad, essa derrocada tenha como causas fundamentais o descontentamento
dos súditos e seu desejo de reformas; as causas secundárias, por sua vez, foram a
penetração do pensamento muçulmano e a jihad de Sokoto, mais do que o trá-
fico ou sua abolição. As guerras, as migrações, a exploração de regiões até então
28 Ver por exemplo P. D. Curtin e al., 1978, cap. 14.
29 R. Law, 1977, em particular nas p. 217 -236, recapitula todos os documentos disponíveis, mas ele tem
tendência a exagerar a inuência do comércio em geral, e do tráco em particular, sobre a economia do
Antigo Oyo. Ver na página 255: “É provável que o desmoronamento do tráco nos anos 1790 tenha
reduzido consideravelmente a renda dos alan, e Awole, para enfrentar a situação, teria talvez aumen-
tando os impostos dentro do reino.”
25
África no início do século XIX: problemas e perspectivas
deixadas de lado, como os charcos costeiros, o desenvolvimento das cidades e
de novos mercados, o gosto pelas experiências e reformas foram consequências
da queda do império que criaram possibilidades que os europeus se limitaram
a explorar.
É, portanto, o desejo de renovação que explica que, no século XIX, e apesar
da desconfiança que as intenções dos europeus lhes inspiravam, tantos soberanos
africanos do Egito e da Tunísia, de Madagascar e de Lesoto, de Abeokuta
como da região dos fanti tenham corrido o risco de acolher comerciantes,
aventureiros ou missionários vindos da Europa: esperavam que a importação
das técnicas europeias ajudasse a desenvolver seus países. O Egito não foi o
único país da África a ter uma sensação de renascimento. Pode -se realmente
dizer que o século XIX foi, para a África,a era do progresso
30
. Mas a aspira-
ção ao progresso, que de fato dominou essa época, tinha sua origem na própria
África. Os soberanos africanos tentaram tirar partido da atividade crescente dos
europeus, mas, vítimas dessa atividade, acabaram vendo frustrada sua esperança
de renovação.
Conclusão
No início do século XIX, surgiram novos fatores de mudança na história da
África, sendo o principal deles o maior desejo de os europeus terem não apenas
de fazer comércio na África, mas também intervir na vida social e econômica das
populações africanas. Esse desejo se traduzia em diversas preocupações: os euro-
peus queriam conhecer melhor as populações e os recursos do interior, eliminar
o tráfico negreiro, desenvolver a exportação de certas culturas; os missionários
procuravam impor aos africanos a maneira de viver dos cristãos; os comerciantes
empenhavam -se em estender sua atividade ao interior do continente. Tudo isso
abria novas possibilidade e novas dificuldades econômicas. Os centros do novo
comércio nem sempre coincidiam com os do antigo. Os diferentes Estados e,
dentro dos Estados, os diferentes grupos de interesses disputavam as fontes de
riqueza e o comércio dos produtos agora essenciais, como as armas de fogo.
A importância quantitativa dessas novas relações comerciais e, mais ainda, o
estímulo que elas representaram para as trocas existentes, foram fontes de
30 É o título (“Africa’s age of improvement”), dado por A. Hopkins, em 1980, a sua aula inaugural, que, con-
tudo, versava mais sobre os objetivos gerais da história econômica da África do que sobre as tendências
características do século XIX.
26
África do século XIX à década de 1880
expansão considerável das atividades comerciais. Contudo, uma vez mais é pre-
ciso frisar que o comércio praticado no século XIX era o prolongamento do que
existia antes; que os homens que o inauguraram e as estruturas que o sustenta-
ram eram os mesmos da época do tráfico negreiro; que esse comércio se baseava,
em grande medida, no tráfico interno e no trabalho dos escravos; e, portanto, nos
sistemas políticos, na rede de rotas comerciais, nas relações sociais e econômicas
e, antes de tudo, no sistema de produção agrícola preexistentes. Não se deve
traçar uma imagem deformada da evolução da África no início do século XIX,
fazendo remontar a essa época a influência preponderante que os europeus
terão mais tarde sobre os processos de transformação. No início do século XIX,
as tradições herdadas do século XVIII e as mudanças próprias à África tiveram
muito mais importância do que as mudanças vindas de fora.
C A P Í T U L O 2
27
A África e a economia -mundo
A África e a economia -mundo
Immanuel Wallerstein
Estruturas comerciais: dos “produtos de luxo
aos “gêneros de primeiras necessidades”
A grande transformação das relações econômicas da África com o resto
do mundo não foi o produto da partilha do continente no fim do século XIX.
Ao contrário, a partilha da África foi uma consequencia da transformação das
relações econômicas desse continente com o resto do mundo e, em particular,
com a Europa: processo que começou por volta de 1750, resultando na grande
empreitada europeia de colonização dos últimos decênios do século XIX.
tempos, vastas regiões da África encontravam -se sulcadas por rotas
comerciais que se prolongavam frequentemente para além do continente, atra-
vessando o Oceano Índico, o Mediterrâneo e o Oceano Atlântico
1
. Podemos
dizer que estas relações comerciais extracontinentais correspondiam mais ou
menos ao “comércio à longa distância” praticado, milênios, na Ásia e na
Europa, e no quadro do qual se trocava aquilo que convém chamar produtos de
luxo, ou seja, produtos que rendiam muito por um baixo volume. A produção
de tais gêneros destinados às trocas ocupava apenas uma pequena fração da
1 A. G. Hopkins (1973, pág. VI) faz alusão aos “grupos de entidades econômicas interdependentes que
estabeleciam relações comerciais regulares, muito extensas e antigas”.
28
África do século XIX à década de 1880
mão de obra das regiões de origem, e provavelmente representava apenas uma
pequena parcela de seus rendimentos. Consequentemente, o comércio “de luxo
era um comércio do supérfluo”, que era possível interrompê -lo ou findá -lo
sem para isso reorganizar, na base, os processos de produção das regiões de ori-
gem. Portanto, no que diz respeito às duas regiões cujos produtos eram objeto
de tal troca, não se pode dizer que elas se situavam em um mesmo sistema de
divisão do trabalho
2
.
Parece que, na zona do Oceano Índico, as estruturas não evoluíram muito
entre 1500 e 1800. A intrusão dos portugueses nessa zona marítima, seguida
de outros europeus, modificou um pouco a identidade dos protagonistas deste
comércio, mas quase não alterou sua natureza e amplitude. Mesmo no que con-
cerne aos homens, as mudanças foram menos importantes do que, em geral, se
acredita. Parece que, ainda em 1750, Moçambique, cujo litoral fora colonizado
pelos portugueses, contava dentre seus mercadores com mais naturais da Índia
e do Guzerate do que residentes portugueses. Parece que as mudanças impor-
tantes intervieram somente na segunda metade do século XVIII, com a queda
do Império Mogol, o advento da Índia britânica, bem como o avanço dos árabes
omanis na costa suaíli
3
.
Era de praxe a distinção tradicional entre a produção agrícola não comercia-
lizada e o comércio de produtos (de luxo) não agrícola com os países longínquos,
mesmo onde se haviam estabelecido pequenas comunidades agrícolas de europeus,
tais como os prazeros, no vale do Zambeze, ou os eres, na costa do Cabo.
Entretanto, havia uma zona onde a situação econômica era sensivelmente
diferente: as regiões da África Ocidental e Central, que começaram a participar
do tráfico de escravos. Evidentemente, o tráfico foi tanto uma consequencia
quanto um elemento chave da edificação da economia -mundo capitalista, ini-
ciada aproximadamente em 1450, com a Europa em sua base. Desde o século
XVII, a região do Caribe, em amplo sentido, fazia parte deste conjunto na
condição de zona de produção anexa, cujas plantações (não somente de cana-
-de -açúcar, mas também, de tabaco, algodão etc.), em pleno desenvolvimento,
dependeram cada vez mais da mão de obra dos escravos “capturados” na África
Ocidental e Central, transportados através do Atlântico.
É preciso considerar este comércio de escravos de longa distância como um
comércio de luxo ou de produtos de primeiras necessidades”? Pode -se dizer
2 Em obras anteriores, tive a oportunidade de explicar porque o comércio exterior da África antes de 1750
pode ser considerado como um comércio “de luxo”. Ver I. Wallerstein, 1973 e 1976.
3 Ver E. Alpers, 1975.
29
A África e a economia -mundo
que ele concerne à produção de mão de obra a serviço da economia -mundo
capitalista? E devem -se considerar tais regiões de “produção como zonas anexas
deste sistema capitalista? Estas questões são bem complexas. Para respondê -las
em termos quantitativos, observa -se um movimento ascendente do tráfico de
escravos, entre 1450 e 1800, e um aumento muito sensível em torno de 1650.
Em 1750, os efetivos triplicaram em relação a 1650
4
.
A partir de uma certa época, os negreiros, evidentemente, não se contenta-
vam mais em buscar indivíduos para vender como escravos, mas esforçavam -se
para assegurar fontes regulares de abastecimento. É por isso que a África Oci-
dental e Central foi insensivelmente levada a adotar seu sistema de produção
e sua política em função dessas relações econômicas, doravante permanentes.
É difícil saber a partir de qual época (1650? 1700? 1750?) esta adaptação pode
ser considerada relativamente bem estabelecida. Pessoalmente, estou mais incli-
nado para uma data mais tardia
5
. Mas, como veremos, é certo que a própria
transformação deste negócio “de luxo”, o tráfico de escravos, em um comércio
de primeira necessidade” abalou sua viabilidade econômica: de fato, os custos de
reprodução deveriam, desde então, estar integrados nos cálculos de rentabilidade,
em termos de remuneração dos serviços de mão de obra na economia -mundo
capitalista, pois em toda troca de “produtos de primeira necessidade”, os custos
de produção compreendem os “custos de oportunidade”.
Enquanto a África se encontrava “fora da economia -mundo, o “custo de um
escravo para seu senhor era a soma dos custos de compra, de sustentação e de
vigia do escravo (calculada proporcionalmente à duração de sua vida), dividida
pelo trabalho total produzido pelo escravo durante sua existência. O benefí-
cio” para a economia -mundo era basicamente a diferença entre a mais -valia
produzida pelo escravo e seu “custo”. A partir do momento em que a África se
encaminhou para “o interior” da economia -mundo, ou seja, que ela produziu, em
4 Dados calculados guram em P. Curtin (1969, quadros 33, 34, 65, 67 e gura 26). Se os números men-
cionados por P. Curtin têm sido muito discutidos, por outro lado, a evolução da curva de crescimento
proposta por ele não é muito questionada. Ver o debate entre J. Inikori (1976) e P. Curtin (1976); ver
também o resumo das provas cientícas, bem como a nova síntese de P. Lovejoy (1982). P. Lovejoy
aponta algumas modicações fundamentais na curva. Lembremos que, traçando uma só curva para toda
a África, não se levava em conta as nuanças geográcas. A costa angolana foi largamente integrada desde
o século XVI, ao passo que o Golfo de Benin, a Costa do Ouro e o Golfo de Biafra só foram integrados
por volta de 1650, 1700 e 1740, respectivamente. A costa de Serra Leoa, integrada muito cedo, apenas
se tornou uma importante zona de exportação por volta da metade do século XVIII. Quanto à África
do Sudeste,se tornou uma grande fonte de exportação no século XIX.
5 S. Daget (1980) explica que, a partir de 1650, o comércio de escravos implicou a “produção” de escravos;
é por isso que, distinguindo -se ao mesmo tempo do comércio de luxo e dos produtos de base, as relações
comerciais da época 1650 -1800 apresentavam -se como um compromisso entre estas duas noções.
30
África do século XIX à década de 1880
seu solo, gêneros que fizeram parte da divisão do trabalho da economia -mundo,
alguém que era escravo não podia ser outra coisa, por exemplo, um produtor
livre ou um assalariado. Portanto, se o “custo” do escravo talvez permanecesse o
mesmo para o seu senhor, o benefício”, do ponto de vista da economia -mundo,
devia ser recalculado. O primeiro termo da equação devia levar em conta a
acumulação “de substituição”, resultando de uma possível outra utilização do
indivíduo. Talvez o escravo tivesse produzido uma mais -valia ainda mais forte
se ele não tivesse sido escravo. Ademais, e isto é fundamental, o segundo termo
também mudava, pois os anos de reprodução, que outrora, comumente, não eram
levados em conta nos cálculos, agora passaram a constar deles. A acumulação
líquida, resultado dos anos de escravidão, encontrava -se agora reduzida, ao passo
que continuaria a mesma, caso o escravo não fosse escravo. Consequentemente,
do ponto de vista do processo de acumulação no conjunto da economia -mundo,
o cálculo era menos favorável ao sistema de escravidão.
Entretanto, o desenvolvimento futuro da África deveria ser menos afetado
por estas modificações econômicas do tráfico de escravos do que por um pro-
cesso muito mais profundo, o qual se desenrolava na complexa economia -mundo
capitalista. O primeiro movimento de expansão econômica e geogfica da
economia -mundo capitalista a longo prazo ocorrera entre 1450 e 1600 -1650.
Pode -se dizer que nesta época, a África não se integrava a esse processo histó-
rico. Entre 1600 -1650 e 1730 -1750, a economia -mundo capitalista conheceu
um período de relativa estagnação, retomando seu fôlego e reunindo suas forças.
Isso foi particularmente nítido nas regiões geográficas que tinham participado
do movimento expansionista do século XVI. Mas, nesta época, nenhuma região
da África aderira a esse sistema (com as reservas feitas, no que concerne à
evolução da estrutura do tráfico de escravos)
6
.
A expansão capitalista
Entretanto, por volta de 1730 -1750, por razões inerentes ao seu funciona-
mento, a economia -mundo capitalista retomou sua expansão econômica e geo-
gráfica. No curso dos cem anos que se seguiram, ela absorveria, em sua rede de
produção, cinco grandes zonas geográficas que, até então, haviam permanecido
à margem de seu sistema: a Rússia, o Império Otomano, a Índia, as zonas “lon-
6 Para uma análise detalhada da economia -mundo capitalista no período 1450 -1750, ver I. Wallerstein,
1974, 1980.
31
A África e a economia -mundo
gínquas” do continente americano (o Canadá, a parte ocidental da América do
Norte, a ponta meridional da América do Sul), bem como a África (do Norte,
do Oeste e do Sul). É da integração dessa última zona que tratamos aqui.
Para a economia -mundo capitalista centrada em torno da Europa, as cinco
zonas mencionadas acima apresentavam características comuns: todas elas
tinham uma posição geográfica periférica; todas estavam em contato com a
Europa através de seu comércio “de luxo com as terras longínquas; todas eram,
potencialmente, produtoras de matérias primas e podiam recorrer a uma mão
de obra pouco dispendiosa.
Entretanto, essas cinco zonas também apresentavam características forte-
mente diversas. Seus sistemas ecológicos eram muito diferentes uns dos outro,
e, no que tange à inclusão de tais zonas na economia -mundo, existia uma grande
variedade, tanto na natureza dos produtos, quanto nos custos de produção cor-
relatos. Os sistemas políticos também eram muito diversos. De um lado, havia
os grandes impérios do mundo (Império Russo e Império Otomano), os quais
agrupavam domínios muito vastos em uma superestrutura política única e muito
burocrática. No outro extremo, havia os territórios longínquos” das duas Amé-
ricas economias não agrícolas, pouco povoadas, sem relações umas com as
outras, e dotadas de múltiplas estruturas políticas, frequentemente acéfalas.
No primeiro caso, o processo de integração à economia -mundo foi obra de
“integradores”, sabendo se adaptar aos sistemas políticos existentes e encontrar
os meios de transformá -los em estruturas estatais, contidas no sistema interes-
tatal e por ele delimitadas. No segundo caso, o processo de integração passava
pela criação de novas estruturas (frequentemente de tipo colonial), capazes de
organizar a produção e de participar do sistema interestatal. Aproximadamente
falando, podemos dizer que, no primeiro caso, as estruturas dos Estados exis-
tentes foram enfraquecidas, ao passo que, no segundo, assistiu -se ao surgimento
de novas estruturas, mais fortes. Contudo, em ambos os casos, as estruturas
políticas, resultantes desta transformação, foram aquelas das zonas periféricas,
estruturas “fracas” em relação às “fortes” estruturas estatais das regiões -mães da
economia -mundo capitalista.
O processo de integração da África não participou de nenhum dos dois
extremos. As estruturas políticas existentes eram múltiplas. Algumas eram rela-
tivamente fortes e burocráticas, ao passo que outras eram praticamente acéfalas.
A África não constituía, de forma alguma, o que é chamado de uma economia”,
mesmo se frequentemente podemos falar de “economias” regionais que, muitas
vezes, ultrapassavam o quadro de entidades políticas singulares. Do ponto de
vista dos integradores”, certas estruturas políticas existentes deveriam estar
32
África do século XIX à década de 1880
enfraquecidas (por exemplo, o Império Russo, o Otomano e o Mogol), ao passo
que, em outros casos, foi preciso criar poderes políticos novos e fortes o suficiente
para assegurar o bom funcionamento dos processos econômicos transformados.
Enfim, sabe -se que sistemas políticos coloniais completamente novos foram
criados quase em toda parte, mais frequentemente, após um certo prazo.
A integração de um novo elemento na economia -mundo passa basicamente
por duas fases. Primeiramente, pela fase fundamental: a transformação de uma
parte relativamente importante dos processos de produção que deveriam dora-
vante fazer parte do conjunto integrado dos processos de produção, segundo
os quais opera a divisão do trabalho na sociedade da economia -mundo. Em
segundo lugar, a transformação das estruturas políticas, resultando na constitui-
ção de “Estados” submissos às regras e aos mecanismos do sistema interestatal;
tais Estados eram fortes o suficiente para facilitar uma circulação relativamente
fluída dos fatores de produção no interior da economia -mundo, mas não tinham
a potência necessária para se oporem a ela, salvo por certos meios restritos e
por tempos limitados. Estamos convencidos de que tal processo de integração
se desenrolou a partir de 1750 (até aproximadamente 1900), para a África do
Norte, a África do Oeste e a África do Sul, ao passo que a África do Leste apenas
começou sua integração por volta de 1850, ou até mesmo 1875
7
.
Essa integração da África não nasceu de um dia para outro. Foi um processo
lento e regular, tanto que qualquer observador pudesse constatar uma permanên-
cia dos velhos esquemas de produção agrícola e a predominância deles em ter-
mos estatísticos. As normas e os valores tradicionais permaneceram, à primeira
vista, relativamente imutáveis, o que podia evidentemente incitar a subestimação
da importância da evolução em curso. Não obstante, destacamos quatro mudan-
ças: uma parte da produção logo se viu orientada sistematicamente para os
mercados da economia -mundo capitalista; tratava -se de “produtos de primeira
necessidade” para a economia -mundo; essa produção exigia o recrutamento (ou a
requisição) de trabalhadores, o que tendeu à implementação de novas estruturas
de fornecimento de mão de obra; por fim, tal produção beneficiava, geralmente,
àqueles que a dominavam no plano local, atraindo assim novos interessados. Tal
7 É preciso fazer uma distinção entre integração” e assimilação periférica”. No primeiro caso, é reforçado
o desenvolvimento do capitalismo, alargando -o; no segundo, ele é desenvolvido em profundidade. A
integração sempre precede a assimilação periférica. Esta segunda fase começou em 1875/1900 para a
maior parte da África do Norte, do Oeste e do Sul, e, talvez, somente por volta de 1920 para a África do
Leste. O processo está sempre em curso. Quando sustentamos que antes do século XX a África não fazia
parte da economia -mundo, queremos dizer que a assimilação periférica ainda não era efetiva. Em uma
obra publicada em 1982, T. K. Hopkins e I. Wallerstein explicam, brevemente, a distinção e as relações
entre esses dois processos.
33
A África e a economia -mundo
processo foi simplesmente ativado pela integração, mas o fato é que onde existe
a quádrupla combinação da produção orientada para um mercado -mundo, da
produção de artigos de primeira necessidade, da reestruturação da mão de obra
e do lucro, dispomos da base econômica indispensável à integração, com todas
as consequencias políticas acarretadas por tal processo. Convém sublinhar que
a integração da África na economia -mundo não é a consequencia de uma livre
escolha. Nenhuma região escolheu essa opção. A integração foi um processo
exógeno que se chocou com resistências. Ora, a resistência oposta pela África
produziu alguns efeitos: ela retardou, depois diminuiu o próprio processo da
integração. Mas houve um momento em que o equilíbrio das forças foi des-
favorável aos oponentes. Isto não foi o fim da ação de origem local. As lutas
pelo poder continuaram, mais ou menos segundo as vias preexistentes, porém
obedecendo a novos imperativos sistemáticos e geralmente diferentes daqueles
que estavam em vigor antes da integração. A ação local não conheceu trégua na
África, tampouco em qualquer outra parte.
Dado que, até então, o comércio intercontinental” da África consistia princi-
palmente no tráfico de escravos, e que a integração foi acompanhada da abolição
do tráfico, a integração frequentemente tem sido considerada como a passagem
do comércio de escravos ao comércio legítimo”. Contudo, recorrer a expres-
sões ideológicas da época pode induzir -nos ao erro. Para se convencer disso,
basta considerar a África do Norte ou a África do Sul, sem falar das regiões
exteriores ao continente africano que foram integradas à economia -mundo na
mesma época. A diminuição do tráfico de escravos, qualquer que fosse a sua
importância, se situava no segundo plano em relação à necessidade, geralmente
experimentada pela economia -mundo capitalista, de encontrar novas regiões
de produção a baixo custo, no quadro do desenvolvimento geral de sua atividade
econômica e de sua taxa de acumulação.
A integração do Egito e do Magreb
Este processo é mais fácil de ser discernido se não basearmos a análise, como
de costume, no estudo da costa ocidental da África. Tomemos, portanto, o caso do
Egito. Antes de 1730, a produção egípcia se inscrevia no esquema da divisão do
trabalho no Império -mundo Otomano. O Egito era, ao mesmo tempo, um dos
celeiros deste sistema histórico e uma placa giratória desta vasta rede interconti-
nental de comércio de produtos de luxo. Na segunda metade do século XVIII, as
contradições internas do sistema egípcio, aliadas à diminuição da demanda dos
34
África do século XIX à década de 1880
artigos de exportação anteriores, provocaram uma crise da fiscalidade da estrutura
estatal e um aumento dos impostos, ocasionando, por sua vez, um movimento de
resistência dos camponeses, que se manifestou através de um abandono das ter-
ras. Ora, na mesma época, a economia -mundo capitalista buscava precisamente
incluir a produção egípcia em sua rede. Tal processo foi concretizado, no fim do
século XVIII, pela ativa rivalidade militar que levou a França e a Inglaterra à luta
ambas desejando se impor na região. A resposta egípcia se deu pela ascensão
ao poder de Muhammad ‘Alī, que tentoumodernizar” o país.
Do ponto de vista econômico, esse esforço de “modernização se apoiava na
produção de um gênero agrícola, devendo servir de artigo de exportação de base.
Por diversas razões ligadas às condições ecológicas e às estruturas políticas da
economia -mundo capitalista, o Egito tinha mais interesse em optar pelo algodão
de fibras longas do que pelo trigo. Entretanto, a produção de algodão em grande
escala necessitava de uma modificação não só do sistema de irrigação, mas ainda
da organização social das relações de produção. Muhammad ‘Alī estabeleceu o
monopólio do Estado no comércio, com arrecadação direta das taxas por fun-
cionários assalariados. Seguiu -se uma regulamentação, cada vez mais estrita, dos
métodos de produção dos agricultores, e o recrutamento forçado de pessoal para
os trabalhos de infraestrutura e para o serviço militar. Tal sistema foi posterior-
mente substituído pelo trabalho de corveia nas grandes propriedades privadas,
que representavam 45% da superfície das terras aráveis em 1844, ao passo que
este número não passava dos 10% em 1818. O processo foi ainda reforçado após
a morte de Muhammad Alī, com a expropriação dos camponeses que acabou
desencadeando, com o apoio destes, a grande revolta dos ‘Urābī, em 1881 -1882.
Tal revolta contribuiu, entre outros, para precipitar o estabelecimento do regime
colonial britânico. A transformação integral do processo de produção teve por
consequencia o surgimento de uma importante camada de trabalhadores rurais
sem -terras, o estabelecimento de um controle direto das atividades agrícolas e
um sensível aumento do tempo de trabalho exigido dos camponeses
8
.
As coisas ocorreram diferentemente no Magreb. Por um lado, podemos
dizer que houve um constante esforço para integrar o Magreb (em particular,
o Marrocos) na economia -mundo capitalista, desde suas origens, ou seja, desde
o final do século XV
9
. Por outro lado, parece que a região não tinha conhecido
grandes mudanças nas relações de produção até a metade do século XIX, ou
mesmo mais tarde. Entre 1450 e 1830, uma boa parte (mas não a totalidade)
8 Para mais precisões, ver A. R. Richards, 1977.
9 Ver A. Laroui, 1975, p. 29 -33 e D. Seddon, 1978, p. 66.
35
A África e a economia -mundo
das relações entre o Magreb e a Europa, através do Mediterrâneo, era condi-
cionada pela atividade dos corsários; essa, do ponto de vista econômico, pode
ser assimilada, de alguma forma, ao comércio de luxo com os países longín-
quos, mediante ambiguidades análogas àquelas que apresentavam o tráfico de
escravos setecentista na África Ocidental. Todavia, contrariamente ao tráfico
de escravos, as expedições corsárias começaram a desaparecer no século XVIII,
cedendo espaço a trocas comerciais mais regulares, em particular no Marrocos
e na Tunísia
10
. Desde a segunda metade do século XVIII, o Marrocos cultivava
gêneros industriais e alimentícios, os quais eram exportados para a Europa junto
a produtos de origem animal e minerais. Essas atividades foram consideravel-
mente estendidas após 1820
11
. A maior resistência da Argélia a tal integração
econômica explica, na verdade, sua conquista relativamente precoce, sobrevinda
em uma época em que a dominação política da Europa sobre a África ainda
não se encontrava generalizada.
O modelo da África Ocidental
O papel primordial do comércio transaariano na vida econômica do Magreb
está entre os fatores que permitiu a esse último manter, durante muito tempo,
relações mal definidas com a economia -mundo, a meio caminho entre a inte-
gração e a independência. A região serviu de zona de passagem e de intermedi-
ário para aquilo que, na verdade, era uma ligação comercial indireta e distante
entre Sahel e a Europa. Foi precisamente em função disso que o Magreb não
se viu obrigado a fundar em seu próprio território novos centros de produção
dedicados à exportação. As opiniões divergem quanto à relativa importância
do tráfico comercial transaariano entre 1750 e 1880
12
. Mas é certo que, com
a colonização sobrevinda no fim do século XIX, estas antigas rotas comerciais
perderam sua importância econômica, e o Magreb se viu privado da “cobertura
que lhe assegurava seu papel de entreposto.
10 A. Laroui estima que a evolução da Tunísia no século XVIII é comparável ao desenvolvimento empreen-
dido mais tarde pelo Egito.A Tunísia deu os primeiros passos; mas, no século seguinte, ela se inspiraria
no despotismo iluminado de Méhémet Ali”. 1975. p. 43.
11 Ver D. Seddon, 1978, p. 69 -71.
12 Segundo A. A. Boahen, 1964, p. 131, esse comércio apenas representava, no século XIX, “uma parte
de seu valor inicial”; ao passo que C. Newbury, 1966, arma que, longe de declinar, ele não cessou de
aumentar até 1875.
36
África do século XIX à década de 1880
Há tempos, os historiadores se interessam pelo avanço do que chamamos de
comércio legítimo” na África Ocidental oitocentista, cujo aspecto mais impor-
tante não é nem o aumento quantitativo das trocas nem as variações de sua
composição, mas a resultante transformação das estruturas de produção, bem
como as consequencias dessas mudanças nas relações de produção. Este processo
começou antes das medidas tomadas pelos britânicos para abolir o tráfico de
escravos, pois a própria política abolicionista é uma consequencia da expansão
da economia -mundo capitalista; é indubitável que a abolição da escravidão tenha
precipitado o processo de transformação das estruturas de produção na África
Ocidental
13
.
Inúmeras provas escritas permitem -nos afirmar que o novo produto por
excelência, e, de algum modo, aquele que mais teve sucesso, foi o óleo de palma,
originário do Delta do Níger. Primeiramente ligado ao tráfico de escravos
14
,
tal produção prosperou até 1861, ano que assistiu ao fim de seu avanço, o seu
declínio definitivo ocorrendo no final do século
15
. O comércio de óleo de palma
também se desenvolveu na Costa do Ouro, ainda que de forma um pouco menos
espetacular
16
, e no Daomé, onde o tráfico de escravos alcançara tamanha ampli-
tude que podemos falar da integração efetiva da população local pelo tráfico
17
.
13 C. Chamberlin, 1979, p. 420 -421, contesta o termo “comércio legítimo”, porque, além de seu eurocen-
trismo, “ele sugere que a abolição está na origem da conversão das exportações de escravos em exportações
de produtos, ao passo que, na verdade, essa transformação é simultaneamente anterior e posterior às
disposições abolicionistas britânicas de 1807”. Ele adere à ideia de que as necessidades da Europa de
matérias -primas desempenharam um papel, e insiste nas “exigências extraordinárias” que faziam pesar,
na produção, o volume das exportações do óleo de palma, da madeira e do látex. Numerosos produtores
começaram a prospectar vastas regiões em busca de novos produtos.
14 Ver A. J. H. Latham, 1978. Ver também C. Coquery -Vidrovitch e H. Moniot, 1974, p. 108: “Dife-
rentemente das nações europeias, comércio negreiro e comércio legítimo não representavam, para os
africanos, duas atividades contraditórias. Ao contrário, sua complementaridade nos anos 1860 facilitou
a evolução”.
15 Ver A. G. Hopkins, 1973, p. 133.
16 Ver A. A. Boahen, 1975, p. 91. Quanto à supremacia da Nigéria sobre a Costa do Ouro no que tange à
produção do óleo de palma, ver S. D. Neumark, 1954, p. 60.
17 Ver I. A. Akinjogbin, 1967, p. 141: A partir de 1767, a vida nacional do Daomé dependia basicamente das
consequências, a longo prazo, da restauração econômica de Tegbessou. Ao fundar a economia do Daomé
no tráco de escravos, Tegbessou tanto colocara o reino à mercê dos fatores externos que os daomeanos
não puderam controlá -lo nem mesmo inuenciá -lo”. Ver também D. Ronem, 1971 e J. Inikori, 1977.
A passagem do tráco de escravos ao comércio de óleo de palma reforçou a inuência dos mercadores
particulares em relação aos mercadores do rei (R. Law, 1977) e estimulou a atividade comercial no norte
da savana, como nos caso dos ashanti (J. F. Munro, 1976, p. 46). Mas, na realidade, essa transição oca-
sionou mudanças mais decisivas no nível da produção do que no nível das trocas.A coleta, o transporte
e a armazenamento de produtos, tais como o óleo de palma e o amendoim, assim como a divisão dos
produtos importados e sua repartição entre inúmeros pequenos produtores, exigiam mais mão de obra
do que o tráco de escravos [...]” (J. Munro, 1976, p. 47).
37
A África e a economia -mundo
O amendoim também foi um importante novo produto. Destinado à expor-
tação, primeiramente foi cultivado na costa da Alta Guiné, nos anos 1830,
depois, se expandiu para o Oeste até a Senegâmbia
18
. A terceira grande produção
foi a do látex, cujo comércio começou muito mais tarde, em parte para compen-
sar a baixa demanda do óleo de palma
19
. Por sua vez, o fim do tráfico de escravos
e o desenvolvimento da agricultura de rendimento que lhe foi decorrente no
litoral, ou próximo às costas, estimularam a economia no centro do Sudão (gado,
potassa, produtos agrícolas, artigos de couro)
20
.
O fato é que algumas tentativas de novas culturas comerciais malograram.
Notadamente, parece que a intervenção direta dos europeus produziu efeitos
nefastos na produtividade, como ilustram o fracasso da colonização agrícola
do Waalo, entre 1819 e 1831
21
, e, mais tarde, as diversas tentativas feitas no
Senegal, no sul da Costa do Ouro e na Nigéria
22
. Isso não significa que os
europeus começavam a se estabelecer mais solidamente na cena africana: antes,
a importante mudança era que, ao comprar lotes de artigos dos traficantes que
penetravam no interior e organizar o envio de tais produtos para o além -mar,
eles suplantavam, nos portos, os mercadores africanos que desempenhavam o
papel de intermediários
23
.
Para adaptar a produção às novas exportações, foi necessário, evidentemente,
renovar as importações. Durante todo o século XIX, assistiu -se à multiplicação
das importações de produtos manufaturados provenientes da Europa, e, sobre-
tudo, da Grã -Bretanha. Assim, a África, cujos tecidos de algodão eram os
primeiros produtos de importação no século XVIII, multiplicou por cinquenta
o volume de suas importações entre 1815 e 1850, e, depois, por sete, até 1891
24
.
18 G. E. Brooks, 1975, destaca a rapidez com que os cultivadores africanos responderam à forte demanda
europeia (em particular, francesa). Ver também B. Mouser, 1973, 1975.
19 Ver R. E. Dumett, 1971.
20 Ver P. E. Lovejoy, 1974, p. 571 -572: “O crescimento econômico encetado após 1750 prosseguiu durante
todo o século XIX [...]. O século que precedeu o regime colonial foi uma época de relativa prosperidade”.
P. Lovejoy observou que o volume das mercadorias a granel, transitando entre a zona costeira (inclusive
os gêneros reexportados da Europa) e o Sudão Central, era largamente superior àquilo que geralmente
pensamos.
21 Ver B. Barry, 1972, p. 237 -258.
22 Ver J. F. A. Ajayi e B. O. Oloruntimehin, 1976, p. 211. Segundo A. G. Hopkins, 1973, p. 138: “Os
promotores (destas experiências) encontraram -se impossibilitados de lutar contra a concorrência dos
mercados internacionais, parcialmente em razão dos custos proibitivos da mão de obra africana livre”.
23 Ver C. Chamberlin, 1979, p. 423. No que concerne à repartição dos papéis nas relações comerciais
internas, G. I. Jones destaca, a propósito da região do Delta do Níger, que “os comerciantes europeus, de
bom ou mau grado, tiveram que se adequar às estruturas comerciais africanas” (1963, p. 82).
24 Ver C. W. Newbury, 1972. Ver também A. G. Hopkins, 1973, p. 129.
38
África do século XIX à década de 1880
Os fabricantes da África Ocidental adaptaram -se a esse afluxo maciço, como o
fizeram os povos de outras regiões ao se integrarem à economia -mundo. Uma
parte das manufaturas locais foi convertida, as outras se especializaram para lutar
contra esta nova concorrência e se refugiaram em uma produção destinada a
mercados mais restritos
25
.
A África Austral
Na África Austral, a integração seguiu um processo diferente: de um lado,
porque a região não exportava escravos, de outro, em razão do estabelecimento
de uma colônia de brancos. Embora os bôeres estabelecidos no Cabo no século
XVIII fossem europeus vivendo em uma colônia europeia, devemos considerar
que poucos fizeram parte integrante da economia -mundo capitalista
26
.
As modificações estruturais que seguiram às guerras napoleônicas foram,
evidentemente, uma consequência regional da nova hegemonia adquirida pela
Grã -Bretanha na economia -mundo. Mas este movimento político pode ser
considerado como o prosseguimento lógico do lento processo de avanço e de
expansão da economia -mundo. Os britânicos consagraram pouco tempo à adap-
tação dos processos de produção que teria permitido uma rápida integração da
região. Aumentaram consideravelmente o tráfico marítimo, enviaram novos
colonos da Grã -Bretanha e desenvolveram a criação em escala industrial de
carneiro em tamanhas proporções que, por volta de 1845, a colônia do Cabo
25 Ver J. E. Flint, 1974, p. 388 -389 e E. Reynolds, 1974a, p. 70.
26 M. F. Katzen sublinha os numerosos esforços empregados pelas autoridades holandesas a partir de Van
Riebeeck a m de implantar uma produção orientada para a exportação: As únicas exportações saindo
do Cabo, antes de 1778, consistiam em alguns produtos da caça (marm, peles, plumas de avestruz etc.),
mais o trigo, o vinho e a aguardente, no século XVIII” (1969, p. 193). Aliás, esses últimos produtos eram
exportados em quantidades muito pequenas: A única produção comercial de vinho se situava a dois ou
três dias do Cabo, os cereais eram cultivados ainda um pouco mais longe [...]. A VOC (Vereenigde Oost-
-Indische Compagnie, Companhia Holandesa das Índias Orientais) considerava o Cabo, antes de tudo, como
um posto de abastecimento que devia ser explorado da forma mais econômica possível”, p. 202. Sobre o
período precedente a 1806, J. F. Munro fez uma distinção entre a zona que se estende no raio de 80 a
100 quilômetros em torno da cidade do Cabo,que produzia trigo e vinho para o mercado de exportação
(1975, p. 56) e as outras zonas agrícolas de subsistência que, devido à colônia de tendência pastoral a leste
do Cabo, estabeleceram frágeis ligações comerciais com o tráco marítimo do Cabo [...]”.
A. Atmore e S. Marks armaram que, mesmo na África do Sul do século XIX, “sem a contínua contri-
buição de técnicas provenientes da metrópole ou do enclave metropolitano do Cabo”, os africânderes
“teriam podido se misturar à população majoritária das diferentes sociedades africanas presentes, como
zeram os prazeros portugueses no vale do Zambeze ou, ainda, os mestiços griqua no rio Orange” (1974,
p. 110). Mas, é precisamente aí que reside o problema. No século XIX, de bom ou mau grado, eles foram
integrados à economia -mundo e reagiram em função desta realidade.
39
A África e a economia -mundo
havia se tornado um importante centro de produção da economia -mundo
27
.
Mais tarde, o Natal se tornaria uma região produtora de açúcar, cujas plantações
empregavam trabalhadores indianos engajados a longo prazo.
No século XVIII, os agricultores brancos obrigaram os khoi -khoi e os mes-
tiços (“coloured”) a trabalharem, mais frequentemente, como escravos. Depois,
os britânicos declararam oficialmente a emancipação dos escravos. A expansão
e a evolução econômica provocaram então o Grand Trek dos bôeres, tendo os
britânicos permanecido basicamente como testemunhas à parte, ao passo que as
populações nguni e zulu entravam em ão
28
. Houve, então, uma luta incitada
pela possessão das terras e pelo domínio da mão de obra empregada a uma
produção destinada ao mercado mundial. Na colônia do Cabo, camponeses afri-
canos implantaram uma agricultura desenvolvida paralelamente às explorações
dos cultivadores brancos, os quais empregavam meeiros africanos
29
.
Não podemos fazer nenhuma aproximação entre os acontecimentos acima
descritos e a situação da região angolana, que, entretanto, matinha ligações mais
antigas com a Europa. Nesse caso, o tráfico de escravos e o comércio de marfim
se desenvolveram rapidamente, ocasionando incursões cada vez mais profundas
no continente e enfraquecendo diversas estruturas políticas existentes
30
. Após a
abolição da escravidão, tentou -se criar plantações para os colonos brancos. Estas
conheceram um breve momento de prosperidade graças ao êxito do algodão nos
anos 1860; mas tais plantações acabaram malogrando, como muitas das outras
tentativas deste gênero na África Ocidental
31
. Nenhum produto africano foi
então objeto de uma importante cultura de rendimento.
A tardia integração da África Oriental
A costa oriental da África também permaneceu relativamente à margem
da economia -mundo capitalista. Foi através do Oceano Índico que ela estabe-
leceu suas primeiras relações com o exterior. A Índia e, em menor medida, a
27 Ver J. F. Munro, 1976, p. 56 -60.
28 Até então, os colonos brancos apenas haviam exercido fortes pressões políticas e econômicas nas socie-
dades nguni, no Zuurveld, nos anos 1780 e 1790 (C. Bundy, 1979, p. 20).
29 Ver C. Bundy, 1979, p. 44 e seg.
30 Ver D. Birmingham, 1976, p. 267 -269, e J. -L. Vellut, 1975, p. 134 -135. J. -L. Vellut explica assim o fato
de o interior ter se tornado mais dependente da economia -mundo. Ver também W. G. Clarence -Smith
e R. Moorsom, 1975.
31 Ver J. F. Munro, 1976, p. 51 -52; W. G. Clarence -Smith, 1979a, p. 14 -15.
40
África do século XIX à década de 1880
Ásia do Sudoeste encontravam -se então em curso de integração ao sistema da
economia -mundo capitalista. Se o tráfico de escravos prosperou nessa região
no século XIX, foi precisamente porque a África Oriental ainda se encontrava
fora do sistema. Entretanto, ele constituiu aí, como precedentemente na África
Central e Ocidental, uma força dinâmica de ruptura e um fator de reconstrução.
A ilha de Zanzibar foi integrada à economia -mundo graças ao seu lugar pre-
ponderante, na metade do século XIX, no mercado mundial do cravo -da -índia;
integração que passou pela criação de um sistema de plantation
32
. A Ilha Mau-
rício foi coberta de plantações de cana -de -açúcar, ao passo que em Madagascar
se desenvolvia a rizicultura e a criação de bovinos, a fins de exportação para a
Ilha Maurício
33
. Contudo, finalmente foi a luta pela conquista da África e suas
consequencias na África Oriental que precipitariam as mudanças que também
ocorriam em outras partes da África.
A transformação das estruturas de prodão teria sido impossível inde-
pendentemente de uma transformação das estruturas políticas facilitadora das
mutações econômicas e de sua legitimação. Mas em qual nível se situaria o
encadeamento? A propósito da importância do período de 1805 -1820 na histó-
ria da África, I. Hrbek observava recentemente a simultaneidade dos seguintes
acontecimentos: a jihad de ‘Uthmān dan Fodio, a Oeste do Sudão (bem como
outras revoluções islâmicas); o êxito do povo zulu sob o reino de Shaka; o declí-
nio do Bunyoro e a expansão do Buganda na região interlacustre; as revoluções
fula, a Oeste do Sudão; a campanha de modernização de Muhammad ‘Ali, no
Egito; a unificação do Imerina em Madagascar, sob o reino de Radama I, e o
crescimento da hegemonia omani na época de Sayyid Sa‘īd. Hrbek destaca que
“todos esses fenômenos ocorreram em zonas contíguas, e emanam de influências
e de fatores externos
34
”.
As implicações da integração
É preciso parar de superestimar o papel dos fatores externos na criação dos
Estados africanos. De fato, as forças internas constituem o motor da evolução
política, ao passo que o processo lógico de desenvolvimento explica a maior
32 Ver F. Cooper, 1977, p. 47 -79.
33 Na verdade, foi porque a Grã -Bretanha possuía interesse em assegurar uma tal produção adaptada às
necessidades da ilha Maurício que os britânicos apoiaram, pelo tratado de 1817, a independência de
Madagascar contra os intentos da França. Ver P. M. Mutibwa, 1972, p. 39.
34 I. Hrbek, 1968, p. 48. Ver A. Wilson, 1972, a respeito da expansão do Império Luba lomani nesta época.
41
A África e a economia -mundo
parte dos fenômenos secundários. Além disso, houve Estados, constituídos nessa
época, que estavam demasiadamente distanciados da economia -mundo (por
exemplo, o Rozwi)
35
. Enfim, é claro, se considerarmos os Estados da África
Ocidental, que não necessariamente relações entre a participação de uma
região no tráfico de escravos e a criação de um Estado. Se os dois fenômenos
são concomitantes no Daomé e no Oyo, por outro lado, Benin é o exemplo da
criação de um Estado forte sem participação no tráfico de escravos, ao passo
que o Delta do Níger nos fornece um exemplo inverso
36
.
A questão se situa em um outro nível: de fato, a participação na economia-
-mundo implicava a existência de estruturas políticas capazes de assegurar o
funcionamento da economia, em termos de comércio, de produção, de mão de
obra. Pressões exercidas do exterior visavam impor tais estruturas
37
. Quando as
estruturas vigentes bastavam para desempenhar o papel esperado, de qualquer
modo que fosse, pouca pressão era exercida para impor a mudança. Contudo, a
participação na economia -mundo reforçava a importância econômica de certos
agentes internos capazes de criar estruturas políticas adequadas; e foram eles que
pressionaram para obter as modificações de estrutura
38
. Tal situação engendrou
uma gama de desordens que pouco beneficiava aos Estados participantes da
economia -mundo. Estes últimos, por sua vez, esforçaram -se para impor uma
estabilização política ao criar Estados que participassem do sistema interestatal
e, portanto, que aceitassem as pressões correlatas
39
. Sabe -se que esse processo
tendeu, finalmente, em grande parte da África, à criação dos Estados coloniais.
35 Ver S. I. Mudenge, 1974.
36 A. G. Hopkins fala disso em uma obra publicada em 1973, p. 105 -106. A.G. Hopkins,1973, pp. 105 -6,
trata disso.
37 W. K. Hancock, 1942, p. 163, adotando o ponto de vista de um estrangeiro que queria fazer com que os
africanos participassem da economia -mundo, é favorável a esta tese. Ele constata que simples pressões
econômicas se revelaram insucientes: “O problema político era praticamente insolúvel. Os comerciantes
europeus, na África Ocidental, compreenderam logo que suas atividades apesar de uma participação
muito espontânea dos africanos – exigiam o apoio de uma paz que a sociedade africana, assaz fraca, não
podia garantir. Fraca demais para estabelecer a paz, talvez, mas também, em outros momentos, forte
demais para permitir que se estabelecesse.
38 É a própria essência da obra clássica de K. O. Dike: As mudanças radicais trazidas pela abolição no setor
econômico imediatamente repercutiram no campo social e político”, 1956, p. 11. Ver C. Chamberlin,
1979, p. 430. Ver também a análise da política interna do Daomé proposta por J. C. Yoder, 1974. A. G.
Hopkins fala de uma “crise da aristocracia na África Ocidental do século XIX [...], nascida da contradi-
ção entre as relações de produção passadas e presentes”, 1973, p. 143, ou seja, da passagem do tráco de
escravos à cultura de rendimento. Ele mostra que as estruturas políticas sobreviveram, mais ou menos
facilmente, à crise.
39 P. Ehrensaft, 1972, refere -se às várias intervenções sucessivas dos britânicos na África Ocidental. A. S.
Kanya -Forster, 1969, cap. 2, faz o mesmo em relação à França. B. M. Magubane, 1979, cap. 2, descreve
a situação na África do Sul.
42
África do século XIX à década de 1880
Do ponto de vista político e econômico, a abolição da escravidão foi um aconte-
cimento capital nessa evolução. De fato, a abolição do tráfico e da escravidão nas
plantações emana diretamente do funcionamento da economia -mundo capita-
lista, tal como o próprio fenômeno do tráfico e da escravidão. o tenho a inten-
ção de reiniciar aqui o debate sobre a importância do papel dos abolicionistas,
como grupo de pressão, nesse processo. Certamente, eles existiram e participaram
dessa evolução. Mas a simples constatação da existência e do papel de tal grupo
de pressão não explica o processo; ele é apenas um aspecto que também deve
ser explicado.
Para que o trabalho dos escravos nas plantações fosse economicamente viável,
era preciso manter os custos abaixo de um certo nível, o qual era fortemente con-
dicionado pelo fato de os escravos serem majoritariamente recrutados por outros
meios que a reprodução da população. indicamos que o próprio fato do aumento
do número de escravosrecrutados modificou progressivamente o caráter econô-
mico do tráfico de escravos na África Ocidental, aumentando oscustos de opor-
tunidade” desse tráfico e modificando, eno, a taxa mundial de acumulação.
Esse fenômeno geral se manifestava paralelamente a um problema mais
especificamente britânico. A produtividade das plantações de cana -de -açúcar
das Antilhas britânicas não parou de cair no século XVIII
40
. Logo, a Índia
ofereceu à Grã -Bretanha uma vasta zona de produção, permitindo -a paliar essa
situação
41
. Entretanto, tratava -se de uma região onde a produção agrícola
era densa e a prática da escravidão arriscava ser economicamente dispendiosa
40 Ver W. A. Green, 1974, p. 247: A política da Grã -Bretanha na África do Oeste, antes de 1850, foi
largamente ditada pelas necessidades das Índias Ocidentais”. E. Williams (1966, p. 149 -150) e D. H.
Porter (1970, p. 142 -143) sustentam que a superprodução de açúcar foi um elemento chave em favor da
abolição da escravidão. Por outro lado, R. Anstey se mostra cético, 1975, p. 386.
41 E. Williams (1966, p. 183 -188) explica a relação entre os abolicionistas e a produção açucareira das Índias
Orientais. Em 1791, após a crise provocada pela revolução em São Domingos, a produção açucareira
das Índias desempenhou um papel de primeiro plano na política britânica. Grandes quantidades dessa
produção foram vendidas entre 1794 e 1800 (J. P. Marshall, 1968, p. 88 -89). Depois, os grupos de pressão
das Índias Ocidentais conseguiram restabelecer elevadas tarifas alfandegárias, e as importações prove-
nientes da Índia diminuíram. Mas a opinião geral era que, na ausência de tarifas alfandegárias, “apesar
de um frete mais elevado, as Índias Orientais podiam vender mais barato do que as Índias Ocidentais”
(C. N. Parkinson, 1937, p. 85). A explicação é simples: dado que os “grandes nanciadores possuíam
interesses nos dois lados” (ibid, p. 86), as decisões parlamentares constituíam um compromisso: o grupo
de pressão das Índias Ocidentais perdeu a batalha da abolição, mas ganhou a das tarifas alfandegárias
das Índias Orientais. Quando se procedeu a uma igualdade dos direitos, em 1836, as exportações de
açúcar de Bengala conheceram um aumento vertiginoso (K. N. Chaudhuri, 1966, quadro I, p. 347).
É necessário mencionar uma zona de produção açucareira situada na África: a Ilha Maurício. Exonerada
pelos ingleses em 1826, a produção açucareira logo conquistou toda a ilha. A escravidão foi abolida
teoricamente em 1835 e os escravos foram substituídos por uma mão de obra contratual indiana. Um
comércio de escravos continuou a prosperar ilegalmente. Contudo, tais escravos eram originários da
África Oriental. Ver B. Benedict, 1965, p. 12 -19; E. A. Alpers, 1975, p. 214.
43
A África e a economia -mundo
demais (se se quisesse reduzir a população autóctone à escravidão), além de ser
muito difícil politicamente, caso se optasse pela importação de escravos. Con-
sequentemente, desde então, o tráfico de escravos parecia, de imediato, menos
útil para a produção açucareira e para as outras culturas praticadas nas zonas
de influência britânica, e, até mesmo contraindicado se houvesse a intenção de
encorajar as culturas comerciais na África Ocidental. Ora, a Grã -Bretanha, gra-
ças à sua supremacia sobre o mundo nesta época, encontrava -se em uma situação
político -militar que lhe permitia executar a abolição da escravidão
42
.
Compreendemos, então, que os interesses de todos os capitalistas da
economia -mundo se encontravam condizentes com aqueles, mais particulares,
da subclasse dos capitalistas britânicos, a fim de criar um clima político favo-
rável ao abolicionismo
43
. Claro, esse processo se chocou com a oposição de um
grupo de capitalistas menores que era afetado negativamente por essa mudança.
Ademais, essa política foi aplicada com uma grande flexibilidade. Nas plantações
não britânicas, que simplesmente representavam fontes de abastecimento para
fabricantes britânicos, a Grã -Bretanha tendia a “fechar os olhos” para a escravi-
dão. Tal foi o caso do sul dos Estados Unidos da América, ou ainda, de Cuba e
do Brasil que, durante quase todo o século XIX, continuaram a adquirir escravos
na zona onde o tráfico ainda era permitido,ao sul da linha” onde, como vimos,
os aspectos econômicos da escravidão permaneceram diferentes
44
.
Dissemos que até a época da partilha, o século XIX fora a era do império
informal” ou do imperialismo do livre -câmbio”. Robinson e Gallagher resu-
mem a situação nestes termos: “Quando possível por vias oficiosas, mas, quando
necessário, por anexações oficiais, os britânicos não cessaram de consolidar sua
42 Isso não signica que os esforços da Grã -Bretanha foram imediatamente coroados com sucesso, nem que
a campanha foi conduzida com vigor desde o início. S. Daget (1979, p. 436) constata que a repressão
inglesa [da escravidão] pouco importunou a economia do tráco de escravos realizado pelos franceses”
antes de 1831. J. F. Munro (1976, p. 43) arma que o comércio de escravos no Atlântico se tornou
negligenciável” por volta de 1850.
43 Ver B. K. Drake, 1976, p. 86 -87. É preciso não negligenciar o papel desempenhado pela cooperação” dos
africanos no comércio de escravos. C. Coquery -Vidrovitch e H. Moniot (1974, p. 311) nos lembram que
“o tráco legítimo’ triunfou, é certo, porque a Europa nele encontrava sólidas garantias, mas, também,
porque as estruturas mercantis de numerosos Estados africanos eram adequadas. Em outras palavras, o
segundo parceiro do comércio atlântico, o africano, se não desempenhava um papel decisivo, não dei-
xava de ser ativo, se adaptava, tirava proveito do mercado, em suma, comportava -se como interlocutor
responsável”.
44 Ver A. G. Hopkins, 1973, p. 113; D. Eltis, 1979, p. 297. Segundo os números citados por P. Curtin para
o Brasil, a maior parte dos escravos era originária de Moçambique e Angola. Parece que isso é verdade
também para Cuba, 1969, p. 240, 247. Ademais, podemos dizer que a abolição não teve nenhuma
incidência sobre o tráco de escravos transaariano, o qual participava basicamente de um comércio “de
luxo”. Ver R. A. Austen, 1979.
44
África do século XIX à década de 1880
supremacia
45
. Invoca -se com demasiada facilidade o livre -câmbio. Lembremos
que os comerciantes são favoráveis ao livre -câmbio quando a concorrência os
favorece no mercado, e que eles procuram limitar o livre -câmbio desde que essa
situação se inverta. Por isso, certos historiadores, constatando a diminuição do
papel das companhias de carta na África Ocidental setecentista, falaram de um
avanço do livre -câmbio. Disseram -nos, entretanto, que o desmantelamento dos
monopólios das companhias de carta foi um processo progressivo; por conse-
guinte, a adoção do sistema de livre -câmbio teve um caráter muito limitado e
emanou basicamente de motivos práticos de ordem comercial”, ou seja, do fato
de tal sistema comportar menos encargos gerais e se adaptar melhor às exigên-
cias do tráfico de escravos em pleno avanço
46
. Quanto ao século XIX, durante
o qual o sistema de livre -câmbio é ainda mais generalizado, dissemos que, sob
a pressão ideológica da noção de “comércio legítimo”, essa época conhecera, na
verdade, uma séria limitação do livre -câmbio
47
.
Se a Grã -Bretanha pôde tornar -se a campeã da doutrina do livre -câmbio na
África, foi em virtude de sua hegemonia no mundo, nesses “felizes dias” em que
os produtos britânicos triunfavam face à concorrência de todos os seus rivais, e
em que sua frota lhe garantia uma liberdade de acesso aos mercados do mundo
todo, tal como ela jamais conhecera, e não mais conheceria depois”
48
. Os mer-
cados ingleses tiravam vantagem sobre todos os seus concorrentes: os bôeres da
África do Sul
49
, os mercadores africanos da África do Oeste
50
e os franceses
51
.
45 J. Gallagher e R. Robinson, 1970, p. 145.
46 A. G. Hopkins, 1973, p. 93 -94.
47 Ver D. D. Laitin, 1982.
48 J. Galbraith, 1970, p. 34 -35.
49 A. Atmore e S. Marks tecem o seguinte comentário a propósito da África do Sul do século XIX:
“Enquanto durou o monopólio britânico na região e, na metade do século, ninguém pareceu sonhar
em contestá -lo – e enquanto os territórios continuaram subdesenvolvidos e controlados por meios não
ociais, não se via a necessidade de estabelecer um império regulamentar”. 1974, p. 120.
J. Gallagher e R. Robinson nos lembram que um tal império não inexistia totalmente. De fato, a anexação
de Natal em 1843 fechou aos bôeres o acesso à baía de Delagoa, em 1860 e 1868, bem como à baía de
Santa Lúcia, em 1861 e 1866. Após, houve o fracasso da tentativa de união das duas repúblicas bôeres,
em 1860. Em meados do século, essas diferentes medidas mantiveram as repúblicas bôeres em um estado
de “dependência em relação aos portos britânicos” (1970, p. 45).
50 É verdade que nesta época os “grupos de comerciantes da África Ocidental serviram [primeiramente] de inter-
mediários econômicos e políticos à Europa e, em particular, à Grã -Bretanha (S. B. Kaplow, 1978, p. 20). Mas
esta posição muito inuente foi constantemente enfraquecida (cf., por exemplo, E. Reynolds, 1974b e 1975).
Até a derrocada do preço do cauri deveria ser considerada como a derrocada de uma certa independência
nanceira para a classe comerciante da África Ocidental (ver O. A. Nwani, 1975; A. G. Hopkins, 1970).
51 A história do Exclusif (campanha conduzida pela França para tentar manter o comércio da África Oci-
dental em um sistema mercantil) é a história de sua lenta agonia” (B. Schnapper, 1959, p. 151). Segundo
B. Schnapper, a Grã -Bretanha tinha duas vantagens fundamentais em relação à França: por um lado,
ela dispunha de capitais superiores, por outro, vendia seus produtos têxteis mais barato.
45
A África e a economia -mundo
A Grã -Bretanha conservou essa vantagem enquanto possível e seu declínio
foi independente dos acontecimentos sobrevindos na margem da economia-
-mundo; simplesmente, ele emerge da melhoria da qualidade dos produtos
concorrentes manufaturados no estrangeiro: França, Alemanha, Estados Unidos.
Foi a depressão de 1873 que provocou o desafio político lançado à hegemonia
britânica, na África e no mundo todo
52
. Em 1879, a estrutura do império afri-
cano, efetivamente, não se matinha de pé, e, em 1900, o continente encontra -se
colonizado quase que integralmente
53
.
Conclusão
Portanto, pensamos que o processo de integração da África (do Norte, do
Oeste e do Sul) em um sistema histórico particular, a economia -mundo capi-
talista, remonta a 1750. Assim, a partilha do continente constitui não o início,
mas o resultado desse processo. Entretanto, seria justo afirmar que “o papel do
comércio, em geral, e o tráfico de escravos, em particular, [...] foi sobremaneira
exagerado
54
ou, sustentar, no mesmo espírito, que o desenvolvimento das cul-
turas de rendimento na África Ocidental não constituiu uma revolução social,
porque ocorreu primeiramente no quadro das estruturas políticas, econômicas
e sociais existentes, as quais se revelaram capazes de seguir as variações da
demanda do comércio costeiro [na época do comércio legítimo’], mais por
adaptação do que por revolução
55
”?
52 o é por acaso que o protecionismo francês no Senegal data de 1873 (ver C. W. Newbury, 1968, p. 345).
53 Eu estudei essa questão (I. Wallerstein, 1970, p. 403): Para atacar a hegemonia econômica da Grã-
-Bretanha no mundo, as outras grandes potências em curso de industrialização compreenderam que era
necessário abrir suas indústrias a mercados mais vastos e a novos acessos às matérias -primas. Foi assim
que começou a corrida em direção à África, e, uma vez que o movimento foi encetado, uma alternativa
se impunha à Grã -Bretanha: participar ou perder a vantagem”.
Certamente, a Grã -Bretanha conhecera fracassos, principalmente em consequência da política seguida
por ela antes de 1880. Referindo -se aos anos 1860, R. Olaniyan constata que a política hesitante da
Grã -Bretanha em matéria de proteção lhe valeu fracassos pungentes (1974, p. 37), mas que as primeiras
perdas” não foram severas o bastante para ocasionar uma verdadeira conversão da política britânica.
54 J. F. Ajayi e R. S. Smith (1964, p. 124). Ver também R. A. Austen (1970); para um argumento contrário,
ver A. G. Hopkins (1973, p. 124).
55 J. F. Ajayi e B. O. Oloruntimehin, 1976, p. 214. Esta tese de modicações econômicas e de ausência de
transformações sociais é curiosamente contradita no mesmo volume por A. C. Unomah e J. B. Webster,
que sustentam o contrário: eles insistem nas transformações da vida social das populações da África
Oriental, 1976, p. 208. Ver também C. Coquery -Vidrovitch (1971, p. 121), que sublinha o fato de as
maiores transformações observadas no Daomé mão de obra assalariada e propriedade privada não
datarem apenas do regime colonial.
46
África do século XIX à década de 1880
Não é falso dizer que uma boa parte, se não a maioria dos sistemas africanos,
adaptou -se” às novas exigências. Alguns simplesmente desapareceram em fun-
ção disso, e quase todos acabaram sendo submetidos ao regime colonial. Porém,
a adaptação é a tese e não a antítese. Era isso que se esperava: nem mais, nem
menos. Essa adaptação da atividade a um novo quadro social apresenta -se como
a consequencia da integração da África, em dada época, em um sistema histórico
particular: a economia -mundo capitalista.
C A P Í T U L O 3
47
Tendências e processos novos na África do século XIX
As oito primeiras décadas do século XIX viram o desenvolvimento de um
grande número de novas tendências e processos, se não por suas originalidades,
pelo menos pela rapidez com a qual se impuseram, por sua amplitude e suas
influências. De fato, é esta característica tríplice que torna este período particu-
larmente revolucionário e o apresenta como marco do fim da África antiga e o
nascimento da África moderna. Tentaremos, neste capítulo, analisar essas novas
tendências e processos, avaliar as suas influências e determinar o curso que teria
a História se não houvesse acontecido intervenção colonial europeia alguma, nas
últimas décadas desse século e posteriormente.
Novas tendências demográcas
A primeira dessas tendências foi de ordem demográfica. A África conheceu
no século XIX as mudanças socioeconômicas mais radicais de toda a sua história,
mais precisamente, a abolição e o desaparecimento do tráfico de escravos. No
final do período que tratamos e por razões que são lembradas em outros capítu-
los do presente volume, o tráfico de escravos passa a pertencer definitivamente
ao passado. Se a abolição não provocou mudança súbita na taxa de crescimento
da população, não dúvida que, principalmente durante as três últimas décadas
Tendências e processos novos na África
do século XIX
Albert Adu Boahen
48
África do século XIX à década de 1880
do período em consideração, esta taxa teve a tendência de crescer progressiva-
mente em vez de diminuir como acontecera até então.
Este crescimento populacional não foi, contudo, o único fenômeno notável.
Ainda mais espetacular foi a redistribuição demográfica sob a forma de migra-
ções e movimentos no interior do continente. As migrações internas dramáticas
dos nguni, na África Austral e Central, dos chokwe, na África Central, dos
azande, na África Oriental, dos fang na África Equatorial e dos iorubás, na
África Ocidental, não são mais do que exemplos típicos. Como se verá mais
adiante, as migrações do nguni levaram este ramo dos povos bantu, a partir da
região de Natal, a diferentes partes do Sul, do centro e do Leste do continente.
Se, frequentemente, foram a causa de devastações, destruições e de sofrimentos
indescritíveis, estas incursões tiveram também resultados positivos. Os nguni
venceram e assimilaram outros povos. Assim surgiram novas nações, tais como
as dos ndebele e dos sotho. A adoção de sistemas e conceitos militares e políticos
aperfeiçoados pelos zulu permitiram -lhes criar novos reinos, tais como Gaza,
Suázi, Ndebele, Sotho e Pedi. Estes últimos eram, como escreveu Omer -Cooper,
militaristas, altamente centralizados e administrados muito mais sob a autori-
dade do rei, pelos induna de origem popular, do que pelos membros da família
real”
1
. Além disso, a presença dos nguni encorajou alguns dos povos invadidos
a se organizarem em Estados. Foi, deste modo, que os holoholo, habitantes da
margem oriental do lago Tanganica, utilizaram as táticas militares dos nguni
para criar um poderoso reino. Do mesmo modo, os hehe, da margem sul do
Tanganica, até então divididos em mais de trinta chefias independentes, se rea-
gruparam após as incursões dos nguni e, tendo adotado a organização militar,
as armas e as táticas de guerra destes últimos, conseguiram subjugar os povos
vizinhos, tais como os sanga e os bena, e criar um grande reino hehe.
Na África Ocidental, por razões essencialmente políticas, os iorubás deixa-
ram, por assim dizer, em massa, as vastas pradarias ao Norte da Iorubalândia
para se espalharem em direção às florestas do Sul. Estes movimentos levaram a
formação de novas comunidades, tais como a de Ibadan, Abeokuta, Oyo, Iwo,
Modakeke e Sagamu. Os iorubás, como os nguni, se lançaram em diferentes
experiências políticas e constitucionais visando resolver os problemas políticos e
ecológicos colocados por seu novo ambiente. Destas tentativas nasceram a dita-
dura militar de Ijaye, o republicanismo de Ibadan, o federalismo de Abeokuta e
o confederalismo dos ekiti parapo
2
. O mapa das etnias do Sudoeste da Nigéria,
1 J. D. Omer -Cooper, 1976a, p. 350 -351.
2 O. Ikime (org.), 1980, p. 307.
49
Tendências e processos novos na África do século XIX
tal como se apresenta hoje, resulta destes movimentos populacionais. Foi igual-
mente no século XIX que os fang e os grupos étnicos que lhes eram aparen-
tados, os bulu, os beti e os pahouin, empreenderam as suas grandes migrações,
deixando as savanas do Sul do atual Camarões para ocupar as zonas das florestas
até o interior do país e as regiões litorâneas do Gabão
3
.
Revoluções Islâmicas
Muito mais revolucionárias ainda foram as tendências novas que surgiram no
plano social e estas foram mais particularmente verdadeiras no campo religioso.
Como se sabe, a difusão do islamismo na África, a partir da Arábia, teve início
no século VII. Contudo, este processo consolidou -se, exceto no Norte da África
e no vale do Nilo, somente nos últimos anos do século XVIII de modo espo-
rádico, e com algumas exceções (por exemplo, os almorávidas), pacífico, tendo
se dado, sobretudo, através do comércio. A partir da primeira década do século
XIX, esta propagação ao contrário tomou um rumo fortemente conquistador e
dinâmico, particularmente no Norte e no Oeste da África. O seguinte exemplo
ilustra bem a rapidez e a amplitude deste fenômeno: a região das savanas do
Oeste, que forma o que se conhece como Sudão Ocidental, teve somente duas
importantes jihad durante o decorrer do culo XVIII, um no Futa Djalon,
durante a década de 1720, e o outro no Futa Toro, durante a década de 1770,
enquanto, durante o período que estudamos, existiram ao menos quatro jihad
de grande envergadura e diversas outras de menor importância. As mais impor-
tantes foram liderados respectivamente por Uthmān dan Fodio nos estados
haussas em 1804, Amadou Lobbo (Ahmad Lobbo) ou Cheikou Amadou (Seku
Ahmadu) no Macina em 1818, al -Hadjdj ‘Umar na região dos bambaras em
1852 e Samori Touré na década de 1870
4
.
Um dos aspectos fascinantes das três primeiras revoluções islâmicas é o fato
de que foram todas lideradas pelos torodbe (ramo clerical dos fulbes (Peul)),
povo que encontramos disseminado por todo o Sudão Ocidental. Daí terem elas
sido iniciadas então, por estes últimos, em resposta à crise causada nesta região
pela opressão política, injustiça social e pela cobrança de impostos ilegais por um
lado e, por outro, pelo declínio e pelo enfraquecimento do islamismo. Os obje-
tivos visados pelos instigadores destas guerras santas eram “tornar o islamismo
3 P. D. Curtin, S. Feierman, L. ompson e J. Vansina, 1978, p. 423 -424.
4 M. Hiskett, 1976, p 125 -168; ver também os capítulos 20, 21 e 24 do presente volume.
50
África do século XIX à década de 1880
não um conjunto de crenças individuais, mas um direito coletivo”; varrer os
vestígios dos costumes tradicionais para criar um império teocrático onde pre-
valeceriam as leis e práticas islamitas
5
. De todas as rebeliões organizadas, a partir
da década de 1840, pelos juula (dyula, jula, dioula), comerciantes islamizados e
instruídos, oriundos da etnia soninke, a campanha conduzida por Samori Touré
durante a década de 1870 foi a que conheceu o maior sucesso e tomou maior
amplitude. As atividades de Samori Touré serão descritas com mais detalhes
no capítulo 24. Contentaremo -nos em observar aqui que ele era bem menos
instruído e menos fanático do que os instigadores das jihad precedentes. Até
cerca de 1885, Samori buscou contudo converter a população ao islã, utilizando
esta religião como um fator importante de integração.
Estas revoluções ou jihad islâmicas tiveram, no plano político e social, conse-
quências de porte considerável. Politicamente, abriram o caminho para a criação
de impérios imensos, como o Império de Sokoto que, durante a década de 1820,
se estendia sobre toda a antiga região setentrional e parte da região ocidental da
Nigéria e cuja história, durante este século, será exposta num capítulo ulterior;
o Império do Macina que dominou a região do Arco do Níger até ser vencido
pelo al -Hadjdj ‘Umar cujo império ia das nascentes do Senegal e do Gâmbia
até Tombuctu; enfim, o vasto Império de Samori Touré se estendia desde o
Norte das atuais Serra Leoa e Guiné até Bamako e englobava o famoso centro
comercial e islâmico juula de Kankan
6
. Estas revoluções levaram ao desapa-
recimento das antigas elites reinantes haussas e soninke em proveito de uma
nova elite composta essencialmente por clérigos fulbe e juula. Deste modo, elas
se traduziram em uma transferência fundamental da realidade do poder polí-
tico no Sudão Ocidental. A jihad liderada por Uthman dan Fodio provocou,
entre outros, o renascimento e a consolidação do velho reino do Borno, isto
graças essencialmente às ações do xeique Muhammad al -Kanēmi, muçulmano
kanambu fervoroso, a quem os dirigentes do Borno solicitaram ajuda para resis-
tirem aos exércitos de ‘Uthman dan Fodio e do seu filho Bello.
As consequências destas revoluções foram ainda mais profundas no plano
social. Em primeiro lugar, a ação educadora e o proselitismo dos instigadores
destas jihad , bem como dos seus adeptos e seus chefes militares, os quais, em sua
maioria, eram muçulmanos letrados, tiveram como efeito não a purificação
do islamismo, como também a difusão desta religião urbana nas zonas rurais.
Além disso, ao passo que os chefes das duas primeiras jihad pertenciam à con-
5 J. F. A. Ajayi, 1965, p. 1; ver também M. Last, 1974.
6 Ver o capítulo 24 do presente volume, bem como P. D. Curtin et al, 1978, p. 388 -390.
51
Tendências e processos novos na África do século XIX
fraria Qadiriyya, al -Hadjdj Umar se dizia da confraria Tijaniyya, relativamente
recente, que atraía sobremaneira as pessoas simples. Deste modo, al -Hadjdj
‘Umar conseguiu reunir inúmeros adeptos e, neste sentido, é significativo que
os adeptos da Tijaniyya sejam hoje mais numerosos na África Ocidental do
que aqueles da Qadiriyya. Em terceiro lugar, tendo os chefes das três jihad dado
importância à educação e aos estudos, o nível de instrução e a taxa de alfabe-
tização das populações mulçumanas elevaram -se consideravelmente durante o
século XIX. Enfim, estas jihad deram lugar, em toda a região sudanesa, a um
sentimento de solidariedade islâmica que permanece até os dias atuais.
Em conclusão, convém dizer que os instigadores das jihad e os seus porta-
-bandeiras não conseguiram estabelecer totalmente no Sudão Ocidental um
califado verdadeiro administrado de acordo com a shari‘a. Faltou -lhes compor
com certas instituições e realidades sociopolíticas já existentes. Tampouco viram
surgir, ao final das suas campanhas, uma cultura e sociedade islâmica uniforme
e isenta de quaisquer influências, mas uma cultura fulbe -haussa no país haussa
e uma cultura fulbe -mande na região do Arco do Níger. Estas eram, de todos
os modos, fortemente impregnadas dos princípios islâmicos e dos ensinamentos
dos pais fundadores.
O islamismo ganhou igualmente terreno em outras partes da África, espe-
cialmente na atual Líbia, na Cirenaica e no Leste do Saara, e depois, mais tarde,
nas regiões setentrionais do Sudão atual, onde foi propagado pelos sanūsi e
mahdistas; enfim, no interior da África Oriental e sobretudo no Buganda, na
sequência dos contatos estabelecidos com os comerciantes árabes e suaílis
7
.
Atividades missionárias cristãs
Não menos revolucionária e durável em seus efeitos foi, à mesma época, uma
outra cruzada religiosa que atingiu outras partes da África, a saber: a campa-
nha empreendida pelos missionários cristãos. Ainda que as primeiras tentativas
de se implantar o cristianismo nas regiões que se estendiam ao Sul do Sudão
Ocidental remontem à época das explorações portuguesas do século XV, mal se
encontravam traços desta religião na África ao final do século XVIII. Todavia,
isto se alteraria radicalmente a partir dos últimos anos daquele século, mais
particularmente durante as primeiras cinco décadas do século XIX. Sob o efeito
principalmente do despertar, na Europa, do espírito missionário, devido essen-
7 R. O. Collins e R. L. Tignor, 1967, p. 16 -18; A. A. Boahen, 1964, p. 110 -117.
52
África do século XIX à década de 1880
cialmente à obra de John Wesley e pelo aparecimento dos ideais antiescravo-
cratas e humanitários inspirados pelo radicalismo e pelas revoluções americanas
e francesas, os esforços realizados para implantar e propagar o cristianismo
tiveram o mesmo dinamismo, senão a mesma forma conquistadora, que a onda
islâmica que se alastrou no Sudão Ocidental. Desta vez, não foram utilizados
o alcorão e a espada, mas a Bíblia, o arado e o comércio. A ão dos chefes, do
clérigo e dos porta -bandeiras das jihad seriam substituídas pela de um grande
número de sociedades missionárias, fundadas e baseadas na Europa e na Amé-
rica, e por seus representantes na África. Deste modo, no inicio de 1800 somente
três sociedades missionárias trabalhavam em toda a África Ocidental, a saber:
a Society for the Propagation of the Gospel (SPG) (Sociedade para a Propagação
do Evangelho), a Wesleyan Missionary Society (WMS) (Sociedade Missionária
Wesleyana) e a Glasgow and Scottish Missionary Society (Sociedade Missionária
Escocesa de Glasgow). Em 1840, apenas quarenta anos mais tarde, elas já eram
mais de quinze. As mais importantes eram a Church Missionary Society (CMS)
(Sociedade Missionária da Igreja), a Missão da Alemanha do Norte ou a Missão
de Bremen, a Missão Evangélica de Basileia, fundada na Suíça, a United Presbi-
terian Church of Scotland (Igreja Presbiteriana Unida da Escócia), e a Sociedade
das Missões Estrangeiras fundada na França. Durante as três décadas seguin-
tes, mais de uma dezena de novas congregações de origem americana vieram
engrossar esta lista.
Na África Oriental e Central, em 1850, havia somente uma congregação
missionária, a Church Missionary Society. Em 1873, no momento da morte de
Livingstone, contavam -se mais duas novas. Uma era a Universities Mission to
Central Africa (UMCA) (Missão das Universidades para a África Central),
criada em 1857 para fundar «núcleos de cristianismo e de civilização que pro-
pagassem a religião verdadeira, a agricultura e o comércio legítimo”, em res-
posta ao apelo apaixonado feito, neste mesmo ano, por Livingstone à opinião
pública britânica em um discurso pronunciado na Universidade de Cambridge;
e a segunda era a Congregação dos Padres do Espírito Santo, ordem católica
fundada na França em 1868
8
. São as viagens, bem como as circunstâncias e o
impacto da morte de Livingstone, que deram o impulso decisivo para a onda
religiosa que sacudiu a África Oriental e Central. Em apenas quatro anos, quatro
novas missões foram criadas, a Livingstone Mission criada pela Free Church of
Scotland (Igreja Livre da Escócia), em 1875; a Blantyre Mission foi criada no ano
8 R. Oliver, 1965, p. 13.
53
Tendências e processos novos na África do século XIX
seguinte pela Igreja oficial da Escócia, com intuito de evangelizar o atual Malaui;
a London Missionary Society (LMS) (Sociedade Missionária de Londres) que,
na sequência a uma carta publicada pelo Daily Telegraph, na qual o explorador e
jornalista Stanley convidava as missões a se encontrarem no Buganda, estender
o seu trabalho a partir da África do Sul até a atual Tanzânia; por fim, a missão
católica dos Padres Brancos, implantando -se neste país dois anos após a Church
Missionary Society
9
. Deste modo, a evangelização da África Oriental e Central
no final do século XVIII encontrava -se a bom caminho.
Mas a amplitude e o sucesso das atividades missionárias foram ainda maiores
na África Austral. Ao final das guerras napoleônicas, havia não mais que duas
sociedades em atividade em toda a região: a Missão Morave, que entrou na
província do Cabo uma primeira vez em 1737, retirando -se apenas seis anos
mais tarde e só regressando em 1792, e a London Missionary Society, que surgiu
na região em 1799
10
. Mas, a partir de 1816, um grande número de sociedades da
Grã -Bretanha, da Europa continental e dos Estados Unidos, tanto protestantes
como católicas, penetraram não somente na província do Cabo, mas também na
região de Natal e do Transvaal. Por volta de 1860, elas haviam avançado para o
Norte até as regiões que são agora o Botsuana, o Lesoto, o Sudoeste africano
e a Zâmbia. Elas compreendiam a Wesleyan Missionary Society; a Glasgow Mis-
sionary Society; a Church Missionary Society; a sociedade missionária norueguesa;
a United Presbyterian Mission; a Sociedade de Berlin; a Sociedade do Reno; a
Missão Evangélica de Paris; a USA Mission to Zululand and Mossega; a Sociedade
Missionária de Hamburgo; e a Swiss Free Church (Igreja Livre Suíça)
11
.
Uma diferença importante entre a empreitada missionária na África Austral
e aquela que teve lugar, por exemplo, na África Ocidental, se deve à participação
direta e ativa que os missionários tiveram, na primeira destas regiões, nas ques-
tões políticas e, sobretudo, nas relações estreitas que se instalaram entre alguns
missionários e alguns reis africanos. Desde o início, missionários como Van der
Kamp e John Philip participaram ativamente da política local; enquanto Loben-
gula, Lewanika e Cetshwayio tornaram -se grandes amigos de Moffat, Coillard
e Colenso, respectivamente
12
.
9 A. J. Wills, 1964, p. 82 -97; R. Oliver, 1965, p. 1 -48; N. R. Bennett, 1968, p. 231 -235.
10 E. Roux, 1964, p. 25 -26; E. A. Walker, 1957, p 92 -93, 144 -146, 173 -175.
11 E. A. Walker, 1957, p. 133, 144 -146, 178; E. Roux, 1964, p. 24 -31; C.P. Groves, 1954, vol.2, p. 118 -161;
D. Denoon, 1973, p. 26 -29, 67 -90; H.W. Langsworthy, 1972, p. 82, 105, 115.
12 D. Denoon, 1973, p. 96 -97; C. P. Groves, 1954, p. 252, 274; E. Roux, 1964, p. 25 -32.
54
África do século XIX à década de 1880
 . As missões cristãs e o islã, 1800 -1860. [Fonte: J. F. Ade. Ajayi e M. Crowder (orgs.), Historical
Atlas of Africa, 1985, Londres, Longman.]
No início, acreditou -se que os missionários na África Austral estivessem
sempre do lado dos africanos e sistematicamente defendessem sua causa. Mas
trabalhos recentes mostraram que eles eram “frequentemente empregados como
negociadores entre as autoridades coloniais e as autoridades africanas, muito
mais como diplomatas do que como evangelizadores”
13
, e que, se os coloni-
13 D. Denoon, 1964, p. 65.
55
Tendências e processos novos na África do século XIX
zadores os consideravam como perigosamente pró -africanos, muitos chefes
africanos viam neles (a título muito justo) agentes perigosos dos colonizadores
e do imperialismo.
Estas sociedades missionárias não se limitaram a construir igrejas, a converter
a população e a traduzir a Bíblia para as línguas africanas. Elas consagraram
também muito tempo a desenvolver a agricultura criando plantações experimen-
tais; a ensinar profissões como pedreiro, carpinteiro, gráficos e alfaiates; a elevar o
nível de vida da população e, sobretudo, a promover o comércio, a alfabetização
e o ensino do tipo ocidental. Todas criaram escolas primárias, escolas técnicas
e mesmo escolas secundárias. Na África Ocidental, a Church Missionary Society
criou o Colégio Fourah Bay em 1827. Em 1841, ela já administrava vinte e uma
escolas primárias em Serra Leoa e, em 1842, fundou duas escolas secundárias:
uma para rapazes e outra para moças
14
. Em 1846, os Wesleyanos tinham tam-
bém quatro escolas para moças e vinte escolas para rapazes na Costa do Ouro
e, em 1876, abriram a sua primeira escola secundária, a Wesleyan High School,
atualmente denominada Mfantsipin School. A Church Missionary Society criou
também uma escola secundária, em 1859, em Lagos, enquanto os Wesleyanos
abriam a Methodist Boy`s High School em 1879
15
. Precisa -se sublinhar que estas
escolas não foram construídas somente no litoral, sendo que algumas dentre elas
foram em cidades do interior.
Tratando -se da África Oriental e Central, havia, em 1890, em Livingstone
uma escola que acolhia 400 alunos, além da missão dispor de uma oficina e
uma prensa tipográfica que “não cessava de produzir cartilhas de alfabetização
e coletâneas das Sagradas Escrituras, de tabuadas, e de cursos elementares de
geografia e história natural traduzidos para nyanja, tonga, nguni, nyakiusa, e
nkonde”
16
. Em 1835, o recenseamento da missão Livingstone registrava 4.000
alunos em suas escolas de Madagascar, e, em 1894, 137.000 crianças merina dos
altos planaltos da Grande Ilha estavam matriculadas nas escolas protestantes: ou
seja, segundo Curtin e seus colaboradores, uma proporção do número estimativo
da população daquela região semelhante àquela que se registrava na Europa
Ocidental na mesma época
17
.
Na África Austral, prestava -se uma atenção muito superior ao ensino do que
em outras regiões da África, em parte graças às subvenções dos governos do
14 A. A. Boahen, 1966, p. 118 -123.
15 J. F. A. Ajayi, 1965, p. 152 -156.
16 R. Oliver, 1965, p. 62.
17 P. D. Curtin et al, 1978, p. 414.
56
África do século XIX à década de 1880
 . Igreja da missão da Church of Scotland em Blantyre (Malaui). [Fonte: H. H. Johnston, British
Central Africa, 1897, Greenwood Press, London. Foto reproduzida com autorização do Conselho de admi-
nistração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
Cabo e de Natal. Em 1870, os missionários haviam registrado, segundo parece,
um sucesso muito maior no campo pedagógico do que em matéria de evangeli-
zação
18
. Haviam criado não somente numerosas escolas primárias ou de vilarejos,
mas, também, desde a década de 1840, escolas normais e de ensino secundário.
A Glasgow Missionary Society, por exemplo, criou a Lovedale, em Natal, em julho
de 1841, um seminário ao qual estava anexado um departamento técnico que
ensinava as profissões de pedreiro, de carpinteiro, fabricantes de carroças e fer-
reiros e, a partir de 1861, de gráfico e de encadernador
19
. Em 1877, os católicos
haviam fundado, em Natal, um convento das Irmãs da Sagrada Família com
uma pensão, uma escola primária e um asilo e um outro convento no estado
livre D`Orange. Em 1868, os missionários franceses criaram uma escola normal
em Amanzimtote e, na metade da década de 1860, um pequeno seminário para
18 M. Wilson e L. ompson, 1969, p. 335, 385.
19 C. P. Groves, 1954, vol. II, p. 135 -136; M. Wilson e L. ompson, 1969, p. 261 -262, 335.
57
Tendências e processos novos na África do século XIX
moças em Inanda, na província do Natal; em 1880, os anglicanos fundaram o
St. Albans College em terras zulus
20
.
A influência daquela campanha de cristianização foi, sem dúvida, ainda mais
profunda do que a das cruzadas islâmicas.
É sobre o modo de vida dos africanos convertidos que suas repercussões
foram ainda mais evidentes. Estes últimos, além de terem aprendido outras pro-
fissões, tinham um mínimo de atenção à saúde; ao mesmo tempo, os estilos tra-
dicionais de arquitetura melhoram e o trajar de roupas ocidentais se expandiu
21
.
Por outro lado, ao condenar a poligamia, as crenças de seus ancestrais e de seus
deuses, e o curandeirismo, os missionários enfraqueceram as bases tradicionais
das sociedades africanas e das suas relações familiares.
Uma outra consequência da propagação desta nova foi o aparecimento
de um pluralismo religioso e, portanto, a divisão das sociedades africanas em
grupos rivais e concorrentes. Primeiro, as sociedades africanas dividiram -se entre
convertidos e não convertidos, ou como eram chamados na África do Sul, entre
«vermelhos» e «pessoas educadas»
22
. Da mesma forma que os fiéis e seguidores do
islamismo dividiram -se pela existência de confrarias rivais da Qadiriyya e da Tija-
niyya, o cristianismo cristalizou as «pessoas educadas» em católicos, metodistas,
anglicanos, luteranos, congregacionistas e presbiterianos. Se em diversas partes
da África este esfacelamento não foi causa de tensão ou de animosidade social
importante, o mesmo não se deu em outras partes da África como Bugamba e
Madagascar, como veremos mais adiante na sequência deste volume.
O aparecimento de uma elite educada à moda ocidental
A consequência mais importante, no plano social, da revolução feita pelos
missionários foi, todavia, o aparecimento de uma elite instruída. A ação educa-
dora das sociedades missionárias, a partir da década de 1850, tal como a evo-
camos, traria o aparecimento, primeiro no litoral, e depois, em regiões sempre
mais afastadas, de uma classe de africanos que, em sua maioria, estudou em
inglês ou francês.
As regiões onde esse fenômeno foi mais marcante são inegavelmente a África
do Sul e a África Ocidental.
20 C. P.Groves, 1954, vol. II, p. 261 -265.
21 M. Wilson e L. ompson, 1969, p. 266 -267.
22 Ibid., p. 265; M.Wilson, 1971, p. 74 -75.
58
África do século XIX à década de 1880
 . Tiyo Soga [Fonte: C. Saunders, Black Leaders in African History, 1978, Heinemann, London
(O original encontra -se em Tiyo Soga, A page of South African Mission work, 1877, edição), John Aitken
Chalmers.]
59
Tendências e processos novos na África do século XIX
Segundo Leo Kuper, nada menos do que 3.448 africanos haviam passado
pela única Lovedale Missionary Institution entre 1841, data da sua fundação, e
dezembro de 1896. Entre estes, “mais de setecentos tinham uma profissão, em
sua maioria de professores; mas contavam -se oito auxiliares de justiça, dois
escrivães, um dico e dois redatores -chefes ou jornalistas; quase cem eram
secretários ou tradutores; cerca de cento e setenta artesãos; e mais de seiscentos
trabalhadores agrícolas ou lavradores
23
. Não se pode esquecer que a Lovedale
não era a única instituição desta natureza; havia outras no Cabo e no Natal.
Entre os ex -alunos destas instituições, dentre os quais um número grande, como
se verá mais adiante, teria um papel de primeiro plano no movimento religioso
de massa que se espalharia entre os bantos nas décadas de 1880 e, principal-
mente, na de 1890. Tiyo Soga foi o primeiro Xhosa a ser ordenado ministro da
Free Church of Scotland em 1856; Nehemiah Tile estudou teologia na Healdtown
Institution; Kenyane era um eclesiástico banto do Cabo; citemos também James
M. Divane, nascido em 1841, e ordenado em 1881, e Mangena M. Mokone
24
.
O mais jovem, mas também aquele que deveria exercer provavelmente a maior
influência, foi John T. Javabu. Nascido em 1859, ele frequentou a Healdtown
Institution (como Nehemiah Tile), tornando -se professor diplomado em 1875,
sendo o primeiro africano a passar no exame de bacharelato em 1883 e fun-
dou o primeiro jornal em língua banta (Imvo Zabantsundu); ele teve um papel
importante na política do Cabo entre 1890 e 1910
25
.
Todavia, em relação ao conjunto da população negra da África do Sul, a elite
educada à ocidental, permanecia, em 1880, numericamente insignificante. Ainda
mais ínfimo era o número desta na África Oriental e Central na mesma época.
No Tanganica, por exemplo, o primeiro padre africano da UMCA, Cecil Maja-
liwa,foi ordenado em 1890, o segundo só foi em 1894 e o terceiro em 1898
26
.
No Quênia, foi necessário esperar pelas primeiras décadas do século XX para
que uma elite, ainda que pouco importante, composta por homens como John
Owale, R. Omulo, J. Okwiri, Harry Thuku, James Beauttah, Hesse Kariuku,
John Muchuchu, sem mencionar Jomo Kenyatta, começasse a ter um papel
ativo na política local
27
. Se foi assim, é bem certo que as atividades de ensino
dos missionários somente se deslancharam após o período aqui considerado. Na
23 L. Kuper, 1971, p. 433 -434.
24 E. Roux, 1964, p. 78 -80; E. A. Walker, 1957, p. 521 -522.
25 E. Roux, 1964, p. 53 -77; E. A. Walker, 1957, p 394 -395, 536.
26 J. Ilie, 1979, p. 216 -219.
27 B. A. Ogot e J. A. Kieran (org.), 1968, p. 266 -270.
60
África do século XIX à década de 1880
África Ocidental, ao contrário, e em primeiro lugar, em Serra Leoa, constituiu-
-se, desde 1880, uma elite instruída relativamente numerosa. Com efeito, são os
crioulos, como se passou a chamar as pessoas instruídas deste país, que serviram
de ponta de lança da ação missionária e educadora em outras regiões da África
Ocidental. Três personagens são particularmente exemplares: James Africanus
Horton, nascido em 1835, que estudou medicina na Grã -Bretanha entre 1853 e
1859, engajando -se como cirurgião auxiliar de estado maior dos serviços médi-
cos do exército britânico na África Ocidental; Samuel Ajayi Crowther que foi
um dos primeiros diplomados do Fourah Bay College e o primeiro africano a ser
nomeado bispo da igreja anglicana; e finalmente, James Johnson, intelectual e
evangelizador ardoroso
28
. É preciso mencionar também Broughton Davies que
se formou em medicina em 1859 e Samuel Lewis, advogado, o primeiro africano
a ser condecorado com o titulo de cavaleiro pela rainha da Inglaterra
29
. A Libéria
formou igualmente um número notável de intelectuais, devendo ser citado, entre
eles, Edward Blyden, nascido nas Antilhas.
Na Nigéria e na Costa do Ouro, seu número era um pouco maior. Na Nigéria
contava -se, dentre esta elite, pessoas como Essien Ukpabio; T. B. Vincent, mais
tarde conhecido sob o nome de Mojola Agbebi; H. E. Macaulay, G. W. Johnson,
R. B. Blaize e J. A. Otunba Payne
30
. Na Costa do Ouro, durante as décadas de
1870 e 1880, ela era composta por J. A. Solomon, E. J. Fynn, J. P. Brown, J. de
Graft Hayford, A.W. Parker, T. Laing, J. H. Brew e John Mensah Sarbah
31
.
Além disso, ainda que na África Ocidental e, até certo ponto, nas regiões de
Moçambique e Angola sob domínio português, uma fração desta elite instruída
tenha escolhido profissões tais como funcionário, professor, catequista e padre ou
agente da Igreja – segundo o último censo, os Wesleyanos contavam, em 1885,
com 15 padres, 43 catequizadores, 259 pregadores e 79 professores de origem
africana na Costa do Ouro
32
–, a maioria estabeleceu -se no comércio por conta
própria, obtendo crédito junto a empresas estrangeiras e comerciantes locais. São
estes últimos “a burguesia de amanhã”, segundo Susan Kaplow
33
, que na Costa
do Ouro, em Serra Leoa e na Nigéria estenderiam, como se verá adiante, uma
rede de comércio varejista cada vez mais longe em terras interioranas durante o
28 E. A. Ayandele, 1966, p. 185 -196; J. F. A. Ajayi, 1969.
29 C. M. Fyle, 1981, p. 74 -76.
30 E. A. Ayandele, 1966, p. 58 -59, 192 -200.
31 F. L. Bartels, 1965, p. 72 -100.
32 M. McCarthy, 1983, p. 110 -111.
33 S. B. Kaplow, 1977, p. 313 -333.
61
Tendências e processos novos na África do século XIX
período em estudo. Como indicado em um relatório proveniente da Costa do
Ouro, em 1850, os mais jovens iam para o interior do país, instalando -se como
comerciantes e empregados provocando um acréscimo importante na demanda
junto aos fabricantes da Grã -Bretanha e desenvolvendo amplamente o comércio
e a civilização entre as populações indígenas
34
”. Uma evolução social semelhante
ocorreu em Madagascar e na África Oriental e Central. Deste modo, ao final do
século, a pirâmide social africana contava com um novo escalão, uma elite ins-
truída dentre a qual alguns exerceram as profissões de médico, padre, professor,
catequizador e empregado, enquanto outros formaram a classe dos burgueses de
amanhã, ou dos chefes de empresas, como alguns preferem chamá -los, composta
por negociantes e mercadores instruídos.
34 Citado em M. McCarthy, 1983, p. 126.
 . Escola da vila Charlotte, Serra Leoa, cerca de 1885. [Fonte: A.T. Porter, Creoledom, 1963,
Oxford University Press, Oxford. © Domínio público, com autorização da Foreign and Commonwealth Oce
Library.]
62
África do século XIX à década de 1880
O Etiopianismo
O aparecimento desta elite instruída na África teve duas consequências
excepcionais e interessantes: O nascimento do etiopianismo, movimento nacio-
nalista africano político e religioso e a revolução intelectual sobre a qual irrom-
peu, particularmente na África do Sul e na África Ocidental. É preciso sublinhar
que, até a década de 1850, os africanos instruídos que exerciam profissões inte-
lectuais eram tratados e vistos pelos brancos como iguais e eram remunerados
de acordo com as suas qualificações e experiência. Uma grande parte da elite
instruída africana acreditava sinceramente que a África somente poderia ser
civilizada se adotasse o saber, a técnica e a religião dos europeus. Mas foi então
que “surgiu na Europa e na América, a tese pseudocientífica que interpretava a
sociedade em termos de categorias raciais imutáveis nas quais era atribuída ao
negro uma classificação muito inferior
35
”. Estas ideias racistas foram difundi-
das amplamente durante a segunda metade do século, graças aos trabalhos de
homens como J. A. Gobineau, Richard Burton e Winwood Reade. Elas seriam
adotadas pela maioria dos missionários e administradores europeus na África
que passaram a exercer, tanto nas Igrejas como no governo, uma discriminação
em relação aos africanos instruídos com vantagem para os brancos. É essencial-
mente desta discriminação racial, assim como do sentimento de humilhação e
da indignação por ela provocada, que nasceu o movimento nacionalista político
e religioso que se intitulou etiopianismo, tirado de um versículo da bíblia: A
Etiópia terá as mãos voltadas para Deus.”
36
Tomando como exemplo a inde-
pendência manifestada, no início do século, por ex -escravos da Nova -Escócia
instalados em Serra Leoa, esse movimento visava a instituição de igrejas cristãs
dirigidas pelos próprios africanos e mantendo as tradições e culturas africanas.
Nascido na África do Sul, provavelmente no início da década de 1860, ele se
desenvolveu plenamente na década de 1880: as primeiras igrejas separatistas
independentes etíopes ou africanas foram fundadas na África do Sul em 1884,
pelo ministro wesleyano tembu Nehemiah Tile; e, em 1888, na África Ocidental
por um grupo de personalidades da igreja nigeriana da Southern Baptist Mission
(americana)
37
. É importante observar que, se Tile desejava adaptar a mensagem
da Igreja à herança dos tembu”acrescentando: “ do mesmo modo que a rainha
35 J. A. Horton, 1969, p. xvii; P. D. Curtin, 1964, p. 28 -57; R. July, 1967, p. 212 -213.
36 G. Shepperson e T. Price, 1958, p. 72 -74.
37 Ibid., p. 72 -74; G. Shepperson, 1968, p. 249 -263; E. Roux, 1964, p. 77 -80; B. G. Sundkler, 1961, p. 38 -47;
D. B. Barret, 1968, p. 18 -24; T. Hodgkin, 1956, p. 98 -114.
63
Tendências e processos novos na África do século XIX
da Inglaterra é chefe da Igreja inglesa, o chefe supremo dos tembu deveria ser
o summus episcopus da nova organização religiosa
38
–, T. B. Vincent, que mais
tarde se tornaria, sob o nome de Mojola Agbebi, um dos chefes do primeiro
movimento separatista da Nigéria, declarou em 1889:
para que o cristianismo se torne verdadeiramente uma religião africana, é necessário
que seja irrigada por mãos indígenas, podada por machado indígena e nutrida por
terra indígena [...] Seríamos amaldiçoados se pretendêssemos ficar indefinidamente
pendurados na aba dos mestres estrangeiros, recusando o crescimento.
Ele pretendia também inculcar a seus convertidos “a individualidade da raça,
a independência da congregação, a autonomia financeira e política, a conser-
vação dos nomes indígenas, dos trajes indígenas, os costumes e hábitos úteis
indígenas e a utilização da língua natal para o culto
39
. Da África do Sul, o
etiopianismo ganhou toda a África Oriental e Central, onde exerceu uma forte
influência entre 1880 e 1920.
Na África Ocidental, contudo, a elite instruída não se contentou com uma
ação política. Ela também passou a refutar e denunciar as teses e práticas racis-
tas através de uma série de artigos, brochuras, livros e discursos que deram vida
ao segundo dos fenômenos excepcionais evocados acima, ou seja, à revolução
intelectual e, com ela, à consciência racial africana, ao pan -africanismo e à per-
sonalidade africana.
Os pioneiros deste movimento na África Ocidental foram sem dúvida James
Africanus Horton (1835 -1883), e Edward Wilmot Blyden (1832 -1912). Entre
as obras de Horton sobre os tópicos em questão encontram -se Political economy
of British Western Africa with the requirements of the several colonies and settlements:
An African view of the Negro place in Nature (1865) (A economia política da
África Ocidental britânica e as exigências das diversas colônias e assentamentos:
uma visão africana sobre o lugar do Negro na Natureza); Western African coun-
tries and peoples: a vindication of the African race (1868) (Países e povos da África
Ocidental: uma defesa da raça africana) e Letters on the political conditions of the
Gold Coast (1870) (Cartas sobre as condições políticas da Costa do Ouro). Em
sua segunda obra, Horton refuta a ideia de uma inferioridade intrínseca da raça
negra; segundo ele, a distância existente entre o grau de civilização de brancos
e negros resulta “totalmente de circunstâncias externas”. Aos que apresentavam
a hipótese da inferioridade da raça negra e concluíam que esta, mais cedo ou
38 Apud T. Hodgkin, 1956, p. 100.
39 Apud E. A. Ayandele, 1966, p. 200.
64
África do século XIX à década de 1880
mais tarde, seria varrida da face da terra pela potência dos brancos, Horton
respondia:
Nós constatamos que, por todos os lugares onde os membros da raça africana foram
transplantados, eles se multiplicaram, qualquer que tenha sido o jugo destruidor e
pesado que tenham sofrido, podemos deduzir sem grande risco de erro que o povo
africano é um povo indestrutível e persistente, e que as extravagâncias daqueles que
previam seu desaparecimento são destinadas ao esquecimento da mesma forma que
o escravismo americano, hoje moribundo
40
.
Refutando, enfim, o postulado segundo o qual os negros seriam incapazes de
atingir o progresso, ele escreveu: “Os africanos não são incapazes de progredir;
com a assistência de homens bons e capazes, eles estão, ao contrário, destinados
a figurar nos tempos futuros e a ter um papel proeminente na história do mundo
civilizado
41
.
No prefácio das suas Letters on the political conditions of the Gold Coast (1870),
Horton escreveu novamente: “Roma não foi feita em um dia. O mais orgulhoso
império da Europa já foi antes mais bárbaro que o são hoje as principais tribos
habitantes da costa ocidental da África; ora, o que já foi feito pode ser realizado
novamente; isso é uma verdade irrefutável. Se, portanto, a civilização europeia
conseguiu atingir o apogeu que conhece nos dias atuais no cabo de uma evolução
gradual, a África, fortalecida pela garantia oferecida pela civilização do Norte,
conseguirá, ela também, uma grandeza idêntica
42
.
Horton não se contentou em condenar o racismo; ele foi um dos primeiros
a defender o pan -africanismo. Como mostrou Shepperson, esse ideal nasceu
nele enquanto estudava na Grã -Bretanha em reação contra as teorias racistas
pseudocientíficas. Foi então que adicionou Africanus aos seus outros dois nomes,
James Beale; desde então, ele simplesmente assinou a maioria dos seus escritos
como Africanus Horton.
43
Por fim, convém observar que Horton se interessava,
além dos problemas raciais e culturais, igualmente pela independência política.
Com efeito, em sua obra West African countries and peoples, ele tenta não somente
refutar numerosas teorias e afirmações antropológicas falaciosas e contrárias aos
interesses da raça negra”, mas também a definir as condições necessárias para
40 J. A. Horton, 1969, p.69; ver também R. July, 1967, p. 110 -129; encontra -se uma biograa completa de
J. A. Horton em C. Fyfe, 1972.
41 J. A. Horton, 1969, p. IX X.
42 Ibid., p. I.
43 Ibid., Introdução, p. XVII
65
Tendências e processos novos na África do século XIX
alcançar a autonomia recomendada pela Comissão da Câmara dos Comuns em
1865”.
44
Contemporâneo a Horton, Edward Wilmot Blyden (1832 -1912) foi ainda
mais prolífico, mais radical e tão conhecido quanto ele.
45
Nascido em St. Tho-
mas, Antilhas, ele muito cedo, entretanto, imigrou para a Libéria onde reali-
zou os seus estudos e residiu durante toda a sua vida, ocupando as funções de
professor universitário e diplomata até a sua morte aos oitenta anos de idade.
Ele publicou um grande número de livros e de brochuras, pronunciou diversos
discursos na Europa e nos Estados Unidos condenando sem descanso as teo-
rias racistas então em voga. Entre as suas obras publicadas durante o período
analisado aqui, figuram African colonization (1862) (A colonização africana);
Vindication of the Negro race (1857) (Em defesa da raça negra); A voice from
bleeding Africa on behalf of her exiled children (1856) (Uma voz da África san-
grenta em nome dos seus filhos exilados); Hope for Africa (1861) (Esperança
para a África); From West Africa to Palestine (1873) (Da África Ocidental até a
Palestina); e Christianity, Islam and the Negro race (1877) (Cristianismo, Islã e
a raça negra). Em suas obras, ele defendia a palavra de ordem África para os
Africanos” e se tornou um defensor do pan -africanismo, da personalidade afri-
cana, do islamismo e da poligamia mais adequada, segundo ele, à identidade
africana; ele enfatizou a necessidade de preservar a pureza e a integridade da
raça negra e, deste modo, condenou os casamentos inter -raciais; lutou em prol
do etiopianismo e, acima de tudo, pregou o orgulho de ser negro. Deste modo,
em um artigo publicado em 1874, ele fez apologia aos mande e fulbe que eram
muçulmanos e que desenvolviam a ideia de uma ordem nacional e social sem
intervenção positiva ou negativa dos estrangeiros. Blyden concluiu:
Durante séculos, a raça africana participou da construção da civilização humana
da forma mais humilde e subalterna. Entretanto, o curso da história produziu este
fato interessante em que uma carreira se abre a este povo e a nenhum outro. Uma
tarefa particular lhe foi reservada, tanto em terras de servidão como nas terras de
seus pais, que nenhum outro povo pode realizar. Quando considero suas perspectivas
e privilégios atuais e o trabalho duro, o sofrimento nobre e os êxitos que lhe são
prometidos –, prefiro pertencer a esta raça a ter nascido grego na época de Alexandre,
romano à época de Augusto ou ser anglo -saxão no século XIX.
46
44 Ibid., Prefácio, p.VII.
45 Para maiores detalhes, ver H. L. Lynch, 1967; J. S. Coleman, 1958, p. 106 -107, 175 -176, 183 -184; R.
July, 1967, p. 208 -233.
46 Citado em H. S. Wilson, 1969, p. 239 -240.
66
África do século XIX à década de 1880
Foi o mesmo Blyden que, em seu famoso discurso de maio de 1880 diante
da American Colonization Society, deu ressonância à formula “A Etiópia terá as
mãos voltadas para Deus” e incorporou os etíopes à comunidade africana; foi ele
o primeiro a utilizar as expressão “personalidade africana” em uma conferência
pronunciada em 19 de maio de 1893, em Freetown, descrevendo a raça africana
como “ uma grande raça grande por sua vitalidade, por sua resistência e suas
chances de perpetuidade”. Ele acrescentou:
É triste pensar que existem africanos, principalmente aqueles que tiveram as van-
tagens de uma formação estrangeira, que permanecem cegos diante das realidades
fundamentais da natureza humana, a ponto de dizerem: ‘Livremo -nos de todo senti-
mento de se pertencer a uma raça. Livremo -nos de nossa personalidade africana e, se
possível, fundirmo -nos numa nova raça [...] Pregai esta doutrina o quanto quiserdes,
ninguém os seguirá. Ninguém pode seguir -vos, por que uma vez abandonada a sua
personalidade, serão desnudados de si mesmos [...] É o dever de todo homem, qual-
quer que seja a sua raça, lutar pela sua individualidade para preservá -la e desenvolvê-
-la [...]. Deste modo, honrai e amai a vossa raça. Se deixardes de ser vós mesmos, se
renunciardes a vossa personalidade, não restará nada a deixar neste mundo
47
.
Uma outra figura que marcou a revolução intelectual daquela época foi, sem
dúvida alguma, James Johnson, este entusiástico evangelizador crioulo de origem
iorubá. Como Horton, ele nasceu em Serra Leoa e realizou os seus estudos na
escola secundária de Freetown e no Fourah Bay College e, depois, ensinou nesta
última instituição entre 1860 -1863. Em seguida, entrou na Church Missionary
Society que, em 1874, o enviou à Nigéria onde, num primeiro momento, ficou
responsável pela célebre Breadfruit Church de Lagos. Em 1876, ele foi nomeado
diretor geral de todas as missões da Church Missionary Society instaladas em
território iorubá, isto até 1880 quando ele foi demitido das suas funções só por
ser da “raça negra”.
48
James Johnson, em seus sermões, em suas cartas e em seus
artigos, tornou -se não só um defensor do nacionalismo nigeriano, mas também
do etiopianismo, doutrina que jamais, na África Ocidental, teve o caráter anti-
governamental e separatista que teve na África Austral e Central, mas que se
tornou a expressão das aspirações africanas, vangloriando e exaltando os sucessos
da raça negra e, ao mesmo tempo, uma arma na luta pela conquista do poder e
de posições no seio da Igreja e na função pública.
47 Ibid., p. 249 -250.
48 E. A. Ayandele, 1966, p. 195 -196; R. July, 1967, p. 197 -207.
67
Tendências e processos novos na África do século XIX
Como Blyden, mas diferentemente de Crowther, James Johnson defendeu,
em seus sermões e em suas obras, a palavra de ordem África para os Africanos”,
popularizando simultâneamente o conceito do etiopianismo
49
. Ao contrário de
seu contemporâneo Crowther, ele foi também um partidário e um defensor
apaixonado de uma evangelização da África pelos africanos e condenou com
vigor a tese, então em voga, da inferioridade da raça negra. Ele desejava o apa-
recimento de uma igreja africana independente que poria fim a todo sectarismo
e uniria todos os cristãos da África, “reagrupando todos em uma única comuni-
dade africana
50
. Os ministros daquela igreja, insistia ele, deveriam ser em todos
os níveis africanos porque, de acordo com ele, os missionários europeus não
saberiam fazer suas as ambições e o modo de pensar próprios da raça africana”.
Ele considerava também que a presença dos europeus entravaria o progresso
desta raça ao destruir “a superioridade física, a independência viril, a coragem e
a bravura, a audácia e a autonomia, além da vontade de enfrentar dificuldades”,
todas as qualidades que possuem os africanos que jamais tiveram contato com
os europeus
51
. Aos que, em 1881, o acusaram de ser hostil aos brancos, Johnson
respondeu:
Para os missionários atuais, o africano que comprova a sua independência de espírito
e enuncia claramente as suas convicções comete um crime grave.
Não se lhe reconhece este direito: ele deve ver sempre com outros olhos que não os
seus e professar outras opiniões que não as suas; não deve manifestar sentimento
patriótico algum; é preciso desnudar -lhe de sua humanidade e os últimos vestígios
de seu orgulho racial e dilapidar a sua individualidade e personalidade a fim de
poder coexistir em paz com os missionários e obter a graça de ser recomendado
favoravelmente à sociedade
52
.
Como se surpreender que tais opiniões tenham amedrontado os missionários
europeus a ponto de, em 1880, terem manobrado para substituir em sua função,
no coração dos territórios iorubás, aquele que as professava?
A mesma fermentação intelectual se manifestou em outras partes da África,
notadamente em Angola e, como se verá mais adiante, no Egito e em outros
49 E. A. Ayandele, 1966, p. 187.
50 Ibid., p. 187.
51 Apud E. A. Ayandele, ibid., p. 191.
52 Apud E. A. Ayandele, ibid., p. 191.
68
África do século XIX à década de 1880
Estados berberes, como testemunham os escritos de letrados egípcios, a exemplo
de Shaykh Rifā‘a al -Tahtāwi (1801 -1873)
53
.
As concepções destes africanos instrdos, o saber e a cultura dos quais
seus escritos são testemunho, a sutileza de seus argumentos e a força do seu
raciocínio, enfim, o simples volume de seus artigos, de suas publicações e de
sua correspondência evidenciam que se produziu uma verdadeira revolução
intelectual, particularmente na África Ocidental, mas de um modo geral sobre
todo o continente, revolução que não somente deu vida ao etiopianismo e ao
pan -africanismo e defendeu a personalidade e a independência africanas nas
instâncias da Igreja e do Estado, mas também devolveu o seu orgulho e a sua
confiança à raça negra.
Novas tendências políticas
Além dessas comoções demográficas e religiosas, outras duas grandes orien-
tações se desenharam na África durante o período em estudo: uma no campo
político e outra no campo comercial. No plano político, as principais tendências
novas que caracterizam este período são a concentração e a consolidação cada
vez maior das nações africanas, a sua modernização ou a sua renascença, certas
iniciativas e experiências constitucionais, a integração às antigas estruturas polí-
ticas de uma parte da nova elite instruída e, finalmente, a confrontação entre
africanos e europeus.
Se for verdade que um certo número de antigos impérios, como os reinos
Ashanti e Oyo na África Ocidental ou o Império Luba na África Central se
esfacelaram naquela época, não é menos verdadeiro que a tendência à unificação
e a consolidação das nações constituiu o fenômeno político mais interessante e
mais característico deste período da história africana. O Império de Sokoto, o
Império de Macina, o de al -Hadjdj Umar e, sobretudo, o de Samori Touré são
incontestavelmente exemplos típicos das tendências centralizadoras na política
africana no século XIX. Como vimos, as migrações dos nguni chegaram a
um resultado semelhante. Os casos da Etiópia, de Madagascar e do Buganda
são também característicos.
No início do século XIX, tanto a Etiópia como Madagascar encontravam -se
divididos em estados rivais e independentes. Mas, como se verá mais adiante
54
,
53 Ver A. A. Boahen (org.), 1987, capítulo 21; e capítulo 13 do presente volume.
54 Ver os capítulos 15 e 16 do presente volume.
69
Tendências e processos novos na África do século XIX
a Etiópia foi unificada antes do final do século, essencialmente graças às con-
quistas militares empreendidas por um dos Estados do centro, o Reino de Shoá,
em que o rás Menelik II se fez proclamar negus do Império Etíope em 1889.
Na mesma época, e seguindo os mesmos métodos, o reino central merina de
Madagascar subjugou e absorveu, sob a liderança esclarecida do rei Adrianam-
poinimerina (1782 -1810) e de seu sucessor, a quase totalidade dos Estados do
Norte, Leste e centro da ilha. Após estas conquistas, os estados centralizados de
ambos países tentaram impor a sua língua e sua cultura aos reinos subjugados,
a fim de construir verdadeiros Estados -nações, processo que, como veremos,
continuou por várias décadas do século seguinte.
As campanhas humanitárias, abolicionistas e racistas que marcaram esta
época fizeram surgir, na África Ocidental, dois Estados inteiramente novos,
Serra Leoa e Libéria, criados respectivamente em 1787 e em 1820, ao passo que
Libreville foi fundada na África Equatorial. Ao final do século, os dois primeiros
Estados tinham, do mesmo modo, conseguido não absorver um certo número
de reinos independentes situados no longínquo interior, mas também haviam
formado verdadeiras nações tendo cada uma a sua língua e cultura própria, o
inglês -liberiano e o crioulo. Serra Leoa registrou certamente, neste aspecto,
sucessos mais vistosos que a Libéria, que a cultura e a civilização que se
desenvolveram ali não foram importadas, mas realizavam a síntese de elementos
próprios aos africanos com outros, trazidos pelos negros da Nova Escócia e da
América no cadinho comum que era o ambiente de Freetown e de seus arredo-
res.
55
Produtos desta cultura dinâmica, os crioulos foram aqueles que, como
vimos, tiveram um papel decisivo na renovação religiosa e intelectual da África
Ocidental. O mesmo processo de expansão e centralização se observa no Egito,
bem como nas regiões dos Grandes Lagos onde, por motivos essencialmente
comerciais, para poder controlar os meios de produção e de troca, o Buganda, o
Burundi e o Bunyoro ampliaram seu poder e sua influência.
Além desta tendência à centralização, o século XIX viu se desenvolver um
outro fenômeno interessante, totalmente novo, ou seja, a modernização ou, como
diriam alguns, o renascimento da África. Uma das características marcantes dos
contatos que tiveram lugar nesta época entre africanos e europeus contatos
que remontam ao século XV é que, graças essencialmente aos esforços dos
exploradores, dos comerciantes e dos missionários, estes contatos que, até então,
eram limitados ao litoral, se expandiram gradualmente em direção ao interior.
55 Para maiores detalhes, ver L. Spitzer, 1974, A. Porter, 1963.
70
África do século XIX à década de 1880
Sob os efeitos da revolução industrial, esta penetração permitiu a introdução não
somente de armas de fogo e de pólvora, mas da estrada de ferro, do telégrafo,
de equipamentos agrícolas e de mineração, de gráficas, do ensino técnico e,
sobretudo, de capital. Estas inovações criaram certamente possibilidades novas,
mas constituíram também outros desafios e ameaças: alguns dos fenômenos
mais novos e mais notáveis deste período da história africana são precisamente
devidos às iniciativas e reações dos dirigentes africanos e de seus conselheiros
diante de tais desafios e ameaças. Parece que, na maioria dos casos, a atitude
dos africanos não era de imitar cegamente ou de adotar sem discriminação estes
aportes do estrangeiro, mas acima de tudo de adaptá -los e tentar uma síntese das
duas civilizações. Os exemplos desta modernização da África formam legiões
56
.
O Egito construiu a sua primeira gráfica em Būlak, em 1822; a primeira prensa
tipográfica de Luanda, então nas mãos dos portugueses, começou a funcionar em
1841; as primeiras explorações mineiras modernas na Argélia foram inauguradas
em 1845 e as da Costa do Ouro o foram durante a década de 1870. Alguns
países, como a Etiópia e a Tunísia, lançaram programas de obras públicas; a
maioria dos Estados berberes, bem como o Egito, reformaram os seus sistemas
monetários. Outros ainda, como o Egito de Mohammad Ali, criaram um grande
número de indústrias têxteis e de fiação de algodão, de serrarias, de fábricas de
vidro, bem como uma fábrica de papel.
Todavia, é no plano militar que a modernização teve os seus efeitos mais
profundos e mais notáveis. Perante o avanço incessante dos europeus, diversos
Estados africanos, em particular certos países da África Setentrional e Ociden-
tal, modernizaram os seus exércitos no plano da organização, da formação, dos
equipamentos e do recrutamento. Como se verá mais adiante, o Marrocos, por
exemplo, criou em Fez uma escola de engenharia destinada a formar artilheiros,
topógrafos, cartógrafos, além de enviar militares para estudar no exterior. Na
época do bey Ahmad, a Tunísia não se contentou em reorganizar o seu exército
segundo o modelo ocidental e em adotar as técnicas e os métodos correspon-
dentes, mas criou igualmente fábricas modernas para a produção de canhões
e de outros equipamentos militares de ponta. Sob os reinados de Téwodros e
de Menelik, a Etiópia aboliu o seu exército feudal, no qual o soldo era desco-
nhecido, substituindo -o por um exército profissional bem equipado; do mesmo
modo, criou fábricas de canhões e de morteiros. Samori Touré, por fim, reformou
e modernizou também o seu exército e o dotou com algumas das mais modernas
56 Ver os capítulos 13, 15, 16 e 17 do presente volume.
71
Tendências e processos novos na África do século XIX
armas da época. São estas reformas que permitiram a Touré e a Menelik resis-
tirem tanto tempo às potências imperialistas durante as duas últimas décadas
do século. Todavia, como mostrarão certos capítulos, esta modernização foi
possível graças aos empréstimos tomados a taxas elevadas, principalmente na
Europa; isto é que preparou o terreno ou forneceu o pretexto para as conquistas
imperialistas do final do século.
O mesmo processo de modernização manifestou -se no campo institucional.
Deste modo, constata -se que, devido ao desenvolvimento notável da elite instru-
ída e dos ulamā que, naturalmente, começaram a querer se associar à adminis-
tração do país, muitos Estados da África lançaram -se em diversas experiências
políticas e constitucionais. De fato, é possível igualmente interpretar as jihad
fulbe da primeira metade do século XIX como uma reação política violenta às
tensões entre a nova elite letrada dos ulamā e a elite reinante tradicional e ver
nas rebeliões dos juula da segunda metade do século, de acordo com Person,
uma revolta da classe dos comerciantes instruídos contra a elite conservadora
no poder
57
. Em outras regiões da África, particularmente na costa ocidental,
estas tensões não provocaram nem cruzadas nem explosões de violência, mas
encontraram uma solução constitucional. De fato, a elite instruída não procurou,
no século XIX, substituir a velha aristocracia no comando das diferentes nações,
como o faria nas décadas de 1820 e 1830, mas tentou chegar a um compromisso
e cooperar com ela dentro do quadro do sistema existente. Nós já mencionamos
as tentativas constitucionais que se seguiram às migrações dos iorubás. Todavia,
não exemplo melhor desta tendência que a constituição da Confederação
fanti da Costa do Ouro, redigida em 1874. Os artigos 4, 5 e 6 desta constituição
foram redigidos como a seguir
58
:
Serão eleitos um presidente, um vice -presidente, um secretário, um subsecretário,
um tesoureiro e um tesoureiro -adjunto;
O presidente será eleito pelo colégio de reis e proclamado rei -presidente de toda a
Confederação fanti;
O vice -presidente, o secretário, o subsecretário, o tesoureiro e o tesoureiro -adjunto
que comporão o Gabinete serão pessoas instruídas e de condição elevada.
Os objetivos da Confederação fanti, tais como os define o texto da constitui-
ção, não são menos consideráveis e significativos: trata -se de assegurar relações
amigáveis entre os soberanos e chefes do Fanti, além de sua aliança ofensiva e
57 Ver o capítulo 24 do presente volume.
58 Encontra -se o texto completo em H. S. Wilson, 1969, p. 213 -218.
72
África do século XIX à década de 1880
defensiva contra o inimigo comum; de construir “uma rede rodoviária sólida e
importante em todos os distritos do interior que compõem a Confederação”,
devendo as estradas “ter 15 pés de largura e ser margeadas por calhas suficien-
temente profundas em cada lado”; de criar escolas para a educação de todas as
crianças da Confederação, além de assegurar os serviços de mestres competen-
tes”. Outros objetivos buscados: promover atividades agrícolas e industriais;
introduzir novas plantas que poderão no futuro se tornar objeto de um comércio
lucrativo para o país”, enfim, desenvolver e favorecer a exploração das minas e
de outros recursos do país. Uma importância especial foi dada à educação das
crianças dos dois sexos, como testemunha o artigo 22: “Escolas técnicas serão
anexadas às diferentes escolas nacionais e terão por missão expressa educar e
formar os alunos nas profissões de carpinteiro, pedreiro, serrador, marceneiro,
agricultor, ferreiro, arquiteto e empreendedor de construção etc.”
Os objetivos da Confederação foram fixados de forma verdadeiramente sur-
preendente pelo seu caráter progressista e moderno, enquanto o espírito no qual
a Constituição foi redigida busca por uma relação harmoniosa entre a elite
instruída e as autoridades tradicionais – é, em si, revolucionário. Se uma chance
tivesse sido dada a estes esforços e projetos audaciosos, fortemente inspirados
nos trabalhos de Africanus Horton, de se realizarem, a história, não somente
da Costa do Ouro, mas provavelmente de toda a África Ocidental britânica,
teria seguido um curso diferente. Mas, por motivos que serão expostos adiante,
os britânicos tinham, desde 1873, posto um fim a esta audaciosa e notável
iniciativa.
59
Uma experiência constitucional análoga levou à criação do Egba United
Board of Management (Conselho Unido de Administração dos egba), fundado
em Abeokuta. De acordo com Africanus Horton, ele era encarregado expressa-
mente “de dirigir o governo autóctone, de expandir a civilização e de promover
a propagação do cristianismo, bem como de proteger os direitos de propriedade
dos comerciantes europeus e dos súditos britânicos”
60
. Citemos, por fim, a Cons-
tituição do reino dos grebo que, como observa Person mais adiante, foi edificada
sobre o modelo da Constituição da Confederação fanti.
Todos estes exemplos o mostram claramente: mudanças fundamentais inter-
vieram tanto no campo político como nos planos religioso e demográfico; e
inúmeras questões cruciais hoje relações entre a elite instruída e as autori-
dades tradicionais, problemas de desenvolvimento socioeconômico, a noção de
59 Ver o capítulo 25 do presente volume.
60 J. A. Horton, 1969, p. 151 -153.
73
Tendências e processos novos na África do século XIX
independência política e a concepção e a prática do pan -africanismo, ou ainda
a discriminação racial têm sua origem no período estudado neste volume.
Novas tendências econômicas
No campo econômico assim como em outros, novas tendências surgiram
no século XIX. A mudança mais radical, como se sabe, foi a abolição e o desa-
parecimento do tráfico de escravos que foi substituído pelas exportações agrí-
colas, qualificadas abusivamente, mas de maneira tipicamente eurocêntrica,
como comércio letimo”. Por mais radicais que tenham sido seus efeitos,
essa mudança foi bastante lenta. De fato, será visto que, na África Ocidental
e Central, este tráfico desumano estendeu -se e intensificou -se durante as seis
primeiras décadas do século XIX
61
. Foi preciso esperar até os derradeiros anos
do século para que as exportações agrícolas substituíssem totalmente o tráfico
de escravos.
Por mais conhecida que seja esta mudança, seu verdadeiro significado esca-
pou a inúmeros historiadores.o se trata da passagem de um comércio “ilegí-
timo para um comércio legítimo”, mas sim de uma transferência fundamental
de renda de uma elite aristocrática reinante para o povo. O tráfico de escravos, a
principal fonte de renda dos reis, dos chefes militares e de seus conselheiros,
a eles enriquecia. Mas, assim que foi substituído por um comércio baseado em
produtos naturais como o óleo de palma, o amendoim, o algodão, a borracha, o
mel, a cera de abelha, a noz -de -cola etc., que o povo e, principalmente, os habi-
tantes das zonas rurais desta vez puderam cultivar e colher em estado natural,
uma redistribuição progressiva da renda se seguiu, conduzindo à criação de uma
nova classe de ricos, não somente nos centros urbanos e mercados, como nas
áreas rurais. É desta época que data o aparecimento do capitalismo rural que se
pode observar nos dias atuais.
O desenvolvimento desta agricultura de exportação teve como outra conse-
quência a integração progressiva na economia capitalista mundial não somente
do comércio exterior da África, mas também de sua economia interna e de sua
economia rural. Infelizmente, esta mudança fundamental no modo de produção
não foi acompanhada em nenhuma parte da África pela evolução correspondente
dos meios de produção. Em outras palavras, a passagem para a agricultura de
exportação não se traduziu por uma mutação tecnológica dos meios de produção
61 Ver o capítulo 4 do presente volume.
74
África do século XIX à década de 1880
ou do tratamento industrial dos produtos antes da sua exportação. Deste modo,
a África encontrou -se incapaz de desenvolver, durante este período, uma econo-
mia que pudesse fazer frente à economia capitalista e industrializada da Europa;
daí a tragédia que deveria se abater sobre ela durante as décadas seguintes.
A realização da unificação comercial da África é uma outra mudança econô-
mica notável que sobreveio no século XIX, mas com frequência negligenciada
pelos historiadores.
Apesar da existência de longa data de rotas comerciais atravessando o Saara
e o Dārfūr para chegar ao vale do Nilo, não havia até o início do século XIX
nenhuma rota comercial transcontinental ligando a África Central à África
Oriental ou à do Norte. É somente no século XIX, e somente após a terceira
década, que a África Central, a Oriental e a do Norte foram ligadas por toda
uma rede de grandes rotas comerciais, graças aos esforços dos árabes, dos suaílis,
dos yao, dos nyamwesi e dos kamba na África Oriental, dos árabes do Egito e
do Sudão, dos tio, dos ovimbundu e dos chokwe na África Central. Além de
permitirem a unificação comercial do continente, a multiplicação dos contatos
entre as regiões africanas e um crescimento considerável de empresários, de
intermediários e de comerciantes africanos, estas infraestruturas tiveram como
efeito a abertura progressiva do interior africano às influências e aos produtos
manufaturados europeus árabes/suaílis, abertura esta que acarretou as consequ-
ências trágicas que acabamos de invocar e que serão analisadas em detalhe no
próximo volume.
Conclusão
Resta -nos perguntar sucintamente o que teria ocorrido se não houvesse
acontecido o episódio colonial. Não é necessário ser profeta ou adivinho para
compreender que, sem a intervenção colonial, a maioria das novas orientações
teriam se fixado. No plano político, teríamos assistido uma centralização cres-
cente do poder, desembocando, a longo prazo, no desenvolvimento natural de
um número maior de Estados -nações e de entidades políticas do que aquele
criado pela ocupação europeia e o retalhamento correlato da África. As tentati-
vas constitucionais, tais como a Confederação fanti e o Egba United Board teriam
sido, sem dúvida, coroadas de sucesso, e a cooperação entre as elites instruídas
e as aristocracias tradicionais reinantes, a qual permanece problemática, prova-
velmente teria se tornado uma realidade bem estabelecida. No campo social, a
propagação do cristianismo e aquela do islamismo seriam perseguidas, como foi
75
Tendências e processos novos na África do século XIX
efetivamente o caso durante o período colonial. Todavia, longe de se desacelerar,
a difusão do ensinamento ocidental e a criação de escolas técnicas e politécnicas
teriam se desenvolvido num ritmo acelerado, como assim o sugerem o programa
da Confederação fanti e as reformas na educação, adotadas pelo Egito no século
XIX. Mais ainda, a abertura dos grandes eixos comerciais através do continente
teria permitido o desenvolvimento de contatos e da comunicação entre regiões
da África, que teriam, deste modo, evoluído rumo a uma maior autonomia.
Enfim, o sentimento de identidade racial, o pan -africanismo e as palavras de
ordem do etiopianismo e aquela da África para africanos” teriam ganhado força,
realizando a unidade espiritual e ideológica do continente, se não sua unidade
política. Infelizmente, o episódio colonial veio aniquilar todas estas esperanças
tão construtivas como fascinantes.
Tudo que foi dito atesta que o século XIX foi, como evidenciado, um perí-
odo notavelmente dinâmico e revolucionário que viu se desenvolver inúmeras
tendências e processos novos, cujos efeitos marcam o fim da África antiga e
o advento da África moderna. Outrossim, durante este período, os africanos
deram incontestáveis provas de sua capacidade de enfrentar desafios novos, de
tomar iniciativas, de adotar e adaptar técnicas e ideias novas e de responder às
transformações do seu ambiente. Não é menos claro que as realizações notáveis
dos africanos nos campos político e social e, mais particularmente no campo
intelectual, superam em muito o sucesso registrado em questões econômicas. No
final do século, a maioria dos Estados africanos gozava de sua autonomia e de
sua soberania, enquanto, no campo das realizações intelectuais e de trabalhos
universitários, os africanos mostraram -se muito acima das expectativas de seus
detratores europeus. Infelizmente, estes incontestáveis sucessos sociais, intelec-
tuais e políticos ficaram longe de serem acompanhados de sucessos tecnológicos
e econômicos equivalentes. Os africanos não puderam, também, lançar as bases
econômicas e tecnológicas que lhes teriam permitido resistir à violenta tempes-
tade imperialista que, desde o final do século, devastaria o continente. Tal foi a
causa fundamental da tragédia que viveu, então, a África, dividida, conquistada
e entregue ao domínio colonial.
C A P Í T U L O 4
77
A abolição do tráco de escravos
Este capítulo não procura medir a profundidade de cada uma das inovações
que o século XIX levou à África. Não pretende mostrar o tráfico de escravos
em toda a extensão do fenômeno. Por exemplo, não faz senão rápidas alusões
aos tráficos transaariano e árabe, que merecem análises particulares de seus
eminentes especialistas. Mostra em grandes linhas as dificuldades encontradas
pelas nações do mundo ocidental para abolir o tráfico de escravos negros, prin-
cipalmente para as explorações escravagistas do lado americano do Atlântico.
Esquematiza ainda as condições do fim virtual do tráfico e indica algumas con-
sequências resultantes. Numerosas pesquisas devem ainda ser empreendidas para
chegar a um conhecimento melhor do fenômeno em seu conjunto. A tradição
oral deveria, nesse caso, ser preponderante.
Nunca a participação africana nesse tráfico foi geral. Certos povos do inte-
rior o ignoravam. Sociedades costeiras destruíam os navios e saqueavam os
equipamentos dos navios negreiros. Para outras, o tráfico agitava as estruturas
socioeconômicas e políticas. Outras ainda se fortaleciam com uma gestão auto-
ritária e exclusiva do sistema. Então, os interesses negros e brancos coincidiam
num tráfico florescente. Produtores e distribuidores africanos de mão de obra
exportável prosperavam graças a este ramo da economia e ao comércio exterior
da costa. Durante o século XVIII, foram comercializados cerca de 7 milhões
de indivíduos contra aproximadamente 300 milhões de piastras (libras) em
A abolição do tráco de escravos
Serge Daget
78
África do século XIX à década de 1880
mercadorias específicas no “comércio da Guiné”, das quais talvez 80 milhões
em armas de fogo. No mesmo período, o tráfico transaariano deportava mais
de 700.000 pessoas, e o comércio pelo Oceano Índico ao redor de 200.000. Na
outra extremidade da travessia atlântica, os negociantes negreiros trocavam os 6
milhões de africanos sobreviventes 40% de mulheres e crianças pelo produto
do trabalho dos escravos, que era vendido cada vez melhor do lado europeu do
oceano. Lá, entretanto, alguns intelectuais cujas sensibilidade e moral se choca-
vam com tais práticas condenavam o consumo de um açúcar tingido pelo sangue
dos “esquecidos de todo o universo”. Eles clamavam pela abolição do tráfico.
A ideologia abolicionista não é de inspiração africana. Ela visava todos os
meios negreiros e escravagistas do mundo atlântico antes de se interessar pelos
efeitos dos tráficos transaariano ou árabe. Suas manifestações provinham de
uma filosofia moral, cujo poder de mobilização real era muito fraco. Entretanto,
depois de meio século, as bandeiras das forças antinegreiras e da “civilização da
África serviram de pretexto oficial às pressões ocidentais cada vez mais fortes
no litoral Oeste africano. Por volta de 1860, o Ocidente instalou em definitivo
uma presença até então pontual, subordinada, às vezes proibida. O Norte e o
Leste da África conheceram situações quase semelhantes, a partir de 1830 até
o fim do século.
O ímpeto abolicionista do Ocidente
Ao longo do século XVIII, apurando a definição do direito universal ao bem-
-estar e à liberdade, antropólogos, filósofos e teólogos voltaram -se para o caso
do africano e de sua condição no mundo. Sua reflexão levou -os a modificar as
noções ordinariamente admitidas até então sobre o negro da África e o escravo
americano: de bruto e animal de carga, eles transformaram -no em um ser moral
e social. Sua fórmula, o negro é um homem”, recusava implicitamente o con-
senso sobre a honradez, a legitimidade e a utilidade da venda de negros. Suas
análises humanitaristas desembocaram na exigência abolicionista. Seu balanço
do tráfico era inteiramente negativo.
O tráfico manchava de sangue os Estados que o encorajavam ou o sub-
sidiavam. Matava dezenas de milhares de brancos e centenas de milhares de
negros. Retirava de sua terra produtores -consumidores que, reduzidos à escra-
vidão americana, não representavam mais nada. Impediu a diversificação da
atividade comercial na costa. Perpetrou a barbárie no continente negro – opinião
que tinha como base unicamente as observações dos ocidentais dotados de um
79
A abolição do tráco de escravos
saber” sobre a África, os negreiros. Ao denunciar um flagelo, o abolicionista não
pretendia converter imediatamente traficantes negros ou escravagistas brancos.
Propôs um programa de regeneração da África através da cristianização, da civi-
lização, do comércio natural e fixou etapas racionais para sua execução: reverter
a opinião pública do mundo cristão; levar os governos “civilizados” a tomar
posições oficiais; abolir legalmente o tráfico no Atlântico.
Na França, a Grande Enciclopédia e a obra do abade Raynal, revista por
Diderot, ensinou aos burgueses revolucionários a aversão à escravatura. Esta
corrente de ideias nobres e profanas apoiava indiretamente o ideal da Sociedade
Francesa dos Amigos dos Negros, que teria sido financiada pela Inglaterra. Os
revolucionários não sentiam nem a realidade negreira nem a necessidade de
levar a opinião pública a apoiar sua nova ideologia. Pelo contrário, na Inglaterra,
a sensibilização do povo para a filantropia se fazia pela explicação teológica
que brotava de uma profunda renovação evangélica. Após terem proibido o
comércio de escravos entre eles, os quacres americanos persuadiram os quacres
britânicos a juntarem -se ao movimento abolicionista inglês
1
. Ao mesmo tempo,
uma campanha intensa tinha sido realizada nos meios políticos. Vanguarda e
porta -voz destas forças conjuntas, a Seita de Clapham levava anualmente suas
reivindicações à Câmara dos Comuns por intermédio de William Wilberforce.
O combate contra os numerosos obstáculos acumulados pelos escravagistas e
pelos negreiros durou vinte anos. Aos 25 de março de 1807, a Inglaterra aboliu o
tráfico. Foi a segunda abolição oficial, depois da Dinamarca em 1802. Os Esta-
dos Unidos generalizaram as decisões individuais dos quacres em 1808. Essa
defesa dos interesses humanitários pelos poderes políticos tinha tido por campeã
a Grã -Bretanha, nação cujos negreiros haviam importado cerca de 1.600.000
africanos em suas colônias americanas ao longo do século precedente.
A hagiografia, segundo a qual a revolução humanitária abriu uma “das mais
nobres páginas” da história inglesa, foi abalada, em 1944, por uma tese fundada
no materialismo histórico. Segundo Eric Williams, a abolição servia poderosa-
mente aos interesses econômicos da Inglaterra industrial nascente
2
. Com cer-
teza, esta abordagem fértil não negava inteiramente o papel da filosofia moral
nem o de um humanitarismo ideal e triunfante. Mas fez aparecer severas con-
tradições entre o pensamento teórico e a realidade prática: entre os principais
dirigentes do movimento abolicionista figuravam numerosos banqueiros (o
caso vale também para a Sociedade Francesa dos Amigos dos Negros), ou seja,
1 R. Anstey, 1975, cap. 9.
2 E. Williams, 1944.
80
África do século XIX à década de 1880
a abolição do tráfico servia aos interesses do capital. Mais tarde, as ideias teóri-
cas revelar -se -iam impotentes para dominar o fluxo bem real de escravos para
explorações escravagistas em pleno desenvolvimento, em Cuba e no Brasil; e as
forças ditas humanitárias não conseguiriam dominar a equalização dos direitos
sobre o açúcar, cuja consequência eventual, numa época em que a mecanização
das plantações estava ainda bem longe de ser efetuada, seria o aumento da
demanda de mão de obra negra. O principal mérito da interessante tese de Eric
Williams foi talvez o de ter dado um impulso às novas pesquisas, enquanto o
debate econômico prosseguia. Seymour Drescher mostrou assim que a abolição
era um “econocídio”, e Roger Anstey, que a fé e a benevolência estavam na ori-
gem da filantropia inglesa
3
. Os historiadores divergem talvez menos na crítica
dos fatores políticos da abolição.
Proposições de abolição coletiva, lançadas pela Inglaterra em 1787, depois
em 1807, haviam fracassado. Em 1810, Portugal fez vagas promessas em troca
de aberturas para o mercado britânico. Um mundo desmoronou com o fim das
guerras napoleônicas. A paz de 1815 devolveu o Mediterrâneo, o Oceano Índico
e o Atlântico ao comércio marítimo, e os reabriu ao tráfico negreiro. No Con-
gresso de Viena, buscando uma condenação explícita do tráfico, a diplomacia
inglesa obteve uma declaração platônica e temporizadora, retomada em Verona.
A partir de 1841, esta aparência de moral abolicionista oficial autorizou daí por
diante todas as estratégias combinadas do Foreign Office e do Almirantado nos
negócios negreiros mundiais. Em três pontos, Londres propôs às nações um
procedimento pretensamente radical contra o tráfico internacional: legislações
internas proibindo o tráfico negreiro aos nacionais; tratados bilaterais conferindo
às marinhas de guerra o direito recíproco de visitar e prender no mar os navios
de comércio de cada nação contratante pega no tráfico ilegal; e colaboração nas
comissões mistas habilitadas a condenar os negreiros presos e a libertar os negros
encontrados a bordo. Tais disposições funcionariam também no Oceano Índico,
especialmente entre Maurício e Bourbon (a atual Ilha da Reunião).
Este projeto agradou a um público de perfil liberal ou filantrópico. Por outro
lado, nenhuma economia nacional podia negligenciar a clientela ou as fabrica-
ções inglesas. Ademais, para os governos novos ou em dificuldade que buscavam
a aprovação ou a passividade de Londres, um gesto abolicionista equivalia a
um verdadeiro gesto de cooperação. Inversamente, o projeto inglês podia
suscitar a resistência dos interesses que a supressão do tráfico pela força lesaria.
3 S. Drescher, 1976, p. 427; R. Anstey, 1975, cap. 1 e 2.
81
A abolição do tráco de escravos
Resistência dos Estados, em nome de sua soberania nacional: direito de visita e
comissões mistas pressupunham um abandono parcial desta soberania. Resistên-
cia dos clássicos interesses superiores”, a fim de fazer frente ao maquiavelismo
e às ambições hegemônicas que repousavam sobre a preponderância absoluta
da Royal Navy. Resistência à ruína das marinhas, das colônias, dos comércios
nacionais. Portugal, Espanha, Estados Unidos e França consumiam e distribu-
íam algodão, açúcar, café e tabaco de produção escravagista ligada à importação
de africanos no Brasil, em Cuba, nos Estados do Sul dos Estados Unidos e
nas Antilhas. Diretamente envolvido, o empreendedor marítimo drenava os
investimentos e oferecia emprego aos pequenos setores econômicos locais que
tiravam proveito do tráfico.
Sempre escravagistas nas colônias menores, a Dinamarca, a Holanda e a Sué-
cia subscreveram à repressão recíproca
4
. Substancialmente indenizados, Portugal
e Espanha aceitaram -na em 1817. Mas Portugal conservou um tráfico essen-
cialmente lícito no Sul do Equador, que não se atenuaria senão em 1842, sob a
ameaça de severas sanções militares inglesas. A Espanha reforçou sua legislação
antinegreira e suas convenções com Londres; mas Cuba continuou o tráfico até
1866, ano da terceira lei abolicionista espanhola: Cortes Gerais, o Conselho de
Estado e a Tesouraria cederam à chantagem para a fidelidade ou para a seces-
são dos plantadores da Ilha
5
. A chantagem dos ingleses para o reconhecimento
jurídico do Brasil obrigou o novo império ao tratado repressivo de 1826. Mas
o tráfico brasileiro cresceu até 1850. No ano seguinte, ele cessou, mas somente
por que a Royal Navy violou as águas territoriais do Brasil para purgá -las dos
negreiros: o café dependia do mercado britânico; os fazendeiros se arruinaram
para reembolsar suas dívidas aos mercadores de escravos; e a população branca
temia um superpovoamento negro
6
.
Às pressões inglesas, os Estados politicamente mais fortes responderam de
modo diferente. Sedenta de prestígio, a França adquiriu sua autonomia por um
simulacro de legislação e de cruzeiros de repressão, inofensivo, fosse na metró-
pole ou na costa. Entre 1815 e 1830, o tráfico ilegal francês mobilizou 729 expe-
dições negreiras para as costas Oeste e Leste da África. Mas quando se tornou
evidente que tais operações não constavam mais do balanço social e financeiro
dos portos, o governo assinou uma convenção de visita recíproca. Outra razão
foi o fato de a monarquia oriunda da revolução de 1830 ter tido interesse em se
4 S. E. Green -Pedersen, 1975; E. Ekman, 1975; P. C. Emmer, J. Mettas e J. -C. Nardin (org.), 1976.
5 A. F. Corwin, 1967.
6 L. Bethell, 1970, cap. 11 e 12.
82
África do século XIX à década de 1880
reconciliar com a Inglaterra
7
. Esta mudança de atitude levou à adesão de muitos
pequenos Estados às convenções de 1831 -1833. A Grã -Bretanha aproveitou -se
para renovar suas tentativas de internacionalização. Estendeu a repressão naval
a todo Atlântico e ao Oceano Índico. Uma cláusula de “equipamento permi-
tiu a captura de navios manifestamente armados para o tráfico, mesmo vazios
de carregamentos humanos. Os negreiros dos Estados Unidos permaneceram
invulneráveis. Durante quarenta anos, a diplomacia norte -americana escapou
a qualquer compromisso sério. Em 1820, o tráfico foi legalmente assimilado à
pirataria; em 1842, acrescentou -se o compromisso da verificação do pavilhão”,
que preservou os norte -americanos da repressão inglesa; cruzeiros repressivos
de “80 canhões” salvaguardaram a dignidade nacional, embora fossem medidas
formais. Nos anos 1840, os plantadores sulistas reclamaram a reabertura legal do
tráfico. Todavia, tomaram suas próprias medidas ao criarem escravos para venda
interna em ranchos especializados
8
. Durante a Guerra Civil, a Administração
Lincoln admitiu o direito de visita, suspenso desde 1820. Cessou então o tráfico
norte -americano.
Assim, durante meio século, a multidão dos textos acumulados provou sobre-
tudo a inanidade dos compromissos assumidos. Nesta avalanche verbal, a África
e os africanos são muito raramente mencionados, como se não existissem. O trá-
fico ilegal era proveitoso aos empreendedores marítimos, cujos benefícios eram
mais importantes do que na época do tráfico legal e protegido
9
. As explorações
escravagistas estocavam mão de obra.
Os plantadores resistiam à abolição por razões diferentes. Impermeável às
ideias difundidas pelos organismos abolicionistas, sua psicologia apela invaria-
velmente aos estereótipos raciais e aos postulados civilizadores. A abolição não
ajudaria a raça escrava e embrutecida a sair de sua sorte
10
”. O prestígio social
ligado à posse de escravos e os bitos demográficos ligados à ausência de
imigração branca contribuíram para a justificação do sistema. A resistência se
explicou sobretudo pela contradição percebida entre o crescimento da demanda
ocidental em produtos do trabalho dos escravos e a interdição ocidental de
importar os escravos julgados indispensáveis para aumentar a oferta destes pro-
dutos. A exportação de café brasileiro decuplicou entre 1817 e 1835, e triplicou
de novo até 1850. A exportação de açúcar cubano quadruplicou entre 1830
7 S. Daget, 1983.
8 E. D. Genovese, 1968, p. 131 -132.
9 P. E. Leveen, 1971, p. 27, tabela 3; R. Anstey, 1976, comunicação pessoal.
10 Citado em S. Daget, 1973.
83
A abolição do tráco de escravos
e 1864
11
. Em 1846, as medidas inglesas de livre comércio pareciam atribuir
uma preferência à produção escravagista, uniformizando os direitos de entrada
dos diversos açúcares no mercado britânico. Os historiadores não chegaram a
um acordo quanto à incidência dessa iniciativa no recrudescimento do tráfico
negreiro
12
. Mas em Cuba, onde o tráfico estava regredindo, a importação dos
negros novos (bozales) ultrapassou em 67%, nos anos 1851 -1860, a dos anos
1821 -1830. Durante os cinco anos de uniformização dos direitos na Inglaterra,
a introdução dos negros no Brasil aumentou 84% com relação aos cinco anos
precedentes, 1841 -1845
13
. Além disso, o explorador americano rentabilizava a
importação de mão de obra nova enquanto seu preço de compra era inferior a
600 dólares por cabeça. Isto até 1860
14
.
A repressão
Os navios de guerra não agiam somente na costa africana. Desde 1816, na
Conferência de Londres, proposições francesas contra o tráfico dito berbere”
tinham sido rechaçadas: aliás, elas não representavam senão uma tentativa para
tornar menos urgente a repressão militar no Atlântico. Mas em 1823, a França
adotou uma disposição proibindo a seus navios o transporte de escravos pelo
Mediterrâneo. Esta decisão inscrevia -se em um contexto político que não tinha
muito a ver com o tráfico: guerra da Espanha, libertação dos Gregos, apoio ao
Egito de Muhammad Alī enfim, tentativa de domínio deste mar fechado,
antes mesmo da intervenção direta francesa na Argélia. Momentaneamente
a Inglaterra havia sido ultrapassada. Entretanto, as operações dos navios não
tiveram resultados visíveis. A repressão militar era mais séria em algumas águas
do Oceano Índico, principalmente entre a ilha Maurício, Madagascar e a Reu-
nião. Lá, navios ingleses capturavam navios franceses; e é verossímil que alguns
negreiros ingleses de Maurício tenham ido procurar escravos em Madagas-
car, onde o chefe Jean -René exercia seu domínio sobre Tamatave. Em caso de
tomada “internacional”, regularizava -se o assunto restituindo o navio, mas não
os africanos que ele transportava. Em caso de apreensão por um navio nacional,
11 L. Bethell, 1970, p. 73, nota 4 e p. 284; F.W. Knight, 1970, p. 44.
12 F.W. Knight (1970, p.55) não acredita na incidência da medida, contrariamente a P. E. Leveen, 1971, p.
78 -80; H. Temperley, 1972, p. 164; D. R. Murray. 1971, p. 146.
13 D. R. Murray. 1971, p. 141 -147. Ver H. S. Klein, 1976; L. Bethell, 1970, p. 388 -395.
14 P. E. Leveen, 1971, p.10, 72ss; F. W. Knight, 1970, p. 29; A. F. Corwin, 1967, p. 135 -144.
84
África do século XIX à década de 1880
havia adjudicação judiciária, o que não significava que os negros a bordo eram
libertados. Na maior parte das vezes, eles incorporavam as plantações enquanto
as autoridades aduaneiras fechavam os olhos a essas operações.
Nas águas americanas, os franceses capturaram alguns negreiros nacionais e
os levaram a julgamento em Guadalupe e em Martinica. Os escravos “captura-
dos” eram escoltados para Caiena sob a ordem de Paris que era obcecada pela
ideia de colonizar a Guiana. Quando medidas de repressão foram previstas nos
tratados bilaterais, foram os navios negreiros não os homens que foram julga-
dos perante as comissões mistas instauradas pelos acordos. Sua eficácia do lado
americano do Atlântico dependia da mentalidade dominante nas explorações
escravagistas. Em Cuba, apenas 45 negreiros foram condenados pela Comissão
hispano -britânica, dos 714 conhecidos entre 1819 e 1845. Um prêmio pela
captura destinado aos integrantes da marinha espanhola local levou à apreensão
de 50 navios nos dez últimos anos do tráfico. Os resultados das comissões do
Suriname e do Brasil não foram melhores
15
. Um navio a cada cinco foi capturado
nas águas americanas. Entretanto, por volta de 1840, cerca de 70 embarcações
de guerra de diversas nacionalidades foram expedidas para a repressão.
O efetivo foi bem menor na costa ocidental africana. Os cruzeiros holan-
deses, portugueses e americanos eram episódicos. Os cruzadores americanos
eram muitas vezes comandados por sulistas. Baseados no Cabo Verde, estavam
distante do tráfico. Esta situação que prevaleceu no momento do nascimento
da Libéria não mudou até 1842. O acordo concluído com os ingleses exigiu
a presença de quatro ou cinco navios mas isto permaneceu teórico. Entre
1839 e 1859, dois negreiros americanos foram apreendidos com sua carga. Sete
capturas aconteceram em 1860; os escravos que se achavam a bordo dos navios
apreendidos foram povoar a Libéria.
Duas forças matimas operaram permanentemente. Em 1818, a França
estabeleceu seu cruzeiro, que permaneceu independente até 1831. Partindo de
Gorée, que não era mais um centro de distribuição negreiro desde 1823 -1824,
mas que se tornou o quartel geral das operações de repressão francesas, entre três
e sete navios de guerra inspecionavam alguns negreiros, sem jamais reprimir nos
quatro primeiros anos. A incerteza reinava sobre as intenções reais do governo.
Londres acusava os franceses de subtrair -se a seu dever e a toda obrigação moral.
Os abolicionistas franceses acusavam o ministério de conluio com os interesses
negreiros. Em 1825, a marinha reagiu decidindo pela atribuição de um prêmio
15 D. R. Murray, 1971; P. C. Emmer, 1976, p. 245 -251; L. Bethell, 1970, p. 200 -213.
85
A abolição do tráco de escravos
de 100 francos por escravo “apreendido”. Cerca de trinta negreiros capturados
no mar passaram pela justiça, elevando a uma centena o número de condenados.
Teoricamente, isto deveria ter salvado alguns milhares de africanos da escravi-
dão americana. Mas, na realidade, quando não foram enviados a Caiena, foram
“empregados” no Senegal para as obras públicas da colônia. As convenções
de 1831 -1833 foram pouco a pouco minadas pelas rivalidades e pelo orgulho
nacional dos parceiros
16
. A Marinha francesa procurava assegurar um equilíbrio
entre o número de seus cruzadores e os da Royal Navy. Havia entre três e seis
em 1838, e quatorze de cada lado em 1843 -1844. Em 1845, como consequência
indireta do tratado anglo -americano, as convenções francesas foram emendadas,
e o número de embarcações destinadas à repressão foi fixado em vinte e seis de
cada lado. Desde então, contando com os cinco cruzadores americanos e os seis
navios portugueses nas costas do Congo, uma verdadeira força naval parecia
direcionada contra o tráfico. Em 1849, a França não cumpriu com algumas
obrigações que não podia assumir. Durante sete anos, o segundo Império favo-
receu os “contratos livres” de mão de obra africana. Foi um tráfico mascarado
que a Inglaterra e a Holanda praticaram por sua conta. O cruzeiro francês em
quase nada interferiu, mas fez tremular sua bandeira ao longo da costa, o que
era talvez seu principal objetivo.
O Almirantado britânico encarregou -se da polícia humanitária, mas o fez
sem entusiasmo. Os meios materiais progrediram, passando de 3 a 26 navios,
mal adaptados a esta missão especial. Pesados, incapazes de subir os rios, des-
tacavam botes, vulneráveis aos ataques das feitorias negreiras e dos barcos que
os esperavam. Lentos, eles eram ultrapassados no mar pelos brigues rápidos e
leves, antes de -lo pelos clíperes americanos. Na falta de vapores, no início,
a administração colonial da Serra Leoa comprou alguns navios condenados,
destinando -os à repressão por suas qualidades náuticas. A esquadra estacionava
e abastecia -se na colônia, nos fortes da Costa de Ouro e fazia escala na ilha da
Ascensão. As ofertas de compra de Fernando Pó à Espanha, a fim de melhor
reprimir o tráfico no golfo de Biafra, não obtiveram êxito.
A eficácia dependia dos homens. Embebida no espírito metropolitano, a
consciência abolicionista do marinheiro inglês era inegável. Era igualmente
válido para seu complexo de poder. A serviço da humanidade, conduzia a Royal
Navy a nem sempre obedecer às ordens do Almirantado e a desprezar o direito
marítimo internacional. Ilegalmente, a Royal Navy visitou e prendeu franceses
16 S. Daget, 1981.
86
África do século XIX à década de 1880
 . “Mapa da costa ocidental da África, compreendendo todos os territórios onde ainda se faz o
tráco dos escravos, reproduzido de acordo com documentos recentes para a inteligência dos cruzadores ou
dos bloqueios a estabelecer nos focos do tráco pelo comandante barco E. Bouët -Willaumez” (Mémoires et
documents Afrique, 30, p. 415). [Fonte: documento de arquivos do Ministério dos Assuntos Exteriores, Paris.
Publicado com a amável autorização de S. E. o Ministro dos Assuntos Exteriores da República Francesa.]
e americanos antes dos acordos bilaterais, acarretando medidas de protesto e de
reparação diplomáticos. Um prêmio pelas capturas, muito elevado no início, fez
com que os marinheiros da Inglaterra fossem acusados de se preocuparem antes
pelo proveito garantido pela captura de um navio que pelo estado dos africanos
amontoados a bordo. Com efeito, a mortalidade era severa entre a apreensão e
a liberação em Serra Leoa, em Santa Helena ou em Maurício. Os marinheiros
também morriam de doença ou em serviço. Houve combates mortíferos entre
cruzadores e negreiros
17
.
17 C. Lloyd, 1968; S. Daget, 1975.
87
A abolição do tráco de escravos
Estes últimos utilizavam com habilidade a incoerência das condições inter-
nacionais da repressão. Na costa, muito bem informados sobre os movimentos
dos cruzadores, os negreiros evitavam -nos, talvez quatro a cada cinco vezes.
Içando falsos pavilhões e empregando falsos documentos de bordo comprados
nas Antilhas, agiam como piratas. Apesar das leis, até então não sofriam sanções.
Abandonaram seus disfarces no momento do reforço dos acordos repressivos: os
documentos franceses não mais os protegiam, depois de 1831; e os portugueses,
depois de 1842. Mas a manutenção da soberania americana salvaguardou efi-
cazmente o tráfico com pavilhão dos Estados Unidos até 1862.
A resposta a estes estratagemas foi a escalada da violência. Os comandantes
de cruzadores e os governantes locais das implantações ocidentais chegaram a
empregar espontaneamente a força militar. Praticaram “expedições punitivas”
18
em terra, especialmente onde o poder africano parecia desorganizado. Na zona
de influência americana da Libéria, o governador, reverendo Jehudi Ashmun,
atuou contra as feitorias do cabo Mount. Perto da Serra Leoa, em 1825, a
campanha do governador Turner expurgou por um tempo as ilhas da península
– sobretudo, estabeleceu definitivamente uma longa faixa costeira sob domínio
inglês. Foram operações de comando repetidas no rio Gallinas, depois no rio
Sherbro e no rio Pongo. No Sul do equador, foi o bombardeamento sistemático
dos negreiros nas águas portuguesas” de Cabinda e Ambriz. As expedições aca-
baram com o incêndio dos barracons, das aldeias dos empreendedores africanos,
reconstruídas rapidamente um pouco mais distante. Os escravos presos eram
libertados e enviados para a Serra Leoa, para a Gâmbia ou para Maurício por
causa do prêmio. Alguns ali se estabeleceram. Muitos foram alistados nas tropas
coloniais negras. A outros foram propostos contratos livres como trabalhadores
nas Antilhas
19
.
Extirpando o mal “pela raiz
20
, estas operações foram tidas como decisivas
na França e na Inglaterra. Introduziram duas modalidades novas: de um lado, a
assinatura de “tratados” com os chefes locais, na costa, que se comprometeram
a suprimir o tráfico nos territórios sob seu controle (tratados mais ditados que
discutidos, mais impostos que desejados); por outro lado, a repressão através do
bloqueio duradouro de grandes centros de exportação, e isso constituiu o início
de uma política de diplomacia armada e intervencionista. A década 1841 -1850
18 C. Lloyd, 1968, p. 93 -100.
19 C. Fyfe, 1962; J. U. J. Asiegbu, 1969.
20 C. Lloyd, 1968; P. J. Staudenraus, 1961; C. Fyfe, 1962, loc. cit.
88
África do século XIX à década de 1880
foi decisiva para a costa oeste africana que, até então, permanecera o principal
foco do tráfico.
Esta década foi também importante no que concerne ao tráfico transaariano.
Apesar dos esforços do cônsul abolicionista Warrington, a Inglaterra continuava
ainda indiferente ao tráfico em direção à África Setentrional. Em teoria, todas as
partes que a compunham estavam sob a dependência dos Turcos de Constanti-
nopla, com exceção do Marrocos. Na verdade, há muito tempo, as frações consi-
deravam insignificante a suserania dos Kāramānlī, e agiam de modo autônomo.
Um primeiro fator foi, em 1830, a conquista militar francesa, transformada em
colonização a partir de 1842, que abalou a Regência de Argel. Foi uma coloni-
zação de povoamento branco que pouco desejava escravos. Encontrando -se entre
pressões francesas e britânicas, a Regência vizinha de Tunis, aboliu o tráfico entre
1840 e 1842. A Leste, a Regência de Trípoli encontrou mais dificuldades, porque
precisava receber a concordância dos chefes do interior, alguns dos quais eram
poderosos distribuidores de escravos provenientes do Borno ou de Sokoto. Mas
em 1842, o shaykh Abdul -Djalīl, que de Murzuk dominava o Fezzān, consentiu
a abolição do tráfico, mas foi assassinado. A Turquia restabelecera sua suserania
direta sobre Trípoli e a Cirenaica desde 1835; e doravante precisava contar com
ela para realizar uma abolição efetiva do tráfico. O sultão de Constantinopla
proibiu o tráfico em 1857; mas este não se interrompeu de fato em lugar nenhum,
nem mesmo em um Egito já fortemente ocidentalizado.
Em 1870, o viajante alemão Georg Schweinfurth, que chegava “do coração
da África”, se perguntava que “proteção [...] a abolição do tráfico podia receber
do Kediva”
21
. O Marrocos, por fim, apresentava uma situação excepcional. Dos
países do Magreb, ele era a única nação que os Europeus consideravam uma
potência real: a ele não pensava em impor ou mesmo sugerir uma atitude que
fosse. As tentativas diplomáticas e as persuasões humanitárias fracassaram até
1887. Mesmo quando o tráfico pelo Oceano Atlântico começava a dar sinais de
decréscimo, ainda existiam, no quadro do tráfico transaariano, eixos sólidos para
a exportação e a distribuição de escravos: para o Marrocos, onde, em meados do
século XIX, entre 3.500 e 4.000 africanos negros eram importados anualmente,
e ainda 500 por ano nos anos 1880
22
; para o Mar Vermelho e para o Oriente
Próximo, como o estudaremos mais adiante. Contra esse tráfico transaariano,
21 G. Schweinfurth, 1873, cap. IX; A. A. Boahen, 1964; J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. III; F. Renault e S.
Daget, 1980.
22 J. -L. Miège, 1961 -1963; F. Renault e S. Daget, 1980.
89
A abolição do tráco de escravos
totalmente nas mãos dos africanos, por se tratar de um tráfico inteiramente
interno à África, não havia qualquer meio ocidental de repressão.
Os abolicionistas sustentavam que, se não tivesse havido compradores de
escravos, não teria havido vendedores. Invertendo a ordem dos termos, os escra-
vagistas afirmavam que sem oferta africana de escravos, não haveria demanda
ocidental; sua boa consciência, fundavam -na em uma tácita cumplicidade da
própria África.
As reações africanas
Entre 1787 e 1807, fase pré -abolicionista ocidental, mais de um milhão de
africanos foram deportados para as Américas. A este número acrescentam -se
uma mortalidade aproximada de 15%, na travessia do Atlântico, e o número
desconhecido de mortes provocadas pelos deslocamentos para a costa e durante
as operões locais de produção de cativos pelos africanos pescadores de
homens”
23
.
A abolição estava longe de perturbar de imediato a vitalidade do mercado
de exportação ao longo da costa. A indecisão abolicionista deixou a Portugal
e ao Brasil o lazer de traficar ilegalmente ao Sul do equador, e o lucro era tão
alto quanto no século XVIII. Combatido seriamente após 1842, o tráfico não
desapareceu das costas de Loango antes dos anos 1900
24
. Ao Norte do equador,
a abolição imposta aos estabelecimentos europeus suprimiu postos de tráfico
tradicionais, na Senegâmbia, em Serra Leoa, na Libéria e na Costa do Ouro.
Mas o efeito real quase não passou da periferia da implantação onde a autori-
dade política era fraca. Às vezes ainda negreiros continuavam operando nestas
paragens. Porém, desapareceram progressivamente. A produção e a distribuição
de mão de obra exportável estavam doravante nas mãos dos africanos.
Nas fronteiras da Serra Leoa, a geomorfologia favorecia ativas feitorias
negreiras inglesas e espanholas, ou pertencentes a mulatos, nos rios Nuñez e
Pongo, no Noroeste, e no rio Gallinas, no Sudeste. As regiões produtoras, às
vezes separadas umas das outras por 400 ou 500 quilômetros, estavam geral-
mente situadas próximas à costa. As transações eram pessoais, entre dirigentes,
caravaneiros, agentes e feitores. Em Daomé, ao contrário, o tráfico era um dos
suportes do poder político, que delegava a gestão dele a seus mais importantes
23 R. omas e R. Bean, 1974.
24 G. Dupré e A. Massala, 1975, p. 1468.
90
África do século XIX à década de 1880
parceiros. Devedor ao mulato Francisco Félix da Souza, Ghezo fixou -o, em
1818, como chacha, “chefe dos brancos”, conselheiro econômico e administrador
do tráfico em Uidá. Este cargo sobreviveria à morte do primeiro chacha, em 1849,
e o filho de Ghezo o herdaria. Tratava -se de uma gestão em grande escala: esto-
cagem das mercadorias ocidentais, liquidação das dívidas e créditos, embarque
rápido de cargas previamente preparadas, arrecadação das taxas, filtragem dos
estrangeiros brancos e divertimento da clientela. Estas funções econômicas eram
capazes de adaptar -se a outros tipos de produção. A do tráfico, que pertencia aos
chefes de guerra, era assegurada por expedições militares anuais, nem sempre
vitoriosas, contra os países vizinhos, e sobretudo os iorubás. Provinha igualmente
do Sudão Central que distribuía também cativos para o Norte e para o Egito,
dirigindo sua carga pelos confins do Estado: bom portador, o indivíduo devo-
tado à exportação era conservado e integrado à equipe ordinária de transporte
25
.
Mais a Leste, de Badagri às fronteiras do reino do Benin, os tumultos internos
do povo iorubá sobrecarregaram um mercado ligado com Uidá. Poderes locais,
negreiros negros e brancos das lagunas atendiam as fortes demandas portugue-
sas e brasileiras, que ali encontravam a maior parte de seus recursos antes de se
adaptarem à nova realidade
26
.
A Leste do Cabo Formosa, nas margens do delta do ger, de Nun ao
Velho Calabar, os notáveis mecanismos adotados no último terço do século
XVIII continuavam administrando o tráfico negreiro, mas se aplicavam a
outras atividades comerciais exploradas simultaneamente. As forças religiosas
e sociopolíticas locais, o oráculo Arochuku, as “Casas de Canoas” e a sociedade
ekpe mantinham um mercado que representava a metade do tráfico negreiro ao
Norte do equador, cerca de 200.000 unidades. A produção chegava de Sokoto, da
Bénoué, do Nupe, do Noroeste camaronês e das regiões interiores do delta, onde
era conseguida com métodos clássicos, guerra ou rapto, pagamento de dívidas
ou tributo de proteção, expurgação social da comunidade, simples compra nos
mercados e simples brindes. Uma sucessão de negociantes ou as redes habituais
de escoamento encaminhavam -na para os pontos de distribuição
27
. Lá, métodos
bem corriqueiros também presidiam às transações. O preço unitário das cargas
era previamente fixado na moeda de cálculo local, a barra de cobre, equivalente
a certa quantidade de mercadorias não diferente daquela dos períodos ante-
riores. Em 1825 e em 1829, homens e mulheres valiam 67 barras; e o preço
25 C. Coquery -Vidrovitch, 1971, p. 109 -111; P. Manning, 1979; M. Adamu, 1979.
26 P. Verger, 1968, cap. XI e XII.
27 K. O. Dike, 1956; P. D. Curtin, 1969, p. 254 -255; M. Adamu, 1979.
91
A abolição do tráco de escravos
podia baixar até a 45 ou 50. Quando do desembarque da carga, o preço de cada
indivíduo era de 33 dólares espanhóis, sendo 8 a 10% o valor da comissão dos
distribuidores. Em Duke Town, a cidade de Duke Ephraïm, no Antigo Calabar,
chefes de outras casas mais ou menos rivais, Egbo Eyo, Tom Honesty, Ogan
Henshaw, contribuíam para completar os carregamentos de escravos ou comes-
tíveis. 40.000 inhames se pagavam com 2.000 barras, valor de 40 indivíduos. Por
volta de 1830, a maior parte do tráfico se realizaria em Bonny
28
.
A estimativa do tráfico negreiro ao longo dos sessenta anos da era abolicio-
nista pertence ao domínio dos valores aproximados. De 1807 a 1867, entre o
Senegal e Moçambique, 4.000 navios europeus ou americanos realizaram por
volta de 5.000 expedições negreiras, deslocando 1 milhão de toneladas métricas
de carga. Mercadorias com o valor de cerca de 60 milhões de piastras ou dólares
foram negociadas por um total de 1.900.000 africanos, efetivamente embarcados
nos entrepostos de exportação. 80% desse total teria sido embarcado no Sul do
equador.
29
Do começo do século aos anos de 1880, o tráfico transaariano, de um
lado e o tráfico árabe, de outro, exportavam em torno de 1.200.000 africanos
negros no que se refere ao primeiro e 800.000 no que diz respeito ao segundo
30
,
indivíduos capturados no imenso arco compreendido entre o país Bambara, no
Oeste e Sul de Moçambique.
Cliometristas, sociólogos e historiadores admitem que o tráfico foi uma
catástrofe global para a África. A observação científica juntar -se -ia assim ao
sentimento popular. Mas o propósito merece uma explicação. A ideologia huma-
nitária era ocidental. É provável que não tenha havido o menor sentido no
espírito dos distribuidores africanos da época – salvo raríssimas exceções. O que
não quer dizer que eles fossem visceralmente incapazes de não mais praticar o
tráfico, como os escravagista ocidentais o pretendiam. A permanência da oferta
africana de mão de obra exportável deve ser analisada em termos de racionali-
dade econômica. Distribuidor negro e exportador branco não mudavam nada
em uma atividade pagadora, aproveitável às duas partes interessadas, que não
visavam outra coisa além do ganho. Assim foi no estágio elementar. A constante
oferta se explicava pelo bom funcionamento de um sistema integrado. Se havia
resistência africana, era contra o desmoronamento desse sistema. Inicialmente
arruinaria os interesses constantes dos distribuidores não preparados
31
, sem falar
28 S. Daget, 1983, ver, entre outros, os navios Le Charles, 1825, e Le Jules, 1829.
29 P. D. Curtin, 1969, tabelas 76 e 77.
30 R. A. Austen, 1979, tabelas 2.8 e 2.9.
31 G. N. Uzoigwe, 1973, p. 201.
92
África do século XIX à década de 1880
das repercussões que viriam a seguir sobre o organismo social e político próximo
ou distante. Em resumo, enquanto o movimento de trocas entre o interior e a
costa e o comércio externo desta não ofereciam alternativa decisiva ao tráfico,
a “resistência dos negreiros africanos à sua supressão era severamente deter-
minada pela necessidade de evitar um caos comercial
32
. A suposta cumplicidade
dos distribuidores africanos não era senão uma resposta adaptada à realidade
econômica imediata. Isto explica, aliás, a tendência à queda dos preços de venda
de mão de obra exportável como defesa do mercado contra as crescentes pressões
das forças repressivas. Estas teriam, portanto, sua parte em um balanço negativo.
Tal argumentação precisa ser equilibrada quanto à deportação dos africanos para
o Norte ou para o Leste. Se o interesse econômico dos captores e distribuidores
de escravos permanecia evidente, concebe -se dificilmente que os países arruina-
dos tenham recebido qualquer compensação econômica. Certas personalidades
poderosas instalaram seu poder, Tippu Tip ou Rābah, por exemplo. Mas, se exis-
tiu de sua parte uma contribuição positiva para as regiões que eles controlavam,
o estudo desse aporte será da competência dos especialistas.
Serra Leoa e Libéria
Um cliometrista acha que a repressão salvou 657.000 pessoas da escravidão
americana
33
. Outro especialista estima que este número é por demais elevado, e o
reduz a 40.000 indivíduos para o período que vai de 1821 a 1843
34
. As opiniões
não são muito mais precisas quanto ao total de navios negreiros apreendidos
pelas forças repressivas. Entre 1.000 e 1.200 embarcações, cerca de um quarto
das expedições prováveis para o tráfico ilegal constituiriam uma avaliação razo-
ável
35
. As cortes de vice -almirantado britânicas, os tribunais franceses, os cruzei-
ros americanos e, sobretudo, as comissões mistas (tornadas sem objetivo, seriam
dissolvidas entre 1867 e 1870) liberaram por volta de 160.000 africanos.
Considerados “escravos”, isto é, bens móveis, sua libertação não era auto-
mática: exigia um julgamento das autoridades marítimas ou coloniais, ou das
comissões, para livrá -los da condição de escravos. Arrancados de suas raízes,
alguns milhares de libertos viviam uma vida precária e ameaçada no cerne das
32 Ibidem, B. O. Oloruntimehin (1972b, p. 40) diz: “uma verdadeira crise de adaptação”.
33 P. E. Leveen, 1971, p. 75.
34 D. Eltis, 1978.
35 C. Lloyd, 1968, apêndice A; S. Daget, 1983.
93
A abolição do tráco de escravos
explorações escravagistas do Brasil e de Cuba, o que colocou o problema de sua
integração socioeconômica
36
. Algumas centenas encontraram uma condição
ambígua nos estabelecimentos franceses da Guiana, do Senegal e do Gabão.
Outras adquiriram uma real existência política, como na Libéria ou em Serra
Leoa. Em Freetown, os 94.329 homens, mulheres e crianças recenseados nos
registros do Departamento dos Africanos Libertados
37
deram as primeiras res-
postas positivas e originais às questões da supressão do tráfico.
Em 1808, a Coroa britânica se encarregava de Serra Leoa, para encobrir o
fracasso do estabelecimento filantrópico fundamentado vinte anos antes sobre
os critérios do abolicionismo: cristianização, civilização e comércio. Em três
fluxos de povoamento voluntário, proveniente da Inglaterra, da Nova Escócia e
da Jamaica, 2.089 ex -escravos e fugitivos colonizaram o Nordeste da península.
Estes estrangeiros não mantinham boas relações com seus vizinhos africanos.
Os franceses devastaram suas plantações. Alguns ambicionaram o poder pessoal.
As condições climáticas e sanitárias dizimaram os colonos. De modo especial, a
companhia comercial de tutela revelou -se impotente de manter suas promessas
sobre o direito e a extensão da propriedade do solo. Em 1802, a descendência dos
pioneiros estava reduzida a 1.406 pessoas. A função repressiva e humanitária que
lhe foi atribuída em 1808 salvou a colônia. Em 1811, a população era de 4.000
indivíduos. Após vinte anos de colonização oficial, 21.000 africanos viviam
nos vilarejos das montanhas ou em Freetown. Em 1850, a cidade contava com
16.950 habitantes, o interior cerca de 40.000. Havia 89 brancos. Nesta época,
recém -chegados inseriram -se na terceira geração de homens livres, praticamente
autônomos.
A primeira geração passou pelos obstáculos de uma criação total. Entre 1816
e 1823, o impulso veio do governador Charles MacCharthy, administrador-
-construtor de alma missionária. O crescimento contínuo da população e sua
sede de criar raízes levaram a melhor organizar a instalação. Sede do governo
colonial e de um vice -almirantado, centro de abastecimento da frota naval e
terra de libertação oficial pelas comissões mistas, Freetown e o interior gozaram
da injeção mais ou menos regular de subsídios. MacCharthy reorganizou os
primeiros vilarejos e criou novos, onde, adotados, os que chegavam se adap-
tavam entre irmãos. Às concepções europeias de comunidades -modelo mal
definidas os africanos opuseram seus valores, seu modo de vida e suas atividades
tradicionais. Na cidade, terras e construções adquiriram preço e o artesanato e
36 A. F. Corwin, 1967, p. 166; F. W. Knight, 1970, p. 29; L. Bethell, 1970, p. 380 -383.
37 R. Meyer -Heiselberg, 1967; J. U. J. Asiegbu, 1969, apêndice VII.
94
África do século XIX à década de 1880
o comércio permitiram êxitos individuais. Por volta de 1828, personalidades
empreendedoras adquiriram os meios de entrar no novo tipo de economia da
costa. A colônia abriu -se ao comércio externo em 1831. Governantes e crédi-
tos ingleses tornaram -se medíocres: os próprios serra -leoneses assumiram seu
destino, mesmo mantendo -se no quadro de uma situação colonial. Nestes bal-
bucios, a contribuição ocidental, em que se inscrevia a dos missionários, tinha
sido essencial.
As elites sociais e políticas inglesas financiavam as igrejas e as associações
de culto. Estas não estavam nada preparadas na experiência abolicionista e mis-
sionária. Serra Leoa tornou -se terra de treinamento. Além da propagação do
cristianismo e da civilização, as missões tinham que combater o tráfico, especial-
mente no rio Pongo. Mas os negreiros locais, suspeitando que estes personagens
espionavam a serviço do governo colonial, queimaram a Church Missionary
Society, que abandonou o território. Na colônia propriamente dita, onde a auto-
ridade política era sensível a sua missão humanitária, os missionários não eram
insensíveis à política. McCarthy confiou -lhes a superintendência das aldeias de
escravos libertos. No seio do poder administrativo, apesar das fortes rivalidades
de pessoas ou de doutrinas, a cooperação de personalidades poderosas com a
autoridade governamental produziu resultados sólidos a longo prazo. Escolas
foram abertas, nas quais por intermédio do inglês que evoluía para um crioulo
nacional, um sem -número de grupos étnicos diferentes interpenetraram -se. Se
o sincretismo religioso não se realizou, pelo menos o cristianismo, a religião
tradicional africana e o Islã coexistiam estreitamente.
A segunda geração resolveu as dificuldades de crescimento. Os africanos
libertos ascenderam ao poder interno, em concorrência, e depois junto aos fun-
dadores e seus descendentes. Nos primeiros tempos, nem o entendimento nem
a fusão eram perfeitos. Os velhos tentavam impor uma clivagem social e cultu-
ral. Durante as duas primeiras décadas de forte repressão do tráfico, a situação
complicou -se com a chegada anual de 2.000 pessoas. Por mais que pesassem as
perdas devidas à mortalidade, todas estas pessoas não foram integradas. Algumas
delas foram recrutadas pelo exército britânico. Um décimo emigrou à força para
a Gâmbia. Um programa oficial de emigração para as Antilhas permitia, em teo-
ria, a liberdade de decisão e garantia a repatriação. Mas, pelo dirigismo, evocava
os antigos horrores. Os africanos libertos preferiam as dificuldades da mata ou a
segurança da aldeia tradicional. Em sentido inverso, ajudados pelos missionários,
alguns milhares retornaram a suas regiões de origem, principalmente nos países
iorubás, onde manifestaram experiência e competência adquiridas.
95
A abolição do tráco de escravos
Do ponto de vista econômico, não se podia esperar um boom espetacular.
Entretanto, desde 1827, um processo de desenvolvimento encetou -se. Ligou -se
primeiramente à produção de gêneros alimentícios, sobretudo arroz; mas visava
igualmente à produção de culturas de exportação e a exploração das riquezas
locais existentes: entre as primeiras, açúcar, gengibre e índigo; entre as segundas,
café e madeiras exóticas. Uma variedade local de café tinha sido reconhecida
desde o começo do povoamento e transformada em cultura. Em 1835, tornou-
-se um argumento econômico para reforçar os meios de pôr fim ao tráfico em
volta do rio Nuñez ou do rio Gallinnas: em Londres, em apenas dezoito meses,
uma casa de comércio tinha recebido cerca de 65 toneladas; o que provava que
era preciso proteger a cultura e a exploração. Estabelecimentos serra -leoneses
para a exportação de madeiras exóticas, em particular uma variedade de intule,
começavam a enriquecer. ainda, o principal interesse residia na criação de
um substituto econômico válido para o tráfico de escravos: em 1824, cinquenta
navios ocidentais carregaram, no estuário de Serra Leoa, 200.000 dólares em
madeira
38
. Condições favoráveis conjugavam -se para criar uma riqueza (ainda
não se podia falar de um capital) no interior da colônia. Suas embarcações
começavam a cortar as águas da costa do Oeste africano até o golfo de Biafra.
Os navios estrangeiros encontravam, a partir de agora, no estuário, uma escala
segura para este comércio legítimo tão desejado pelos abolicionistas. Todavia,
convém não exagerar o alcance de tal “encetamento”: demonstrava simplesmente
que a experiência era viável, com um mínimo de suporte administrativo da
metrópole europeia.
Em uma palavra, em 1853, quando o governo britânico fez dos serra -leoneses
súditos da Coroa, reconheceu implicitamente que uma formidável mistura de
culturas fundiu -se em uma sociedade crioula viável. Uma nação “civilizada”
construiu -se, não segundo um modelo utópico europeu, mas pelo dinamismo
de seu próprio gênio
39
. A evidente contribuição dos abolicionistas ingleses não
ocultou a qualidade das soluções africanas.
A experiência liberiana foi pouco diferente. No que tange ao direito, o esta-
belecimento da American Colonization Society no cabo Mesurade, em 1821,
era empreendimento privado. O governo federal dos Estados Unidos não se
envolveu, mas estabeleceu um escritório, não colonial e temporário, cujos agentes
38 Public records do Fourah Bay College, Freetown, e British parliamentary papers, Correspondence returns,
África Ocidental, 1812 -1874, p. 135 -146; C. Fife, 1962, ver “timber”.
39 C. Fyfe, 1962; J.Peterson, 1969; J. U. J. Asiegbu, 1969; J. F. A. Ajayi, 1969, cap. 2; S. Jakobsson, 1972,
primeira parte.
96
África do século XIX à década de 1880
recebiam a investidura da sociedade. Confiava ao estabelecimento os africanos
libertos pelo cruzeiro, contribuindo assim para o povoamento. A criação da
Libéria resultou de aspirações filantrópicas e civilizadoras, mas também da
preocupação de diminuir, mesmo nos Estados Unidos, a expansão da população
negra, considerada perigosa.
Um punhado de colonos defendeu sua implantação contra a resistência dos
poderes autóctones. Estes discutiram tanto o contrato de cessão das terras e a
soberania, quanto à pretensão dos estrangeiros negros em reduzir a atividade
dominante do comércio exterior local, o tráfico negreiro. A esta resistência, o
reverendo Jehudi Ashmun opôs a de 450 colonos, dos quais 200 eram africanos
libertos. A ação defensiva fez durar o estabelecimento. Em 1824, recebeu o nome
de Libéria, tendo por centro Monróvia. Elaborado na América, um estatuto
político foi administrado pelo governador local, segundo seu entendimento. Aos
navios que se apresentavam, americanos ou não, Ashmun impunha o comércio
legítimo” do marfim, da madeira, das peles e do óleo, trocados por mercadorias
ocidentais clássicas. Em 1826, o comércio tornar -se -ia oficialmente benefici-
ário, mas pode -se duvidar disso. Em 1830, além de 260 africanos libertos, o
estabelecimento compreendia 1.160 colonos, provenientes em sua maior parte
das plantações sulistas, escravos emancipados por seus proprietários para fins
propagandísticos e pioneiros. Os negros americanos nascidos livres não eram
tão numerosos: chegariam mais tarde. A política americana da sociedade mãe
era ambígua: para os americanos do Norte, valorizava a vantagem evangélica
alcançada com a repatriação; para os sulistas, fazia vislumbrar uma purificação
de sua sociedade, desembaraçando -se dos negros.
Os fatores do êxito eram de três ordens. Outras sociedades de colonização
procederam da sociedade -mãe e fundaram três estabelecimentos, em Bassa
Cove, em Sinoé e no cabo das Palmas este chamado Maryland na Libéria,
sendo incorporado ao território nacional somente em 1856. A gestão continuou
autônoma, subordinando as sociedades americanas aos estabelecimentos, e não
no sentido inverso. A população mostrou -se corajosa em um meio hostil tanto
ecologicamente quanto politicamente. As terras não eram excelentes e, além
disso, eram trabalhadas com métodos arcaicos. Faltavam negócios e capital, e o
trabalho livre era caro. Mas havia engenheiros que sabiam edificar construções
duradouras. As instalações na zona costeira caçaram os negreiros e fizeram
cessar o tráfico. Alcançou -se o objetivo filantrópico e colonizador. O segundo
fator é o do valor individual dos dirigentes. Educados na religião e na cultura
anglo -saxônicas, bem adaptados ao meio escolhido, mas realistas, acabaram
formando um embrião de consciência nacional. A Constituição trazida dos
97
A abolição do tráco de escravos
Estados Unidos por Thomas Buchanan em 1839 foi reformada para adaptar -se
ao caso particular da Libéria. John B. Russwurm, governador do Maryland de
1836 a 1851, fez nascer esta terra onde o racismo não podia existir. J. J. Roberts,
governador da Libéria, em 1841, e em seguida presidente de 1847 a 1856, agiu
como homem de Estado. As superestruturas estavam em condições de uma
independência de fato.
Uma contestação inglesa da existência jurídica do país acaba levando à
independência de direito. Comerciantes e marinheiros britânicos recusaram os
atributos da soberania manifestada por Monróvia: controle da atividade eco-
nômica, taxação e bandeira nacional. O litígio de origem econômica recebeu
uma resposta da diplomacia internacional, quando os Estados Unidos deixaram
clara para a Grã -Bretanha a natureza de suas relações com os estabelecimentos.
A Libéria não foi uma colônia americana, mesmo tendo o apoio dos Estados
Unidos. O desafio do governador Roberts foi de levar os colonos a superarem
sua pusilanimidade e a provarem sua maturidade política. Uma simples, mas
peremptória declaração de independência inscreveu a Libéria entre os poderes
soberanos, no dia 26 de julho de 1847. Tinha nascido a primeira república afri-
cana, cuja Constituição, ao estabelecer os três poderes, legislativo, executivo e
judiciário, outorgou nacionalidade unicamente aos cidadãos de raça negra. Em
1860, 6.000 deles eram escravos emancipados, 5.700 escravos libertados pela
marinha americana, 4.500 eram nascidos livres nos Estados Unidos e 1.000
tinham comprado sua liberdade. A República tinha ainda que se firmar em seu
próprio solo, combater o sistema francês de recrutamento de “engajados livres”,
defender suas fronteiras, e estender -se
40
. Isso, porém, era o futuro.
No que se refere a este período, parece que não se pode falar de um relativo
desenvolvimento econômico da Libéria comparável ao da Serra Leoa. O francês
Édouard Bouët -Willaumez, comandante da esquadra de repressão do tráfico, pas-
sou várias vezes ao longo da costa liberiana e ficou impressionado com a pobreza
de seus habitantes
41
. Este juízo de ordem econômica contrasta com o julgamento
qualitativo pronunciado na mesma época pelo americano Horatio Bridge, segundo
o qual a Libéria podia ser considerada como o paraíso do homem negro
42
. Cada
uma dessas opiniões vinha marcada pela personalidade do homem que a proferia:
juízos de brancos cada vez mais marcados pela mentalidade colonizadora. Con-
tudo, em termos de significado histórico, seria provavelmente irracional, e certa-
40 P. J. Staudenraus, 1961; J. -C. Nardin, 1965, p. 96 -144.
41 E. Bouët -Willaumez, 1846, cap. 4, p. 90 -92.
42 H. Bridge, 1845, cap. 20.
98
África do século XIX à década de 1880
mente anacrônico, apresentar as experiências da Serra Leoa e da Libéria no século
XIX como elementos precursores dos movimentos de libertação do século XX.
A própria ideia de se poderem criar novas nações africanas numa costa assolada
por duzentos e cinquenta anos de um tráfico negreiro sem freios, bem como a
realização desta ideia, constituíram acontecimentos que merecem ser destacados.
Ponto de partida de condições diferentes, as experiências da Serra Leoa e da
Libéria não foram suficientes para as novas gerações abolicionistas. Opunham-
-se quanto aos métodos e quanto às prioridades a serem adotados para desman-
telar a escravidão americana ou o tráfico africano. O fracasso de uma colonização
filantrópica no Níger, patrocinada por T. F. Buxton em 1841, provocou críticas
ao insucesso abolicionista e uma denúncia da falência global da repressão. Com-
bates de retaguarda, na contracorrente, pois, apesar das repugnâncias oficiais,
a ideia de sociedades de colonização avançava nos meios privados. A costa do
Norte do equador, particularmente, estava francamente aberta às inovações.
A proteção do novo comércio
Os cruzeiros marítimos eram muito menos atraídos pela ação repressiva
do que pela missão de proteger o comércio legítimo” dos nacionais. Desde
as primeiras décadas do século XIX, a costa atendia as demandas americanas,
francesas e inglesas de produtos naturais da África. Tais compras cresciam. Em
1838, o francês Bouët -Willaumez, futuro governador do Senegal, precursor da
colonização, comandou uma exploração sistemática das possibilidades comer-
ciais entre o Senegal e o Gabão. Ainda que de fraco rendimento, o comércio
não negreiro desenvolveu -se paralelamente – não em concorrência – ao tráfico.
A concorrência existia entre as nações ocidentais que definiam uma reparti-
ção informal” das zonas de influência econômica, tolerada pelos dirigentes
africanos. A França predominava no Norte da Serra Leoa, em alguns pontos
da Costa do Marfim e do Gabão, onde ela instalou Libreville
43
, no modelo de
Freetown. Americanos e europeus chegaram à costa, tolerados no que, de fato,
constituía um domínio econômico inglês. Assistia -se a alvorada das mudanças.
A modernidade que nascia por meio das revoluções tecnológicas e industriais,
na Inglaterra e na França, avançando sobre outras nações, criava necessidades
novas. Visto da costa, a principal foi aquela dos corpos graxos, como lubrificante
43 B. Schnapper, 1961; H. Brunschwig, 1963, especialmente o cap. 7, p. 19; E. M’Bokolo, 1981; H. Des-
champs, 1965.
99
A abolição do tráco de escravos
de máquinas, matéria -prima do sabão e dos meios de iluminação. O oleaginoso
africano passou a fazer parte do mercado ocidental.
A costa tinha sempre exportado o óleo de palma, mas em quantidades ínfimas.
A importação da Inglaterra passou de 982 toneladas em 1814 a 21.000 toneladas
em 1844, permaneceu estável por uma década e dobrou em seguida por volta de
1870. A França importava em média 4.000 toneladas anuais entre 1847 e 1856;
2.000 toneladas nacada seguinte. Compensava com a importação média anual
de 8.000 toneladas de amendoim do Senegal e da Senegâmbia, mais 25.000
toneladas de nozes de “toloucouna”, para a fabricação do sabão de Marselha: em
1870, tudo isso representava 35 milhões de francos - ouro. O que por muito tempo
constituiu um ideal abstrato e utópico uma alternativa ao tráfico dos escravos
e um substituto do homem como valor de troca materializou -se enfim. Ainda
restava a necessidade de criar uma produção em escala industrial: atingiu -se em
um período tão breve quanto o que foi preciso às produções cubanas ou brasileiras
para atingir o pleno rendimento em café e em açúcar. As grandes zonas produtoras
evocavam aquelas das mais altas exportações de homens, do Daomé
44
aos rios do
delta do Níger e do Camarões. Uma das condições fundamentais da conversão
residiu na mobilização dao de obra nas terras de colonização interiorana. Seu
modo de produção foi certamente escravagista, mas na ordem social e econô-
mica africana. Na verdade, o desenvolvimento real desta novidade econômica o
interrompeu imediatamente a economia institucionalizada: tráfico de escravos e
de óleo coexistiam. Um sistema de troca mais vasto irradiava para o interior. Na
costa, aliás, os agentes habituais do comércio ocidental sempre detiveram os meios
comerciais. Sabendo comprar, repartiram o crédito, expandiram os instrumentos
de pagamento clássicos introduziram a moeda metálica. A ampliação do número
de concorrente na atividade econômica acarretou deslocamentos forçados, sola-
pando os equilíbrios internos
45
. A mudança ecomica foi acelerada por outros
fatores desnaturantes, religiosos e culturais, raramente muito distanciados do polí-
tico, mas que contribuíram para o desaparecimento do tráfico.
Um pequeno número de homens e mulheres das missões católicas e protes-
tantes se tornaram agentes importantes da penetração ocidental. No Senegal,
prefeitura apostólica que sobreviveu após a reocupação francesa de 1817, a madre
Javouhey definiu a função primeira do apostolado: formar um clero africano.
A educação dispensada aos filhos dos cristãos e a alguns africanos não cristãos
fracassou diante da escola corânica. O Islamismo cresceu ao longo do século.
44 C. Coquery -Vidrovitch, 1971.
45 K. O. Dike, 1956; K. K. Nair, 1972, cap. 2.
100
África do século XIX à década de 1880
Em 1844, educado na experiência liberiana, Monsenhor Bessieux instalou no
Gabão a missão do Sagrado Coração de Maria. Qualificando as crenças locais
de “ridículas invenções”, lutou, batizou, porém ensinou pouco, mais motivado
pela conversão que pelo convertido. O êxito ficou para a missão americana do
reverendo Wilson. Em Dakar, na República Lebu, os laços pessoais e o respeito à
cultura aplicação do lema ser negro com os negros”
46
– não fizeram esquecer a
espiritualidade inadequada da missão que a separou do mundo real. Desprovido
de soluções práticas, o missionário tinha consciência de sua pequenez face ao
islamismo fortemente africanizado e difundido. Buscou a formação de elites,
mesmo que fosse ao desarraigá -los e aliená -los de sua cultura. Em Grand-
-Bassam, a autoridade africana recusou a missão. Em Uidá, o vicariato apostólico
confiado às Missões africanas de Lyon foi erguido em 1868. Sua primeira escola
funcionou em 1873, com a de Porto Novo,sob tutela francesa.
As ideias de Buxton fermentaram através das missões protestantes. In loco, o
sucesso da Serra Leoa e dos africanos libertados forneceu -lhes propagandistas
eficazes. Alguns eram profissionais, como Samuel Ajayi Crowther, que, captu-
rado aos quinze anos e libertado, se tornaria pastor, bispo e construtor de nação.
Outros praticavam o comércio legítimo. A maioria, migrando para suas regiões
de origem, guiava os missionários, abrindo -lhes o caminho. Estes se instalaram
no litoral, entre a Costa do Ouro e o Camarões, exceto no reino do Benin,
no seio de nações em que o sentimento religioso era forte, mas politicamente
sujeitas a “crises de ajuste”. Chegaram a Badagri, em 1842, a Uidá em 1843 e
em Calabar em 1845. No interior o posto de vanguarda era a grande cidade de
Abeokuta, no novo país Egba.
Ao contrário das missões católicas, as missões protestantes buscavam a influên-
cia temporal. A cristianização era concebida como um todo, que incluía educação e
cultura, função socioeconômica e opção política. Expandiu o inglês falado e escrito
e o cálculo em meios preparados muito tempo. As técnicas de arquitetura, a
imprensa e a medicina foram ensinadas por especialistas vindos da Serra Leoa.
O saber pertencia ao povo que frequentava a miso. O benefício da participação
criou privilegiados. Verificaram os modelos inculcados na experiência superior dos
chefes locais, que não foram unânimes em aprová -los. Alguns, entretanto, exibiam
um ocidentalismo de fachada atras da vestimenta, da habitação, do alimento, da
bebida e do modo de vida. O objetivo sociopolítico era criar uma classe média,
para destacar uma elite. Formada nos esquemas ocidentais, esta classe deveria
46 Apud P. Brasseur, 1975a, p. 264, nota 22; 1975b, p. 415 -446.
101
A abolição do tráco de escravos
normalizar e estender a dupla corrente do comércio, advinda da costa ou a ela
destinada. A difusão da civilização seria um resultado anexo, que o comércio de
óleo por si, limitado às transações costeiras, foi incapaz de atingir
47
.
Desse modo, bem ancoradas no mundo, as missões protestantes assumiram
um papel reformador que compreendia a ingerência nas estratégias políticas e
militares. Os missionários de Abeokuta pediram à Inglaterra o estabelecimento
de uma estrada até o mar, a fim de acelerar as trocas e a entrega do material
bélico. Apelaram para a assistência técnica dos militares ingleses contra os dao-
meanos. Em Calabar, sua influência nas cidades -Estados obteve, por contrato,
o fim das tradições locais. Poderosas, as missões não condenaram a intromissão
concorrente da administração ocidental, que elas contrabalançaram aliando -se
ou opondo -se ao comércio estabelecido. Por volta de 1850, um movimento
irreversível engajou missões, comércio e administração política em um processo
de protocolonização efetiva. A introdução de cônsules com fins expansionistas
avançou pari passu com os bloqueios militares e os protetorados. Para a diplo-
macia internacional, os pretextos eram sempre a supressão radical e definitiva do
tráfico de escravos. Os meios humanitários tornaram -se instrumentos de poder
econômico, militar e político.
Conclusão
Podemos estabelecer uma espécie de cronologia do desaparecimento do
tráfico, tendo em mente que, em nenhum lugar, este desaparecimento foi abso-
lutamente definitivo durante este período.
O tráfico cessara desde 1824 no Senegal e em Gorée, quartel general da
base naval francesa antiescravagista. A influência e os progressos em Serra Leoa
tornavam -se benéficos nesta região por volta de 1830; entretanto, operações
esporádicas continuavam nos rios Pongo e Nuñez até os anos de 1866 -1867.
Em 1848 -1850, a Libéria independente pedia o concurso de navios de guerra
franceses contra os negreiros internacionais, e recusava -se a alimentar por muito
tempo o sistema de tráfico dissimulado sob o nome de engajamentos livres. A
Costa do Marfim e a Costa do Ouro pouco tinham sofrido com o tráfico ilegal
durante todo este período; pesquisadores marfinenses mostraram que, se subsis-
tiam correntes de tráfico, elas não se destinavam aos navios da costa, mas à satis-
fação das necessidades domésticas regionais ou inter -regionais – os documentos
47 J. F. A. Ajayi, 1969; K. K. Nair, 1972.
102
África do século XIX à década de 1880
 . Um grupo de mulheres oromas a bordo do HMS Daphne depois de sua libertação de um
veleiro leste -africano. [Fonte: G. L. Sullivan, Dhow chasing in Zanzibar waters, 1873, Frank Cass Publishers,
London. Reproduzido com a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de
Cambridge. © Frank Cass Publishers.]
 . Escravos libertados no domínio da Missão das universidades em Mbweni, perto de Zanzibar –
pagamento dos salários. [Fonte: S. Miers, Britain and the ending of the slave trade, 1975, Londres, Longman.
© e Illustrated London News Picture Library.]
103
A abolição do tráco de escravos
de arquivo confirmam esta situação. Mais a Leste, de Uidá a Lagos, a situação
era mais confusa. Operações de tráfico, ou operações de engajamentos “livres”,
ainda aconteciam nos anos 1853 -1855, e até 1860. Em certos casos, os africanos
eram embarcados em navios a vapor de grande capacidade cita -se o caso do
Nordaqui que deportou 1.600 escravos, o que nunca havia acontecido. Entre-
tanto, os esforços diplomáticos e as políticas coercitivas da França e da Ingla-
terra levaram a uma forte restrição ao tráfico de escravos. Do Benin ao Gabão
prevalecia uma política de tratados e de ocupação do solo, cuja consequência
era entravar seriamente o escoamento de escravos. O tratado anglo -português
de 1842, inaugurando finalmente a visita de navios negreiros ao Sul do equador,
tinha efeitos análogos do Congo até a colônia portuguesa de Angola. Contudo,
não foi senão gradualmente, em um ritmo diferente de acordo com o setor da
costa, que o tráfico desapareceu quase por completo entre 1860 e 1870.
Em 1867, o almirante francês Fleuriot de Langle, em missão de inspeção, se
disse positivamente impressionado pelo que tinha visto, “com algumas poucas
exceções”. Aliás, sua constatação destacou a gravidade da renovação do tráfico
na costa oriental da África. Nos anos 1860 -1870, entre 30.000 e 35.000 escra-
vos chegaram aos portos que dependiam de Zanzibar; parte foi retida para
trabalhar nas plantações de cravos -da -índia. O restante foi expedido para a
Somália e para Oman, que recebia, por volta de 1870, 13.000 escravos por ano,
parte dos quais partia rumo ao Golfo Pérsico e à Pérsia, à Mesopotâmia ou ao
Beluquistão e às Índias
48
. Em 1873, um tratado entre a Inglaterra e o sultão
de Zanzibar introduziu o direito de visita, com a possibilidade de captura dos
veleiros árabes. Mas isto não teria grande efeito não mais do que teria tido o
tratado anglo -português de 1842 sobre o comércio de escravos de Moçambique
para Comores e Madagascar. Nestas costas imensas, nestes vastos territórios, o
tráfico de escravos não desapareceu de fato, senão com o estabelecimento das
administrações coloniais, diz François Renault
49
, isto é, muito depois do fim
do tráfico atlântico. Pode -se provavelmente explicar este atraso pelo fato de o
mundo abolicionista ocidental não haver sido realmente sensibilizado com os
efeitos do tráfico árabe, antes que Livingstone os descobrisse ao longo de suas
explorações. É preciso acrescentar a isso o tempo necessário para as tomadas
de consciência.
Assim, antinômica aos tópicos nacionais ou privados dos escravagistas oci-
dentais, a teoria abolicionista introduziu os processos mentais de identificação
48 F. Renault e S. Daget, 1980; R. Coupland, 1939.
49 F. Renault e S. Daget, 1980, p.43 -69.
104
África do século XIX à década de 1880
do escravo africano com o homem e da abertura da África ao mundo. Atingiu
seus objetivos por volta de 1870: salvo exceções, o tráfico atlântico terminou.
Ora, este resultado não era obra unilateral de ocidentais por muito tempo refra-
tários e ainda pouco convencidos do interesse dos meios postos a serviço da
moral universal. De outra maneira, o esforço foi absolutamente o mesmo para
os africanos do interior e da costa. Em um difícil contexto interior, eles assumi-
ram, ao mesmo tempo, a resistência à desintegração econômica e a integração
rápida à inovação. A resposta africana extremamente rápida à hipótese
abolicionista resultou de uma extraordinária faculdade de adaptação. Tempora-
riamente, o produto foi tão positivo quanto o das decisões ocidentais. Quanto à
nova abordagem dos ocidentais, procedeu da incapacidade de o homem branco
supor a existência de outros valores fora os seus. Seu interesse pela civilização
africana foi o de um cientista por uma amostra de laboratório. Sua boa consci-
ência, consequência de um século de combate abolicionista, levou o Ocidente a
impor seus valores – inclusive à força, se preciso fosse. Não foi de todo negativo.
Mudanças se verificaram, apareceram rachaduras na estrutura, de modo que esta
se deslocou ou se afundou, abrindo o caminho do futuro.
C A P Í T U L O 5
105
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
Sabemos como sociedades de migrantes de língua banta, criadores de gado e
cultivadores, familiarizados com o trabalho do ferro e seus usos, se estabeleceram
em diversas regiões da África Austral, ao Sul do Limpopo, entre a metade e o
final do primeiro milênio da era cristã
1
. A penetração das regiões situadas ao
Sul do Limpopo pelo ramo sotho -tswana dos bantos do Sul não ultrapassou,
em geral, os limites do planalto, estendendo -se a Oeste do eixo formado pelos
montes Lebombo e pela cordilheira do Drakensberg; por sua vez, os grupos
de língua nguni, estabeleceram -se na zona estreita entre essas montanhas e o
Oceano Índico.
No início do século XIX, nesta região do Sul do Limpopo, havia dez a
quinze séculos que essas comunidades de língua banta estavam desenvolvendo
uma próspera civilização da Idade do Ferro, caracterizada por conglomerados de
pequenos Estados organizados sob a dominação política de linhagens e dinastias
reais. De modo geral, tais Estados eram povoados por camponeses que sabiam
fundir e utilizar o ferro, também eram produtores de gêneros agrícolas (sobre-
tudo de sorgo e milhete), sendo poucos os caçadores, e, além disso, praticavam
o escambo e o comércio à longa distância
2
.
1 D. W. Phillipson, 1969; R. R. Inskeep, 1969, p. 31 -39.
2 M. Wilson, 1969a; R. J. Mason, 1973; L. D. Ngcongco, 1982b.
O Mfecane e a emergência de novos
Estados africanos
Leonard D. Ngcongco
106
África do século XIX à década de 1880
Os primeiros decênios do século XIX foram marcados por uma poderosa
revolução social e política, que, simultaneamente, teve por efeito a destruição e a
reedificação da organização dos Estados na África Austral de língua banta, bem
como a transformação das condições de existências de numerosas comunidades
nos territórios que vão dos confins da Zululândia (Natal) até o Sul da Tanzânia.
Esta revolução, denominada Mfecane (esmagamento) na língua nguni, também
é conhecida sob o nome de Difaqane (golpe de martelo) em sotho -tswana.
Durante o Mfecane, vários Estados antigos foram vencidos, conquistados e
anexados a outros. Alguns Estados foram arrancados de seus territórios tradi-
cionais e forçados a se implantar alhures. Muitos se encontraram, então, empo-
brecidos e enfraquecidos. Em certos casos, as antigas dinastias reinantes foram
suplantadas, ao passo que, em outros lugares, as populações de aldeias inteiras
eram aniquiladas ou capturadas. Entretanto, essa mesma revolução assistiu ao
avanço de vastos reinos centralizados em diversas partes da África Austral. Ela
também assistiu ao nascimento de impérios” e de reinos servidos por organi-
zações militares e burocráticas de um novo tipo
3
.
Por outro lado, o Mfecane teve como efeito a despovoação de consideráveis
porções do território da África Austral, o que facilitou, em seguida, a apropriação
da terra africana pelas comunidades migrantes de colonos brancos. Não somente
estes colonos bôeres colocaram as mãos nas partes mais ricas do solo africano,
mas também, lançaram -se imediatamente em campanhas sistemáticas de roubos
de rebanhos e organizaram a escravidão dos africanos recorrendo àquilo que, por
eufemismo, chamavam de “aprendizagem”.
De um outro ponto de vista, o Mfecane teve repercussões profundas no inte-
rior dos próprios Estados africanos, estimulou o espírito inventivo dos chefes
políticos africanos e os obrigou a se adaptarem, tanto no plano da tática militar
quanto no que concerne à organização política e à administração dos negócios.
Sob alguns aspectos, o Mfecane pode incontestavelmente ser considerado um
acontecimento desastroso, mas, por outro lado, podemos ver nele um conjunto
de circunstâncias cujo caráter positivo e criador se faria sentir por gerações.
Certos Estados aos quais ele deu nascimento sobreviveram até nossos dias e
agora fazem parte da comunidade internacional. Se considerarmos a amplitude
do fenômeno, o número de reinos e a diversidade dos povos cujo futuro foi
transformado pelos redemoinhos da grande onda do Mfecane, e se percebermos
bem o caráter fundamental e a qualidade das mudanças que ele produziu no
3 T. R. H. Davenport, 1978, p. 56; D. Denoon, 1973, p. 23 -24, 32 -33; J. D. Omer -Cooper, 1966, cap. 12.
107
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
modo de vida e de organização da maioria dos grupos tocados por ele, somos
obrigados a admitir que o Mfecane, até uma época recente, foi um aconteci-
mento negligenciado pela historiografia da África Austral; e diremos com o J.
D. Omer -Cooper que, “em comparação, o Grand Trek pode ser considerado
como peripécia
4
.
O presente capítulo analisa a natureza da revolução surgida entre os nguni
e tornada célebre pelas campanhas militares e pelas transformações sociopolíti-
cas conduzidas pelo rei zulu Shaka. Essas, de diversas maneiras, foram levadas
adiante por alguns dos antigos generais do rei e por outros contemporâneos, em
um vasto território do Sul e, até mesmo, do Leste africano. A fim de compreen-
der bem a trama desta grande revolução, primeiramente, é essencial examinar de
perto as características físicas do meio no Norte da região nguni; observar como
as sociedades adaptaram -se às mudanças que lá intervieram, como suas próprias
atividades contribuiu para transformar o meio em quem viveram, meio esse que,
por sua vez, estimulou a reação delas. Importa também observar a maneira com
que os chefes de certos Estados nguni garantiram o domínio dos processos de
produção e de reprodução, a fim de poderem dispor do excedente de forças vivas,
indispensável ao poder do rei e à independência do Estado.
Os países e os métodos de cultivo dos nguni do Norte
Após séculos de implantação e de prática agrícola, os cultivadores das comu-
nidades nguni do Norte estavam bem adaptados ao meio físico das regiões nas
quais haviam se estabelecido.
O território ocupado pelos nguni do Norte (ou protozulu) pode ser aproxi-
mativamente definido como a região delimitada por três cursos de água: a Norte,
o Pongolo; a Sul, o Tugela, e a Oeste, o vale do Búfalo (Mzinyathi)
5
. Trata -se
de uma região de relevo elevado, na qual vários cursos de água entalharam pro-
fundos vales. Os principais rios são o Tugela, o Mhlatuze, o Mfolozi, o Mkuze
e o Pongolo, que, junto com seus afluentes, penetram nas terras altas. Entre os
leitos destes cursos de água, a elevação do terreno atinge frequentemente 1.000
metros acima do vale
6
. Tais vales fluviais penetram profundamente rumo ao
Oeste, no interior do país.
4 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 4.
5 J. Guy, 1980.
6 Ibid.
108
África do século XIX à década de 1880
As variações de altitude, em razão deste relevo cortado, fazem com que as
precipitações e as temperaturas variem consideravelmente de um lugar a outro.
Da mesma forma, a vegetação é muito diversa; isso ocasiona o surgimento de
“uma certa quantidade de tipos de vegetação que se imbricam uns nos outros
pela extensão do país”
7
. A chegada e o estabelecimento de cultivadores e de
criadores na região provocaram efeitos na vegetação natural.
Em uma obra tratando dos efeitos da instalação do homem no meio físico
em toda a África Austral, o ecologista J. P. H. Acocks indica que a vegetação
da maior parte do território compreendida entre o Drakensberg e o Oceano
Índico, em outros tempos, era provavelmente constituída de florestas e de matas,
ao passo que as terras baixas dos vales eram cobertas pela savana
8
. Desde os
primeiros tempos de sua instalação na região, os camponeses nguni protozulu,
agindo com abates e queimadas, devastaram a floresta e modificaram conside-
ravelmente as formas naturais da vegetação. Durante um século e meio, o fogo,
a enxada o machado dos camponeses nguni empurraram os limites da floresta
até os cumes das altas cadeias de montanhas, e a selva apenas se manteve nos
declives mais úmidos que bordejavam os cursos de água
9
. Estes métodos permi-
tiram aos agricultores aumentar, para benefício próprio, as superfícies cobertas
pela savana e por outras vegetações do mesmo tipo.
J. Guy afirma que, no local onde a mata foi destruída, gramíneas se propaga-
ram a partir do fundo dos vales irrigados, ao passo que a diminuição dos setores
arborizados após as queimadas regulares favorecia a cobertura ervosa
10
. Séculos
de manipulação da vegetação finalmente produziram um conjunto complexo de
modificações que tenderam a entrelaçamentos de pastos de tipo pastos doces
(sourveld) e pastos amargos (weetveld), cujo desenho é determinado principal-
mente pelo volume das precipitações e a topografia locais
11
.
Nas zonas de fortes precipitações a erva tende a ser do tipo sourveld. Trata-
-se de uma variedade cujo valor nutritivo e sabor são mais elevados, logo após
as primeiras chuvas de primavera e no início do verão. Mas, essas qualidades
vão decrescendo à medida que a erva amadurece. Portanto, o sourveld constitui
geralmente bons pastos aproximadamente por quatro meses, após o que começa
a perder tanto o sabor quanto o valor nutritivo. O sweetveld é mais caracterís-
7 Ibid.
8 J. P. H. Acocks, 1953.
9 J. Guy, 1977.
10 Ibid., p. 4.
11 Ibid.
109
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
tico das zonas secas, nas quais encontramo -lo geralmente associado a árvores
dispersas em savanas, onde forma o tapete vegetal. Ele é esparso e frágil, porém
conserva suas qualidades nutritivas e seu sabor durante toda a estação seca. Logo,
o sweetveld desempenha um papel particularmente importante como pasto de
inverno. Entre os dois extremos do sweetveld e do sourveld, encontramos zonas
mistas onde se misturam dois tipos de vegetação; elas podem servir de pastagem,
de seis a oito meses por ano
12
.
Outras regiões da África Austral, tais como aquelas habitadas pelas comu-
nidades sotho -tswana, no atual Highveld do Transvaal, também eram cobertas
de grandes extensões de sweetveld. Mas faltava -lhes uma rede de cursos de água
como aquela dos países nguni do Norte, graças a qual as partes pouco irrigadas
da região apresentavam um caráter paradoxal, pois eram secas e, entretanto,
amplamente ricas em água
13
. Ademais, as zonas de sweetveld, que formam os
pastos do Highveld, eram frequentemente infestadas de moscas tsé -tsé, propa-
gando a doença do sono entre os homens e os animais.
É preciso acrescentar que os camponeses que viviam no Highveld nos tem-
pos pré -coloniais não se beneficiavam com uma alternância de sweetveld e de
sourveld, como a que caracterizava os declives montanhosos da região nguni do
Norte. Os modos de ocupação dos solos adotados pelos sotho -tswana, com suas
aldeias separadas, suas terras aráveis e seus currais, eram bem adaptados à exis-
tência de espaços disponíveis, muito mais vastos e mais abertos do que aqueles
dos quais dispunham os nguni do Norte. Parece que as sociedades sotho -tswana,
embora formadas por criadores e cultivadores, não tiveram que suportar o peso
de populações de densidades comparáveis àquelas que acabaram tornando -se
um fardo para os destinos dos grandes Estados nguni do Norte. A estrutura de
habitat agrupado, própria de tais sociedades, contrastando com o habitat dis-
perso dos nguni –, deveu -se mais à aglomeração de comunidades inteiras perto
de fontes de águas raras e esparsas do que a uma pressão demográfica.
Enquanto pudesse ser mantido um delicado equilíbrio entre o crescimento
da população e dos rebanhos, de um lado, e as possibilidades de acessos aos
diversos tipos de pastos, de outro, a estabilidade da região parece não ter sido
realmente ameaçada. Porém, por volta do final do século XVIII, a capacidade
dos homens de aumentar os recursos em terras de cultura e de pasto atingiu um
limite. O inchaço da população, acrescido sensivelmente pela adoção do milho
12 J. Guy, 1980, p. 7.
13 Ibid.
110
África do século XIX à década de 1880
como uma das principais culturas da região, sem dúvida exerceu uma enorme
pressão nos acessos à terra e aos recursos conexos
14
.
Embora a estreiteza do corredor compreendido entre o escarpamento do
Drakensberg e o Oceano Índico tivesse sempre limitado estritamente as possi-
bilidades de expansão das comunidades que viviam nesse território, as chefias
nguni do Norte gozavam de um certo número de vantagens próprias da região.
Durante séculos, essas populações tiraram proveito de um meio físico favorável,
aprendendo a explorá -lo com habilidade. Na primavera e no início do verão, os
pastores nguni podiam conduzir seus rebanhos para pastar no sourveld das terras
altas e, a partir da metade do verão, eles desciam com seus animais até o fundo
dos vales atapetados de ervas tenras. A diversidade do clima também permitiu
a tais agricultores escolher as terras mais apropriadas à cultura do sorgo, do
milhete ou do milho. Hoje sabemos que o milho foi introduzido na região no
século XVIII, e que rapidamente ele substituiu outras culturas de subsistência
tradicionais como alimento de base. Em uma zona de chuvas abundantes, o
surgimento do milho como gênero alimentício de base talvez tenha estimulado
o crescimento natural da população e, por consequência, aumentado a pressão
sobre as terras. Sem dúvida, isso contribuiu com o aumento da instabilidade e
da violência quando os inúmeros pequenos Estados da região começaram real-
mente a rivalizar e a lutar pela posse de recursos em vias de diminuição.
Também é provável que esta evolução das condições de existência, no território
povoado pelos nguni do Norte, tenha sido fortemente amplificada por uma terrível
fome, da qual ainda se fala, sob o nome de Madlathule. Parece que essa causou
estragos entre o último decênio do século XVIII e o primeiro do XIX
15
. Conta -se
que, nesses tempos difíceis, o país era percorrido por bandos de esfomeados que
pilhavam as reservas deveres. É incerta a época exata da fome Madlathule, mas
a situamos aproximadamente no mesmo momento em que uma outra fome caiu
sobre o país sotho, dando lugar, diz -se, a uma onda de canibalismo.
A estrutura da sociedade nguni do Norte
Hoje, não há mais dúvidas que os modos de cultura e de produção dos zulus
estão na origem de um aumento regular da população dessa região. Nada parece
indicar que, de fato, o crescimento da população tenha sido devido a um afluxo
14 S. Marks, 1967a; M. Gluckman, 1963, p. 166.
15 J. Guy, 1980, p. 9, 15; A. T. Bryant, 1929, p. 63 -88.
111
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
massivo de imigrantes na região. Portanto, a população provavelmente aumen-
tou em função de um crescimento natural que não foi moderado por nenhuma
expansão do território ou de outros recursos importantes. Logo se tornou cada
vez mais difícil para as comunidades continuar as práticas ancestrais que con-
sistiam em deslocar os rebanhos de um pasto a outro, ou converter a floresta em
savana; por isso, algumas comunidades decidiram se apropriar, pela força, das
terras e dos pastos anteriormente detidos por outras.
Certos chefes destes pequenos Estados tinham começado a adotar estra-
tégias visando a lhes assegurar o domínio da produção e da reprodução. Para
compreender bem tal processo, é preciso considerar atentamente a estrutura da
sociedade nguni da época pré -colonial. A sociedade estava dividida em milhares
de explorações familiares, cada uma sob a autoridade patriarcal de um chefe
de família. Geralmente, cada chefe tinha duas ou três mulheres, segundo sua
classe social. Cada uma das mulheres vivia com seus filhos em sua própria
casa e produzia, com suas crianças, o alimento necessário para sua subsistência.
Habitualmente, havia uma divisão do trabalho segundo o sexo; os homens se
ocupavam da produção animal e caçavam, enquanto as mulheres se encarrega-
vam sobretudo das culturas.
Os estabelecimentos reais podia existir vários deles em cada Estado – eram
organizados diferentemente. Além das atividades normais de produção que
empregavam os membros de cada casa, bem como seus parentes e seus criados,
os diferentes estabelecimentos reais comportavam também acantonamentos
militares, sobretudo a partir do fim do século XVIII. Os regimentos de homens
recrutados em diferentes regiões do país tinham seus quartéis e trabalhavam a
serviço do rei, inclusive na agricultura. As mulheres arregimentadas não tinham
acantonamentos nessas aldeias militares, mas residiam na casa de seus pais. Até
que o rei lhes desse permissão, nem os homens nem as mulheres arregimentados
tinham o direito de se casar, podendo ficar até dez anos em um regimento antes
de serem liberados para o casamento. Notadamente, essa regra tinha por efeito
permitir aos reis dos Estados nguni do Norte agir, simultaneamente, sobre os
índices de produção e de reprodução.
Não se sabe muito bem em qual época esse sistema entrou em vigor entre os
nguni do Norte. Atualmente, a origem destas mudanças é situada mais frequen-
temente sob o reinado de Dingiswayo, rei dos mthethwa, e o aperfeiçoamento
delas situa -se sob o reinado de Shaka, rei dos zulus
16
. Durante séculos, antes
16 Ver S. Marks, 1967b, p. 532, no que concerne à tese segundo a qual o processo de edicação do Estado
começou mais cedo entre os hlubi, os ngwane e os nolwande.
112
África do século XIX à década de 1880
de essas mutações serem instauradas, tendia -se a tratar a iniciação como uma
questão coletiva e política mais entre os sotho -tswana do que entre os nguni.
É provável que essa mudança tenha sido ligada a importantes transformações
na vida socioeconômica dos nguni. Também é possível que, na época em que
começou a expansão dos Estados maiores, esses tenham incorporado enclaves de
populações sotho, e que os chefes nguni tenham emprestado dessas populações
certas práticas coletivas ligadas à iniciação, adaptando -as para fins de dominação
política.
Se examinarmos atentamente os fatores ecológicos junto à natureza da orga-
nização social e da produção entre os nguni do Norte, seremos levados a concluir
que, a partir do último quarto do século XVIII e durante os primeiros decênios
do XIX, a explosão demográfica atiçou a luta pela posse de recursos em vias
de diminuição, produto dos esforços de várias gerações. Max Gluckman foi o
primeiro a ter claramente analisado o fator que constitui a explosão demográ-
fica; e vários outros o tem seguido
17
. Hoje, parece indiscutível que o aumento
populacional e seu cortejo de penúrias, notadamente de terras, muito contribu-
íram com o clima de violência que se estabeleceu no Norte do país nguni nos
primeiros anos do século XIX.
Outras explicações foram dadas a respeito da revolução conhecida sob os
nomes de Mfecane ou de Difaqane. Algumas parecem muito sustentáveis e
mesmo plausíveis aos olhos do leitor crítico: outras, pelo contrário, parecem bem
arriscadas e, manifestamente, brotadas da imaginação. Segundo uma dessas teses,
por exemplo, a reorganização interna e as reformas militares que estruturaram
as fundações dos grandes Estados nacionais, como aqueles dos mthethwa e dos
zulus, teriam ocorrido pelo fato de os fundadores em particular, Dingiswayo
terem deliberadamente imitado os europeus, que eles teriam observado ao
longo das peregrinações que precederam sua ascensão ao poder
18
. Essa asserção,
grosseiramente racista, não merece outro comentário além do julgamento de
um crítico que atribuiu aos propagadores deste tipo de ideias a vontade de se
enfeitar com os reflexos da glória das vitórias zulu”
19
; impressão confirmada, diz
17 M. Gluckman, 1963, p. 166; J. D. Omer -Cooper, 1966, cap. 1 e 2 passim.
18 H. Fynn, em um artigo redigido aproximadamente em 1939, emitiu primeiro a discutível opinião,
segundo a qual as inovações de Dingiswayo foram provavelmente o fruto de sua associação com os
brancos e, particularmente, com um certo Dr. Cowan (1888, vol. I, p. 62 -63). Mais tarde, A. T. Bryant
(1929, p. 94) destacou essa hipótese sem fundamento em termos, lembrando a “hipótese camítica”, hoje
totalmente desacreditada. Tais autores deram o tom a toda uma linha de êmulos pouco escrupulosos que
retomaram, por conta própria, esta ideia falsa, como se se tratasse de um fato estabelecido.
19 D. Denoon, 1973, p. 19.
113
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
ele, pelo fato de tais declarações não se apoiarem em nenhuma espécie de prova
material. Ademais, observamos que não praticamente nenhum ponto em
comum entre os Estados organizados por Dingiswayo e Shaka e os territórios
da região que, na mesma época, encontravam -se sob administração europeia.
Um outro fator sugerido para explicar as origens do Mfecane foi o impulso
para o Leste, encetado de forma progressiva, mas determinado pelos imigrantes
bôeres do século XVIII, em busca de terras para colonizar (trekboers) a partir do
Oeste da região do Cabo, e a barreira imposta em consequência do avanço, em
sentido contrário, dos pastores nguni do Sul. Segundo os defensores dessa tese,
tal corrente migratória de criadores bôeres criou as condições para uma carência
de terras, bloqueando a via de expansão natural dos pastores nguni do Sul; nesse
momento, engendrou -se uma crise que repercutiu até os nguni do Norte
20
. Não
há dúvida que a pressão demográfica desempenhou um papel importante entre
os nguni em geral, e, nesse sentido, o argumento é convincente; não obstante,
ligando -o à migração dos trekboers saídos do Cabo rumo ao Leste, não é expli-
cado por que a revolução social desenrolada por estas pressões demográficas não
ocorreu entre os Estados xhosa ou nguni do Sul, que estavam diretamente blo-
queados pelo avanço dos trekboers. Formulada nestes termos, a questão da pres-
são demográfica suscita uma outra. Seria preciso provar de forma convincente
que, até o impulso bôer ter atingido o rio Great Fish, por volta da metade do
século XVIII, o problema da superpopulação entre os nguni do Norte (aqueles
que estavam fixados no Norte do Tugela) podia ser, ou foi, frequentemente resol-
vido com a partida de grupos que migraram em busca de uma terra acolhedora,
em direção ao Sul, ao atravessarem as zonas povoadas por comunidades nguni
de língua xhosa e se fixarem entre esses ou em territórios situados mais ao Sul.
Nesse sentido, a barreira física do Drakensberg teria constituído um obstáculo
menos dissuasivo do que a massa densamente povoada das comunidades de
língua xhosa, estabelecidas no Sul da região hoje chamada Natal
21
.
Outra explicação interessante e importante: os grandes Estados das regiões
nguni do Norte queriam garantir o domínio do comércio sobretudo o do
marfim –, com o porto sob o controle português da baía de Delagoa, na costa
leste. A hipótese foi colocada pela primeira vez por Mônica Wilson e recebeu
o apoio de Allan Smith
22
. Bem antes do final do século XVIII, Estados, como
os dos ndwadwe -hlubi e dos ngwane, participavam do comércio com os por-
20 R. Oliver e J. D. Fage, 1962, p. 163.
21 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 169.
22 M. Wilson, 1958, p.172; A. K. Smith, 1969.
114
África do século XIX à década de 1880
tugueses, sobretudo através de intermediários tsonga. Quando de sua ascensão
ao trono dos mthethwa, Dingiswayo criou, de fato, uma rota do comércio de
marfim com a baía de Delagoa, conquistando, nesse momento, vários clãs para
abrir o acesso ao porto do Oceano Índico
23
. Dingiswayo teria sido imitado por
Zwide e Sobhuza, que também tentaram uma abertura em toda a extensão do
Pongolo, a fim de estabelecerem uma ligação comercial com a baía de Delagoa
24
.
Alguns historiadores colocaram em dúvida a importância do fator comercial na
condição de estimulador da expansão dos Estados, mas o debate continua em
aberto.
Em todo caso, é difícil levar muito a sério as explicações fundadas basica-
mente na personalidade ou nas qualidades individuais dos chefes da revolução.
É bem mais instrutivo tentar compreender porque chefes como Dingiswayo,
Shaka, Mzilikazi e outros subiram ao poder e brilharam na mesma época e na
mesma grande região. Uma reflexão deste tipo pode nos ajudar a evitar mitificar
o papel de um ou outro dos principais atores desta grande tragédia humana e
a ver neles, de forma mais razoável, o produto de um meio socioeconômico
particular.
Portanto, por volta do final do século XVIII e, sobretudo, durante os pri-
meiros anos do XIX, um conjunto de fatores, centrados principalmente na falta
de terras cada vez mais sensível em razão do crescimento demográfico, esteve
na origem de uma agitação que tendeu, mais tarde, a uma explosão de violência
na maioria dos Estados nguni do Norte. Mudanças revolucionárias intervieram
progressivamente no tecido social e cultural de sociedades inteiras. Sob a pres-
são da guerra que perturbava as condições de vida em toda a região, os Estados
foram obrigados, um após o outro, a modificar ou abandonar práticas consa-
gradas pelo tempo, tal como a lida com rebanhos, baseada em um empréstimo,
ou cerimônias tradicionais, como a iniciação associada à circuncisão; costumes
cuja perpetuação arriscava comprometer a capacidade de reagir com eficácia às
exigências de uma situação em rápida evolução. Por exemplo, a iniciação dos
meninos, que comportava a circuncisão e períodos de vida reclusa, podendo
chegar até seis meses, arriscava, nesses momentos críticos, impedir a conscrição
de centenas de jovens para o serviço militar. Assim, as mudanças e as adaptações
trazidas aos costumes sociais e às práticas tradicionais conduziram, na ordem
militar, a inovações técnicas e a uma modernização da organização. Dentre os
23 A. T. Bryant, 1929, p. 97; A. K. Smith, 1969, p. 182 -183.
24 A. T. Bryant, 1929; A. K. Smith, 1969, p. 185.
115
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
maiores inovadores e modernizadores deste período, é preciso citar Zwide, rei
dos ndwandwe; Dingiswayo, rei dos mthethwa, e Shaka, rei dos zulus
25
.
Em virtude das guerras conduzidas por estes numerosos Estados nguni,
das migrações que elas provocaram, das anexações e das incorporações diver-
sas que resultaram delas, três poderosos grupos se destacariam, dominando
assim a região. O primeiro, o dos ngwane -dlamini (chamados, em seguida, de
swazi) comandados por Sobhuza, estava estabelecido nas margens do Pongolo.
O Pongolo, o Mfolozi e o Oceano Índico delimitavam o território do segundo
grande grupo, a confederação ndwandwe, a qual reinava o rei Zwide. A Oeste
dessa última encontravam -se chefias mais modestas como a dos khumalo. O
terceiro grande grupo, a confederação mthethwa, colocada sob a autoridade de
Dingiswayo, ocupava aproximadamente, mais ao Sul, o triângulo compreendido
entre o Oceano Índico e os cursos inferiores do Mfolozi e do Mhlatuze
26
.
Os chefes desses três grandes Estados, na verdade, eram monarcas supremos
que recolhiam tributo em um conglomerado de pequenos Estados, chefias e clãs.
Os Estados vassalos gozavam, em geral, de uma autonomia considerável para
os assuntos da vida cotidiana, reconhecendo a autoridade suprema do suserano
nos campos tão importantes quanto os rituais das primícias, as cerimônias de
iniciação, o pagamento do tributo e a condução da guerra.
A luta pela supremacia opôs, primeiramente, os ngwane -dlamini de Sobhuza
aos ndwandwe de zwide. A disputa era pela posse das terras férteis do vale do
Pongolo, para o cultivo do milho. O Estado ndwandwe, que adquiriu muita
importância por volta da metade do século XVIII, no princípio, fazia parte de
um aglomerado de chefias nguni -embo que havia emigrado para o Sul, deixando
o reino de Thembe no interior da baía de Delagoa, aproximadamente no final do
século XVII. Associados a outros grupos oriundos dos nguni -embo, tais como
os ngwane, os dlamini e os hlubi, eles finalmente se fixaram no vale do Pongolo
na época em que seu chefe era Langa II, ou talvez seu predecessor, Xaba. Os
ndwandwe se estabeleceram principalmente nos contrafortes do Ema -Gudu,
que domina o Sul do vale do Pongolo. Foi a partir de seu novo domínio que os
chefes ndwandwe empreenderam a extensão de seu poder político, submetendo,
uma após outra, várias chefias de menor importância, estabelecidas na vizi-
nhança. Estes pequenos Estados compreendiam algumas comunidades ngwane
e ntungwa do vale do Pongolo, bem como um grupo de clãs khumalo sob a
autoridade de Mashobane. Foi também, quando seu Estado se solidificou e
25 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 27; J. Bird, 1888, vol. I.
26 A. T. Bryant, 1929, p. 160.
116
África do século XIX à década de 1880
prosperou, que eles tomaram o nome de ndwandwe, a fim de se distinguirem de
outros nguni -embo, dentre os quais alguns tinham se estabelecido na margem
norte do Pongolo, e outros, a Oeste da chefia ndwandwe
27
.
A autoridade potica dos soberanos ndwandwe cresceu enormemente à
medida que impunham sua suserania a um número crescente de pequenos Esta-
dos. Sob o reinado de Langa II e de seu filho Zwide, as fronteiras do Estado
estendiam -se ao Norte até duas margens do Pongolo e, ao Sul, até o vale do
Mfolozi Negro; a Oeste, atingiam os acessos da floresta de Ngome e, a Leste,
a baía de Santa Lúcia, no Oceano Índico
28
. Os soberanos ndwandwe foram,
portanto, os primeiros chefes nguni a congregar um grande número de pequenas
chefias para constituir um grande Estado. Ao explorar habilmente os costumes e
as práticas antigas e organizá -los de forma a servirem a novos propósitos e sem
hesitar em empregar, se fosse preciso, toda a força das armas, os chefes nwandwe
conseguiram criar, na zona de confluência do Usutu e do Pongolo, uma pode-
rosa confederação que recolhia tributo em inúmeras pequenas chefias da região.
Zwide subiu ao trono por volta de 1790. Seu poder atingiu o apogeu aproxima-
damente na mesma época que Dingiswayo, rei da confederação dos mthethwa,
vizinha e rival dos ndwandwe
29
. A honra de ter erguido o essencial da poderosa
confederação ndwandwe recai sobre ele. Entretanto, é preciso reconhecer que
Zwide construiu sobre as fundações edificadas por seu pai e seu avô, e que ele
explorou instituições, costumes e práticas que vigoravam em toda região, mesmo
entre os sotho -tswana que viviam a Oeste do Drakensberg.
Como vários outros Estados nguni da região, o reino ndwandwe apoiava -se
muito no desdobramento de regimentos militares, recrutados na ocasião do rito
tradicional de iniciação dos meninos e meninas, pertencentes, aproximadamente,
à mesma faixa etária. Para os meninos, o antigo rito de iniciação era acompa-
nhado da circuncisão. Parece que, dentre os primeiros chefes nguni, Zwide e
seus predecessores foram os primeiros a perceberem o uso político que se podia
fazer da prática sotho -tswana de coordenar e organizar a circuncisão, e os ritos
conexos de iniciação, em escala da comunidade ou da chefia e não no nível das
famílias. Em seguida, foi fácil ampliar o princípio. Os chefes vassalos podiam
continuar reinando sobre seus próprios súditos, mas não podiam mais organizar
e presidir suas próprias cerimônias de iniciação como no passado. Doravante,
essas cerimônias eram organizadas a partir do centro, e os jovens de todas as
27 Ibid., p. 158 -161.
28 Ibid., p. 160.
29 Ibid.
117
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
comunidades estabelecidas no território ndwandwe eram alistados como mem-
bros de regimentos nacionais correspondentes a sua faixa etária
30
. Obviamente,
tal disposição facilitava o uso posterior desses regimentos para fins militares.
Além do uso que fizeram desses regimentos de recrutas para amalgamar as
diferentes partes de seu Estado nacional”, os reis ndwandwe teriam recorrido
amplamente às influências mágico -religiosas para reforçar sua própria autoridade
e contribuir para criar o mito do monarca todo -poderoso e invencível. Além da
tradicional cerimônia anual das primícias, Zwide, em particular, cercou -se dos
serviços de um impressionante areópago de feiticeiros e de mágicos reais, cujo
renome servia para repercutir o temor ao seu poder pelas inúmeras chefias das
redondezas. Zwide também recorreu a casamentos diplomáticos para nutrir
relações com certos Estados da região ou para torná -los mais serenos. Foi assim
que ele ofereceu a mão de sua irmã Ntombazana ao rei mthethwa Dingiswayo.
Talvez fossem considerações da mesma ordem que finalmente o levaram a acei-
tar que uma de suas filhas, Thandile, esposasse Sobhuza, rei dos ngwane (swazi),
que a chamavam de Lazidze, a filha de Zwide.
Entretanto, Zwide não tinha a menor intenção de deixar que tais casamen-
tos travassem seus objetivos expansionistas. Isso foi bem evidenciado quando
Sobhuza fez valer seus direitos à utilização das férteis terras aráveis do vale do
Pongolo. Zwide respondeu atacando a capital de Sobhuza, na fronteira meridio-
nal da atual Suazilândia
31
. O exército ndwandwe venceu uma série de confrontos
e expulsou os partidários de Sobhuza do vale do Pongolo, rechaçando -os para o
Norte. Foi aí, no meio do maciço montanhoso, hoje localizado no território da
Suazilândia, que Sobhuza (conhecido também pelo nome de Somhlolo) edificou
as fundações da nação swazi.
Os swazi
O grupo original ngwane era formado de um aglomerado de cs nguni-
-embo e de alguns grupos de origem nguni -ntungwa, mais alguns cs tsonga
conduzidos por elementos da linhagem real dos dlamini. Esses clãs uniram -se
para constituir o substrato da sociedade ngwane no distrito de Shiselweni e
30 J. D. Omer -Cooper, 1966.
31 J. S. M. Matsebula, 1972, p. 15 -16; H. Kuper, 1947, p. 13; J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 29 -49; A. T.
Bryant, 1964.
118
África do século XIX à década de 1880
seriam conhecidos pelo nome de bemdzabuko, ou verdadeiro Swazi
32
. Na parte
central da atual Suazindia, Sobhuza colocou sob sua autoridade política
vários outros clãs estabelecidos na vizinhança. Tratava -se, na sua maioria, de
pessoas de origem sotho (pedi), que haviam se misturado a pequenas comu-
nidades de nguni -embo e de ntungwa. As comunidades sotho que Sobhuza
integrou a seu reino possuíam um sistema bastante evoluído de regimentos
constituídos por faixas etárias. Para distinguir estes novos swazi daqueles que
vieram do Sul, eram geralmente chamados de emakhandzambili [aqueles que
foram encontrados]
33
.
Antes mesmo de ser expulso do vale do Pongolo, o povo de Sobhuza tinha,
como o de Dingiswayo, adotado o sistema de faixas etárias. Isso facilitou muito
a integração das novas comunidades do centro da Suazilândia. Como nas comu-
nidades sotho, as faixas etárias swazi apenas funcionavam sob a forma de regi-
mentos militares em tempos de guerra. Os jovens dos clãs conquistados foram
incorporados ao sistema de iniciação ngwane e enviados para o combate lado a
lado com seus conquistadores nos mesmos regimentos
34
, ao passo que os chefes
dessas comunidades sotho, longe de serem eliminados, obtiveram uma larga
autonomia para a gestão dos negócios locais. Sem dúvida, os clãs sotho ocupa-
ram, no início, uma posição sensivelmente inferior na sociedade ngwane; mas
à medida que o tempo passava e que sua lealdade para com o Estado não era
mais colocada em dúvida, eles obtiveram o mesmo tratamento que os membros
nguni do Estado swazi.
Não somente Sobhuza aliviou o jugo da sujeição dos clãs sotho dominados
por ele, outorgando a seus chefes uma boa margem de autonomia local e conce-
dendo aos jovens sotho uma grande mobilidade no seio do exército swazi, mas
também procurou consolidar sua própria posição e garantir a segurança de seu
novo reino mantendo relações amigáveis com seus vizinhos. Embora Zwide o
tivesse expulsado de seu antigo feudo e o perseguido até a atual Suazilândia,
Sobhuza conservou relações amigáveis com os ndwandwe e quis consolidar
essa amizade esposando uma das filhas de Zwide, para fazer dela sua nkosikati
(primeira esposa). A fim de cair nas graças de Shaka, o zulu, Sobhuza lhe enviou
um tributo em meninas, dentre as quais, princesas de sangue real. Apesar de
Shaka ter matado algumas dessas mulheres quando elas engravidaram, Sobhuza
32 J. S. M Matsebula, 1972; H. Kuper, 1947, p. 14.
33 Ibid.
34 H. Kuper, 1947, p. 15 -17; H. Beemer, 1937.
119
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
continuou com sua política de conciliação
35
. Isso valeu a seu reino a relativa
permanência ao abrigo das exações dos regimentos de Shaka.
Sobhuza morreu em 1840. Seu filho Mswati (Mswazi) sucedeu -lhe e foi
nesse momento que o povo ngwane -dlamini tomou o nome de swazi. Como
antes fizera seu pai, Mswati teve que defender o novo Estado contra as suces-
sivas invasões vindas do Sul, sem contar as revoltas que explodiram no interior.
Mswati, que era relativamente jovem quando da morte de seu pai, primeiro teve
que enfrentar várias tentativas que visavam a desapossá -lo do poder. A primeira
foi a rebelião de Fokoti, que contou com numerosos apoios no Sul da Suazilân-
dia. Mas Mswati foi salvo graças ao apoio dos regimentos reais de Malunge.
Após a rebelião de Fokoti, Mswati se incumbiu do dever de reforçar sua
posição com medidas tais como uma maior centralização dos regimentos cons-
tituídos por faixas etárias, a criação de uma rede mais estendida de aldeias reais
e a reorganização da cerimônia do incwala (primícias) no sentido de um reforço
das prerrogativas reais. Todavia, tais reformas não impediram que um outro filho
de Sobhuza, o regente Malambule, se rebelasse em 1846, pouco após Mswati ter
se submetido ao rito da circuncisão. Missionários brancos estavam implicados na
revolta, bem como agentes do imperialismo zulu. Por fim, Mswati foi obrigado
a estabelecer uma aliança com os bôeres do Transvaal para abafar o perigo de
invasão representado pelas forças zulu de Mpande. O tratado que permitiu livrar
os swazi das garras do dragão zulu foi assinado em 26 de julho de 1846
36
.
Uma personagem chave na derrota da insurreição de Malambule foi um
outro irmão de Mswati, Somcuba (Somquba). Seu status privilegiado de pri-
mogênito de Sobhuza foi ainda reforçado pelo papel que ele desempenhou na
repressão da insurreição de Malambule, bem como na negociação do tratado
de 1846 com os bôeres de Ohrigstad. Entretanto, por volta de 1849, Somcuba
insurgiu -se, por sua vez, contra a autoridade de Mswati e até mesmo tentaria
fundar um Estado rival através de um amálgama de pequenos clãs pai e sotho,
na região do rio Crocodile”
37
, e usurpar as prerrogativas reais praticando suas
próprias cerimônias de incwala. Em 1856, as campanhas conduzidas por Mswati
contra o rebelde e os bôeres de Lydenburg que o apoiavam levaram à morte
de Somcuba, com um novo tratado de cessão com os bôeres de Lydenburg e à
restauração de condições normais de existência na região
38
.
35 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 50.
36 J. S. M. Matsebula, 1972; A. T. Bryant, 1929, p. 325 -328; H. Kuper, 1947, p. 19 -20.
37 J. A. I. Agar -Hamilton, 1928, p. 60 -61; H. Kuper, 1947, p. 20.
38 H. Kuper, 1947; G. M. eal, 1891, vol. IV, p. 456.
120
África do século XIX à década de 1880
A política interna de Mswati foi mais feliz que suas aventuras estrangeiras.
Ele se lançou em uma política de casamentos diplomáticos com princesas esco-
lhidas entre numerosas linhagens das comunidades recentemente integradas à
sociedade swazi. Paralelamente, oferecia esposas de sangue real aos chefes dos
diversos clãs e linhagens. O povo rapidamente tomou tais práticas como modelo
e, graças a numerosos casamentos cruzados, grandes mudanças foram introdu-
zidas na sociedade swazi, cujas divisões étnicas logo desapareceram
39
.
Os mthethwa
A evicção dos ngwane -dlamini do vale do Pongolo colocou frente a frente, no
país nguni do Norte, dois reis e seus povos: Zwide, o ndwandwe, e Dingiswayo,
o mthethwa. Zwide tornou -se rei dos ndwandwe por volta de 1790. É a ele que
podemos atribuir a edificação de um grande Estado ndwandwe, cuja potência
apoiava -se na arrecadação do tributo imposto aos Estados vassalos; na utilização
de um exército formado de regimentos constituídos por faixas etárias; no mito
de um poder real sagrado, organizado em torno do incwala, cerimônia anual das
primícias, e no domínio das rotas comerciais em direção à baía de Delagoa.
O reino mthethwa tornou -se célebre sob o reinado de Dingiswayo, filho
de Jobe e neto de Kayi (geralmente considerado como o fundador do reino
mthethwa)
40
. Como no caso dos Estados ndwandwe, ngwane e, mais tarde, dos
zulus, a potência do Estado mthethwa repousava sobre a arrecadação do tributo,
as razias aos rebanhos e sobre um exército formado de regimentos de recrutas
incorporados por faixas etárias. Os mthethwa também mantinham relações
comerciais com a baía de Delagoa.
Como vimos, regimentos constituídos por faixas etárias estavam geral-
mente estacionados em todos os principais Estados nguni da região, e a maioria
desses Estados parece ter sido influenciada pelos pedi e por outros grupos sotho
da vizinhança
41
. Entretanto, Dingiswayo parece ter aplicado sua seriedade e sua
imaginação habituais à reorganização daquilo que era uma prática generalizada
na região. Ele colocou um fim ao rito da circuncisão que acompanhava habitual-
mente a formação das faixas etárias, a fim de suprimir os períodos de vida reclusa
que tais ritos exigiam. Adotou para seu exército a formação chamada de peitoral
39 H. Beemer, 1937.
40 T. Shepstone, 1988, vol. I, p. 160 -164; A. T. Bryant, 1929, p. 95.
41 J. D. Omer -Cooper, 1969, p. 211 -213.
121
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
e cornos”. Ele também fez aliança com o reino de Maputo, na baía de Delagoa.
Assim, mais tarde, quando conquistou e incorporou o Estado de Qwabe, diz-
-se que foi ajudado por soldados armados de mosquetes vindos do reino aliado
de Maputo, e não, como disse Fynn, por uma companhia de soldados enviados
pelos portugueses
42
. O reino mthethwa de Dingiswayo arrecadava tributos junto
a mais de trinta chefias da região, dentre as quais se encontrava uma pequena
chefia comandada por Senzangakhona: o Estado zulu. Mais tarde Shaka, o filho
de Senzangakhona, tornou -se general do exército de Dingiswayo.
Os zulus
A expansão dos mthethwa de Dingiswayo foi represada por Zwide e seus
regimentos ndwandwe. Várias guerras foram travadas pelos exércitos rivais.
Em 1818, Dingiswayo foi capturado por Zwide e morto. Em razão do cará-
ter pessoal do reinado de Dingiswayo, sua morte criou um vazio à frente dos
mthethwa. Shaka, que rápido subiu na estima de Dingiswayo (e tinha se tor-
nado, com a ajuda desse, o chefe da pequena chefia zulu), logo se engolfou na
brecha: tomou o lugar de Dingiswayo à frente da confederação das chefias
mthethwa. Na verdade, ele acabou herdando o império mthethwa. Mas tal
como Bismarck arquitetou para que a Alemanha fosse absorvida pela Prússia,
Shaka incorporou” o imrio mthethwa ao Estado zulu, de forma que os
mthethwa, a partir de então, passaram a fazer parte da nação zulu. Ele auto-
rizou da mesma forma a manutenção do sistema de governo tradicional dos
mthethwa, sob a condução de um filho menor de Dingiswayo e de um regente
submetido à figura do monarca zulu, ou seja, a ele mesmo
43
. No que concerne
aos outros grupos, parece que Shaka mais impôs uma integração total do que
uma simples suserania.
No tempo em que ele era apenas chefe do Estado zulu, vassalo de Dingiswayo,
Shaka havia começado a reorganizar seu exército segundo um processo de
racionalização das instituições sociais para fins militares, que doravante seria con-
duzido até sua conclusãogica. Além disso, ele revolucionou as próprias técnicas
militares. Os longos dardos foram substituídos por uma azagaia curta de lâmina
larga, muito mais eficaz no combate corpo a corpo desde que o inimigo tivesse
perdido seus próprios dardos. Os combatentes zulus se protegiam, a partir de
42 A. K. Smith, 1969, p. 184.
43 A. T. Bryant, 1929, p. 158 -167, 202 -203; E. A. Ritter, 1955, p. 113 -116.
122
África do século XIX à década de 1880
então, com altos escudos e não portavam mais sandálias, a fim de ganharem velo-
cidade e mobilidade. Como Dingiswayo antes dele, Shaka mantinha em alerta
um exército permanente de regimentos constituídos de homens de menos de
quarenta anos, porém, contrariamente a Dingiswayo, acantonava tais regimentos
em casernas onde permaneciam a cargo do Estado. Os homens eram sujeitados
ao celibato até que fossem liberados de suas obrigações militares. Vivendo na
caserna, os regimentos de Shaka eram bem treinados, eficazes e sempre prontos
para entrar em ação
44
.
O exército de Shaka dominava várias táticas militares, das quais a dos “cor-
nos da vaca era apenas a mais espetacular. O treinamento dos soldados tornava
os guerreiros endurecidos e impiedosos com o inimigo. Diferentemente de
Sobhuza ou de Dingiswayo, Shaka com frequência aniquilava as elites dirigen-
tes dos povos conquistados e se esforçava para incorporar completamente os
grupos capturados ao sistema zulu, colocando à sua frente membros da família
real zulu a fim de substituir os chefes eliminados. Quando se tratava de grupos
muito numerosos, seus chefes eram por vezes mantidos no lugar e continuavam
a exercer localmente sua autoridade sobre o seu próprio povo.
Durante as guerras decisivas pela dominação do que se tornaria a Zululândia,
Shaka regulou e aperfeiçoou algumas das técnicas e das táticas, as quais foram
aludidas anteriormente. Levado pela ambição de se tornar senhor de todos os
grupos que viviam no território dos nguni do Norte, ele entrou em conflito
direto com os ndwandwe de Zwide. Este último fora vencido por Shaka no
curso de duas batalhas sucessivas em 1819 e 1820
45
.
A vitória de Shaka sobre o exército ndwandwe em Mhlatuze não foi um
desastre militar para o próprio Zwide, mas marcou também o desabamento
do Estado ndwandwe, confederação flexível que fora criada pela subordinação
sistemática de numerosos pequenos Estados dos vales do Mkuze e do Pongolo.
Tomados pelo pânico, elementos da população do Estado ndwandwe fugiram
para o Norte, conduzidos pelos antigos generais de Zwide, e encontraram refú-
gio no Moçambique atual. Os chefes desses grupos residuais eram Soshangane,
Zwangendaba e Nqaba. Quanto à massa do povo ndwandwe, a partir de então,
completamente submissa, acabou formando, sob a autoridade de Sikunyane, um
Estado vassalo do soberano zulu
46
.
44 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 35 -37.
45 L. ompson, 1969a, p. 344; E. A. Ritter, 1955, p. 129 -149.
46 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 57 -58; H Fynn in J. Bird, 1888, Vol. I, pp. 86 -90.
123
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
O reino de Gaza
Soshangane foi o primeiro dos generais de Zwide a se retirar, seguido de um
pequeno grupo de fiéis, e a se estabelecer no país tsonga, não longe da baía de
Delagoa, onde parece ter vencido e sujeitado tranquilamente vários pequenos
grupos, tais como os manyika, os ndau e os chopi, por ele incorporados aos seus
partidários. Em Moçambique, os partidários de Soshangane, geralmente, eram
denominados shangana, segundo seu nome. Foi que ele tentou fundar seu
próprio reino, chamado Gaza. Em todas as direções, enviou seus regimentos em
expedições para capturar gado, jovens (homens e mulheres) e grãos. Solidamente
estabelecida, a potência econômica do reino de Gaza tinha por base o controle
do comércio entre o interior e os estabelecimentos costeiros dos portugueses
na baía de Delagoa
47
. Este comércio já estava florescendo antes da formação do
reino de Gaza. De fato, a baía de Delagoa, feitoria portuguesa, atraía os navios
mercantes de outras nações estrangeiras, notadamente, ingleses e austríacos
48
. A
baía de Delagoa servia, sobretudo, de escoadouro do marfim e de outros produ-
tos exportados do reino de Nyaka e dos Estados thembe e maputo
49
.
O novo reino de Gaza assegurou, pois, o controle de um comércio que alcan-
çava uma boa parte de Natal e atingia, muito provavelmente, os limites orientais
da colônia do Cabo
50
. Mas o reino de Gaza contava demasiadamente com suas
expedições militares e com a guerra. A partir de sua capital, Chaimaite, no
Médio Sabi, os regimentos de Soshangane combatiam as chefias das redondezas
e perseguiam os Estados shona do Leste. A maioria desses ataques foi dirigida
contra os povos do Sul de Moçambique, notadamente, os tsonga
51
. Houve um
reforço do elemento nguni na sociedade gaza em 1826, no momento em que
os homens de Soshangane juntaram -se aos ndwandwe derrotados, vindos do
Norte da Zululândia, após a derrota de Sikunyane, o filho de Zwide, vencido
por Shaka
52
.
As comunidades tsonga submetidas foram incorporadas a uma estrutura
correspondente às formas características do Estado zulu. Gaza estendia -se do
Zambeze inferior até o Sul do Limpopo. A autoridade do rei apoiava -se em um
47 A. T. Bryant, 1929, p. 313; J. D. Omer -Cooper, 1966, cap. 4.
48 A. K. Smith, 1969, p. 176 -177.
49 S. Marks, 1967b.
50 A. K. Smith, 1969, p. 169.
51 J. Stevenson -Hamilton, 1929, p. 169.
52 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 57.
124
África do século XIX à década de 1880
exército organizado em regimentos alistados por faixas etárias e utilizando as
técnicas de combate do exército zulu. O núcleo de origem dos nguni oriundos
do Sul formava uma espécie de classe social superior designada pelo nome de
ba -nguni”, ao passo que os cidadãos incorporados recentemente eram chama-
dos “ba -tshangane”. Contrariamente a vários de outros fundadores de Estados
oriundos do Mfecane, Soshangane não utilizou seus regimentos constituídos
por grupos etários para unificar as comunidades sujeitadas e o núcleo nguni.
Segundo J. D. Omer -Cooper, os homens de grupos vassalos eram formados
em regimentos distintos daqueles dos nguni, mas colocados sob o comando de
oficiais ba -nguni”. Ele aponta também que se considerava que tais regimentos
pudessem ser sacrificados e que, no campo de batalha, eram sempre engajados
na linha de frente
53
.
Os ndebele
Mzilikazi, o fundador do Estado ndebele, era filho de Mashobane, chefe de
um pequeno principado khumalo estabelecido nas margens do Mfolozi Negro,
que pagava um tributo a Zwide, o monarca ndwandwe. Nascido em 1796, Mzi-
likazi tornou -se o chefe de seu povo em 1818, quando Zwide encomendou a
morte de Mashobane, sob a suspeita de traição. Na condição de filho da pri-
meira esposa de Mashobane (filha de Zwide), Mzilikazi, o herdeiro oficial, foi
devidamente instalado por Zwide à frente da chefia khumalo.
Pouco tempo após a vitória de Shaka sobre Zwide na batalha do Mfolozi
Branco, Mzilikazi traiu seu avô Zwide e fez aliança com Shaka. Enviado por este
último em expedição contra um grupo sotho vizinho, em 1822, Mzilikazi desa-
fiou Shaka recusando -se a lhe entregar o gado capturado. Tendo então reunido
seus khumalo no cume da colina de Ntumbane, ele rechaçou um regimento zulu
que fora enviado para puni -lo. Um segundo regimento conseguiu desalojá -lo de
sua fortaleza, tida como impenetrável, e infligiu uma punição severa aos regi-
mentos khumalo. Mzilikazi escapou pelas montanhas do Drakensberg, à frente
de um pequeno grupo de aproximadamente 200 homens, mulheres e crianças.
Segundo a descrição de um autor:
Tendo perdido uma grande parte de mulheres, crianças e gado, e apoiado somente
por algumas centenas de soldados a pé, dotados de armas de punho, Mzilikazi
53 J. Stevenson -Hamilton, 1929, p. 169.
125
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
encontrava -se no limiar de uma odisseia que o levaria a percorrer mais de 2.500
quilômetros em vinte anos, por muitas regiões desconhecidas.
Mzilikazi conseguiu escapar dos regimentos zulus que o perseguiam, abrindo
caminho através de vários pequenos grupos sotho do Highveld. Quando de sua
travessia do Vaal, capturou gado, homens, mulheres e crianças. Sua tropa tam-
bém aumentou com os grupos isolados nguni que, antes deles, atravessaram o
Drakensberg para viverem entre as comunidades sotho do Highveld. Em 1824,
ele se estabeleceu nas ribanceiras do Olifants, em uma região habitada principal-
mente pelos pedi, grupo sotho -tswana que, até 1820, fora chefiado por Thulare.
Seu estabelecimento foi chamado de Ekupumleni. As campanhas militares que
Mzilikazi empreendeu contra os pedi e outros grupos sotho, fixados principal-
mente no Norte e no Leste do que hoje é o Transvaal, tiveram como efeito não
só o enorme aumento do efetivo de seus rebanhos, mas também a multiplicação
do número de seus vassalos: ele recolheu habitantes de regiões conquistadas,
além de refugiados que fugiam de Shaka. No Highveld do Transvaal, habitado
sobretudo por comunidades sotho -tswana, os nguni de Mzilikazi foram desig-
nados sob o nome de ndebele. Por volta de 1825, os regimentos ndebele com-
bateram as comunidades sotho -tswana em todo o Highveld e atacaram a Oeste,
até o Botsuana Oriental. No espaço de dois ou três anos, o reino de Mzilikazi
se tornou o mais poderoso e o mais rico do Highveld.
A notícia da fortuna de Mzilikazi se propagou e atraiu bandos de aventu-
reiros e saqueadores, como aqueles comandados por Moletsane, o taung (cuja
base encontrava -se no Vaal), ou Jan Bloem, cujos cavaleiros mestiços, equipados
com armas de fogo, perseguiam, algum tempo, vários Estados africanos da
região de Trans -Orangia. Eles atacaram os enormes currais de Mzilikazi, perto
do Vaal, dividindo entre eles parte dos imensos rebanhos desse último
54
. Essa
situação, agravada pelos ocasionais ataques dos regimentos zulu e a ameaça de
um possível ataque da parte de Zwangendaba e de Nqaba
55
ambos antigos
generais de Zwide –, incitou Mzilikazi a deslocar sua capital, em 1827, para
estabelecê -la nos declives setentrionais dos montes Magaliesberg, perto da fonte
do rio Odi (Crocodile), ou seja, no coração do país kwena e kgatla, lugar que
constitui agora a província do Tranvaal. Foi aí, não distante da atual Pretória,
que Mzilikazi instalou seu novo quartel general, Mhlahlandlela, a partir do qual,
durante cinco a sete anos, seus regimentos lançaram ataques sistemáticos contra
54 J. D. Omer -Cooper, 1966, cap. 9 passim.
55 Ibid.
126
África do século XIX à década de 1880
os Estados kwena e kgatla do centro do Transvaal. Os regimentos de Mzilikazi
partiram em expedições para o Norte, para além do Limpopo; para o Sul, além
do Vaal e para o Oeste até os acessos do deserto de Kalahari. Em Mhlahlandlela,
Mzilikazi construiu as fundações de uma nação bem organizada em torno de
sua capital e das duas aglomerações satélites de Gabeni e Nkungwini. Entre-
tanto, a perseguição continuava. Os koranna, armados e comandados por Jan
Bloem, reforçados por alguns regimentos sotho -tswana, atacaram seus reba-
nhos em 1828, apoderando -se de milhares de cabeças de gado e massacrando
muitas outras. Os regimentos de Mzilikazi, que operavam alhures, lançaram -se,
rapidamente, na perseguição dos saqueadores, os quais se dirigiam para o Sul.
Esses, no momento em que deixavam o território ndebele, foram pegos, mortos,
em sua maioria, e muitas cabeças de gado foram recuperadas. Um ano mais
tarde, um ataque análogo conduzido contra seus currais por um forte partido
griqua e sotho, comandado por Barend Barends, foi igualmente rechaçado. Mas
Mzilikazi ainda vivia com medo de um ataque zulu. Em 1832, ele levantou
acampamento e partiu para o Oeste a fim de se estabelecer em Mosega, no
Marico (Madikwe). Desta nova base, atacou a maioria dos grupos tswana do
Transvaal Ocidental e aqueles que povoavam o atual Botsuana, até o dia em que
foi derrotado e expulso de Mosega por uma força composta de bôeres, tswana
e griqua, em 1837
56
.
Mzilikazi iria estabelecer seus quartéis em Bulawayo. Seus regimentos impu-
seram facilmente sua autoridade às chefias kalanga e shona instaladas na região.
A potência dos Estados shona tinha sido minada pelas batalhas contra os nguni
de Zwangendaba e Nqaba. A partir de Bulawayo, os regimentos ndebele lan-
çavam frequentes ataques contra os shona para capturar o gado. Muitas chefias
shona se submeteram e tornaram -se Estados vassalos, pagando tributo, ao passo
que outras resistiram bravamente. Certos grupos shona, em particular os que
viviam a Leste do Sabi e do Hunyani, nunca se submeteram verdadeiramente
à autoridade dos ndebele. Por outro lado, as chefias kalanga estavam muito
dispersas para resistirem, e seus habitantes foram incorporados à sociedade
ndebele. Alguns foram obrigados a emigrar para o Sul e para o sudoeste, e se
estabeleceram no atual Botsuana.
Em seu novo domínio, Mzilikazi se sentia menos ameaçado por inimigos
poderosos. Desde então, esforçou -se menos nas expedições militares do que na
consolidação de seu reino. Mas, como o Estado ndebele era basicamente um
56 L. D. Ngcongco, 1982a, pp.161 -71.
127
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
Estado militarista e expansionista, ele precisava garantir uma massa regular de
tributos sob a forma de gado, grãos, utensílios, armas de ferro, adornos indivi-
duais, artigos de couro; ou ainda, sob a forma de mão de obra e de serviços. Os
regimentos continuaram, portanto, com suas expedições para o Norte e Leste,
contra as comunidades de língua shona e, também, contra alguns Estados sotho-
-tswana do Sul. Certos tswana, como os bakaa, foram poupados e encarregados
de vigiar o rebanho de Mzilikazi
57
. Entretanto, em 1842, o rei ngwato Sekgoma
desafiou um regimento de invasores ndebele. No ano seguinte, os arrecadadores
de tributos de Mzilikazi foram mortos pelos ngwato
58
. Teria seu ardor militar
se abrandado ou teria ele considerado que não era necessário reagir imediata-
mente? Surpreendentemente ele esperou vinte anos antes de punir os ngwato
por esse insulto.
Em todo caso, Mzilikazi se mostrou mais ávido por vingança após sua der-
rota no Zambeze, diante dos kololo de Sebetwane, em 1839. Enviou contra eles
duas expedições, uma em 1845, e outra cinco anos mais tarde. Mas, como ambas
foram um desastre, ele renunciou a qualquer nova empreitada ao encontro de
um inimigo tão temível. Por outro lado, em 1847, os ndebele foram surpreen-
didos pela incursão de um comando bôer, sob as ordens de Hendrik Potgieter
e apoiado por auxiliares pedi. A expedão foi um fracasso total. Tal como
fizera contra os bandos griqua e koranna, uma vintena de anos atrás, Mzilikazi
destacou um regimento para perseguir o comando que tinha conseguido rou-
bar milhares de cabeças de gado ndebele. O regimento de elite zwangendaba
apanhou os saqueadores em seu acampamento, massacrou os guardas pedi e
retomou a posse do gado.
A partir de 1850, um decênio inteiro passou sem que Mzilikazi se lançasse
em uma guerra importante. Querendo nutrir boas relações com os europeus,
ele assinou com os bôeres, em 1852, um tratado que lhes permitia caçar em
seu território. Também, por três vezes, recebeu a visita do missionário Robert
Moffat em 1854, 1857 e 1860
59
. Tais visitas prepararam a entrada dos europeus
no reino ndebele. Moffat obteve de Mzilikazi a permissão para os missioná-
rios desenvolverem suas atividades em seu país
60
. A partir deste momento, os
europeus começaram a penetrar em número crescente no reino ndebele. Eram
caçadores, mercadores e missionários, todos precursores de Cécil J. Rhodes e
57 A. Sillery, 1952, p. 118.
58 R. K. Rasmussen, 1977, p. 35; A. Sillery (1952, p. 118) data esse incidente de 1838.
59 R. Moat, 1945, vol. I, p. 225.
60 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 153.
128
África do século XIX à década de 1880
da British South Africa Company
61
. O movimento se acentuou a partir de 1867,
quando os europeus tomaram conhecimento da existência das antigas minas de
ouro de Tati, no país kalanga
62
. Nesta época, Mzilikazi estava muito doente.
Ele morreu no início do mês de setembro de 1868.
O reino ndebele era um Estado militarista. Seu estabelecimento na região
que hoje corresponde ao atual Zimbábue marcou o desabrochamento de um
sistema político que lentamente tinha amadurecido no Transvaal. Para cons-
truir seu reino, Mzilikazi retomou certos traços do Império Zulu, do qual o seu
próprio principado khumalo fora apenas um elemento menor. Ele utilizou regi-
mentos constituídos por faixas etárias como principal instrumento para integrar
as populações conquistadas e para amalgamar as camadas sociais que, pouco a
pouco, se constituíram na sociedade ndebele, no Norte do Limpopo.
Após 1840, eram três o mero de tais camadas sociais. A primeira era
constituída pelos grupos de parentes dos primeiros companheiros de Mzilikazi,
originários da região de Natal -Zululândia e dos que se juntaram a eles no Sul
do Vaal. Eram chamados de zansi. O segundo grupo, pela ordem decrescente
de prestígio, era composto de pessoas que foram incorporadas ao longo das
peregrinações no Norte do Vaal. Eram chamados de e -nhla. Por fim, a base da
hierarquia era ocupada pelo grupo dos hole, constituído pelas populações con-
quistadas no Norte do Limpopo
63
. O prestígio que se atrelou à posição social
dos zansi incitava os outros grupos a se esforçar para imitar os modos de vida
dos primeiros, falar sua língua e adotar sua cultura. Os casamentos entre pes-
soas de classes sociais diferentes não eram vistos com bons olhos
64
. Entretanto,
os indivíduos que conseguiam se exprimir com destreza em sindebele e que se
distinguiam na guerra escapavam ao ostracismo social e até podiam ascender na
hierarquia militar. O sistema dos regimentos constituídos por faixas etárias tinha
como efeito a mistura dessas classes sociais e a facilitação de uma integração
mais rápida dos jovens dos países conquistados. Ele permitia impregnar tais
jovens dos costumes ndebele, da língua sindebele e da fidelidade a Mzilikazi.
Em virtude de sua posição, o rei desempenhou um papel capital no dispo-
sitivo que ligava estes diferentes grupos de sujeitos entre si. Notadamente, isso
aparecia na cerimônia anual do incwala. Mais do que qualquer outro rito, tal
cerimônia evidenciava o papel primordial da figura do rei na vida da nação.
61 Ibid., p. 152.
62 L. ompson, 1969b, p. 446.
63 A. J. B. Hughes, 1956.
64 Ibid.
129
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
Segundo a análise feita por um antropólogo, a cerimônia das primícias ritua-
lizava a função real e servia para proteger toda a comunidade,apaziguando as
forças maléficas que poderiam prejudicar o seu chefe e consolidando, ao redor
dele, a unidade política da nação”
65
. A cerimônia reunia todos os súditos do rei
e ocorria na capital
66
. Em princípio, sendo o proprietário de todo o gado do
reino ndebele, Mzilikazi podia conceder ou recusar a seus súditos os meios de
contrair casamento. Além de ser o guardião do rebanho nacional, também o era
de todas as jovens capturadas. Em outros termos, era senhor, ao mesmo tempo,
da capacidade de produção econômica e do potencial de reprodução biológica
de seus súditos. Ele próprio ligou -se, pelo casamento, a um grande número de
seus súditos.
Dado que o reino ndebele era um Estado fundado na conquista, a organi-
zação de seu numeroso exército recortava, em parte, a organização política e
administrativa do Estado e até mesmo tendia a tomar a frente desta última. Este
exército de aproximadamente 20.000 homens, nos últimos anos do reinado de
Mzilikazi, foi dividido em regimentos, sendo cada um deles comandado por um
induna. Os próprios induna eram controlados por quatro induna divisionários,
todos subordinados a Mizilikazi, que reinava no cume da pirâmide.
Quase todos os homens adultos faziam parte do exército e pertenciam, por
consequência, a um regimento. Tais regimentos estabeleciam -se em cidades
guarnição. Os militares casados eram autorizados a viver na cidade guarnição
com suas mulheres e seus servos. Constituíam uma espécie de força de reserva
que poderia ser chamada ao combate, em caso de urgência. Os filhos eram alis-
tados no mesmo regimento de seus pais. Assim, em vez de serem os jovens de
todas as comunidades do Estado incorporados a um mesmo regimento (como
era o caso entre os sotho -tswana), o pertencimento a uma cidade guarnição
tornava -se hereditário. Por vezes, quando o aumento da população o requeria,
Mzilikazi escolhia jovens em diversas cidades guarnição para formar um novo
regimento, sob o comando de seu próprio induna, o qual recebia a autoriza-
ção de construir uma nova cidade. Cada cidade guarnição encontrava -se sob a
dupla responsabilidade do induna de seu regimento e de uma das esposas de
Mzilikazi.
Se o sistema regimentar funcionava desta maneira visando à integração dos
jovens, nem todos os habitantes dos países conquistados viviam em cidades
guarnição. Havia no reino ndebele aldeias ordinárias cujos habitantes continu-
65 H. Kuper, citado em T. R. H. Davenport, 1978, p. 45.
66 R. K. Rasmussen, 1977.
130
África do século XIX à década de 1880
avam vivendo segundo seus costumes. Contudo, tais aldeias encontravam -se, em
geral, ligadas às cidades guarnição.
Enfim, no reino ndebele, o próprio Mzilikazi concentrava sobre sua pessoa
a totalidade do poder político. Nomeava todos os induna e todos os chefes de
aldeia, e recebia deles relatórios detalhados. Mzilikazi, frequentemente ia às
diferentes cidades guarnições e fazia visitas inopinadas de inspeção nas cidades-
-satélites. Em um intervalo de tempo relativamente curto, ele chegou a edificar
um reino solidamente implantado, no qual os povos conquistados dentre os
quais alguns eram associados ao Estado, porém sem fazer realmente parte dele
– adotaram a língua e a cultura ndebele. Inversamente, os ndebele tornaram -se
adeptos da religião shona mwari/mlimo, cujos sacerdotes pronunciavam oráculos
e praticavam o espiritismo
67
.
Os sotho
O reino de Lesoto é outro Estado que nasceu da efervescência do Mfecane,
constituindo -se a partir de uma constelação de pequenas comunidades autô-
nomas de língua sotho, as quais se encontravam largamente dispersas pelas
planícies que se estendiam a Norte e a Oeste da cadeia do Drakensberg. A
maioria destas comunidades compreendia vários clãs e linhagens pertencentes
aos grupos kwena e fokeng das sociedades sotho -tswana.
As guerras mortíferas lançadas pelas campanhas dos hlubi e dos ngwane
contra essas comunidades de língua sotho do Highveld de Trans -Orangia for-
neceram a Moshoeshoe uma boa oportunidade para exercer seus talentos de
chefe e de organizador. Moshoeshoe era o filho do chefe relativamente obscuro
do pequeno cmokoteli, ramo menor de uma das chefias kwena da região. A
tradição atribui certas realizações de Moshoeshoe à tutela e à influência de um
eminente “rei filósofo do mundo sotho, Mohlomi, rei dos monaheng, um outro
ramo da confederação kwena das chefias do Highveld. Os Estados de língua
sotho de Trans -Orangia dispensava um imenso respeito a Mohlomi devido a sua
sabedoria e a sua reputação de fazedor de chuva. As frequentes viagens feitas por
este último a tais Estados e os numerosos casamentos diplomáticos contraídos
por ele com filhas de chefes teriam, segundo alguns, preparado o terreno para a
unificação desses Estados concluída mais tarde por Moshoeshoe
68
.
67 Ibid.; A. J. Wills, 1967, p. 155.
68 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 99; D. F. Ellenberger e J. MacGregor, 1912.
131
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
Entretanto, não seria preciso exagerar a influência do sábio Mohlomi sobre
o caráter e os êxitos de Moshoeshoe. Este era dotado de incontestáveis quali-
dades de chefe. Primeiramente, após ter se destacado por suas iniciativas entre
os camaradas de sua mesma idade durante a iniciação, ele provou amplamente
essas qualidades no momento em que as incursões dos hlubi e dos ngwane pro-
vocaram o desabamento geral da maioria das chefias sotho de Trans -Orangia
69
.
No início de sua carreira, Moshoeshoe tomou consciência das possibilidades
defensivas que ofereciam as montanhas tabulares. Portanto, ele transformou
uma dessas montanhas, o monte Bhuta -Bhute, em fortaleza para si próprio,
sua família e alguns companheiros, e fortificou os estreitos desfiladeiros, dando
acesso ao cume, com muros de pedras e postes de guarda situados em pontos
estratégicos
70
.
A partir dessa base, Moshoeshoe pôde lançar ataques contra alguns de seus
vizinhos, bem como defender os seus contra os tlookwa de Mma -Nthatisi,
vencido por ele na “batalha dos potes”. Em 1824, quando os tlookwa voltaram
e sitiaram demoradamente o monte Butha -Bhute, quase venceram a obstinada
resistência de Moshoeshoe e dos seus. No fim de suas forças e de suas vidas,
foram salvos pelo surgimento de um exército ngwane
71
, que atacou os tlookwa,
forçando -os a abandonarem o sítio. Mais tarde, durante este ano, Moshoeshoe
movimentou -se para o Sul com os seus, por uma região infestada de canibais
72
,
para se estabelecer em uma nova montanha que havia sido previamente mar-
cada por seus exploradores. Essa nova fortaleza de montanha, Thaba Bosiu,
encontrava -se acima do curso do Pequeno Caledon e era mais fácil de ser defen-
dida. Moshoeshoe, seu pai e alguns de seus companheiros próximos construíram
suas moradias no cume plano dessa montanha tabular de cerca de 500 hectares,
coberto de ervas de boa qualidade e amplamente provido de água devido às fon-
tes perenes
73
. Um trabalho considerável foi concluído para fortificar os diversos
acessos de Thaba Bosiu
74
.
Sentindo -se seguro em sua montanha quase impenetrável, Moshoshoe se viu
no dever de construir uma nova nação a partir do que restava dos vários povos
reduzidos em migalhas. Rapidamente ele derrotou None, o chefe dos bamant-
69 L. ompson, 1969b, p. 399.
70 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 100 -101.
71 Ibid., p. 101.
72 D. F. Ellenberger e J. MacGregor, 1912, p. 146.
73 L. ompson, 1969b, p. 399.
74 G. Tylden, 1950, p. 5; D. F. Ellenberger e J. MacGregor, 1912, p. 147.
132
África do século XIX à década de 1880
sane, que estava instalado nas terras ao redor de Thaba Bosiu. Nesse intervalo de
tempo, vários grupos sotho e nguni juntaram -se a Moshoeshoe e se colocaram
sob a sua proteção. Ele colocou alguns desses grupos sob a responsabilidade de
seus irmãos e, mais tarde, também sob a de seus filhos. No que concerne aos
grupos mais importantes como os phuting de Moorosi, os taung de Moletsane
e os rolong de Moroka, ele tolerou a sobrevivência do poder local exercido pelos
chefes tradicionais, com a condição de que eles reconhecessem sua autoridade
de chefe supremo.
Para afastar a ameaça de seus poderosos e perigosos vizinhos, Moshoshoe
recorreu à tática que consistia no cultivo da amizade, enviando -lhes um tributo.
Assim, ele se protegeu dos ataques dos ngwane -ama, pagando regularmente um
tributo a Matiwane. Na mesma época, enviou a Shaka um tributo de plumas
de grou -azul. Finalmente, os sotho começaram seriamente a se inquietar com
o risco de ver os ngwane ficarem indefinidamente na vizinhança. Devido à ins-
tigação de Moshoeshoe, os ngwane foram, pois, atacados por um exército zulu
em 1827 e rudemente prejudicados sem, entretanto, serem expulsos da região
de Trans -Orangia. A título de represálias, os ngwane de Matiwane atacaram
Moshoeshoe em seu bastião montanhoso de Tabha Bosiu em julho de 1827,
mas foram derrotados e rechaçados
75
. A derrota dos ngwane de Matiwane, que
eram muito temidos, propagou a reputação de Moshoeshoe ao longe. A maio-
ria dos ngwane se dirigiu para o atual Transkei e foi vencida em Mbolompo.
Novos grupos de povos dizimados afluíam junto aos pés de Moshoeshoe. Sua
vitória sobre os ngwane demonstrara a sabedoria da escolha de Thaba Bosiu
como capital.
Para acrescentar a sua reputação, Moshoeshoe lançou suas tropas em uma
operação conjunta com os taung de Moletsane contra os thembu, para se apossar
do gado desses últimos. Um vitorioso contra -ataque também permitiu a Mosho-
eshoe rechaçar uma invasão dos regimentos de Sikonyela e, no momento certo,
colocar um fim nas perseguições dos tlookwa. A capital que Moshoeshoe havia
edificado nas alturas teve a oportunidade de demonstrar sua potência quando
regimentos ndebele penetraram em Trans -Orangia para uma expedição puni-
tiva contra Moletsane e seus taung
76
. O exército ndebele penetrou no Lesoto e
tentou pegar de surpresa Thaba Bosiu, mas foi rechaçado e forçado a se retirar.
Como diplomata experiente, Moshoeshoe despachou, para o exército em reti-
rada, uma pequena tropa de animais de corte como presente e garantia de paz,
75 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 102.
76 E. Casalis, 1861, p. 22 -24; L. ompson, 1969b, p. 400.
133
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
declarando -se convencido de que era a fome que os impulsionara a atacar. Os
ndebele partiram cheios de respeito para com o grande rei da montanha e nunca
mais voltaram a ata-lo
77
. A notícia do sucesso da tática defensiva utilizada por
Moshoeshoe contra um inimigo tão temível quanto os ndebele se propagou em
todo o mundo sotho, aumentando imensamente o prestígio desse rei. Tal sucesso
também foi uma límpida ilustração de sua estratégia defensiva, consistindo em
combater, se necessário, seus poderosos inimigos e em se reconciliar com eles
sempre que possível
78
.
Depois disso, afastado o perigo ndebele, o reino de Moshoeshoe teve que
enfrentar um novo flagelo, sob a forma de uma série de ataques conduzidos
contra as aldeias sotho por bandos de cavaleiros armados. Estes bandidos griqua
e koranna tinham lançado seu primeiro ataque contra os shoto no início de 1830.
Seus assaltos se multiplicaram e tornaram -se cada vez mais alarmantes. O per-
pétuo estado de guerra na Trans -Orangia tinha enfraquecido e empobrecido a
maioria dos Estados da região. O reino de Moshoeshoe era uma notável exceção,
em particular pelo fato de os sotho possuírem numerosos rebanhos. Os saquea-
dores griqua e koranna lançavam -se sobre as aldeias e os rebanhos com a velo-
cidade de um relâmpago. Atacavam em pequenas esquadras, mas, deslocando -se
a cavalo, tinham uma grande mobilidade como vantagem. Também estavam
armados de mosquetes cujo alcance era maior do que qualquer espécie de arma
de arremesso. Bons atiradores, eles eram especialistas no ataque surpresa. Os
sotho responderam preparando contra -emboscadas e incursões noturnas contra
seus acampamentos, matando os homens e apossando -se dos cavalos e dos fuzis.
No final de certo tempo, os sotho começaram a criar uma raça de cavalo local,
o “pônei sotho”, e se transformaram em “uma nação de fuzileiros montados”
79
.
Este foi um grande passo na defesa da nação em vias de edificação.
Através de um griqua cristão, Adam Krotz, Moshoeshoe entrou em contato
com missionários brancos. Em 1833, ele enviou gado à missão de Philippolis
para comprar missionário”. Sua demanda coincidiu com a chegada de um
pequeno grupo de missionários franceses cujas esperanças em trabalhar entre os
hurutshe foram contrariadas pelas notícias concernentes aos repetidos ataques
conduzidos por Mzilikazi contra eles e outros povos tswana das cercanias
80
.
Estes missionários franceses foram persuadidos que era a Providência que os
77 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 103; L. ompson, 1969b, p. 400.
78 G. Tylden, 1950, p. 8 -10; L. ompson, 1969b, p. 400.
79 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 104.
80 Ibid.
134
África do século XIX à década de 1880
instruía a começar antes seu apostolado entre os sotho de Moshoeshoe. Esse os
instalou em Makhoarane, batizada pelos missionários de Morija. Pouco depois,
outras missões foram abertas em Beersheba e Mekuatling. A introdução de
missionários no reino sotho fazia parte de um plano defensivo. Esperava -se
que eles ajudassem Moshoeshoe a defender seu reino cercando -o dos melhores
conselheiros, ajudando -o a obter armas de fogo e a entrar em contato com
poderosos Estados brancos, com os quais Moshoeshoe pensava poder nutrir
ligações de amizade e aliança.
A técnica utilizada por Moshoeshoe para edificar uma nação não tardou a
dar frutos: vários grupos expulsos da região em que viviam pelos transtornos do
Mfecane aglomeraram -se a seu reino. Os tlaping, conduzidos por Lepui, vieram
estabelecer -se junto aos missionários franceses na missão de Béthulie. Em 1836,
os taung de Moletsane foram viver em Beersheba, antes de partirem novamente,
dois anos mais tarde, para Mekuatling; em 1833, os rolong de Moroka foram
autorizados a se estabelecer em Thaba Nchu com seus missionários wesleya-
nos. Em seguida, imigrantes thembu, fugindo dos rigores da sexta guerra cafre,
colocaram -se sob a proteção de Moshoeshoe.
A invasão dos bôeres no território ocupado pelos sotho, que progredia ao
longo dos anos 1830, atingiu o seu apogeu após 1836, ano do êxodo bôer, cha-
mado comumente de “Grande Trek”. Seguiram -se numerosos choques entre os
intrusos bôeres e os camponeses sotho desapossados. Certos conflitos estou-
raram em razão da posse da terra, outros foram causados pelas reivindicações
relativas ao gado roubado e pelos litígios por questões de trabalho. Diante da
frequência e da violência crescente desses conflitos, o Governo britânico se viu
obrigado a intervir, mas, após duas infrutíferas tentativas de resolução
81
, acabou
abandonando a batalha, e reconheceu uma república bôer independente no
coração do país de Moshoeshoe. Aumentando com uma afronta a injustiça
cometida, a Convenção de Bloemfontein, pela qual a Grã -Bretanha legitimava
a expropriação do território sotho em benefício dos bôeres, compreendia entre
suas disposições um artigo que interditava a venda de armas e de munições aos
sotho e a outros Estados negros, ao passo que os bôeres tinham toda liberdade
para se armar.
Nessas condições não é de se surpreender que o Estado livre de Orange
tenha se lançado em uma política estrangeira agressivamente expansionista que
81 As tentativas em questão foram o Sistema dos Tratados (Treaty System) de 1843 -1845, no quadro do
qual um tratado foi assinado com Moshoeshoe, em 1845, e a criação em 1848 de um enclave bôer sob
administração britânica denominado Orange River Sovereignty.
135
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
ameaçava acabar com toda a obra de Moshoeshoe e, até mesmo, aniquilar o reino
do Lesoto, em seu esforço frenético para abrir um acesso para o mar, até Port
Saint Johns
82
. Lesoto teve que conduzir duas guerras, em 1858 e 1865, contra
o Estado livre de Orange, antes que seus destinos passassem aos cuidados, em
nome do Governo britânico, do governador Wodehouse.
O requerimento feito por Moshoeshoe, diante à anexação de seu país pelo
governo de Sua Majestade britânica, era uma ação defensiva que visava pre-
servar a nação, que ele tanto trabalhara para criar, e impedir a incorporação de
seu reino à república bôer do Estado livre de Orange. Quando Moshoeshoe
morreu, em março de 1870, ele havia não só salvado seu reino da desintegração,
mas também, lançado as bases de um Estado independente que sobreviveu até
os nossos dias.
Os kololo
Os kololo eram fokeng do ramo patsa. Antes do desencadeamento do Mfe-
cane, eles viviam nos acessos do maciço de Kurutlele, na margem esquerda do
Vet (Tikoane), tendo por vizinhos os taung de Moletsane
83
. Um ataque súbito
lançado contra eles pelos tlookwa de Mma -Nthatisi e a captura da maior parte
de seus rebanhos transformaram tais fokeng patsa em desenraizados. Reduzidos
à miséria, eles procuraram fugir atravessando o Vaal e foram acrescidos por um
grupo mais abastado de fokeng, aumentando, assim, seu número
84
. Numerosas
pequenas comunidades sotho, fugindo das guerras dos hlubi e dos ngwane, com
efeito, atravessaram o Vaal e abandonaram a região de Trans -Orangia. Sebe-
twane, um príncipe da casa patsa, assumiu o comando do conjunto do grupo
fokeng.
Ele e seus companheiros erraram por muito tempo em busca de um novo
território e de gado para substituir seus rebanhos perdidos. Suas peregrinações
os conduziram ao Oeste, em direção ao país dos tlaping. Nessa região, encon-
traram dois outros grupos de desenraizados reduzidos à errância, os phuting e
os hlakoana. Após uma primeira escaramuça entre os fokeng e os phuting, os
três grupos decidiram reunir suas forças para lançar um ataque conjunto contra
82 G. Tylden, 1950; D. F. Ellenberger e J. MacGregor, 1912, p. 306.
83 E. W. Smith, 1956, p. 50.
84 Este grupo de fokeng outrora havia sido atacado pelos taung de Moletsane e despojado de seus rebanhos,
ver D. F. Ellenberger e J. McGregor, 1912.
136
África do século XIX à década de 1880
Dithakong, a capital tlaping, aos 26 de junho de 1823
85
. Robert Moffat, um
agente da London Missionary Society, que residia em Kuruman entre os tlaping,
obteve ajuda de capitães griqua fiéis aos missionários de Griquatown e de outros
chefes mestiços estabelecidos em aglomerações vizinhas. Uma força de uma
centena de cavaleiros armados de fuzis foi rapidamente reunida e enviada como
reforço para defender Dithakong.
No dia da batalha, os invasores sofreram uma grande derrota, foram recha-
çados, passando por perdas sangrentas e impelidos à fuga pelos fuzis dos cava-
leiros griqua
86
. Após a desastrosa derrota de Dithakong, a horda heterogênea
se dissociou. Os phuthing e os hlakoana se dirigiam para o Leste
87
, enquanto
Sebetwane conduzia seus partidários, rebatizados makololo, para o Norte, pelo
país dos rolong.
Nestas campanhas contra os diversos elementos do povo rolong, diz -se que
Sebetwane se aliou ao velho bandido, Moletsane, chefe dos taung
88
. Eles con-
duziram suas incursões até o país hurutshe, onde saquearam e destruíram a
capital Kaditshwene (Kureechane), dispersaram seus habitantes e assassinaram o
regente Diutlwileng. Em seguida, os dois aliados combateram os kgatla -kgafela
perto da confluência do Api e do Crocodile
89
; mas sua atividade belicosa nessa
região lhes valeu o ataque do exército de Mzilikazi, provavelmente porque eles
haviam invadido aquilo que os ndebele consideravam o seu próprio palco de
operações
90
. Então, Sebetwane e Molestane se separaram; este último foi para
o Sul, rumo a Matlwase (Makassie)
91
.
Nessas circunstâncias, os makololo lançaram -se ao ataque em Borithe contra
a fração mais importante do reino dividido dos kwena, na qual reinava Moru-
akgomo. (Os kwena estavam, de fato, enfraquecidos pelas lutas de sucessão que
os haviam dividido em três partes)
92
. Depois disso, Sebetwane se voltou para
os ngwaketse, formadores do mais poderoso Estado tswana da região. Ele os
venceu em Iosabanyana, em 1824, em uma batalha na qual foi morto o velho
guerreiro dos ngwaketse, o rei Makaba II. Sebetwane voltou -se, mais uma vez,
85 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 94; E. W. Smith, 1956, p. 52 -53.
86 R. Moat e M. Moat, 1951, p. 87 -88, 91 -97.
87 S. Broadbent, 1865, p. 128 -133.
88 J. D. Omer -Cooper, 1966.
89 Ibid., p. 116; D. F. Ellenberger e J. MacGregor, 1912, p. 308.
90 D. Livingstone, 1857, p. 85.
91 S. Broadbent, 1865, p. 128 -133.
92 A. Sillery, 1954.
137
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
aos kwena, derrotou os últimos núcleos de resistência constituídos pelas fortale-
zas do Dithejwane e capturou numerosas cabeças de gado. Estabeleceu -se, então,
em Dithubaruba, a antiga capital kwena, que, ao que parece, deveria ser uma
estadia, se não permanente, pelo menos prolongada. Mas, no ano seguinte, em
1826, um ataque surpresa executado com maestria pelo rei ngwaketse, Sebego,
filho do falecido rei Makaba II, venceu a resistência de Sebetwane, desalojou -o
das colinas do Dithejwane, onde numerosos mortos e quase todo o gado dos
kololo foram abandonados por Sebego
93
.
Mais uma vez, Sebetwane e seus kololo reduzidos à miséria tiveram que reto-
mar a estrada. Subindo ao Norte, chocaram -se, por duas vezes, com os ngwato
de Kgari, os venceram e roubaram quase todo o gado. Porém, querendo chegar
ao lago Ngami, perderam -se no deserto e deixaram uma grande parte do gado
dos ngwato
94
. Entretanto, uma vez que chegaram ao país tawana, próximo do
lago Ngami, não tiveram problemas em vencer os habitantes e desapossá -los de
seus rebanhos
95
.
Sebetwane, então, empreendeu a travessia do deserto do Kalahari para alcan-
çar a costa oeste. Vencido pelos rigores do deserto e pela resistência obstinada de
seus habitantes
96
, ele se viu obrigado a voltar para o lago Ngami. Impelido para
o Norte, novamente engajou o combate contra os tawana, alcançou a vitória,
apoderou -se da nova cidade e tomou posse do governo. Em seguida, os tawana
tiveram que retornar ao seu território de origem, perto do lago Ngami
97
. No
término de uma difícil viagem, eles se estabeleceram perto da confluência do
Zambeze e do Kafue. Logo que se instalaram, tiveram que rechaçar as incursões
de regimentos nguni, sendo que uma delas era comandada por Nqaba, o chefe
dos nguni -msene. As outras duas foram realizadas pelos ndebele de Mizilikazi,
que também estavam em busca de um porto seguro ao longo do Zambeze.
Sebetwane e seus kololo conseguiram rechaçar todas estas incursões, mas, a
voz da experiência os incitou a se estabelecerem mais a Oeste, no planalto do
Kafue. Tal como no caso dos kwena, no país dos tswana, o triunfo de Sebe-
twane sobre os lozi foi facilitado pela guerra civil que destruiu esse reino, após
um litígio de sucessão. Sebetwane se tornou o senhor da maior parte dos lozi,
93 A. G. Bain, 1949, p. 51 -71.
94 D. Livingstone, 1857, p. 85.
95 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 119; D. F. Ellenberger e J. MacGregor, 1912, p. 310.
96 D. Livingstone, 1857, p. 163 -173.
97 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 119.
138
África do século XIX à década de 1880
exceto de um pequeno grupo que fugiu, exilando -se sob o comando de alguns
membros da família real
98
.
Conseguindo se livrar da ameaça dos ndebele, Sebetwane se viu no dever de
consolidar seu novo reino. As proezas militares realizadas por ele ao rechaçar
as invasões dos nguni e, em particular, aquelas dos ndebele, aumentaram enor-
memente seu prestígio; aos olhos de numerosas comunidades da região, ele se
tornou o chefe que, a partir de então, merecia ser seguido.
O reinado de Sebetwane trouxe prosperidade ao Estado kololo. Ele liderou
com imaginação e vigor a tarefa de edificar uma unidade nacional, mostrando o
caminho da unidade ao escolher esposas entre os lozi e outros povos conquista-
dos e ao encorajar seus companheiros kololo mais próximos a fazerem o mesmo.
Sebetwane gostava de repetir que todos os súditos de seu reino eram filhos do
rei. Ele manteve em suas funções numerosos chefes lozi e substituiu os príncipes
que haviam fugido por funcionários lozi. Alguns chefes lozi foram cooptados
no conselho de Sebetwane, que os consultava regularmente
99
.
Sebetwane não impôs a iniciação por grupos etários nem aos lozi nem aos
outros povos conquistados por ele. Por outro lado, quis que a língua kololo fosse
falada em todo o reino. Respeitou o sistema político lozi e não o substituiu, antes,
permitiu -lhe, o quanto possível, coexistir com o novo sistema kololo até que os
dois, interpenetrando -se, acabassem fusionando. Não obstante, no plano político
e social, os kololo constituíam a aristocracia reinante. Sebetwane inaugurou um
sistema original de administração local, no qual as cidades foram reagrupa-
das em um quadro de províncias” ou, no mínimo, de “distritos”. Funcionários
kololo eram colocados à frente dessas unidades administrativas e encarregados,
entre outros deveres, da coleta do tributo junto aos súditos do rei. Esse último
apropriava -se de uma parte desse tributo e distribuía o restante. Em cada aldeia,
Sebetwane colocou pelo menos duas famílias kololo como senhores da terra
100
.
Contrariamente à tradição e à religião lozi, que exigiam que o rei vivesse
separado do povo, Sebetwane quis se colocar ao acesso de todos os seus súditos,
independente do status social, político ou econômico deles. Deste modo, ele não
parecia ser o pai de todo o seu povo, mas, além disso, mudou fundamental-
mente o caráter da monarquia lozi. Quando de sua morte, em julho de 1851,
a maioria de seus súditos, inclusive os lozi, chegaram a se considerar kololo.
Sekeletu sucedeu -o no trono.
98 Ibid., p. 121.
99 D. E. Needham, 1974.
100 Ibid.
139
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
Os membros da família real lozi que, como Masiku e Sipopa, haviam fugido,
subindo o rio Leambye no momento em que Sebetwane conquistara o Estado
lozi, limitavam -se a manter uma espécie de governo no exílio, fazendo o
máximo para manter a chama do “nacionalismo lozi. Entretanto, o implacável
jugo do reinado de Sekeletu, consequentemente, atiçou o fogo escondido sob
as cinzas, transformando -o logo em uma furiosa fogueira. A morte do rei dos
kololo, em 1864, e a crueldade ainda maior de seus sucessores deram início à
rebelião lozi. A fim de marchar contra os kololo, Sipopa liderou um exército,
cujas fileiras foram engrossadas por numerosos habitantes da planície e do pla-
nalto toka. Os kololo foram vencidos e sua dominação caiu por terra. Houve,
então, a restauração da dinastia lozi
101
.
Ao longo de suas viagens até Angola e de sua descida do Zambeze, Livings-
tone havia recrutado carregadores kololo. Quando, em 1860, novamente passou
pelo país natal deles, levou a maioria dos kololo consigo, exceto uma quinzena
que ele deixou no vale do Shire, onde estes se casaram e queriam construir sua
sede. Tais jovens possuíam fuzis, também tinham adquirido uma grande expe-
riência nos métodos de organização militar e política dos kololo e, em geral,
mostravam -se muito orgulhosos dos êxitos do Estado kololo. Organizaram os
povos manganja do vale do Shire em várias aldeias cercadas de paliçadas, das
quais eles se instituíram os chefes. Nesta época, os manganja eram vítimas de
razias cruéis e devastadoras da parte dos mercadores de escravos. Estas chefias
kololo defenderam os manganja contra os traficantes de escravos nguni, yao e
portugueses. Mais tarde, as aldeias foram agrupadas em dois reinos cujos sobe-
ranos eram Molokwa e Kasisi, os mais capazes desses chefes, que nomearam
outros chefes kololo nos pontos estratégicos do vale, acolheram bem a missão
de Livingstone e cooperaram com ela. Os kololo acabaram mantendo relações
cordiais com os yao, mas os nguni continuaram criando -lhes dificuldades. Estes
chefes kololo do vale do Shire conservaram sua influência, apesar dos violentos
assédios dos nguni, até o momento em que ocorreu a partilha colonial, nos anos
1890.
Os Estados nguni trans ‑zambezianos
Após a derrota dos ndwandwe na batalha de Mhlatuze, os cacos desta con-
federação foram dispersos em todas as direções. Zwangendaba e Nqaba (Nxaba)
101 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 124.
140
África do século XIX à década de 1880
conduziram os nguni que os seguiam ao Sul de Moçambique, não longe da
baía de Delagoa, onde Soshangane os havia precedido e estava estabelecendo o
seu reino. No final de uma luta a três pela supremacia, Soshangane, sucessiva-
mente, tomou a frente de Zwangendaba e de Nqaba, forçando -os a abandonar a
região. Depois, ele consolidou a organização de seu reino à custa dos autóctones
tsonga.
Zwangenbaba, seguido de seus nguni -jere, atravessou o Limpopo e avançou
pelo país rozwi, atacando a maioria dos Estados shona da região e destruindo,
pelo caminho, o Império Changamire. Perto da atual localidade de Bulawayo,
em Thaba Zika Mambo, os regimentos de Zwangendaba atacaram o exército
rozwi, os desafiaram ao combate e mataram o último dos mambo, Chirisa-
mhuru. Então, Zwangendaba levou consigo seus regimentos para o outro lado
Zambeze, no país Nsenga. Aos 20 de novembro de 1835, atravessaram o rio
perto do Zumbo
102
.
Progredindo para o Norte, a Oeste do lago Malaui, os nguni de Zwan-
gendaba lançaram -se em numerosas batalhas contra as comunidades chewa e
tumbuka, fazendo muitos prisioneiros e detendo -se alguns anos aqui e ali, antes
de partirem novamente. Prosseguiram sua marcha rumo ao Norte, até atingirem
Mapupo, no planalto de Fipa, situado entre a extremidade norte do lago Malaui
e a ponta sul do lago Tanganica
103
. Os efetivos de sua tropa encontravam -se
enormemente reforçados pela junção dos numerosos recrutas, fornecidos por
todos aqueles que foram vencidos durante sua longa marcha.
Após a morte de Zwangendaba, por volta de 1848, seus nguni se dividiram
em várias facções que se lançaram, cada uma por si, em campanhas de invasão
dirigidas contra vários Estados da região. Seu palco de operações se estendia do
Norte até as ribanceiras meridionais do Lago Vitória e do Leste até o Oceano
Índico. A partir de Moçambique, Nqaba conduziu seus nguni -msene à região
correspondente ao atual Zimbábue, onde, a exemplo dos nguni -jere que os
haviam precedido, semearam a confusão e a desordem, guerreando sucessiva-
mente contra diversos grupos da região. Uma breve escaramuça opôs os jere de
Zwengendaba aos msene de Nqaba. Esses últimos levaram vantagem, após o
que, partiram para o Oeste, rumo ao país dos lozi. Aí, lançaram -se na batalha
contra os kololo de Sebetwane, mas foram vencidos, dispersados e seu chefe foi
morto
104
.
102 R. Gray, 1965; L. ompson, 1969a, p. 347; D. R. Hunt, 1931, p. 284.
103 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 123 -124.
104 E. W. Smith, 1956, p. 71.
141
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
Os nguni -maseko, sob o comando de seu chefe Ngwane, também emigra-
ram de Moçambique para o Zimbábue, atravessando o Zambeze, entre Sena
e Tete, em 1839. Atravessando o Sul do Malaui e contornando a extremidade
meridional do lago Malaui, os maseko penetraram o sudeste tanzaniano. Foi
aí, no distrito de Songea, que eles fundaram um poderoso Estado dirigido por
Mputa, o sucessor de Ngwane
105
.
Conclusão
Retrospectivamente, o Mfecane aparece, de forma clara, como o resultado de
mudanças sociopolíticas radicais intervindas na maioria dos Estados nguni do
Norte. Ele foi ativado pela conjunção de uma explosão demográfica e de uma
carestia de terras, bem como pelas mutações fitoclimáticas que romperam o
delicado equilíbrio ecológico existente entre os pastos de sweetveld e de sourveld,
aliás, aos quais uma população humana e de rebanhos bovinos em constante
crescimento impunha uma carga crescente. Parece que essa situação crítica foi
exacerbada pela seca Madlathule que certamente levou ao seu apogeu a luta
intensa na qual se lançaram os habitantes da região por recursos em rápida dimi-
nuição. Além disso, certos índices parecem indicar que o comércio recente das
mercadorias importadas pela baía de Delagoa, na conjectura, desempenhou um
papel suscitando rivalidades que, talvez, tiveram um peso maior do que aquele
até então admitido pelos historiadores.
o obstante, é evidente que as grandes mudanças que perturbaram, de forma
tão eficaz, a organização política e militar destes Estados nguni procederam de
um dinamismo estritamente interno. A revolução zulu não foi, certamente, o
resultado da transplantação ou da adaptação em bloco a condições locais de
ideias emprestadas do exterior. Mas os Estados zulus da geração seguinte
Swazi, Gaza, Ndebele e os diversos reinos nguni apresentavam, todos eles,
as mesmas características básicas, aquelas da organizão revolucionária do
Estado zulu, a saber, uma formidável máquina de guerra baseada no sistema
dos regimentos constituídos por faixas etárias. Em todos estes novos Estados, o
sistema regimentar tornou -se a instituição central, ou principal, utilizada para
unir entidades étnicas heterogêneas.
Os reinos de tipo sotho, como o de Moshoeshoe e, em menor grau, o de
Sebetwane, mantendo a circuncisão por faixas etárias no seio dos grupos funda-
105 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 73.
142
África do século XIX à década de 1880
dores ou de seu núcleo original, não expandiram o sistema e não o impuseram
às comunidades recentemente incorporadas, visando cimentar a unidade do
Estado -nação. Eles se dedicaram mais a procedimentos, como os casamentos
diplomáticos ou a um enquadramento de tipo proconsular (assegurado seja pelos
chefes tradicionais dos Estados incorporados, seja por membros das famílias
reais conquistadoras), que permitia manter uma autonomia local considerável
e incorporar, em grande medida, os mecanismos de consulta, tanto individual e
direto quanto através de um conselho.
A revolução do Mfecane deu à luz a novos Estados no Sul, no centro e no
Leste da África. O reino zulu emergiu das cinzas das confederações mthethwa
e ndwandwe, bem como dos destroços de numerosas chefias nguni pré -Mfecane
da região Zululândia -Natal. O reino zulu sobrevive hoje como base mutilada
e consideravelmente reduzida de um dos bantustões da África do Sul. Os rei-
nos da Suazilândia e do Lesoto, oriundos das entidades pré -coloniais criadas
respectivamente por Sobhuza e Moshoeshoe, têm sobrevivido até os nossos
dias. Ilhotas de salubridade em um mar de racismo sistemático, hoje eles são
membros respeitados da comunidade internacional. O reino ndebele de Mzili-
kazi subsistiu apenas por um espaço de meio século, antes de ser tragado pela
onda de colonização que, através das companhias de carta britânicas, inundou
regiões inteiras da África Austral e Oriental, em um poderoso movimento que
constituiu o apogeu do colonialismo europeu. O reino kololo de Sebetwane
revelou -se não ser muito mais do que uma criação pessoal, que se desintegrou
rapidamente nas mãos de sucessores de menor envergadura. Ele não sobreviveu
muito tempo após a morte de seu fundador.
Se o Mfecane fez surgir novos Estados, também ocasionou o desapareci-
mento de uma multidão de pequenos reinos; temporariamente, apenas para
alguns deles (como o Estado tawana de Moremi I e o reino luyi (lozi)); para
sempre, para outros como os reinos hlubi, ngwane, mthethwa, ndwandwe, zizi
bhele, e ainda outros. Estados e chefias foram reduzidos a migalhas e enfra-
quecidos pelo Mfecane, de forma considerável. Foi esse, em particular, o caso
dos Estados tswana. Um pequeno número de Estados localizados no coração
da zona de turbulência do Mfecane saiu incólume da tormenta e, poderíamos
dizer, até mesmo reforçados, como, por exemplo, os dos pedi, dos tlaping e dos
tlharo.
Parecia possível dividir os Estados do Mfecane em várias categorias. Houve
os Estados no militarismo ofensivo de caráter agressivo, representados pelos rei-
nos zulus, ndebele e gaza. Os diversos Estados nguni da região trans -zambeziana
podem igualmente ser alocados nessa categoria. Tais Estados, que utilizavam o
143
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
aparelho militar para conquistar e dominar os outros, tendiam também a fazer
uso da espada ou do fuzil para garantir a fidelidade dos Estados dominados.
Sua política expansionista ou imperialista exigia que eles mantivessem em alerta
exércitos profissionais, ou semiprofissionais, acantonados em casernas” ou aldeias
de guarnição. Os regimentos deviam partir regularmente em expedições para
coletar o tributo e as taxas em regiões periféricas do reino. Esses exércitos eram
formados a partir de regimentos constituídos por faixas etárias que, no caso dos
zulus e dos ndebele, representavam o principal instrumento de integração dos
jovens dos povos dominados. O Estado gaza, por sua vez, incorporava também
jovens dos territórios conquistados, mas, em regimentos distintos daqueles dos
jovens nguni, mesmo se seus comandantes fossem recrutados entre o grupo dos
conquistadores. A instituição regimentar não contribuiu, pois, no Estado gaza,
com a unificação nacional. Em razão da flagrante discriminação da qual eles
eram vítimas, os ba -Tshangane (nome dado aos tsonga dominados) não foram
assimilados no Estado gaza. Este fator, mais do que qualquer outro, explica a
fragilidade das conquistas sobre as quais repousava o Estado gaza e permite -nos
compreender como ele desmoronou sob os golpes dos portugueses. Os Esta-
dos formados de territórios conquistados tendiam a ter mais administradores
plebeus e militares do que membros das famílias reais. No Estado ndebele, os
comandantes de regimento não só eram responsáveis por esse último, mas, com
uma das esposas de Mzilikazi, representavam o rei em sua cidade guarnição.
Entre os Estados do Mfecane que edificaram nações de caráter defensivo,
podemos citar os reinos do Lesoto, dos swazi e, em certa medida, dos kololo.
Nesses Estados, a iniciação por grupos etários era praticada, mas não explorada
como instrumento de incorporação dos jovens das comunidades conquista-
das. Esses Estados não eram fundamentalmente militaristas ou expansionistas.
Quando empreendiam campanhas militares, o faziam seja para se defende-
rem, seja impelidos pela necessidade de definir ou delimitar suas fronteiras
geográficas, ou para obterem gado. Os fundadores destes Estados atrelaram a
maior importância ao estabelecimento de posições sólidas e fáceis para defender.
Moshoeshoe construiu sua capital sobre uma montanha tabular (ghobosheane),
Sobhuza estabeleceu a sua em uma região montanhosa inacessível e Sebetwane
escolheu a pantanosa planície do Kafue, com suas perigosas ilhas, cuja aproxi-
mação se revelou muito desastrosa para os inimigos não advertidos.
Estes reinos defensivos não possuíam exércitos sob alerta. A iniciação das
faixas etárias servia para formar unidades militares em tempos de guerra. Os
reis não hesitavam em esposar mulheres dentre seus súditos, a fim de forjar
ligações mais estreitas, em particular, com as famílias predominantes, tanto no
144
África do século XIX à década de 1880
grupo fundador quanto nas comunidades recentemente incorporadas. Cabeças
de gado eram emprestadas (sistema mafisa) aos súditos, ou até mesmo, a chefias
inteiras que se desejava favorecer. Para administrar a suscetibilidade dos elemen-
tos heterogêneos que o compunham, o Estado os consultava frequentemente
e concedia -lhes uma larga margem de autonomia local. Tais Estados também
atraíam missionários e fizeram grandes esforços para obterem fuzis e munições
para fins de defesa. Mesmo os Estados conquistadores acabaram admitindo
missionários entre eles.
Em todos os Estados do Mfecane, a linha de parentesco era a matriz social
sobre a qual se forjava, definitivamente, o Estado. Da mesma forma ocorria com
a instituição da realeza. Tanto os Estados conquistadores quanto os defensivos
exploravam a cerimônia das primícias como um ritual que servia para reforçar
a monarquia. Mas, durante o Mfecane, a evolução do sistema estatal africano
reduziu progressivamente a importância das ligações de parentesco em benefício
das noções de serviço, funcionalismo e territorialidade. Certos Estados, como
aquele dos kololo, fizeram com que uma mesma língua fosse falada no con-
junto do reino; outros, como o Estado ndebele, não impuseram a língua, mas a
faculdade de expressão na língua dos chefes podia ser a chave para o acesso ao
poder. Mesmo depois que o reino kololo oficialmente deixou de existir, a língua
e a cultura dos kololo permaneceram. Deste modo, no Estado ndebele muitos
kalanga e shona tornaram -se ndebele aculturados.
É preciso notar que as numerosas guerras do período do Mfecane reduziram
consideravelmente o número das populações africanas, em particular, nas regiões
de Natal e do Estado livre de Orange. De um lado, o Mfecane enfraqueceu
muitos Estados africanos e reduziu sua capacidade de enfrentar ou resistir a
um segundo Mfecane ainda mais destruidor que o primeiro, aquele que os
fazendeiros bôeres desencadeariam, a partir de então, invadindo impunemente
os territórios africanos a fim de se apossarem não das terras, mas também
do gado e das crianças.
Ademais, o Mfecane teve por efeito uma redistribuição das populações na
África Austral. Provocou fortes concentrações em certos lugares, deixando
espaços vazios” em outros. Também engendrou uma plêiade de notáveis chefes,
tais como Shaka, Mzilikazi, Sobhuza, Zwangendaba e Sebetwane. Como bem
observou Omer -Cooper, tais homens
provaram não coragem, qualidades de chefe e talento militar, mas ainda
uma capacidade de pensamento e de ação originais, de aptidão a imaginar
ou adotar instituições e técnicas novas a fim de resolver problemas novos;
145
O Mfecane e a emergência de novos Estados africanos
qualidades que lhes conferiram uma estatura de homens de Estado, capazes
de ir além de uma estreita visão tribal. Eles provaram que os bantos não se
furtavam às circunstâncias e que a educação tribal tradicional tinha um efeito
muito menos paralisante no desenvolvimento da personalidade humana do
que alguns têm suposto
106
.
106 Ibid., p. 180.
C A P Í T U L O 6
147
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
O progresso da nação zulu sob a liderança de Shaka, durante o primeiro
quarto do século XIX, foi seguido de grandes guerras e de turbulências na África
do Sul. Os povos mais afetados foram os nguni e os grupos de língua sotho,
os quais ainda chamam este período de destruição de mfecane (esmagamento
ou fragmentação, em nguni) ou lifaqane/difaqane (em sotho)
1
. Este movimento
expandiu -se rapidamente na região até a margem meridional do Lago Vitória.
A importância de tal movimento para a história posterior da África do Sul
pode ser comparada à influência, na história do Sudão Ocidental durante o
mesmo período, da difusão do espírito reformista entre os fulbe e das jihad
que a acompanharam. Como as jihad fulbe, o Mfecane transformou as mais
meridionais das sociedades africanas como nenhum outro movimento o fizera
desde o início da idade do ferro. Este capítulo analisará qual foi o seu impacto
sobre a colônia do Cabo
2
.
A zona de atuação original do Mfecane não foi no Cabo, mas no país dos
nguni, no atual Natal. É necessário notar que, embora o início do Mfecane pareça
ter -se dado por um acontecimento súbito, a fermentação que provocou a sua eclo-
o constituiu um longo processo de incubação de várias gerações. Este processo
1 W. G. A. Mears, 1970, p. 5.
2 Eis os autores que estudaram o Mfecane em seu conjunto: J. D. Omer -Cooper, 1966, 1969; L. ompson,
1969b; W. F. Lye, 1967.
O impacto do Mfecane sobre
a colônia do Cabo
Elleck K. Mashingaidze
148
África do século XIX à década de 1880
implicou, também, na transformação dos nguni – povos agrícolas e pastoris – de
pequenas comunidades clânicas em Estados mais amplos. A aparição destes Esta-
dos parece ter sido o resultado da necessidade de enfrentar a cancia crescente de
pastagens e de terras. Ao final do século XVIII, este processo levou à constituição
de inúmeras chefias ndwandwe, ngwane, mthethwa e outros, lideradas por pode-
rosos chefes militares. A fim de proteger seus povos e de defender seus interesses,
estes chefes estenderam o seu controle sobre os mais fracos dos territórios vizi-
nhos. Além disso, por volta de 1780, as pequenas chefias dificilmente conseguiam
manter a sua independência e uma identidade distinta.
A colônia do Cabo nas vésperas do Mfecane
Antes de analisar a situação da colônia do Cabo na véspera do Mfecane, é
preciso defini -la, apresentar um quadro sucinto da distribuição da sua população
e das relações entre os diferentes grupos e dizer, por fim, uma palavra sobre sua
situação econômica.
Definir a colônia do Cabo é difícil na medida em que as suas fronteiras nunca
foram fixas. A fronteira oriental, em particular, era conhecida por ser móvel e
incerta
3
. Por exemplo, até 1771 era formada, grosso modo, pelo rio Gamtoos e
oito anos mais tarde, 1779, havia mudado para o rio Great Fish, sendo ali esta-
belecida às vésperas do Mfecane. O Great Fish constituía, deste modo, a linha
de separação entre os brancos ao Sul e a Oeste e os negros a Leste e ao Norte. A
maioria dos africanos era chamada coletivamente pelo nome de nguni do Cabo
4
,
ou às vezes pelo nome de nguni do Sul
5
e habitava as terras situadas entre o
Keiskamma e o Umzimkulu. Os nguni do Cabo dividiam -se em três categorias:
os xhosa, os tembu e os mpondo
6
. A classificação mais ampla de Derricourt
inclui, entre os grupos principais, os mpondomisi e os bomvana
7
. Os vizinhos
dos nguni do Cabo eram os khoisan os quais viviam a Oeste do rio Kei.
Neste capítulo, a colônia do Cabo será definida de maneira a incluir o terri-
tório habitado pelos brancos, bem como aquele habitado pelos africanos a Oeste
3 Foi descrita alhures como a “fronteira móvel”. Ver W. M. Freund, 1974.
4 J. J. Van Warmelo, 1935, p. 60.
5 Os nomes nguni do Cabo” e “nguni do Sul” são de fato geográcos e aplicam -se aos povos da língua
nguni que viviam ao Sul do Umzimkulu. Os povos da língua nguni e habitantes ao Norte deste curso
d’água são chamados de “nguni de Natal” ou simplesmente de “nguni do Norte”.
6 J. J. Van Warmelo, 1935, p. 60.
7 R. Derricourt, 1974.
149
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
do rio Great Fish até o Umzimkulu. Esta definição se justifica pelas estruturas
socioeconômicas e pela natureza das novas relações que se instauraram após o
Mfecane e que são, nós o veremos, a sua consequência.
No conjunto, as relações entre os diversos povos que falam o nguni eram
relativamente pacíficas. Podemos dizer o mesmo para aquela entre os nguni e
os seus vizinhos khoisan. Isto não significa, contudo, que não houvesse conflitos
entre os dois grupos ou entre os próprios nguni. Por exemplo, os embates entre
nguni e khoisan eram frequentes, em particular na zona compreendida entre o
curso superior do Kei e o Amathole, no Noroeste do Transkei
8
. Estes conflitos
eram geralmente provocados pelos ataques dos San contra o rebanho, ataques
que levavam a expedições de represálias dos nguni. Todavia, estes conflitos
seja entre os nguni e os khoisan, seja entre as chefias nguni eram geralmente
localizados e muito confinados.
O que se chamava de fronteira oriental do Cabo constituía, contudo, uma
zona de tensão entre negros e brancos, chegando com frequência a conflitos
abertos devidos a vários fatores. Em primeiro lugar, é necessário lembrar que,
séculos, as comunidades que falavam o nguni moveram -se lentamente para
o Sul do continente a partir de Natal. Do outro lado, a expansão branca na
África do Sul que seguiu a direção oposta começara em 1652 quando Jan van
Riebeeck fundou uma colônia holandesa no Cabo. Os dois movimentos deve-
riam fatalmente se colidir em algum momento. Eles se opuseram naquilo que a
historiografia sul -africana chama “as guerras cafres”.
Em segundo lugar, o Great Fish, ainda que reconhecido pelo governo do
Cabo como a linha de fronteira, era frequentemente cruzado por aqueles que
ele deveria separar e manter distanciados. Os colonos e, mais especialmente, os
pecuaristas violavam este limite na busca de mais pastagens. Quanto aos africa-
nos, eles nunca tiveram a intenção de reconhecer esta fronteira e, menos ainda,
de respeitá -la, que, quando foi instituída pelo governo do Cabo, inúmeras
comunidades xhosa estavam estabelecidas a Oeste do Great Fish. A região
fronteira era, assim, considerada por inúmeros xhosa como parte integrante
de suas terras ancestrais, das quais eles haviam sido privados pela expansão
contínua da colônia. Esta é a razão pela qual rios dentre eles continuaram a
pastorear e levar o rebanho a beber água ao longo do Great Fish, desafiando,
assim, as autoridades do Cabo. Os caçadores xhosa caçavam sempre a Oeste
do rio.
8 Ibid., p. 49.
150
África do século XIX à década de 1880
A terceira razão pela qual a linha de fronteira ao Leste permanecia uma zona
de tensão e de violência entre brancos e negros era o fato de os dois grupos
étnicos perseguirem atividades econômicas semelhantes, como a pecuária e a
agricultura, as quais constituíam as atividades essenciais de cada lado da fron-
teira. A isto se juntou a existência de sistemas fundiários totalmente opostos.
Enfim, no século XVIII e no início do século XIX, a expansão para o sudoeste
dos nguni foi provocada por um dilema real cuja origem deve ser procurada entre
os acontecimentos que se produziram no Norte do seu território. Estes aconteci-
mentos impediram os nguni do Cabo de se dirigirem rumo ao Nordeste.
Na medida em que os xhosa formavam a vanguarda da expansão dos nguni do
Cabo para o Oeste e o Sul, eles pagaram o preço da guerra entre brancos e negros
na fronteira. Esta é a razão pela qual este grupo não é somente aquele sobre o
qual mais se tenha escrito, mas permanece também o grupo de nguni do Cabo o
mais vilipendiado e o mais odiado na historiografia colonial desta região
9
.
Como dissemos, os xhosa não reconheciam o Great Fish como fronteira
e o cruzavam para pastorear as suas manadas. Estas violações” fronteiriças
eram, às vezes, acompanhadas de roubos de gado, aos quais os colonos do Cabo
replicavam frequentemente com ataques de represália nas terras do xhosa sob o
pretexto de recuperar os seus bens. Era, entretanto, frequente que as atividades
dos comandos ultrapassassem os objetivos fixados.
É portanto evidente que as relações entre negros e brancos na região não
eram pacíficas às vésperas do Mfecane. Nós analisaremos neste contexto a situ-
ação da colônia às vésperas deste movimento.
A situação e as perspectivas econômicas
Quando a colônia do Cabo, durante os anos de 1822 -1823, soube da exis-
tência das turbulências em Natal, no vale do Caledon e no Highveld, inúmeros
colonos só se encontravam no máximo dois anos. Entre eles se encontra-
vam ingleses levados para o Cabo em 1820 para aumentarem uma população
ainda esparsa e essencialmente holandesa. A maioria destes colonos aproxi-
madamente 5.000 tinha sido enviada ao distrito de Albany onde exploravam
quase 100 acres cada. Ainda que talvez não intencional, um dos objetivos prin-
9 De fato, as guerras da fronteira oriental do Cabo são geralmente chamadas as “guerras cafres” nos livros
de história sul -africanos. Os xhosa eram considerados “selvagens que só temiam a força e o castigo (C.
W. De Kiewiet, 1968, p. 51). Os xhosa eram considerados incorrigíveis ladrões de rebanho que deviam
ser combatidos (E. A. Walker, 1957, p. 116 -119).
151
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
cipais do povoamento de Albany, para o governador Somerset, era fazer com
que os colonos participassem da defesa e da estabilização da fronteira oriental
de triste reputação.
As perspectivas econômicas da colônia do Cabo nunca tinham sido muito
brilhantes. A perigosa situação militar da fronteira somente agravava os pro-
blemas econômicos. A situação dos colonos em 1820 era pior do que aquela
dos fazendeiros holandeses dos antigos distritos da colônia. A agricultura, tida
como principal atividade econômica de Albany e fonte essencial de subsistência,
apresentava, em 1823, todos os sinais de desmoronamento. Em primeiro lugar,
vários fazendeiros estavam pouco qualificados para o trabalho ao qual tinham
sido destinados na África. Reclamava -se comumente do pequeno tamanho dos
lotes de terra. Depois, em 1822, houve inundações que destruíram todas as
lavouras. Em 1823, inúmeros fazendeiros haviam abandonado as suas terras e os
que haviam permanecido tinham perdido o entusiasmo e estavam desanimados.
As poucas poupanças trazidas da Inglaterra diminuíam rapidamente; inúmeros
fazendeiros estavam pesadamente endividados com o governo ou beiravam
a miséria. O alcoolismo aumentava rapidamente, que mais de um homem
arruinado tentava esquecer os seus dissabores na bebida
10
.
Em 1823, somente restava um terço dos fazendeiros de Albany em suas
terras. Eles tinham que enfrentar problemas imensos e o futuro agrícola do dis-
trito parecia muito incerto. Como já assinalamos, os outros fazendeiros tinham
abandonado suas terras: alguns tinham optado por outras formas de emprego
nos centros urbanos; outros se tornaram comerciantes; e a maioria se tornou
pecuarista.
Os fazendeiros dos assentamentos mais antigos, assim como os Albany,
enfrentavam um problema ainda mais grave: a ausência de mão de obra. Mesmo
a este respeito, a situação dos colonos em 1820 era pior do que aquela dos
colonos holandeses. Ao passo que estes últimos podiam empregar os xhosa, os
khoisan, ou até escravos, os colonos de 1820 não tinham o direito de recorre-
rem a este tipo de mão de obra
11
. Os fazendeiros do “Anglostão”, como Buttler
chama o distrito de Albany, deveriam empregar a mão de obra livre, vinda da
Grã -Bretanha. Mas a maioria dos trabalhadores agrícolas enviados da Inglaterra
fugiu de seus senhores ao chegar à África do Sul para os centros urbanos onde
as perspectivas lhes pareciam melhores. Esforços desesperados foram feitos para
incentivar novamente a imigração para a colônia. Entre os que responderam a
10 G. Butler, 1974, p. 176; E. A. Walker, 1957, p. 157.
11 E. A. Walker, 1957, p. 157.
152
África do século XIX à década de 1880
 . Bonecas à venda no Cabo no início do século XIX, representando um homem e uma mulher
san. [Fonte: J. Vansina, Art history in Africa, 1984, Londres, Longman. © Staatl. Museum für Völkerkunde,
Munique.]
153
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
este apelo em sua maioria, irlandeses –, somente alguns poucos punhados deles
chegaram aos distritos da fronteira oriental. Muitos compraram a sua liberdade
ao chegarem ao Cabo e partiram para fazer carreira em outros lugares. Nestas
condições, os novos colonos foram obrigados a contar consigo mesmos, suas
mulheres e filhos para realizar as tarefas mais baixas”, normalmente executadas
unicamente pelos trabalhadores agrícolas e escravos
12
. Todas estas dificuldades
foram ainda agravadas pela obrigação dos fazendeiros e dos homens mais vigo-
rosos de se dirigirem para a fronteira oriental a fim de defendê -la.
Para diminuir as dificuldades financeiras dos colonos em penúria, algumas
pessoas criaram uma organização destinada a coletar fundos. Esta Sociedade
para o alívio dos colonos em penúria coletou efetivamente recursos, de modo
que, em 1824 ela pôde ajudar alguns fazendeiros e fornecer -lhes o capital, do
qual tinham muita necessidade. Mas nenhuma ajuda financeira poderia eliminar
as duas dificuldades crônicas que oprimiam a colônia: a ausência de mão de
obra e a situação móvel da fronteira oriental. Estes problemas ainda não haviam
sido resolvidos quando, cerca de 1822 -1823, os efeitos do Mfecane atingiram a
colônia do Cabo através de Orange e Natal.
O Mfecane
Os detalhes dos acontecimentos ocorridos no Norte do território nguni,
no vale do Caledon e no Highveld, não nos dizem respeito aqui.
13
Queremos
somente analisar como estes acontecimentos acabaram por afetar a região nguni
do Cabo e a própria colônia. Tentaremos precisar quais foram as novas formas
sociais, as novas relações entre os diferentes grupos da região e as novas formas
socioeconômicas que o Mfecane suscitou.
Como já vimos, o movimento se iniciou em Natal, entre os grupos do Norte
que falavam a língua nguni. As causas exatas do Mfecane não são conheci-
das. Parece, todavia, que a população desta região aumentara muito em poucas
gerações. Esta tendência tinha levado a uma superpopulação, tendo em vista
os métodos agrícolas à época. Como resposta a este problema, novas formas
de organização política foram implementadas. Nas últimas décadas do século
XVIII, um certo número de chefias poderosas apareceu as mais conhecidas
foram as dos ndwandwe, ngwane e mthethwa. Nas duas primeiras décadas do
12 G. Butler, 1974, p. 178; G. M. eal, 1891, p. 238 -239.
13 Estes detalhes são o tema do capítulo 5 deste volume. Ver também a nota 2 neste capítulo.
154
África do século XIX à década de 1880
século XIX, todas estas chefias – inclusive a dos zulus tinham se transformado
em poderosos Estados militares liderados por chefes semimonárquicos: respec-
tivamente, Zwide, Sobhuza, Dingiswayo e Shaka.
Se este novo sistema de estado não tivesse sido acompanhado de uma revo-
lução dos métodos e das estratégias militares, a tensão e os violentos conflitos
abertos que caracterizavam as relações entre os Estados meridionais nguni a partir
de cerca de 1815 certamente não teriam conduzido a guerras de grande escala. É
possível também que, sem a eficácia da estratégia militar empregada mais tarde
pelos diversos exércitos nguni do Norte – e, em particular, os zulus – os aconteci-
mentos não tivessem afetado as regiões situadas além das terras nguni do Norte.
Pelo que se sabe, o primeiro grande conflito aberto começou em 1815 entre
os ndwandwe de Zwide e os ngwane de Sobhuza. Os ngwane foram vencidos
e obrigados a cruzar o Pongolo, região onde eles estabeleceram as fronteiras da
nação swazi. De acordo com J. D. Omer -Cooper, este conflito marcou o início
do Mfecane. Com a partida de Sobhuza, o conflito entre Zwide e Dingiswayo
tornou -se quase inevitável. De fato, no fim de 1817, o conflito entre os ndwandwe
e os mthethwar teve lugar. Dingiswayo, o rei dos mthethwa foi morto durante
esta guerra, deixando o seu povo desmoralizado, disperso e privado de chefe.
Se uma nova potência não tivesse surgido sob o patrocínio de Dingiswayo,
após a queda deste, os ndwandwe teriam obtido uma vitória total e o domí-
nio de todo o terririo situado entre o Tugela e o Pongolo. Tratava -se de
Shaka, o filho de Senzangakhona, o chefe de um grupo zulu, até então muito
insignificante. Em sua juventude, Shaka formara -se em um dos regimentos
mthethwa de Dingiswayo. Gras a sua inteligência e a sua capacidade de ini-
ciativa, ele foi rapidamente promovido aos altos escaes do exército. Quando
do conflito entre os Ndwandwe e os Mthethwa, Shaka não era somente um
oficial superior do exército mthethwa: ele sucedera a seu pai como chefe de
um pequeno grupo zulu até então colocado sob o comando dos mthethwa.
Quando Zwide matou Disginswayo, Shaka e seus zulus constituíram o único
centro de resistência ria contra ele e os ndwandwe. Shaka se preparou para
um confronto decisivo com Zwide fazendo passar para o seu controle diversas
chefias, entre elas os mthetwa desmoralizados. Ele aperfeiçoou também os
seus novos métodos de guerra e arrolou para o seu exército todos os jovens
com idade para a escola de inicião. Esta foi abolida e substituída por centros
de treinamento para a juventude.
A famosa guerra entre os ndwandwe de Zwide e Shaka aconteceu em 1818 e
Zwide foi completamente derrotado após uma série de campanhas. J. D. Omer-
-Cooper muito justamente descreveu a derrota dos ndwandwe como um marco
155
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
na carreira de Shaka e na história do Mfecane
14
. Sem encontrar oposição séria
nas terras nguni do Norte, Shaka prosseguiu as suas campanhas para edificar seu
Estado militar zulu. Seu principal meio de expansão foi a conquista e a integra-
ção das chefias vencidas à nação zulu. Inúmeras chefias menores foram também
subjugadas. Mas um grupo ainda maior se formou para evitar o domínio de Shaka
fugindo da região de Natal. Nos anos que se seguiram à morte de Zwide, em
1818, numerosas chefias vencidas e dispersas, famílias ou indivíduos desterrados
fugiram para o Oeste, do Drakensberg ao Highweld, o que deslanchou uma onda
de migrações à medida que as terras eram devastadas e as lavouras destruídas.
Outros nguni do Norte se locomoveram para o Sul pelo Tugela e o Umzimkulu.
Em 1822 -1823, este movimento migratório de pessoas perdidas, esfomeadas e
miseráveis que vinham do Nordeste chegara às terras dos mpondo e dos tembu,
semeando o terror e a destruição por todo lugar onde passavam os grupos de
fugitivos. Em 1823, as terras mpondo foram particularmente perturbadas com a
chegada dos imigrantes nguni do Norte. Os tembu do Norte se instalaram por lá,
com seu chefe Ngoza, um pouco antes de retornar às terras zulus. Na No Mans
Land (Terra de ninguém), a Oeste das terras dos mpondo, se encontravam os bhele
de Mdingi, aos quais se juntaram mais tarde os wushe e os bhaca, comandados
por Madikane. Depois, aconteceu a invasão zulu às terras mpondo em 1823 -1824.
Embora Faku, muito sabiamente, tenha impedido o seu povo de atacar os zulus,
os invasores levaram consigo uma grande parte do rebanho mpondo.
Quando as novas dos acontecimentos chegaram ao Cabo onde os refu-
giados nguni do Norte, os vagabundos e os invasores tornaram -se conhecidos
pelo nome de fetcane –, a colônia havia sido ocupada em sua porção seten-
trional pelos grupos de fugitivos. Diferentemente dos fetcane, os refugiados
que chegavam à colônia tinham perdido toda coesão e toda identidade. Como
os primeiros, eles eram miseráveis, desmoralizados, esfomeados e dispersos. Os
mantatees
15
ou bechuana, como eram geralmente chamados, tinham fugido do
14 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 33.
15 As expressões “Mantatees” (escrita também “Mantatis”) e “Fetcane”, tal como as utilizaram os colonos
brancos, os escritores e os funcionários do governo do Cabo, exigem algumas explicações resumidas. Na
boca destas pessoas, estas expressões se aplicavam aos agentes do Mfecane. A expressão “Mantatees”, tal
como a emprega, por exemplo, Robert Moat, se refere coletivamente a grupos como os gatunos phuting,
hlakoana e fokeng, os quais invadiram a capital tlaping de Dithakong em 1823. Denominar estes grupos
deste modo pode levar ao equívoco, na medida em que não tinham elo algum com Mma -Nthatisi, a
qual era a chefe dos Tlookwa. Mais tarde, esta expressão foi de novo empregada de maneira errônea
para designar os refugiados tswana e sotho que auíam na colônia, vindo do Orange e do Caledon
particularmente após Dithakong. “Fetcane” ou Mfecane”, por outro lado, quando eram aplicados a estas
pessoas, se referiam aos invasores nguni do Norte, isto é, aos zulus e aos ngwane de Matiwane. Ver J. D.
Omer -Cooper, 1966, p. 93 -96; W. G. A. Mears, 1970, p. 5 -13; L. ompson, 1969b, p. 393; G. Butler,
1974, p. 182; R. H. Dugmore, 1958, p. 44.
156
África do século XIX à década de 1880
vale do Caledon e da Trans -Orangia após as invasões ngwane e hlubi, e os efeitos
devastadores das operações tlookwa, dirigidas por uma mulher, Mma -Nthatisi.
Alguns vinham também de locais do Norte, tão distantes quanto o Vaal, expul-
sos pelos invasores do Mfecane. Inúmeros refugiados tswana tinham deixado as
suas regiões do Botswana após o ataque da capital tlaping de Dithakong pelos
phuting, pelos hlakoana e os fokengs em 1823.
Os refugiados se acumularam em distritos como Graaff -Reinet e Albany.
Eles não constituíam uma ameaça militar, que estavam desarmados e sem
chefias. Tudo o que buscavam era um pouco de ajuda e proteção.
A reação inicial do Cabo (1823 ‑1828)
A reação inicial do governo colonial do Cabo e dos colonos em relação ao
afluxo de refugiados deve ser compreendida e analisada à luz das duas necessi-
dades mais prementes da colônia às vésperas do Mfecane: garantir a segurança
da fronteira e obter mão de obra a baixo custo. A escassez de mão de obra, em
particular, tinha forçado inúmeros fazendeiros a escolherem outras formas de
trabalho e a abandonar a agricultura.
Tornou -se evidente muito rapidamente para os fazendeiros inquietos e um
pouco assustados dos distritos de Graaff -Reinet e de Albany que as centenas de
mantatees e de bechuana (tswana) que atravessaram o Orange não iriam sequer
criar problemas de segurança. Os seus portes amáveis e quase tímidos, o fato
de que a maioria dentre eles perdera todo elo e toda coesão de grupo, levaram
os colonos a pensarem que os refugiados sotho e tswana poderiam se tornar
serventes dóceis e devotados”
16
, satisfazendo, assim, uma das necessidades mais
urgentes da colônia. Este juízo se revelou acertado que a colônia do Cabo
lucrou finalmente com os efeitos destruidores do Mfecane. De fato, o gover-
nador decidiu, em 1823, que os refugiados deveriam servir como trabalhadores
agrícolas para os colonos que os solicitassem, durante um período de, pelo
menos, sete anos
17
. Os fazendeiros dos distritos de Graaff -Reinet e de Albany
aprovaram esta decisão na medida em que lhes faltava mão de obra.
As opiniões da época quanto à qualidade dos trabalhadores sotho e tswana
não são unânimes. Em 1834, um naturalista e explorador sul -africano, o Dr.
16 Ver, por exemplo, as representações (e as legendas que as acompanham) dos dois supostos “Mantatees”,
em G. Butler, 1974, p. 228 e também p. 181 -182.
17 G. M. eal, 1891, p. 240; G. Butler, 1974, p. 182; W. F. Lye (org.), 1975, p. 20.
157
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
Andrew Smith, constatou que alguns fazendeiros achavam os seus empregados
lentos” e muitos dentre eles “extremamente ávidos, até mesmo desonestos e todos
muito preguiçosos”
18
. Por outro lado, um outro explorador, George Thompson,
observou que “a repartição de algumas centenas de refugiados mantatees nas
famílias mais honradas, como domésticos e pastores” revelou -se uma grande
vantagem
19
. O ponto de vista de Thompson não difere, contudo, das opiniões
e observações de Andrew Smith, segundo as quais, apesar do que diziam os
fazendeiros a respeito dos seus empregados, a presença dos sotho e dos tswana
na colônia era “desejável na medida em que eles [...] supriam a falta de pessoal,
devido ao fato que os hotentotes tinham preferido, nos anos anteriores, outras
vocações do que o serviço dos fazendeiros”
20
. De fato, a maioria dos khoi do
Cabo mudou -se para os centros urbanos onde vivia sob a proteção das missões
cristãs a fim de evitar a humilhação de trabalhar para aqueles que lhes haviam
tomado as suas terras ancestrais.
É impossível dar o número exato de refugiados tswana e sotho que encon-
traram asilo na colônia do Cabo. Poderia tratar -se de várias centenas, talvez
de milhares de homens. Além disso, este afluxo durou enquanto persistiram os
distúrbios no interior, e no fim de 1828, alguns refugiados tswana e sotho
começaram a retornar para casa. O mero dos que retornaram cresceu na
metade da década de 1830, uma vez que a paz e a estabilidade estavam resta-
belecidas por chefes como Moshoeshoe, o fundador da nação sotho
21
. Durante
os primeiros cinco anos do Mfecane, parece que outros refugiados penetraram
o território da colônia. George Thompson teria estimado em mais de mil o
número de refugiados tswana e sotho na colônia em 1826
22
. Isto aconteceu três
anos após a chegada da primeira onda dos desterrados.
Qualquer que tenha sido o número destes refugiados, vários pontos são
indiscutíveis. Em primeiro lugar, como já sublinhamos, os problemas dos povos
de Natal, do vale do Caledon, do Orange e do Highveld foram ironicamente
– uma benção para a colônia do Cabo. Isto forneceu mão de obra barata a uma
comunidade agrícola que a falta de pessoal ameaçava arruinar. A chegada desta
força de trabalho deu um novo impulso na agricultura nos setores orientais da
colônia. Em segundo lugar, pode -se dizer que, em Albany e Graaff -Reinet, o
18 W. F. Lye (org.), 1975, p. 21.
19 Citado em G. Butler, 1974, p. 182.
20 W. F. Lye (org.), 1975, p. 21.
21 W. F. Lye, 1969, p. 203.
22 Ibid., p. 202 -203, citando G. ompson.
158
África do século XIX à década de 1880
período inteiramente branco” da colonização durante o qual os fazendeiros
europeus, suas mulheres e seus filhos deviam executar as tarefas as mais baixas”
– acabou com a chegada dos trabalhadores africanos. Diz -se que esta mudança,
ocorreu antes do fim da década de 1820
23
. Contribuiu para minar um dos prin-
cípios fundamentais que tinham presidido a criação do “Anglostão ou Albany,
e segundo o qual os colonos brancos apenas podiam contar com suas próprias
forças para sobreviverem. A partir deste momento, a importância da mão de obra
negra no desenvolvimento econômico da colônia destacou -se nitidamente.
O terceiro ponto indiscutível relaciona -se ao afluxo dos tswana e dos sotho
na colônia. Este afluxo permitiu encontrar uma mão de obra barata, o que minou
um dos princípios dos colonos de Albany e de Graaff -Reinet, o da agricultura
intensiva. Em parte devido aos fazendeiros que exigiam mais terras, em parte
devido à disponibilidade de uma mão de obra barata, as fazendas de 40 hectares
se transformaram em propriedades mais vastas por volta de 1825
24
.
Por seu lado, os tswana e os sotho lucraram igualmente com a sua estadia
temporária na colônia. De um lado, lhes foi permitido estabelecerem moradias
nas terras de seus empregadores. De outro, segundo os termos do seu aprendi-
zado”, eles eram pagos em cabeças de gado e em outros produtos
25
. Deste modo,
muitos puderam adquirir bens pessoais que podiam levar para seu país.
A presença dos sotho e dos tswana na colônia não resolveu, contudo, a outra
necessidade dos colonos. Ela não mudou em nada a natureza das relações entre
estes e os seus vizinhos, os nguni do Sul. Tensões, conflitos fronteiriços, roubos
de gado, e represálias: tudo continuou como o fora no passado.
Este quadro das relações entre brancos e negros na colônia deve, contudo,
ser equilibrado para que o leitor não tenha a impressão de uma ausência total
do intercâmbio pacífico. Apesar das disputas e escaramuças relacionadas aos
direitos de ca e de pastagens, existia um desejo mútuo de promoção das
relações comerciais, pois cada grupo possuía produtos que o outro não tinha.
Por exemplo, os xhosa dispunham de marfim, chifres, couros, bois e borra-
cha, produtos muito procurados pelos comerciantes coloniais. Por sua vez, eles
tinham necessidade de cobre, contas, botões, pólvora e álcool em particular,
a aguardente –, coisas que os comerciantes poderiam lhes fornecer. Assim,
apesar das hostilidades entre africanos e colonos, existia um sistema de troca.
Nenhuma forma de controle militar ou jurídico poderia acabar com ele. De
23 G. Butler, 1974, p. 181.
24 As fazendas foram aumentadas em 1825, de acordo com G. M. eal, 1981, p. 239.
25 W. F. Lye (org.), 1975.
159
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
fato, apesar dos embates entre brancos e negros na fronteira oriental, as trocas
comerciais prosseguiram a despeito da política oficial do governo. O controle
estrito exercido na fronteira pelas autoridades só incentivava a cooperação entre
brancos e negros em um sistema de contrabando.
E foi por que este contrabando prosperou que o governador, sir Rufane
Donkin, decidiu em 1821 regularizar as trocas entre a colônia e os xhosa
26
.
Tratava -se de instituir uma feira regular até mesmo várias à beira do
Keiskamma. De início oposto a este projeto, o governador aceitou em seguida a
realidade da situação e uma feira foi criada em Fort Willshire. Ela acontecia, de
início, anualmente, e desenvolvendo -se rapidamente, chegou a quatro vezes ao
ano, depois se tornou mensal e, em 1824, semanal
27
. Os comerciantes da colô-
nia e os comerciantes xhosa iam aos milhares para trocar os seus produtos. Os
negociantes africanos homens e mulheres - chegavam a Willshire de regiões
tão longínquas quanto aquela situada entre o Keiskamma e o Kei
28
. Traziam
chifres, marfim, couros, borracha e bois e levavam contas, botões, fios de cobre,
aguardente e toda uma gama de produtos europeus.
A feira de Willshire era também um local de encontro. O dia da feira era a
ocasião para brancos e negros tentarem se comunicar. Ao comerciar, cada um
tentava se fazer entender pelo outro falando em sua língua. Como diz Dug-
more, “falava -se um cafre bizarro [...] e um inglês e um holandês não menos
bizarros”
29
.
Todavia, o mercado de Willshire permaneceu uma fachada talvez neces-
sária. Ele não podia esconder a realidade profunda das relações entre brancos e
negros. Com efeito, é preciso sublinhar que Willshire era antes de tudo um posto
de defesa fronteiriço, localizado numa frente violenta onde tudo testemunhava
a existência do conflito. O dia da feira era realizado em uma atmosfera militar:
a multidão matizada, branca, morena e negra, era atravessada pelos uniformes
vermelhos, verdes e azuis dos regimentos de linha, de fuzileiros e artilheiros,
como observou Dugmore.
O comércio florescente que se estabelecera entre negros e brancos não podia
fazer que os xhosas se esquecessem que as suas terras ancestrais encontravam -se
no momento nas mãos dos colonos brancos. Assim, mesmo que negros e bran-
26 G. Butler, 1974, p. 197.
27 G. M. eal, 1891, p. 237.
28 R. H. Dugmore, 1958.
29 Quando das duras negociações comerciais, os comerciantes ingleses e holandeses tentavam se expressar
em xhosa, enquanto que os comerciantes xhosa tentavam se expressar nas duas línguas europeias.
160
África do século XIX à década de 1880
cos comerciassem em Willshire sob o olhar atento das autoridades, em terras
xhosa o tráfico de armas de fogo entre contrabandistas brancos e compradores
xhosa era florescente. Estes últimos compravam fuzis para se preparar para o
grande confronto que, segundo eles,o tardaria a acontecer. A guerra explodiu
efetivamente em 1834 -1835; esta não foi a última e nem a primeira. Outros
fatos lembram a realidade violenta das relações entre os xhosa e os colonos: ao
mesmo tempo em que as transações comerciais se realizavam em Willshire e
no país xhosa, viajantes brancos solitários e jovens pastores europeus vigiando o
rebanho de seus pais foram assassinados por xhosa descontentes
30
.
A ameaça externa e a reação orquestrada
por brancos e negros
É evidente, então, que, até 1828, os acontecimentos do Mfecane não tinham
ameaçado seriamente a estabilidade e o equilíbrio das relações entre brancos e
negros do Cabo. Como vimos, os refugiados tswana e sotho que afluíram na
parte branca da colônia foram rapidamente integrados à sua vida econômica.
No Nordeste, os mpondo de Faku tinham, quase por si mesmos, impedido os
regimentos de Shaka de avançar além das terras mpondo.
Esta situação mudou, entretanto, em 1828. Um outro tipo de refugiado fez
de repente a sua aparição nas regiões da colônia que se estendiam a Leste do
Kei. Diferente dos sotho e dos tswana, estes refugiados semearam o terror entre
os tembu e os xhosa de Hintsa. Eram igualmente diferentes, pois, ao contrário
dos sotho e dos tswana, eles haviam mantido quase intacta a sua coesão política,
sua lealdade pelos seus e suas capacidades militares. Tratava -se dos ngwane,
comandados por Matiwane, um guerreiro experiente que aterrorizara vários
Estados – inclusive aquele dos sotho de Moshoeshoe.
Os ngwane, os quais naquele momento incluíam elementos hlubi, atravessa-
ram o Orange vindo do Lesoto e penetraram as terras dos tembu entre janeiro
e fevereiro de 1828. A sua chegada coincidiu com a dos regimentos de Shaka
em terras mpondo, criando um sentimento de inquietude entre os colonos,
os tembu e os xhosa. Deste modo, toda a zona desde os distritos orientais
até o Umzimvubu no Nordeste estava cheia de rumores relativos ao “Fetcane
30 Por exemplo, os lhos de Garbett e Sloman, as vítimas de Clay Pitt, o partido irlandês etc. encontravam-
-se entre as vítimas da cólera xhosa.
161
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
ou “Mfecane”
31
, como se chamavam os regimentos zulus
32
. Os regimentos de
Shaka em terras mpondo tentaram avançar mais ao Sul para abrir a via para o
Cabo. Shaka queria, realmente, estabelecer relações diplomáticas com a colônia.
Embora estivessem decididos a combater todos os Estados nguni do Sul que
se encontrassem em seu caminho, os zulus receberam a ordem muito estrita de
evitarem confrontos com os ingleses.
Voltemos aos ngwane. Desde que penetraram em terras tembu, encontraram-
-se face a face com uma coluna avançada das forças da colônia que acreditou
que estes fossem zulus. Seguiram -se escaramuças, cujas consequências eram
incertas. Os colonos se prepararam para uma batalha maior e mais decisiva.
O governador Somerset, Hintsa, o chefe dos gcaleka, e Vusani, o chefe tembu,
cooperaram para este fim. Uma força composta por tropas britânicas, colonos,
regimentos xhosa e tembu foi colocada em prontidão para a batalha final que
aconteceu em Mbolompo. Os ngwane foram completamente derrotados e mui-
tos dentre eles foram mortos. Alguns dos sobreviventes se juntaram aos tembu
e aos xhosa, aumentando a população mfengu nesta zona. Outros recuaram em
direção ao Lesoto com Matiwane e Moshoeshoe permitiu -lhes se estabelecerem.
Entretanto, a saudade do país empurrou Matiwane e seus partidários de volta a
Natal. É lá que foi morto por Dingane que havia sucedido a Shaka como chefe
dos zulus.
A derrota decisiva dos ngwane em Mbolompo conduziu à eliminação de
um dos agentes mais poderosos e mais destruidores do Mfecane. Assim, após
Mbolompo, a colônia e as regiões tembu e xhosa não sofreram mais ameaças
externas sérias. Esta ação orquestrada contra os ngwane de Matiwane significou
a formação de uma aliança temporária entre os ingleses, os xhosa e os tembu.
Isto exigira, naturalmente, a suspensão das hostilidades entre britânicos e os
xhosa.
Mas, enquanto a ação orquestrada dos xhosa e dos tembu pode ser explicada, o
engajamento brinico o é o cil de compreender. Quais considerações os nor-
tearam? O território ings não corria o risco de ser invadido pelos ngwane. Além
disso, mesmo se eles ainda tivessem a impressão de que os invasores das terras tembu
fossem os zulus de Shaka, este último nunca dera o menor motivo para se acreditar
numa invao de sua parte. Temeriam eles, talvez, que os distúrbios contínuos em
terras tembu chegassem à rego xhosa, forçando -os a fugir em direção Oeste para
31 Ver nota 15 neste capítulo.
32 Os rumores relativos à presença dos zulus não eram desprovidos de fundamento, que um regimento
zulu avançava em direção ao Sul através das terras mpondo.
162
África do século XIX à década de 1880
o distrito oriental, semeando deste modo a inquietude entre os fazendeiros? Ou,
como foi sugerido por outros, seria o engajamento brinico calculado e motivado
por considerações diplomáticas, muito mais do que pela crença de uma invao?
Tal ponto de vista significaria que o governo e os rculos da conia pensavam
que a ajuda militar fornecida aos xhosa e ao tembus faria com que os primeiros se
esquecessem do fato de que as suas terras ancestrais estavam nas os de europeus
e contribuiria, assim, a desenvolver relações paficas entre brancos e negros.
Quaisquer que tenham sido as razões do engajamento britânico na campa-
nha “Fetcane” de 1828, um ponto importante deve ser mencionado. O combate a
Matiwane forneceu um exemplo de um caso onde brancos e negros enterraram o
machado da guerra para enfrentarem um inimigo comum. Podemos somente con-
cluir que, a despeito da tensão e dos conflitos abertos que caracterizavam as relões
entre xhosa e colonos, reinava no Cabo uma certa estabilidade, um certo equilíbrio;
brancos e negros se sentiram ameaçados em 1828 e se esfoaram em defender -se.
Os Mfengu
Um dos resultados mais importantes e mais duráveis do Mfecane foi o apa-
recimento de novas unidades sociais, de novos Estados políticos, quando as
vítimas dispersas e desalojadas pelos distúrbios se reagruparam, com frequência
em novas regiões e em meios diferentes. Na maioria dos casos, os novos grupos
eram constituídos de elementos diversos que, graças às qualidades de liderança
de alguns indivíduos, foram reagrupados no seio de entidades políticas iden-
tificáveis. Os swazi, os gaza e os ndebele são bons exemplos de tais entidades.
Inúmeros sobreviventes das guerras juntaram -se a estes chefes para reforçar os
quadros destes novos Estados ou foram absorvidos pelos grupos políticos exis-
tentes. Eis como Moshoeshoe, por exemplo, edificou uma grande nação sotho.
Ainda mais numerosos foram os refugiados que restaram sem chefes, errantes
e miseráveis; às vezes recebidos por alguns dirigentes, nunca foram totalmente
assimilados pelas comunidades que os acolhiam
33
. Este foi o caso de vários
elementos originários de Natal que penetraram na região nguni do Cabo. Eles
chegavam em grupos mais ou menos grandes ou, às vezes, isoladamente. Alguns
vinham do Norte das terras nguni, outros da região do vale do Caledon. Como
eram famintos e miseráveis, viviam da mendicância, ukufenguza, expressão da
33 Ver o testemunho ocular de um dos participantes, Bertram Bowker (1810 -1907), em G. Butler, 1974, p.
252 -254. E também R. H. Dugmore, 1958, p. 44; J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 92.
163
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
qual deriva aquela de amamfengu (Fingo). Parece que este nome lhes foi dado
pelos seus anfitriões tembu, xhosa e mpondo. É, deste modo, aplicado coleti-
vamente aos refugiados ou aos emigrantes da porção setentrional do território
nguni e, essencialmente, mas não exclusivamente, aos hlubi, bhele, ngwane e zizi,
aos quais deu -se asilo na região do Cabo após terem sido deslocados e dispersos
pelo Mfecane
34
. Estes fugitivos começaram a refluir em direção ao Cabo quase
no início das guerras que se desenrolaram na porção setentrional do território
nguni; o seu número não parou de crescer entre 1822 e 1828. A derrota dos
ngwane de Matiwane, em 1828, forçou um grande número de sobreviventes a
se juntarem à população mfengu da região nguni do Cabo.
A reação dos chefes tembu, xhosa e mpondo às solicitações dos refugiados
foi positiva. Eles os receberam como pessoas, humanamente, e os proveram de
terras, alimentos e gado. De acordo com o costume, os chefes que os recebiam
conservavam a propriedade do gado, mas os mfengu podiam consumir o leite
das vacas e utilizar os animais para as suas tarefas domésticas.
Como a maioria dos mfengu era muito trabalhadora, muitos puderam se
estabelecer rapidamente e até mesmo adquirir bens. Eles produziam alimentos
suficientes para a sua subsistência e até excedentes para o mercado. Os mfengu
eram, entre outros, especializados na lavoura do tabaco, o qual trocavam por
gado. Participaram também no comércio da fronteira com os colonos e se mos-
traram excelentes negociantes
35
.
Se, de uma maneira geral, os mfengu que viviam em terras tembu e mpondo
pareciam estar felizes e serem, em grande medida, integrados às comunidades
que os acolhiam, os mfengu da região xhosa continuaram a sentirem -se exclu-
ídos. É por isso que não puderam se integrar à comunidade xhosa. É verdade
que aprenderam rapidamente a falar ainda que com um sotaque a língua
dos seus anfitriões, mas, como continuavam a serem considerados, tanto por
eles mesmos como pelos xhosa, um grupo separado e dominado, nenhuma
integração total foi possível.
Esta falha provocou relações hostis entre as duas comunidades e contribuiu
para tencionar as relações dos ingleses e dos xhosa, difíceis. Como disse-
mos, no início, as relações dos xhosa e dos mfengu eram calorosas – o que teria
permitido a integração destes últimos. Entretanto, começaram a se degradar e
os mfengu se puseram a buscar outras soluções e uma situação mais favorável. O
34 Esta denição não inclui geralmente os imigrantes voluntários de Natal que se instalaram no território
dos nguni do Cabo após o Mfecane. Ver também J. J. Van Warmelo, 1935, p. 65.
35 J. Ayli e J. Whiteside, 1962, p. 20.
164
África do século XIX à década de 1880
que provocou tal degradação? Não se sabe exatamente, mas é claro que a falha no
processo de integração foi explorada por forças externas que buscaram exacerbar
e perpetuar todas as diferenças culturais, políticas e econômicas existentes entre
os dois povos. Os fatores externos mais importantes da divisão foram a Wesleyan
Methodist Missionary Society (Sociedade Missionária Metodista Wesleyana), os
colonos brancos e o governo da colônia do Cabo.
A Wesleyan Methodist Missionary Society trabalhava entre os xhosa de Gcaleka
desde julho de 1827, quando Hintsa permitiu que William Shaw instalasse uma
missão nesta zona. Após as negociações, uma missão foi estabelecida em But-
terworth, perto da capital de Hintsa, por W. J. Shrewsbury. Ainda que a presença
da missão não entusiasmasse Hintsa, este a protegeu e ajudou Shrewsbury e sua
esposa. Ele autorizou também os mfengu a assistirem os serviços religiosos
36
.
O aparecimento dos missionários wesleyanos nesta época interferiria com
o processo de assimilação e de integrão dos mfengu em terras xhosa. As
atitudes de vários missionários com relação às reclamações dos mfengu reais
ou imaginárias se revelaram cruciais. Os mfengu sentiam -se excluídos, poli-
ticamente oprimidos e economicamente explorados pelos seus anfitriões xhosa.
É esta relação chefe/súdito” entre os xhosa e os mfengu que foi transformada
abusivamente em relação senhor/escravo por John Ayliff, o sucessor de Shrews-
bury e, mais tarde, retomada pelos funcionários do governo do Cabo. O mito da
escravidão – ligado àquele no qual o Mfecane tinha completamente aniquilado
o poder militar dos mfengu – teve, segundo R. A. Moyer
37
, alguns efeitos sobre
as relações entre os dois grupos. Primeiro, apresentavam -se os mfengu como
seres dignos de piedade que mereciam a simpatia do governo do Cabo, dos
missionários e dos filantropos. Em seguida, na medida em que se exagerava
a impotência militar dos mfengu e o fato de os xhosa os “oprimirem”, os dois
mitos levaram os missionários e as autoridades do Cabo a pensar que eles eram
obrigados a defender os direitos dos mfengu e de livrá -los” da “tutela” xhosa.
Enfim, os dois mitos parecem ter sido rapidamente assimilados pelos próprios
mfengu que continuaram a se sentir muito diferentes dos xhosa. É a razão pela
qual começaram a ver os missionários, os colonos e o governo do Cabo como
libertadores e tiveram a tendência de identificar os seus próprios interesses, aspi-
rações, esperanças, temores e ansiedades com aqueles destes grupos externos.
As forças externas, das quais falamos, tinham boas razões para incentivar o
desenvolvimento destes mitos. Quanto mais os mfengu se consideravam opri-
36 Ibidem, p. 20.
37 R. A. Moyer, 1974.
165
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
midos e explorados, mais eles dependiam dos missionários para a defesa da sua
causa. Esperava -se que, em recompensa pela ajuda destes últimos, fossem mais
receptivos aos ensinamentos cristãos. Quanto mais os mfengu se consideravam
explorados economicamente pelos xhosa, mais fácil era recrutá -los como mão
de obra agrícola barata.
Mais grave ainda: considerando -se diferentes dos xhosa e identificando seus
temores e seus interesses com os dos colonos britânicos, os mfengu foram levados
a se distanciarem dos xhosa e se juntarem à colônia na primeira oportunidade.
Esta oportunidade foi finalmente fornecida pela sexta guerra fronteiriça (1834-
-1835), quando os mfengu tiveram que decidir sobre a posição a ser adotada
numa guerra que, para começar, eles consideravam como um conflito entre os
ingleses e os xhosa. Na ocasião de uma reunião realizada logo após o início das
hostilidades, eles decidiram, de um lado, que nenhum mfengu participaria da
invasão da colônia e, de outro lado, que na medida do possível eles defenderiam
e protegeriam os missionários e os comerciantes. Por fim, eles tiveram o papel
de mensageiros britânicos ao encaminhar as mensagens que John Ayliff dirigia
ao comandante do exército inglês para o manter informado dos movimentos e
das intenções das forças xhosa.
De fato, do início da guerra em dezembro de 1834, até maio, de 1835
quando deixaram as terras xhosa e foram se instalar nos territórios controlados
pelos britânicos –, os mfengu realizaram uma tarefa de espionagem considerá-
vel. o somente encaminharam as mensagens de Ayliff e do comandante do
exército, como também informaram o primeiro das atividades dos xhosa Gaika e
Gcaleka. Ayliff, em Butterworth, transmitia estas informações ao juiz -comissário
civil de Grahamstown. Os mensageiros mfengu percorriam regularmente os
250 kilometros que separavam Grahamstown do território xhosa
38
. Ainda que
a maioria destas missões de ligação fosse realizada à noite, Hintsa, o chefe dos
Gcalekas, as descobriu muito rapidamente e decidiu acabar com esta traição.
Durante as semanas que se seguiram ao início das hostilidades, inúmeros
centros brancos isolados foram destruídos pelos xhosa que mataram, igualmente,
fazendeiros e comerciantes. O governador, Benjamin D’Urban, teve que ir até a
zona de conflito para organizar a defesa da colônia. Foi, então, ao acampar perto
de Butterworth que Ayliff e seus protegidos mfengu lhe solicitaram que fossem
declarados como súditos britânicos” para os livrar” da “tutela xhosa. Esta solici-
tação recebeu uma resposta positiva em 3 de maio de 1835 e os mfengu – 16.000
38 J. Ayli e J. Whiteside, 1962, p. 23 -24.
166
África do século XIX à década de 1880
homens, mulheres e crianças, com as suas 15.000 cabeças de gado e milhares de
cabras, tudo pertencendo aos chefes xhosa deixaram as terras xhosa escoltados
por tropas britânicas
39
. O trajeto começou em 9 de maio e colocou efetivamente
um fim ao processo de assimilação e de integração que tinha se desenvolvido após
a chegada dos mfengu no território xhosa. A viagem terminou em 14 de maio,
quando o último homem e o último animal atravessaram o Keiskamma e tocaram
a “terra prometida”, o distrito de Peddie, que o governador D’Urban havia reser-
vado aos mfengu. Após a entrega oficial das terras aos oito chefes mfengu, cada
homem teve que jurar ser fiel a Deus e leal ao rei da Inglaterra; que cooperaria
com os missionários enviando -lhes seus filhos. Os mfengu o deveriam esquecer
a “tutela da qual o governo do Cabo e os missionários os haviam livrado”.
A evacuação dos mfengu da região xhosa se deu em meio à sexta guerra fron-
teiriça e, como sublinhamos, ela se fez sob algumas condições. Por exemplo,
os mfengu deveriam ajudar os ingleses contra os xhosa o que fizeram ime-
diatamente após a sua chegada em seu novo território. Quase 500 mfengu se
juntaram ao exército britânico e contribuíram muito amplamente para expulsar
os xhosa do vale do Búfalo. Eles se encarregaram igualmente de vigiar todas as
passagens que levavam à colônia e de recuperar o gado roubado pelos xhosa.
Uma outra condição de sua “libertação” foi que fornecessem a mão de obra
barata para a colônia: ideia muito bem acolhida no Cabo, tendo em vista que
nesta época inúmeros tswana e sotho retornavam para casa após terem con-
cluído seu aprendizado e por que a paz regressava às suas próprias terras
40
.
No tocante a cooperação com os missionários, os mfengu desejavam que estes
educassem os seus filhos e vários adultos assistiam aos serviços religiosos.
Sobretudo, a evacuação dos mfengu foi calculada de modo a enfraquecer os
xhosa quando dos futuros conflitos com os brancos. A região onde os mfengu
foram instalados tinha sido escolhida por que ela constituía uma zona tampão
entre os xhosa e a colônia britânica.
Conclusão
O Mfecane trouxe mudanças militares, políticas, sociais, econômicas e até
mesmo, culturais entre os povos de diversas partes da África que ele afetou. A
amplidão de sua influência dependia muito de fatores como, por exemplo, a
39 Ibid., p. 28 -29.
40 Ver nota 17 neste capítulo.
167
O impacto do Mfecane sobre a colônia do Cabo
natureza dos agentes do movimento e seus objetivos, bem como de fatores locais,
tais como as condições militares, políticas e sociais.
Como já vimos, três tipos de agentes do Mfecane penetraram na zona defi-
nida como a colônia do Cabo. Trata -se, primeiramente, dos refugiados mise-
ráveis e esfomeados sotho, tswana e nguni do Norte que vinha procurar
alimento, ajuda e proteção. A maioria dos tswana e dos sotho foi empregada
pelos fazendeiros europeus; quanto aos nguni do Norte, os quais vinham de
Natal, foram acolhidos pelos chefes xhosa, tembu e mpondo. Houve em seguida
os regimentos zulus de Shaka, que invadiram o território mpondo, mas não
puderam ir além devido à resistência mpondo. Enfim, havia povos tão fortes
e destruidores quanto os zulus, como os tembu setentrionais de Ngoza e os
ngwane de Matiwane. Os tembu de Ngoza penetraram as terras mpondo em
1822 -1823, mas, como os zulus que os seguiram, eles não ultrapassaram o Umzi-
mkulu devido à resistência mpondo.
As únicas forças realmente perigosas que parecem ter avançado mais ao Sul
foram os ngwane de Matiwane, os quais provocaram uma grande inquietação
na região situada entre o Umzimvubu e o Gamtoos quando invadiram as terras
tembu a partir do Lesoto. Por serem confundidos com os zulus de Shaka e
porque pareciam ameaçar a estabilidade e o equilíbrio da colônia apesar dos
embates fronteiriços entre xhosa e europeus –, eles foram combatidos por uma
força conjunta inglesa, xhosa e tembu. O impacto militar da invasão ngwane
foi, de todos os modos, muito limitado, que tal invasão foi rápida e eficaz-
mente impedida por esta força conjunta. Quanto à aliança entre ingleses, xhosa
e tembu, destinada a defender interesses comuns contra uma ameaça externa,
foi igualmente muito breve que acabou com o desaparecimento da ameaça
ngwane.
Parece, entretanto, que a influência econômica, social e cultural do Mfecane
fora maior e mais duradoura do que suas consequências militares ou políticas.
Isto é ainda mais interessante porque os grupos que exerceram mais impacto
nestes campos foram os mais fracos: os grupos de miseráveis e mendigos for-
mados pelos tswana, sotho e mfengu, os quais eram militarmente inofensivos.
Como já visto, é graças à chegada dos refugiados tswana e sotho, em 1823, que
as comunidades agrícolas de Graaff -Reinet e Albany escaparam da catástrofe
provocada pela carência de mão de obra barata. A presença desta força de tra-
balho minou igualmente os princípios nos quais a agricultura colonial havia sido
originalmente baseada: a autossubsistência e a lavoura intensiva. A chegada dos
mfengu no distrito de Peddie, em 1835, iria assegurar aos fazendeiros uma fonte
inesgotável de mão de obra barata.
168
África do século XIX à década de 1880
Devido à sua origem as terras nguni do Norte e do mesmo modo pelo
seu número, os mfengu constituíam potencialmente uma força política, social e
cultural. Mas a sua influência política sobre os seus anfitriões nguni foi enfra-
quecida pela sua partida, em 1835, da região xhosa. Como súditos britânicos,
eles participaram das guerras que os ingleses travavam contras os xhosa. Todos
os acordos concluídos no final destas guerras diziam respeito aos ingleses,
e não aos mfengu. Por exemplo, a participação e o sacrifício dos mfengu nas
guerras de 1834 -1835, 1846 e 1851 -1853 contra os xhosa foram tão impor-
tantes quanto os dos soldados da colônia; mas estas guerras permaneceram um
assunto anglo -xhosa no qual os mfengu não ocupavam mais do que uma posição
secundária.
A influência cultural dos mfengu sobre os nguni do Cabo e sobre os colo-
nos brancos não é fácil de mensurar. Ademais, os nguni do Cabo e os nguni
de Natal eram bastante semelhantes culturalmente. Existe, contudo, um campo
no qual a influência mfengu foi importante. Como aceitaram o cristianismo, a
educação, a agricultura e o trabalho europeus bem antes do nguni do Cabo, os
mfengu tiveram um papel essencial como agentes da modernização em outras
comunidades africanas do Cabo. Foram eles que forneceram os primeiros pro-
fessores africanos, os primeiros padres, os primeiros representantes agrícolas e
os primeiros secretários.
C A P Í T U L O 7
169
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
Entre 1850 e 1880, quando se falava da África do Sul, tratava -se ainda de
uma simples expressão geográfica sem significado político que designava um
território dividido em colônias britânicas, repúblicas bôeres e Estados africanos.
Até a década de 1870, a Grã -Bretanha, que buscava a supremacia sobre o sub-
continente, hesitava em realizar as suas ambições de ter o controle político do
conjunto da região. Na região, eram numerosos os funcionários britânicos que
exortavam o seu governo a dar este passo, enfatizando que o melhor meio de ser-
vir aos interesses nacionais, tratando equitativamente os diversos povos da África
do Sul, era colocar toda a região sob a administração britânica. O governo era
criticado devido às despesas que isto traria. Com efeito, seria preciso conquistar
um grande número de Estados africanos; vencer as repúblicas bôeres bravamente
apegadas à sua independência; persuadir as colônias britânicas a se associarem
a estes Estados e, por fim, custear a administração do país, então muito pobre.
A partir de 1870, todavia, com o surgimento do novo imperialismo” europeu,
a descoberta das jazidas de diamantes e de ouro e a expansão concomitante
dos seus investimentos na região, os britânicos mudaram de opinião e agiram
energicamente na afirmação da sua hegemonia sobre todo o subcontinente.
Por volta de 1880, inúmeras comunidades africanas haviam sido conquistadas
e anexadas, concedendo proteção a umas e humilhando, pela força das armas,
a mais rebelde e mais poderosa entre elas, a dos zulus. O desejo de dominar
Os britânicos, os bôeres e os africanos na
África do Sul 1850 -1880
Ngwabi Bhebe
170
África do século XIX à década de 1880
com mais firmeza as sociedades sul -africanas fez, da mesma maneira, com que
os britânicos entrassem em guerra com os bôeres. No final destas guerras e
com os acordos que delas advieram e que previam fosse uma anexação pura
e simples, fosse um certo grau de soberania, a Grã -Bretanha pôde, a partir de
1991, reivindicar com justiça, diante das outras potências europeias, a posse de
algo mais do que uma simples zona de influência na África do Sul. Do ponto
de vista da própria África do Sul, este período viu as colônias britânicas terem
acesso a um certo grau de autonomia, os bôeres consolidarem sua unidade e os
africanos perderem progressivamente as suas terras e sua soberania em proveito
destes e daqueles.
Os britânicos se retiram do interior
No início da segunda metade do século, os britânicos se retiraram do interior
da África do Sul. Sir Harry Smith, enérgico e presunçoso governador e alto-
-comissário, iniciou as suas funções em 1847, tinha em pouco tempo, desde a sua
chegada, expandido de modo muito espetacular a zona dominada pelos britâni-
cos. Convencido das virtudes pacíficas e estabilizadoras da ordem britânica, bem
como da necessidade de levar aos africanos os benefícios” da civilização indus-
trial e da cultura britânica, ele anexou o país xhosa entre o Keiskamma e o Kei,
denominando -o de Cafraria britânica e a totalidade do território habitado pelos
bôeres e africanos situado entre o Vaal e Orange que se deu o nome de colônia
do rio Orange. Smith imaginava que a administração destas novas conquistas
seria financiada com receita local e que não representaria, consequentemente,
um peso financeiro para os britânicos. A sequência dos acontecimentos mos-
traria o seu erro. Sua política provocou guerras que custaram muito caro finan-
ceiramente, em vidas humanas e destruição. De fato, os bôeres não aceitaram
serem anexados, ao passo que os africanos rejeitavam as medidas “civilizadoras”
e se rebelavam para recuperar as terras confiscadas e a soberania perdida.
Os primeiros a iniciar a resistência armada foram os bôeres sob a liderança de
Andries Pretorius. Em 1848, ele reuniu uma tropa de 12.000 homens e expulsou
da colônia do rio Orange o residente britânico (o major Harry Warden) e seus
colaboradores. Mas os bôeres foram incapazes de usufruir de sua vitória. Não
tardaram a se dispersar, deixando Pretorius com poucos homens, facilmente
derrotados por Smith em 29 de agosto de 1848.
Tendo Smith restabelecido a tutela britânica e apoiado por uma pequena força
militar, retornou apressadamente ao Cabo, deixando a Warden a tarefa delicada
171
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
e temível de delimitar os territórios da colônia do rio Orange, reivindicados por
grupos rivais. As partes presentes eram o poderoso reino de Moshoeshoe, os
Estados mais modestos dos taung de Moletsane, dos tlookwa de Sikonyela, dos
rolong de Moroka e, por fim, os bôeres, os kora e os griqua. A população do
reino de Moshoeshoe cresceu muito rapidamente com o afluxo dos refugiados
fugindo das exigências dos invasores bôeres. Moshoeshoe precisava, para o seu
povo, da maior parte das terras do vale do Caledon, desde a sua nascente até a
confluência com o rio Orange. Ao se espalharem, deste modo, sobre as terras
férteis e aráveis que se estendiam além das fronteiras setentrional e ocidental
do seu país, as populações sobre as quais reinava Moshoeshoe entraram em
conflito violento com os seus vizinhos que igualmente desejam estas terras. Os
britânicos tentaram mediar estes conflitos traçando as fronteiras. Mas Warden
agravou a situação, que as suas fronteiras favoreciam os bôeres e os Estados
menores, em detrimento dos sotho de Moshoeshoe. Ademais, o simples fato de
anunciar que as fronteiras seriam traçadas provocou uma competição intensa
entre todos os grupos populacionais para a ocupação das terras, o que levaria ao
recrudescimento dos saques ao rebanho.
Toda esta crise deixou Moshoeshoe numa situação difícil, que este
sobreviveria abstendo -se de tomar uma posição. Ele não desejava colidir de
frente com os poderosos britânicos que doravante impunham sua lei aos bôeres.
Na eventualidade de uma guerra com seus vizinhos brancos, Moshoeshoe gosta-
ria de poder contar com o apoio deles. Mas os britânicos o incomodavam. Ele
havia acolhido favoravelmente a chegada deles na região, esperando que pudes-
sem dissuadir os bôeres de tomarem as suas terras. Infelizmente, os bôeres as
tomaram em conivência com os britânicos. O seu povo tinha a impressão de que
ele colaborava com os britânicos ao ceder -lhes porções do país, sendo por isso
muito criticado. Nestas condições, ele não podia efetivamente impedir os seus
súditos de violarem as fronteiras de Warden. Sobrava -lhe desaprovar aqueles que
não respeitavam tais fronteiras e, ao mesmo tempo, aproveitar todas as ocasiões
para protestar junto às autoridades britânicas contra estas fronteiras iníquas.
Mas seus súditos não faziam o menor caso de suas reprimendas. Instalavam -se
onde desejavam e continuavam, por vingança ou mesmo sem serem provocados,
a atacar os rebanhos dos Estados vizinhos.
Warden, o residente britânico, tampouco podia conseguir a paz na região.
Suas forças militares eram insuficientes e ele preferiu ignorar as reivindicações
territoriais de Moshoeshoe. Ao dar uma fronteira aos tlookwa, ele exacerbou o
nacionalismo dos sotho de Moshoeshoe que somente esperavam uma ocasião
propícia para aniquilarem os tlookwa e recuperarem as terras que estes últimos
172
África do século XIX à década de 1880
 . Mapa da África do Sul indicando os Estados e os povos, 1850 -1880 (segundo N. M. Bhebe).
173
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
haviam conquistado durante a época em que o reino de Moshoeshoe era ainda
mais frágil. Warden impôs até mesmo aos taung de Moletsane uma fronteira
que eles nunca haviam solicitado, que sabiam que as terras ocupadas por
eles pertenciam a Moshoeshoe. Este e seu povo tampouco podiam tolerar que
invasores recentes, como os kora de Taaibosch, fossem generosamente provi-
dos com terras por Warden. Aliás, este último buscava enfraquecer o reino de
Moshoeshoe e assegurar o apoio dos pequenos Estados, a fim de compensar a
fragilidade militar dos britânicos na região
1
.
Efetivamente, quando a guerra irrompeu na sequência de toda uma serie de
ataques e contra -ataques entre os taung e tlookwa, Warden conseguiu reunir
uma tropa bastante importante composta por alguns bôeres que o apoiavam,
griqua, rolong e kora. Ele também socorreu os tlookwa, dispersou o exército
taung nas colinas de Viervoet e completou a sua vitória apropriando -se de 3.468
bovinos e de um certo número de ovinos. O temível Moshoeshoe entrou no
conflito ao lado dos seus aliados, os taung de Moletsane e, juntos, infligiram uma
derrota arrasadora a Warden e a seus aliados africanos. Deste modo, em junho
de 1851 ruiu a administração britânica na colônia do rio Orange
2
.
Warden obteve não mais do que uma ajuda mínima dos bôeres da região
e dos britânicos da colônia do Cabo. Os bôeres solicitaram assistência àqueles
entre os seus que tinham se estabelecido na outra margem do rio Vaal, ou busca-
ram conseguir um acordo pacífico com os vencedores, Moshoeshoe e Moletsane.
Na colônia do Cabo, as forças britânicas eram monopolizadas pela guerra contra
os xhosa, que iniciara em dezembro de 1850. De fato, foram estas duas guerras
na frente oriental e na colônia do rio Orange que obrigaram os britânicos a
abandonarem a política expansionista de Smith na África do Sul.
A guerra de 1850 -1853 entre brinicos e xhosa foi provocada pelos esfor-
ços que Smith empregou para privar os xhosa de sua independência. Em 1848,
ele se apoderou de vastos territórios xhosa ao anexar à colônia do Cabo a região
compreendida entre o Great Fish e o Keiskamma, depois proclamando colônia
britânica da Cafraria o território compreendido entre o Keiskamma e o Kei.
Inúmeros xhosa foram impedidos de se estabelecerem em suas antigas terras,
a Oeste do Keiskamma, que haviam sido repartidas entre os mfengu lealistas
e os agricultores brancos. Na própria Cafraria, os xhosa foram divididos entre
diferentes “reservas”; os poderes de seus chefes foram fortemente limitados
pelo fato que tiveram de se submeter ao controle dos magistrados brancos.
1 P. Sanders, 1975, p. 149 -150 e p. 159.
2 Ibid., capítulo 14.
174
África do século XIX à década de 1880
Costumes tais como o da labola (dote), e as acusações de feitaria foram pos-
tos fora da lei como contrários ao direito brinico. Ademais, os magistrados
brancos pouco sabiam das leis em vigor no Cabo e, absolutamente, nada do
sistema jurídico xhosa; assim, eles se deixavam guiar por seus sentimentos
pessoais para solucionar os litígios xhosa que lhes eram apresentados. Os
quinhentos membros da polícia africana, na qual se apoiavam os magistrados,
não tinham recebido formação alguma e eram tão orgulhosos em executar as
ordens dos brancos que tratavam os seus compatriotas com arrogância. Todos
estes ressentimentos levariam os xhosa a tentarem se desvencilhar do domínio
britânico.
Smith ateou fogo à pólvora ao tratar o chefe supremo deles com desenvol-
tura, sem levar em conta o apego da população a seus dirigentes e suas insti-
tuições. Ele convocou o chefe, Sandile, para uma reunião em King William`s
Town. Sandile se recusou a comparecer, pois, alguns anos antes, os britânicos
o haviam detido traiçoeiramente quando ele atendeu a uma convocação seme-
lhante. Smith depôs Sandile e tentou substituí -lo por sua própria mãe, associada
a um chefe branco; mas ambos foram rejeitados pelos xhosa. Smith colocou
Sandile na ilegalidade e tentou prendê -lo. Em dezembro de 1850, os xhosa não
mais suportaram as ingerências do governador em suas vidas e começaram a
atacar as forças e as instalações militares britânicas na região. Eles liquidaram
vários postos militares.
A causa de Sandile foi amplamente sustentada por seus vizinhos africanos.
A Leste do Kei, ele recebeu o apoio moral dos súditos do chefe Sarili. Vários
membros da polícia africana e dos Cape Coloured Mounted Riflemen (Policia
Montada da Colônia do Cabo, constituída por mestiços armados com fuzis)
desertaram e juntaram -se às suas tropas. Os khoi -khoi e alguns tembu com-
bateram também ao lado de Sandile. Muitos fazendeiros brancos e africanos
que haviam se colocado ao lado dos britânicos foram mortos, o seu gado cap-
turado e as suas propriedades destrdas. Smith só de se apoiar nos aliados
africanos porque os fazendeiros brancos da colônia do Cabo o estavam
dispostos a entrarem em guerra. Mesmo com os reforços recebidos do governo
britânico em março de 1852, Smith não conseguiu conter a sublevação dos
xhosa. A guerra chegou ao final com o seu sucessor, Sir George Cathcart,
que se assegurou do apoio dos fazendeiros brancos do Cabo ao prometer -lhes
uma parte do rebanho espoliado. De fato, quando os xhosa foram vencidos, em
outubro de 1852, os súditos de Sandile, bem como os de Sarili, que viviam a
Leste do Kei e tinham, sobretudo, dado um apoio moral aos seus irmãos do
175
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
Oeste, perderam rebanhos enormes, confiscados como presas de guerra pelos
britânicos
3
.
O custo da guerra contra os xhosa e a desorganização total da adminis-
tração britânica na colônia do rio Orange induziram os britânicos a renun-
ciarem à política radical de Smith. Eles nomearam dois comissários, o major
William Hogge e Charles Owen, que foram encarregados de preparar a saída ao
Norte do Orange. Para enfrentar a situação na colônia sem serem incomodados
pelos bôeres estabelecidos ao Norte do Vaal, os comissários os compraram ao
assegurar -lhes a sua independência. Andries Pretorius conseguiu, a despeito da
dispersão dos bôeres do Transvaal e de suas divisões em facções rivais, constituir
uma delegação que, com dificuldade, conseguiu se entender com os britânicos e
concluíram a Convenção de Sand River, em 17 de janeiro de 1852.
Nos termos desta convenção, os britânicos reconheciam a independência do
Transvaal e denunciaram unilateralmente todo tratado de aliança com Esta-
dos africanos situados ao Norte do Vaal. O Transvaal comprometia -se a não
intervir nas questões das colônias britânicas, a não praticar a escravidão e nem
comerciar escravos. Além disso, os britânicos e os bôeres do Transvaal excluí-
ram de comum acordo, as sociedades africanas dos dois lados do Vaal, dos seus
mercados de armas de fogo e munições, enquanto os bôeres teriam livre acesso
aos mercados britânicos de armas
4
. Mesmo que os africanos pudessem comprar
alguns fuzis, recorrendo a meios clandestinos e aos comerciantes britânicos “sem
escrúpulos”, o embargo anglo -bôer de armas impediu efetivamente aos Estados
africanos de constituírem estoques de armas importantes e de adquirir materiais
militares mais modernos disponíveis no mercado britânico e em outros merca-
dos europeus. Em resumo, graças a tal acordo, os brancos garantiam para si a
superioridade militar sobre os africanos e tornaram tecnicamente inevitáveis as
suas conquistas posteriores.
Uma vez resolvido o problema do Transvaal, os comissários abordaram o da
colônia do rio Orange. Cathcart, o novo alto -comissário, queria restabelecer o
prestígio militar britânico, singularmente manchado aos olhos africanos, infli-
gindo uma derrota eloquente a Moshoeshoe. À frente de importantes forças
de infantaria e de cavalaria, ele encontrou -se com este último em Platberg em
15 de dezembro de 1852 e deu -lhe um ultimato ao qual era impossível se sub-
meter. Moshoeshoe deveria entregar, num prazo de três dias, 1.000 cavalos e
10.000 bovinos, para compensar as perdas materiais tidas pelos bôeres durante
3 E. A. Walker, 1957, p. 250 -254; C. Brownlee, 1896, p. 306 -319; M. Wilson, 1969b, p. 256.
4 E. A. Walker, 1957, p. 252 -253; L. ompson, 1969b, p. 420 -421.
176
África do século XIX à década de 1880
a guerra lançada por Warden e financiar a cara expedição de Cathcart. Como
Moshoeshoe, incapaz de responder tão rapidamente as exigências, solicitou um
prazo suplementar, Cathcart não se importou com as suas explicações e ordenou
a invasão do território que constitui atualmente o Lesoto. Mas ele enfrentou
uma resistência forte da infantaria e cavalaria sotho e preferiu retirar -se, quando
Moshoeshoe manifestou uma atitude diplomática de submissão, através de uma
carta de 20 de dezembro de 1852. Moshoeshoe suplicava ao alto -comissário
que se desse por satisfeito com um botim de mais de 5.000 bovinos que as
suas tropas haviam conseguido capturar. Ele se considerava suficientemente
punido e verdadeiramente muito impressionado com a potência britânica; ele
solicitava, assim, humildemente a paz. Ele trataria igualmente, no futuro, de
evitar que os seus súditos causassem problemas. No dia seguinte ao recebimento
daquela carta, o alto -comissário e as suas tropas abaladas (38 mortos e 15 feri-
dos) apressaram -se a se retirar deste perigoso reino
5
.
As vicissitudes de Cathcart reforçaram a convicção dos britânicos de que
a região não poderia ser preservada senão a custos altos. Sir George Clerk
foi, assim, enviado para conseguir retirar com segurança os britânicos da zona
situada ao Norte do Orange. Tendo sabido da eminência da partida deles,
Moshoeshoe preparou o terreno para a longa luta com os bôeres que o esperava
irremediavelmente, aniquilando os seus aliados potenciais, os tlookwa, os griqua
e os kora que viviam a Noroeste do seu reino. Todos os sotho do Sul, os quais
viviam às margens de seu reino, estavam sob seu domínio, exceto a chefia de
Moroka, cuja população se reduzira a pouco mais de mil almas apenas durante
a guerra precedente.
Nesse meio -tempo, Clerk conseguiu, não sem algumas dificuldades, reunir
os bôeres dispostos a negociar a independência com ele e, em 23 de fevereiro
de 1854, concluiu a Convenção de Bloemfontein, cujos termos eram mais ou
menos semelhantes às disposições da de Sand River. Ela conferia aos bôeres
uma independência total. Os britânicos renunciavam a toda aliança com os
chefes africanos ao Norte do Orange, exceto com Adam Kok. O tratado com
o próprio Adam Kok, pelo qual estava limitada a quantidade de terras que os
bôeres poderiam comprar dentro de seu país, foi ao final das contas modificado
de maneira a permitir aos brancos comprarem todas as terras. Clerk se recusava,
também, a deixar -se levar por Moshoeshoe em qualquer discussão relativa à
fronteira entre o território que, em breve, se chamaria de Estado livre de Orange
5 P. Sanders, 1975, p. 185 -193; E. A. Walker, 1957, p. 254 -255; L. ompsom, 1969b, p. 421 -422.
177
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
e seu reino
6
. Ao se retirarem, os britânicos abriram então a via para o monopólio
das terras de Adam Kok pelos fazendeiros brancos e aos conflitos territoriais
entre os bôeres e os sotho.
Com relação à fronteira oriental da colônia do Cabo, a preocupação primor-
dial de Cathcart era impedir os xhosa de perturbarem a paz. Após a guerra de
1850 -1853, ele considerou uma grande parte dos xhosa de Sandile, dos tembu
e dos khoi -khoi como rebeldes e, consequentemente, confiscou as suas terras
a Oeste do Keiskamma, nos vales do White Kei e do Kat, nos contrafortes do
Mathole e ao redor dos postos militares britânicos. As terras confiscadas foram
vendidas aos fazendeiros brancos ou doadas aos lealistas” mfengu. Ele esperava
neutralizar suficientemente a região, de modo que ela constituísse um tampão
entre o Leste, predominante negro, e a colônia branca do Cabo, a Oeste. Cath-
cart modificou também os aspectos políticos da ação de Smith. Ao passo que
este reduzira fortemente os poderes dos chefes xhosa, Cathcart os deixou exercer
uma jurisdição ilimitada dentro das “reservas” superpovoadas e reduziu o papel
dos magistrados britânicos ao de “simples diplomatas sem poder
7
.
Em 1854, assim que Cathcart deixou a África do Sul, os britânicos se
retiraram do interior, deixando bôeres e africanos frente a frente. Mesmo
a Cafraria britânica que decidiram preservar não era considerada por eles
mesmos como uma conia “normal” a ser desenvolvida no interesse dos seus
habitantes e no da Grã -Bretanha, mas, sobretudo, como um elemento do
sistema de defesa da colônia do Cabo, onde só parecem dignos de ateão
os meios indispensáveis para responder aos imperativos losticos. A Grã-
-Bretanha simplesmente não estava disposta a fazer mais do que o necesrio
para permanecer em posseso da sua base naval do Cabo. Este objetivo
parecia possível de ser atingido preservando -se a conia do Cabo e de Natal,
de modo a interditar aos bôeres, frágeis e desunidos, qualquer via de acesso
independente ao mar. O custo das duas colônias brancas, para a pátria mãe,
deveria ser mantido no vel mais baixo possível, outorgando -lhes um certo
grau de autonomia, a fim de que aceitassem pagar pela maior parte dos custos
necessários para assegurar a sua administração e sua defesa. Uma constitui-
ção assegurando à colônia do Cabo instituições parlamentares foi, então,
promulgada em 1853. Quanto a Natal, o qual fora inicialmente anexado em
1845 como distrito da colônia do Cabo, foi desassociado desta e dotado do
seu próprio conselho legislativo em 1856.
6 P. Sanders, 1975, p. 200 -201.
7 E. A. Walker, 1957, p. 286.
178
África do século XIX à década de 1880
A colônia do Cabo e o Natal antes de 1870
A necessidade de economizar não foi certamente a única razão que motivou
o governo britânico a conceder, em 1853, instituições representativas à colônia
do Cabo
8
. A constituição do Cabo foi promulgada no momento em que os
britânicos abandonavam o sistema mercantilista, adotando o livre comércio. Na
Grã -Bretanha, as escolas de Manchester e de Wakefield que tinham um papel
preponderante nas discussões relativas à política colonial, preconizavam ambas,
por razões opostas, que um estatuto de autonomia fosse concedido às colônias.
Lorde Grey, o Secretário das colônias que em 1846 se engajou no processo em
prol de conferir autonomia à colônia do Cabo, era, de fato, um adepto do livre
comércio. Além disso, os próprios colonos tiveram um papel ativo neste sentido:
durante décadas, eles enviaram várias petições ao governo britânico reclamando
instituições representativas; a criação, em 1834, de um Conselho legislativo
composto do governador, de funcionários e civis notáveis a serem designados
não os satisfez. Diversos fatores as pressões dos colonos, a doutrina do livre
comércio, a necessidade de economizar – convergiram para forçar os britânicos
a concederem à colônia do Cabo um certo grau de autonomia.
A constituição de 1853 foi concebida de maneira a proteger os interesses da
minoria dos ricos comerciantes ingleses, embora permitisse uma participação
política limitada da maioria eres, mestiços e africanos, em sua maioria
pobres –, ligando o direito ao voto e a elegibilidade das duas câmaras do Par-
lamento à riqueza. Somente os ricos podiam ser eleitos para a Câmara alta,
que, para ser elegível, era necessário ser súdito britânico, ser eleitor e dispor de
bens não hipotecados com um valor de 2.000 libras ou de bens hipotecados com
valor de 4.000 libras. O direito ao voto e à elegibilidade para a Câmara baixa
foi concedido a todos os súditos britânicos do sexo masculino que possuíssem
bens com valor de 25 libras ou recebessem uma renda anual de 50 libras. Este
dispositivo permitiu a um pequeno número de bôeres e de mestiços votar. Mas,
ao tornar o inglês a língua oficial do Parlamento, a Constituição eliminou cerca
de 70% dos bôeres rurais que, até a década de 1870, mal falavam esta língua
9
.
Duas questões dominaram os debates do Parlamento do Cabo: a solicita-
ção da partição da colônia e os conflitos entre o executivo e o legislativo. Os
distritos orientais, anglófonos em sua maioria, queriam separar -se dos distritos
8 S. Trapido, 1964; E. A. Walker, 1957, p. 233 -245; T. R. H. Davenport, 1969, p. 321 -324; C. F. J. Muller
(org.), 1974, p. 183 -184.
9 F. A. Van Jaarsveld, 1975, p. 154 -157.
179
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
ocidentais onde o holandês era a língua principal, por temer serem dominados.
A Constituição suscitava conflitos ao tentar combinar autocracia e democracia.
Em vez de ministros responsáveis, ela previa que os departamentos fossem
chefiados por burocratas nomeados pelo secretário das colônias e dependentes
do governador. Este definia as políticas sobre as quais as duas câmaras se pro-
nunciariam em seguida, após debate. O bom funcionamento de tal constituição
dependia da personalidade do governador e da situação econômica da colônia.
O mandato de Sir George Grey coincidiu com um período de relativa prospe-
ridade econômica (1854 -1862), e suas relações com os parlamentares do Cabo
foram facilitadas por seu tato. Portanto, nunca colidiu seriamente com as duas
câmaras, o que nunca aconteceu com o seu sucessor, Sir Philip Wodehouse
(1862 -1872). Autoritário, dogmático, totalmente indiferente aos sentimentos
separatistas dos orientais, ele teve que enfrentar facções açuladas e as câmaras,
geralmente hostis, que estavam prontas a fazer -lhe oposição com a única arma
a sua disposição: a recusa de votar impostos novos. Seus problemas foram ainda
agravados pela depressão econômica da década de 1860, o que causou déficits
orçamentários consideráveis. As frequentes crises constitucionais do Cabo foram
apenas parcialmente resolvidas com entrada em vigor, em 1872, de um sistema
de governo responsável. Mesmo assim, as prerrogativas e as funções do gover-
nador continuaram a causar conflitos entre este e o gabinete.
Foi na época de Sir George Grey e de seu sucessor que os xhosa da Cafra-
ria (região do Ciskei) acabaram por perder a sua independência. Sir Grey, em
particular, exerceu pressões enormes sobre os xhosa do Ciskei com sua política
pretensamente civilizadora. Ele criou o que se pode chamar de um tabuleiro
de brancos e negros” ao implantar colonos brancos entre os xhosa. Ele reduziu
os poderes dos chefes xhosa ao permitir -lhes atuar somente nas questões civis e
confiando todo o resto aos magistrados brancos. Foram atribuídos salários para
que pudessem renunciar às multas, as quais foram, a partir de então, arrecadadas
pelos funcionários britânicos. Um imposto sobre as casas foi criado para contri-
buir com o financiamento da administração da colônia. A população foi obri-
gada a trabalhar nos canteiros de obras públicas por uma remuneração módica.
O trabalho obrigatório, as exigências financeiras e a pressão demográfica causada
pela instalação de um grande número de colonos brancos levaram os xhosa que
não tinham nenhum outro recurso, a tentarem se libertar seguindo as receitas de
uma doutrina milenarista. Embora o peso do imperialismo caísse em primeiro
lugar sobre os ombros dos xhosa de Sandile e de seus vizinhos tembu, os xhosa
de Sarili, a Leste do Kei (no atual Transkei), encontraram -se expostos a uma
enorme pressão demográfica provocada pelo afluxo contínuo de refugiados que
180
África do século XIX à década de 1880
buscavam voluntariamente fugir da exploração e opressão diretas dos britânicos,
ou que foram expulsos do Oeste sob o pretexto de rebelião.
É no período de 1856 -1857 que os povos xhosa e tembu efetivaram a sua
ação. Em março de 1856, uma jovem chamada Nongqause, que estava apa-
rentemente sob a tutela religiosa de Mhlakaza, um dos conselheiros de Sarili,
profetizou que, se o povo matasse todo o rebanho, destruísse as reservas de grãos
e não plantasse lavoura alguma naquele ano, aconteceria um tornado que var-
reria os opressores ingleses e os jogaria no mar. Além disso, os heróis nacionais
ressuscitariam e trariam imensos rebanhos, enormes quantidades de grão e até
mesmo produtos fabricados pelo homem branco. Os xhosa e os tembu assim o
fizeram. Na data prevista, nada aconteceu. Muitos morreram de fome, em 1857,
nas duas margens do Kei. Um grande número de xhosa do Ciskei migrou para
a colônia do Cabo na busca de um emprego entre os brancos porque não tinha
outro meio de sobreviver. Este episódio é de difícil compreensão. Tentou -se,
em vão, explicá -lo por meio de fatores ocultos. E. A. Walker estava convencido
que Moshoeshoe, o qual desejava a retirada dos britânicos do Estado livre de
Orange onde ele encontrava -se em luta contra os bôeres, sugeriu aos xhosa
esta ação suicida de modo que o desespero os rebelasse contra os britânicos
10
.
Alguns pensam que se tratara de um complô urdido por um branco para os
xhosa se autodestruírem.o se dispõe de provas que deem suporte a nenhuma
destas teses. Monica Wilson talvez tenha razão ao interpretar o massacre dos
xhosa de seu próprio rebanho como um movimento milenarista análogo aos
que marcaram a história da Europa, da América e de outras partes da África.
Esta foi, nos que diz ela, uma ão pela qual o povo buscava se livrar de um
domínio estrangeiro e recuperar as terras que tinham sido monopolizadas pelos
colonos brancos
11
.
Grey soube tirar proveitos destes acontecimentos e do subsequente enfra-
quecimento dos xhosa e tembu. Ele confiscou vastas extensões de terra de um
grande número de chefes de Sandile que ele supunha fomentar a rebelião contra
os britânicos. Os chefes desapossados e os súditos de Sarili foram então expulsos
para a outra margem do Mbashe, de modo a deixar uma zona vazia, percor-
rida pela polícia britânica, entre o Kei e o Mbashe. Ele incitou, igualmente, os
imigrantes brancos a se instalarem nas terras confiscadas. A população negra e
branca foi administrada como um distrito separado, tendo o seu próprio vice-
-governador. Em 1865, Wodehouse concluiu que o Ciskei era muito pobre e de
10 E. A. Walker, 1957, p. 289.
11 M. Wilson, 1969b, p. 256 -260. Ver também C. Brownlee, 1896, p. 135 -170.
181
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
administração muita cara para se constituir em uma colônia distinta. Por isso
foi integrado à colônia do Cabo.
Os brancos de Natal fizeram também, antes de 1870, progressos no plano
constitucional. Alguns anos após a sua anexação, numerosos bôeres cruzaram
o Drakensberg para chegarem ao planalto, protestando, deste modo, contra o
não reconhecimento pelos britânicos de suas reivindicações territoriais, contra
a política africana da Grã -Bretanha e contra as novas disposições políticas que
os excluíam completamente de qualquer participação. Ao mesmo tempo, Natal
contava com uma importante população africana composta, em boa parte, de
exilados de volta à região de onde eles haviam sido expulsos durante o Mfecane.
Em primeiro lugar, a frágil administração colonial de Natal teve que respon-
der à questão de como governar os africanos. As soluções foram levadas pela
comissão de 1846 e aperfeiçoadas por Theophilus Shepstone, agente diplomá-
tico e secretário das relações africanas (1853 -1875). A comissão recomendou a
criação de reservas ou de zonas onde os africanos poderiam se estabelecer. Em
1860, as terras, totalizando de 810.000 hectares, haviam sido delimitadas neste
sentido, mas elas situavam -se, em sua maioria, em regiões acidentadas, áridas e
selvagens que não eram apropriadas para a agricultura. A comissão fez outras
recomendações relacionadas, em particular à educação dos africanos, à adminis-
tração de cada um dos territórios que lhes foram reservados por um funcionário
branco apoiado por uma força policial formada por brancos e negros, além da
substituição do direito africano pelo direito romano holandês. Algumas destas
recomendações jamais foram implementadas, por falta de créditos. Deste modo,
a educação dos africanos continuou a ser amplamente, se não exclusivamente,
confiada aos missionários que dispunham de meios financeiros e materiais insu-
ficientes. Quanto à administração, ela foi assegurada por Shepstone.
Falando correntemente as línguas nguni e tendo vivido entre os xhosa, Sheps-
tone conseguiu estabelecer algumas relações funcionais com as comunidades
africanas. Todos os africanos vivendo nas reservas foram colocados sob a res-
ponsabilidade dos chefes principais e ordinários, ainda que fosse necessário criar
esta segunda categoria de chefes onde antes não havia. As leis africanas foram
mantidas, exceto aquelas relativas à feitiçaria. Para financiar a sua administra-
ção, Shepstone instituiu um imposto sobre as moradias, pagável em dinheiro
ou em rebanho que poderia ser vendido aos fazendeiros brancos para conseguir
dinheiro. Esta administração foi constantemente exposta à hostilidade dos colo-
nos brancos que lhe reprovavam por haver assegurado a autonomia financeira
aos africanos, evitando, deste modo, que eles se tornassem trabalhadores agríco-
las nas fazendas e plantações. Mas não era porque ele os amava que Shepstone
182
África do século XIX à década de 1880
manteve os africanos nas reservas. Ele compreendeu, simplesmente, que ao ten-
tar fazer deles, à força, trabalhadores agrícolas, eles suscitaria uma resistência que
a administração colonial de Natal, relativamente frágil, não poderia enfrentar.
Os colonos descontentes parecem haver esquecido a contribuição dos africanos
às receitas dos proprietários de terras que viviam de aluguéis desembolsados
por mais da metade dos negros assentados como “meeiros” nas explorações dos
brancos; esqueceram também das receitas geradas para a colônia pelo imposto
sobre as casas. De fato, Shepstone havia estruturado uma administração de
baixo custo que permitia à sociedade colonial branca explorar os africanos e seus
recursos naturais num clima de paz e de segurança relativo
12
.
A sociedade branca era principalmente de origem britânica. Após o vazio
deixado pela emigração dos bôeres, a população branca foi acrescida regular-
mente com a chegada de britânicos que fugiam dos problemas sociais provo-
cados na G -Bretanha pela crise econômica de 1847 -1851. Cerca de 5.000
colonos brancos, financiados por especuladores, deixaram nesta época a G-
-Bretanha por Natal. Em 1870, os brancos eram 18.000. O crescimento do
número de colonos brancos ia junto com algumas mudanças constitucionais.
Em 1856, Natal tornou -se uma colônia distinta com um Conselho legislativo.
O direito de votar era atribuído, sem distinção de cor, a todo dito britânico
do sexo masculino que possuísse um nimo de bens/recursos de um valor
de 50 libras ou alugando tais bens de um valor de 50 libras por um aluguel
anual de 10 libras. Mas os brancos fizeram com que os africanos não pudessem
satisfazer as condições necessárias para votar. Uma lei, promulgada em 1865,
permitia aos africanos que soubessem ler e escrever e que possuíssem algum
bem solicitarem ao vice -governador a iseão das disposições do direito cos-
tumeiro africano. O vice -governador podia rejeitar a solicitação, mesmo se o
africano preenchesse as condições necessárias. Além do mais, para ter o direito
de votar, o africano isento devia provar que residia há mais de sete anos em
Natal e apresentar uma solicitação apoiada por três eleitores brancos e ava-
lizada por um juiz ou por um outro funcionário branco tido como aceitável.
Mesmo assim, o vice -governador poderia rejeitar a solicitação. Consequen-
temente, até 1903 -1905, somente três africanos puderam obter o direito de
votar em Natal e na Zululândia
13
.
Do ponto de vista econômico, Natal tornou -se dependente da indústria
açucareira que exigia mão de obra abundante. Os esforços empregados para
12 E. H. Brookes, 1974, p. 41 -57; J. Guy, 1980, p. 41 -44.
13 E. H. Brookes, 1974, p. 55 -57; E. H. Brookes e C. de B. Webb, 1965, p. 75 -77.
183
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
obrigar os africanos a fornecerem esta força de trabalho foram em vão, devido
às condições de trabalho medíocres e aos baixos salários oferecidos pelos plan-
tadores. Estes últimos, com a ajuda do seu governador, recorreram à importação
de mão de obra indiana. O sistema era o seguinte: após ter trabalhado dez anos
em Natal, o trabalhador indiano podia escolher entre retornar a Índia, com a
viagem paga, ou se instalar definitivamente em Natal em terras que lhe eram
atribuídas. Os primeiros trabalhadores indianos chegaram em 1860. Por volta
de 1870, eles eram 6.000 em Natal, dos quais muitos escolheram permanecer
na África do Sul. Graças a esta mão de obra, a indústria açucareira do Natal
foi implantada solidamente e se desenvolveu a ponto de fornecer, entre 1861 e
1871, o produto de exportação mais importante da colônia.
Assim, fica claro que, no início da década de 1870, o poder, tanto em Natal
quanto na colônia do Cabo, concentrou -se pouco a pouco nas mãos dos colonos
brancos graças a um sistema de disposições constitucionais. Na colônia do Cabo,
onde vivia uma maioria de brancos não anglófonos, a Constituição foi além
dos únicos critérios dos recursos financeiros para que o poder permanecesse
nas mãos dos ingleses. Quanto aos africanos, tanto em Natal quanto no Cabo,
foram amontoados nas reservas onde eram submetidos ao imposto, a fim de
obrigá -los a se engajar como trabalhadores nas empresas dos brancos e assegurar
o financiamento da sua própria administração. Além dos próprios obstácu-
los financeiros, os colonizadores procuraram sistematicamente transformar os
africanos em proletários, recorrendo para isto a diversos meios: educação com
orientação técnica; ruptura da sua coesão social ao despojar os chefes de seus
poderes; aplicação das leis europeias; limitação das terras postas à sua disposição
e, sobretudo, às atividades missionárias cristãs.
As repúblicas bôeres antes de 1870
Enquanto entre 1850 e 1860 as duas colônias britânicas progrediram cons-
titucionalmente e estabeleceram, com ajuda da potência imperial britânica, os
mecanismos apropriados para garantir a supremacia política branca, para privar
os negros de seus recursos econômicos e explorá -los, os bôeres se esforçaram
também para alcançar a unidade interna e subjugar as comunidades africanas do
interior. Quando os britânicos se retiraram da margem norte do rio Orange, os
bôeres estavam divididos em diversos grupos. A principal destas divisões seguia
o curso do Vaal e por isso surgiram as duas repúblicas bôeres: o Estado livre de
Orange ao Sul e o Transvaal (República Sul -africana) ao Norte.
184
África do século XIX à década de 1880
Em 1854, quando foi assinada a Convenção de Bloemfontein, é provável que
um grande número de habitantes do Estado livre de Orange tenha desejado a
independência, mas apenas um pequeno número dentre eles estava preparado.
Além da pobreza, ignorância, fragilidade militar e a ausência de infraestrutura
administrativa, o Estado livre temia o seu poderoso vizinho, o reino sotho de
Moshoeshoe, com o qual não tinha fronteiras definidas. Além disso, permane-
ceu fundamentalmente dividido, durante diversas décadas, entre os partidários
da fusão com a colônia do Cabo, ao Sul, e aqueles que desejavam integrar -se à
república irmã, ao Norte. Ele se expôs deste modo a frequentes ingerências de
seus dois vizinhos.
Foram principalmente os Trekboers e os Voortrekkers que se enfrentaram
nesta questão. Os primeiros foram os bôeres que tinham atravessado o Orange
em busca de terras, antes do Grande Trek. Eles, em sua maioria, tinham se fixado
ao Sul do território que se tornaria o Estado livre de Orange. Todas as vezes
que se encontravam em guerra com seus vizinhos africanos, tendiam a se voltar
para o Sul para obter ajuda. Foram reforçados pelos britânicos comerciantes
e especuladores fundiários que se estabeleceram em Bloemfontei durante o
breve período de anexação. Eram chamados de lealistas” ou reanexionistas”.
Os bôeres que viviam no Nordeste da república, principalmente no distrito de
Wimburg e de sua periferia, eram muito diferentes deste grupo. Eram produtos
do Grande Trek, homens e mulheres que tinham deixado a colônia do Cabo por
se ressentirem diante do governo britânico. Estes Voortrekkers,fiéis maatscha-
ppijers ou ainda patriotas republicanos, de acordo com os diversos nomes que
lhes foram dados, foram sempre partidários da independência completa com
relação aos britânicos. Quando se encontraram em dificuldade, foi ao Transvaal
que solicitaram ajuda
14
. Esta divisão contribui para explicar o fato de Sir George
Grey, o governador e alto -comissário federalista, haver facilmente incitado o
Estado livre de Orange, em 1858, a pensar sobre a ideia da fusão com a colônia
do Cabo; o fato de os habitantes do Estado livre terem elegido como presidente
do Transvaal Marthinus Wessel Pretorius (1860 -1863); e o fato de este Estado
ter permanecido neutro durante a guerra anglo -bôer de 1880 -1881. A despeito
de todas estas fragilidades, o Estado livre de Orange conseguiu apresentar algu-
mas características de um Estado bem antes do Transvaal. O próprio comitê,
o qual tinha negociado a independência com os britânicos, tomou as medidas
necessárias para a formação do primeiro governo e produziu uma constituição
14 F. A. Van Jaarsveld, 1961, p. 29.
185
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
inspirada na dos Estados Unidos. O regime tinha um presidente, detentor do
poder executivo e um Volksraad (corpo legislativo). Os bôeres não buscavam
disfarçar o seu racismo ao tornar o direito ao voto dependente de critérios
materiais difíceis de serem satisfeitos, como aquele praticado pelos britânicos
em suas colônias: os negros não eram cidadãos e não podiam votar. Somente os
brancos após seis meses de residência tornavam -se cidadãos e todo branco que
se inscrevesse no serviço militar poderia votar
15
.
O primeiro presidente, Josias P. Hoffmann, não permaneceu muito tempo
no poder que os bôeres concluíram que ele tinha muito boas relações com
Moshoeshoe e com os colonos ingleses. Ele teve que se retirar. Johannes Nicolaas
Boshof, que tinha grande experiência administrativa e era partidário da indepen-
dência total da república, foi eleito para sucedê -lo. Ele criou um sólido quadro
de funcionários e organizou as finanças públicas em bases sólidas
16
. A sua gestão
tampouco foi um período de menor instabilidade, em virtude das contestações
de fronteiras com o Lesoto e das tensões entre os maatschappijers e os lealistas
que levaram à intervenção de Sir George Grey e de Pretorius. Em outubro de
1855, Sir George Grey conseguiu organizar um encontro entre Moshoeshoe e
Boshof para que assinassem um acordo enunciando os procedimentos para a
resolução de litígios entre seus povos. Nenhuma fronteira foi fixada, e Mosho-
eshoe declarou mais tarde que ele havia apenas assinado o tratado por respeito
a Sir George Grey
17
. Deste modo, nada fez para impedir disputas entre seus
súditos e os bôeres. Sempre às voltas com os problemas fronteiriços, Boshof
teve que enfrentar Pretorius, que desejava unir as duas repúblicas bôeres. Persu-
adido erroneamente de que a maioria dos habitantes do Estado livre de Orange
desejava a fusão com os seus irmãos do Norte e afirmando ter herdado de seu
pai, Andries Pretorius, a qualidade de dirigente do Estado livre, ele entrou em
Bloemfontein em 22 de fevereiro de 1857; no dia seguinte, anunciou que tinha
a intenção de tomar a direção do Estado e declarou o governo de Boshof fora
da lei. Rejeitando as suas pretensões, o governo de Boshof o expulsou e acusou
os seus partidários de revolta. Este incidente provocou, nas duas margens do
Vaal, a mobilização de grupos armados que, em 25 de maio, chegaram cada qual
em uma das margens do rio Rhenoster. Pretorius tinha contado que inúmeros
maatschappijers abandonariam Boshof e se juntariam ao seu exército. Ele ficou
surpreso em ver que as defecções em seu favor não eram numerosas e que ele se
15 L. ompson, 1969b, p. 429 -430; C. F. J. Muller, 1975, p. 233 -235.
16 C. F. J. Muller, 1975, p. 255.
17 G. M. eal, 1900, p. 16 -18.
186
África do século XIX à década de 1880
encontrava, além disso, ameaçado em sua retaguarda por um novo inimigo, mais
perigoso: Stephannus Schöeman, o comandante do Zoutpansberg que, como
ele, buscava ser o principal dirigente do Transvaal e que tinha concluído uma
aliança com o Estado livre. Temendo ser completamente aniquilado, Pretorius
aceitou, em de junho de 1857, assinar um acordo no qual as duas repúblicas
reconheciam mutuamente a sua autonomia
18
. Este episódio, todavia, revelou
claramente que os bôeres estavam profundamente divididos.
O acordo não aliviou as tensões existentes entre as três facções que tinham se
constituído no Estado livre de Orange. A saber: os lealistas, favoráveis à reuni-
ficação com a colônia do Cabo, os partidários de Boshof, favoráveis à indepen-
dência do Estado livre de Orange e os unionistas, que desejavam a incorporação
ao Transvaal. As tensões exarcebaram -se de tal modo que Boshof foi, por tática,
obrigado a renunciar em fevereiro de 1858, e assim que ele retirou a sua renúncia,
vários membros do Volksraad deixaram as suas cadeiras em sinal de protesto. A
estes conflitos internos juntaram -se as querelas de fronteiras cada vez mais fre-
quentes com o Lesoto. Boshof decidiu acabar com a situação invadindo o Lesoto
em março de 1858. Ao se dirigir para Thaba Bosiu, a fortaleza de Moshoeshoe,
os comandos bôeres deixaram sua retaguarda sem defesa, e esta foi atacada pelo
exército de Lesoto. Abandonando a luta, voltaram para casa para defender suas
famílias e os seus bens. Antes mesmo de esta invasão do Lesoto, empreendida
sem muita convicção, evidenciar a fragilidade militar do Estado livre de Orange,
Boshof tinha consciência de tal fraqueza e solicitara ajuda militar de Preto-
rius e de Sir George Grey
19
. Em resposta, Grey organizou um encontro entre
Moshoeshoe e Boshof em 29 de setembro de 1858, eles assinaram o tratado de
Aliwal North que confirmava as fronteiras de Warden
20
.
Pretorius, ao contrário, viu nisso uma ocasião para tentar novamente unificar
as duas repúblicas bôeres. O Transvaal indicou claramente que não poderia aju-
dar o Estado Livre de Orange caso esse se deixasse absorver. A perspectiva de
unificação das duas repúblicas alarmou Grey que sonhava com uma federação
reagrupando as repúblicas, individualmente, com as colônias britânicas. Desde
1857, Grey chegara à conclusão que a Grã -Bretanha tinha cometido um erro
ao se retirar do interior da África do Sul. Ele começou a exigir a suspensão das
convenções e o restabelecimento da autoridade britânica no seio de uma forma
de federação. Ele temia que, fragmentados como estavam, os brancos fossem
18 Ibid., p. 40 -45.
19 Ibid., p. 50 -60; P. Sanders, 1975, p. 203 -236; L. ompson, 1969b, p. 432.
20 P. Sanders, 1975, p. 233 -241.
187
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
enfraquecidos em relação aos Estados africanos de toda a região. Ele receava
que as repúblicas eres se unissem e mantivessem relações com potências
estrangeiras, ameaçando assim as colônias e importantes bases navais britâni-
cas. Além disso, Grey pensava que os inúmeros conflitos entre bôeres e estados
africanos constituíam um perigo potencial para as colônias britânicas, que cer-
tamente teriam que se envolver. Por conseguinte, Grey empenhou -se em conter
as veleidades de unificação dos bôeres informando -lhes que, caso se unissem, a
Grã -Bretanha se consideraria livre de suas obrigações baseadas nas convenções,
que ela negociaria, alianças com os Estados africanos e iria mesmo vender -lhes
armas. Os habitantes do Transvaal, para salvaguardar a independência de sua
região, renunciaram a transpor o Vaal, deixando Grey encorajar o Estado livre
a tomar medidas para se unir com a colônia do Cabo. Mas, em junho de 1859,
quando tentava incitar o Parlamento do Cabo a discutir a oferta de união feita
pelo Estado livre, o governo britânico o excluiu da África do Sul.
O fracasso do projeto de federação desprestigiou Boshof e seus partidários,
que tinham apoiado com entusiasmo as tentativas de reunificação. O presidente
renunciou. Aquilo reforçou os unionistas que elegeram Pretorius à presidência.
Mas o desejo de unidade do Estado livre de Orange não tinha equivalência no
Transvaal, onde dominava o temor de uma denúncia da Convenção de Sand
River e de uma reanexação pelos britânicos. O Volksraad do Transvaal forçou
Pretorius a renunciar à presidência desta república, mas ele continuou por três
anos ainda a trabalhar pela causa da unidade por intermédio de seus partidários
do Transvaal. Em 1863, tendo fracassado mesmo no Estado livre de Orange, ele
se retirou do território de sua república.
O fracasso das tentativas de unificação com o Cabo ou o Transvaal incitou a
população do Estado livre a se encarregar do destino nacional, Johannes Hen-
ricus Brand, jurista e parlamentar experiente do Cabo, foi eleito presidente. Ele
permaneceria neste cargo por vinte e cinco anos. Mas antes de tratar das relações
do Estado livre com os seus vizinhos sob a presidência de Brand, é conveniente
examinar a maneira pela qual o Transvaal se transformou em Estado.
O Transvaal demorou muito mais que o Estado livre de Orange para alcançar
este estágio. Ao Norte do Vaal, os bôeres eram muito dispersos. Eles estavam
divididos também por divergências religiosas. M. W. Pretorius, que sucedeu
seu pai em 1853 e, como vimos, não cessou de combater pela unificação das
duas repúblicas situadas em ambos lados do Vaal, foi também o grande defen-
sor da unificação do Transvaal. Ele lutou contra diversos grupos separatistas,
notadamente os Zoutpansbergers estabelecidos no Norte, ao redor da vila de
Schoemansdaal; os Lydenburgers e W. F. Joubert a Leste; e os bôeres do distrito
188
África do século XIX à década de 1880
de Utrecht, ao longo do Búfalo. O grupo mais importante era o do próprio
Pretorius na região de Potchefstroom -Marico -Rustenburg.
Uma certa forma de unidade foi estabelecida em 1849 com a adoção dos
trinta e três artigos de 1844 como constituição
21
. Os artigos não eram mais
do que regras e leis gerais regendo a administração da justiça e a eleição dos
membros do Volksraad. A sua deficiência mais grave era a ausência de distinção
entre as funções legislativas e executivas, de modo que o Volksraad esforçava -se
em exercer ambas. Além disso, como não havia capital, o Volksraad se reunia em
diferentes vilarejos onde o quorum nunca era alcançado, de modo que precisou
cooptar, no local, pessoas que não eram membros dele. Pretorius se esforçou pela
adoção de uma verdadeira constituição prevendo um legislativo e um executivo.
Sobre este ponto, ele se opôs aos Lydenburgers, que desconfiavam extremamente
de toda concentração do poder executivo nas mãos de um só homem, por exem-
plo, o presidente, por temor que ele fosse tentado a tornar -se um autocrata.
Estas divergências foram agravadas pelas disputas religiosas. Para romper
completamente seus laços com o Cabo, Pretorius pressionou a comunidade de
Potchefstroom para se retirar do sínodo da Nederduitse Gereformeerde Kerk do
Cabo (Igreja Reformada da Holanda). A comunidade de Potchefstroom cons-
tituiu, deste modo, uma Igreja independente, a Nederduitse Herewormde Kerk
(NHK), cujos pastores deveriam ser recrutados na Holanda. Os Lynderburgers
mantiveram os seus laços com a colônia do Cabo, enquanto uma cisão da NHK
produziu uma nova congregação, a Gereformeerde Kerk van Suid -Africa, que se
caracterizou pela recusa de cantar os cânticos na igreja.
Apesar de todas estas diferenças, em janeiro de 1857, foi apresentado um
projeto de constituição prevendo um presidente, um poder legislativo, um poder
judiciário e um exército. O Volksraad, que era dominado pelos partidários de
Pretorius, elegeu este para presidente e Johannes Schöeman, o dirigente do Zou-
tpansberg, para chefe do exército. Schöeman rejeitou a constituição e recusou as
funções militares que lhe foram ofertadas. Ele formou um comando para atacar
os partidários de Pretorius no distrito de Rustenburg. As duas partes concor-
daram em constituir um comitê encarregado de emendar a Constituição a fim
de levar em conta os votos dos Zoutpansbergers, e a guerra foi evitada. Uma vez
que a Constituição foi adotada, em 1858, Pretorius e Schöeman tornaram -se,
respectivamente, presidente e comandante -em -chefe; em 1860, os Lydenburgers
foram persuadidos a se integrarem à república.
21 G. M. eal, 1900, p. 413 -417, para a tradução inglesa dos artigos.
189
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
Entretanto, como vimos, Pretorius, ao aceitar a presidência do Estado livre
de Orange, lançou a república nascente ao caos. Temendo colocar em risco a
independência do Transvaal, o Volksraad exigiu que Pretorius escolhesse entre
as duas presidências; ele renunciou à do Transvaal. Todavia, ele continuou a
intervir nos assuntos daquela república, através de Schöemann e da população de
Potchefstroom, que era a mais determinada a apo-lo. Criaram uma comissão em
que os poderes e as funções fizessem concorrência com o Volksraad. Este último
nomeou, por sua vez, seu presidente e seu comandante -em -chefe, e os dois
governos declararam um e outro ser o da república. A paz somente chegou ao
Transvaal em 1864, quando Pretorius renunciou as suas funções no Estado livre
de Orange e foi reeleito presidente do Transvaal. Ele governou até o momento
em que, na década de 1870, foi obrigado a renunciar por ter defendido mal as
reivindicações da república em relação aos campos diamantíferos.
A relação entre os bôeres e os africanos antes de 1870
No Transvaal como no Estado livre de Orange, inúmeras comunidades afri-
canas haviam sido ou destruídas e absorvidas pelos Estados efêmeros oriundos
do Mcfane, como o reino ndebele de Mzilikazi, ou forçadas a se refugiar em
regiões de difícil acesso e facilmente defensáveis. A partir de então, os chefes
engenhosos, como Moshoeshoe, conseguiram reunir ao seu redor inúmeros
refugiados e constituir nações poderosas, na década de 1840, após a expulsão
dos ndebele da região pelos bôeres. Estes Estados, como vimos no caso do
Lesoto, eram suficientemente fortes para enfrentar ao mesmo tempo os inva-
sores bôeres e os britânicos.
Após a expulsão dos ndebele, vários grupos pequenos que eram submissos
a Mzilikazi, mas não tinham sido totalmente incorporados à sua nação, bem
como outros que se subtraíram aos ndebele colocando -se fora das áreas de
suas frequentes escaramuças, recuperaram os territórios onde viviam antes. Um
grande número destas populações foi subjugado pelos bôeres e incorporado aos
seus Estados antes que pudessem se dotar de meios necessários para se defender.
Foram os africanos que sofreram a exploração econômica direta dos bôeres, nos
próprios termos das leis promulgadas por estes últimos em matéria de cidadania,
de trabalho etc. A Constituição do Transvaal, por exemplo, rejeitou toda noção
de igualdade entre negros e brancos. Para excluir toda possibilidade de resistên-
cia real dos africanos, os povos incorporados se viram interditados da posse de
armas de fogo ou de cavalos e obrigados a trazer consigo, permanentemente, um
190
África do século XIX à década de 1880
passe livre fornecido pelos seus empregadores ou por representantes dos poderes
públicos. Cada fazendeiro tinha o direito de manter em suas terras um certo
número de famílias africanas que lhe forneciam, regularmente, mão de obra
gratuita. No tocante aos indígenas, vivendo na zona europeia sob a proteção
direta dos bôeres, o trabalho regular seria considerado como um serviço prestado
a título de retribuição pelas terras que lhes foram atribuídas
22
”.
Os africanos que não viviam nas fazendas eram subordinados aos chefes, e as
áreas dos chefes eram estabelecidas em sítios ou reservas que lhes eram atribuí-
dos. Estes sítios eram muito dispersos e cada um era localizado o mais perto pos-
sível de uma zona cultivada pelos brancos. Estas disposições visavam dividir os
africanos de forma a impedir qualquer risco de rebelião orquestrada e de modo
que cada fazendeiro branco tivesse facilmente acesso a um reservatório de mão
de obra negra. Cada chefe pagava um imposto em rebanho e em mão de obra.
De fato, uma das tarefas importantes dos landdrosts (magistrados) e dos fieldcor-
nets (comandantes dos postos militares) consistia em requisitar trabalhadores
dirigindo -se aos chefes dos seus distritos e em reparti -los entre os fazendeiros
brancos sob contratos de um ano. Os chefes deviam também fornecer homens
aos bôeres para lhes servirem como apoiá -los em tempos de guerra.
O Transvaal praticou um outro sistema contestado de aprendizado seme-
lhante ao em vigor na colônia do Cabo. As crianças africanas capturadas durante
as guerras eram distribuídas aos fazendeiros para os quais eles trabalhavam até a
idade de vinte e cinco anos se fossem meninos e até os vinte e um anos se fossem
meninas. Em troca de favores ou de uma quantia ínfima de dinheiro, os pais
africanos incorporados foram de início persuadidos e depois forçados a oferecer
seus filhos aos fazendeiros, que os criavam como aprendizes. Não era raro que os
bôeres organizassem incursões contra os Estados africanos vizinhos com o único
fim de capturar crianças. Embora a venda destas crianças entre os fazendeiros
fosse proibida pelas leis do Transvaal, todo este dispositivo se assemelhava à
escravidão e foi denunciado como tal pelos missionários e comerciantes
23
.
Os bôeres tinham a pretensão de serem os donos legítimos do Transvaal e
de seu povo, pois tinham conquistado esta região e expulsado os ndebele. Eles
consideravam, assim, terem o direito de exigir a submissão e os serviços de todos
os africanos ao Sul do Limpopo. Suscitaram deste modo uma resistência ferre-
nha dos tswana a Oeste, dos sotho e dos venda ao Norte e dos pedi a Leste. Os
22 W. Kistner, 1952, p.213.
23 L. ompson, 1969b, p. 435 -437; para o sistema colonial do Cabo, durante as suas primeiras décadas,
ver A. Atmore e S. Marks, 1974, p. 116.
191
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
kwena de Sechele ao redor de Dimawe e os ngwaketse do chefe Gaseitsiwe, ao
redor de Kenye, por exemplo, compraram fuzis dos missionários e dos comer-
ciantes e os utilizam na resistência aos bôeres. Assim, puderam preservar a sua
independência, de modo que seus territórios serviram de via de passagem aos
missionários e aos comerciantes desejosos de chegarem ao Norte, que não
estavam autorizados a passar pelo Transvaal.
No Leste, os pedi resistiram à pressão militar dos bôeres de Ohrigstad e de
Lydenburg até 1857, data em que uma fronteira foi traçada entre as duas comu-
nidades ao longo do rio Steelport. Entretanto, os pedi não demoraram a perceber
a importância e a eficácia dos fuzis, particularmente quando se entrincheiravam
em suas fortalezas do monte Lulu. Antes de 1860, se esforçavam em constituir
estoques importantes de armas de fogo, comprando -as dos comerciantes. A fim
de pagá -las, foram trabalhar em Natal, na colônia do Cabo e na Griqualand
Ocidental, quando da abertura das minas de diamantes
24
.
Ao Norte, foram os venda, os ndebele do Transvaal e os sotho que resistiram
à expansão dos bôeres. Em 1854, por exemplo, homens do chefe sotho Maka-
pane, a Leste dos montes Watberg, mataram doze brancos pertencentes a um
grupo de caçadores liderados pelo comandante bôer Hermanus Potgieter. Tais
brancos tinham tratado o chefe Makapane com arrogância, aparentemente “ao
exigir que bois e carneiros a serem abatidos lhes fossem doados e ao forçar os
negros a dar -lhes diversas crianças como escravos”
25
. Quaisquer que tenham sido
as razões exatas de suas mortes, está claro que Makapane não queria os brancos
em suas terras, talvez porque temia que estes lhe fizessem concorrência na caça
ao marfim. A execução dos caçadores brancos deu o sinal para um ataque gene-
ralizado contra os estabelecimentos brancos ao Sul do Zoutpansberg. Todas as
comunidades bôeres da região e mesmo aquelas mais ao Sul, até Potchefstroom
e Rustenburg, colocaram as suas famílias em abrigo nos laagers. Um comando
bôer com mais de 500 homens foi arregimentado em todos os distritos do Trans-
vaal, exceto em Lydenburg, invadindo o território Makapane sob o comando
conjunto de H. Potgieter e do presidente Pretorius. Avisados da aproximação
dos invasores, os sotho se refugiaram em uma gruta aos arredores e se prepa-
raram para atirar no inimigo. Não podendo desalojá -los, os bôeres bloquearam
a entrada da gruta com paus e pedras, montando guarda durante vinte e cinco
dias para que ninguém pudesse escapar. Calcula -se em 900 o número de súditos
24 P. Delius, 1980.
25 G. M. eal, 1900, p. 27.
192
África do século XIX à década de 1880
de Makapane mortos tentando fugir e em mais do dobro deste número os que
morreram de fome e sede dentro da gruta
26
.
Os bôeres se retiraram, convencidos de que o massacre seria suficiente para
dissuadir os sotho e os venda do Norte de continuarem a resistência. Todavia,
uma outra rebelião se deu em 1859, um pouco mais longe ao Norte, em torno
da vila bôer de Schoemansdaal. A administração bôer deste vilarejo tratava
muito duramente os africanos locais, apoiando rebeldes, aumentando os tributos
e lançando contra chefias, que não a provocavam de forma alguma, expedições
armadas destinadas a capturar escravos. Os africanos foram vencidos, mas a
administração bôer perdeu na sequência o seu controle sobre os negros.
Em 1860, os venda do Zoutpansberg tinham aprendido a usar as armas
de fogo para a guerra e para a caça. Seu país, cheio de elefantes, era ponto
frequente de encontro de caçadores e comerciantes brancos. Muitos dentre
os venda colocavam -se a serviço dos caçadores e tornaram -se especialistas no
manuseio e na manutenção dos fuzis. Quando os caçadores, ao seguirem os
elefantes, avançavam até o vale do Limpopo, o qual era infestado pelas moscas
tsé -tsé, eram obrigados a abandonarem seus cavalos e seguirem a pé. Eram
então os africanos que caçavam com os fuzis que os comerciantes brancos lhes
emprestavam. Eram chamados de swart -skuts (atiradores negros). Muitos des-
tes fuzis não foram entregues aos seus proprietários brancos, mas serviram, de
fato, para caçar os colonos bôeres de Schoemansdaal. Um dos dirigentes da
rebelião de 1867, o chefe venda Makhado, era também um antigo swart -skut.
A revolta de 1867 teve tal sucesso que os bôeres abandonaram o distrito do
Zoutpansberg
27
.
Durante este tempo, os bôeres do Estado livre de Orange tinham, sobretudo,
que enfrentar os sotho do Sul, sobre os quais reinava Moshoeshoe, os rolong de
Moroka e os griqua de Adam Kok. Este último deixou de ser um problema em
1861, ano em que vendeu os seus direitos territoriais ao Estado livre de Orange,
emigrou para a No Mans Land, e fundou a Griqualand Oriental. Moroka per-
maneceu também um fiel cliente do Estado livre de Orange.
Os sotho de Moshoeshoe permaneceram determinados a resistir à expansão
dos bôeres. Embora o rei tenha assinado o tratado de Aliwal North em 1858,
aceitando assim a fronteira traçada por Warden, ele não tinha intenção alguma
de impô -lo ao seu povo, que continuou a violá -lo. A partir de 1860, todavia, os
bôeres tornaram -se mais poderosos do que os sotho. O rei estava velho e não
26 Ibid., p. 23 -31.
27 L. ompson, 1969b, p. 440 -442; R. Wagner, 1980, p. 330 -336.
193
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
tinha controle algum sobre seus filhos, os quais disputavam sua sucessão. O
Estado livre estava, ao contrário, cada vez mais forte. A economia tornava -se tão
florescente que os fazendeiros faziam de tudo para melhorar o seu rebanho, cujos
produtos eram facilmente vendidos em Natal e na colônia do Cabo. A popula-
ção estava em expansão graças à chegada de imigrantes vindos das colônias. A
partir de 1863, os cidadãos do Estado livre eram, também, muito ligados à sua
independência, de modo que o presidente Brand podia contar com o seu zelo
patriótico para entrar numa guerra de longa duração. Também, quando a guerra
de 1865 irrompeu, após inúmeras violações de fronteiras cometidas por ambos os
lados, os bôeres puderam sustentar uma campanha impiedosa contra o Lesoto;
e foram, ao contrário, os sotho que deram os sinais de desunião. Molapo, o filho
de Moshoeshoe, o qual governava o Norte do país, concluiu um tratado de paz
bilateral com os bôeres. Esta falta de unidade forçou Moshoeshoe a assinar, em
1866, o tratado de Thaba Bosiu, nos termos do qual ele teve de ceder muitas de
suas terras aráveis ao Estado livre de Orange. Mas Moshoeshoe buscava, assim,
somente ganhar tempo, a fim de reorganizar o seu povo; uma outra guerra
irrompeu em 1867. Ela se arrastou até que os ingleses interviessem.
Desde 1861, Moshoeshoe solicitara a proteção dos britânicos. Ele reiterou
sua solicitação em 1865 por intermédio do governador e alto -comissário, Sir
Philip Wodehouse. Este, partidário de uma expansão britânica na África do
Sul, viu na anexação do Lesoto um passo à direção certa. Enquanto se punha a
dissuadir o governo branco de concordar com a solicitação de Moshoeshoe, ele
tomou medidas para cortar o fornecimento de armas para os bôeres, de modo
que o Estado livre de Orange não pudesse se apoderar do Lesoto. Em 12 de
março de 1868, tendo sido autorizado pelo governo britânico a conquistar o
Lesoto, ele o anexou como colônia da Coroa.
A expansão britânica na África do Sul, 1870 ‑1880
A anexação do Lesoto representava uma mudança em relação à política
britânica de retirada das regiões situadas ao Norte do Orange. Esta mudança
tornou -se mais aparente ainda com a recusa de aceitar a expansão territorial
do Transvaal, em 1868, e a anexação da Griqualand Ocidental, em 1871. A
expansão britânica coincidiu com a época em que os recursos minerais foram
descobertos na África Austral. Em 1867, um diamante foi retirado em Hope
Town, na colônia do Cabo, e, no ano seguinte, a exploração dos garimpos alu-
viais e eluviais começou ao longo do Vaal, em direção a sua confluência com o
194
África do século XIX à década de 1880
Orange. Ainda em 1868, um caçador de elefantes chamado Henry Hartley e
um geólogo chamado Carl Mauch marcaram as jazidas de ouro entre as terras
dos ndebele e a dos ngwato, bem como na Mashonaland. Embora as descobertas
de ouro se revelassem, em sua maioria, ilusórias, elas suscitaram inicialmente
um interesse forte, tanto na África do Sul como na Grã -Bretanha; quanto à
exploração do diamante, rapidamente ocupou um lugar de proeminência na
economia sul -africana.
O presidente Pretorius, cujo Estado parecia padecer de uma pobreza crônica,
pensara em remediá -la expandindo o seu território de modo a englobar a maior
parte das jazidas minerais conhecidas e assegurar uma saída para o mar. Em abril
de 1868, ele anunciou que a sua república se estendia ao Norte e a Oeste até
o Lago Ngami e a Leste até uma parcela do litoral ao Sul da baía de Delagoa.
Os portugueses detentores, perto desta baía, da pequena vila de Maputo, pres-
sionaram o governo a se opor à expansão bôer e se juntaram aos missionários
e comerciantes britânicos os quais temiam não mais poder atingir a África
Central para protestar com veemência junto a Pretorius que, em 1869, havia
renunciado às suas ambições territoriais.
Entretanto, a descoberta dos diamantes levava o Transvaal, o Estado Livre de
Orange, a Griqualand Ocidental de Waterboer, os rolong e os tlaping a disputa-
rem os territórios. O Transvaal e o Estado livre de Orange reivindicavam ambos
a zona compreendida entre o Harts e o Vaal; o presidente Brand retirou -se em
favor do presidente do Transvaal, Pretorius. Este último e os Estados africanos
submeteram as suas divergências à arbitragem do vice -governador de Natal,
Robert Keate, o qual deu razão aos africanos. Brand, por sua vez, exigiu uma
arbitragem dos seus conflitos territoriais com a Griqualand Ocidental, mas os
britânicos se recusaram, com medo de que a sua posição de potência prepon-
derante na África do Sul fosse colocada em questão. Waterboer decidiu, então,
se colocar sob a proteção dos britânicos que anexaram não a Griqualand
Ocidental, como também os demais campos diamantíferos, em 27 de outubro
de 1871.
A declaração tornando o Lesoto um protetorado que, segundo Brand, inter-
veio no momento oportuno para impedir os bôeres de conquistar e absorver este
país, assim como os limites impostos à expansão do Transvaal e a tomada dos
campos diamantíferos causaram aos bôeres um desgosto tal que, durante muitos
anos, recusaram qualquer cooperação com os britânicos. Estas medidas refor-
çaram igualmente sua resistência a todas as tentativas dos britânicos de estabe-
lecerem sua hegemonia pela força. O período de expansão britânica na África
Austral, que começou então,foi objeto de inúmeras discussões entre os histo-
195
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
riadores. Shula Marks e Antony Atmore
28
, em particular, criaram um inventário
sucinto das interpretações que são normalmente dadas e depois apresentaram
algumas ideias novas, as quais por sua vez suscitaram novas pesquisas
29
.
Os dois historiadores dizem que os autores que se baseiam amplamente
nos arquivos oficiais”, como Robinson, Gallagher etc., reconhecem, em termos
gerais, a importância dos fatores econômicos para explicar o imperialismo britâ-
nico nas últimas décadas do século XIX, mas se abstêm de aludir a toda análise
econômica mais profunda e mais precisa dos acontecimentos que descrevem, seja
na África do Sul ou alhures”. Em vez disso, os historiadores que se colocam na
perspectiva oficial” consideram, no final das contas, que a expansão britânica
interveio quando os responsáveis políticos foram levados ao interior da África
(inclusive a África do Sul) para enfrentar “crises ou a situações de emergências”
na “fronteira ou na periferia de suas colônias ou de sua zona de influência.
Eles esquecem, observam Atmore e Marks, de realizar uma análise exaustiva
destas crises que, em definitivo, tinham um papel tão decisivo na formação do
império britânico. Com efeito, quando se estudam estas crises, percebe -se que
elas foram, na realidade, ligadas ao colapso das autoridades indígenas sob o peso
das exigências de uma Grã -Bretanha cada vez mais industrializada”. No início
do século XIX, estas pressões foram exercidas principalmente na frente oriental
da África do Sul onde os agentes oficiosos da Grã -Bretanha industrial mis-
sionários, comerciantes e administradores mostraram -se ativos. Mas no final
do século, quando os recursos minerais do interior foram descobertos, o apetite
da Grã -Bretanha industrial voltou -se rapidamente para esta região, e tanto os
Estados africanos quanto as repúblicas bôeres foram vítimas desta ganância.
Deste modo, embora a importância estratégica do Cabo na rota marítima da
Índia restasse, no final do século XIX, um dos fatores que influenciava a política
imperial da Grã -Bretanha na África do Sul, foram os seus interesses econômicos
crescentes que mais pesaram.
As empresas britânicas deviam desde dispor de uma abundante mão de
obra africana que era impossível de se obter de países independentes e econo-
micamente autônomos. Os reinos deveriam, então, ser desmantelados e os seus
povos transformados em proletários. A industrialização rápida da África do Sul
passou também pela subordinação dos Estados brancos já que as colônias, como
28 A. Atmore e S. Marks, 1974; ver também C. de B. Webb, 1981, onde uma distinção é feita entre as
interpretações “radicais” de Marks e Atmore e aquelas dos “conservadores” e dos “liberais”.
29 Ver, por exemplo, as contribuições reunidas e a introdução muito esclarecedora em S. Marks e A. Atmore
(org.), 1980.
196
África do século XIX à década de 1880
as repúblicas bôeres, eram incapazes de desempenhar eficientemente o papel de
colaboradores”. Isto resultou numa situação extremamente “complexa e confusa”.
A Grã -Bretanha buscava, entre outras coisas, se assegurar que seus interesses
seriam bem cuidados ao implantar na África do Sul uma confederação a ela
subordinada. Os historiadores que se colocam na perspectiva oficial”, da qual
C. F .Goodfellow
30
se tornaria o mais típico representante, explicaram a gênesis
e as modalidades da política de confederação que terminou com a anexação
do Transvaal, o que levou à queda do reino zulu e a destruição do Estado pedi
– pela personalidade do secretário britânico para as colônias, Lorde Carnarvon,
e do governador e alto -comissário, Sir Bartle Frere. Atmore e Marks mostram
que se esta análise pode efetivamente ser correta, as possibilidades oferecidas
pela política de confederação correspondiam particularmente bem aos interesses
e às exigências socioeconômicas da Grã -Bretanha na África do Sul.
É possível, consequentemente, que o Transvaal tenha sido anexado para
liberar a mão de obra africana bloqueada pelos pass laws (leis dos passes) de
1873 e 1874, a fim de que ela pudesse afluir livremente às minas de diamantes
e aos canteiros de construção da estrada de ferro na colônia do Cabo. Ademais,
o Transvaal obstruía a livre circulação da mão de obra africana ao permitir
aos especuladores imobiliários britânicos e colonos –viverem da receita dos
aluguéis que lhes eram pagos pelos meeiros africanos instalados em suas terras.
Estes meeiros não tinham a menor intenção de vender os seus serviços aos
proprietários das minas ou a outros empregadores brancos, pois tinham terras
o suficiente para sustentarem suas necessidades e pagarem seus impostos, ven-
dendo os produtos excedentes. Esta é a razão pela qual o Transvaal, bem como o
reino zulu, cujo sistema militar imobilizara os trabalhadores potenciais, estavam
condenados a desaparecer.
Deste modo, Norman Etherington
31
confirma a teoria de Marks e Atmore,
ao mostrar que, após a descoberta dos diamantes, a mão de obra africana fora
drenada de toda a sub -região, compreendidos também os territórios que cons-
tituem hoje Moçambique e o Zimbábue, e que o Transvaal, o Estado livre de
Orange e o reino zulu faziam obstrução à sua livre passagem. Além disso, Sheps-
tone, a principal fonte de informação dos homens que conceberam e executaram
a política britânica durante a década de 1870, não se preocupou somente em
buscar a mão de obra para os capitalistas britânicos; ele considerou, de maneira
geral, que, para resolver este problema, era necessário criar uma federação dos
30 C. F. Goodfellow, 1966.
31 N. A. Etherington, 1979.
197
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
Estados brancos executando uma política africana comum. Está claro, conse-
quentemente, que alguns historiadores negligenciaram, ao falar do imperialismo
britânico na África do Sul, a importância econômica crescente da região para
a Grã -Bretanha, situação que se tornou, contudo, manifesta por volta de 1870,
com a descoberta dos diamantes e as primeiras indicações referentes às jazidas
de ouro; e bastante evidentes na década de 1880 quando começou a extração
do ouro do Witwatersrand.
Entre 1871 e 1874, entretanto, a Grã -Bretanha tentou construir uma fede-
ração dos Estados sul africanos e garantir, assim, pela persuasão, seus interesses
na África do Sul. Quando concedeu à colônia do Cabo uma certa autonomia,
sob a forma de um governo responsável, era com esperança de que a colônia
tomasse o controle do reservatório de mão de obra do Lesoto e dos territórios
ricos em diamantes da Griqualand Ocidental, adquirindo deste modo a con-
dição de Estado mais poderoso da região e atraindo para ela o restante dos
estabelecimentos brancos. Tamanha foi a decepção dos ingleses quando o Cabo
aceitou anexar o Lesoto mas recusou a oferta da Griqualand Ocidental,que a
sua importante população bôer simpatizava com as repúblicas que não tinham
renunciado às suas reivindicações sobre os campos diamantíferos. Na metade
de 1873, Lorde Kimberley, secretário das colônias, reconheceu que as disputas
relacionadas às minas de diamantes eram um obstáculo à criação de uma con-
federação sul -africana e cessou suas pressões neste sentido
32
.
Lorde Carnarvon, sucessor de Kimberley em fevereiro de 1874, ressuscitou a
política de federação e a lançou oficialmente em 4 de maio de 1875. Ela apareceu
como o único antídoto aos males que envenenavam a África do Sul e que eram
ilustrados pela situação na Griqualand Ocidental, onde a mão de obra era deses-
peradamente insuficiente, as despesas britânicas de defesa e de administração
elevadas, a algazarra dos litígios territoriais ensurdecedores e os fuzis fáceis de
serem obtidos pelos africanos, que os usavam prontamente contra os brancos
para defenderem a sua independência. Depois, houve a questão não resolvida da
rebelião de Langalibalele, diante da qual o comportamento dos brancos de Natal
colocou em evidência a inquietante fragilidade dos Estados brancos isolados ao
enfrentar africanos com fácil acesso a armas de fogo.
Em 1873, o chefe hlubi Langalibalele recusou -se a declarar as armas de
fogo que seus súditos haviam comprado, muitas vezes trabalhando nas minas
de diamantes. O governo de Natal interpretou essa recusa como um ato de
32 C. W. De Kiewiet, 1937, cap. 2; C. F. Goodfellow, 1966, cap. 3.
198
África do século XIX à década de 1880
rebelião. Shepstone e o vice -governador formaram um exército para invadir o
seu reino, mas o chefe hlubi fugiu para o Lesoto, onde foi traído por Molapo,
o chefe sotho, e entregue aos seus inimigos. Durante o único encontro que
aconteceu entre os hlubi e seus vizinhos, os soldados de Natal debandaram -se
e alguns dentre eles foram mortos. Mas, por fim, o governo do Natal tratou os
hlubi de uma maneira que demonstrou uma grande covardia e um espírito muito
vingativo. Antes mesmo que o chefe Langalibalele fosse preso, o governo tomou
medidas cujo rigor era desproporcional à ofensa cometida. Sua chefia foi riscada
do mapa, seu rebanho e seus cavalos apreendidos, suas terras confiscadas e seus
súditos distribuídos aos fazendeiros como trabalhadores ligados por contrato.
Finalmente, o chefe foi julgado sumariamente e declarado culpado; condenado
ao desterro perpétuo, ele foi encarcerado em Robson Island.
Para o governo britânico, o qual não era insensível aos argumentos do bispo
anglicano John William Colenso, o único defensor determinado do chefe hlubi,
não tinha dúvidas de que a injustiça sofrida pelos hlubi resultava do terror irra-
cional que os negros inspiraram nos brancos. Verdadeiros ou falsos, os rumores,
segundo os quais Langalibalele teria entrado em contato com os sotho, os nde-
bele e os zulus antes da rebelião, fizeram surgir o fantasma de uma revolta geral
dos africanos contra os brancos divididos da África do Sul. Influenciado por
conselheiros como Shepstone, Lorde Carnarvon via na criação de uma federação
a única solução possível para o “terrível imbróglio sul africano
33
.
Como primeira medida, Lorde Carnarvon se assegurou dos serviços de Sir
Garnet Wolseley, de volta de Kumasi após ter vencido os ashanti, para enfrentar
os problemas do Natal. Wolseley foi instruído a assumir o controle das ques-
tões africanas em nome da Coroa e para adiar o momento em que os brancos
poderiam dotar -se de uma federação sul -africana
34
. Desejando atingir o seu
objetivo por meio pacíficos, Carnarvon se fez conciliador para com os bôeres,
deixando entrever uma resolução possível para os litígios relativos aos campos
diamantíferos. Em 1875, ele propôs uma conferência das colônias e das repúbli-
cas onde seriam analisadas questões secundárias tais como a definição de uma
política africana comum e os meios de dissipar os mal -entendidos territoriais, à
espera que fosse abordada a questão mais importante, aquela da criação de uma
confederação. O secretário cometeu o erro de sugerir o nome dos delegados e
cometeu um grave erro de avaliação ao adotar uma atitude que parecia confir-
mar a divisão da colônia do Cabo, que convidou o separatista John Paterson,
33 E. H. Brookes e C. de B. Webb, 1965, p. 113 -120; N. A. Etherington, 1979, p. 246 -247; 1981, p. 34 -37.
34 C. F. Goodfellow, 1966, p. 62.
199
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
chefe da oposição, como representante dos Orientais e o primeiro ministro John
Charles Molteno como representante dos Ocidentais. Resultou que a colônia do
Cabo e as repúblicas, as quais ainda não tinham se conformado com a perda dos
campos diamantíferos, recusaram -se a participar. Somente Natal e a Griqualand
Ocidental aceitaram.
Após este fiasco, Carnarvon convocou uma outra conferência em Londres,
em agosto de 1876. Foi, de novo, uma derrota. O presidente do Estado livre
de Orange, Brand, negociou uma solução para as suas reivindicações sobre os
campos diamantíferos e obteve 90.000 libras a título de compensação; mas ele
recusou imediatamente se deixar conduzir para discussões relacionadas ao pro-
jeto de federação. Pronto para se eriçar à menor suspeita de intervencionismo
das autoridades britânicas, e fortemente apegado ao estatuto de governo res-
ponsável concedido aos dirigentes da colônia, o primeiro ministro Molteno, o
qual se encontrava em Londres neste momento, recusou também participar da
conferência, dizendo que não recebera mandato do seu governo nesse sentido.
Somente a Griqualand e o Natal estiveram representados, de modo que nada
pode ser feito. Esta segunda derrota “feriu o patriotismo e amor -próprio de
Carnarvon e esgotou a sua paciência
35
. Ele decidiu recorrer a medidas mais
enérgicas para unir a África do Sul.
O seu primeiro objetivo foi o Transvaal. A ocasião de agir foi -lhe dada em
setembro de 1876, quando recebeu um telegrama do alto -comissário que des-
crevia, em termos exageradamente enegrecidos, as dificuldades do Transvaal em
relação aos pedi de Sekhukhune
36
. O Transvaal havia entrado em guerra com os
pedi, em maio de 1876, por várias razões. Há cerca de quinze anos, a população
pedi crescia rapidamente e este Estado tornou -se cada vez mais poderoso. Um
grande número de comunidades africanas vizinhas, desejosas de fugirem das
exigências de mão de obra e dos impostos exigidos pelos bôeres, estava integrado
ao reino pedi; outras tinham sido forçadas a fazê -lo. Como indicamos, os pedi
se empenharam muito ativamente em constituir um estoque de armas de fogo.
O crescimento da população pedi privou os bôeres de um reservatório de mão
de obra desde que, ao tentar expandir seu território, os pedi penetraram em regi-
ões contestadas onde se chocaram com os Lydenburgers. A situação tornou -se
crítica quando o príncipe pedi, Johannes Dinkwanyane, impediu um bôer de
ocupar um terreno e, simultâneamente, um contingente pedi forçou residentes
africanos de uma missão berlinense a evacuar o local. Burgers, presidente do
35 Ibid., p. 110.
36 Ibid., p. 114.
200
África do século XIX à década de 1880
Transvaal, que buscava empréstimo para construir uma estrada de ferro até o
mar, quis subjugar os turbulentos pedis para reforçar a confiança dos investidores
em sua república. Ele tampouco podia ignorar que os Lydenburgers reclamavam
uma ação enérgica contra os seus difíceis” vizinhos pedi. É por esta razão que
ele levou a república à guerra
37
.
Com a ajuda dos swazi, Burgers lançou um ataque triplo contra a fortaleza de
Sekhukhune sobre o monte Lulu. Os Lydenburgers e os swazi atacaram a partir
do Leste, e o seu primeiro objetivo era a praça forte do príncipe Dinkwanyane;
a tropa de Burgers veio prontamente do Oeste; as duas formações deviam final-
mente convergir com uma terceira para o bastião de Sekhukhune. Vendo que
os bôeres não pareciam tão motivados, deixando -os enfrentar a maioria dos
combates e sofrer pesadas perdas, os swazi abandonaram a luta. Desde que
partiram, o moral dos bôeres não demorou a cair no nível mais baixo e antes de
terem conseguido lançar um ataque qualquer contra a fortaleza de Sekhukhune,
eles começaram a desertar. O seu patriotismo padecia do fato de ter -se nutrido
de vários ressentimentos contra Burgers; além de acusarem -no de herético, eles
criticavam a sua política nos campos da educação e economia. Além disso, os
bôeres dos distritos ocidentais estavam menos motivados do que os Lyden-
burgers a combaterem os pedi. De fato, as pressões e a resistência destes não
lhes diziam diretamente respeito e, aparentemente, não haveria nenhum ganho
pessoal a tirar da guerra
38
.
Após a retirada de Burgers, os bôeres da região continuaram a hostilizar
Sekhukhune. Como era época do plantio, este último aceitou negociar uma
trégua. Philip Bonner salienta, corretamente, que não houve vencedores nem
vencidos nesta guerra na qual “ocorrera um impasse, que nenhum dos dois
lados conseguiu marcar um ponto decisivo
39
. Somente em 1879, os britânicos
e os seus aliados swazi conseguiram vencer o reino dos pedi e capturar o rei
Sekhukhune
40
.
Os britânicos, todavia, viram no fiasco dos eres de 1876 uma derrota
total que anunciava a derrocada eminente do Transvaal. Carnarvon nomeou
Shepstone como comissário especial para o Transvaal e, em 9 de outubro de
1876, deu -lhe um mandato para assumir a direção da república, com ou sem
o consentimento do seu Volksraad. Diversos motivos foram apresentados para
37 P. Bonner, 1983, p. 137 -140.
38 Ibid., p. 143.
39 Ibid., p. 144.
40 L. ompson, 1971a, p. 282.
201
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
explicar a anexação do Transvaal. Sabia -se que este país dissimulava as jazi-
das minerais que o tornava, virtualmente, a região mais rica da África do Sul.
Ele impedia a livre circulação de mão de obra a partir do seu território e das
regiões vizinhas. Ameaçava construir uma estrada de ferro que o ligaria à baía
de Delagoa, de modo a não mais depender dos portos comerciais britânicos e
a contestar a supremacia da Grã -Bretanha ao manter relações com potências
estrangeiras. Carnarvon supunha também que, com a anexação do Transvaal, o
Estado livre de Orange encontrar -se -ia cercado e, então, forçado a aceitar um
acordo. A tomada do Transvaal por Shepstone, em 12 de abril de 1877, ainda que
efetuada desastrosamente e contra a vontade dos bôeres, foi relativamente sim-
ples, porque a república estava em falência e seu presidente impopular
41
. Depois
da anexação, Carnarvon nomeou Sir Bartle Frere para o cargo de governador e
alto -comissário a fim de “levar a cabo seu plano de confederação”
42
.
A tarefa de Frere estava longe de ser fácil. A colônia do Cabo recusava -se
em assumir a frente do movimento de confederação, estimando que os esforços
dos britânicos para encorajá -la a fazê -lo constituíam uma ingerência contrária
à condição que lhe havia sido concedida. O Estado livre de Orange também
estava bem pouco disposto a se deixar levar pela força para a união. Quando,
em 1878, Frere convidou os seus dirigentes para uma conferência para exami-
nar o problema, o presidente Brand respondeu que a situação da república era
tão satisfatória, sob todos os pontos de vista, que não podia imaginar a perda
de sua independência. O Transvaal poderia ter sido obrigado a se unir com os
outros Estados devido aos acordos de anexação. Mas a administração de Sheps-
tone não soube conciliar os bôeres, de modo que sonhavam em recuperar a
sua independência. Ademais, o próprio Shepstone se deixou a tal ponto levar
nas escaramuças de fronteiras entre o Transvaal e a Zululândia que, em 1878,
quando foi convidado a dar a sua opinião sobre a confederação, ele respondeu
que não tinha tido tempo de pensar suficientemente para dar uma opinião” e
exigiu que o deixassem respirar um pouco”
43
. Somente Natal estava disposto
a analisar o problema. Neste meio tempo, Carnarvon foi obrigado, em janeiro
de 1878, a apresentar a sua demissão por causa de uma questão que não tinha
relação nenhuma com a África do Sul, ao passo que a federação que ele desejou
criar ainda não era mais do que um sonho.
41 C. F. J. Muller (org.), 1974, p. 263 -264.
42 C. F. Goodfellow, 1966, p. 123.
43 Ibid., p. 147.
202
África do século XIX à década de 1880
Frere era exatamente o homem talhado para servir da melhor forma possível
aos interesses britânicos na África Austral. Ele queria impor uma confederação
sul -africana baseada em um governo autônomo europeu, bem como na sujeição
e civilização dos africanos”
44
.A sujeição e a civilização dos africanos” significa-
vam essencialmente a transformação das sociedades africanas em reservatórios
de mão de obra para as empresas britânicas e coloniais, e em mercados para os
produtos da metrópole, ao passo que o “governo autônomo europeu” garantiria
a segurança dos investimentos britânicos. Frere decidiu que convinha tratar
primeiro do aspecto africano da confederação, que ele pretendia estender pela
totalidade do subcontinente, de modo que os territórios dos tswana, xhosa,
zulus, ndebele e shona deviam ser anexados sob a forma de protetorados ou
pela conquista.
A Zululândia era particularmente adequada para uma primeira ofensiva,
sendo que seus conflitos fronteiriços com o Transvaal podiam permitir a cons-
trução de um casus belli. O território contestado interessava totalmente a Frere
e, de fato, ao ministério das colônias, porque englobava de uma vez Natal,
Zululândia e Transvaal, sem falar de Shepstone, para o qual ele sempre foi o
elemento essencial em suas visões grandiosas. Sua história remontava à década
de 1850. Em 1856, Cetshwayo aproximou -se do trono zulu ao aniquilar um pos-
sível rival Mbulazi e sua facção. Ele governou junto a Mpande até a morte
deste último em 1872. Mas ele temia ainda um outro filho de Mpande, Mkungu,
o qual vivia em Natal sob a proteção do bispo Colenso e de Shepstone. Seus
temores parecem ter -se materializado na década de 1860 quando se espalharam
os boatos de invasão possível da Zululândia por Natal. Estes rumores chega-
ram aos ouvidos de alguns habitantes do Transvaal que deles se aproveitaram.
Em 1861, os bôeres do Transvaal enviaram a Cetshwayo mensagens nas quais
pretendiam confirmar os rumores e lhe ofereciam garantir a sua posição e a sua
coroação posterior em troca de terras na zona que iria ser mais tarde objeto de
litígio. Cetshwayo fez promessas que ele não pretendia cumprir.
Shepstone, que buscava desde a década de 1850 fundar um reino negro
dotado de uma administração branca capaz de se autofinanciar e ao abrigo de
qualquer ingerência da parte dos colonos, viu uma possibilidade de realizar
esta ambição no território contestado. Imediatamente após ter tomado conhe-
cimento das comunicações entre bôeres e zulus, ele se apressou a encontrar -se
com Cetshwayo e, em nome do governo de Natal, confirmou -lhe a sua posição
44 Ibid., p. 155.
203
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
de herdeiro presuntivo ao trono zulu. Mas a partir de então, os bôeres criaram
fazendas no território objeto de contestações, o qual eles chamaram de distrito
de Utrecht. Os zulus se abstiveram de expulsá -los pela força, mas voltaram -se
para o governo britânico para solicitar assumir o distrito de Utrecht, o qual se
tornaria uma zona tampão entre o seu país e o Transvaal.
Durante anos, Shepstone pressionou o governo britânico para aceitar a pro-
posta dos zulus, argumentando que o território serviria para fixar o excedente
da população negra de Natal e impediria o Transvaal de atingir o mar através
da Zululândia. A ideia de Shepstone tornou -se ainda mais pertinente após
1870, quando Natal, a colônia do Cabo e a Griqualand Ocidental padeciam
da escassez de mão de obra. Não demorou muito para se descobrir que as vias
de migração da mão de obra passavam pelo Transvaal, pela Zululândia e pelo
território litigioso. Como os dois Estados entravavam a circulação nestas rotas,
um reino talhado para Shepstone entre estes Estados ofereceria o corredor mais
seguro. Enquanto Shepstone tinha em vista o seu Estado negro, ele apoiou as
reivindicações territoriais de Cetshwayo contra o Transvaal em função da neces-
sidade de cooperação com o rei zulu. Precisamente por esta razão que ele esteve
presente no coroamento de Cetshwayo em 1873.
Além disso, Shepstone estava firmemente convencido que, se a Grã -Bretanha
desejava colocar sob o seu controle todos os Estados africanos da África Austral,
ela devia começar por exercer um controle e uma influência sobre o reino zulu.
Mas quando assumiu o poder no Transvaal, ele mudou de lado e pôs -se a apoiar
as reivindicações territoriais dos bôeres por uma razão perfeitamente simples:
“Ele só tinha que, de agora em diante, dar apoio às reivindicações do Transvaal
para assegurar o seu corredor sem ter que dar nada em troca
45
. O único perigo
para o seu objetivo e, para dizer a verdade para a paz em todo o subcontinente,
era o reino zulu, o qual era necessário destruir. Frere e o Ministério das colônias,
que compartilhavam a visão de Shepstone nesta questão desde 1874, deram o
seu consentimento.
Quando Shepstone embarcou rumo a Natal em 1878, ele não buscava solu-
cionar o litígio territorial, mas se servir da questão para impor uma guerra con-
tra Cetshwayo. A comissão criada em 26 de fevereiro de 1878 por Sir Henry
Bulwer, o vice -governador do Natal, tinha recomendado uma fronteira favorável
aos zulus. Mas o modo com o qual Frere propôs executar a recomendação foi
calculado pra provocar vigorosas objeções por parte dos zulus: previa, com efeito,
45 N. A. Etherington, 1981, p. 41.
204
África do século XIX à década de 1880
que os fazendeiros bôeres estabelecidos no lado zulu da fronteira não seriam
expulsos.
A segunda questão que Frere teve que abordar foi a do chefe Sirayo. Os filhos
de Sirayo perseguiram duas esposas do chefe em Natal, em 28 de julho de 1878,
e as levaram para a Zululândia onde foram julgadas e executadas. O governo
de Natal protestou junto a Cetshwayo contra a violação da fronteira por alguns
de seus súditos e exigiu que os filhos de Sirayo fossem conduzidos a Natal para
serem julgados. Cetshwayo enviou 50 libras a título de multa e apresentou as
suas desculpas pela conduta irrefletida e irresponsável dos jovens. Frere lidou
com a questão, em dezembro de 1878, exigiu que Cetshwayo entregasse 500
cabeças de gado por ter ofendido o governo de Natal e enviasse os filhos de
Sirayo. Quando a guerra estourou, Cetshwayo ainda se esforçava para reunir o
gado exigido.
Então, em setembro de 1878, dois brancos de Natal se perderam na Zulu-
lândia e foram maltratados pelos guardas da fronteira zulu, sem, todavia, serem
feridos. Frere inflou desmesuradamente o incidente, declarando que era um
insulto e uma ofensa muito séria e que deviam ser severamente punidos.”
46
. Ele
alegou também que Cetshwayo aterrorizara os missionários para expulsá -los de
seu reino e que ele devia deixar que os missionários retornassem às suas missões
sem serem molestados. De fato, os missionários tinham provavelmente partido
aconselhados por Shepstone, o qual sabia ser eminente a guerra e que tinha
agido deste modo em 1877
47
.
Em 11 de dezembro de 1878, o ultimato completo foi enviado aos repre-
sentantes dos zulus. Exigia o desmantelamento do exército zulu, a aceitação de
um residente britânico, a reinstalação de todos os missionários e o pagamento
de multas por diversas violações alegadas das fronteiras de Natal e dos direitos
de sua população
48
. Estas exigências não poderiam simplesmente ser satisfeitas
dentro dos vinte a trinta dias prescritos. No fim do prazo, em 10 de janeiro de
1879, as forças britânicas, comandadas pelo general Lorde Chelmsford, inva-
diram o reino zulu.
O exército de Chelmsford era composto de 15.000 soldados, dos quais mui-
tos eram africanos recrutados em Natal – as forças de Cetshwayo somavam, sem
dúvida, 45.000 homens. Mas os britânicos tinham as suas armas de fogo, parti-
cularmente eficazes que os atiradores se escondiam em trincheiras, atrás das
46 E. H. Brookes e C. de B. Webb, 1965, p. 133.
47 N. A. Etherington, 1981, p. 42.
48 E. H. Brookes e C. de B. Webb, 1965, p. 134.
205
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
carroças ou dos sacos de areia. Os zulus, por sua vez, tinham lanças, escudos
e um número limitado de fuzis, os quais eles ainda não dominavam completa-
mente por não fazerem parte de suas técnicas e treinos militares. Os escudos
eram ineficazes contra as balas. As lanças faziam estragos no corpo a corpo, mas
o exército britânico não deixava os zulus chegarem a usá -las já que atirava neles
de longe. O resultado foi que, em quase todas as batalhas, os zulus sofreram per-
das enormes ao tentarem se aproximar dos seus inimigos. em Isandhlwana,
em 22 de janeiro de 1879, os zulus atacaram uma coluna britânica em terreno
aberto e a derrotaram. Os combates terminaram em 7 de julho de 1879 com
a vitória de Chelmsford sobre os zulus em Ulundi. Cetshwayo foi perseguido,
capturado em agosto e deportado para o Cabo para ser aprisionado.
Como sustenta Jeff Guy, não é a batalha de Ulundi que levou à destruição do
reino zulu, mas as medidas tomadas no plano político por Sir Garnet Wolseley,
o qual foi nomeado alto -comissário para a África do Sudeste com autoridade
suprema, tanto civil como militar, em Natal, no Transvaal e na Zululândia, e
sucedeu Lorde Chelmsford, em 4 de julho de 1879. Ele não anexou a Zululân-
dia, mas retalhou -a em treze chefias independentes. Alguns dos novos chefes
não puderam praticamente exercer o poder em razão da resistência que lhes
opunham inúmeras pessoas que ocupavam, antes da guerra, posições de destaque
e afastadas da redistribuição das funções políticas. Os novos chefes recorreram
à violência. As perdas de vidas humanas foram consideráveis e as desordens se
generalizaram. A guerra civil que explodiu durou vários anos
49
.
Contudo, nenhum dos objetivos que se esperava alcançar graças à guerra
contra os zulus foi alcançado. Devia, principalmente, contribuir para limpar o
terreno tendo em vista a incorporação dos Estados africanos em uma federação,
mas ela terminou com um resultado inverso. Frere, o qual era o instigador e a
alma local de toda a empreitada, foi, vimos, substituído por Wolseley, que
tinha a missão de trazer a paz, mesmo em detrimento do projeto de federação.
Além disso, a guerra zulu foi seguida pela guerra anglo -bôer de 1880 -1881 e
por aquela entre o Cabo e o Lesoto, as quais deram o golpe derradeiro a esse
projeto.
Os eres do Transvaal não aceitaram a perda da sua independência e,
durante três anos, tentaram, por todos os meios pacíficos que dispunham, per-
suadir os britânicos a se retirarem. Cada derrota reforçava a sua vontade de
retomar o poder dos britânicos. Em 1877, enviaram uma delegação a Londres
49 J. Guy, 1980, cap. 3, 4 e 5; 1981.
206
África do século XIX à década de 1880
 . Membros de um comando bôer, por volta de 1880. [© National Army Museum, Londres]
para protestar contra a anexação. Lorde Carnarvon recusou inflexivelmente
encarar a possibilidade de rever a medida de anexação, mas se declarou pronto
para discutir modalidades de uma autonomia dos bôeres no seio de uma con-
federação sul -africana. Paul Kruger, o membro mais importante da delegação,
solicitou que os bôeres pudessem decidir por referendo a forma de governo
que desejariam, sob a tutela da coroa britânica, mas recusou -se de se associar
no que quer que fosse ao projeto da confederação
50
. No final de 1877, quando
os delegados fizeram o relato de sua missão infrutuosa, diante de um comício
popular em Pretoria, diversos bôeres exigiram uma resistência armada. Mas os
dirigentes pareciam convencidos de que, se um referendo mostrasse de maneira
conclusiva que os bôeres se opunham à anexação, Carnarvon lhes concederia a
50 C. F. Goodfellow, 1966, p. 141 -144.
207
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
independência. Um referendo oficial foi organizado e, por uma grande maioria,
os bôeres rejeitaram a autoridade britânica.
Uma segunda delegação partiu para Londres a fim de apresentar em deta-
lhe o ponto de vista dos bôeres ao novo secretário das colônias, Sir Michael
Hicks Beach, que sucedera Lorde Carnarvon. Ele recusou também a renunciar
ao Transvaal. Quando a delegação fez o seu relato diante de uma multidão
numerosa, os clamores exigindo uma guerra de libertação ecoaram ainda mais
fortes do que antes. Os dirigentes pretendiam, contudo, esgotar todos os meios
pacíficos de obterem a independência. Antes de se dispersarem, eles enviaram
um emissário para conferenciar com Frere, o qual estava em Natal, e, ao mesmo
tempo, fizeram o juramento solene de lutar até a morte pela restauração de sua
república. Frere veio ao Transvaal e encontrou -se com os bôeres; ele repetiu
que poderiam obter a autonomia e uma ajuda econômica sob a égide da coroa
britânica, mas nada mais. Ele aceitou transmitir ao governo britânico uma nova
petição que, também, permaneceu sem efeito.
Ademais, em março de 1879, Shepstone foi substituído por Owen Lanyon, o
qual tinha só um conhecimento limitado do Transvaal, e Frere por Wolseley, um
militar que não acreditava na diplomacia, mas na força bruta. As medidas que
tomaram, um e outro, fizeram crescer a determinação dos bôeres em tentarem
reconquistar a sua independência pela força. Em 15 de dezembro de 1879, um
grande comício no qual participaram mais de 6.000 bôeres foi realizado em
Wonderfontein; nele resolveu -se abandonar os meios pacíficos de buscar obter
a independência, rejeitar a condição de súditos britânicos e montar, no mais
breve intervalo, um governo republicano. Wolseley prendeu os homens que ele
pensava serem os mentores e os soltou sob fiança. Nesta altura, todavia, os
bôeres começaram a ter confiança no novo governo liberal da Grã -Bretanha,
cujo chefe, Gladstone, tinha, na época que estava na oposição, falado com sim-
patia do Transvaal e da necessidade de lhe conceder a sua independência. Mas
quando eles lhe solicitaram o cumprimento de suas promessas, ele respondeu,
como os seus antecessores, que não poderiam contar com outra coisa que não
fosse a autonomia no seio de uma confederação.
Em dezembro de 1880, os bôeres exasperados reinstituíram unilateralmente
o seu governo republicano, com sede durante algum tempo na nova capital,
Heidelberg. O governo provisório era dirigido por Paul Kruger, Piet Joubert e
M. W. Pretorius. A guerra explodiu em 16 de dezembro, no dia em que Lanyon
se recusou a renunciar pacificamente a administração do Transvaal. Esta prosse-
guiu até 27 de fevereiro de 1881, dia em que os bôeres conseguiram uma vitória
decisiva contra os britânicos em Majuba Hill.
208
África do século XIX à década de 1880
O acordo de paz foi assinado em Pretoria, em agosto de 1881. Por esta con-
venção, se os britânicos renunciassem ao seu objetivo supremo de uma federação
reunindo o Transvaal, as outras colônias e o Estado livre de Orange, obteriam em
contrapartida o controle da mão de obra africana, que disporiam, em Preto-
ria, de um residente encarregado de supervisionar a administração africana dos
bôeres. Em segundo lugar, a supremacia imperial britânica no Transvaal estava
garantida pelo fato de que os britânicos controlariam as relações exteriores da
república e que teriam o direito, em tempos de guerra, de empregar e movi-
mentar livremente as suas tropas e seus equipamentos militares no Transvaal.
Os bôeres obteriam a autonomia que lhes serviria de trampolim para acederem
a um grau maior de liberdade. Novas negociações chegaram, em 27 de fevereiro
de 1884, à Convenção de Londres, nos termos da qual os britânicos renunciavam
a todo controle sobre os africanos, mas conservavam o das relações da república
com o estrangeiro
51
.
Ao mesmo tempo em que as tropas imperiais lutavam para reprimir a rebe-
lião bôer, as tropas coloniais do Cabo travavam contra os sotho uma guerra
que se iniciara em 13 de dezembro de 1880. Tanto quanto a guerra dos bôeres,
o conflito armado com o Lesoto estava intimamente ligado aos esforços dos
britânicos de criarem uma confederação sul -africana. O governo colonial e os
funcionários britânicos do Cabo desejavam dar um primeiro passo neste sentido
ao desarmar os Estados africanos. A recusa dos sotho ao desarmamento unila-
teral provocou a guerra contra o Cabo em 1880 -1881.
Desde 1872, o Lesoto estava submisso à administração colonial do Cabo.
Dentro dos esforços desenvolvidos para promover a união da África do Sul,
Gordon Sprigg, o primeiro ministro do Cabo, que tinha substituído Molteno,
tinha, em conluio com Frere, feito votar pelo parlamento do Cabo, em 1878, a
lei relativa à preservação da paz (Peace Preservation Bill). Esta lei possibilitava o
governo ordenar aos africanos da colônia do Cabo a entregarem as suas armas
de fogo em troca de uma indenização. Ela não se aplicaria, na origem, ao Lesoto,
mas Sprigg, que sabia que os seus habitantes detinham muitos fuzis, decidiu
estender tal lei a este reino.
Para os sotho, os fuzis tinham um grande significado social, político e econô-
mico. Tinham sido comprados graças ao dinheiro ganho nas minas de diamantes
e representavam, consequentemente, um enorme investimento em trabalho. Os
sotho se apegavam também aos seus fuzis porque era muito claro para eles,
51 C. F. J. Muller (org.), 1974, p. 264 -272; C. F. Goodfellow, 1966, p. 198 -213; L. ompson, 1971b; F. A.
Van Jaarsveld, 1961, cap. 7.
209
Os britânicos, os bôeres e os africanos na África do Sul 1850 -1880
dado a longa história de sua luta com o Estado livre de Orange, que poderiam
servir um dia para defender o seu reino. Além disso, a posse de um fuzil marcou
entre eles a passagem da infância para a idade adulta. Suspeitavam também que
o governo do Cabo não confiava inteiramente neles e que tentaria fragilizá -los
a fim de reduzi -los, na sequência, à escravidão. Outras medidas contribuíram,
também, a mover os sotho para a resistência armada. Em 1879, a colônia do
Cabo propôs atribuir o distrito de Quthing a fazendeiros brancos para punir seu
chefe sotho Moorosi, o qual tinha se rebelado recentemente, embora tal espo-
liação fosse absolutamente contrária à promessa de não alienar nenhuma parte
de seu país, promessa esta que tinha sido feita pelos britânicos a Moshoeshoe.
Além disso, o governo do Cabo anunciou igualmente um aumento de impostos
sobre as casas, o qual passaria a uma libra. Esta decisão era totalmente inaceitável
para os sotho, que um montante de 12.000 libras tinha sido recentemente
cobrado do Lesoto e afetado a colônia do Cabo.
Os sotho tentaram alcançar um acordo com a colônia do Cabo por meios
pacíficos. Protestaram junto a Sprigg quando, por duas vezes, ele viajou ao seu
país para discutir com eles estas questões; eles encaminharam petições ao gover-
nador e à rainha da Inglaterra; enviaram emissários ao Cabo para fazer pressão
sobre os parlamentares. Tudo em vão.
Durante este período, o poder no Lesoto passou das mãos do rei, chamado
de agora em diante chefe supremo, Litsie, para as dos chefes. O rei tornara -se
muito velho e, ainda que tenha se oposto ao desarmamento e às outras medidas
de ordem colonial tomadas pelo Cabo, ele temia enormemente as consequências
nefastas de uma resistência armada que expulsasse os britânicos e expusesse o
reino aos riscos de um ataque do Estado livre de Orange. Ele se distanciou
então da corrente popular que reclamava a luta armada e ordenou que fossem
organizadas manifestações pacíficas. Mas a maioria apoiava os chefes Lertholi,
Masonha e Joel que pregavam a oposição pela violência às medidas tomadas
pelo governo do Cabo e incentivavam o povo a desobedecer aos magistrados e
a castigar aqueles que obedeciam à administração colonial, destruindo e con-
fiscando seus bens.
Em 13 de setembro de 1880, as tropas do Cabo entraram no Lesoto. A
guerra iniciada deste modo durou sete meses. Para o governo do Cabo, as des-
pesas militares aumentaram vertiginosamente e atingiram o nível inaceitável de
3 milhões de libras. Sir Hercules Robinson, o novo governador e alto -comissário,
mostrou -se extremamente desejoso em alcançar a paz com os sotho. Estes últi-
mos, após sete meses, estavam igualmente cansados da guerra, de modo que
solicitaram a paz. O momento era favorável a uma arbitragem do governador, o
210
África do século XIX à década de 1880
que foi feito em 29 de abril de 1981. Embora os sotho ainda pudessem em prin-
cípio entregar seus fuzis e receber uma indenização, eles podiam conser-los
na prática sob a condição de solicitar permissão. Uma anistia total foi oferecida,
mas uma multa de 5.000 cabeças de gado devia ser paga pelos rebeldes” para
indenizar os lealistas” e os comerciantes pelas perdas materiais que sofridas
durante a guerra. Feitas as contas, então, os sotho tinham ganhado a guerra
que a haviam lutado para manter seus fuzis. O prestígio e o poder dos chefes
que obtiveram este resultado cresceram enormemente à custa do rei que hesi-
tou num momento em que o país tinha necessidade de dirigentes combativos e
intratáveis. Além disso, o governador do Cabo decidiu colocar a sua nova política
em execução através da intermediação dos chefes. Isto foi para eles, deste modo,
uma vitória dupla
52
.
A vitória do Lesoto, a não anexação do reino zulu e a conquista da autono-
mia no Transvaal marcaram o fim dos esforços empregados pela Grã -Bretanha
para obrigar a região a se federalizar. Ela se contentaria, no momento, a manter
um controle parcial sobre as diversas partes da África do Sul, principalmente
graças aos residentes instalados no local para acompanharem constantemente
a evolução da situação. A Grã -Bretanha tentaria de novo impor muito mais
firmemente sua autoridade após a descoberta do ouro, na metade da década. Do
ponto de vista dos africanos, a Grã -Bretanha tinha feito muito para reduzir a sua
independência. A Leste, o Ciskei, com sua numerosa população xhosa, mfengu
e khoi -khoi, era firmemente controlado pela colônia do Cabo. O mesmo ocorria
com os sotho, ainda que estes gozassem de uma grande margem de autonomia
interna. A Griqualand Ocidental tinha também perdido sua soberania. Os zulus
e os pedi estavam na via da autodestruição. A captura de Sekhukhune e a sua
substituição por seu rival, Mampuru, garantiram que o reino fosse destroçado
por lutas intestinas e, consequentemente, subordinado ao Transvaal.
52 S. Burman, 1981, cap. 9 -12.
C A P Í T U L O 8
211
Os países da bacia do Zambeze
Este estudo
1
é dedicado ao exame das grandes mudanças intervindas ao
longo dos três primeiros quartos do século XIX na África Central, território que
hoje agrupa o Malaui, Moçambique e a Zâmbia. Ele concerne, em particular, à
região do vale do Zambeze, importante zona de trocas econômicas e culturais,
cadinho onde se forjou grande número dos principais Estados ligados à história
dos povos shona e lunda. Em vez da história dos principais reinos pré -coloniais,
é a região em seu conjunto que aqui será estudada, sendo concedida uma atenção
muito particular para as mudanças provocadas, no século XIX, pela integração
progressiva da região à economia capitalista mundial e pela diáspora nguni-
-sotho. A conjunção desses diversos elementos modificou o mapa político da
África Central e acelerou o surgimento de grandes transformações econômicas
e sociais. Ainda que a tônica incida aqui sobre esses fatores externos à região, de
forma alguma as sociedades autóctones foram estáticas; a configuração interna
de cada uma delas condicionou, ao mesmo tempo, o modo inicial de interação
com os mercadores e os invasores estrangeiros, e a direção em que, finalmente,
as mudanças foram operadas. Uma pincelada sobre a África Central no fim do
século XVIII serve de introdução ao presente estudo, a fim de situarmos, em
1 Este capítulo, encomendado em 1975, foi concluído no início do ano de 1976 e atualizado em 1981. Eu
gostaria de agradecer a Barbara Isaacman, James Johnson e Paul Lovejoy, pelas críticas muito pertinentes,
formuladas por eles sobre uma primeira versão deste manuscrito.
Os países da bacia do Zambeze
Allen F. Isaacman
212
África do século XIX à década de 1880
suas verdadeiras perspectivas, os acontecimentos que se seguiram. Da mesma
forma, este capítulo termina com uma breve descrição da região, na véspera da
corrida” europeia (scramble), pois as mudanças ocorridas no século XIX deram
um outro aspecto à resistência oposta, mais tarde, pela África Central ao impe-
rialismo europeu.
A África Central na véspera do século XIX
Apesar do impacto determinante que tiveram na África Central, podemos
considerar as perturbações econômicas, sobrevindas no século XIX, e as invasões
nguni -sotho, comumente chamadas Mfecane, como pertencendo a um esquema
mais abrangente de transformações políticas e econômicas anteriores ao século
XIX
2
. Ao longo dos séculos precedentes, as migrações, a formação de Estados e
a implementação de vastas redes comerciais modificaram a fisionomia das socie-
dades da África Central. O que distinguiu o século XIX dos séculos precedentes
não foi a mudança em si, mas o ritmo relativamente rápido em que ela se deu
e a extensão de suas consequências.
Bem antes do século XIX, o vale do Zambeze e as regiões vizinhas conhece-
ram uma grande revolução política. Por ondas sucessivas, grupos de imigrados
shona e lunda tinham estabelecido sua preeminência sobre a maior parte do
território, anteriormente ocupado por sociedades rurais de dimensões relativa-
mente reduzidas. Enquanto, em zonas periféricas, os tonga, no Sul de Moçambi-
que, ou os tumbuka e os tonga ribeirinhos do Lago Niassa (atual Lago Malaui)
tinham conseguido manter sua autonomia, a maioria das sociedades autóctones
haviam caído sob a influência dos Estados shona ou lunda.
É provável que a formação dos primeiros Estados tenha se iniciado na região
situada no Sul do Zambeze. No início do século XVI, os imigrados de línguas
shona vindos do atual Zimbábue impuseram sua dominação sobre a região que
se estendia rumo ao Sul, das margens do Zambeze até o Rio Sabi. À frente deste
poderoso reino encontrava -se o Mwene Mutapa (Monomotapa); dele o Impé-
rio dos shona extraiu o seu nome. Ainda que as guerras civis que se seguiram
tenham reduzido o poder do Mwene Mutapa e oferecido a vários chefes provin-
ciais a possibilidade de fazer secessão e de criar reinos autônomos, a hegemonia
shona se manteve em toda a região. Os mais potentes desses Estados shona
2 J. D. Omer -Cooper, 1966, por exemplo, sustenta que esses acontecimentos criaram uma ruptura na
história da África Central.
213
Os países da bacia do Zambeze
independentes – Báruè, Manica, Uteve e Changamire –continuaram a dominar
efetivamente a parte meridional do Moçambique Central, até o século XIX.
No interior dessa zona, a única incursão estrangeira se produziu na margem sul
do Zambeze, onde os portugueses, bem como colonos e mercadores de Goa,
estabeleceram os prazos da coroa (domínios garantidos para a coroa) que foram
nominalmente ligados ao império colonial de Lisboa
3
(ver Figura 8.1).
A expansão dos povos do Catanga, parentes dos lunda, começou um pouco
mais tarde e, nos primeiros decênios do século XIX, ainda não se tinha findado.
Dois séculos mais cedo, os lozi, primeiros emigrados lunda, tinham se estabe-
lecido nas férteis planícies de inundação do Zambeze. Depois deles, logo se
instalaram colonos que criaram os reinos de Kalonga e de Undi, situados no
atual Malaui e, a Oeste, os ancestrais dos Estados Fala, Senga e Bemba. Por
volta de 1740, os últimos dos principais imigrantes lunda, os mwata kazembe,
fixaram -se na região do Luapula. Durante o resto do século, os lunda consolida-
ram sua autoridade sobre os territórios adquiridos e estenderam suas fronteiras,
graças às suas atividades diplomáticas e militares. Aproximadamente em 1800,
alguns Estados ligados aos lunda, como Undi, Kalonga e Lozi, tinham atingido
o apogeu, ao passo que outros, como o Bemba, ainda se encontravam em curso
de expansão
4
.
Com algumas pequenas diferenças, a estrutura dos Estados shona e lunda
estava fundada em princípios similares. No cume, encontrava -se um rei, tido
como possuidor de qualidades sagradas, sejam inerentes à realeza, sejam adqui-
ridas pelos ritos de investidura. A estreita relação mantida pelo soberano com o
sobrenatural, santificada pelos sacerdotes do culto e pelos médiuns, assegurava a
saúde e o bem -estar dos seus súditos, bem como a fertilidade da terra. A inter-
-relação entre a instituição real e a fertilidade reforçava a posição do soberano
como proprietário simbólico e guardião espiritual da terra. Portanto, o direito
de distribuir a terra cabia somente a ele, direito que constituía o fundamento
da autoridade exercida pelo rei sobre seus vassalos e seus outros súditos, susten-
tando, assim, um ciclo de trocas recíprocas. Para cumprir as obrigações para com
o rei, resultantes da dívida contraída por eles ao utilizarem sua terra, e para poder
aproveitar de suas qualidades reais, os súditos deviam fornecer certos impostos,
bem como serviços e tributos fixados anteriormente, os quais variavam de um
reino ao outro. Ademais, nos dois reinos, a maior presa de um elefante morto
3 Para uma análise mais detalhada dos prazos do Zambeze, ver A. F. Isaacman, 1972a, e M. D. D. Newitt,
1973a.
4 Para um resumo da expansão lunda, ver a obra de H. W. Langworthy, 1972, p. 16 -27.
214
África do século XIX à década de 1880
 . Mapa étnico e político da África Central, 1800 -1880 (segundo A. F. Isaacman).
ia sistematicamente para o monarca, na qualidade de proprietário da terra. Em
algumas sociedades, como as de Manica, dos lunda de Kazembe e de Undi,
ao monarca se reservava também, em princípio, o monopólio do comércio, ao
passo que, no reino de Changamire, em última instância, ele era o proprietá-
rio de quase todo o gado
5
. Estes tributos e diversas ordenações alicerçavam o
5 Para uma análise crítica da tese “comércio e política” e para uma análise da importância do gado no reino
de Changamire, ver S. I. Mudenge, 1974.
215
Os países da bacia do Zambeze
poder e a riqueza do monarca, que redistribuía uma parte dessa última com seus
principais tenentes, a fim de garantir a lealdade deles. Nesse sentido, os Estados
pré -coloniais da África Central organizavam a circulação dos magros recursos
existentes, os quais passavam das classes dominadas à classe dominante
6
.
Apesar destes rituais e destas instituições unificadoras, um certo número de
fatores opôs -se ao desenvolvimento de reinos muito centralizados. Dentre os
principais fatores de instabilidade figuraram as crises de sucessão crônicas na
capital real; a repugnância dos dignitários distanciados da capital para subordi-
nar seus interesses econômicos e políticos aos da autoridade central; as revoltas
contra chefes opressores que violavam o reinado da lei”; a falta de homogenei-
dade étnica e cultural e a ausência de um exército permanente para controlar as
vastas extensões do reino. Tal situação caracterizou -se por conflitos e secessões
de caráter ao mesmo tempo irregular e crônico. Assim, os Estados Shona de
Báruè, Manica, Uteve e Changamire apenas afirmaram sua independência frente
ao Mwene Mutapa para experimentar os mesmos problemas em seus próprios
territórios
7
. O mesmo ocorreu na região setentrional do Zambeze, em particular,
nos reinos de Kalonga, Undi e Lundu, do atual Malaui
8
. Entretanto, a fragilidade
de vários desses Estados não deve mascarar a solidez das redes comunitárias e
das ligações mais locais que podiam fornecer auxílio e assistência nos momentos
difíceis
9
.
Do mesmo modo que profundas mudanças políticas ocorreram também
antes do século XIX, complexas redes comerciais estavam em operação por
toda a África Central, bem antes da expano que marcaria o culo XIX.
Apesar da tendência dos historiadores e dos antropólogos para qualificar as
6 Neste capítulo, emprego a expressão “classe dominante” para me referir à aristocracia que se apropriava
dos excedentes e aos seus aliados religiosos e comerciais que governavam os Estados da África Central
e controlavam seus magros recursos. A ausência de uma análise histórica das economias pré -capitalistas
da África Central e, em particular, a falta de uma reconstituição detalhada de “quem produzia o que para
quem (as relações sociais de produção, em termos marxistas) tornam impossível denir com exatidão
a estrutura de classe dos Estados estudados por nós. Antes de poder empreender uma análise global,
será preciso estudar muito precisamente as diversas entidades políticas da região, a m de determinar
como as classes dominantes puderam manter e reproduzir seu acesso aos recursos limitados, e como elas
puderam controlar e explorar a mão de obra. Trata -se também de precisar em qual medida tais processos
contribuíram para formar os interesses de classe e a consciência de classe, em geral. Os trabalhos de C.
Coquery -Vidrovitch (1972), de C. Meillassoux (1974), de E. Terray (1972) e de M. Godelier (1975),
mesmo se não estivermos inteiramente de acordo com eles, representam uma importante contribuição
para a análise da formação das classes sociais.
7 A. F. Isaacman, 1973; S. I. Mudenge, 1974; H. H. K. Bhila, 1972, e D. Beach, 1980.
8 H. W. Langworthy, 1971; K. M. Phiri, 1975, p. 78 -80.
9 Também havia desigualdades no seio do sistema de parentesco. Os anciões tendiam a monopolizar os
recursos limitados, à custa dos homens e das mulheres mais jovens. Ver Meillassoux, 1981.
216
África do século XIX à década de 1880
sociedades autóctones de “sociedades de subsistência”, o comércio de produtos
de base, tais como o ferro, o sal, as vestimentas e os grãos, era característico das
economias locais e completava o setor agrícola local
10
. Deste modo, ainda que
a maior parte dos sena tenha sido majoritariamente formada de agricultores,
um pequeno grupo de tecelões exportava regularmente seus tecidos a algumas
centenas de quilômetros, para a região do Zumbo e para o país dos chewa,
onde tais produtos eram muito procurados
11
. Outrossim, durante o culo
XVIII, os mercadores bisa praticaram comércio do ferro em grande escala
12
;
os chewa de Kasungo utilizavam seus excedentes de sal para obter enxadas
tumbuka
13
, e a economia nacional dos lozi repousava sobre a troca de gado,
peixes e de diversos artigos manufaturados e agcolas, entre diferentes regi-
ões do reino
14
. que a troca dos excedentes é, desde então, algo comprovado,
resta estudar mais qual era a natureza do sistema de produção que permitia
tais excedentes.
Este tipo de comércio local e inter -regional, sustentado por uma pequena
atividade mineira e manufatureira, contribuiu com o nascimento e com a manu-
tenção de um fluxo de trocas entre o interior do país e o litoral. Embora nossas
informações sejam fragmentárias, é claro que, ao logo dos séculos XVII e XVIII,
uma rede internacional edificada sobre uma justaposição de correntes comer-
ciais entre grupos vizinhos, alimentou com mercadorias os portos do Oceano
Índico, dominados pelos grandes negociantes muçulmanos e indianos. Entre
os produtos mais importantes figuravam o marfim do vale do Luangwa e do
território adjacente, pertencente ao reino Undi, o ouro das minas a Norte de
Tete e das minas dos reinos de Manica e de Changamire, bem como o cobre
da região de Kafue
15
. Tal comércio parece ter sido de amplitude relativamente
limitada e mais ou menos irregular até os dois últimos decênios do século XVIII.
O avanço para o Leste dos lunda do Kazembe e a aliança comercial entre estes
e o reino de Bisa, o desenvolvimento das atividades dos mercadores yao da
costa e a expansão das atividades comerciais chikunda dos prazos do Zambeze
tenderam a elevar consideravelmente o nível das exportações para os entrepostos
10 K. M. Phiri, 1975, p. 109 -137; A. D. Roberts, 1970a.
11 A. F. Isaacman, 1972a, p. 73.
12 A. D. Roberts, 1970a, p. 723.
13 K. M. Phiri, 1975, p. 111.
14 G. L. Caplan, 1970, p. 6 -7.
15 A. D. Roberts, 1970a, p. 717; S. I. Mudenge, 1974, p. 384 -390; A. F. Isaacman, 1972a, p. 75 -85; H. H.
K. Bhila, 1972.
217
Os países da bacia do Zambeze
do Oceano Índico. Esses três grupos adquiriram uma quantidade substancial de
marfim e de escravos, preparando, assim, a integração progressiva da região ao
mercado mundial, que repousava quase totalmente na troca destes dois gêneros
por produtos europeus manufaturados
16
.
A transformação dos sistemas políticos e econômicos frequentemente engen-
drou mudanças paralelas na composição social e étnica das sociedades centro-
-africanas. A migração de povos estrangeiros aparentados aos shona e aos lunda
ocasionou frequentes casamentos entre membros dos diferentes grupos étnicos,
e até mesmo esteve na origem do surgimento de agrupamentos completamente
novos, como os sena, os tonga do Zambeze e os goba
17
. De uma forma geral, os
imigrantes conseguiram impor à população local suas instituições de base e seus
valores. Assim, a difusão, em grande parte da região setentrional do Zambeze,
do modo lunda de organização social fundado na realeza perpétua e em uma
ordem de sucessão ao trono, modificou a estrutura fundamental da instituição
real e teve profundas repercussões sobre seu modo de transmissão
18
. Em toda
parte do Sul do Zambeze, a propagação do culto mwari dos shona e a crença nos
espíritos dos ancestrais da nação (mhondoro), na qual tal culto se apoiava, tam-
bém tiveram uma importância comparável. A introdução simultânea da língua
shona e do sistema simbólico ligado à propagação do culto mwari modificaria
radicalmente a cosmologia dos autóctones
19
. Entretanto, a mudança de cultura
não ocorreu em um único sentido. Ainda que tal problema necessitasse de um
estudo aprofundado, está claro que os conquistadores shona, da mesma forma
que os conquistadores lunda, adotaram certos elementos culturais das socieda-
des autóctones, criando assim, na maioria dos casos, novas formas sincréticas.
Os cultos makewana e mbona dos chewa e dos lundu parecem representar essa
forma híbrida
20
, tal como a distinção entre chefe do território e chefe político,
que foi uma característica da dominação exercida pelos lunda do Kazembe sobre
os shila
21
.
Por volta do fim do século XVIII, a África Central saía de uma fase dinâmica
de sua história. As migrações e as conquistas dos séculos precedentes haviam
modificado o mapa político e cultural da região, ao passo que a importância das
16 E. A. Alpers, 1975, p. 172 -208; A. D. Roberts, 1970a, p. 727 -728; K. M. Phiri, 1975, p. 109 -126.
17 A. F. Isaacman, 1972a, p. 4; C. S. Lancaster, 1974.
18 Para mais detalhes sobre a realeza perpétua e a ordem de sucessão, ver J. Vansina, 1966, p. 82.
19 Ver D. P. Abraham, 1966; T. O. Ranger, 1973.
20 T. O. Ranger, 1973; M. Schoeleers, 1972a; 1972b; H. W. Langworthy, 1971.
21 I. Cunnison, 1959, p. 180 -184.
218
África do século XIX à década de 1880
trocas comerciais tinha aumentado consideravelmente. Tais mudanças, por sua
vez, frequentemente provocaram tensões entre os conquistadores e as populações
conquistadas, bem como entre os diferentes grupos econômicos que disputavam
os magros recursos da região. Foi assim que, apesar de uma certa tendência à
centralização política, a situação continuou relativamente instável e pôde ser
explorada pelos mercadores estrangeiros ou por uma nova onda de imigrantes
conquistadores.
O comércio de escravos e a integração da África
Central na economia capitalista mundial
A penetração comercial sem precedente ocorrida no século XIX, a partir da
costa oriental africana, provocou a entrada da maior parte da África Central
na economia capitalista mundial. Tal como na África Ocidental, o comércio
de escravos desempenhou um papel determinante no processo graças ao qual
a região, em particular aquela situada a Norte do Zambeze, se integrou à peri-
feria do sistema internacional de trocas. Não obstante algumas semelhanças de
base, houve contudo importantes diferenças. Em vez de ser destinada ao Novo
Mundo, a maioria dos cativos era exportada para as plantações do Oceano
Índico, para Madagascar e para o Oriente Médio: o importantíssimo papel do
comércio de marfim e o fato de as grandes mudanças que acompanharam a
integração no mercado mundial terem se desenrolado em um lapso de tempo
muito mais curto, também distinguem a África Central da África Oriental.
Deste modo, a violência que acompanhava o tráfico de escravos era provavel-
mente mais marcada na África Central, o que se traduzia por uma fragmentação
da sociedade e uma desorganização sem precedentes da economia rural. Sem
dúvida, certas sociedades comerciantes da África Central, ou pelo menos suas
classes dominantes, tiraram proveito, por pouco tempo, de sua participação do
mercado de escravos e de marfim. Mas, por fim, elas se encontraram em uma
situação de subordinação e de dependência em relação ao sistema comercial
internacional, cujos centros de decisão estavam fora da África
22
.
Na primeira metade do século XIX, vários fatores concorreram para a ascen-
são do comércio de escravos. Após o ressurgimento da economia de plantation
no Nordeste do Brasil e o desenvolvimento das plantações de cana -de -açúcar
22 Ver o capítulo 2 do presente volume; ver também I. Wallerstein, 1976; E. A. Alpers, 1975, p. 264 -267.
219
Os países da bacia do Zambeze
em Cuba, um número considerável de negreiros das Antilhas e da América
Latina começou a frequentar os portos de Moçambique, onde os cativos eram,
em geral, mais baratos do que na África Central, e onde a presença limitada das
forças navais britânicas era menos intimidadora
23
. Na mesma época, os france-
ses, que exploravam a Ilha Bourbon (atual Ilha da Reunião), as Seychelles e as
Mascarenhas, bem como a elite dirigente de Madagascar, adquiriram um maior
número de escravos. Entretanto, o estímulo mais importante foi o desenvolvi-
mento, no início do século, de plantações de craveiros nas ilhas de Zanzibar e
de Pemba
24
.
A situação da África Central era ideal para satisfazer esta demanda crescente
por mão de obra escrava. As redes de comércio estabelecidas pelos povos bisa,
yao e chikunda já ligavam o interior das terras aos mercados costeiros de Kilwa,
da Ilha de Moçambique e de Quelimane. Ainda que o marfim fosse, no início,
o produto mais procurado, os mercadores do interior do país sempre fornece-
ram a tais entrepostos internacionais escravos em pequeno número, porém de
forma muito regular. Eles eram empregados no carregamento do marfim, o que
permitia aumentar o número de escravos sem perturbar o comércio de presas
de elefante. Ao contrário, as exportações de marfim também conheceram um
importante avanço à medida que os mercadores africanos tentaram satisfazer, ao
mesmo tempo, a demanda dos novos mercados da Grã -Bretanha, dos Estados
Unidos e a de seus tradicionais clientes da Ásia
25
.
Quando a demanda de mão de obra barata e de marfim subiu, os mercadores
yao, bisa e chikunda estenderam seus impérios comerciais. Os yao penetraram
primeiramente na região do lago Niassa durante a primeira metade do século e,
após 1850, no vale do Shire, em busca de novos mercados junto aos manganja
e aos chewa. Ao mesmo tempo, estabeleceram relações comerciais com o porto
de Ibo, no Oceano Índico, que se tornou um grande centro de exportação. Os
chikunda, inicialmente a serviço dos prazeiros afro -portugueses e afro -goeses,
estenderam suas relações comerciais da região situada logo ao Norte do Zam-
beze até o vale do Luangwa e, ao Sul, até o atual Zimbábue, ao passo que os
bisa intensificavam seu comércio no território situado entre os vales do Shire
e do Luapula. Estes três grupos continuaram também a privilegiar o comér-
23 E. A. Alpers, 1967, p. 4 -12; A. F. Isaacman, 1972a, p. 85 -94; K. M. Phiri, 1975, p. 130.
24 K. M. Phiri, 1975, p. 130; E. A. Alpers, 1975, p. 209 -218; A. M. H. Sheri, 1971.
25 R. W. Beachey, 1967.
220
África do século XIX à década de 1880
cio de marfim e, entre os bisa, o marfim permaneceu o principal produto de
exportação
26
.
Na metade do século XIX, a África Central tinha se tornado uma grande
fornecedora de escravos. As exportações anuais de Quelimane para o Brasil, por
exemplo, aumentaram de 400%, entre 1800 e 1835
27
. Os novos portos de Ibo,
na Ilha de Moçambique, e de Kilwa fizeram brilhantes negócios; e o ressur-
gimento do sultanato de Angoche, após 1844, estava diretamente ligado a sua
entrada no tráfico de escravos; mesmo os portos do Moçambique Meridional,
Inhambane e Lourenço Marques, praticamente desconhecidos pelos negreiros
europeus, tornaram -se entrepostos secundários, porém importantes
28
. Zanzi-
bar permaneceu sendo o principal centro para onde eram levados os cativos;
as importações anuais passaram de 10.000 por ano em 1810 para 50.000 em
1850
29
. Esse aumento seguiu -se de um crescimento proporcional das exporta-
ções de marfim
30
.
A preeminência econômica dos yao, dos chikunda e dos bisa não tardou a ser
contestada, como permite supor a entrada de Angoche no comércio de escravos.
Inúmeros mercadores, tanto africanos quanto estrangeiros, tornaram -se rapida-
mente seus concorrentes no negócio de escravos e de marfim. Os chefes e os
mercadores macua da costa começaram, ao mesmo tempo, a explorar o interior,
muito povoado, e a impedir os seus rivais yao de passar com suas caravanas pelo
território macua para ganhar a Ilha de Moçambique. Na metade do século XIX,
tiveram a oportunidade de substituir os yao como principais fornecedores de
escravos para a Ilha de Moçambique
31
. Os mercadores de escravos árabes e sua-
ílis, que, com frequência, dependiam diretamente da economia de plantation de
Zanzibar, também se tornaram comerciantes muito ativos. Em alguns casos, eles
estabeleceram comunidades permanentes no interior das terras, como Jumbe
o fez em Khota Khota, no Lago Malaui. Entretanto, com mais frequência,
os negociantes da costa equipavam caravanas que eram enviadas aos grandes
mercados no interior das terras, onde os escravos e o marfim eram facilmente
acessíveis. Foi da atual Tanzânia que vieram os comerciantes nyamwezi, cujo
26 K. M. Phiri, 1975, p. 117 -130; E. A. Alpers, 1975, p. 209 -233; A. D. Roberts, 1973, p. 189 -193; Y. B.
Abdallah, 1973, p. 29 -31.
27 A. F. Isaacman, 1972a, p. 92.
28 E. A. Alpers, 1967, p. 10 -12; M. D. D. Newitt, 1973b; P. Harries, 1981.
29 E. A. Alpers, 1967, p. 10 -12.
30 R. W. Beachey, 1967; K. M. Phiri, 1975, p. 117 -126; E. A. Alpers, 1975, p. 234.
31 E. A. Alpers, 1975, p. 219 -229.
221
Os países da bacia do Zambeze
mais importante, Msiri, impôs sua dominação comercial e política em toda a
parte oriental do reino Lunda
32
. Na metade do século, rumores sobre as possibi-
lidades de lucros chegaram até Angola e incitaram os comerciantes mambari a
estabelecer relações comerciais com os lozi e seus suseranos kololo
33
. Resumindo,
o aumento da demanda internacional de mão de obra servil fez com que uma
grande parte do Zambeze Setentrional se tornasse uma reserva humana onde a
principal atividade era a “produção” de escravos.
O aumento da concorrência entre comerciantes, assim como o monopólio
do armamento moderno detido por eles, modificaram de forma radical a natu-
reza do tráfico de escravos após 1840. Ao passo que, até então, a maioria dos
escravos provavelmente havia sido comprada por vias comerciais legais, o ataque
e a conquista tornar -se -iam doravante o principal modo de aquisição. Con-
forme suas tradições, os chikunda, por exemplo, na primeira fase do comércio
de escravos, podiam comprar escravos nsenga, chewa e tonga, dentre os quais
muitos eram, a princípio, criminosos, foras -da -lei ou estrangeiros. Entretanto,
passaram a recorrer a métodos coercitivos para responder à demanda das regiões
costeiras
34
. Do mesmo modo, mercadores itinerantes yao aproveitaram -se de seu
acesso a tecidos baratos e a enxadas de ferro, a fim de adquirirem uma posição
comercial de primeiro plano. Contudo, durante a segunda metade do século,
pressões externas incitaram -nos a exercer uma influência militar no vale do Shire
para assegurar sua hegemonia econômica
35
. A participação do povo macua no
comércio de escravos sofreu uma transformação análoga, ao passo que a força
sempre fizera parte da estratégia árabe -suaíli
36
.
Para assegurar um constante fornecimento de cativos e de marfim, um certo
número de grupos de comerciantes obteve Estados de tamanho considerável,
através de suas conquistas. Embora fossem diferentes nos detalhes, estas comu-
nidades apresentavam traços comuns que modelaram sua evolução histórica.
Todos os suseranos estrangeiros contavam largamente com as armas europeias
para impor sua hegemonia e manter sua preeminência. Tais armas aperfeiçoadas
eram obtidas em troca de cativos, em uma versão atualizada do ciclo fuzil-
-escravo. Uma vez solidamente implantadas, as classes dirigentes estrangeiras
alargavam as fronteiras de seu império; suas forças podiam ser mais ou menos
32 J. Vansina, 1966, p. 227 -231.
33 E. Flint, 1970.
34 A. F. Isaacman, 1976, p. 24 -25.
35 K. M. Phiri, 1975, p. 147 -150; E. A. Alpers, 1969.
36 E. A. Alpers, 1975, p. 219 -228; K. M. Phiri, 1975, p. 139 -145; H. W. Langworthy, s. d.
222
África do século XIX à década de 1880
 . Jumbe de Khota Khota. [Fonte: H. H. Johnston, British Central Africa, 1897, Methuen and Co,
London, p. 92. Foto reproduzida com a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Uni-
versidade de Cambridge.]
223
Os países da bacia do Zambeze
potentes, mas, por outro lado, a coerção era o mecanismo privilegiado do cres-
cimento territorial. As novas aquisições forneceram fontes suplementares de
escravos e de marfim, utilizados para aumentar o tamanho dos arsenais, tornando
assim possível uma nova expansão. Ainda que politicamente independentes, tais
Estados conquistados por estrangeiros representavam uma extensão indireta ou
secundária da potência econômica e militar europeia para o interior do país.
Esse tipo de penetração comercial, de conquista e de formação de Estados se
reproduziu ao longo do Zambeze e no vale adjacente do Luangwa. Após 1840,
um grande número de chefias chewa, tonga, tawara, nsenga e soli foi absorvido
à força pelos Estados dos senhores da guerra afro -portugueses e afro -goeses,
bem como de seus vassalos chikunda. Os mais importantes foram Massangano,
Makanga e os Estados zumbo de Kanyemba e de Matakenya
37
. Um fenômeno
semelhante se produziu no Norte, em ritmo acelerado, atingindo seu ponto cul-
minante nos anos 1870. Como o indicamos mais acima, chefes mercadores yao,
como Mataka, Makanjila e Mpona, impuseram sua hegemonia sobre a maior
parte do vale do Shire; comerciantes árabes estabeleceram encraves políticos na
região do lago Niassa; e Msiri, o chefe dos yeke, apoderou -se do controle das
províncias ocidentais do reino lunda de Kazembe
38
. Em suma, o comércio de
escravos, em uma região imensa, conduziu ao poder novas classes dirigentes, cuja
autoridade repousava sobre a exploração e a intimidação da população local.
Mesmo quando os negreiros não se impunham como suseranos políticos,
suas razias, assim como sua capacidade de explorar as cisões existentes no inte-
rior de inúmeras comunidades da África Central, frequentemente abalavam
a autoridade da aristocracia local. Ao burlar o monopólio real do comércio,
os mercadores árabes e suaílis adquiriram um poder local no reino lunda de
Kazembe. Em 1872, eles intervieram diretamente na política lunda, ajudando
no assassinato de Kazembe Muonga Sunkutu e na escolha de um sucessor mais
dócil
39
. Do mesmo modo, as incursões dos chikunda e dos suaílis, conjugadas
às alianças comerciais feitas por estes últimos com chefias distantes, minaram
a posição do Reino Undi ao longo do século XIX e, por fim, provocaram sua
queda por volta de 1880
40
. Outros mercadores estrangeiros precipitaram um
confronto armado entre o chefe senga, Kambamo, e Tembu, seu inimigo jurado,
37 A. F. Isaacman, 1976, p. 22 -48.
38 J. Vansina, 1966, p. 227 -231; E. A. Alpers, 1969, p. 413 -416; H. W. Langworthy, s. d., p. 14 -18; K. M.
Phiri, 1975, p. 140 -145; Y. B. Abdallah, 1973, p. 40 -60.
39 I. Cunnison, 1966, p. 235 -236; A. D. Roberts, 1973, p. 199.
40 H. W. Langworthy, 1971, p. 18 -21.
224
África do século XIX à década de 1880
 . Mercadores árabes da região norte do lago Malaui. [Fonte: H. H. Johnston, British Central Africa,
1897, p. 93, Methuen and Co, London. Foto reproduzida com a autorização do Conselho de Administração
da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
a fim de obterem mais escravos para a exportação
41
. No Sul, bandos chikunda
alcançaram uma situação econômica e política de primeiro plano, graças à forma
com a qual souberam explorar suas qualidades militares, aliando -se às facções
vitoriosas das sociedades senga e sala
42
.
A influência dos mercadores de escravos no destino político da aristocracia
autóctone não era uniforme. Em alguns casos, a classe dominante encontrou-
-se reforçada por suas ligações econômicas e militares com os negreiros. Tal
foi o caso das relações entre os chefes bemba e os mercadores árabes e suaílis.
41 H. W. Langworthy, s. d., p. 20 -21.
42 B. Stefaniszyn e H. de Santana, 1960, p. 364; W. V. Brelsford, 1956, p. 58.
225
Os países da bacia do Zambeze
Os bemba, à frente dos quais se encontrava Chilesche Chipela, findavam uma
fase de expansão territorial e de centralização política quando os mercadores
estrangeiros penetraram entre eles, por volta de 1860. Como consequência, o
reino bemba foi bem mais unificado e poderoso do que a maioria das socieda-
des da África Central. Sua situação geográfica, um pouco à parte das grandes
rotas comerciais, impediu a formação, no seio do reino, de uma larga comuni-
dade mercante, podendo eventualmente apresentar riscos de sedição. Também
é importante o fato de nada ter incitado os comerciantes árabes e suaílis a
adotarem uma atitude hostil para com os bemba, pois que não havia rivalidade
econômica entre eles. A maior parte das riquezas das famílias reais bemba era
composta de escravos e de marfim que provinham de razias e de tributos, e eles
estavam felizes em trocá -los por tecidos e outras mercadorias importadas, forne-
cidas pelos mercadores costeiros. Essa complementaridade econômica favoreceu
o estabelecimento de relações harmoniosas e, ao mesmo tempo, consolidou a
situação interna da elite dirigente bemba, que se servia das mercadorias estran-
geiras para recrutar novos partidários e reforçar suas ligações com os chefes
subordinados. A forte demanda por escravos e marfim provocou, de 1860 a
1880, uma nova fase de expansão durante a qual forças bemba se apoderaram
da maior parte do Nordeste da atual Zâmbia. Foi assim que, graças às ligações
mantidas com mercadores estrangeiros, os bemba alcançaram um poder regional
sem precedente, acumulando riquezas consideráveis
43
.
Como os bemba, um certo número de chefes e de mercadores locais fez
alianças com os negreiros, que se revelariam extremamente benéficas a eles. Ao
longo dos anos 1870, Mwaze Kasungo, o chefe chewa cujo território abarcava
parte da rota comercial Niassa -Catanga, abastecia as caravanas árabes de gêneros
alimentícios, recebendo fuzis em troca. Tais armas permitiram -lhe, em seguida,
resistir às invasões dos nguni mbwela
44
. A proteção, outorgada pelos árabes e
pelos suaílis aos chefes senga, importantes fornecedores de marfim, também se
explicava por considerações econômicas
45
. Fatores da mesma ordem contribuí-
ram para justificar as alianças dos chikunda com os ambo contra os bemba, e a
ajuda que eles concederam aos nsenga contra os soli, na década que precedeu a
corrida”
46
. Em todos esses casos, mostra -se claro que a estratégia dos estran-
43 A. D. Roberts, 1973, p. 164 -214.
44 K. M. Phiri, 1975, p. 143 -145; H. W. Langworthy, s. d., p. 12 -13.
45 H. W. Langworthy, s. d., p. 18 -21.
46 W. V. Brelsford, 1956, p. 64; B. Stefaniszyn e H. de Santana, 1960, p. 64; K. M. Phiri, 1975, p. 150.
226
África do século XIX à década de 1880
geiros era impedir a expansão de um rival comercial ou político, a fim de manter
suas próprias zonas de influência.
Por uma estranha ironia do destino, os chefes e os mercadores que bus-
cavam um excedente de cativos foram, às vezes, vítimas das perturbações
sociais e políticas provocadas pelo tráfico de escravos. Em várias ocasiões, eles
abusaram de sua autoridade e reduziram os seus ditos ou seus vizinhos a
escravidão, para manter o afluxo de riqueza e de armas sobre os quais repou-
sava o seu poder. A elite macua adotou esse tipo de estragia suicida. Aos
anos 1850, os macua foram os principais exportadores de escravos para a Ilha
de Moçambique. Suas atividades predarias provocaram indiretamente uma
vasta migrão das sociedades vitimadas por eles. Confrontados com uma
diminuão de suas reservas de mão de obra, os chefes macua começaram
a laar ataques uns contra os outros e a reduzir os seus próprios súditos à
escravidão, para continuarem se enriquecendo por meio desse tráfico, do qual
se tornaram totalmente dependentes. No espaço de duas décadas, os macua
encontraram -se gravemente divididos, o que, em seguida, os tornaria uma
presa fácil para os invasores portugueses
47
. Movida pela ganância, a comu-
nidade afro -portuguesa dos prazeros sofreu dessa mesma visão estreita, pre-
cipitando assim o desabamento do sistema dos prazos. Os prazeros, tal como
os chefes macua, violaram sua carta hisrica e, quando o mais puderam
conseguir cativos no interior do ps, comaram a reduzir as pessoas que
viviam em suas terras à escravidão. Como reação a esse abuso, a população
autóctone se revoltou e expulsou os prazeros da região ou fugiu para o interior,
privando, assim, o proprietário do domínio de sua tradicional fonte de renda.
Nos dois casos, isso tendeu, por volta de 1830, à destruição da maioria dos
prazos e aqueles que conseguiram sobreviver conheceram períodos de fome
que enfraqueceram tanto as populões autóctones que elas não puderam
opor nenhuma resistência às invasões nguni das décadas seguintes. Cinquenta
anos mais tarde, os gwemba, os nsenga e os tawara levantaram -se contra os
seus suseranos mestizo (afro -portugueses e afro -asiáticos) e chikunda, que os
haviam reduzido à escravidão e exportado para a costa
48
.
A região sob domínio shona, que se estendia da margem sul do Zambeze
ao interior de Inhambane, tornou -se uma zona secundária de fornecimento de
escravos, e o mesmo ocorreu à região da baía de Delagoa. Apenas pequenos
encraves de implantação comercial estrangeira eram encontrados no interior
47 E. A. Alpers, 1975, p. 225.
48 A. F. Isaacman, 1972a, p. 114 -123.
227
Os países da bacia do Zambeze
dessa larga zona, notadamente nas zonas conquistadas pelos chikunda, ao longo
das margens meridionais do Zambeze, ao passo que traficantes portugueses e
africanos, que tinham interesses comerciais nos portos de Inhambane e de Lou-
renço Marques, efetuavam ataques ocasionais. Tais atividades, que precederam o
século XIX, eram esporádicas e somente eram praticadas em uma escala muito
reduzida
49
.
Um conjunto de fatores demográficos, comerciais e políticos explica a recusa
ou a incapacidade dos mercadores de escravos de explorarem esta parte meri-
dional do vale do Zambeze. A menor densidade de população significava que,
potencialmente, havia menos recursos em escravos do que na região setentrional,
facilmente acessada pelos traficantes. Ademais, os Estados shona tinham amplos
recursos em ouro e marfim, exportados por eles em troca de produtos europeus.
Assim, o único meio de os mercadores estrangeiros conseguirem cativos em
número considerável era recorrer à força; e os poderosos Estados shona tinham
a possibilidade de rechaçar a maior parte das incursões. A derrota infligida pelo
exército de Mwene Mutapa a uma armada portuguesa, em 1807, assim como
os repetidos ataques de Báruè e Manica contra os europeus, mostraram bem em
favor de quem pendia o equilíbrio das forças. Os gaza nguni, que impuseram sua
hegemonia sobre grande parte da região meridional após 1830, participaram do
tráfico internacional de escravos. Mas, após 1850, quando a esquadrilha naval
britânica encarregada de lutar contra o tráfico interditou as rotas dos portos de
Lourenço Marques e de Inhambane aos navios, esse comércio tornou -se cada
vez mais difícil e, finalmente, deixou de ser rentável. No espaço de dez anos, a
aristocracia gaza e os mercadores regionais abandonaram o tráfico marítimo,
preferindo utilizar seus escravos no local
50
.
Embora as pesquisas neste domínio devam prosseguir, a priori, tudo indica
que uma evolução semelhante ocorreu em muitos lugares da África Central.
Uma das consequências do declínio da demanda internacional de escravos, na
segunda metade do século XIX, foi a transformação do destino dos cativos: de
gêneros destinados à exportação, tornaram -se trabalhadores forçados. Conhece-
mos vários exemplos de escravos destinados à exportação que foram integrados
à produção local. A mão de obra escrava desempenhou um grande papel entre
os gaza, os macua, os lozi, os gwemba, os maconde e os chikunda, entre outros.
Nos dois últimos casos, o fato de recorrerem aos cativos permitiu aos homens
livres recolher o cautchu, a cera e o marfim para a exportação além -mar. A aris-
49 Ibid., p. 89 -92; A. K. Smith, 1969, p. 176 -177; A. Lobato, 1948, p. 7 -8; P. Harries, 1981, p. 312 -318.
50 P. Harries, 1981, p. 312 -318.
228
África do século XIX à década de 1880
 . Um Ruga -ruga (caçador de escravos). [Fonte: H. H. Johnston, British Central Africa, 1897, p.
421, Methuen and Co, London. Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho de Administração da
Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
229
Os países da bacia do Zambeze
tocracia lozi também empregou escravos para cavar canais e fossas, o que lhe
permitiu transformar solos pantanosos em terras cultiváveis. No último quarto
do século, estima -se que um quarto da população lozi era constituído de escra-
vos. Deste modo, o dinamismo da economia nguni deveu -se à possibilidade de
obter excedentes, graças a um vasto estoque de cativos
51
.
Todavia, mesmo levando em conta as variações locais, vemos se desenhar
um movimento geral de desagregação econômica devido ao tráfico de escravos.
A brutal transformação de uma grande parte da economia rural, a exportação
de um grande número dos membros mais produtivos das sociedades locais, a
introdução involuntária de doenças extremamente contagiosas e a crescente
dependência da economia da África Central em relação ao sistema de troca
mundial aceleraram o processo de subdesenvolvimento. Claro, esse processo
foi acompanhado da difusão de novas culturas, como o tabaco, o milho, o arroz
e a mandioca; da introdução de inovações técnicas modestas, como as peças
chikunda, os celeiros, as armas; e da expansão de algumas indústrias locais.
Porém, esses são desenvolvimentos pouco importantes se comparados ao atraso
econômico que a região, em seu todo, conheceu
52
.
Não é muito necessário se deter sobre a amplitude, sem precedentes, das
destruições que acompanharam os ataques e as atividades expansionistas dos
negreiros: campos devastados, aldeias inteiras destruídas, cujos sobreviventes,
no mais das vezes, eram obrigados a fugir para se estabelecerem em lugares ina-
cessíveis e improdutivos. Um viajante do século XIX conta o efeito dos ataques
conduzidos pelos yao contra os manganja, nos anos 1860:
Um certo número de manganja partiu com eles. Em toda parte, viram os traços afli-
tivos da guerra: aldeias queimadas, hortas abandonadas, as ricas terras da redondeza
transformando -se rapidamente em desertos. Por volta do meio -dia, encontraram
um importante bando de ajaua (yao) que voltava de um ataque vitorioso. Ao longe,
víamos a fumaça das aldeias que queimavam. Uma longa fila de cativos carregava
51 L. Gann, 1972, p. 188 -192; E. Flint, 1970, p. 73 -79; P. Harries, 1981; W. G. Clarence -Smith, 1979b,
p. 219 -234; P. D. Curtin, S. Feierman, L. ompson e J. Vansina, 1978, p. 403; T. I. Matthews, 1981, p.
23 -24. Assim, enquanto a escravidão havia caracterizado inúmeras sociedades da África Central antes
do tráco, diversos indícios mostram que a aristocracia cada vez mais tendia a adquirir cativos para
obter os excedentes que lhe permitiam manter sua privilegiada posição. Na medida em que os escravos
constituíam uma mão de obra forçada, tornavam -se, a partir de então, bens móveis: o que implica uma
mudança na natureza da própria escravidão, pois que, inicialmente, era mais acentuada a função repro-
dutora dos escravos e o papel deles na extensão da rede de parentesco.
52 G. W. Hartwig e K. D. Patterson (org.), 1978; A. D. Roberts, 1970a, p. 734 -736; B. Reynolds, 1968, p.
17 e 59; J. Vansina, 1978.
230
África do século XIX à década de 1880
o espólio e ouvíamos suas queixas elevando -se acima dos clamores triunfantes das
mulheres ajaua, que saíam para acolher os visitantes que retornavam
53
.
As incursões dos chikunda nos territórios chewa, tonga e nsenga, e, em
direção ao Norte, até o território dos lunda de Kazembe, bem como os ataques
dos árabes -suaílis contra a população da região do lago Malaui, produziram
as mesmas desordens e as mesmas ruínas
54
. Nos casos mais extremos, regiões
inteiras foram despovoadas. Um funcionário britânico escrevia em 1861: “Um
árabe que recentemente voltou do lago Niassa me contou que havia viajado
durante dezessete dias pelas terras, onde havia cidades e aldeias em ruínas
[...] e nenhuma alma viva”
55
.
Tal perda de grande número dos membros mais produtivos da sociedade
agravou a desorganização da sociedade rural. Embora disponhamos de indi-
cações de valor desigual, as informações que temos sobre as regiões do vale do
Zambeze, do vale do Shire e do Lago Malaui levam a pensar que períodos de
fome regularmente ocorriam
56
. Portanto, escravos eram frequentemente trocados
por alimentos, aumentando ainda mais o êxodo das populações. De todo modo,
a instabilidade da situação e a ameaça de outros ataques impediam a recuperação
da economia rural.
Também a fome e a pressão psicológica tornavam as populações desenrai-
zadas e subalimentadas, vulneráveis às doenças infecciosas transmitidas pelos
mercadores da costa. Doenças como a varíola e o cólera, correntes nas comu-
nidades do Oceano Índico, tiveram, na África Central, um efeito devastador
nas populações que não tinham nenhuma imunidade natural para delas se
protegerem. Epidemias de vaola e de cólera assolaram grandes regiões da
África Central, da atual fronteira da Tanzânia e do Malaui até o Moçambique
Meridional. Aproximadamente no final dos anos 1850, um explorador euro-
peu observou: “A epidemia mais perigosa é a [...] da varíola, que, às vezes, cai
como uma tempestade sobre o país”
57
. Há registros de epidemias de varíola em
Moçambique, em 1834, 1836 e 1862; no interior, assinalam -se também outras
epidemias no peodo de 1850 a 1880
58
. A doea do sono, provavelmente
ligada às mudanças sobrevindas na África Central após o arroteamento das
53 H. Rowley, 1867, p. 112 -113.
54 F. Selous, 1893, p. 48.
55 Apud R. Coupland, 1939, p. 140.
56 A. F. Isaacman, 1972a, p. 114 -124; E. A. Alpers, 1967, p. 20.
57 Apud em G. W. Hartwig, 1978, p. 26.
58 Ibid.; J. R. Dias, 1981; G. Liesegang, s. d.
231
Os países da bacia do Zambeze
florestas e a exterminação da caça, atingiu igualmente grande parte da zona
que estudamos aqui
59
.
A taxa elevada de mortalidade e de doença, por sua vez, reduziu a produti-
vidade rural, contribuindo, assim, com o aumento da desnutrição e das doenças.
A tendência das comunidades sobreviventes a se instalarem em aldeias superpo-
voadas, cujos solos mostravam -se impróprios para nutri -las, agravou ainda mais
esse problema. Aliás, as epidemias tiveram dois outros efeitos negativos. Em um
primeiro momento, elas intensificaram as desordens sociais e as acusações de
feitiçaria. Ademais, as classes privilegiadas, em um certo número de sociedades,
tentaram compensar a queda demográfica buscando outros cativos aumen-
tando, assim, na mesma proporção, o comércio local de escravos
60
.
Certamente poderíamos sustentar que as sociedades comerciantes, ou pelo
menos, a aristocracia e os mercadores, melhoraram sua situação à custa dos
vizinhos mais fracos: contudo, as informações de que dispomos levam a pen-
sar, ao contrário, que essa melhora foi de curta duração e que tais sociedades
tornaram -se excessivamente dependentes da economia do mundo capitalista.
Na melhor das hipóteses, os grandes Estados comerciais perderam sua indepen-
dência econômica. Para conservar suas posições preeminentes, era -lhes preciso
esperar que a demanda de marfim e escravos vinda das costas se mantivesse,
apesar das pressões sempre mais fortes dos britânicos. Também dependiam da
possibilidade de obter essas duas mercadorias em quantidade suficiente. Nos
casos extremos, como o dos macua, a incapacidade de preservar o fornecimento
de escravos levou a um conflito interno e à autodestruição. Mais frequentemente,
a concorrência pela mão de obra servil suscitava uma hostilidade violenta entre
comunidades comerciantes e no interior de cada uma delas. Inúmeros foram os
exemplos de guerras entre bandos chikunda, chefes yao e grupos de comerciantes
suaílis
61
. Em virtude de sua dependência em relação às armas europeias e aos
intermediários estrangeiros, as comunidades autóctones de comerciantes eram,
com frequência, muito vulneráveis. Os portugueses, por exemplo, aproveitavam
de seu papel de fornecedores de armas para forçar os bandos chikunda a aceita-
rem, em parte, a autoridade de Lisboa em seu território
62
. Do mesmo modo, os
senga contaram tanto com seus aliados árabes, que colocaram sua soberania em
59 J. R. Dias, 1981.
60 G. W. Hartwig, 1978, p. 25 -31.
61 A. F. Isaacman, 1976, p. 37 -38; Y. B. Abdallah, 1973, p. 52 -54; K. M. Phiri, 1975, p. 144 -146; E. A.
Alpers, 1969, p. 413 -414.
62 A. F. Isaacman, 1976, p. 31 -35.
232
África do século XIX à década de 1880
risco
63
. Mesmo os poderosos bemba não escaparam à pressão dos comerciantes
árabes e suaílis
64
.
Além disso, com a abolição do comércio de escravos, as classes ou as camadas
sociais, às quais pertenciam aqueles que se beneficiavam com tal negócio a
aristocracia, os mercadores, os chefes de guerra e os proprietários de terras –,
buscavam desesperadamente novos gêneros, como a cera, o café, o amendoim
ou os óleos vegetais. Podiam obter tais produtos de seus súditos ou adquiri -los
pelo comércio, a fim de garantirem um abastecimento regular de produtos de
consumo e de equipamento militar europeu, indispensáveis à manutenção de sua
privilegiada posição. Em certas regiões, esse comércio permitiu aos mercadores
itinerantes o acúmulo de capital e aos camponeses, o desenvolvimento da agri-
cultura. À medida que essas camadas e estas classes sociais conseguiram efetuar a
transição, puderam simplesmente perpetuar ou estender sua posição dependente,
em uma economia mundial sobre a qual elas não tinham nenhum controle.
Se olharmos de um ponto de vista ligeiramente diferente, podemos dizer que
o valor desigual das mercadorias trocadas reflete a precariedade da África Cen-
tral no seio do sistema comercial internacional. Como Alpers notou: “Embora
o marfim tivesse um baixo valor aos olhos das sociedades africanas, essas últi-
mas obtinham em troca mercadorias cujo valor não igualava em nada àquele
outorgado ao marfim pelos mercadores capitalistas das Índias, da Europa e
da América”
65
. A diferença era particularmente clara na venda dos escravos.
Para compensar as perdas de mão de obra que sofriam, as sociedades da África
Central recebiam mercadorias perecíveis de baixo custo e armas, que de forma
alguma equilibravam a rarefação dessa mão de obra. Deste modo, quando os
africanos caçavam o elefante para obter o marfim, esgotavam um recurso limi-
tado e não recebiam os bens de equipamento que poderiam ter -lhes permitido
desenvolver a base produtiva de suas sociedades. Segundo algumas pesquisas
recentes, eles não alteravam a sua economia, como também destruíam o meio
ecológico.
À medida que a região empobrecia, as disparidades de riqueza e de status
social eram cada vez mais pronunciadas. Embora ainda falte conduzir pesquisas
mais detalhadas para podermos determinar a natureza dos sistemas de produ-
ção e de divisão dos excedentes nas sociedades da África Central, é claro que a
aristocracia, frequentemente aliada à classe dos mercadores ou a uma parte dela,
63 H. W. Langworthy, s. d., p. 20 -21.
64 A. D. Roberts, 1973, p. 268.
65 E. A. Alpers, 1975, p. 266.
233
Os países da bacia do Zambeze
era o principal beneficiário desse processo. O surgimento de poderosos chefes
yao, makanjila e mataka, bem como os esforços desesperados da elite macua
para continuar no poder, testemunharam a acentuação das diferenciações sociais
e políticas no interior dessas sociedades
66
. Um fenômeno análogo se produziu
nos sultanatos de Angoche e de Quitanghona, e nos Estados conquistados pelos
chikunda e pelos árabes -suaílis, onde, apesar de uma crescente oposição popular
e de revoltas periódicas, uma pequena elite política e comerciante se impôs. A
frequência do descontentamento popular durante a segunda metade do século
XIX leva -nos a pensar que os antagonismos de classes aumentaram; foi o que
mostraram os levantamentos de escravos entre os lozi e nos prazos
67
.
Alhures, interesses comerciais independentes da elite dirigente chegaram a
dominar o comércio e a arruinar a posição das autoridades políticas. Os melhores
exemplos que podemos fornecer dessa transferência de poder são, talvez, aque-
les dos Estados setentrionais de Undi e de Kazembe. Nos dois casos, alianças
realizadas entre mercadores locais e comerciantes estrangeiros facilitaram o
desrespeito ao monopólio real e enfraqueceram consideravelmente a posição
dos diversos dirigentes nacionais
68
. O mesmo fenômeno se produziu no reino
vizinho de Cassange (Kassanga). Aí, as famílias matriarcais locais conseguiram
controlar o comércio de escravos à custa da família real, o que rapidamente
conduziu à fragmentação do reino
69
.
Uma consequência imprevista da revolução comercial foi o grande número
de empréstimos culturais entre as diversas sociedades. As mudanças variaram
de forma sensível em função de vários fatores, tais como a natureza e a duração
dos contatos mantidos entre os grupos de comerciantes e a população autóctone.
Nos casos em que a interação foi bastante importante, surgiram três grandes
tipos de influência cultural. Em alguns casos, bandos isolados de mercadores
e de saqueadores foram completamente assimilados às comunidades locais, tal
como os caçadores chikunda que se integraram às comunidades nsenga, ambo
e aos tonga do vale
70
. Alhures, ao contrário, foram os estrangeiros que profun-
damente imprimiram sua marca na cultura autóctone. Os súditos chewa de
Khota Khota, por exemplo, integraram certos aspectos do islã à sua religião,
adotaram nomes suaílis, puseram -se a falar kiswahili e viram o seu sistema social
66 Y. B. Abdallah, 1973, p. 40 -60; E. A. Alpers, 1975, p. 228 -229.
67 N. Hafkin, 1973, p. 253 -280, p. 311 -359; A. F. Isaacman, 1976, p. 23 -30; K. M. Phiri, 1975, p. 140 -146.
68 H. W. Langworthy, 1971, p. 18 -21; I. Cunnison, 1966, p. 235 -236; J. Vansina, 1966, p. 227 -231.
69 J. C. Miller, 1973, p. 23 -26.
70 W. V. Brelsford, 1956, p. 60 -62.
234
África do século XIX à década de 1880
se modificar profundamente
71
. Da mesma forma, inúmeros comerciantes yao, ao
mantiverem contatos com os árabes, converteram -se ao islã e adotaram os mode-
los culturais das zonas costeiras. A sua participação nas atividades comerciais
com terras longínquas também provocou o desenvolvimento de centros urba-
nos, o surgimento de rituais e de interdições destinados a garantir a fidelidade
das mulheres yao quando seus maridos estavam no interior
72
. Nesse sentido,
supõe -se que mudanças também ocorreram no momento em que as socieda-
des modificaram suas estruturas internas para se adaptarem a um novo meio.
Além desses dois tipos de influência cultural, sabemos que a instabilidade da
situação facilitou a formação de novos grupos étnicos e culturais. Vários bandos
chikunda abandonaram o decadente sistema dos prazos, aproximadamente na
metade do século, e organizaram comunidades autônomas no vale do Luangwa.
Atraindo adeptos vindos de grupos étnicos díspares, desenvolveram uma cultura
que adotou diversas instituições e valores dos shona e dos povos do Malaui
73
.
Um fenômeno análogo se produziu na região que atualmente constitui a parte
oriental da República Democrática do Congo, onde os manyema, após terem
sido um bando heterogêneo de traficantes de escravos, acabaram formando um
grupo social e cultural homogêneo
74
.
O impacto das invasões nguni e kololo
Como a integração progressiva da África Central no sistema capitalista mun-
dial, as invasões nguni e sotho, que começaram nos anos 1820, representaram
a continuação dos processos políticos em curso, porém, sob novas formas e em
uma escala sem precedente
75
. A diáspora dos povos da África Austral insere -se
no quadro mais abrangente das migrações e da formação de Estados que,
vários séculos, haviam se iniciado. Em alguns casos, os imigrantes estabelece-
ram seu domínio sobre grupos que conseguiram permanecer fora da esfera de
influência dos Estados shona e lunda. A dominação exercida pelos gaza nguni
71 K. M. Phiri, 1975, p. 140 -146; H. W. Langworthy, s. d. , p. 23; M. E. Page, 1974.
72 E. A. Alpers, 1972; 1969, p. 417 -420.
73 A. F. Isaacman, 1972b, p. 454 -461.
74 M. E. Page, 1974.
75 Os trabalhos de P. Bonner, J. Guy, D. Hedges e H. Slater indicaram que o processo de construção estatal
do século XIX, associado à expansão dos nguni e dos sotho, teve como antecedentes as transformações
políticas e a consolidação do poder dos chefes e dos anciões no período precedente. Ver S. Marks e A.
Atmore (org.), 1980; D. Hedges, 1978.
235
Os países da bacia do Zambeze
sobre os tonga do Sul de Moçambique ilustra esse fenômeno. Frequentemente,
os invasores impuseram sua hegemonia aos reinos existentes. De qualquer modo,
os Estados novamente conquistados compreendiam grande parte dos territórios
que atualmente formam Moçambique, o Malaui e a Zâmbia, e estavam organi-
zados em torno de um conjunto, único em seu gênero, de instituições políticas
e militares centralizadas.
Três ondas de imigração espalharam -se pela África Central por volta da
metade do século XIX. A primeira era constituída dos partidários nguni de
Soshangane, senhor do Imrio Gaza Nguni que se estendia do Norte do
Moçambique Austral até o rio Zambeze e a Oeste, até o atual Zimbábue. A
vitória de Soshangane sobre seu inimigo jurado, Zwangendaba, em 1831, obri-
gou este último a emigrar para além do médio Zambeze, estabelecendo -se
definitivamente em Mapupo, entre o Lago Malaui e o Lago Tanganica. Quase
na mesma época, os imigrantes kololo de origem sotho, conduzidos por seu
chefe Sebetwane, emigraram, passando pelo território dos twana e pela região
do médio Zambeze, antes de se estabelecerem entre os lozi, aos quais impuseram
seu domínio.
Não obstante, ainda que estudados aqui separadamente, esses grupos de
imigrantes apresentavam traços comuns. Todos abandonaram a terra de seus
ancestrais pelas mesmas razões: todos enfrentaram os mesmos problemas em
sua fuga para o Norte e se beneficiaram das armas e da estratégia militar que
haviam emprestado, diretamente ou indiretamente, dos zulus. Todos esses gru-
pos foram atingidos pelas atividades expansionistas de seus vizinhos os gaza
e os wangendaba sofreram as de Shaka, e os kololo, os ataques dos tlookwa – e
encontraram -se ameaçados de perderem seu rebanho e de serem aniquilados.
Como tais conflitos reduziram consideravelmente os seus efetivos, foram obri-
gados a incorporar em suas fileiras um grande número de estrangeiros, para
que pudessem se tornar uma verdadeira força militar e política. A adoção da
zagaia curta zulu e o desenvolvimento de uma técnica de guerra mais evoluída
lhes permitiram adquirir cativos mais facilmente e multiplicar suas conquis-
tas, mesmo sendo contestada tal dominação. Também puderam se apoderar de
grandes rebanhos, que, nas sociedades nguni e sotho, revestiam uma importância
tanto social e religiosa quanto econômica. Assim, em termos de expansão e de
aquisição de riquezas, o acesso a novas armas era tão capital para os nguni e os
sotho que para os chikunda, os yao e os árabes -suaílis, traficantes de escravos.
Temendo um ataque dos zulus, Soshangane e os gaza nguni que o seguiam
deslocaram -se para o Norte, deixando a região setentrional da Tugela para se
dirigir à baía de Delagoa, em 1821. Lá, eles apenas encontraram uma fraca
236
África do século XIX à década de 1880
resistência da parte dos chopi, organizados em chefias relativamente pequenas,
e dos portugueses, que apenas mantinham uma presença simbólica no porto de
Lourenço Marques. No espaço de um ou dois anos, os gaza nguni estenderam
o seu domínio até o interior de Inhambane, ao passo que suas fileiras aumenta-
vam graças à chegada de outros nguni, descendentes dos ndwandwe, que foram
derrotados por Shaka em 1826.
Apesar dessas virias iniciais, Soshangane teve que enfrentar um certo
número de ameaças. Delas, as maiores foram os ataques dos zulus, cujo exército
encontrava -se estacionado relativamente perto. Após os afrontamentos militares
de 1828, Soshangane deslocou o coração de seu reino até o médio Sabi, a salvo
do exército de Shaka. Tal deslocamento provocou um confronto direto com os
nguni de Zwangendaba que, em 1831, foram várias vezes derrotados.
Essas vitórias permitiram a Soshangane consolidar suas possessões meridio-
nais e estender suas fronteiras. Destacamentos gaza marcharam então para o
Oeste, penetrando no atual Zimbábue, onde Soshangane estabeleceu sua capital
em Chaimaite, e para o Norte, em direção ao vale do Zambeze. Em meados
dos anos 1830, os exércitos gaza efetuaram ataques nos reinos shona de Manica,
Uteve e Báruè, tal como nos prazos que haviam sobrevivido ao longo do Zam-
beze. Em vez de tentar incorporar esta vasta região ao seu império, o chefe gaza
contentou -se em espoliar os Estados shona e em arrecadar um tributo junto aos
prazeros e às autoridades portuguesas residentes nas vilas de Sena e Tete
76
.
O coração do império de Soshangane compreendia o Sul de Moçambique e
as regiões adjacentes no Oeste. Lá, os povos sujeitados eram tratados duramente,
obrigados a pagar impostos elevados e a fornecer jovens recrutas aos regimentos
que Soshangane recrutava por faixa etária. Diferentemente da estratégia dos
nguni de Zwangendaba, nenhum esforço foi feito para integrar os recrutas tonga
e chopi à sociedade gaza. Em vez de atenuar as diferenças culturais e étnicas,
como era feito em outras sociedades nguni, os regimentos recrutados por faixa
etária, nos quais reinava uma segregação étnica (eles eram comandados por ofi-
ciais nguni), simbolizavam a inferioridade da população local. Conflitos entre
a maioria oprimida e a elite nguni estouravam periodicamente. Várias chefias
tonga, por exemplo, tentaram encontrar sua liberdade emigrando para fora da
esfera dominada pelos gaza; chefes chopi e tonga fizeram, separadamente, alian-
ças com os portugueses, de cujo poder eles esperavam uma ajuda determinante.
76 G. Liesegang, 1967, p. 47 -50; J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 59 -60; M. D. D. Newitt, 1973, p. 223 -224;
A. F. Isaacman, 1972a, p. 122 -123.
237
Os países da bacia do Zambeze
 . Os shangana de Soshangane chegam a Shapanga para recolher o imposto anual devido pelos
portugueses. [Fonte: J. D. Omer -Cooper, e zulu aftermath, 1966, Longman, London. (Publicado inicial-
mente em D. e C. Livingstone, Narrative of an expedition to the Zambezi, 1865, John Murray Publishers,
London.) Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Uni-
versidade de Cambridge.]
Entre os nguni, era comum acreditar que seus súditos desforrariam enfeitiçando
Soshangane ou procurando causar a sua morte
77
.
No momento em que os gaza impuseram sua hegemonia, Zwangendaba e
seus partidários iniciaram um movimento migratório que durou vinte anos, em
busca de uma pátria de seu interesse. Ao longo desse período, disputaram com
os gaza a dominação da região da baía de Delagoa, desferiram o golpe final no
dividido Império Changamire, estabeleceram -se temporariamente entre os
nsenga e pilharam a margem ocidental do Lago Malaui, antes de se instalar
definitivamente em Mapupo. Em cada etapa de sua migração, assimilavam
novos adeptos. O problema da mão de obra era sentido particularmente porque
o grupo inicial, que compreendia trezentas pessoas, era uma unidade política e
militar pouco viável; e um grande número de mulheres e crianças foi morto na
ocasião do conflito com Soshangane. Em primeiro lugar, tal como os gaza, eles
procuraram aumentar o número de seus partidários, assimilando indivíduos e
grupos dispersos de origem nguni, assegurando assim que a cultura e a língua
77 J. D. Omer -Cooper, 1966.
238
África do século XIX à década de 1880
dominantes permanecessem. Entretanto, como se distanciavam sempre mais dos
territórios nguni, Zwangendaba percebeu que para assegurar a sobrevivência de
seu grupo relativamente restrito, era -lhe necessário assimilar estrangeiros.
Foi assim que, contrariamente aos zulu e aos gaza nguni, Zwangendaba e
seus conselheiros incorporaram em suas fileiras uma multidão de povos díspares.
Os isolados eram incorporados a famílias nguni, com as quais estabeleciam rela-
ções de quase parentesco. Tais relações tendiam a fazer esquecer seu estatuto de
cativos. Em uma certa idade, os jovens adotados eram alistados em regimentos
nguni organizados por faixas etárias, que constituíam importantes instituições
de socialização. Os recrutas nascidos de pais estrangeiros que se destacavam
no combate podiam adquirir uma parte importante do espólio, além de um
posto e estatuto elevados. Portanto, a rápida expansão dos nguni sob Zwan-
gendaba ofereceu inúmeras possibilidades e facilitou a ascensão social de um
grande número de estrangeiros que, simultaneamente, adotaram a cultura nguni
e mudaram suas alianças
78
. O fato de a grande maioria dos nguni por volta
de 90% que se estabeleceu em Mapupo nos anos 1840 ter sido, no início, de
ascendência estrangeira prova o sucesso da política de assimilação praticada por
Zwangendaba
79
.
Paralelamente a tal assimilação, foi criada uma estrutura política altamente
centralizada, capaz de administrar a comunidade em expansão. Mudou a con-
cepção da realeza entre os nguni, passando da concepção de uma realeza fundada
na ancianidade e de autoridade limitada, em um conjunto bastante frouxo de
aldeias aliadas, a uma realeza em que o chefe era a personificação do Estado e
a autoridade suprema. Os regimentos organizados por faixas etárias tornaram-
-se, simultaneamente, o exército do rei; os chefes militares tornaram -se meros
executores nomeados por Zwangendaba e responsáveis perante ele. Dado que os
regimentos estavam organizados por faixas etárias e não em uma base territorial,
os chefes provinciais não dispunham da capacidade militar suficiente para fazer
secessão. Quando Zwangendaba morreu, o Estado nguni havia se tornado uma
potência importante da África Central
80
.
A morte de Zwangendaba marcou o fim da fase de expansão e do desenvol-
vimento nguni. A querela de sucessão que se seguiu foi particularmente acirrada
e tendeu ao esfacelamento do reino em alguns fragmentos de grandes dimensões
e em muitos outros menores. As veleidades de expansão de cada um deles foram
78 T. Spear, 1972, p. 9 -13; J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 64 -72.
79 T. Spear, 1972, p. 11.
80 Ibid., p. 9 -13; J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 64 -72.
239
Os países da bacia do Zambeze
seriamente freadas, por um lado, pelos poderosos Estados autóctones, como
aqueles dos bemba, dos lunda e dos fipa, em direção ao Norte e, por outro lado,
pela crescente presença de destacamentos bem armados de árabes -suaílis, yao
e chikunda.
Todavia, elegendo por fim as comunidades mais fracas do Sul como alvo, dois
dos reinos sucessores de Zwangendaba foram capazes de ocupar importantes
territórios em 1870. Os mpenzeni nguni aproveitaram da fraqueza das chefias
nsenga, que ainda não tinham se recuperado completamente dos ataques de
Zwangendaba, para impor sua autoridade no Sudoeste do planalto do Malaui
zona isenta da mosca tsé -tsé –, onde se encontra atualmente Fort Jameson
(Chipata). Os mbwela estabeleceram -se no território que antes pertencera aos
tumbuka, tonga e henga. Nos dois casos, outros regimentos que, em seguida,
se juntaram aos Estados recém -criados, engrossaram suas fileiras. Enquanto os
mpezeni faziam novos recrutamentos, um antigo escravo de ascendência nsenga,
Ciwere Ndhlou, que havia se tornado um oficial muito conhecido, declarou sua
independência e organizou um reino independente, no atual distrito de Dowa.
Ciwere Ndhlou deu seu nome a esse reino. Além desses três ramos, os gwangara,
outro ramo oriundo do então Estado de Zwangendaba, invadiram a Tanzânia,
onde derrotaram os maseko nguni. Estes fugiram para o Sul, atravessaram o
Rovuma e, no final dos anos 1860, se estabeleceram nos planaltos da cadeia de
montanhas Kirk
81
.
Em linhas gerais, a migração dos kololo foi semelhante à dos nguni de
Zwangendaba. Fugindo para o Norte a partir de Dithakong, os kololo se choca-
ram com um certo número de inimigos, dentre os quais os tswana e os ndebele,
que muitas vezes os derrotaram. A contínua ameaça dos ndebele convenceu
Sebetwane a atravessar o Zambeze e a se dirigir para o Oeste; ele alcançou a
fronteira do reino lozi em torno de 1835.
Não obstante seu poder aparente, os lozi eram particularmente vulneráveis.
A morte de Mulambwa, que reinou durante quase cinquenta anos, não só criou
um vazio político, mas também provocou uma luta intensa no coração do reino.
Ademais, a hostilidade para com os lozi era particularmente viva nas províncias
distantes, entre os povos dominados que estavam pouco propensos a defender
o regime estrangeiro e autoritário dos lozi de uma invasão exterior. Por isso,
os kololo apenas encontraram a oposição de um ramo da família real e, em
menos de quatro anos, eles conseguiram se apoderar do vasto reino lozi
82
.
81 T. Spear, 1972, p. 15 -19; J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 72 -85; J. K. Rennie, 1966, p. 303 -306.
82 J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 120 -122; M. Mainga, 1973, p. 65 -68.
240
África do século XIX à década de 1880
Sendo os lozi mais numerosos do que os kololo e seus súditos, uma vez no
poder, os kololo confrontaram -se com o delicado problema da assimilação dos
primeiros à sociedade sotho e, assim, da manutenção de sua posição dominante.
O fato de cada povo ignorar a língua do outro e a extrema diversidade de seus
sistemas culturais complica esse processo de integração social e política. A fim de
realizar a união dos diferentes elementos de seu reino, Sebetwane aliou -se, pelo
casamento, a grandes famílias locais; por todo o Estado, encorajou a população
a adotar o kololo como língua nacional; recusou aos seus partidários kololo o
estatuto de minoria dominante; poupou a vida dos membros da família real lozi
e declarou publicamente que “todos eram filhos do rei”. Tais gestos simbólicos
acompanharam -se de políticas específicas que associaram os lozi ao governo de
Sebetwane e garantiram a um certo número de dirigentes locais a manutenção
de seus postos na nova administração territorial
83
.
Logo no início, a política de assimilação de Sebetwane conheceu um sucesso
considerável. O kololo tornou -se rapidamente a língua franca na maior parte do
reino; e os lozi, que viviam nas planícies de inundação ao longo do Zambeze,
começaram a adotar a nomenclatura kololo. Provaram sua fidelidade ao defender
a comunidade contra os diversos ataques dos naba nguni e dos ndebele. A vitória
sobre os ndebele garantiu a tranquilidade na fronteira sudoeste e permitiu a
Sebetwane consagrar todos os seus esforços à consolidação do reino e à aquisi-
ção de armas junto aos comerciantes angolanos, a fim de reforçar a capacidade
militar do Estado
84
.
Contudo, vários fatores acabaram pondo em xeque essa estratégia de assimi-
lação. Em 1863, a morte de Sebetwane provocou uma luta acirrada pela sucessão
ao trono, dividindo a comunidade kololo. Tal conflito mostrou a fragilidade da
comunidade, que se encontrava menos numerosa em razão dos danos causados
pela malária. Em uma posição relativamente fraca, o novo rei Sekelutu adotou,
entretanto, o oposto da política conciliadora de seu pai e impôs um regime
autoritário antilozi. Ele expulsou os lozi da administração, colocou um fim nas
alianças locais e deixou seus subordinados se transformarem em uma minoria
dominante. Como era de se prever, os lozi se revoltaram em 1864, sob a direção
de membros da família real no exílio. Em algumas semanas, eles libertaram sua
pátria e mataram praticamente todos os homens kololo
85
.
83 G. Caplan, 1970, p. 10 -11; J. D. Omer -Cooper, 1966, p. 123 -124.
84 G. Caplan, 1970, p. 12 -13.
85 Ibid.; M. Mainga, 1973, p. 105 -128.
241
Os países da bacia do Zambeze
 . Tocador de tambor e dançarinos na corte de Sipopa, rei dos lozi, 1875. [Fonte: E. C. Tabler,
Trade and travel in early Borotseland, 1963. Chatto and Windus, London. (Publicado inicialmente em E.
Holub, Seven years in South Africa, vol. 2, 1881, Samson, Low, Marston, Searle and Ribbington, Londres.)
Ilustrações reproduzidas com a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade
de Cambridge.]
F . Sipopa, um dos chefes da rebelião lozi contra os kololo em 1864, e rei dos lozi até 1876. [Fonte:
E. C. Tabler, Trade and travel in early Borotseland, 1963. Chatto and Windus, London. (Publicado inicialmente
em E. Holub, Seven years in South Africa, vol. 2, 1881.) Ilustrações reproduzidas com a autorização do Conselho
de Administração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
242
África do século XIX à década de 1880
Esse levantamento popular não eliminou totalmente a influência kololo do
vale do Zambeze. Alguns anos mais cedo, um pequeno grupo de kololo acom-
panhara David Livingstone em sua descida pelo Zambeze, em direção ao Leste,
e estabelecera -se entre os manganja. Logo, sua inflexível oposição ao tráfico de
escravos, assim como sua reputação de soldados, tornou -nos populares. Com a
ajuda das armas europeias fornecidas por Livingstone, os kololo rechaçaram os
ataques que os yao e os árabes da costa efetuavam a fim de capturarem escravos,
para o alívio de seus hospedeiros manganja
86
.
Sob a direção de Maluka e Ramukkan, os kololo não tardaram a desempe-
nhar um papel mais ativo na política da região do Shire. Com a ajuda de seus
aliados manganja, derrotaram muitos dos grandes chefes, bem como o lundu
regente, Tsagonja, então senhor de todo o território manganja. Este processo
de conquista e de incorporação durou vários anos, porém, em 1870, eles imple-
mentaram um Estado kololo dividido em seis regiões, cada uma dirigida por
um chefe que gozava de uma grande autonomia. Nos dois decênios seguintes,
os kololo continuaram sendo a força dominante no vale do Shire, cuja posição
apresentava um interesse estratégico
87
.
Tal transtorno no mapa político da África Central constitui o resultado mais
importante da diáspora nguni -sotho. Os imigrantes formaram vários reinos que
dominaram uma importante parte da região. Ao longo desse processo, não
incorporaram um grande número de comunidades locais, como também causa-
ram prejuízos irreparáveis a vários grandes Estados, notadamente aos Estados
rozwi, undi e lundu. A organização dos Estados nguni e, em menor medida,
dos Estados kololo representava uma mudança notável em relação às formas
políticas precedentes. As novas comunidades eram menores, de densidade mais
elevada, e notavelmente mais centralizadas. Aquilo que os distinguia muito par-
ticularmente era a instituição do regimento por faixas etárias, que sustentava o
poder real e facilitava a expansão nguni e a incorporação de povos díspares.
Apesar de suas importantes aquisições territoriais, os invasores sul -africanos
sofreram um certo número de derrotas militares. Os mpezeni nguni, por exem-
plo, passaram quase dez anos tentando derrotar os bemba
88
. Seu fracasso refletia
a incapacidade mais geral dos descendentes nguni de penetrar os territórios
dos poderosos Estados do Norte do lago Malaui e do Rovuma. À exceção dos
gwangara, os diferentes ramos do povo nguni foram obrigados a se retirar em
86 W. H. J. Rangley, 1959; A. F. Isaacman, 1976, p. 23.
87 A. F. Isaacman, 1976, p. 23; E. Mandala, 1977.
88 H. W. Langworthy, 1972, p. 92.
243
Os países da bacia do Zambeze
direção ao Sul, onde encontraram uma oposição espantosamente tenaz. A chefia
chewa de Mwaze Kazungo, assim como os senga, rechaçou as invasões nguni,
ao longo dos anos 1860 e 1870. No Sul do Zambeze, periódicas incursões gaza
chocaram -se com uma contínua resistência do povo báruè, os quais conseguiram
rechaçá -los e conservar sua independência
89
.
Mesmo no interior das regiões conquistadas, a hegemonia dos invasores
sempre foi contestada. Ao longo dos anos 1870, os tonga das margens do lago,
os tumbuka e os henga se revoltaram contra os mbwela nguni, que eram vis-
tos como estrangeiros intrusos. O Estado gaza sofreu também levantamentos
populares dos súditos tonga e chopi, dentre os quais alguns chegaram a se aliar
aos portugueses para tentar adquirir sua independência. Foram os lozi que
organizaram a mais sucedida insurreição: expulsaram os kololo e libertaram
sua pátria
90
.
As profundas transformações sociais e culturais ocorridas em toda a região
estavam inextricavelmente ligadas ao processo de formação do Estado nguni.
Apesar da incorporação de milhares de cativos e dos povos dominados, as gran-
des linhas e o ritmo de aculturação de milhares de cativos variaram consideravel-
mente de um grupo vassalo a outro. De forma geral, o processo de assimilação
foi mais rápido durante a fase expansiva da migração do que durante a última
fase de sedentarização, quando os imigrantes já perderam seu poder e prestígio,
sendo o espólio mais limitado e a população autóctone mais numerosa. Assim,
os nguni de Zwangendaba viram suas fileiras aumentarem em progressão geo-
métrica, durante todo o tempo que durou sua migração para o Norte, através
das fragmentadas comunidades encontradas por eles. Porém, o seu sucesso foi
muito menos evidente quando eles se dividiram em diferentes clãs autônomos,
uma vez estabelecidos em suas novas pátrias. Um fenômeno análogo se produziu
entre os kololo.
O modo de aculturação dependia também das diferentes maneiras com que
as culturas tinham entrado em contato umas com as outras. Em um extremo,
havia o caso dos nguni de Zwangendaba: a população dominada adotou a cul-
tura e a identidade dos invasores estrangeiros. No outro, o caso dos imigrantes
kololo: estabeleceram a supremacia sobre os manganja, mas foram totalmente
absorvidos pela sociedade vassala
91
. Entre esses dois polos, encontramos os
exemplos mais comuns de influência recíproca, conduzindo, em certos casos,
89 A. F. Isaacman, 1976, p. 8 -9, p. 49.
90 T. Spear, 1972, p. 28; J. K. Rennie, 1966, p. 310 -311; G. Caplan, 1970, p. 10 -12; D. L. Wheeler, 1968, p. 587.
91 W. H. J. Rangley, 1959, p. 59 -98; A. F. Isaacman, 1976.
244
África do século XIX à década de 1880
à formação de culturas sincréticas. Mesmo vencidos, os kololo exerceram uma
influência sobre os lozi, os quais adotaram a língua e as principais instituições
governamentais dos primeiros
92
. Por outro lado, no interior do reino mpenzeni,
todos os elementos políticos da nova sociedade eram de origem sul -africana,
ao passo que os elementos culturais não políticos, como a herança da terra, a
arte da guerra, a excisão feminina e a língua, eram fortemente influenciados
pela tradição nacional nsenga
93
. Tal dicotomia não tem nada de surpreendente,
pois o reino mpenzeni obedecia a instituições políticas e militares destinadas a
assegurar a preeminência dos nguni. Fatores de ordem espacial e demográfico
parecem ter determinado, no início, a extensão dos empréstimos culturais no
interior do Estado mbwela nguni. No coração do reino, onde os nguni eram
mais numerosos, os tonga e os tumbuka adotaram a maior parte dos aspectos
da cultura estrangeira. Porém, quanto mais se avançava para as províncias dis-
tantes, mais estes empréstimos diminuíam. Este esquema geral se complicou
um pouco devido à adoção, pelos nguni, do tumbuka como língua nacional e ao
renascimento cultural tumbuka que se seguiu, o que faz pensar que vários povos
dominados apenas abraçaram superficialmente a cultura nguni
94
.
Ainda que as obras consagradas a este assunto silenciem, manifestamente, a
influência que o Mfecane exerceu sobre a estratificação da sociedade, indicações
fragmentárias levam a pensar que novas classes se desenvolveram no seio do
reino. Durante a fase de expansão, uma elite militar se constituiu, composta de
comandantes de regimento e de seus principais oficiais. Sua potência repousava
sobretudo nos tributos e no espólio que eles adquiriam, notadamente os reba-
nhos e os cativos, dos quais uma parte era distribuída aos seus partidários. De um
ponto de vista econômico, sua posição dominante assemelhava -se estreitamente
à da aristocracia que, ao se apropriar dos excedentes, governava os Estados vizi-
nhos conquistados e detinha o comércio de marfim e de escravos.
Quando os nguni se estabeleceram no Norte do Zambeze, as possibilidades
de espólio tornaram -se mais raras. Enquanto sua elite militar continuava arre-
cadando um tributo das populações submetidas, eles começaram a explorar os
seus escravos a fim de assegurar uma fonte contínua de riqueza. Parece que estas
sociedades, em vez de incorporar os cativos e os estrangeiros e de lhes oferecer
possibilidades de promoção social, os reduziram a um estado permanente de
servidão. As elites mbwela, maseko e mpezeni todas conservaram quantidades
92 G. Caplan, 1976, p. 11.
93 J. A. Barnes, 1951, p. 2 -18; T. Spear, 1972, p. 23 -26.
94 T. Spear, 1972, p. 29 -32; H. L. Vail, 1972, p. 161 -162.
245
Os países da bacia do Zambeze
consideráveis de escravos (abafo) para trabalharem em seus campos. Outros
escravos eram empregados como cadores e ferreiros para seus senhores
95
.
O fato de haver coincidência entre etnia e classe social permite pensar que a
resistência oposta aos nguni não deve ser analisada simplesmente em termos de
conflito entre etnias.
A princípio, os imigrantes nguni e sotho apenas desempenharam um papel
indireto no comércio de escravos. Se suas campanhas militares favoreceram, sem
dúvida alguma, a pilhagem dos árabes e dos suaílis, por outro lado, nada indica
que eles tenham concluído uma aliança comercial com os negreiros. De todos
os grandes chefes nguni e kololo, somente Mpenzeni, Soshangane, Sebetwane e
o chefe maseko Chikuse exportaram escravos; nesses quatro casos, as transações
continuaram limitadas e esporádicas
96
. De uma maneira geral, escolheram utilizar
os cativos entre eles e, por isso mesmo, reforçar sua posição política e econômica
em vez de vender escravos a qualquer comunidade comerciante. Todavia, suas
atividades de predadores provocaram consideráveis perturbações em numerosas
sociedades da África Central. Para as comunidades do Norte do Zambeze que
mais sofreram com as incursões dos negreiros, os ataques nguni agravaram os
problemas de estagnação rural e o processo de subdesenvolvimento.
A África Central às vésperas da “corrida
Durante os três primeiros quartos do século XIX, a África Central sofreu
grandes transformações. As manifestações dessa profunda mutação foram o
surgimento de novos grupos étnicos, a intensificação das trocas culturais e o
aumento da importância que as novas oposições de classes tomaram. A integra-
ção da maior parte da região na economia mundial impediu a expansão rural e
aumentou a dependência econômica. Ao mesmo tempo, a ambição territorial
dos negreiros e de seus homólogos nguni e kololo provocou uma reorganização
profunda do poder político na região. Resumindo, na véspera da “corrida”, a
situação na África Central estava extremamente instável. Ademais, o processo
de fragmentação política crescente, os particularismos étnicos e regionais, bem
como as querelas internas que refletiam, em parte, antagonismos de classes mais
profundos, comprometiam seriamente a capacidade da maioria das sociedades
africanas de resistir ao imperialismo europeu.
95 K. M. Phiri, 1975, p. 154 -156.
96 E. Flint, 1970, p. 73 -79; H. W. Langworthy, s. d., p. 34 -37.
246
África do século XIX à década de 1880
Em 1875, havia pouquíssimos poderes regionais autóctones. Em certa medida,
este vazio político era o reflexo da recusa ou da incapacidade de inúmeras socie-
dades da África Central para organizar ou para manter um sistema político
centralizado. Um grande número de Estados lunda e shona sofreu também um
processo de fracionamento político. No Norte do Zambeze, o comércio dos
escravos reforçou as rivalidades internas nos reinos lunda de Kazembe, Undi,
Kalonga e Lundu, e tornou -os vulneráveis às atividades sediciosas e aos ataques
dos traficantes de escravos e de seus homólogos nguni. No Sul, além dos ata-
ques devastadores dos nguni de Zwangendaba e dos gaza, clivagens no seio das
elites shona enfraqueceram muito sensivelmente as potências regionais. Atribuí-
-se geralmente às incursões de Zwangendaba a destruição do reino Rozwi de
Changamire, profundamente dividido, ao passo que, por volta de 1875, a divisão
do Estado de Báruè em duas facções rivais, conjugada aos ataques devastadores
dos gaza, permitiu a Gouveia, um aventureiro de Goa, usurpar temporariamente
o trono de Báruè
97
.
O sucesso de Gouveia se inscreveu em um processo mais geral, permitindo
aos invasores yao, árabes -suaílis, chikunda e nguni tirarem proveito da ausência
de potência regional para conquistar Estados. Esses novos Estados militares
eram indiscutivelmente mais fortes que as comunidades vencidas por eles, mas
os povos dominados os viam como intrusos estrangeiros e detestavam seu regime
autoritário. Isso obrigou os dirigentes a reforçar suas práticas coercitivas, levando
assim a uma crescente hostilidade e à multiplicação das insurreições. As revoltas
dos tonga das margens do lago, dos tumbuka e dos henga contra os mbwela
nguni, e as dos tonga e dos chpi contra os gaza também foram provas da hosti-
lidade crescente dos oprimidos. Um mesmo espírito de desconfiança impeliu os
tawara e os tonga a desafiarem regularmente os afro -portugueses e sues aliados
chikunda, que haviam obtido vastas possessões territoriais na margem sul do
Zambeze. A elite suaíli que governava os sultanatos costeiros de Angoche e
de Quitanghona encontrou a mesma oposição. Tal animosidade não permitiu
a formação de uma frente de resistência unida. Pelo contrário, vários povos
dominados recusaram -se a ajudar a elite estrangeira; de fato, alguns chegaram a
cooperar com os europeus, os quais eram vistos como “libertadores”
98
.
O estado de dependência em relação às armas e aos mercados europeus no
qual se encontravam os Estados negreiros comprometeu ainda mais sua auto-
nomia. A princípio, eles foram especialmente vulneráveis às pressões exteriores,
97 A. F. Isaacman, 1976, p. 48 -52.
98 A. Dachs, 1972, p. 288 -289; J. T. Botelho, 1921, p. 469 -504.
247
Os países da bacia do Zambeze
como o faz pensar a diligência dos afro -portugueses e dos chikunda para servir
como agentes do imperialismo de Lisboa. Finalmente, a evolução da economia
capitalista do mundo provocou a oposição à participação desses Estados no
tráfico negreiro e, juntando -se às ambições imperiais crescentes dos europeus,
criou as condições de um conflito acirrado.
Embora a maior parte das sociedades da África Central tivesse se tornado
mais vulnerável à medida que o século avançava, houve alguns casos em que a
ameaça exterior e a anexação estrangeira temporária reforçaram as capacidades
políticas e militares. Após 1850, em parte como consequência das incursões
nguni, o reino bemba levou a cabo um duplo processo de centralização política
e de expansão territorial. Na véspera da corrida”, o reino havia atingido seu apo-
geu e, se não fosse a morte inoportuna de Mwanba III, ele poderia ter se tornado
um adversário tão temível pelos invasores europeus quanto o fora pelos nguni
99
.
Outrossim, o reino lozi liberto foi, sob o reinado de Lewanika, muito mais forte
e bem mais organizado do que havia sido durante o período pré -kololo
100
. O
ressurgimento do reino de Mwene Mutapa durante a segunda metade do século
XIX também mostra que uma situação instável podia permitir a um Estado, cujo
poder se atrofiara, recuperar sua preeminência
101
. Contudo, tais exemplos são a
exceção e não a regra. No total, as mudanças ocorridas ao longo do século XIX
favoreceriam as futuras atividades imperialistas dos europeus.
99 A. D. Roberts, 1973, p. 217.
100 M. M. Bull, 1972.
101 T. O. Ranger, 1963, p. 1 -3.
C A P Í T U L O 9
249
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
As comunidades litorâneas por volta de 1800
Durante o período estudado, mudanças e acontecimentos muito importantes,
provocados em grande parte pelo advento da hegemonia dos árabes omanianos,
influíram no contexto político e socioeconômico das populações litorâneas e do
interior do leste africano. Para melhor se apreciar a sua natureza e a extensão,
é preciso ver qual era a estrutura política e econômica destas populações em
torno de 1800.
Um dos fatores mais notáveis no plano político é a grande autonomia que
gozavam as comunidades litorâneas sob a autoridade de seus dirigentes locais.
Após terem contribuído para a expulsão dos portugueses ao Sul do Rovuma em
1728, os omanianos não instalaram imediatamente uma verdadeira autoridade
sobre o litoral. No início do século XIX, a presença omaniana era visível apenas
em três grandes centros: Mombaça, Zanzibar e Kilwa. Mesmo em Mombaça,
a família omaniana dos Mazrui tornara -se suficientemente aunoma para
desafiar abertamente a dinastia dos busa‘idi que reinava em Mascate. Ela con-
seguiu manter esta autonomia com a ajuda dos shaykh suaílis das Ithnaashara
Taifa (Doze Nações) divididas em duas federações: as Thelaatha Taifa (Três
Nações) e as Tissa Taifa (Nove Nações). Os chefes destes grupos suaílis par-
ticiparam ativamente da administração de Mombaça. Em 1857, ou seja, vinte
O litoral e o interior da África Oriental
de 1800 a 1845
Ahmed Idha Salim
250
África do século XIX à década de 1880
anos após a queda dos Mazrui, Richard Francis Burton viria a evocar aquela
participação
1
.
Em 1799, um governador omaniano (wālī), parente do dirigente (imān) de
Mascate, foi nomeado em Zanzibar para suceder um eunuco etíope e escravo
alforriado, de nome Yākūt, o qual possuía vastos territórios em Omã. No início, o
chefe local, o mwenyi mkuu, com as insígnias do seu poder (dois tambores e duas
siwapresas de elefante), colaborou com o governador omaniano na adminis-
tração do seu povo
2
. Uma de suas funções mais importantes consistia na coleta
dos impostos gravados pelos omanianos sobre os autóctones hadimu e tumbatu
que viviam da agricultura, da pesca e de outras atividades marinhas. À medida
que Zanzibar se tornava, segundo o desejo dos omanianos, o centro de decisões
e de desenvolvimento econômico do litoral leste africano, o mwenyi mkuu viu -se
privado cada vez mais de seu poder político, enquanto o seu povo perdia cada vez
mais territórios para os colonos omanianos que se instalavam progressivamente
nas terras férteis situadas ao Norte e a Leste da cidade de Zanzibar.
Quando, em torno de 1780, o irmão do imām de Mascate tentou se utilizar
de Kilwa Kisiwani, então dirigida por um sultão autóctone shīrāzī, como ponto
de partida para uma rebelião contra o seu irmão, este decidiu, em 1785, organizar
uma expedição na ilha onde manteve subsequentemente uma pequena guarni-
ção para evitar qualquer nova subversão. Esta presença omaniana na ilha visava
também tirar proveito econômico do comércio de escravos que os franceses
haviam estabelecido. O sultão local continuou durante algum tempo ainda a
manter o seu título e a beneficiar -se de um quinto dos direitos alfandegários.
Ele era auxiliado nesta função pelos notáveis da própria ilha e por aqueles das
vilas do interior, até o longínquo cabo Delgado no Sul, onde o sultão de Kilwa
gozava de uma vaga suserania
3
. O declínio econômico de Kilwa Kisiwani foi
acelerado pela criação no continente da colônia de Kilwa Kivinje, a qual come-
çou a monopolizar quase completamente o comércio de escravos e de marfim
no início do século XIX.
Por volta de 1800, o resto do litoral leste africano era governado, como muitas
ilhas vizinhas, por grandes famílias suaílis. No arquipélago de Mafia e em suas
três principais vilas – Kisimani, Chole e Kua –, inúmeras destas famílias, dentre
elas a de Shatri, exerciam um poder real. A simpatia da população pela resis-
1 R. F. Burton, 1872, p. 40.
2 J. M. Gray, 1962, p. 160, lembra que observadores americanos mencionam a presença do “rei” e dos
príncipes” de Zanzibar ao lado do governador omaniano.
3 E. A. Alpers, 1975, p. 190 -191.
251
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
 . O litoral e o interior: povos e principais rotas comerciais, 1800 -1850 (de acordo com A. I.
Salim).
252
África do século XIX à década de 1880
tência de Kilwa Kisiwani contra o domínio dos omanianos, durante o último
quarto do século XVIII, não levou, como foi o caso em Kilwa, à instalação de
uma guarnição.
Da mesma forma, em 1800, o litoral entre Kilwa e Mombaça não conhecia
ainda a presença dos omanianos. Uma administração tradicional, exercida pelos
chefes locais jumbe ou diwani –, predominava ainda nas aglomerações como
Sadani, Pangani, Mtangata, Tanga, Vanga e Vumba Kuu. O jumbe ou o diwani,
portando as insígnias de seu poder as siwa (presas) os tambores e o guarda -sol –,
exercia as funções ligadas à resolução de litígio, julgamento, imposição de multas,
com a ajuda de seus subordinados, o shaha, o mwenyi mkuu e o amiri, os quais
pertenciam aos clãs locais importantes. Os procedimentos administrativos e judi-
ciários repousavam sobre uma mistura de direito costumeiro e direito islâmico.
Na área litorânea compreendida entre Kilwa e Mombaça, a aglomeração
mais populosa era Vumba Kuu, entre Vanga e Gasi, no litoral sul do atual
Quênia. É que se cria o reino de Vumba Kuu, onde a população, os vumba,
era composta por uma mistura de elementos shīrāzī, africanos e árabes xarifitas.
Seus dirigentes tinham adotado o título de diwani (do persa divan,conselho”).
Após 1700 reinava a dinastia dos Ba -‘Alawi, fundada por Sayyid Abū Bakr
ibn Shaykh al -Masila Ba -‘Alawī, originário do Hadramout, que se manteve
graças aos casamentos com famílias autóctones. As cerimônias de investidura
dos vumba englobavam um ritual islâmico e um ritual africano não islâmico.
As insígnias de poder do diwani eram as siwa, o guarda -sol, os tamancos de
madeira e o turbante. Lá também, as principais funções do diwani eram de
ordem judiciária – resolução de litígios de acordo com um sistema sincrético de
direito islâmico e direito costumeiro. Ele era também auxiliado, na direção dos
assuntos do Estado, por notáveis shaha, waziri, mwenyi mkuu e amiri esco-
lhidos dentre os clãs importantes. Ao passo que o poder do diwani se estendia
por um território muito vasto, o do jumbe não ia além da vila ou de uma parte
desta. A origem xarifita do diwani deixou traços na religião, da mesma forma
que a dinastia Ba -‘Alawi teve um papel proeminente na propagação do islã entre
os digo e os segeju; contudo, nos dois casos, os dirigentes praticavam a medicina
religiosa baseada no uso de fetiches, amuletos etc., na execução de suas funções
4
.
Ao Norte de Mombaça, Malindi tinha consideravelmente decaído depois da
ocupação portuguesa, particularmente após a partida da família dirigente para
Mombaça por volta da década de 1590. Sua situação não iria melhorar durante
4 A. I. Salim, 1973, p. 29 -30; ver também, o estudo detalhado de W. F. McKay, 1975.
253
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
o período estudado. Krapf, o qual a visitara em 1848, a descreveu como vivendo
no medo de ser invadida pelos oromos (Galla)
5
. Foi Sayyid Sa‘īd quem reerguera
Malindi ao favorecer a implantação de uma colônia omaniana protegida por
uma guarnição. Esta colônia faria de Malindi, durante a década de 1870, um
dos exemplos mais impressionantes de desenvolvimento agrícola.
Ao Norte de Malindi, as únicas aglomerões de alguma imporncia
encontravam -se no arquipélago de Lamu, sendo Pate a mais florescente no
início do século. Era governada pelos Nabhāni, os quais também possuíam,
como principal atributo de seus poderes, as elegantes siwa de marfim. Em 1800,
todavia, a cidade perdera a prosperidade e a pujança que conhecera durante os
séculos XVII e XVIII
6
. Os conflitos internos de sucessão, as rivalidades com
a ilha vizinha de Lamu e o apoio dos Mazrui de Mombaça às pretensões dela
iriam acentuar ainda mais seu declínio e abrir o caminho para sua dominação
pelos busa‘idi de Zanzibar.
Em Lamu, as rivalidades entre facções e as brigas intestinas encorajaram a
ingerência externa nos assuntos da cidade. A proximidade de Lamu e de Pate,
além das relações entre as famílias das duas cidades, terminou na intrusão da
primeira nos assuntos da segunda. No início do século, Nabhāni Pate conside-
rava ainda, apesar do seu declínio econômico, que Lamu lhe era subordinada,
o que as grandes família de Lamu não viam deste modo. É esta relação difícil
que os levou a tomar partidos opostos no conflito de maior envergadura opondo
os Mazrui de Mombaça e os busa‘idi. Como se verá mais adiante, este conflito
terminará pelo domínio de Zanzibar sobre as duas cidades. Quanto à outra
aglomeração da ilha de Pate, Siyu, foi graças ao espírito de independência do
seu chefe, Bwana Mataka, que ela conseguiu manter a sua independência além
do período estudado.
As terras situadas bem defronte ao arquipélago de Lamu, ao Sul das regiões
habitadas pelos Somalis, foram colonizadas pelo povo bajuni que não reconhecia
outra autoridade que aquela de seus próprios chefes e nunca se submeteu verda-
deiramente ao domínio de Zanzibar, mesmo após o período considerado. Suas
atividades econômicas eram essencialmente marítimas. A pesca, a fabricação
de postes em madeira de mangue, a colheita e venda de moluscos, carapaças
de tartarugas e âmbar cinza completavam o comércio de gado que mantinha
com seus vizinhos somalis e oromos
7
. Quando, consequentemente, o tráfico de
5 J. L. Krapf, 1860, p. 152.
6 Ver W. Hichens (org.), 1939; J. de Vere Allen (org.), 1977, para maiores detalhes.
7 J. L. Krapf, 1860, p. 114.
254
África do século XIX à década de 1880
escravos se desenvolveu no litoral, os bajuni participaram dele enviando escravos
para os portos próximos do Benadir.
Durante o período estudado, o litoral do Benadir teve uma grande autonomia
e contava com centros como Mogadíscio, Merka, Brava (Barawa) e Warsheikh,
governados por shaykh somalis locais que aceitaram de bom grado que os árabes
e indianos tivessem relações comerciais com a população. Todavia, após a instau-
ração do sultanato de Omã em Zanzibar, os portos do Benadir mantiveram uma
grande autonomia política
8
. Somente em 1842 que Sayyid Sa‘īd nomeou um
representante em Mogadíscio, por solicitação dos chefes somalis que preferiam
desenvolver seus laços econômicos com ele, beneficiando -se, até certo ponto,
de sua proteção contra as incursões de saques no interior das terras somalis, do
que se submeter a Zanzibar. Era uma relação satisfatória para ambas partes. De
fato Sa‘īd exigia simplesmente que seu representante em Mogadíscio vigiasse
a movimentação comercial e controlasse a coleta dos impostos
9
. Isto quer dizer
que suas ambições eram de ordem econômica e não política.
O Sultanato de Omã
A expansão e o desenvolvimento do sultanato de Omã no litoral da África
Oriental foram o resultado das ambições essencialmente econômicas de Sayyid
Sa‘īd que, a justo título, se considerava antes de tudo um príncipe mercador.
Certos acontecimentos políticos e econômicos que tiveram lugar tanto em Omã
quanto no exterior; no litoral leste africano, também contribuíram. Com efeito,
Omã conheceu um período de grande prosperidade no final do século XVIII.
Navegando sob a bandeira neutra, os omanianos aproveitaram -se das guerras
napoleônicas para monopolizar uma boa parte do transporte marítimo no Oce-
ano Índico, o que, aliás, provocou recriminações dos comerciantes ingleses que
reclamavam por serem suplantados pela marinha mercante de Omã. Por volta
de 1800, o sultão ibn Ahmad assinou acordos comerciais que lhe permitiram
estabelecer contatos lucrativos com um número grande de regiões litorâneas
do Oceano Índico Etiópia, Shirāz, Sind e Batavia (Jacarta) –, enquanto seus
representantes, na costa leste africana, lhe enviavam somas avaliadas em 40.000
dólares Maria -Teresa por ano, em 1802
10
.
8 Ver C. Guillain, 1856, vol. 2, p. 527 -530.
9 Ibid.
10 C. S. Nicholls, 1971, p. 99. Esta obra foi particularmente útil para rastrear a ascensão da potência oma-
niana sobre o litoral leste da África.
255
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
Quando Sa‘īd ibn Sultan sucedeu seu pai como imām em 1806, ele teve a
sabedoria de continuar sua política de neutralidade em relação à Inglaterra e
à França. Em 1807, ele assinou um tratado comercial com a Ilha de França
(atual Ilha Maurício). A Grã -Bretanha, consciente da importância estratégica de
Mascate, sentiu -se obrigada a aceitar esta neutralidade e ajudou Sa‘īd a manter
a ordem em seu país, apoiando -o em sua luta contra os elementos perturbado-
res, tais como os gawassim e os wahhabitas. A estabilidade interior deu a Sa‘īd
o tempo para se voltar com mais confiança em direção ao litoral do Leste da
África.
As razões que o levaram a se interessar pelo litoral foram de ordem política
e econômica. Convencido da importância do potencial econômico do litoral,
ele quis também tirar proveito político dos conflitos entre as dinastias locais e
impedir os objetivos expansionistas dos europeus na região. Foi o medo de ver
os franceses conseguindo expandir a sua área de influência que moveu os oma-
nianos a instalarem um governador em Kilwa em 1785. Em 1801, Pate tinha
convidado os britânicos a construírem um forte para protegê -la dos franceses,
prometendo -lhes em troca a metade da produção da ilha
11
. Este acontecimento,
seguido dos relatórios indicando a passagem de navios britânicos pela ilha,
talvez tenha convencido Sa‘īd da necessidade de afirmar a sua presença e a sua
influência sobre o litoral.
As empreitadas políticas e militares realizadas subsequentemente são mais
conhecidas. Sa‘īd decidiu imiscuir -se nos conflitos políticos suaílis, em parti-
cular naqueles em que os Mazrui estivessem implicados. Com efeito, a crise de
sucessão que surgira em Pate levara à intervenção dos Mazrui. Em 1811, um
sultão que lhes era leal governava Pate, enquanto os Mazrui retinham o seu
rival refém em Mombaça e seus partidários encontravam refúgio em Lamu. As
condições estavam reunidas para um confronto entre Lamu e Pate, esta última
sendo apoiada pelos Mazrui. Foi durante os anos de 1812 -1813 que teve lugar
uma das mais célebres batalhas da história suaíli, a de Shela, durante a qual as
forças conjuntas dos soldados de Pate e dos Mazrui desembarcaram na vila de
Shela, na ilha de Lamu, com a intenção de controlar aquela ilha. Os invasores
sofreram uma derrota total e a esperança de Pate de colocar Lamu sob o seu
jugo foi definitivamente aniquilada.
O medo de represálias forçou Lamu a solicitar ajuda e proteção à Sa‘īd. Este
as concedeu, ao colocar na ilha um governador busa‘idi e ao estacionar uma
11 Ibidem, p. 120 -121. O Conselho britânico de Bombaim enviara o comandante T. Smee para se informar
sobre as possibilidades econômicas da África Oriental.
256
África do século XIX à década de 1880
 . O litoral setentrional e o interior: as rotas comerciais, 1850 (de acordo com A. I. Salim).
257
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
 . Extração em prensas do óleo de gergelim em Mogadíscio, 1847. [Fonte: E. Cerulli, Somália,
scritti vari editi ed inediti, Istituto Poligraco e Zecca dello Stato, Roma, 1975, vol. I, pl. XI. © Istituto
Poligraco e Zecca dello Stato. Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho de Administração da
Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
guarnição não somente para enfrentar as ameaças de Pate e dos Mazrui, mas
também para impedir que estes últimos aumentassem sua influência e tentas-
sem, deste modo, diminuir a influência busa‘idi nascente; os Mazrui reinavam
então em Mombaça e controlavam Pemba e Pate, enquanto os busa‘idi somente
tinham Zanzibar e Kilwa.
Mantendo -se, até então, na defensiva, Sa‘īd decidiu passar para a ofensiva a
fim de reduzir a influência e o poder dos Mazrui e, em consequência, afirmar os
seus. Ele criou em Pate uma facção cujo chefe se tornou sultão com a morte do
seu predecessor pró -Mazrui. Quando este sultão pró -busa’idi morreu, por sua
vez, em 1822, Sa‘īd e o governador que ele havia nomeado em Lamu combate-
ram os Mazrui e o seu novo candidato, Fumoluti. Eles conseguiram estabelecer
um sultão favorável aos busa‘idi deixando em Pate uma guarnição para proteger
os interesses deles na ilha. Consequentemente, em 1822, Sa‘īd tinha conseguido
reverter a situação política em seu favor nos dois pontos que eram, à época, os
mais importantes do arquipélago de Lamu: Lamu e Pate. No mesmo ano, ele
258
África do século XIX à década de 1880
desafiou os Mazrui em Pemba. Com a solicitação de uma facção de Pemba hostil
aos Mazrui que tinham enviado dois representantes a Mascate para solicitar o
seu apoio, os busa‘idi se aproveitaram da ausência do governador Mazrui em
Mombaça para se apoderar de Pemba em 1823. Os Mazrui não mais consegui-
ram reconquistar a ilha.
No espaço de dez anos, tendo voltado a sua atenção para o litoral suaíli, Sa‘īd
havia assegurado, para si e para os seus sucessores, uma posição dominante:
de modo que os antigos rivais, os Mazrui, sentiram -se extremamente vulne-
ráveis. Isto os levou a negociar com um oficial da marinha britânica, Owen,
o qual declarou, em 1824, o estabelecimento de um protetorado britânico em
Mombaça.
A reação do governo britânico diante da iniciativa de Owen foi um pouco
ambígua. Com efeito, não desaprovou a declaração de protetorado, mas tam-
pouco a acolheu com entusiasmo: as relações entre o Omã e a Grã -Bretanha não
o incentivavam nesse sentido. Owen tinha esperado e acreditado que Mombaça
pudesse servir de base na luta contra o tráfico de escravos, ao passo que a Grã-
-Bretanha, por seu lado, desejava reduzi -lo com a intermediação de Sa‘īd, com
quem havia assinado neste intuito o tratado de Moresby em 1822. O apoio que
Owen prestava agora aos rivais de Sa‘īd, os Mazrui, colocou os britânicos em
uma situação diplomática delicada.
O protetorado seria emero. Teve fim em 1826 não somente porque o
governo britânico decidiu finalmente que era com Sa‘īd com quem trabalharia,
mas também porque os próprios Mazrui decepcionaram -se. Eles não apreciavam
a ingerência dos oficiais britânicos em seus assuntos e tampouco estavam felizes
por terem de compartilhar com eles os direitos alfandegários e de serem obriga-
dos a limitar as suas importações de escravos. E, bem entendido, os britânicos
nada fizeram para ajudá -los a reconquistar suas posses perdidas.
Embora o protetorado tenha acabado em 1826,dez anos mais tarde Sa‘īd
conseguiu subjugar os Mazrui. Em 1828, os soldados dos busa‘idi chegaram a
ocupar o Fort Jesus; mas, após alguns meses, a guarnição de Sa‘īd foi sitiada e
obrigada a se retirar. Duas outras expedições em 1829 e 1833 fracassaram,
em grande parte devido o apoio dado aos Mazrui por dois outros grupos suaílis
das Três e das Nove Nações. Sa‘īd conseguiu finalmente os seus objetivos nas
mesmas condições que em Pate e em Pemba, ou seja, quando as dissensões
internas estouraram. Duas facções se criaram entre os Mazrui. O popular e
hábil Salim ibn Ahmād morreu em 1835. Seu sucessor se alienou da simpatia
dos shaykh das Três Nações e a intervenção de Sa‘īd foi novamente solicitada
por um grupo descontente. Desta vez, sua expedição (em 1837) não encontrou
259
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
 . Sa‘īd ibn Sultan, sultão de Zanzibar (1804 -1856). [Fonte: N. R. Bennet e G. E. Brooks (org.),
New England merchants in Africa: a history through documents, 1802 -1865, Boston, Boston University Press,
1965. © Peabody Museum of Salem. Foto: Mark Sexton.]
oposição alguma. Os Mazrui se renderam e Sa‘īd apropriou -se do objeto da sua
cobiça: Mombaça. Como em outros lugares, o reconhecimento da suserania dos
busa‘idi foi acompanhado de uma ampla autonomia. Deste modo, em Mombaça,
o governador de Sa‘īd dividia a responsabilidade da administração com os shaykh
das Três e das Nove Nações.
260
África do século XIX à década de 1880
As relações comerciais entre o litoral e o interior
No momento em que Mombaça caiu em suas mãos, Sa‘īd parecia decidido
a transferir sua capital de Omã para Zanzibar. Esta seria, sob todos os pontos
de vista, uma decisão capital para ele e para todo o litoral. Tendo, efetivamente,
um excelente porto e um solo extremamente fértil, Zanzibar encontrava -se
também bem localizada no plano estratégico já que ela era defronte a costa dos
Mrima, a qual se tornara a principal saída para as mercadorias mais importantes
provenientes do interior, ou seja, marfim e escravos. Este comércio lucrativo
permitira ao sultão encher seus cofres, antes mesmo da sua decisão de tornar
Zanzibar sua capital. Seu wālī (governador) tomara iniciativas para garantir
a proeminência da ilha ao obrigar todos os mercadores a negociar somente com
esta, sem passar pelos Mrima
12
.
“Zanzibar eclipsou rapidamente todas as outras cidades litorâneas pelo seu
desenvolvimento econômico e político. Em pouco tempo, Sāyyīd Sa‘īd constru-
íra, graças ao seu instinto aguçado para negócios, sua antevisão e a sua atitude
liberal, o maior entreposto da costa ocidental do Oceano Índico. Tornou -se
também o mercado mais importante do litoral leste africano, no que concerne
ao marfim, aos escravos, ao cravo, à resina, aos moluscos e aos produtos agrícolas,
bem como o maior importador de bens manufaturados da Índia, da América e
da Europa, como tecido de algodão, contas, arame, correntes, mosquetes, pól-
vora, porcelana, olaria, vidraçaria, facas e machados. A assinatura de acordos
comerciais e consulares com a América (1837), a Grã -Bretanha (1839), a França
(1844) e, mais tarde, com alguns estados alemães, trouxe ao sultão um reconheci-
mento internacional que veio consolidar ainda mais a sua posição
13
.” De todos os
objetos de comércio mencionados acima, o marfim e os escravos foram os mais
lucrativos para o sultanato de Omã, graças ao impulso da demanda exterior e,
no caso dos escravos, da demanda local. No decorrer das três ou quatro primei-
ras décadas do século XIX, o envio de marfim e de escravos com destinação ao
litoral emprestava às redes comerciais estabelecidas com este fim pelos povos
do interior e, em particular, os yao. Alpers
14
ressalta a importância que revestia
o marfim no comércio de Zanzibar no início do século. Era predominante no
comércio de longa distância da África Oriental e Central, e constituía a princi-
pal ocupação da maioria dos yao. Atraídos pelos preços elevados do marfim em
12 Ibid., p. 80 -81.
13 A. I. Salim, 1973, p. 15 -16.
14 E. A. Alpers, 1973, p. 175 -185.
261
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
Zanzibar, foi na direção deste litoral, e principalmente em Kilwa Kivinje, que os
yao expediam seu marfim, de preferência, com destino ao litoral moçambicano.
É necessário distinguir Kilwa Kisiwani, a cidade localizada na ilha do mesmo
nome, de Kilwa Kivinje, da qual se utilizaram então os yao para o seu comércio
de marfim. Kilwa Kisiwani tinha perdido muito da sua pujança durante a década
de 1830, devido às dissensões internas e a um meio hostil. Ao contrário, a vila de
Kilwa Kivinje, localizada no continente a 27 quilômetros ao Norte, tornara -se
o principal centro de negócio. A partir de 1819, um governador omaniano fora
nomeado ali para estimular e explorar o comércio. Alpers considera a ascensão
de Kilwa Kivinje como o símbolo da integração econômica entre o litoral e o
interior. Segundo ele, o desenvolvimento e a prosperidade da cidade são devi-
dos tanto ao dinamismo de Zanzibar e à sua atividade comercial, quanto ao
desejo dos povos do interior de transitar suas mercadorias: “Kilwa Kivinje
deve principalmente a importância que ocupa no comércio da África Oriental
às iniciativas de pessoas do interior como Mwinyi Mkwinda, o aventureiro yao
masaninga que aí se instalou no fim do século XVIII
15
.”
Foram, portanto, os africanos que iniciaram o comércio das caravanas entre
o litoral e o interior. Os bisa ocupavam -se, assim como os yao, do transporte
entre a região do lago Nyasa e o litoral. Segundo Alpers, a concorrência entre
os yao e os bisa era tão viva que os primeiros se especializaram no tráfico de
escravos para sobreviver, e os bisa diminuíram o preço do marfim para melhor
vendê -lo em Kilwa. Na primeira metade do século XIX, o comércio de marfim
era provavelmente tão importante, se não mais, que o dos escravos. Tanto os bisa
quanto os yao levavam o marfim e os escravos a Kilwa, de onde eram enviados
a Zanzibar. Em 1850, Kilwa Kivinje tornara -se a cidade mais importante do
litoral entre Moçambique e Zanzibar e o centro de exportação não somente de
marfim e de escravos, mas também de outros produtos como o arroz, resina,
tabaco etc. Entretanto, foi, sobretudo, graças aos dois primeiros que a cidade
obteve, na época, sua importância econômica.
Os escravos pertenciam aos povos do interior, tais como os yao, os bisa, os
makua e os ngindu, os quais, com frequência, eram os próprios traficantes de
escravos. A captura da maioria dos escravos se dava por ocasião das guerras ou de
incursões que não eram necessariamente realizadas com este fim. Os prisionei-
ros eram então trocados por mercadorias originárias do litoral como os tecidos,
por exemplo. Os povos do interior conservavam alguns deles para uso pessoal e
15 Ibid., p. 236.
262
África do século XIX à década de 1880
muitos escravos passavam por diversos senhores antes de chegarem ao litoral
16
.
Segundo Alpers, os escravos viajavam em grupos até o litoral ou até um dos
centros de caravanas do interior de um chefe yao, como Mponda, Makanjila e
Mataka, de onde partiam, uma vez agrupados, em direção ao litoral.
Na região do lago Nyasa, o comércio estava nas mãos dos yao, dos bisa e
de outros grupos, enquanto que mais ao Norte era praticado pelos nyamwesi,
pelos kamba (akamba) e pelos miji kenda. As mercadorias estrangeiras tinham
penetrado o interior da Tanzânia desde o século XVIII, dado os intercâmbios
regionais. Este fenômeno incentivou a caça ao elefante, cujo marfim era trocado
por mercadorias estrangeiras. Atravessando o Ugogo, os sumbwa e os nyamwezi
estabeleceram assim contatos com o litoral por volta de 1800
17
. Estes contatos
levaram à construção de uma rede comercial entre o Unyamwezi e o litoral e à
abertura de novas rotas para as caravanas entre o litoral e o interior.
Foi em 1824 que a primeira caravana não africana chegou ao Unyamwezi.
Em 1831, Lief bin Sa‘īd que era meio árabe e meio zyamwezi, chegou até o
Lago Tanganica; ele enviou sua própria caravana em direção ao interior em
1837. Em 1841, uma caravana árabe chegou a Kazembe após ter atravessado o
lago Tanganica. No final do período estudado 1845 os negociantes do litoral
tinham chegado até Buganda, onde o kabaka deu -lhe boa acolhida por razões
não somente comerciais, mas também militares: porque os fuzis que poderia
comprar deles seriam úteis nos conflitos com seus vizinhos. Este impulso para
o interior foi principalmente motivado pela alta do preço do marfim e dos
escravos
18
.
Mais ao Norte, o aumento da demanda por marfim e por outros produtos
do litoral causou o desenvolvimento do comércio regional dos miji kenda com
os kamba, no início do culo XIX. Àquela época, os miji kenda tinham
construído uma rede de intercâmbios com os suaílis, os watta, os vangas e os
oromos nos mercados fronteiriços. No continente, no mercado digo de Mtawe,
ao Sul de Mombaça, os digo e os suaílis trocavam sorgo, gergelim, coco e outros
produtos por vestimentas, peixes, arames e contas. Os shambaa forneciam -lhes
tabaco que eles revendiam aos giriama. Por volta das décadas de 1830 -1840, as
caravanas compostas por vumba e digo, partindo de Vanga chegaram a Taveta,
Chagga, Samburu e mesmo, em seguida, ao Lago Vitória.
16 Ibid., p. 240 -241.
17 J. Ilie, 1979, p. 41.
18 Ibid., p. 42, observar que, em Surat (costa ocidental da Índia), os preços do marm dobraram entre 1804
e 1808; em Zanzibar, entre a década de 1820 e a década de 1890.
263
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
Os giriama implantaram seu próprio sistema de trocas, penetrando progres-
sivamente no interior com os kamba, no final do século XVIII. Tornaram -se,
antes mesmo daquele período, os principais fornecedores de marfim no litoral.
Conseguiam este através da caça e da troca com os watta e os oromo. O desen-
volvimento da demanda por este produto e o início do esgotamento das fontes
locais de fornecimento, por volta do final do século XVIII, incitaram os giriamas
a voltarem -se para o interior e a organizarem, pela primeira vez, caravanas em
direção a Kitui onde viviam os kamba. Os rabai atuavam como intermediários
em suas trocas com os suaílis. Eles monopolizaram praticamente o comércio das
caravanas com os kamba até a década de 1830, já que estes últimos começaram
a suplantá -los com suas próprias caravanas.
Os efeitos socioeconômicos do desenvolvimento comercial
A expansão dos kamba que ocorreu no início do século XIX, a partir das
altas terras férteis do Mbooni em direção às terras mais baixas e menos férteis
como as do Kitui, forçou -os a uma adaptação socioeconômica. Para sobreviver
nas áreas menos férteis, tiveram que praticar a caça, a criação de animais e a
troca. Foi então que surgiu a prática conhecida sob o nome de kuthuua (busca
por alimento) que os levou inevitavelmente a fazer trocas com os povos vizinhos,
tais como os kikuyu, os embu e os massai. Com a chegada dos giriama, a rede
comercial dos kamba na região estendeu -se até o litoral. Por volta de 1820, os
kamba criaram suas próprias caravanas em direção ao litoral, que agrupava cada
vez mais habitantes à medida que se confirmavam as possibilidades comerciais.
No Norte do interior leste africano, suas caravanas dominaram o comércio de
caravanas durante as décadas de 1830, 1840 e 1850, após o que como acon-
teceu no interior meridional (Tanganica) elas foram suplantadas pelas cara-
vanas árabes e suaílis, mais importantes e mais bem armadas, que penetraram
decididamente no interior a partir do final da década de 1850. Estas relações
comerciais entre o litoral e o interior teriam repercussões capitais. Elas tiveram,
por exemplo, como efeito perturbar o habitat tradicional dos miji kenda que
viviam em vilarejos fechados ou fortificados, os kaya. Após 1830, movidos pelo
desejo de tentar a sorte nos negócios, inúmeros digo, giriama, rabai e duruma
deixaram suas kaya para se estabelecerem em áreas vizinhas.
Esta dispersão, causada pela busca por atividades comerciais e por melhores
pastagens, contribuiu não somente para desorganizar a vida coletiva nos kaya,
mas também para sabotar a autoridade dos anciãos. A vida se ordenou em torno
264
África do século XIX à década de 1880
de unidades mais restritas subdivisão de clãs ou de linhagem. Pelo fato de o
fenômeno da dispersão dificultar cada vez mais a organização de cerimônias de
iniciação nos kaya, a distinção de acordo com o grupo etário desapareceu tam-
bém. Surgiram entre os miji kenda e os kamba indivíduos ricos que se serviam da
fortuna adquirida com o comércio para criar uma clientela e adquirir influência.
Temos o exemplo do giriama chamado Ngonyo que, incentivado por seu pai,
manteve relações comerciais com os suaílis, os oromos, os watta e os kamba, e
construiu uma vila importante juntando os elementos díspares que constituíam
a sua clientela, o que lhe permitiu, mais tarde, se fazer reconhecer como chefe
pelos britânicos. Outro exemplo: o do chefe digo, Mwakikonge, o qual conse-
guiu o monopólio do comércio com os vumba e aproveitou -se da riqueza assim
obtida para fazer alianças pessoais, constituir uma clientela e mesmo uma corte
em Dzombo, adotando o título de kubo.
Os kamba contavam também com personagens importantes (andu anene),
cujos poder e influência se apoiavam em uma fortuna adquirida através do
comércio. O exemplo mais notável é aquele de Kivui Mwenda, o qual construiu
sua potência com o comércio de caravanas entre o litoral e as terras kamba,
durante as décadas de 1820 e 1830
19
. O tamanho das caravanas cresceu à medida
que o comércio se desenvolvia. As de Kivui contavam com aproximadamente
300 homens. Sua rede de aliados englobava os kitui kamba, os embu e os miji
kenda, e estendia -se até Mombaça, cujo governador era um de seus parceiros
comerciais.
Ao Norte, além do litoral ocupado pelos suaílis e pelos miji kenda, já existia,
desde as primeiras décadas do século XIX, uma rede similar, solidamente estabe-
lecida, de relações comerciais entre o interior e o litoral. Bem no início do século,
Lamu, ao suplantar Pate, tornou -se o porto de comércio mais importante do
arquipélago de Lamu. Naquela época, os habitantes de Lamu tinham criado
no continente um verdadeiro sistema agrícola, conhecido pelo nome de sistema
konde”
20
. Na mesma época, negociantes do arquipélago aventuraram -se pelo
interior a partir de centros como Kau e Kipini, no rio Ozi, até o rio Tana, para
trocar com os pokomo e os oromos gado, marfim e produtos agrícolas.
Uma importante malha comercial ligava as cidades do Benadir no litoral
somali Brava, Merka e Mogadíscio com o interior. Durante o século XIX,
os portos do Benadir fizeram contatos com outros centros do Sul da Etiópia
e do Norte do atual Quênia, até o Lago Rodolfo (atual Lago Turkana). Luk
19 Para detalhes mais amplos, ver R. Cummings, 1975; a respeito dos miji kenda, consultar T. Spear, 1974.
20 Ver M. Ylvisaker, 1975 e 1983.
265
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
(Lugh) e Bardera, sobre o Juba, constituíam centros nevrálgicos desta impor-
tante malha de rotas de caravanas. Os comerciantes somalis e boran levavam
até estas cidades o marfim, o gado e, ocasionalmente, escravos que eram ime-
diatamente enviados para os mercados próximos do litoral, tais como Afgoi, nas
proximidades de Mogadíscio e Audegle, próximo de Merka, para chegar enfim
aos portos do Benadir. Outros grupos somalis, tais como os bimale, os geledi e
os tunni, supriam os portos de produtos agrícolas provenientes do vale fértil de
Webbe Shebele e, do mesmo modo, atuavam como agentes dos comerciantes
somalis no interior.
Estas relações comerciais, baseadas na malha das caravanas que ligava cada
porção do litoral leste africano às suas terras interioranas, exerceriam progres-
sivamente efeitos socioculturais; este fenômeno, detectável ao final do perí-
odo estudado (1845), desenvolver -se -ia mais sensivelmente durante a segunda
metade do século. evocamos o aumento do individualismo e o surgimento
de um pequeno número de indivíduos que amontoava fortunas (mesmo que de
modo efêmero), influência e prestígio fora do contexto social tradicional. Ainda
mais difundida era a prática que consistia em se casar com estrangeiras. Este
fenômeno tornou -se perceptível, por exemplo, entre os digo e os rabai durante
o século XIX, em consequência de suas relações comerciais. Deste modo, elos
baseados na fraternidade sanguínea foram criados entre os miji kenda, os oro-
mos, os kamba e os suaílis. Por outro lado, as interações entre estes grupos, no
Leste do Quênia, favoreceram a adoção de novas práticas rituais; durante o
século XIX, novos métodos de vidência, de ão sobre as chuvas e possessão
espiritual se expandiram pelo Leste do Quênia, as práticas culturais individuais
se misturaram aos esquemas regionais”
21
.
A dinâmica das mudanças socioeconômicas produz transformações culturais
nas cidades litorâneas e entre certos grupos do interior. O desenvolvimento do
comércio de caravanas era acompanhado por um crescimento e uma diversifi-
cação étnica da população destas cidades que viram afluírem árabes, africanos
vindo do Norte e, mais ainda, escravos. O crescimento do número de escravos
nas plantações e de escravos domésticos, bem como a generalização concomi-
tante da prática do concubinato, favoreceram a interação e a integração étnicas
e culturais afro -árabes e afro -suaílis, inclusive no seio da aristocracia dirigente
e mesmo no palácio do sultão. A maioria das esposas de Sa‘īd eram africa-
nas e seus filhos falavam kiswahili muito mais do que árabe. Todos os sultões
21 T. Spear, 1981, p. 131.
266
África do século XIX à década de 1880
que sucederam Sa‘īd durante o século XIX nasceram de uma escrava. Como o
observariam vários visitantes estrangeiros, a preservação da identidade árabe
tornou -se então mais difícil.
Com o tempo, sensíveis diferenças culturais apareceram entre o omaniano
ou o árabe iemenita puro e seu homólogo sedentário, suailizado ou africani-
zado, das cidades suaílis. Os primeiros foram designados sob o nome Mmanga
ou M -Shihiri. O estabelecimento da suserania dos busa‘idi e o afluxo de novos
grupos vindos do Norte e do Iêmen contribuíram na explosão de antigas estra-
tificações sociais, por exemplo, em Lamu, e favoreceram a emergência de novas
estruturas
22
. Por volta de 1850, entre os 150.000 habitantes de Zanzibar, aproxi-
madamente 60.000 eram escravos
23
. Os Mazrui, expulsos de Mombaça em 1837,
estabeleceram -se em Gasi, ao Sul de sua antiga praça forte e em Takaungu, ao
Norte, e criaram relações estreitas respectivamente com os digo e os giriama.
Muitos foram iniciados no cdos anciões, entre os giriama. Ngonyo tornou-
-se aliado de um grande número dentre eles. Os escravos eram importados de
Zanzibar e do Mrima. Os Mazrui fizeram de Gasi e de Takaungu suas novas
bases política e econômica, ao se aliarem aos digo e aos giriama para atingirem
este objetivo.
Mudanças aconteceram paralelamente no interior, onde diversos grupos
conheceram um fenômeno de “mudança de escala”, devido aos seus conta-
tos com o comércio de caravanas e a sua participação neste comércio. Eles
começaram a imitar ou adotar a cultura das regiões litorâneas. Assim, o porte
da túnica suaíli, kanzu, se desenvolveu até o Buganda; o chefe yao Mataka,
mencionado, tinha orgulho de seus esforços para transformar sua região de
acordo com o modelo litorâneo. Ele reconstruiu sua capital no estilo do litoral,
ornamentando -a com mangueiras
24
. Outros dirigentes africanos o imitariam
subsequentemente, como o filho de Kimweri, Semboja, o chefe dos mazinde
que se vestia à moda árabe e elogiava a cozinha suaíli, o chefe haya, o rumanyika
de Karagwe, cujo palácio era decorado com objetos de luxo trazidos do litoral
pelas caravanas e, principalmente, pássaros embalsamados, espelhos e relógios.
Durante a primeira metade do século XIX, o islã começou a se implantar
no interior. Não apenas fazia adeptos entre as famílias dirigentes, mas também,
pela primeira vez, começava a penetrar nas áreas rurais. Foi muito bem acolhido,
perto do litoral, entre os digo e os segeju. Entre os outros grupos miji kenda,
22 Ver A. el -Zein, 1974, e A. H. Prins, 1971.
23 J. Ilie, 1979, p. 42.
24 Ibid., p. 78.
267
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
não exerceria influência sensível antes do último quarto do século. Propagou -se
entre os baganda pouco após a chegada do negociante missionário árabe Ahmad
ibn Ibrāhīm, em 1844
25
. Quando os missionários cristãos chegaram ao Buganda,
na década de 1870, o kabaka Mutesa já observava os ritos islâmicos tais como o
jejum, e inúmeras mesquitas haviam sido construídas. Também nesta época
a influência do islã fazia -se sentir, ainda que numa escala mais modesta, em
Bonde, em Uzigua e no planalto Makonde.
Uma vez aceito, o islã passou a ter uma forma sincrética. Por outro lado,
algumas sociedades introduziram elementos islâmicos em suas religiões tradi-
cionais, ou incorporaram práticas, personagens e espíritos do litoral em seus ritos
religiosos. Deste modo, alguns espíritos kamba tinham nomes suaílis; o nome
do sultão de Zanzibar, Barghash, era mencionado nos ritos sukuma
26
.
O kiswahili se espalhou mais do que o islã no interior, em particular no
Tanganica. Por volta da década de 1850, Richard Burton constatou que ele era
muito falado pelos sagara e pelos gogo e que, na quase totalidade das etnias do
interior, encontrava -se alguém capaz de falá -lo
27
.
Além desta influência cultural do litoral sobre o interior que manteve
contudo um caráter limitado durante a primeira metade do século XIX –, houve
também fenômenos de interação cultural entre os grupos do interior. Por outro
lado, convém observar que alguns destes grupos, em particular aqueles que eram
distantes das rotas de caravanas, opuseram uma grande resistência aos comer-
ciantes do litoral e a sua cultura. De fato, as mutações que surgiram no interior
tiveram pouca, ou nenhuma, relação com o comércio de caravanas. Inúmeras
sociedades do interior não consideravam o comércio com o litoral como neces-
sário para sua vida econômica.
Deste modo, durante a primeira metade do século XIX, os kikuyu continu-
aram sua expansão na região fértil e arborizada dos altos planaltos centrais do
atual Quênia. A abundância de alimento fez crescer a população e favoreceu
a troca de produtos excedentes com os povos vizinhos, tais como os kamba.
As mesmas relações existiam, até certo ponto, com os massai que contribuí-
ram para confinar os kikuyu nas áreas de florestas, as quais foram derrubadas
progressivamente em resposta às necessidades de espaço e de alimento para a
população em expansão. Os kikuyu, assim como os kamba, não tinham um sis-
tema político centralizado. As famílias estabelecidas sobre as diferentes áreas de
25 Ver A. Oded, 1974, e A. B. Kasozi, 1974.
26 J. Ilie, 1979, p. 79.
27 Ibid., p. 79
268
África do século XIX à década de 1880
colinas e postas sob a autoridade de um chefe eram geralmente independentes
umas das outras. Havia, contudo relações entre vários grupos, e alguns chefes
tentaram impor pela força sua autoridade sobre outros grupos. As atividades
comerciais dos kikuyu permaneceram mais concentradas e nunca atingiram
o litoral. Mesmo quando as caravanas suaíli -árabes penetraram pelo interior,
durante a segunda metade do século XIX, os kikuyu não tentaram de modo
algum estabelecer com elas laços comerciais importantes.
Em 1800, a potência legendária dos massai estava consideravelmente fragili-
zada. Este grupo de nilotas da planície havia atingido os limites da sua expansão.
Era também dividido em dois, entre os pastores que ocupavam as planícies
do vale do Rift estendendo -se do centro do Tanganica até o do Quênia, e um
número menor de agricultores, os iloikop ou kwavi, os quais habitavam a área
que separa o monte Kilimanjaro dos altos planaltos do Quênia. A história dos
massai durante o período estudado é dominada, por um lado, pela luta que tra-
varam estes dois grupos e, por outro, pelas guerras civis provocadas por vários
laibon (líder ritualista) que buscavam tomar o poder.
Estes conflitos levaram à dispersão dos massai pelo interior, o que contribuiu
muito para impedir os comerciantes árabes e suaílis de entrarem mais cedo
no interior. As incursões dos kwavi aconteceram nos arredores de Mombaça.
Em 1837, uma escaramuça entre os kwavi e um grupo árabe -suaíli teve lugar
fora da cidade. Nessa ocasião, estes últimos tiveram pesadas perdas. Autores da
época, como o missionário J. L. Krapf, falam da ameaça contínua que os kwavi
representavam para os miji kenda, o que explica a natureza defensiva do sistema
dos kaya.
A Oeste do vale do Rift, povos vieram se estabelecer na região dos Grandes
Lagos. Tratava -se de grupos bantos, como os luyia, os baganda, os basoga etc., e
nilotas, como os luo, os acholi e outros. A primeira metade do século XIX apare-
ceu como um período de deslocamentos, de estabelecimentos e de movimentos
incessantes de povos nesta região, assim como aquele da cristalização de diversos
sistemas políticos no seio de diferentes grupos, conferindo -lhes uma identidade
própria. É, por exemplo, o caso dos buganda que se dotaram de um sistema de
governo centralizado, dirigido por um chefe (o kabaka) portando as insígnias
de suas funções – tambor, tamboretes e lanças – e seu colégio de conselheiros, o
lukiko. No século XIX, o Buganda, dominado até então pelo reino de Bunyoro,
afirmou sua potência e seu expansionismo.
Por outro lado, os grupos de língua banta que viviam nas margens orientais
do lago Vitória não criaram governos centralizados (exceto o reino de Wanga).
Cada clã constituía sua própria entidade política e social. Os anciãos escolhiam
269
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
entre eles o sábio encarregado da administração dos negócios, ao qual era confe-
rido o título de omwami, omukali ou omukasa
28
. O reino de Wanga, que, no século
XIX, já tinha um rei ritual, o nabongo, não passava, na origem, de uma modesta
chefia. Atribui -se a expansão deste Estado à habilidade de seus dirigentes que
permitiu ter vantagem clara sobre seus vizinhos e, com o tempo, dominá -los
em grande parte. O reino estabeleceria relações com os mercadores do litoral
quando estes penetraram mais profundamente pelo interior na segunda metade
do século XIX. O nabongo Mumia esperava utilizá -los para revigorar o seu reino
em declínio, em troca da concessão de uma base comercial.
Durante a primeira metade do século XIX, ocorreu também um evento his-
tórico importante: a invasão do Tanganica interior pelos nguni, a qual produziu
profundas repercussões políticas. Esta invasão, bem como o comércio de carava-
nas, teria efeitos tanto positivos como negativos sobre as sociedades do interior.
No plano político, estes dois processos favoreceram a formação de Estados ou
sua consolidação em algumas regiões, e sua desintegração em outras. Mas todos
estes fenômenos ocorreram na segunda metade do século XIX, ou seja, após o
período analisado aqui.
O comércio internacional dos omanianos
O estudo mostrou que as sociedades do interior reagiram de modo muito
diversificado aos contatos com o comércio de caravanas e que as consequências
sociais, políticas e econômicas destes contatos foram muito variadas. De uma
maneira geral, durante o período estudado, o interior foi muito mais influen-
ciado pelo litoral no Tanganica do que no Quênia.
É conveniente agora evocar diversos desenvolvimentos importantes que
aconteceram no litoral durante aquele período. Sa‘īd ibn Sultan tomou uma
decisão importante e de uma grande alçada no plano econômico: incentivar
os indianos ao comércio e a se estabelecerem na região. As relações comerciais
entre a Ásia e o litoral leste africano eram anteriores ao século XIX, mas a pre-
sença asiática era pouco visível em Zanzibar ou no litoral do continente. Sa‘īd,
que admirava o dom para os negócios dos asiáticos e sua competência neste
campo, considerou que eles poderiam contribuir utilmente no desenvolvimento
comercial e na valorização de seu império. Em 1804, a cobrança dos direitos
alfandegários em Zanzibar foi concedida a um mercador asiático. Em 1811, um
28 G. S. Were, 1968, p. 195.
270
África do século XIX à década de 1880
número considerável de indianos estabelecera -se na capital e, a partir daquele
momento, eles começaram a ter um papel importante logo preponderante
como agentes alfandegários, corretores, financiadores, agiotas e atacadistas. Se
a instalação de um número crescente de asiáticos em Zanzibar e, logo depois,
em certas cidades do continente não lhes trouxe influência política, ela lhes
assegurou uma posição econômica preponderante e desigual. Jairam Sewji, por
exemplo, enriqueceu consideravelmente entre 1834 e 1853, período durante o
qual a cobrança dos direitos alfandegários lhe foi concedida, do mesmo modo
que Taria Topan após ele. Ainda que suas próprias receitas crescessem à medida
que aumentavam os direitos alfandegários, os sultões de Zanzibar permaneciam
constantemente endividados em relação aos asiáticos encarregados da cobrança.
Por outro lado, os capitais e as mercadorias dos asiáticos tornaram -se indispen-
sáveis para as caravanas árabes e suaílis. Inevitavelmente, os intermediários e
financiadores asiáticos apropriaram -se de uma parte muito mais considerável
dos lucros do comércio de caravanas.
Uma outra iniciativa de Sa‘īd digna de menção, a qual constitui um marco
na história econômica da região, é a introdução em Zanzibar da lavoura do
cravo -da ndia que permitiu à ilha dominar quase totalmente, por volta de
1850, o mercado internacional deste produto
29
. Isto marcou o início da econo-
mia de plantation que completaria o comércio das mercadorias transportadas,
por barcos e caravanas, pelos povos do litoral. Sa‘īd havia notado muito cedo a
fertilidade das terras do litoral e, em particular, das de Zanzibar. Eis uma das
razões da transferência de sua capital para a ilha. Antes da introdução do cravo,
o único produto exportado por Zanzibar era o coco, enquanto Pemba exportava
tradicionalmente o arroz. As primeiras mudas de cravo foram trazidas da Ilha
de Reunião por um árabe omaniano, Sāleh ibn Haramil al -Abry, que as teria
plantado ou ofertado ao sultão. Foi Sa‘īd quem desenvolveu a lavoura deste
produto e tornou -se, inicialmente, o seu principal exportador. Com cerca de
quarenta e cinco plantações mantidas pela mão de obra servil, ele produzia dois
terços das 8.000 frasilas (uma frasila corresponde ao redor de 16 quilogramas)
exportadas de Zanzibar em 1840. Bombaim, grande consumidora de cravos -da-
-índia, importava desta ilha 29.000 dólares em 1837 -1838. “Cinco anos mais
tarde, as importações provenientes de Zanzibar atingiram a soma de 97.000
dólares, distanciando -se das dos demais países
30
.”
29 Nenhum documento sobre a história de Zanzibar pode omitir a menção da produção de cravos -da -índia.
F. Cooper (1977) oferece um bom estudo sobre esta lavoura em Zanzibar e em Pemba.
30 F. Cooper, 1977, p. 51.
271
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
Durante os dez últimos anos estudados (1835 -1845), os árabes omanianos de
Zanzibar desenvolveram a lavoura do cravo -da -índia a ponto de negligenciarem
as lavouras de outros produtos, como o cujo e o arroz. Alguns antigos mercadores
de caravanas passaram a cultivar o cravo, de modo que, por volta da década de
1840, as grandes famílias omanianas de Zanzibar e de Pemba passaram todas
para esta lavoura. A indústria do cravo estimulou fortemente o tráfico de escra-
vos, que havia necessidade de uma mão de obra abundante durante a época
da florada e da colheita. Outrossim, impulsionou a aquisição de terras, feita de
vários modos: ocupação das terras desocupadas nas duas ilhas; arrendamento
simbólico de terras das populações locais; compra e, à medida que se previa uma
maior rentabilidade, expropriação. Foi deste modo que os árabes omanianos
adquiriram suas plantações de cravo -da -índia ao Norte e a Oeste de Zanzibar,
ao passo que seus habitantes wahadimu eram reduzidos à agricultura de sub-
sistência e a pequenas lavouras comerciais nas partes Sul e Leste da ilha
31
. Em
Pemba, ao contrário, suas plantações encontravam -se no meio das explorações
dos habitantes wapemba que cultivavam também o cravo, mas em escala menor.
Relações melhores se estabeleceram entre os dois grupos em Pemba, que os
arranjos em vigor eram de natureza a limitar os conflitos fundiários.
Os tratados comerciais assinados por Sa‘īd com os Estados Unidos da Amé-
rica, a Grã -Bretanha, a França e alguns Estados alemães contribuíram em grande
medida para favorecer o desenvolvimento do império comercial de Zanzibar na
África Oriental. Em particular, as relações com os Estados Unidos estimularam
notavelmente esta expansão. O tratado assinado em 1833, enquanto Sa‘īd estava
ocupado com seus planos de desenvolvimento econômico da ilha lhe forneceu
o mercado do qual necessitava. O estadunidenses se beneficiaram de condições
muito favoráveis: direito de 5% sobre as mercadorias norte -americanas impor-
tadas na África Oriental, e isenção com relação às mercadorias compradas pelos
estadunidenses. Após a assinatura do tratado, o movimento de navios norte-
-americanos nas águas do leste africano aumentou sensivelmente. Levavam
para os Estados Unidos mercadorias como marfim, resina e, quando a lavoura se
desenvolveu, grandes quantidades de cravo -da -índia. Em contrapartida, chega-
vam a Zanzibar com açúcar, contas, artigos de cobre, fuzis, pólvora e tecidos de
algodão que se tornaram célebres na África Oriental sob o nome de “merekani
(americanos). O montante das vendas norte -americanas passou de 100.000
31 Ibidem, p. 58, acrescenta: “esta injusta repartição étnica das terras é a origem de muitas das tensões que
se produziram durante o século XIX”.
272
África do século XIX à década de 1880
dólares em 1838 a 550.000 dólares quando da morte de Sa‘īd em 1852. Tal
progressão se deveu principalmente aos tecidos de algodão
32
.
Suplantando a Grã -Bretanha, os Estados Unidos se tornaram a primeira
potência comercial ocidental nas águas da África Oriental. Foi precisamente este
temor de serem desalojados pelos estadunidenses que incentivou os britânicos a
assinarem um tratado análogo com Sa‘īd, em 1839. Apesar disso, os interesses
comerciais britânicos – excetuando -se aqueles dos súditos britânicos de origem
asiática e a parte da Grã -Bretanha no comércio da África Oriental declina-
ram no decorrer do período estudado. Apesar de suas reticências iniciais, Sa‘īd
assinou um tratado com os franceses em 1844. Os britânicos haviam atiçado a
desconfiança de Sa‘īd quanto às intenções dos franceses. Após o estabelecimento
de um consulado francês em Zanzibar em 1844, a rivalidade franco -britânica
continuou intermitente, de modo que Sa‘īd teve que usar toda sua sagacidade
para preservar uma posição neutra ou para explorar aquela rivalidade em seu
proveito. Entretanto, sua necessidade do apoio militar britânico em Omã con-
tribuiu para aumentar o papel político destes últimos. Deste modo, Atkins
Hamerton, o cônsul britânico, veio a exercer uma influência não negligenciável
e mesmo às vezes algum poder sobre o sultão -imām dos busa‘idi. Após ter se
encontrado com Hamerton em 1851, o cônsul americano Ward observou que
os britânicos visavam a controlar o litoral leste africano num futuro próximo.
Para os britânicos, esta influência política compensava em muito seu declínio
comercial na África Oriental
33
.
Foi Hamerton quem, em 1845, após dois anos de negociações, persuadiu
Sa‘īd a assinar um tratado interditando a exportação de escravos fora dos terri-
tórios leste -africanos controlados pelo sultão. O desenvolvimento das lavouras
de cravo -da -índia e a exportação de escravos tinham gerado uma intensifica-
ção no tráfico na África Oriental. As estimativas do tráfico de “carregamentos
humanos” transportados durante o século XIX nunca foram muito confiáveis.
Os especialistas tiveram subsequentemente a tendência a considerar como exa-
gerados os números levantados à época pelos visitantes, oficiais da marinha,
missionários e exploradores europeus, mas suas próprias estimativas são diver-
gentes. E. A. Alpers
34
contesta o número de 20.000 escravos por ano dado
por C. S. Nicholls. Ele indica que A. M. H. Sheriff
35
está abaixo da verdade
32 C. S. Nicholls, 1971, p. 332.
33 Ibid., p. 187.
34 F. Cooper, 1977, p. 43; E. A. Alpers, 1973, p. 185 -193.
35 A. M. H. Sheri, 1971.
273
O litoral e o interior da África Oriental de 1800 a 1845
quando fornece o número de 2.500 escravos por ano durante a década de 1830
(estimativa baseada no número de escravos importados por Mascate, Kharaq e
Basra), já que ele subestima a importância dos escravos domésticos levando em
conta somente aqueles que trabalhavam nas plantações de tamareiras do Golfo
Pérsico. F. Cooper, por sua vez, não fornece nenhum número. Ele se contenta
em observar que a exportação de escravos de Zanzibar em direção ao Golfo
era uma atividade muito lucrativa durante a primeira metade do século XIX. É
evidente que o acordo concluído por Hamerton não concorreu para diminuir a
demanda local e exterior por escravos.
Afinal, pode -se dizer que Sa‘īd tomou uma série de iniciativas econômi-
cas e comerciais que contribuíram não apenas para tornar Zanzibar uma das
feitorias mais importantes do litoral leste africano Zanzibar importava pro-
dutos manufaturados da Índia, da Europa e dos Estados Unidos da América
e exportava cravo -da -índia, marfim, escravos, chifres de rinocerontes, resina e
outros produtos –, mas também de introduzir a economia da África do Leste
na mudança do sistema capitalista ocidental. Aquilo permitiu o enriquecimento
dos comerciantes asiáticos, europeus e americanos em detrimento das sociedades
autóctones, gerando assim o seu subdesenvolvimento.
Neste sistema capitalista mercantilista, a exploração dos recursos humanos
e materiais das sociedades do Leste africano revestiu -se na forma de uma troca
desigual que se estabeleceu duravelmente entre, por um lado, os mercadores
estrangeiros parasitas estabelecidos em Zanzibar e, por outro lado, os povos do
litoral e do interior.
Os lucros substanciais assim obtidos eram transferidos para a Europa, Amé-
rica e Índia e não eram praticamente investidos no desenvolvimento material
ou técnico da África Oriental. Os artigos importados, os quais eram trocados
pelos produtos do Leste africano, tais como o marfim, eram artigos de consumo
de baixo custo que não serviriam para a formação de capital. A importação de
alguns destes artigos prejudicava as indústrias locais: a indústria têxtil de Lamu
e dos portos do Benadir foi duramente atingida pela importação de tecidos de
algodão asiáticos, a princípio, e, em seguida, americanos.
Por outro lado, a exportação de escravos, as lutas entre os grupos e as incur-
sões que as acompanharam reduziram os recursos em mão de obra no interior
274
África do século XIX à década de 1880
do Tanganica, contribuindo para agravar o subdesenvolvimento da região
36
e
para “levar inelutavelmente a um impasse”
37
.
Conclusão
Durante o período estudado (1800 -1845), a região litorânea e o interior da
África Oriental se compunham de cidades -Estados e de sociedades do interior,
praticamente independentes umas das outras no plano político, as quais prati-
cavam o comércio regional e local e mesmo, no caso das populações litorâneas,
o comércio transoceânico.
Quando os busa‘idi impuseram o seu domínio, a maioria das cidades litorâ-
neas prestava formalmente obediência a Zanzibar, mas, de fato, os chefes locais
conservavam um poder real. Este período viu o desenvolvimento do comércio
de caravanas de longa distância, sob o impulso de grupos africanos do interior,
tais como os yao e os nyamwezi. Contudo, o desenvolvimento da demanda de
escravos, marfim e outros produtos incentivou muito as caravanas árabes e suaílis
a seguirem para o interior.
O comércio de caravanas teria inflncia social, econômica e cultural sobre inú-
meras sociedades do interior, ainda que algumas tenham se mantido totalmente à
parte. O islã e, mais ainda, o kiswahili se espalharam pelo interior. Os missionários
crisos somente vieram depois de 1845. Por outro lado, independentemente do
comércio de caravanas, outros acontecimentos importantes ocorreram no interior,
em particular a invasão dos nguni, a qual teria grandes consequências, contri-
buindo notadamente a formar alguns Estados e a desintegrar outros.
Enfim, a criação e o desenvolvimento do império comercial de Zanzibar
levaram a uma troca muito desigual entre os representantes do capitalismo
oriental e ocidental os mercadores asiáticos, europeus e americanos e as
populações autóctones do litoral e do interior, obtendo o primeiro grupo vanta-
gens desproporcionais do comércio internacional que impulsionava, desenvolvia
e controlava. Este fenômeno, por sua vez, conduziu ao subdesenvolvimento da
África Oriental.
36 Existe um grande número de obras sobre esta questão; ver, por exemplo, W. Rodney, 1972; J. Ilie, 1979,
p. 66 -77; R. Gray e D. Birmingham (org.), 1970; B. Swai, 1984; A. M. H. Sheri, 1974 e T. Spear, 1981.
37 Apud J. Ilie (1979) de A. D. Roberts, 1970b.
C A P Í T U L O 1 0
275
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
No capítulo anterior vimos como no primeiro quarto do século XIX a maio-
ria das sociedades do interior leste africano se desenvolveu independentemente
umas das outras. Estas não são certamente sociedades estagnadas como alguns
antropólogos tendem a nos fazer crer. Estados mais ou menos importantes
foram constituídos na área que se estende da região dos Grandes Lagos à Tan-
zânia Ocidental, Central e do Nordeste. Comunidades com vocação pastoril e
agrícola fixaram -se nas áreas montanhosas e no Vale do Rift (Vale da Grande
Fenda). Estas sociedades estavam, em sua maioria, em vias de transformação.
Grupos continuaram a emigrar para regiões ainda desabitadas, menos propícias
para a agricultura, enquanto a influência das migrações mais recentes, como
as dos luo e dos massai, não havia ainda sido totalmente absorvida por seus
vizinhos. Somente a região próxima do litoral e as ilhas de Zanzibar e Pemba
faziam parte do sistema econômico internacional. No início da década de 1840,
a África Oriental foi palco de duas invasões distintas: a invasão comercial, a qual
integraria o interior no sistema econômico internacional, e a invasão nguni vinda
da África Austral, a qual provocou vários movimentos e transformações nas
sociedades existentes. Dois outros fatores importantes marcaram este período:
a luta entre os grupos massai e a pressão crescente dos interesses europeus na
África Oriental. Este capítulo se propõe a analisar resumidamente estes fatores
no período que vai de 1845 a 1884.
O litoral e o interior da África Oriental
de 1845 a 1880
Isaria N. Kimambo
276
África do século XIX à década de 1880
A penetração omaniana e a expansão comercial
O deslocamento dos interesses políticos e comerciais omanianos de Omã para
Zanzibar e Pemba e, mais indiretamente, para as cidades litorâneas, foi estudado
no capítulo precedente. É também no início do século XIX que remontam as
causas profundas do desenvolvimento de um império comercial que conseguiu
penetrar no coração da África Oriental. A partir de 1840, o tráfico de marfim e
de escravos expandiu -se rapidamente e levou o interior para a malha comercial
estabelecida no litoral.
Tem -se a tendência de estabelecer uma correlação entre o marfim e os escra-
vos, dado que, na maioria dos casos, vinham da mesma região, e os escravos
podiam ser usados para o transporte de marfim. Mas esta correlação é superficial
e foi sobreestimada. É, todavia, evidente que, para o comércio de longo curso,
tanto o marfim como os escravos fossem trocados por outras mercadorias, tais
como tecidos, arames e contas.
Uma correlação bem mais importante está no fato de que estes dois pro-
dutos estavam ligados a um sistema comercial internacional que iria reduzir
a África Oriental a um papel subalterno e influenciar o seu desenvolvimento
antes mesmo da instauração do regime colonial. Deste modo, a África Oriental
encontrou -se engajada no sistema econômico capitalista bem antes do início
do colonialismo.
O aparecimento de um sistema econômico baseado em plantações primeiro
as das Ilhas Maurício e Reunião, sob o domínio francês, mas, sobretudo, as de
cravos -da -índia de Zanzibar e Pemba – provocou o desenvolvimento do comér-
cio de escravos no interior da África Oriental. Quando Sayyid Sa‘īd deslocou seus
interesses comerciais de Zanzibar para a África Oriental, o tráfico de escravos
com destino à ilha Maurício já tinha sido freado pela intervenção dos britânicos
que se apoderaram da ilha em 1810. Mas Sayyid Sa‘īd incentivou o desenvolvi-
mento de plantações de cravo -da -índia e de coqueirais em Zanzibar e Pemba.
Quando ele transferiu sua capital para Zanzibar, pouco depois de 1840, a lavoura
do cravo -da -índia se constituía na principal atividade econômica, da qual o
trabalho servil era o motor. Este quadro favoreceu o aparecimento de uma classe
de proprietários de terras, constituída primeiro e principalmente por árabes;
depois, a partir de 1860, também por shīrāzī e indianos. Estima -se normalmente
que, a partir de 1860, as ilhas de Zanzibar e Pemba tenham recebido perto de
10.000 escravos por ano – sem contar aqueles destinados para o suprimento dos
mercados estrangeiros (sobretudo árabes). Pode -se estabelecer que, na década de
1860, o mercado de Zanzibar não recebia menos de 70.000 escravos por ano,
277
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
 . O Oceano Índico no século XIX. [Fonte: extraído de P.D. Curtin, S. Feierman, L. ompson
e J. Vansina, African History, 1978, p. 394.]
278
África do século XIX à década de 1880
e que o tráfico mais intenso iniciara após 1840
1
. Embora tais números possam
ser fortemente exagerados, eles indicam, contudo, que o comércio de escravos se
desenvolvera de modo considerável desde a metade do século XIX.
O segundo produto comercial proveniente da África Oriental era o marfim.
No capítulo anterior, vimos como o mercado de marfim começara a se desen-
volver nas primeiras décadas do século XIX, desenvolvimento este devido à
demanda crescente de um ocidente industrializado que o mercado tradicional
indiano não mais satisfazia. Antes, a Europa e os Estados Unidos da América
obtinham este produto na África Ocidental. Mas a demanda pelo marfim afri-
cano cresceu quando foi percebido que era de uma qualidade superior (menos
duro), mais apropriado para a fabricação de artigos de luxo, tais como pentes,
bolas de bilhar e teclas de piano, os quais eram procurados pelas classes mais
abastadas da sociedade. Todos os esforços empregados pelos britânicos para
exercer um controle direto sobre este mercado, a partir da África Oriental, fra-
cassaram, que os mercadores indianos encontravam -se bem estabelecidos na
região e porque eles enviavam o marfim para Bombaim e, de lá, reexportavam-
-no para a Europa. Somente alguns poucos americanos conseguiram pouco a
pouco se tornar os primeiros mercadores ocidentais de Zanzibar, permanecendo
contudo amplamente dependentes de seus concorrentes indianos.
É óbvio que as condições de troca, nestes dois comércios particulares, eram
muito vantajosas para aqueles que as praticavam. Grandes rotas comerciais
surgiram a partir das cidades litorâneas (Kilwa, Bagamoyo, Pangani, Tanga e
Mombaça) até diversos pontos do interior, de modo que, depois de 1870, a maior
parte da região correspondente hoje à Tanzânia, ao Quênia, ao Uganda, à parte
oriental da República Democrática do Congo, ao Norte da Zâmbia, ao Malaui
e ao Moçambique Setentrional, formava um imenso interior ligado a Zanzibar
através destas cidades litorâneas e por isso mesmo integrado, em graus diversos,
à malha comercial internacional.
É tentador ver neste desenvolvimento do comércio de longo curso apenas
um episódio infeliz do qual os africanos foram vítimas impotentes. É certo que
o tráfico, o qual avilta o ser humano, deixou nas sociedades da África Oriental
sequelas pessoais e morais particularmente funestas. Bem maior, contudo, foi a
influência do comércio em seu conjunto sobre o desenvolvimento efetivo das
sociedades consideradas. Os africanos, neste caso, não foram meros expectadores.
Mostraremos através de alguns exemplos que, em muitos casos, eles próprios
1 E. A. Alpers, 1967, p. 11; 1974, p. 236.
279
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
tomaram a iniciativa de estabelecerem relações comerciais com o litoral. É, con-
tudo, difícil avaliar na medida justa a incidência econômica geral desta invasão
comercial sobre as sociedades africanas. É mais fácil reconhecer os aportes tangí-
veis da penetração litorânea nos territórios do interior, sob a forma, por exemplo,
de espécies novas – o milho e o arroz –, ou seus efeitos culturais, representados
pela expansão do islã e, de maneira ainda mais significativa, pelos progressos da
língua suaíli. Mas quais foram os efeitos econômicos?
Philip D. Curtin, avaliando os efeitos de um comércio do mesmo gênero, mas
na região da Senegâmbia, concluiu: “Os dados são suficientemente precisos para
que se possa afirmar de maneira geral que, apesar da probabilidade de movi-
mentos inversos marcantes durante os tempos de guerra, as condições de troca
modificaram -se consideravelmente em favor da Senegâmbia durante quase dois
séculos. Mesmo que as estimativas representassem quer a metade, quer o dobro,
dos números reais, esta melhoria do conjunto traduziu -se, entre 1680 e 1830,
em uma multiplicação de cinco a vinte vezes das vantagens recebidas. Para se
tomar uma estimativa média, ao final do período considerado, os senegambianos
receberam dez vezes mais do que lhes fora dado cento e cinquenta anos antes
pelo mesmo volume de bens exportados
2
.”
Infelizmente, não existem dados comparáveis para a África Oriental. R. Cou-
pland, a partir de estatísticas relativas a Zanzibar e a alguns centros litorâneos,
pôde demonstrar, por exemplo, que o lucro anual de Kilwa atingiu 120.000 libras
em 1876; e que de 1869 a 1876, as receitas alfandegárias de Zanzibar passaram
de 65.000 libras a mais de 100.000 libras por ano
3
. Isto parece indicar que cabe-
ria, ao menos no caso de Zanzibar, um estudo análogo ao da Senegâmbia. Mas
é provável que não nos ensinasse grande coisa sobre as numerosas sociedades
do interior que participavam das atividades comerciais. Sabe -se que, em 1870,
a economia de plantation, baseada em uma mão de obra servil, tinha começado
a se estender no litoral e no interior da região, ao longo das rotas de caravanas,
a fim de, sobretudo, produzir gêneros (cereais) necessários à alimentação das
camadas mais ricas e das classes trabalhadoras de Zanzibar e de Pemba, e de
prover as necessidades das grandes caravanas que penetravam pelo interior
ou do qual retornavam
4
. O quadro permanece, entretanto, incompleto. Porém,
mesmo que conseguíssemos completá -lo, demonstrar que o produtor africano
obtinha naquele momento mais do que ele recebia antes, não mudaria o caráter
2 P. D. Curtin, 1975, p. 340.
3 R. Coupland, 1939, p. 227, 319 e 320; ver também J. M. Gray, 1963, p. 241.
4 A. Smith, 1963, p. 296.
280
África do século XIX à década de 1880
de exploração do sistema comercial capitalista internacional da época. De fato,
os comerciantes do litoral e seus aliados africanos não passavam de intermedi-
ários dos negociantes europeus, que ficavam com a maior parte dos lucros. O
produtor africano era explorado não somente pelos intermediários, mas também
pelos comerciantes europeus. A situação se apresenta ainda mais dramática se
pensarmos que seres humanos eram o objeto deste comércio! Pode -se acres-
centar que, ligados assim ao sistema econômico mundial, em condições pouco
vantajosas para eles, os africanos do Leste consagraram sua energia não para
buscarem o desenvolvimento de suas economias em seu proveito, mas sim para
fornecerem matérias primas e mão de obra trocadas por produtos manufaturados
estrangeiros (artigos de luxo, em sua maioria), úteis somente a algumas camadas
da sociedade. Às vezes, este comércio produziu o efeito de fazer desaparecer as
indústrias locais que produziam artigos análogos ou de frear seu desenvolvi-
mento. Tal foi a sorte da indústria do tapa, na região do Lago Vitória, e a da
tecelagem a mão no Sudoeste da Tanzânia.
Este agrupamento do vasto interior leste africano ao litoral não resultou
apenas na abertura de novas rotas comerciais do litoral para o interior, nem
tampouco da penetração árabe e suaíli no continente. Ela se deu igualmente
pela transformação e adaptação das malhas comerciais existentes. Para maior
clareza, nós dividiremos as grandes rotas do comércio de longo curso segundo
quatro eixos principais: o de Kilwa para o interior; o da Tanzânia Central; o do
vale do Pangani e o de Mombaça para o interior.
O eixo Kilwa ‑interior
O eixo comercial que ligava Kilwa ao interior foi provavelmente o primeiro
a se formar sob o efeito da demanda por mão de obra servil destinada às ilhas
sob domínio francês, no final do século XVIII. Os contatos entre a região do
Lago Nyasa (atual Lago Malaui) e Kilwa eram relativamente fáceis, uma vez
que a região que os viajantes deviam atravessar era muito fértil e habitada. Era
dominada pelos yao que asseguravam o encaminhamento de marfim, cera e
escravos até Kilwa. Eles continuaram a ter um papel importante neste comér-
cio até a época de seu apogeu no século XIX e sua preponderância na segunda
metade do século foi uma consequência direta. Como já observamos, a situação
geográfica deles lhes era favorável. Entretanto, a consequência mais marcante
deste comércio regional foi de ordem social. Até então, o povo yao compunha-
-se de pequenos grupos estabelecidos ao redor do lago Nyasa, unidos por um
elo muito frouxo sob a frágil autoridade dos chefes locais. Mas na metade do
281
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
século XIX, eles se reuniram em coletividades mais importantes e seus chefes
começaram a se impor. Tem -se insistido muito sobre a invasão nguni como
fator desta evolução. Mas, como se verá aqui, ela aconteceu em uma época em
que a sociedade tinha claramente começado a se estratificar sob a influência
do comércio. Quando os mercadores árabes tentaram penetrar pelo interior
desta rota, os chefes yao eram demasiadamente fortes para eles. Também, com
a exceção de pequenos enclaves como Khota Khota e Karong no Malaui atual,
os árabes nunca detiveram o controle do comércio. Eles eram em geral clientes
dos poderosos chefes yao aos quais eles forneciam armas de fogo e outras mer-
cadorias e com os quais eles dividiam os benefícios
5
.
O eixo da Tanzânia Central
Os nyamwezi dominavam essa rota. Desde o início do século XIX, suas cara-
vanas asseguravam a maior parte das trocas comerciais da região. Enquanto o
comércio, sob a instigação de Sayyid Saīd, ganhava terreno, os mercadores árabes
acentuavam sua penetração pelo interior. Ela foi facilitada pelo sistema de finan-
ciamento estabelecido por Sayyid Sa’īd com a ajuda de seus funcionários india-
nos. Ele havia confiado a direção geral dos negócios ao diretor da alfândega de
Zanzibar, um indiano, que lhe pagava uma renda anual. Este último, por seu lado,
apoiado pela comunidade indiana que compunha a base da população das outras
cidades litorâneas (Kilwa, Bagamoyo, Pangani, Tanga, Mombaça etc.), adiantava
aos chefes de caravanas o dinheiro necessário para suas expedições pelo interior.
Se no interior de Kilwa os árabes eram clientes dos chefes yao, no eixo central,
ao contrário, estabeleceram centros para agrupamento de marfim e escravos. A
maioria das caravanas partia de Bagamoyo ou de Sadani, atravessava as regiões
ocupadas pelos zaramo, kami, sagara, luguru e gogo para chegar às terras dos
nyamwezi e além, nos territórios dos ujiji, nas margens do Lago Tanganica.
Algumas destas caravanas penetravam mais longe ainda, até o interior da
atual República Democrática do Congo, ou para o Norte até o Karagwe e o
Buganda. Uma outra rota partia em direção ao Sul para chegar à região do Lago
Nyasa onde ela ligava a rota que convergia para Kilwa.
Duas feitorias árabes acabaram por se tornar colônias importantes:
Unyanyembe, perto da atual Tabora, em terras nyamwezi e Ujiji, à beira do
Lago Tanganica. Elas diferenciavam -se num ponto essencial: em Unyanyembe,
os árabes formavam uma espécie de enclave em terras nyamwezi, ao passo que,
5 Ibidem, p. 286.
282
África do século XIX à década de 1880
F . O comércio na África Oriental no século XIX. [Fonte: adaptado de P. D. Curtin, S. Feierman,
L. ompson e J. Vansina, African History, 1978, p. 399.]
283
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
em Ujiji, eles estavam mais ou menos integrados ao Estado Ha
6
. No primeiro,
onde eram independentes, eles enfrentaram a concorrência dos mercadores
nyamwezi que, com frequência, não eram outros que os chefes de vários princi-
pados da região. Os nyamwezi deram a estes mercadores, fossem eles árabes ou
nyamwezi, o nome de bandewa
7
. Todos estes grupos esforçavam -se em tirar lucro
do comércio de longo curso, daí os embates constantes entre os chefes nyamwezi
e os mercadores árabes daí também as lutas intestinas entre os soberanos de
diferentes Estados nyamwezi; lutas que levaram a reajustes políticos e sociais de
graves consequências para o povo nyamwezi.
Os árabes de Ujiji, por sua vez, utilizaram a seu favor a organização política
ha, na qual Ujiji fazia parte de um Estado ha bem mais vasto no qual o centro
estava longe da cidade de Ujiji. Os árabes tinham então fincado o pé numa área
periférica do Estado e puderam facilmente se integrar, para um ganho maior
das duas comunidades.
O eixo do vale do Pangani
Diferentemente dos eixos comerciais do centro e do Sul, a rota que passava
pelo vale do Pangani não era controlada por grupo algum em particular. Na ori-
gem, de 1836 até cerca de 1860 (quando morreu Kimwere ye Nyumbai, o grande
chefe do reino shambaa), os zigula tiveram contudo um papel preponderante
no desenvolvimento comercial desta área. Mas, ao redor de 1836, ocorreu uma
terrível fome
8
que obrigou inúmeros zigula a se venderem como escravos para
sobreviver. Conta -se que alguns deles, levados para a Somália pelos traficantes
brava (barawa), preservaram ali sua língua até o século 20
9
. A maioria, entretanto,
foi enviada a Zanzibar onde trabalhou como escravos nas plantações. Alguns
conseguiram retornar para suas terras; relata -se a história de um grupo que,
tendo conseguido escapar, voltou são e salvo às terras zigula:
De acordo com um plano bem orquestrado, um grupo importante de conspiradores
reuniu -se numa noite de lua cheia em uma das plantações. De lá, eles conseguiram
chegar ao litoral ao Norte do porto de Zanzibar. Ao amanhecer, eles subiram a
6 Ver N. R. Bennett, 1974, p. 213 -221.
7 Ver A. C. Unomah, 1972.
8 R. F. Burton, 1860, vol. I, p. 125. Em 1860, Burton escreveu que a fome castigou duramente “cerca
de vinte anos”. J. L. Krapf (1860, p. 256 -257) falou de uma fome semelhante em Mombaça na mesma
época.
9 S. Feierman, 1974, p. 137.
284
África do século XIX à década de 1880
bordo de vários barcos, pegaram de surpresa e mataram ou subjugaram as tripu-
lações, levantaram âncora, aram velas e fizeram a travessia de Zanzibar até o
continente
10
.
Esta experiência mostrou -lhes todas as vantagens que se podia tirar do
comércio de escravos e de marfim. Foram eles que o introduziram no vale do
Pangani. A capital do rei Kimweri, localizada nos montes Shambaa, encontrava-
-se longe das planícies. Por isso, ainda que seu reino, baseado na autoridade
política dos chefes territoriais e no sistema de tributos, tenha sido estável, tar-
dou a lucrar com este novo comércio. Após sua morte, seu filho Semboja que
reinou na borda ocidental do território zigula, soube tirar proveito da situação
e transferiu sua capital para a região das planícies, em Mazinde.
Mas nem Semboja nem os mercadores zigula tinham totalmente explorado
a rota que ligava o vale do Pangani ao interior do continente. A maioria dos
centros comerciais estava localizada numa área limitada, formada pelas planícies
do Usambara e do Pare. Todavia, alguns mercadores aventuraram -se além. Kisa-
bengo, por exemplo, fundou um Estado na proximidade do atual Morogoro.
Somente os comerciantes árabes e suaílis do litoral se arriscariam pelo inte-
rior até as terras chagga, no maciço do Kilimanjaro, e continuaram além até o
Quênia. Nos montes Pare existiam vários pequenos Estados, mas, como o dos
shambaa, estavam todos nas montanhas, longe da rota das caravanas.
Os comerciantes do litoral que penetraram no vale do Pangani precisaram,
em sua maioria, criar contatos diretos com cada um dos soberanos ou com seus
vassalos para poder estabelecer centros comerciais. Isto provocou rivalidades
entre os soberanos de vários pequenos Estados localizados nos montes Pare e
Kilimanjaro, assim como entre estes soberanos e seus vassalos. Veremos mais
adiante quais foram as repercussões sociopolíticas desta situação.
O eixo Mombaça ‑interior
O interior de Mombaça era dominado pelos kamba, mas, depois de 1880,
o controle da rota principal passou para os mercadores árabes e suaílis. Depois
de ter atravessado as terras kamba, esta rota seguia para as regiões montanhosas
do Quênia e prosseguia além na direção das margens do Lago Vitória e da
Uganda. Uma outra rota que ia em direção ao Kilimanjaro encontrava -se com
10 J. M. Gray, 1962, p. 141.
285
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
F . Penteados e cortes de cabelos nyamwezi. [Fonte: R. F. Burton, e Lake Region of Central Africa,
1860, vol. II, Longman, Green, Longman and Roberts, Londres. © Royal Geographical Society, Londres.]
F . Mercadores nyamwezi na estrada. [Fonte: R. F. Burton, e Lake Region of Central Africa, 1860,
vol. II, Longman, Green, Longman and Roberts, Londres. © Royal Geographical Society, Londres.]
286
África do século XIX à década de 1880
a do vale do Pangani. Ela era, parece -nos, como a do Pangani, sob o controle
dos comerciantes do litoral.
Quase todos os autores estão de acordo com J. L. Krapf por remontar o início
do comércio continental kamba à fome de 1836
11
. Mas, como mostrado neste
volume, a preponderância comercial deste povo não se firmou da noite para
o dia. Os testemunhos que dispomos permitem supor que os kamba tinham
utilizado uma malha comercial regional durante mais de um século antes da
data geralmente admitida
12
. Esta data, contudo, marcou a segunda fase da sua
atividade comercial, a de seu acesso à malha do comércio internacional da época:
começaram então a trocar as presas de elefante e outras matérias primas locais
por mercadorias importadas. Krapf, o qual fez várias viagens às terras kamba
em 1848 -1849, deixou -nos um testemunho sobre estas trocas: “os suaílis forne-
ciam aos wakamba tecidos de algodão (americano), lona azul, contas de vidro,
cobre, sal, vitríolo azul (zinco) etc., e recebiam em troca, essencialmente, gado e
marfim
13
. Desde 1840, havia então, como o atestam os documentos, caravanas
kamba que se dirigiam a cada semana para as vilas litorâneas. O marfim, do qual
elas estavam carregadas, podia pesar entre 300 e 400 frasilas
14
. Segundo Krapf,
elas continham cada uma de 300 a 400 pessoas
15
. Na metade do século XIX,
grupos de mercadores kamba iam não somente até seus vizinhos, os kikuyu, mas
também até regiões localizadas bem além do monte Quênia: Mau, Gusii, Lago
Baringo e as terras samburu.
No final do século XIX, é provável que os comerciantes árabes e suaílis
tenham se tornado os donos da rota comercial que atravessava as terras kamba
16
.
Tendo penetrado em território massai pela rota do Kilimanjaro em uma época
em que a pujança massai era muito enfraquecida devido às guerras e às epide-
mias, eles exerciam o seu domínio sobre as áreas de onde provinha o marfim.
Parece que à época, o tráfico de escravos (que não tinha sido muito importante
sob os kamba) tomara, de repente, uma dimensão nova. As tradições kamba
descrevem este período como o mais conturbado da sua história; a fome foi
ocasião de conflitos entre linhagens dos quais lucraram os mais ambiciosos ao
11 Ver, por exemplo, K. G. Lindblom, 1920, p. 339 -340; D. A. Low, 1963, p. 314.
12 I. N. Kimambo, 1974, p. 207.
13 J. L. Krapf, 1860, p. 248.
14 C. Guillain, 1856, vol. II, p. 211. Segundo o dicionário suaíli -inglês de Charles Rechenbach, uma frasila
equivalia mais ou menos a 16 quilos ou 35 libras.
15 J. L. Krapf, 1860, p. 248.
16 J. ompson, 1885, p. 272 -275.
287
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
vender os mais fracos aos árabes
17
. É então a justo título que as tradições kamba
estabelecem uma relação histórica entre o declínio do comércio de mercadorias,
no qual eles, os kamba, tinham desempenhado um papel expressivo e a expansão
do sistema baseado na exploração dos homens em que se destacaram os mer-
cadores árabes e suaílis.
O impacto do comércio de longo curso sobre
as sociedades da África Oriental
Depois deste apanhado retrospectivo, é possível analisar uma a uma as conse-
quências, na vida das sociedades leste -africanas, do surgimento do comércio de
longo curso. Antes de tudo, é preciso se dar conta que nem todas as sociedades
da África Oriental tinham contato direto com a malha comercial. A atividade
mercantil exigia centros estáveis, os quais, é claro, eram mais frequentemente
nas capitais ou nas áreas protegidas por soberanos poderosos. É esta a razão pela
qual os efeitos positivos do comércio, no século XIX, foram mais sensíveis nas
sociedades centralizadas. As sociedades não centralizadas eram frequentemente
mais vulneráveis. Elas podiam ser facilmente saqueadas por aquelas que eram
organizadas em uma escala maior. As sociedades pastoris foram quase sempre
exceção durante este período. As de língua massai estavam engajadas em guerras
intestinas e em conflitos com outras sociedades pastoris e, como veremos mais
adiante, elas formavam uma área tampão contra os ataques dos traficantes de
escravos em uma grande parte do Quênia e da Tanzânia setentrional.
Em resumo, pode -se dizer que o comércio de longo curso sacudiu as bases
materiais de todas estas sociedades. Embora seja admitido que a mestria do
ritual constituía o fundamento principal da autoridade nestas sociedades africa-
nas, reconhece -se, também, que os Estados puderam se organizar numa grande
escala onde a base material era bastante sólida para assegurar a manutenção de
uma burocracia militar e de Estado. Pôde -se ainda constatar que houve uma
ligação entre o tamanho dos Estados centralizados, em várias regiões da África
Oriental, e a pujança econômica proporcionada pelo meio geográfico. Os gran-
des Estados da região dos Grandes Lagos conseguiram se manter graças aos
excedentes alimentícios que lhes garantiam uma economia agrícola estável, base-
ada na cultura da banana, de cereais e na criação de gado. Quanto mais longe do
Lago Vitória, em direção sul, mais as precipitações são fracas e, então, a econo-
mia pode apenas comportar Estados de dimensões reduzidas. São em geral mais
17 Ver K. A. Jackson, 1972.
288
África do século XIX à década de 1880
vastos nas regiões montanhosas, como no Usambara e no Pare e, em uma certa
medida, no Kilimanjaro. Em alguns dos grandes reinos da região dos Grandes
Lagos, os soberanos acrescentaram seu poder ao equiparem -se para o comércio
de longo curso que asseguraria a prosperidade ao seu reino
18
. Seu arsenal tradi-
cional enriqueceu -se com fuzis e passaram a usar mercadorias importadas, tais
como tecidos e contas de vidro, como moeda complementar para remunerar os
serviços que lhes eram prestados, além dos alimentos recebidos como tributo.
Mas o gosto pelos artigos importados agravou também os riscos de instabilidade
na medida em que podiam incentivar os vassalos a se lançarem em empreitadas
pessoais e através delas enfraquecer o reino. Eis a razão pela qual tantos reis se
esforçaram em ter o controle sobre o comércio de longo curso.
Foi nos pequenos Estados que o aparecimento das mercadorias importadas
trouxe as mais espetaculares desordens. Constituíam uma grande parte da Tan-
zânia e, num grau menor, do Quênia Ocidental. Os soberanos tradicionais, capa-
zes de controlar o comércio, puderam assim acumular muitos objetos importados
para equipar poderosos exércitos e estenderem seu controle administrativo. Por
outro lado, os Estados mais fracos eram saqueados por traficantes de escravos
ou então incorporados a conjuntos de territórios mais importantes. Deste modo,
o impacto político do comércio foi algumas vezes positivo quando permi-
tiu a alguns soberanos constituírem vastos reinos onde antes existiam apenas
pequenos Estados e, algumas vezes, negativo quando incentivou a rebelião,
arruinando assim a coesão dos Estados existentes. No geral, este último caso foi
o mais frequente. Inútil falar sobre as atrocidades do tráfico. Mas mesmo o poder
baseado no acúmulo de objetos importados se revelou ilusório, já que a maioria
destes últimos eram artigos de luxo contas, braceletes e outros ornamentos.
Somente o tecido apresentava alguma utilidade, embora concorresse com os
artesanatos locais que terminaram por desaparecer. Pior ainda, o comércio dos
artigos de luxo e a situação de violência criada pela necessidade de saquear as
comunidades vizinhas para continuar a susten-lo levaram ao abandono da
agricultura de subsistência. Mesmo que o colonialismo não tivesse aparecido,
a nova estrutura teria tido dificuldades em se manter. De fato, raros foram os
grandes Estados constituídos durante este período que permaneceram intactos
até 1890.
Convém, para tornar preciso este quadro, analisar mais de perto o que se pas-
sou nas três regiões por onde circulavam as caravanas. A propósito dos kamba,
18 Ruanda e Burundi são exceções. Ver a nota de rodapé 31.
289
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
vimos como a sua pujança comercial começou, ela também, a declinar quando
as incursões dos mercadores de escravos tornaram -se sistemáticas. Os kamba
formavam uma sociedade não centralizada. Entre eles, o comércio de longo
curso encorajava, parece -nos, a transposição em escala maior das instituições
tradicionais tendo por base os laços de parentesco, os grupos etários no seio de
cada vila e as organizações de defesa. Mas isto não foi suficiente para formar
uma estrutura de estado centralizado. No Quênia, foi na região ocidental
que o comércio com o litoral permitiu fundar um regime político extenso e
centralizado: o reino de Wanga, entre os luyia.
Antes que Shiundu, o qual se tornaria um de seus maiores reis, subisse ao
trono na metade do século XIX, o reino de Wanga não passava de um pequeno
reino incessantemente assediado pelos povos pastores vizinhos. Mas seria
Shiundu que teria posto um fim a esta instabilidade e, em 1882, data na qual
seu filho Mumia o sucedeu, o reino se estendia além de suas fronteiras ante-
riores. O professor G. S. Were explicou a formação deste vasto império pelos
imperativos estratégicos dos britânicos que buscavam fazê -lo um instrumento
do seu colonialismo, mas ele reconheceu que a influência e a autoridade real”
dos wanga se estenderam, ao menos, a duas regiões vizinhas – Kisa e Buholo
19
.
Dois fatores, naquele momento, ajudaram os soberanos wanga a imporem sua
autoridade: a utilização de mercenários massai e a presença dos comerciantes
suaílis na capital. O primeiro foi consequência das guerras entre os massai,
tratadas mais adiante neste estudo; enquanto que o segundo foi o resultado da
infiltração comercial que se fez, ao início, pelas rotas do Buganda e do Busoga,
depois pelas do Kilimanjaro e das terras kamba.
Shiundu e seu filho Mumia deram boa acolhida aos mercadores das cidades
litorâneas que vieram à sua capital. Eles puderam se prover, por seu intermédio,
dos fuzis de que tinham necessidade para armar seus soldados. A partir da capital
Wanga, podiam -se organizar ataques aos territórios vizinhos. Em 1883, Joseph
Thompson descreveu nestes termos uma destas expedições, ocorrida cinco anos
antes: “Os mercadores tinham perdido vários de seus homens, dos quais alguns
tinham sido assassinados. Para se vingar, eles resolveram, cinco anos antes da
nossa chegada, dar uma lição nos autóctones”. Neste sentido, eles formaram uma
caravana com cerca de 1.500 homens estacionados em Kwa -Sundu (rebatizada
depois como Mumia) e se colocaram a caminho. Divididos em várias colunas,
eles invadiram o território por vários lados e o atravessaram destruindo tudo em
19 G. S. Were, 1967, p. 125.
290
África do século XIX à década de 1880
sua passagem e matando milhares de homens e mulheres. Cometeram as piores
atrocidades: estriparam mulheres grávidas, acenderam grandes fogueiras onde
jogaram as crianças, enquanto se apoderaram dos adolescentes dos dois sexos
para reduzi -los à escravidão
20
.
A maioria dos outros povos do centro -norte do interior leste -africano foi
menos atingida pelo comércio internacional. Eles tinham menos contatos, dire-
tos ou mesmo indiretos, com os estrangeiros do litoral. De fato, em muitos casos,
eles recusaram -se a acolhê -los, embora estivessem dispostos a lhes vender ali-
mentos nos locais de parada das caravanas. Esta atitude se compreende melhor
se for lembrado que toda esta região fora longamente agitada pelas guerras entre
os massai, as quais tinham ensinado aos chefes, para protegerem suas estruturas
sociais, a desconfiarem mais dos estrangeiros.
O impacto do comércio internacional no vale do Pangani foi essencial-
mente destrutivo. Anteriormente, um certo número de Estados fora criado na
região. Dois dentre eles tornaram -se bastante importantes: o reino Shambaa,
o qual foi governado na metade do século XIX por Kimwere e o de Gweno,
menos conhecido, ao Norte do monte Pare. Outros Estados menores estavam
disseminados sobre as vertentes meridionais dos montes Pare bem como nas
encostas do Kilimanjaro. Mas todos estavam localizados nas áreas montanhosas,
enquanto as caravanas passavam pelas planícies ao longo do Pangani. Os chefes
destes Estados estavam, então, mal localizados para vigiar os mercadores vindos
das cidades litorâneas e monopolizar o negócio das mercadorias importadas,
enquanto seus vassalos, mais próximos da rota das caravanas, podiam atrair facil-
mente os mercadores árabes e suaílis para seu território, antes que atingissem as
capitais. A consequência desta situação não se fez esperar. Os vassalos, ajudados
pelos mercadores, reuniram tropas bem armadas e se sublevaram contra a capital.
Esta situação gerou conflitos internos e externos. A maioria destes Estados se
esfacelou, restando apenas Estados muito pequenos.
O reino Shambaa, o qual englobava todo os territórios dos montes Usambara
até o litoral, estava ameaçado muito antes da morte de Kimwere, na década
de 1860. Um de seus filhos, Semboja, que reinava na parte ocidental, tinha
transferido sua capital para Mazinde, nas planícies. Isto lhe permitiu negociar
diretamente com os mercadores que entravam pelo interior; pôde assim se tor-
nar uma potência militar superior à dos outros chefes regionais. Foi ele, após a
morte de Kimwere, o incumbido de realizar a sucessão. Compreendendo que
20 J. ompson, 1885, p. 306.
291
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
a capital tradicional havia perdido toda a importância, ele não quis assumir o
trono de seu pai. Desde a década de 1870 até a época da invasão colonial, na
década de 1890, Usumbara conheceu um período de violência, deslanchada pela
fraqueza do poder central. A maioria das regiões periféricas tornara -se, então,
independente.
O mesmo fenômeno se produziu nos Estados do Pare. Em 1880, o reino
de Gweno tinha explodido, substituído por vários principados, dos quais os
menores, ao Sul do Pare, continuaram a se dividir. Na região do Kilimanjaro, ao
contrário, o estado de guerra incessante que opunha os diversos Estados levou-
-os a se unirem momentaneamente, a ponto de que se pudesse crer que todos
os Estados chagga iriam se federalizar sob a égide de um soberano único. Mas
este início de unificação não durou muito. Na década de 1880, dois principados
poderosos se impuseram na escala regional: Kibosho, sob o reinado de Sina, e
Moshi, sob o de Rindi ou de Mandara. Os mercadores do litoral tinham -lhe
acesso. Seus soberanos se esforçavam em atrair estes estrangeiros para sua capi-
tal e tirar proveito de sua presença e das mercadorias que traziam (sobretudo
os fuzis) para aumentar o seu poderio. Um ou outro destes Estados chagga foi
forte o suficiente para dominar os outros. Mas os reagrupamentos deste tipo
foram sempre efêmeros.
O único povo do vale do Pangani que parecia lucrar com o comércio com
o litoral foi o dos zigula, do qual foi falado. Os zigula nunca foram súditos
do reino Shambaa. Graças ao controle que exerciam sobre o comércio com o
litoral, vários Estados zigula manifestaram uma tendência à hegemonia política
sem precedentes, de modo que, por volta da metade do século XIX, acabaram
por dominar toda a região compreendida entre o Pangani e Bagamoyo. Vários
soberanos adquiriram um poder considerável e foram capazes de fundar novos
Estados. Alguns dentre eles não tardaram a desaparecer, mas aquele fundado
por Kisabengo, ao redor de Morogoro, sobreviveu à invasão alemã. Burton nos
conta como Kisabengo se proclamou chefe de um grupo de escravos, os quais
tinham fugido do litoral
21
. Ao fazê -lo, ele provocou a cólera do sultão de Zan-
zibar e teve que ir mais para o interior para se por a salvo. Em Morogoro, ele
foi recebido por um dos chefes rituais dos luguru. Ele estabeleceu sua capital, a
qual fortificou, próxima da rota das caravanas e obrigava aquelas que seguiam em
direção a Tabora a lhe pagar um direito de passagem elevado. Staley relata que,
em 1871, a capital do rei Kisabengo que tinha vários milhares de habitantes era
21 R. F. Burton, 1860, vol. I, p. 85 e 88.
292
África do século XIX à década de 1880
cercada de altas muralhas de pedras sobrepostas com torres de vigia e na qual
se entrava por portões de madeira finamente esculpidos
22
.
Na Tanzânia Ocidental, rivalidades opunham também os chefes africanos
de numerosos pequenos Estados, nos quais os árabes se fixaram. Por outro
lado, os chefes africanos que tinham se aliado competiam com os mercadores
árabes. Em terra manyema, do outro lado do lago Tanganica, existia um enclave
onde os árabes predominavam caso único –, que, na Tanzânia Ocidental,
eles eram muito frágeis para suplantar os chefes africanos. Somente no fim da
década de 1880, quando se sentiram ameaçados pelos colonizadores europeus,
é que alguns árabes começaram a pensar, eles também, em dar a sua pujança
uma base territorial
23
.
Os soberanos africanos esforçaram -se em participar dos benefícios do comér-
cio de longo curso fornecendo escravos e marfim aos mercadores: ou – para aque-
les que podiam controlar o território atravessado pelas caravanas taxando -os
pesadamente. Com este intuito, eles aumentaram seus poderes reunindo ao seu
redor grupos de partidários armados (os fuzis e as munições vinham dos estoques
que as trocas comerciais lhes permitiram acumular). As lutas incessantes para
assegurar o controle do comércio foram as causas da instabilidade social, agravada
também pelos movimentos de populações consecutivos à invasão dos nguni (povo
igualmente chamado de ngoni em certas publicações), a qual se deu nesta mesma
época. A instabilidade que resultou multiplicou a massa de indivíduos prontos a
seguirem os chefes empreendedores. Na Tanzânia Ocidental, chamava -se a estes
mercenários de ruga -ruga. Eram recrutados essencialmente entre os prisioneiros
de guerra, escravos fugitivos, carregadores que tinham abandonado as caravanas,
excluídos e jovens com idade do serviço militar. A coesão destes exércitos hetero-
neos mantinha -se devido a “um certo espírito de corpo junto a uma disciplina
de ferro, intimamente calcada no modelo dos grupos de combate nguni”
24
.
Foi com o apoio deles que vários chefes tradicionais da Tanzânia Ocidental
criaram novos feudos. Alguns dentre eles se aventuraram fora de seus domínios
e fundaram impérios. Na década de 1850, por exemplo, Ngalengwa (chamado
mais tarde de Msiri), filho de um chefe sumbwa, seguiu a estrada utilizada pelos
mercadores de cobre até Katanga onde ele construiu um império poderoso
25
.
22 H. M. Stanley, 1872, p. 115 -116.
23 A. D. Roberts, 1969, p. 73; N. R. Bennett, 1974, p. 218.
24 Ibid., p. 74.
25 Para informações sobre o império de Msiri, ver J. Vansina, 1966, p. 227 -235. Para fontes mais antigas,
ver F. S. Arnot, 1889, e A. Verbeken, 1956.
293
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
No próprio Unyanyembe, rivalidades dividiam os membros da família reinante,
rivalidades exacerbadas pelo apoio dos árabes a um ou outro pretendente ao
trono, jogando uns contra outros. Na década de 1860, os árabes conseguiram
destronar Mnwa Sele e substituí -lo por Mkasiwa. O irmão de Mnwa Sele,
Simba, deixou então Unyanyembe para estabelecer seu reino entre os konongo,
ao Sudoeste de Tabora. Um outro membro da família reinante de Unyanyembe,
chamado Nyungu ya Mawe, deixou sua terra em 1874 para fundar um reino
bem organizado em terras kimbu, no Sudoeste dos territórios nyamwezi. Além
desses reis que deixaram suas fronteiras tradicionais para subjugarem alguns
pequenos Estados e reagrupá -los em seguida, pode -se citar o caso dos Estados
que se ampliavam sob o impulso de soberanos cujo poder aumentara. O caso de
Mirambo é o mais marcante neste aspecto, mas houve vários outros. Mtinginya
de Usongo, no Nordeste de Unyamwezi, era um chefe hereditário que estendeu
seu poder e seu reino ao explorar a rota comercial que ia para o Karagwe e o
Buganda. O próprio Isike, sucessor de Mkasiwa em Unyanyembe, tornou -se
poderoso o bastante para opor uma resistência forte aos árabes e, mais tarde,
aos alemães.
Para ilustrar a que pontos as condições e as perspectivas novas tumultua-
ram as estruturas do poder nyamwezi, nós analisaremos sucintamente dois dos
maiores Estados constituídos durante este período: o de Mirambo e o Nyungu
ya Mawe. Os dois “impérios” apresentavam diferenças estruturais marcantes,
ainda que fossem ambos nascidos nas circunstâncias evocadas acima. Mirambo
era soberano do pequeno Estado de Uyowa, a Oeste de Tabora. Supõe -se que,
em sua juventude, tenha sido capturado pelos nguni quando estes invadiram
a Tanzânia Ocidental. Quando da sua captura, teria tido a ideia de criar uma
força armada imitando a dos nguni. Na década de 1860, com a ajuda de um
pequeno grupo de guerreiros, ele submeteu alguns Estados limítrofes do Uyowa.
Entre 1870 e sua morte, em 1884, realizou numerosas campanhas com as quais
aumentou consideravelmente seu território. Como mostrou Jan Vansina, o seu
Estado se estendia até o Buha e o Burundi, até o Vinza e o Tongwe a Oeste,
até o Pimbwe e o Konongo ao Sul, até o Nyaturu, o Iramba e o Sukuma a Leste,
e até o Sukuma e o Sumbwa ao Norte”.
26
Ele se tornara o senhor da rota comercial que ligava Tabora e Ujiji e, em
1876, impôs um pedágio aos árabes de Tabora que a utilizassem. Relata -se
também que, desejando controlar a rota do Buganda, ele enviou em 1876 e
26 J. Vansina, 1966, p. 75.
294
África do século XIX à década de 1880
em 1881 embaixadores a Mutesa, soberano do Buganda. Estabeleceu também
relações diretas com o litoral a fim de obter diretamente armas de fogo quando
os árabes tentaram privá -los dela. Rapidamente reconheceu que podia aumentar
seu poder: acolheu calorosamente os missionários em sua capital e procurou criar
uma relação com o cônsul britânico em Zanzibar.
Foi calcando sua potência militar sobre o sistema tradicional que Mirambo
conseguiu manter seu império”. Ele exigiu dos soberanos vencidos o reco-
nhecimento de sua supremacia e o envio, de tempos em tempos, a título de
tributo, de marfim e jovens para seu exército. Quando um soberano tradicional
se mostrava recalcitrante, ele o destronava e o substituía por um membro mais
dócil da mesma família; quando uma província conquistada estava localizada
na proximidade de um reino poderoso, mantinha ali uma guarnição composta
de homens de confiança. Mas sua estratégia mais eficaz para garantir sua auto-
ridade consistia em intimidar seus vizinhos e seus súditos pelas incessantes
movimentações de tropas.
O império” de Nyungu ya Mawe era mais unificado que o de Mirambo.
Como este último, ele recorreu aos ruga -ruga para subjugar os kimbu. Entre
1870 e 1880, ele fez campanha a partir de sua base de Kiwele e se tornou senhor
da rota comercial que ligava Tabora ao litoral, bem como da do Sul que ligava
Tabora a Ufipa e ao Lago Tanganica. Nos Estados conquistados, Nyungu colo-
cou seus próprios funcionários, os vatwale, que dependiam diretamente dele.
Neste império”, eram eles e não mais os chefes tradicionais que dirigiam os
negócios. Eles tinham como missão ajuntar todo o marfim do reino para enviá-
-lo a Nyungu. Cada um deles era responsável por um território que reagrupava
vários Estados tradicionais. Foi deste modo que cerca de trinta Estados kimbu
tradicionais chegaram a ser governados por não mais de seis ou sete vatwale
27
.
Mirambo e Nyungu ya Mawe foram contemporâneos. Ambos fundaram
seu Estado graças aos tumultos do final do século XIX. Morreram em 1884. O
“império de Nyungu lhe sobreviveu graças às estruturas novas criadas por ele,
até o dia em que foi desmembrado pelos colonialistas. Ao contrário, o império”
de Mirambo, na ausência de um sucessor capaz de preservar o poderio militar
necessário à sua coesão, desmantelou -se e os pequenos Estados originais reto-
maram sua independência.
Em nossas análises das consequências da penetração do comércio de longo
curso, deixamos deliberadamente de lado duas grandes regiões. A primeira, no
27 A. Shorter, 1969, p. 19.
295
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
F . Mirambo em 1882 ou 1883. [Fonte: N. R. Bennett, Mirambo of Tanganyika, 1840 -1884, 1981,
Oxford University Press, New York. © National Museums of Tanzania, Dar es -Salaam.]
296
África do século XIX à década de 1880
interior, é a dos Grandes Lagos, a qual é o tópico do capítulo 11. Contentar-
-nos -emos em assinalar aqui que, por volta da metade do século XIX, esta região
contava com numerosos reinos de tamanhos variáveis: alguns eram vastos e
poderosos, outros pequenos e fracos. Mas todos eram parceiros de um comércio
regional cujas rotas ligavam a maioria das grandes capitais. Foi, então, nesta
malha regional que o comércio internacional procedente do litoral foi absorvido.
Durante a segunda metade do século XIX, os mais poderosos entre estes reinos
foram provavelmente o Buganda, o Bunyoro e o Burundi. Mas havia muitos
outros menos poderosos, como o Busoga, o Toro, os Estados de Ankole
28
(Nkore,
Buhweju e Bunyaruguru), o Karagwe, os Estados do Buhaya e o Buzinza.
Os comerciantes do litoral haviam atingido o Buganda em 1844
29
. Na década
de 1850, R. F. Burton observava que alguns comerciantes do litoral tinham se
instalado ali cerca de dez anos antes; na cada de 1860, H. M. Stanley relatou que
alguns desses comerciantes tinham se fixado na rego vinte anos, algumas vezes
sem nunca retornar ao litoral
30
. Deste modo, o Buganda teria sido o primeiro cen-
tro comercial da rego. Em pouco tempo, contudo, os comerciantes do litoral che-
garam às outras capitais. Houve duas exceções: o Ruanda e o Burundi, nos quais
os soberanos puderam manter afastados os comerciantes do litoral e souberam
habilmente se defender dos fuzis de seus adversários
31
. Os soberanos do Bunyoro
se esforçavam, ao contrário, em atrair os comerciantes para sua capital. Na década
de 1870, Kabarega, rei do Bunyoro, tentou concorrer com o Buganda e entrar
diretamente em coneo com Zanzibar, tentando atrair “aqueles de Cartum (os
comerciantes que subiam o Nilo), cujas incursões se multiplicaram nas sociedades
o centralizadas das regiões fronteiriças setentrionais do seu reino
32
. Parece que
foi o Buganda de Mutesa (1856 -1884) que tirou o melhor proveito deste corcio
com o litoral. Um governo centralizado dotado de uma administração disciplinada
estava estabelecido no país. Mas o comércio de armas, do qual Mutesa tinha
feito o seu domínio reservado, reforçou ainda mais esta centralização. O Buganda
deu a impressão de se interessar então mais pelo comércio internacional do que
pelas trocas regionais. As expedições de Mutesa contra o Busoga a Leste e con-
28 O Ankole é uma criação colonial. Esta entidade se compunha em outros tempos de vários Estados.
29 J. M. Gray, 1947, p. 80 -82.
30 R. F. Burton, 1860, vol. I, p. 173; H. M. Stanley, 1878, vol. I, p. 455.
31 A melhor fonte de informação sobre o Burundi na segunda metade do século XIX é provavelmente hoje
a obra de R. Botte, 1982. Encontra -se também uma descrição geral do Burundi em E. Mworoha, 1977,
p. 133 -209, e 1980. Sobre o Ruanda, a obra de A. Kagame, 1963, é uma versão melhorada daquela de
1961.
32 D. A. Low, 1963, p. 337.
297
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
F . A região dos Grandes Lagos, 1840 -1884. [Fonte: adaptado de R. Oliver e G. Mathew (org.),
History of East Africa, 1963, vol. I, p. 299.]
298
África do século XIX à década de 1880
tra seus vizinhos do Oeste e do Sul (o Bunyoro, o Toro, o Nkore, o Buhaya e o
Buzinza) permitiram a seu reino ter o controle sobre o comércio. Mutesa tentou
também reduzir o Karagwe e o Buzinza para que as caravanas da costa pudessem
chegar à sua capital sem obstáculos.
Não dúvida de que os reinos mais importantes da região dos Grandes Lagos
se fortaleceram consideravelmente graças às relões que tinham estabelecido com os
comerciantes do litoral. Em particular, a aquisição de armas de fogo aumentava seu
poder para atacar os outros. Cada incuro enriquecia sua capital em gado, enxadas,
marfim e cativos; estes dois últimos bens podiam ser vendidos aos comerciantes
em troca de objetos de luxo de todos os tipos: têxteis, braceletes, contas, vasilhames,
mas, sobretudo, armas de fogo. Os Estados mais extensos podiam se apoderar dos
menores, mas todos atacavam seus vizinhos não centralizados, os quais foram os que
mais sofreram. A excão de Ruanda e do Burundi ( evocada) mostra -nos que era
posvel impedir esta erupção do comércio com uma outra estragia. Estes Estados
não deviam sua poncia à aquisição de armas de fogo, mas à sua aptidão para manter
a estabilidade e a unidade numa região montanhosa de densa populão. As nume-
rosas guerras e expedições lançadas durante este peodo permitiram -lhes acumular
riquezas em um contexto em que o marfim e os cativoso despertavam interesse.
A segunda região da qual não tratamos é a Tanzânia meridional. Com efeito,
as repercussões do comércio de longo curso devem, no seu caso, ser consideradas
ao mesmo tempo em que as consequências de outra causa de perturbação, a
invasão nguni, que estudaremos agora.
A invasão nguni
Os nguni vieram da África do Sul e pertenciam ao grupo linguístico nguni
das terras zulus setentrionais. Por volta de 1820, guerreiros nguni desejosos de
subtrair -se à crescente autoridade de Shaka resolveram deixar sua pátria e emi-
grar em direção ao Norte, sob a liderança de seu chefe Zwangendaba. Durante
aproximadamente quinze anos, eles erraram pelo Sul de Moçambique e regiões
vizinhas, depois cruzaram o Zambeze em 1835. Continuaram sua progressão em
direção ao Norte até o dia em que, pouco depois de 1840, atingiram o planalto
de Fipa, na Tanzânia Ocidental. Naquela data, o bando de guerreiros fugitivos
tinha se tornado uma nação em marcha, fortemente armada que contava com
mais de cem mil pessoas
33
.
33 Para mais detalhes, ver J. D. Omer -Cooper, 1966 e 1969, e P. H. Gulliver, 1955.
299
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
Pode ser interessante, aqui, perguntar como um crescimento tão espeta-
cular foi possível. Para responder a esta pergunta, é preciso voltar e ver o que
era então o Estado zulu, sua pátria de origem. Shaka havia criado um Estado
militar, fortemente centralizado e baseado em uma dupla estrutura: a linhagem
e o serviço armado. No topo da pirâmide hierárquica havia o rei, abaixo dele
os segmentos de linhagem compostos por suas esposas, seus filhos e seus pro-
tegidos. A cada geração, estes segmentos, à medida que aumentavam, tendiam
também a se ramificar e a se multiplicar. De outro lado, os jovens eram alistados
nos regimentos correspondentes ao seu grupo etário. Este exército não levava em
conta nem a origem territorial nem os laços de sangue, e estava sob a autoridade
direta do rei. Estrangeiros podiam sem problema integrar -se à dinâmica social
graças a estas duas estruturas. Shaka implementou várias inovações no campo
militar, no qual a mais importante foi a adoção de uma lança curta e aguçada
que fez dos regimentos, organizados por grupos etários, unidades de combate
extremamente eficazes.
Tendo herdado este sistema social dinâmico, os nguni puderam juntar os
povos diversos que encontravam em sua progressão para o Norte. A superiori-
dade de sua organização militar lhes permitiu sobreviver atacando as populações
das quais eles atravessavam os territórios. Embora saqueadores por força das
circunstâncias, quando encontravam um meio propício, fixavam -se por vários
anos. Mais eles avançavam, mais suas tropas eram numerosas, aumentadas por
prisioneiros de guerra que se integravam a este novo corpo social. No início,
a cada cativo era atribuído um lugar neste ou naquele regimento; depois era
incorporado o mais rápido possível a um regimento em que a distinção entre os
“verdadeiros” nguni e os outros tendia a desaparecer. Na época em que atingiram
o planalto de Fipa, a entidade nacional nguni se compunha majoritariamente
de prisioneiros assimilados: tonga de Moçambique, shona do Zimbábue, senga,
chewa e tumbuka da região situada ao Norte do Zambeze, correspondente a
Zâmbia e ao Malaui.
Foi no planalto de Fipa que Zwangendaba, o qual havia guiado seu povo
nesta marcha heróica, morreu por volta de 1848. Disputou -se logo sua sucessão
e, finalmente, o particularismo venceu. A nação se dividiu em cinco reinos. Cada
um conduziu sua própria política e se assentou em um território determinado.
Numerosos historiadores explicaram esta ruptura da nação nguni pelo fato que
Zwangendaba, no fim de sua vida, não era mais tão hábil em manter a unidade
do seu povo. Mas deve -se, do mesmo modo, levar em conta o enorme cresci-
mento demográfico – uma verdadeira bola de neve” – que tinha multiplicado a
300
África do século XIX à década de 1880
F . Itinerário das migrações em direção ao Norte dos nguni de Zwangendaba, dos maseko nguni
e dos msene. [Fonte: extraído de J. D. Omer -Cooper, e Zulu aftermath, 1966, p. 66.]
população nguni em mais de cem
34
. Tal explosão apenas tornaria mais difícil o
exercício de um poder centralizado. De outro lado, pode -se pensar que os nguni
se tornaram tão numerosos que o ambiente que lhes oferecia o planalto de Fipa
não mais os comportava no momento da morte de Zwangendaba.
34 A. M. H. Sheri, 1980, p. 33.
301
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
Três dos cinco grupos nguni se dirigiram em direção ao Sul e fundaram
reinos na Zâmbia e no Malaui. O quarto grupo, o dos tuta, continuou sua pro-
gressão para o Norte, em território nyamwezi; saquearam as vilas e cortaram
a rota comercial árabe entre Tabora e Ujiji. Terminaram por se fixar ao Norte
de Tabora, mas continuaram seus ataques ainda mais ao Norte até as margens
meridionais do lago Vitória. Mirambo foi, dentre inúmeros nyamwezi, cap-
turado pelos tuta; ele conseguiu fugir após ter adquirido a técnica militar dos
nguni que ele utilizou para formar um exército com aqueles que conseguiram
escapar das incursões dos tuta.
Outro grupo nguni, aquele dos gwangara, partiu do Sudeste do planalto de
Fipa sob o comando de Zulu Gama, se dirigiu para a região de Songea, a Leste
do Lago Nyasa. Lá, ele se juntou com um outro grupo nguni, o dos maseko que
tinha se separado dos outros antes que os nguni atingissem o Zambeze e que, do
Malaui, haviam penetrado na Tanzânia meridional. Os maseko nguni eram tidos
como mais poderosos que os gwangara; seu chefe, Maputo, foi aceito como chefe
supremo dos dois grupos. Mas esta aliança teve curta duração já que rivalidades
explodiram entre eles, o que degenerou rapidamente em uma verdadeira guerra.
Os gwangara derrotaram os maseko nguni e rechaçaram -nos para o Sul, para a
outra margem do Rovuma. Os ndendeule, um grupo absorvido, tentaram recriar
ali um Estado, mas foram vencidos pelos gwangara e se engajaram então no vale
do Kilombero onde fundaram o reino Mbunga, na década de 1860.
Quanto aos gwangara, eles se dividiram em dois Estados, o de Msope cons-
tituído sob a autoridade de Chipeta e o de Nielu, sob aquela de Mtakano Cha-
bruma. Um ocupou a região que se estende ao Norte de Songea, enquanto o
outro foi implantado mais ao Sul. A maioria dos autores deu muita importância
aos ataques perpetrados por estes dois reinos que instigaram o terror, até a che-
gada dos alemães, em toda a região compreendida entre o lago Nyasa e o litoral.
Mas A. M. H. Sherif mostrou recentemente que esta interpretação poderia ser
falaciosa:
é provável que se os nguni tivessem continuado a viver de saques como uma nuvem
de gafanhotos obrigados a irem cada vez mais longe, pelo fato de destruírem seus
meios de subsistência”, eles não teriam jamais podido se fixar. Uma vez estabelecidos
na região de Songea, foram forçados a modificar as estruturas da sua economia e
realizar uma exploração mais racional dos recursos agrícolas locais. Era -lhes mais
lucrativo empregar a força de trabalho dos autóctones, enquanto que eles mesmos se
ocupavam de suas imensas manadas. A agricultura confiada aos vencidos de modo
permanente, iria necessariamente modificar sua condição social no sentido de uma
302
África do século XIX à década de 1880
assimilação, menos completa, entretanto, do que aquela dos prisioneiros no decorrer
da migração comum. Ataques tinham ainda lugar na periferia do Estado nguni, mas
menos sistematicamente, de modo que as ocasiões eram mais raras para os súditos
fazerem cativos e se elevarem socialmente
35
.
A invasão nguni terminou então no advento de Estados nguni no solo tan-
zaniano. Os dois reinos nguni permaneceram como poderosos Estados até o
período colonial. Seu papel na guerra que opôs os maji -maji contra os alemães
pertence à epopeia da resistência às primeiras tentativas de colonização na Tan-
zânia. A segunda consequência da invasão nguni foi a introdução de técnicas de
combate adotadas por inúmeras comunidades tanzanianas. Acreditou -se por um
momento que era a necessidade de se defender das incursões nguni que levara
povos como os hehe e os sango a se inspirarem na arte militar de seus agressores
e a criar conjuntos políticos centralizados. Mas as pesquisas mais aprofundadas
36
demonstraram que esta suposição estava errada porque o processo de centrali-
zação, no que diz respeito a estes dois povos, havia começado antes da invasão
nguni. A verdade é que as técnicas militares nguni reforçaram as sociedades
que as adotaram e lhes permitiram enfrentar melhor os acasos daquela época
conturbada, inclusive aqueles provocados pelo tráfico de escravos. Alguns utili-
zaram estas técnicas não somente para se defender contra as incursões nguni e
dos traficantes de escravos, mas ainda para criar grandes Estados. É o que fez
Mirambo do qual já falamos. É isto que fizeram igualmente os sango e os hehe
na área meridional.
Os sango foram os primeiros a assimilar as técnicas militares nguni. Nas
décadas de 1860 e 1870, sob a liderança de seu chefe Merere, eles estenderam
seu domínio sobre a maior parte das terras altas meridionais. Mas, a partir de
1875, foram desalojados pelos hehe, os quais tinham aprendido as técnicas mili-
tares nguni no contato com os sango. Merere deixou a maior parte do território
sango para Mwinyigumba, chefe dos hehe. Estes foram capazes de travar guerras
prolongadas contras os nguni gwangara, entre 1878 e 1881, guerras das quais
nem um nem outro saiu vitorioso. Doravante, os hehe, governados pelo filho de
Mwinyigumba, Mkwawa, conservariam sua supremacia. Estes foram os que, na
Tanzânia, opuseram aos alemães a resistência militar mais feroz.
A Tanzânia Meridional conheceu então numerosos abalos políticos e sociais
na segunda metade do século XIX. Alguns foram provocados, no início, pelo
35 Ibid., p. 34.
36 A. Redmayne, 1968a, p. 426; 1968b.
303
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
surgimento do comércio de longo curso, e depois exacerbados pela invasão
nguni. A partir de 1880, época da invasão colonial, esta região onde, aa
metade do século, viviam sobretudo sociedades organizadas unicamente com
base na linhagem, compreendia alguns dos mais poderosos reinos africanos, os
dos nguni, dos hehe e dos sango.
Os Massai
Foi dito, no início deste capítulo, que os massai tinham profundamente mar-
cado a história do Nordeste da África Oriental na segunda metade do século
XIX. Não é preciso buscar a razão em um expansionismo que, aliás, declinara
desde o fim do século XVIII
37
. Suas tentativas de penetração na direção sul, nas
primeiras décadas do século XIX, seriam aniquiladas contra o muro de proteção
gogo e hehe
38
. Na metade do século XIX, aqueles dentre os massai que eram
pastores ocupavam as pastagens do Vale do Rift, entre a Tanzânia Central e o
Quênia Central, enquanto que outros grupos (Iloikop ou Kwavi), os quais eram
agricultores, ocupavam as regiões vizinhas a Leste, entre o Kilimanjaro e as terras
altas do Quênia, a Oeste.
O que aconteceu então naquele momento? É preciso pesquisar a explicação
do fenômeno na longa série de guerras civis que estouraram na metade do século.
Não se conhecem ainda as causas, mas podem -se mencionar vários fatores que
contribuíram para criar uma situação nova. De acordo com alguns autores,
que nenhuma ocasião se apresentou permitindo a este povo belicoso estender
sua influência, eles teriam,na ausência de inimigos, voltado a sua agressividade
contra si
39
.” Mas a imagem belicosa dos massai é desmentida pela análise deta-
lhada de sua sociedade, como se verá aqui. É então ao se interessar pelas guerras
civis que se poderão isolar estes fatores.
Até uma data recente, o que sabíamos destas guerras civis vinham do estudo
realizado por A. H. Jacobs entre os massai na primeira metade da década de
1960
40
. Segundo seus trabalhos, estas lutas foram em realidade enfrentamentos
entre pastores e agricultores (iloikop). Os dois grupos falavam a mesma língua,
o massai; mas os iloikop, além de simples pastores, também praticavam a agri-
37 E. A. Alpers, 1974, p. 241.
38 J. omson, 1885, p. 414.
39 E. A. Alpers, 1974, p. 241.
40 A. H. Jacobs, 1965.
304
África do século XIX à década de 1880
F . Os massai e seus vizinhos, 1840 -1884. [Fonte: extraído de R. Oliver e G. Mathew (org.),
History of East Africa, 1963, vol. I, p. 298].
305
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
cultura. Aos olhos dos massai que eram somente pastores, os oloikop tinham
decaído depois que adotaram este novo modo de vida. Desde a primeira metade
do século, os massai pastores formavam um grupo mais estreitamente unido
do que os outros graças ao seu oloiboni, cuja função ritual tinha alcançado uma
grande importância. Era uma personalidade importante que se podia consultar
a respeito de tudo. Aparte aquilo, não existia nenhuma organização política
unificada, nem entre os pastores massai tampouco entre os iloikop. De acordo
com as interpretações de Jacobs, as tradições massai fazem pensar que foi a
modificação da função ritual que marcou o começo da discórdia entre os dois
grupos. Antes da ascensão de Subet, o qual parece ter sido o primeiro oloiboni a
ter um papel político importante, o conselheiro dos massai pastores em questões
rituais podia ser também consultado, em princípio, pelos iloikop. Mas durante
o período em que Subet exerceu sua influência (quase toda a primeira metade
do século XVIII e até em 1864, data na qual Mbatian o sucedeu), pensa -se que
os iloikop tiveram seus próprios oloiboni.
Um estudo posterior de John L. Berntsen
41
mostrou que a divisão entre os
massai pastores e os massai agricultores nunca foi permanente. Segundo ele,
fazer da história dos massai uma mera rivalidade entre pastores e agriculto-
res “leva a instransponíveis contradições. Todos os massai eram pastores antes
de uma batalha ou de uma campanha de ataques; a perda de seu rebanho ou
a impossibilidade de acessar suas pastagens no Vale do Rift (grande fenda)
obrigou alguns grupos a recorrerem a outras fontes que a criação de gado para
completar seus meios de subsistência
42
.” Dito de outra maneira, a sociedade
massai no século XIX era muito mais complexa do que o haviam indicado os
trabalhos anteriores, deste modo, alguns grupos reconhecidos como iloikop em
um certo período podiam se tornar pastores em um outro, dependendo de sua
capacidade de reconstituir seu rebanho e oferecer -lhes novamente ricas pasta-
gens. Contudo, após as guerras do século XIX, os grupos massai mais numerosos
foram expulsos do Vale do Rift e continuaram sua vida semipastoril durante
o período colonial
43
. Para evitar qualquer confusão, consideramos estas guerras
sob o ângulo das alianças que tinham por objetivo o domínio do rebanho e das
pastagens indispensáveis à vida pastoril.
As causas do conflito, sem dúvida, foram diversas. A primeira série de guer-
ras aconteceu no planalto ocupado pelos uasin gishu, iniciada talvez por um
41 J. L. Berntsen, 1979.
42 Ibid., p. 49.
43 Os arusha são um bom exemplo. Ver P. H. Gulliver, 1963.
306
África do século XIX à década de 1880
desacordo relativo ao tópico das pastagens. Os pastores massai do Vale do Rift
poderiam ter desejado se apropriarem das pastagens do planalto que eram uti-
lizadas pelos uasin gishu, os quais eram também massai. Estes receberam o
apoio de outros grupos de língua massai vivendo no planalto. Finalmente, os
uasin gishu foram expulsos do planalto e rechaçados para outras regiões. se
viu como alguns deles serviram para reforçar o reino wanga antes da chegada
dos mercadores da costa.
A segunda série de guerras iniciou -se após a célebre fome de 1836, a qual
afetou numerosas regiões da África Oriental. Parece que muitos dos ataques
eram realizados apenas com o objetivo de reconstituir os rebanhos aniquilados
pela seca. Conflitos explodiram então em toda a extensão do território massai.
No Sul, os massai do Vale do Rift fizeram incursões contra os grupos instala-
dos mais ao Leste, na direção do Pangani. Eles conseguiram expulsar aqueles
de Kabaya, de Shambarai e de Naberera, obrigando -os a passar pelo o Leste
do Pangani, aas planícies do Kilimanjaro e Taveta. Foi nesta mesma época,
provavelmente, que os arusha se instalaram nas encostas do monte Meru. Ao
Norte, os laikipia foram atacados. Mas o grosso do conflito se desenrolou de
1860 a 1864 entre os purko e os losegalai, os quais viviam numa região que
se estende do lago Nakuru à vertente abrupta do Mau. Alguns dos losegalai
refugiaram -se em território kipsigi e nandi. De acordo com algumas tradições
recolhidas por Jacobs
44
, foram estes refugiados massai que transmitiram aos
nandi a instituição do oloiboni, denominado entre eles de orkoiyot; aquela seria a
origem de seu poderio no momento em que a de seus vizinhos massai estavam
em declínio.
O fim desta segunda série de guerras foi um marco na história dos massai
que perderam definitivamente o controle quase exclusivo do planalto de Uasin
Gishu; e o anúncio do crescimento de outros grupos nilóticos, como os nandi e
os kipsigi. Este desaparecimento da presença massai no planalto permitiu então
aos mercadores do litoral de seguirem as rotas do Quênia que tinham evitado
até então.
A última série de conflitos entre massai teve igualmente como palco os
planaltos setentrionais. Mbatian sucedera Subet como chefe ritual, em meados
da década de 1860
45
. Numerosas alianças se formaram: primeiramente, a dos
pastores purko e kisongo; depois a dos laikipia e de alguns grupos iloikop, os
44 A. H. Jacobs, 1965.
45 A. H. Jacobs (1965) estima, segundo a cronologia das gerações, que Subet morrera em 1864. Por sua vez,
D. A. Low (1963, p. 306), baseado em algumas fontes, situa a sucessão de Mbatian em 1866.
307
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
quais haviam sido expulsos das boas pastagens e forçados a serem, ao mesmo
tempo, semiagricultores e pastores. Desde 1884, as comunidades pastoris tinham
assumido o controle e os iloikop haviam sido dispersados por todos os lados.
Esta longa sequência de guerras teve então por consequência a eliminação
dos poderosos grupos massai que evacuaram notadamente os planaltos seten-
trionais. Os sobreviventes se dispersaram para muito longe: do do Kili-
manjaro a Taveta e às planícies do Pare e do Usambara no vale do Pangani, de
Arusha à parte meridional da estepe massai que se estendia até o litoral. São
eles que a literatura existente sobre os massai designa sob o nome de iloikop ou
kwavi. A maioria daqueles que terminaram seu exílio ao Norte e a Oeste foram
assimilados por outros grupos.
A vitória dos pastores massai não deve, contudo, criar ilusão. É certo que,
após as guerras que evocamos, seu território se encontrou, ele também, ampu-
tado. Haviam abandonado as regiões localizadas a Leste do Kilimanjaro, assim
como os planaltos de Uasin Gishu e de Laikipia. O Vale do Rift, as planícies e
os altos planaltos permaneceram, no conjunto, sob seu controle, mas com uma
população muito reduzida. Enfim, outra consequência funesta de todas estas
guerras, foram as doenças, atacando homens e animais, e que infestaram toda a
região e solaparam seu poder. Nas vastas regiões que tinham percorrido quando
dos seus ataques, os massai haviam entrado em contato com inúmeras popula-
ções, favorecendo deste modo o contágio e a propagação de novas doenças. Em
1869, por exemplo, o cólera, que haviam contraído dos samburu, os dizimou
46
.
Mas foi em 1880 que se abateu sobre eles a pior peste, quando uma terrível
epidemia de varíola eclodiu no mesmo momento em que seus rebanhos morriam
de pleuropneumonia. No final das contas, foram todas estas epidemias, muito
mais do que as guerras, que derrubaram o célebre poderio massai, de modo
que à época em que o colonialismo impôs sua lei, ele era não mais do que uma
lembrança.
Pressões europeias
Entre 1845 e 1884, a pressão europeia na África Oriental procurara quatro
objetivos estreitamente ligados: a abolição do comércio de escravos, a propa-
gação do cristianismo, a exploração geográfica e a instauração de um comér-
cio legítimo”. Eles estavam ligados na medida em que demonstravam todos
46 D. A. Low, 1963, p. 308.
308
África do século XIX à década de 1880
a vontade de expansão do capitalismo europeu, este por sua vez oriundo da
revolução industrial: novos meios de produção tornaram o trabalho escravo
menos rentável, e seu comércio inspirava somente a reprovação. Seu pretenso
espírito humanitário tinha levado os países ocidentais a abolirem o tráfico
transatlântico e, nas décadas de 1840, começaram a preocupar -se em por um
fim ao da África Oriental. Por outro lado, o movimento evangélico que andava
junto com a corrente humanitária, interessou -se também, em meados do século
XIX, pela África Oriental. De fato, a exploração geográfica, estimulada pela
curiosidade científica e o evangelismo, abria perspectivas promissoras à nobre
ambição daqueles que missionários ou “comerciantes legítimos” desejavam
suprimir os horrores do tráfico praticado pelos árabes.
O “comércio legítimo” era aquele de mercadorias outras que seres humanos.
Viu -se, entretanto, como o marfim tornara -se um dos produtos essenciais do
qual vivia o comércio internacional na África Oriental. Depois que Sayyid
Sa‘īd transferiu sua capital de Omã para Zanzibar, as potências ocidentais da
época – Grã -Bretanha, Estados Unidos da América e França – abriram missões
comerciais em Zanzibar. A quase totalidade do marfim continuava a transi-
tar por Bombaim antes de ser encaminhada para a Europa, pois os indianos
permaneceram como os principais comerciantes na África Oriental. Todavia,
este comércio, olhando -o de mais perto, fazia praticamente parte do sistema
imperialista ocidental dominado pelos britânicos, seja diretamente desde Zan-
zibar, seja por Bombaim
47
. O volume dos negócios realizados pelas empresas
americanas e alemãs (Hamburgo), especializadas umas em tecidos de algodão
barato e outras em quinquilharias, era menor do que aquele dos mercadores
indianos
48
. A estrutura deste mercado permaneceria inalterada até o final do
período em questão.
O governo britânico quis abolir o tráfico de escravos. Antes de 1840, os
britânicos tinham tentado em vão impedi -lo fora da região submetida à
autoridade do sultão de Omã. O coronel Atkins Hamerton, que, em 1841,
fora nomeado cônsul da Grã -Bretanha em Zanzibar, esforçou -se por anos em
alcançar um novo acordo com o sultão de Zanzibar que tinha transferido sua
capital de Omã para Zanzibar em 1840. Foi somente em 1845 que foi enfim
assinado o Tratado Hamerton, com o intuito de interditar o tráfico fora das
possessões do sultão. Mas mesmo se os britânicos tivessem os meios de fazer
com que o respeitassem, teria tido apenas um efeito muito limitado que a
47 R. Robinson e J. Gallagher, 1961, p. 51.
48 R. Oliver, 1952, p. 1 -2.
309
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
soberania do sultão se estendia da África Oriental até a península Arábica. E
como, além disso, o sultão não desejava que este tráfico cessasse, não era nada
fácil impor -lhe as limitações conveniadas. Sayyd Sa‘īd morreu em 1856; seu
império se dividiu em dois, e a parte leste africana coube a Sayyid Majid. Este
não estava disposto a aceitar a abolição do tráfico; ele teve a ideia, para melhor
controlá -lo, de construir uma nova capital no litoral, denominada “Porto da Paz
(Dar es Salaam). Ela ainda estava em construção quando ele morreu em 1870. Os
esforços empreendidos para abolir o tráfico permaneceram sem efeito até 1873.
Nesta data, os britânicos, depois de terem acentuado suas pressões diplomáticas
e suas ameaças, conseguiram obter de Sayyid Barghash, sucessor de Majid, um
decreto abolindo o tráfico de escravos pelo mar.
Por que teria sido tão difícil obter esta decisão do sultão? A resposta é evi-
dente, considerando -se a expansão da economia de plantation em Zanzibar e
em Pemba. Ela baseava -se no trabalho escravo. Por isso, qualquer restrição a
seu recrutamento podia frear o crescimento da economia. Sabe -se que esse
tipo de agricultura continuou a estender -se depois do decreto de 1873
49
. Com
o tráfico de escravos ainda lícito no litoral, os comerciantes podiam encaminhar
os escravos a grandes distâncias ao longo do litoral, entre Kilwa e Mombaça
ou mesmo Malindi, e os fazer passar contrabandeados para Zanzibar e, sobre-
tudo, para Pemba, em pequenos barcos e em travessias noturnas para evitar as
patrulhas britânicas. Apesar da interdição deste comércio no continente em
1876, nem o sultão nem os britânicos tinham os meios de fazer efetivamente
valer os decretos. As plantações de cravo -da -índia nas ilhas, haviam aumentado
a necessidade de víveres do continente, sobretudo de cereais. É deste modo que
se viu aparecer ao longo do litoral, de Pangani a Malindi, lavouras de cereais
cultivadas por escravos. Era, então, impossível à época distinguir entre os escra-
vos destinados a venda e aqueles destinados ao trabalho nestas plantações
50
. Para
agravar a situação, este período foi testemunho de conflitos internos em muitos
lugares do interior, os quais refletiram no mercado um grande número de cativos.
Os traficantes encontravam facilmente o meio de evitar as tropas do sultão e
as patrulhas da marinha britânica. Criou -se, de Pangani a Mombaça, uma série
de entrepostos clandestinos, de onde pequenos barcos podiam navegar à noite
e chegar a Pemba sem chamar a atenção. É, então, evidente que o tráfico de
49 F. Cooper (1977, p. 54) assinala que, em 1877, pouco mais de mil omanianos emigraram de Omã para
Zanzibar.
50 Ibid., p. 126.
310
África do século XIX à década de 1880
escravos permaneceu uma atividade comercial de primeiro plano durante uma
boa parte do período colonial.
As missões comerciais europeias e as patrulhas navais encarregadas de vigiar
os traficantes de escravos não se aventuravam fora da área litorânea e de Zanzi-
bar. Embora os europeus tivessem sem dúvida, por intermédio dos mercadores
árabes, ouvido falar das regiões situadas no interior das terras, estas hes permane-
ciam desconhecidas. Mas os acontecimentos, pouco a pouco, atraíram a atenção
dos espíritos humanitários e dos evangelizadores sobre a África Oriental. Até
1856, eles interessaram -se, sobretudo, pelo problema do tráfico transatlântico.
Mas quando começou a se saber mais sobre as atrocidades do tráfico na África
Oriental, foi para este lado, cada vez mais, que se voltou o interesse geral dos
europeus.
As viagens de David Livingstone na África Central e Oriental haviam con-
tribuído, mais do que qualquer outra coisa, para iniciar o processo. Em 1856,
ele tinha, pela segunda vez, atravessado a África Central: de Angola ao delta
do Zambeze. Antes dele, a Church Missioinary Society (CMS) tinha enviado
três missionários alemães para empreender a evangelização da África Oriental.
Johann Ludwig Krapf chegou a Mombaça em 1844, logo seguido por J. Reb-
mann em 1846, depois por J. J. Erhardt em 1849. Eles abriram uma missão em
Rabai, perto de Mombaça. Em 1856, Rebmann tinha atravessado a planície
Nyika até o Kilimanjaro, foi assim o primeiro europeu a avistá -lo. Quanto a
Krapf, ele tinha ido mais longe em direção sul para visitar o reino shambaa de
Kimveri. Na sequência, ele voltou -se para o Norte até as terras kamba onde foi
o primeiro europeu a ver o monte Quênia. Erhardt e Krapf foram igualmente
para o Sul, até a embocadura do Rovuma; mais tarde, depois de passar algum
tempo em Tanga, Erhardt estava pronto para publicar um mapa da África
Oriental que continha um grande número de informações sobre o interior do
continente. Ele havia recolhido muito material enquanto ele residiu no litoral,
notadamente sobre os Grandes Lagos que ele representava como um mar inte-
rior. Sua carta seria a primeira fonte de inspiração de Burton e de Speke quando
de sua expedição em 1858”
51
.
Estes primeiros missionários tinham feito uma obra de pioneiros; o total de
informações que reuniram revelou -se muito útil para aqueles que vieram depois
deles. A opinião pública, entretanto, permanecia ignorante de todas estas desco-
bertas. Para cativar sua imaginação, foi preciso esperar Livingstone, o qual, em
51 R. Oliver, 1952, p. 7.
311
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
seus escritos e discursos, manchava incansavelmente o tráfico praticado pelos
árabes. Penetrado pela ideologia capitalista da época que exaltava as virtudes
do livre -câmbio, ele defendia o comércio, capaz, de acordo com ele, de ligar a
imensidão do continente africano à Europa cristã; o que livraria os africanos da
pobreza e das humilhações da escravidão. Por isso, em suas viagens, ele buscava
antes de tudo os rios navegáveis que eram, para retomar sua própria expressão,
“vias de penetração para o comércio e para o cristianismo”
52
. A publicação em
1857 de Viagens Missionárias e Pesquisas na África do Sul
53
e seus esforços pessoais
acabaram por convencer alguns membros da Igreja Anglicana a fundar a Uni-
versities Mission to Central Africa (UMCA). Esta fez o possível para por em
prática as ideias de Livingstone. Seus missionários esforçaram -se em penetrar na
região do Zambeze; mas apenas constataram que as embocaduras deste rio e do
Rovuma não eram navegáveis. Depois disso, a missão se instalou em Zanzibar
para se consagrar aos escravos libertos.
O problema destes últimos suscitava o interesse de todas as sociedades mis-
sionárias da África Oriental. Entre 1858 e 1873, a CMS, a UMCA e os padres
do Espírito Santo ocuparam -se dos ex -cativos. A CMS continuou a trabalhar
em Rabai, perto de Mombaça, onde escravos libertos tinham sido enviados de
Bombaim para ajudar Rebmann. A UMCA se fixou em Zanzibar, enquanto os
padres do Espírito Santo obravam em Bagamoyo. Nenhuma destas sociedades
havia atingido o objetivo definido por Livingstone: abrir o interior do continente
ao comércio e ao cristianismo. Todavia, o trabalho estava iniciado. Enquanto as
missões se implantavam primeiro no litoral, outros europeus, inspirando -se nas
experiências dos missionários, empreendiam a exploração das regiões interio-
res da África Oriental. Em 1858, Burton e Speke partiram em busca do mar
de Unyamwezi”
54
, assinalado por Erhardt. Eles atingiram o Lago Tanganica e
Speke também fez o reconhecimento da margem meridional do Lago Vitória.
Em 1862, Speke partiu novamente, em companhia de Grant, para explorar
o Lago Vitória e localizou a nascente do Nilo. Ao descer o Nilo Branco, eles
encontraram Samuel Baker que subia o rio desde o mar. Mais tarde, o próprio
Livingstone entraria, mais uma vez, no coração da África e faria novas des-
cobertas. Estas explorações suscitaram um renovar da paixão missionária. A
constatação da existência dos Grandes Lagos relançou imediatamente o projeto
de Livingstone. Todas as sociedades missionárias britânicas que funcionavam na
52 Ibid., p. 27.
53 D. Livingstone, 1857.
54 R. Oliver, 1952, p. 27.
312
África do século XIX à década de 1880
África Oriental desejavam que barcos a vapor circulassem por estas vias navegá-
veis do interior. Ao revelarem a extensão e a natureza do tráfico praticado pelos
árabes, estas explorações tinham excitado os ânimos. Percebia -se que o interior
do continente não era tão inacessível como Krapf o pensara em relação ao
Quênia, ou como os missionários da UMCA tinham acreditado ao explorarem
o Baixo Shire. Não havia mais dúvidas quanto à existência de rotas por onde as
caravanas se enfronhavam por todo o interior e por onde no retorno traziam os
escravos até o litoral. Mas mais marcante ainda foi a revelação do quanto este
comércio afetava a vida dos africanos.
Depois da morte de Livingstone, as sociedades missionárias britânicas redo-
braram o zelo. Livingstone teve direito a um funeral nacional na abadia de
Westminster; esta cerimônia pública teve um grande impacto: ela inspirou os
pregadores e despertou a paixão do grande público pela obra missionária. A
Scottish Free Church enviou, por sua vez, missões à África Central. A primeira,
em 1875, penetrou nas regiões do Zambeze e do Shire e se estabeleceu em
Blantyre, no Lago Nyasa. As outras sociedades missionárias, as quais tinham já
começado as obras no litoral, rapidamente se expandiram. Em 1875, a UMCA
estabeleceu uma base em Magila, no interior do continente em uma região
que fazia parte do reino shambaa de Kimweri – , e no ano seguinte em Masasi,
na Tanzânia Meridional. Ao mesmo tempo, H. M. Stanley, jornalista anglo-
-americano, aventureiro e explorador, o qual tinha já feito uma primeira viagem
para se encontrar com Livingstone, empreendeu uma segunda viagem para levar
a exploração ainda mais longe. Em 1875, o Daily Telegraph publicou uma carta
sua na qual ele sinalizava o Buganda à atenção das sociedades missionárias.
Vários fiéis ofereceram imediatamente os recursos necessários para o finan-
ciamento de novas missões. Em consequência, a CMS estendeu sua influência
além de Freretown, em Rabai, perto de Mombaça e estabeleceu uma nova
missão em Mpwapwa, no centro da Tanzânia em 1876. De lá, ela pôde chegar
no ano seguinte à capital de Mutesa. A London Missionary Society, à qual tinha
pertencido Livingstone, decidiu rapidamente seguir os passos deste último e,
encorajada por uma proposta efetiva de financiamento, resolveu ir até o lago
Tanganica, à margem do qual Livingstone passou os últimos anos de sua vida. A
partir de 1877, estabeleceram -se várias missões nos arredores do lago Tanganica:
em Ujiji, em Urambo, na ilha de Kavala e em Mtowa. Infelizmente, tiveram logo
que cessar toda a atividade: os missionários tinham problemas para suportar o
clima, e os interesses políticos alemães opunham -se às suas atividades. A London
Missionary Society restabeleceu -se finalmente na Rodésia, dentro da esfera de
influência britânica.
313
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
Diferentemente dos protestantes, os missionários católicos receberam seu
incentivo, na mesma época, da visão e da energia de um único homem, Mon-
senhor Lavigerie, nomeado Arcebispo de Argel em 1867. Um ano depois, ele
fundou a sociedade dos Missionários de Nossa Senhora da África, conhecida
mais tarde sob o nome de Padres Brancos. Esta sociedade, segundo ele, deveria
ser na África Central o pendão religioso da Associação Internacional Africana,
no interior dos mesmos limites geográficos, entre o paralelo 10° de latitude
norte e o paralelo 20° de latitude sul, e estabelecer suas bases na proximidade
daquelas da organização laica, a fim que as duas pudessem mutuamente prestar
assistência
55
. O primeiro estabelecimento dos Missionários de Nossa Senhora
da África na África Oriental foi aberto em Tabora, em 1878. Os padres do
Espírito Santo, os quais os tinham precedido em dez anos ao se instalarem em
Bagamoyo, esforçavam -se, sobretudo, em criar colônias de escravos libertos,
muito mais do que multiplicar o número de suas missões. No momento então
que os Padres Brancos se espalharam pelo interior, os padres do Espírito Santo
não tinham ultrapassado Morogoro, onde eles haviam criado uma missão “em
Mhond, a uma centena de milhas em direção ao interior
56
.
A partir de Tabora, alguns padres Brancos se dirigiram para o Norte para
criar uma missão em Bukumbi, na margem sul do lago Vitória, e de lá, logo
ganharam o Buganda. Quando de sua chegada à corte do rei Mutesa, eles cons-
tataram que Alexander M. Mackay, missionário da CMS os tinha precedido em
vários meses, que os muçulmanos estavam estabelecidos no país há vários anos
e que um certo número de chefes tinham abraçado o islã
57
. Este encontro mar-
cou o início das rivalidades religiosas entre, de um lado, muçulmanos e cristãos,
e de outro, protestantes e católicos. Mutesa soube arbitrar estes antagonismos
jogando um grupo contra o outro, mas após sua morte, em 1884, eles influen-
ciariam profundamente a vida da corte.
Outro grupo de Padres Brancos, ainda a partir de Tabora, se dirigiu para o
Oeste e abriu uma missão em Ujiji, em 1879, de onde ganhou Romonge, no
Burundi, a 120 quilômetros, mais ou menos, ao Sul da atual Bujumbura; mas
a missão foi abandonada em 1881 depois do massacre de três missionários.
“Os Padres Brancos não puderam retornar à missão durante quase cinquenta
anos
58
. Em 1885, abriram duas outras, próximas daquelas que haviam sido
55 Ibid., p. 46 -47.
56 J. M. Gray, 1963, p. 244.
57 G. D. Kittler, 1961, p. 161.
58 Ibid., p. 157.
314
África do século XIX à década de 1880
fundadas pela Associação Internacional Africana depois da decisão tomada pelo
rei belga, Leopoldo II, de se ocupar, prioritariamente, do Estado independente
do Congo.
Até 1884, a influência europeia na África Oriental exerceu -se primeiro e
antes de tudo pela intervenção das sociedades missionárias. O comércio, mesmo
nas regiões onde se encontrava organizado, aparecia apenas como um prolonga-
mento da obra missionária. Dois exemplos o mostram bem: aquele, em primeiro
lugar, da Livingstonia Central African Trading Company. Esta companhia, a
qual trabalhava em conexão com as missões escocesas da região do lago Nyasa,
parecia ter por função essencial abastecer aquela de Blantyre pela vias nave-
gáveis onde cruzavam seus barcos a vapor e, no retorno, transportar o marfim
que vendia a preços muito inferiores aos praticados pelos comerciantes árabes
que utilizavam a mão de obra servil. O segundo exemplo nos é fornecido pela
Scottish Free Church. Um dos seus membros, William Mackinnon, proprietário
da British India Steam Navigation Company, tinha inaugurado, em 1872, uma
linha marítima passando por Zanzibar. Alguns anos mais tarde, ele obteve do
sultão de Zanzibar a autorização de construir rotas que ligariam o litoral ao Lago
Nyasa e ao Lago Vitória. Embora este projeto nunca tenha sido realizado, ele
foi o germe do qual nasceria, quando da divisão da África, a mais imperialista
de todas as organizações, a British East Africa Company.
Durante o período estudado aqui, os missionários faziam ainda obras de
pioneiros. Na aparência, o trabalho deles parecia ter tido poucos efeitos sobre as
sociedades africanas, mas, olhando mais de perto, percebe -se que sua influência
foi considerável. As sociedades missionárias implantadas na África Oriental
eram então mais poderosas, já que não estavam sujeitas aos obstáculos impostos
mais tarde pelos governos coloniais. Como diz Roland Oliver:
As missões tornaram -se uma potência na região e não somente de ordem espiritual.
No Buganda como em Zanzibar, as autoridades políticas locais eram suficiente-
mente eficientes para estender sua tutela sobre os estrangeiros. Alhures, mesmo os
missionários que partiam com apenas algumas dúzias de carregadores e buscavam se
instalar em uma vila indígena iriam instituir o que, de fato, era um pequeno Estado
independente
59
.
As primeiras missões eram também modeladas pelo esforço que faziam para
criar colônias de escravos libertos. Que estas colônias fossem no litoral (como
em Freretown ou em Bugamoyo) ou no interior (como em Masasi, Blantyre,
59 R. Oliver, 1952, p. 50.
315
O litoral e o interior da África Oriental de 1845 a 1880
Mpwapwa, Tabora ou Ujiji), elas buscavam se estabelecer, sobretudo, perto das
rotas das caravanas de escravos e em tornar os cativos libertos o núcleo das colô-
nias missionárias, em conformidade com a sua intenção de combater o tráfico
de escravos praticado pelos árabes. De fato, estas missões se se transformaram
em Estados teocráticos e atraíram até mesmo os exilados políticos, escravos
fugitivos e aqueles que não tinham encontrado lugar nas sociedades onde elas
estavam implantadas
60
. É, deste modo, que enfraqueceram ainda mais as socie-
dades submetidas às pressões econômicas da época e reduziram, portanto,
sua capacidade de se opor à instauração do regime colonial. De uma maneira
mais geral, pode -se dizer que as sociedades missionárias foram igualmente as
pioneiras deste regime. A maioria dos trezentos europeus instalados no conti-
nente antes de 1884 tinha, pelas suas atividades, relação com os missionários
61
.
Mesmo quando as missões europeias estavam sob a autoridade efetiva de um
chefe local, sua simples existência, sem falar em sua influência cultural, abria o
caminho para as pretensões coloniais do período da partilha da África.
Nesta época, a África Oriental fazia parte, como foi dito, de um vasto
império britânico que ainda não tinha este nome. Ora, perto do final do período
estudado aqui, o acesso da Alemanha ao posto de grande potência ocidental não
fez mais do que exasperar as rivalidades existentes. Estas se traduziam, fora da
África Oriental, em diversas tensões. Quando Leopoldo II, em 1876, reuniu em
Bruxelas uma conferência internacional para discutir as modalidades de uma
intervenção pacífica e orquestrada com o objetivo de desenvolver o comércio
legítimo e de suprimir o de escravos”
62
, as rivalidades já apareciam. Finalmente,
a conferência internacional só conseguiu formar subcomissões nacionais enciu-
madas umas das outras. Leopoldo II se adiantou, então, e criou seu próprio
império no Congo. A operação mais importante foi, em 1882, a ocupação do
Egito pelos britânicos. Para justificá -la, alegaram a posição estratégica do Egito
(com o canal de Suez e o Nilo) para a defesa dos seus interesses na Índia e, em
grau menor, na África Oriental. Mas a reação internacional não se fez esperar.
Ela desencadeou uma série de acontecimentos e, primeiramente, a anexação
pela Alemanha de vários territórios: o Sudoeste africano em abril de 1884 e
o Camarões em julho do mesmo ano. Na África Ocidental, a Alemanha e a
França esboçaram uma aproximação para se oporem aos objetivos britânicos no
Niger. O imperialismo espalhava -se por todos os lados. Quando Bismarck, em
60 Ibid., p. 50.
61 Ibid., p. 49.
62 J. E. Flint, 1963, p. 362.
316
África do século XIX à década de 1880
novembro de 1884, organizou a Conferência de Berlim, o desmembramento da
África havia começado. Na África Oriental, Carl Peters havia desembarcado
em Zanzibar em nome de sua Gesellschaft für Deutsche Kolonisation (Sociedade
de colonização alemã) e tinha entrado no coração do interior para negociar
tratados. Os britânicos nutriam ainda a esperança de que, ao consolidar a auto-
ridade de Sayyid Barghash sobre o continente, eles poderiam salvaguardar seus
interesses sem precisar recorrer à colonização.
C A P Í T U L O 1 1
317
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
Na primeira metade do século XVIII, o kabaka Mawanda, rei do Buganda,
tentou estender seu poder às ricas regiões situadas a Leste da zona cen tral de
seu reino. Empreendeu uma grande campanha militar e imediatamente obteve
algum sucesso, colocando a seguir um de seus generais à frente da região de
Kyaggwe para submetê -la ao governo de seu reino. Contudo, o governador de
Kyaggwe encontrou alguns focos de resistência. Durante o mandato de seus
sucessores, diversas áreas caíram sob a influência do Bunyoro, Estado vizinho
situado a Noroeste do Buganda, cujo acesso à imensa floresta do Mabira, em
Kyaggwe, foi assim cortado. No final do século XVIII, o território do Mabira,
situado a menos de 45 quilômetros a Leste do centro da região ganda, tornara -se
foco de concentração das forças de oposição aos monarcas do Buganda, lugar
de exílio e refúgio. Para muitos súditos do reino e estrangeiros, os meandros
obscuros do Mabira constituíam a promessa de uma inversão da situação.
No final do século XVIII, Kakungulu fugiu dos domínios de seu pai, o rei
ganda Semakokiro, sobrinho -bisneto de Mawanda. Tendo conseguido refúgio e
apoio no Mabira, Kakungulu criou, com ajuda de seus partidários, toda uma rede
de alianças com diversos Estados fronteiriços do Buganda; a seguir, lançou uma
série de ataques para conquistar o trono de seu pai. Kakungulu nunca conseguiu
apoderar -se do trono, mas suas atividades contribuíram para o aumento da
agitação em torno dos mais antigos territórios governados pelo Buganda; insti-
Povos e Estados da região dos
Grandes Lagos
David W. Cohen
318
África do século XIX à década de 1880
garam os chefes ganda a tomar medidas punitivas e a reunir sob sua autoridade
as áreas de oposição do Leste e do Oeste; suas atividades talvez tenham, ainda,
exacerbado a violência das relações entre o Buganda e os Estados vizinhos.
Kakungulu não foi o primeiro a tentar transformar um grupo de refugia-
dos no Mabira em força insurgente. De fato, ao recorrer ao Mabira, estava
repetindo uma página do livro de táticas de seu próprio pai, Semakokiro. Cerca
de trinta ou quarenta anos antes, Semakokiro tentara recuperar sua posição
no Mabira, onde soubera obter um poderoso apoio. Seu exílio durara muito
tempo.
Com o distanciamento proporcionado pelo tempo, esse lugar do Mabira onde
Semakokiro organizou seu exílio nos parece ter sido um Estado em gestação. O
processo de formação de um Estado baseado no Mabira foi interrompido pela
própria eficácia com que Semakokiro granjeou apoio para seu projeto; acabou
destituindo do poder seu irmão Junju e assim se tornou kabaka do povo ganda.
A época mais antiga desse exílio de Kakungulu no Mabira e, antes dele, a de
seu pai Semakokiro, fazem -nos pensar na comunidade forte, estável e muito
numerosa que se organizou em torno do general e administrador ganda Semei
Kakungulu em seu exílio” em Uganda Oriental, no início do século XX
1
; ali
encontramos esse caráter ao mesmo tempo tenso e complexo das relações entre
os dirigentes e seus subordinados que caracterizava a vida política do reino de
Buganda no final do século XIX, início do XX.
A história de Kakungulu e de Semakokiro no Mabira, às vésperas do século
XIX, desperta no historiador várias imagens da vida extraordinariamente rica
e complexa da região dos Grandes Lagos dessa época. A primeira é a de um
Estado da região dos Lagos que, ainda em gestação, anexa terras e populações
novas que coloca sob seu domínio e surge como um conjunto de instituições
relativamente jovens. A segunda imagem mostra uma região em plena eferves-
cência que vive com dificuldade a passagem do século XVIII para o XIX. Os
soberanos enfrentavam uma oposição aguerrida tanto de dentro como de fora
de seus reinos. Seus reinados podiam ser breves; eles tinham muito pouco tempo
para estabelecer alianças e administrações eficazes, ao passo que seus irmãos
ou filhos atiçavam a rebelião. A terceira imagem da região é a de feudos ou
reinos que não constituíam entidades sociais e políticas fechadas. As fronteiras
políticas eram muito permeáveis. A vida dos soberanos e a qualidade de vida
dos cortesãos e dos súditos dependiam da natureza das relações entre Estados.
1 M. Twaddle, 1966, p.25 -38.
319
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
F . A região dos Grandes Lagos (segundo D. W. Cohen)
320
África do século XIX à década de 1880
A quarta imagem, por fim, é a da vida social e política pouco conhecida e mal
compreendida, distante das cortes e das capitais da região; ela nos dá uma ideia
do papel do Estado da região dos Grandes Lagos na vida das populações, na
vida privada e na produção, no comércio e nas trocas, no pensamento e na vida
religiosa.
Hoje, como no século passado, essa região da África Oriental e Central hoje
é ao mesmo tempo bem irrigada e densamente povoada. Estende -se da bacia
do Kyoga (centro e norte de Uganda), das encostas do monte Elgon e do golfo
de Winam, no Quênia Ocidental, aos planaltos orientais da bacia do Zaire e
às margens do lago Tanganyika. A região dos Grandes Lagos é uma região
histórica e cultural (bem como o ponto de convergência de duas grandes bacias
hidrográficas) definida por uma família linguística que se reflete nas formas
culturais e, em particular, nos grandes arranjos comuns da organização política
anterior à época colonial. O Estado da região dos Grandes Lagos tinha uma
cultura política, princípios estruturais e uma ideologia autoritária, determinadas
características regionais, notadamente modelos sociais com “castas”, classes e
diversos arranjos pluriétnicos.
A ordem política
No início do século XIX, e, depois, sete ou oito décadas mais tarde, quando
a pressão dos europeus começou a afetar diretamente o destino das pessoas e
dos Estados, a região dos Grandes Lagos era um conglomerado de Estados
com territórios e poder muito diversificados por trás de aparências bastante
semelhantes. Os reinos da região dos Grandes Lagos apresentavam -se como
domínios organizados em torno de um monarca cuja autoridade provinha de
seus laços de parentesco com uma dinastia, e que se rodeava de uma corte e
de conselheiros; a organização em si baseava -se em uma rede hierárquica de
funcionários, artesãos e senhores.
Tradicionalmente centrados nos acontecimentos e funções políticas oficiais
2
,
os estudos sobre a região destacaram os atos de insurreição de Semakokiro e
Kakungulu, bem como dos milhares de seguidores que compartilhavam suas
vidas de exilados e rebeldes. A história de ambos e de seu exílio evidencia a
existência de forças latentes de oposição à autoridade estabelecida e às capitais
2 Os antropólogos e historiadores interessaram -se, sobretudo, pela história política dos reinos da região;
infelizmente, há poucos trabalhos sobre a história econômica anterior à época colonial.
321
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
da região, e permite que abandonemos os conceitos excessivamente rígidos da
área política. Ao começar o século XIX, bem como antes e depois desse período,
o Estado dos Grandes Lagos não era simplesmente a soma de um rei, uma
corte e um país, nem a combinação de uma cultura política com uma ordem
administrativa e uma organização estrutural. A história de Semakokiro e de
Kakungulu é portadora de uma mensagem: o domínio do Estado se define de
maneira essencial pelo conflito interno e externo.
A ordem política da região dos Grandes Lagos evoluiu consideravelmente
durante o século XIX com o surgimento de duas tendências principais. A pri-
meira foi o fortalecimento da coesão e do poder de determinados Estados por
meio do aumento da mão de obra e do comércio, do desenvolvimento de insti-
tuições burocráticas, da eliminação dos fatores de divisão e, por fim, do controle
e do domínio das influências e das forças novas que penetravam na região.
A segunda tendência foi a ascensão decisiva de três ou quatro Estados
Buganda, Ruanda, Burundi e, por fim, o Bunyoro, que vivia o seu renascimento
em detrimento de outros Estados. Essas duas tendências estavam estreitamente
ligadas. No século XIX, a prosperidade desses quatro grandes reinos baseava -se
na reorganização da administração no sentido de uma maior centralização: o fim
das velhas querelas intestinas por meio da eliminação da oposição e a organiza-
ção de campanhas de arrecadação de tributos e de expansão, que solaparam os
conflitos internos; a ampliação do reino por meio da conquista de novas regiões;
a apropriação e incorporação de determinados setores da produção e do comér-
cio da região, e a integração das forças e elementos novos que ali penetravam.
A mudança geral que o século XIX trouxe a esses grandes reinos é ilustrada
notadamente pela duração do reinado dos soberanos do Buganda, de Ruanda,
de Burundi e do Bunyoro. No Buganda, Kamanya reinou durante 30 a 35 anos
a partir do início do século, e seus sucessores, Suna e depois Mutesa, durante
20 e 28 anos respectivamente. Como comparação, recordemos que onze kabaka
ocuparam o trono do Buganda no século XVIII, e muitos deles foram assassi-
nados ou derrubados. A “era dos príncipes” do século XVIII foi sucedida pela
dos “longos reinos”: Kamanya, Suna e Mutesa tiveram tempo de implantar um
embrião de controle, de sufocar a oposição dos príncipes e das facções, e de
começar a desenvolver os recursos do Estado.
Assiste -se à mesma evolução em Ruanda, onde uma “era de longos reinos”
sucedeu -se aos reinos curtos da era anterior. Mwami Yuhi Gahindiro tomou o
poder na última década do século XVIII e reinou durante mais de trinta anos.
Seu sucessor, Mutara Rwogera, exerceu o poder durante cerca de trinta anos; a
322
África do século XIX à década de 1880
F . O Buganda em 1875: a capital do kabaka. [Fonte: H. M. Stanley, rough the dark continent,
1878. vol. I, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres. Ilustração reproduzida com a autorização do
Conselho de Administração da Biblio teca da Universidade de Cambridge.]
F . O kabaka Mutesa, rodeado de chefes e dignitários. [Fonte: H. M. Stanley, rough the dark
continent, 1878. vol. I, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres. Ilustração reproduzida com a
autorização do Conselho de Administração da Biblio teca da Universidade de Cambridge.]
323
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
seguir, Kigeri Rwabugiri permaneceu no trono durante quase quarenta anos até
sua morte em 1895.
O Burundi teve dois soberanos no século XIX: Ntare II Rugamba, que
teria ascendido ao trono no final do século XVIII, e Mwezi II Gisabo, que rei-
nou de meados do século XIX até sua morte em 1908. Acredita -se que quatro
soberanos sucederam -se no trono de Burundi durante o século XVIII. No caso
do Bunyoro, a longevidade dos monarcas é menos evidente no século XIX,
embora Mukama Kabarega, que exerceu o poder de 1870 até sua destituição
pelo Império Britânico em 1899, tenha encarnado a retomada do poder e da
influência regional do Bunyoro durante a segunda metade do século.
Não se deve ignorar o efeito circular que os longos reinos do século XIX
podem ter surtido. O tempo permitiu que soberanos, cortesãos e sua clientela
assentassem o poder sobre bases mais firmes e duráveis, e implantassem admi-
nistrações mais confiáveis. Com o tempo, soberanos e administrações conse-
guiram sistematizar a alocação de recompensas, remunerações e empregos, e
demonstrar ao povo que, para seu futuro e sua segurança, era melhor trabalhar
com o regime do que contra ele o que, em compensação, deu aos soberanos, aos
cortesãos e aos grandes homens do século XIX mais tempo e meios para conso-
lidar seu poder e sua gestão. As coligações e as rotinas tinham mais chances de
perpetuar -se de um reinado a outro, enquanto os soberanos permaneciam mais
tempo no trono. No Estado dos Grandes Lagos, a legitimidade e a autoridade
não repousavam apenas em um ritual de acesso: eram adquiridas com o tempo
graças à construção progressiva de redes de relações sociais. A participação no
Estado envolvia o jogo das instituições do casamento, dos serviços e da clien-
tela; a exploração de novas terras; a implantação de novos circuitos de troca e o
melhor abastecimento das capitais. Todos esses elementos exigiam tempo para
serem desenvolvidos.
Durante a maior parte do século XIX, o Buganda, o Ruanda, o Burundi e o
Bunyoro foram os Estados mais expansionistas da região, e foi essencialmente
a evolução que experimentaram durante esse período que determinou sua con-
figuração no século XX. No entanto, na região, no sentido mais amplo, existiam
mais de duzentos outros feudos, quase todos dotados de instituições políticas
análogas à dos grandes reinos. Alguns desses pequenos Estados transformaram-
-se politicamente no século XIX, aumentando o seu poder em sua esfera de
influência imediata. Outros perderam o controle das forças centrífugas em ação
dentro de suas fronteiras e tornaram -se dependentes de centros distantes. As
capitais e as cortes dos grandes reinos começaram a atrair os dissidentes e insur-
gentes dos Estados vizinhos, aventureiros em busca da ajuda de seus anfitriões
324
África do século XIX à década de 1880
poderosos para derrubar o poder em seu país. Repetidas centenas de vezes, essas
iniciativas contribuíram para o enfraquecimento dos pequenos Estados e para
a expansão dos maiores.
A partir de 1850, a distinção entre grandes e pequenos Estados se – afirmou
à medida que os primeiros monopolizaram os novos recursos vindos de fora
mercadorias, sobretudo armas de fogo, comerciantes e aventureiros europeus,
árabes e suaílis, missionários cristãos e muçulmanos. Os pequenos reinos da
região dos Grandes Lagos acabaram parecendo -se cada vez mais com “jardins”
cultivados por servos ou escravos para pagar o tributo cobrado pelos grandes
reinos, ou simplesmente com campos de manobras para as diferentes forças de
dentro ou de fora da região.
Produção e extração
Essa última observação nos afasta de um terreno que seja apenas político.
Vê -se que, no século XIX, a principal preocupação do Estado era ao mesmo
tempo a produção e as trocas, qualquer fosse o palco desse processo de acumu-
lação, no contexto do antigo feudo ou além das fronteiras administrativas reais
do Estado. O controle da produção e do comércio era o centro das preocupações
de Estados como Ruanda, Buganda, Burundi e Bunyoro à medida que estes
ampliavam seu território e estendiam sua esfera de influência.
nos referimos ao programa de expansão de Mawanda no Kyaggwe. Esse
projeto, elaborado no século XVIII, visava às regiões de produção que escapavam
ao controle do reino do Buganda. O Kyaggwe possuía fibra de casca de árvore,
minério de ferro e artesãos capazes de trabalhar o ferro, além de ter acesso às
terras férteis das ilhas do Norte do Lago Vitória. As Ilhas Buvuma, na costa
do Kyaggwe, eram bastante ligadas às redes comerciais estabelecidas a Leste do
Lago Vitória. A conjunção de forças de produção, mate riais, técnicas e mão de
obra, assim como o acesso aos circuitos comerciais regionais ou seu domínio,
eram as principais preocupações dos Estados da região dos Grandes Lagos na
época pré -colonial.
As taxas arrecadadas nas regiões sob administração regular e fora dos reinos
enriqueciam as cortes e os regimes no poder. No século XIX, a percepção de
tributos e a resistência contra as taxas cobradas pelo Estado criaram, entre as
zonas de produção e as regiões de consumo, um tecido de relações conflituosas
que se superpunha (às vezes desfigurando -as) às redes comerciais que cobriam a
totalidade da região na época pré -colonial. No século XIX, o jogo das cobranças
325
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
efetuadas pelo Estado e da resistência dos produtores e zonas de produção à
prática coercitiva do tributo de Estado é particularmente evidente no âmbito
da produção de alimentos, das trocas de gêneros alimentícios e de seu con-
sumo. Nessa região, merecidamente famosa pela abundância de seus produtos,
é, paradoxalmente, o controle do aprovisionamento em gêneros alimentícios
que se torna o escolho das relações entre Estados, e das relações entre o Estado
e os produtores
3
.
Nos reinos sob administração regular do Estado, tanto a produção espe-
cializada como a não especializada forneciam gêneros alimentícios, bem como
uma grande quantidade de outros produtos, às capitais e cortes. A arrecadação
parece ter sido ora regular, ora irregular, conforme a época. O recebimento de
mercadorias devia acontecer a cada estação; no entanto, em alguns casos especí-
ficos – por ocasião, por exemplo, de campanhas militares, de cerimônias e festas
do rei, ou ainda em caso de fome –, coletavam -se mercadorias de forma especial
para redistribuí -las por intermédio das cortes e das capitais.
No Buganda, parece ter sido criada uma espécie de fazenda do Estado geren-
ciada por funcionários nomeados que tinham de garantir o abastecimento das
cortes de determinados chefes e do palácio do kabaka
4
. Em Ruanda, Nkore,
Karagwe e Burundi, os rebanhos reais, que faziam parte das riquezas do Estado,
forneciam carne, gorduras, leite e manteiga destinados às festas de senhores e
funcionários, suas clientelas e famílias. Nesse caso, tratava -se de uma “produção
gerenciada”, isto é, organizada e regulada pelo Estado. As fazendas de Estado
eram capazes de produzir quantidades conside veis de alimentos e bebidas
em prazos bastante reduzidos, o que faz supor que os níveis de produção eram
elevados assim podiam dar conta de altas demandas momentâneas e que
os organismos de abastecimento eram necessariamente dimensionados com
capacidade ociosa
5
.
Longe de limitar -se a esses setores especializados na produção de alimen-
tos, os sistemas de arrecadação estendiam -se a outras áreas de atividades e à
percepção de tributos”. Seria interessante considerar as atividades econômicas
3 Esse fenômeno é detalhadamente examinado no estudo de D. W. Cohen, 1983. Os dados incluídos
no presente capítulo foram tirados desse estudo, apresentado em junho de 1981 em uma conferência
organizada em Naivasha (Quênia) pela Universidade das Nações Unidas.
4 Esperamos para breve a publicação de um estudo sobre este assunto; apresenta o modo de abastecimento
em suas linhas gerais após o exame de várias fontes.
5 J. Tosh (1980, p. 9) chamou a ateão sobre a produção de excedentes alimentares na África pré -colonial,
refutando a tese segundo a qual os excedentes que serviam para alimentar os arteos especializados, os
caçadores, as caravanas de comerciantes e as cortes eram excedentes normais da produção de subsistência.
326
África do século XIX à década de 1880
F . A casa do Tesouro e os ornamentos reais do rumanyika, rei do Karagwe. [Fonte: H. M. Stanley,
rough the dark continent, 1878. vol. I, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres. Ilustração repro-
duzida com autorização do Conselho de Administração da Biblio teca da Universidade de Cambridge.]
do Estado como um continuum: de fato, a passagem progressiva da cobrança
ocasional dos impostos a um sistema mais regular de arrecadação muitas vezes
anunciava o início de um processo de integração das áreas fronteiriças e de
zonas de produção totalmente novas aos Estados da região dos Grandes Lagos.
Nesse continuum, exemplos de taxações efetuadas no Busoga Central por
agentes do Buganda
6
. Sem dúvida, essas práticas não faziam parte de um pro-
grama regularmente gerenciado; contudo, eram suficientemente correntes e
bem organizadas para não precisarem da intervenção de forças armadas e para
produzirem volumes consideráveis de gêneros alimentícios preparados o que
nos permite supor que havia uma notificação prévia, seguida de um trabalho de
preparação. O Busoga Central taxava essencialmente a banana seca (em idioma
lugosa: mutere), transportada sob forma de farinha ou de bolachas secas ao sol.
Essa prática de arrecadação regular de impostos em uma determinada área teria
obrigado as zonas taxadas a produzirem em proporções muitíssimo superiores às
necessidades do consumo local. Esses “excedentes estratégicos” teriam dado aos
6 O tributo cobrado pelo Buganda é estudado em S. N. Kiwanuka, 1972, p. 139 -153; J. Kasirye, 1959; F.
P. B. Nayenga, 1976; D. W. Cohen, 1977.
327
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
primeiros viajantes europeus a impressão de que havia abundância ilimitada na
região e autossuficiência dos pequenos produtores, bem como a impressão, mais
conhecida, de pompa das cortes
7
. Mas esses observadores não teriam percebido
a estrutura do excedente estratégico”: quem arcava com os verdadeiros custos
de produção de todos os bens e serviços “recíprocos” que o Estado arrecadador
de tributos oferecia às áreas taxadas eram os contribuintes. Além disso, esses
excedentes estratégicos” não constituíam uma garantia de segurança para os
produtores, pois, no século XIX, o Estado -arrecadador da região dos Grandes
Lagos tinha condições de mandar apreender os produtos se, por alguma razão,
os produtores não os entregassem.
Outro exemplo: o da coleta do sal fino proveniente das fontes salinas do Lago
George para as cortes dos reinos do Bunyoro e do Toro
8
, que, mesmo distantes,
não deixavam de exercer um controle vigilante (e às vezes protetor). Sempre
nesse continuum, é preciso apontar a cobrança de tributos irregulares e inespe-
rados em regiões mais longínquas
9
. Pode -se supor que esses tributos incluíam
menos alimentos preparados, como o mutere ou outros alimentos e bebidas que
exigiam muito trabalho de colheita e preparação. Nas regiões remotas, essas
arrecadações eram realizadas como operações militares. Bandos armados, ou
mesmo verdadeiras expedições, esquadrinhavam uma área, recolhiam tudo que
pudesse ser taxado, principalmente gado e homens, mas também as reservas de
objetos de ferro e tecidos de fibra de casca de árvore dos artesãos e comerciantes.
Eram vastas operações de saqueio. Uma das expedições militares organizadas
no Buganda penetrou até o Busoga, onde acampou por vários meses, enviando
grupos de busca aqui e acolá. Dessa vez, o exército encarregado de arrecadar o
tributo permaneceu tempo suficiente naquela área para obrigar a população a
produzir e preparar alimentos e bebidas em tal quantidade que não se tratava
mais de um butim propriamente dito. Os alimentos eram apreendidos pelo
exército de ocupação tanto para sua própria subsistência como para a das cortes
do Buganda. Neste caso em particular, é muito provável que o exército ganda
não tenha permanecido tempo suficiente para incentivar, ou para impor, um
aumento permanente da produção de gêneros alimentícios e outros na região
ocupada. No entanto, permaneceu tempo suficiente para desmantelar boa parte
das estruturas de pro dução do Busoga Central que levará vários anos para
7 Ver, por exemplo, F. D. Lugard, 1893, vol. I, p. 366; H. H. Johnston, 1902, vol. I, p. 248; H. M. Stanley,
1878, vo1.II, p. 142 -143.
8 E. M. Kamuhangire, 1972a, 1972b
9 D. W. Cohen, 1977, p.73 -80.
328
África do século XIX à década de 1880
se reorganizar. Expedições similares foram organizadas a partir da região da
capital de Ruanda no intuito de subtrair provisões preciosas e gado das regiões
independentes do Norte e do Leste, inclusive em torno das margens ocidentais
do Lago Kivu
10
. Acabaram aniquilando tanto a produção como as atividades de
comercialização, e tiveram de ir ainda mais longe à procura de novas fontes de
riquezas.
Essas expedições militares acarretaram, notadamente, o surgimento de rotas
de passagem relativamente regulares em direção às regiões -alvo. Dois ou três
Estados do Sudoeste do Busoga constituíam, antes de mais nada, postos de
aprovisionamento das expedições do Buganda. Esses pequenos Estados podiam
fornecer aos exércitos enormes quantidades de víveres em pouco tempo, e pare-
cem ter -se abastecido nas áreas limítrofes. Por volta de 1860, as áreas situa-
das imediata mente ao Norte dessa rota de passagem foram abandonadas, pois
tinham deixado de oferecer a capacidade de produção necessária para que os
Estados encarregados de garantir o abastecimento da população e do reino o
Buganda pudessem ali se aprovisionar
11
. Em algumas décadas, sob o efeito do
tributo cobrado por grandes reinos como o Buganda, as regiões taxadas teriam
se dividido em duas categorias: aquelas onde a demanda externa de gêneros
alimentícios estimulava a produção e aquelas onde essa demanda enfraquecia
ou destruía suas estruturas produtivas.
Segundo as fontes de que dispomos sobre o século XIX, esse sistema de
tri butação suscitou uma vigorosa resistência nas áreas de produção. Diversas
regiões do Busoga Setentrional e Oriental se opuseram às poderosas expedi-
ções militares ganda, e às vezes conseguiram até repeli -las. No intuito de sugar
ainda mais as ricas regiões do Leste, o Buganda procurou por todos os meios
obter armas de fogo, participou ativamente dos conflitos locais e instalou prín-
cipes vassalos no trono de vários Estados da região. Multiplicou as expedições
militares, que precisavam ir cada vez mais longe à medida que ruíam os antigos
Estados pagadores de tributos. H. M. Stanley testemunhou a resistência à der-
rama ganda nas Ilhas Buvuma, ocorrida quando ele se encontrava no Buganda
em 1875
12
. Durante a maior parte do século XIX, os povos e Estados situados
10 D. S. Newbury 1975, p. 155 -173; anônimo, s.d.; M. C. Newbury, 1975.
11 Faz -se breve alusão a este ponto em D. W. Cohen, 1977, p.116 -117. Esta questão será retomada no
estudo que o autor está preparando sobre o Busoga, 1700 -1900.
12 H. M. Stanley, 1878, vol. II, p. 304 -342.
329
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
F . Batalha naval no Lago Vitória entre os Baganda e o povo das Ilhas Buvuma, 1875. [Fonte: H. M. Stanley, rough the dark continent, 1878. vol.
I, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres. Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho de Administração da Biblio teca da Universidade
de Cambridge.]
330
África do século XIX à década de 1880
nas fronteiras oeste e Noroeste de Ruanda se opuseram à arrecadação regular
de tributos por esse Estado
13
.
Coerção, violência e mercado
A resistência, no século XIX, contra as exigências aparentemente insaciáveis
dos grandes Estados da região dos Grandes Lagos teve como consequência prin-
cipal a queda da produtividade em praticamente todas as regiões taxadas, o que
transferiu para as cortes reais o ônus dos excedentes da produção de alimentos.
De fato, meios mais aperfeiçoados eram necessários para manter em um nível
muito elevado os tributos arrecadados fora das zonas regulares de produção dos
reinos. É claro que essa resistência acarretou um aumento da violência em toda
a região, e parece ter desestabilizado as antigas práticas comerciais em vigor nas
margens – e entre elas – dos lagos Vitória, Kyoga, Lutanzige e Kivu, bem como
ao longo dos lagos salgados do Sudoeste de Uganda; os excedentes de produção
dessas regiões geravam, muito tempo, trocas organizadas
14
. No século XIX,
a região aparece como teatro de uma concorrência acirrada entre dois sistemas
regionais de troca de produtos alimentícios: um baseado no mercado, o outro,
na força militar e na coerção política. No terceiro quartel do século XIX, foi
essencialmente o segundo que se desenvolveu à custa do primeiro. Os soberanos
e as cortes parecem ter desistido de depender dos mercados para seu aprovisio-
namento intrarregional.
No século XIX, as zonas de produção da região dos Grandes Lagos muitas
vezes eram cobiçadas por dois ou três Estados arrecadadores de tributos, e assim
se tornaram palco de rivalidades e conflitos intensos. O tributo sobre as salinas
do Sudoeste da atual Uganda era reivindicado ao mesmo tempo pelo velho
Estado do Bunyoro e pelo novo reino Toro. Portanto, a riqueza desses dois Esta-
dos, baseada no sal, conheceu altos e baixos periódicos durante todo o século
15
.
13 Ver nota 10 acima.
14 Na época pré -colonial, a rede comercial da região dos Grandes Lagos abrangia três circuitos de trocas que
se entrecruzavam: o circuito oriental, que começava nas Ilhas Buvuma e margeava o Lago Vitória pelo
Leste e pelo Sul até Usukuma; o circuito Bunyoro -Kyoga, que se estende do Monte Elgon em direção
às campinas de Uganda Ocidental; e o circuito do Kivu, que vai da orla da oresta da atual República
Democrática do Congo, ao redor dos lagos do Rift ocidental, até o Burundi, Ruanda e as campinas a
Oeste da atual Uganda (ver mapa 11.6). Sobre os circuitos de troca da região, ler os excelentes artigos
de J. Tosh, 1970; A. D. Roberts, 1970b; C. M. Good, 1972; B. Turyahikayo -Rugyeme,1976; E. M.
Kamuhangire, 1976; D. S. Newbury, 1980; J. -P. Chrétien, 1981.
15 E. M. Kamuhangire, 1972b.
331
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
F . Circuitos comerciais da região dos Grandes Lagos (segundo D. W. Cohen).
332
África do século XIX à década de 1880
É muito provável que as regiões do Bugerere, a Oeste do vale do Nilo, e do
Budiope, ao Norte do Busoga, tenham despertado a cobiça tanto do Estado de
Buganda como do Estado do Bunyoro, que procuravam apropriar -se dos cereais,
dos tubérculos, do gado, das bananas e dos produtos elaborados nos quais aquelas
regiões eram ricas. A resistência das regiões do Bugerere e do Budiope atrasou
a integração de sua produção aos Estados do Buganda e do Bunyoro durante
quase todo o século
16
. É ocioso dizer que a invasão simultânea das regiões
produtoras por esses dois Estados foi o núcleo do conflito que os opôs durante
grande parte do século. Em certas áreas, esse clima de rivalidade entre várias
potências da região desejosas de garantir para si os direitos ao tributo agrícola
suscitou diversas estratégias de alianças e de defesa entre os grupos tributá-
rios; em outras, por sua vez, traduzia -se simplesmente em uma diminuição da
população e da produção nas áreas contestadas. Em outras, ainda, as rivalidades
entre as diversas potências que procuraram apropriar -se dos recursos, e entre os
cortesãos desejosos de obter privilégios de arrendamento, certamente levaram
à imposição de taxas muito supe riores às possibilidades de consumo
17
. Um dos
primeiros efeitos da atividade dos europeus na região dos Grandes Lagos seria
o de reforçar a capacidade das grandes potências regionais de cobrar seu tributo
nas áreas afastadas, pelo menos no curto prazo.
Se certas partes da região eram obrigadas a produzir muito mais do que o
consumo local exigia, outras, em compensação, sofriam períodos de escassez
que, longe de serem excepcionais, podiam ocorrer tanto no início da estação
chuvosa como durante anos de colheitas magras. Na parte ocidental do Quênia,
mercados ocasionais eram abertos durante os períodos de crise
18
. Situavam -se
nas zonas compreendidas entre as terras altas, úmidas e seguras, e as terras bai-
xas, secas e menos seguras, que se estendem em arco de círculo entre o golfo de
Winam, a Oeste do Quênia, e o Sul do Busoga; nessa região, eram organizados
mercados ocasionais em tempos de crise para a troca de gado, cereais, peixes,
verduras e produtos manufaturados. Essas trocas estavam nas mãos de grandes
famílias da região onde o mercado era instalado. Foi assim que, no início do
século XX, surgiram os “homens fortes” ou os “pseudochefes”, bem conhecidos
por quem estava familiarizado com a África.
16 A situação do Bugerere é muito signicativa. A. F. Robertson a expõe com muito clareza, 1978, p. 45 -47.
17 As intrigas de corte em reinos como o Buganda bem parecem ter contribuído para levar até áreas remotas
as campanhas de arrecadação de tributos na época pré -colonial. Ver D. W. Cohen, 1983.
18 M. J. Hay, 1975, p. 100 -101. Ver também o livro de L. D. Shiller sobre Gem e Kano no Quênia Oci-
dental, e e Jolue before 1900, livro de R. Herring. O autor do presente capítulo, trabalhando em Siaya,
e Priscilla O. Were, trabalhando em Samia, reuniram provas que apoiam essas informações.
333
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
Nos arredores do golfo de Winam, a escassez de alimentos básicos era fre-
quente, sobretudo nas terras situadas às margens do lago, que tinham uma
estação chuvosa e uma longuíssima estação seca. Pelo menos desde o século
XVIII, as populações foram se deslocando de forma lenta e constante das mar-
gens do lago para as terras altas à procura de áreas mais seguras e mais produ-
tivas, com duas estações chuvosas. Seu avanço só era freado pelos moradores já
instalados nessas terras altas, pelos bandos que iam saquear periodicamente
as riquezas e pelo fato de os migrantes estarem insuficientemente organizados
para tirar proveito de novas terras nas regiões montanhosas. Essa migração ainda
hoje continua. Ela acarreta modificações na produção e no regime alimentar das
populações que se refugiam nas terras altas, uma concentração da população
nessas áreas e o desenvolvimento das comunidades linguísticas do grupo luo. No
século XX, essa região apresentava uma das maiores densidades populacionais da
África rural; daí o esgotamento dos solos e dos recursos em madeira
19
.
Os que não emigravam para as terras altas continuavam a sofrer com a
escassez decorrente de um sistema agrícola precário. Os mercados ocasionais
remediavam um pouco a situação, pois permitiam que a população trocasse
o gado criado nas terras baixas por cereais e raízes alimentícias cujo cultivo
prosperava mais nas terras altas. Dado que, nas terras baixas, o período de fome
correspondia à época de lavrar a terra e semear no momento das primeiras chu-
vas, o que exigia mais mão de obra, esses mercados eram um meio de compensar
bastante depressa os efeitos de uma estação seca prolongada ou de uma colheita
fraca. Graças às trocas regionais, o gado criado pelos habitantes das terras baixas
garantia a continuidade do trabalho agrícola e da alimentação. Para eles, era
fonte de riquezas transformáveis.
As redes comerciais
Em Ruanda, remediava -se a precariedade da situação agrícola por meio de
trocas entre diferentes áreas, etnias e classes
20
. A complementaridade entre pro-
dução e consumo das zonas onde havia excedentes e havia déficit ocasionou o
surgimento de toda uma rede de comunicações, trocas e interações que reforçou
19 É preciso estudar de forma mais detalhada a situação social e econômica do Quênia Ocidental no
século XX, em particular aspectos relativos a demograa, economia rural e problemas de higiene. Para
a Tanzânia, ver H. Kjekshus, 1977.
20 H. L. Vis e al., 1975.
334
África do século XIX à década de 1880
os alicerces do Estado ruandês. Essas trocas regulares propiciaram a manutenção
de economias locais especializadas, bem como de hábitos alimentares próprios
às diferentes etnias ou classes, o que acentuou as segmentações sociais na parte
ocidental da região dos Grandes Lagos.
O Estado de Ruanda arrecadava seu tributo em regiões mais longínquas,
saqueando com frequência as regiões ricas do Norte, do Noroeste e do Oeste,
algumas das quais foram submetidas a sua administração no transcurso do século
XIX. Além disso, Ruanda participava de um sistema comercial centrado no Lago
Kivu. Os comerciantes levavam aos mercados das margens do Lago Kivu e das
Ilhas Ijwi as butega, pulseiras tecidas provenientes do Butembo, situado a Oeste
do lago Kivu. Essas pulseiras do Butembo aos poucos foram sendo consideradas
como moeda e, a partir da segunda metade do século XIX, foram amplamente
utilizadas nas trocas da região do Kivu, enriquecendo os comerciantes de Ijwi e
os fabricantes de pulseiras do Butembo enquanto, ao mesmo tempo, facilitavam
as trocas de gado, gêneros alimentícios e outros produtos em toda a região, que
abrangia o Kivu e Ruanda, onde talvez tenham incentivado a produção
21
.
Parece que um circuito de troca que interligava as regiões situadas na mar-
gem oriental do Lago Vitória passou por processo análogo. Tudo leva a crer
que, no início do século XIX, uma vasta rede de troca de gêneros alimentícios
e outros produtos ali já funcionava há séculos. Essa rede interligava o litoral do
Buganda, do Sul do Busoga e das Ilhas Buvuma, no Norte, ao interior do país
(hoje o Quênia Ocidental) e às regiões de Buzinza, Usukuma e Unyamwezi,
situadas ao Sul do lago (atual Tanzânia). O elemento determinante da configu-
ração dessa rede parece ter sido a revolução agrícola realizada no Estado insular
do Bukerebe, ao Sul do lago, no final do século XVIII ou começo do XIX
22
.
De fato, o Estado do Bukerebe adotou vários cultivos novos, como o milho e a
mandioca, e introduziu na região novas variedades de sorgo e milhete. Deter-
minadas mudanças estruturais inclusive a organização da mão de obra servil
(oriunda do continente) – acarretaram um forte aumento da produção agrícola.
O continente oferecia um mercado para os excedentes do Bukerebe, que tam-
bém comercializava metais trabalhados do Buzinza e gado do Usukuma. As
populações do Buzinza e do Usukuma contavam com a agricultura e o comércio
do Bukerebe para paliar a frequente escassez de alimentos que as afligia. Parece
que essa dependência às vezes levou os agricultores usukuma a acusarem os
comerciantes bukerebe de tirar proveito de sua miséria, pura e simplesmente
21 D. S. Newbury, s. d.
22 G. W. Hartwig, 1976. p. 62 -83. p. 104 -111.
335
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
aumentando, em tempos de fome na região, os preços dos gêneros alimentícios
que lhes forneciam
23
.
Os comerciantes bukerebe eram os principais intermediários no Sul, mas os
transportes e as trocas estavam nas mãos dos Basuba na parte mais setentrio-
nal dessa rede oriental do lago. Extraordinariamente engenhosos e corajosos,
percorriam as águas do Lago Vitória transportando sal, escravos, banana secas,
cereais, feijão, gado, peixe e ferro dos mercados bukerebe, no Sul, para os mer-
cados busoga e buvuma, no Norte
24
.
O monopólio das trocas que os Basuba elaboraram no século XIX nas vias
setentrionais da rede oriental do lago lembra os monolios criados pelos
comerciantes bagabo e bashingo da região dos lagos salgados no que hoje é
Uganda Ocidental
25
. Em ambos os casos, esses povos organizaram, no correr
dos anos, uma diáspora da troca, muito bem estruturada, que lhes garantia o
controle político global da produção e da comercializa ção de sal, sob a prote-
ção e com autorização dos longínquos reinos de Nyoro e Toro. Nos dois casos,
os monopólios comerciais eram desenvolvidos fora da área de influência dos
Estados da região dos Grandes Lagos; não utilizavam nem o esquema nem as
estruturas do Estado para implantar suas redes comerciais; e lhes acontecia
de obedecerem às exigências dos Estados limítrofes nas raras vezes em que suas
áreas de produção, mercados ou frotas sofriam ataques.
As estruturas comerciais bukerebe – na parte sul do circuito oriental – eram
tão interessantes para os outros comerciantes que os mercadores suaílis e árabes
que operavam no Unyamwezi integraram -se a elas. Estimulando o comércio
de escravos e de marfim na região, os recém -chegados acabaram empurrando
para o Sul do lago os comerciantes bukerebe e seu sistema de troca baseado na
produção de alimentos. Foi graças a esses movimentos em direção ao Sul que
os comerciantes suaílis e árabes tiveram seus primeiros contatos com a região
dos Grandes Lagos. Primeiro as mercadorias, depois os comerciantes, invadiram
os mercados e os Estados da região, percorrendo as mesmas estradas estreitas
que os vendedores de sal, a Oeste do Lago Vitória. Contudo, o mais importante
talvez seja que com eles, o marfim e os escravos chegaram ao centro da região
dos Grandes Lagos, onde serviriam de moeda de troca contra armas de fogo.
Professores muçulmanos e cristãos, exploradores, aventureiros e funcionários
23 lbid., p. 107.
24 M. Kenny, 1979.
25 E. M. Kamuhangire, 1972b.
336
África do século XIX à década de 1880
europeus depois trilharam o mesmo caminho, criando novas forças de mudança
em toda a região dos Grandes Lagos.
Enquanto, no litoral leste, o tráfico subia para o Norte atras das pradarias do
Oeste, chegando às populações e capitais da margem setentrional do lago, navios
buganda iam roendo pelas beiradas os monopólios basuba e bukerebe a Leste e ao
Sul, abrindo assim caminho para relões ativas e diretas entre o coração da área
buganda e os comerciantes árabes e sulis da margem sul. Assim, o Bukerebe era
repelido para o Sul por grupos vindos do Unyamwezi e da costa leste, e sua influ-
ência recuava no Norte e no Leste diante das iniciativas expansionistas do Buganda.
A comparação do Buganda com o Bukerebe no culo XIX evidencia um contraste
interessante. Em ambas as regiões, houve, em um determinado momento, trans-
formação da agricultura com vistas a garantir a produção de consideráveis exce-
dentes de neros alimentícios. Porém, enquanto os excedentes do Bukerebe eram
destinados às zonas onde a escassez era grande, mas que podiam proporcionar -lhe
alimentos que o Bukerebe necessitava e não tinha como produzir, os do Buganda
eram apenas instrumento de uma ação potica e social.o serviam de moeda de
troca. A notável organização dos meios de transporte implantada pelo Bukerebe e
pelo Basuba foi gravemente abalada pela intrusão dos Baganda no sistema; estes
o procuraram criar novas estruturas comerciais: impuseram -se pela força.
No século XIX, havia outra ampla rede de trocas centrada na região do
Bunyoro, que se estendia ao Norte e a Noroeste à região de Acholi e do Oeste
do Nilo; a Leste, para além do Lago Kyoga, até o Monte Elgon; e a Sudoeste,
à região dos lagos salgados, e até Kivu. O ferro e o sal parecem ter sido os ele-
mentos básicos desse sistema comercial, mas os gêneros alimentícios e o gado
provavelmente tiveram uma função capital em sua elaboração e seu funciona-
mento. Ao Norte do Lago Kyoga, por exemplo, os Lango produziam excedentes
alimentares intencionalmente, em particular gergelim, para fins comerciais
26
. No
século XIX, essa produção era encaminhada para o Oeste, para Bunyoro, em
troca de enxadas de ferro, que ajudavam a aumentar ainda mais a produção de
gergelim na área de Lango. Um exame atento mostrou que essa superprodução
muito provavelmente era combinada com toda uma série de inovações e aperfei-
çoamentos em matéria de produção e utilização do solo e da mão de obra, bem
como em termos de colheita, cultivos e semeaduras, no intuito de otimizar o
rendimento
27
. De certa forma, tratava -se de uma revolução agrícola comparável,
26 J. Tosh, 1978.
27 Isso pressupõe uma revolução social no plano de cada entidade familiar ou coletiva para reestruturar as
relações sociais no trabalho, a denição das tarefas e o ritmo de trabalho.
337
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
sob certos aspectos, à que ocorreu quase simultaneamente no Bukerebe e nas
Ilhas Ijwi, do Lago Kivu
28
.
Pode -se supor que as pessoas e os grupos que participavam das redes de troca
da atual Uganda ocidental tenham visto no desejo dos Lango de aumentar a
produção de gergelim para fins comerciais um meio para atingir três objetivos:
primeiro, estimular o comércio do ferro com o leste, vencendo o concorrente
de Samia – centro estabelecido à margem do Lago Vitória, perto da atual fron-
teira entre Quênia e Uganda – e, portanto, uma forma de estimular a produção
de ferro no Bunyoro; segundo, criar laços mais estreitos entre o Bunyoro e o
Lango, e talvez até laços de dependência baseados na desigualdade das trocas;
terceiro, por fim, enriquecer com esse comércio, o que, na segunda metade do
século XIX, atrairia para a região o marfim valioso, vindo das encostas noroeste
do Monte Elgon.
Até aproximadamente 1875, as redes comerciais da atual Uganda Ocidental
constituíram a base da influência do Bunyoro sobre uma ampla região, mesmo
durante os períodos em que conflitos internos enfraqueciam o poder dos sobe-
ranos. Em áreas como o Busoga, a atividade comercial se transferiu dos antigos
mercados do Lago Vitória para as feitorias recentemente criadas na bacia do
Lago Kyoga, com ferro dos Nyoro substituindo o dos Samia nos mercados do
Norte e do nordeste do Busoga. Novos estabelecimentos foram criados na bacia
do Lago Kyoga, cuja produção alimentava o mercado nyoro. A expansão da rede
do Kyoga completava o processo de emi gração para o Norte, para o Busoga,
e permitia que uma população acossada se afastasse da área onde o Buganda
cobrava tributo. Mais tarde, essa rede de troca do Bunyoro ou seja, a rede
comercial ocidental que cobria a região do Kyoga – oporia uma forte resistência
aos britânicos que pressionavam a população para fazê -la cultivar algodão.
No Oeste, as atividades comerciais do Lago Kyoga se somavam às trocas
feitas através das campinas da atual Uganda Ocidental e se concentravam na
produção de sal dos lagos do Sudoeste da atual Uganda. Funcionários do reino
do Bunyoro, ou dos pequenos Estados que lhe pagavam tributo, arrecadavam os
impostos sobre a produção, o transporte e a comercialização dos produtos, dos
gêneros alimentícios e do gado, e depois os usavam para financiar seu próprio
comércio
29
. Os soberanos do Bunyoro e do Toro cumpriram um papel ativo
no sistema comercial da região ocidental dos Grandes Lagos sem desmontar
as redes e trocas tradicionais. Alguns livros de história apresentam o Bunyoro
28 Ver G. W. Hartwig (1976) para o Bukerebe, e D. S. Newbury (s.d.) para Ijwi.
29 E. M. Kamuhangire, 1972b.
338
África do século XIX à década de 1880
como reino de pastores e Estado guerreiro; no entanto, o Bunyoro parece ter-
-se integrado, em grande medida, ao mercado regional do qual dependia para
abastecer suas cortes e para continuar a exercer seu controle e sua influência
sobre regiões remotas. O Buganda do século XIX é mostrado, ao contrário, como
exemplo típico do Estado guerreiro, ou do Estado arrecadador de tributos, que
desenvolve dois processos, sem tentar conciliá -los: o de implantação de uma
burocracia interna complexa, e o de estruturação dos mercados externos.
As atividades do Estado do Buganda tendiam a desfigurar ou arruinar as
atividades comerciais no nível sub -regional em torno dos lagos, mas foi também
nessa época que o Buganda começou a ter uma participação mais ativa no que
poderíamos chamar de trocas internacionais na zona que vai das margens do
Lago Vitória à costa leste da África. No entanto, isso talvez não baste para defi-
nir as diferenças que separam o Buganda e o Bunyoro em termos de mercados
comerciais no século XIX. A diferença essencial entre eles reside sem dúvida
na utilização que cada um faz das diversas possibilidades de que dispõe para
passar à frente, em diferentes níveis, na atividade comercial da região. O Bunyoro
participava das atividades dos mercados da região dos Grandes Lagos segundo
modalidades que reforçavam e desenvolviam a organização comercial existente,
ao passo que o Buganda procurava sistematicamente resolver pela via militar as
suas crises de abastecimento em bens e serviços locais. Além disso, o Buganda
entrou na rede comercial internacional que avançava constantemente, a partir da
costa leste, em direção à região dos Grandes Lagos; recorreu a meios que ajuda-
ram a reforçar e desenvolver, no interior de seu território, o sistema em vigor na
costa leste, e acabou conseguindo, em grande medida, excluir o Bunyoro desse
sistema de troca em nível muito alto”. Na verdade, durante a última década do
século, o Buganda conseguiu fazer com que as forças ligadas ao mercado da costa
leste se rebelassem contra o Bunyoro, arruinando definitivamente sua influência
na região, e eliminando desta última o “fator setentrional”, ou seja, os interesses
anglo -egípcios e sudaneses.
Este sistema de troca de alto nível” que funcionava da região dos Grandes
Lagos até a costa da África Oriental gravitava em torno do comércio prove-
niente dos planaltos e para destinados: marfim e escravos trocados na costa
por armas de fogo importadas por intermédio da rede comercial de Zanzibar.
As armas de fogo eram entregues junto com alguns magros lotes de mercadorias
essencialmente reservadas ao consumo da aristocracia: têxteis, pulseiras, louça
e, mais tarde, livros. Durante a maior parte do século, a corte do Buganda con-
seguiu manter sob seu controle a distribuição desse tipo de importações, tanto
dentro como fora do reino, reforçando deste modo seu domínio (e, assim, sua
339
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
influência sobre todos os visitantes que ali se encontravam) sobre toda a vida
social. Aspecto importante: o gosto passou por uma fase de extroversão durante
o período imediatamente anterior à chegada dos europeus à região onde os
Baganda procediam com sucesso conscientemente em alguns casos, incons-
cientemente em outros à integração de sua sociedade ao Império Britânico.
O aumento das desigualdades e das tensões
No último quartel do século XIX, os novos gostos e os imperativos de con-
sumo emergentes entre as camadas inferiores da nobreza facilitariam a influ-
ência europeia na vida não apenas do Buganda, mas de quase todas as partes
dessa vasta região. Durante meio século, as armas de fogo que haviam sido
conseguidas asseguraram a dominação dos Estados mais poderosos sobre as
áreas vassalas e, como em todo o resto da África, abriram caminho para uma
concentração do poder político -militar nas mãos de uma parcela mais limitada
da população. As desigualdades, particularmente flagrantes nas incursões para
capturar escravos, mas importantes em todas as áreas, acentuaram -se em toda
a região dos Grandes Lagos durante as últimas décadas do século. Assim, os
europeus, quando começaram a chegar em grande número à região, viram seu
apoio solicitado não apenas pelos centros detentores de crescente poder, mas
também pelos fracos e pelos desvalidos.
Da mesma forma que havíamos observado, cá e lá, no final do século XVIII,
diversas forças e correntes tentarem resistir aos soberanos dos Estados da região
dos Grandes Lagos e procurarem derrubá -los, as duas ou três últimas déca-
das do século XIX assistiram ao surgimento de uma nova onda de resistência
e conflitos. Durante o último terço do século, era evidente que a crescente
concentração do poder e das engrenagens de comando nas capitais e cortes
provinciais da região dos Grandes Lagos tornava -se cada vez mais insuportável
para a população. A Leste e a Oeste do Buganda, pequenos Estados resistiram
repetidamente às campanhas de arrecadação de tributos realizadas pelo Estado
buganda. Em 1875, H. M. Stanley testemunhou o desastre em que culminou a
campanha do Buganda contra as Ilhas Buvuma. No mesmo momento em que
o Buganda conseguia colocar rapidamente a região visada de joelhos, alguns ali
sabotavam a entrega regular dos tributos ao vencedor
30
.
30 Essas operações são mencionadas em diversas fontes do Buganda e do Busoga.
340
África do século XIX à década de 1880
No Bunyoro, em Ruanda e no Buganda, assim como nos pequenos Estados
do Busoga, o povo se defendia contra as arbitrariedades cometidas pelas capitais
e pelas cortes seja emigrando para áreas mais distantes das regiões habitualmente
atingidas pelas campanhas de coleta, ou para zonas que ofereciam melhores
possibilidades de acesso à terra, a funções oficiais ou ao poder, seja reunindo -se
e fortificando as aldeias, como foi o caso na fronteira entre os atuais Quênia e
Uganda.
Na região do Busoga, circulam milhares de relatos sobre pequenas migrações
de gente do povo que deixa seu Estado para procurar refúgio ou novas condi-
ções de vida em outro lugar; alguns tiveram de mudar -se várias vezes de Estado
durante sua vida. Esses relatos parecem indicar que, nos anos 1820, a “busca
de novas condições de vida era concomitante com uma redefinição das relações
do indivíduo e da família com o Estado no que diz respeito à terra, às funções
administrativas e ao poder
31
. No contexto dessa considerável mobilidade das pes-
soas e dos pequenos grupos que caracterizava o Busoga do século XIX, a corte,
como campo de possibilidades mais amplas, cumpria um papel privilegiado na
vida dos habitantes dos diversos Estados, ou das populações que residiam fora
de suas fronteiras reconhecidas; mas essa situação não permitia que o Estado
afirmasse sua autoridade. Na verdade, durante todo o século XIX, os esforços
feitos pela corte do Busoga no intuito de consolidar seu poder ou ampliar sua
zona de influência foram minados pela facilidade com que numerosos indi-
víduos abandonavam seus laços clientelistas e suas terras e partiam em busca
de melhores condições de vida. É possível que, durante esse período, e ligada
a problemas desse tipo, uma noção evoluída do “Estado” ou “reino tenha -se
tornado um elemento importante do discurso popular. Essa atitude da coletivi-
dade em relação ao poder talvez tenha compensado, até certo ponto, o aumento
do poder das capitais decorrente da monopolização das armas e do fato de as
pessoas das cortes se armarem. Lá e cá, esse distanciamento do poder político
central sem dúvida facilitou importantes modificações nas relações comerciais
e nas atividades de produção; o fato é que, particularmente no âmbito local, a
atividade econômica libertou -se muito do aparelho estatal.
Manifestadamente, no século XIX a resistência à autoridade política estabe-
lecida muitas vezes acarretou, mesmo que apenas por algum tempo, um fortale-
cimento da autoridade dos centros religiosos e um endurecimento das relações
entre poder político e poder religioso em diversos lugares da região dos Grandes
31 D. W. Cohen, 1986.
341
Povos e Estados da região dos Grandes Lagos
Lagos. Esse clima de oposição ou de luta entre diversas instâncias do poder é
muito bem ilustrado pela história da criança possuída Womunafu, na região de
Bunafu, no Busoga, em torno da qual se reuniu uma pequena comunidade. Em
Bunafu, o domínio de Womunafu permaneceu durante várias décadas à mar-
gem do mundo político circundante ao qual se opunha. No entanto, as capitais
políticas vizinhas compartilhavam, em grande medida, as ideias e instituições
em que repousava a autoridade de Womunafu
32
. No Bushu, a Oeste, os conflitos
entre as fontes religiosas e políticas do poder foram em grande parte resolvidos
por meio da integração de elementos antagonistas em um conjunto de peque-
nos territórios sob autoridade ritual de chefes tradicionais
33
. Em Ruanda, no
Bunyoro e no Sudoeste da atual Uganda, as ideias e as estruturas kubandwa
muito eram os esteios da oposição à autoridade das capitais políticas. Fechadas
à ingerência do Estado e ferozmente opostas a seus princípios e atividades, as
organizações kubandwa cumpriram um papel decisivo e às vezes tiveram poder
suficiente para se oporem ao poder político de uma região e triunfar sobre ele.
O mais importante de todos os movimentos kubandwa conhecidos girava em
torno da deusa Nyabingi. Esse movimento nyabingi exprimia a oposição ao
Estado ruandês, que estava institucionalizando sua influência para além do
antigo centro de Ruanda, em particular em direção ao Norte e ao Oeste. Na
fronteira entre as atuais República Democrática do Congo e Uganda, na região
de Kigezi, assim como em algumas partes do Nkore, os adeptos de Nyabingi
organizaram -se para se oporem à expansão do Estado ruandês em seus domí-
nios. No final do século XIX, Nyabingi cristalizou a resistência à autoridade
política em geral, bem como às atividades coloniais europeias tais como eram
sentidas pelas populações da região
34
.
Conclusão
No século XIX, a região dos Grandes Lagos apresentava -se menos como um
cadinho de organizações estatais centralizadas do que como o palco de lutas e
conflitos entre os interesses e as forças ali presentes, tanto dentro como fora de
um determinado conjunto. Por um lado, os Estados rivalizavam -se para impor
sua autoridade sobre as zonas agrícolas vassalas que lhes forneciam produtos tais
32 D. W. Cohen, 1977.
33 R. M. Packard, 1981.
34 I. Berger, 1981.
342
África do século XIX à década de 1880
como sal, gado e ferro, e disputavam as vias de acesso às redes de distribuição e
o domínio sobre as mesmas. Essa luta não opunha apenas os Estados entre si,
mas fazia com que também se enfrentassem Estados e organizações ou empresas
constituídas com base em modelos muito diferentes das estruturas estatais da
região.
Por outro lado, os cidadãos comuns esforçavam -se, por meio de um jogo
complexo de participação e oposição, para definir o espaço político, social e eco-
nômico que podia ser o de suas atividades e de sua segurança. Tanto para o indi-
víduo como para a família, o Estado da região dos Grandes Lagos apresentava -se
mais como explorador do que como protetor. As populações reagiam em função
de suas limitações e possibilidades, reorientando a produção e o comércio de
forma a escapar das exigências do Estado; evacuando os territórios submetidos
a excessivas pressões externas; aderindo às novas comunidades religiosas; pro-
curando refúgios seguros; ou, ainda, apoiando tentativas de derrubada do poder
constituído. No século XIX, a região dos Grandes Lagos não era um conjunto
de Estados, pequenos e grandes, mas também um mundo onde o indivíduo e
a família mudavam incessantemente de mil maneiras e às vezes de forma
imperceptível de atitude em relação à autoridade do Estado, à participação
social, à produção e ao comércio.
O tempo transcorrido dificulta muito a observação precisa da vida coti diana
no século XIX na região dos Grandes Lagos. Contudo, as tendências à mudança
e as forças de mudança – identificáveis na produção e no consumo, no comércio,
nas relações entre Estados, e nas relações entre o povo e as cortes – geravam na
vida cotidiana tensões que não podem ser ignoradas. Essas tensões penetraram
no âmbito doméstico, desencadeando toda uma série de pressões e reviravoltas,
muitas das quais seriam mais tarde interpretadas como consequências do colo-
nialismo europeu.
C A P Í T U L O 1 2
343
A bacia do Congo1 e Angola
1
Os limites da região que aqui estudamos são grosseiramente desenhados
pela costa atlântica a Oeste, pelo Lago Tanganica e pela linha de separação
das águas Nilo -Zaire a Leste, pelas savanas de Ubangui a Norte, e por fim, a
Sul, pelo planalto que marca a separação das bacias do Zaire e do Zambeze. O
período do qual trataremos não pode ser limitado a um tema: não obstante
uma difundida opinião, não podemos apenas ligar o fundamental da história
dos anos 1800 -1880 ao problema do comércio de longa distância e das ligações
com o estrangeiro (nessa época, a economia das sociedades da África Central
permanecia mais centrada na produção do que nas trocas); também não pode-
mos fazer do século XIX pré -colonial uma idade de violência generalizada, em
razão do tráfico, das lutas intestinas etc.: o lugar comum de que a África fora
dilacerada por incessantes “lutas tribais” negligencia o fato fundamental de que
a massa de povos da região levava uma pacífica vida de produtores, através da
melhora tenaz da agricultura, do ordenamento do meio e da exportação dos
produtos das colheitas. Por fim, também não queremos reduzir a história do
século XIX a uma história política, alocada sob o signo de reinos ou de cons-
truções estatais despóticas: se fosse preciso definir um traço político comum às
sociedades da África Central por volta de 1800, mais o encontraríamos em uma
1 Neste capítulo foi adotado o nome de Rio Zaire correntemente utilizado nos documentos do século
XIX.
A bacia do Congo
1
e Angola
Jean -Luc Vellut
344
África do século XIX à década de 1880
F . A África Central do Oeste no século XIX (segundo J. -L. Vellut).
345
A bacia do Congo e Angola
busca, frequentemente questionada, de equilíbrios e de concessões entre poderes
de diversas origens.
Na verdade, uma explanação da história da África Central do século XIX
deve responder a várias exigências. Antes de tudo, deve -se evocar a vida concreta
e as aspirações das sociedades desta vasta região, tal como ela se apresentava no
século XIX. A tônica é então colocada sobre a continuidade entre os anos 1800
e o passado mais longínquo: as mudanças são perceptíveis, mas operam em um
ritmo lento.
Entretanto, por outros aspectos, a história da África Central do século XIX
é marcada por rupturas com o passado. De fato, nos anos 1800 -1880, mais
do que nunca, a região foi integrada à rede das trocas mundiais. O peso das
conjunturas da economia mundial ou de alguns de seus setores particulares se
fez sentir: em certas regiões, ele mudou a direção da história social e política,
marcou o desenvolvimento do setor das trocas e abriu novas possibilidades de
acumulação, mas, em outras regiões, freou a evolução. Logo distinguimos as
primeiras artimanhas de um domínio europeu dos benefícios da economia das
trocas no interior da África Central.
A explanação que se segue buscará, pois, levar em conta uma tripla evolução
que conferiu aos anos 1800 -1880 um cunho particular: história das mudanças
sociais e políticas; história dos fluxos e refluxos da economia mundial, assim
como foram sentidos na África Central; por fim, história lenta de uma civiliza-
ção e, sobretudo, história da diversificação na exploração do meio.
Produção: modelo das populações dispersadas
e modelo das populações densas
Nos anos 1800 -1880, as sociedades da África Central, por sua distribuição,
seu comportamento demográfico, seus sistemas de produção e, por fim, por suas
aspirações, conservavam traços herdados de um passado milenar, dentre os quais
alguns deles apresentam -se ainda hoje. Uma característica fundamental e muito
antiga da vida material na África Central é a desproporção da distribuição dos
homens no espaço: desproporção que se explica pelo jogo de múltiplos fatores
geográficos, econômicos e sociais, bem como pelo contragolpe de acontecimen-
tos históricos. Seria possível discernir as evoluções em curso durante o período
que aqui nos interessa?
No Sul da floresta úmida, no conjunto maciço da floresta clara (miombo na
República Democrática do Congo, mato de panda em Angola) que se estende até
346
África do século XIX à década de 1880
F . Uma aldeia da província de Manyema, a Nordeste do Império Luba, nos anos 1870. [Fonte: V.
L. Cameron, Across Africa, 1877, vol. I p. 352, Daldy, Isbister and Co, Londres. Ilustração reproduzida com
a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
347
A bacia do Congo e Angola
o 16° ou 17° grau de latitude sul
2
, a agricultura do século XIX fornecia apenas
uma parte dos recursos alimentares, sendo a produção agrícola particularmente
pouco intensiva. Esta forma de exploração era aquela que melhor convinha aos
solos pobres da floresta clara, mas ela apenas atendia à sobrevivência de popu-
lações de baixa densidade, segundo nossos critérios do século XX (no máximo
8 habitantes por km
2
). No século XIX, os antigos cereais africanos (eleusine,
milhete e sorgo) ainda formavam o básico das culturas em várias regiões. Com-
plementando a agricultura, a colheita (plantas comestíveis, lagartas, mel, roedo-
res etc.), a caça e a pesca ocupavam um lugar importante na alimentação: em
pleno século XX, o conhecimento dos produtos da colheita ficou muito extenso
nas sociedades da floresta clara.
Na maioria dos casos, as populações de baixa densidade não viveram isoladas.
Elas estavam em contato com grupos mais densos, que derramavam seu excesso
populacional nos territórios vizinhos. De fato, em certas regiões, em superfícies
às vezes fortemente reduzidas (de proximidade imediata de cursos de água, por
exemplo), a agricultura se diversificou e se intensificou, permitindo uma polari-
zação da população, não raro, junto a capitais ou a centros senhoriais.
A longínqua origem destas zonas de povoamento mais intensivo se confunde
com a expansão da agricultura na África Central. Graças à arqueologia ou,
mais tarde, aos primeiros documentos escritos, certas zonas antigas podem ser
identificadas: é o caso do povoamento no que, no século XIX, era uma região
de senhores luba, no vale do Lualaba, ou ainda, na região conga. Em Angola,
no que tange a um período mais recente, dispomos de algumas indicações de
origem missionária ou fiscal. No início do século XIX, por exemplo, na base
(muito aproximativa) do recrutamento das forças armadas, as autoridades de
Luanda tinham estimado que os principais focos de densidade encontravam -se
entre os ambundu, nas regiões de Golungo (60.000 habitantes) e de Ambaca
(37.000 habitantes), e entre os ovimbundo do Bailundu (56.000 habitantes) e
do Bié (“mais de 30.000”)
3
. Na República Democrática do Congo, foi somente
em pleno século XX que se delimitou o corredor” das altas densidades, ao longo
do 5° paralelo sul, na junção da floresta úmida e da savana
4
.
2 Estas orestas claras são resíduos de antigos clímax de oresta seca (muhulu). Elas são caracterizadas
por uma grande proporção de espécies zambezianas. Ver os trabalhos de F. Malaisse e, notadamente, F.
Malaisse et al., 1972.
3 J. C. Feo Cardozo, 1825, p. 352 e seg. Estes números são muito incertos; por volta de 1850, L. Magyar
fornecia uma estimativa muito diferente (1.220.000) da população ovimbundu. A localização dos prin-
cipais focos de densidade nas regiões conhecidas é, entretanto, mais sólida.
4 Ver P. Gourou, 1955.
348
África do século XIX à década de 1880
Apesar da falta de dados precisos, vários indícios levam a crer que o desen-
volvimento das zonas densas foi determinado em um período relativamente
recente que o século XIX se inscreveu, na verdade, na crista de um movimento
de impulsão encetado somente alguns séculos. A tecnologia do ferro, carac-
terística dos sistemas agrícolas bantos, se generalizou, verdadeiramente, apenas a
partir do século XV. Na África Central, as fontes de história oral são unânimes
ao designar os séculos XVII e XVIII como uma época de transição para as
sociedades da savana e dos Grandes Lagos: colonização de novas terras, fun-
dações dinásticas, multiplicação de títulos políticos etc. Enfim, todos os focos
de densidade da região, no culo XIX, tinham enriquecido sua agricultura
pela introdução de variedades americanas. Tal inovação permitiu o aumento da
produtividade, graças a uma utilização mais intensiva do solo arável (em várias
zonas densas, colhia -se duas ou três vezes ao ano), graças também à introdução
de plantas de alto rendimento (caso da mandioca).
A cronologia destas transformações não pode, evidentemente, ser seguida
ao pé da letra: de acordo com as regiões, elas puderam se estender por mais de
dois séculos (1600 -1850), estimativa vaga que pode ser precisada por alguns
marcos. Aproximadamente em 1800, sem vida, todas as variedades ame-
ricanas (milho, mandioca, batata doce, feijão etc.) não haviam sido adotadas
da mesma forma em todos os lugares, porém parece que nenhuma região as
ignorou completamente. Aliás, ocorreu que as plantas americanas foram incor-
poradas a ponto de não mais serem percebidas como importações estrangeiras.
Foi o caso da região conga. Dispomos, pelo baixo rio, do primeiro inventário
sistemático de uma flora da África Central (expedão Tuckey, 1818), que
confirma o uso difundido das variedades americanas. Na época colonial, um
inventário detalhado da agricultura conga destacava que rias importações
americanas (amendoim, batatas doce etc.) eram percebidas na cultura oral
como sendo de origem local, bem como os inhames ou voandzou
5
. Entretanto,
alhures, provérbios ou ritos lembram, ainda hoje, que o fundo agcola africano
precedeu os empréstimos americanos dos séculos XVIII e XIX: segundo um
provérbio mongo, bonfo áfókité ngámo (a mandioca doce nunca se torna
inhame), ou seja, um estrangeiro nunca conhece os costumes e a língua como
um autóctone
6
.
5 V. Drachousso, 1947.
6 G. Hulstaert, 1976.
349
A bacia do Congo e Angola
Demograa, sociedade e política das zonas densas
O desenvolvimento das sociedades agrícolas mais complexas teve importan-
tes consequências para a demografia da África Central. Geralmente, estima -se
que as sociedades em que a agricultura e a pecuária foram introduzidas progres-
sivamente conservaram por muito tempo uma baixa taxa de crescimento (entre
0,05 e 0,10 % ao ano), bastante próxima da taxa conhecida pelas sociedades
de caça e de colheita. Por outro lado, as sociedades com uma agricultura mais
diversificada conheceram um crescimento claramente mais rápido, estimado
entre 0,10 e 0,15%. Os números referentes a um meio natural difícil como o da
África são desconhecidos, mas, sem dúvida, eles não se distanciam muito deste
modelo. Estendida por mais de dois séculos, uma aceleração da taxa de cres-
cimento desta ordem teria tido uma importância considerável sobre o número
global da população da África Central
7
.
Certamente, tais números parecem baixos em relação às taxas do século XX.
Ocorre que a mortalidade permanecia alta nas sociedades africanas antigas. Em
relação ao século XIX, os principais fatores de mortalidade são conhecidos, mas
não é possível atribuir a cada um deles a dimensão de seu papel no conjunto.
Em primeiro lugar, fatores históricos e, sobretudo, o tráfico e a violência que
o acompanhava. Enquanto a hemorragia do tráfico de homens para a Amé-
rica era reduzida de maneira decisiva a partir de 1850, o tráfico suaíli e árabe
substituiu -o a Leste e a Norte da região em questão. Podemos avançar números
de perdas globais para o conjunto da África Central
8
, mas, sem dúvida, perma-
necerá impossível situar tais perdas geograficamente, tanto mais que os movi-
mentos contínuos dos grupos e dos indivíduos disseminaram, em larga escala,
o impacto do tráfico.
Em seguida, intervieram fatores ecológicos e epidêmicos. Sem dúvida, o
século XIX assistiu aos primeiros passos de um progresso medicinal na África
Central: melhor conhecimento das endemias, maior utilização da quinina e da
vacinação. Entretanto, tais progressos permaneceram limitados aos meios atin-
7 O estudo da história da demograa africana encontra -se ainda no início: provisoriamente, limita -se a
adotar as taxas de crescimento plausíveis, a partir de quadros de natalidade e de mortalidade estabeleci-
dos por sociedades que dispõem de tipos análogos de economia ou de organização social. Para a região
conga, no século XVII, um historiador sugere uma taxa de crescimento situada por volta de 0,20% ao
ano e provavelmente menor para os séculos XVIII e XIX (?): J. ornton, 1977.
8 Na região aqui estudada, o tráco suaíli afetou o Manyema e a bacia do Lomani. Para o conjunto da
África Central e Oriental, certos autores estimam em 1,75 milhões o número total de escravos saídos
da África, entre 1800 e 1870, pelos escravagistas suaílis. J. D. Fage, 1975.
350
África do século XIX à década de 1880
gidos pelos comerciantes de Angola ou da costa suaíli. No total, estas mudanças
ficaram demasiadamente restritas para fazer com que as grandes endemias ou
as ondas epidêmicas batessem em retirada
9
.
No século XIX, o crescimento era, pois, ainda lento, porém, sem dúvida, mais
marcado que antes, pois se desenvolveu a partir da base, relativamente elevada,
atingida pela população da região. Como antigamente, o excedente populacional
foi absorvido por deslocamentos ou colonizações na savana ou na floresta clara,
segundo um modo de expansão que deixou profundos traços na memória cole-
tiva (tradições de migrações”); ou absorvidos, também, pelas regiões praticantes
de uma agricultura mais diversificada e capazes, desde então, de capitalizar
seus excedentes demográficos”, segundo a expressão de P. Gourou. Aqui, uma
ocupação mais sedentária conseguiu vencer definitivamente a hostilidade dos
meios que já tinham sido progressivamente ordenados ao longo dos anos, e que
doravante se tornariam favoráveis à ocupação humana
10
.
Esta história material e a história política e social da região esclarecem -se
mutuamente, sem que haja determinismo em um único sentido. Em certos casos,
uma zona de densidade desenvolveu -se servindo de suporte a organizações polí-
ticas hierarquizadas. Esse foi o caso de duas densas regiões, Mangbetu e Zande,
no Nordeste da República Democrática do Congo. No vale do Mbomou e até
o Uele, no Sul, a região zande conhecia no século XIX uma densidade relati-
vamente forte, apesar de guerras mortíferas (nos anos 1870, G. Schweinfurth
estimava a densidade em 40 habitantes por km
2
). O sistema agrário dos zande
era mais antigo que o poder militar dos avungara, que tinham começado a
unificar a região a partir do final do século XVIII. Mas, sob o regime deles, o
termo “zande” tornou -se sinônimo de agricultores -súditos: estes desenvolveram
uma agricultura de alta produtividade, capaz de nutrir uma população que cres-
cia rapidamente, à medida que as razias e o comércio de escravos, praticados pela
aristocracia guerreira, acumulavam os cativos e os dependentes.
Nas regiões das colinas, a Oeste e a Leste do lago Kivu, o século XIX foi uma
época de colonização de novas terras: observamos isso entre os shi, tal como
no Burundi e em Ruanda. Notadamente, a agricultura shi conservava algumas
9 Nosso conhecimento das epidemias permanece fragmentário: somente a epidemia de varíola de 1864-
-1865 foi relativamente bem documentada. Ela se propagou a partir de Luanda, no Golungo, no Bié, no
país congo e até a Namíbia; podendo ter causado até 25.000 mortes em um ano (D. Wheeler, 1964, p.
351 -362). Na ocasião de sua viagem à mussumba (capital do Império Lunda), em 1885 -1886, Carvalho
reuniu dados sobre a varíola nesta região. Segundo ele, a doença assolava sobretudo após as guerras e
devido ao hábito de deixarem os corpos sem sepultura.
10 P. Gourou, 1971, p. 89 -90.
351
A bacia do Congo e Angola
F . Tambores reais do reino kuba, no século XIX. [Fonte: J. Vansina, Art history in Africa, 1984,
Longman, Londres. Institut des Musées nationaux du Zaïre (INMZ), n° 73.381.1, n° 73.381.2, 70.8.2 (da
esquerda para a direita).]
variedades das antigas agriculturas praticadas na região: eleusine, sorgo, taro.
Entretanto, no século XIX ou mais tarde, ela absorveu culturas americanas: um
inventário da agricultura shi do século XX revelou trinta e duas variedades de
feijões e quatro variedades de batatas doce, conhecidas antes do período colo-
nial
11
. O século XIX também foi o período de desenvolvimento dos senhorios
ou de pequenos Estados entre os shi. P. Gourou e J. Vansina observaram, em
outros contextos (Ruanda e Kuba), que os fatores políticos puderam encorajar,
simultaneamente, uma aceleração do crescimento demográfico e uma intensi-
ficação da produção: mostrava -se necessária uma agricultura de produtividade
mais alta para nutrir os clientes, dependentes e cativos que se concentravam nas
11 J. B. Cuypers, 1970.
352
África do século XIX à década de 1880
capitais ou nos domínios dos senhores. Este fator político pode ter ocorrido
entre os shi do século XIX.
O movimento não foi, pois, em um único sentido: a expansão demográfica,
possibilitada pela produção de excedentes em crescimento, por sua vez, reclamava
uma nova expansão da produção. Por vezes, essa foi concluída à custa de uma
erosão dos poderes políticos. Na parte ocidental da República Democrática do
Congo, conhecemos vários exemplos de regiões que, no século XIX, se tornaram
reservatórios alimentados por uma importante imigração, porém, enquanto o
poder dos chefes se enfraquecia, prevaleceu a acumulação em benecio dos notá-
veis de cs, de linhagens ou mesmo de indivíduos empreendedores. O crescimento
demográfico foi então acompanhado de profundas transformações sociais.
Foi assim que, a Oeste do território luba propriamente dito (ou seja, da região
entre os rios Bushimaie e Lubilash), uma marcha pioneira se desenvolveu no
século XIX. Os imigrantes eram indivíduos, pequenos grupos, linhagens: eles
não apagaram todos os traços dos ocupantes mais antigos, mas onde antes havia
uma grande diversidade de pertences clânicos, progressivamente, no século XIX,
se desenvolveu uma solidariedade de civilização, de língua e de organização
política (basicamente de pequenos senhorios). Um sentimento étnico nasceu
desta experiência histórica partilhada, em que o crescimento da população e
da agricultura, mas, também, o encorajamento dado à empreitada individual,
desempenharam um papel fundamental. Na mesma época, a partir dos pequenos
focos de população densa do alto Tshikapa e do alto Kasai, numerosos jovens
chokwe começaram a abandonar as aldeias (e o poder onipresente dos chefes)
para penetrar na floresta clara, caçar os elefantes, instalar colmeias e colher o mel
e a cera. Graças ao domínio das lavouras, satisfazendo -se com solos pobres (a
mandioca, em particular), as mulheres que acompanhavam esses jovens puderam
cultivar os campos. Frequentemente, elas eram originárias dos pequenos centros
lunda, ao longo dos afluentes do Luembe, do Tshikapa etc.
A assimilação das mulheres lunda no seio da sociedade chokwe ilustra um
fenômeno propagado em todo o “cinto matrilinear”: os descendentes de mulhe-
res cativas não reforçavam o cde sua mãe (isso é o privilégio de um nascimento
livre), mas sim aquele de seu pai. Em toda parte, são numerosos esses descen-
dentes de escravas: entre os congos, são os bana ba nzo (crianças da casa); entre
os chokwe, os ana a tshihunda (crianças da aldeia); entre os pende do Kwilu,
chegaram a constituir a maioria dos membros de clãs ricos e poderosos
12
. As
12 A assimilação dos dependentes é estudada por L. de Sousberghe, 1961.
353
A bacia do Congo e Angola
genealogias revelam que o processo de assimilação dos cativos era mais difun-
dido no século XIX.
Conquista dos solos pobres
Os fatores políticos, bem como as aspirações sociais, ajudam, pois, a com-
preender que as zonas de densidade, às vezes, atraíram a imigração ou, inver-
samente, desempenharam o papel de focos de emigração, facilitando, assim, o
povoamento das zonas marginais ou pouco ocupadas. A conquista dos solos
relativamente pobres foi, aliás, uma das grandes vitórias da agricultura africana
do século XIX. Combinada com a criação de animais domésticos, ela permitiu
a consolidação da ocupação humana, notadamente, nas difíceis regiões do Sul
de Angola.
Este meio se apresenta como uma região árida e arenosa, marcada por um
regime irregular de chuvas. As sociedades do Sul de Angola encontravam -se
divididas em uma grande diversidade de povos, distintos uns dos outros por suas
terras e pela importância variável atribuída por eles à agricultura e à pecuária,
respectivamente. A solidariedade étnica firmada entre os povos da região se
explica por uma experiência histórica comum: experiência política sob a forma
de Estados que se desenvolveram a partir do final do século XVIII e, também,
experiência econômica, ditada pelas semelhanças do meio. De fato, acabamos
por dar o mesmo nome, ovambo, a estes povos cujos mais numerosos eram os
kwanyama
13
, seguidos de longe pelos ndongo, kwambi etc. Todos viviam na bacia
do Cuvelai, em um território limitado pelo Cunene e pelo Cubango (Okavango).
Foram as cheias do Cuvelai e a inundação das savanas ervosas que permitiram
aos ovambo vencer a seca e dar às partes ocupadas da região este aspecto de
jardim, descrito pelos viajantes do século XIX: os ovambo praticavam a irrigação
e, graças à pecuária, o adubo dos campos.
Tal como em outras regiões densas, a passagem para uma agricultura mais
intensiva foi facilitada pela absorção de imigrantes e, notadamente, de cativos
que sofreram as razias no Sul das terras altas ovimbundo. Embora certas plan-
tas americanas (amendoim, feijões, um pouco de milho) fossem conhecidas, as
variedades americanas não haviam penetrado aqui tão profundamente quanto
no centro de Angola. O milhete e o sorgo permaneceram como culturas de base,
resistindo à seca. O poder estava estreitamente ligado ao sistema de produção:
13 Em 1845, o primeiro viajante letrado da região, B. J. Brochado, estimava seu número em 120.000.
354
África do século XIX à década de 1880
“fazedor de chuva”, o rei era também responsável pela divisão das terras e pela
organização dos trabalhos de represamento do rio e dos outros trabalhos de
irrigação
14
.
No término desta evolução, podemos afirmar que as antigas desigualdades
na divisão do povoamento acentuaram -se provavelmente no século XIX. A
existência de um excedente, possibilitado pelo aumento da produção agrícola,
conduziu a um crescimento demográfico bastante rápido em certas zonas, como
o Ovambo, o Ovimbundo, o Luba ou, na República Democrática do Congo,
toda a zona situada em torno do 5° paralelo sul etc. Isso resultou no surgimento
de movimentos migratórios em outras regiões, fenômenos ainda reforçados
pelas diversas influências dos fatores econômicos e sociais. Em alguns casos, os
fatores econômicos encorajaram o avanço da colheita, notadamente a extração
do marfim e a recolha da cera pelos chokwe e, portanto, a dispersão pela floresta.
Em outros casos, como isso se produziu frequentemente nos vales, tais fatores
favoreceram o reagrupamento de uma população heteróclita em centros comer-
ciais e aglomerações. Isso nos leva a examinar, após a produção, a influência que
o comércio e as trocas mundiais exerceram na África Central.
A África Central nos uxos e reuxos da
economia mundial do século XIX
No curso dos séculos em que vimos o estabelecimento progressivo de um
sistema no qual a agricultura, a pecuária, a pesca e a colheita formavam a base
das atividades de produção, sempre existiu na África Central um setor de trocas,
ocupando um lugar mais ou menos importante segundo as circunstâncias histó-
ricas. Em regra geral, a dificuldade e o custo dos transportes, por muito tempo,
limitaram as trocas a alguns produtos preciosos sal, ferro, bens de prestígio
(cobre, estofos de ráfia etc.) –, ao passo que os produtos agrícolas geralmente
não eram transportados por grandes distâncias.
O avanço de uma economia mercantil mundial, a partir do século XVI, pesou
progressivamente na organização da vida econômica em regiões cada vez mais
estendidas da África Central: ainda desse ponto de vista, o século XIX se ins-
creve em uma continuidade, a de relações mercantis desiguais, com o capitalismo
comercial. Entretanto, a partir dos anos 1850, uma profunda mudança foi ence-
14 O trabalho fundamental, no que tange à região, continua sendo aquele de C. Estermann, 1956 -1961. Para
um bom apontamento sobre a questão, no século XIX, ver W. G. Clarence -Smith e R. Moorsom, 1975.
355
A bacia do Congo e Angola
tada. O comércio de homens, pouco a pouco, deixou de constituir o básico das
exportações” da África Central para o resto do mundo. Na verdade, assistimos
a um aumento das trocas, tendo por objeto os grandes produtos da economia
de colheita: marfim, cera, copal, óleo, café etc. A progressão desta economia
comercial é inegável: o valor do movimento comercial dos portos angolanos foi
multiplicado por sete entre 1844 e 1881; o faturamento em espécies do ramo
de Luanda do Banco Nacional Ultramarino foi multiplicado por dez entre 1865
e 1876. Entretanto, no início dos anos 1870, o valor dos produtos de colheita
exportados ainda atingia apenas o dobro das exportações de escravos nos anos
1820
15
.
A amplitude destas exportações de produtos africanos para os mercados
mundiais dependia do estado das redes de comunicação e de troca no interior
do continente. Essas redes, suas convenções comerciais e suas moedas de troca
ocasionaram, por sua vez, o surgimento de grandes espaços econômicos no mapa
da África Central do século XIX, novas “fronteiras” que recobriam e remodela-
vam os antigos espaços políticos e econômicos da região.
Esses novos espaços foram dominados pelas exigências dos centros que
moviam a economia mundial no século XIX: cada um desses espaços domina-
dos possuía suas tradições históricas, suas características políticas e sociais, mas
partilhava com os outros esse traço comum que transformava aspectos impor-
tantes da antiga organização econômica africana, e a unia, de maneira mais ou
menos frouxa, à economia mundial.
Espaços econômicos e redes comerciais
Distinguimos quatro grandes espaços econômicos na África Central dos
anos 1800 -1880. Dois dentre eles foram caracterizados pelo papel importante
que comerciantes muçulmanos neles desempenharam. No Nordeste da região
em foco, encontramos os postos avançados de comerciantes do Cairo, do Mar
Vermelho e de Cartum, que drenaram o Bahr al Ghazal e a região a Sul do
Uele. Tal rede se desenvolveu a partir das expedições comerciais e militares que
o paxá do Egito, Muhammad Alī, havia lançado no Sudão e em Darfur. Por
volta de 1850, a penetração egípcia atingiu o Bahr al Ghazal: aí, os comerciantes
egípcios, coptas e europeus adotaram as técnicas desenvolvidas, desde o século
15 As estatísticas econômicas de Angola do século XIX estão dispersas em numerosas publicações. Para
alguns dados de base, ver R. J. Hammond, 1966, notadamente p. 73 -74, e a bibliograa dessa obra.
356
África do século XIX à década de 1880
F . Munza, rei dos mangbetu, em 1870. [Fonte: G. Schweinfurth, e heart of Africa, 1873, Samp-
son, Low, Marston, Low and Searl, Londres, vol. I, frontispício. Ilustração reproduzida com a autorização do
Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
F . Kazembe em 1831. [Fonte: A. C. P. Gamitto (trad. I. Cunnison), King Kazembe, 1960, Atica,
Lisboa. Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Univer-
sidade de Cambridge.]
XVIII, pelas colunas dos sultões de Darfur. Eles construíram zeriba, postos forti-
ficados avançados ou simples barricadas de plantas espinhosas, que lhes serviam
de pontos de apoio durante as operações de escambo ou durante as razias. Um
viajante europeu, G. Schweinfurth, acompanhou alguns destes comerciantes
durante a década de 1870 e deixou uma documentação preciosa sobre os reinos
xande e mangbetu, no momento de seus primeiros contatos regulares com o
comércio sudanês.
Dentre os traços característicos da rede sudanesa, é preciso assinalar partilhas
de influência entre monopólios de Estado e comércio privado, o uso metódico
na força, graças, em particular, ao recrutamento de mercenários locais, e uma
política de desenvolvimento de plantações comerciais (de algodão, por exemplo):
357
A bacia do Congo e Angola
esses objetivos e métodos estiveram dentre as fontes de inspiração do rei dos
belgas, Leopoldo II, quando ele tentou forjar para si um império comercial na
bacia do Zaire.
Desde os anos 1860, grandes extensões da África Central eram incorpora-
das em uma rede comercial que tinha suas bases nos portos e entrepostos da
costa suaíli do Oceano Índico: Zanzibar, Bagamoyo etc. Os itinerários suaílis
penetraram a região a Leste do Lomami por dois grandes feixes de pistas: um
corredor” atravessava o Unyanyembe, no centro da atual Tanzânia, e atravessava
o Lago Tanganica, notadamente a partir de Ujiji. Uma outra via atingia a região
do Luapula -Moero a partir do Lago Malaui, ou ainda, da região sudoeste da
Tanzânia.
Por muito tempo, a rede suaíli se distinguiu por pequenas caravanas que
residiam na corte de chefes influentes (o chefe lunda Kazembe, por exemplo).
Entretanto, nos anos 1870, assistiu -se ao nascimento de principados comercian-
tes: o mais célebre foi o de Tippu Tip, estabelecido desde 1875 em Kasongo, e
que dominou o comércio de longa distância no Sankuru e no império” luba. Foi
graças à zona suaíli que esta rede se tornaria o primeiro ponto de apoio para a
penetração colonial na parte oriental da África Central.
As duas outras redes que se estendiam pela África Central estavam anco-
radas nos postos avançados mercantis europeus da costa atlântica, fossem cen-
tros portugueses (Luanda, Benguela, Moçâmedes), fossem feitorias holandesas,
francesas, inglesas etc., no baixo rio e ao longo da costa norte de Angola. Esta
última região era basicamente alimentada pelo comércio congo, fundado em
sociedades do Kwango -Kwilu, onde se difundiu um kikongo veicular – o kituba
largamente empregado.
O comércio fluvial se desenvolveu na segunda metade do século XIX, suplan-
tando os antigos itinerários do comércio por vias terrestres. Os ribeirinhos,
particularmente da confluência Oubangui -Zaire, ou do próprio Zaire, na altura
da linha do equador, dominaram sem divisão o comércio por vias fluviais, pois
eram os únicos a possuir e a utilizar pirogas. Estes diferentes grupos difundiram
sua língua, o babangi, que se tornou a língua franca da região do equador e foi
mais tarde adotada pelos colonizadores da região. Eles estabeleceram centros
comerciais (Lukolela, por exemplo), desceram o rio até os mercados tio do Pool
e subiram pelos rios do interior, obtendo marfim e escravos (sobretudo mongo)
e introduzindo nas regiões da floresta úmida grandes produtos do tráfico, até
então desconhecidos: fuzis, anéis de cobre, novas variedades de cultura etc.
Vimos que o tráfico encorajou a formação de pequenos centros de povoação de
cativos, refugiados etc., reunidos em torno de um centro comercial nas margens
358
África do século XIX à década de 1880
F . A África Central do Oeste: espaços comerciais por volta de 1880 (segundo J. -L. Vellut).
359
A bacia do Congo e Angola
F . Mulher da aristocracia kimbundu com sua escrava, nos anos 1850.
F . Guerreiro kimbundo e mulher da aristocracia, nos anos 1850. [Fonte: L. Magyar, Reisen in
Südafrika in den Jahren 1849 bis 1857, 1859, Pest e Leipzig, vol. I. Ilustrações reproduzidas com a autorização
do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
do rio ou, simplesmente, junto a indivíduos enriquecidos pelo comércio
16
: Foi
o caso de Ngaliema, antigo escravo enriquecido, que dominou a região do Pool
por volta de 1880. Quando da ocupação colonial, os postos do Estado, feitorias
e missões recorreram aos mesmos procedimentos e criaram aglomerações de
cativos, segundo aquelas dos antigos pirogueiros.
A rede luso -africana era a mais antiga e a mais complexa na África Central
17
.
Podemos seguir, ao longo do século XIX, as variações do mapa de seus itinerá-
rios. Na primeira parte do século, os principais feixes de pistas ou corredores”
chegavam a Luanda e a Benguela. Três grandes regiões econômicas e culturais
encontravam -se ancoradas nas vias de acesso conduzindo a Luanda: a zona
conga e sua rede mubire” (vili), pelo intermédio dos senhores do Kwango (nota-
damente, holo) e de Encoge, posto fortificado angolano; a zona dos Estados
16 A expressão “grande comércio do rio” deve -se a G. Sautter, que forneceu um primeiro esboço. Trabalhos
mais recentes: J. Vansina, 1973; R. Tonnoir, 1970; e o comentário de B. Jewsiewicki, L’administration colo-
niale et la tradition; a propósito de Giribuma, ver R. Tonnoir, 1974. Ver também G. Hulstaert, 1976.
17 J. -L. Vellut, 1972.
360
África do século XIX à década de 1880
F . Chifre de elefante esculpido, da metade do século XIX, proveniente da costa de Loango, no
Congo/Angola, representando cenas do comércio e dos europeus. [Fonte: J. Vansina, Art history in Africa,
1974, Longman, Londres. e Walters Art Gallery, Baltimore.]
361
A bacia do Congo e Angola
lunda ocidentais, fosse através dos imbangala de Cassange e de um outro posto
avançado angolano, Ambaca, fosse ainda pela região songo e pungo andongo; e,
por fim, a região ovimbundo, em regulares relações com Pungo Andongo e com
os outros postos angolanos do vale do Kwanza. Uma outra via ligava as altas
terras ovimbundu à costa: tratava -se dos itinerários que conduziam a Caconda
e Benguela. Por este corredor”, os comerciantes penetravam no Sul e no Leste,
nas regiões nyaneka, nkumbi e ganguela. Nos anos 1840, os reinos luyi e lunda
foram igualmente incorporados a esta rede.
No curso da segunda metade do século XIX, a rede ganhou uma nova ampli-
tude. Os habitantes da região de Ambaca, ou ambaquistas, começaram a frequentar
a mussumba do Mwant yav, sobretudo sob o reinado de Muteba. Eles recorriam a
uma via direta, evitando Cassange, a partir do novo posto português de Malanje
(1857). Os comerciantes deste posto logo estabeleceram uma estalagem perto de
um senhorio lunda, Kimbundu, a meio caminho da via da mussumba. Com o declí-
nio do comércio tributário lunda e na esteira da expansão chokwe, os ambaquistas
abriram itinerários rumo ao vale Lulua, na região luba, e alcançaram os merca-
dos da periferia kuba. Nessa localidade, abriram concorrência com as caravanas
ovimbundo que, na década de 1870, contornaram o Estado lunda da Kalagne e
comerciaram com os Estados luba, comprando escravos que, em seguida, seriam
negociados por eles junto aos kuba, grandes fornecedores de marfim.
Podemos estabelecer uma hierarquia dos centros comerciais dos grandes
espaços econômicos desenhados pela economia do tráfico, segundo a complexi-
dade e a diversidade das funções ocupadas por eles no seio da economia domi-
nante: créditos aos comerciantes, armazenagem, condicionamento, armamento
de expedições comerciais etc. Luanda, seguida por Benguela e, na segunda
metade do século, Moçâmedes concentravam as operações mais complexas e
eram a sede das principais firmas comerciais. A Luanda do século XIX possuía
traços arquitetônicos e instituições características das cidades portuguesas dos
trópicos, no Brasil, na África ou na Índia. Mas era também uma cidade original
onde o elemento português era frequentemente dominado pela cultura crioula
e africana. Ali, as fortunas eram feitas e desfeitas rapidamente. Um visitante dos
anos 1840 descreveu o baile do governador, no qual se encontrava uma mulher,
enfeitada com ouro e joias, vinda a Luanda como escrava, um homem que estava
na costa como prisioneiro, a bordo de um navio negreiro, e um outro cuja infân-
cia fora passada nas ruelas dos subúrbios populosos de Lisboa
18
.
18 O médico alemão G. Tams, que visitou Luanda em 1841, citado por A. Stamm, 1972.
362
África do século XIX à década de 1880
Aproximadamente em 1850, entre os postos angolanos do interior, nada
alcançava a importância de Luanda com seus 6 a 10 mil habitantes. Nos “cor-
redores” do interior, destacavam -se várias estalagens principais, nas quais eram
feitas as rupturas de carga, onde eram recrutados novos carregadores e onde
era organizada uma importante parte do crédito etc. Era nesses pequenos cen-
tros que se reagrupavam a maioria dos raros europeus e mestiços praticando o
comércio no interior. No interior de Luanda, Dondo era o principal centro de
comércio com a margem esquerda do Kwanza, mas que ganhou importância
durante os ciclos do café e da borracha, e Pungo Andongo: esse último ponto
ocupava uma posição chave, ponto de partida dos comerciantes para a região
dos senhorios lunda e ponto de convergência das vias terrestres entre Benguela
e Luanda
19
. No Sul, Caconda, ocupava uma posição semelhante, orientada desta
vez para os povos do Sul das altas terras ovimbundu, bem como para o Bié.
Esse último reino era um importante centro secundário da rede, onde os carre-
gadores eram substituídos, as mercadorias compradas e os créditos negociados.
Encontrava -se uma colônia luso -africana de uma centena de pessoas, cuja
maioria era de origem africana ou mestiça (mbundu de Golungo, ambaquistas,
mambari” do Bié etc.).
Enfim, nesta rede de comércio tributário, alguns centros (tais como a mus-
sumba, Bunkeya, as capitais dos pequenos senhorios ou os mercados das socie-
dades não centralizadas) constituíam os pontos finais do sistema e eram sede
de intensas transações.
Tal sistema era caracterizado pelos contrastes que aumentavam entre as
zonas monopolizadoras das operações rentáveis – centralização de importantes
quantidades de produtos, manutenção, comercialização e aquelas onde as pos-
sibilidades de acumulação eram mais reduzidas. As regiões privilegiadas apre-
sentavam um aspecto bem diferente das outras: as armas, os estofos e os escravos
domésticos eram numerosos nas primeiras, raros entre as outras. Veremos que
os esforços portugueses para monopolizar os benefícios da rede, eliminando os
“intermediários” africanos, corresponderam com os períodos de recessão econô-
mica. Por outro lado, durante os períodos de crescimento comercial, o essencial
do comércio do interior era conduzido pelos africanos.
Ao longo do século XIX, a rede teve que se adaptar a alguns grandes ciclos
comerciais. Até os anos 1840, assistimos ao nítido domínio do ciclo dos escravos
e da atividade comercial luso -africana correlata. Na verdade, este período foi o
19 J. C. Feo Cardozo, 1825, p. 355.
363
A bacia do Congo e Angola
F . Uma caravana de mercadores ovimbundo durante um pouso. [Fonte: F. S. Arnot, Bihe and
Garengaze, 1893, J. E. Hawkins and Co. Ltd. Foto reproduzida com a autorização do Conselho de Adminis-
tração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
mais desastroso da história do tráfico angolano. O número de escravos expor-
tados anualmente dos portos da África Central (da costa do Loango até o Sul
de Angola), nos anos 1780 -1830, é estimado em um total que oscila entre 15
e 20 mil. O principal importador era o Brasil e o principal fornecedor, Angola.
No século XIX, foi a mão de obra servil angolana que permitiu a expansão da
economia cafeeira do Rio de Janeiro e de São Paulo.
No conjunto, o tráfico atlântico, mesmo clandestino, extinguiu -se ao longo
dos anos 1850, salvo, entretanto, na região do baixo rio, onde ele subsistiu fora
do controle português até o desaparecimento dos últimos mercados escravagistas
da América Latina, por volta do fim dos anos 1860.
Durante o resto do século XIX, as exportações de Angola se limitaram a
alguns produtos agrícolas (café, açúcar) ou, sobretudo, de caça e de colheita,
principalmente a cera e o marfim. Todavia, no último terço do século, o café de
colheita, o copal, o óleo de palma e, logo, a borracha das ervas vieram diversificar
o inventário das exportações dos produtos de colheita.
Mudando as condições da acumulação de riquezas, o desenvolvimento dos
grandes espaços econômicos africanos também acarretou um agravamento da
364
África do século XIX à década de 1880
opressão social. Da mesma forma que na região do rio, ou nas zonas árabe ou
suaíli, a zona luso -africana provocou o desenvolvimento de um setor de produ-
ção escravagista. Certamente, as economias tributáveis da savana conheciam a
existência de um setor parecido: os campos dos principais títulos políticos da
mussumba, por exemplo, eram cultivados por uma mão de obra servil. Entretanto,
no século XIX, a acumulação de cativos por certos grupos privilegiados cami-
nhava frequentemente lado a lado com o avanço de um setor de trocas, mais
ligado ao mercado que ao tributo. Vimos o papel desempenhado pelos escravos
domésticos” na expansão demográfica e agrícola de certas sociedades da região
(Congo, Ovimbundo, Ovambo etc.).
Na sociedade colonial angolana, da mesma forma, o setor escravagista estava
ligado à economia capitalista mercantil e ganhou uma importância assaz con-
siderável na segunda metade do século XIX. Apesar de certas nuances jurídicas
– a escravidão foi formalmente suprimida em Angola em 1878 –, foi principal-
mente o setor escravista que esteve na base do avanço da produção de algodão,
de café de plantação e, sobretudo, de cana -de -açúcar: no fim do nosso período,
foi a cana -de -açúcar angolana, destilada, que forneceu a cachaça indispensável
às trocas do sertão
20
. Nas regiões situadas a Sul das altas terras ovimbundu, foi
ainda a mão de obra servil que alimentou o mercado de trabalho suscitado pelos
primeiros passos da implantação branca.
O imperialismo português em Angola
No século XIX, a existência de grandes espaços comerciais na África Central
e a natureza de suas ligações com a economia mundial são a chave da história
do imperialismo nesta região. De fato, neste período, não se tratava ainda de
imperialismo financeiro, ao menos na África Central, mas de novas formas de
imperialismo comercial. Ao longo do século XIX, distinguem -se algumas gran-
des fases de expansão e de contração das possessões portuguesas em Angola: tais
movimentos mostram claramente as hesitações dos governantes portugueses da
colônia entre dois modelos de hegemonia sobre as economias comerciais africa-
nas. Fosse porque este novo imperialismo português se apresentou como uma
dominação puramente comercial, com uma ocupação administrativa e militar
reduzida no mínimo, e com um único objetivo declarado, aquele de fazer circu-
lar os bens, em colaboração com um setor mercantil africano ativo e ampliado.
20 No original francês, a palavra é grafada em língua portuguesa: “sertão”. (N.T.)
365
A bacia do Congo e Angola
Fosse porque se tratava de inserir as colônias da África no espaço econômico
de Portugal, protegendo o comércio nacional, mas também, e sobretudo, forne-
cendo um mercado às primeiras indústrias portuguesas. Desta vez, a questão era
desenvolver a ocupação, reduzir o papel dos intermediários africanos e encorajar
os mercadores coloniais, diversificar a produção das matérias -primas da colônia,
assegurar um mercado às novas manufaturas da metrópole, sobretudo graças a
uma política de unificação política e administrativa entre Portugal e suas “pro-
víncias” da África. Foi no mesmo contexto de assimilação que se inscreveu a
tendência de apoio aos “colonos brancos” no Sul de Angola.
Ao longo do século XIX, estas duas tendências, ou para a contração, ou, do
contrário, para a expansão territorial, se sucederam em um movimento pendular.
Ocorre que elas estiveram ligadas às conjecturas econômicas e às transformações
estruturais da economia portuguesa. Por certo, os acontecimentos desempenha-
ram seu papel (as derrotas militares infligidas pelos africanos aos portugueses
ajudam a compreender o refluxo da ocupação colonial nos anos 1862 -1872). As
personalidades desempenharam também um papel importante: um tal governa-
dor associou -se a uma política agressiva e de ocupação máxima, outro se associou
ao recuo aos postos costeiros. Todavia, tais fatores ganham sentido quando
inseridos no contexto dos movimentos da economia mundial, sobretudo tais
como afetaram a economia portuguesa: o imperialismo português não escapou
às regras comuns de expansão colonial do século XIX
21
.
Foi assim que a determinação dos protecionistas, preocupados em unir Por-
tugal e suas colônias em um espaço econômico independente das grandes potên-
cias industriais, se traduziu nas primeiras tentativas de colonização branca no Sul
de Angola (e, primeiramente, na costa, em Moçâmedes, e no país nyancka, em
Huíla). Ainda foi o espírito de conquista que dominou os anos 1850, os quais
assistiram aos esforços tenazes da parte dos portugueses para ocupar o terreno
e eliminar a concorrência comercial africana, sobretudo aquela dos imbangala
e dos congos. Somente em 1860 se principiou uma inversão, ao passo que um
período de forte avanço comercial encetara alguns anos antes. Uma política de
retirada portuguesa se generalizou então: durante os anos 1862 -1875, assisti-
mos a um refluxo, pontuado por derrotas militares resignadas dos portugueses
(em Cassange, em 1862, contra os dembo, em 1871 -1872). No início dos anos
1870, o recuo foi geral: a Angola colonial retirou -se no litoral, ao passo que,
21 Esta opinião não é aceita por D. L. Wheerler e R. Pélissier, 1971, p. 51 -83; tais autores dão uma expli-
cação puramente política dos uxos e reuxos da penetração portuguesa em Angola. Esta mesma linha
é adotada por R. J. Hammond, 1969.
366
África do século XIX à década de 1880
no sertão, o comércio se africanizou rapidamente. Assim, Silva Porto, o grande
sertanejo
22
do Bié, perdeu toda sua fortuna nesta época, vítima da concorrência
dos comerciantes ovimbundu. Angola conhecia, neste momento, um rápido
crescimento comercial: entre 1867 e 1873, a tonelagem na descida do Kwanza,
desde Dondo, foi multiplicada por sete.
Mas, logo, a colônia portuguesa se engajou em uma nova fase de expansão
territorial. Desde 1873, entrava -se em um período de contração econômica
mundial e a concorrência comava a se tornar agressiva entre as potências
estrangeiras desejosas de obter uma parte do bolo africano”
23
. Mesmo em
Angola, este período foi inaugurado com uma recessão profunda em razão de
uma seca prolongada e de uma crise do crédito (1874 -1876). Entretanto, foi
também o momento dos primeiros trabalhos para a construção da estrada de
ferro de Luanda, rumo ao interior, e das tentativas para conter, através de acordos
diplomáticos, as ameaças representadas pelos recém -chegados à África Central.
Foi também o momento das primeiras expedições de exploradores” portugueses,
lançadas na esteira dos viajantes alemães, ingleses etc., e realizadas em Luanda e
no interior. A história da África Central se aproximava de uma etapa decisiva.
Poder e sociedade na África Central
(aproximadamente 1800 ‑1880)
Na África Central do século XIX, a história política e social se inscreveu, a
princípio, em uma tradição antiga. Por mais tempo que a documentação oral
e escrita permita remontar, vemos que as sociedades da região hesitaram entre
dois modelos de poder: aquele, hierarquizado, definido e tributário, dos reinos
ou, no outro extremo, aquele, mais igualitário e mais informal, do governo pelos
conselhos de anciões ou de notáveis
24
.
Esses dois modelos eram complementares e, na prática, existia uma grande
variedade de situações intermediárias, hesitações e compromissos diversos.
As exigências do meio e das atividades econômicas, tal como certas circuns-
tâncias históricas e mesmo de pessoas, favoreceram um tipo de organização
22 No original francês, a palavra é grafada em língua portuguesa: “sertanejo”. (N.T.)
23 A expressão é de Leopoldo II e foi citada notadamente por J. Stengers, 1962, p. 490.
24 Para sólidas análises da noção de poder em duas sociedades das savanas do Oeste, os congos e os tio, ver
os respectivos estudos de W. McGaey, 1970, e J. Vansina, 1973.
367
A bacia do Congo e Angola
F . Estátua chokwe representando Chibinda Ilunga, o lendário fundador do Império lunda. Obra
datando provavelmente do século XIX. [Fonte: J. Vansina, Art history in Africa, 1984, Longman, Londres.
Museum für Völkerkunde, Berlim.]
aproximando -se, quer do modelo real (com suas qualidades de ordem e de segu-
rança), quer do ideal democrático, mais flexível e menos constrangedor.
Na época que nos interessa aqui, encontravam -se na África Central alguns
exemplos de sistemas administrativos caracterizados por uma hierarquia estável
e permanente, e capazes de reagrupar uma população assaz numerosa em centros
ou capitais. Tais casos não foram, entretanto, os mais comuns, pois apenas uma
conjunção de vários fatores podia permitir a ascensão de um título político e
368
África do século XIX à década de 1880
a constituição de um Estado. Fundamento material da organização do Estado,
a economia de caráter tributável supunha a existência de um setor agcola
bastante desenvolvido. Entretanto, a agricultura apenas oferecia possibilidades
bastante reduzidas de acumulação. As taxas impostas sobre a produção do sal,
do cobre e do ferro favoreceram contudo um nível de apropriação mais elevado.
O mesmo vale para o tributo arrecadado na ocasião das guerras e das razias.
Por fim, o tributo era recolhido sobre o setor das trocas: o poder dos chefes se
apoiava assim sobre a existência de mercados, de redes de troca e de comunica-
ção que permitiam a imposição de monopólios ou de diversas formas de taxação
e outros pedágios.
O crescimento ou a regressão de um ou outro destes setores ajuda -nos a
compreender o avanço ou, pelo contrário, a erosão do poder dos Estados ou
senhorios no século XIX, como também nas épocas anteriores. O que distin-
guiu o século XIX foi o fato de uma grande mobilidade social ter permitido
um acesso rápido a papéis outrora reservados aos chefes, ou simplesmente ter
favorecido o empreendimento de certos indivíduos, quer no seio dos poderes
monarquistas, quer através dos clãs e das linhagens. Monopólios e tributos não
conseguiram controlar as trocas em expansão: durante o século XIX, o avanço
do comércio ocorreu frequentemente em detrimento do poder material das
aristocracias baseadas nos títulos políticos.
Todavia, além destes aspectos materiais, o poder também possuía aspectos
rituais, representados pelas insígnias ou pelos feitiços contra os inimigos inte-
riores e exteriores. Qual foi a evolução dos poderes rituais e místicos em um
período marcado pelas rápidas reviravoltas no domínio militar e econômico?
Enquanto esta história não for escrita, a compreensão da história da região
continuará parcial e dominada por uma problemática insensível às profundas
aspirações das antigas sociedades da África Central.
Sociedades Estatais
Antigos reinos sobreviveram às tormentas do século XIX. O mesmo ocorreu
com o Estado lunda de Kalagne. Esse Estado alcançou seu apogeu na primeira
metade do século XIX, antes de entrar em um período de declínio a partir dos
anos 1870. No princípio, Kalagne tinha sido associado a uma zona de população
densa que não ultrapassava muito um território situado a Leste do Lulua, entre
os e graus de latitude sul e os 23º e 24º graus de longitude leste. Primei-
ramente concentrada ao longo dos cursos de água, em particular do Kalagne, a
369
A bacia do Congo e Angola
população lunda enviou emigrantes às regiões vizinhas durante os séculos XVIII
e XIX; tais emigrações tenderam, em seguida, a formar entidades políticas,
mas elas se explicam também pela vontade de escapar às requisições de cativos
ordenadas pelos chefes. No início do século XIX, isso esteve notadamente na
origem do povoamento lunda no Sul do estado de Kalagne, nas regiões chokwe
e luval.
O principal título lunda era aquele de Mwant yav. Tal título era originário
do vale do Kalagne e, a partir do século XVIII ou mais tarde, esteve no cerne
de uma rede política na qual se reuniam, segundo a linguagem simbólica do
parentesco perpétuo, numerosos senhorios lunda, entre o Kwango a Oeste e o
Luapula a Leste.
Dentre os reinados importantes da dinastia de Kalagne, é necessário desta-
car, no século XIX, de Nawej (por volta de 1820 -1852). Seu reinado assistiu a
um reforço do poder do Mwant yav: Nawej era temido por suas vinganças e
pelos tributos obrigatórios que cobrava dos senhores indóceis, fosse pela força
das armas, fosse também pela utilização sem escrúpulo dos serviços dos feiti-
ceiros. No que concerne à caça, Nawej sempre preferiu o uso de arcos e flechas.
Entretanto, foi sob seu reinado que os guerreiros lunda começaram a usar as
armas de fogo provenientes de Angola (lazarinas). Convidados por Nawej, os
caçadores chokwe começaram a frequentar o território lunda, servindo -se de
armas de fogo e, pouco a pouco, empurrando os elefantes para o Norte. Certos
chokwe visitaram a capital por volta de 1840, levando armas de fogo e pólvora,
e alguns se estabeleceram no país lunda. Nawej se esforçou para manter uma
boa relação entre os dois povos, porém em vão, pois as rivalidades entre títulos
lunda e chokwe não tardaram a se manifestar.
Os imbangala de Cassange haviam começado a frequentar a mussumba desde
o início da dinastia dos Mwant yav. Entretanto, o reino de Nawej ficou marcado
pelo avanço do comércio de longa distância, sempre com os imbangala, mas logo
também com os ovimbundu e os “mambari”. Falava -se ainda, no fim do século
XIX, das caravanas enviadas por conta da rica comerciante de Luanda, Dona
Ana Joaquina (Na Andembo); a lembrança das caravanas reais despachadas
por Nawej a Luanda, à casa de Dona Ana ou ao jaga de Cassange, também
permanecia viva.
Contudo, Nawej gozava de uma reputação entre os comerciantes, que o
acusavam de atrasar interminavelmente o pagamento de seus créditos. Qual-
quer pretexto lhe servia para proceder à apreensão de bens. Seus descendentes
diretos eram muito numerosos e, logo, os pretendentes ao trono murmuraram
que Nawej tinha usufruído muito do Estado e que a hora dos mais jovens havia
370
África do século XIX à década de 1880
chegado. Apanhado por uma doença, ele morreu sufocado por seu irmão Mulaj,
o qual lhe furtou o bracelete insígnia do poder (lukano) e foi reconhecido
como mwant yav. Os anos seguintes foram dominados por lutas intestinas,
provisoriamente abrandadas pelo longo reinado de Muteba (por volta de 1857-
-1873): estes anos pacíficos viram as grandes caravanas residirem, durante a
estação das chuvas, na mussumba e serem bem tratadas pelo mwant yav.
A partir do reinado do mwant yav Muteba, a mussumba abrigou colônias
de viajantes mbundu: o fundador da primeira colônia destes ambaquistas foi
Lourenço Bezerra, conhecido entre os lunda sob a alcunha de Lufuma (apro-
ximadamente em 1850 -1883). Originário de Golungo, ele se fixou na mus-
sumba por volta de 1850 e passou uma trintena de anos na corte do mwant yav,
aproveitando -se, por muito tempo, das boas disposições de Muteba para com
os comerciantes angolanos. A colônia de Lufuma se instalou, em 1869, nos
acessos imediatos de Luambata, a nova mussumba de Muteba, e introduziu a
agricultura e a pecuária mbundu na região. O próprio mwant yav seguia de perto
a lavoura destes campos, que aliavam aportes brasileiros e portugueses (arroz,
tabaco, milho etc.) aos produtos africanos. Os angolanos de Luambata também
se tornaram artesãos (ferreiro, tecelões, oleiros, escribas etc.). A colônia prati-
cava o comércio tributário, paralelamente àquele dos notáveis lunda: nenhuma
transação podia acontecer sem a intervenção de Lufuma. Esse, com o passar dos
anos, havia formado uma clientela de cativos, escravos alforriados etc., que, em
1882, o acompanharam na ocasião de seu retorno definitivo à região de Malanje.
Nos anos 1850 -1880, a colônia foi, assim, um ponto de apoio fundamental do
comércio regido pelos títulos aristocráticos da corte lunda e por empreende-
dores angolanos, ancorados no país por numerosas ligações matrimoniais e
praticando o comércio tributário, bem conhecido na região. De fato, Lufuma
tinha se tornado um título lunda, como o mostra o papel que desempenhou na
vida da corte: por exemplo, foi ele o organizador dos funerais da lukonkesh do
mwant yav Muteba.
Nos anos 1870, a expansão chokwe continuou: fugindo de suas aldeias e de
seus chefes sob pretexto de feitiçaria, ligados à economia da colheita, buscando
cera, marfim e, em seguida, borracha, incorporando cativos, mulheres e jovens às
linhagens patrilineares, logo os chokwe foram potentes o suficiente para eclipsar
o poder dos chefes lunda da região, entre os rios Tshikapa e Kasai. Nesta região,
as aldeias e os senhorios lunda se dispersaram: foi um período de decadência
para o antigo poder aristocrático lunda. Tal corrente foi reforçada pelas dissen-
sões no seio da mussumba; um chefe importante, Shanam, fez uma aliança com
os chokwe e conquistou o poder graças a eles. O reinado deste mwant yav (que
371
A bacia do Congo e Angola
ganhou o nome de Mbumba) foi sangrento. Ele continuou a utilizar os chokwe a
fim de impor uma ameaça aos vassalos lunda. Após sua morte (1883), os chokwe
quiseram vingá -lo. Seus guerreiros conseguiram obter o lukano para Mushidi,
filho de Mbumba criado por uma família adotiva chokwe.
Senhorios: os poderes fragmentados
o obstante as profundas transformações sociais que a região lunda -chokwe
conheceu no último quarto do século XIX, as aristocracias lunda não se apagaram
por completo. Alhures, Estados se fragmentaram de diversas formas, fosse porque
antigos Estados centralizados tinham se transformado em redes de senhorios
unidos informalmente uns aos outros, mas sem serem submetidos a um centro
comum; fosse, ainda, porque a descentralização tinha sido muito estendida, ou
mesmo porque se encaminhava para o desaparecimento do poder dos chefes.
O Sul das altas terras ovimbundu, em Angola, pode ser ligado à categoria das
redes de grandes senhorios. Este planalto era dominado por um grupo cultural
que se reuniu sob a denominação nyaneka -nkumbi, ele mesmo dividido em vários
grupos étnicos: nyaneka, otylenge, nkumbi etc. No século XIX, alguns senhorios
da região representavam os vestígios de antigos reinos. Era o caso de Mwila, reino
nyaneka que, no século XVIII, dominava toda a região da Huíla e que se deslo-
cou, aproximadamente na metade do século XIX. De fato, nesse momento, Jau se
separou de Mwila para, por sua vez, logo se fragmentar. No século XVIII, Mwila
estabelecera relões com Caconda e com a Angola portuguesa. A região era a
mais povoada do país nyaneka e os portugueses tentaram várias vezes instalar ali
colonos brancos, nos anos 1840, a preço de numerosos afrontamentos militares.
Os senhorios nyaneka (sobretudo Mwila e, mais tarde, Ngambwe) tornaram -se
centros comerciais para a cera, o marfim e o gado, servindo todo o Sul de Angola,
ao longo da segunda metade do século XIX. Embora o setor mercantil tivesse
desempenhado um papel na fragmentação política da região, as razias e rapinas
diversas forneceram, com frequência, a oportunidade imediata para a ascensão de
aventureiros ou de recém -chegados. A partir dos anos 1840, a região foi, de fato,
percorrida em todos os sentidos, às vezes de armas nas mãos, por comerciantes
e chefes de guerra que estabeleceram pequenas fortalezas para sua clientela de
cativos (serviçais), refugiados, aventureiros etc; , atrás das cercas de espinhos,
homens e animais encontravam -se a abrigo da violência.
Pela vasta região que se estendia entre o Lomani, o Lualaba e a margem
ocidental do Lago Tanganica, o império” luba também teve uma imagem de
372
África do século XIX à década de 1880
F . O mwant yav Mbumba. [Fonte: P. Pogge, Im Reiche des Mvata Jamvo, 1880, Berlim. Ilus-
tração reproduzida com a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de
Cambridge.]
fragmentação. Durante seu período de máxima expansão, durante a primeira
metade do século XIX, o poder militar mais prestigioso do Estado luba (aquele
do mulopwe, com sua capital, kitenta, e sua corte) foi exercido em numerosos
senhorios que, em sua maioria, já participavam da noção luba do poder (o bulo-
pwe), privilégio dos chefes possuidores do sangue real dos fundadores (Kongolo
e Kalala Ilunga).
373
A bacia do Congo e Angola
Esta constrão se revelou efêmera e fortemente submissa às flutuações
da fortuna militar dos diferentes títulos políticos. Sob o reinado do mulopwe
Kasongo Kalombo (por volta de 1870 -1880), esta instituição política começou
a se pulverizar sob a pressão, sobretudo das caravanas de comerciantes prove-
nientes da zona suaíli ou de Angola. A penetração comercial fez atiçar as
dissensões entre os próprios chefes políticos e entre estes e os chefes das linha-
gens, possuidores de terras e domínios. No fim do nosso período, senhorios e
Estados luba gozavam de uma autonomia quase completa
25
.
Aventureiros, comerciantes, condottieri: os novos poderes
O poder do bulopwe é um dos mais antigos e mais prestigiosos da história das
sociedades da savana. Alhures nesta rego, assistiu -se a proliferação, noculo XIX,
de tulos de chefes e o surgimento de novas formas de poder, fosse porque o papel do
chefe tinha cdo em desuso (por exemplo, entre certos grupos congos ou mbundu),
fosse porque o desenvolvimento das trocas tinha ocasionado uma polarização em
torno de grupos ou de indiduos empreendedores. Há exemplos disso em todas as
sociedades da África Central, dotadas ou o de um chefe. Assim, na floresta úmida
da bacia central, comerciantes conseguiram acumular escravos, armas, cobre etc.:
tratava -se, geralmente, de pirogueiros, ribeirinhos enriquecidos pelo corcio do trá-
fico. Deste modo, a história do reino de Msiri comou por expedições comerciais.
Por volta da metade do século XIX, viajantes sumbwa, originários da atual
Tanzânia, vieram tratar com os chefes lunda, luba, aushi, e outros, do vale do
Luapula e das regiões vizinhas. Esses comerciantes foram atraídos pelo marfim,
abundante na região, e pelo cobre, tratado a Oeste do reino de Kazembe. Ngalen-
gwa Mwenda, o filho de um destes viajantes, que tinha acompanhado seu pai em
suas expedições, veio se instalar, por volta de 1855, no país do chefe Katanga, um
dos principais centros produtores de cobre, onde se encontrava uma importante
aglomeração para a região
26
. Foi a época em que expedições comerciais árabes,
suaílis, nyamwezi e ovimbundu se multiplicaram na região, tendo por objetivo o
desenvolvimento do comércio do cobre, do marfim e de escravos.
25 Administradores coloniais defensores das teorias da administração indireta, preocupados em “reconstituir”, em
pleno século XX, supostos impérios desaparecidos, tiveram a tenncia de superestimar o grau de centralizão
existente nos Estados luba. Para os últimos apontamentos sobre a questão, ver A. Wilson, 1972.
26 Um viajante árabe, Sa‘īd ibn Habīb, descreveu este centro na metade do século: a população era mais
numerosa que na capital de Kazembe; os víveres comercializados abundavam; o algodão local era ado
para a fabricação de vestimentas. Citado por F. Bontinck, 1974, p. 12.
374
África do século XIX à década de 1880
Sem dúvida, Mwenda foi o mais célebre destes comerciantes que souberam
tirar proveito das divisões no interior dos clãs reinantes e puderam se apoiar em
tropas suficientemente numerosas e bem armadas para se estabelecer em uma
região, atrair uma população em uma capital e assentar seu poder sobre uma
rede de clientela formada por homens de confiança, companheiros de aventura,
parentes, títulos políticos locais, ou simplesmente, indivíduos empreendedores
de qualquer origem. Após sua instalação junto a Katanga, Mwenda começou a
prestar serviços a facções políticas opostas. Beneficiando -se da ajuda de comer-
ciantes ovimbundu, ele se intrometeu nas querelas entre chefes sanga, luba, lunda
e outros da região. Seus maiores sucessos provieram de sua participação nas lutas
entre pretendentes ao trono de Kazembe. Ainda neste momento, as armas do
Bié desempenharam um importante papel e facilitaram sua ascensão.
Em 1880, ele conseguiu criar seu próprio Estado, tomou o título e as insígnias
de mwami, que eram conhecidos em sua rego de origem, e estabeleceu sua capital
em Bunkeya, no vale da Lufira. Na época, os chefes da rego eram mais frequente-
mente associados ao poder do mwant yav (lunda) ou do mulopwe (luba). Mwenda
conseguiu incorporar um grande número deles em seu império e fazê -los aceitar
suas insígnias (kilungu). Bunkeya tornou -se um centro importante, frequentado
por todos aqueles que buscavam fortuna junto a Mwenda. Este foi, desde então,
conhecido sob o nome de Msiri, que parece ter uma origem local, derivado de
mushidi (significando “terra em sanga e em luba), o proprietário da terra.
Dentre as mulheres mais próximas de Msiri, durante um certo tempo, consta
uma jovem suaíli das cercanias de Pweto e duas mestiças de angola: isso simbo-
liza o papel desempenhado pelo reino de Msiri nas redes comerciais. Chamado
Garanganja pelos angolanos e Katanga pelos suaílis, esse reino se tornou a placa
giratória do comércio da África Central, de Zanzibar a Benguela, do país luba
aos postos avançados portugueses de Moçambique, ou árabes do lago Malaui.
Chefe temido, filho de sua época, Msiri soube se mostrar munificente, mas
também, implacável; nisso, ele respondia ao estereótipo do chefe ou do aristo-
crata. Por vezes, ele foi cruel. Aliás, foi a execução de uma de suas mulheres,
Masengo, que forneceu o pretexto da longa revolta dos sanga contra o Estado
yeke. Essa revolta chegou ao fim somente após a morte de Msiri
27
e graças às
armas do poder colonial.
27 Msiri morreu violentamente pela mão de um europeu, aos 20 de dezembro de 1891. O assassino pereceu
também, executado em seguida por um dos lhos de Msiri. Os principais testemunhos sobre a vida em
Bunkeya antes da conquista colonial são aqueles de Ivens e de Arnot; F. A. Oliveira Martins (org.), 1952,
p. 366 -383; F. S. Arnot, 1889.
375
A bacia do Congo e Angola
Conclusão
Seria possível avançar algumas conclues no término desta rápida expla-
nação? A história econômica da África Central do culo XIX parece propor
um princípio de resposta. De fato, as condições de acumulação de riquezas
e de dependentes mudaram, no século XIX, graças à constituição de zonas
de densidade mais marcadas, gras a progressos na produtividade agcola
e mesmo artesanal, graças também ao avao de certos setores da vida eco-
nômica. Isso vale também para o setor de trocas, em perpétuo movimento,
segundo as conjunturas e os grandes produtos trocados. Em várias sociedades,
este setor contribuiu fortemente para encetar os primeiros passos de uma
estratificação social.
Certamente, apesar da existência, muito difundida na época, de diversas for-
mas de servidão, seria temerário falar de “classes sociais”. As diferenças sociais
em via de se aprofundar muito tomaram o rosto familiar de antigas instituições
políticas, ou de solidariedade étnica ou de clã, o que nos permite utilizar o
conceito de classe”. Uma função antiga, a de chefe político, mostrou -se par-
ticularmente maleável às novas circunstâncias. na história mais antiga da
região, a função de chefe prestava -se à dominação dos grupos ou de indivíduos,
entre os quais se encontravam visionários, novos -ricos e simples aventureiros.
No decorrer do século XIX, esta tendência se acentuou, seja porque os antigos
títulos políticos se tornaram cada vez mais baseados na economia de trocas,
seja porque foram captados pelos novos -ricos, ou ainda, porque novos títulos
tinham sido criados.
Assim, a instituição dos chefes no século XIX continuou a se inscrever numa
longa tradição. No entanto, a época deu -lhe características originais: em par-
ticular, a função de chefe parece ter conhecido uma instabilidade que não era
específica da história antiga. O século XIX teria sido a época das fortunas polí-
ticas rapidamente construídas e também tão rapidamente desfeitas. A mudança
foi precipitada demais, e a história autônoma da região muito brutalmente
interrompida no fim do século para permitir o nascimento de grandes Estados.
Muitas vezes, o Estado, tal como se desenvolveu no século XIX, na África
Central, ignorou as hierarquias complexas, as divisões regionais: apresentou -se
como uma rede de senhorios, rede “horizontal” em vez de hierarquia territorial
“vertical”.
A história política dos anos 1800 -1880 deixaria uma impressão enganosa,
se se considerar apenas o tema da fragmentação do Centro da África. De fato,
376
África do século XIX à década de 1880
a política não estava naquela época no coração da organização do espaço
28
, pois
é preciso considerar o progresso de vastos espaços econômicos que muito ultra-
passaram as fronteiras das solidariedades étnicas ou das organizações políticas.
Os grandes traços da história social e econômica da África Central do século
XIX começam a declinar: a história, tal como foi vivida e sentida pelas socie-
dades da época, a história de suas aspirações e da mudança das mentalidades
constituem vastos domínios ainda não explorados e questionamentos que a
África de hoje tem o dever de dirigir ao seu passado para melhor esclarecer o
seu presente
29
.
28 J. Vansina, 1976, p. 1 -31.
29 A inspiração deste estudo deve muito aos anos de trabalho comum com Bogumil Jewsiewicki, que foi
professor na Universidade Nacional do ex -Zaire.
C A P Í T U L O 1 3
377
O renascimento do Egito (1805 -1881)
O impacto da Europa: aculturação ou renascimento?
Logo após a segunda guerra mundial, os trabalhos da escola egípcia de his-
tória e sociologia histórica sustentada por certos trabalhos inovadores realizados
pelo Ocidente evidenciam que, de um lado, o século XVIII egípcio não é feito
apenas de silêncio e omissão após três séculos de alienação sob o domínio oto-
mano
1
; do outro, que é na ação direta tanto das massas populares do Cairo e de
Alexandria quanto das elites tradicionais da época, os ‘ulamā’, shaykh e notáveis
das cidades, aos quais se deve atribuir a eleição de Muhammad Alī à dignidade
de wālī (Vice -Rei) em 1805
2
. Desde então, esta data – a restauração do Estado
moderno e autônomo egípcio marcaria o acesso do Egito à modernidade; e
não como o deseja a historiografia colonial tradicional, a expedição do Egito
invasão militar realizada por Bonaparte, logo após as guerras da Itália, por
iniciativa do Diretório, de 1798 – 1801. Esta foi uma grande empreitada na luta
contra o império britânico.
1 M. al -Sharqāwī, 1958; P. Gran, 1979.
2 Ver essencialmente os trabalhos de A. R. al -Rāfe‘ī, 1951; L. Bréhier, 1901; A. A. Mustafa, 1965; M.
Sabry, 1930; M. S. Ghurbāl, 1928; A. F. S. Wahidah, 1950; H. H. Dodwell, 1931.
O renascimento do Egito
(1805 -1881)
Anouar Abdel -Malek
378
África do século XIX à década de 1880
Ela expulsará – diz Bonaparte – os ingleses de todas as possessões do Oriente onde
ela possa alcançar; e principalmente destruirá todos os entrepostos do mar Vermelho
[...]. Considerando a infame traição através da qual a Inglaterra tornou -se senhora
do cabo da Boa Esperança dificultando muito o acesso às Índias para os barcos da
República por esta rota usual, é necessário para as forças republicanas uma outra
rota para chegar lá.
Esta empreitada foi acompanhada também da prospecção do Egito, escala
obrigatória no caminho do Oriente, pela “missão científica” que representava o
conhecimento do Iluminismo, do enciclopedismo e dos pensadores da escola
politécnica, atuantes na França e na Europa. A descrição do Egito, em vinte volu-
mes, resume sua imponente obra
3
.
O culo XVIII epcio aparece como o laborario do que se o Egito renas-
cente. Primeiramente, a unidade nacional, ou seja, a redução dos diferentes feudos
mantidos pelos mamelucos tanto no delta como no Baixo Egito, foi tentada por
Alī Bey al -Kabīr. As premissas do aggiornamento (atualização) do is fundamen-
tal, empreendidas pelo shaykh Hassan al -‘Attār; a concentração nas cidades, e não
somente no Cairo, da mais -valia das terras, que um grupo de comerciantes e letrados
com vocação hegenica desejavam colocar a serviço do que chamar -se -ia mais
tarde de um projeto nacional”. Para a expedição francesa, tal prospecção revelar -se-
-ia verdadeiramente única e permitiria, mais tarde, apoiar as posições francesas no
Levante, após a conquista da África do Norte, como também aparecer para grandes
setores da África subsaariana como a porta -bandeira da Europa das revoluções.
Os historiadores egípcios da época, principalmente Abd al -Rahmān al -Djabartī e
Niqōlā al -Turk, discordam totalmente:A ocupação francesa melhorou a situação
moral da classe baixa, dos revendedores, carregadores, artesãos, carroceiros, cavala-
riços, proxenetas e prostitutas
4
”: em suma, a escória da população beneficiava -se da
liberdade recém -adquirida; mas a elite e a classe média vivenciaram todo tipo de
problemas, que as importões e as exportações estavam suspensas.
Assim, entende -se as duas revoltas do Cairo: a primeira, de 21 a 24 de
outubro de 1798, com seus prolongamentos nas cidades e na área rural, em
torno dos shaykh e notáveis do Cairo: dois mil mortos, dez shaykh decapitados,
a suspensão do Dīwān consultivo; a segunda, bem mais dura, de 20 de março
a 21 de abril de 1800, conduzida pelos paxás ainda ligados à Porta e pelos
3 J. C. Herold, 1962, forneceu uma brilhante e interessante descrição a comparar com a obra de Abd
al -Rahmān al -Djabartī (1754 -1825), o historiógrafo exemplar daquela época.
4 N. al -Turk, 1950, p. 45.
379
O renascimento do Egito (1805 -1881)
shaykh de al -Azhar, que provocou uma repressão generalizada muito dura. O
grupo centrista, anunciador da tendência geral do movimento nacional, liderado
particularmente pelos shaykh Khalīl al -Bakrī, Abdullāh al -Sharkāwe e Abd
al -Rahmān al -Djabartī, em sua mensagem de conciliação ao general Menou,
insiste na amizade necessária das “duas nações”. As batalhas das Pirâmides e
de Aboukir, a evacuação das tropas expedicionárias francesas em 1801 dariam
enfim ao movimento nacional egípcio, em formação, a ocasião de se cristalizar,
isto é de se dotar de um centro de poder social, no início autônomo no quadro
do Império Otomano, mas cuja vontade de independência nacional marcaria
com seu fulgor o século XIX em todo o Oriente, no Mediterrâneo e na África,
como também a ordem do mundo e dos impérios da época.
Da evacuação francesa à nomeação de Muhammad Alī como wālī, o país
retomou a sua condição de província otomana. A segunda revolta do Cairo, a
qual levou ao enfraquecimento decisivo das posições francesas, reforçou a dire-
ção nacional de tendência otomana e mameluca. Umar Makram, cuja autori-
dade aumentou, não pôde, contudo, alterar a natureza do poder em benefício da
nova classe política egípcia – ulamā’, notáveis e comerciantes –, já que as armas
estavam nas mãos dos senhores de ontem; que o projeto dos Irmãos Indepen-
dentes estava enterrado com a morte do seu chefe, o general Ya’kūb, no barco
que o transportava para a Europa e que foi neutralizada a possível alternativa
dos shaykh do Dīwān, presos entre escolhas difíceis, em plena tormenta, na hora
da intriga e dos complôs. A condição do Egito em 1805, era a de uma wilāya,
um província do Império Otomano. A situação geopolítica do país limitava
estreitamente sua margem de manobra. Todavia, o essencial estava a postos:
um poder de Estado, baseado em uma força militar, certamente reduzida, porém
eficaz, e, sobretudo, sobre uma verdadeira delegação, um consenso nacional dos
notáveis, ulamā’, e dos comerciantes da época, apoiados pelo povo das cidades
e das grandes aglomerações provínciais.
Trataria -se, desde logo, de manobrar dentro dos limites estreitos da geopolítica,
isto é, de compreender o esrito do local topográfico como demonstrou magnifica-
mente Djal Hamdān em sua obra monumental sobre A personalidade do Egito.
A Formação do Estado nacional moderno independente
egípcio e o império sob Muhammad ‘Alī e Īsmāīl.
A legião copta do general Ya’kūb (1800 -1801) e a proclamação pelos seus
partidários, os Irmãos Independentes, da própria noção de um Egito indepen-
380
África do século XIX à década de 1880
F . O Império egípcio de Muhammad Alī (1804 -1849). Por razões técnicas, este mapa não inclui
a região do Lago Vitória, nem a Somália. (Segundo A. Abdel -Malek.)
381
O renascimento do Egito (1805 -1881)
dente” se apoiaram na França, perante à supremacia britânica e, consequen-
temente, desmoronaram com a partida da expedição francesa. Outro seria o
projeto e o curso político de Muhammad Alī. Tratava -se essencialmente de
dotar o Egito com instituições militares, políticas, econômicas e culturais que
fariam dele o centro motor da reconstituição do Império islâmico, em vez e no
lugar da Turquia senescente. De início, o projeto compreendeu os dois círculos
da identidade egípcia: egípcia e islâmica. Durante as campanhas de Muhammad
Alī e de Ibrāhīm, tornar -se -ia mais preciso: o Egito apareceria como islâmico,
árabe e africano.
Todavia, o homem que soube tomar o poder, levado pelos ulamā’, a multidão
e seus fiéis albaneses, mediu a importância do terreno por ele dominado, ainda
que de forma pouco estabelecida. A Inglaterra apoiava o partido mameluco,
sob a liderança de Muhammad al -Alfī Bey e, a partir de 1806, incentivou
a Porta a demitir Muhammad Alī. Em 1807, a Inglaterra tentou a invasão
direta do Egito; a vitória egípcia de Rāshid (Roseta), em 31 de março, repeliu
o ataque. Muhammad `Alī, que se apoiava então, muitas vezes, nos notáveis,
principalmente em Umar Makram, decidiu destruir pela força o poder dos
mamelucos no Alto Egito, ainda mais por serem aliados dos ingleses: de junho
de 1808 a agosto de 1810, ele subjugou o Alto Egito. Em 1° de março de 1811,
o massacre da Cidadela acabou por eliminar os líderes das tropas rebeldes que
eram um obstáculo à unidade do poder, como também aos planos do novo
Vice -Rei.
Os dados geopolíticos fundamentais foram constantes até a queda de Napo-
leão; a partir de 1815, o peso específico da Inglaterra aumentou e novos países
entraram na arena, notadamente a Áustria de Metternich. Foi o momento em
que Muhammad `Alī, uma vez reduzido o poder dos mamelucos, empreendeu
a construção do império e da grande obra de regeneração no interior.
Que visão Muhammad `Alī tinha da independência? E, neste quadro, qual
era o papel que ele dava à autonomia no seio do império? Em 28 de novembro
de 1810, Muhammad `Alī teve um encontro secreto com o consul da França,
Drovetti, e solicitou -lhe ajudar o Egito a se separar do Império Otomano.
Simultaneamente, em 25 de novembro, ele pediu a Istambul o reconhecimento
do Egito, simples província (wilāya -elet), na condição de odjak, gozando
da mesma liberdade que Argel à época. Lançou então seu exército na Arábia
(1813 -1819), depois no Sudão (1820 -1823), tendo como objetivo mais amplo
a ocupação da Abissínia. A Inglaterra, que ele bajulou e tentou trazer para a
sua causa, se voltou contra ele, que penetrou em três áreas de influência o
Mar Vermelho, o Golfo Pérsico e a Abissínia indispensáveis para assegurar
382
África do século XIX à década de 1880
a rota das Índias. Na realidade, tudo não se resumia a isso: do Golfo Pérsico
ao deserto da Líbia, do Sudão ao Mediterrâneo, de uma parte à outra do Mar
Vermelho, estendendo -se por cinco milhões de quilômetros quadrados: dez
vezes a França, a metade da Europa; um império napoleônico ou faraônico.”
E isto concomitante ao declínio do poderio otomano. Desde então, a questão
egípcia deu lugar à “questão do Oriente”, “graças à existência de uma grande
força civilizadora no norte da África”
5
.
O primeiro choque se deu na Grécia insular (Hidra e Spezzia), em 1827.
A poderosa frota de Muhammad `A e o ercito de seu filho Ibrām
concentraram -se para socorrer o Império Otomano. Negociações se deram em
Alexandria entre o coronel Cradock, enviado especial de Londres, e Muham-
mad `Alī e seus adjuntos: o tópico não era outro que a independência, a partir
da posição de força egípcia em relação à Porta. Muhammad `Alī, como bom
estrategista, tentou evitar o confronto armado, na undécima hora; a obstina-
ção do sultão conduziu diretamente à destruição da frota egípcia, tropa de
batalha da frota otomana, em Navarin (20 de outubro de 1827). Muhammad
`Alī, diante da defecção da França, aentão amiga, se voltou para o Imrio
Otomano. Em 12 de dezembro, enviou à Porta um plano de regeneração digno
de um estadista:
Sem dúvida que a necessidade da restauração se faça sentir de uma maneira aguda,
em todos os países islâmicos. Sem dúvida que a nossa nação, em sua apatia atual,
viva como os rebanhos. Deixe então de lado, por piedade, o egoísmo, a precipitação
e o excesso de zelo e reflita um pouco sobre o estado de desamparo e de miséria
em que se encontram atualmente as nações mulçumanas. Voltemo -nos à sabedoria
e façamos uma paz que seja antes uma trégua [...]. Valeria mil vezes mais viver e
servir, desta maneira, nossa pátria e nossa religião [...]. É hora de colocar -me, assim
como meu filho, a serviço do Estado e da religião
6
.
Conhece -se a sequência: a recusa da Porta; a ampliação dos objetivos do
Vice -Rei no mundo árabe, sob a influência de Ibrāhīm; a guerra entre a Turquia
e o Egito, marcada pelas brilhantes vitórias de Ibrāhīm em Koniah, Kutāhiya e
Nasībīn; a intervenção das potências, decididas a abater Muhammad `Alī. De
1831 a 1840, o avanço de Muhammad `Alī bateu às portas de Istambul; a Santa
Aliança de todas as potências europeias salvaria o governo do sultão para melhor
derrubar o único Estado islâmico e oriental capaz de enfrentar a expansão colo-
5 E. Driault, 1925.
6 Carta ao Cheijh Eendī, 12 de dezembro de 1827, citada em M. Sabry, 1930, p. 153 -155.
383
O renascimento do Egito (1805 -1881)
F . Muhammad ‘Alī (quadro de sir David Wilkie). [© e Tate Gallery, Londres]
384
África do século XIX à década de 1880
F . Ibrāhīm, lho de Muhammad Ali e seu general -em -chefe. [Fonte: A. R. al -Rīfe‘ī, Asr Muham-
mad Aly, 1930, Cairo, Dar al -Nahda al -Misriyyah; edição, 1982, O Cairo, Dar el -Maaref. © Juiz Helmy
Shahin.]
nial europeia, de um lado, e de se encarregar da regeneração das províncias do
império, de sua modernização e de seu renascimento nacional, do outro.
A parada imposta a Ibrāhīm pelo seu pai em Kutāhiya às portas de Istambul,
endureceu sua posição. Em uma carta a seu pai, às vésperas das negociações, ele
diz alto e claro:
parece -me que a independência deva ser colocada em primeiro plano entre os pontos
a serem discutidos e arranjados com os dois negociadores; é para mim uma questão
vital acima de todas as demais. Reivindicar a cessão das três regiões de Anatólia,
Alaīa e Cilícia, além da ilha de Chipre. Anexar, enfim, ao Egito, se possível, a Tunísia
e a Tripolitânia. Estas devem constituir o mínimo de nossas reivindicações das quais
não se deve desistir a preço algum; nossos interesses essenciais o exigem. Primeiro,
385
O renascimento do Egito (1805 -1881)
devemos ser firmes e inabaláveis no que tange à independência a fim de consolidar
nossa situação e assegurarmos o futuro. Pois, sem a independência, todos os nossos
esforços seriam em vão e permaneceríamos sob o jugo desta potência pérfida que
nos oprime sem cessar com exigências ridículas e requisições de dinheiro. Doravante,
é necessário liberarmo -nos destas cargas insuportáveis e encontrar nossa única sau-
dação na independência
7
.
Duas vias, dois cursos diferentes se ofereceram então ao Egito para atingir
a condição de nação independente; a autonomia no seio do Império Turco,
visionado por Muhammad Alī, a qual frisava pela independência, e a visão de
Ibrāhīm cujo objetivo não era menos do que a independência completa, o Egito
sendo a cabeça e o coração do Império árabe.
Nesta grande ação impulsionada pelo Vice -Rei e seu filho, a visão de Ibrāhīm
tornou -se diferente. No contato com os soldados -fallāhin (camponeses), cuja
língua nacional, o árabe, era a mesma daquela das províncias do Oriente Pró-
ximo que eles conquistaram e liberaram ao mesmo tempo, Ibrāhīm tomou
consciência do caráter árabe do Egito islâmico e, acima de tudo, da imperiosa
necessidade de forjar o instrumento do seu renascimento, isto é, o exército base-
ado na tecnologia avançada, dentro da moldura árabe. Quando de sua chegada
a São João D’Acre, em 1831: “Meu objetivo [...] é duplo: primeiro, preservar
a honra do Egito eterno e lhe restituir sua glória passada”; antes do ataque
de Homs, ele ameaçou retalhar em pedaços o exército otomano a fim de que
isto sirva ainda mais para elevar a posição do Egito, tornar seu destino mais
eminente, e dar valor a seu posto e honra”; Durante o sítio de Acre, Ibrāhīm
disse ainda ao príncipe Pückler -Muskau: é impossível para qualquer exército
no mundo mostrar mais espírito de perseverança ou de bravura do que o meu,
e toda vez que um caso de indecisão ou de covardia foi assinalado no exército,
era invariavelmente do lado dos oficiais turcos: eu não conheço tais exemplos
entre os árabes.” Enfim, a seu pai: “Eis já vinte anos que vivo com estes homens
e posso afirmar que se existir trezentos turcos em mil conhecidos por sua leal-
dade, existem setecentos entre os egípcios. A menos que tema sua mania de
revolução, de tempos em tempos, contra o governo estabelecido
8
. O elemento
árabe interveio ativamente durante o período ascendente deste processo, mas
desapareceu com Ibrāhīm depois de 1840.
7 Carta de 3 de fevereiro de 1833, citada em M. Sabry, 1930, p. 227 -228. G. Khanki, 1948, a data de
20 de janeiro de 1833.
8 Citado pelo príncipe H. Pückler -Muskau em M. Sabry, 1930, p. 469 -471.
386
África do século XIX à década de 1880
Após Abbās I (1849 -1854), consentindo com tudo exceto com o governo
da Europa, Ismā‘īl colocou o problema nacional em termos de independência e
de soberania. Tratava -se de reduzir, pela negociação, a dependência do país em
relação à Turquia; de reconstituir em seguida um Estado autônomo e estável,
dotado de instituições independentes que seriam estabelecidas posteriormente.
Em um primeiro momento, Ismā‘īl obteve os firmān (decretos) de 27 de maio
e de 15 de junho de 1866, depois aquele de 8 de junho de 1867. Os dois pri-
meiros estabeleceram no Egito a hereditariedade direta do trono de pai para
filho, segundo o direito primogênito; segundo o “mesmo modo de sucessão da
maioria das dinastias europeias”, e em ruptura completa com as tradições do
mundo islâmico”
9
.
O firmān de 8 de junho de 1867 criou, para Ismā‘īl e seus sucessores, um
título novo, o de quediva, para melhor distingui -lo dos outros Vice -Reis; outor-
gou ao quediva do Egito o direito de promulgação de tanzīmāt, portarias para
a administração do país, e de convenções com países estrangeiros (alfândega,
correio, transportes, polícia dos estrangeiros etc.), exceto a dar -lhes o cará-
ter de tratados internacionais; de fato, um verdadeiro direito de negociação
econômica. O ponto culminante foi atingido com o firmān de 8 de junho de
1873: o Egito pela primeira vez designado como “Estado” e não mais como
província” – foi assegurado da continuidade do poder do quediva nas mesmas
condições.
A reconstituição do Império egípcio respondia, segundo M. Sabry, de um
lado, à “ideia de formar um grande Estado independente e de “adquirir pela
força do dinheiro o que Muhammad `Alī tentou em vão obter pela força; do
outro lado, à necessidade de “descobrir na expansão africana esta perspectiva de
grandeza e de liberdade que lhe permite recuperar seu sentimento nacional e
desenvolver algumas de suas capacidades que dormiam”. “Ismā‘īl pensava que, ao
se servir de novos corpos de oficiais do exército egípcio para expandir o Egito
até o equador, ele conseguiria, de algum modo, criar para sua independência
um refúgio último e inacessível no coração do continente”. A expansão até o
coração do continente africano não encontrou resistência, no início pelo menos,
por parte da Turquia nem da Grã -Bretanha.
Uma esquadra de guerra, de poder médio após a entrega dos couraçados
à Turquia, e uma marinha mercante que assegurava todas as necessidade do
comércio egípcio; dezoito fortes; um bom serviço telefônico e telegráfico; o
9 Textos citados em A. Sammarco, 1935, vol. 4, p. 196 -197.
387
O renascimento do Egito (1805 -1881)
esboço de uma ferrovia que devia chegar a Cartum e a Suākin – elementos estes
que completariam a infraestrutura do novo império. O Sudão, mas também a
Somália, o Harar, a província equatorial, o Bunyoro e o Buganda se abriram à
civilização europeia pelo viés da progressão militar egípcia; a imprensa liberal
da Europa abundava em elogios; a acolhida das populações parecia, no essencial,
cheia de benevolência. Todavia, o fracasso veio a coroar esta obra que atingiu
seu apogeu entre 1872 e 1879.
Ismā‘īl cedeu no plano do comando militar crendo assim que a Grã-
-Bretanha toleraria sua empreitada africana e nada fez comparável àquilo
que Muhammad Alī tinha executado em termos econômicos e, sobretudo,
industriais. O exército, bem organizado mas comandado por estrangeiros, não
dispunha mais, depois do Tratado de Londres, de uma infraestrutura industrial
pujante. O Egito não estava mais em condições de assegurar sua independência
e seu desenvolvimento econômico moderno. Contudo, é preciso que os povos
das regiões da nascente do Nilo sejam hoje amigos e aliados de Sua Alteza o
Quediva” a palavra de ordem de Ismā‘īl, sob diversas formas, não parou de
ecoar até os nossos dias
10
.
Paralelamente à execução deste grande projeto nacional, o movimento repre-
sentativo, depois constitucionalista, implantou -se e empenhou -se plenamente
sob Ismā‘īl. em 5 de outubro de 1798, Bonaparte convocou uma assembleia
geral dos notáveis, que levava o nome de al -Dīwān al - ām. Com Muhammad‘Alī,
ainda que a implantação de diversas instituições próprias de um Estado do tipo
moderno comandasse a ação do país inteiro, a ideia central era aquela da efi-
ciência, a noção de ordem muito mais do que aquela de delegação. Um novo
organismo consultivo, Madjlis al -mushāwara, foi criado em 1829: 156 membros
– dos quais 23 altos funcionários e ‘ulamā’; 24 ma’mūr de província, 99 notáveis
e shaykh provínciais colocados sob a presidência de Ibrāhīm.
Uma assembleia especial, al -Madjlis al - umūmī, foi criada em 1847 em Ale-
xandria para cuidar dos problemas daquela cidade. Em 1832, a Síria foi dotada
de um conselho de grandes notáveis, composto por 22 pessoas
11
.
Em 1834, a primeira edão da obra do shaykh Rifāa al -Tahtā, Takhlīs
al -ibrīz ilā Talkhīs Bārīz, obra de reflexão sobre as contribuições da Revolão
10 M. Sabry, 1933, p. 383 -389; A. R. al -Rāfe‘ī, 1948, p. 104 -196; R. Robinson e J. Gallagher, 1961, p. 2 -3,
p. 122 -133, p. 159.
11 Sobre a evolução do constitucionalismo no Egito, ver G. Douin, 1933 -1941, p. 298 -301; P. Ravisse, 1896,
p. 9; A. R. al -Rāfe‘ī, 1948a, p. 81 -84; J. M. Landau, 1953, p. 9; D. M. Wallace, 1883, p. 209 -213; J. C.
McCoan, 1887, p. 115; G. Baer, 1961, p. 127, nota 37; barão de Malortie, 1882, p. 214.
388
África do século XIX à década de 1880
Francesa, marcaria o nascimento e a cristalizão do pensamento político e
social egípcio. A contribuão aos tópicos da “pátria” e da “nação” era consi-
derável. O essencial versava sobre as duas noções de liberdade e de “secu-
larismo”, ambas vistas sob o seu duplo aspecto teórico e prático. Achava -se
uma ntese muito justa entre a contribuão de toda a história da civilização
egípcia, particularmente a contribuição dos coptas, depois do islã, em particu-
lar do califa Umar, de um lado, e os ensinamentos da Revolão Francesa, do
outro, que permitiu concluir que somente a outorga de uma constituição ou
de uma carta, baseada no contrato social e não outorgada pelo soberano cons-
tituiria o fundamento de uma sociedade civilizada
12
. Sob Abbās I, Tahtāwi foi
exilado no Sudão. Saīd criou uma espécie de conselho de Estado com nove
membros, a título consultivo. A retomada do movimento constitucionalista
pareceu iniciar em agosto de 1864.
Dois textos al -Lā ’iha al -’asāsiyya (a condição fundamental) e al -Lā ’iha
al -nizāmiyya (a lei especificando as atribuições da assembleia de delegados)
promulgados em 22 de outubro de 1866 e reunidos em um “regulamento”, cria-
ram o Madjlis shūrā al -nuwwāb (conselho consultivo, assembleia de deputados).
O artigo primeiro do primeiro documento definia a natureza da nova assem-
bleia:A Assembleia terá por missão deliberar sobre os interesses superiores do
país; ela deverá igualmente se pronunciar sobre os projetos que o governo crerá
depender de suas atribuições e sobre os quais ele dará sua opinião, a qual será
submetida à aprovação de Sua Alteza o Vice -Rei”.
A preponderância dos notáveis das vilas na Assembleia em detrimento
dos intelectuais que haviam retornado após a conclusão dos estudos no exte-
rior acompanhou -se de uma extensão sensível e crescente da sua nomeação
aos cargos administrativos, indo mesmo até o de mudīr. O apoio dado por estes
notáveis a Ismā‘īl durante os últimos anos de seu reinado e depois à revolução
do exército, permitiu ver neles os representantes da massa mais representativa
da classe política da época, os elementos da burguesia autóctone em formação,
aqueles que, no final, dominavam o essencial do país.
O ano de 1875 foi o ponto de virada: o quediva Isīl, diante da pene-
tração crescente das potências europeias, logo após a escavação do istmo de
Suez, laou -se em uma luta que lhe custaria o poder e o conduziria ao exílio
em 1879.
12 R. al -Tahtāwī, 1834.
389
O renascimento do Egito (1805 -1881)
Economia, sociedade e cultura: a dialética
da modernidade e da tradição
Em direção a uma economia autárquica
O primeiro ponto a sublinhar é que Muhammad `Alī criou uma economia
nacional em vez de uma simples economia local, como era o caso na maioria dos
países orientais desta época. A existência de um centro unificado de decio nacio-
nal em matéria de política ecomica decorreu, muito naturalmente, da especifici-
F . O shaykh Rial -Tahtāwī [Fonte: A. R. al -Rāfe‘ī, Asr Muhammad Aly, 1930, Cairo, Dar
al -Nahda al -Misriyyah; 4ª edição, 1982, Cairo, Dar el -Maaref. © Juiz Helmy Shahin.]
390
África do século XIX à década de 1880
dade histórica milenar do Egito. A economia autárquica desejada por Muhammad
Alī serviria ao seu propósito de fundar um Estado nacional egípcio moderno no
coração do seu império. Apesar da interrupção de 1840, Ismā‘īl poderia retomar a
via de Muhammad Alī. A pressão, depois a penetração do grande capital interna-
cional, enfim a ocupação do Egito em 1882 acresceriam a este primeiro fator dois
outros de importância: de um lado, a criação de um mercado nacional unificado,
particularmente graças às grandes obras empreendidas por Ismāīl; depois, de
outro lado, a integração econômica egípcia no circuito da economia internacional
pelo viés de empréstimos e, sobretudo, pela monocultura do algoo.
A obra de Muhammad ‘Alī merece uma análise mais atenta. Único entre os
dirigentes dos Estados do Oriente islâmico da época, Muhammad Alī consi-
derava a economia como o fundamento da política – a razão pela qual este sutil
oficial albanês alçou o posto de estadista. O Estado que ele tentava edificar, na
ocorrência, estava concebido no início, em 1805, como uma formação étnica
centrada em torno de um exército poderoso e eficaz, apoiando -se ele próprio
em uma economia moderna e autárquica
13
.
De 1818 a 1830, ele criou as grandes unidades industriais: as fábricas de
armas e de canhões da Cidadela, que atingiu seu apogeu em 1828 sob Adham
Bey; a fábrica de canhões do Arsenal; a fábrica de fuzis de al -Hūd al -Marsūd
(1821), as cinco fábricas de pólvora produzindo 15.874 kantār (1 kantār = 45
quilos) em 1833; o arsenal marítimo de Alexandria, criado por Lefébure de
Cerisy em 1829, o qual substituiu um mestre artesão genial, Hadjdj Umar;
depois a doca seca construída por Mougel, em 1844. De toda esta infraestrutura,
o marechal Marmon e Clot Bay seriam os observadores admiradores e surpresos.
No plano da indústria “civil’’, trinta fábricas de fiação e tecelagem de algodão
foram criadas, tanto no Baixo Egito como no Alto Egito; as fábricas do Cairo
forneciam às provínciais as máquinas, as ferramentas, as peças sobressalentes, os
materiais de construção e os técnicos para a manutenção das instalações.
A produção era suficiente para as necessidades do país e permitia, ao mesmo
tempo, substituir as importações por produções locais e obter lucros da ordem de
100% para o Tesouro Público. Três fábricas de tecelagem de lã foram fundadas
em Būlāk, Damanhūr e Fuwwa, assim como uma grande fábrica de seda em
13 Ver A. Abdel -Malek, 1969, p. 23, 32, 65, 108; e para estudos mais detalhados: A. R. al -Rāfe‘ī, 1951; G.
Baer, 1962; R. al -Barāwī e M. H. Eleish, 1944; A. Linant de Bellefonds, 1872 -1873; J. Bowring, 1840;
F. Djirdjis, 1958; M. F. Lehītā, 1944; G. Michailidis, 1950; H. iers, 1867; F. de Lesseps, 1869; M. K.
Moursy, 1914; H. A. B. Rivlin, 1961; J. Tagher, 1949; M. Fahmy, 1954; A. E. Crouchlye, 1938; A. A. A.
al -Gritly, 1948; A. Abdel -Malek, 1962; H. Khallaf, 1962; C. P. Issawi, 1966; M. S. Ghurbāl, 1944; A.
A. Hattāb, 1935.
391
O renascimento do Egito (1805 -1881)
Khurunfish (1816) e numerosas fábricas de linho através do país; três refina-
rias de açúcar; dezessete fábricas de índigo; duas grandes fábricas de vidro; o
curtume de Rosette (1827) e a fábrica de papel do Cairo (1834); seis fábricas
de salitre instaladas por um francês, Haïm. O ponto fraco já era o que frearia a
industrialização um século mais tarde: falta de minerais essenciais, o ferro e o
carvão, e a dificuldade de obter uma força motriz suficiente.
“O nosso objetivo não é de obter lucros, mas de dotar a população de uma
formação industrial”, disse ele a Bowring, o qual defendia a causa de um Egito
agrícola. A historiografia egípcia recente começa a tomar consciência desta
dimensão da obra do fundador da dinastia que sobreviveu até a sua derrubada
em 26 de julho de 1952.
O Tratado de Londres, acordado entre as potências europeias e a Turquia em
15 de julho de 1840, permitiria a redução deste imenso impulso de edificação
econômica independente gras às disposições que condenariam o Império
Otomano à decadência: foi o fim do monopólio, criado por Muhammad ‘Alī, a
abertura do Egito à penetração dos capitais estrangeiros, o início da escavação
do istmo de Suez que resultou, diretamente, na ocupação militar de 1882. Esta
integração se realizaria pela distorção imposta externamente à economia egípcia.
O fato de depender da monocultura do algodão teve manifestadamente efeitos
nefastos para o conjunto da vida econômica: a integração foi, aqui, a submissão
às cotações mundiais e às vicissitudes da conjuntura mundial, das quais o Egito
permaneceu alijado, por haver sido privado, depois de 1879, de seu poder sobe-
rano de decisão.
Um outro tipo de distorção ligava -se ao fato de que o Baixo Egito era privi-
legiado em detrimento do Alto Egito. O delta englobava, é verdade, o essencial
da superfície cultivável e sustentava as grandes cidades. As cidades eram o centro
do processo de modernização econômica, social, política e cultural. A classe
dirigente autóctone – aquela dos grandes latifundiários –, oriunda do desenvol-
vimento do setor capitalista a partir da instauração da propriedade privada da
terra, atuava, de um lado, nas cidades e nas áreas rurais; do outro lado, no país e
no estrangeiro que monopolizava o comércio exterior e, mais particularmente,
as compras de algodão.
Esta simbiose no topo, por assim dizer, criou elos ornicos profundos
entre o interior do país e as cidades. A circulão de alguns grupos se fez no
sentido da área rural para o centro urbano. O interior, aqui, é uma expressão
que pode também se aplicar ao Sul e ao Alto Egito, já que, se Alexandria,
voltada para a Europa, tinha um papel econômico capital sobretudo após
Sa‘īd ao final do culo –, o Cairo se situava em pleno coração do ps e
392
África do século XIX à década de 1880
controlava o delta, onde se criava o essencial da riqueza do país e onde vivia
a maioria da população.
A agricultura e a utilização dos solos
A ppria agricultura ocupou, muito naturalmente, o primeiro lugar nas
reformas ecomicas. No final do século XVIII, todas as terras, exceto as
wakf, se encontravam repartidas entre os multazim, cuja tarefa principal era
“coletar e enviar a receita devida por sua vila ou suas vilas ao Tesouro, central
ou provincial”. Todavia, H. A. R. Gibb e H. Bowen observam a extensão
dos direitos de usufruto progressivamente adquirido pelos multazim, o mais
frequente em benefício de sua falia, ao ponto em que “a propriedade do
Estado tornou -se o mais do que uma farsa”. Uma farsa que impediu a cons-
tituão do Estado moderno e centralizado com o qual sonhava Muhammad
A. Desde então, a única coisa que ele podia fazer era por um fim na divisão
e na dispero das receitas tiradas da terra. Com efeito, os dois miles de
faddān (1 faddān = 0,56 hectares) que constituíam a superfície cultivável do
Egito, em 1805, se repartiam em seis categorias: as terras abādiyya, shflik ou
jiflik, isto é, 200.000 fadn distribdos por Muhammad Alī aos membros
de sua família, aos dignirios e aos comandantes militares, terras isentas
de impostos; as terras dos mamelucos, na Cidadela (1811), em seguida, sua
liquidão no Alto Egito (1812) para conver -las em terras awsiya, 100.000
faddān dados em compensação aos mamelucos, a fim de não privar suas fa-
lia de todos os recursos; as terras dos shaykh, ou masmūh al -mashāyekh wal-
-masāteb 4% da supercie cultivável de cada vila, em um total de 154.000
faddān dados aos ula que ocupavam igualmente as funções de multazim;
as terras rizka, 6.000 faddān isentos de impostos dados de presente aos espe-
cialistas estrangeiros trabalhando no Egito; as terras athar, as quais perma-
neciam disponíveis foram dadas aos falhin; finalmente, as terras dos ‘erbān,
nas quais Muhammad Alī desejava que os bednos se fixassem. Dada esta
potica de repartão das terras, o Vice -Rei apareceu a seus contemporâneos
“como o agressor dos direitos adquiridos, o destruidor das casas prósperas, o
homem que toma o que es nas os de outrem e lhe tira os seus meios de
subsisncia”. Entretanto, segundo Shafīk Ghurl, tratava -se de um meio de
sair do caos, da pobreza, da fome e de caminhar rumo à ordem, à abundância,
à riqueza e à força”.
A situação, considerada no único plano da propriedade agrária, aparece mais
complexa. Com efeito, a tendência geral era para a ordem a da economia
393
O renascimento do Egito (1805 -1881)
egípcia sendo, de uma maneira geral, à época, estatal e autárquica. Contudo, é
exagerado sustentar, como o fez Muhammad Kāmel Mursī, que a terra foi logo
registrada individualmente no nome dos fallāhin e, se o essencial permaneceu
propriedade do Estado, Ibrāhīm ‘Amer viu, mais justamente, neste sistema uma
forma de transição:
o regime de propriedade agrária e o sistema social que a ele se sobrepunha no Egito,
antes de Muhammad Alī, eram aqueles de um ‘feudalismo oriental’, no qual as bases,
diferentes daquelas do feudalismo europeu, eram a ausência da propriedade privada
[de terras] e o centralismo do poder do Estado no campo da agricultura. Havia
contudo alguns pontos de semelhança com o feudalismo europeu.
Depois, tendo analisado a diferenciação dos tipos de propriedades agrárias,
ele concluiu que o regime de exploração agrícola da época de Muhammad Alī
era um regime temporário, de transição entre o feudalismo e o capitalismo
14
.
Um outro especialista destacaria este segundo aspecto:o desenvolvimento das
grandes propriedades privadas, característico do Egito moderno, tem sua ori-
gem no período de Muhammad Alī. A base de sua fundação, contudo, não é
o desejo de criar uma nova classe de proprietários de terras, mas de facilitar a
administração e a coleta dos impostos em benefício do governo e da nova classe
dirigente”. Voltaremos ao assunto.
Outros fatos merecem ser sublinhados. Foi Muhammad Alī que diversificou
as lavouras e, sobretudo, intensificou a lavoura de algodão, desde 1821, sob o
conselho de Jumel, o qual deu seu nome a uma nova variedade de algodão de
fibra longa. Esta, bem como o algodão do tipo americano Sea Island”, forneceu
ao Estado, detentor do monopólio sobre o comércio exterior, receitas apreciáveis,
que a colheita de 1845 atingiu 424.995 kantār, produzidos em 212.473 faddān,
isto é um aumento de 400% em vinte anos; um máximo de 80.000 kantār foram
para as fiações egípcias; restando por volta de 344.995 kantār para a exportação.
Os especialistas concordam em louvar a política de modernização agrícola do
Vice -Rei: além de tudo, ele forneceu o capital indispensável para transformar a
economia agrícola egípcia, de uma economia de subsistência para uma economia
de lavouras comerciais e o fez sem sacrifícar a produção de cereais sobre a qual
a economia agrícola egípcia baseara -se desde sempre”
15
.
14 Ibrāhīm ‘Amer explica a diferença entre o feudalismo oriental e o feudalismo europeu pela “ausência da
propriedade privada sob a forma de terra e o controle central do Estado sobre a propriedade agrária”.
15 H. A. B. Rivlin, 1961, p. 169 -170.
394
África do século XIX à década de 1880
De si, o Vice -Rei dizia, antes de tudo, ser um agricultor e um mercador”.
Pode -se ver um cálculo, que o soberano do Egito se dirigia geralmente
nestes termos a observadores estrangeiros. Mas então um agricultor no sen-
tido dos faraós, senhores daquela sociedade hidráulica da qual o Egito foi o
exemplo mais compacto e mais marcante em todas as eras. Mandou escavar,
através do trabalho escravo, trinta e seis canais e drenos, particularmente o
célebre canal Mahmūdiyya, aterrou o Phar‘awniyya, inutilizável, fez com que
construíssem quinze pontes e vinte e três barragens sobre o Nilo, dentre as quais
a grande barragem do Delta, al -kanātir al -khayriyya, além de numerosas obras
de reparação. O essencial do esforço concentrou -se, de longe, no Baixo Egito.
Todavia, a obra empreendida parece ter diminuído no fim do reinado, embora
a comissão nomeada em 1838 tenha indicado, em seu relatório de julho, que se
tratava de alcançar o objetivo, colossal para a época, de irrigar 3.800.000 faddān,
Muhammad hesitou em construir novas barragens, isto é, em consagrar uma
parte importante do seu potencial humano e material em uma obra interna,
no momento em que se definia a ofensiva econômica, política e militar das
potências europeias
16
.
Não é por acaso que caberia aos britânicos a execução do projeto gigantesco
de Muhammad Alī, após a ocupação do Egito. Tecnicamente, podemos concluir
que as obras de Muhammad Alī em matéria de irrigação aparecem como menos
impressionantes quando comparadas àquelas dos grandes períodos da história
egípcia”. Contudo, os observadores perspicazes da época não se enganaram: não
se tratava somente de modernização ou do desenvolvimento do território, mas
de assegurar a independência do Egito em relação aos outros países”, como bem
o entendeu John Bowring, comissário da Inglaterra no Egito.
A primeira etapa (1840 -1879) foi aquela da transição de uma econo-
mia profundamente marcada pelo “feudalismo oriental para uma economia
capitalista retardatária, do tipo colonial predominantemente agrária domi-
nada pelo Estado, retomando e ampliando a vontade de modernizão de
Muhammad Alī.
De fato, a política do monopólio, que abalou duramente os privilégios dos
antigos feudos e concentrou a terra, entre outras coisas, nas mãos do Vice -Rei,
preparou o caminho para a propriedade privada da terra através do usufruto. Em
1846, um decreto permitiu hipotecar as terras detidas em usufruto. Em 1854, as
16 Único entre os estrangeiros, o Dr. Clot Bey viu o problema, enquanto os contemporâneos e os pesquisa-
dores atuais – particularmente Bowring e Rivlin – mantêm -se somente no plano técnico e não explicam
este fenômeno.
395
O renascimento do Egito (1805 -1881)
transferências dos títulos de propriedades em usufruto deviam ser feitas diante
dos tribunais. Foi, contudo, a lei de 5 de agosto de 1858, promulgada por Sa‘īd
que instituiu formalmente o direito de propriedade privada da terra, segundo
diversas modalidades (cláusula 25); o direito à herança foi reconhecido em 1858.
Várias medidas sucessivas, entre 1858 e 1871, assimilaram as terras rizka, awsiha
e ab‘ādiyya às terras kharādj concernidas pelas reformas. Em 1880, praticamente
a maioria dos proprietários de terras detinha suas terras como propriedade
plena. A superfície das terras cultivadas passou de 3.856.226 faddān em 1840
para 4.758.474 faddān em 1882 graças às grande obras de desenvolvimento e
de infraestrutura empreendida essencialmente sob Ismā‘īl.
Compreende -se melhor agora a eficácia dos empréstimos estrangeiros con-
tratados por Ismā‘īl , a fim de empreender as grandes obras, dentre as quais
muitas tiveram um efeito sobre as regiões rurais. Desde então, Abbās iniciou
o processo ao outorgar a George Stephenson, em 1851, um contrato para a
construção da primeira ferrovia que devia ligar Alexandria ao Cairo. Sob Sa‘īd,
Kafr al -Zayyāt, Tantā e Suez foram ligadas à capital; deveu -se a ele igualmente a
construção de uma grande doca seca em Suez, a limpeza do canal Mahmūdiyya.
O Egito tornou -se assim o local de junção entre o Mediterrâneo e o Mar
Vermelho.
A. E. Crouchley, baseando -se no relatório Beardsley, estima em 51.394.000
libras egípcias o montante das despesas assumidas por Ismā‘īl para as grandes
obras: 112 canais estendendo -se sobre 13.500 quilômetros – isto é, um trabalho
F . A chegada do primeiro trem ligando o Cairo a Suez, 14 de dezembro de 1858. e Mansell
Collection Ltd., Londres.]
396
África do século XIX à década de 1880
de escavação que, comparado ao empreendido para o canal, é na proporção de
165 por 100; vários milhares de quilômetros de canais drenados; 430 pontes
construídas; a transformação de Alexandria no melhor porto do Mediterrâneo;
15 faróis sobre os dois mares; 1.880 quilômetros de ferrovia; 5.200 quilômetros
de linhas telegráficas, mais 2.000 quilômetros no Sudão; 64 refinarias de açúcar.
Ele restabeleceu o serviços dos correios, após um período de caos sob Sa‘īd; em
1874, o Egito assinou os acordos do I Congresso internacional dos Correios em
Berna. A introdução de esgotos, a melhoria das ruas do Cairo e de Alexandria, o
fornecimento de água potável e de iluminação em vários bairros, a modernização
do Cairo no modelo de Paris obras públicas estas que vieram a completar as
grande obras de infraestrutura.
O primeiro grupo social rural a se constituir como classe foi aquele dos gran-
des proprietários rurais. Em um primeiro momento – de 23 de março de 1840 a
24 de dezembro de 1866 –, o regime dos uhda, terras isentas de impostos dadas
de início em usufruto e que se tornaram progressivamente propriedades de fato,
se estendeu logo à família de Muhammad ‘Alī e aos dignitários; o total era esti-
mado em 1.200.000 faddān, dos quais 300.000 foram detidos pela família do
Vice -Rei. O resto serviu para constituir a base das futuras grande propriedades:
Salīm al -Salihdār Pacha recebeu as vilas de al -Balyāna e de Fadhara; a família
al -Shawāribī detinha 4.000 faddān (em 7.000) em Kalyūb, no final do século;
al -Sayyed Abāza Pacha recebeu por volta de vinte vilas na Sharkiyya e deteve
ainda quinze, isto é 6.000 faddān, em sua morte, em 1876; Badrāwī Pacha possuía
Samannūd, isto é cerca de 1.400 faddān. A passagem para a propriedade privada
o foi objeto de nenhuma pesquisa precisa; parece que os sucessores de Muham-
mad Alī admitiram o fato contra o pagamento dos impostos devidos pelos fallāhin
que trabalhavam nestas terras. Um segundo grupo de proprietários era aquele que
recebeu as terras em pousio, ab‘adiyya, cuja superfície atingia entre 750.000 e um
milo de faddān no final do reinado de Muhammad Alī, particularmente nas
duas províncias de Gharbiyya e de Beheira: Muhammad Shārīf Pacha e Daramallī
Pacha, ambos governadores ou ministros, foram os principais beneficiários. G.
Baer assinala que foram contudo as terras jiflik terras “dadas pelo soberano
compostas principalmente de vilas abandonadas em razão da forte tributação e,
deste modo, transferidas para a família real que constituiam o essencial da grande
propriedade rural; do milhão de faddān que representavam, em 1878, a proprie-
dade da família do quediva, as terras jiflik vinham em primeiro lugar; foi Ismā‘īl
que distribui a maioria das doações entre 1867 e 1876.
Dois decretos assinados por Saīd, em 30 de setembro e 11 de outubro de
1854, reagruparam todas as terras em duas categorias: ushūriyya (que englo-
397
O renascimento do Egito (1805 -1881)
bava os ts tipos descritos acima, mais as terras awsiya, pouco importantes)
e khadjiyya, isto é as terras que restavam fora da estrutura das grandes
explorações agrárias; com efeito, Y. Artin e Lorde Cromer assimilaram as
terras ushūriyya às grandes propriedades; elas passaram de 636.177 faddān
em 1863 para 1.423.087 em 1891, isto é uma alta de 14,5 a 28,8% das terras
cultivadas, enquanto que as terras khadjiyya oscilavam entre 3.759.125 e
3.543.529 fadn isto é uma queda de 85,5 a 71,2% durante o mesmo
período.
A primeira estatística da propriedade rural, em 1894, indicava que 11.900
grandes proprietários (mais de 50 faddān) detinham 2.243.500 faddān, isto é,
44% do total. O milhão de faddān pertencente à família do quediva em 1878
era nitidamente superior aos 664.000 faddān de 1844; Ismā‘īl tomou posse das
terras novas que repartiu em terras da ira al -Saniyya (503.699 faddān em
1880) e terras de domínio do Estado (425.729 faddān em 1878). Sabe -se que
as terras do Domínio deveriam ser cedidas em 1878 para cobrir o empréstimo
Rothschild, mas o quediva teve a precaução de distribuir uma grande parte aos
seus próximos antes deste vencimento. Mais tarde, novas disposições permitiram
a este grupo recomprar as terras do Estado. Deste modo,
se o duplo papel do soberano epcio como proprietário das terras do Estado
e de suas pprias terras acaba no final do reinado de Isīl [...] o membro
reinante da família (quediva, sultão ou rei) continua sendo praticamente o maior
proprietário rural. Mas eleo dise mais em teoria e, em grande medida, na
prática de uma vasta reserva de terras do Estado para aumentar suas proprie-
dades pessoais [...]. Também, a família real, como um todo, e gras às suas wakf,
assim como à sua grande riqueza que lhe permite comprar ainda mais terras,
manm o seu lugar proeminente que data do culo XIX, entre os proprietários
rurais do Egito.
Estes grandes proprietários eram recrutados, naturalmente, entre os altos
dignitários do regime, os oficiais, alguns noveis das vilas, alguns chefes
beduínos, os ulamān e os coptas (ver o quadro abaixo). Para situar as outras
classes sociais rurais, é interessante consultar a divisão dos proprietários por
categorias. O traço mais marcante é o desmantelamento da propriedade, na
virada do culo. As causas são múltiplas: os efeitos da lei ismicas sobre a
herança, o crescimento demográfico intenso e a lei sobre a impenhorabilidade
dos cinco faddān (dezembro de 1912). De fato, as pequenas propriedades
provinham tanto do desmembramento, relativo, das grandes propriedades
quanto das médias.
398
África do século XIX à década de 1880
Divisão dos proprietários por categorias no Egito em 1894 e 1914
Categorias de
proprietários
Número Superfície
Cifra
absoluta
% do
total
Cifra
absoluta
% do
total
Ano Grandes proprietários (+ de 50 faddān)
1894
1914
11.900
12.480
1,3
0,8
2.243.500
2.396.940
44,0
43,9
Proprietários Médios (de 5 a 10 faddān)
1894
1914
141.070
132.600
15,4
8,5
1.756.100
1.638.000
34,3
30,0
Pequenos proprietários ( de 5 faddān)
1894
1914
761.300
1.414.920
83,3
91,7
1.113.000
1.425.060
21,7
26,1
Os dados coletados sobre a condição socioeconômica dos umda e shaykh
das vilas são preciosos. O fim da era do monopólio e o subsequente apareci-
mento da propriedade privada da terra sob Sa‘īd reduziram sensivelmente a
importância desta categoria de notáveis rurais, antes prepostos dos multazim
e sempre representantes do poder central diante dos fallāhin. Ismā‘īl reforçou
a autoridade deles: “este cargo recai sobre o proprietário rural mais impor-
tante”, escreveu o correspondente do Times, D. Mackenzie Wallace; a enci-
clopédia de Alī Mubārak Pacha confirma e fornece os nomes das famílias de
‘umda (al -Sharīf, al -Hawwārī, al -Gayyār, Abdul -Hakk, Shi‘īr, al -‘Ukalī, Siyāgh,
al -Wakīl, al -‘Itribī, al -Shirī‘ī, etc). Estes eram os koulaks do Egito, sobre os quais
o pró -consulado de Cromer hesitaria em fundar o seu poder nas áreas rurais. A
importância do seu peso relativo nas áreas rurais, quando do recenseamento de
1894, procedia dos ganhos adquiridos sob Ismā‘īl: alocação das terras; emprés-
timos concedidos aos fallāhin pobres; arrendamento de suas próprias terras;
transações comerciais com a cidade, entre outros.
O número de koulaks aumentou nas regiões rurais, do mesmo modo que
aquele das famílias de fallāhin dispondo de menos de 3 faddān requeridos para
sua subsistência, além de outras categorias de pessoas sem terras nem emprego.
O processo de empobrecimento devia ainda se acelerar durante o período colo-
nial. Enquanto Abbas I apoiou os beduínos contra uma eventual aliança entre os
399
O renascimento do Egito (1805 -1881)
shaykh e os fallāhin e Sa‘īd tentou reduzir o poder político dos notáveis das vilas,
Ismā‘īl, ao contrário, apoiou -se amplamente sobre eles; a primeira assembleia
consultiva dos deputados de 1866 foi escolhida, em sua maioria, entre os shaykh;
entre os 74 -75 delegados que tomaram assento em 1866, 1870 e 1876, A. R.
al -Rāfe‘ī avaliou em 58 -64 o número de umda; outrossim, Ismā’īl nomeou um
grande número destes para o cargo de mudīr (governador) contra a aristocracia
turco -albanesa; naturalmente, estes homens apoiaram a revolução de Urābī em
1882 e juntaram -se aos fallāhin para defender a causa nacional.
Desenvolvimento cultural
A evolução cultural das premissas, obviamente pouco exitosas, da acul-
turação à elaboração de uma verdadeira filosofia da cultura nacional ocupa
um lugar à parte. Uma vez mais, como demonstra toda a história do Egito em
seus sete milênios, foi o Estado que formulou o projeto, formou os quadros e
impulsionou a ação. No centro deste processo, a grande figura de Shaykh Rifā‘a
al -Tahtāwi (1801 -1873) dominava a cena. Com ele, a Idade Média terminou
no Egito como em outros centros do mundo árabe.
Uma nova era começava, aquela da reconquista da identidade, objetivo das
civilizações da fase “nacionalitária”. Ela se faria em um quadro nacional, com
a ajuda do pensamento radical e da crítica dupla do patrimônio nacional e das
contribuições estrangeiras, de modo que a pátria seja o local de nossa felicidade
comum, que construiremos pela liberdade, pelo pensamento e pela fábrica”. Sua
obra mestre, Manāhedj al -albāb al -Missriyya fī mabāhedj al -ādāb al -‘asriyya (As
vozes dos corações egípcios rumo às alegrias dos costumes contemporâneos),
marcou, em 1869, a junção entre o pensamento nacional e a abertura para o
socialismo:
É o trabalho que o valor a todas as coisas, as quais não existem fora dele [...].
O trabalho é, então, o pivô da abundância; é através dele que o homem toma posse
da utilização dos animais e de sua indústria espontânea, que ele produz a fim de
que os membros de sua pátria usufruam [...]. Todas as virtudes que o crente deve
demonstrar em relação ao seu irmão na fé são igualmente obrigatórias para todos os
membros da pátria, em seus direitos recíprocos de uns para os outros, em razão da
fraternidade patriótica que os uni sem falar da fraternidade religiosa. Todos aqueles
reunidos por uma mesma pátria tem a obrigação moral de cooperar para melhorar
a condição de sua pátria e a ordem nos campos da honra da pátria, de sua grandeza,
de sua riqueza e sua prosperidade. Esta riqueza não pode ser obtida senão graças à
400
África do século XIX à década de 1880
regularidade das relações sociais e à execução de empreitadas de utilidade pública.
Estas serão repartidas igualmente entre os membros da pátria, a fim de que todos
participem dos benefícios do orgulho nacional. Quando a injustiça, a covardia, a
mentira e o desprezo desaparecerem, logo as virtudes e benefícios se espalharão entre
eles e virá a hora da felicidade entre eles
17
.
Instrumentos de vanguarda, as missões escolares na Europa, principalmente
na França, seguida pela Inglaterra, pela Áustria, pela Itália, pelos Estados ale-
mães e, mais tarde, pelos Estados Unidos da América, não assegurariam, em
si , a estrutura de um sistema pedagógico na escala de um país inteiro e de
suas necessidades. Os esforços aparecem, em retrospectiva e particularmente
em comparação com a ão executada pela ocupação britânica –, como verda-
deiramente imponentes. A diferenciação estabeleceu -se entre os dois tipos de
ensino, clássico tradicional e moderno, em função do legado egípcio, de um lado,
das exigências do Estado militar e do renascimento cultural, do outro. A rede
de escolas especiais superiores única no mundo não ocidental à época que
caracterizava o reinado de Muhammad Alī se duplicaria com a instituição de
um verdadeiro sistema de ensino nacional, sob Ismā‘īl, graças particularmente
a Alī Mubārak, após um interlúdio que permitiria às missões religiosas euro-
peias e americanas se implantarem, no momento da penetração imperialista,
apesar de uma oposição tenaz da Igreja cópta. O conjunto destas iniciativas e
desta reflexão dotaria o Egito, em meio século, de uma vez de um sistema
de ensino moderno e nacional, dos principais elementos de uma universidade
de qualidade real, de uma rede diversificada de instituições científicas e de um
programa pedagógico baseado nos valores humanistas, científicos e racionalistas
modernos. Foi neste último campo que se encontraram, naturalmente, as difi-
culdades mais sérias, tanto é verdade que é mais fácil modificar as instituições
do que remodelar as mentalidades.
A conjunção das missões escolares e da ascensão das novas elites do poder,
assim como a emergência de novas camadas sociais, particularmente nas cidades,
graças à ação política e militar do Estado, suscitariam um poderoso movimento
de imprensa e editorial, no qual o impulso e o controle estatais a partir da
criação de um diário oficial al -Wakā ’i‘ al -Misriyya (1828) permitiriam contudo
uma margem para iniciativas privadas (al -Ahrām foi criado em 1876).
É preciso notar que foi o Egito, a única entre todas as províncias do Império
Otomano, que ofereceu asilo aos intelectuais, pensadores, escritores e editores
17 R. al -Tahtāwi, 1869.
401
O renascimento do Egito (1805 -1881)
perseguidos pela Porta, na realidade a terra de asilo privilegiado, em função de
seu caráter oriental e islâmico, mas também organicamente interligado ao movi-
mento da Europa moderna. Uma terra de asilo que mais era um ponto de encon-
tros, de trabalho e de criação intelectuais, apoiado no único Estado moderno do
Oriente dotado de uma infraestrutura material, técnica e econômica avançada. A
luta empreendida pelo Egito depois do advento de Muhammad Alī para fundar
um Estado moderno, superar quatro séculos de decadência e dotar -se de uma
economia avançada apoiada em um exército eficiente e poderoso luta esta
retomada, em condições infinitamente mais rigorosas, por Ismā‘īl provocou
uma fermentação de ideias e de movimentos sociais e políticos de grande inten-
sidade: a imprensa árabe egípcia e sírio -libanesa, oficial e privada – vivia então
em um ambiente privilegiado de exaltação do sentimento nacional, propício à
renovação cultural e ao cruzamento de ideias. Foi isso, nos parece, mais do que
o único fato de ter sido o lugar de asilo preferido à época no seio do Império
Otomano, que constituiu a contribuição fundamental do Egito ao progresso
do ensino, da imprensa e da publicação das luzes no mundo árabe islâmico
de então durante este período que apareceria, mais tarde, como tendo sido
aquele da gestação da revolução e do renascimento nacionais. Bastarão alguns
exemplos.
A historiografia adotou muito rapidamente o método científico, e seu campo
de aplicação se ampliou do Egito às grandes experiências que abraçariam o
mundo, particularmente o mundo moderno e hegemônico, aquela Europa de
onde vinha o desafio. A transição de umma para watan da comunidade de
crentes” à pátria” no sentido estrito fez eco, no plano das ideias, à vontade
política do Egito de se separar da Turquia e se tornar autônomo.
A elaboração da noção de independência não seguiu a mesma curva que
aquela do conceito de pátria. A oscilação entre um autonomismo mais ou menos
autocentrado e uma vontade de independência real, acrescida de ambições impe-
rialistas, remete -nos à problemática específica do destacamento institucional da
personalidade nacional egípcia, no âmbito geopolítico historicamente definido
pela luta das potências rivais europeias pela partilha do mundo. Não se tratava
apenas da imperfeição das ferramentas conceptuais e ideológicas a qual não
era menos real. A dificuldade estava em outro lugar: uma dialética de confronto
bipolar direta não sendo possível, impuseram -se estratégias de tipo triangular
ou pluriangular, cujos protagonistas eram sempre o Egito, a França e a Grã-
-Bretanha aos quais se adicionava a Turquia. Por isso, o país buscaria doravante
em si fontes de força e motivos de legitimidade.
402
África do século XIX à década de 1880
A imitação do Ocidente era vista, com alegria, como uma operação de super-
fície um espelho do ser possível, que não podia se tratar de um possível
atualizável: a vestimenta; o urbanismo; a música sob a forma de ópera, mas
também de composições militares; o teatro, sobretudo; esboços de romance.
Obviamente que os salões não poderiam mascarar o essencial, isto é o ressurgi-
mento do Estado nacional. Eles não conseguiriam mais atenuar, nem que fosse
por um momento, a voz do país profundo. Esta, tal como a expressam os ditados,
os provérbios e os costumes, era impregnada por um sentimento de usurpação
– não no imediato, mas através e no final de uma história milenar; porém, uma
usurpação impensável, tão profundo era o enraizamento de cada um na gleba
imemorial. A sensibilidade popular viria à tona através de moldes e de fórmulas
expressando a necessidade de mediações viáveis.
Geopolítica e compradores
A dissolução do Estado de Muhammad Alī, a qual começou a partir do
Tratado de Londres em 1840, foi o prelúdio da penetração do Egito pelo grande
capital europeu, apoiado pelos compradores da época. À questão de saber se
o reinado de Abbās I foi verdadeiramente aquele “do silêncio e do terror,
Muhammad Sabry respondeu:
é preciso reconhecer, entretanto, que a política vigilante e severa do Vice -Rei criou
uma espécie de barreira contra a afluência europeia no Egito; que ela impediu,
sobretudo graças aos regulamentos estabelecidos para limitar a liberdade de comér-
cio interior, os europeus, gregos em sua maioria, de penetrar no interior do país e
de deixar as duas grandes cidades, Alexandria e Cairo, para difundirem -se nas áreas
rurais e comerciarem com os camponeses ignorantes.Abbās conseguiu deste modo
deter o mal (a era consular) que se ampliaria como uma mancha de óleo sob o seu
sucessor,que nunca deixou de existir
18
.
A concessão dada por Sa‘īd (1854 -1863) a seu amigo de infância Ferdinand de
Lesseps pela abertura do canal de Suez, em 30 de novembro de 1854, oficialmente
notificada pelo firmān de 19 de maio de 1855, marcou o início da penetração
do Egito pelo grande capital europeu, então no ápice de sua expansão colonial.
O impulso viria de Napoleão III em pessoa, que precipitaria a transformação da
Sociedade de estudos do canal de Suez, criada em 27 de novembro de 1846, por
três grupos de dez membros cada, representando a Grã -Bretanha, a França e a
18 M. Sabry, 1933.
403
O renascimento do Egito (1805 -1881)
Áustria – na Organização do conselho de administração da Companhia universal
do canal de Suez, criado em 30 de novembro de 1854 “de modo que a sua orga-
nização entre os homens de negócios facilitasse a ação dos homens de Estado
em suas negociações diplomáticas”, como o indicou Napoleão III a Enfantin.
Este último foi rapidamente descartado do negócio, em proveito exclusivo de
Lesseps que não cessaria doravante de conduzir Sa‘īd a todas as concessões, em
nome da amizade. Lesseps o empurrou, sem descanso, na via dos empstimos
estrangeiros. Na morte de Sa‘īd, em 18 de janeiro de 1863, o passivo do Egito se
elevaria a 367 milhões de francos (14.313.000 libras egípcias), de acordo com a
versão mais difundida, enquanto, segundo M. F. Lihītā, esse número teria alcan-
çado 16.308.075 libras. Além disso, Sa‘īd cedeu a preço irrisório o domínio de
Wādī 10.000 hectares, incluindo al -Tall al -Kabīr, chave do Egito –, quatro canais
interiores entre o Nilo e o lago Timsāh, três imóveis e suas dependências, assim
como entrepostos que se estendiam sobre 10.000 metros quadrados em Būlāk.
Desde o pronunciamento feito em 20 de janeiro de 1863, na Cidadela do
Cairo, diante do corpo consular, Ismā‘īl declarou sua intenção de abolir o tra-
balho obrigatório. “Ninguém é mais a favor do canal do que eu” disse ele um
pouco mais tarde – “mas quero que o canal seja para o Egito e não o Egito para
o canal.” Simultaneamente, as grandes obras de desenvolvimento econômico
no interior, as missões diplomáticas e as operações militares empreendidas no
exterior (México, Creta, África), tanto por conta da Porta quanto para a ins-
tauração do Império egípcio na África, aumentariam as cifras dos empréstimos.
Os meros são eloquentes: à medida que o Egito se atolava, as condições
tornavam -se mais draconianas. Ao todo, oito empréstimos, incluindo o de Sa‘īd,
escalonaram -se de 1862 a 1873; de fato, o empréstimo de 1868 não permitiu a
recompra da dívida flutuante e desviou -se para as despesas de funcionamento,
entre outras a da inauguração do canal. Ismā‘īl Saddīk imaginaria a lei dita
mukābala (1871), a qual seria aplicada até 1877: contra o pagamento de uma
soma correspondente a seis anuidades do imposto fundiário, os proprietários
eram confirmados em seus direitos de propriedade e se beneficiavam de uma
redução perpétua de 50% do dito imposto.
A bancarrota que ameaçava a Turquia, em 1874, reduziu a margem de mano-
bra de Ismā‘īl. Para enfrentar o vencimento de de dezembro de 1875, ele
negociou a cessão das 177.642 ações do canal com os credores franceses pri-
meiro, depois com a Grã -Bretanha. Em 25 de novembro, Disraeli apoiado pelos
Rothschild, arrematou o lote isto é, a toda parte do Egito na Companhia do
canal pela soma irrisória de 3.976.580 libras.
404
África do século XIX à década de 1880
Os residentes estrangeiros – que passaram de 3.000 em 1836 a 112.568 em
1897 agiriam de início como uma força de penetrão, depois como auxi-
liares das tropas de ocupação após 1882. Esta sociedade, de acordo com M.
Sabry, era formada principalmente por delinquentes, falsários, ex -condenados
da justa, nababos e aventureiros de toda a sorte”; e, segundo D. S. Landes, ela
“englobava uma mistura dos melhores e piores elementos do mundo europeu e
mediterrâneo: banqueiros e agiotas; mercadores e ladrões; agentes de câmbio
ingleses cheios de retidão e traficantes levantinos mercuriais; empregados
zelosos da P.&O. (Peninsular & Oriental); prostitutas multicoloridas para
a Praça dos nsules em Alexandria; eruditos devotados para os templos
de Abydos e de Karnak; malfeitores e homens de confiaa para as ruas do
Cairo”
19
.
O comércio atacadista de importação e exportação estava praticamente con-
trolado pelos estrangeiros, particularmente os ingleses, os gregos, os italianos e os
alemães (seis ou sete egípcios entre várias centenas de importadores em 1908);
o comércio semiatacadista e varejista estava igualmente nas mãos dos estran-
geiros, gregos, levantinos e judeus na maioria. As finanças e os bancos locais
estavam, essencialmente, nas mãos dos judeus, aliados ou associados aos bancos
europeus, os “neo -devoradores” os Cattaui, Ménaché, Suarès, Sursock, Ada,
Harari, Salvago, Aghion, Sinadino, Ismalun; eles negociavam com os gregos, os
italianos, os sírios e, mais tarde, com os egípcios. Mediterrâneos e levantinos
exerciam pequenas profissões, o comércio, o artesanato etc. Os súditos britânicos
– dos quais a metade vinha de Chipre, de Malta e de outras colônias – eram ou
militares ou funcionários públicos, ou engajados no comércio do algodão. Em
1897, a agricultura ocupava 64% da população ativa autóctone, contra 0,7% dos
estrangeiros; na indústria e no comércio, ao contrário, encontravam -se 50% da
população ativa estrangeira, contra 17% dos autóctones.
Em 1919, 1.488 proprietários estrangeiros possuíam mais de 50 faddān, isto
é um total de 583.463 faddān, ou seja, uma dia de 400 faddān por pessoa,
contra uma dia de 150 faddān para os grandes proprietários egípcios. A
renda média anual dos estrangeiros per capita atingia 85 libras egípcias contra
9,5 libras para os egípcios, sem falar, obviamente, das sociedades estrangeiras
em operão no país e dos empréstimos contratados no exterior. Em 1882, a
criação dos tribunais mistos tentaria reduzir a margem de desordem financeira
e administrativa.
19 D. S. Landes, 1958.
405
O renascimento do Egito (1805 -1881)
A revolução egípcia (1881 ‑1882)
Ao longo de todo o século XIX e mais particularmente a partir da parada
estratégica de 1840, a ascensão da burguesia egípcia deu -se em um contexto
implacável, aquele dos imperialismos ascendentes. Ela aconteceu ao mesmo
tempo que o estabelecimento de uma cultura verdadeiramente nacional, graças
notadamente a R. al -Tahtāwī e A. Mubārak, acompanhada pela formação de
um exército, então o mais poderoso da África, conduzido por politécnicos e
cientistas acostumados à estratégia a longo prazo.
Nos últimos anos do reinado de Ismā‘īl, diretamente encorajado pelo quediva,
o “grupo do Hilwān (Shārīf, Ismā‘īl Rāgheb, ‘Umar Lutfī, Sultān Pacha, os coro-
néis Ahmad ‘Urābī, Abdul‘ -Al Hilmī e Alī Fahmī, Mahmūd Sāmī al -Bārūdī,
Sulaymān Abāza, Hasan al - Shirī‘ī, Mahmūd Fahmī Pacha) como também as
reuniões secretas dos oficiais do exército egípcio começaram a agir em 1876. Tal
seria a origem do “Programa Nacional”, apresentado à Assembleia, em 2 de abril
de 1879, por sessenta parlamentares apoiados pelos grandes dignitários religio-
sos; tal seria também a origem do primeiro manifesto trazendo a assinatura do
Partido Nacional, em 4 de novembro de 1879, como também do primeiro pro-
grama do Partido Nacional, conjuntamente redigido por Muhammad Abduh e
W. S. Blunt, em 18 de dezembro de 1881. A ão era então principalmente do
tipo reivindicativo e constitucionalista. O Partido Nacional, entretanto, apoiava-
-se no exército, o último recurso. Sua ação era caracterizada por um gradualismo
a partir do topo, o reconhecimento do papel do exército na revolução nacional
e o quadro religioso, isto é islâmico, de ação política.
Diante do reagrupamento das forças nacionais em andamento, as potências
europeias, desta vez lideradas pela Grã -Bretanha apoiada pela França, tendo
como pretexto um sombrio complô que se traduziu em distúrbios e mortes em
11 de junho de 1882 em Alexandria, se reuniram em Constantinopla, em 23 de
junho, para considerar de novo a “Questão Egípcia”. Foi então tomada a decisão
de intervir militarmente. A esquadra britânica comandada pelo almirante Sey-
mour bombardeou Alexandria em 11 de julho de 1882, causando perdas con-
sideráveis em vidas humanas e o incêndio da cidade em 12 de julho. Esta ação
antecedeu a invasão militar que tinha por objetivo destruir a ponta -de -lança do
movimento nacional, isto é, o exército. Com efeito, os oficiais em comando das
três brigadas do exército, à frente de suas tropas, tinham apresentado em 9 de
setembro de 1881 ao quediva Tawfīk, confinado em seu palácio de Aabdīn, as
reivindicações do Partido nacional em nome de toda a nação. A invasão britânica
406
África do século XIX à década de 1880
se concluiu pela destruição do exército egípcio, particularmente durante a bata-
lha de al -Tall al -Kābīr, em 13 de setembro de 1882 quando o brigadeiro -general
Muhammad ‘Obeyd morreu à frente de suas tropas, herói sem sepultura da der-
rota da revolução. Um grande número de paxás, em torno de Muhammad Sultān
Pacha, aderiu ao invasor. Ahmad ‘Urābī e seus companheiros foram excluídos
do exército e exilados no Ceilão. A longa noite da ocupação começou, enquanto,
por quase um ano ainda, os fallāhin nas áreas rurais continuaram a se mobilizar
esporadicamente para manter viva a lenda de ‘Urābī e de seus companheiros.
O período que vai da abdicação forçada de Ismā‘īl (1879) à ocupação militar
britânica foi dominado pela radicalização profunda e acelerada do movimento
nacional egípcio e de sua ideologia em formação. O problema do renascimento
foi percebido e as vezes posto em termos explícitos. A resistência à penetração
econômica e política das potências europeias dominava a consciência nacional
e determinava os temas e os modos de expressão. Com a ocupação militar
iniciou -se um período que findaria, formalmente, com a evacuação de 1954 e,
efetivamente, em 1956 com a reconquista de Suez. O período seguinte foi tão
negro quanto foi descrito?
Primeiramente a renovação do pensamento islâmico. A reviravolta de 1840,
e em seguida a ocupação que se preparia, desde 1879, não poderiam deixar de
atiçar grandes massas, sensibilizadas pelo Islã. Mas onde pesquisar as causas
do atraso, os motivos da decadência e as justificativas da fissura? Um grupo de
pensadores, inseridos nos grupos sociais ligados aos setores tradicionais da eco-
nomia e das instituições, ressentiu mais vivamente que os setores modernistas da
economia da época a crueldade desta marginalização histórica. Seus teóricos, e
principalmente Muhammad Adduh, se aplicaram em buscar no mais profundo
da tradição nacional cultural mais marcante a do islã as razões e as chaves.
A religião e a ideologia não eram mais, no século XIX, aquelas que Muhammad,
nabī al -‘arabī (o profeta árabe), tinha instituído. Tradições na maioria falsas; as
escórias; a longa herança dos séculos de decadência e de dependência: o islã não
era mais o mesmo. Doravante, convém ver nesta desnaturalização a fonte da
decadência nacional e no retorno aos fundamentos dos princípios a via de todo
futuro possível para um país islâmico. As reformas sugeridas não excluíam o uso
da razão ou, mais exatamente, do bom senso, mas apenas no quadro da religião;
pragmatismo que permitiu a abertura à contemporaneidade, mas recusava, o
processo de teorização; recusa de toda dialética social, em nome da unidade do
umma; recusa do historicismo, o passado sendo privilegiado, por princípio – tais
parecem ser, de um lado a inspiração profunda do pensamento teológico, do
407
O renascimento do Egito (1805 -1881)
outro lado os traços essenciais da aplicação deste pensamento nos campos da
política e do social desta renovação.
Os radicais estavam em outro lugar. Eles se enraízavam, contudo, no mesmo
terreno, mas somente setorialmente, é verdade. O islã irrigava as duas tendências,
e al -Azhar, com frequência, acolhia e formava, mas somente em um primeiro
momento. Al -Tahtāwī, desta vez, anunciava mais do que dirigia. A direção do
movimento nacional o “grupo do Hilwān”, que escolheu ‘Urābī como chefe
evoluiu a partir de teses liberais, pró -independência e constitucionalistas,
muito aceitáveis para a época, em virtude de um pragmatismo prudente que a
explosão revolucionária apenas desmentiria por um tempo. A frente das classes
ascendentes, à época mal estruturadas ou em gestação, se dotou naturalmente
de uma armadura ideológica eclética. Ecletismo mas não síntese. As forças
ascendentes da época, das quais 1952 marcaria a queda, não conseguiram ainda
realizar a triagem crítica preliminar a toda síntese; o amálgama frentista foi pre-
ferido à análise; o unanimismo revolucionário a uma definição exata em termos
de princípios e classes. Foi então, nos parece, que a ideologia do modernismo
liberal tornou -se um slogan equivocado a despeito de al -Tahtāwī.
F . O bombardeio de Alexandria, julho de 1882. [Fonte: A. R. al -Rāfe‘ī, awrat Arabi wal -Ihtelal
al -Biritani, 1937, Cairo, Dar al -Nahda al -Misriyyah. Fotograa original publicada no e Graphic, Londres,
1882.]
408
África do século XIX à década de 1880
No meio da grisalha do tempo, na noite da ocupação cujo peso, nesta pri-
meira fase, foi particularmente sufocante, Abdullāh al -Nadīm (1843 -1896)
apareceu como uma figura legendária. Nele, tudo convergiria: o pensamento e
a ão, a retórica e a eficácia, o classicismo e a modernidade. Sua contribuição
principal estava, essencialmente, na implantação das teses e ideias nacionalitá-
rias, até então privilégio das elites, nas massas profundas do povo das cidades e
do campo. Jornalista, tribuno, organizador político, autor teatral, teórico e pra-
ticante eminente do árabe dialetal e historiador, ele foi o verdadeiro criador do
populismo revolucionário que encontraria nas colunas de seus jornais sucessivos,
al -Tankīt wa’l -Tabkīt, depois al -Ta’ef, como também na criação da Sociedade
Benfeitora Islâmica, os meios de despertar a opinião pública. Eu proclamo o
amor dos soldados e a necessidade de se apoiar neles, eu apelei às massas a se
unirem a eles. Eis o seu apelo de 20 de julho de 1882, no momento da revo-
lução de ‘Urābī:
Habitantes do Egito! Os ingleses dizem que o Egito é a fortaleza dos países ára-
bes e que aquele que penetrá -lo conquista através dele os países dos muçulmanos.
Levantai -vos na defesa de vossa pátria, fortificai -vos, preservai a fortaleza dos países
islâmicos, lutai na guerra santa e justa em nome de Aa fim de preservar esta grande
religião e afastar um inimigo que deseja penetrar com seus homens e sua cavalaria
no país de Deus, na santa Ka‘ba, através do vosso país, apoiando -se para fazer isso
em vosso quediva que vendeu a nação a fim de agradar os ingleses e deu as terras do
islã em troca da proteção que lhe dão os ingleses!
Após a derrota, o seu último jornal, al -Ustādh o qual se desejava como
o cadinho da radicalização da ideologia nacional, o local do retorno às raízes
patrióticas na travessia da longa noite que conduziria em 1892 ao ressurgimento
do movimento nacional em torno do Partido nacional declarou:
Em uma palavra, o remédio mais forte é a cauterização com fogo. A situação atingiu
o seu pico. Se conseguirmos remendar este tecido rasgado, se nos apoiarmos uns aos
outros, se unificarmos a palavra oriental, egípcia, síria, árabe e turca – então podere-
mos dizer a Europa: “Nós somos nós e vocês são vocês’. Mas, se permanecermos onde
estamos contradições, capitulação, apelo uns após os outros ao exterior –, então a
Europa terá o direito de nos expulsar de nossos países até os cumes das montanhas
e, após ter -nos cercado entre os animais selvagens, dizer -nos com razão: ‘Se fôsseis
semelhantes a nós, teríeis agido como nós.”
Nove anos de clandestinidade, a primeira na história do movimento nacio-
nal egípcio e que faria escola, fizeram de Nadīm o porta -voz da massa dos
409
O renascimento do Egito (1805 -1881)
fallāhin, este país profundo que ele trabalhou e irrigou com sua seiva. É preciso
ler as lembraas publicadas, oitenta e quatro anos mais tarde, em 1966, por
um dos raros sobreviventes dos fallāhin rebelados à época, al -Hādjdj Uthn
Shu‘īb:
O país não se calou; houve numerosas rebeliões; os sultões, os reis e os ingleses
mataram -nas. Quanta juventude se foi sem resultado [...]. Depois veio Gamal. Ele
vingou ‘Urābī; ele vingou os fallāhin; ele expulsou o sultão e os ingleses. Uma única
coisa me desagrada; a foto de ‘Urābī: aonde estão suas mãos, seu porte alto? Onde
está a sua espada?
Naquela noite de toda a ocupação, na grisalha, a abdicação e os compromis-
sos, diante do terror que se abateu sobre o país desconcertado, Nadīm proclamou
o advento do povo no timão da revolução portadora do amanhã.
O impacto do Egito: a outra margem do rio
Na hora do balanço, uma grande interrogação se impõe claramente: como
explicar este renascimento em crise, a ruptura de uma escalada que permaneceu
verdadeiramente fulgurante para a época, um processo travado, do qual o mundo
árabe e a África mantiveram a nostalgia?
Trata -se, fundamentalmente, do peso do fato geopolítico sobre o conjunto
de todo o processo, bem mais do que das razões internas, as quais tiveram igual-
mente um papel substancial. Com efeito, se aceitarmos a matriz dos dois círculos
da dialética social o círculo externo, exógeno, e o círculo interno, endógeno
claramente veremos que, no caso do Egito, local de todas as tormentas, na
junção do Oriente e do Ocidente, ponto de encontro de três continentes (África,
Ásia e Europa), foi o círculo externo aquele da geopolítica que comandou
o conjunto. O século XIX egípcio foi, bem entendido, o ponto culminante das
guerras que devastaram o litoral do Egito e da Síria, bem como o Magreb árabe
e islâmico, desde o século XVIII; sendo 1882, aliás, a data exata na qual todos
os países árabes e islâmicos da África do Norte e da Ásia Ocidental cessaram
de ser formalmente independentes para se tornarem possessões militares diretas
das grandes potências do Ocidente.
Mas mais. Os golpes dados na primeira etapa do renascimento egípcio,
desde as grandes batalhas navais do Mediterrâneo e o Tratado de Londres em 1840
até a ocupação militar em 1882, a penetração maciça dos capitais e dos colonos
estrangeiros, o desmantelamento progressivo do movimento de indepenncia e de
410
África do século XIX à década de 1880
edificação nacional o deixariam tempo para o Egito e estamos no coração do
rculo engeno da dialética social perfazer uma ntese do pensamento nacional
que pudesse fazer frente à penetração estrangeira, estruturando, ao mesmo tempo,
o projeto nacional de modo realista e adequado. As grandes tendências do pensa-
mento egípcio – o modernismo liberal de um lado e o fundamentalismo islâmico
do outro tentariam executar sua junção apenas na metade do século XX. O culo
XIX permanece, por sua vez, como o do esboço, das aproximões inadequadas e da
simbiose impossível. Daí a permeabilidade do terreno nacional em que o moder-
nismo da aculturação se encontrou facilmente confundido com a modernidade
nacional crítica, onde a onda ocidental” de facilmente isolar os diferentes fatores
constitutivos e as grandes formações do movimento nacional egípcio.
O impacto desta primeira etapa do renascimento egípcio repercutiria muito
além de suas fronteiras. O Sudão, a Abissínia, o Chifre da África e a área dos
Grandes Lagos da África central experimentariam os ensinamentos do Egito
renascente em luta contra o imperialismo. No Magreb, o renascimento do islã
político e das grandes lutas populares e militares contra a penetração colonial
inspiraram -se sem cessar nas diferentes dimensões do esforço egípcio. Foi o Tra-
tado de Berlim que codificou a divisão da África em 1881. Ele o fez em grande
parte para assegurar o desmembramento racional e desde então legalizado, do
grande continente, cujo despertar ameaçou o que era então a ordem do mundo,
o “concerto hegemônico das potências”.
Ainda mais além, a obra de Muhammad‘Alī serviria de lição, uma das lições
principais, que a equipe estabelecida pelo imperador Meiji estudaria a fim de
promover a restauração japonesa a partir de 1868. A situação geopolítica, neste
caso, era inversa: protegido pelos continentes, os oceanos, até o surgimento do
comandante Perry, o Japão permaneceu muito mais senhor da sua coesão nacio-
nal cultural e, desde então, pôde iniciar a obra de modernização longe da prensa
de ferro e de fogo da geopolítica até Hiroshima e Nagasaki. Lembraremos,
aqui, o impacto da vitória japonesa de Tsushima (1905) sobre o despertar da
consciência nacional e sobre o Partido Nacional de Mustafá Kamāl e Muham-
mad Farīd no Egito do início do século XX. Enquanto isso, entre o mundo
árabe e o Japão, a reforma constitucional dos Tanzīmāt, na Turquia, inspirou -se
diretamente e explicitamente nas reformas egípcias: últimos sobressaltos do
califado otomano que seriam retomados e racionalizados pela Ittihād wa Taraqqī
e os Jovens Turcos de Enver Pacha e Mustafá Kamāl (Ataturk).
Abriu -se a cortina para o renascimento nacional do Egito, certamente em
crise, que seria, objetivamente, o elemento formador do ressurgimento da África e
da Ásia, do Oriente moderno, de 1805 à Conferência de Bandoeng, em 1955.
C A P Í T U L O 1 4
411
O Sudão no século XIX
As migrações árabes com destino ao Sudão Oriental – correspondendo mais
ou menos ao Sudão atual, menos a região meridional começaram no século IX
e atingiram seu apogeu no século XIV. Por meios pacíficos, os árabes penetraram
progressivamente no país e propagaram sua cultura, sua religião e sua influência
entre as sociedades cristãs e tradicionalistas
1
. No início do século XVI, o Sudão
Oriental era essencialmente dominado por dois sultanatos muçulmanos: os sul-
tanatos funj e fur. Enquanto os sultões fur, os quais descendiam de uma grande
família sudanesa os Kayras –, reinaram sobre Darfur até 1874, os sultões de
Sennar capitularam frente aos turcos em 1821
2
. O sultanato dos funj foi dila-
cerado pelas rivalidades dinásticas, sobretudo entre os fundadores, os funj e os
abdallāb, e, subsequentemente, entre os diversos grupos hostis hamadj, os quais
presidiram seus destinos a partir da década de 1760. Todos estes antagonismos
levaram, no início do século XIX, à desintegração final do sultanato em chefias
frágeis e opostas umas às outras
3
. O caos e as guerras locais que se seguiram
deram, em 1820 -1821 ao vice -rei do Egito, Muhammād ‘Alī, a ocasião que ele
esperava impacientemente para agregar o Sudão às suas possessões. Deste modo,
1 Para um estudo mais detalhado desta questão, ver Y. F. Hasan, 1967.
2 P. M. Holt, 1973, p. 67.
3 Para maior precisão, ver História Geral da África, vol. V, cap. 7
O Sudão no século XIX
Hassan Ahmed Ibrāhīm
com uma contribuição de Bethwell A. Ogot
sobre o Sudão Meridional
412
África do século XIX à década de 1880
F . O Sudão sob o domínio turco, 1820 -1881 (segundo H. A. Ibrāhīm)
413
O Sudão no século XIX
começou o primeiro período de domínio colonial que o Sudão conheceu durante
mais de sessenta anos.
Qualifica -se com frequência de egípcia este período colonial da história do
Sudão. Contudo, se tivermos que qualificá -lo assim, este termo deve ser empre-
gado com prudência. O Sudão não foi efetivamente conquistado ou governado
pelos egípcios tais como os conhecemos hoje, mas por uma “entidade de lín-
gua turca cujos membros dominaram o Egito desde a época medieval”. Salvo
algumas exceções, os verdadeiros egípcios, isto é, os habitantes do baixo vale do
Nilo, não foram nomeados para cargos políticos ou militares importantes nem
no Egito nem no Sudão conquistado, acederam somente a cargos subalternos
na administração e no exército. Esta é a razão pela qual os sudaneses, como
os europeus, chamavam os dirigentes do país de “turcos”,porque o Sudão era
egípcio somente porque era dependente da província otomana do Egito
4
. Neste
capítulo, nós adotaremos a expressão Turkīyya (turco) preferencialmente a
egípcio ou ao neologismo atual, porém inoportuno, de “turco -egípcio”.
Pode -se estudar o domínio turco no Sudão (1821 -1885) sob as três seguintes
grandes rubricas: a estratégia da conquista e a reação dos sudaneses do Norte; a
resistência ao avanço imperial no Sul (1840 -1880); o papel do novo regime na
modernização do Sudão.
A estratégia da conquista e a reação
dos sudaneses do Norte
A estratégia da invasão turca no Sudão foi tema de muitas controvérsias entre
os historiadores. Segundo alguns historiadores egípcios, o objetivo principal de
Muhammād Ali, quando empreendeu o que denominaram de “abertura” do
Sudão, era o bem estar do país e de sua população. Segundo eles, Muhammād
Alī sentia tanta comiseração pela degradação das condições de vida dos habi-
tantes do sultanato funj que decidiu intervir pela força para tirá -los da miséria
e para, subsequentemente, unir os sudaneses aos seus irmãos do Egito em um
Estado poderoso que trabalharia a favor do bem estar” dos dois povos
5
. Alguns
historiadores egípcios chegaram a afirmar que Muhammād Alī empreendeu
aquela invasão “por solicitão dos próprios sudaneses
6
, representados por
4 R. Hill, 1966, p. 1.
5 M. F. Shukri, 1948, p. 23.
6 M. A. al -Jābrī, s.d., p. 18.
414
África do século XIX à década de 1880
alguns notáveis que o encontraram no Cairo e o pressionaram a intervir assim.
Isto é o que fizeram efetivamente alguns dignitários sudaneses; mas é razoável
pensar que seus motivos fossem estritamente pessoais o que se explica pelas
rivalidades dinásticas que os opunham aos sultões funj. Não então como
supor que eles agiram como representantes do povo sudanês.
Um eminente historiador egípcio, já falecido, o professor Muhammad Fu‘ād
Shukri, afirmou que a conquista de Muhammād Alī estabelecera solidamente
os direitos legais e históricos” do Egito sobre o Sudão. A dissolução do sulta-
nato funj, em 1820, e o desaparecimento da autoridade legítima de seu sultão
fizeram do Sudão, segundo Shukri, “uma terra sem soberano
7
uma “terra de
ninguém”. Por isso, quando Muhammād Alī impôs seu poder e estabeleceu um
governo forte, o Egito se tornaria automaticamente, a partir de 1821, a autori-
dade soberana e incontestada no Sudão pelo direito de conquista
8
. Shukri afirma
que uma das razões fundamentais da estadia de Muhammād ‘Alī no Sudão em
1838 -1839
9
foi para propagar esta teoria a qual ele chamou de “teoria do vazio
e de se apoiar nela para “salvaguardar a unidade do vale do Nilo”, isto é, para
manter os dois elementos constitutivos, Egito e Sudão, sob um regime político
único
10
.
Esta reivindicação de soberania egípcia sobre o Sudão dominou a política
egípcia e sudanesa até a década de 1950. Shukri parece ter tido motivos polí-
ticos para sustentar a tese dos partidários da unidade do vale do Nilo contra
aquela dos partidários de um Sudão independente. Deve -se também agregar
que o sultão de Sennar, o qual, em 1820, não passava de um mero fantoche,
permanecera até aquela época como o soberano legítimo do país. Além disso, o
Egito não podia reivindicar a soberania sobre o Sudão por direito de conquista
já que a invasão fora empreendida em nome do sultão otomano e que o próprio
Egito permaneceria, até 1914 pelo menos, uma província otomana. De todos os
modos, o sultanato dos funj não poderia ser identificado com o Sudão.
A hipótese do bem estar da população colocada para explicar a invasão
egípcia, foi questionada do mesmo modo por alguns historiadores sudaneses
em trabalhos recentes
11
. Baseando -se em documentos de arquivos muito varia-
dos, estes trabalhos provam que Muhammād ‘Alī tinha como primeiro objetivo
7 M. F. Shukri, 1946, p. 18.
8 Ibid., p. 38 -39.
9 Para um trabalho sobre esta estadia, ver H. A. Ibrāhīm, 1980a, 1980b.
10 M. F. Shukri, 1958, p. 13.
11 Ver, por exemplo, H. A. Ibrāhīm, 1973, e B. K. Humayda, 1973.
415
O Sudão no século XIX
F . Sennar em 1821: a capital do antigo sultanato dos funj, na época da invasão turco -egípcia.
[Fonte: P. M. Holt e M. Daly, History of the Sudan, 1979, Weidenfeld and Nicolson, Londres. Ilustração: e
National Trust, Kingston Lacy, Bankes MSS.]
F . Um acampamento de caçadores de escravos turco -egípcios no Cordofão. [Fonte: P. M. Holt e
M. Daly, History of the Sudan, 1979, Weidenfeld and Nicolson, Londres. Ilustração: George Weidenfeld and
Nicolson Ltd., Londres.]
explorar os recursos humanos e econômicos do Sudão a fim de realizar suas
vastas ambições no Egito e no estrangeiro.
Desejoso de consolidar sua independência no Egito e de construir um impé-
rio à custa do imperador otomano, Muhammād ‘Alī criara, um pouco antes da
conquista do Sudão, um exército poderoso e moderno. Muhammād Alī que
416
África do século XIX à década de 1880
começara por excluir, por várias razões, o recrutamento dos fallāhin (campo-
neses) egípcios
12
, esperava recrutar 20 ou 30.000 sudaneses em seu al -nizam
al -djadīd (nova organização). Ele tinha também necessidade de muitos dentre
eles em suas numerosas empreitadas agrícolas e industriais do Egito. Não cessou
então de intimar seus chefes de corpo no Sudão para intensificar as ghazwa
(ataques para capturar escravos) e para enviar o máximo de africanos possível aos
acampamentos especialmente arranjados para eles em Assuã. Ele sublinha em
uma diretiva que é a justificativa mais importante das “dificuldades e despesas da
conquista”, e declara em uma outra que esta prática desumana responde ao seu
desejo mais vivo”, quaisquer que sejam os meios utilizados para atingi -lo
13
.
Até 1838, não passou sequer um ano sem que tenha tido ao menos uma, e
às vezes várias, ghazwa aos negros nos montes Nuba e além de Fazughli; mas
o número de negros suscetíveis de serem reduzidos à escravidão diminuía. A
esperança que tinha Muhammad ‘Alī de inchar as fileiras do exército negro de
seus sonhos não era mais do que uma utopia que não fora precedida de estudo
algum aprofundado sobre o reservatório de escravos que constituía o Sudão”
14
.
Ademais, os negros sudaneses opunham uma resistência feroz contra os ataques
escravistas, alguns mesmo suicidavam -se para evitar a humilhação de uma vida
na escravidão. Perdiam -se muitos dos cativos no caminho, enquanto que as
febres, a disenteria, o frio e o banzo acabavam com um bom número de outros
na própria Assuã. Diante deste revés radical, Muhammad ‘Alī resolveu praticar
em grande escala o recrutamento obrigatório dos fallāhin, e descobriu logo que
estes “formavam uma das melhores infantarias regulares do Oriente Médio
15
.
Quando eram recrutados para seu serviço militar no próprio Sudão, os negros
davam também provas de indiferença e de indisciplina. Alguns desertavam,
enquanto outros pegavam em armas contra o governo. A mais importante destas
rebeliões foi sem dúvida a de Medani, em 1844. Como reação às injustiças e
humilhações, os soldados sudaneses conspiraram para se revoltar simultanea-
mente em quatro lugares: Cartum, Sennar, Kamlin e Medani. Mas os rebeldes
de Medani insurgiram -se antes da data fixada, mataram alguns de seus oficiais
12 Sendo ele próprio um estrangeiro, Muhammād‘Alī estimava talvez que um exército nacional colocaria sua
posição no Egito em perigo. Pode -se, sem dúvida, explicar sua decisão pela repugnância dos fallāhin em
fazer o serviço militar e pelo seu desejo de -los consagrar todos os seus esforços no desenvolvimento
agrícola do Egito.
13 Citado em H. A. Ibrāhīm, 1980a, 1980b.
14 R. Hill, 1966, p. 25.
15 Ibid., p. 7.
417
O Sudão no século XIX
turcos e fugiram para Sennar para continuar a rebelião. Foi com grandes difi-
culdades que o governo reprimiu este levante
16
.
Mais importante ainda foi o desejo de Muhammad Alī de explorar as rique-
zas minerais sudanesas, principalmente as jazidas auríferas. Quando tomou o
poder em 1805, o Egito era uma das províncias mais pobres, senão a mais pobre,
do império otomano. Daí a vontade de Muhammad Alī de encontrar uma fonte
fácil de receitas para realizar suas aspirações no interior e no exterior. Obcecado
desde a juventude até a velhice com a ilusão que se encontraria ouro em abun-
dância no Sudão, ele utilizou esforços imensos para descobrir, particularmente
na região de Fazughli e nos arredores do djabal Shaybūn. Não contente em
insistir junto aos seus chefes de unidades sobre a urgência que revestiam os
estudos mineralógicos sobre o ouro, Muhammad ‘Alī enviou, em algumas oca-
siões, especialistas ao Sudão; por exemplo, o austríaco Rosseger e seu próprio
engenheiro Boreani. Enfim, aos setenta anos, ele percorreu, em 1838 -1839, toda
a distância que separava o Cairo de Fazughli, para supervisionar as explorações;
mas sua estadia de três semanas foi decepcionante. As atividades mineradoras
do poder público não somente fracassaram, mas tinham também absorvido uma
grande parte dos magros recursos do Tesouro egípcio.
Entretanto, os imperialistas turcos saíram -se melhor com o desenvolvimento
da agricultura no Sudão. Eles enviaram especialistas agrônomos egípcios que
melhoraram os sistemas de irrigação, ampliaram as lavouras existentes, intro-
duziram outras novas e lutaram eficazmente contra parasitas e pragas, princi-
palmente os acridianos. Eles nomearam veterinários para cuidar dos animais e
fizeram vir do Egito curtidores qualificados para ensinar os sudaneses a con-
servar as peles e os couros. Também, a conquista garantiu uma maior segurança
aos negociantes sudaneses do Norte e egípcios e permitiu a introdução posterior
do comércio europeu
17
.
Todavia, este desenvolvimento da agricultura e da pecuária não foi aparente-
mente posto a serviço da população sudanesa. Ao contrário, o governo se preo-
cupou, sobretudo, em beneficiar o Egito. Durante todo seu reinado, Muhammad
Alī impôs um monopólio restrito do Estado sobre quase toda a produção e
exportação do país. Assim foram exportadas para o Egito quantidades consi-
deráveis de produtos sudaneses, índigo, goma, marfim, etc. Também, durante
todo o domínio turco, o Sudão foi para o Egito a fonte mais barata de produtos
pecuários. Apesar das dificuldades encontradas para deslocar o rebanho ao longo
16 H. A. Ibrāhīm, 1973, p. 92 -94.
17 R. Hill, 1966, p. 50.
418
África do século XIX à década de 1880
do vale do Nilo, onde havia o perigo dos ladrões nômades e onde nada tinha
sido organizado para alimentar e dar água aos animais, os bovinos chegavam
regularmente a cada ano no Egito. O Sudão enviava do mesmo modo produtos
de origem animal tais como couros e crinas
18
.
Os sudaneses não foram submetidos regularmente a impostos sob o sultanato
fudj, e a carga fiscal era então leve, em particular para os pobres. Entretanto,
desejoso de mobilizar e explorar todos os recursos sudaneses, os administradores
turcos ampliaram o sistema egípcio de tributação no Sudão, acrescentando as
modificações necessárias. A introdução deste regime fiscal inteiramente novo
desorganizou inevitavelmente a vida econômica da população. Os meios brutais
empregados pelos bachi -bouzouk (bāzbuk) (soldados irregulares) para receber
estes pesados impostos e a insistência manifestada com frequência pelas auto-
ridades para que o pagamento fosse feito em dinheiro, já que as moedas apenas
eram usadas correntemente entre os mercadores e entre a população urbana,
agravaram ainda mais a situação.
A reação dos sudaneses foi imediata e, no mais das vezes, violenta. Alguns
deixaram suas terras e seus sākiya (engenhos) e fugiram para as fronteiras da
Abissínia ou para o Oeste, mas muitos outros se rebelaram, participando das
revoltas camponesas, numerosas e díspares, que tiveram lugar em toda a Turkīyya,
da qual a mais virulenta foi sem dúvida a revolta sudanesa de 1822.
Desprezando o sistema fiscal tradicional do Sudão, o intendente copta de
finanças, Hana al -Tawīl, baixou em 1821 pesados impostos sobre as populações
da Gezira e de Berber. Estas se rebelaram violentamente em fevereiro de 1822,
atacando e matando membros de destacamentos isolados de soldados egípcios.
De Shendī a Sennar, os habitantes fugiram aos milhares até a fronteira da
Etiópia, no vale do Atbara e na região de Gedaref. Para evitar uma revolta em
massa, Ismā‘īl, filho de Muhammad Alī e comandante -em -chefe em Sennar,
regressou precipitadamente de Fazughli na Gezira. Dando mostras do espírito
de conciliação e aceitando uma revisão do sistema tributário, ele conseguiu
provisoriamente restabelecer a calma. Mas ele mesmo cometeria logo um erro
desastroso. Deixando o Sudão para voltar ao Egito, ele fez uma parada em
Shendi e exigiu das populações dja‘liyīn uma contribuição exorbitante: 30.000
dólares e 6.000 escravos a serem reunidos em dois dias
19
. Nimir, o mak (chefe)
dos dja‘liyīn locais, protestou demonstrando que seus administrados não tinham
meios suficientes para pagar o que se exigia deles. Ismā‘īl, cheio de arrogância,
18 H. A. Ibrāhīm, 1973, p. 135 -154.
19 R. Hill, 1966, p. 16.
419
O Sudão no século XIX
bateu no rosto de Nimir com seu cachimbo. Para se vingar desta humilhação,
Nimir conspirou com seus homens para queimar vivos Ismā īl e todo o seu
séquito em Shendi no final de outubro de 1822. A revolta se estendeu subse-
quentemente a outras regiões, provocando pesadas perdas em vidas humanas e
em bens
20
. Esta rebelião causada pelo desespero, mas sem líderes verdadeiros, foi,
contudo, um aviso que fez os invasores compreenderem que a resistência ao seu
domínio estava profundamente enraizada no coração de muitos sudaneses.
O sistema opressivo de tributação e de administração incentivou igualmente
no Darfur um vasto movimento de resistência contra o efêmero domínio turco
21
.
Desejoso, em restabelecer seu antigo poder, os sobreviventes da família Kayra
juntaram -se aos fur para se oporem aos colonizadores. A mais popular e mais
importante destas revoltas foi aquela do emir Hārūn, em 1877. Durante três
anos, ele não cessou de assediar os invasores, e teria provavelmente conseguido
acabar com seu domínio se não tivesse sido morto em 1880. Contudo, um de
seus parentes, Abdullāh Dūd Banga, continuou a luta a partir de seu campo
militar fortificado dos montes Nuba
22
. Diante desta resistência corajosa, os tur-
cos foram incapazes de consolidar seu domínio, ao qual os habitantes do Darfur,
em estreita colaboração com o Mahdī, colocaram fim em 1884.
O exército sudanês trouxe igualmente a sua contribuição à resistência aos
primeiros colonizadores. Vários incidentes e rebeliões militares aconteceram em
certas cidades do Norte: Medani, Sennar, al -‘Obeyd, Suakin; mas uma revolta
militar mais séria aconteceu em Kassala, em 1865. Furiosos por não terem rece-
bido o soldo, os soldados do regimento sudanês de Kassala se recusaram a
obedecer às ordens de seus superiores turcos, atacaram e mataram alguns dentre
eles, depois sitiaram a cidade durante vinte e seis dias. A revolta que provocou
perdas em vidas humanas e estragos materiais minou seriamente a autoridade da
administração turca em toda a província de Kassala. Esta foi talvez a crise mais
séria que os imperialistas haviam confrontado no país em mais de trinta anos.
Todavia, ao recorrer à esperteza e à diplomacia, o governo conseguiu finalmente
apagar a revolta. Os soldados renderam suas armas depois de uma vaga promessa
de anistia geral; mas os sobreviventes foram ou executados ou condenados a
pesadas penas de prisão
23
. O quediva ordenou igualmente a redução para três
20 M. Shibayka, 1957, p. 33 -35.
21 Ver abaixo, p. 7.
22 M. M. al -Hasan, s.d., p. 35 -40.
23 N. Shuqayr, 1967, p. 545 -553.
420
África do século XIX à década de 1880
do número de regimentos sudaneses estacionados no Sudão e enviou o resto
para o Egito.
A resistência às manobras imperialistas no Sul, 1821 ‑1880
Até o início do domínio turco no Sudão, em 1821, os poderes políticos e
econômicos dos Estados sudaneses muçulmanos do Norte e dos povos do Sudão
Meridional eram comparáveis, senão equilibrados; mas o século XIX, princi-
palmente a segunda metade, seria catastrófico para estes últimos. Este período
foi marcado por importantes perdas materiais e por grandes humilhações e
permaneceu como sinônimo de caos na memória popular do Sudão Meridional.
Como escreveu o professor Francis Mading Deng, o qual é um dinka do Sudão
Meridional, esta época permanece para as populações do Sul como aquela das
“guerras de escravidão e de conquistas travadas contra elas por ondas de invaso-
res, as quais não se distinguiam uma das outras, exceto pelos diferentes nomes
que se davam: árabes, turcos, egípcios, ansar ou dongolawi
24
”.
Quando Muhammad Alī invadiu o Sudão em 1821, ele dividiu o país em
províncias e distritos, colocados sob a autoridade de oficiais egípcios e turcos
que dependiam de um governador geral residente na cidade recém fundada de
Cartum. Como vimos acima, a principal função do regime estrangeiro era
de impor tributos e se prover de escravos para aumentar as fileiras do exército
egípcio. Expedições frequentes eram feitas ao longo do Nilo Branco para cap-
turar escravos e, a partir de 1840, o tráfico de vidas humanas atingiu proporções
gigantescas. Os exércitos privados dos traficantes de escravos estavam equipados
com armas de fogo e imensas áreas de terras eram alugadas aos mercadores que
podiam fazer investimentos muito rentáveis entre os povos do Sudão Meridio-
nal. A malha comercial implementada por Muhammad Alī apresentava algumas
características notáveis. Os mercadores constrram fortes denominados de
zeriba, inspirando -se naqueles que os sultões do Darfur construíam desde o
século XVIII. Estes fortes serviam de base para suas operações de barganhas e
para ataques escravistas lançados nas regiões vizinhas. Esta malha se caracterizou
também pela divisão do poder entre os monopólios do Estado e os negociantes
privados, pelo emprego sistemático da força, sobretudo graças aos mercenários
recrutados localmente e por uma política de desenvolvimento de plantações
comerciais, em especial o algodão. Por exemplo, os baggara eram obrigados a
24 F. M. Deng, 1978, p. 150.
421
O Sudão no século XIX
pagar seus impostos em cabeças de gado ao governador do Cordofão. Aqueles
que não podiam ou não desejavam pagá -los daquele modo tinham a possibili-
dade de fornecer escravos, conseguidos mediante a organização de ataques aos
dinka.
Além disso, os mercadores europeus desejavam que o governo turco liberali-
zasse o mercado sudanês de marfim. Mais tarde, quando suas margens de lucro
começaram a diminuir, eles decidiram pagar seus empregados árabes em escra-
vos em vez de dinheiro; isto contribuiu para intensificar o tráfico de escravos.
A cidade de Kaka, ao Norte do território shilluk, transformou -se rapidamente
em um grande mercado de escravos, principalmente para os escravos vindo dos
zeriba do Sul. A prosperidade de Kaka foi em parte devida à abolição do tráfico
de escravos, em 1854, na parte do Sudão dominada pelos turcos. Kaka tornou-
-se o principal mercado de escravos da região do Nilo Branco e sua população
de emigrados aumentou rapidamente. As atividades do saqueador Muhammad
al -Khāyr, de origem dongolawi, que deixou Taqali em 1854 para se instalar em
Kaka, talvez tenham facilitado também a transformação de Kaka em mercado
de escravos
25
. Estima -se que, em 1860, 2.000 escravos eram vendidos, em média,
a cada ano
26
, e al -Khāyr e seus bandos de caçadores de escravos aterrorizavam
as terras shilluk.
Os habitantes do Sul se recusaram a cooperar com eles e opuseram uma resis-
tência ativa à presença destes em suas terras. As guerras que travaram contra eles
são por demais numerosas e diversas para serem enumeradas aqui. Contentar-
-nos -emos em mencionar algumas a título de exemplos.
Os bari foram os primeiros a aproveitar todas as ocasiões para se levantarem
contra os invasores. Em 1854, atacaram uma missão comercial francesa, mata-
ram dois de seus membros e feriram vários outros. Pouco depois, uma outra
batalha extremamente violenta aconteceu entre quatro a cinco mil bari e uma
outra missão comercial liderada por Vaudeny, vice -cônsul da Sardenha. Vaudeny,
seu adjunto turco e muitos de seus homens foram mortos. Os chefes bari que se
mostraram, por menos que fosse, inclinados a colaborar com estes intrusos foram
atacados igualmente. Tal foi notadamente o caso do chefe Nyagilo, do qual a
autoridade foi minada e os bens destruídos. Ele fugiu para Gondokoro, mas foi
perseguido e morto em 1859 por grupos de jovens bari armados
27
.
25 R. Gray, 1970, p. 76 -78.
26 J. Frost, 1974, p. 216.
27 R. Gray, 1970, p. 44.
422
África do século XIX à década de 1880
F . Navios mercantes de Cartum sobre um auente do Bahr al Ghazal ao Norte das terras dinka.
[Fonte: G. Schweinfurth, e Heart of Africa, 1873, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres.
Ilustração reproduzida com autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de
Cambridge.]
F . A zeriba de um mercador em Mvolo, com um estabelecimento dinka fora de seus muros.
[Fonte: G. Schweinfurth, e Heart of Africa, 1873, Sampson, Low, Marston, Low and Searle, Londres.
Ilustração reproduzida com autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de
Cambridge.]
423
O Sudão no século XIX
Os negociantes foram rechaçados para o leste onde encontraram a hostili-
dade dos lokoya. Em 1860, depois de um ataque contra cinco estrangeiros, os
negociantes enviaram uma força de 150 soldados dos quais 120 foram mortos
e os outros seriamente feridos pelos lokoya
28
.
Os shilluk do Norte opuseram a mesma resistência aos negociantes na região
do Nilo Branco. Todavia, os imigrantes que chegavam ao Norte da região shilluk
em geral, e a Kaka em particular, não eram todos mercadores. Muitos eram
refugiados fugindo do domínio turco. No período compreendido entre 1840 e
1860, “um afluxo regular de refugiados vindos dos territórios turco -egípcios do
Norte chegava ao território shilluk. Um grande número dentre eles era baggara
de Salīm, mas havia também os descontentes que vinham da parte mulçumana
do Sudão”
29
. As relações entre imigrantes e shilluk permaneceram amigáveis até
o momento em que, em 1860, o reth (rei) perdeu o controle do sistema comercial
que se desenvolvera em seu reino, mas era dominado por estrangeiros.
Em 1860, o reth Kwatker expulsou inúmeros mercadores árabes de seu reino.
Muhammad Al -Khāyr retrucou atacando os shilluk com uma cavalaria de 200
baggara, mais de 1.000 homens armados de fuzis e treze barcos. Fachoda, a
capital real, foi destruída. John e Kate Petherick, os quais se encontravam na
região à época, nos deixaram um testemunho direto das consequências deste
ataque. “Segundo eles, em 1862, a região shilluk, entre a ilha de Aba e a embo-
cadura do Sobat, estava “completamente desorganizada” e os shilluk, outrora
poderosos haviam sido completamente dispersos”
30
. Kate Petherick observou em
seu diário:Atravessamos uma antiga vila shilluk em ruínas denominada Kaka;
havia pelo menos 600 tookuls abandonados. O ano passado, os habitantes foram
expulsos. Era um povo laborioso que cultivava muitos cereais”
31
. Mais tarde,
testemunharam uma das expedições de al -khāyr que capturou 500 escravos e
12.000 cabeças de gado
32
.
Os shilluk decidiram contra -atacar. Uma expedão de saqueadores de
al -Khāyr foi repelida e aproximadamente setenta baggara foram mortos. Em
1863, os shilluk forçaram os mercadores a se retirar para o interior e al -Khāyr
foi perseguido e morto. As relações entre os shilluk e o governador turco se
28 Ibid., p. 56.
29 P. Mercer, 1971, p. 420.
30 J. e K. Petherick, 1869, vol. 1, p. 990.
31 Ibid., p. 96.
32 Ibid., p. 97.
424
África do século XIX à década de 1880
F . Uma vila shilluk após um ataque de caçadores de escravos. [Fonte: J. e K. Petherick, Travels
in Central Africa, 1869, Timsley Brothers, Londres. Ilustração reproduzida com autorização do Conselho de
administração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
deterioraram rapidamente. Os shilluk deviam pagar pesados impostos em gado
e fornecer escravos para engrossar as fileiras da guarnição sudanesa.
Em 1868, este conflito endêmico tornara -se uma verdadeira guerra. Em
novembro daquele ano, um corpo expedicionário de 2.000 soldados, encarre-
gados de subjugarem os shilluk, encontrou uma resistência feroz e não obteve
êxito algum. A administração decidiu impor um tributo anual de 15.000 libras
aos shilluk e aos dinka, o que provocou um profundo ressentimento em todo
o país. Como se aquilo não bastasse, o governo do quediva decidiu, em 1871,
ampliar a lavoura do algodão no Sudão Meridional. Em 1874, 5.000 a 6.000
hectares de algodão, de cana -de -açúcar e de milho eram cultivados na região
de Fachoda. Esta atividade agrícola trouxe para o governo estrangeiro 300.000
libras em impostos sobre o algodão naquele ano, exigindo o recurso ao trabalho
forçado
33
.
Os shilluk se rebelaram. Noventa soldados governamentais foram mortos e
foi necessário enviar com urgência reforços de Cartum para acabar com a rebe-
33 J. Frost, 1974, para a maioria das informações contidas neste parágrafo.
425
O Sudão no século XIX
lião; mas os shilluk estavam já decididos a lutar por sua liberdade. O reth Ajang
recusou em colaborar e os árabes o assassinaram em 1874, depois tentaram
governar sem rei. No ano seguinte, em outubro, milhares de shilluk atacaram
os postos governamentais em Kaka e em Fachoda. Em Kaka somente quatorze
soldados sobreviveram. Em 1876, novos reforços chegaram de Cartum equipa-
dos com fuzis Remington. Milhares de shilluk foram massacrados e, em abril, a
área compreendida entre Kaka e Fachoda foi tida como “pacificada”. Os shilluk
foram desarmados e um grande número dentre eles foi engajado no exército e
enviado para o Cairo. Cúmulo da afronta, Fachoda foi transformada em mer-
cado de escravos onde as forças governamentais vendiam aos djallāba os escravos
que capturavam, afim de juntar o montante do tributo anual de 12.500 libras.
A população shilluk e seu rebanho bovino diminuíram rapidamente. Não é de
se espantar que o dote, normalmente de vinte a trinta vacas, tenha diminuído
para uma vaca entre 1860 e 1900.
Um grande número das populações do Sudão Meridional, fracas e sem
defesa, não pôde opor mais do que uma resistência medíocre, senão vã, aos
saqueadores negreiros; muitos homens foram reduzidos à escravidão ou mortos
nos combates, “de modo que vários grupos desapareceram quase completamente
como entidades políticas ou sociais”
34
. Os dinka e os nuer eram sem dúvida os
mais capazes em se proteger dos ataques ao se retirarem com seu gado para
pântanos inacessíveis. Habituados à guerra, infligiam com frequência rias
derrotas aos agressores.
Mais ao Sul, os zande puderam também, sob a liderança da orgulhosa e
aristocrática dinastia Avungara, que havia fundado um Estado centralizado no
século XVIII, opor -se aos assaltos dos negreiros. Um dos chefes zende, Ndo-
ruma, conseguiu até mesmo conquistar uma zeriba (cercado) que o negreiro Abū
Kurūn tinha instalado em suas terras. Subsequentemente, em 1870, infligiu uma
derrota a uma força inimiga de 2.000 homens, matou Abū Kurūn e vários dos
seus homens e confiscou uma centena de cargas de munições
35
.
Nenhum dos dois sucessores imediatos de Muhammad Alī, Abbās e Sa‘īd
(1848 -1863), quis rivalizar com ele em matéria de aventuras estrangeiras; mas o
ambicioso quediva Ismā‘īl (1863 -1879) “deu continuidade a uma política expan-
sionista em todas as direções, mas sobretudo no alto vale do Nilo e, de lá, no
vasto interior do Sudão Meridional
36
. Ao submeter os comerciantes europeus
34 R. O. Collins, 1975, p. 18.
35 R. Gray, 1970, p. 64 -65.
36 R. O. Collins, 1975, p. 19.
426
África do século XIX à década de 1880
F . Um músico zande. [Fonte: G. Schweinfurth, e Heart of Africa, 1873, Sampson, Low, Marston,
Low and Searle, Londres. Ilustração reproduzida com autorização do Conselho de administração da Biblioteca
da Universidade de Cambridge.]
427
O Sudão no século XIX
já enfraquecidos aos impostos e às medidas de discriminação, Ismā‘īl conseguiu
pouco a pouco colocar o comércio nilótico sob o domínio dos turcos. Em 1867,
os comerciantes europeus foram obrigados a deixar o Sudão e não tiveram mais,
desde então, nenhum papel na vida comercial, a qual caiu nas mãos dos turcos
e árabes vindos do Egito e do Sudão Setentrional. Liberado de toda influência
europeia em escala local, Ismā‘īl subiu o Nilo para criar um império africano.
A abolição da escravidão e do tráfico serviu de justificativa para esta expansão
imperialista
37
.
Esta tentativa de anexação da Equatória pelos turcos desenrolou -se sob
o comando de dois oficiais britânicos: Samuel Baker (1869 -1873) e Charles
George Gordon (1874 -1876 e 1877 -1879). Sem hesitar em recorrer à violência
e extremamente bem equipados, Baker e Gordon foram, apesar disto, incapazes
de estender a administração turca na Equatória, além de alguns postos avança-
dos esparsos. Ocupando o cargo de governador geral do Sudão (1877 -1879), o
próprio Gordon acabou por desistir em estender o domínio turco na Equatória.
Seu sucessor, o alemão Edouard Carl Oscar Theodor Schnitzer (1840 -1892),
conhecido pelo nome de Amīn Pacha, herdou apenas uma presença turca enfra-
quecida e desorganizada, de modo que ele foi, subsequentemente, forçado a
colocar um fim nela, e a se retirar para o litoral em 1889
38
.
As tentativas de Baker em assegurar a participação dos africanos foram
vãs, porque a tradição da resistência aos estrangeiros estava profundamente
enraizada no Sul. Logo após a sua chegada em Gondokoro, em 1874, Baker
enfrentou a hostilidade declarada dos bari e de seu chefe Alloron. Recusaram -se
a lhe vender trigo e destruíram as colheitas de seus homens. Os bari beliman e
os lokoya, os quais eram, entretanto, rivais de Alloron, participaram nestas ope-
rações
39
. Os bari moogie mataram vinte e oito soldados, assediaram as caravanas
que passavam em seu território, e seus vizinhos da margem ocidental, seguindo
o exemplo deles, adotaram também uma atitude hostil.
Baker subiu o Nilo até Patiko, no Acholi, ao Norte de Uganda onde ele
transformou todas as feitorias da região em postos governamentais e recrutou,
nas forças governamentais, numerosos mercenários danakla (ou dongolawi como
os chamava a população local, já que uma maioria deles era originária da região
de Dongola) que estavam a serviço dos mercadores árabes. Era então difícil
37 Sobre a escravidão e o tráco, ver M. F. Shukri, 1937; A. I. M. Alli, 1972 e B. K. Humayda, 1973, p.
254 -316.
38 Sobre a carreira de Amīn Pacha, ver I. R. Smith, 1972.
39 R. Gray, 1970, p. 96.
428
África do século XIX à década de 1880
para os autóctones distinguir os mercadores de Cartum do governo turco. Em
seguida, Baker se dirigiu rapidamente para o Oeste, no Bunyoro onde ele espe-
rava obter o apoio de Kabarega; mas foi uma vez mais decepcionado e diz -se até
que Kabarega teria tramado o envenenamento de todo o corpo expedicionário.
A custo de grandes dificuldades, Baker acabou se retirando para Patiko, em
agosto de 1872
40
.
Em 1873, Gordon foi promovido e nomeado governador geral da província
de Equatória para consolidar as conquistas de Baker. Ele tinha por mandato
construir fortes, abrir vias de comunicação para o Sul, estabelecer boas relações
com as populações locais e administrá -las eficazmente e, por fim, regulamentar
o comércio de escravos no Sudão Meridional
41
.
Depois de submeterem -se em um primeiro momento, como tática, a Gor-
don, os bari moogie iniciaram novamente as hostilidades e, durante mais de
uma semana, combates se desenrolaram nas duas margens. O ponto culminante
foi uma batalha no curso da qual os moogie aniquilaram um destacamento de
mais de quarenta homens juntamente com seu chefe, Linant de Bellefonds e
deixaram apenas quatro sobreviventes. Se o rio não tivesse impedido os moogie
de explorarem este sucesso, todas as forças de Gordon teriam, sem dúvida, sido
destruídas
42
.
A progressão de Gordon para o Sul, nos reinos equatoriais, sofreu também
um revés. Longe de reconhecer a soberania turca sobre o seu reino, como Gor-
don tinha ingenuamente esperado, Mutesa do Buganda mobilizou um poderoso
exército contra os invasores. Em Mutesa, Gordon encontrou “um dirigente
africano que aliava a sabedoria política, hereditária de uma antiga dinastia soli-
damente estabelecida, a um sentido extremamente agudo do papel que a diplo-
macia e os estratagemas poderiam ter para salvaguardar a independência de
seu país”
43
. Os enviados aparentemente amigáveis, mandados ao encontro de
Gordon eram na realidade espiões que deviam dar informações sobre as forças
e os movimentos do inimigo. Nūr Bey, encarregado por Gordon de anexar o
Buganda, descobriu rapidamente que o estratagema de Mutesa o havia encur-
ralado na capital Rubaga onde ele se encontrava completamente reduzido à
impotência e dependente, por sua sobrevivência, da boa vontade de Mutesa.
Em 1876, Gordon foi então obrigado a ordenar uma retirada imediata para o
40 S. W. Baker, 1879, p.272 -273; R. Gray, 1975, p. 84 -104; N. Shuqayr, 1967, p. 562.
41 Ver P. Crabites, 1933, p. 28 -30.
42 R. Gray, 1975, p. 110 -111.
43 Ibid., p. 117.
429
O Sudão no século XIX
Norte, em Lado. Subsequentemente, os dinka e os nuer, sob a direção de um
profeta chamado Donluly, sitiaram a guarnição governamental de Bor. Em 1885,
o chefe bari Bego exterminou esta guarnição, e atacou Lado e Rejaf
44
. Aquilo
significou que o avanço turco em Equatória havia então virtualmente acabado;
e isto em condições desastrosas.
Os turcos, em sua campanha colonial no Bahr al Ghazal, foram perturbados
pelo maior negreiro da região, al -Zubayr Rahama Mansūr
45
, um sudanês do
Norte que tinha levantado um vasto império comercial. Ele repeliu uma expedi-
ção governamental e matou o chefe, em 1872. Posto diante deste fato, o quediva
Ismā‘īl reconheceu oficialmente al -Zubayr como governador do Bahr al Ghazal;
mas o aventureiro al -Zubayr, além das fronteiras do Bahr al Ghazal, visava o
Darfur, fonte ainda inexplorada de escravos. Tendo mobilizado o exército e a
população fur, o sultão Ibrāhim opôs uma vigorosa resistência aos invasores; mas
foi finalmente vencido e morto na batalha de Manwāshī, em 1874, e o Darfur
foi, assim, anexado às possessões turcas
46
.
Ainda que o quediva Ismā‘īl tenha, subsequentemente, prendido al -Zubayr
no Cairo e começado a tomar medidas para pôr fim a seu poder no Bahr al
Ghazal, os negreiros árabes juntaram -se ao seu filho Sulaymān. Eles proclama-
ram sua intenção de conquistar totalmente o Sudão Meridional e de marchar
logo após para Cartum. Acabaram, entretanto, sendo vencidos.
Todavia, os turcos foram incapazes de estabelecer verdadeiramente seu poder
no Bahr al Ghazal. Este revés foi, em grande parte, imputável à resistência das
populações africanas para as quais os turcos eram apenas novos colonizadores
dos quais era preciso se desembaraçar de uma vez por todas. Em 1883, os chefes
dinka cooperaram ativamente com as forças madistas para derrubar o regime
turco no Bahr al Ghazal, sendo claramente entendido que estas os deixariam
livres em suas terras
47
.
A instauração da administração turca tinha efetivamente posto um fim nas
grandes caçadas aos escravos no Sudão, principalmente na região meridional;
mas os novos imperialistas não chegaram jamais a persuadir as populações
africanas em aceitar seu domínio. De fato, eles tinham cada vez mais de recor-
rer à força para reprimir numerosas rebeliões que aconteceram contra este
domínio. Mataram os chefes e massacraram as populações, tomando seu gado
44 Ibid., p. 161.
45 Para o relato que o próprio Zubayr fazia de sua carreira, ver N. Shuqayr, 1967, p. 568 -599.
46 Ibid.
47 P. M. Holt, 1970, p. 78 -80.
430
África do século XIX à década de 1880
e destruindo suas colheitas. Seguindo o exemplo dos invasores precedentes, os
turcos contribuíram para a desintegração da sociedade do Sudão Meridional,
a qual continuou até que o movimento de resistência acabasse por atingir seu
objetivo declarado, o qual era pôr um fim ao colonialismo turco nesta região
da África.
Modernização e reação no Sudão no século XIX
A aventura turca no Sudão foi assim, em sua maior parte, um revés; entre-
tanto, admite -se geralmente que a história do Sudão moderno começa com
a conquista do país em 1820 -1821. Naqueles anos, a derrota de Sennar e do
Cordofāo estabeleceu o núcleo do que se tornaria a República Democrática do
Sudão. A instauração do domínio turco sobre o Sudão Setentrional e Central
foi concluída, em 1841, pela conquista de al -Taka a região do Khūr al -Kāsh
e dos montes do Mar Vermelho
48
. É durante o reinado do quediva Ismā‘īl que
o Darfur, a Equatória, o Bahr al Ghazal e o litoral do Mar Vermelho foram
integrados ao Sudão moderno. Na spera da Mahdīyya, o Sudão formava,
deste modo, um imenso território, estendendo -se da segunda catarata aos lagos
equatoriais e do Mar Vermelho ao Darfur
49
.
O regime turco não tinha apenas unificado o Sudão em suas fronteiras moder-
nas; ele tinha também iniciado um processo de modernização. Por moderni-
zação”, entendemos a adoção de métodos de organização político -econômica
e de técnicas de produção, de transporte e de comunicação derivados daqueles
empregados pelos Estados europeus e que modificaram substancialmente as
estruturas da sociedade tradicional anterior
50
.
As três principais inovações técnicas da Turkīyya foram as armas de fogo, os
barcos a vapor e o telégrafo elétrico introduzidos no Sudão durante o reinado
do quediva Ismā‘īl. Conhecidos no Sudão ao menos desde a segunda metade do
século XVII, os fuzis não eram de uso corrente. A superioridade do armamento
das tropas turcas foi um fator determinante no aniquilamento da resistência
sudanesa. Os barcos a vapor foram logo usados no Nilo egípcio por volta de
1828, mas foi preciso esperar uma outra geração para -los navegar nas águas
48 Ibid., p. 3.
49 Além do Sudão propriamente dito, o Sudão turco compreendia os distritos da Eritréia e da Somália.
50 P. M. Holt, 1973, p. 135.
431
O Sudão no século XIX
sudanesas. Nas décadas de 1860 e 1870, uma frota importante estava em serviço,
e tinha a manutenção assegurada em uma doca seca em Cartum
51
.
As armas de fogo e os barcos a vapor tiveram um papel capital na expansão
dos imperialistas turcos para o Sul. A princípio, tímida e hesitante, esta expan-
são foi logo consideravelmente facilitada por estas duas invenções, as quais
permitiram aos colonizadores e aos seus colaboradores sudaneses transpor os
dois principais obstáculos ao seu avanço na região do Nilo Branco, a saber, a
resistência obstinada dos habitantes do Sul e a imensa barreira da região de Sudd
que bloqueava ao mesmo tempo a aproximação ao Nilo equatorial e aquelas do
Bahr al Ghazal.
A abertura do Sul oferecia possibilidades novas a um setor particular da socie-
dade do Norte, o qual seria conhecido, na sequência, sob o nome de al -Djallāba.
Apenas alguns comerciantes do Norte tinham chegado ao Sul antes da conquista
turca; mas, após esta, começaram a chegar em grande número, sobretudo após o
alto Nilo e o Bahr al Ghazal terem se tornado mais acessíveis. De início, como
domésticos ou como membros das escoltas armadas dos comerciantes estran-
geiros, acederam progressivamente a responsabilidades e a poderes aumentados.
Ao mesmo tempo em que aceleravam o processo de arabização e islamização do
Sul, os djallāba que recorriam frequentemente à violência e tinham uma atitude
depreciativa em relação aos habitantes do Sul suscitaram, sem dúvida alguma,
a desconfiança e o medo que dominam ainda as relações entre o Norte e o Sul
do país.
O imperialismo turco havia estabelecido no Sudão um novo regime admi-
nistrativo, caracterizado pela opressão, pela corrupção e pela incompetência; os
administradores turcos eram medíocres, mas, ao contrário dos diversos tipos
de governo que o país conhecera até então, era um sistema fortemente cen-
tralizado. No topo da administração encontrava -se normalmente um único
governador geral que levava o título turco -persa de hukundar (pronunciado
hikimdar na linguagem corrente)
52
. Mesmo durante os breves períodos em que
o cargo de governador geral foi suprimido, como em 1843 e em 1882
53
, as
províncias sudanesas eram colocadas sob a autoridade direta de um serviço
do Cairo. Atribuiu -se a alguns sudaneses, os quais colaboravam com o regime
51 R. Hill, 1965, p. 2 -5.
52 P. M. Holt, 1970, p. 14.
53 Dando -se conta que a distância de Cartum em relação ao Cairo trazia o risco de criar tentações aos
ambiciosos, os vice -reis zeram estas tentativas de descentralização para impedir um acúmulo excessivo
de poder e de inuência nas mãos de um governador geral.
432
África do século XIX à década de 1880
imperialista, cargos administrativos subalternos; mas fazendo -lhes claramente
entender que não passavam de agentes do poder central que podia nomeá -los
ou revogá -los a seu bel -prazer.
O exército, principalmente a infantaria regular (djihādiyya)
54
, e o progresso
das comunicações favoreceram muito a implantação do regime colonial. Os
colonizadores não tinham construído muitas estradas ou ferrovias; mas os barcos
a vapor e as ligações telegráficas facilitaram bastante a centralização. Graças a
essas inovações, os administradores turcos conseguiram no conjunto manter a
segurança pública, reprimir a agitação dos sudaneses e, sobretudo, submeter a
população ao imposto.
Do mesmo modo, as mudanças devidas ao domínio imperialista exerceram
uma grande influência sobre a vida religiosa da sociedade sudanesa do Norte. Os
turcos e os sudaneses eram ambos fiéis ao islã; mas existia um imenso fosso entre
o islã oficial sunita da administração turca e o islã personalizado do sufismo
autóctone que se desenvolvera desde o período dos funj. No Sudão como no
Egito e no império otomano em geral, o poder tinha como política criar um
Estado laico onde as instituições islâmicas deviam ter um papel tão reduzido
quanto possível. O sufismo sudanês, cuja influência era muito forte entre
administradores e administrados, não podia então deixar de sofrer violentos
ataques. A administração imperial minou pouco a pouco o prestígio dos seus
dirigentes que eram compostos por pregadores hereditários (fakīh) das ordens
sufistas
55
. Ela conseguiu isto, sobretudo, incentivando o islã ortodoxo. Man-
tendo a hierarquia dos kādī e dos muftī e ao favorecer os estudos dos ulamā
sudaneses em al -Azhar, os colonizadores opuseram aos fakīh um grupo rival
mais ortodoxo, mais voltado para o estrangeiro e dependendo mais diretamente
do governo”. Ao fim do primeiro período imperial, o prestígio dos dirigentes
religiosos tradicionais tinha então, por isso, consideravelmente diminuído
56
.
Este foi, a bem dizer, um dos principais fatores que os incitaram a se voltar
contra o governo imperial e a sustentar ativamente os esforços do Mahdī para
derrubá -lo.
Um afluxo crescente de estrangeiros, europeus e americanos, acompanhou
e contribuiu para favorecer o processo de modernização. Como muito poucos
54 Os habitantes do Sul e os nuba, os quais eram normalmente descendentes de escravos, foram recrutados
para a djihādiyya. Ao lado destes, encontravam -se os irregulares shāikia que tinham em grande parte
substituído os irregulares estrangeiros vindos ao Sudão no momento da conquista.
55 Durante o período dos funj, os fakīh foram um fator de estabilidade e de continuidade mais ecaz ainda
do que os sultões e os outros dirigentes políticos.
56 P. M. Holt, 1973, p. 140.
433
O Sudão no século XIX
F . O reforço da administração e a modernização turco -egípcias: o palácio du hukumdar em Car-
tum e um vapor no rio. [Fonte: P. M. Holt e M. Daly, History of the Sudan, 1979, Weidenfeld and Nicolson,
Londres. Ilustração: © BBC Hulton Picture Library.]
europeus tinham chegado ao Sudão antes de 1820, a conquista turca abriu o
país aos estrangeiros que vinham sob títulos diversos: viajantes, comerciantes,
missionários, especialistas, consultores e funcionários.
A entrada rápida de funcionários ocidentais na administração, sobretudo
durante os dez anos que antecederam à Mahdīyya, teve repercussões sobre a
sociedade sudanesa, tanto no Norte de influência árabe como no Sul. Distan-
ciados dos habitantes pela língua, costumes e religião, eles criaram com sua
presença tensões com as massas sudanesas. Este recrutamento excessivo de
europeus para os cargos pelos quais não eram normalmente qualificados tinha,
por outro lado, provocado um tal ressentimento entre os sudaneses que estes
manifestaram uma xenofobia generalizada
57
. A intenção declarada do Mahdī
que era de liberar o país de todo domínio estrangeiro e cristão, encontrou então
apoio espontâneo e entusiasta das multidões.
Conclusão
A expansão dos imperialistas turcos desejosos de explorar os recursos suda-
neses, assim, como as inovações socioeconômicas e tecnológicas que eles tinham
57 Ver, por exemplo, P. Santi e R. Hill (org.), 1980, p. 145
434
África do século XIX à década de 1880
introduzido, abalaram profundamente a sociedade sudanesa tradicional e susci-
taram muito descontentamento. Esta situação engendrou múltiplos lavantes e
revoltas. Algumas destas rebeliões constituíram um sério desafio para os colo-
nizadores; mas nenhuma se beneficiou de um apoio popular suficientemente
forte para poder derrubar o governo. No Sudão, como em outros lugares, o
descontentamento não podia por si criar uma situação revolucionária; seria
necessário para isto ser acompanhado de uma ideologia revolucionária, de um
exército revolucionário, e sobretudo ser dirigido por chefes revolucionários.
Somente quando Mahdī trouxe estes elementos, em 1885, que os sudaneses
se rebelaram em massa; a revolução madista pôs então um fim na Turkīyya, e
deu lugar ao Sudão independente que foi imediatamente confrontado com o
surgimento do imperialismo britânico. Tal era a situação, pelo menos, no Sudão
Setentrional.
No Sul, todavia, os ataques para capturar escravos, as pilhagens e as rapinas
continuavam sem descanso. O governo madista devastou o Sul para fornecer
soldados para seu próprio exército. Amargas lembranças marcaram as memórias,
desacreditando os árabes e o islã aos olhos dos africanos durante o período pós-
-madista. O que tinha sido uma estrutura de domínio socioeconômico, no vale
do Nilo, tornou -se pouco a pouco uma estrutura de domínio racial que deu lugar
a uma ideologia de resistência racial entre os africanos do Sudão Meridional.
C A P Í T U L O 1 5
435
A Etiópia e a Somália
A situação da Etiópia nas primeiras décadas do século
A alvorada do século XIX viu a abertura de um dos períodos mais difíceis
da história etíope. O Estado cristão, centralizado no passado, foi invadido em
grande parte pelos oromos (galas)
1
e se encontrou em uma situação de dissolu-
ção avançada. Ainda que os imperadores conservassem uma soberania nominal
e mantivessem uma aparência de unidade, eles não passavam de joguetes dos
senhores feudais. Estes se tornaram praticamente independentes e estavam
constantemente em escaramuças entre si. As lutas tomaram tal amplidão que
várias províncias, inclusive o Bagemder, localização da capital, ficaram empo-
brecidas. Inúmeros camponeses, vítimas dos abusos dos soldados, fugiram de
suas terras e se colocaram a serviço deste ou daquele senhor, enquanto outros se
entregaram à pilhagem. A agricultura ficou negligenciada e as caravanas eram
menores e menos frequentes do que no passado. A população de Gondar a
única aglomeração urbana com uma certa importância decresceu muito e
havia menos demanda pelos produtos artesanais; o declínio do patrocínio real
1 Este importante grupo étnico foi tradicionalmente designado por seus vizinhos amhara pelo nome de
galla, nome igualmente utilizado nas fontes escritas do período que nos interessa, mas que às vezes foi
empregado localmente com uma conotação pejorativa. alguns anos, prefere -se o nome autóctone
oromo, o qual tende a ser preferido pelas gerações modernas cultas.
A Etiópia e a Somália
Robert K. P. Pankhurst
Com algumas notas sobre a história da Somália fornecidas por
L.V. Cassanelli
436
África do século XIX à década de 1880
levou à redução de encomendas por obras de arte. A desorganização da vida
econômica, política e social causou uma profunda impressão nos cronistas etí-
opes. Abandonando as bajulações tradicionais ao imperador, eles derramaram
seus elogios sobre os senhores, mas sem conseguir impedir a saudade do antigo
esplendor imperial. Um escriba, Abagaz Sa’una, escrevendo em ge‘ez, a língua
semítica literária tradicional, lamentava -se da usurpação do poder por arrivistas:
os senhores “tornaram -se servos e os servos senhores”. Observando que havia,
naquele momento, quatro monarcas vivos privados de autoridade, ele exclamou
que foram “dispersos como a poeira pelo vento. Infelicidade minha! Meu estô-
mago está inquieto e meus intestinos rasgados porque sois maltratados, ó meus
senhores. Que ganha com aquilo o reino, o qual foi decepado pelas mãos de
servos?”
2
.
O declínio da autoridade imperial e o triunfo do feudalismo regional leva-
ram os historiadores etíopes a chamar aquela época de período dos Masafent
3
,
literalmente “juízes” alusão a época do Livro dos Juízes onde “não havia o rei
de Israel: cada homem fazia o que lhe parecia justo aos seus próprios olhos”
4
.
Os altos planaltos cristãos
Os altos planaltos cristãos, núcleo do império, estavam agora divididos em
três Estados independentes, Tigre, Amhara e Shoa, aos quais se somavam outras
unidades políticas mais reduzidas.
O Tigre, centro do antigo reino axumita, era a região mais setentrional e a
mais poderosa. A população, essencialmente cristã, mas com uma importante
minoria mulçumana a Leste e ao Sul, falava uma língua semítica, o tigrinya.
Os senhores da província, graças à proximidade do litoral, haviam enriquecido
consideravelmente com os impostos sobre o comércio e, consequentemente,
encontrava -se no Tigre muito mais armas de fogo do que em outras regiões.
A proncia era controlada, no início do século, por Ras Walda Sellasé
(1795 -1816) de Endarta, importante distrito que beirava os Afar, ou Danakil, a
depressão da qual a Etiópia tirava o amolé, as barras de sal gema utilizadas para
o consumo e como “moeda primitiva”
5
. Este chefe, outrora balgada, ou funcio-
nário encarregado das caravanas de sal, era filho de um general de Ras Mika él
2 W. Blundell, 1922, p. 187 -188, 191, 470 -471, 477.
3 G. Guèbrè Sellasié, 1930 -1932, vol. I, p. 204
4 Juges XXI, 25. Ver E. Ullendor, 1960, p. 82.
5 R. K. P. Pankhurst, 1968, p. 460 -464.
437
A Etiópia e a Somália
F . A Etiópia no início do século XIX (segundo R. K. P. Pankhurst).
438
África do século XIX à década de 1880
Sehul, senhor do Tigre que tinha sido, no século anterior, o senhor de Gondar e
um criador e destruidor de reis. Ras Walda Sellasé, quase tão poderoso como o
antigo senhor de seu pai, dominava um vasto território indo das bordas dos altos
planaltos (de onde se via o Mar Vermelho) até as altas montanhas de Samén,
situadas a menos de cem quilômetros de Gondar. Walda Sellasé que governava
segundo um costume muito estabelecido, impressionou o viajante inglês,
Henry Salt, o qual notou que o chefe se “distinguia [...] por sua intrepidez e sua
firmeza”. Ele acrescenta: “todos os crimes, todas as divergências, todas as brigas,
sejam importantes ou insignificantes em sua natureza, lhe são referidas; todos
os direitos de herança são decididos de acordo com sua vontade e ele trava a
maioria das guerras pessoalmente”
6
. Walda Sellasé, o chefe mais poderoso do
país, queria enfraquecer a tutela nominal do imperador yejju da dinastia dos
oromos que controlava então o Amhara; ele tentou reunir os nobres do Tigre
com este objetivo. Como senhor de uma região situada próxima do litoral, ele
se interessava também pelo acesso ao mar e, graças a este, aos países da Europa
tecnicamente mais avançados. Ele expressou o seu “desejo muito vivo”, relata
Salt, de incentivar os contatos com a Inglaterra, mas explicou que seria “inútil”
“interferir com os muçulmanos do litoral, enquanto estes detinham o controle
do Mar Vermelho
7
. Ele escreveu a George III da Inglaterra, em 1810, para
solicitar -lhe armas de fogo e ajuda para obter um abuna (ou metropolitano),
porque era um costume profundamente enraizado na Etiópia importar tais
eclesiásticos do clero copta do Egito.
A morte de Walda Sellasé em 1816 foi seguida de acres lutas por sua suces-
são. O vencedor final foi Dajazmach Sabagadis (1822 -1831) de Agamé, outra
importante província situada na rota da depressão salina, o qual enviou o empre-
gado de Salt, William Coffin, à Inglaterra em 1827 como uma solicitação de
ajuda militar e técnica. Os ingleses enviaram um comboio de armas, mas este
foi interceptado pelos egípcios no porto de Massaoua (Massawa). Sabagadis
combateu depois os yejju, mas foi capturado e executado. Ras Webé (1839-
-1855) de Samén conseguiu, após longas lutas, tomar o controle do Tigre e, mais
tarde, apesar de inúmeras rebeliões, dos altos planaltos até Gondar. Sensível à
importância dos contatos com o exterior, ele obteve uma pequena quantidade
de armas de fogo e de técnicos da França. Proclamando sua intenção de insta-
lar como imperador em Gondar, um pretendente chamado Takia Giyorgis, ele
marchou contra Ras Alī, o senhor yejju de Bagember, e o enfrentou em uma
6 H. Salt, 1814, p. 325 -328 -330. Ver também J. Kolmodin, 1912 -1915, p. 97 -98.
7 H. Salt, 1814, p. 383 -384.
439
A Etiópia e a Somália
batalha perto da futura capital, Dabra Tabor, em 1842. Os atiradores de Webé
ganharam a batalha, mas o chefe vitorioso foi capturado quando celebrava o
seu sucesso militar. Ele foi solto após o pagamento de um resgate e retornou
ao Tigre. Entrou novamente em conflito com Ras Alī em 1843 e 1844, mas,
tendo que enfrentar uma revolta no Tigre e a tomada de Massaoua pelo Egito,
teve que se submeter ao chefe yejju. Apesar dos reveses, ele permaneceu como
um dos chefes mais poderosos e mais esclarecidos da Etiópia
8
.
Amhara, a segunda divisão importante do império, estava situada ao Noro-
este. Sua população, essencialmente cristã (ainda que englobando um número
importante de muçulmanos) falava o amárico, a mais difundida das nguas
semíticas da Etiópia. A região era centrada em torno da rica província de Bage-
mder, cujos senhores controlavam às vezes Dambeya e o Gojam ao Sul. Amhara
devia em grande parte a sua importância ao fato de controlar a capital imperial,
Gondar, situada longe do litoral. Entretanto, os senhores de Amhara dependiam,
para seu abastecimento em armas de fogo, dos comboios que passavam pelo
Sudão e pelo Tigre, cujos senhores não favoreciam o trânsito.
No início do século, Amhara era dirigida por Aligaz Gwangui (1788 -1803),
o irmão de ‘Alī Gwangui, um muçulmano oromo yejju que tinha se convertido
ao cristianismo por razões políticas, mas que era apoiado pelos muçulmanos.
Aligaz foi sucedido por seu sobrinho Gugsa Mersa (1803 -1825) que estabeleceu
sua capital em Dabra Tabor, ampliando as suas possessões até o Leste de Gojam
e tentou destruir o poder da nobreza proclamando a nacionalização de suas
terras
9
. Nas décadas seguintes, o islã ganhou constantemente terreno. O filho de
Gugsa, Ras Yeman, o sucedeu (1825 -1828) e se colocou ao lado dos muçulma-
nos contra os cristãos, enquanto o sobrinho de Yeman,Alī Alula (1831 -1853)
repartiu o poder com sua mãe, a imperatriz Manan, uma mulçumana convertida
ao cristianismo, da qual vários parentes próximos muçulmanos se tornaram
governadores de província. A peregrinação ao túmulo do conquistador muçul-
mano Ahmad Gragn (século XVI) foi restabelecida em sua honra
10
.
Ao Sul de Amhara, isolada pelo lago Tana e pela curva do Abbay (Nilo Azul),
encontrava -se o Gojam, província virtualmente independente cuja população
falava o amárico e era quase totalmente cristã. A região tinha sido unificada no
final do século XVIII por Ras Haylu (morto em 1784 -1785), cujos descenden-
8 Para uma breve história contemporânea do Tigre, ver M. Parkyns, 1854, vol. II, p. 88 -120. Ver também
C. Conti Rossini, 1947, e, a propósito de Webé, J. Kolmodin, 1912 -1915, p. 110, 116 -117, 119 -120.
9 C. Conti Rossini, 1921; R. K. P. Pankhurst, 1968, p. 137.
10 J. S. Trimingham, 1952, p. 110 -111.
440
África do século XIX à década de 1880
F . Dajazmach Webé do Tigre [Fonte: T. Lefebvre, Voyage en Abyssinie, 1845 -1849, Paris. Ilus-
tração reproduzida por Sasor Publisher, Londres]
441
A Etiópia e a Somália
tes travaram entre si longas lutas. Seu filho, Ras Mared (morto em 1821), foi
desafiado por Dajazmach Zawdé, um oromo de Damot que esposara sua irmã,
e o conflito foi retomado por seus filhos e netos respectivos. Estas rivalidades
favoreceram a dinastia dos yejju, já que os príncipes gojamés da província, como
sublinha um especialista moderno, não tinham o porte” dos yejju; estes últimos,
por outro lado, nunca conseguiram expulsar os gojamé ou manter no poder
homens impostos do exterior
11
.
Shoa, a terceira maior divisão do império, estava situada no Sudeste. Seus altos
planaltos centrais eram principalmente povoados por crisos falantes do amárico,
enquanto o Sul e o Oeste eram ocupados por oromos tradicionalistas e muçulma-
nos, com os afar muçulmanos ao Leste. A província tinha sido isolada pela expan-
o dos oromos, o que tinha permitido a seus senhores se tornarem independentes
de seus suseranos de Gondar. O Shoa, ainda que ligado a esta cidade por uma
rota comercial, tinha de fato relações econômicas mais importantes pelos afar
e as terras baixas da Somália – com os portos do golfo de Aden, Tadjūra e Zeila,
bem como com a cidade -mercado de Harar. Foi por estas rotas que os dirigentes
sucessivos do Shoa obtiveram uma quantidade reduzida, mas crescente, de armas
de fogo, graças às quais subjugaram os oromos vizinhos, aos quais faltavam estas
armas. Esta expansão deu a Shoa o controle do comércio com os territórios situ-
ados mais ao interior, ricos em ouro, marfim, café, especiarias e escravos.
Desde o final do século XVII, Shoa fora dirigida por sua própria dinastia
12
. O
primeiro chefe do século XIX, Asfa Wassan (1775 -1808), cujo nome significava
literalmente expandir a fronteira”, instalou sua capital em Ankobar. Ele lutou
duramente para conquistar as terras oromas, reorganizou o sistema tributário
e acabou com os últimos elos de vassalagem com Gondar
13
. Seu filho, Wasan
Sagad (1808 -1813), o qual teve o alto título de ras, realizou posteriormente
expedições contra os oromos e cooperou com Ras Walda Sellasé (Tigre) quando
dos ataques contra Wallo e Yejju, mas ele seguiu uma política tolerante e, ten-
tando cristianizar os oromos e lhes impor o amárico, nomeou alguns dentre eles
a cargos no Estado; ele agiu do mesmo modo com os muçulmanos
14
.
11 C. Conti Rossini, 1947; Takla Yasus (s.d.); Fantahun Birhane, 1973, p. 11.
12 H. Salt, 1814, p. 494 -496. Ver também R. Perini, 1905, p. 210 -211.
13 C. F. X. Rochet d’Héricourt, 1841, p. 212; 1846, p. 243; A. Cecchi, 1886 -1887, vol. I, p. 242 -243; Guèbrè
Sellassié, 1930 -1932, vol. I, p. 60 -66.
14 C. F. X. Rochet d’Héricourt, 1841, p. 212; 1846, p. 243; A. Cecchi, 1886 -1887, vol. I, p. 242 -244; ; Guèbrè
Sellassié, 1930 -1932, vol. I, p. 67 -69; sobre a história antiga de Shoa, ver também D. N. Levine, 1965,
p. 21 -38; V. Stitz, 1974, p. 64 -126, 349 -350.
442
África do século XIX à década de 1880
O filho de Wasan Sagad, Sahla Sellasé (1813 -1847), foi o primeiro potentado
de Shoa a se dar o título de negus, ou rei; ele pretendia também dominar Yefat,
o povo galla e Gurage”. Residindo alternadamente em Ankobar e em Angolola,
cidade recentemente confiscada dos oromos, ele manteve uma atitude tolerante
em relação aos oromos e aos muçulmanos, e realizou casamentos dinásticos com
eles. Desenvolvendo um sistema que o enviado inglês, o capitão W. C. Harris,
descreveu “como totalmente feudal”
15
, ele obteve maiores quantidades de armas
de fogo do que seus antecessores e invadiu as terras férteis do Sul e do Oeste,
o que lhe permitiu atrair as caravanas de Enarya, Kaffa, Gojam, Damot e de
outras regiões
16
. Sua necessidade por armas de fogo o levou a estabelecer rela-
ções com as potências estrangeiras. Em 1839, solicitou a um viajante francês,
Rochet d’Héricourt, que obtivesse fuzis em Paris e escreveu para a Companhia
Inglesa das Índias Orientais: Deus me deu um bom e vasto reino, mas as artes
e as ciências ainda não chegaram em meu país como o fizeram no vosso. Eu
vos rogo então de me assistir em particular enviando -me fuzis, canhões e outras
coisas que não possuo em meu país
17
”.
Sahla Selassé recebeu missões diplomáticas da França e da Inglaterra e assi-
nou tratados de amizade e de comércio com os dois países, em 1841 e 1843.
Harris que trouxe ao soberano uma doação de armas de fogo, citou sua reação:
“Com alguns mosquetes a mais, eu terei vantagem sobre todos os meus ini-
migos
18
”. Sob o seu reinado, Shoa conheceu uma paz que contrastou favora-
velmente com a situação das províncias do Norte, destruídas pela guerra civil.
Os camponeses de acordo com os san -simoenses franceses E. Combes e M.
Tamasier, “não tem porque temer a pilhagem dos soldados” e se dedicaram “com
uma energia redobrada no cultivo de suas terras, certos de realizar a colheita
após haver semeado
19
”. A morte de Sahla Sellasé, como aquela de vários de seus
antecessores, foi entretanto seguida de uma grande rebelião oroma, dificilmente
reprimida por seu filho Hayla Malakot, (1847 -1855) monarca frágil cujo reinado
conheceu inúmeras desordens
20
.
15 W. C. Harris, 1844, vol. II, p. 177 -178; ver também C. Johnston, 1844, vol. II, p. 18; A. Cecchi, 1886-
-1887, vol. I, p. 244; Guèbrè Sellassié, 1930 -1932, vol. I, p. 70 -77.
16 India Oce Records, Londres, Bombay Secret Proceeding, 2060 G, parág. 23, vol. 3, p. 489.
17 C. W. Isenberg e J. L. Krapf, 1843, p. 251.
18 India Oce Records, Londres, Bombay Secret Proceeding, vol. 3, p. 489; C. W. Harris, 1844.
19 E. Combes e M. Tamasier, 1838, vol. II, p. 346.
20 A. Cecchi, 1886 -1887, vol. I, p. 250 -256; Guèbrè Sellassié, 1930 -1932, vol. I, p. 77 -84.
443
A Etiópia e a Somália
F . O rei Sahla Sellasé de Shoa [Fonte: T. Lefebvre, Voyage en Abyssinie, 1845 -1849, Paris, Ilus-
tração reproduzida por Sasor Publisher, Londres.]
O porto de Massaoua
Nos confins do império, a região era igualmente dividida, e inúmeras áreas
estavam dilaceradas por conflitos interétnicos. Massaoua, ilha situada ao largo do
litoral do Mar Vermelho, recebia junto ao porto próximo de Arkiko (localizado
no continente) a maioria do comércio da Etiópia Setentrional
21
e constituía
uma unidade cultural distinta. Os habitantes, como aqueles da planície vizinha
de Samhar, eram muçulmanos que falavam o tigrino, língua semítica aparen-
tada ao ge‘ez; os contatos com a Arábia tinham também ampliado o uso do
árabe, mas a presença dos mercadores e soldados de numerosas raças produzia
uma verdadeira Babel de idiomas. A área era o teatro de conflitos entre quatro
poderes principais: primeiramente, o império otomano, o qual se apossou de
Massaoua em 1557 e instalara uma guarnição cujos descendentes constituíam
uma pequena, mas poderosa força de ocupação; em segundo lugar, o Egito, cujos
dirigentes haviam usurpado ou adquirido a soberania sobre a cidade em nome
do Estado otomano; em terceiro lugar, uma família aristocrática local, a qual
descendia das tropas otomanas e dos autóctones, os belaw, e que vivia em Arkiko
21 R. K. P. Pankhurst, 1961, p. 339 -346; 1968, p. 357 -391.
444
África do século XIX à década de 1880
e tinha como chefe, o na’ib, literalmente “representante”. Oficialmente, este era
apenas encarregado do litoral, mas exercia um domínio de fato sobre Massaoua
que dependia dele pela água potável e por todo o seu comércio; em quarto lugar,
os governadores do Tigre, os quais, considerando os portos como indispensáveis
para o acesso ao mar, afirmavam seus direitos históricos sobre estes; mas, já que
dominavam o comércio do interior, apenas empreenderam ações intermitentes
para fazer valer estes direitos.
O controle efetivo dos portos, no início do século, era partilhado entre a guar-
nição turca e o na’ib, o qual, na ausência de um governador otomano, era con-
siderado de fato o chefe de Massaoua e dizia que a porta de Habash era sua
22
.
Tais pretensões eram muito mal vistas por Walda Sellasé do Tigre que expressou
“um vivo descontentamento”, enviou uma expedição militar contra o na’ib, e
cortaria todas as comunicações” se este último não o houvesse “apaziguado
23
.
Para pôr fim ao poder do na’ib, um nobre britânico, Lorde Valentia, defendeu a
ideia da aquisição pelo seu governo de uma ilha na baía próxima de Zula, mas
este plano não deu resultados
24
.
O domínio do na’ib findou -se em 1813 -1814 quando Muhammad Alī do
Egito invadiu Massaoua em nome dos otomanos. Seu filho, o guerreiro Ibrāhīm,
foi nomeado pela Grande Porta governador do Hedjāz e da Abissínia, mas a
última parte do título – a qual expressava bem as ambições de Muhammad ‘Alī
era uma ficção; o papel do Egito se limitava à ilha e, mesmo assim, quase sim-
bolicamente. Em 1826, o na’ib, utilizando o seu controle sobre o abastecimento
de água em Massaoua, forçou os intrusos a se retirarem e, apesar da manutenção
de uma guarnição, dominou de novo a região
25
. A evacuação egípcia despertou
o interesse dos etíopes. Sabagadis do Tigre solicitou ao rei da Inglaterra George
IV para “se apossar do porto de Mussowa para nos dá -lo ou para mantê -lo para
si
26
”, mas o governo britânico recusou.
Muhammad Alī apossou -se de novo de Massaoua em 1833, mas teve que
se retirar em 1841. Perto daquela época, Webé do Tigre enviou um embaixador
ao rei da França Luís Felipe oferecendo -lhe a baía próxima de Amfilla em troca
de armas de fogo e de um apoio para suas reivindicações sobre o litoral, mas os
22 G. Valentia, 1811, vol. III, p. 252.
23 Ibid., vol. III, p. 40.
24 Ibid., vol. III, p. 261 -278.
25 R. K. P. Pankhurst, 1964b, p. 38 -39.
26 Public Record Oce, Kew, England, FO 1/2.
445
A Etiópia e a Somália
franceses se recusaram a cooperar nesta empreitada
27
. O na’ib tirou vantagem da
derrota de Webé em Dabra Tabor, em 1842, para invadir o distrito de Hamasén,
o que levou Webéa saquear a planície de Samhar em 1843 -1844. Dois anos mais
tarde, ele ofereceu Arkiko ao governo francês, mas sua proposta foi igualmente
recusada. Muhammad Alī retomou o controle de Massaoua em 1846 e teve,
por outro lado, que pagar aos turcos uma soma anual de 20.000 dólares Maria-
-Theresa. No ano seguinte, seus soldados ocuparam a ilha; pouco depois, eles
atacaram Arkiko, queimaram -na totalmente e construíram um forte em terra
firme. O na’ib tornou -se seu joguete. Decidido a estabelecer seu controle sobre
toda a região, Muhammad ‘Alī exigiu de todos os chefes litorâneos, até o porto
somali de Berbera, que se submetessem a ele. Webé, furioso, enviou de novo um
exército para a planície de Samhar em 1843. Seus homens saquearam Arkiko,
mas não puderam se apossar de Massaoua e tiveram que se retirar. Webé dirigiu
um apelo dramático à rainha Vitória, no qual afirmava que seus antecessores
tinham anteriormente “governado todo o litoral do Mar Vermelho e lhe pedia
para impedir seus inimigos “de estabelecerem -se em terra firme
28
, mas os bri-
tânicos recusaram a apoiá -lo. Sua expedição, entretanto, expôs o interesse que o
Tigre tinha sobre o litoral e revelou que uma outra intervenção seria provável
se os egípcios tentassem invadir as terras do interior.
As terras baixas do Afar
No Sudeste de Massaoua, as terras baixas áridas eram ocupadas pelos afar, um
povo nômade de língua cushítica dominado, no início do século, pelo sultanato
de Awsa. Estabelecido um século antes, quando os asaimara, ou afar “vermelhos”,
se instalaram na planície fértil do Awsa, o sultanato era dirigido pelo sultão
Ijdahis, cujos principais rivais eram os adoimara ou afar brancos” ao Sul. Sua
morte, em 1810, provocou uma confusão que permitiu aos adoimara saquearem
Awsa e forçarem seu sucessor a partilhar o poder com eles. Sua força crescente
foi reforçada pelo desenvolvimento de Shoa, cujo comércio em expansão levou
à criação do porto de Tadjūra
29
.
O litoral danakil adquiriu um interesse internacional após a ocupação de
Aden pelos britânicos em 1839. No ano seguinte, um funcionário da Com-
panhia Inglesa das Índias Orientais, o capitão Moresby, comprou do sultão de
27 T. Lefèbvre, 1845 -1854, vol. I, p. 103 -104; Public Record Oce, Kew, England, FO 1/3
28 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 30.
29 M. Abir, 1968, p. 23 -24. Ver também I. M. Lewis, 1955, p. 155 -160.
446
África do século XIX à década de 1880
Tadjūra por “dez sacos de arroz” uma ilha localizada ao largo do litoral. O chefe
assinou igualmente um documento se comprometendo “a respeitar e a consi-
derar todo o tempo o aviso amigável dos britânicos e “de não concluir tratado
algum ou aliança com alguma outra nação ou pessoa europeia sem aprovação
britânica
30
. Dois franceses, Combes e Broquand compraram, logo depois, agindo
em nome de uma companhia francesa, a Sociedade Nanto -bordolesa, a vila
litorânea de Edd do seu chefe local, pela soma de 1.800 dólares Maria -Theresa;
logo após, perceberam que não poderia servir como porto, que estava aberto
aos ventos
31
.
Os somalis e o chifre da África
Mais ao Leste, as terras baixas desertas que chegavam até o litoral do golfo
de Aden eram habitadas pelos somalis muçulmanos que falavam uma outra
língua cushítica e eram muito tempo submetidos à influência árabe. Zeila,
porto que acolhia o comércio de Shoa, de Ogaden e de Harar, dependia desde
1630 do porto árabe de Moka que os dirigentes haviam alugado a uma série de
emires árabes cuja autoridade, mas apenas ultrapassava os limites da cidade
32
.
O resto do litoral pertencia a somalis nômades que reivindicavam igualmente
o controle de Berbera, porto praticamente deserto que renascia a cada inverno
quando as caravanas do interior vinham trocar suas mercadorias por produtos
importados pelos mercadores da Arábia, do golfo Pérsico e da Índia
33
. A feira era
tão importante que um ditado popular afirmava:aquele que comanda Berbera
tem a barba de Harar em suas mãos”
34
.
A importância do litoral setentrional da Somália foi bem compreendida
por Muhammad Alī do Egito, o qual se apossou de Berbera em 1821, mas
teve que abandoná -la devido à resistência local. Uma década mais tarde, os
egípcios fizeram uma nova tentativa neste sentido, mas tiveram que se retirar
em 1841; o governo de Zaila foi então comprado por um ambicioso mercador
somali, Hadjdj Alī Shermerki. Desejando monopolizar o comércio da região,
ele se apossou de Berbera e incentivou os grupos issa do interior a atacarem as
caravanas que se dirigiam a Tadjūra. Seu crescente poder despertou, entretanto,
30 E. Hertslet, 1894, vol. I, p. 275; vol. II, p. 382.
31 P.V. Ferret e J. G. Galinier, 1847 -1848, vol. II, p. 436 -437; R. K. P. Pankhurst, 1966b, p. 203 -218.
32 J. S. Trimingham, 1952, p. 97.
33 R. Burton, 1894, vol. I, p. 71 -74; R. K. P. Pankhurst, 1968, p. 421 -424.
34 R. Burton, 1894, vol. II, p. 28.
447
A Etiópia e a Somália
a inquietação do emir de Harar, o qual levou os somalis haber awal a se oporem
à ocupação de Berbera. Shermerki reagiu incitando outros somalis a cortar a
rota de Berbera e a deporem o emir, mas os haber awal retiraram seus homens
do porto em 1852. Ele tentou fazer um bloqueio, mas os ingleses de Aden o
obrigaram a abandonar este projeto e ele foi preso pelas autoridades otomanas
em Meca em 1855. Zeila foi então entregue a Abū Bakar, um afar mercador de
escravos da região de Tadjūra
35
.
O litoral de Bender Ziada, no golfo de Aden, em Illig, no Oceano Índico,
fazia parte do sultanato de Majerteyn, cuja existência remontava talvez ao século
XV. O sultanato, habitado por seminômades, retirava o essencial de seus parcos
recursos com a exportação de incenso e de madeiras aromáticas. Uma longa
tradição de navegação, ao longo daquele litoral dilacerado, dava aos nômades
da região uma outra fonte de renda. No século XIX, a autoridade do sultão
sobre os clãs do interior era no máximo nominal. Em 1839, o sultão assinou
em Aden, com os britânicos, um tratado lhe garantindo uma renda anual em
troca de sua ajuda para proteger as vidas e os bens dos marinheiros britânicos
que naufragassem ao largo do litoral
36
.
Mais ao Sul, o Benadir, ou o litoral do Oceano Índico habitado pelos somalis,
era no início do século um protetorado de Omã, o qual se tornou independente
na década de 1820, após uma intervenção da Companhia Inglesa das Índias
Orientais; logo depois, a área passou para o controle do sultão de Zanzibar, cujo
representante residia no porto de Brava (Barawa).
O porto de Mogadíscio era praticamente autônomo, como C. Guillain
observou, a autoridade dos sultões de Zanzibar, como aquela de seus agentes
aduaneiros, se estabelecendo e desaparecendo com a moão
37
. O interior de
Mogadíscio era controlado pelo clã dos geledi, cujos sultões tinham concluído
alianças com inúmeros outros clãs da região, entre o Shebele e o Juba. Durante
uma grande parte do culo, o comércio de marfim entre Luk (Lugh), no
alto Juba, e Mogadíscio era regido por estas alianças dos geledi; os sultões
dos geledi recebiam também um tributo dos cs de agricultores instalados
no vale inferior do Shebele, a Brava no Sul. Somente o poderoso clã dos
bimal, no interior de Merka, conseguira resistir à hegemonia dos geledis
38
. Os
35 Ibid., vol. I, p. 11 -15; M. Abir, 1968, p. 14 -15.
36 I. M. Lewis, 1965, p. 38; M. Pirone, 1961, p. 66 -68, 87 -88.
37 C. Guillain, 1856, vol. III, p. 185 -186; I. M. Lewis, 1965, p. 37 -39.
38 Por duas vezes, em 1848 e novamente em 1878, os guerreiros bimal mataram os sultões geledi nos campos
de batalha. C. Guillain, 1856, vol. III, p. 445 -446; G. Revoil, 1885, p. 26 -27.
448
África do século XIX à década de 1880
sultões de Zanzibar, entretanto, deviam submeter -se à autoridade dos dirigen-
tes geledi. No Benadir, o poder era então partilhado segundo um equilíbrio
delicado; deste modo, quando o sultão de Zanzibar quis construir um porto
em Mogadíscio em 1870, ele teve que obter o consentimento do sultão dos
geledi, Ahmad Yūsuf
39
.
um acontecimento maior cuja lembrança está muito viva na tradição oral
dos somalis do Sul: o aparecimento da jihad de Bardera, movimento militante de
reforma islâmica, oriundo da colônia religiosa de Bardera sobre o Juba, no final
da década de 1830. Os membros deste movimento queriam impôr a sua versão
de uma teocracia islâmica à população da Somália Meridional e conseguiram
até mesmo conquistar a cidade de Brava, no litoral, em 1840. Em 1843, todavia,
o sultão dos geledi, Yūsuf Muhammad, após ter reunido seus aliados estabele-
cidos entre os dois rios, liderou uma grande expedição contra os reformistas. A
colônia de Bardera foi sitiada e aniquilada pelo fogo e o sultão Yūsuf tornou -se
durante um tempo o dirigente mais poderoso da Somália Meridional
40
. Durante
a segunda metade do século XIX, algumas ordens islâmicas Qadiriyya, Ahma-
diyya e Sālihiyya começaram a penetrar pelo interior da Somália e colônias
religiosas fixaram -se em todo o país
41
. Finalmente, a última grande migração
somali, iniciada no começo do século, trouxe os nômades das planícies do Oga-
den até além do Juba. Alguns destes nômades, os pastores, aderiram à jihad de
Bardera e atravessaram o Juba onde colidiram com os oromos. Estes últimos
foram finalmente empurrados em direção ao Tana onde os britânicos os encon-
traram quando eles criaram o protetorado da África Oriental
42
.
O mercado de Harar
Além do litoral somali, nas terras altas, encontrava -se a cidade mulçumana
fortificada de Harar, cujos habitantes falavam o adaré, língua semítica desco-
nhecida alhures. A cidade constituíra, durante vários séculos, um Estado inde-
pendente dirigido por um emir que exercia poderes tão ampliados que o viajante
britânico Richard Burton exclamou: “o governo de Harar, é o emir
43
.
39 G. Revoil, 1885, p. 22; I. M. Lewis, 1965, p. 38.
40 L. V. Cassanelli, 1982, p. 135 -146.
41 L. V. Cassanelli, 1982, p. 194 -197; E. Cerulli, 1957, vol. I, p. 187 -195.
42 L. V. Cassanelli, 1982, p. 29 -30.
43 R. Burton, 1894, vol. II, p. 20.
449
A Etiópia e a Somália
Entreposto do Shoa, do Arussi, do Guragé e do Ogaden, a cidade cunhava
sua própria moeda e tinha um comércio florescente de café, de chāt (uma folha
narcótica), de açafrão, de couros e de peles, de marfim e de escravos, sem falar
dos têxteis e de outros produtos importados. Harar que possuía inúmeras mes-
quitas e mausoléus muçulmanos, era um centro de ensino alcorânico visitado
pelos shaykh árabes; ela exercia uma forte influência religiosa e cultural sobre
os vizinhos oromos qottu que falavam uma língua cushítica, como alguns soma-
lis. Os dois grupos haviam realizado casamentos com a nobreza de Harar e,
em alguns casos, seus dirigentes tinham procurado se fazer reconhecer pelos
emires.
No início do século XIX, a cidade estava dilacerada por conflitos internos e
submetida a uma forte pressão pelos oromos, mas seu perspicaz emir, Ahmad ibn
Muhammad (1794 -1821), derrotara seus inimigos. Sua morte foi, entretanto,
seguida de brigas em sua própria família, em consequência da qual os oromos
e, numa medida menor, os somalis se apossaram das terras próximas da cidade.
Esta resistiu graças à pujança de suas muralhas, à sua artilharia e aos seus fuzis
(um arsenal fortemente reduzido)
44
.
A região de Guragé e Kaa
Mais ao interior se encontrava a região de Guragé, cujos habitantes falavam
uma língua semítica e se dividiam entre aqueles do Oeste, cristãos desde a
Idade Média, e aqueles do Leste que tinham adotado o islã. Embora governada
anteriormente por uma dinastia local, a região tinha passado, no início do século
XIX, sob o domínio de sete clãs independentes, denominados os sab‘at beit,as
sete casas”; a ausência de unidade entre eles os tornava uma presa fácil para os
caçadores de escravos e favoreceu sua anexação por Sahla Sellasé do Shoa
45
.
No Sudoeste da região etíope, nas terras altas férteis e arborizadas, estendia-
-se o antigo reino de Kaffa, Estado tradicionalista que falava sua própria língua,
o katicho. Aquela região, fonte de exportação de produtos de valor almíscar,
marfim e escravos, sem falar do café que crescia naturalmente –, tinha sido em
grande parte isolada do mundo externo pela expansão oroma; todavia, no século
44 E. Cerulli, 1942, p. 1 -20; M. Abir, 1968, p. 10 -11; S. Tedeschi, 1874, vol. I, p. 481 -500; J. S. Trimingham,
1952, p. 110. Para uma descrição de Harar na metade do século, ver também R. Burton, 1894, vol. II, p.
13 -29.
45 W. A. Shack, 1966, p. 16 -17; P. Lebel, 1974, p. 104 -105.
450
África do século XIX à década de 1880
XVIII, ela fizera incursões nos territórios de seus vizinhos e, em 1820, seu rei,
Hotti Gaotscho, dominava ao Norte e a Leste até os rios Gibbé e Omo
46
.
Os Estados oromos
As regiões situadas ao Sul do Nilo Azul eram povoadas por oromos tradi-
cionalistas que se encontravam, no início do século, em um estado de grande
efervescência política. O antigo sistema igualitário do gada, o qual implicava
um comando baseado na rotação dos grupos etários, estava ameaçado por che-
fes militares ricos e poderosos, frequentemente conhecidos pelo título de abba
dula (pai da guerra). Estes chefes reclamavam a autoridade vitalícia e o direito
de estabelecer dinastias. Nas primeiras décadas do século XIX, três monarquias
oromas surgiram: Enarya (conhecida também pelo nome de Limmu), Goma
e Guma, a Oeste
47
. Enarya, a monarquia mais poderosa, era dirigida por Bofu,
um chefe de talento que, para reforçar seu poder, aceitou os conselhos dos
mercadores muçulmanos e se converteu ao islã. Seu filho Ibsa, ou Abba Bagibo
(1825 -1861) o sucedeu e fez alianças dinásticas com as casas reais vizinhas;
obteve também alguns fuzis de mecha do Gojam, o que lhe assegurou uma
posição inexpugnável. Sob o seu longo reinado, o comércio, essencialmente de
escravos, de ouro, de marfim e de almíscar, era florescente; o reino tornou -se rico
e poderoso. Mas a expansão do Shoa logo ameaçou as rotas comerciais que iam
para Harar e para os portos do golfo de Aden, e, após a morte de Abba Bagibo,
o reino conheceu um declínio muito rápido.
Mais ao Sul, os reinos de Jimma -Kakka (chamado também de Jimma Abba
Jifar) e de Gera, apareceram pouco depois da criação do reino de Enarya. Jimma-
-Kakka, a monarquia oroma mais duradoura, foi fundada por Abba Magal, um
homem da região de Hirmata que realizou uma série de expedições vitoriosas.
Estas foram continuadas por seus filhos; um dentre eles, Abba Jifar Sana, por-
tava originalmente o título de abba dula. Após sua conversão ao islã em 1830,
ele se proclamou moti, ou rei (1830 -1855) e realizou numerosas inovações polí-
ticas e administrativas. Seu sucessor, Abba Reba (1855 -1859), atraiu para si a
hostilidade dos Estados oromos vizinhos que se uniram e o mataram no campo
de batalha, em 1859. O Estado passou então para o controle do irmão de Abba
Jifar Sana, Abba Boko (1859 -1862), o qual prosseguiu com uma política em
46 J. F. Bieber, 1920 -1923, vol. I, p. 89 -90; A. Cecchi, 1886 -1887, vol. II, p. 483 -491; G. W. B. Huntingford,
1955, p. 104 -105; A. Onneken, 1956.
47 Para uma crônica sobre Guma, ver E. Cerulli, 1922, p. 148 -162.
451
A Etiópia e a Somália
F . O emir Ahmad ibn Muhammad do Harar, 1794 -1821. [Fonte: R. Burton, First Footsteps in
East Africa, 1894. Londres. Ilustração reproduzida por Sasor Publisher, Londres]
favor do islã e ordenou a construção de mesquitas em todas as suas províncias,
ao passo que seu filho e sucessor, Abba Gommol (1862 -1878) ampliou os limites
do reino
48
.
A área da qual trata este capítulo constituía -se então em uma verdadeira
galáxia de entidades políticas, cada uma movendo -se em sua própria órbita,
agindo sobre as outras e sendo afetada por aquelas. Cada dirigente vigiava de
perto seus vizinhos, com os quais trocava presentes e boas maneiras, quando não
travava guerra. Os casamentos dinásticos eram realizados sempre que possíveis,
ainda que pudessem ultrapassar apenas ocasionalmente as barreiras criadas pelas
religiões. O comércio, por sua vez, funcionava independentemente das distinções
entre os credos e as rotas dos mercadores uniam as aglomerações tradicionalistas
cristãs e mulçumanas. As comunidades étnicas e linguísticas permaneciam ainda
muito separadas, porém, havia muita mestiçagem cultural. Tal era a situação,
não somente nas montanhas etíopes e nas bordas do Mar Vermelho, mas tam-
bém mais ao Sul, ao longo da fronteira entre os somalis e os oromos onde, na
48 A. Cecchi, 1886 -1887, vol. II, p. 156 -157, p. 238 -240, p. 266 -267, p.537 -542; G. W. B. Huntingford,
1955, p. 20; M. Abir, 1965, p. 205 -219;H. S. Lewis, 1965, p. 24 -41, p. 44.
452
África do século XIX à década de 1880
sequência, os viajantes do século XIX assinalaram a existência de comunidades
de comerciantes bilíngues
49
.
Os esforços de unicação do imperador Teodoro II
O estado de divisão da Etiópia na primeira metade do século XIX deu lugar,
na segunda, a duas importantes tentativas de reunificação. A primeira é aquela
de Dajazmach Kassa Heyku, o futuro imperador Teodoro (ou Tewodros) II da
Etiópia, cujo reinado pôs fim à era dos Masafent.
Nascido por volta de 1820, Kassa era filho de um chefe de Qwara, locali-
zado na fronteira do Sudão, cuja viúva, destituída, fora obrigada a vender kosso,
o remédio etíope contra o verme solitária. Criado em um mosteiro, Kassa se
fez mercenário e tornou -se senhor de Qwara tomando o título de dajazmach.
A imperatriz Manan, a mãe de Ras Alī, o chefe yejju de Bagemder, tentou
obter seu apoio casando -o com sua neta Tawabech, mas ele se revoltou, pilhou
Dambeya e derrotou o comandante enviado contra o filho da vendedora de
kosso (como era chamado de maneira pejorativa). Kassa ocupou Gondar em
1847, depois capturou a imperatriz e a libertou quando Ras ‘Alī o reconhe-
ceu como chefe da região fronteiriça ocidental. Este triunfo sobre os yejju, cuja
política pró -mulçumana tinha chocado inúmeros cristãos amhara, encorajou
Kassa em suas empreitadas. Em 1848, ele atacou os egípcios no Sudão e avançou
até menos de cem quilômetros da cidade de Sennar, a qual não pôde capturar
devido a potência das armas de fogo egípcias. Após a reconciliação, serviu o ras
até 1852, quando ‘Alī o convocou de novo. Kassa recusou a vir e se retirou em
Qwara. O ras proclamou a entrega das terras de Kassa para Dajazmach Goshu
Zawdé, o chefe do Gojam, o qual se pôs em campanha para aniquilar o arrivista.
Kassa, contudo, venceu facilmente os gojame e tentou se reconciliar com Alī.
Mas este último marchou com Dajazmach Webé (do Tigre) contra ele. Kassa
arrasou seus exércitos em 1853 e incendiou a capital de Alī, Dabra Tabor; depois
ele venceu o ras em Ayshal, perto do Gojam. Esta batalha marcou o fim da
dinastia yejju, e pôs fim à era dos Masafent. Os únicos rivais restantes do chefe
vitorioso, no Norte da Etiópia, eram os filhos de Goshu, Dajazmach Beru (do
Gojam) e Webé (do Tigre). Kassa atacou e capturou o primeiro em 1854 e se
deu em seguida o título de negus. No ano seguinte, ele marchou contra Webé
49 U. Ferrandi, 1903, nota 1, p. 316.
453
A Etiópia e a Somália
em Samén e o venceu em Darasgé, onde capturou quase 7.000 armas de fogo
50
.
Coroou a si mesmo imperador e escolheu como nome Téwodros (Teodoro)
nome altamente simbólico já que uma profecia afirmava que um monarca deste
nome teria um reinado justo, expulsaria o islã e se apossaria de Jerusalém
51
.
A personalidade e as aspirações do novo imperador foram descritas de modo
vivo por um observador britânico, o cônsul Plowden, o qual declarou que Teodoro
acreditava ser um “monarca pré -destinado” e “era capaz de grandes coisas, boas
ou ruins [...]. Ele é justo, escuta pessoalmente os mais pobres dos camponeses;
acabou com o sistema de esposas com o próprio exemplo, ele [...] desencorajou
a poligamia e o concubinato; interditou o comércio de escravos e pacificou todo
o país”
52
. O cônsul descreveu Teodoro como um visionário e observou:
Ele é convencido de ser pré -destinado a restaurar a glória do império etíope e a rea-
lizar grandes conquistas; com uma energia incansável, tanto mental como corporal,
sua bravura pessoal e moral é sem limite. Sua moralidade é muito bem atestada
pela severidade da qual faz prova em relação a seus soldados, mesmo quando estes,
pressionados pela fome, se amotinam, e ele se encontra diante de uma multidão
hostil; ela é atestada ainda pelo fato de ter imposto reformas em um país tão pouco
habituado ao jugo [...] e de ter vencido o poderio dos grandes chefes feudais em
um momento em que até o homem mais inferior teria buscado negociar com eles
e considerá -los como um estribo para o império [...]. A tarefa árdua de pôr fim ao
poder dos grandes chefes feudais tarefa que pôde ser realizada na Europa por
toda uma linhagem de soberanos –, empreendeu -a ao acorrentar quase todos aqueles
que eram perigosos. Colocou os soldados das diferentes províncias sob o comando
de seus partidários mais fiéis, aos quais concedeu altos títulos, mas não o poder de
julgar ou punir; deste modo, com efeito, criou generais em lugar de capitães feudais
[...]. Com relação ao comércio, acabou com algumas práticas humilhantes e ordenou
que os impostos fossem cobrados em três locais em seus territórios [...]. Tentou
desarmar o povo e criar um exército regular, equipado somente com fuzis; declarou
que transformaria as espadas e as lanças em relhas de arado e foices e que venderia
mais caro um boi de arado que o mais nobre cavalo de guerra [...]. Algumas de suas
ideias são talvez imperfeitas, outras irrealizáveis, mas um homem que fez tanto e que
se fixa em projetos tão vastos não pode ser considerado como um ser ordinário
53
.
50 C. Conti Rossini, 1947, p. 392 -396; S. Rubenson, 1966, p. 35 -45.
51 A propósito da propicia sobre Teodoro, ver R. K. P. Pankhurst, 1974.
52 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 143 -144.
53 Grã -Bretanha, 1868, p. 150 -151.
454
África do século XIX à década de 1880
F . O imperador Teodoro inspecionando o canteiro de obras de uma estrada. [Fonte: H. Rassam,
Narrative of a British Mission to eodore, King of Abyssinia, 1869, Londres. Ilustração reproduzida por Sasor
Publisher, Londres]
455
A Etiópia e a Somália
Teodoro se mostrou um grande unificador, grande inovador e grande refor-
mador
54
. Depois de sua coroação, ele marchou sobre Wallo e se apossou da for-
taleza montanhosa e natural de Magdala, a qual se tornou mais tarde sua capital.
No mesmo ano, conquistou Shoa, a última província cristã fora de seu controle e
nomeou Hayla Mika‘el, um irmão do rei Hayla Malakot recentemente falecido,
como governador; quanto ao filho do rei, Menelik, ele levou como refém.
Compreendendo que não poderia controlar o país pela força, Teodoro deci-
diu reorganizar seu exército. Sua experncia com os egípcios, escreveu um
viajante britânico, Henry Dufton, o havia convencido que “o modo de combate
primitivo devia ser ultrapassado
55
”. Ele pensou então em substituir os recrutas
feudais não pagos que devastavam os campos, sem serem muito eficazes no
campo de batalha, por um exército de soldados profissionais e bem equipados.
A partir de 1853, relata -se que ele “disciplinara” seu exército
56
graças a ajuda de
alguns turcos, bem como de um aventureiro inglês, John Bell
57
. Teodoro adotou
a prática de dar aos seus soldados “somas em dinheiro para habituá -los à ideia
de um pagamento regular
58
; organizou seus homens em regimentos, misturando
recrutas de diferentes províncias e dando deste modo um duro golpe no sistema
feudal no qual os homens se reuniam em torno do chefe de sua região natal
59
”.
Ele instalou celeiros para o exército e ordenou a seus soldados que comprassem
seus alimentos em vez de extorqui -los dos camponeses, mas esta ordem foi difícil
de se fazer respeitar
60
.
Decidido a aumentar seu poder de fogo, Teodoro tentou, com a ajuda de
mercadores estrangeiros, importar armas
61
; mas a coisa era difícil na medida
em que os egípcios no Sudão e os turcos em Massaoua eram -lhe hostis; quanto
aos senhores do Tigre, região que permanecia em grande parte fora de seu
controle, tampouco lhe favoreciam o trânsito de armas. Teodoro teve então a
ideia de solicitar aos missionários e aos artesãos estrangeiros que fabricassem
armas de fogo. Em 1855, ele aceitou uma oferta feita por Samuel Gobat, o bispo
protestante de Jerusalém, de enviar -lhe um grupo de trabalhadores missionários
54 Para diferentes retratos de Teodoro, ver A. d’Abbadie, 1868a, 1868b; T. Noldeke, 1892, p. 257 -284; C.
J. Jaenem, 1966, p. 25 -56; D. Crummey, 1969, p. 457 -469; M. Morgan, 1969, p. 245 -269.
55 H. Dufton, 1867, p. 138.
56 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 76.
57 H. Dufton, 1867, p. 183 -184.
58 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 150.
59 Ibid., p. 166.
60 M. Moreno, 1942, p. 160 -161.
61 H. M. Stanley, 1874, p. 273; R. K. P. Pankhurst, 1972, p. 92.
456
África do século XIX à década de 1880
do Instituto Chrischona (localizado na Suíça, perto de Basileia). Quando estes
últimos lhe deram bíblias, Teodoro declarou que “teria preferido um tonel de
pólvora inglesa
62
”. Mas compreendendo que se tratava de artesãos de valor, ele os
tratou cordialmente e os instalou em Gagat, perto de Dabra Tabor, sua capital.
A estes artesãos juntou -se um armeiro francês, além de um polonês que tinha
desertado o exército russo
63
. Em 1861, Teodoro ordenou aos estrangeiros que
fabricassem um canhão, morteiros e obuses
64
. No início, eles recusaram, mas o
imperador insistiu e aprisionou seus servidores até que os patrões cedessem.
“Em seu estado de perplexidade, eles puderam prometer que tentariam”. E,
pouco tempo depois, Dabra Tabor viu as bombas de canhão subir aos ares e
explodirem com grandes barulhos que provocaram mil ecos nas colinas
65
”.
Teodoro ofereceu aos artesãos vestimentas honoríficas, cavalos e mulas com
arreios em ouro e em prata, mais mil dólares Maria -Teresa para cada um
depois ordenou a fabricação de armas ainda mais possantes. Finalmente, ele
solicitou que construíssem um canhão capaz de atirar um obus de mil libras.
Este canhão foi chamado de “Sebastopol”, pesava sete toneladas e necessitava
quinhentos homens para carregá -lo. O imperador declarou que o dia em que
o fabricaram era um dos mais felizes de sua vida. Ele considerou igualmente
enviar à Inglaterra e à França alguns de seus súditos mais inteligentes para
aprender as artes e as técnicas úteis
66
”.
Consciente do fato que suas forças deveriam se movimentar com a maior
rapidez possível, Teodoro solicitou a seus artesãos europeus que se ocupassem
da construção de estradas
67
. O trabalho manual era impopular entre os solda-
dos que desprezavam este tipo de tarefa; mas o imperador deu exemplo e, de
acordo com um observador britânico, Henry Blanc, “ele se punha a trabalhar do
alvorecer até tarde da noite; com suas próprias mãos, deslocava pedras, nivelava
o solo e ajudava a entulhar barrancos. Ninguém podia parar o trabalho por
muito tempo enquanto ele continuava”. Esta tarefa “teria lançado ao desespero
qualquer homem”; mas Teodoro “construiu pouco a pouco estradas que teriam
a aprovação de um engenheiro europeu
68
”. Estas estradas deviam ligar Dabra
62 C. T. Beke, 1867, p. 259.
63 H. Dufton, 1867, p. 81 -83.
64 Ibid., p. 83 -84
65 Ibid., p. 84 -85.
66 Ibid., p. 138.
67 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 189.
68 H. Blanc, 1868, p. 344.
457
A Etiópia e a Somália
Tabor a Gondar, Gojam e Magdala, em uma região extremamente montanhosa.
Clements Markham, outro observador britânico, descreveu a estrada de Magdala
como um trabalho bem marcante, um verdadeiro monumento de resolução
indomável e perseverante
69
”.
Embora um homem de guerra, Teodoro se interessava muito na pacificação
de seu país, devastado pelas guerras. Proclamou um édito em 1855, segundo o
qual “cada um devia retornar à sua vocação legítima, o mercador a seu comércio
e o camponês ao arado
70
”. Ele procurou eliminar o banditismo. Um dia, ladrões
vieram vê -lo, armados até os dentes, exigindo que confirmasse o direito deles de
exercerem a profissão de seus pais. Sem suspeitar do que se tratava, ele perguntou
qual era esta profissão e eles lhe responderam insolentemente:ladrão de estra-
das”. Vossa profissão, lhes disse ele, é perigosa e a agricultura é mais rentável.
Voltai para a planície e cultivai -a[...]. Eu vos darei eu mesmo bois e arados.” Os
ladrões se obstinaram a exercer sua atividade, ele marcou um outro encontro
e quando recusaram de novo escutá -lo, ele os fez abater por seus soldados. Tal
severidade, segundo o viajante francês Guillaume Lejean, trouxe a paz; as rotas
comerciais, até então afligidas por roubos e pela guerra civil, tornaram -se tão
seguras como aquelas da França ou da Alemanha
71
. Teodoro, desejando ter um
império unido, procurou também eliminar as diferenças religiosas. Ele ordenou
aos muçulmanos que se encontravam em seus territórios, observa Plowden, a
se converterem ao cristianismo em um prazo de um ano” e expulsou todos os
católicos romanos
72
. Afirma -se que ele declarou que, se ele não “fizesse os oro-
mos e os amhara comerem na mesma mesa”, ele não mereceria mais o nome de
cristão
73
. Após a morte da sua primeira esposa, para consolidar o seu controle
sobre o Tigre, ele se casou com Terunash (ou Teruwarq), a filha do seu velho
inimigo Dajazmach Webé
74
.
O monarca reformador voltou igualmente a sua ateão para a Igreja, da
qual ele aprisionou o chefe, Abuna Salama, em 1857. Teodoro tentou diminuir
o número de padres, reduzir as terras pertencentes aos eclessticos e tor-
nar os religiosos dependentes de salários pagos pelo Estado
75
. Estas medidas
69 C. R. Markham, 1869, p. 295 -296.
70 G. Lejean, 1865, p. 63.
71 F. M. C. Mondon -Vidailhet, 1905, p. 23 -24; G. Lejean, 1865, p. 63 -64 e p. 67.
72 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 143. Ver também p. 172.
73 M. Moreno, 1964, p. 162.
74 S. Rubenson, 1966, p. 56.
75 R. K. P. Pankhurst, 1968, p. 143.
458
África do século XIX à década de 1880
F . O grande canhão “Sebastopol” do imperador Teodoro. [Fonte: H. Rassam, Narrative of a British
Mission to eodore, King of Abyssinia, 1869, Londres. Ilustração reproduzida por Sasor Publisher, Londres.]
foram duramente combatidas pelo clérigo
76
. No longo prazo, a hostilidade
dos padres, juntamente com aquela dos nobres provinciais, contribuiu para
voltar uma grande parte da população contra ele; segundo o historiador sueco
Sven Rubenson, isto foi “provavelmente a causa mais importante de seu fra-
casso
77
”. A oposão das províncias revelou -se de fato impossível de derrubar.
A primeira ameaça veio do Tigre onde um chefe dissidente, Agaw Negusé,
tentou em 1856 obter a protão da França e se declarou pronto para aceitar
como abuna um católico romano para o bispado de Jacobis. Em 1859, Negu
cedeu o porto de Zula em troca de uma ajuda militar francesa
78
. Mas temendo
ofender os ingleses, os franceses não ousaram assinar este acordo
79
e Negu
foi vencido em 1860.
76 H. Dufton, 1867, p. 140.
77 S. Rubenson, 1966, p.72.
78 S. Russel, 1884; J. Kolmodin, 1912 -1915, p. 139 -143, p. 145 -146.
79 G. Douin, 1936 -1941, vol. III, p. 248 -249.
459
A Etiópia e a Somália
F . Eclesiásticos etíopes durante a década de 1840. [Fonte: W. C. Harris, e Highlands of Aethiopia,
1844, Longman, Londres.]
Os últimos anos do reinado de Teodoro conheceram, entretanto, sérias difi-
culdades. Houve continuadas rebeliões, particularmente aquela de Amadé Bashir
no Wallo, onde o imperador travou uma guerra excessiva; em Shoa, Bezabeh,
um príncipe local, proclamou sua independência. Gojam passou para o controle
de um nobre rebelde, Tedia Gwalu, enquanto um outro chefe, Tiso Gobasé
apoderava -se de Gondar; Wagshum Gobasé, filho do antigo senhor de Lasta, se
revoltou. Um outro acontecimento sério teve lugar: Menelik, herdeiro do trono
de Shoa, fugiu de Magdala em 1865 e proclamou -se soberano independente.
Confrontado com esta oposição crescente, Teodoro teve que recorrer à violên-
cia. Ele incendiou Gondar em 1864 e a saqueou, bem como a cidade vizinha
de Dambeya em 1866, onde seus soldados destruíram a maioria das igrejas da
velha capital. As cruzes de procissão, os manuscritos e outros objetos de valor
foram levados para Dabra Tabor; inúmeros objetos em cobre e em prata foram
fundidos para fabricar canhões. Centenas de pessoas foram executadas. Tal
violência, a qual contrastava muito com outros traços de caráter mais humanos
de Teodoro (como seu amor pelas crianças)
80
, forçaram Markham a compará -lo
com Pedro, o Grande, da Rússia
81
.
80 H. Dufton, 1868, p. 106.
81 C. R. Markham, 1869, p. 293. Ver também D. Crummey, 1971, p. 107 -125.
460
África do século XIX à década de 1880
O conito com a G‑Bretanha
Os últimos anos do reinado de Teodoro foram assombrados por um estranho
conflito com a Grã -Bretanha. Devendo enfrentar uma oposição crescente no
interior do seu império, ele procurou uma assistência técnica da Europa e enviou
cartas à rainha Vitória e ao imperador Napoleão III, em 1862, propondo -lhes
o envio de embaixadores. A carta para a rainha Vitória, que marcou o início do
conflito, declarava:
Meus pais os imperadores tendo esquecido o nosso Criador, este entregou o reino
deles aos galla e aos turcos. Mas Deus me criou, me tirou da poeira e restaurou este
império para o meu reinado [...]. Graças ao Seu poder, expulsei os galla. Quanto
aos turcos, eu disse -lhes de deixarem a terra de meus ancestrais. Eles recusaram. Eu
vou, então, lutar contra eles.
Explicando que os turcos o haviam impedido de enviar um embaixador, ele
declarou que desejava que a rainha fizesse de modo que este último pudesse viajar
em segurança
82
. O nsul Cameron, representante britânico, ao transmitir este
apelo a Londres, relatou que seu autor havia -lhe solicitado a disponibilização de
engenheiros e médicos da Inglaterra e observava que estes “não deveriam temer
maus tratos”, pois os missionários que trabalhavam para o monarca eram “tratados
muito liberalmente
83
”. As duas cartas chegaram a Londres em meados de fevereiro,
mas não lhes foi dado importância alguma. Os britânicos não se dignaram a res-
ponder ao imperador, enquanto a carta de Cameron ficou sem resposta até o final
de abril, data na qual o conde Russel, secretário britânico das relões exteriores,
lhe enviou uma palavra pouco amável
84
. O governo inglês, como o destacaria
Russel mais tarde, considerava que, dada a pouca duração do poder dos reis abis-
sínios”, era desejável se afastar o mais possível de todo engajamento na Abissínia,
de toda aliança e de toda interferência britânica na Abissínia
85
”.
À medida que o tempo passava e que sua carta permanecia sem resposta,
Teodoro tornava -se impaciente. Estava irritado pelo fato de o governo britâ-
nico não mostrar interesse algum pela Etiópia, mesmo sabendo do apoio dos
franceses ao rebelde Negusé; ele considerava que sua dignidade real sofrera
uma afronta. Cameron agravou a situação ao visitar o lado egípcio da fronteira
82 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 225.
83 Ibid., p. 223 -224.
84 Ibid., p. 229.
85 Ibid., p. 396.
461
A Etiópia e a Somália
sudanesa e cumprimentar os funcionários egípcios: ele dava a impressão de se
colocar ao lado de um inimigo que, naquela época, tentava invadir a Etiópia
86
.
A carta de Russel a Cameron confirmou o receio do imperador, já que afirmava
brutalmente: não é desejável que os agentes de Sua Majestade se envolvam nos
assuntos da Abissínia.” O cônsul devia retornar a Massaoua e ali permanecer “à
espera de outras informações
87
”. O governo britânico parecia romper as relações
diplomáticas com a Etiópia e decidia apoiar o Egito e os turcos em Massaoua.
Pouco depois, Teodoro soube que um missionário, Henry Stern, publicara obser-
vações que lhe eram desfavoráveis, notadamente a respeito do fato de missio-
nários terem sido julgados e condenados à reclusão. Pouco tempo depois, em
novembro, o secretário de Cameron, Kerens, chegou com uma carta do conde
Russel, lembrando ao cônsul que devia retornar a Massaoua e acrescentando
que ele era cônsul apenas neste porto e não tinha “caráter representativo algum
na Abissínia
88
”.
A cólera de Teodoro explodiu quando Kerens lhe trouxe um presente: um
tapete sobre no qual estavam representados um soldado com turbante atacando
um leão, e, atrás dele, um europeu a cavalo. Teodoro estimou que o animal o
representasse e que o soldado com turbante simbolizasse os egípcios e o cava-
leiro designasse os franceses apoiando os egípcios. Mas onde estão, exclamou
Teodoro, os ingleses apoiando o Leão
89
?” Sua conclusão de que a Inglaterra o
abandonava ao Egito nada tinha de gratuito, porque os britânicos desejavam
manter relações amigáveis com o Egito, país que produzia 150 milhões de
libras de algodão por ano
90
, no momento em que a guerra civil americana tinha
reduzido a produção mundial de algodão. Quando o chefe do convento etíope,
o qual existia desde a Idade Média
91
em Jerusalém, lhe rendeu uma visita e lhe
anunciou que os padres coptas egípcios tinham tentado se apossar do convento,
mas que o representante britânico tinha -se mostrado pouco disposto a intervir
em favor dos etíopes
92
, Teodoro, furioso, reagiu, em janeiro de 1864, aprisio-
nando Cameron e seu séquito.
86 C. T. Beke, 1867, p. 93 -94.
87 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 229.
88 Ibid., p. 236 -243.
89 C. T. Beke, 1867, p. 124 -125.
90 Ibid., p. 35.
91 Para a história das relações da Etiópia com Jerusalém, ver E. Cerulli, 1957.
92 C. T. Beke, 1867, p. 129 -134.
462
África do século XIX à década de 1880
As notícias segundo as quais o cônsul não podia deixar a Etiópia tinham
muito alarmado o governo britânico. A carta do imperador,muito esquecida,
foi retirada dos arquivos e se redigiu uma resposta rápida. Esta foi confiada a
Hormuzd Rassam, o residente -adjunto britânico em Aden que chegou com
muito atraso ao imperador, em fevereiro de 1866. A posição de Teodoro, neste
meio tempo, deteriorara -se seriamente. T. M. Flad relatava que “todo o país”
estava “em um estado extremamente conturbado, os rebeldes surgiam de todos
os lugares
93
”. Cameron, quanto a ele, profetizava que “o Estado estava no ponto
de se dissolver
94
”. Teodoro acolheu contudo calorosamente Rassam
95
e soltou
Cameron, Stern e os outros prisioneiros europeus, mas pouco tempo depois, ele
prendeu Rassam e outros estrangeiros, aparentemente na esperança de forçar
o governador britânico a ceder à sua requisição com relação aos trabalhadores
estrangeiros. Ele enviou então Flad à Inglaterra, em abril, para obter dois armei-
ros e um oficial de artilharia, bem como outros técnicos; ele desejava igualmente
um fole e uma máquina para fabricar a pólvora
96
.
A detenção de Rassam e de seus colegas produziu primeiramente o efeito
desejado por Teodoro. Em julho de 1866, o representante britânico no Egito
observou que a libertação dos cativos dependia muito das “satisfações” que o
imperador receberia
97
e, em agosto, o residente político britânico em Aden, o
tenente -coronel Merewether, declarou que o governo devia concordar com as
solicitações do monarca francamente e muito liberalmente
98
”. Tal raciocínio foi
compreendido pelo governo britânico que aceitou a solicitação de Teodoro em
menos de uma semana
99
. Alguns dias mais tarde, entretanto, a esposa de Flad
avisou que Teodoro tinha aprisionado de novo os europeus. De fato, as relações
com os estrangeiros haviam se degradado. Ao tentar arranjar a partida dos pri-
sioneiros, Rassam provocara a cólera de Teodoro, cólera que tinha, em seguida,
sido envenenada por um relatório segundo o qual uma companhia britânica
assinara um contrato para construir uma ferrovia no Sudão, destinada à invasão
da Etiópia. Teodoro ordenara então que se conduzissem os prisioneiros para a
fortaleza de Magdala. Flad reagiu recomendando o governo inglês a abandonar
93 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 348.
94 Ibid., p. 351.
95 H. Rassam, 1869, vol. II, p. 45.
96 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 478. Ver também H. Rassam, 1869, vol. II, p. 102 -103.
97 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 484.
98 Ibid., p. 492.
99 Ibid., p. 503. Ver também R. K. P. Pankhurst, 1968, p. 217 -235.
463
A Etiópia e a Somália
o seu plano de enviar os técnicos ao imperador porque a libertação dos pri-
sioneiros, eu o temo, não estaria garantida. É mais provável que ele procurasse
obter outras coisas do governo inglês as quais este jamais poderia consentir
[...]. Eu aconselho, pois, que o governo de Sua Majestade use uma linguagem
mais enérgica
100
”. A política do imperador, logo, tinha fracassado. A prisão de
M. Rassam, escrevia Merewether, constituía um ultraje e um insulto tão sérios
para a Grã -Bretanha que o plano original tornara -se impossível
101
”. Decidiu -se
então que os artesãos iriam para Massaoua, mas não seriam enviados para o
interior enquanto o prisioneiros não fossem soltos e não chegassem ao porto.
O monarca, entretanto, declarou que não liberaria os prisioneiros enquanto os
técnicos não chegassem à corte.
Teodoro não era mais o poderoso chefe que fora alguns anos antes; ele
perdera o controle de quase todo o país, exceto de Bagemder, Waala, Dalanta e
algumas outras regiões menores
102
. Sua posição, relatava Merewether em janeiro
de 1867, “tornava -se extremamente desesperada”, seu poder “diminuía rapida-
mente”. A menos que ele desse “alguns brilhantes golpes dignos de sua carreira
anterior, seu reinado chegaria rapidamente ao fim nos próximos meses
103
”. Os
britânicos, conscientes da força declinante de seu inimigo, decidiram, em julho,
por uma intervenção militar. Uma tropa expedicionária vindo da Índia, liderada
pelo comandante -em -chefe do exército de Bombaim, o tenente -coronel sir
Robert Napier, desembarcou em Zula em outubro em vez do porto de Massa-
oua que teria sido uma escolha mais lógica, mas que teria sido defendido pelo
império otomano. Teodoro, neste meio -tempo, fazia esforços desesperados para
se preparar para a eminente prova de força. Abandonando Dabra Tabor, que ele
incendiou, levou seus canhões para Magdala, praticamente o único local ainda
sob seu controle onde ele podia enfrentar o inimigo.
As tropas britânicas, compostas de 12.000 homens, dos quais dois terços
eram indianos e, em parte, equipada com fuzis que se carregavam pela culatra
(armas que não tinham ainda sido empregadas em uma guerra), avançou para
o interior do país sem encontrar oposição. Os invasores receberam, no Tigre, a
cooperação de Dajazmach Kassa, o futuro imperador Johannès IV, ao passo que
Wagshum Gobasé de Lasta e o rei Menelik de Shoa mostraram -lhes sua sim-
patia. A primeira batalha (e a única verdadeira) foi travada em Arogé, abaixo de
100 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 508.
101 Ibid., p. 509 -510.
102 S. Rubenson, 1966, p. 81.
103 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 550.
464
África do século XIX à década de 1880
Magdala, na sexta -feira santa 10 de abril, dia de jejum na Etiópia. Os britânicos
infligiram pesadas perdas aos homens de Teodoro, cuja artilharia pouco expe-
riente não foi verdadeiramente utilizada
104
. Napier, que, contudo, não recebera
instrução alguma relativa ao tratamento reservado ao imperador etíope, enviou-
-lhe um ultimato declarando que se ele se “submetesse à rainha da Inglaterra e
entregasse todos os europeus naquele mesmo dia no campo britânico”, lhe seria
garantido um “tratamento honrável
105
”. Recusando -se a aceitar tal humilhação,
Teodoro replicou com uma carta muito orgulhosa que constituía seu último
testamento. Dirigindo -se a seu povo, ele perguntava: “Fugireis sempre diante
do inimigo quando eu, pelo poder que Deus me deu, não estou convosco para
vos encorajar?” Dirigindo -se em seguida aos britânicos, ele declarou que seus
concidadãos tinham -se afastado dele e o odiavam porque ele lhes impusera
impostos e tentara lhes incutir a disciplina militar. A propósito do desfecho da
batalha, ele exclamava:
Meus partidários que me amavam, ficaram assustados com uma única bala e fugiram,
apesar das minhas ordens [...]. Estimando ser um grande chefe, eu travei batalha
convosco, mas, devido a falta de valor de minha artilharia, todos meus padeceres
foram em vão. O povo, de meu país, ao me reprovar por ter abraçado a religião dos
francos e ao dizer ter -me tornado um muçulmano, e de dez outras maneiras dife-
rentes, provocou minha cólera contra si. Possa Deus trazer -lhes o bem independen-
temente do que eu lhes tenha feito de mal. Sua vontade será feita. Eu teria tentado,
se Deus tivesse decretado, conquistar todo o universo; e meu desejo seria morrer se
meu propósito não pudesse ser realizado. Desde o dia do meu nascimento até hoje,
ninguém ousou levantar a mão contra mim [...]. Eu esperara, após ter submetido
todos meus inimigos em Abissínia, conduzir meu exército a Jerusalém e liberá -la dos
turcos. Um guerreiro como eu que fez ajoelharem -se homens vigorosos bem como
crianças, não aceitará nunca ser deste modo tratado por outros
106
.
Após ter escrito aquela memorável carta, Teodoro pegou sua pistola e quis
atirar na própria cabeça, mas seus soldados lhe arrancaram a arma das mãos.
Ele soltou então Rassam, Cameron e os missionários, mas manteve refém suas
esposas e filhos bem como vários outros europeus. No dia seguinte, ele enviou
a Napier uma proposta de paz, oferecendo -lhe 1.000 vacas e 500 carneiros e, ao
104 Para a história da guerra, ver também K. St. C. Wilkins, 1870; T. J. Holland e M. M. Hozier, 1870; H.
M. Stanley, 1871; C. R. Markham, 1869; A. F. Sherpherd, 1868; H. M. Hozier, 1869; F. Myatt, 1970.
105 C. R. Markham, 1869, p. 327.
106 Ibid., p. 330 -331.
465
A Etiópia e a Somália
saber da aceitação deste presente, liberou os últimos reféns. Napier, considerando
a amplitude e a natureza” do presente de Teodoro, decidiu, contudo recusá -lo.
O imperador, compreendendo que aquilo significava a continuação das hostili-
dades, tentou fugir, depois mudou de ideia e retornou a Magdala.
Embora os prisioneiros tivessem sido soltos e atingido o objetivo da expedi-
ção
107
, os britânicos atacaram Magdala, em 13 de abril. O exército de Teodoro
possuía 3.000 armas de fogo, carregadas pela boca, “muito boas” e 1.000 fuzis de
mecha, sem falar nos 28 canhões e 9 morteiros em latão estes últimos fabri-
cados localmente com belas inscrições em amárico
108
”. Esta artilharia, segundo
o capitão Mozie, era bem superior àquela dos ingleses, “e se os canhoneiros
não tivessem desertado, teriam causado muitas perdas entre os assaltantes
109
”.
Teodoro compreendeu rapidamente que toda resistência era vã; afastou -se de
seus partidários exclamando: “tudo acabou! Eu me matarei antes de cair nas
mãos deles. Colocou sua pistola na boca e apertou o gatilho
110
.
Os ingleses, uma vez cumprida a sua missão, se preparam para partir. Eles
nunca tiveram a intenção de permanecer e tinham prometido se retirar desde
que, a rusga com Teodoro, fosse resolvida. Somente com base em tal acordo os
turcos lhes haviam permitido desembarcar e Kassa os tinha autorizado a atraves-
sar o Tigre. Antes de partir, eles destruíram a fortaleza de Magdala e a maioria
de seus canhões; levaram o jovem filho de Teodoro, Alamayehu, a pedido de sua
mãe
111
, e cerca de quatrocentos manuscritos, uma parte daqueles que o impe-
rador tinha reunido para formar uma biblioteca
112
. O último ato da expedição
consistiu em recompensar Kassa dando -lhe 12 canhões, 752 fuzis e munição –
armamento que teria um papel importante na luta futura pelo poder.
O aparecimento da França em Obok e da Itália em Assab
A segunda metade do século XIX viu crescer o interesse da França pelo
porto de Obok, o qual foi comprado em 1856, por M. Lambert, o cônsul francês
107 Ver R. K. P. Pankhurst, 1973a, p. 189 -203; C. Jesman, 1966, p. 94 -151.
108 C. R. Markham, 1869, p. 240.
109 H. M. Hozier, 1869, p. 240.
110 C. R. Markham, 1869, p. 352.
111 R. K. P. Pankhurst, 1973b, p. 17 -42.
112 Lorde Amulree, 1970, p. 8 -15.
466
África do século XIX à década de 1880
F . Uma interpretação moderna da cena do suicídio do imperador Teodoro em frente a sir Robert
Napier. [Fonte: pintura do Museum of the Institute of Ethiopean Studies, Addis Abeba.]
em Aden
113
. Isto não resultou em ocupação efetiva, mas um novo tratado foi
assinado em 1862; quatro chefes afar cederam o território à França, por 10.000
dólares Maria -Theresa, engajando -se “conjuntamente e separadamente” a rejei-
tar toda abertura diplomática “sem haver recebido a aprovação de Sua Majestade
o imperador dos franceses
114
”. Embora redigido em termos grandiloquentes, este
acordo não foi respeitado na prática. Um observador britânico, o cônsul Walker,
relatou que o chefe principal “desapareceu após ter recebido o dinheiro e que
seu sucessor não sustentou os direitos ou as pretensões da França de adquirir
113 P. Soleillet, 1887, p. 23.
114 E. Hertslet, 1894, vol. I, p. 269 -270.
467
A Etiópia e a Somália
este local nem aqueles do chefe a se dispor dele”. As poucas barracas construídas
pelos franceses “foram jogadas no mar após a partida destes
115
”.
O interesse dos europeus por esta região aumentou com a inauguração do
canal de Suez em novembro de 1869. No mesmo mês, o missionário lazarista
italiano Giuseppe Sapeto adquiriu o porto de Assab em nome do Ministério
italiano da marinha e ofereceu por ele, a dois sultões afar, a soma de 6.000
dólares Maria -Theresa. Quando retornou em março do ano seguinte como
representante da companhia marítima italiana Rubattino, ele percebeu que os
vendedores não estavam satisfeitos com o preço. Um novo tratado foi então
assinado com os dois chefes (aos quais se juntara um terceiro) e lhes foi pago
uma soma suplementar de 8.100 dólares Maria -Theresa, enquanto persuadia -se
um outro chefe a alugar uma ilha próxima, por dez anos, por meio de uma renda
anual de 100 dólares, com o direito de aquisição por 2.000 rúpias (aproxima-
damente 1.000 dólares)
116
. Estes acordos fixaram as bases dos contatos que os
italianos estabeleceriam com Shoa no final da década de 1870 e no início da
década de 1880.
O Imperador Johannès e a formação da unidade etíope
A morte de Teodoro tinha deixado a Etiópia dividida e destituída de impera-
dor. Três personalidades rivais detinham o poder em diferentes regiões. Menelik
consagrara -se rei de Shoa, enquanto Ras Gobasé tornou -se senhor de Amhara,
de Wag e de Lasta, foi coroado imperador e tomou o nome de Taka Giorgis em
1868. A terceira personalidade, Kassa do Tigre, era contudo a mais poderosa,
em parte devido as armas recebidas dos britânicos. Em 1871, Gobasé pôs -se
em campanha para se apossar de Adwa, a capital do Tigre, mas Kassa o venceu
em julho e foi coroado imperador sob o nome de Johannès IV em Axum em
janeiro de 1872
117
.
O novo imperador, o qual realizaria uma unificação mais vasta e mais eficaz
que Teodoro, alcançou este resultado ao adotar uma política mais conciliadora
em relação à nobreza provincial
118
e ao se apresentar como o amigo e protetor
115 Grã -Bretanha, Câmara dos Comuns, 1868, p. 231 -232.
116 Itália, Ministero degli Aari Esteri, 1906, vol. I, p. 25 -28. Ver também G. Douin, 1936 -1941, vol. III,
segunda parte, p. 240 -249.
117 W. Mc. E. Dye, 1880, p. 473. Ver também Zewde Gabre -Sellasie, 1975, p. 17 -53.
118 G. Rohlfs, 1885, p. 58. Ver também Zewde Gabre -Sellasie, 1975, p. 16, p. 250 -257.
468
África do século XIX à década de 1880
do clero. Antes de sua coroação, conseguiu adquirir um abuna do Egito e fez
em seguida contato com a comunidade etíope em Jerusalém, à qual ele enviou
recursos dos quais ela tinha urgente necessidade. Fez construir inúmeras igrejas,
notadamente em Adwa e Magdala, deu vastos territórios à Igreja na velha cidade
de Axum e renovou a subvenção concedida ao monastério de Dabra Bizan que
dominava o Mar Vermelho
119
. Tendo convertido sua própria esposa, Halima,
mulçumana antes de se casar, ele tentou batizar em massa os muçulmanos
120
,
particularmente entre os oromos azebo e perseguiu os católicos romanos
121
.
Desejando purificar as práticas religiosas, ele proibiu as práticas do curandei-
rismo e, em conformidade com a oposição mostrada pela Igreja etíope ao tabaco,
proibiu o fumo e o rapé
122
. Por outro lado, tentou inovar no domínio militar,
importou armas de fogo e empregou um oficial britânico, John Kirkham, para
treinar os seus soldados
123
.
Durante a primeira parte de seu reinado, Johannès teve que enfrentar uma
forte pressão egípcia. O Egito era à época o Estado mais poderoso do conti-
nente africano e seu quediva, Ismā‘īl, que teria um destino infeliz, construía um
império no Sudão e esperava poder anexar uma grande parte da Etiópia. A etapa
do conflito começou quando, em maio de 1868, o sultão turco confiou uma vez
mais Massaoua ao Egito. Após ter ocupado o porto, os egípcios se apossaram
de Zula e acabaram com as importações de armas da Etiópia. Na primavera de
1872, Werber Munzinger, um aventureiro suíço a serviço dos egípcios se apossou
de Bogos e de Halal, dois distritos etíopes localizados na fronteira sudanesa
124
,
e o chefe de Ailet, frente a Massawa, vendeu seu distrito ao governo egípcio.
Diante destas usurpações, Johannès enviou Kirkham a Inglaterra em setembro
com uma carta para a rainha Vitória, solicitando -lhe ajuda para lutar contra a
expansão egípcia. Kirkham escreveu em seguida à rainha em nome do imperador
para atrair sua atenção sobre a “injustiça” no fato que a Etiópia não tinha porto
com o qual ela pudesse comunicar com as potências cristãs da Europa”; ele
acrescentou que se as potências europeias lhe assegurassem uma janela sobre
o Mar Vermelho”, Johannès estava pronto para concluir “tratados de comércio
119 Zewde Gabre -Sellasie, 1975, p. 33 -34; R. Perini, 1905, p. 85; L. Villari, 1938; G. W. B. Huntingford,
1965, p. 79; R. K. P. Pankhurst, 1966c, p. 100 -101.
120 J. S. Trimingham, 1952, p. 122; Zewde Gabre -Sellasie, 1975, p. 94 -100.
121 Sobre a política religiosa de Johannès, ver Gabira Madihin Kidana, 1972.
122 Mangestu Lamma, 1959, p. 52; A. B. Wylde, 1901, p. 44; R. K. P. Pankhurst, 1968, p. 5.
123 E. A. De Cosson, 1877, vol. II, p. 64.
124 A. B. Wylde, 1901, p. 22 -23; G. Rohlfs, 1885, p. 43; G. Douin, 1936 -1941, vol. III, segunda parte, p.
337 -344.
469
A Etiópia e a Somália
F . O imperador Johannès IV. [Fonte: G. Rohlfs, Meine Mission nach Abessinien, 1882, Leipzig.
Ilustração reproduzida por Sasor Publisher, Londres.]
muito liberais” com elas
125
. Mas estes apelos não tiveram maiores efeitos do que
aqueles das épocas anteriores
126
.
Johannès, desejoso em obter contatos mais estreitos com o exterior, nomeou
um inglês, Henry King, cônsul em Londres
127
, e entendendo a potência do
movimento antiescravocrata, informou aos britânicos que ele tentaria eliminar
o comércio de escravos executando os mercadores que o praticassem. A venda
de escravos era muito tempo proibida pelo código jurídico etíope, o Fetha
125 Public Record Oce, Kew, FO 1/27, to Foreign Oce, 13 May 1873.
126 G. Douin, 1936 -1941, vol. III, segunda parte, p. 378 -387, p. 403 -409.
127 J. de Coursac, 1926, p. 107 -118.
470
África do século XIX à década de 1880
Nagast, mas esta injunção aplicava -se até então aos mercadores cristãos, não aos
mercadores muçulmanos
128
.
Os egípcios, uma vez estabelecidos no litoral Sul do Mar Vermelho, avan-
çaram igualmente na área do golfo de Aden. Durante o inverno de 1873 -1874,
eles se apossaram temporariamente de Berbera, depois, no inverno seguinte,
ocuparam a cidade de maneira permanente, bem como Zeila
129
. Eles invadiram
também o interior e tomaram Harar em outubro. O emir Muhammad ibn
Alī, alçado recentemente ao poder, foi incapaz de resistir
130
. Tendo adquirido
um ponto de apoio ao Leste, os egípcios decidiram anexar a Etiópia do Norte
até o rio Marab. Enviaram 2.500 homens, comandados por um nobre egípcio,
Arekel Bey, um oficial dinamarquês, o coronel Arendrup, e um austríaco, o conde
Zicky. Aquele exército era equipado com fuzis que eram carregados pela culatra
e canhões de campanha. Johannès, ciente que os invasores tinham avançado até
Asmara, ordenou que se fizesse uma chamada às armas em todo o reino
131
. Mui-
tos homens se engajaram como voluntários em uma guerra que consideravam
como uma cruzada contra uma invasão do islã. Johannès pôde então reunir quase
70.000 homens em armas. A batalha mais decisiva foi travada em Gundat, em
15 de novembro de 1875, quando o exército do imperador atacou os invasores
e os aniquilou quase totalmente. Arekel e Arendrup foram mortos e Zicky
mortalmente ferido, enquanto Johannès se apossou de 2.500 fuzis Remington,
14 peças de artilharia e 20.000 dólares Maria -Theresa. Os egípcios, neste meio
tempo, tinham enviado uma outra coluna de Tadjūra; ela foi interceptada pelos
afar locais que mataram seu comandante Munzinger, assim como muitos de
seus homens
132
.
Ismā‘īl decidiu vingar -se destes desastres. Em fevereiro de 1876, um novo
exército, muito mais numeroso (20.000 homens) e melhor equipado, comandado
por Rātib Pacha, o filho do quediva Hassan Pacha, e um oficial americano, o
general Loring, avançou no interior da Etiópia. Johannès reagiu solicitando uma
vez mais aos cristãos que se unissem contra o inimigo de seu rei. Os egípcios,
embora equipados com fuzis Remington e canhões de campanha Krupp, foram
novamente escorraçados, que quase 200.000 homens responderam ao apelo
128 P. Tzadua, 1968, p. 175 -178.
129 G. Douin, 1936 -1941, vol. III, segunda parte, p. 266 -279; terceira parte, A, p. 547 -555, p. 583 -602.
130 Ibid., vol. III, terceira parte, A, p. 602 -607; J. S. Trimingham, 1952, p. 120 -122.
131 W. Mc. E. Dye, 1880, p. 135.
132 A. B. Wylde, 1901, p. 23 -25; G. Douin, 1936 -1941, vol. III, segunda parte, p. 745 -1075; Zewde Gabre
Sellasie, 1975, p. 61 -65.
471
A Etiópia e a Somália
do imperador. Os invasores não puderam enfrentar os etíopes que tiveram entre
7 e 9 de março, em Gura, uma vitória estrondosa. Poucos egípcios sobreviveram
ao assalto das tropas do imperador. Deixaram para trás 16 canhões e 12.000 ou
13.000 fuzis Remington, bem como numerosa munição e provisão
133
.
As vitórias etíopes, em Gundat e Gura, puseram fim aos sonhos imperialistas
egípcios. Ismā‘īl que perdera mais de 20.000 homens, bem como a maior parte
de sua artilharia, além de outras armas, e cujo país enfrentava um desastre eco-
nômico, teve que abandonar seus objetivos expansionistas. Ele foi, logo depois,
a bancarrota e foi deposto em junho de 1879. O descontentamento tinha, neste
meio tempo, tomado seu exército, sobretudo devido à incapacidade e a arro-
gância dos comandantes turcos e circassianos, os quais haviam levado as tropas
egípcias ao desastre. A derrota na Etiópia semeou então frutos amargos para o
quediva e é significativo o fato de um dos coronéis de Massaoua, ‘Urābī Pacha
ter se tornado chefe da primeira revolta nacionalista egípcia.
A Etiópia, ainda que vitoriosa, tinha também sofrido com os combates. Em
1873, um viajante britânico, A. E. De Cosson, observava que o Hamasén tinha
sido “despovoado devido às devastações causadas pelos egípcios e que Asmara
estava quase deserta
134
”. Johannès, por seu lado, procurou reduzir estes males,
e, como o coronel William Dy, um americano a serviço do exército egípcio, o
reconheceu, ele ordenou que, embora os cereais pudessem ser pegos por seus
soldados, “o gado e as roupas deveriam ser poupados
135
”. As campanhas de
1875 -1876, seguidas pelas depredações cometidas por um chefe apoiado pelos
egípcios, Ras Walda Mika‘él, causaram entretanto inúmeras devastações
136
. Um
observador britânico, A. B. Wylde, observou na sequência que Mika‘él tinha
“transformado o planalto de Hamasén, anteriormente chamado de planalto
das mil aldeias [...], em um horrível deserto coberto de casas em ruínas onde
sobreviviam camponeses meio mortos de fome
137
”.
As vitórias sobre o Egito reergueram entretanto o presgio e a força de Johans,
o qual, graças às munições de que se apossara, tornou -se o dirigente melhor armado
de seu país desde a introdução de armas de fogo há trêsculos. O fim das hostili-
133 A propósito da campanha egípcia, ver W. Mc. E. Dye, 1880, passim; G. B. Hill, 1881, p. 205 -206; G.
Rohlfs, 1885, p. 44 -54; A. B. Wylde, 1901, p. 26 -81; M. Chaîne, 1913, p. 8; J. de Coursac, 1926, p. 322-
-324 e passim; A. Bizzoni, 1897, p. 60 -64; J. S. Trimingham, 1952, p. 121 -122; Zewde Gabre -Sellasie,
1975, p. 59 -63.
134 E. A. De Cosson, 1877, vol. I, p. 50.
135 W. Mc. E. Dye, 1880, p. 292.
136 Ibid., p. 652.
137 A. B. Wylde, 1901, p. 28.
472
África do século XIX à década de 1880
dades deixou -o livre para realizar a unificão para realizar a unificação do país. Ele
marchou sobre o Wallo, ao Sul, a fim de acertar as contas com Menelik, o senhor
de Shoa, o qual dependia das armas que passavam pelos territórios ocupados pelos
egípcios. Menelik recusara -se a ajudar Johannès no conflito anterior e realizara uma
expedição contra Bagemder e Gojam, isto é, na área de influência do imperador; na
mesma época, ele tinha mantido uma correspondência amivel com o quediva
138
.
A guerra entre os senhores do Tigre e do Shoa, as duas partes mais poderosas
da Etiópia cristã, parecia eminente. Menelik pensou primeiramente em fazer a paz,
mas, quando soube as duríssimas condições que Johannès exigia, mobilizou seus
homens em janeiro de 1878. Entretanto a perspectiva de um conflito amedrontava
muito ambos os lados, os quais estimavam que estes só beneficiaria seus inimigos
comuns. Johannès, embora fosse o mais poderoso dos dois, carecia de munições
e seria obrigado a operar em um território inimigo contra um exército cuja força
o era negligenciável. O desfecho parecia incerto, mas o grande número de armas
de fogo presente deixava prever pesadas perdas em ambos os campos. Inúmeros
monges e o clero asseguraram a mediação entre os adversários e sublinharam aos
dois monarcas que não era desejável derramar sangue cristão.
Johannès, convencido das vantagens de um compromisso, aceitou em feve-
reiro abrir negociações com Menelik. Um acordo foi concluído em março, nego-
ciado por um dos padres do imperador. Seus termos, ainda que jamais tenham
sido publicados, parecem ter sido os seguinte
139
: Menelik renunciava ao título
de imperador; Johannès reconhecia a independência de Menelik, o qual deveria
lhe pagar um imposto; Johannès consentia em coroar Menelik rei de Shoa e
de Wallo e aceitava o direito dos descendentes de Menelik a sucedê -lo como
dirigentes destas províncias; cada dirigente se comprometia a vir em ajuda do
outro em caso de necessidade; e Menelik aceitava fechar durante dois anos a
rota de Zeila ao Shoa aos europeus.
Johannès coroou então seu antigo inimigo com pompa e esplendor. Este ato,
de um lado, simbolilzava sua suserania de jure; do outro, ela era uma expressão
de independência de facto de Menelik
140
.
Os dois dirigentes se reencontraram em seguida em Boru Meda, no Wallo,
para debater sobre as controvérsias religiosas da Igreja ortodoxa etíope, e sobre a
138 A propósito das sugestões segundo as quais Menelik conspirava realmente com os egípcios contra
Johannès, ver H. G. Marcus, 1975, p. 38 -43, e Zewde Gabre -Sellasie, 1975, p. 55 -59, 61, 65, 260 -262.
139 G. Massaia, 1892, vol. II, p. 5 -23; A. Cecchi, 1886 -1887, vol. I, p. 422 -423; T. Waldmeier, 1886, p. 133-
-134; Guèbrè Sellassié, 1930 -1932, vol. I, p. 138 -148. No que diz respeito a um debate recente sobre o
acordo Tigre -Shoa, ver Zewde Gabre -Sellasie, 1975, p. 93 -94.
140 G. Messaia, 1892, vol. XI, p. 60.
473
A Etiópia e a Somália
oportunidade de converter os muçulmanos e os tradicionalistas, em particular na
periferia do país, onde a lealdade da população era duvidosa. Eles concluíram que
deveriam dar respectivamente três e cinco anos aos muçulmanos e aos tradiciona-
listas para se converterem ao cristianismo, e que todos os funcionários não cristãos
deveriam ser batizados
141
. Os dois chefes principais de Wallo, o imām Muhammad
Alī e o imām Abba Watta, foram então convertidos ao cristianismo e tomaram
os nomes de Mika‘él e de Hayla Maryam; foram -lhes dados os cargos de ras e
de dajazmach
142
·. Seus partidários, bem como muitos outros, foram igualmente
convertidos e numerosas mesquitas e santuários pagãos foram destruídos. Mas um
grande número destas conversões permaneceu puramente nominal. O missiorio
italiano Massala viu convertidos irem direto da igreja onde tinham sido batizados
para a mesquita para anularem este batismo
143
; um grande número de chamados
cristãos de dia, muçulmanos de noite”. Outros muçulmanos deixaram o país,
embora, em certa áreas onde se recusava aos não cristãos o direito de possuir terras,
o batismo permitiu aos muçulmanos adquirirem terras que poderiam conservar
mesmo após seu retorno ao islã
144
. Um outro resultado do acordo de Boru Meda
foi a expulsão dos missionários católicos romanos de Shoa, em 1879. Johannès
opunha -se muito tempo aos missionários, de qualquer lado que fossem
145
.
Eles eram apreciados sobretudo por suas competências técnicas, mas Menelik
compensou as desvantagens que podia apresentar sua partida empregando outros
estrangeiros, dentre os quais um artesão suíço, Alfred Ilg, o qual serviu como
técnico e como conselheiro diplomático
146
.
O quediva Ismā‘īl tinha no ínterim encarregado o coronel Charles Gordon,
um oficial brinico a serviço do governador epcio do Sudão, de realizar
negociões de paz entre o Egito e Johannès. Gordon que reconhecia em
seu diário que seu empregador tinha “roubado territórios à Etiópia e tratado
esta última “muito cruelmente e injustamente
147
, chegou a Dabra Tabor para
uma vã missão
148
a fim de encontrar -se com Johans em outubro de 1879. O
141 G. Rohlfs, 1885, p. 149 -156; A. Opbel, 1887, p. 307; Guèbrè Sellassié, 1930 -1932, vol. I, p. 145 -156;
Zwede Gabre -Sellasie, 1975, p. 95 -96.
142 Guèbrè Sellassié, 1930 -1932, vol. I, p. 155 -156; J. S. Trimingham, 1952, p. 24, 122.
143 G. Messaia, 1892, vol. XI, p. 78.
144 Zewde Gabre -Sellasie, 1975, p. 97; R. Perini, 1905, p. 344; R. K. P. Pankhurst, 1968, p. 147.
145 G. Bianchi, 1886, p. 86. A propósito da atitude de Johannès em relação aos missionários, ver Zewde
Gabre -Sellasie, 1975, p. 98 -99.
146 C. Keller, 1918; W. Loepfe, 1974; R. K. P. Pankhurst, 1967, p. 29 -42.
147 G. B. Hill, 1881, p. 403, 405, 406; ver também p. 304.
148 Zewde Gabre -Sellasie, 1975, p. 111 -117.
474
África do século XIX à década de 1880
imperador foi intransigente: ele exigia a “retrocessão” dos distritos fronteiriços
de Bogos, Matamma e das terras de Shanqella, e queria um acesso ao mar
149
.
Insistente sobre a justiça da sua causa, ele repreendeu ao inglês, como cristão,
de servir a um governo muçulmano. Escreveu uma carta irritada ao quediva
Tawk, observando que o Egito tinha se comportado como um ladrão”,
acrescentando: “quereis a paz, mas impedis aos mercadores abissínios de che-
garem a Massawa. Haveis tomado terras que não são vossas
150
”. Gordon, cujas
instrões excluíam qualquer cessão de território, achou a entrevista embara-
çosa. Irritado pela vigincia estreita à qual o imperador o havia submetido, ele
acreditava não poder deixar o país; escreveu, mais tarde, nas memórias de um
dos prisioneiros de Teodoro que tivera a chance de sair vivo. A propósito de
Johannès, ele observou que o imperador falava “como o Antigo Testamento” e
“se tornava cada vez mais louco
151
”. Todavia, à sua própria irmã, ele ponderou:
Johannès é, muito curiosamente, como eu um fatico religioso. Ele tem
uma missão; e ele a cumprirá. Esta missão consiste em cristianizar todos os
muçulmanos
152
”.
Johannès tinha, naquela época, sólidas realizações em seu ativo. Ele tinha
parado a invasão do Egito e criado uma unidade muito maior do que aquela
que existia durante a maior parte do reinado de Teodoro; permitira ao seu
povo entrar em um período de paz sem precedentes. A. B. Wylde, observa-
dor perspicaz, observou que a Etiópia, as a derrota egípcia, “conheceu os
benecios da tranquilidade e das boas colheitas e que “progredia a grandes
passos
153
”.
Pacífica e próspera no final do período que estudamos, a Etiópia conheceria
grandes tribulações. A rebelião do Mahdī sudanês, Muhammad Ahmad, o qual
anunciou sua missão em 1881, significava o aparecimento de um novo centro de
poder dinâmico, o qual iria logo desfraldar sobre o Oeste do império e destruir
Gondar. A tomada de Massaoua pelos italianos em 1885, a qual marcou o início
da avalanche europeia sobre esta parte da África, foi seguida, em menos de meia
década, por uma grande epidemia de peste bovina e pela fome: uma vez mais,
o país inteiro foi lançado no declínio e na miséria.
149 Ibid., p. 412 -414.
150 Ibid., p. 420.
151 Ibid., p. 421 -422, p. 424.
152 C. Gordon, 1902, p. 155.
153 A. B. Wylde, 1901, p. 30.
475
A Etiópia e a Somália
Visão global
Ainda que a frente da cena, no final daquele período, tenha sido ocupada por
Johannès, senhor do Estado mais poderoso da área e o único a ser realmente
envolvido nas relações internacionais, o território que ele dominava constitua
apenas uma fração daquele do qual trata o presente capítulo. Seu império, fun-
dado no Tigre, se estendia contudo, ao menos teoricamente, sobre todos os
altos planaltos cristãos, o ras Adal Tasama (mais tarde, o rei Takla Haymanot)
do Gojam e o rei (mais tarde, imperador) Menelik do Shoa, tendo sido ambos
obrigados a reconhecer sua autoridade imperial. Os chefes muçulmanos do
Wallo, agora convertidos oficialmente ao cristianismo, aceitavam também indi-
retamente sua suserania. Mais ao Leste, contudo, o sultanato muçulmano de
Awsa era independente. As terras baixas no Noroeste e no nordeste do Tigre
estavam sob o controle dos egípcios, pois Johannès, apesar de suas vitórias, não
pôde nem os fazer recuar nem cumprir seu voto de obter um acesso ao mar. O
domínio egípcio iria, entretanto, ter fim em menos de meia década; a região não
deveria outrossim cair nas mãos dos senhores da Etiópia, mas naquelas de uma
potência colonial, a Itália.
As terras do Oeste, do Sul e do Leste não estavam ainda integradas ao Estado
etíope; ainda que Menelik tenha se apossado de algumas partes do Guragé, suas
principais expedições remontavam a vários anos. No Sudoeste do país, existia
ainda um enxame de pequenos Estados independentes. Eles incluíam o velho
reino de Kaffa, Janjero e Walamo, assim como várias pequenas monarquias
oromas: Jimma, cujo último rei e o mais famoso, Abba Jiffar II, acabava de
ascender ao trono e Léka, onde um chefe local, Moroda, consolidava seu poder,
sem falar de Limmu, Goma, Guma, Gera e de outras unidades políticas ainda
mais reduzidas. Os oromos, bem como outros grupos do Sul, no Arussi, Borana
e em outros lugares, levavam também uma existência política separada.
No Sudeste, Harar, anteriormente cidade -estado independente, estava ocu-
pada pelo Egito. É verdade que logo esta supremacia teria fim e que Menelik se
apossaria da cidade. Ao longo do golfo de Aden, os portos somalis eram também
controlados pelos egípcios, cujo domínio seria logo substituído por aquele de
três potências coloniais, a Grã -Bretanha, a Itália e a França. Os portos somalis
restantes, sobre o litoral do atlântico, no Majerteyn ao Norte e no Benadir ao
Sul, eram respectivamente dirigidos por Omã e Zanzibar. Por volta de 1870, um
desacordo entre o sultão de Majerteyn, Oman Mahmūd, e seu sogro, Ysūf ‘Alī,
levaria à divisão do sultanato e à fundação, por Ysūf ‘Alī do novo sultanato de
476
África do século XIX à década de 1880
Hobya (Obbia), mais ao Sul
154
. No baixo vale do Shebele, o desenvolvimento
de lavouras comerciais (cereais, gergelim, urzela e algodão) contribuiu para a
prosperidade do sultanato geledi até a década de 1880
155
. Mas o domínio de
Oman logo daria lugar àquele do colonialismo italiano. A influência estrangeira
na Somália era entretanto limitada ao litoral. A maioria dos somalis, que viviam
nas terras do interior, era – como um grande número de oromos – livre de todo
domínio externo e vivia sob o controle de seus clãs locais.
154 M. Pirone, 1961, p. 88.
155 L. V. Cassanelli, 1982, p. 161 -178.
C A P Í T U L O 1 6
477
Madagascar, 1800 -1880
A história de Madagascar entre 1800 e 1880 é caracterizada por dois grandes
traços que fornecerão os eixos de nosso estudo. O primeiro trata da evolução
política do país e da interação diplomática entre Madagascar e as potências
estrangeiras, em particular, a Grã -Bretanha e a França. O segundo trata das
mudanças ocorridas na organização social de Madagascar, notadamente nos
campos religioso, administrativo e econômico. A evolução política concerne
basicamente à consolidação da monarquia merina e à expansão de seu domínio
sobre o resto da ilha. As relações diplomáticas desta monarquia com a França
e a Grã -Bretanha tornaram -se a pedra angular do desenvolvimento do país.
As mudanças introduzidas na administração e, sobretudo, na instauração da lei
e da ordem, facilitaram o desenvolvimento econômico, fator fundamental nos
esforços de Madagascar para se modernizar e resistir às potências estrangeiras.
O fato de o país ter abraçado religiões estrangeiras é considerado como parte
integrante deste processo de modernização.
Será necessário fazer aqui uma breve descrição do país e de seu povo. Existem
aproximadamente dezoito grupos étnicos em Madagascar. O principal desses
grupos tornou -se o mais importante do século XIX: trata -se do grupo dos
merina, habitantes do planalto central da ilha. Este planalto central, chamado
Imerina (“o país que se de longe”), constituía o foco do povo merina, junto
aos quais uma classe de privilegiados controlava, antes da colonização francesa,
Madagascar, 1800 -1880
Phares M. Mutibwa
com uma contribuição de
Faranirina V. Esoavelomandroso
478
África do século XIX à década de 1880
a maior parte da ilha. É difícil dizer quantos habitantes havia em Madagascar
durante o período que vamos estudar; segundo o cônsul da Grã -Bretanha em
Madagascar, no ano de 1865, a população chegava a 5 milhões, dos quais cerca
de 800.000 eram merina
1
. Todos os grupos malgaxes falavam a mesma língua e
tinham, com algumas exceções, tradições e costumes religiosos análogos. Assim,
apesar da existência de diferenças regionais, os malgaxes formavam, e ainda hoje
formam, um povo que se caracteriza por uma profunda unidade cultural e
étnica
2
.
Os dirigentes de Imerina se instalaram em Antananarivo e foi daí que uma
linhagem de monarcas, competentes e frequentemente populares, dirigiu a maior
parte da ilha. A expressão “governo do reino de Madagascar”, tal como a empre-
gamos aqui, se refere ao governo instalado em Antananarivo que, em 1880,
controlava os dois terços da ilha, apesar das esporádicas rebeliões aqui e acolá.
Isso porque, não obstante a importância histórica de cada província e região
3
, o
estudo da evolução política, social, econômica e administrativa de Madagascar
se articula fundamentalmente em torno da história do planalto central, que
constitui o grande polo de atividade e o coração da ilha.
A era de Adrianampoinimerina (1792 ‑1810)
É difícil entender a história de Madagascar do século XIX sem examinar
como Adrianampoinimerina, fundador do reino merina, chegou ao poder e
consolidou sua posição no planalto central. Ele reunificou o reino merina e o
estendeu. Além disso, reforçou a coesão nacional, fator fundamental de uma
política expansionista.
Por volta de 1780, havia, em Imerina Central, somente ts ou quatro
pequenos reinos, que travavam lutas sangrentas entre si. Aproximadamente
em 1785, Ramboasalama, o sobrinho do rei de Ambohimanga, um destes
pequenos reinos, expulsou seu tio e se proclamou rei sob o nome de Adria-
1 Pakenham a Russell, 31 de janeiro de 1865; Foreign Oce, Public Record Oce, Londres (nota abre-
viada FO infra) 48/10.
2 H. Deschamps destaca que “é notável a unidade linguística malgaxe. De um lado ao outro da ilha, encon-
tramos a mesma gramática, a mesma sintaxe e, no conjunto, as mesmas palavras”. Ver H. Deschamps,
1951, p. 53.
3 O departamento de história da Universidade de Madagascar desenvolve estudos inovadores sobre a
história das regiões; assim começamos a conhecer melhor a história interna de Madagascar.
479
Madagascar, 1800 -1880
F . Madagascar e seus vizinhos (segundo P. M. Mutibwa).
480
África do século XIX à década de 1880
nampoinimerina
4
. Ele começou, então, a consolidar sua posição em Imerina,
utilizando tanto os meios militares, quanto às vias diplomáticas. Liquidou os
reis de Antananarivo e de Ambohidratrimo que, embora tivessem selado a
paz com Adrianampoinimerina, continuavam a desafiá -lo
5
. Em 1791 ou 1792,
ele transferiu sua capital para Antananarivo e começou a edificar as estrutu-
ras políticas e sociais do novo reino. Esta cidade permaneceu, desde então, a
capital de Imerina e de Madagascar.
A segunda parte do reinado de Adrianampoinimerina, pouco tempo depois
de 1800, viu o reino se estender para além dos limites de Imerina: a longa e
difícil tarefa da unificação dos 18 grupos étnicos de Madagascar começara. O
novo rei esforçava -se para conquistar o restante da ilha e, em seu leito de morte,
teria dito a Radama, seu filho e sucessor: “o mar é minha fronteira
6
.
4 Para um breve quadro do rei Adrianampoinimerina, ver H. Deschamps, 1967; ver também A. Délivré,
1974.
5 R. W. Rabemananjara, 1952, p. 32.
6 Literalmente: “o mar é o limite do meu campo de arroz”. Ele associava a rizicultura à luta contra a fome
e deu diretrizes para a valorização das planícies de Betsimitatatra.
F . Vista de Antananarivo nos anos 1850. [Fonte: W. Ellis, ree visits to Madagascar, 1858, John
Murray Publishers, Londres. Ilustração reproduzida com a autorização da British Library, Londres.]
481
Madagascar, 1800 -1880
De início, ele conquistou porções de territórios tradicionais merina, então
ocupados por povos vizinhos, tais como os bezanozano e os sihanaka, a Leste
7
.
Embora tivesse imposto sua suserania a estes povos, alguns deles, e particular-
mente os bezanozano, continuaram a resistir. Adrianampoinimerina empregou
a força para consolidar seu poder em Imerina, mas também tentou apresentar-
-se frente a seus adversários como um chefe, cujo único desejo era a paz e a
unidade.
Inicialmente, a expansão para o Sul teve como objetivo principal a proteção
dos merina que para lá haviam emigrado. Os betsileo já haviam sido dominados
pelos merina e as tropas destes pouco se esforçaram para avançar mais a Sul, até
o maciço de Ankaratra e a região de Faratsiho
8
. Entretanto, no Oeste, Adria-
nampoinimerina encontrou como seus sucessores a obstinada resistência dos
sakalava. De fato, as tentativas para dominá -los fracassaram totalmente. É ver-
dade que, por vezes, o soberano merina chegou a estabelecer relações amigáveis
com os sakalava mas, muito frequentemente, estes invadiram Imerina, impelindo
suas incursões até Antananarivo ou quase. Os mais importantes reinos sakalava
eram Menabe e Boina, os quais constituíam uma barreira intransponível para
a expansão merina rumo ao Oeste. Entretanto, a oposição mais acirrada era a
dos ambongo. Por outro lado, é importante sublinhar que a única solução de
substituição dos chefes merina era a dinastia sakalava dos maroseranana, os quais
haviam estendido sua hegemonia à parte ocidental da ilha, antes do século XIX,
e feito alianças com certos reinos da parte oriental notadamente o de Betsi-
misaraka
9
. Entretanto, quando de sua morte, em 1810, Adrianampoinimerina
tinha feito de Imerina uma força importante de Madagascar.
O grande modernizador: o rei Radama I (1810 ‑1828)
Na história de Madagascar, poucos dirigentes tornaram -se tão lendários
quanto Radama I, o qual, aproximadamente aos dezoito anos de idade, sucedeu
o pai em 1810. Ele é considerado como o “Napoleão de Madagascar e era assim
que ele próprio se considerava.
7 Ver J. Valette, 1971, p. 327 e seg.
8 Ibid., p. 328. Ver também J. Rainihina, 1975. Sobre as migrações merina rumo a Andrantsay e Voro-
mahery (limite norte do país betsileo), ver D. Rasamuel, 1980; E. Fauroux, 1970; J. Y. Marchal, 1967, p.
241 -280; J. Dez, 1967.
9 C. Guillain, 1845, p. 376.
482
África do século XIX à década de 1880
Quando foi anunciada a morte de Adrianampoinimerina, alguns dos povos
conquistados por ele revoltaram -se. A primeira tarefa de Radama foi, portanto,
dominar os rebeldes e, notadamente, os bezanozano de Ambotomanga, dentre
os quais muitos fugiram para o Leste. Embora Radama tivesse conseguido
consolidar sua posição em Imerina, desejava sobretudo alcançar o mar, como
seu pai havia -lhe pedido em seu leito de morte. Sem acesso direto ao mar, os
merina se sentiam oprimidos por seus vizinhos, que chegaram a fazer incursões
nas terras merina a fim de capturarem escravos. Cada vez mais ansiosos para
comerciar diretamente com os europeus nos portos de Tamatave e de Majunga,
e, sobretudo, com os ingleses das Ilhas Mascarenhas, os negociantes merina
eram, entretanto, obrigados a passar por intermediários bezanozano, sihanaka e
sakalava para trocar produtos artesanais e agrícolas – notadamente arroz e carne
de boi por sal e munições de origem europeia. Radama considerava a expansão
territorial como parte da herança dos maroseranana, que ele havia dominado;
porém, para ele, era sobretudo por devoção filial que deveria cumprir as últimas
vontades de seus antepassados e realizar as predições dos adivinhos
10
.
Radama dirigiu seus esforços ao Leste, para o porto de Tamatave, que se tor-
nava cada vez mais importante. Contudo, a situação política da região vizinha de
Betsimisaraka pedia uma intervenção. Com efeito, a confederação organizada no
século XVIII por Ratsimilaho estourou em uma multidão de principados rivais,
em guerra uns contra os outros e cujos filoha (chefes), vendo sua autoridade
abalada por uma ameaça interna, convidaram Radama para restabelecer a ordem.
Aproveitando este caos político, um mestiço, Jean René, se apossou de Tamatave
em 1812
11
. Foi principalmente o desejo de Radama de estabelecer uma rota em
direção a este porto oriental que o levou a entrar em contato, diplomaticamente,
com Robert Townsend Farquhar, o governador da Ilha Maurício. Tal desejo
coincidia com o de Farquhar e da Grã -Bretanha: controlar Madagascar ou, pelo
menos, influenciar o que se passava, pois que Madagascar era a única fonte
de gado e de arroz da Ilha Maurício e consumia também uma grande parte de
seus produtos manufaturados. Ademais, Madagascar representava um interesse
estratégico e político. Os britânicos queriam, em particular, garantir o apoio de
seu chefe para abolir o tráfico de escravos, que Madagascar constituía uma das
principais fontes de escravos da região. Sir Robert queria, portanto, exercer um
papel político ativo no país. Esta política, que coincidia com o desejo de Radama
10 H. Deschamps, 1960, p. 154. Ver também J. M. Filliot, 1974, p. 273.
11 R. Decary, 1939.
483
Madagascar, 1800 -1880
F . Madagascar, 1800 -1880 (segundo P. M. Mutibwa).
484
África do século XIX à década de 1880
de continuar sua expansão para o Leste, teve, como sublinhamos,importantes
consequências para o futuro de Madagascar
12
.
Após vários contatos amigáveis, Farquhar enviou uma missão diplomática
dirigida pelo capitão Le Sage, que chegou a Antananarivo aos 21 de dezembro
de 1816. Um tratado de amizade e de comércio foi finalmente assinado aos 4
de fevereiro de 1817, entre Radama e o capitão Le Sage. Mas o governador da
Ilha Maurício não ficou satisfeito com tal tratado, pois nele não se mencio-
nava o comércio de escravos, questão fundamental para Sir Robert. Portanto, o
governador enviou uma outra missão à capital de Radama, desta vez conduzida
por James Hastie, um antigo oficial das Índias, que tinha mais experiência em
negociações com os dirigentes orientais
13
. James Hastie levou consigo um certo
número de presentes para o rei, dentre os quais cavalos, um compasso, um
mapa do mundo e um carrilhão, que impressionaram fortemente o jovem rei e
ajudaram Hastie a ganhar sua amizade e sua confiança. Contudo, as negocia-
ções patinaram, pois os britânicos insistiam para que Radama declarasse ilegal
o comércio de escravos em Madagascar. Quando o rei anunciou que, ao agir
assim, ele cometeria um verdadeiro suicídio econômico, visto que o comércio
de escravos era sua maior fonte de renda, Hastie logo teve uma resposta: em
compensação, os britânicos pagariam ao chefe malgaxe uma soma anual de
1.000 dólares em ouro e 1.000 dólares em prata, fornecer -lhe -iam 100 barris
de pólvora, 100 mosquetes ingleses com 100 pedras para fuzil, 400 uniformes
de soldados, 12 espadas de sargentos, 600 peças de lençóis, um uniforme de
cerimônia para ele e dois cavalos
14
. Para Radama, a oferta pareceu ainda mais
honesta, que o tratado o reconhecia rei de todo Madagascar. O tratado de
amizade e de comércio anglo -malgaxe foi assinado em Tamatave, aos 23 de
outubro de 1817. Em 1820, James Hastie, o sucedido negociador, foi nomeado
residente britânico na capital malgaxe. Mas, enquanto Farquhar estava de folga
na Inglaterra, seu sucessor, o Major General Gage John Hall, recusou pagar os
subsídios estipulados pelo tratado. Isso levou a uma ruptura das relações entre os
ingleses e a corte merina, o que permitiu aos franceses colocar um pé na capital
12 J. Valette, 1971, p. 331.
13 H. Deschamps, 1960, p. 154. O primeiro contato entre Radama I e as autoridades da ilha Maurício foi
estabelecido no início de 1816, quando Sir Robert Farquhar enviou Jacques Chardenous, um antigo
mercador de escravos francês instalado na ilha Maurício, a Antananarivo, para uma visita de cortesia ao
rei e para reunir o máximo de informações possível sobre o país, sua população e seus recursos. Ver M.
Brown, 1978, p. 137.
14 M. Brown, 1978, p. 143, nota 10. Sobre as fontes malgaxes, ver L. Munthe, C. Ravoajanahary e S. Ayache,
1976.
485
Madagascar, 1800 -1880
malgaxe, em uma época em que a potência inglesa era dominante
15
. Evidente-
mente, Radama ficou desconcertado pela recusa dos britânicos em respeitar as
cláusulas do tratado de 1817; porém, logo foi persuadido a esquecer o passado
para defender seus interesses a longo prazo que, no seu entendimento, exigiam
manifestadamente uma aliança com a Grã -Bretanha. Portanto, ele aceitou as
desculpas de Hastie pelos equívocos do general Hall (que foi chamado de volta
a Londres) e renovou o tratado aos 11 de outubro de 1820. Em um documento
separado, Radama permitiu também aos missionários ingleses trabalhar em
Madagascar.
Conforme tal acordo, David Jones, da London Missionary Society (LMS),
chegou a Antananarivo aos 3 de dezembro de 1820. Radama acolheu muito bem
os missionários ingleses; eles trouxeram consigo a educação (mesmo ela estando
ligada ao cristianismo) e, também, um auxílio técnico
16
. Radama escreveu para
a LMS, pedindo -lhe que enviasse quantas missões ela pudesse, sob a condição
que estas compreendessem não somente religiosos, mas também artesãos, tais
como tecelões e carpinteiros
17
. Os missionários abriram sua primeira escola em
Antananarivo aos 8 de dezembro de 1820, com três alunos, jovens sobrinhos do
rei; graças aos enormes encorajamentos pessoais que Radama deu aos missioná-
rios, em 1829, a LMS podia se vangloriar de ter 23 escolas e aproximadamente
2.300 alunos. Os missionários utilizaram o alfabeto latino para transcrever o
malgaxe e traduziram a Bíblia nesta língua.
Vários missionários, notadamente Jones, Bevan e Griffiths, destacaram-
-se nesta empreitada, com a colaboração de malgaxes convertidos. As missões
interessaram -se, em particular, pela impressão e publicação de obras. Através das
escolas, dos cursos de catecismo e da difusão de impressos, esta ação pedagógica
não fez prosélitos, mas também favoreceu a alfabetização, bem como a evo-
lução da língua e da literatura malgaxes, forjando, assim, a unidade nacional de
todos os insulares. Em 1827, mais de 4000 malgaxes sabiam ler e escrever em
sua própria língua
18
. No campo da educação técnica, os missionários britânicos
trouxeram também importantes contribuições. Eles enviaram certos jovens mal-
gaxes, quer à Inglaterra, quer à Ilha Maurício, para lhes dar uma formação téc-
nica; introduziram no país numerosas técnicas, como a marcenaria, a alvenaria,
15 M. Brown, 1978, p. 144.
16 V. Belrose -Huyghes, 1978b.
17 M. Brown, 1978, p. 155. Ver também V. Belrose -Huyghes, 1978b, e J. Valette, 1962. Sobre a inuência
estrangeira na arquitetura, ver V. Belrose -Huyghes, 1975.
18 H. Deschamps, 1960, p. 161 e seg.; V. Belrose -Huyghes, 1977; L. Munthe, 1969, p. 244; F. Raison, 1977.
486
África do século XIX à década de 1880
o curtume, a arte da estanhadura e da tecelagem moderna. Um homem, James
Cameron, desempenhou um papel particularmente importante neste campo: em
1826, ele chegou a Antananarivo e lá permaneceu até sua morte, em 1875, com
exceção de alguns anos de exílio. Uma das razões do sucesso dos missionários
foi a atividade desenvolvida por suas esposas, que facilitavam os contatos com
as famílias malgaxes, em particular com as damas da aristocracia, às quais elas
inculcavam os rudimentos do governo da casa e ofereciam diversos serviços, de
costura por exemplo
19
.
Porém, foi sobretudo para se dotar de um exército moderno e permanente,
aos moldes britânico, que Radama necessitava de um auxílio técnico. Ele recru-
tou por volta de 15.000 homens equipados com bons fuzis ingleses da época
das guerras napoleônicas e mesmo com algumas peças de artilharia leve. Estes
homens foram treinados especialmente por instrutores ingleses, cujos principais
foram Hastie e Brady. Consequentemente, o exército de Radama tornou -se bem
melhor e mais eficaz do que aquele de seus adversários na ilha. Para manter o
espírito profissional no exército, Radama I introduziu um sistema de patentes,
repousando sobre um certo número de méritos”: um mérito para o soldado
simples, dez para um general etc. O exército se transformou em um instrumento
fundamental, não somente da conquista de outros territórios na ilha, como tam-
bém, da manutenção da lei e da ordem nestes territórios conquistados.
A submissão dos povos costeiros do Leste começou em 1817, quando
Radama desceu, à frente de 30.000 homens, rumo a Tamatave, obtendo no
caminho a rendão dos bezanozano. Ele selou um pacto de paz com Jean
René, o qual detinha a cidade, o que abriu o reino ao mundo exterior. Em 1823,
Radama retornou a Tamatave com um exército ainda mais importante; conquis-
tou dos betsimisaraka o reconhecimento de sua autoridade e atingiu diversos
outros territórios na costa leste, como Foulpointe, a baía de Antongil, Vohemar
e Antankara. No caminho de volta à capital, em 1824, ele atravessou o país tsi-
mihety onde, em Mandritasara, instalou um posto e o país sihanaka, sendo
que ambos reconheceram sua autoridade. Nesse ínterim, Jean René se tornou
o agente de Radama em Tamatave, conduzindo uma campanha semelhante no
Sul da cidade. Fort -Dauphin, no extremo sudeste da ilha, foi atingido em 1825,
o que reforçou a pretensão de Radama de se apoderar de toda a costa leste de
Madagascar
20
.
19 V. Belrose -Huyghes, 1978a.
20 Para mais detalhes, ver H. Deschamps, 1960, p. 156 -161, no qual este texto se inspira.
487
Madagascar, 1800 -1880
Foi no Oeste, no país sakalava, que Radama, tal como o seu predecessor,
encontrou as maiores dificuldades. Em 1820, ele enviou um grande exército
contra o rei de Menabe, sem obter sucesso. Em 1821, acompanhado por Has-
tie, Radama retornou a Menabe à frente de um exército de aproximadamente
70.000 soldados, dos quais, em torno de 1.000 eram profissionais. Porém, ele
fracassou mais uma vez. Em 1822, após ter se preparado cuidadosamente, lan-
çou uma nova expedão de 13.000 homens bem armados contra Menabe,
podendo enfim conquistá -lo, e instalou alguns postos militares no país inimigo.
Entretanto, essa vitória durou pouco, na medida em que, no Norte, os sakalava
continuavam a desafiar a autoridade de Radama. Em 1824, o rei lançou uma
ofensiva contra Boina, no Noroeste, e, desta vez, foi mais afortunado. O chefe
de Boina, Adriantsoli, selou a paz e Radama pôde atingir a cidade norte oci-
dental de Majunga, onde um posto merina foi instalado. Porém, esta vitória foi
também de curta duração.
Tais campanhas ilustram a força e as fraquezas do exército merina, enga-
jado em uma luta cujo objetivo era a unidade nacional. No campo de batalha,
geralmente, ele conseguia derrotar as tropas adversárias. Em seguida, precisava
instalar a autoridade merina; o que Radama tinha costume de fazer ao implan-
tar postos administrativos, com colonos merina (voanjo), em uma área fortifi-
cada (rova), construída aos moldes do palácio real e simbolizando a presença
merina. Também com frequência, Radama conseguia alianças graças a casamen-
tos arranjados – como sua própria união com Rosalimo, filha de Ramitraho, rei
de Menabe
21
. Todavia, o exército tinha muitas dificuldades para se reabastecer
quando se encontrava muito distanciado de Imerina. As regiões conquistadas
deviam nutrir as tropas antes mesmo de os colonos terem produzido o suficiente,
e isso, frequentemente, gerava revoltas. Depois que Radama virou as costas e
voltou para Antananarivo, os sakalava de Boina e de Menabe insurgiram -se de
novo.
Os sakalava estavam decididos a defender sua independência contra Antana-
narivo. Do mesmo modo, em Boina, o grupo de negociante antalaotra constituía
um obstáculo suplementar para qualquer integração. Tais homens, de religião
muçulmana, eram considerados estrangeiros pelos malgaxes
22
. Isso trouxe gran-
des problemas ao governo malgaxe, ainda mais pelo fato de os franceses estarem
prontos a utilizar alguns chefes rebeldes sakalava para contestar a soberania dos
chefes merina, em certos territórios do Oeste e do Noroeste da ilha.
21 C. Guillain, 1845.
22 G. Rantoandro, 1981; M. Rasoamiaramanana, 1981.
488
África do século XIX à década de 1880
F . A expansão do reino merina, 1810 -1840 (segundo P. M. Mutibwa).
489
Madagascar, 1800 -1880
Apesar destes malogros, as campanhas de Radama I haviam -lhe permitido
estender a hegemonia merina sobre a maior parte da ilha. Em 1828, os dois
terços da ilha encontravam -se sob o controle merina e apenas as planícies lon-
gínquas e desoladas dos antandroy e mahafaly, no sudoeste, e o país bara (onde
havia somente um precário posto avançado merina em Ihosy), escapavam deste
domínio. No território sakalava, como temos notado, Radama havia conquistado
Menabe e Boina, e estabelecido alguns postos, mas os sakalava permaneciam,
no conjunto, independentes da soberania merina, em particular na parte norte
de Boina, Ambongo. Contudo, mesmo Radama não dominando toda a ilha,
ninguém podia disputar com ele o título de rei de Madagascar
23
. Todas estas
campanhas, entretanto, tinham exaurido o rei e ameaçado sua saúde, com-
prometida pela bebida e por uma vida licenciosa. Aos 27 de julho de 1828,
ele morreu com trinta e seis anos de idade, o que colocou um fim brutal a um
reinado bem -sucedido.
Ranavalona I (1828 ‑1861): reação ou estabilização?
A rainha Ranavalona I era a primeira esposa e prima de Radama I. Ela subiu
ao trono graças ao apoio dos nobres e dos chefes do exército que Radama havia
descartado de importantes postos
24
. O novo regime ia, pois, tentar deixar de lado
as personalidades mais próximas do rei falecido e substituí -las por outras que
não haviam aderido, nem participado da política de Radama. A rainha tinha
como principais conselheiros Rainimahary e Adriamihaja; mas, os dois homens
foram eliminados um após o outro. Finalmente, as personalidades mais impor-
tantes que dividiram o poder com a rainha foram Rainiharo e Rainijohary. O
primeiro vinha do clã tsimiamboholahy e o segundo do clã tsimahafotsy, sendo
que ambos ajudaram Adrianampoinimerina a fundar o reino merina no fim do
século XVIII. Estes dois clãs, oriundos basicamente de plebeus, deram origem à
classe média hova, que, ao apoiar a monarquia, pouco a pouco adquiriu tamanho
poder econômico, administrativo e político, que se colocou em rivalidade com
a monarquia, minando sua autoridade.
23 M. Brown, 1978, p. 150.
24 Ver S. Ayache, 1963 e A. Délivré, 1974, sobre o peso da tradição oral em sua investidura e o papel de
Rainimahary, companheiro de Adrianampoinimerina. Houve algumas execuções, mas a rainha Ranava-
lona foi rapidamente aceita pelo povo.
490
África do século XIX à década de 1880
A política de Ranavalona visou notadamente à salvaguarda da independên-
cia de Madagascar e, sobretudo, a preservação das instituições, das tradições e
dos costumes nacionais da influência estrangeira. Isso significava, em termos
de política estrangeira, distanciar -se da Inglaterra, principalmente do ponto de
vista político e religioso. Em dezembro de 1828, o governo da rainha declarou
a Robert Lyall, o novo residente britânico, que não reintroduziria o comércio
de escravos, mas que não desejava manter o tratado e que não mais considerava
a presença de Lyall na capital como algo necessário. O comércio entre Mada-
gascar, a ilha Maurício e a Reunião foi proscrito. O general Brady, que fora
naturalizado malgaxe e alçado a nobreza por Radama I, foi forçado a partir em
1829. As desilusões de Madagascar frente às potências estrangeiras reforçaram-
-se ainda quando, em 1829, Carlos X, o rei da França, ávido para aumentar seu
prestígio em seu país, ordenou o bombardeamento e a ocupação de Tintingue
e Tamatave, após uma série de mal entendidos com os malgaxes, a respeito da
presença francesa em Tintingue, em frente à ilha Sainte Marie. Os malgaxes
rechaçaram os invasores para Foulpointe. Este injustificado ataque foi desapro-
vado por Luís Filipe, o sucessor de Carlos X, mas ele deixou profundas chagas
entre os malgaxes. As pretensões francesas para com Madagascar tornaram -se
um dos traços permanentes das relações franco -malgaxe no século XIX. Por
vezes, isso conduziu a uma reação pró -britânica e explica por que, a despeito da
política de independência cultural, passaram -se ainda seis anos, antes da saída
forçada dos missionários ingleses.
Os chefes malgaxes apreciavam o auxílio técnico oferecido pelos missionários
britânicos, porém, antes de tudo, queriam uma educação laica, não religiosa. A
rainha não teve, pois, uma atitude de rejeição absoluta, ainda que, à primeira
vista, ela fosse menos entusiasta em relação ao cristianismo que seu predecessor.
O grande assunto de preocupação dos novos dirigentes que, em seguida, devia
levá -los a combater a crescente influência do cristianismo era o fato de esta
religião colocar em perigo as tradições e as instituições malgaxes, em geral, e a
monarquia, em particular. Os ritos cristãos concorriam com as cerimônias do
culto real. Desencorajando a adoração dos sampimoanja -kana (sampy), divinda-
des reais que garantiam a prosperidade do país, o cristianismo abalava as bases
do poder real. Devido aos seus princípios igualitários, ele também entrava em
conflito com a hierarquia tradicional das castas
25
. O cristianismo estava mudando
as tradições do país e transformando os malgaxes em adoradores de Jesus Cristo,
25 M. Brown, 1977.
491
Madagascar, 1800 -1880
F . A rainha Rasoherina, 1863 -1868. Figura 16.10 A rainha Ranavalona II, 1868 -1883.
[Fonte: P. M. Mutbiwa, e Malagasy and the Europeans, 1974, Longman, Londres. Fotos: Direção da Imprensa
e da Publicação, Ministério da Informação, Madagascar.]
F . Adrianampoinimerina, morto em 1810.
F . O rei Radama I, 1810 -1828.
F . A rainha Ranavalona I, 1828 -1861.
F . O rei Radama II, 1861 -1863.
492
África do século XIX à década de 1880
considerado por eles como o ancestral dos brancos. Em 1830, havia cerca de 200
convertidos, prontos a morrer por sua fé; o governo não podia continuar indife-
rente a este “novo poder surgido no país”
26
. Quando os missionários recusaram
conduzir sua ação educativa caso não lhes fosse permitido pregar sua religião,
tornou -se inevitável a ruptura com a rainha. O batismo foi interditado em 1832.
Três anos mais tarde, foi interditado a todos os súditos da rainha tornarem -se ou
permanecerem cristãos. A difusão do cristianismo foi também proibida, mas esta
interdição não se aplicava ao ensino laico. Explicando as razões de sua decisão,
a rainha declarou aos missionários ingleses reunidos por ela em seu palácio, aos
26 de fevereiro de 1835, que:Agradecendo -lhes pelos bons serviços que pres-
taram ao país, e deixando -os completamente livres para observar seus próprios
costumes religiosos, ela não permitiria a seus súditos que abandonassem seus
antigos costumes [...]. Ela permitiria o ensino das artes e das ciências, mas não o
da religião
27
. Os primeiros mártires, Rasalama e Raqarilahy -Adriamazok, mor-
reram respectivamente em agosto de 1837 e fevereiro de 1838, e os missionários
partiram para o exílio. Seguiu -se um período de terrível perseguição aos cristãos
malgaxes, dos quais algumas centenas padeceram de uma morte violenta. Mas,
longe de perder terreno, o cristianismo parece ter conhecido um novo despertar
durante este período.
Ele se propagava em segredo: seus adeptos se reuniam clandestinamente
em grutas (por exemplo, no Vonizongo, perto de Fihaonana, no Noroeste de
Imerina) ou em casas particulares, mesmo em Antananarivo. Um grupo de
cristãos fugiu para a Grã -Bretanha e, de lá, preparou seu retorno ao país como
missionários. Os jesuítas, por sua vez, organizaram uma missão às Pequenas
Ilhas (Nosy Be, Nosy Faly e Mayotte, no Noroeste, Sainte Marie, no Leste),
de onde tentaram se infiltrar no país, notadamente pela baía de Faly, sendo
obrigados a deixá -la em 1857. Certos autores descreveram este período como
o mais sombrio do reinado de Ranavalona
28
, valendo a essa última a alcunha
de “rainha Maria de Madagascar”, de “Messalina moderna” ou de “Nero femi-
nino”. Mas, mesmo nestas condições, a corte malgaxe queria evitar uma ruptura
absoluta com a Inglaterra, temendo que a Grã -Bretanha e a França se aliassem
contra ela.
Os chefes malgaxes sabiam bem que seu país tinha necessidade de uma aber-
tura ao mundo exterior para se abastecer de produtos europeus manufaturados,
26 Ver W. E. Cousin, 1895, p. 83 e seg.
27 Citado por P. M. Mutibwa, 1974, p. 26 -27.
28 M. Brown, 1978, p. 177; A. Boudou, 1940 -1942; ver também P. Rabary, 1957; J. T. Hardyman, 1977.
493
Madagascar, 1800 -1880
em particular fuzis e munições. Eles queriam comprar produtos de luxo, como
tecidos e álcool, e aumentar suas exportações sobretudo de gado e de arroz
para a Ilha Maurício e a Ilha da Reunião, de forma a poder pagar as impor-
tações das quais necessitavam. Portanto, a rainha buscou o um modus vivendi
junto aos europeus, permitindo o desenvolvimento a seu país, sem temores de
conflito, nem de guerra, com os europeus. Para conseguir isso, Ranavalona e
seus conselheiros decidiram, em 1836, enviar uma missão à França e à Ingla-
terra, a fim de discutir novos tratados de amizade e de comércio, fundados no
respeito à cultura e à independência malgaxes, bem como no reconhecimento
de Ranavalona I como rainha de Madagascar
29
. A missão malgaxe – a primeira
a ser enviada à Europa era constituída de seis funcionários e de dois secretá-
rios, além de ser dirigida por Adriantsitchaina
30
. A estada da missão em Paris
não levou a resultado algum e ela voltou -se para Londres. O rei William IV
concedeu -lhe uma audiência, tal como a rainha Adelaide, porém, as conversas
com Lord Palmerson foram pouco satisfatórias. O governo britânico insistia na
liberdade de comércio e de navegação, o que contradizia o desejo de Madagascar
de controlar seu próprio comércio e de canalizá -lo nos portos dominados pelo
governo central.
A impossibilidade de conseguir concluir tratados com a França ou com a
Inglaterra aumentou a desconfiança dos malgaxes frente aos estrangeiros. Com
efeito, tais medos estavam bem fundamentados. Em 1845, uma esquadra anglo-
-francesa atacou Tamatave, sob as ordens das autoridades britânicas da Ilha
Maurício e das autoridades francesas da Reunião. O pretexto deste ataque foi a
proclamação, em maio, de uma lei malgaxe que obrigava todos os estrangeiros
a obedecerem às leis do país, o que significava, segundo os ingleses, que eles
poderiam ser sujeitados a trabalhos públicos, reduzidos à escravidão e julgados
por ordália (tangena). Esta agressão atordoou os malgaxes. Eles conseguiram
rechaçá -la e as tropas anglo -francesas foram obrigadas a evacuar Tamatave, dei-
xando para trás os cadáveres de seus homens caídos em combate, cujas cabeças
foram cortadas pelos malgaxes e empaladas em estacas, como forma de aviso
a eventuais invasores do reino. Embora os governos francês e britânico tives-
sem desaprovado o ataque, o mal estava feito. A rainha Ranavalona reagiu
expulsando todos os negociantes estrangeiros e interditando qualquer comércio
29 Porém, uma outra razão era que, nesta época, circulavam rumores segundo os quais a Inglaterra atacaria
Madagascar a partir da baía de Islary, perto da baía de Saint Augustin, onde os malgaxes tinham avistado
algumas embarcações inglesas. Ver R. E. P. Wastell, 1944, p. 25.
30 Para mais detalhes, ver J. Valette, 1960.
494
África do século XIX à década de 1880
exterior, notadamente a exportação de arroz e de carne para a Ilha Maurício e a
Ilha da Reunião. Todavia, o comércio com os Estados Unidos prosseguia.
Esta reação era tipicamente malgaxe: se a Europa não quisesse colaborar com
a ilha, esta se encontrava pronta a contar com suas próprias forças e com suas
próprias iniciativas. Se a rainha e a oligarquia, particularmente o clã dos anda-
fiavaratra, puderam resistir tão abertamente aos estrangeiros, era porque, apesar
de revoltas esporádicas, controlavam economicamente as províncias mais impor-
tantes, detendo, notadamente, o monopólio do comércio da carne de boi. Daí
a vontade de continuar a promover a educação à ocidental e de criar indústrias
para a produção dos bens necessitados pela ilha, mas que agora não podiam mais
ser importados do exterior. Para a manutenção dos contatos comerciais com o
exterior, a rainha empregou os serviços de um francês chamado De Lastelle, que
se estabelecera em Tamatave, e de um norte -americano, William Marks, insta-
lado em Majunga. Com o auxílio de De Lastelle, plantações de cana -de -açúcar
foram introduzidas na costa oriental; foi estabelecida, em Mahela, uma fábrica
produtora de açúcar e de rum
31
. A rainha engajou Jean Laborde, um aventureiro
francês, que, em 1832, chegara em Antananarivo, “como uma espécie de chefe
de obras”. Primeiramente, ele criou uma fábrica em Ilafy, a dez quilômetros
a Norte de Antananarivo, antes de se transferir para Mantasoa, bordejando
a floresta oriental, região rica em cursos de água, mas pouco atraente para os
trabalhadores malgaxes. Em Mantasoa, ele instalou, graças aos auxílios públicos,
um complexo industrial que empregava aproximadamente 20.000 pessoas e
produzia diferentes mercadorias de fuzis e canhões a vidro e sabão. Talvez a
mais importante e duradoura obra de Laborde tenha sido o palácio da rainha,
feito com madeira que existe até hoje e, mais tarde, recoberto de pedra por
Cameron. De Lastelle e Laborde tornaram -se cidadãos malgaxe e foram inte-
grados à oligarquia reinante
32
.
A rainha Ranavalona deu prosseguimento à expansão começada por Radama
I e se esforçou para consolidar sua administração nos territórios conquistados. As
necessidades de equipamento militar, notadamente, incitaram -na a prosseguir
as trocas com o estrangeiro, a fim de obter munições, e a encorajar a fabricação
de fuzis na usina de Laborde. A rainha também arrecadou impostos especiais,
destinados a financiar o esforço de guerra. A cidade de Fianarantsoa foi criada
em 1831, como capital regional, e a província de Betsileo foi reorganizada. Nos
anos 1830 foram lançadas expedições de Fianarantsoa para o Sul, algumas sob
31 F. Nicol, 1940.
32 S. Ayache, 1977; O. Caillon -Fillet, 1978.
495
Madagascar, 1800 -1880
o comando de Rainiharo, que atravessaram os países bara, mahafaly e masi-
koro. Uma delas alcançou a baía de Saint Augustin em 1835
33
. No Oeste e no
Norte, os sakalava e os antankara continuaram a resistir a autoridade do governo
central. Quando as forças da rainha derrotaram os chefes sakalava, Tsiomako
e Tsimiharo, estes últimos fugiram com seus partidários para as ilhas vizinhas
de Nosy Be, Nosy Faly e Nosy Mitsio, de onde eles enviaram mensagens às
autoridades francesas da Reunião, colocando seus territórios sob a proteção da
França. Em 1841, o almirante de Hell, governador da Reunião, aceitou seus
requerimentos e os tratados concluídos entre os franceses e os chefes rebeldes
sakalava no exílio formaram a base das pretensões francesas nos territórios oci-
dentais de Madagascar
34
.
Em 1852, com a morte de Rainiharo, o qual havia dirigido o governo desde
os anos 1830, uma nova geração de homens mais jovens chegou ao poder. Essa
geração era dirigida por Rainivoninahitriniony e seu jovem irmão Rainilaiari-
vony, os dois filhos de Rainiharo, que, respectivamente, se tornaram primeiro
ministro e comandante -em -chefe do exército. Ademais, esta nova geração de
33 H. Deschamps, 1960, p. 170; S. Rakotomahandry, 1981; R. Decary, 1960.
34 C. Guillain, 1845; R. Decary, 1960.
F . O palácio da rainha em Antananarivo, começado em 1839 por Jean Laborde a pedido da
rainha Ranavalona I. [Fonte: P. M. Mutibwa, e Malagasy and the Europeans, 1974, Longman, Londres. Foto:
Direção de Imprensa e de Publicação, Ministério da Informação, Madagascar.]
496
África do século XIX à década de 1880
dirigentes era apoiada por Rakoto Radama, filho da rainha Ranavalona I e
príncipe herdeiro. Esses jovens, junto ao príncipe Rakoto, receberam uma certa
educação dos missionários e eram mais abertos ao exterior do que o antigo
grupo de Rainiharo e de seus associados. É verdade que Rainijohary, o homem
que havia partilhado o poder com Rainiharo, encontrava -se sempre presente,
ainda considerado como primeiro ministro, e se opunha a qualquer modifica-
ção da política do governo. Contudo, a presença do príncipe herdeiro, o qual
chamava o engenheiro francês, Jean Laborde, de meu pai”, podia levar a
uma reorientação da política conduzida pela rainha. Em 1853, a proibição do
comércio entre Madagascar, a Ilha Maurício e a Ilha da Reunião foi retirada,
depois que os mercadores das duas ilhas e mais particularmente os da Ilha
Maurício pagaram, em compensação, 15.000 dólares a Ranavalona. A rainha
abriu as portas da ilha a certos estrangeiros. Em 1856, ela permitiu ao reverendo
W. Ellis, da LMS, voltar a Antananarivo; esse trouxe cartas do governo inglês,
afirmando sua amizade para com Madagascar. Dois clérigos católicos, os padres
Finaz e Weber, foram clandestinamente introduzidos na capital: o primeiro
como secretário de um francês, homem de negócios, chamado Lambert, e o
segundo, como assistente do médico titular do irmão de Rainijohary
35
.
Joseph Lambert chegara a Antananarivo em 1855. Era um negociante e
cultivador da Ilha Maurício que havia fretado um navio para comerciar com
Madagascar e que, naquele ano, havia prestado grandes serviços à rainha, ao
reabastecer a guarnição de Fort Dauphin, bloqueada por rebeldes no Sudeste.
Foi, portanto, bem acolhido pela corte. Graças à influência que Laborde exercia
sobre Rakoto Radama, Lambert convenceu o príncipe de lhe outorgar uma
carta, a qual conferia -lhe o direito de explorar os recursos minerais e agrícolas
do país. Afirma -se também que o príncipe pediu à França que lhe concedesse
um estatuto de protetorado. Mas o imperador Napoleão III estava demasiada-
mente preocupado com a guerra da Crimeia para assumir, em Madagascar, uma
política que fatalmente o oporia à Inglaterra, sua aliada. Com efeito, o pedido
do príncipe foi rejeitado por Paris.
Embora a rainha se mostrasse cada vez mais amigável com os estrangei-
ros, as esperaas dos franceses e dos ingleses repousavam sobre o príncipe
herdeiro que, claramente, havia mostrado suas tendências p-europeias. Em
grande parte foi por esta razão que Lambert, na ocasião de seu retorno a
Antananarivo em 1857, preparou um golpe de Estado. Para derrubar a velha
35 A. Boudou, 1940 -1942.
497
Madagascar, 1800 -1880
rainha e colocar o príncipe no trono, ele obteve o apoio de Laborde, de De
Lastelle, do c de Rainiharo e de outros malgaxes modernistas, em particu-
lar entre as comunidades criss clandestinas, que tinham constitdo uma
rede de amizades e encontravam -se próximas do príncipe herdeiro. O comp
foi descoberto antes de os conjurados haverem tido tempo de colo -lo em
execução, e Lambert e De Lastelle foram expulsos de Madagascar
36
. Isto fez
ecoar por Madagascar, e também pela Europa, os rumores de que a França se
preparava para invadir a ilha; rumores que mesmo em Londres foram levados
a rio
37
. A rainha ficou magoada e decepcionada pela traão de seu filho e
pela deslealdade dos dois franceses que ela considerava como seus próprios
filhos. Velha e inquieta, Ranavalona viveu em um triste isolamento até sua
morte, aos 18 de agosto de 1861, após ter designado Rakoto Radama como
seu sucessor. Rainijohary e seus partidários “conservadores tentaram colocar
no trono Rambossalama, o sobrinho da rainha. Mas Rainivoninahitriniony e
seu jovem irmão Rainilaiarivony apoiaram o herdeiro designado pela rainha,
com o qual partilhavam as ideias progressistas, de tal forma que o príncipe
herdeiro pôde ascender ao trono, sem obstáculos, sob o nome de Radama II.
Rainivoninahitriniony permaneceu como primeiro ministro e Rainilaiarivony
como comandante -em -chefe do exército. Sua família, os Andafiavaratra, pas-
sou a exercer, desde então,uma forte influência sobre o governo, que duraria
tanto tempo quanto a própria monarquia”
38
.
O que podemos dizer do reinando da rainha Ranavalona I na história de
Madagascar? Para os europeus, foi o reinado do terror, como escreveu um autor
moderno
39
. Para muitos povos sujeitados, a hegemonia merina também sur-
giu como um regime de exploração e de tirania. Conhecemos as revoltas das
populações do Sudeste e a repressão brutal provocadas por elas. Raombana,
moderno historiador malgaxe, forneceu um quadro surpreendente da desolação
que se seguiu. Povos como os antanosy emigraram para o Oeste, em direção ao
vale do Onilahi, para escapar da autoridade merina. Porém, grandes progressos
industriais foram realizados; a educação ganhou um real impulso e o processo de
modernização, empreendido em numerosos campos, jamais fora interrompido.
Ademais, para muitos de seus súditos, Ranavalona foi um símbolo do naciona-
36 A. Boudou, 1943.
37 Nota verbal de Cowley a ouvenel, 19 de fevereiro de 1860, Ministério dos Assuntos Estrangeiros,
arquivos (notado mais adiante, M.A.E.), Quai d’Orsay, Paris, Madagascar Series, tomo IV.
38 M. Brown, 1978, p. 189.
39 Ibid., p. 188.
498
África do século XIX à década de 1880
lismo malgaxe e um bastião contra as influências estrangeiras que ameaçavam
a cultura e as tradições do país
40
.
A política das portas abertas: o rei Radama II, 1861 ‑1863
O breve reinado deste soberano, muito voltado à Europa, foi marcado, antes
de tudo, por uma tentativa precipitada que visava derrubar a política do regime
precedente, ao menos no que concerne às relações com o exterior daí sua
brevidade sem precedente.
Radama II ambicionava modernizar seu país ao atrair os mercadores estran-
geiros, os investidores e os missionários para Madagascar. Com entusiasmo, ele
permitiu o ensino do cristianismo; os missionários e os cristãos malgaxes no
exílio foram chamados de volta. O rei fez voltar seus velhos amigos, Laborde
e Lambert, bem como outros europeus. Por volta do fim do ano, ele enviou
Lambert a Paris e a Londres em missão diplomática, para conseguir que as duas
potências o reconhecessem como rei de Madagascar: tal reconhecimento era a
condição para a instauração do livre comércio, proposto por ele, entre a ilha e
o resto do mundo.
As duas poncias europeias reagiram rapidamente. Elas aceitaram enviar mis-
es de conciliação e nomear cônsules em Antananarivo. O governo inglês designou
Conolly Pakenham para representá -lo em Madagascar e se engajou em respeitar a
indepenncia da ilha
41
. O governo francês nomeounsul Jean Laborde, o grande
amigo de Radama, que vivia em Madagascar desde 1832, na esperança de tirar pro-
veito de seu grande conhecimento do país e do prestígio que ele gozava na capital
malgaxe. Os franceses também reconheceram Radama como rei de Madagascar,
embora, em sua carta a Radama II, o imperador Napolo III fizesse vagamente alu-
o aos antigos direitos” que a França tinha sobre a ilha. Contudo, o governo francês
explicou claramente a seu nsul que o tinha a intenção de se apossar da ilha, nem
de entrar em conflito com os ingleses a fim de obter privilégios particulares
42
.
Missionários chegaram a Antananarivo pouco depois dos representantes
diplomáticos europeus. A missão católica, dirigida pelo padre Jouen, chegou em
40 S. Ayache, 1975; Raombana, 1980; M. Brown, 1978, p. 168 e 188. Sobre a inuência signicativa dos
missionários britânicos deste período, ver B. A. Gow, 1979.
41 Russel a Pakenham, 10 de maio de 1862, PROFO 48/9. Para mais detalhes ver P. M. Mutibwa, 1974,
p. 58 e seg.
42 M.A.E., vol. V, ouvenel a Laborde, 24 de abril de 1862, e cartas do imperador Napoleão III a Radama
II, 22 de abril de 1862.
499
Madagascar, 1800 -1880
setembro de 1861, seguida, em abril de 1862, pelos missionários da LMS, con-
duzida pelo reverendo W. Ellis que, em 1856, visitara a capital. O fato de Ellis
ser o portador de uma série de cartas do governo inglês para Radama convenceu
os chefes malgaxes que a LMS era uma antena do governo britânico; o que
explica, em parte, a grande influência que Ellis exerceu na capital malgaxe.
Os europeus aproveitaram desta reviravolta da situação para de novo negociar
tratados de amizade e de comércio. O tratado com a França foi assinado aos 12 de
setembro de 1862, e com a Inglaterra, aos 4 de dezembro de 1862. Todavia, eles
suscitaram uma certa inquietação na nobreza malgaxe. Rainivoninahitriniony, o
primeiro ministro, e seus colegas não estavam satisfeitos, que estes tratados esti-
pulavam, dentre outras coisas, que os estrangeiros podiam adquirir e possuir terras
em Madagascar, o que era contrário às tradições malgaxes. Os tratados também
isentavam os residentes estrangeiros do pagamento das taxas de exportação e de
importação, que constituíam a principal fonte de renda dos funcionários malga-
xes, aos quais o governo não pagava salário regular. Ademais, Radama ratificara,
em setembro de 1862, a carta que ele havia outorgado a seu amigo Lambert em
1855, e que permitia a este último explorar os recursos minerais e agrícolas dos
territórios do Noroeste da ilha. Uma outra concessão, concernente à região de
Vohemar, foi conferida a um inglês da Ilha Maurício, Caldwell.
O conselho real se opôs unanimemente à assinatura destas convenções que
davam tantos privilégios aos estrangeiros. Ademais, aos 28 de setembro de 1862,
Comodoro Dupré, o negociador francês, persuadiu Radama a assinar um tratado
secreto pelo qual o rei reconhecia os direitos da França sobre certas partes da
ilha
43
. Embora o governo francês tivesse desaprovado esta convenção secreta, os
ministros de Radama foram informados; daí o aumento de sua desconfiança em
relação a um rei que parecia pronto a assinar documentos sem discernimento,
mesmo quando esses ameaçavam a independência nacional.
Em dezembro de 1862, Radama parecia ter levado a cabo seu projeto da
abertura do país à influência estrangeira. Mas estes dezesseis meses tinham
constituído, para seus súditos, um período sem precedente. Ocorreram mui-
tas coisas em pouquíssimo tempo e a população não pôde se acostumar a tão
numerosas mudanças, que contrastavam tão fortemente com a política do antigo
monarca. Os tratados e as cartas assinados por ele desapontaram os homens que
o haviam ajudado a subir ao trono. A influência dos missionários e dos outros
estrangeiros cresceu tão rápido que muitos funcionários influentes começaram
43 M.A.E., vol. V, Dupré a Drouyn de Lhuys, 23 de outubro de 1862.
500
África do século XIX à década de 1880
a se inquietar. As novas orientações políticas provocavam tamanho desconten-
tamento que, ao longo da epidemia de ramanenjana, dizia -se que os doentes
estavam possuídos pelo espírito da falecida rainha. A situação tornou -se insus-
tentável quando Radama decidiu descartar do poder Rainivoninahitriniony, o
primeiro ministro, Rainilaiarivony, seu jovem irmão, e Rainijohary, isto é, os
membros supremos dos dois clãs de Tsimiamboholahy e de Tsimahafotsy, que,
como vimos, ajudaram Adrianampoinimerina a fundar o reino merina. O plano
de Radama consistia em substituir esta oligarquia por seus amigos de outrora,
chamados de mena maso (“olhos vermelhos”, literalmente) e conduzidos por
nobres de Vakinisinaony região das antigas capitais merina –, que alegavam
sua ancianidade e sua superioridade sobre os avaradrano de Antananarivo
44
.
Radama parecia, sobretudo, confiar mais nos estrangeiros do que nos malgaxes
para dirigir o país. A missão de reconhecimento que ele enviou a Europa o foi
conduzida por funciorios malgaxes, como em 1836 -1837, mas por Lambert, o
aventureiro frans. Ele recorreu demais aos conselhos de Ellis e, quando da morte de
Rahaniraka, em novembro de 1862, nomeou William Marks, um norte -americano,
e Clément Labord, o filho do nsul francês, secretários de Estado dos assuntos
estrangeiros. Essa decio, tal como aquela de se apoiar sobre os mena maso, deu a
entender aos dois filhos de Rainiharo e a seus partirios (inclusive Rainijohary) que
o rei se preparava para eliminá -los. Portanto, eles decidiram agir preventivamente.
Quando Radama recusou livrar -se dos mena maso e até mesmo, ameaçou punir
aqueles que se opusessem a sua vontade , o grupo do primeiro ministro decidiu
descartá -lo do poder. Na aurora dos 12 de maio de 1863, Radama foi estrangulado
com um lenço de seda, de forma a evitar derramar o sangue real, o que teria sido
contrio à tradição malgaxe. Segundo o sucinto comentário de Mervyn Brown:
A fraqueza de caráter foi a principal causa da queda de Radama. Sua bondade natu-
ral, sua inteligência incontestável e suas excelentes intenções não foram completadas
pela autodisciplina, pela aplicação ou por um juízo seguro; ele se revelou incapaz de
dominar a oposição que a brutal inversão de quase todas as escolhas políticas de sua
mãe provocara em certos meios
45
.
44 Sobre as origens étnicas dos partidários de Radama, ver S. Ellis, 1980.
45 M. Brown, 1978, p. 195. Pouco após a morte de Radama II, começaram a circular rumores de que o
rei ainda estava vivo; tais rumores correram por mais de dois anos. Numerosos europeus, inclusive o
reverendo W. Ellis, da LMS, e Laborde, o cônsul francês em Madagascar, acreditaram nisso e tentaram
entrar em contato com o soberano deposto. Raymond Delval escreveu um estudo no qual, com efeito,
foi demonstrado que Radama II sobreviveu e se refugiou na parte ocidental da ilha, onde, após uma
frustrada tentativa de retomada do poder, ele viveu como uma pessoa comum até sua morte, no m do
século. Ver R. Delval, 1964.
501
Madagascar, 1800 -1880
A revisão da política de Madagascar: 1863 ‑1868
O sucessor de Radama II foi sua esposa, Ravodozakandriana, que tomou o
nome de Rasoherina. Ela era prima de primeiro grau de Radama I e, portanto,
a sucessão continuou na linhagem de Adrianampoinimerina. Ela foi convidada
vale sublinhar este termo a se tornar rainha pela oligarquia que havia der-
rubado seu marido e que, a partir de então, era a verdadeira autoridade no país.
Importa destacar que Rainivoninahitriniony, Rainilaiarivony e seus associados
não se opunham aos europeus, nem à modernização do país. Certamente, a fra-
ção conservadora”, dirigida por Rainijohary, ainda se fazia presente e incitava
uma inversão completa da política de Radama II. Porém, o grupo pró -europeu
do primeiro ministro era majoritário no Conselho real
46
. Aquilo que os novos
dirigentes desaprovavam era a maneira com que Radama conduzira sua política
pró -europeia. Eles estimavam que a modernização da ilha não devia se fazer à
custa de suas tradições e de sua independência.
O novo governo permaneceu nas mãos de Rainivoninahitriniony até julho
de 1844, data em que este foi substituído por Rainilaiarivony, seu jovem irmão,
comandante -em -chefe do exército. Rainilaiarivony controlaria o país pratica-
mente até o fim do século. O novo governo queria dar prosseguimento à política
externa de Radama, mas com importantes modificações. As cartas de Lambert
e de Caldwell, que ameaçavam a independência do país, foram revogadas. Os
tratados com a França e a Inglaterra foram revistos, de tal maneira que os artigos
ofensivos que autorizavam a posse de terras aos estrangeiros em Madagascar e
os isentavam das taxas de exportação e de importação foram ab -rogados. No que
concerne à política interna, o cristianismo continuaria sendo ensinado, mas os
costumes do país, que interditavam aos estrangeiros a ida a certas cidades, como
Ambohimanga, ou a pregação nesses locais, seriam, a partir de então, respeita-
dos. Os estrangeiros que desejavam apoiar o desenvolvimento de Madagascar
eram bem -vindos ao país. O governo malgaxe expediu cartas às autoridades
francesas e britânicas da Reunião e da Ilha Maurício, a fim de explicar -lhes o
que se passara em Madagascar e de definir sua política. Em novembro de 1863,
uma missão foi enviada à Inglaterra e à França para explicar a nova política de
Madagascar e obter a revisão dos tratados de 1862. Esta missão foi dirigida por
Rainifiringia, acompanhado de Rainavidriandraina.
46 Este exame da linha política do Conselho da rainha era fundado no compte rendu que Jean Laborde fez
a Drouyn de Lhuys, aos 25 de maio de 1865. M.A.E., vol. VII.
502
África do século XIX à década de 1880
A Inglaterra e a França reagiram de maneira diferente à queda de Radama
II. Lord John Russel, o secretário do Estado britânico dos assuntos estrangeiros,
entendia as dificuldades em que se encontrava Madagascar em suas relações
com os governos estrangeiros. Embora lamentasse o fato de o novo governo ter
revogado um tratado internacional, ele aceitou o pedido de revisão do antigo
tratado e recusou deixar -se arrastar em um conflito com Madagascar, em razão
da supressão da carta de Caldwell
47
. O governo britânico acolheu, pois, calo-
rosamente a missão malgaxe quando de sua chegada em Londres, em março
de 1864. Foi acordado um novo projeto de tratado incorporando a maioria das
propostas malgaxes, sob a condição de as negociações continuarem em Antana-
narivo, após a volta da missão a Madagascar. Quando, finalmente, estas negocia-
ções começaram, em 1865, surgiram dificuldades, pois os ingleses pediam que
seus residentes pudessem possuir terras na ilha e que as taxas de exportação e
de importação fossem de 5%, ao passo que os malgaxes reclamavam 10%. No
entanto, o governo de Antananarivo foi inflexível nestes pontos e os ingleses
acabaram aceitando todas as propostas malgaxes. A assinatura do tratado foi
festejada em Antananarivo, aos 27 de junho de 1865.
A reação francesa foi diferente, que os franceses não aderiram à política
do novo regime. Eles estavam muito irritados por causa da queda de Radama
II, que, em Paris e em Saint -Denis, foi atribuída à influência dos missionários
britânicos e do reverendo William Ellis, em particular. O governo francês recu-
sou, pois, a revogação do tratado de 1862 e da carta de Lambert, ambos ratifi-
cados pelo imperador Napoleão III. A carta de Lambert tinha sido preparada
sob a proteção direta do imperador, e uma companhia tinha sido formada
para explorar as concessões. Para os franceses, por consequência, a aceitação da
ab -rogação da carta e do tratado teria sido um duro golpe. Nestas condições, eles
preferiram romper as relações diplomáticas em setembro de 1863
48
.
Em Paris, intensas pressões foram exercidas sobre o governo francês para que
o tratado e a carta fossem impostos à força. Entretanto, o governo recusou montar
uma expedição contra Madagascar e aceitou considerar a revisão do tratado, sob
a condição de Madagascar pagar uma indenização de 1.200.000 francos (240.000
dólares) pela ab -rogação da carta. Esta decisão foi comunicada aos emissários
malgaxes, quando estes se encontravam ainda na Europa. Portanto, a visita a Paris,
47 Ver Codore a Drouyn de Lhuys, 28 de novembro de 1863, M.A.E., vol. VI e Russell a Cowley, 7 de
junho de 1864, F.O. 48/6.
48 Ver Pakenham a Russell, 30 de setembro de 1863, PROFO 48/10, no qual a conduta do enviado especial
francês em Madagascar, Comodoro Dupré, encontra -se bem discutida.
503
Madagascar, 1800 -1880
em julho de 1864, foi inútil. O imperador Napoleão recusou até mesmo recebê-
-los. Tudo o que obtiveram foi um sermão cordial, porém enérgico, de Drouyn
de Lhuys: o ministro francês dos assuntos estrangeiros colocou a tônica sobre a
necessidade de respeitar as convenções internacionais e fez saber, claramente, que,
para seu governo, o rápido pagamento da indenização pedida era a condição sine
qua non do restabelecimento das relações amigáveis entre os dois países.
De volta a Madagascar, os embaixadores informaram ao governo que, para
os franceses, a ab -rogação da carta de Lambert e do tratado era um assunto
grave. Preocupados em desfazer as obrigações impostas por estas duas conven-
ções, os malgaxes aceitaram pagar a indenização, ainda mais porque o governo
britânico parecia pouco inclinado a intervir em seu favor. A indenização foi,
pois, paga em Tamatave, ao 1º de janeiro de 1866, e foram abertas negociações
entre os dois países, visando à conclusão de um novo tratado. Todavia, em vez de
simplesmente aderir a uma versão francesa do tratado anglo -malgaxe de junho
de 1865, como o governo de Antananarivo esperava, os franceses continuaram
exigindo que seus residentes tivessem o direito de adquirir e possuir terras na
ilha; o que, naturalmente, foi recusado pelos malgaxes. O governo francês, em
uma posição que julgava embaraçosa, pediu ao governo britânico que emendasse
seu próprio tratado, de maneira que os residentes franceses e ingleses pudessem
obter terras na ilha. Porém, as manobras francesas fracassaram, pois os britâni-
cos recusaram -se a fazer uma emenda no tratado ratificado. Finalmente, os
franceses tiveram de aceitar o tratado anglo -malgaxe como base de um novo
tratado franco -malgaxe, no qual foi estipulado que os residentes franceses não
teriam o direito de adquirir, nem de possuir terras em Madagascar. Esse tratado
foi assinado aos 8 de agosto de 1868, em Antananarivo.
Os cinco anos que se seguiram à morte de Radama II foram ricos em aconte-
cimentos para Madagascar. A ilha conhecera grandes dificuldades com a França
por causa da revogação das convenções assinadas por Radama II. Os malgaxes
haviam aprendido uma coisa importante: enquanto a Grã -Bretanha continuava
benevolente e pouco exigente, a França se mostrava hostil e pouco amigável. Em
Antananarivo, temia -se até mesmo que os franceses invadissem a ilha. Quando
da assinatura do tratado anglo -malgaxe em 1865, o governo de Antananarivo,
segundo o cônsul francês, “agradeceu a todos os ingleses ou seja, aos missio-
nários da LMS, residentes na capital por terem cordialmente se associado ao
governo para obter as modificações requeridas por ele”
49
. Esta atitude foi con-
49 Laborde a Drouyn de Lhuys, 29 de junho de 1865, M.A.E., vol. VII.
504
África do século XIX à década de 1880
siderada o selo da amizade anglo -malgaxe, que durou até o fim do século. Por
outro lado, a política hostil da França produziu um sério corte nas relações entre
os dois países. Os britânicos levavam vantagem sobre os franceses e, no contexto
político da ilha, era um acontecimento importante na história de Madagascar.
Evolução interna, 1861 ‑1880
Até então, nosso estudo sobre este período foi basicamente político e diplo-
mático. Ele concerniu à evolução política do país, de 1800 aos anos 1880, bem
como às relações diplomáticas da ilha com a França e a Inglaterra. É ainda
mais necessário, agora, estudar a evolução administrativa e socioeconômica de
Madagascar, que os acontecimentos ocorridos nesses campos revelar -se -iam
essenciais quando da luta de Madagascar por sua sobrevivência como Estado
independente, durante o período da “investida dos europeus.
Um dos acontecimentos mais importantes deste período, que teria um impacto
enorme na história posterior, foi a conversão ao cristianismo, em fevereiro de
1869, da rainha Ranavalona II e de seu primeiro ministro, Rainilaiarivony (que
também era seu esposo). O zelo com o qual os missionários trabalharam, após
sua volta à ilha em 1861, mostrou claramente que uma revolução religiosa estava
prestes a eclodir no país. Em 1863, havia em torno de 5.000 cristãos na capital
malgaxe, em uma população total de 60.000 almas. No fim de 1868, a LMS,
por si só, reunia 10.546 membros e 153.000 adeptos em Madagascar
50
. Era
preciso, desde então, contar com o grupo cristão, do qual um grande número de
altos funcionários era membro. Não se podia mais empregar a perseguição para
eliminar o cristianismo: utilizado nos anos 1830 e 1840, o método malograra.
Em 1870, a perseguição aos cristãos teria colocado de lado o elemento mais
influente da população. Os adeptos da LMS encontraram um chefe na pessoa
de Rainimahavaro, ministro malgaxe dos assuntos estrangeiros e rival declarado
de Rainilaiarivony, que também era pró -inglês. Para neutralizar Rainimaharavo
e evitar uma revolução cristã radical, que poderia culminar na substituição da
rainha Ranavalona II pelo príncipe Rasata, um protegido da LMS, a rainha e seu
primeiro ministro decidiram se converter
51
. Isto não quer dizer, claro, que eles
não acreditavam no cristianismo, mas isso explica porque e como esta conversão
se produziu neste exato momento.
50 Ver a crônica da LMS e os relatórios da LMS dos anos 1860 e 1870.
51 D. Ralibera, 1977.
505
Madagascar, 1800 -1880
O fato de os chefes malgaxes terem abraçado o protestantismo a religião
dos ingleses –, em vez do catolicismo, foi importante, sob vários aspectos, para
o futuro de Madagascar. Os malgaxes tendiam a considerar o protestantismo
como a religião dos dirigentes e associavam -no ao poder, tanto que fora de
Imerina e de Betsileo, o cristianismo tinha adeptos nos postos fortificados
dos colonos merina, onde o governador também era frequentemente um pouco
evangelizador. Dentre os povos dominados, os católicos eram mais ativos no
país betsileo, onde se desenvolveu uma espécie de cristianismo popular, para-
lelo à religião oficial. Em reação contra o poder, assistiu -se ao renascimento
das religiões tradicionais, apesar da destruição pública dos sampy (ídolos) que
acompanhava a propagação do cristianismo. No último quarto do século XIX,
os sacerdotes mais eminentes do culto dos sampy tornaram -se os líderes da
oposição à autoridade real
52
.
A conversão dos dirigentes de Madagascar ao protestantismo ocorreu pouco
após a conclusão do tratado franco -malgaxe de 1868, que, como vimos, fora
precedida por conflitos e mesmo por ameaças de guerra da parte da França.
Era a época em que os britânicos pareciam e reivindicavam ser os verda-
deiros amigos e aliados de Madagascar, e em que os missionários ingleses não
deixavam de sublinhar esta posição continuamente. Graças a homens como
James Cameron, a LMS tornou -se uma importante assistência técnica para os
malgaxes. Rainilaiarivony e seus colegas acreditavam que, ao abraçarem o credo
da LMS, selariam ainda mais esta amizade. Com efeito, ao se converterem ao
protestantismo, eles se aproximavam dos ingleses e podiam supor que estes esta-
riam ao seu lado caso os problemas com a França se manifestassem novamente.
Os franceses também viram nesta conversão dos malgaxes ao protestantismo
um sinal do engajamento destes últimos ao lado dos britânicos; consideraram
que a conversão da rainha marcava a rejeição à influência e à cultura francesas,
além de uma mudança em favor dos ingleses.
Os missionários britânicos, uma vez vencida a guerra religiosa, exploraram as
novas vantagens na capital a fim de estenderem suas atividades para todo o resto
da grande ilha. Mesmo os católicos, que não tinham influência política direta em
Antananarivo, fizeram proselitismo em outras partes do país
53
. Dissemos ante-
riormente que os católicos dominavam a evangelização do país betsileo. Logo
chegaram outras missões e, no último quarto do século XIX, viu -se desenhar
diversas zonas de influência a Norske Missionary Society, no Vakimankaratra,
52 M. Esoavelomandroso, 1978b; S. Ellis, 1980.
53 A. Boudou, 1940 -1942.
506
África do século XIX à década de 1880
a Society for the Propagation of the Gospel (SPG), a Leste, e a FFMA (Friends
Foreign Mission Association), a Oeste. Graças a suas próprias contribuições e à
estreita aliança entre os missionários ingleses e o governo malgaxe, grandes pro-
gressos foram realizados nos campos da educação e da medicina.evocamos os
progressos da alfabetização e a existência de uma literatura. Numerosos transtor-
nos seguiram -se, notadamente o abandono do calendário lunar tradicional pelo
calendário gregoriano, introduzido pelos missionários britânicos em 1864. A
arquitetura também foi influenciada, sobretudo pela construção desenfreada de
igrejas e de diversos monumentos aos mártires, que visava a fazer de Antanana-
rivo uma cidade santa, suplantando Ambohimango
54
. Com efeito, foi em razão
desses notáveis progressos, em particular no campo educacional, que os malgaxes
conquistaram, durante este período, a admiração do mundo civilizado”. Isto, por
sua vez, contribuiu para fomentar uma revolução social no país.
Os missionários britânicos tinham aberto as primeiras escolas, em Antana-
narivo, em 1820. Quando o cristianismo foi interditado e os missionários deixa-
ram o país, os rapazes malgaxes, formados por eles, levaram adiante a educação
laica. Quando os missionários retornaram, após 1861, o desenvolvimento da
educação acelerou -se consideravelmente, a tal ponto que, em 1880, havia mais
de 40.000 alunos nas escolas das missões e do governo. O primeiro ministro
decretou que “todas as crianças de mais de sete anos deveriam ir à escola
55
. Em
1881, o princípio da escolaridade obrigatória foi inscrito no Código de 305
artigos e, em 1882, agentes de inspeção pública começaram suas vistorias nas
escolas de Imerina. As escolas secundárias foram criadas nos anos 1870, mas só
se desenvolveram realmente após 1880. Numerosos rapazes, incluindo dois dos
filhos do primeiro ministro, foram enviados ao estrangeiro para continuar seus
estudos, notadamente à Inglaterra e à França. O desenvolvimento da educa-
ção foi facilitado pelo número elevado de gráficas fundadas pelas missões, que
publicavam livros, revistas e jornais. Na medida em que o campo da educação
era dominado pela influência dos missionários, não é surpreendente constatar
que o ensino técnico encontrava -se atrasado em relação ao ensino literário; os
missionários se interessavam mais pela criação de congregações do que pelas
obras públicas. O nível de educação literária atingido por Madagascar é clara-
mente atestado pela correspondência diplomática malgaxe da época, redigida
em inglês e em francês.
54 F. Raison, 1970, 1977, 1979.
55 M. Brown, 1978, p. 212. Ver também B. A. Gow, 1979, capítulo 4, no qual o trabalho médico e educa-
cional das missões inglesas encontra -se bem examinado.
507
Madagascar, 1800 -1880
Os primeiros serviços dicos foram criados na ilha com a inauguração,
em 1862, pela LMS, de um posto médico em Antananarivo; três anos mais
tarde, um hospital foi aberto em Analakely, no centro da capital. Em 1875,
o governo malgaxe organizou seus pprios serviços médicos, com pessoal
assalariado. Em 1880, Madagascar dispunha de seus primeiros médicos qua-
lificados, o Dr. Adrianaly e o Dr. Rajaonah (um genro do primeiro ministro),
que haviam passado nove anos estudando na Faculdade de Medicina de
Edimburgo
56
.
56 V. Ramanakasina, s.d.
F . O palanquim da rainha Rasoherina diante de uma palhota venerada, datando do reinado de
Andrianampoinimerina. No plano de fundo, o templo protestante construído nos reinados de Rasoherina e de
Ranavalona II. [Fonte: H. Deschamps, Histoire de Madagascar, 1960. Berger -Levrault. Paris. Foto reproduzida
pela Biblioteca Nacional, Paris.]
508
África do século XIX à década de 1880
No campo da evolução constitucional e administrativa de Madagascar, desde
a época de Radama I, a mudança mais importante foi a substituição do monarca
merina, como chefe do país, por uma oligarquia hova, dirigida pela família de
Rainiharo. Tal movimento rumo a uma monarquia constitucional começou nos
anos 1820, quando a rainha Ranavalona I foi obrigada a dividir o poder com
Rainiharo e Rainijohary, dois homens pertencentes a importantes famílias hova,
inicialmente modestas, que tinham alcançado poder e influência e que tinham
ajudado Adrianampoinimerina a fundar o reino merina no fim do século XVIII.
Tradicionalmente, o soberano de Imerina exercia um poder pessoal”, governava
seu reino como bem queria e apenas consultava seus conselheiros se lhe era
conveniente. Entretanto, após a morte de Radama I, o poder da monarquia
merina foi cada vez mais enfraquecido pela escalada da classe média hova. Os
hova desempenharam um papel determinante na fundação e consolidação do
reino em expansão. Com o passar dos anos, eles aproveitaram esta posição para
se enriquecer comercialmente e ocupar postos chaves no exército e na admi-
nistração. Embora a classe dos andriana continuasse desempenhando um papel
importante no país, o poder real, o exército e o governo encontravam -se, desde
então, nas mãos dos hova. Porém, a mudança mais importante ocorreu após o
assassinato do rei Radama II, em 1863, quando a nova rainha, Rasoherina, foi
reconhecida oficialmente como monarca constitucional e quando o poder passou
para as mãos da oligarquia hova, que havia derrubado o marido da rainha. Antes
de sua coroação, Rasoherina, a pedido do primeiro ministro e de seus partidários,
teve que assinar uma série de artigos nos quais ela se comprometia, entre outras
coisas, a não beber álcool, a não pronunciar condenação à morte sem a opinião
dos membros do Conselho e a não promulgar nenhuma lei sem o aval do Con-
selho, que, nesse momento, era controlado por eles”
57
. Os poderes do governo
eram, na verdade, partilhados inicialmente pelos dois irmãos, Rainivoninahi-
triony e Rainilaiarivony, que se tornaram, respectivamente, primeiro ministro
e comandante -em -chefe do exército. Quando, em julho de 1864, o primeiro
ministro Rainivoninahitriony foi derrubado e substituído por Rainilaiarivony,
este último se tornou, simultaneamente, primeiro ministro e comandante -em-
-chefe do exército. Era a primeira vez que as duas funções eram exercidas por
uma única pessoa
58
. Quando Rainilaiarivony esposou a nova rainha embora ela
tivesse mais de 50 anos e 15 a mais que ele –, o novo primeiro ministro tornou -se
o homem mais poderoso do país. Rainilaiarivony tornou -se senhor e, de fato, rei
57 B. A. Gow, 1979, p. 41.
58 M. Brown, 1978, p. 199 -200.
509
Madagascar, 1800 -1880
sem coroa de Madagascar. Ele ainda reforçou sua posição esposando também a
rainha que sucedeu Rasoherina. O poder passou, pois, do soberano e do grupo
dos andriana para o primeiro ministro, o chefe da oligarquia hova
59
.
Para assegurar a ordem pública e o funcionamento dos órgãos administra-
tivos do Estado, um Código de 101 artigos foi promulgado em 1868; a cada
ano, outros artigos acrescentaram -se a ele, até ser atingido, em março de 1881, o
número de 305. O fundamento geral deste Código era que os costumes e as tra-
dições do país poderiam permanecer em vigor conquanto que não oferecessem
obstáculo para o progresso. O Código de 101 artigos, que foi impresso e colo-
cado em circulação, era severo em sua aplicação, mas representava uma melhora,
sob diversos aspectos, dos antigos costumes. Ele reduzia “de 18 a 13 o número
de delitos passíveis de pena de morte sendo o primeiro o crime voluntário e
os doze outros diversas formas de rebelião contra o Estado”. Também abolia
a noção de responsabilidade familiar, segundo a qual as mulheres e as crianças
podiam ser punidas pelos crimes do marido e do pai. As leis não eram aplicadas
da mesma maneira nas províncias, onde as punições, em geral, eram menos rigo-
rosas. Em 1873, Ranavalona II havia até mesmo publicado um código especial
de 118 artigos para o país betsileo
60
. Em 1876, o governo malgaxe criou três altas
cortes (anteriormente existia apenas uma) que julgavam os diferentes tipos de
delito, cada uma com treze juízes, dos quais onze eram funcionários do palácio.
Nas aldeias, magistrados e chefes (sakaizambohitra) foram nomeados para exer-
cer a justiça; de fato, a nível local, o fokonolona foi reorganizado de tal maneira
que os chefes de aldeia obtivessem mais responsabilidades. Eles deviam manter a
ordem, garantir o respeito à lei e exercer a justiça. Porém, mesmo que se tratasse
de assuntos levados diante dos tribunais de aldeia ou diante das três cortes de
justiça da capital, a decisão final pertencia sempre ao primeiro ministro. Esta
centralização, embora concentrasse todas as responsabilidades nas mãos de um
único homem, permitia, entretanto, ao governo de Antananarivo saber o que se
passava nas províncias.
Em março do mesmo ano, uma reorganização mais completa do aparelho
governamental foi empreendida com a criação de um conselho de oito ministros,
respectivamente responsáveis do interior, dos assuntos estrangeiros, da guerra,
da justiça, da legislação, do comércio e da indústria, das finanças e da educação.
A criação destes ministérios fazia parte do novo Código de 305 artigos, que se
59 P. M. Mutibwa, 1974, p. 88; M. Brown, 1978, p. 207.
60 Ver M. Brown, 1978, p. 214 -215, inspiramo -nos largamente nesta obra para a análise que se segue; ver
também E. ébault, 1960.
510
África do século XIX à década de 1880
tornou a base dos outros sistemas jurídicos de Madagascar introduzidos até o
fim do século, e mesmo sob a dominação colonial. Tal Código marcava, como
observou um especialista, “um passo à frente rumo a um sistema mais humano,
mesmo se numerosas punições continuassem muito severas e se o Código con-
servasse um caráter basicamente malgaxe”
61
. Isto mostrava uma vez mais que os
malgaxes queriam modernizar seu país e se juntar ao “concerto das nações”.
O exército também conheceu profundas mudanças. As reformas que Radama
I havia introduzido neste campo tinham sido abandonadas por seus sucessores.
Mas, em 1872, o primeiro ministro novamente empreendeu a modernização
do exército. Com a ajuda de um instrutor britânico, o governador começou a
recrutar, a equipar e a formar um maior exército profissional. A fábrica de Jean
Laborde, em Mantasoa, que produzia armas leves, tinha deixado de funcio-
nar quando Laborde deixara o país. O governo pensou em importar armas da
Europa, em particular da Inglaterra e dos Estados Unidos da América. Mas
isso custava caro e à Madagascar faltavam dinheiro e reservas. Era preciso, pois,
tentar fabricar localmente o armamento leve.
Em 1876, outras reformas foram introduzidas no exército. A partir desta
data, os soldados foram submetidos a um exame médico anual; foi interditada
a compra dos méritos” e das isenções; os abusos do sistema dos ajudantes de
ordens foram eliminados. Em 1879, o serviço militar obrigatório foi adotado por
um período de cinco anos. Cada uma das seis províncias de Imerina teve que
recrutar 5.000 homens, o que permitiu a criação de um potente exército profis-
sional de 30.000 soldados. Nos anos 1870, expedições cuidadosamente prepa-
radas foram lançadas para reprimir sublevações dos sakalava (principalmente de
Menabe) e dos bara, no Sul. A expedição lançada contra os bara, em 1873, saiu
vitoriosa: a região passou, enfim, para o controle do governo de Antananarivo.
Mas, no final da década de 1870, tornou -se cada vez mais evidente que o papel
do exército malgaxe não mais seria reprimir revoltas na ilha, mas sim, assegurar
a defesa do país contra intervenções francesas.
Para realçar sua imagem no estrangeiro, Madagascar interditou o tráfico de
álcool notadamente do rum. Com efeito, em 1863, acreditando que o consumo
de álcool explicava a conduta de Radama II, o novo governo havia decretado que
o soberano não devia beber bebidas fortemente alcoolizadas. Costumes como o
tangena (julgamento por ordália) foram abolidos no reinando de Radama II. O
comércio de escravos continuou interditado em Madagascar, mas certos merca-
61 M. Brown, 1978, p. 216.
511
Madagascar, 1800 -1880
dores estrangeiros, geralmente ingleses e franceses, continuaram a transgredir
essa lei, em particular na costa oeste da ilha. Em 1877, o governo malgaxe libe-
rou também os makoa, ou masombiky (como os merina os chamavam), ou seja,
todos os escravos ou descendentes de escravos trazidos da África para a ilha.
Embora não abolisse a própria escravidão, o decreto de 1877, que significava
uma grande perda econômica para os proprietários de cerca de 150.000 escravos
libertos, constituía uma importante revolução social e mostrava que o país estava
decidido a se modernizar
62
.
O desenvolvimento econômico
63
Anteriormente à integração de Madagascar no comércio internacional e, em
particular, antes dos anos 1860, época em que os europeus começaram a chegar
em grande número na ilha, os malgaxes possuíam uma “economia de subsis-
tência”. A maior parte da população se ocupava unicamente de agricultura para
prover suas necessidades, e o arroz era o principal alimento, sobretudo no pla-
nalto central. Os malgaxes eram de tal forma especializados na cultura do arroz
62 Ver Extracts from Report by Rear -Admiral W. Gore -Jones, PRO, FO 48/34.
63 Ver P. M. Mutibwa, 1972. Tal artigo foi muito utilizado para a análise que se segue.
F . Acampamento de Ranavalona II, quando de seu retorno de Fianarantsoa, 1873. [Fonte: F.
Raison -Jourde, Les souverains de Madagascar, 1983, Karthala, Paris. Foto: Fonds Grandidier du Musée des
collections scientiques, Tsimbazaza, Antananarivo.]
512
África do século XIX à década de 1880
que, segundo um observador,o caráter engenhoso e a habilidade dos malgaxes
em nenhuma parte se mostrava melhor do que na cultura do arroz”
64
. Além da
agricultura, a economia de Madagascar dependia da criação de gado, notada-
mente entre os sakalava, no Oeste, e entre os povos do Sul da ilha. Criavam -se
também carneiros e porcos em Imerina e o peixe constituía um dos principais
alimentos dos malgaxes. Os merina não puderam se tornar senhores do comércio
na costa oeste; eles eram praticamente ausentes no Sul e se chocavam com a
concorrência dos antalaotra no Noroeste. Na costa leste, todavia, eles consegui-
ram implementar uma eficaz rede comercial.
Duas indústrias encontravam -se muito desenvolvidas: de um lado, a fiação e
a tecedura, do outro, as minas e a metalurgia (sobretudo o ferro). Os malgaxes
fabricavam estofos e toda uma série de artigos de metal para uso próprio. Esta
era a base da educação técnica que receberam dos europeus.mencionamos os
produtos da fábrica de Laborde, em Mantasoa, a uma quarentena de quilômetros
a Sudeste de Antananarivo. Alfred Grandidier, o famoso explorador francês de
Madagascar no século XIX, ensina -nos que, em Mantasoa, “Laborde produzia
aço puro, cimento, canhões e morteiros; toda espécie de armas e munições; arti-
gos de curtume; vidros e cerâmicas; potes e pratos; tijolos e ladrilhos [...]; sabo-
64 Citado por P. M. Mutibwa, 1972; ver também H. Florent, 1979; M. Rasoamiaramanana, 1974, 1981;
G. Rantoandro, 1981.
F . Fundição e forjamento do ferro em Madagascar, nos anos 1850. [Fonte: W. Ellis, ree visits
to Madagascar, 1858, J. Murray Publishers, Londres. Ilustração reproduzida com a autorização da British
Library.]
513
Madagascar, 1800 -1880
nete de todas as cores; velas, papel e tinta para escrever; potássio, alume comum
e ácidos sulfúricos e, após 1843, chegou a criar bichos -da -seda chineses”
65
.
Muitos destes produtos cessaram de ser fabricados quando Laborde deixou
Madagascar, no fim dos anos 1850. Porém, certos homens com os quais ele
havia trabalhado, puderam continuar a produzir alguns artigos necessários para
sua subsistência. O que matou a indústria local foi a importação de materiais
mais baratos (estofos, calçados e cerâmicas) da Europa e dos Estados Unidos
da América.
A ascensão do rei Radama ao trono, em 1810, assistiu ao início da partici-
pação ativa de Madagascar no comércio internacional. O tráfico de escravos era
um dos elementos majoritários do comércio, mas, após a conclusão do tratado
anglo -malgaxe de 1843, este tráfico foi interditado e nunca mais foi retomado
nas regiões onde a autoridade do governo malgaxe era real. Os escravos conti-
nuaram a ser importados da África para a costa oeste de Madagascar e para os
territórios do Noroeste, sob a aparência de trabalhadores contratados. Este trá-
fico era quase que monopolizado pelos antalaotra e pelos indianos que, às vezes,
se beneficiavam de uma cumplicidade de funcionários merina
66
. Por outro lado,
nas regiões que escapavam praticamente ao controle das autoridades de Antana-
narivo, alguns escravos eram exportados para a Ilha da Reunião, Ilha Maurício,
Estados Unidos da América e para as Antilhas. O arroz e o boi representavam
outras importantes exportações, ao passo que diversos produtos (estofos, fuzis,
rum e máquinas) eram importados. O governo tirava a metade de seus ren-
dimentos aduaneiros do comércio da carne de boi. Além do comércio direto
com a Europa e os Estados Unidos da América, Madagascar comerciava com a
Grã -Bretanha pela Ilha Maurício, Zanzibar
67
e as Seicheles, e com a França pela
Ilha da Reunião. O comércio malgaxe era absolutamente fundamental para a
colônia francesa da Reunião, que obtinha da grande ilha quase todo o seu gado
e seu arroz, sem falar dos escravos. Em parte, isto se devia ao fato de os colonos
franceses da Reunião e dos pequenos negociantes de Marselha considerarem
Madagascar como sua zona natural de influência.
O comércio internacional da ilha estava fundado nos tratados de amizade e
de comércio. Mencionamos, mais acima, os tratados de 1862 com a Inglaterra e
a França, que foram respectivamente modificados em 1865 e em 1868. O pri-
meiro tratado com os Estados Unidos foi assinado em 1867, com a chegada de
65 Citado por P. M. Mutibwa, 1972.
66 M. Rasoamiaramanana, 1981b; G. Campbell, 1981.
67 H. Kellenbenz, 1981.
514
África do século XIX à década de 1880
um cônsul americano em Antananarivo. O governo malgaxe também instalou
embaixadas na Ilha Maurício, na Inglaterra e na França, para facilitar as trocas
comerciais
68
. O primeiro ministro preferia nomear negociantes importantes
das capitais estrangeiras como cônsules. Para Londres, ele escolheu M. Samuel
Procter, que fazia negócios florescentes com Madagascar. Esta nomeação parece
ter acontecido em 1862, quando Radama II encomendou aos Srs. Procter e
Bros, de Londres, uniformes para os soldados malgaxes. Para Paris, foi nome-
ado cônsul geral, em 1876, um mercador francês bem conhecido e muito ligado
a Madagascar, Sr. Hilarion Roux. Para a Ilha Maurício, o cônsul malgaxe foi
Hippolyte Lemiere, um dos membros do Conselho Legislativo da ilha e um
importante negociante
69
. Em 1881, para encorajar ainda mais o comércio, foi
criado o ministério do comércio e da indústria, geralmente chamado ministério
para o encorajamento das artes industriais e das manufaturas”.
No campo do comércio internacional, os dirigentes malgaxes estimularam,
simultaneamente, as empresas privadas e as empresas do Estado. Os principais
funcionários do governo, detentores de capital suficiente, criaram empresas e
comerciaram frutuosamente com a Ilha Maurício, a Reunião e, até mesmo,
com a Europa. Dentre os mais ativos encontrava -se Rainilaiarivony, o próprio
primeiro ministro. O agente de Rainilaiarivony na Ilha Maurício era o cônsul
Lemiere, com o qual ele possuía uma conta bancária pessoal destinada à com-
pra de produtos de luxo notadamente, vestimentas da Ilha Maurício e da
Europa. Entretanto, o papel dos indivíduos apenas completava aquele do Estado.
Como já destacamos, foi o próprio governo que estabeleceu relações comerciais
com as potências estrangeiras e os residentes estrangeiros, graças à assinatura
de tratados, à criação de consulados e à outorga de concessões aos capitalistas
estrangeiros, destinadas à exploração de recursos minerais e naturais do país. As
tradições e a constituição malgaxes interditavam a concessão direta de terras aos
estrangeiros, mas o governo consentia em arrendar terras, nas quais os estran-
geiros podiam estabelecer plantações ou explorar recursos naturais. A primeira
concessão foi outorgada a Joseph Lambert, um aventureiro francês, por Radama,
em 1855, quando ele ainda era príncipe herdeiro; esta concessão, confirmada
sob a forma de tratado em setembro de 1862, foi logo suprimida, mas o governo
habituou -se a conceder outras, principalmente na década de 1880, para favorecer
o desenvolvimento do país, tomando cuidado para evitar todas as condições que
68 Ver, por exemplo, Radama II a Lemiere, 25 de setembro de 1862, anexo, Stenenson a Newcastle, de
novembro de 1862, PRO,FO 167/443; citado também por P. M. Mutibwa, 1972.
69 P. M. Mutibwa, 1972.
515
Madagascar, 1800 -1880
pudessem ameaçar a independência do país. De fato, o Código dos 305 artigos,
promulgado em março de 1881, interditava a venda de terras aos estrangeiros,
cuja punição era a pena de morte.
Conclusão
Neste estudo, examinamos os esforços de modernização empregados pelos
malgaxes para dar uma base firme ao desenvolvimento de seu país. Este processo
começou com a ascensão do rei Radama I ao trono e foi consolidado na primeira
metade do século XIX. O retorno dos estrangeiros, após 1861, o encoraja-
mento do comércio exterior e as influências culturais estrangeiras inauguraram
uma nova era para os malgaxes. O processo de modernização compreendia a
conversão ao cristianismo e a instituição de uma série de reformas destinadas
a mobilizar os recursos humanos e naturais do país, de maneira a atingir um
grau superior de desenvolvimento nos campos político, social e econômico. Tais
reformas, realizadas pelos dirigentes malgaxes, sobretudo a partir da ascensão
ao trono de Radama II, em 1861, foram cruciais para a evolução de Mada-
gascar. Insistiu -se em sustentar que a África foi colonizada porque era pobre
e subdesenvolvida. Por isso, merece ser destacado que Madagascar, durante o
F . Mulheres escravas tirando água e pilando arroz em Madagascar, nos anos 1850. [Fonte: W.
Ellis, ree visits to Madagascar, 1858, J. Murray Publishers, Londres. Ilustração reproduzida com a autorização
da British Library.]
516
África do século XIX à década de 1880
período estudado, por sua vez, empreendeu importantes reformas que, como um
almirante inglês observou em março de 1881, fizeram dos malgaxes “uma raça
capaz de governar o país, tornando inútil qualquer intervenção de uma nação
estrangeira
70
. Entretanto, quando chegou o momento da investida “dos euro-
peus”, o desenvolvimento não protegeu Madagascar da ingerência estrangeira.
Aos olhos de alguns, a modernidade havia enfraquecido o reino
71
; para outros,
as reformas reforçaram a resistência sustentada pelos malgaxes.
70 PRO, FO, 48/34. Extracts from Report of Rear -Admiral W. Gore -Jones.
71 G. Jacob, 1977.
C A P Í T U L O 1 7
517
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
Graves desordens afetaram o Magreb ao longo do século XIX. O fato mais
destacado foi o naufrágio dos Estados autônomos que o constituíam no início
deste século, sob a pressão e em benefício das principais potências europeias:
desde 1830, o regime argelino, baseado no dei, sucumbia sob o repetido assalto
das forças francesas; a Líbia dos Kāramānlī caía novamente sob o domínio
otomano direto, em 1835; a Tunísia, governada pelo bei encontrava -se, em
1881, sob o protetorado da França, aguardando que a Líbia fosse invadida pelos
italianos em 1911 e que o Marrocos o fosse, por sua vez, pelos franceses e pelos
espanhóis, em 1912. É muito evidente que tais acontecimentos políticos não
resumem todas as transformações sofridas: eles coroam, ou precedem, profundas
mudanças, no que tange à economia, à sociedade e mesmo à cultura que, sem
exceção, atravessaram uma crise extrema ao longo do século XIX.
Foi nesta época que começaram a se afirmar o desenvolvimento de uns (dos
países capitalistas europeus) e o “subdesenvolvimento” de outros (do Magreb,
no nosso caso)
1
. Uma abundante literatura contemporânea ensina -nos que os
dois fenômenos estão intimamente ligados. Desta forma, é inútil investigar as
causas das dificuldades da África do Norte, no século XIX, em uma conjuntura
puramente local e atrib-las unilateralmente, como foi feito em uma certa
1 E. J. Hobsbawn, 1977; L. Valensi, 1978.
Novos desenvolvimentos no Magreb:
Argélia, Tunísia e Líbia
Mohamed H. Chérif
518
África do século XIX à década de 1880
época, ao arcaísmo”, às “falhas” e ao atraso secular” próprios das civilizações da
África do Norte e, de um modo geral, não europeias.
No início do século XIX, o Magreb ainda conhecia um relativo equilíbrio,
do qual estudaremos os fundamentos e avaliaremos as forças e fraquezas. Este
equilíbrio foi brutalmente rompido, logo depois de 1815, desde que começou
a ser exercida a expansão europeia, em uma África do Norte tão próxima e
tempos ligada à Europa por relações belicosas (a guerra de corso) ou pacíficas
(comércio). Em diferentes momentos e seguindo modalidades diversas, depen-
dendo das condições locais, o impacto europeu se fez sentir no Magreb e pro-
vocou aí, a curto prazo, diferentes situações segundo os países e, a longo prazo,
os mesmos abalos e o mesmo resultado: o domínio colonial.
Na época, o espaço magrebino dividia -se entre um país juridicamente inde-
pendente, o Marrocos dos alauitas e três regências que tinham o estatuto jurídico
de províncias do Império Otomano, mas que, de fato, dispunham de uma quase
total autonomia: o país de Argel, onde dominava um dei eletivo; o de Túnis onde
reinava, desde 1705, a dinastia dos beis husseinitas; a regência de Trípoli, por
fim, nas mãos da família dos Kāramānlī a partir de 1711. Quais traços comuns
apresentavam os regimes das regências otomanas e a que tipos de sociedades
impunham seu domínio?
O Makhzen no início do século XIX
2
Em Argel, Túnis ou Tpoli, o Estado, ou aquilo que funcionava em seu
lugar – o Makhzen, segundo a consagrada denominação –, se materializava por
um aparelho político -militar mais ou menos sobreposto, marginal em relação ao
corpo da sociedade que ele dominava. Os senhores do poder turcos mais ou
menos assimilados, segundo a situação de cada regência e os shārīf, no Marrocos
acreditavam possuir uma essência diferente daquela de seus súditos. Em seu
círculo, os mais altos cargos eram frequentemente confiados aos mamlūk, antigos
escravos de origem cristã, convertidos e convenientemente domados para os
serviços da corte ou do exército. O pilar dos regimes era constituído por corpos
militares estrangeiros, a saber, as milícias de janízaros turcos. O essencial dos
meios de dominação da sociedade muçulmana era buscado fora do país ou do
corpo social: as moedas fortes (piastras espanholas, em particular), atraídas pelo
comércio marítimo ou pela guerra de corso; as armas modernas” e seus especia-
2 A. Laroui, 1970, p. 244 -267; M. H. Chérif, 1977.
519
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
listas para o exército; o papel para escrever e os números (manejados pelos con-
tadores judeus) para a administração”. Tais meios, por mais rudimentares que
pudessem parecer em comparação com seus equivalentes na Europa, gozavam
de grande eficácia em sociedades nas quais eram pouco familiares. O Makhzen
colocava -se em uma posição intermediária, entre a “modernidade” europeia ou
turca e o “tradicionalismo das sociedades internas, o que lhe permitia dominar
estas últimas e explorá -las em seu benefício e, por um lado, em benefício dos
notáveis citadinos e do capitalismo mercantil europeu; este último, com efeito,
fornecia moedas, armas, papel etc., e obtinha produtos dos campos magrebinos.
Esta exploração foi, em grande parte, responsável por manter as sociedades
rurais interioranas em seu “arcaísmo”, se não pelo seu declínio
3
.
Também não faltavam apoios locais ao Makhzen pré -colonial: agrupamen-
tos guerreiros (makhzen) a seu serviço; notáveis citadinos (fornecendo ka‘id ou
governadores; lazzam ou arrendatários dos direitos do Makhzen; wakīl ou admi-
nistradores etc.); grandes famílias rurais em que eram recrutados os shaykh ou
chefes das comunidades locais; homens de religião, fossem eles ‘ulamā’ (letrados)
nas cidades, murābits (santos) ou chefes de confrarias nas cidades e nos campos,
representando aliados preciosos ao poder que, de alguma forma, legitimavam, e
em favor do qual eles pregavam a obediência. A natureza do regime e, em defi-
nitivo, sua expectativa de duração dependiam da maior ou menor extensão destes
apoios locais: em Argel, a preponderância dos janízaros turcos (pelo menos até
1817) e a dos deis de origem levantina freavam a evolução do poder rumo a uma
certa integração, mesmo parcial, enquanto, em Túnis, os beis assimilavam -se ao
país (continuando a se declararem “turcos”), desde a metade do século XVII,
assim como o faziam os Kāramānlī em Trípoli, desde 1711.
A sociedade citadina
De uma forma geral, o mesmo tecido humano, caracterizado pela superiori-
dade das solidariedades de famílias ou linhagens, e a mesma cultura muçulmana
estendiam -se de uma ponta a outra do Magreb. Todavia, a sociedade citadina
destacava -se mais na parte “tunisiana”. Por sua vez, a kabīla era mais difundida
na Líbia, a ruralidade preponderante no país de Argel e a montanha berbere
mais influente no conjunto marroquino. Isto é um indício da heterogeneidade
do meio humano magrebino: daí podemos distinguir, grosso modo, os citadinos
3 Tais considerações encontram -se largamente desenvolvidas em M. H. Chérif, 1979a.
520
África do século XIX à década de 1880
F . Interior da mesquita de Ketchawa (erguida em 1794), em Argel, em 1833. [Fonte: C. A. Julien,
Histoire de l’Algerie contemporaine. Conquête et colonisation, 1964, PUF, Paris. Ilustração reproduzida com a
autorização da Biblioteca Nacional, Paris.]
521
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
(h‘adhar), os sedentários aldeões, os homens das kabīla e os montanheses, sobre-
tudo berberes.
A cidade, como sabemos, é inseparável da cultura islâmica: daí a importância
de seu papel no espaço magrebino de Rabat e Fez, a Oeste, até Benghazi e Trí-
poli, a Leste, passando por Tlemcen, Argel, Constantina, na regência de Argel,
e por Túnis, Sousse e Kairouan, na regência de Túnis
4
. As cidades representa-
vam no máximo 10 a 15 % da população magrebina, mas elas concentravam as
atividades mais lucrativas e as funções mais importantes: comércio e artesanato
(cujos certos setores frisavam o estágio capitalista, como a fabricação da chechia,
o chapéu tradicional tunisiano, em Túnis
5
), magistério espiritual (cultura, ensino
e justiça religiosa, totalmente fundados no texto escrito), exercício do poder
político, administrativo e militar (o Makhzen representa a cidade e, depois, seu
prolongamento nos campos). Portanto, a cidade diz respeito à economia mone-
tária (em contraste com a economia de subsistência dominante nos campos),
à civilização da escrita (ao passo que o campo é o reino da tradição oral) e à
hierarquização dos homens (em oposição à organização por linhagens e, em
princípio, igualitária da sociedade rural). Esses traços parecem -nos marcados o
suficiente para distinguirmos fortemente a sociedade das cidades daquela dos
campos, não obstante uma base familiar e agnatícia comum
6
.
Gozando destes ltiplos trunfos, resta saber se a sociedade citadina
encontrava -se suscetível a evoluir e, em seguida, a arrastar o resto do país para
transformações radicais, a exemplo do que se desenrolava na Europa nesta
época
7
. Isto recoloca o problema da “burguesia citadina, de sua força ou, antes,
de suas numerosas fraquezas: as técnicas e meios empregados permaneciam,
no conjunto, “tradicionais”, de fraco rendimento e de baixo nível; o domínio
econômico da cidade sobre o campo era bem limitado (em razão da importân-
cia, aqui, da economia de subsistência e da resistência das coletividades rurais
sobretudo das kabīla); a concorrência do capitalismo mercantil europeu era
severa no exterior e chegou até mesmo a assegurar e a controlar as relações, por
4 L. Valensi, 1969a, p. 50 -61; P. Bourdieu, 1970, p. 54 -57; J. Berque, 1978, p. 115 -117, 221 -230, 398 -401,
434 -440; R. Gallissot e L. Valensi, 1968; D. Sari, 1970, p. 3 -12 e 32 -56.
5 L. Valensi, 1969b.
6 L. Valensi, 1977, insiste sobre a homogeneidade do corpo social magrebino, caracterizado pela pre-
ponderância das relações agnatícias patrilineares. De nossa parte, somos sensíveis às diferenças entre as
sociedades rurais e as sociedades citadinas, e temos destacado as especicidades dessas últimas várias
vezes, particularmente em M. H. Chérif, 1979b, e notadamente p. 235 -277.
7 R. Gallissot e L. Valensi, 1968, p. 58 -60; L. Valensi, 1978, p. 574 -586; A. Laroui, 1970, p. 244 -267; J. -C.
Vatin, 1974, p. 104 -110.
522
África do século XIX à década de 1880
F . Uma escola corânica em Argel, 1830. [Fonte: C. A. Julien, Histoire de l’Algerie contemporaine.
Conquête et colonisation, 1964, PUF, Paris. Ilustração reproduzida com a autorização da Biblioteca Nacional,
Paris.]
523
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
vias marítimas, entre os diversos países islâmicos. Esses múltiplos entraves, na
realidade, interditaram um desenvolvimento autônomo à burguesia comerciante
e artesanal. Esta também sofreu a tutela protetora porém, paralisante do
Makhzen, desde que seus negócios ultrapassavam uma certa importância. No
interior, o capital burguês” foi investido de preferência no arrendamento (lizma)
das taxas
8
; no exterior, a associação comercial com um grande personagem era de
praxe: os judeus Bacri e Busnach com o dei de Argel, assim como Hadjdj Yūnis
ibn Yūnis, da ilha de Djerba, com o primeiro ministro tunisiano, por volta de
1800. Contido o seu desenvolvimento, a “burguesia citadina não podia fomentar
a transformação do conjunto da sociedade.
A sociedade rural
Os contemporâneos distinguem claramente o citadino (h‘adharī) do homem
do campo (badawī). Quais os fundamentos desta distinção? De um lado reinava
a cultura escrita, elaborada, e do outro, a oralidade e a tradição repetitiva; no
plano religioso, de um lado o ‘ālim (sábio) ensinava a lei, do outro, o marabuto
operava e o “culto audiovisual triunfava
9
. No plano material, a moeda e as ativi-
dades postuladas por ela animavam a vida das cidades, ao passo que a economia
de subsistência e o fraco desenvolvimento demográfico e tecnológico das forças
produtivas caracterizavam os campos. Do ponto de vista social, se, na cidade,
a hierarquização, assim como a individualização, se faziam sentir, nos campos,
por outro lado, a organização por linhagens, ou mais exatamente, patrilinear,
dominava; os grupos humanos se definiam por sua ligação mais mítica que
real – a um ancestral epônimo (“filho de...”). A sociedade beduína apresentava-
-se formada de segmentos” justapostos, aliados ou opostos, segundo certas
regras ditadas menos pelas ligações de sangue do que pelo meio natural ou pela
necessidade de equilíbrio do conjunto
10
. O princípio de linhagem implicava
o igualitarismo teórico dos irmãos” ou primos”, em certos casos inimigos, a
apropriação coletiva do solo e a solidariedade no trabalho. A decisão pertencia a
um shaykh (ou chefe, etimologicamente, o velho”), eleito ou, mais exatamente,
escolhido pelos chefes de família, em cada nível da subdivisão do grupo.
8 M. H. Chérif, n. d.
9 E. Gellner, 1969, p. 7 -8.
10 E. Gellner e C. Micaud, 1973, p. 59 -66.
524
África do século XIX à década de 1880
Como interpretar esta organização beduína ou rural, esquematicamente des-
crita? Os segmentaristas veem nela apenas um simples modelo, sem bases mate-
riais reais, uma pura reconstituição “estrutural” e mítica da realidade; tudo seria
linhagem e discurso justificador genealógico, nas khabīla, nas aldeias e, talvez, até
no núcleo das cidades
11
. Obviamente, esta interpretação foi objeto de críticas:
acusaram -na de fazer pouco caso dos elementos materiais reais da organização
social, preferindo as bases biológicas destes agrupamentos elementares à adap-
tação a um meio natural muito presente, e de analisar as comunidades rurais
sem referência ao ambiente islâmico ou ao Makhzen, desconhecendo também
o fator da evolução histórica etc.
12
De nossa parte, limitamo -nos a constatar que se os traços “segmentares
eram bem marcados nos lugares retirados e entre as populações afastadas. Por
outro lado, atenuavam -se ou desapareciam nos campos abertos às influências
da cidade ou do mercado: as planícies circundantes das cidades (em um raio
de uma dezena a uma trintena de quilômetros, segundo estimamos
13
), os oásis
ligados ao grande tráfico e algumas regiões especializadas em um produto alta-
mente comercializado (grãos das zonas do mulk [propriedade] cerealífero, óleos
do Sahel tunisiano etc.). Aí, a influência da cidade se fez sentir na economia
(dinheiro ou capital in natura), no regime fundiário (afirmação da proprie-
dade regida pelo direito escrito) e nas relações sociais implicando, em parte,
subordinação e exploração (nestas zonas, a personagem do khammās [rendeiro]
é familiar)
14
. Mesmo que a referência genealógica permanecesse fundamental
e a pequena exploração familiar muito difundida nestes setores “abertos”, estes
não menos apresentam uma certa originalidade, em relação às regiões “tribais”
ou montanhosas.
Extremamente diversas, fragilmente integradas e explorando uma tecnologia
“tradicional” de baixo rendimento, as sociedades magrebinas e o Makhzen que
as dominava, em parte, graças a meios importados, certamente apresentavam
muitas fraquezas, mas conseguiram, apesar de tudo, manter um equilíbrio que,
após 1815, seria irremediavelmente comprometido pelo retorno, em força, das
frotas e dos aproveitadores europeus.
11 Ver supra, notas 6, 9 e 10.
12 A. Laroui, 1977, p. 174 -178; L. Ben Salem, 1982.
13 M. H. Chérif, 1979b.
14 S. Bargaoui, 1982.
525
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
A ofensiva europeia
Em 1815, as guerras napoleônicas chegavam ao fim e tal ofensiva euro-
peia, apoiada em forças, desde então, irresistíveis, se lançava ao Magreb e, logo,
ao resto do mundo. Até 1850 -1860, as exigências do mercado eram as mais
imperativas, pois a produção crescia no ritmo da industrialização na Europa,
os preços baixavam através do mesmo movimento e os termos de troca se dete-
rioravam. Na severa conjuntura da época, a concorrência se exacerbava e a polí-
tica europeia de expansão além -mar tornava -se mais agressiva
15
. Desde 1816,
a frota inglesa de lorde Exmouth, seguida, em 1819, por aquela do almirante
Freemantle, acompanhada desta vez pela divisão naval francesa do almirante
Jurien, vinham declarar às potências “berberes” a interdição da guerra de corso,
decidida pelo concerto das nações europeias. Porém, por trás deste nobre motivo,
dissimulavam -se intenções mercantis, pois que os franceses reclamaram grandes
vantagens comerciais para seus nacionais sobretudo, provençais e os ingle-
ses, para seus clientes italianos e espanhóis rivais dos franceses. Iniciava -se
uma política promissora, cuja finalidade era a submissão dos países magrebinos
às exigências, cada vez mais fortes, da economia e da política europeias
16
. As
instruções dadas ao novo cônsul da França, enviado a Túnis à frente de uma
esquadra, em 1824, destacavam a necessidade de recolocar esta potência infe-
rior (a regência) em relações convenientes à dignidade e aos interesses do reino
(da França)”
17
. O comércio europeu, e sobretudo francês, extraiu os maiores
benefícios desta necessidade”, pois que se desenvolveu rapidamente graças a
um regime excepcionalmente vantajoso, cuja injustiça era revoltante: todas as
combinações, mesmo as mais suspeitas, tinham de antemão seu sucesso garan-
tido, graças ao apoio do interesseiro cônsul europeu. “Se não houvesse berberes,
seria preciso cr-los”, gritava um dos negociantes franceses estabelecido em
Túnis
18
. Do mesmo modo, a honra nacional” encontrava no Magreb satisfações
ou compensações sem grandes esforços: sabe -se que a expedição de Argel, em
1830, foi decidida por um regime em apuros, ansioso por restaurar seu prestígio
e consolidar suas posições na própria França.
15 R. Schnerb, 1957, p. 44 -45; M. H. Chérif, 1970.
16 A. Laroui, 1970, p. 275 e seg.
17 Arquivos do Quai d’Orsay, Correspondência consular, Túnis, vol. 44: Instruções ao Cônsul geral da
França em Túnis, na data de 28 de novembro de 1823”.
18 Ibid., vol. 48, carta de 10 de outubro de 1830 (Deliberações da “nação” francesa em Túnis).
526
África do século XIX à década de 1880
Paralelamente ao comércio, desenvolveram -se negócios de toda ordem e, em
particular, operações de empréstimo ou de usura. Um exemplo dentre outros: na
falta de dinheiro, o bei de Túnis habituou -se a vender aos negociantes europeus,
com recebimento adiantado, o óleo de seu país, cujo comércio ele monopolizava;
em 1828, dado a má colheita, tais negociantes exigiram e obtiveram o reembolso
de seus adiantamentos, segundo a cotação do óleo em Marselha
19
. Entretanto, os
aborrecimentos do bei não haviam terminado. Nos anos 1830, o peso das dívi-
das renovadas recaiu, de um lado, sobre alguns grandes personagens, como
o primeiro ministro, totalmente arruinado nesta ocasião, e, de outro, sobre os
produtores de óleo do Sahel, que tiveram de pagar mais de 2 milhões de francos
entre 1832 e 1845
20
. Com uma suprema sutileza, os negociantes obrigaram o
bei a exigir de seus súditos o dinheiro, e não o óleo, como reembolso de seus
adiantamentos, a fim de reservar para si os benefícios do comércio deste gênero:
eles tomaram o lugar do bei na prática dos adiantamentos aos produtores antes
da colheita, e desde 1838, um certo número destes, devedores inadimplentes,
viu seus bens serem confiscados
21
.
A engrenagem dos empréstimos entrava em funcionamento: em seguida,
se desenvolveria mais. Por volta de 1860, quando os capitais abundavam na
Europa e a taxa de juros baixava, quando os Estados magrebinos – ainda inde-
pendentes em sua maior parte se engajavam rumo às “reformas”, sugeridas
pelos cônsules e conselheiros estrangeiros, a penetração europeia tomou um
outro caminho: de mercante, tornou -se mais financeira. A Argélia se abriu às
empresas capitalistas (a “colonização de luvas amarelas”
22
no domínio agrícola,
os bancos, as empresas de obras públicas, as minas etc.)
23
.
O fenômeno mais típico ocorreu na Tunísia, cujas finanças foram drastica-
mente reorganizadas e, logo, colocadas sob tutela europeia, no espaço de uma
dezena de anos (entre 1859 e 1869, aproximadamente). Empurrado para a via
da modernização e das grandes obras pelos cônsules francês e inglês da época,
o governo do bei se lançou em despesas insensatas para pagar à Europa, a custos
exorbitantes, um material militar ou naval obsoleto (por exemplo, canhões inu-
tilizados de um velho modelo, em 1865), e para fazer com que concessionárias
19 M. H. Chérif, 1970, p. 741 -742; K. Chater, 1984, p. 335 -338.
20 Arquivos gerais do governo tunisiano, registros números 2348, 2349, 2433 etc., citados por I. Saādoui,
em uma dissertação sobre o comércio exterior tunisiano na primeira metade do século XIX, 1980.
21 Ibid. e L. Valensi, 1977, p. 343.
22 Os “colonos de luvas amarelas” eram legitimistas éis a Carlos X de França, que escolheram deixar a
França para não viver sob o regime da Monarquia de Júlio. (N. T.)
23 A. Rey -Goldzeiguer, 1977, p. 583 -606.
527
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
estrangeiras, a condições muito onerosas, efetuassem obras de utilidade duvidosa
(reparo do aqueduto romano de Cartago, construção de hotéis consulares para os
representantes das potências europeias, a partir de 1859 etc.)
24
. Fatalmente, o bei
foi levado a se endividar cada vez mais, primeiro junto aos corretores e agentes
financeiros locais sobretudo judeus de Livorno, sob proteção europeia que
detinham, em 1862, cerca de 28 milhões de francos de crédito, subscritos pelo
governo a taxas usurárias
25
.
A partir de 1863, o bei apelou ao crédito exterior, em princípio menos one-
roso que o crédito local, e empréstimos autorizados pelo governo francês
foram lançados na praça de Paris. Porém, gordas comissões, propinas, intrigas,
ou verdadeiras trapaças, em benefício de homens de negócios ludibriosos euro-
peus (os banqueiros judeus de origem alemã, Erlanger e Oppenheim, o diretor
do Banco de Desconto Pinard etc.) e de agentes pouco escrupulosos do bei (o
primeiro ministro Musthafā Khaznadār) reduziram a um valor insignificante
as somas emprestadas e realmente recebidas pelo beylik
26
. Estes empréstimos
aumentaram rapidamente a dívida nacional: cerca de 100 milhões de francos
no início de 1866, 160 em fevereiro de 1870, para receitas anuais do Estado da
ordem de 10 a 15 milhões de francos
27
.
Em confronto com uma conjuntura muito difícil (as más colheitas de 1866 a
1870, bem como a fome e a epidemia de 1867), o governo do bei logo entrou em
falência: as potências francesa, inglesa e italiana impuseram ao bei uma comis-
são financeira internacional que passou a controlar todos os rendimentos do
Estado tunisiano, a fim de assegurar o pagamento da dívida pública (5 de julho
de 1869) em anuidades fixadas em 6 milhões e meio de francos
28
. O período de
1870 a 1881 foi marcado por uma certa trégua política na Tunísia, favorecida
pelo sumiço da França após sua derrota, e pela honesta e esclarecida gerência
de Khayr al -Dīn, primeiro ministro de 1873 a 1877. Mas a penetração capi-
talista continuou através dos organismos bancários: The London Bank of Tunis,
associado aos Baring, Glynn, Mills etc., de 1873 a 1876; a Société Marseillaise
de Crédit, sustentada pelo Crédit Industriel e associada aos irmãos Péreire, bem
como ao Banco de Desconto, ao Banco dos Países Baixos etc., sobretudo de
1877 a 1881. Operando através de filiais ou em associação com certas empresas
24 A. Ibn Abī -Dhiyāf, 1963 -1964, tomo IV; p. 261 -264; J. Ganiage, 1959, p. 190 -192.
25 J. Ganiage, 1959, p. 195.
26 Ver J. Ganiage, 1959, p. 203 -216, e M. Bdira, 1978, p. 121 -124.
27 J. Ganiage, 1959, p. 335 -402.
28 Ibid.
528
África do século XIX à década de 1880
industriais, como a Société des Batignolles, os consórcios capitalistas arrancaram
vantajosas concessões de um bei desarmado: bancos privilegiados, vias ferroviá-
rias, minas, portos e imensos domínios fundiários
29
. Por meio de sua intervenção
nos trabalhos de infraestrutura e na produção, o capitalismo preparou a via para
a colonização direta do país. Pelos interesses em jogo, ele convocou e justificou
antecipadamente a intervenção política, a saber, a expedição militar que tendeu
rapidamente ao estabelecimento do protetorado francês na Tunísia, aos 12 de
maio de 1881.
Na Argélia, a penetração europeia tomou um rumo um pouco diferente, em
razão da precoce conquista do país, em 1830. Além dos inevitáveis interesses do
capitalismo mercantil e, depois, bancário, os colonos manifestaram seu apetite
pelas terras argelinas e reclamaram -nas às autoridades. Estas lhes outorgaram
as terras solicitadas por diversos meios: confiscações (sobretudo após as grandes
revoltas, como aquela de 1871)
30
; acantonamento, do qual foram objeto e víti-
mas as comunidades rurais (a princípio, em virtude das ordens e das circulares
militares dos anos 1840)
31
; encorajamentos à divisão das terras “coletivas” e à
mobilização da propriedade (lei de 26 de janeiro de 1873, por exemplo)
32
. Um
certo número de tentativas de proteção da propriedade local (comunal, em
particular), como o senatus -consulto de 1863, não teve êxito face à pressão do
meio colonialista”. Em 1882, a propriedade europeia já monopolizava cerca de
1.073.000 hectares (em 1890, 1.337.000), principalmente na zona do Tell
33
. Sem
grandes esforços, podem -se adivinhar as consequências disto para a sociedade
autóctone.
Os fatores da mudança
Sob diversas formas, direta ou indireta, mercantil ou financeira, a penetração
europeia teve por efeito o rompimento do antigo equilíbrio do Magreb. Quais
foram os principais agentes de transformação e segundo qual processo esta
ocorreu? Qual foi o impacto da pressão europeia sobre as diferentes categorias
da população?
29 Ibid., p. 421 -426, 463 -471, 564 -588, 600 -608 e 640 -661.
30 C. R. Ageron, 1968, vol. I, p. 24 -36.
31 C. A. Julien, 1964; A. Rey -Goldzeiguer, 1977, p. 139.
32 C. R. Ageron, 1978, vol. I, p. 78 -88.
33 Ibid., p. 94 -102.
529
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
O comércio marítimo, efetuado por negociantes europeus ou, em raros
casos, por seus agentes ou aliados locais foi o primeiro destes fatores de
mudança. Ele enfraqueceu gradualmente, até tomar seu lugar, o grande comércio
tradicional caravaneiro, ou mesmo marítimo com o Oriente Médio
34
, exceto o
tráfico transaariano da Líbia, que retomou o vigor, por volta de1845, e manteve
suas posições aproximadamente até 1880
35
. No próprio Magreb, os produtos
industriais da Europa (têxteis, produtos metalúrgicos, material militar etc., até
polainas) e os gêneros coloniais importados (açúcar, chá e café) ganharam muito
rapidamente a rica clientela magrebina, seguida por categorias sociais mais
amplas. As importações incharam muito mais rápido que as exportações, provo-
cando uma hemorragia monetária de múltiplas consequências, notadamente no
que concerne às reservas
36
. Em segundo lugar, o produto europeu manufaturado
entrou em concorrência com o produto artesanal similar e acabou suplantando -o
junto à clientela abastada do país ou do exterior: um caso típico foi o da chechia
tunisiana (toca de vermelha), cujas exportações, até 1861 -1862, chegaram a
aproximadamente 3 milhões de francos por ano; em 1864 -1865, apenas repre-
sentavam a metade desta soma; depois, em 1869 -1870, contavam 850.000 fran-
cos; para, enfim, em 1875 -1876, cair para 250.000 francos por ano
37
. É verdade
que a concorrência europeia prejudicava basicamente a produção artesanal de
luxo e o grande comércio, mas o pequeno artesão, tal como o pequeno mercador,
também eram lesados pela perda da clientela abastada, pela desordem monetária,
pela fiscalização tentacular e, por fim, pela pauperização geral.
Este processo, bem como a monetarização da economia em benefício de uma
minoria, foram responsáveis pelo uso generalizado do empréstimo ou, antes, da
usura. Além do endividamento do beylik em Túnis, o qual já evocamos, a usura
exerceu seus estragos até as partes mais remotas dos campos: a correspondência
dos khā‘id [governadores de províncias] tunisianos incidia regularmente sobre a
questão dos créditos – sobretudo em favor dos negociantes europeus, mas tam-
bém, de certos notáveis locais não honrados. Nos registros notariais, conserva-
dos a partir de 1875 na Tunísia, abundam os empréstimos usurários contratados
por humildes camponeses junto a agiotas locais– sobretudo judeus
38
. A situação
foi provavelmente pior na Argélia, onde “infelizmente, é mais do que evidente
34 L. Valensi, 1969a, p. 70 -83; N. Saīdouni, s.d., p. 39 -40.
35 J. -L. Miège, 1975.
36 M. H. Chérif, 1970, p. 728 -729; L. Valensi, 1978, p. 583.
37 P. Pennec, 1964, p. 257.
38 S. Bargaoui, 1983, p. 353 -357.
530
África do século XIX à década de 1880
que os progressos da usura [...] foram uma consequência da ocupação francesa”,
confessou o general Martimprey, subgovernador da Argélia, em 1860. As revol-
tas e as repressões que as seguiram, a desagregação das kabīla e das estruturas
tradicionais, a introdução da economia monetária e dos aproveitadores de toda
espécie até as partes mais remotas dos campos, tudo isso, acrescido dos danos
provocados pelo clima e da avidez do fisco, favoreceu o desenvolvimento da
usura, uma das “sete chagas” da Argélia colonial
39
.
Ligada às dificuldades do Estado na Tunísia e no Marrocos, e à exploração
colonial na Argélia, a fiscalidade, por sua vez, tornou -se pesada, devoradora. Sob
os estímulos da necessidade, o bei da Tunísia estabeleceu, desde o início dos
anos 1820, uma espécie de monopólio do comércio do óleo – principal produto
de exportação.
Ele teve de renunciar ao monopólio através do tratado imposto pela França,
logo após a tomada de Argel, em agosto de 1830. Contudo, ele introduziu
novos monopólios e multiplicou as contribuições indiretas e os arrendamentos
de impostos nos anos 1840
40
; fez uma atualização das taxas e da base tributável
dos antigos impostos que pesavam sobre a produção, e instituiu um imposto
de capitação (i‘āna ou majba), em 1856
41
. A grande revolta tunisiana de 1864
foi provocada pela decisão de dobrar a taxa desta majba. Com alguns anos de
atraso, o Marrocos conhecia as mesmas dificuldades financeiras que a Tunísia
e recorreu aos mesmos desastrosos expedientes para enfrentá -las
42
. Na Argélia,
os autóctones foram obrigados a pagarem os tradicionais impostos árabes” e
novos impostos franceses (lembremos, em particular, a aberrante tarifação
comunal que fez Jules Ferry dizer, em 1892, que se tratava da “exploração do
nativo a céu aberto”). Também tiveram que pagar impostos indiretos, o mon-
tante em dinheiro das diversas corveias, sem falar nas pesadas indenizações de
guerra, em caso de revolta (aquela que se seguiu à insurreição de 1871 absorveu
aproximadamente 70% do valor das terras dos cabilas
43
).
Na nova situação criada pelo abalo das estruturas econômicas e sociais, e
pelo esgotamento das populações pela fiscalização e usura, as tradicionais crises
ligadas ao clima – mais numerosas no século XIX que no XVIII, ao que parece
39 C. R. Ageron, 1968, vol. I, p. 370 -372 e 383 -386; A. Rey -Goldzeiguer, 1977, p. 171 -172 e 484 -485.
40 A. Ibn Abī -Dhiyāf, 1963 -1964, vol. IV, p. 43 -48, 55 -56, 80 -83, 144 -156; L. C. Brown, 1974, p. 134 -137
e 340 -349; K. Chater, p. 553 -560.
41 A. Ibn Abī -Dhiyāf, vol. IV, p. 203 -208; J. Ganiage, 1959, p. 101 -102.
42 J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. II, p. 225 -243; G. Ayache, 1979, p. 97 -138.
43 C. R. Ageron, 1968, vol. I, p. 249 -265. Citação de Jules Ferry, p. 452.
531
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
tomaram, desde então, proporções catastróficas. Aquelas de 1866 -1869, na
Tunísia e na Argélia, e de 1878 -1881, no Marrocos, fizeram um corte na popu-
lação e enfraqueceram, irremediavelmente, a economia e a sociedade local
44
.
Os beneciados da crise
Como alhures, aproveitadores se beneficiaram da situação que prevaleceu
no Magreb da época. Primeiramente, a colônia europeia, contando na Argélia,
aproximadamente 164.000 indivíduos em 1855, 245.000 em 1872 e 375.000
em 1882
45
. Na Tunísia, ela aumentou para cerca de 11.000 pessoas em 1856,
14.000 em 1870 e por volta de 19.000 em 1881
46
. Na Líbia, os efetivos conti-
nuaram fracos até os primeiros anos do século XX. Ainda que a maioria destes
europeus da Argélia e da Tunísia tivesse uma condição modesta, eles também
se encontravam em uma posição muito privilegiada em relação à maioria dos
autóctones. Da mesma forma, uma minoria de judeus conseguiu se integrar, de
uma forma ou de outra, nos circuitos capitalistas europeus e se beneficiou com
o papel de intermediária entre tais circuitos e a massa dos autóctones
47
. Alguns
muçulmanos, embora raros, chegaram a desempenhar este papel: agentes dos
cônsules, corretores e, sobretudo, associados das casas de comércio europeias, que
rapidamente buscaram se livrar da autoridade muçulmana para se colocarem sob
a proteção dos cônsules europeus na Tunísia, Líbia e Marrocos
48
. Mais célebre
foi o caso dos grandes servidores do Makhzen que exploraram suas funções para
se enriquecer desmedidamente, favorecidos pelas turvas circunstâncias sofridas
pelo país: assim, Musthafā Khaznadā, primeiro ministro tunisiano de 1837 a
1873, acumulou uma fortuna estimada, por baixo, em aproximadamente 25
milhões de francos, cuja maior parte foi depositada na França
49
.
Nos campos, o poder colonial na Argélia e a autoridade enfraquecida do
bei na Tunísia tiveram que se apoiar sobre certas autoridades, que exerceram
uma espécie de poder “feudal” em detrimento de seus administrados, tais como
44 L. Valensi, 1977, p. 307 e 315; J. Poncet, 1954, p. 316 -323; A. Rey -Goldzeiguer, 1977, p. 441 -493.
45 C. R. Ageron, 1979, p. 118 -119.
46 J. Ganiage, 1959, p. 44 -45; A. Mahjoubi, 1977, p. 33, nota 84.
47 J. Ganiage, 1959, p.312 -313; A. Laroui, 1977, p. 310 -314.
48 Primeiros passos da questão da proteção “inel concedida a muçulmanos, relatados de uma maneira
favorável à tal proteção em Ibn Abī -Dhiyāf, 1963 -1964, vol. IV, p. 117 -118; J. Ganiage, 1959, p. 181 -182.
Para o Marrocos, ver A. Laroui, 1977, p. 251 -254 e 314 -315; B. Brignon et al., 1967, p. 291 e 294.
49 J. Ganiage, 1959, p. 426 -436.
532
África do século XIX à década de 1880
Mukrānī, até sua revolta e morte em 1871, na Argélia
50
, e Alī ibn Khalīfa, no
Sudeste tunisiano, de 1840 a 1881 (antes de ele comandar a resistência contra
a França nesta última data e antes de seu exílio na Líbia)
51
. Parece -nos ser da
mesma ordem a ascensão de certas famílias religiosas que monopolizaram, here-
ditariamente, os altos cargos, fosse do islã letrado e quase oficial (sobretudo na
Tunísia)
52
, fosse do islã confrérico (na Argélia e no Marrocos)
53
.
As vítimas da crise
As vítimas foram inúmeras a sofrer da conjunção dos múltiplos fatores
evocados: más colheitas, consequências da integração do Magreb ao mercado
mundial, fiscalidade imoderada, aos quais se juntaram, no caso da Argélia, as
devastações da guerra de conquista e os rigores da lei do vencedor, que implicou
na monopolização de uma parte das melhores terras por uma minoria estran-
geira. Disso resultou, sem tardar, a pauperização quase generalizada e a desor-
ganização das estruturas tradicionais, conduzindo, inevitavelmente, à catástrofe
econômica e demográfica, como foi o caso da crise de 1866 -1869
54
.
Quais foram as reações das vítimas? A princípio, a resignação “fatalista”,
denunciada à porfia por todos os observadores europeus das sociedades muçul-
manas no culo XIX: A resignação é ainda mais forte que a cólera neste
extraordinário islã”, ou, antes, nesta nova confederação dos mortos de fome”,
escreveu Masqueray, em 1892, a propósito dos muçulmanos da Argélia
55
. Destas
disposições, como, anteriormente, da vontade de lutar, teriam aproveitado os
monges maometanos locais e confrarias, raras barreiras de resistência em um
mundo que partia à deriva
56
. Desde o princípio do século XIX, não sem relações
com os graves acontecimentos que agitavam certas regiões do mundo desta
época, e logo, o próprio Magreb, constata -se uma clara reativação da instituição
confrérica: entre os plebeus darkāwa, em revolta contra a ordem turca nos pri-
meiros anos do século XIX, entre os notáveis tijāniyya, inclinados à meditação
50 M. Lacheraf, 1978, p. 53 -60; biograa de Mukrānī em A. Rey -Goldzeiguer, 1977, p. 775.
51 A. Kraiem, 1983, p. 145 -158.
52 A. H. Green, 1978, p. 93 -95. A tendência exclusivista das grandes famílias religiosas se acentuou a partir
dos anos 1860 e depois, não sem relação com a crise do país e do regime.
53 Ver infra, notas 55 e 56 abaixo.
54 Ver supra, nota 43.
55 Citado por C. R. Ageron, 1968, vol. I., p. 128.
56 J. Berque, 1978, p. 423 -429.
533
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
interna e ao compromisso com as autoridades (até mesmo francesas, após 1830),
entre os kadirīyya e os rahmāniyya, que dirigiram, em um momento ou em outro,
a luta contra o ocupante. O fenômeno foi particularmente bem observado e
estudado na Argélia, onde o desmantelamento do islã letrado e citadino e, de
uma forma geral, dos quadros tradicionais da sociedade teria uma vez mais feito
refluir as massas muçulmanas para os zāwiya (santuários) e confrarias
57
. Parece-
-nos que, também na Tunísia do século XIX, estas últimas manifestaram uma
nova vitalidade, após um longo período de relativa atonia, e que certos monges
maometanos ou representantes de confrarias ganhavam um destaque particular
na época
58
. Tal tendência era ainda mais clara no Marrocos, terra predileta dos
zāwiya e das confrarias!
Na outra extremidade do Magreb, nos confins do Egito, foi fundada, em
1843, a zāwiya sanūsiyya, que, em cerca de sessenta anos, edificou uma verda-
deira potência religiosa e política, não somente em Cirenaica, como também
para muito além, no Sudão, no Saara e alhures: por volta de 1900, ela contava
com até 146 filiais
59
. Embora faltassem estudos precisos sobre as relações entre
a agressão europeia e o desenvolvimento marabuto e confrérico, não hesitamos
em observar uma ligação de causa e efeito entre os dois fenômenos.
Outra consequência da penetração ou da conquista europeia: as revoltas se
multiplicaram, ganhando cada vez mais amplitude no Magreb do século XIX.
Forma elementar de resistência ou meio de sobrevivência, o ato individual de
banditismo, de roubo, de incêndio ou de degradação das florestas tornou -se
um fato cotidiano do campo, sobretudo nas épocas de crise (caso da Tunísia
dos anos 1860)
60
. As revoltas locais também foram numerosas, não somente na
Argélia, ocupada até 1881 (data da última grande insurreição das kabīla no Sul
de Orã)
61
, mas também no Marrocos e na Tunísia, onde voltaram à cena, desde
1815, após uma calmaria de mais de meio -século. Algumas, mais estendidas,
mobilizaram vastas regiões, senão todo o país: levantes das kabīla e monta-
nheses líbios contra os ocupantes otomanos, ao curso dos quais se ilustraram
lendários heróis Ghūma al -Mahhmūdī e ‘Abdul -Djalīl e exprimiram -se os
57 C. R. Ageron, 1968, vol. I, p. 293 -301; Y. Turin, 1971, p. 110 -115, 129 -145.
58 L. C. Brown, 1974, p. 174 -183; A. Ben Achour, 1977, p. 218 -222; A. H. Green, 1978, p. 65 -67 (ver notas
40, 41, 42, 43, 44 em particular).
59 E. E. Evans -Pritchard, 1949.
60 Informações abundantes sobre a turbulências dos campos na Correspondência dos kā‘īd (governadores
de província), conservada nos Arquivos Gerais do Governo tunisiano; M. H. Chérif, 1980.
61 M. Lacheraf, 1978, p. 69 -87; Atas do Colóquio ocorrido em Argel, em fevereiro de 1982, sobre o tema
da resistência armada na Argélia ao longo do século XIX.
534
África do século XIX à década de 1880
lineamentos de uma primeira consciência árabe” na luta contra os turcos (por
volta de 1835 -1843)
62
; insurreição de todas as kabīla tunisianas, coligadas em
1864 quando o endividamento externo provocou um agravamento da fiscali-
dade; abrasamento da Kabilia e das regiões vizinhas na Argélia, em 1871, com
a notícia do advento do regime civil favorável aos colonos e na ocasião da
derrota da França frente à Prússia. Todas estas grandes sublevações fracassaram,
tanto por causa do poder de fogo dos exércitos regulares, quanto em razão da
divisão – estrutural das khabīla insurgidas.
As tentativas de reformas empreendidas aqui e acolá para restaurar o equilí-
brio comprometido revelaram -se completamente ineficazes: nós as estudaremos
no quadro da situação dos diferentes países magrebinos.
A Argélia
Em datas variáveis, os países do Magreb caíram sob a dominação europeia
direta: a Argélia, em 1830; a Tunísia, em 1881; a Líbia, em 1911 e o Marrocos,
no ano seguinte. É evidente que esta diferença cronológica não resulta de sim-
ples acidentes históricos, mas, sim, da intensidade da resistência interna.
De todos os regimes magrebinos do início do século XIX, a regência de Argel
conservara mais nitidamente seus caracteres alógenos, pelo menos na esfera
de Argel e do governo central: este não deixava de ser o apanágio exclusivo
dos turcos, que souberam manter, por muito mais tempo que em outro lugar,
seus privilégios de “casta” dominante. A razão desta originalidade argelina seria
encontrada na ruralidade mais acentuada do país em relação ao resto do Magreb:
lá, a sociedade era mais dividida e mais segmentada que alhures; a classe “bur-
guesa (baldī), que poderia ter assimilado os conquistadores, era mais fraca; e a
cultura citadina menos desenvolvida.
Poderíamos deduzir disso um certo imobilismo do regime político argelino?
É pouco provável. Ao longo do século XVIII, uma espécie de oligarquia restrita,
sempre turca, se consolidou em Argel, em detrimento da turbulenta milícia
dos janízaros; ela recrutou o dei em seu seio e conferiu uma maior estabilidade
às instituições centrais. O sentido da evolução era claro: recuo progressivo do
elemento puramente militar e alógeno, em proveito da fração política” da classe
dirigente. Seu resultado foi a revolução de Alī Khūdja, que, em 1817, dominou
62 Arquivos Gerais do Governo tunisiano, caixa 184, autos 1020 -1023; ver, em particular, a carta de Ghūma
ao bei de Túnis, datando de 10 l -ki‘da 1271 (m de julho de 1855), auto 1020.
535
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
a milícia e se apoiou em elementos locais kologlu (mestiços de turcos e árabes)
e zwāwa (cabilas)
63
. Foi exatamente a evolução “tunisiana ou “tripolitana”, mas
com um século de atraso. Nas províncias (beylik) do Leste ou do Oeste, as
mudanças foram mais precoces: desde o século XVIII, os beis foram levados a
contar com forças armadas basicamente “árabes” e a praticar uma hábil política
de aliança com os notáveis locais
64
. Esta é uma das razões pelas quais a resis-
tência à ocupação francesa nestas províncias foi mais longa e mais obstinada
que em Argel e em sua região. Tais índices de evolução não impediram que o
regime “argelino”, em seu conjunto, conservasse, quase até o fim, seu caráter
alógeno, gerador de contradições e de conflitos agudos. Graves levantamentos de
origem religiosa – confrérica – sacudiram o Oeste do país, entre 1803 e 1805, e
uma boa parte da Kabilia, em 1814 -1815
65
. Uma espécie de reação nacional”
se desenhava antes da conquista francesa; ela prefigurava a empreitada de ‘Abd
al -Kādir, logo após esta conquista.
A expedição de Argel foi decidida por razões de política interna francesa,
mas não correspondia muito às exigências da economia e da sociedade da França
da época: daí as flutuações e as contradições da política francesa logo após sua
vitória. Pensou -se, em particular, na ocupação restrita de certas porções litorâ-
neas em torno das principais cidades. Em função disso, o interior do país foi
entregue a chefes importados (príncipes tunisianos foram propostos em 1830
e 1831), ou escolhidos após negociações com aqueles que detinham realmente
o país: o bei Ahhmad de Constantina, em 1832, e, em seguida, o emir Abd
Al -Khādir
66
.
Ao contrário do seu rival de Constantina que perpetuou o sistema turco ou
kologlu –, aperfeiçoando -o, de 1830 a 1837
67
, e dos marabutos milenaristas (Bū
Ma‘za, na região do Wādī Chelif, entre 1845 e 1847, o “sultão” de Wargla, um
outro mahdī político”, no Sudeste argelino, em 1851 -1853)
68
, Abd Al -Khādir
tentou fundar um verdadeiro Estado nacional” e fazer eclodir uma certa nacio-
nalidade árabe (segundo os seus próprios adversários)
69
. Nascido em 1808 em
63 P. Boyer, 1970a, p. 121 -123; 1970b, p. 92.
64 P. Boyer, 1970b, p. 87 -88; A. Laroui, 1970, p. 248 -249.
65 P. Boyer, 1970a, p. 119 -121; N. Saīdouni, s.d., p. 59 -61.
66 No que concerne ao emir Abd Al -Kādir, dispomos de uma importante bibliograa; ver, por exemplo,
M. Lacheraf, 1978; A. Sa‘dallah, 1983, vol. II, p. 40 -46; R. Gallissot, 1965; C. R. Ageron 1977, vol. I, p.
19 -49.
67 A. Temini, 1978.
68 A. Rey, 1978.
69 Ver nota 65 acima.
536
África do século XIX à década de 1880
uma família de marabutos, ele foi e permaneceu, antes de mais nada, um homem
de estudos (ālim) e um reformista, no sentido da época: ele pregou o retorno às
fontes da fé, condição primeira da regeneração da umma. No estado de anarquia
em que o país se encontrava mergulhado, chefes de kabīla e marabutos de O
elegeram -no como chefe único da resistência, em novembro de 1832.
Por seu carisma pessoal, pela diplomacia ou pela força, Abd Al -Khādir con-
seguiu, no auge de sua potência, em 1839, unir ao seu redor as populações dos
dois terços da Argélia. Por isso, na perspectiva de uma ocupação restrita, as
autoridades francesas (Desmichels, em 1834; Bugeaud, em 1837) estabeleceram
um acordo com ele e reconheceram sua autoridade no interior do país, em troca
de sua aceitação da ocupação francesa nas regiões litorâneas. Estas autoridades
francesas até mesmo prestaram -lhe ajuda, em certas ocasiões, contra seus adver-
sários. Pouco a pouco, Abd Al -Kādir foi levado a conceber uma organização
estatal, se não centralizada, pelo menos unificadora, inspirada, simultaneamente,
nos princípios corânicos (fiscalidade, justiça) e nas realidades locais (adequação
da organização “administrativa e guerreira ao estado social do país). O que foi
reconhecido pelo próprio Bugeaud, o vencedor de ‘Abd Al -Khādir:A organi-
zação do emir, baseada [...] em um perfeito conhecimento das localidades, das
relações das tribos entre elas, dos interesses diversos, em uma palavra, em uma
grande inteligência dos homens e das coisas, deveria, a meu ver, ser conservada”.
Este esboço de Estado nacional”, do mesmo modo que os sentimentos religio-
sos e patrióticos, intimamente ligados, aos quais fez apelo, explicam o vigor e a
duração da resistência do “emir dos crentes” (de 1832 a 1847). Mas o fantástico
distanciamento entre suas forças e as de seus adversários (Bugeaud mobilizou
mais de cem mil soldados contra ele), a tática da terra queimada à qual recorreu
este último e, sobretudo, o estado de divisão da sociedade argelina da época
acabaram por vencer a resistência do indômito emir: encurralado em toda a
Argélia, como no Marrocos, onde ele buscou refúgio, acabou se rendendo aos
franceses no fim de 1847.
Depois de muitas hesitações e dificuldades, a sociedade e as instituições
coloniais implementaram -se progressivamente. Colocada sob a alta autoridade
de um governador geral, a Argélia foi dividida em território civil”, onde se
instalaram os europeus e se desenvolveram as instituições francesas, e em “terri-
tórios militares”, onde as populações muçulmanas foram submetidas aos poderes
discricionários do exército. Sob o Segundo Império, ao mesmo tempo em que se
desenvolvia a colonização capitalista, tentava -se consolidar o poder dos grandes
chefes locais, a fim de buscar apoio junto a eles para a administração dos “ter-
ritórios militares” (experiência do famoso “reino árabe”). Mas as boas intenções
537
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
do imperador resultaram na catástrofe econômica para a sociedade muçulmana
dos anos 1867 -1869, e na debandada militar francesa de 1870
70
.
Tal fato e, mais ainda, a ameaça da extensão do regime civil – equivalente ao
triunfo dos colonos europeus provocaram a grande insurreição da Kabilia e
das regiões vizinhas, em 1871, conduzida por grandes “senhores feudais”, como
Mukrānī, e pelos quadros de certas confrarias (sobretudo os da Rahmāniyya).
Violentamente aniquilada, seguiu -se à revolta a ruína material das populações
concernentes (800.000 indivíduos que tiveram que pagar reparações equivalen-
tes a mais de 70% do valor de suas terras)
71
. A partir daí começou o reinado do
partido dos colonos, que correspondeu ao período mais sombrio da noite colo-
nial” para a população muçulmana: pauperizada, em boa parte desestruturada
e aculturada, submissa a um severo regime de exceção, a sociedade autóctone
podia, enfim, ser explorada a “céu aberto”, em benefício da minoria europeia,
praticamente a única representada nas instâncias comunais, departamentais e
centrais. Os únicos que tomavam a defesa dos muçulmanos, antes de 1891, eram
alguns simpatizantes da causa autóctone, agrupados basicamente na Sociedade
para a Proteção dos Indígenas (fundada em 1881)
72
.
A Tunísia
País mais aberto às influências externas e o mais centralizado do ponto de
vista político, lhe foi possível, no início, tentar a experiência das reformas de
inspiração ocidental e sofrer o mais agudo fracasso com exceção da Argélia.
Uma burguesia” relativamente ativa entretinha relações comerciais, em
particular com o Oriente Médio, enquanto uma classe dirigente engajada no
comércio exterior tratava principalmente com os negociantes europeus. A pres-
são desses diferentes interesses comerciais e o poder dos notáveis locais influí-
ram rapidamente sobre o regime político, cujos caracteres militares e alógenos
atenuaram -se progressivamente, à medida que se desenvolvia, desde antes do
começo do século XVIII, uma espécie de monarquia seminacional”. Sem negar
sua fidelidade otomana, nem renunciar à utilização dos janízaros e dos mamlūk
(permanecendo, ambos, como pilares do edifício do bei), o regime multiplicou
70 A. Rey -Goldzeiguer, 1977, p. 545 -547 e 686 -688.
71 Ver supra, nota 29.
72 C. R. Ageron consagrou a esta época sua tese monumental (1968), abundantemente utilizada neste
trabalho. A Sociedade para a Proteção dos Indígenas é citada no vol. I, p. 414 e seg.
538
África do século XIX à década de 1880
suas alianças e apoios no país, de forma a ampliar seus fundamentos e assegurar
a estabilidade, atingindo incontestavelmente seu apogeu na época de Hammūda
Pacha, de 1782 a 1814
73
.
Desde os dias que seguiram a instauração da paz na Europa, em 1815, as
grandes potências cristãs exigiram e obtiveram facilmente do bei de Túnis a
abolição da guerra de corso e a abertura de seu país ao comércio e às empresas
dos naturais destas potências.
Já evocamos as nefastas consequências econômicas e financeiras desta aber-
tura para o país tunisiano. Acrescentou -se a isso, ao longo dos anos 1830, a
proximidade do perigo militar representado pelo Império Otomano, instalado
em Trípoli desde 1835, e pela França, que entrara em Constantina em 1837.
A exemplo de Muhammad Alī do Egito e de Mahmūd II da Turquia, o bei
de Túnis, Ahmad (1837 -1855), decidiu, por sua vez, contrair empréstimo da
Europa. Aliás, ele fora empurrado para este caminho por razões diferentes, mas
também egoístas – pelo suserano otomano e pelos cônsules das grandes potên-
cias
74
. Ele logo empreendeu uma audaciosa política de reformas que, todavia, era
precipitada, e que de nenhuma forma levou em conta as possibilidades humanas
e financeiras do país. Um novo exército (nizāmī) foi organizado: emprestava do
ocidente armas, técnicas, métodos e até detalhes do uniforme e da parada. Seus
efetivos foram recrutados por meio do alistamento e seus quadros formados
por uma “escola politécnica”, aberta no Bardo nesta intenção. A fim de prover
as necessidades deste exército, Ahmad Bey fundou manufaturas modernas de
canhões, pólvoras, lençóis e sapatos. Diante dos problemas financeiros suscita-
dos por estas novas criações, o bei empreendeu rapidamente a reformulação do
antigo sistema fiscal e da organização administrativa; até mesmo um banco de
emissão foi criado em um certo momento. Ultrapassando o quadro estritamente
utilitário, o bei tomou certas decisões contrárias às tradições locais, se não aos
ensinamentos do Alcorão: em 1846, um ano antes da Turquia e dois anos antes
da França na Argélia, ele decretou a abolição da escravidão em suas províncias;
primeiro chefe de Estado não europeu a ir a Europa, ele efetuou uma viagem
oficial à França, em 1847. De outro lado, ele encetou uma certa nacionalização
do Estado pela redução dos privilégios dos turcos, não no seio do exército,
mas até entre os ulamā’ (letrados do islã), cujos membros turcos e autócto-
nes foram colocados em de igualdade; ele também fez claramente apelo ao
patriotismo dos filhos da terra”.
73 M. H. Chérif, 1978.
74 A. Ibn Abī -Dhiyāf, 1963 -1964, vol. IV. p. 9 -182; L. C. Brown, 1974; K. Chater, 1984, p. 483 -583.
539
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
F. Membros do nizāmī [exército] tunisiano com uniformes de estilo europeu. [Fonte: C. de
Chassiron, Aperçu pittoresque de la Régence de Tunis, 1849. Imprimerie de Bénard, Paris. Ilustração reproduzida
com a autorização da Biblioteca Nacional, Paris.]
Como vimos, o programa de reformas era ambicioso, porém não alcançou
os resultados previstos: no seio do exército regular, o recrutamento, o treina-
mento, o equipamento e a disciplina deixaram a desejar; as manufaturas, em
sua grande parte, em razão do grande custo das instalações, jamais puderam
funcionar. Símbolo do fracasso da obra de Ahmad Bey, uma grande fragata,
construída em uma doca seca de La Goulette, nunca pôde juntar -se ao mar,
pois o canal de acesso era estreito demais. Pior ainda, estas custosas inovações
esgotaram rapidamente as finanças do bei: daí o agravamento da fiscalidade, o
apelo a expedientes ruinosos (setenta arrendamentos foram confiados ao pouco
delicado, mas onipotente, Mahmūd ibn Ayyād, por exemplo) e, em definitivo, a
impopularidade das reformas e do próprio regime
75
.
É inútil demorarmo -nos sobre as razões do fracasso de Ahmad Bey, já que a
mesma experiência modernizadora, engajada no Egito, na Turquia e, mais tarde,
75 Ibid.
540
África do século XIX à década de 1880
no Marrocos, provocaria os mesmos resultados negativos. Digamos, em linhas
gerais, que as reformas eram pouco adaptadas ao meio humano que elas deviam
transformar: por outro lado, os países europeus avançados não tinham nenhum
interesse no êxito de tais reformas, pois essas constituíam, antes de tudo, a opor-
tunidade de frutíferos mercados para seus residentes e seus associados locais.
Quando da morte de Ahmad Bey, em 1855, o balanço de seu reinado era
negativo. Se as reformas deram poucos resultados práticos (com exceção dos
germes do Estado -nação e da constituição de um meio – de corte – favorável ao
modernismo), elas haviam aumentado o risco de uma intervenção estrangeira e
acentuado as fraquezas internas. Estas foram exploradas pelos cônsules e pelos
aproveitadores europeus, bem como por seus aliados locais judeus sob proteção
estrangeira e grandes da corte, em sua maioria.
Por volta de 1856 -1857, a pressão das potências europeias em prol de “refor-
mas” se fazia mais viva. Reformas estas que deveriam preparar o terreno para o
desenvolvimento de negócios propriamente capitalistas.
Sob a ameaça do exército, os cônsules ingleses e franceses fizeram com que
Muhammad Bey, sucessor de Ahmad Bey, adotasse o Pacto Fundamental ou
ahd al -amān, aos 10 de setembro de 1857: além da afirmação geral da segurança
da vida e dos bens dos habitantes da regência, este texto outorgava, sobretudo,
direitos e garantias às minorias não muçulmanas (dentre os quais os direitos à
propriedade e ao livre exercício de qualquer função), além de proclamar a liber-
dade do comércio
76
. O Pacto foi um preâmbulo para uma constituição mais
detalhada, que seria rapidamente elaborada e aplicada, aos 24 de abril de 1861.
Primeira de seu gênero no mundo arabo -muçulmano, ela estabelecia o princípio
da separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, portanto, um regime
constitucional. Por outro lado, Túnis foi dotada de um conselho municipal em
1858; ministérios e administrações foram reorganizados e uma gráfica foi criada
para publicar, notadamente, um hebdomadário
77
.
Inadaptadas à sociedade e ao comportamento da época, além de ser de ins-
piração estrangeira, estas reformas, como supomos, conheceram a sorte daquelas
que as precederam do tempo de Ahmad Bey. Elas foram acompanhadas de uma
maior abertura do país às empresas europeias. As trocas externas tomaram um
grande impulso; as importações do Estado tunisiano asseguradas do lado fran-
cês pela casa Rothschild se multiplicaram; os ingleses obtiveram a concessão
de terras, o direito de estabelecer um banco preferencial, aquele de construir
76 A. Ibn Abī -Dhiyāf, 1963 -1964, vol. IV, p. 240 -244.
77 J. Ganiage, 1959, p. 76 -88.
541
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
uma via ferroviária (empresas que periclitariam rapidamente). Os franceses se
encarregavam do fornecimento de material militar e obtinham a adjudicação de
importantes obras evocadas
78
. As despesas da regência aumentavam perigosa-
mente, ao passo que seus rendimentos se encontravam reduzidos pelo abandono
dos monopólios (uma das cláusulas do Pacto Fundamental) e pelos privilégios
concedidos aos europeus: logo caiu no endividamento. A fim de enfrentar as
despesas correntes e o reembolso dos empréstimos, o bei decidiu dobrar a taxa
do imposto de capitação, no final do ano de 1863.
Este foi o sinal da insurreição de 1864, que reagrupou praticamente todas
as kābīla e uma parte dos camponeses sedentários, ligados contra o abuso fiscal
e a funesta política de reformas. Durante três a quatro meses, os insurgidos
mostraram uma bela disciplina em sua ação contra o beylik e seus agentes: mas,
as promessas do bei e as intrigas de sua corte logo venceram a unidade e a
determinação dos revoltados: uma após a outra, as kābīla depuseram as armas e
as regiões sedentárias sofreram uma severa repressão, após o que elas não mais
deveriam se reerguer
79
.
Pelo fato de o país conhecer uma série de más colheitas, de 1866 a 1870,
e mesmo um terrível período de fome, acompanhado de uma epidemia de
cólera, em 1867, a situação financeira do beylik tornou -se ainda mais precária.
A bancarrota era inevitável. Aos 5 de julho de 1869, uma comissão financeira
internacional havia se instalado em Túnis, a fim de exercer seu controle sobre
os rendimentos do beylik e de assegurar o reembolso da dívida pública (aproxi-
madamente 6 milhões e meio de francos por ano)
80
.
Medidas draconianas permitiram melhorar um pouco a situação, ainda mais
porque a França, principal potência interessada na ocupação da Tunísia, per-
dera muito de seu prestígio após a derrota de 1870. Em 1873, o venal Mustafā
Khaznadār, no governo desde 1837, foi descartado em benefício de Khayr
al -Dīn, homem de Estado íntegro e clarividente
81
. Por medidas concretas e
voluntariamente limitadas, ele tentou reanimar a vida econômica e, sobretudo,
agrícola, melhor regulamentar e moralizar a administrão, e promover um
ensino moderno (deve -se a ele, em particular, a fundação do colégio Sādikī,
que desempenharia um grande papel na vida cultural e, até mesmo, política da
Tunísia colonizada). Por outro lado, ele se serviu de uma boa conjuntura agrícola,
78 Ver supra, nota 23.
79 J. Ganiage, 1959, p. 267 -270; B. Slama, 1967.
80 Ver supra, nota 27.
81 V. M. Bayram, 1885, vol. II, p. 46 -93; G. S. Van Kriecken, 1976, p. 161 -272.
542
África do século XIX à década de 1880
de 1873 a 1875. Porém, a volta das vacas magras e o restabelecimento do crédito
francês na Tunísia, a partir de 1876, criaram -lhe cada vez mais dificuldades, até
sua queda, em julho de 1877. Imediatamente, houve a volta à incompetência e
à trama, além do retorno ao desastre: nada é mais sintomático desta triste época
que o sucesso político do antigo favorito do bei, Mustafā ibn Ismā‘īl, o todo-
-poderoso, até a entrada das tropas francesas na Tunísia e a assinatura do tratado
de protetorado, imposto ao bei aos 12 de maio de 1881
82
.
A Líbia
Antes de 1880, a mais desértica e saariana parte do Magreb, a Líbia, pro-
víncia otomana, excitou menos as cobiças europeias e, portanto, preservou por
muito tempo características e vida econômica próprias: a prova disso foi a vita-
lidade do comércio das caravanas, aproximadamente até 1903 (Trípoli) e mesmo
até 1911 (Benghazi).
Por volta de 1800, a Líbia compreendia uma verdadeira cidade, Trípoli, algu-
mas outras cidades costeiras, dentre as quais Benghazi e Darna, e alguns centros
nos oásis (Ghadāmes, Murzuk e Awdjīla). Apenas um punhado de camponeses
(hawāra) cultivava as poucas terras aráveis de Misrata, em Zwara, ao passo que
a esmagadora maioria dos habitantes praticava o nomadismo pelo interior. Este
era praticado, fosse pelos criadores de carneiro, em curtos percursos bastante
regulares (urūba), fosse pelos cameleiros, às vezes por vastos percursos muito
irregulares (bawādi).
As coletividades mais potentes eram, paradoxalmente, aquelas que viviam
mais distante no deserto. Em qualquer época, o governo do país, estabelecido
em Trípoli, devia estabelecer um compromisso com as potências do deserto para
que a paz reinasse. Na costa, até 1815, o grande comércio, o comércio regional, o
artesanato e a guerra de corso alimentaram as cidades e sua burguesia de gran-
des famílias militares (karāghla), comerciantes (tudjdjār) ou letrados religiosos
(‘ulamā’), que, desde 1710, formavam os pilares de sustentação da dinastia local
kāramānlī
83
.
Após uma luta particularmente obstinada pelo poder, a dinastia se resta-
beleceu sob o reinado de Yūsuf Kāramānlī, a partir de 1794. Este reanimou o
comércio transaariano e relançou a guerra de corso, o que levou a uma guerra
82 V. M. Bayram, 1885, vol. II, p. 97 -115; J. Ganiage, 1959, p. 476 -491.
83 A. Barbar, 1980, p. 33 -43 e 96 -121.
543
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
com os Estados Unidos da América, de 1801 a 1805
84
. Porém, Yūsuf triun-
fou. Por outro lado, a interdição da guerra de corso decretada pelas potências
europeias em 1815 e a pressão naval que a acompanhou criaram dificuldades
de tesouraria. A arrecadação de impostos que se seguiu gerou resistências que,
finalmente, levariam à abdicação de Yūsuf, em 1832
85
. No início de seu reinado,
duas coligações de nômades, dirigidas respectivamente pelos Mahamid (‘urūba)
e pelos Awlād Sulaymān (bawādi), contestaram a extensão do poder central em
Tripolitânia, sobretudo após terem ocupado os centros de Fezzān, em 1804. Mas,
graças aos meghara, dirigindo uma coligação de nômades aliados aos Kāramānlī,
esta resistência foi quebrada desde 1812, e os futuros chefes das duas coligações,
Ghūma e Abd al -Djalīl, foram levados a julgamento. Contudo, desde 1830,
aproveitando a crise do poder, eles retomaram a frente dos Mahamid e dos
Awlād Sulaymān, tornaram -se independentes e, quando a dinastia desapareceu,
em 1835, dominavam o Fezzān e a Tripolitânia até Benghazi
86
.
A crise do poder foi resolvida pela retomada do controle direto da Líbia
pela Porta. Esta transferência imediatamente favoreceu a burguesia, sobretudo
karāghla, que se beneficiou notadamente de alívios fiscais, sendo que as novas
autoridades necessitavam de seu apoio
87
. Os otomanos, com efeito, tiveram de
lutar contra as coligações de nômades. As operações militares destes últimos
revelar -se -iam vãs. Finalmente, os turcos conseguiram se aliar a um outro bloco
nômade urūba, aquele de Tarhuna e, sobretudo, a semear a discórdia e a des-
confiança entre Ghūma e ‘Abd al -Djalīl. Em 1842, os Awlād Sulaymān foram
vencidos definitivamente e rechaçados para o Chade. Os Mahamid, por sua vez,
enfraquecidos pela fome de 1856, foram dominados após a morte de Ghūma,
em 1858
88
. Desde então, os otomanos governaram toda a Tripolitânia e parte do
Fezzān. Neste intervalo, uma situação análoga se desenvolvia em Barka (Cire-
naica), onde, em 1843, a Ordem da Sanūsiyya, fraternidade religiosa que visava
conduzir os habitantes à verdadeira fé e converter os tubu, fora criada. A Ordem
logo ocupou um posto privilegiado graças à grande rota de caravanas que con-
seguiu organizar de Barkha ao Wadaī e, sobretudo, à eficácia de sua arbitragem
84 K. Folayan, 1972.
85 E. Rossi, 1968, p. 259 -294.
86 D. D. Cordell, 1972, p. 12 -21; G. F. Lyon, 1821, p.54 -56; G. Nachtigal, 1967, vol. I, p. 19 -22.
87 A. Barbar, 1980, p. 25.
88 A. J. Cachia, 1975, p. 30 -36; N. Slousch, 1908; D. D. Cordell, 1972, p. 21 -27; E. Rossi, 1968, p. 297 -312.
544
África do século XIX à década de 1880
F . O túmulo de Muhammad ben Alī al -Sanūsi, fundador da Sanūsiyya. [Fonte: E. E. Evans-
-Pritchard, e Sanusiya of Cyrenaica, 1949, Oxford University Press, Oxford. © Oxford University Press.]
entre coletividades nômades. Desde 1856, os otomanos trataram com a Ordem,
que serviu de intermediária entre os primeiros e a população nômade
89
.
Por fim, tendo sido forçados a estabelecer sua autoridade direta ou indireta,
os otomanos puderam, após 1860, começar a introduzir seus tanzīmāt. Contudo
timidamente, pois sua autoridade continuava a ser contestada no Fezzān e em
Ghāt pelos tuaregues, além de ser preciso poupar a burguesia urbana, de forma
a garantir o apoio de pelo menos um de seus componentes para cada reforma.
Progressivamente foram tomadas medidas para introduzir reformas judiciárias
(a partir de 1865), escolas (1869), um governo municipal (1872), uma reorga-
nização administrativa (1864, 1875), hospitais e um mercado central (1880).
A partir de 1870, também foram criados centros de distribuição de alimen-
tos para épocas de escassez. Houve terríveis períodos de fome em 1870 -1871,
1881 -1889, 1892, 1897, 1907, 1908 e 1910. Esta última medida foi a única que
beneficiou à massa (al -‘āmma). As outras reformas apenas beneficiaram à bur-
guesia, sobretudo comerciante, e só fizeram agravar os encargos fiscais do povo.
89 A. Barbar, 1980, p. 121 -127; D. D. Cordell, 1977; E. E. Evans -Pritchard, 1949; N. Ziadeh, 1958.
545
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
Seus efeitos sociais e econômicos continuaram, entretanto, assaz limitados.o
obstante a importação crescente de produtos europeus após 1850, a economia
permanecia sadia. A indústria local resistia bem à concorrência e as exportações
de alfa permitiam preservar o equilíbrio orçamental
90
.
Contudo, a penúria de 1881 a 1889 foi o primeiro sinal de profundas muta-
ções. As exportações diminuíram. Ademais, os cursos da alfa desmoronaram; as
importações de víveres aumentaram e, a partir de 1892, a balança comercial se
encontrou em ficit. Este tomou grandes proporções e tornou -se permanente
após 1897, data a partir da qual as necessidades alimentares das massas se trans-
formaram. O chá, o açúcar, a farinha e o tabaco importados eram consumidos
em grandes quantidades. Em seguida, foram os rendimentos do comércio saa-
riano que passaram a faltar. O tráfico do Bornu esgotou a partir de 1895 e o de
Kano em 1903
91
. Também em Barkha, a Sanūsiyya encontrava -se em dificulda-
des. A partir de 1901, sua atividade militar no Chade a enfraqueceu. A Ordem
tornou -se grande proprietária fundiária, desde 1902, para compensar as perdas
previstas do tráfico transaariano, o que desuniu uma parte de seus partidários.
Enfim, ela não se defendeu bem contra ordens concorrentes que faziam pro-
selitismo nestas regiões. Por volta de 1911, os estabelecimentos da Sanūsiyya
eram menos numerosos que em 1853
92
. Nestas circunstâncias, as ricas empresas
europeias, instaladas em Trípoli e Benghazi, articularam seus esforços para ocu-
par um posto privilegiado. A sociedade encontrava -se em profunda mutação e
antigos equilíbrios eram rompidos. Esta situação desembocou diretamente na
tentativa de conquista italiana de 1911 e na guerra de 1911 a 1932
93
.
O comércio transaariano
No início do século XIX, o comércio transaariano estava ainda florescendo,
fosse no Oeste (de Tombuctu ao Tafilālet, e de Goulimine a Taoudeni) ou no
centro (de Túnis e Trípoli a Ghadāmes), e as exportações do Sudão sempre
diziam respeito a escravos e ouro. No entanto, por volta dos anos 1840, as
pistas ocidentais enfraqueceram, ao passo que as do Saara Central floresceram,
90 A. Barbar, 1980, p. 25 -33, 54 -63 e 71 -80; A. J. Cachia, 1975, p. 36 -42, 68 -93 e 125 -133; E. Rossi, 1968,
p. 312 -352.
91 A. Barbar, 1980, p. 139 -144.
92 Ibid., p. 128 -131.
93 Ibid., p. 139 -182.
546
África do século XIX à década de 1880
F . Mulheres da alta sociedade argelina servidas por uma escrava negra. [Fonte: quadro de Eugéne
Delacroix no Louvre, Femmes d’Alger dans leur appartement. Reproduzido com a autorização dos Museus
nacionais franceses.]
sobretudo no traçado Trípoli -Kano e Trípoli -Bornu. Ademais, uma nova ligação
direta entre Wadaī e Barka, descoberta em 1809 -1810, se tornou uma grande
rota de caravanas após 1850
94
. Durante a segunda metade do século, a expor-
tação de escravos diminuiu lentamente, ainda que, na rota de Bornu, se tivesse
mantido por mais tempo, e que, na de Wadaī, este tráfico tivesse aumentado
e permanecido em alta, mesmo depois de 1900
95
. As exportações de marfim,
bastante estáveis, atingiram seu ápice por volta de 1877. Porém, em primeiro
lugar, foi a exportação de plumas de avestruz, sobretudo de 1878 a 1883, e, em
seguida, a dos couros (notadamente de peles de cabra) que tomaram o lugar do
comércio de escravos. Acrescentaram -se a essas exportações os tecidos tingidos
94 Sobre esta questão, ver C. W. Newbury, 1966; J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. III, p. 371 -447; M. Johnson,
1976a; D. D. Cordell, 1977a; S. Baier, 1977; S. Baier, 1974.
95 D. D. Cordell, 1977a, p. 35.
547
Novos desenvolvimentos no Magreb: Argélia, Tunísia e Líbia
de índigo do país haussa, um pouco de ouro e alguns produtos diversos. De
Norte a Sul importava -se sobretudo tecidos de algodão ingleses. Desde 1860,
tais produtos representavam cerca de 70% do valor das importações. Vestimen-
tas norte -africanas de da Tripolitânia, tecidos (lãs, tapetes) austro -húngaros,
quinquilharias, medicamentos, objetos de culto, perfumes, joias, sedas, pérolas
e, sobretudo, armas e munições completavam as importações. Além disso, era
constante a demanda pelo sal do Saara, pelas tâmaras dos oásis e pelos cereais
do Sahel
96
.
O comércio apenas entrou em declínio quando a navegação no Atlântico e os
transportes por vias terrestres (estradas de ferro) da África Ocidental puderam
com ele competir de forma vantajosa. Os desenvolvimentos políticos desempe-
nharam um papel, certamente de segundo plano, porém importante. As fortunas
do Wadaī explicam a importância da rota Wadaī -Barka desde 1850. A partir de
1895, o tráfico Trípoli -Bornu sofreu as operações de Rābah e as perturbações
causadas em parte pelas conquistas francesas na África Ocidental tiveram nume-
rosas repercussões. Todavia, o comércio declinou irremediavelmente desde 1903,
quando as caravanas se tornaram mais caras que a combinação trilho -navio
97
.
No Leste, o isolamento do Wadaī e de Barka garantiu sua sobrevivência até
1911, mesmo após a retomada do Sudão pelos ingleses em 1898 – sem dúvida,
por causa do bloqueio do Dārfūr. Portanto, foi depois de 1900 que se deslocou
o mundo saariano tradicional, pouco antes da derradeira invasão dos últimos
grandes territórios ainda não colonizados.
Conclusão
Com um maior ou menor grau de atraso e de violência, os diferentes países
do Magreb sofreram o mesmo processo que os conduziu da autonomia à depen-
dência. É, pois, inútil buscar a responsabilidade desta falha na esfera local, nos
erros de tal dirigente ou na ausência de escrúpulos de tal agente europeu. Um
fator único externo a expansão capitalista ocidental – selou a sorte do Magreb,
como o fez, aliás, no resto do mundo não europeu. Esta expansão representa
um “movimento irreversível [que] leva as grandes nações à conquista das novas
terras”, a manifestação imperiosa, a lei fatal de um estado econômico comum
96 Ver nota 93 e A. Barbar, 1980, p. 64 -76.
97 A. Barbar, 1980, p. 140, fornece estimativas.
548
África do século XIX à década de 1880
à Europa inteira”, disse um dos promotores da colonização, Jules Ferry, aproxi-
madamente em 1885
98
.
Porém, talvez tenha sido em razão de certas condições locais, um acidente
histórico, no caso da Argélia, que fortes diferenças ocorreram no desenrolar do
processo de dependência e que divergências apareceram quanto a suas modali-
dades e a reações dos diferentes países do Magreb. Esmagada militarmente antes
mesmo da metade do século, a Argélia sofreu a mais forte e traumatizante agres-
são para sua sociedade e sua cultura tradicionais. Penetrada progressivamente,
no ritmo da evolução do próprio capitalismo, a Tunísia tentou reagir através de
uma certa política de reformas de inspiração modernista: não obstante ineficaz
ou ruinosa a curto prazo, esta política lançou germes fecundos para o futuro:
nascimento de uma elite modernista, primeiros passos rumo à criação de um
Estado -Nação etc. A Líbia, recolocada sob a autoridade direta da Turquia em
1835, ficou assim protegida, por muito mais tempo, das cobiças europeias, como
também em razão de sua pobreza e de seu afastamento. Tais condições particu-
lares, vividas pelos países magrebinos no século XIX, prolongar -se -ão na época
colonial e mesmo para além dela? De nossa parte, não duvidamos disso.
98 Citado por L. Bergeron, 1968, vol. VIII, p. 319.
C A P Í T U L O 1 8
549
O Marrocos do início do século XIX até 1880
Após o reinado longo e glorioso de Mūlāy Ismāī‘l (1672 -1727), o Marrocos
viveu um período de anarquia que arruinou sua economia, desequilibrou sua
estrutura social e destruiu seu exército. O sultão Muhammad III (1757 -1790)
retomou pouco a pouco o controle da situação e edificou as bases do Marro-
cos “moderno” que seu filho Sulaymān (1792 -1822) consolidou. Ele deu ao
Makhzen (governo) um aspecto mais conforme com a sharī a (lei islâmica) e
uma base mais claramente urbana. Administrou diretamente o Haouz e o Dir,
regiões de agricultores e arboricultores sedentários, assim como o Gharb, região
pantanosa favorável à agricultura extensiva e, indiretamente, por intermédio
dos grandes kā‘id (chefes de kabīla) e shaykh de zāwiya (mestres de confra-
rias religiosas), as terras montanhosas e desérticas, distinguindo deste modo
um domínio de soberania e um outro, de suserania, que respectivamente eram
chamados de Bilād al -Makhzen e Bilād al -Sibā, todavia em uma oposição por
demais sistemática .
O Marrocos foi então reorganizado sobre uma base restrita. Alguns grupos
que se aproveitavam dos privilégios do Makhzen foram descartados; eles natu-
ralmente tentaram recuperar suas posições recorrendo à revolta, se necessário.
A Europa do Congresso de Viena, consciente de sua jovem potência, fez sentir
sua pressão, sobretudo após a tomada de Argel pelos franceses em 1830. O
Makhzen teve que resolver dois problemas simultaneamente: reforçar -se para
O Marrocos do início do século XIX
até 1880
Abdallah Laroui
550
África do século XIX à década de 1880
F . O sultão Abd al-Rahmān (1822-1859) em 1832. [Fonte: quadro de Eugène Delacroix, museu
de Toulouse. Fotograa: Jean Dieuzaide, Toulouse © Musée des Augustin, Toulouse.]
se opor ao perigo exterior, por um lado, e expandir sua base territorial e política,
por outro. Esta dupla reforma teve que enfrentar as manobras coloniais e con-
tradições internas. Por fim, o objetivo essencial, escapar ao controle estrangeiro,
não foi atingido, apesar da forte personalidade do sultão Abd al -Rahmān (1822-
-1859), da inteligência de Muhammad IV (1859 -1873) e do prestígio de Hasan
551
O Marrocos do início do século XIX até 1880
I (1873 -1894), embora, em 1880, o Marrocos apresentasse ainda uma fachada de
Estado estável. Mas o grande resultado daquele período, marcado pelo aumento
da pressão europeia e por uma política de reformas ativa, foi, sem dúvida, a con-
solidação de um espírito comunitário marroquino, tradicionalista e sombrio, o
qual deu ao Marrocos uma situação específica no Noroeste da África.
A estrutura político ‑social
O fato político notável no Marrocos do século XIX foi a bay‘a (contrato de
investidura), conscientemente calcada sobre aquela pela qual o profeta Muham-
mad (Maomé) fundou, em Medina, a primeira comunidade política islâmica, e a
qual o Marrocos foi o único a manter em sua pureza original
1
. Contrato escrito,
ligando o sultão e os diferentes grupos da população, e processo de legitimação
da autoridade política que não tem mais a força como único fundamento, a bay‘a
consolidou, entre os marroquinos, o sentimento de pertencer a uma comunidade
estatal intangível superando as peripécias políticas e militares. A cada mudança
de reinado, os chefes do exército, os representantes das ordens urbanas, os kā‘id
e os shaykh de zāwiya enviavam à corte seus juramentos de fidelidade. Escritos
mais ou menos sobre o mesmo modelo, estes juramentos definiam os direitos
e deveres do sultão e da população. O dever do primeiro era duplo: defender o
território
2
contra o inimigo externo e manter a paz no interior. Em contrapar-
tida, a população lhe devia submissão completa enquanto ele não transgredisse
as prescrições islâmicas e os direitos costumeiros, obedecendo as ordens do
Makhzen, pagando os imposto legais, fornecendo os contingentes armados em
tempos de paz e volutariando -se em tempos de guerra.está, aliás, a fórmula
ritual da bay‘a da população de Rabat, dirigida a ‘Abd al -Rahmān:
Prestamos juramento diante de Deus e de seus anjos de escutar e executar as ordens
do imame no campo do que é lícito e de acordo com as nossas possibilidades [...],
1 A. Ibn Zaīdān, 1961 -1962, vol. 1, p. 8 -35.
2 Ao contrário de uma ideia pré -concebida, o território marroquino foi claramente denido a partir do
século XVI. As guerras travadas pelos soberanos saaditas e alauitas contra os turcos de Argel levaram a
uma fronteira reconhecida por ambas as partes. No Saara, a soberania xeriana se estendia até o oásis no
qual os habitantes sedentários tinham assinado a bay ‘a e nos limites das áreas de pastagens dos grupos
nômades que também a haviam assinado. Durante o século XIX, as diligências dos sultões junto às
potências europeias comprovam que o Makhzen tinha uma ideia precisa do território marroquino.
552
África do século XIX à década de 1880
F . As regiões históricas do Marrocos no século XIX. [Fonte: A. Laroui, Les origines sociales et culturelles du nationalisme marocain, 1977, Maspero,
Paris.]
553
O Marrocos do início do século XIX até 1880
negócio feito, nós obedecemos como Deus nos mandou, e o sultão respeita nossos
direitos e aqueles de todos seus outros súditos como Deus o prescreveu
3
.
Para cumprir seus deveres, o sultão dispunha de um Makhzen composto
essencialmente de um exército e de uma burocracia.
Até a reforma militar posterior em 1844, o exército marroquino englobava
três grupos de origem e eficácia diferentes: de um lado, os bwakher (clássico:
abīd al -Bukhārī), representavam algumas centenas de escravos -soldados que
restaram dos 50.000 que formaram a guarda negra do Mūlāy Ismā‘īl; de outro
lado, o gīsh (clássico: jaīsh), cujo número total não ultrapassava 9.000, era com-
posto de contingentes fornecidos por algumas comunidades (Cheraga, Oulad
Jami’, Oudaya, Cherarda) que exploravam em usufruto as terras da coroa e que
estavam acantonados ao redor de Fez, no século XIX, assim como na periferia
de Rabat e de Larache; em fim, os nuaib (clássico: nawa’ib, plural de nā’iba)
eram os contingentes ocasionais que as outras comunidades, particularmente
aquelas do Haouz e do Dir, forneciam ao apelo do soberano. Tal como o havia
concebido Muhammad III, este exército era uma força de polícia destinada a
manter a ordem interna. Esta é a razão pela qual, após a derrota do Isly diante
da França, foram criados os askarī, tropas treinadas à moda europeia
4
.
A burocracia era composta por vizires e secretários da chancelaria (kuttāb),
agrupados em escritórios denominados, no linguajar marroquino, de banīka. Ela
continuou a tradição andaluza, mantida pelo ensino oferecido na Universidade
da Karawiyyīn em Fez, e um sistema elaborado de cooptação. Vários vizires
e secretários eram, assim, de origem andaluza. A partir da metade do século
XIX apareceu um novo tipo de funcionários do Makhzen, na sequência das
necessidades originadas pela ampliação das relações com a Europa. Tratava -se
dos ‘umanā’ (plural de amīn, inspetor de alfândega) e dos talaba (plural de tālib,
estudante avançado), menos versados em retórica e em história, mas mais fami-
liarizados com as línguas europeias e com os problemas financeiros
5
.
O Estado marroquino, o qual fora fundado sobre a ortodoxia islâmica, tinha
legalmente como recursos as receitas da coroa, a zakāt, imposto calculado sobre
o capital comercial e os produtos agrícolas, e que devia ser gasto com fins deter-
minados e as taxas sobre o comércio exterior; todos os demais recursos fiscais,
incluindo o dízimo (ushūr), forma alterada do kharādj, eram de uma legalidade
3 A. Ibn Zaīdān, 1929 -1933, vol. V, p. 9 -15.
4 J. Erckmann, 1885. Ver também o artigo gīsh na Enciclopédia do Islã, vol. II, p. 1079 -1080.
5 A. Ibn Zaīdān, 1961 -1962, vol. I, p. 46 e seguintes.
554
África do século XIX à década de 1880
duvidosa
6
. O sultão, tendo as mãos atadas no campo fiscal, era obrigado a limitar
suas despesas ao estrito mínimo. Muhammad III se contentava com as receitas
da alfândega, da zakāt do Haouz e com as fazendas da Coroa (azīb). Mantivera
contudo uma taxa sobre os tecidos importados, o couro e o enxofre. Instituiu em
seguida, após ter obtido a autorização de alguns ulamā’, um direito de entrada e
uma taxa sobre os mercados, bem como sobre os pesos e as medidas
7
. Os mer-
cadores e artesãos suportaram -nas muito mal e obrigaram o sultão Sulaymān
a suprimi -las. Para compensar as perdas do Tesouro, agravadas por sua decisão
de desencorajar o comércio com a Europa, o soberano multiplicou viagens às
áreas rurais para tirar o máximo da zakāt e do dízimo, o que não deixou de
causar um vivo descontentamento entre as populações rurais. Seu sucessor, Abd
al -Rahmān, teve que reinstituir, em 1850, uma taxa sobre os couros e depois
uma outra sobre o gado vendido nos mercados. Em 1860, o Marrocos, derrotado
pela Espanha, teve que pagar uma indenização de 100 milhões de francos, o que
equivalia a vinte vezes o orçamento marroquino da época
8
. Uma reforma fiscal
se impunha. Apesar do apelo urgente do sultão Muhammad IV, os ulamā’ se
agarravam todavia ao ponto de vista ortodoxo
9
. O problema fiscal permaneceu
no centro da história marroquina ao longo do século XIX e nunca foi resolvido
de maneira satisfatória. A experiência fazia o Makhzen limitar suas responsa-
bilidades para manter as despesas no nível dos recursos disponíveis, muito mais
que aumentar estas para atingir os objetivos desejáveis. Ora, a pressão europeia
fazia -se mais forte, e reformas globais tornavam -se cada vez mais urgentes; não
era mais o caso de se contentar com o possível.
Entre o exército e a burocracia, de um lado, e as populações urbanas e rurais,
do outro, se intercalavam as corporações intermediárias que, embora gozando de
alguma autonomia, faziam parte do Makhzen num sentido mais amplo
10
. Porta-
-voz dos grupos sociais ou regionais, eles defendiam vigorosamente os direitos
6 O kharādj se justica no direito islâmico pela conquista. Ora, a maioria dos ulamā’ estima que os habi-
tantes do Marrocos abraçaram o islã livremente. Ver o artigo darība na Enciclopédia do Islã, vol. II, p.
147 -150.
7 A. al -Nāsirī, 1954 -1956, t. IX, p. 61. Estima -se que estas diferentes taxas rendiam 3 milhões de francos,
o que era suciente para pagar as despesas do exército e da burocracia.
8 J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. II, p. 362.
9 M. Dāwud, 1956 -1970, vol. V, p. 97 -99.
10 Existe uma diferença entre o Makhzen stricto sensu que é o governo e o Makhzen em um sentido mais
amplo de elite política e religiosa do país. É este último sentido que se compreende quando se fala de
makhzanīya e de famílias makhzen.
555
O Marrocos do início do século XIX até 1880
costumeiros em relação ao sultão; responsáveis diante deste, ele aplicavam as
ordens do Makhzen levando em conta os usos locais.
A classe do clero era formada pelos ‘ulamā’ professores, os kādī, os muftī, os
nādhir, os habū (administradores das fundações pias) e os muhtasib (encarre-
gados dos mercados). Esta administração, essencialmente urbana e aplicando
estritamente as prescrições da sharī‘a, estava teoricamente sob a supervisão do
sultão -imame, mas gozava de uma autonomia inegável
11
. O soberano não podia
reformar nem o conteúdo nem a forma do ensino, privilégio da Karawiyyīn;
ele não podia ser indiferente à opinião dos outros ulamā’ quando da nomeação
dos responsáveis aos cargos que acabam de ser mencionados; ele não podia nem
desviar em seu proveito as receitas dos habū nem contradizer os decretos do
muhtasib. Pelo fato de a sharī‘a, verdadeira constituição da vida social, estar sob
a guarda dos ulamā’, qualquer tentativa de mudá -la abertamente estava excluída,
mesmo da parte do sultão
12
.
Os shurafā’ (shārīf), descendentes diretos do profeta Muhammad, formavam
uma espécie de aristocracia religiosa, espalhada por todas as cidades e áreas rurais
do Marrocos. Por três vezes, sob os sultões Ismā‘īl, Muhammad III e Sulaymān,
os shurafā’ foram recenseados, porque gozavam de um estatuto legal e de um
prestígio social especiais
13
. Eles tinham o privilégio de serem julgados por seus
nakib (síndicos). Como herdeiros do fundador do Estado islâmico, eles tinham
um direito sobre o Tesouro público e, a este título, estavam isentos de várias taxas
e recebiam numerosos presentes do sultão
14
. Como descendentes do enviado de
Deus, eles eram acreditados, pela crença popular, donos de uma certa benção
(baraka), adormecida a maior parte do tempo, mas podendo se transformar, em
circunstâncias favoráveis, em poder sobrenatural. Daí seu papel de taumaturgos
e de árbitros, serviços retribuídos, e aos quais o próprio sultão não deixava de
recorrer em caso de necessidade.
Os zāwiya, agremiações sociais com fundamento religioso, tomaram no Mar-
rocos do século XIX várias formas das quais duas eram da mais alta importância:
de um lado, a wiya -confraria, tal como a Tijāniyya ou a Darkāwiyya, ligava
através de uma série de grêmios urbanos e monastérios rurais os indivíduos sem
distinção de condição social, riqueza, ocupação ou origem étnica, e tinha deste
11 Distinguem -se as obrigações da sharī a daquelas do Makhzen. Ver M. b. Ja afar al -Kattānī, 1899, vol.
III, p. 5.
12 A. Ibn Zaīdān, 1961 -1962, vol. II, p. 163 -188.
13 E. Lévi -Provençal, 1922.
14 Al -Mahdī al -Wazzāni, 1900, vol. II, p. 92.
556
África do século XIX à década de 1880
modo um papel primordial na integração horizontal; do outro lado, a zāwiya-
-principado, cujo chefe recebia uma delegação quase geral de autoridade sobre
seu feudo, como a Wazzāniyya no Norte, a Sharkāwiyya no Tadla, a Nāsiriyya
no Sudoeste e a Zarwāliyya no Anti -Atlas. Cada zāwiya tentava ser uma e outra
ao mesmo tempo, e às vezes conseguia, como a Nāsiriyya; ela podia tomar uma
outra forma, mas, de todos os modos, era uma escola de disciplina social e uma
intermediária da autoridade do Makhzen, apesar de uma aparente independên-
cia
15
. Este papel se manifestava sobretudo nas cidades onde zāwiya e corporação
(hinta) tinham os mesmos membros e buscavam os mesmos objetivos.
Os chefes de kabīla tinham uma condição extremamente variável. Para o
Makhzen, a kabīla era uma noção essencialmente administrativa e fiscal, e se
aplicava tanto a uma região (Dukkala) ou a um cantão montanhês (Beni Ouria-
ghel), como a uma confederação nômade (Aït Atta), ou a uma comunidade
transplantada de soldados -pastores (Cherarda). Em cada caso, a autoridade
era delegada a um id nomeado por um dahīr (decreto) após a anuência de
seus contribuintes. O kā‘id era tanto representante do sultão como porta -voz
de seus administrados, um de seus dois papéis dominando inevitavelmente de
acordo com a distância do poder central e a riqueza das terras. Diante deste
kā‘id havia em todas as circunstâncias o āmel (governador), o qual recebia os
impostos e conduzia os contingentes armados. Em certos casos favoráveis, o
mesmo homem podia acumular as duas funções, mas elas continuavam distintas.
Formavam -se famílias de kā‘id duas por kabīla, uma apoiando o Makhzen, a
outra os interesses locais que, no poder ou na aposentadoria, faziam parte da
elite administrativa do país
16
.
Estas corporações intermediárias, urbanas e rurais, baseadas no indivíduo ou
no grupo agnático, eram, em última análise, as engrenagens da administração
sultânica. Os ulamā’, ao defender a sharī‘a, consolidavam a legitimidade do
sultão -imame, pois o islã é antes de tudo uma comunidade política. Os shurafā
serviam de mediadores em caso de problemas, sérios ou passageiros, entre o
poder central e os chefes locais. Os shaykh de zāwiya administravam em nome
do sultão as regiões longínquas e pouco produtivas ou mantinham a paz nos
territórios estratégicos
17
. No caso em que a zāwiya se opunha ao soberano por
15 E. Michaux -Bellaire, 1921.
16 O livro clássico de R. Montagne, 1930, deve ser lido com um espírito crítico, que os próprios docu-
mentos do Makhzen nos obrigam a ter nuances sobre muitas ideias pré -concebidas sobre o conceito de
kabīla.
17 A. G. P. Martin, 1923 (sobre o papel da zāwiya wazzāniyya zāwiya no Tūwāt). P. Durant, 1930, p. 65 -77
(sobre o papel da zāwiya sharkawiyya zāwiya no Tadla).
557
O Marrocos do início do século XIX até 1880
razões políticas, este a destruía. Pode -se dizer o mesmo em relação aos chefes
de kabīla. Uma grande autonomia lhes era reconhecida quando lutavam contra
estrangeiros, como no Rīf, onde os espanhóis de Ceuta e Melilla eram cons-
tantemente sitiados ou também quando o seu território era montanhoso ou
desértico; mas se reivindicassem uma independência total recusando as ordens
do sultão ou negligenciando a aplicação da sharī‘a, eles eram declarados em
estado de siba, isto é culpáveis de ruptura injustificada do pacto da bay‘a; eles
podiam ser reduzidos pela força ou pela diplomacia, imediatamente ou a longo
prazo, de acordo com meios militares dos quais o soberano dispunha; mas nunca
a soberania do sultão e da sharī‘a era abandonada
18
.
O sistema sociopolítico marroquino, tal como o havia reorganizado Muham-
mad III, tinha revivido a tradição islâmica ortodoxa e reconhecido a autoridade
das corporações intermediárias, limitando as ambições do poder central. Ele
havia deste modo reforçado, na comunidade marroquina, a ideia de Estado, ao
fazer com que cada grupo profissional, social ou étnico exprimisse suas reivindi-
cações no interior do Makhzen. Entretanto, este sistema criava as suas próprias
contradições; ele oscilava claramente entre os dois tipos ideais: um, sob a benção
dos ulamāe dos mercadores, teria sido o reino da sharī‘a e da administração
direta; o outro, o qual teria sido mais ao gosto dos chefes locais, o sultão, símbolo
da federação, não teria outra autoridade do que aquela que os chefes lhe teriam
delegado. Este sistema era a consequência da mudança na relação de forças entre
o Marrocos e a Europa, intervinda durante a era mercantilista. Antes que se
estabilizasse, ele teve que enfrentar uma pressão europeia ainda mais forte; suas
contradições vieram à luz após as derrotas militares que o Marrocos sofrera, pri-
meiramente, contra a França em 1844, e, depois, contra a Espanha em 1860.
As reformas do Makhzen diante da ofensiva europeia
A política das potências coloniais com relação ao Marrocos será analisada em
outro momento
19
. Recordemo -nos somente que até 1880 existia um consenso
europeu para manter o status quo no império do Marrocos. Nem expansão
territorial francesa a partir da Argélia ou espanhola a partir de Ceuta e Melilla,
18 As potências coloniais interpretaram a noção de siba de acordo com as exigências de sua política expan-
sionista. Trata -se, agora, de compreendê -la em seu contexto original e não em relação ao direito europeu
à época.
19 Ver o capítulo 19.
558
África do século XIX à década de 1880
nem privilégio comercial para os produtos ingleses. Apesar de algumas con-
cessões arrancadas pela França e pela Espanha após as guerras de 1844 e de
1859 -1860, estes princípios foram reafirmados pela Conferência de Madrid de
1880 e vigoraram até o final do século XIX
20
.
Entretanto, entre as reivindicações das potências europeias e a autoridade
do sultão, havia uma contradição absoluta. Durante a conquista da Argélia,
este último não podia manter uma posição de neutralidade como lhe havia
aconselhado a Inglaterra e o simples bom senso, pois o direito público islâmico
lhe obrigava a ajudar os muçulmanos vizinhos abandonados por seu soberano
legítimo, na época o dirigente otomano
21
. Em 1859, os rifenhos destruíram uma
edificação que os espanhóis de Ceuta tinham construído fora dos muros da
cidade e rasgaram a bandeira que a sobrepunha. Madrid exigiu a entrega de doze
homens que considerava como responsáveis. O sultão não podia se submeter,
que ele seria assim culpável de uma ruptura deliberada do juramento da bay‘a
22
.
Em matéria de comércio, o qual interessava especialmente a Inglaterra, o sultão
não podia, com uma simples penada, liberar as exportações, conceder o direito
de propriedade aos europeus ou obrigar os kādī a receberem o testemunho dos
não muçulmanos, que em todos estes pontos a interdição do fikh maliquita
era clara
23
.
O sultão encontrava -se deste modo em uma posição pouco invejável, divi-
dido entre as exigências dos europeus e a oposição pontilhosa dos ulamā’; para
os primeiros, ele era um obscurantista, para os segundos um inovador. Daí a
ambiguidade da reforma.
No século XIX, o Makhzen e os cônsules estavam de acordo em reforçar o
exército e reorganizar a administração a fim de assegurar a todos a segurança,
a ordem e a justiça. O problema todo era saber em que estrutura legal: a sharī‘a
ou uma nova legislação de inspiração europeia? Esta contradição não seria
20 As tropas de Bugeaud atacaram o exército marroquino no Isly, perto de Oujda, em 14 de agosto de
1844; a marinha francesa bombardeou Mogador no dia 15, após ter já bombardeado Tanger no dia 6. O
Tratado de Tanger, assinado em 19 de setembro, pôs m à guerra, mas a Convenção de Lalla -Marnia de
18 de março de 1845 não resolveu o contencioso fronteiriço devido às ambições francesas no Saara. No
outono de 1859, os espanhóis organizaram um exército europeu em Ceuta e, após algumas escaramuças
em Cabo Negro, entraram em Tetuan em 6 de fevereiro de 1860. Pelo tratado de 20 de novembro de
1861, a Espanha obteve a ampliação dos limites de Ceuta e Millila, concessões comerciais e um porto
de pesca ao Sul, localizado em 1883 em Ifni.
21 A. Tasūlī, s.d.
22 A. al -Nāsirī, 1954 -1956, vol. IV, p. 84; J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. II, p. 360 -362.
23 A. Tasūlī, s.d., capítulo 1, seção 4.
559
O Marrocos do início do século XIX até 1880
resolvida pacificamente. O Makhzen realizou uma reforma, porém limitada e,
consequentemente, não satisfatória aos olhos dos europeus.
Muhammad IV assistiu às duas derrotas do Isly e de Tetouan, a primeira vez
como príncipe herdeiro e comandante -chefe do exército, e a segunda como sul-
tão. É por esta razão que ele tomou a iniciativa da reforma militar em 1845. Para
abrir uma brecha no tradicionalismo reinante, ele incentivou um ālim conhecido
a compor uma obra justificando a reforma em uma base tradicionalista
24
. Ele
apelou aos tunisianos que serviram o exército otomano para organizar em regi-
mentos treinados no modelo europeu, chamados de askarī e cujos efetivos, no
início, não ultrapassavam 500 homens. Com a ajuda de renegados, entre os quais
o mais conhecido era o francês de Saulty, o qual havia se dado o nome islâmico
de Abd al -Rahmān al -‘Alī, fundou em Fez uma escola de engenharia (madrasat
al -muhandisīn), na qual foram formados agrimensores, topógrafos, cartógrafos
e artilheiros. Com este intuito, ele mandou traduzir por um maltês e sob o seu
controle direto tratados de geometria. Por intermédio de seu representante em
Gibraltar, ele solicitou ao pacha do Egito que lhe enviasse um lote de livros cien-
tíficos traduzidos das línguas europeias. O sultão Abd al -Rahmān deu liberdade
ao seu filho, mas ele não assumiu a autoria desta obra reformadora, na qual ele
não via o benefício imediato. Muhammad IV, uma vez sultão, teria dado sem
dúvida um impulso mais vigoroso a esta reforma se a guerra de 1859 -1860 não
lhe tivesse criado problemas financeiros inextricáveis. Todavia, ele decidiu enviar
um grupo de bwakher ao Egito para se aperfeiçoarem na arte da artilharia. A
partir de 1870, missões iam regularmente a Gibraltar para seguirem estágios
de dois anos cada um. Hasan I continuou a política de seu pai em condições
mais favoráveis. Ele instituiu um modo de recrutamento regular: cada cidade
imperial devia fornecer 500 recrutas, cada porto 200, cada região 2.000; isto
permitiu reunir um exército de 25.000 soldados. Em 1877, ele solicitou à França
que lhe enviasse oficiais instrutores para sua artilharia. Em 1880, 180 oficiais e
suboficiais formaram sob a direção do comandante inglês Maclean, o regimento
dos harraba. Mais tarde, Hasan I enviou outras missões militares à Bélgica,
Alemanha e Itália. Com aquele exército reorganizado, ele pôde reafirmar sua
soberania sobre os territórios longínquos, como o Sūs (Sousse) e o Tafilālet, os
quais excitavam o apetite de diversas potências europeias
25
.
John Drummond Hay foi o ministro de Sua Majestade britânica em Tanger
de 1839 a 1886. Ele agiu com ardor tanto ao defender a soberania do sultão e a
24 M. Al -Kardūdī, s.d.
25 J. -L. Miège, 1961 -1963, t. II, p. 208. Ver, sobretudo, M. Al -Mannūniī, 1973, p. 55.
560
África do século XIX à década de 1880
F . O sultão Hasan I (1873 -1894) [Fonte e fotograa: coleção Biblioteca geral e Arquivos,
Rabat.]
561
O Marrocos do início do século XIX até 1880
integridade de suas possessões, quanto ao exigir deste a abertura do país ao comér-
cio internacional
26
. Tirou vantagem de seu imenso prestígio junto ao sulo ‘Abd
al -Rahmān para que aceitasse o tratado de amizade, de comércio e de navegação
de 9 de dezembro de 1856, o qual impunha os seguintes princípios: liberdade de
tráfego; fim de todo monopólio público ou privado; garantia da segurança dos
bens e das pessoas; abertura de consulados em todo o país; isenção de qualquer
taxa ou encargo, à exceção dos direitos alfandegários, de ancoragem e pilotagem
para os comerciantes estrangeiros e seus associados marroquinos
27
.
A abertura do Marrocos ao comércio europeu teve várias consequências funes-
tas: a primeira foi uma crise monetária aguda. No século XVIII, o dinār, moeda
de ouro, tinha completamente desaparecido; o sistema monetário marroquino
tornou -se bimetálico, baseado na prata e no bronze. As moedas de prata correntes
eram a peseta e o douro espanhóis, o franco e o ecu franceses; o douro e o ecu
eram chamados de riais. As moedas de bronze fabricadas no Marrocos eram a
‘ukia (onça) e a zūna. O mithkāl servia como unidade de cálculo. Ele valia 10
onças e a onça 4 mūzūna. Quanto mais as relações comerciais se desenvolviam
com a Europa, mais a moeda de prata se tornava rara; e mais a de bronze, a mais
comum, se desvalorizava. Na metade do século, ela tinha se reduzido a um quarto
do seu valor original, com as consequências bem conhecidas de toda inflação: alta
de preços, empobrecimento da população, dificuldades do Tesouro público e con-
centração de bens imóveis nas mãos de uma minoria. O Makhzen tentou reagir
tomando medidas autoritárias em 1852, 1862, 1869 e 1877, cada vez querendo
voltar a uma paridade passada. O sultão ganhava com essas revalorizações se ele
se fizesse pagar em moeda de prata e se pudesse pagar suas dívidas tanto em riais
quanto em onças. Ora, os mercadores estrangeiros faziam baixar os direitos alfan-
degários pagando -os em onças desvalorizadas, ao passo que o sultão devia pagar
suas dívidas externas em piastras espanholas e em ecus franceses que comprava
por um preço alto. As medidas monetárias acabavam por empobrecer ainda mais
o Tesouro. No fim do nosso período, Hasan I decidiu cunhar uma nova moeda
de prata (o rial hassani, equivalente a 5 francos) sem retirar contudo aquela de
bronze; esta continuava a se desvalorizar (em 1881, o rial valia 14 mithkāl em vez
de 10), levando em sua queda as novas moedas
28
.
26 J. D. Hay, 1896.
27 Ver o texto em P. -L. Rivière, 1924 -1925, vol. I, p. 36 -42.
28 J. -L. Miège, 1961 -1963, t. II, p. 388 -389, e t. III, p. 97 -106 e p. 434 -437. Ver também G. Ayache, 1958.
No início do século, 10 onças valiam 5 pesetas; em 1845, 3 pesetas e um quarto; em 1874, uma única
peseta. Números extraídos de al -Nāsirī, 1954 -1956, t. IX, p. 208.
562
África do século XIX à década de 1880
As despesas do Makhzen não paravam de aumentar na sequência das refor-
mas empreendidas e das numerosas dívidas e indenizações pagas aos Estados e
comerciantes europeus. Uma reforma fiscal se impunha. Entretanto, o sultão não
era livre de empreendê -la sem consultar os ‘ulamā’, já que se tratava de um pro-
blema de direito público. Estes últimos tinham, por várias vezes antes, declarado
ilegais as taxas sobre as transações comerciais, designadas sob o nome geral de
mukūs (plural de maks), quando elas não eram provisórias e gastas com fins pre-
cisos; todo imposto fundiário era também inaceitável aos olhos deles, que os
marroquinos eram totalmente proprietários de suas terras
29
. Em julho de 1860,
Muhammad IV solicitou aos ‘ulamā’ lhe indicar o meio de pagar a reparação de
guerra que permitiria recuperar Tetuan, ocupada pelos espanhóis, e de impedir
que outras cidades caíssem em suas mãos. Os ‘ulamā’ permaneceram fiéis à sua
opinião ortodoxa considerando que somente uma contribuição extraordinária,
provisória, recaindo sobre todos os habitantes, isto é, não arrendada a terceiros,
seria legal, ainda que o sultão tivesse tomado o cuidado de lhes explicar que
as circunstâncias não o autorizavam a aplicar tal medida
30
. Este, desconside-
rando estas objeções, instituiu taxas indiretas que deram lugar, entre a população
urbana, a uma oposição surda e tenaz. Em 1873, quando da proclamação de
seu sucessor, os artesãos exigiram a abolição destes mukūs antes de assinarem a
bay‘a; Hasan I teve que reprimir pela força a cidade recalcitrante. Mais tarde,
ele instituiu, a título experimental, o tartīb, um imposto fundiário com taxa fixa,
coletado por umanā’ (inspetores alfandegários) especializados. Sem solicitar o
parecer dos ‘ulamā’, dos quais ele conhecia a opinião negativa, ele começou por
recebê -lo no Haouz, a parte do reino mais bem administrada. Entretanto, ele
o deixou rapidamente cair em desuso, por razões que não são ainda claras, mas
que sem dúvida tinham a ver com a situação da opinião pública e a oposição
de alguns chefes do exército. Por falta de meios financeiros, o Makhzen foi
obrigado a limitar suas ambições reformistas, mantendo no nível mais baixo
suas despesas correntes.
O número de comerciantes europeus instalados no Marrocos aumentou
regularmente depois de 1856. Para responder às suas queixas, o Makhzen se lan-
çou numa reforma administrativa. Em 1861, foi criada a corporação dos ‘umanā’.
Recrutados entre os mercadores, os secretários de chancelaria e os notários, rela-
tivamente bem pagos, eles foram instalados nos oito portos abertos ao comércio
estrangeiro; eles teriam ao seu lado os controladores espanhóis encarregados
29 Al -Mahdī al -Wazzānī, 1900, vol. III, p. 46 -47.
30 M. Dāwud, 1956 -1970, vol. V, p. 99 -100.
563
O Marrocos do início do século XIX até 1880
F . Rial de prata cunhado em Paris em 1881 para Hasan I. [Fonte: A. Laroui, Les origines sociales
et culturelles du nationalisme marocain, 1977, Maspero, Paris.]
de verificarem as receitas das alfândegas, das quais 60% serviriam para pagar a
reparação de guerra. Estes umanā’, entre os quais vários haviam feito fortuna
no exterior (Gibraltar, Marselha, Manchester, Gênova), ajudaram a racionalizar
a burocracia marroquina e foram muito influentes junto a Muhammad IV e
Hasan I. Um outro grupo viu igualmente seu prestígio aumentar, o dos talaba
que tinham sido enviados a Europa para realizarem estágios e aprenderem lín-
guas estrangeiras. Entre 1874 e 1888, oito missões, compostas por 350 pessoas,
foram para os principais países europeus. Estes jovens foram empregados, no
seu regresso, no departamento da moeda da famosa makina de Fez (fábrica de
armas montada por italianos), no serviço fiscal que foi reorganizado, em 1886,
e no vizirato das relações externas (wizārat al -bahr)
31
.
31 J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. IV, p. 397 -408, e M. Mannūni, 1973.
564
África do século XIX à década de 1880
Entretanto, o verdadeiro objetivo dos comerciantes europeus era limitar a
competência do kādī
32
. Eles preferiam ser julgados pelo governador (kā‘īd ou
āmel) esperando a criação de um tribunal misto que utilizaria um código de
inspiração ocidental. A França, sob o pretexto de ter tido um papel moderador
junto à Espanha em 1860, obrigou Muhammad IV a aceitar a convenção de
19 de agosto de 1863, a qual concedia um privilégio jurídico tanto aos comer-
ciantes estrangeiros como aos seus associados marroquinos. Em vez de serem
julgados pelo kādī, eles o eram pelo governador, na presença do cônsul respectivo.
Enquanto o número destes associados permanecia limitado (200 por kabīla, por
volta de 1870), a situação, ofensiva ao sultão, era contudo suportável. Mas os
cônsules não demoraram em dar a condição de samsār (intermediário comercial)
a todos aqueles, judeus ou muçulmanos, que desejassem escapar da jurisdição
do e que podiam pagar pelo serviço
33
. O Makhzen, vendo sua autoridade
minada por esta proteção irregular advinda de uma interpretação tendenciosa
da convenção de 1863, não parou de protestar e acabou por ganhar o apoio da
Inglaterra. Uma conferência internacional reunindo doze países, teve lugar em
Madrid, em julho de 1880, para colocar um fim a esta prática. O número de
protegidos foi bastante limitado: cada comerciante teve de se contentar com
somente dois samsār, os únicos, junto com os membros de sua família vivendo
sob o seu teto, que podiam se prevalecer da proteção estrangeira. Todavia, em
contrapartida desta limitação, foi reafirmado o direito de propriedade aos euro-
peus estabelecidos nos portos, o que o sultão não via de bom grado.
A pressão europeia teve, deste modo, como consequência, uma reforma do
exército, da administração, da moeda e da fiscalidade marroquinas. Entretanto,
esta reforma foi limitada tanto por obstáculos externos, quanto por dificulda-
des internas. Os europeus aceitavam medidas que garantissem sua segurança
e incentivassem sua atividade comercial, mas não desejavam, especialmente
os franceses e os espanhóis, que o Makhzen se reforçasse a ponto de poder se
opor com sucesso aos seus objetivos
34
. Do outro lado, o sultão não estava livre
para tocar no ensino e nas instituições judiciárias e religiosas, tendo em vista
a doutrina intransigente dos ulamā’. Esta restrição no campo da reforma, que
aumentava ainda mais a parcimônia dos meios financeiros, teve um resultado
surpreendente: em vez de consolidar sua independência, o sultão ligava -se pro-
32 “Para penetrar pacicamente no Marrocos, é necessário, previamente, desmuçulmanizá -lo” (G. Maura y
Gamazo, 1911, p. 197).
33 J. D. Hay, 1896, p. 321 -323.
34 J. Caillé, 1951, p. 121.
565
O Marrocos do início do século XIX até 1880
gressivamente à Europa a medida que se consagrava a reforma de seu país. Com
efeito, mais as relações se desenvolviam com o exterior, maior era o número de
comerciantes estrangeiros e mais havia incidentes que davam lugar a pesadas
indenizações ou a concessões territoriais, ou ainda a uma perda de prestígio
35
.
A população via um elo de causa e efeito entre a abertura à influência externa,
as reformas empreendidas e seus crescentes problemas. A opinião pública estava
cada vez mais irritada com os estrangeiros por razões econômicas, psicológicas
e religiosas.
As reações da população
No Marrocos, a produção agrícola dependia e depende ainda das incer-
tezas climáticas; ela teve entretanto que responder à demanda crescente dos
exportadores europeus. Seguiu -se uma série de fomes que abateu duramente
as populações urbanas e rurais em 1850, 1857, 1867 e, sobretudo, durante os
terríveis anos de 1878 a 1881, durante os quais 12 a 15% dos habitantes das
cidades, estima -se, viviam da caridade pública, enquanto 65.000 marroquinos
tiveram que se expatriar
36
. Próximo às muralhas, começavam a se formar bairros
de nuala que lembram as favelas do século XX. Muitos agricultores e pastores,
incapazes de pagarem os impostos ou de quitarem as dívidas contraídas com os
comerciantes europeus, deixaram suas terras; este despovoamento rural tocou
ao redor de um terço das terras agrícolas no Sul do país e ao redor das cidades
costeiras. O Makhzen sofria duplamente com as consequências negativas desta
situação. De um lado, as receitas da zakāt diminuíam, do outro, os europeus
exigiam que ele reembolsasse as dívidas privadas, sobretudo quando os deve-
dores eram os kā‘id. Além disso, os bens passavam ilegalmente, e a baixo preço,
entre as mãos dos estrangeiros, por intermédio dos samsār e com a benção de
kādī pouco escrupulosos; e, consequentemente, não pagavam mais impostos.
O sultão tentou deter esta evolução desastrosa. Com uma série de medidas
entre 1873 e 1883, ele proibiu aos europeus de irem aos mercados rurais; exi-
giu dos kā‘id que separassem os seus bens das de seus contribuintes; limitou o
número de kādī e de notários habilitados a autenticar os reconhecimentos de
35 A Turquia e o Egito tornaram -se, após as reformas, mais ricos, mas bem menos independentes”, disse
o sultão Muhammad IV ao ministro francês Tissot. Ver J. D. Hay, 1896, p. 288 -289.
36 J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. III, p. 367 e 444 .
566
África do século XIX à década de 1880
dívidas sob a cobertura dos quais se faziam as vendas
37
. Se os habitantes das
áreas rurais empobreciam, os das cidades não se encontravam em uma situação
melhor. Todos eram prejudicados pela alta dos preços dos produtos de primeira
necessidade: grãos, e peles. Os produtos importados (tecidos, velas, fósforos,
açúcar) tinham um bom preço, mas concorriam duramente com os artesãos
que constituíam a coluna vertebral da economia urbana. Os funcionários do
Makhzen, pagos por este último ou então pelos habū, ou ainda pelos próprios
administrados, sofriam os malefícios da desvalorização monetária: entre 1845 e
1874, seus salários reduziram -se a um décimo de seu valor em termos reais
38
. Os
únicos a escaparem deste empobrecimento generalizado foram os mercadores
e os associados dos comerciantes europeus que podiam conseguir moedas de
prata. O valor de seu capital aumentava automaticamente; eles compravam, a
preço vil, inúmeros imóveis e bens fundiários, além de conceder empréstimos
a taxas usurárias à população rural e aos próprios membros do Makhzen. Seu
enriquecimento, ainda menos bem visto, que sobressaía à pobreza reinante,
era considerado como uma outra consequência negativa da abertura do país à
atividade externa.
A população marroquina não era sensível somente a estes aspectos econô-
micos. Ela ressentia também, e talvez sobretudo, o declínio da autoridade do
kādī, do sultão e, em última análise, do islã. Cada potência colonial dava muita
importância ao respeito devido à sua bandeira. Se havia um assassinato de um de
seus cidadãos, o cônsul não queria saber se houvera ou não provocação, vontade
de matar ou não: ele exigia a execução do culpado (em caso de indecisão, de
todos aqueles que assistiram ao incidente), uma indenização para a família da
vítima, a destituição dos agentes que lhe pareciam faltar com o zelo, desculpas
oficiais e a saudação à bandeira
39
. Em tais condições, os funcionários não sabiam
mais qual atitude adotar. Se recusassem as exigências dos cônsules, prejudicando
assim o sultão, eles sofreriam as consequências; se, por outro lado, aceitassem
tais exigências, contrariamente ao uso que deixava a decisão nas mãos do poder
central e uma revolta se desenrolasse, eles assumiriam também esta responsabi-
lidade. Seu prestígio erodia -se continuamente em detrimento da ordem da qual
os europeus pretendiam ter necessidade
40
.
37 A. Ibn Zaïdān, 1961 -1962, vol. I, p. 364 -366, e vol. II, p. 48 -51 e p. 129 -131.
38 Ver nota 28.
39 G. Ayache, 1965, vol. 6.
40 A. Ibn Zaïdān, 1929 -1933, vol. II, p. 374.
567
O Marrocos do início do século XIX até 1880
O kādī e o muhtasib sofriam particularmente com esta situação contrária à letra
da sharī‘a, daí sua oposição feroz a toda proteção. Com o apoio ativo da Ingla-
terra, o filantropo judeu inglês sir Moses Montefiore empreendeu uma missão ao
Marrocos na sequência da qual o sultão Muhammad IV promulgou o dahīr de
5 de fevereiro de 1864, no qual ordenava aos administradores marroquinos que
tratassem as questões dos judeus com celeridade e equidade, ameaçando -os de
graves sanções se não obedecessem. “Desde que os judeus tiveram o dahīr, eles
fizerampias que distribuíram em todas as cidades e se puseram de acordo para
se tornarem autônomos de toda autoridade, sobretudo aqueles dos portos”, relata
o historiador al -Nāsirī
41
. Os ‘ulamā’ viram, neste decreto, um golpe contra a sharī‘a;
a reação foi tão violenta que Muhammad IV teve que retroceder. Os protegidos
muçulmanos suscitavam uma oposição ainda maior. Em inúmeras brochuras,
quando das preces de sexta -feira nas mesquitas, os ‘ulamā’ pressionavam o sultão a
tomar contra eles severas represálias. “Se nãodisse um dos ‘ulamā’a dúvida se
insinuaria entre os espíritos dos ignorantes que julgariam mal o islã e acreditariam
que a religião dos infiéis lhe é superior
42
”. Quando o sulo não seguiu o conselho
deles por o querer criar dificuldades com as potências, eles clamaram pelo povo.
O mesmo ālim já citado disse neste sentido: “O dever de todo crente é abster -se
de frequentar estes protegidos, de convidá -los, de compartilhar sua refeição e de
se ligar a eles por amizade ou casamento
43
”. que a maior parte destes protegidos
muçulmanos eram ricos mercadores, a campanha dos ‘ulamā’, apoiada pela plebe
das cidades, tomou os ares de um ataque da aristocracia religiosa contra a nova
elite que aparecera em circunstâncias inéditas criadas pela abertura do país.
Se as reformas foram uma consequência da pressão estrangeira, elas deram
lugar, por sua vez, a uma violenta xenofobia. A maioria das mudanças ocorridas
na vida dos marroquinos era negativa; estes as ligaram muito naturalmente
à presença dos europeus, cada dia mais invasora. A razão da alta dos preços,
da fome é a coexistência com os europeus”, disse al -Nāsirī
44
. Cada um queria
reduzir ao mínimo o contato com os estrangeiros; mais que isso, o ideal se
tornou o retorno às condições de vida de outrora. Uma ideologia romântica
de embelezamento do passado e de ressurreição da tradição (ihyā’al -sunna)
ganhou todas as camadas da sociedade. Para reduzir o campo de atividade dos
europeus, o sultão atrasava qualquer negociação, o que irritava os cônsules e
41 A. al -Nāsirī, 1954 -1956, vol. IX, p. 114.
42 M. al -Mannūnī, 1973, p. 256.
43 Ibid.
44 A. al -Nāsirī, 1954 -1956, vol. IX, p. 208.
568
África do século XIX à década de 1880
os fazia denunciar um empecilho. É preciso discutir, discutir e ainda discutir,
que só resultará no bem”, aconselhava Hasan I a um de seus representantes em
Tanger
45
. O clero exigia a estrita aplicação da sharī‘a em todos os campos da
vida social e deu um sentido muito particular à palavra reforma. Não se tratava
tanto, diziam os ulamā’, de mudar as instituições, o que é de todos os modos
impossível, mas de retornar à ética dos anciãos (salaf), daqueles que deram aos
muçulmanos exemplos de grandeza e de justiça. À noção de nidhām, reorgani-
zação do exército, da burocracia e da vida cotidiana, eles opuseram a de islāh, a
renovação moral e religiosa do indivíduo. É este movimento que foi chamado
de salafismo (fundamentalismo islâmico)
46
. A plebe das cidades lembrava com
nostalgia os bons e velhos tempos em que os produtos da terra e do artesanato
eram baratos, e as necessidades dos indivíduos e do Makhzen limitadas. Contra
os responsáveis, evidente aos seus olhos, destas dificuldades eles nutriam uma
mistura de medo, admiração, desprezo e ódio. A xenofobia do povo, o salafismo
dos ‘ulamā’ e o conservadorismo do Makhzen expressavam um fato vivido: a
decadência da antiga sociedade diante do capitalismo liberal do século XIX. A
elite política e religiosa marroquina era então violentamente antiliberal.
A liberdade, tal como a compreendem os europeus, é sem dúvida alguma
uma inovação dos libertinos ateus, já que ela nega os direitos de Deus, dos pais e
da própria natureza humana
47
”. A dialética pela qual se modernizava a sociedade
marroquina, suportando as influências e respondendo as investidas da Europa,
não foi percebida pelos interessados como um fato positivo. Eles não viam nela
a promessa de um futuro diferente; ressentiam somente o naufrágio de um
passado que o tempo havia enfeitado em que o povo era próspero, os ulamā’
ouvidos, o Makhzen obedecido e o sultão independente.
Conclusão
Em 1880, a grave crise agrícola, iniciada cinco anos atrás, estava próxima do
fim. O Makhzen terminava de pagar suas últimas parcelas da reparação de guerra
à Espanha e do empréstimo contraído junto aos bancos ingleses. Os controlado-
res espanhóis, cuja presença era uma constante fonte de fricções e uma dolorosa
lembrança da derrota de 1860, não tardariam a deixar os portos marroquinos e
45 A. Ibn Zaīdān, 1929 -1933, vol. II, p. 376.
46 Ver o artigo islā na Enciclopédia do Islã, vol. IV, p. 146 -170.
47 A. al -Nāsirī, 1954 -1956, vol. IX, p. 114 -115.
569
O Marrocos do início do século XIX até 1880
os mukūs a serem abolidos
48
. A Conferência de Madrid, cuja primeira sessão ter-
minou em 3 de julho de 1880 com a assinatura da convenção internacional sobre
a proteção no Marrocos, parecia ser muito mais um sucesso para a Inglaterra e o
Marrocos. A França, a qual o estava inteiramente refeita da derrota de 1870,
o conseguira fazer prevalecer seus pontos de vista, apesar do apoio tático que lhe
dava a Alemanha
49
. Esta, pouco depois, entrou com força no cenário marroquino
para abrir uma brecha nos interesses comerciais ingleses e contrariar os objeti-
vos políticos franceses. O território do Marrocos foi defendido contra a cobiça
dos franceses no Tūwāt, dos ingleses em Tarfaya e dos espanhóis em Sakiyyat
al -Hamra
50
. Em resumo, Hasan I, reinando sobre o que se chamava, às vezes, de
califado do Oeste em oposição ao Império Otomano, representava a figura de um
grande sultão, tanto no interior como no exterior do país.
As contradições sociais, advindas com a abertura à Europa, estavam em
andamento; mas elas pareciam então controláveis. Com a benevolência de um
país como a Inglaterra ou a ao menos da Alemanha, o Marrocos parecia estar no
caminho de conseguir sua renovação. Esta foi em todos os casos a opinião dos
marroquinos do século XX. O reinado de Hasan I, independentemente de seus
resultados efetivos, tornou -se uma nova era de ouro. Julgou -se que as reformas
empreendidas eram suficientes para dar à luz um Marrocos forte, moderno e
independente, se não houvesse tido as manobras da França e da Espanha. O
reformismo do Makhzen, o salafismo dos ulamā ’ e o sentimento antieuropeu
das massas rurais se combinaram para engendrar a ideologia mobilizadora do
nacionalismo do século XX.
Permanece a questão da avaliação objetiva dos resultados desta política refor-
madora. É preciso sublinhar que ela se deu inteiramente na estrutura legada
por Muhammad III que, ele mesmo, teve que enfrentar uma brutal mudança
na relação de forças entre o Marrocos e a Europa. Afinal, é do conhecimento
aprofundado das circunstâncias que determinaram as escolhas de Muhammad
III que depende todo julgamento racional sobre a evolução social do Marrocos
no século XIX.
48 A. al -Nāsirī, op. cit., p. 147. Os direitos de entrada foram abolidos em dezembro de 1885. A população
esperava impacientemente que as outras taxas o fossem também.
49 J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. III, p. 263 -292.
50 J. -L. Miège, op. cit., p. 357. Ver também A. Ibn Zaīdān, 1929 -1933, vol. II, p. 333 -335.
C A P Í T U L O 1 9
571
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
A expansão comercial e a luta pelo domínio das rotas internacionais de
comércio figuravam entre as características essenciais do colonialismo europeu
do século XVIII e do início do XIX.A guerra santa” no mar, travada há muito
pela Argélia, pela Tunísia, pela Tripolitânia e pelo Marrocos, preocupava muito
os negociantes e os armadores europeus. No início do século XIX, a Europa
continuava a temer os corsários do Magreb. Sempre que aparecia o pavilhão
de Túnis ou de Trípoli, os veleiros napolitanos refugiavam -se perto da costa e
suas tripulações fugiam. Os mercadores de Marselha, Livorno e outros polos
do comércio marítimo europeu aproveitavam -se amplamente dessa situação
para atrapalhar seus concorrentes, especialmente Tunis -ach -chattra (a Tunísia
ladina), que apareceu na cena Mediterrânea no decorrer das guerras napoleô-
nicas. Em 1800, os navios de Túnis apresentaram -se em Malta e, em 1809, em
Livorno. O dei de Argel firmou acordos vantajosos para as vendas de trigo.
As condições do comércio e da navegação marítima, fixadas pelos Estados do
Magreb, provocaram um vivo descontentamento na Europa. A Argélia, a Tunísia
e a Tripolitânia arrecadavam tributos e cobravam a passagem dos navios das
potências amigas, apoiando -se em tratados de paz e de navegação marítima.
Os atrasos de pagamento e outras violações dos tratados acarretaram inúmeros
conflitos, envenenando cada vez mais as relações entre o Magreb e a Europa
1
.
1 Para mais detalhes, consultar N. A. Ivanov, 1976, cap. 3 e cap. 4.
Novas formas de intervenção europeia
no Magreb
Nicolay A. Ivanov
572
África do século XIX à década de 1880
A burguesia dos Estados mediterrâneos da Europa apoiava os piratas mal-
teses e napolitanos que perseguiam cruelmente os navios mercantes muçulma-
nos. Desde o fim das guerras napoleônicas, ela conseguiu organizar grandes
expedições navais contra o Magreb. Sob o pretexto de lutar contra a pirataria,
a Inglaterra, a França, a Holanda, a Áustria, e os Estados Unidos da América
dirigiram suas esquadras rumo ao litoral da África do Norte. Em 1815, os navios
americanos foram os primeiros a chegar a Argel. A esquadra anglo -holandesa,
sob o comando de Lorde Exmouth e de Van Cappellen, chegou por sua vez no
ínicio de 1816. Depois das sanções” contra Trípoli e Túnis, ela submeteu Argel a
um bombardeio feroz (em 27 de agosto de 1816), arremessando na cidade 34.000
obuses. De novo, em 1819, viu -se chegar uma esquadra anglo -francesa na África
do Norte, obrigando os regentes de Túnis, Argel e Trípoli a decretar o fim da
pirataria. Em 1825, os ingleses mais uma vez bombardearam Argel. Em 20 de
outubro de 1827, no decorrer da batalha de Navarin, o que sobrava das frotas
tunisianas e argerianas, assim como navios egípcios e turcos, foram destruídos
pela esquadra unida anglo -franco -russa. Em 1829, os austríacos queimaram os
navios marroquinos que, sob as ordens de Mūlaāy Abd al -Rahmān, tentavam
retomar a guerra santa. Os países do Magreb perderam a guerra no mar, abrindo
assim o caminho para a impetuosa expansão do comércio dos Estados europeus.
Após terem aniquilado a frota magrebina, estes se asseguraram do monopólio do
pavilhão e se apossaram, de fato, do comércio de Túnis e Trípoli com a Europa.
O Marrocos e a Argélia tentavam, cada um por si, defender suas posições.
Isso provocou a agravação ulterior de suas relações com as potências maríti-
mas. A recusa do governo do dei de Argel em reservar direitos e privilégios
particulares para os negociantes franceses, que reclamavam a instauração de
um estatuto de extraterritorialidade” na Argélia especialmente a recusa do
dei em reconhecer a competência exclusiva da França no solucionamento dos
litígios pecuniários entre os dois países – levou ao famoso “golpe de leque (em
30 de abril de 1827) e à declaração do bloqueio marítimo da Argélia. Quanto
ao Marrocos, este decidiu desvencilhar -se do mundo exterior e fechou o país aos
estrangeiros. Em 1822, havia apenas cinco portos marroquinos onde os europeus
podiam entrar para firmar acordos comerciais cuidadosamente controlados.
A pressão europeia sobre a sociedade tradicional
O crescimento do comércio Europeu em Túnis e Trípoli, seu caráter usurá-
rio e os processos de inflação na economia destes países deram origem a seus
573
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
problemas financeiros
2
. Em 1824, o regente de Túnis contratou os primeiros
empréstimos; o da Tripolitânia, oriundo da família Kāramānlī, apenas seguiu
o exemplo. Alguns ministros desses países endividaram -se. Portanto, não é de
se espantar que, por volta do final da década de 1820, Túnis e Trípoli tenham
renunciado a qualquer resistência política à Europa.em 1827, não recusavam
mais nada aos cônsules estrangeiros e, pouco a pouco, seguiram o curso da polí-
tica destes. Os primeiros tratados desiguais impostos a esses Estados refletiam
o caráter peculiar das relações de Túnis e Trípoli com as potências europeias. De
acordo com o tratado franco -tunisiano de 8 de agosto de 1830, Túnis confirmava
todos os tratados de paz, de comércio e de navegação marítima precedentes.
Outrossim, Túnis reservava à França o direito da nação mais favorecida, renun-
ciava a qualquer dádiva ou tributo reclamado antes aos países europeus, aceitava
o princípio do livre comércio e ampliava os direitos de extraterritorialidade dos
estrangeiros. Em 11 de agosto de 1830, firmava -se semelhante tratado entre a
França e Trípoli.
Todos esses tratados reforçaram consideravelmente as posições francesas
na África do Norte. A Tunísia transformou -se rapidamente em semivassalo da
França. A maior rival desta última, a Inglaterra, estava seriamente preocupada
e fez todo o possível para garantir o êxito da expedição turca de 1835 na Tri-
politânia. No mês de maio, os turcos aproximaram -se do litoral de Trípoli e,
após haverem destronado a dinastia dos Kāramānlī, em de junho de 1835,
decretaram o reestabelecimento do poder otomano. Em 1835 -1836, as guarni-
ções turcas estavam instaladas em diversos centros do litoral de Tripolitânia e
Cirenaica. Entretanto, a conquista de algumas regiões interioranas encontrou
sérias dificuldades. De 1835 a 1858, os turcos travaram uma luta acirrada contra
as revoltas da população autóctone, em meio a qual surgiram eminentes líderes:
a maior glória coube a Ghūma al -Mahmūdī, inimigo irredutível dos turcos que
morreu em combate, em março de 1858.
À medida que subjulgavam o país, os turcos introduziram uma reforma
administrativa e judiciária concebida segundo modelos europeus. O governador
‘Uthmān Amīn Pacha (1842 -1847) reorganizou a administração, a justiça, o sis-
tema fiscal etc., de acordo com os princípios do tanzīmāt. Em 1851 foi fundado
o tribunal misto de Trípoli, fazendo com que as posições dos estrangeiros se
reforçassem imediatamente. Todas essas medidas, assim como as reformas que
solapavam a sociedade tradicional, suscitavam a incompreensão e os protestos
2 M. H. Chérif, 1970, e E. Rossi, 1968, p.282 e seguintes.
574
África do século XIX à década de 1880
da população autóctone, principalmente dos grupos nômades e dos camponeses.
“Os turcos e os europeus – dizia Sīdī Muhammad al -Mahdī, filho do fundador
da Sanūsiyya são farinha do mesmo saco
3
.”
Na Tunísia, as reformas foram empreendidas em 1830 e depois prosseguidas
por Ahmad Bey (1837 -1855), fervoroso admirador de Muhammad Ali. Com o
intuito de superar o atraso militar e técnico, os regentes de Túnis desativaram a
milícia dos janízaros e, ao importar máquinas e equipamentos da Europa, lan-
çaram as bases de um exército regular e de uma indústria militar. A exemplo do
Egito, foram introduzidos monopólios governamentais levando à estatização da
economia. Um banco estatal foi criado em 1847 e uma moeda fiduciária posta
em circulação. Em 1841, Ahmad Bey proibiu a venda de escravos e aboliu qual-
quer forma de escravidão na Tunísia. Em 1838 foram fundadas a Escola Militar
e a Escola Politécnica. Os tunisianos começaram a estudar línguas estrangeiras,
a estudar no exterior e a traduzir obras de autores europeus.
Desejosas de lisonjear os cônsules estrangeiros, as autoridades de Túnis e de
Trípoli incentivavam a atividade dos missionários cristãos. Em Trípoli, os fran-
ciscanos abriram a primeira escola para rapazes em 1816 e para moças em 1846.
Em 1845, o abade Bourgade criou na Tunísia o colégio Saint -Louis e algumas
escolas primárias, assim como a gráfica árabe de Túnis. Em 1826 estrearam as
primeiras apresentações do teatro de Livorno
4
. Em 1838 foi lançado o primeiro
jornal tunisiano em italiano; muitos emigrantes italianos instalaram -se no país,
inclusive refugiados políticos como Garibaldi (em 1835 e 1849).
Múltiplos contatos com os europeus contribuíram com o despertar inte-
lectual do país e lançaram as bases da ocidentalização das elites. Influenciados
pelo uniforme militar, os meios dirigentes de Túnis e Trípoli assimilaram as
vestimentas, as maneiras e o estilo de vida europeus. Não sobrou nenhum rastro
dos antigos preconceitos antieuropeus. Em 1845 -1846, as autoridades tunisia-
nas organizaram suntuosas recepções em honra do Duque de Mont Pensier
e do Princípe de Joinville, filho do Rei da França, Luís -Filipe. Em novembro
de 1846, Ahmad Bey viajou para a França, rompendo assim com preconceitos
seculares.
À diferença dos dirigentes, as massas populares, que carregavam em seus
ombros todo o peso da construção dos palácios, das fábricas e dos quartéis,
estavam descontentes com a ocidentalizão e o crescimento da influência
3 E. Rossi, 1968, p. 327.
4 S. Pantucek, 1969, p.47. No que concerne às origens da arte teatral moderna nos países árabes, consultar
T. A. Poutintseva, 1967, e J. M. Landau, 1958.
575
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
estrangeira. Elas consideravam os dirigentes renegados e continuavam fiéis ao
modo de vida tradicional. Os dirigentes da Argélia e do Marrocos assumiram a
mesma atitude,que ambos os países se encontravam à margem das influências
ocidentais que invadiram, à época, a maioria dos estados muçulmanos.
A conquista da Argélia
A inércia do governo custou caro à Argélia. Após ter feito tudo para envene-
nar as relações com a França, o dei Husayn não empreendeu nada para reforçar
a defesa do país. Aos olhos dos patriotas argelinos, isso beirava a traição e sig-
nificava a corrupção do regime
5
.
A Argélia era totalmente despreparada para a guerra. Esperava -se o inimigo
três anos. Porém, quando navios franceses chegaram, em 14 de junho de
1830, à baía de Sīdī Farrudj (nos relatórios franceses: Sidi -Ferruch), a surpresa
foi total. Os franceses conseguiram desembarcar um corpo expedicionário de
37.500 homens, sob o comando do general de Bourmont. Foi somente em 19
de junho de 1830 que a maior parte das tropas do dei (janízaros e makhzen),
sob as ordens de Ibrāhīm Agha e reforçada pelas milícias de Kabilia 40.000
homens no total –, atacou os franceses em Staoueli. Essa batalha terminou com
a derrota total de Ibrāhīm Agha e revelou a imperfeição da organização militar
e técnica do exército do dei, que apenas pôde opor aos franceses a coragem de
seus soldados. A segunda tentativa para rechaçar o inimigo (a batalha de Sīdī
Khalef, em 24 de junho) findou -se com outra derrota de Ibrāhīm Agha. Em 29
de junho, após ter tomado a parte alta de Bouzareah, os franceses iniciaram o
sítio do forte chamado Sultão Calassi (o forte do Imperador), que assegurava a
defesa de Argel em terra firme. Eles lançaram o ataque em 4 de julho.
Foi um combate cruel entre a arte e o desespero – escreveu o coronel Bogdanovitch.
Por fim a arte venceu: os sólidos muros do castelo desmoronaram; os canhões que
o defendiam foram danificados; corajosos turcos faleceram sob a chuva de balas de
canhões e de bombas; os últimos soldados da guarnição precipitaram -se rumo à
cidade; mas, em vez da salvação que ali esperavam encontrar, eles caíram sob as balas
dos canhões da Casbah, voltados contra eles sob a ordem do dei
6
.
5 Tal estado de espírito pode ser encontrado na obra de M. ibn Abd al - Kādir, 1903. Os trechos mais
característicos são sitados por A. Benachenhour, 1966, p.49.
6 M. N. Bogdanovitch, 1849, p.54.
576
África do século XIX à década de 1880
Em 5 de julho de 1830, o dei assinou a ata de capitulação e a rendição de
Argel. Foi -lhe permitido, assim como a todos os membros do wān e aos
janízaros, deixar o país com suas famílias e seus bens. A autoridade suprema
passou para as mãos do comando francês. Porém, este último estava desprovido
de qualquer estrutura administrativa e não tinha a menor ideia do que era pre-
ciso fazer. É muito curioso constatar que o conde de Bourmont, que recebeu o
bastão de marechal pela derrota do exército do dei, ordenou a seus engenheiros
a preparação de dois projetos simultâneos: o primeiro consistindo em alargar
e aprofundar o porto de Argel, e o segundo em atulhá -lo! O governo Polignac
deu início a negociações no intuito de submeter Argel à administração direta
dos turcos
7
. Após a revolução de julho de 1830 surgiram planos de partilha do
país: deixava -se aos franceses a cidade de Argel e um certo número de loca-
lidades do litoral, e as províncias de Orã e de Constantina passavam para os
beis tunisianos. Os efetivos do exército de ocupação foram reduzidos a 9.300
homens. Todavia, os tratados com a Tunísia, assinados pelo general Clauzel
em 18 de dezembro de 1830, não foram ratificados pelo governo francês. Os
generais franceses continuavam assumindo todos os riscos de suas ações. Após
terem obtido um certo aumento dos contingentes militares, eles ocuparam O
(1831), Bône (1832) e Bougie (1834).
As indecisões do governo francês foram finalmente resolvidas em proveito da
burguesia de Marselha e do exército de ocupação que, empolgado pelas vitórias
fáceis, saqueava descaradamente o país e não queria renunciar aos “frutos da
vitória”.
O decreto de 22 de julho de 1834, para o estabelecimento de um governo
geral das possessões francesas na África do Norte, significava a renúncia à eva-
cuação de Argel. A concepção da ocupação restrita” foi adotada oficialmente
até 1840. Sua interpretação concreta dependeu totalmente da vontade e das
disposições pessoais dos inúmeros generais franceses que governaram o país de
1830 a 1841. Na maioria dos casos, eles escolheram o sistema do “governo indi-
reto”, assinando tratados com chefes locais (paz, reconhecimento de vassalagem,
liberdade do comércio e pagamento de tributos). Para estabelecer o contato com
7 Em 1830, após a derrota do exército do dei, a Porta insistiu em preservar a integridade territorial da
Argélia, sob as ordens do sultão, e não reconheceu a conquista francesa. Entretanto, após ter perdido
seu exército e sofrido um revés nanceiro durante a guerra contra a Rússia, em 1828 -1829, a Turquia
não tinha condição de empreender nada, a não ser declarações de protesto. É preciso destacar que, ao
buscar contatos com a Porta sobre a questão argeliana, o governo francês queria, em primeiro lugar,
obter o consentimento da Rússia. Para as referências relativas aos documentos dos arquivos diplomáticos
franceses, ver C. -R. Ageron, 1964, p. 9.
577
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
os comandantes franceses, organizaram -se “escritórios árabes”, que se tornaram
pouco a pouco o elo principal do “governo indireto”. Foi apenas nas localidades
do litoral, onde as guarnições francesas se instalaram de forma permanente, que
o sistema da administração civil começou a se formar. Tal sistema reproduzia
espontaneamente os princípios e as normas da vida administrativa da metrópole
e, pouco a pouco, acabou sendo reconhecido pela lei. Em 1845, a totalidade
do território da Argélia estava dividida em “território árabe”, onde reinavam a
sharī‘a (lei alcorânica) e o sistema de “governo indireto”, e em “território civil”,
onde estavam instituídas oficialmente a justiça e a administração francesas. Em
particular, o decreto de 28 de setembro de 1847 aplicava ao “território civil” a
lei de 1837 sobre os municípios.
A resistência na Argélia
A ocupação das regiões litorâneas não alterou as estruturas sociais da socie-
dade argeliana. Os chefes tradicionais, que muitas vezes eram os representantes
da antiga elite dirigente, detinham, como antes, os poderes locais. A capitulação
do dei e a confusão da antiga administração criaram um vazio político. Na Argé-
lia começou o “tempo da anarquia (1830 -1834), durante o qual diversos centros
e comunidades locais não reconheceram mais nenhum poder. Com a exceção de
algumas camadas da população urbana abastecida e de alguns chefes políticos,
o país era hostil à presença francesa. As massas da população, principalmente
os camponeses e os nômades, estavam decididas a defender sua personalidade e
sua independência. Contudo, a ausência de poder centralizado ou de um centro
comum deu necessariamente um caráter local a esta luta, na qual predominavam,
muitas vezes, formas passivas e não coordenadas de resistência. De início surgi-
rams diversas fomas desta resistência, como o não reconhecimento da ocupação,
a fidelidade ao islã, o bloqueio das cidades e das regiões ocupadas, assim como
o ataque dos destacamentos franceses e dos postos fortificados, o assassinato de
alguns europeus e a justiça sumária contra os traidores e os renegados, que se
assemelhavam a um verdadeiro massacre.
À medida que a luta se organizava, dois principais centros de resistência
se constituíram: a Leste e a Oeste do país. A Leste da Argélia, Ahmad Dey,
antigo gorvernador de Constantina, pôs -se à frente da luta. Apoiou -se no que
sobrava dos janízeros e nas comunidades makhzen do Leste da Argélia, seguiu as
orientações da Porta e tentou reestabelecer o Estado dos deis. Proclamando -se
sucessor do dei Husayn, pôs fim à desorganização da administração, consolidou
578
África do século XIX à década de 1880
o aparelho do Estado e reforçou o exército. No início, ele representou a principal
ameaça para os franceses.
A Oeste do país, foi Abd al -Kādir, filho de um marabuto de origem xeri-
fiana, que tomou a frente da luta; ele contava com o apoio do Marrocos. Em
suas declarações, prometia pôr fim à anarquia, defender a sharī‘a e travar a
guerra santa contra os franceses. Em outubro de 1831, foi proclamado emir e
se instalou na residência dos beis, em Mascara. Em 27 de novembro de 1832,
a assembleia dos ‘ulamā’ e dos representantes de grupos beduínos da Argélia
Ocidental reconheceu -o como governador. A energia, a vontade e a coragem,
assim como os sucessos na luta armada contra os franceses, particularmente a
vitória da Macta (em 26 de junho de 1835), consolidaram a autoridade de Abd
al -Kādir. Por duas vezes Tratado Desmichels, em 27 de fevereiro de 1834,
e Tratado da Tafna, em 30 de maio de 1837 –, os franceses reconheceram -no
como único governador de toda a Argélia Central e Ocidental, com excessão
das enclaves litorâneas. Defensor convencido do islã, fervoroso admirador de
Muhammad Alī, poeta e pensador, Abd al -Kādir aspirava não somente rege-
nerar a Argélia, como também reformá -la. Na luta acirrada contra os beis de
Orã e do Titteri, antigos janízaros, contra os kologlu e as comunidades makhzen
que estavam a seu serviço, mas também contra os partidários de Ahmad Bey e
a confraria tijāniyya, cujo bastião era Kasr ‘Ain -Mahdī, tomada em 1838,Abd
al -Kādir criou o Estado unificado e centralizado dos xerifes árabes. Tal estado
abrangia os dois terços do território da Argélia contemporânea. Nessas terras,
Abd al -Kādir pôs fim à anarquia e à desordem e criou um sistema judiciário e
administrativo bem organizado (sistema dos khalifa, aghalik e kā‘īd), que impu-
nha uma disciplina severa. Em 1838, ele empreendeu a formação de um exército
regular que, dois anos mais tarde, contava com 10.000 homens. A exemplo de
Muhammad ‘Alī, ele estatizou a economia, estabeleceu o sistema dos monopó-
lios e criou algumas fábricas de armas e fortalezas, no intuito de defender o país
contra os elementos subversivos e o inimigo externo
8
.
Nos primeiros tempos, os argelianos obtiveram algum êxito. Aproveitando -se
habilmente da indecisão de Paris e da incapacidade dos generais franceses de
opor uma estratégia à tática da guerrilha, os argelianos conseguiram, até 1837,
impedir todas as tentativas dos franceses de entrar nas cidades cercadas. Algumas
derrotas sofridas no Oeste (evacuação de Mascara, perda de Tlemcen, derrota ao
Norte do Sikkak, em julho de 1836) foram compensadas pela esplêndida vitória
8 Uma análise detalhada das estruturas políticas e militares do Estado de Abd al -Kādir encontra -se no
livro já citado de A. Benachenhour, 1966, p. 68 e seguintes.
579
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
. Abd al -Kādir [Fonte: quadro de Ange Tissier, Musée de Versailles. Foto: Photothèque, Groupe
Presses de la Cité, Paris.]
580
África do século XIX à década de 1880
dos 23 -24 de novembro de 1836 em Constantina, onde as tropas de Ahmad Bey
e os defensores da cidade, sob o comando de Ben Aissa, destroçaram as tropas
do marechal Clauzel, que contavam com 7.400 homens. Contudo, o isolamento
da resistência tornou essa vitória quase inútil. Após ter concluído o Tratado da
Tafna, os franceses dominavam o Oeste e, em 1837, depois de uma cuidadosa
preparação, lançaram uma campanha decisiva contra Ahmad Bey. Em 13 de
outubro de 1837, Constantina foi tomada, o que constituiu a queda do baluarte
da resistência organizada a Leste. Ahmad Bey refugiou -se nas montanhas, de
onde assediou os franceses e o governo fantoche do Leste do país até 1848.
Após a queda de Constantina, o essencial da luta desenrolou -se a Oeste.
Em resposta ao desfile de provocação das tropas francesas nas “Portas de ferro
(Bibān),Abd al -Kādir declarou a jihad e destruiu os arredores de Argel. Entre-
tanto, foi obrigado a permanecer na defensiva depois de sua derrota do Wādī
al -Alleug, em 31 de dezembro de 1839. Em 1840 -1841, ele abandonou Mascara,
Saida, Medea, Taza, Boghar, Saāda e, finalmente, Takdempt. Em 1842, ele
criou uma capital nômade apelidada de Smala. Seu desbaratamento diante das
 . Soldados de ‘Abd al -Kādir: a infantaria
F . Soldados de ‘Abd al -Kādir: a cavalaria [Fonte: C. A. Julien, Histoire de l’Algérie contemporaine.
Conquête et colonisation, 1964, PUF, Paris. Ilustrações reproduzidas com a autorização da Biblioteca Nacional
da França, Paris.]
581
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
tropas do Duque de Aumale, em 15 de maio de 1843, provocou a desorganiza-
ção de todo o mecanismo administrativo e militar por ele implantado. Retirou-
-se no Marrocos com um grupo de partidários. As promessas lisonjeiras, o ouro
dos agentes franceses, a posição de alguns líderes religiosos, difundindo a fatwā
dos ulamā’ de Kairuan e do Cairo, que reprovavam “a resistência absurda”, e,
finalmente, a crueldade inútil do emir, todos esses fatores não foram, contudo,
as únicas causas da derrota de Abd al -Kādir. É preciso atribuir uma grande
importância à “tática da terra queimada” aplicada pelo Marechal Bugeaud, que
ordenou queimar as lavouras, levar os rebanhos e apoderar -se dos silos de grãos
e dos pontos de acesso à agua.
As tentativas de Abd al -Kādir para retomar a luta a partir de suas bases
marroquinas levaram à guerra franco -marroquina. A catástrofe de Isly, em 14
de agosto de 1844, e o bombardeio de Tanger e de Mogador pela frota francesa
forçaram Mūlāy Abd al -Rahmān a recusar seu apoio a Abd al -Kādir e a assinar
a paz com a França. O sultão denunciou ‘Abd al -Kādir como kāfir e chegou a
dar início a hostilidades contra ele. Em 1845, a confraria taibiyya anunciou a
 . A guerra franco -marroquina: a batalha de Isly, 1844. [Fonte: N. Barbour, Morocco, 1965, ames
and Hudson, Londres. Foto: Le Seuil, Paris.]
582
África do século XIX à década de 1880
chegada do Mahdī Muhammad ibn Abdullāh, mais conhecido como Bū Ma‘za
(o homem da cabra), e proclamou a jihad. Logo, a revolta ganhou a Dahra, o
Ouarsenis e o Vale do Shelif. Simultaneamente apareceram nas estepes peque-
nos destacamentos veis de Abd al -Kādir e de seus inimigos de longa data,
os marabutos dergawa, eles também em luta contra os franceses. A repressão
desta revolta mal organizada e isolada foi acompanhada por manifestações de
crueldade excepcionais. Basta lembrar a ação do coronel Pélissier, que sufocou
com fumaça centenas de argelianos refugiados nas cavernas das montanhas. Foi
somente em 1847 que Bū Ma‘za e, a seguir,Abd al -Kādir depuseram as armas
e renderam -se aos vencedores.
Em 1848 -1849, os últimos focos de resistência foram aniquilados nos Aurés
e no Mzāb, onde Ahmad Bey e o marabuto Ziyan se encontravam à frente da
luta. Em 1852, após duras batalhas, os franceses ocuparam Laghwāt e, em 1854,
Tuggurt. Em 1856, uma delegação de tuaregues saarianos foi a Argel e decla-
rou sua lealdade para com a França, prometendo -lhe o apoio dos tuaregues até
Tombuctu. No Norte do país, os montanheses de Kabilia foram os últimos a se
 . A submissão de ‘Abd al -Kādir. [Foto: Photothèque, Grupo Presses de la Cité, Paris.]
583
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
submeter. Desde 1851, liderados por Bū Baghla, eles resistiram obstinadamente
às ambições dos franceses, que queriam conquistar as montanhas de Grande e
Pequena Kabilia. Foi apenas em 1857, após uma luta acirrada contra as tropas
do general Randon, que cessaram de resistir. O país inteiro passou sob o controle
do comando francês e tornou -se um conglomerado de municípios franceses e
de territórios vassalos sob a tutela dos “escritórios árabes”.
A colonização e a sujeição nanceira
A ameaça de uma revolta generalizada forçou o governo francês a renunciar
à colonização das regiões interioranas da Argélia. As experiências de colonização
de Bugeaud, assim como a expansão da imigração durante a Segunda Repú-
blica (1848 -1851) e o Ministério da Argélia (1858 -1860), chocaram -se com
a firme resistência do exército, responsável pela segurança do país. A política
de assimilação dos republicanos que, em 1848, proclamaram a Argélia como
parte integrante da França e dividiram o “território civil” do país em depar-
tamentos, distritos e municípios, com administradores franceses a sua frente,
não se desenvolveu durante o Segundo Império. Ademais, em 1852, Napoleão
III ab -rogou a representação dos europeus da Argélia no parlamento francês
e, em 1860, após uma visita à Argélia, condenou definitivamente a política de
assimilação. O romantismo dos oficiais superou o mercantilismo dos colo-
nos. Para contrabalançar a influência dos colonos, Napoleão III decidiu aliar -se
aos chefes tradicionais (os “feudais”), declarando que a Argélia era um reino
árabe”. O “território civil” era estritamente limitado (10.160 km
2
em 1866, isto é,
2,5% de todo o território da Argélia do Norte e 8% da população muçulmana).
Além destes limites, todo o poder permaneceu nas mãos da hierarquia militar
e administrativa muçulmana, agindo sob o controle dos escritórios árabes”. De
acordo com a ideia de Napoleão III, os emigrados europeus deviam instalar-
-se unicamente nas cidades para cuidar do comércio e dos ofícios. Conforme
o senatus -consulto de 1863, as terras eram reservadas às comunidades, que as
possuiam segundo os princípios tradicionais
9
. Apenas os excedentes” de terra
9 A característica das estruturas sociais tradicionais da sociedade argeliana pré -capitalista deu lugar a dis-
cussões acirradas. O debate dos historiadores soviéticos, quanto à natureza das sociedades pré -capitalistas
na Ásia e na África, encontrou um prolongamento inesperado no decorrer das discussões a respeito
do “modo de produção asiático”, em 1962 em Paris, sob a égide do Centro de Estudos e de Pesquisas
Marxistas. O artigo de Abd el -Kader Djeghloul, publicado na Argélia em Les Archives nationales (1975,
nº3, p.57 -80) e, depois, na França em La pensée (1976, p.61 -81), retomou essa discussão. No decorrer
dos colóquios internacionais de Kichinev (1973) e de Bucareste (1974), desenvolveu -se uma concepção,
584
África do século XIX à década de 1880
eram repassados ao Estado e podiam ser emprestados a sociedades concessio-
nárias e a particulares. No domínio da indústria e do comércio, o livre empre-
endedorismo privado era ilimitado. Os monopólios da época dos deis e de Abd
al -Kādir foram totalmente abolidos. Ao modernizar a estrutura administrativa e
judiciária herdada de ‘Abd al -Kādir, os poderes reorganizaram a justiça muçul-
mana (em 1854). Essa reforma foi completada pela criação das câmaras mistas
franco -muçulmanas e do Conselho superior de direito muçulmano. Os prota-
gonistas do reino árabe” prestaram atenção ao culto muçulmano, encorajaram
a construção de mesquitas, a peregrinação para Meca etc. O senatus -consulto
de 1865 deu aos argelianos o direito de ingressar no exército francês e na admi-
nistração. Finalmente, em 1869, foi elaborado um projeto de constituição para
a Argélia
10
, prevendo a autonomia do país e a representação dos muçulmanos
em todas as assembleias eleitas.
As reformas administrativas, judiciárias e econômicas realizadas na Tunísia
e na Tripolitânia, em meados do século XIX, possuíam um conteúdo análogo.
Na Tunísia, o grupo dos liberais, liderado por Khāyr al -Dīn Pacha (1826 -1889)
e apoiado pelas potências, conseguiu, em 9 de setembro de 1857, publicar o
Ahd al -Amān (o Pacto Fundamental) manifesto das reformas reproduzindo
os princípios essenciais dos tanzīmāt. Como consequência desse manifesto, os
monopólios foram suprimidos, a liberdade do comércio privado estabelecida
(outubro de 1857), o conselho municipal de Túnis constituído (1858) e o sis-
tema administrativo e judiciário reorganizado (1860). Em 23 de abril de 1861,
a Constituição foi promulgada: ela tornava os ministros responsáveis perante
uma assembleia representativa, o Conselho Supremo. Na Tripolitânia, sob o
governador Mahmūd Nedim Pacha, em 1865, foi realizada uma nova reforma
administrativa e foram organizados tribuinais comerciais, civis e criminais.
Essas reformas criaram as condições necessárias para a empreitada privada
na Argélia, na Tunísia e na Tripolitânia. A supressão das barreiras alfandegárias
entre a Argélia e a França (1851) abriu os mercados desses países às mercado-
rias de além -mar. O grande capital, os bancos, as sociedades de concessão e as
a meu ver mais fecunda, do “feudalismo oriental”. Partindo da teoria da “pluriestruturação social”, R. G.
Landa (1976, p.49 -55, 109 -120) propôs sua própria solução ao problema. O livro de M. M. Kovalevskii
(edição de F. B. Miller, 1879) não perdeu sua importância no que diz respeito ao estudo da sociedade
comunitária de Kabilia. Pode -se encontrar uma análise das diferentes formas de contratos agrícolas
em L. Milliot, 1911. Um dos livros mais abrangentes fazendo o balanço dos estudos sobre o problema,
segundo as fontes francesas, é aquele de J. Ruedy, 1967.
10 Ver C. -R. Ageron, 1964, p.32 -38; e 1972, p.60 e seguintes, onde o autor reavalia de maneira crítica
alguns estereótipos tradicionais da historiograa francesa.
585
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
companhias fundiárias tinham o caminho livre. A partir de 1851, bancos foram
criados na Argélia: Banque d’Algérie e, a seguir, Société Coloniale de Crédit Agricole
(1863), assim como outros estabelecimentos. Na Tunísia, as primeiras tentativas
feitas pelos ingleses para constituir o Bank of Tunis (1858) foram contrariadas
pelos franceses. Somente em 1873 conseguiram fundar The London Bank of
Tunis. Os franceses criaram a Société Franco -tunisienne de Crédit (1879). Na
Tripolitânia, os primeiros bancos apareceram em 1880. Os bancos, as sociedades
de consessão e as companhias eram estritamente ligados. Gozavam, na Argélia,
dos favores das autoridades, em particular a gigante Compagnie genevoise (1853,
20.000 hectares) e a Société générale algérienne (1864, 100.000 hectares), entre
outras. Na Tunísia, os ingleses obtiveram a primeira concessão (Djedeida: 7.000
hectares), em 1856. Os italianos, que organizaram, em 1870, a Società anonima
commerciale, industriale ed agricola per la Tunisia, foram seguidos pelos franceses
(domínio de Sīdī Tabet, em 1876). Eles começaram a extrair chumbo e a expor-
tar alfa; experimentou -se a cultura do algodão, do tabaco, das batatas etc. Em
1857 na Argélia e em 1859 na Tunísia, decidiu -se construir estradas de ferro. As
companhias estrangeiras modernizaram os portos, instalaram linhas telegráficas,
construíram estradas e diques; a infraestruturação das cidades, principalmente
no litoral, estava em andamento.
À infraestrutura econômica, que facilitava a valorização da África do Norte
pelos capitais estrangeiros, acrescentou -se um tipo de infraestrutura cultural,
ligada ao estudo dos recursos naturais e à formação de quadros europeanizados.
Em 1857 foi aberto na Argélia o primeiro colégio franco -árabe e, em seguida,
em 1865, a Escola Normal. Na Tunísia, além do colégio Saint -Louis, foi criado o
colégio nacional Sādikī (1875) e os currículos da “Zitouna foram modernizados.
Em Trípoli, a primeira escola laica, onde eram ensinadas as línguas estrangeiras,
foi aberta em 1858. Assistiu -se ao surgimento da imprensa árabe e dos jornais
governamentais al -Moubachir na Argélia (1847), Ar -Raid at -Tunisi na Tunísia
(1860) e Tarābols al -Gharb em Trípoli (1866)
11
.
Ao passo que, na Argélia, a valorização do país pelos capitais europeus come-
çou depois da ocupação, na Tunísia e na Tripolitânia, ela precedeu a conquista. A
sujeição colonial desses países deu -se com a complacência, quiçá a cumplicidade,
dos chefes locais. A modernização desses países, que pesava em seus orçamen-
tos, foi realizada em grande parte por empréstimos estrangeiros. Estes foram
concedidos com condições extremamente pesadas que levaram à espoliação por
11 A respeito dos primeiros jornais em árabe na África do Norte, ver F. Di Tarazi, 1913, e C. Sourian-
-Hoebrechts, 1969.
586
África do século XIX à década de 1880
parte dos funcionários locais e dos fornecedores europeus. Afinal de contas,
tais empréstimos acarretaram um crescimento exorbitante da dívida externa.
Quando, em 1869, o endividamento da Tunísia ultrapassou em doze vezes suas
receitas orçamentárias, o governo faliu e aprovou a instituição da Comissão
Financeira Internacional, que tomou o controle das finanças do Estado. Embora
conservasse os atributos da indepedência, a Tunísia transformou -se em uma
semicolônia das potências europeias.
O Marrocos, que se opôs por mais tempo que os outros países norte -africanos
à pressão estrangeira, submeteu -se finalmente à mesma sorte. O tratado anglo-
-marroquino de 1856 “abriu” o país aos capitais estrangeiros. A guerra hispano-
-marroquina
12
de 1859 -1860 findou -se pelo penoso tratado de paz de Tetuão
(26 de abril de 1860). A Espanha alargou suas enclaves, obteve uma enorme
contribuição e, fato essencial, conseguiu estender os direitos e os privilégios do
estatuto de extraterritorialidade do qual se beneficiavam seus cidadãos. Tratados
análogos, que deram origem à sujeição colonial do país, foram firmados com a
França (em 19 de agosto de 1863) e com outros Estados europeus.
A “descoberta da Tunísia, da Tripolitânia e do Marrocos, assim como a
conquista da Argélia, foram acompanhadas pelo estabelecimento, nesses países,
de um grande número de estrangeiros (europeus e levantinos), que foram, de
alguma forma, agentes do grande capital. Eles representavam firmas estrangei-
ras, cuidavam do comércio (não desprezavam o contrabando, a usura e outras
práticas duvidosas), compravam casas, jardins e terrenos. Na Tunísia, em Trípoli
e no Marrocos (a partir de 1856), eles gozavam de um estatuto de extraterrito-
rialidade e apenas se submetiam aos cônsules de seu país
13
.
Na Argélia, os colonos europeus encontravam -se em uma situação ainda mais
privilegiada. No “território civil”, eles tinham sua administração, sua justiça e
suas leis, formando assim uma sociedade fechada hostil à população autóctone.
A partir de 1856, o número de nascimentos ultrapassou aquele de óbitos. “São
esses sinais, escreveu C. R. Ageron, que comprovam a fundação de uma colônia
de povoamento
14
.” Simultaneamente ao aumento do número de imigrantes
cresciam suas intrigas. Os colonos pretendiam notadamente pôr fim ao regime
do sabre”, “retomar as terras abandonadas” pelo senatus -consulto de 1863,
12 E. Szymanski, 1965, nota 2, p. 54 -64. No que tange às consequências nanceiras penosas da guerra,
consultar G. Ayache, 1958.
13 No livro fundamental de J. -L Miège, 1963, pode -se encontrar uma excelente escolha de materiais a
respeito dos privilégios dos europeus no Marrocos.
14 C. R. Ageron, 1964, p.28.
587
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
instituir em toda parte a propriedade privada das terras e generalizar o sistema
da administração civil.
A resposta da sociedade tradicional
As omissões dos colonos, a onipotência dos homens de negócios estran-
geiros e o próprio fato da penetração crescente dos imigrantes em todas as
esferas da vida nacional suscitavam a irritação dos autócnes da África do Norte.
Os liberais
15
, como Khāyr al -Dīn, Husayn, Kabadu e Muhammad Bayram na
Tunísia ou Koussantini na Algéria, que sofriam ao ver seu país na adversidade,
mas entendiam, por outro lado, a necessidade das reformas, estavam isolados
e incompreendidos pelo povo. A política de civilização” de Napoleão III na
Argélia, assim como as reformas na Tunísia e na Tripolitânia, chocaram -se com
a incompreensão, e mesmo com a hostilidade, da maioria da população. Esta
as interpretava como uma nova etapa da sujeição colonial, como a renúncia à
shari‘a e à personalidade muçulmana. Essas reformas provocaram um ressenti-
mento particular entre os marabutos e a população rural. Os camponeses e os
nômades consideravam renegados os muçulmanos europeanizados e não lhes
davam confiança. A poesia popular
16
mostra que os simples muçulmanos chora-
vam o encerramento da época do regime patriarcal, que eles eram estrangeiros
ao “século da desonra “sem fé nem lei e que desprezavam as pessoas que,
segundo o poeta Mohand -ou -Mhand (1845 -1906), haviam sido leões e, agora,
curvavam -se sob o jugo.
No início dos anos 1860, o apelo para uma luta acirrada contra os estrangei-
ros encontrou um amplo apoio entre o povo, em quase todos os países muçul-
manos. Uma propaganda ativa em favor das ideias da jihad pan -islâmica foi
empreendida. É desta época que data a potência da confraria sanūsiyya, que via
no assassinato dos europeus um ato de grande devoção. Não é de se espantar
que, nestas condições, qualquer dificuldade, ou mesmo incidente fortuito, tenha
servido como pretexto para as ações das massas. As rebeliões, relativamente res-
tritas dos Aurés (1859) e do Hodna (1860), assim como as desordens de Túnis
(1862), anunciavam as grandes insurreições nacionais dos anos 1860 e do início
dos anos 1870. Alastravam -se de forma rápida e confusa, tal um acesso de furor
15 Para as características e as peculiaridades do pensamento liberal árabe do século XIX, consultar A.
Hourani, 1962.
16 Para materiais interessantes, reetindo a luta do povo argeliano na poesia, consultar A. Memmi,1963.
588
África do século XIX à década de 1880
do povo. Saques barbáros, assassinatos, destruição aparentemente absurda de
postes telegráficos, de agências de correio e de tudo que era europeu testemu-
nhavam a enorme força de um desejo escondido de vingança. Habitualmente,
tais insurreições não eram verdadeiramente organizadas. Por vezes, havia chefes
designados, mas não dirigentes absolutos. Apenas a participação das confrarias
religiosas unia -os em uma guerra santa para o triunfo da fé.
A primeira insurreição deste tipo teve lugar na Tunísia: começou no mês
de março de 1864 e se alastrou por todo o país. Alī ibn Guedahem, o bei do
povo”, era o chefe desta insurreição, que teve como ideólogos os irmãos” da
confraria tijāniyya. O isolamento dos insurgentes que, segundo J. Ganiage, não
se decidiam a vencer
17
, permitiu ao governo do bei salvar a capital, destruir as
shartiya (organimos insurrecionais eleitos e assegurando a gestão local) e, no mês
de abril de 1865, abafar os últimos focos de resistência.
A insurreição dos Oueld Sīdī Shaykh, ligados à confraria religiosa dos Der-
gawa, teve um caráter análogo. O levante iniciou -se em abril de 1864, invadiu
vastas extensões dos altos planaltos e, por volta do outono, ganhou a região de
Orã, a Dahra e outras localidades da Argélia Ocidental. Porém, após terem
chamado reforços de além -mar, os franceses conseguiram, em 1865, estraçalhar
os destacamentos insurrecionais liderados pelo lendário Si Sliman.
O anúncio do regime civil, em 9 de março de 1870, e a queda do Segundo
Império marcaram o início de uma grande insurreição na Argélia Oriental. As
primeiras shartiya foram organizadas no outono de 1870, e os primeiros conflitos
armados ocorreram no mês de janeiro de 1871. A insurreição alastrou -se por
quase toda a região de Constantina, pela grande Kabilia e por algumas locali-
dades do Oeste. Em 08 de abril de 1871, Shaykh al -Haddād, chefe da confraria
rahmāniyya, declarou a jihad. O bachagha al -Makrani tornou -se o chefe militar
da revolta e, após sua morte, seu irmão Mezrag sucedeu -o. Foi apenas em
janeiro de 1872 que os franceses se apossaram das bases da insurreição e se
tornaram senhores da situação.
O abafamento dessas insurreições acompanhou -se de uma repressão maciça,
de multas, de confiscações de terras e do desarmamento das comunidades. Não
somente os colonos europeus não se solidarizaram com os insurgentes, como
também alguns dentre eles participaram da luta armada contra os muçulmanos.
de destacar que os imigrantes que lutavam para os ideais revolucionários
democráticos e socialistas o que mostrou claramente a Comuna de Argel de
17 J. Ganiage, 1959, p. 251.
589
Novas formas de intervenção europeia no Magreb
1870 -1871 eram ao mesmo tempo hostis às aspirações nacionais dos muçul-
manos da África do Norte.
Rumo à política imperialista
O esmagamento do movimento insurrecional dos anos 1860 e do início dos
anos 1870 abriu o caminho a uma colonização doravante sem obstáculos da
África do Norte. Ademais, as mudanças que ocorriam na Europa, especialmente
a instauração do domínio do capital financeiro, estimularam a expansão colonial.
Esta tomou, pouco a pouco, o caráter de uma luta meramente imperialista para
a partilha do mundo e para a monopolização das fontes de matérias primas e
outros recursos naturais.
A idade de ouro da colonização começou na Argélia
18
. Em 24 de outu-
bro de 1870, o governador geral militar foi substituído por um “governador
civil dos três departamentos da Argélia”. Em alguns anos, os colonos europeus
transformaram -se em uma camada dominante privilegiada de “cidadãos”, uma
minoria branca gozando de todos os direitos civis e políticos. A população
autóctone, qualificada de “súditos”, era privada de direitos e submetida à regula-
mentação estabelecida na base do pretenso código indígena (decretos de 1874),
instituindo o regime do indigenato” (que duraria até 1936). A nova legislação
fundiária (decreto de Ollivier de 1870 e, sobretudo, lei de 26 de julho de 1873)
estabeleceu o princípio da propriedade privada e da livre transferência de terras
aos colonos. Os investimentos de capitais franceses cresceram consideravel-
mente, assim como o comércio e outros laços econômicos com a metrópole.
Por volta do fim do século XIX, a situação da Tunísia era análoga. O destino
do país foi decidido em 1878, no congresso de Berlim, onde, após um grande
jogo diplomático, Bismarck “devolveu” a Tunísia à França
19
. Para preservar a
independência da Tunísia, Khāyr al -Dīn, então primeiro ministro (1873 -1877),
invocou a ficção da soberania otomana, mas seus esforços não foram coroados de
êxito. Em 24 de abril de 1881, as tropas francesas cruzaram a fronteira. Em 12
de maio de 1881, ameaçando depô -lo, os franceses impuseram ao bei o Tratado
do Bardo e, em 8 de junho de 1883, após a repressão definitiva da resistência,
18 Ver C. R. Ageron, 1968, vol. I.
19 Diferentes aspectos da luta das grandes potências pela Tunísia são expostos de uma maneira detalhada
no livro fundamental de J. Ganiage, 1959. Uma bibliograa mais ampla encontra -se nesta obra, p. 701-
-758.
590
África do século XIX à década de 1880
a convenção de La Marsa, que lançaram as bases jurídicas do regime colonial
do protetorado.
A Tripolitânia e o Marrocos conseguiram adiar a ocupação europeia. No que
concerne a Tripolitânia, a Itália era o principal pretendente; ora, preocupada
com a luta pela Tunísia até 1881, foi apenas no início dos anos 1880 que ela
começou a manifestar suas pretensões
20
. Em 1884 -1885, o Estado -Maior geral
italiano elaborou planos de guerra. Entretanto, por falta de entendimento entre
as potências imperialistas, houve de adiar sua realização
21
. Pelos mesmos moti-
vos, o Marrocos conseguiu evitar a ocupação estrangeira até o final do século
XIX. Todavia, suas tentativas para restringir os privilégios e a arbitrariedade dos
estrangeiros fracassaram. A conferência das potências europeias e dos Estados
Unidos da América, convocada em Madri em 1880, limitou mais uma vez a
soberania do Marrocos e decretou que não se podiam fazer alterações na gestão
do país sem o consentimento das potências.
No mundo muçulmano, a partilha e a ocupação da maior parte da África do
Norte foram consideradas um novo atentado contra o islã. A luta dos comba-
tentes norte -africanos pela encontrou apoio (na maioria das vezes meramente
moral) em Istambul e nos outros países do Oriente
22
. Com base nestes acon-
tecimentos, um novo procedimento foi desencadeado na Argélia e na Tunísia
para impedir a colonização com as armas na mão: revoltas lideradas por Alī
ibn Khalīfa na Tunísia, em 1881 -1883 e por Bū ‘Amāma na Argélia, em 1881.
Porém, apesar da perseverança e do heroísmo dos insurgentes, essas revoltas
não alcaçaram seu objetivo. Afinal, se tratava de combates de retaguarda, as
últimas tentativas de uma sociedade tradicional para defender os caminhos de
um desenvolvimento original, com base nas antigas estruturas morais e sociais,
solapadas no decorrer da conquista estrangeira e do desenvolvimento do
capitalismo colonial.
20 Ver E. de Leone, 1960, p.301 e seguintes. A atmosfera geral da atividade italiana está descrita nas notas
do viajante russo A. V. Elisseev, que visitou a Tripolitânia em 1884. Ver A. V. Elisseev 1896, p. 79.
21 No que tange aos principais traços da luta diplomática que precedeu a conquista da Líbia, consultar V.
L. Loutskii, 1965, p. 269 -272, e a tradução inglesa: V. Lutsky, 1969.
22 Alguns dados a respeito desse problema estão disponíveis em A. Martel, 1965, tomo I, p. 228 e seguintes.
No que concerne às relações entre a Porta e a Sanūsiyya, ver N. A Ziadeh, 1958, p.61 e seguintes. No que
diz respeito às tentativas de Abd al -Hamīd II para coordenar e dirigir as manifestações antiestrangeiras
nos países árabes, em particular no Egito, consultar H. Adali, 1968, p. 54 e seguintes.
C A P Í T U L O 2 0
591
O Saara no século XIX
1
Uma história do Saara deve levar em conta acontecimentos situados em dois
níveis. Primeiramente, o fenômeno do fluxo e refluxo característico da vida
dos nômades saarianos e dos habitantes dos oásis: migrações sazonais alternati-
vas com rebanhos, formação e dissolução de alianças, ascensão e queda de chefes,
colaborações e represálias, epopeias de valentes guerreiros e nobres damas, vida
e ocupação de mercadores, santos e sábios. Como pano de fundo destes eventos
e fatos locais, desdobra -se o quadro bem mais vasto da evolução histórica. No
século XIX, o Saara, malgrado o seu distanciamento, entrou progressivamente
em contato com a economia mundial. Ao final do século, a penetração econô-
mica europeia incidira sobre a vida de muita gente e, embora distante do seu
final, a conquista europeia do deserto provocara mudanças fundamentais na
natureza das relações estabelecidas entre o Saara e o mundo exterior.
Em ambos os níveis, a escassez de dados históricos cria dificuldades e con-
vida a empreender indispensáveis pesquisas nos arquivos otomanos, franceses,
italianos, egípcios e marroquinos, assim como em coleções privadas. No século
XIX, o interesse dedicado pelos europeus ao deserto aumentou em virtude das
potências europeias nele perceberem uma via comercial rumo ao Sudão. Nós
igualmente podemos formular uma ideia acerca dos processos históricos com
1 O autor gostaria de agradecer a Charles Stewart, que atenciosamente aceitou ler a primeira versão deste
capítulo, à qual dedicou certo número de úteis sugestões.
O Saara no século XIX
Stephen Baier
1
592
África do século XIX à década de 1880
a ajuda de dados provenientes de diferentes fontes europeias. Todos os relató-
rios escritos, tanto nas línguas europeias quanto em turco ou árabe, devem ser
completados por relatos orais, os quais somente de modo fragmentado foram
recolhidos. Se importantes pesquisas foram realizadas, por exemplo, em respeito
aos tuaregues do centro saariano, não se dispõe, para outros grupos, senão de
uma documentação histórica dentre as mais escassas. Em certas sociedades saa-
rianas, a falta de dados genealógicos em profundidade e a ausência de escritos
históricos árabes locais impõem ao historiador problemas que talvez não sejam
jamais solucionados.
O presente capítulo examinaa história do Saara no século XIX, interessando-
-se particularmente pelos nômades cameleiros, habitantes do deserto que viviam
dos seus rebanhos. Outrora, possuir camelos conferia aos proprietários uma
temida potência militar: era -lhes possível lançar ataques -relâmpago contra os
habitantes dos oásis e agricultores sedentários, para evadirem -se, em seguida,
em total impunidade. Esta vantagem militar permitia -lhes praticar sequestros
nas comunidades sedentárias, tal como procediam, muito amiúde, nos confins
meridionais do deserto, ou seja, no Sahel, ou ainda impor o seu domínio sobre
os agricultores sedentários dos oásis ou do Sahel, exigindo -lhes um tributo em
troca da sua proteção. Embora capazes de subjugarem homens, destruírem pal-
meirais ou colheitas, pilharem reservas de cereais e desorganizarem o comércio,
os mades buscavam, com maior frequência, não aniquilar os agricultores,
mas controlar a sua produção e dela se apropriar. São justamente e portanto os
nômades que se encontram naturalmente no centro de grande parte da história
econômica e social do Saara, além de terem igualmente desempenhado um papel
essencial na evolução política, militar e religiosa do deserto.
Sociedade e meio ‑ambiente
O nomadismo pastoril é, com toda evidência, uma total e perfeita adaptação
ao ambiente árido do deserto. Entretanto, o quadro de simplicidade enganadora
que evoca a palavra “deserto”, definido em função dos baixos índices pluvio-
métricos, esconde na realidade uma rica variedade de climas e relevos, os quais
moldaram as sociedades do Saara.
Sob o risco da simplificação, pode -se dizer que o deserto está submetido a
dois regimes pluviais, a sua parte meridional recebe precipitações no verão e a
sua parte setentrional no inverno, havendo certa sobreposição dos dois regimes
ao longo da costa atlântica. As chuvas são pouco abundantes e muito desi-
593
O Saara no século XIX
gualmente distribuídas no tempo e no espaço, de modo que, nas regiões mais
áridas do deserto, algumas localidades podem não receber água durante dez
ou mais anos. O deserto é o mais seco em suas partes centrais, especialmente
em direção ao Leste, nos atuais Egito e Líbia oriental. Três “corredores”, com
índices pluviométricos superiores à média, atravessam de Norte a Sul as regiões
centrais secas do deserto: o primeiro une o Senegal ao Marrocos, proximamente
à costa atlântica mais seca; o segundo liga a curva do Níger à Argélia; e o ter-
ceiro acompanha as terras altas, às margens do Mar Vermelho. A população
está evidentemente concentrada nas partes do deserto relativamente mais bem
regadas e as caravanas sempre evitaram, por via de regra, as regiões mais áridas
do Egito e da Líbia. As precipitações aumentam com a altitude, até certo relevo,
e a configuração das terras saarianas apresenta tanta diversidade quanto o clima.
Após as chuvas, cursos d’água até então secos, os wādī, podem novamente fluir
por centenas de quilômetros, em grandes superfícies apenas recobertas por uma
fina camada de areia. Em alguns casos, a agricultura irrigada torna -se possível
graças à proximidade do lençol freático. Nas zonas de dunas, denominadas ergs,
a própria areia retém grande volume de umidade: as dunas absorvem quase toda
a água da chuva, liberando pequeno volume no subsolo aos lençóis aquíferos. Em
suplemento, a areia deixa muito lentamente escapar a sua umidade na atmosfera,
uma vez que somente um lado dos montes está exposto ao vento
2
.
Os pastores e os seus animais não podem viver no deserto senão movendo -se
entre as localidades para explorarem as pastagens, esparsas e efêmeras. Entre-
tanto, nos limites do deserto, o homem pode adaptar -se de diversas formas
ao meio, contando em maior ou menor intensidade com a agricultura e com-
pondo minuciosamente os seus rebanhos. No Sahel, os pastores nômades viviam
mediante relações simbióticas com os agricultores sedentários e alguns nômades
cameleiros dividiam o trabalho da sua família entre a cultura e a guarda dos
animais. Outros privilegiavam as necessidades dos animais em detrimento de
um melhor aproveitamento das plantações; após semearem o solo, eles partiam
com os seus rebanhos em busca de pastagens, retornando posteriormente para
colherem a baixa produção das suas plantações. Nas regiões centrais, secas, do
deserto, os pastores nômades criavam diversas espécies de animais; mas eles
sempre se dedicavam prioritariamente aos camelos, em virtude da sua adaptabi-
lidade à seca. Para criar camelos em boas condições, era necessário oferecer -lhes
diversos tipos de pastagem, impondo -lhes assim, periodicamente, o abandono
2 J. Dubief, 1973, pp. 125 -130.
594
África do século XIX à década de 1880
dos ergs e a ida em direção aos terrenos rochosos (regs). Esta necessidade, assim
como a busca de pastagens, determinava a amplitude dos movimentos próprios
aos nômades cameleiros
3
. Aqueles cujo território compreendia terrenos rochosos
e arenosos contíguos, como os Chaamba, movimentavam -se mais restritamente,
comparativamente àqueles que, como os Regibat, não dispunham dos dois tipos
de solo; isso acontecia malgrado as similaridades de outra natureza que pudes-
sem existir entre os seus respectivos territórios.
O ambiente árido encorajou, junto à maioria das populações nômades, a
evolução de similares sistemas políticos descentralizados, os quais conciliam a
necessidade de dispersão, para a busca de pastagens, e a imposição de agir em
conjunto, frente a uma ameaça externa. Estas sociedades, descritas nas obras
e publicações antropológicas como sistemas de linhagens segmentares, posi-
cionam cada indivíduo em uma série de grupos genealógicos, de mais e mais
amplos, sobrepondo uns aos outros e estendendo -se de tal modo que o ancestral
escolhido como ponto de referência torna -se mais longínquo
4
. A genealogia
pode ser aplicada na divisão de uma sociedade em um número x de segmentos
máximos, dentre os quais, cada um é, por sua vez, dividido em um número y de
segmentos e um número z de clãs, descendo para atingir, pelas escalas inter-
mediárias, a família ampliada. As sociedades organizadas em linhagens podem
resolver os conflitos internos sem recorrerem à autoridade central, caso o poder
de segmentos situados em um nível apropriado da estrutura genealógica estiver
em jogo, e é possível identificar na história destas sociedades muitos exemplos
do funcionamento deste mecanismo. Porém, a história igualmente mostra que
segmentos são capazes de se unirem para enfrentar uma ameaça externa e que
necessidades militares podem inclusive produzir o que se assemelha a uma
autoridade central. As populações sedentárias ou semissedentárias frequente-
mente assimilaram indivíduos estranhos à sua linhagem, imigrantes vindos ao
seu território; do mesmo modo, a residência em um mesmo território é passível,
nestas sociedades, de substituir o parentesco, como princípio de associação. As
sociedades organizadas por linhagem podem, elas próprias, possuir chefes ou
conselhos, em diversos níveis da estrutura segmentária ou distribuídos no seio
desta última; homens ricos são capazes de atrair como partidários, indivíduos
situados além dos limites do parentesco; ou alianças podem contradizer ou par-
cialmente contrabalançar a noção de parentesco como fator de fidelidade.
3 A. Cauneille, 1968, pp. 108 -109.
4 D. M. Hart, 1967, 1970; E. Gellner, 1972, 1969, pp. 35 -69; E. E. Evans -Pritchard, 1949, pp. 29 -61.
595
O Saara no século XIX
Outro traço comum às populações saarianas era a estrutura hierarquizada,
consequência da capacidade dos guerreiros em concentrarem riquezas, de modo
a fortalecer o seu domínio. Era frequente a manutenção da autoridade sobre
grupos de indivíduos livres, embora politicamente subordinados e descendentes
de nômades assujeitados, por parte de famílias de guerreiros aristocráticos. Os
indivíduos em situação nômade, escravos ou descendentes de escravos, trabalha-
vam como domésticos, pastores, artesãos, comerciantes ou agricultores.
Evolução das relações com o mundo externo
Os nômades do deserto viviam em um mundo que lhes era próprio, mas
não demonstravam impermeabilidade frente às influências externas. Em pri-
meiro lugar, eles eram de tal modo especializados na criação de animais que,
para obterem grãos ou o que lhes fosse necessário, deviam contar não somente
com a pilhagem e a imposição de tributos, mas, em suplemento, com as trocas
comerciais pacíficas realizadas junto à coletividade sedentária. Em segundo
lugar, a vantagem militar conferida pela sua mobilidade não se estendia além
dos limites do deserto. As regiões mais férteis alimentavam populações mais
numerosas; e estas zonas, mais densamente povoadas, podiam reunir suficiente
número de defensores, a ponto de compensar a vantagem da qual os nômades,
em menor número, beneficiavam -se em seu próprio domínio.
No início do século XIX, o tipo de interação entre os nômades e os Estados
sedentários era muito diferente nas extremidades norte e sul do deserto. Na
África do Oeste e Central, um problema essencial para os chefes sedentários
consistia em manter os nômades a uma respeitosa distância; postura que, na
África do Norte e em certa medida, apresentava facilidades, em virtude da
presença de barreiras naturais, tais como o Atlas e outras cadeias montanhosas.
Ao Sul do deserto, a melhor estratégia equivalia a promover a participação
dos nômades na economia das zonas férteis, conduzindo -os ao interesse pelo
comércio nas fronteiras do deserto, assim como ao seu engajamento em favor do
desenvolvimento urbano e da agricultura; ademais, era -lhes possível empregar
contingentes de nômades em seus exércitos, a fim de combater outros Estados
sedentários. Era igualmente prudente, seguindo o exemplo chinês, utilizar um
grupo de nômades como mercenários para manter distante o adversário. Os
mesmos princípios eram válidos ao Norte do deserto; contudo, no século XIX, as
regências otomanas e os sultões do Marrocos demonstravam extrema habilidade
em preservar o equilíbrio de forças entre os nômades e evitar os enfrentamen-
596
África do século XIX à década de 1880
tos diretos
5
. Uma importante diferença consistia em sua riqueza vis -vis dos
Estados ao Sul do Saara que facilitava o exercício da autoridade por intermédio
de grupos privilegiados, além de permitir aos governantes da África do Norte
suster forças pouco numerosas, embora bem armadas e capazes de intervirem,
quando necessário, nos conflitos nômades. Além do mais, os governos magrebi-
nos gozavam de grande prestígio como chefes ou representantes, a um tempo,
espirituais e temporais de Estados muçulmanos; situação que permitia a sultões,
bem como a governantes hábeis ou venerados, utilizarem a diplomacia para tirar
o maior proveito possível dos seus pequenos contingentes armados.
O avanço dos otomanos na Cirenaica e na Tripolitânia, assim como dos
franceses na Argélia, marcou um ponto de inflexão nas relações entre as socie-
dades saarianas e os estrangeiros. A penetração francesa e otomana em dire-
ção ao Sul, no deserto, teve lugar em ritmos equivalentes nos seus primórdios,
sendo ditada por considerações estratégicas análogas: a aspiração ao controle e à
taxação do comércio transaariano e o desejo de impedir a anexação das regiões
situadas além daquelas sobre as quais os franceses e os otomanos já houvessem
estabelecido o seu domínio, nas proximidades do Mediterrâneo. Em que pese a
simultaneidade do seu avanço, as duas potências apresentavam um estilo assaz
distinto
6
. Dispondo de meios inferiores, comparativamente aos franceses, os
governantes otomanos agiam de modo muito mais prudente em suas relações
com os nômades das regiões interioranas, nas fronteiras dos seus domínios na
Tripolitânia e na Cirenaica. Graças ao seu conhecimento das estruturas políticas
locais, eles eram capazes de explorar o caráter mutável das querelas, das guerras
entre grupos e alianças. Eles se inspiravam em uma longa experiência adquirida
pelo governo de sociedades segmentárias e pela preservação de relações diplo-
máticas com aquelas sociedades que eles não podiam governar; eles igualmente
atribuíam -se a legitimidade e o estatuto de representantes do centro político do
mundo muçulmano.
Em 1835, os otomanos assumiram o poder direto na Tripolitânia e na Cire-
naica, destituindo a dinastia semiautônoma dos Kāramānlī: eles tentavam deste
modo impedir a progressão da influência francesa exercida a partir do Egito.
Uma série de incidentes ao longo das tentativas elaboradas pelos otomanos, com
o objetivo de ampliar a sua autoridade no deserto, na Tripolitânia e na Cirenaica,
ilustra o caráter do seu governo. Em tese, um kaymakam residia em Djalo e
5 E. Gellner, 1978.
6 A. Martel, 1965, vol. 1, p. 101 -132. Sobre o papel dos britânicos na interrupção da progressão francesa
em direção a Ghadāmes, conferir: A. A. Boahen, 1964, pp. 132 -212.
597
O Saara no século XIX
tinha a missão de supervisionar a arrecadação dos impostos incidentes sobre os
palmeirais de Djalo e de Awdjīla, além de lhe caber a manutenção da ordem no
deserto circundante. Em 1869, o kaymakam passava, no entanto e desde então,
o melhor do seu tempo em Benghazi, de tal modo que o coletor de impostos,
que se dirigia ao oásis uma vez por ano, era finalmente o único representante
oficial otomano no interior. Em troca do imposto por eles pago, os habitantes
do oásis de Awdjīla requisitaram a proteção contra os nômades zuwaya, os quais
entravavam o fluxo comercial transaariano e buscavam ampliar a sua autoridade
no oásis. J. P. Mason reportou uma tradição oral, relatando a visita realizada por
um oficial otomano à Awdjīla, com vistas a selar a paz com os zuwaya, os quais
haviam aparentemente sido combatidos pelos otomanos. Em 1856, o kaymakam
de Benghazi governava por intermédio do xeque dos bara asa, grupo de beduí-
nos por ele mantido com cinquenta soldados armados
7
. A influência do governo
otomano jamais se estendeu sobremaneira no deserto cirenaico e, ao longo dos
últimos decênios do século, a Sanūsiyya, uma tarīka (confraria) Sūfī, fundada
nos anos 1840, tornou -se o efetivo governo do interior
8
.
Embora limitada, a capacidade dos otomanos, de imporem a produção de
tâmaras ou de se imiscuírem nos assuntos nômades, encontrou resistências. O
governador otomano ‘Alī Askar, ao chegar a Trípoli, em 1938, teve uma entre-
vista com três chefes da resistência no interior da Tripolitânia; e aquilo que
ocorreu a um destes chefes,Abd al -Djalīl dos awlād sulaymān, grupo nômade
do Fezzān e da Sirta, é instrutivo. O paxá começou a negociação com Abd
al -Djalīl, reconhecendo -o como chefe legítimo dos seus domínios, em troca
de uma promessa referente a não desorganizar o comércio entre Trípoli e as
regiões interioranas. No entanto, Abd al -Djalīl revelou -se demasiado potente
para os objetivos otomanos ao estabelecer contatos comerciais na Tunísia e no
Egito, demonstrando assim ser -lhe possível ao menos ameaçar a prosperidade de
Trípoli. Alī Askar utilizou contatos diplomáticos para descreditar Abd al -Djalīl
aos olhos dos seus aliados, os quais reconheceram a ameaça representada pela
concentração de poderes. Em três ocasiões críticas nas quais Abd al -Djalīl
enfrentou as forças otomanas no campo de batalha, em 1840 e 1841, os seus
antigos aliados, não satisfeitos em abandoná -lo, voltaram as suas armas contra
ele. Abd al -Djalīl encontrou a morte durante o combate final e as suas forças
foram, por assim dizer, aniquiladas; mas, os awlād sulaymān, vencidos, fugiram
7 Para uma história geral da Tripolitânia, conferir L. -C. Féraud, 1927. Para a história de ’Awdjīla, conferir
J. P. Mason, 1971, pp. 200 -206, e na Revue d’histoire maghrébine, 1976, vol. 6, as pp. 180 -188.
8 D. D. Cordell, 1977a; E. E. Evans -Pritchard, 1949.
598
África do século XIX à década de 1880
rumo ao Sul, seguindo a rota das caravanas entre Fezzān e Borno. Anterior-
mente, Abd al -Djalīl concluíra alianças matrimoniais com importantes famílias
do Borno, operação cujo objetivo consistia em apoiar os planos de edificação
de um império comercial que teria abrangido contatos com o reino do Sudão.
Tirando proveito destas alianças, os awlād sulaymān sobreviventes ocuparam
posições na fronteira entre o Borno e os territórios dos nômades, onde eles
ajudaram o soberano do Borno a impedir as depredações dos tuaregues. Porém,
em 1850, os awlād sulaymān foram duramente derrotados pelos seus inimigos
nômades. Em duas ocasiões de uma mesma década, eles quase haviam sido
aniquilados; entretanto, sobreviveram e tornaram -se inimigos e representaram
a tragédia no tocante ao comércio, assim como para os nômades e agricultores
vizinhos. Eles aumentaram a sua população, através da assimilação de escravos
capturados durante razzias (incursões) e graças a um chamado dirigido aos seus
antigos aliados soff da Sirta e do Fezzān
9
.
As aventuras dos awlād sulaymān provam que, embora limitado, o poderio
militar do paotomano de Trípoli podia promover a discórdia junto aos nôma-
des; além de evidenciarem que, durante a aplicação das políticas segmentares e
a reorientação das alianças soff, os otomanos demonstravam habilidade muito
inferior. Os franceses, por sua vez, não possuíam esta vantagem, limitando -se
quase exclusivamente à força das armas. Na Argélia, o primeiro obstáculo à
expansão francesa foi o Estado formado por Abd al -Kādir; todavia, após terem-
-no vencido, em 1847, os franceses dirigiram as suas atenções para o deserto e, ao
longo dos anos 1850, enquanto o general Randon era o governador da Argélia,
eles dedicaram -se a restabelecer as relações comerciais entre a Argélia e o Sudão
ocidental. Para assegurar a segurança do comércio que eles esperavam desenvol-
ver, estabeleceram postos avançados em Géryville e Laghwāt (Laghouat), no ano
1852, em Ouargla, em ano 1853, e em Touggourt (Tuggurt), no ano 1854. No
Oeste, a expansão militar ao Sul de Géryville foi contida pela revolta dos awlād
sīdī shaykh, prolongada de modo intermitente durante quase vinte anos; além de
sofrer outros revezes temporários em razão da guerra franco -prussiana de 1870
e de um importante levante nas montanhas de Kabylie, em 1871. Um renovado
interesse pelo comércio transaariano e planos inconsequentes de criação de uma
9 Para um apanhado geral acerca da resistência no interior da Tripolitânia, conferir A. Martel, 1965, pp.
103 -106; para uma detalhada história dos awlād aulaymān, sobre a qual se apoia a correlata exposição
preposta, conferir D. D. Cordell, 1972, pp. 11 -45. Neste caso, so diz respeito a um pacto concluído
entre os awlād sulaymān e outro grupo de beduínos; entretanto, as alianças so, tal como as alianças le
no Marrocos, igualmente podem unir grupos no interior de uma kabīla e, eventualmente, substituírem
em parte as relações de descendência ou oporem -se a elas.
599
O Saara no século XIX
estrada de ferro trans -saariana estimularam uma penetração mais profunda no
deserto, durante os anos 1870. A parte meridional do deserto argelino permane-
ceu livre do domínio francês e a progressão ao Sul de Ouargla foi interrompida
quando os tuaregues do Hoggar massacraram a segunda expedição Flatters, em
1881, demonstrando com isso que a ocupação das terras dos tuaregues podia
revelar -se particularmente custosa. Após 1890, os franceses empreenderam,
com a aprovação dos britânicos, uma política de conquista do Saara Central,
cuja fase definitiva começaria pela ocupação de In Salāh, em 1899. A última
demonstração de resistência relevante, em 1902, foi abafada com a derrota dos
tuaregues do Hoggar. Durante estas operações finais, os franceses recorreram
a um novo expediente, correspondente a recrutar nômades em massa, os quais
seriam incorporados às tropas como combatentes irregulares, o que permitiria
aos ocupantes combinar a mobilidade dos nômades e os seus conhecimentos
territoriais com o muito superior poderio bélico do exército francês. Em 1902,
na vitória por eles obtida contra os tuaregues do Hoggar, os franceses tiraram
proveito da antiga animosidade existente entre chaambas e tuaregues. Ao longo
da derradeira batalha, um único oficial francês comandava uma força integral-
mente composta por chaambas, bem treinados, fortemente armados e montados
em seus melhores méharis (dromedário originário da Arábia)
10
.
Diferentemente dos franceses, o governo central marroquino, malgrado uma
reforma econômica introduzida no curso da segunda metade do século XIX, não
possuía as condições para financiar uma força armada capaz de eficazmente dar
cabo à ocupação do território compreendido entre as montanhas do Atlas e os
limites setentrionais do Saara. Os marroquinos apresentavam a mesma incapa-
cidade de enfrentar o exército francês que exercia pressão na fronteira com a
Argélia e, por vezes, perseguia os grupos dissidentes em território marroquino.
Os limites pré -saarianos do Marrocos pertenciam ao Bilād al -Sibā, igualmente
conhecido como o país da dissidência: contudo, esta tradução não deve induzir
a perder de vista os importantes laços econômicos, religiosos e sociais, existentes
há muito tempo entre estas regiões e o Makhzen, território onde o sultão podia
recolher impostos e exercer a sua autoridade. O Marrocos era beneficiado pela
proteção tácita dos britânicos, os quais detinham o controle sobre o comércio
exterior marroquino; portanto, os interesses britânicos no Marrocos contribuí-
ram para retardar o estabelecimento da autoridade francesa. Entre os seus esfor-
ços, realizados com o objetivo de protegerem o seu território localizado além do
10 A. Bernard, 1906, pp. 16 -110; para a região fronteiriça entre a Argélia e o Marrocos, conferir R. E. Dunn,
1977, pp. 137 -175; no tocante à vitória sobre os tuaregues, conferir J. Keenan, 1977, pp. 72 -85.
600
África do século XIX à década de 1880
Atlas, os sultões marroquinos conferiram a devida atenção ao fortalecimento dos
laços políticos e diplomáticos existentes com o Sudeste. Embora não estivessem
em condições de cobrarem impostos ou exercerem o seu poder frente aos grupos
nômades do além -Atlas, os sultões do Marrocos estavam aptos a intervirem nas
políticas locais, lançando o seu peso político em favor de uma fração ou outra,
postando -se como mediadores em diferentes conflitos ou apoiando -se em seu
prestígio junto a lideranças religiosas. A influência religiosa do sultão do Mar-
rocos estendia -se até a curva do Níger; o xeque kunta Ahmad al -Bekkaay, chefe
dos kādirīyya no Sudão, reconheceu Mūlāy Abd al -Rahmān como imã de todos
os muçulmanos, mantendo relações diplomáticas com a Coroa marroquina
11
.
A ocupação francesa do deserto argelino representava, na realidade, um fenô-
meno inteiramente novo. O seu caráter permanente em nada se assemelhava às
ocasionais expedições do sultão marroquino no deserto, as quais tinham como
principal meta estabelecer ou recompor laços com personalidades locais. Ela con-
trastava, viva e igualmente, com as raras visitas dos oficiais otomanos à Cirenaica
e com a política otomana, cujo objetivo era permitir aos nômades resolverem
por si mesmos as suas próprias divergências, salvo quando a intenção equivalia
a fazer pender a balança, aquando de querelas entre grupos rivais. Pela primeira
vez, nômades eram levados a lutarem contra um exército de ocupação equipado
com moderno armamento e também possuidor de guias locais ou tropas irre-
gulares, familiarizados com o deserto. O exército francês controlava os nômades
por intermédio dos bureaux árabes”, cujo corpo operacional era composto por
oficiais de elite, dentre os quais, alguns falantes de árabe. Estes oficiais recolhiam
informações concernentes aos chefes e às confrarias islâmicas, eram responsáveis
pela ordem legal e governavam com o apoio de líderes designados. Na realidade,
embora seja plausível erroneamente superestimar o grau do domínio exercido
pelos franceses no deserto, durante os primeiros anos, contudo, deve -se muito
bem observar que a ocupação francesa deste território era, em seu gênero, muito
mais perfeita, comparativamente ao que os Estados sedentários, da periferia do
Saara, haviam ensaiado realizar até então. Igualmente, esta ocupação era muito
custosa; sobretudo, se considerarmos a fraca produtividade das terras, por pouco
que não inférteis, tanto no interior do deserto quanto nas suas regiões limítrofes.
Historiadores estudaram o empobrecimento da população muçulmana, decor-
rente das suas perdas em terras e rebanhos, assim como as revoltas causadas pela
política francesa de estacionamento das suas tropas. Todavia, seria interessante
11 R. E. Dunn, 1972, pp. 106 -107 e pp. 31 -49, 137 -175; E. Burke III, 1972, pp. 176 -178, e 1976, pp. 1 -40; J. -M.
Abun -Nasr, 1975, pp. 284 -303; sobre os kunta, conferir A. Zebadia, 1974, 1974, e A. A. Batran, 1974.
601
O Saara no século XIX
avaliar os danos que as populações do Saara tiveram que suportar, contrariamente
ao ocorrido com os argelinos em geral, devido à ocupação do deserto; no entanto,
este estudo depende dos resultados de novas pesquisas
12
.
Conquanto não seja possível oferecer uma completa descrição da resistên-
cia contra os franceses, ocorrida no Saara argelino, um esboço histórico desta
reação poderia, notadamente, inspirar -se no quadro elaborado por Ross Dunn,
em respeito à oposição empreendida frente à ocupação francesa, nos limites pré-
-saarianos do Marrocos. Na esfera conceitual, o autor convoca a observarmos a
incerta natureza das alianças realizadas nestas sociedades nômades, bem como o
caráter totalmente imprevisível da invasão francesa. Os franceses demonstravam
capacidade na destruição das colheitas, dos palmeirais, dos equipamentos de
irrigação e dos rebanhos. Em contrapartida, eles estabeleceram as bases para uma
paz permanente, ditada pelos seus próprios condicionamentos, entretanto, ainda
capaz de favorecer a expansão do comércio. Sobretudo, indica Dunn, a chegada
dos franceses criou um novo fator de incerteza na vida dos nômades e habitantes
dos oásis: “Em suma, a sua vinda acrescentou aos extremos caprichos da natureza
uma série de novas incertezas econômicas. Como consequência, todas as tribos
e todos os qsar, na realidade, todos os grupos, grandes ou pequenos, dividindo
os mesmos interesses e recursos, eram obrigados a dosar a sua reação frente às
forças francesas, considerando os subsequentes efeitos, positivos ou negativos,
incidentes sobre o seu bem -estar econômico. A crise não produziu uma pausa,
mas, ao contrário, gerou uma intensificação da luta travada para superar os
rigores ambientais; os grupos cooperados, assim como os indivíduos, buscaram
proteger os seus recursos vitais, zelando para evitarem a submissão incondicional
ao exército em marcha
13
.”
Dunn faz observar que a ideologia do parentesco podia servir de base para a
unidade militar, frente a uma ameaça externa efêmera; todavia, ela se mostrava
pouco eficaz “em determinadas circunstâncias, mediante as quais a sobrevivên-
cia dependia, essencialmente, da capacidade de grupos com recursos comuns
em promoverem uma convergência entre as suas políticas e os seus interes-
ses econômicos, aplicando em ordem dispersa táticas contraditórias de ataque,
de compromisso e de fuga”
14
. Embora esta conclusão refira -se aos dawi mani,
12 C. R. Ageron, 1968, vol. 1, pp. 3 -56, 239 -265, 367 -393, e vol. 2. pp. 737 -858; A. Bernard e N. Lacroix,
1906, pp. 122 -126.
13 R. E. Dunn, 1977, p. 225.
14 Ibid.
602
África do século XIX à década de 1880
ela pode perfeitamente ser aplicada à história de numerosas outras sociedades
saarianas.
A unidade na resistência era evidentemente possível, a despeito das incer-
tezas ambientais e da divisão inerente à sociedade nômade, e a religião criava
um contexto próprio à maioria dos movimentos de envergadura. No transcor-
rer normal da vida no deserto, a tarika Sūfī, com as suas zāwiya ou centros de
saber que atraíam os fiéis e estudantes, desempenhava um real papel político,
mantendo a ordem legal e agindo na qualidade de mediadora nas diferentes
disputas entre facções, segmentos sociais ou populações inteiras. A necessidade
de educação e arbitragem das disputas valia aos santos do sufismo, bem como
aos chefes das confrarias, o respeito e a reputação de sábios, místicos e juristas.
Em tempos de crise, era natural que as ordens religiosas e os seus mais influen-
tes chefes fossem levados a desempenhar papéis de ordem política e militar.
Anteriormente à conquista francesa, a Darkāwiyya canalizou a oposição ao
domínio otomano, junto às cabildas e ao Sul do Oran. Igualmente, a resistência
aos franceses cristalizou -se em torno dos chefes religiosos e das suas ordens,
tal qual ocorrido no caso do movimento dirigido por ‘Abd al -Kādir, da revolta
dos awlād aīdī shaykh e da resistência organizada pela Sanūsiyya, na Líbia, no
Tchade e no Níger, após 1900
15
.
Em outro caso, circunstâncias econômicas excepcionais, resultantes da pene-
tração francesa no deserto, ao longo dos anos 1850 e 1860, facilitaram a realiza-
ção de uma ação unificada entre os tuaregues do Hoggar. Isolado dos mercados
do Norte, o Hoggar transformou a sua base econômica. Em consequência de
uma relativa estabilidade, sob a autoridade do amenukal al -Hadjdj Ahmad
(1830 -1877), foi possível estender a agricultura ao Hoggar, graças ao trabalho
de camponeses assujeitados. O ataque da missão Flatters, em 1881, aconteceu
durante um período de seca intensa, de 1880 a 1883. Posteriormente, enquanto
os franceses ocupavam os oásis do Saara Central, os tuaregues do Hoggar rea-
giram, utilizando pastagens situadas ao Noroeste do Estado do atual Níger
e praticando um comércio baseado em caravanas, junto às regiões limítrofes
meridionais do deserto. Com carregamentos de sal, da sebkha, planície salícolas
de Amadror, tâmaras e pequenas quantidades de tecidos em algodão britânicos
importados, eles se dirigiam ao Damergou, região de agricultura sedentária
situada no limite setentrional, ao Norte de Zinder, na rota comercial Trípoli-
-Kano. A unidade da confederação do Hoggar, facilitadora destas adaptações
15 C. R. Ageron, 1968, vol. 1, pp. 62 -66; J. -M. Abun -Nasr, 1975, pp. 240 -246; e B. G. Martin, 1976, pp. 36 -67.
603
O Saara no século XIX
econômicas, sem dúvida alguma era o produto de um conflito com vizinhos. Ao
longo dos anos 1870, os tuaregues do Hoggar posicionavam -se como adversários
determinados dos tuaregues ajjer, ao Leste e ao Norte, estes últimos à época
enriquecidos, em virtude das florescentes condições do comércio Trípoli -Kano;
além de enfrentarem grupos hostis de tuaregues e m outras direções, especial-
mente os oulliminden, ao Sudoeste, e certos tuaregues do Aïr, ao Sudeste
16
.
Uma completa exposição da resistência igualmente evidenciaria a mobilidade
dos nômades cameleiros e a sua aptidão demonstrada ao movimentarem -se com
os seus rebanhos, de um extremo a outro do Saara, durante tanto tempo quanto
estivessem dispostos a levarem uma vida repleta de perigos e incertezas. Um
exemplo desta situação foi a odisseia dos djeramna, ocorrida durante um perí-
odo de cinquenta anos, na qual eles pela primeira vez enfrentaram os franceses,
perto de Géryville, no ano 1881, em meio à revolta dos awlād sīdī shaykh, cuja
insurreição fora desencadeada pela escassez de terras, pela notícia do massacre
da expedição Flatters e pela retirada das tropas francesas, as quais haviam sido
deslocadas com vistas a apoiarem aquelas engajadas na campanha da Tunísia.
Quando Amāma, líder da insurreição, foi abandonado pelos seus partidários,
os djeramna partiram para juntar -se aos tuaregues do Hoggar. Em 1889, eles
tomaram parte em uma incursão conduzida por chaambas na estrada Trípoli-
-Kano, ao Sul de Ghadāmes; pouco após, eles participaram de uma incursão
no Feezān e outra suplementar no Sul da Tunísia. Quando a resistência dos
tuaregues desmantelou -se, eles se retiraram nas terras altas da Tripolitânia, nas
regiões limítrofes ao Sul da Tunísia e da Argélia; e, finalmente, as suas incursões
tornaram -se um dos pontos controversos na rivalidade territorial entre franceses
e turcos. Em 1925, eles por fim retornaram a Géryville, com o objetivo de ali
estabelecerem a sua submissão, cerca de cinquenta anos após dali terem partido
para a sua vida errante
17
.
O comércio no deserto e os nômades
A revolução industrial acelerou os progressos da tecnologia militar europeia,
na segunda metade do século XIX, com tamanha intensidade que as forças
europeias, equipadas com o mais moderno armamento, encontraram, desde
então e diante de si, adversários munidos de um poderio bélico ultrapassado. A
16 J. Keenan, 1977, pp. 63 -85, 139 -140, e 1972; J. Dubief, 1947, pp. 15 -16; G. Gardel, 1961, pp. 126, 144 -156.
17 P. Boyer, 1971.
604
África do século XIX à década de 1880
Revolução Industrial não somente permitiu a conquista do deserto, mas, igual-
mente, transformou a vida econômica do Saara, na justa e progressiva medida
em que a fabricação de produtos de baixo custo tornava possível uma nova fase
de penetração econômica europeia. O comércio com a Europa existia desde bem
antes; entretanto, o século XIX foi marcado por um fortíssimo crescimento em
seu volume, provocando efeitos variáveis, segundo a estrutura das economias
regionais saarianas. Assim sendo, a indústria marroquina do algodão, fornece-
dora para mercados situados além do Atlas, sucumbiu após 1860 à concorrência
dos produtos em algodão, provenientes de Manchester; ao passo que a indústria
lanígera do Sul tunisiano saía -se muito melhor e continuava com os seus pro-
dutos a alimentar os circuitos comerciais transaarianos
18
. Nos limites do Saara,
diversos grupos começaram a exportar produtos primários, por exemplo, ao
Norte da bacia do Senegal, crescentes exportações de goma arábica ofereceram
um crescimento da potência e da influência de uma linhagem zāwiya, cujos
membros especializavam -se em ciência islâmica e na mediação de conflitos, além
de organizarem caravanas comerciais com destino às escalas do rio Senegal
19
. Na
região situada ao Norte do califado de Sokoto, o crescimento, ocorrido durante
os trinta últimos anos do século, das exportações de plumas de avestruz e peles
de cabra curtidas, obrigou os dirigentes nômades a se adaptarem para suprir as
necessidades comerciais geradas pela capacidade dos camponeses e agricultores
assujeitados em ganharem a sua vida coletando e vendendo estes produtos
20
. A
penetração econômica igualmente exerceu uma influência nos gostos dos consu-
midores e, justamente no transcorrer do século XIX, expandiu -se especialmente
o costume de beber chá fortemente adoçado.
Um importante mecanismo de fortalecimento dos intercâmbios com a eco-
nomia mundial era representado pelo comércio transaariano, do qual haviam
participado, durante séculos, mercadores saarianos, guias, transportadores e for-
necedores de produtos, tais como gêneros alimentícios, peles de cabra para a
fabricação de cantis, além de artigos de exportação, como as plumas de avestruz
destinadas ao mercado europeu. As populações dos oásis setentrionais, espe-
cialmente aquelas do Tafilālet, do Mzab, de Ghadāmes, do Fezzān, de Awdjīla
e de Sīwa, desempenhavam um decisivo papel no tocante à organização e ao
financiamento do comércio. Talvez porque estes oásis ocupassem uma posição
estratégica e em virtude de terem sido dependentes do comércio de tâmaras para
18 K. Brown, 1976, p. 9; A. Martel, 1965, vol. I, p. 125.
19 C. C. Stewart e E. K. Stewart, 1973, pp. 86 -97, 119 -120, 151 -153.
20 S. Baier, 1977.
605
O Saara no século XIX
adquirirem cereais das zonas de cultura pluvial situadas mais ao Norte, os seus
habitantes, desde um passado remoto dedicados ao comércio, passaram natural-
mente a atuar no seio do comércio transaariano, com o passar dos séculos e em
razão das oportunidades surgidas. Grupos de nômades, tais como os tuaregues
do Hoggar e de Kel -Ewey, os tubus (toubous) e os zuwaya do Saara Central
(grupos de beduínos a não confundir com as linhagens religiosas zāwiya, da
Mauritânia), realizavam, de fato e por sua própria conta, o comércio de número
reduzido de escravos e de pequenas quantidades de produtos diversos; todavia,
o volume das suas trocas não era comparável com aquele dos mercadores seden-
tários dos oásis do Norte, os quais se beneficiavam do apoio de intermediários
locados em portos mediterrâneos e também daquele proveniente dos interme-
diários de países da Europa, particularmente quando os preços e as condições,
nas rotas comerciais, eram favoráveis. Consequentemente, o principal papel
dos nômades cameleiros consistia em fornecer os animais para o transporte, os
guias e as escoltas militares para as caravanas; em suplemento, estes nômades
asseguravam serviços de entrega para aquelas mercadorias cujos proprietários
não podiam ou não desejavam acompanhar as caravanas
21
. A maioria dos grupos
21 Sobre o comércio transaariano por Trípoli, conferir M. El -Hachaichi, 1912, pp. 200 -202; H. Méhier
de Mathuisieulx, 1904; T. S. Jago, 1902; no tocante aos acordos entre mercadores e linhagens tuaregues,
relativos ao transporte, às escoltas e entregas, conferir M. Brulard, 1958.
 . O comércio nos conns do deserto: “Mouros” realizando o comércio da goma na escala de Bakel,
à margem do rio Senegal. [Fonte: Colonel Frey, Côte occidentale d’Afrique, 1890, Flammarion, Paris. Ilustração
reproduzida com a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
606
África do século XIX à década de 1880
nômades do Saara possuía interesses maiores no que dizia respeito ao comércio
que transitasse pelo seu território: os regibat, na via que conduzia ao Marrocos
Ocidental, os aït khabbash (segmento dos aït atta), em relação à rota que ligava
o Tafilālet ao Tūwāt, os chaambas, no tocante aos itinerários ao Norte do Tūwāt,
os tuaregues relativamente ao trajeto Trípoli -Kano, os tubus, no que tange ao
percurso de Borno até Fezzān, os mujabra e os zuwaya, em referência ao tráfego
entre Benghazi e o Wadaī, e os khabbābīsh, finalmente, no concernente à Darb
al -Arba ‘īn (“o caminho dos quarenta dias”), unindo o Dārfūr e o Nilo inferior.
Uma importante dinâmica na história do deserto, no curso do século XIX,
foram o fluxo e o refluxo do comércio que utilizava estas vias. Grande número
de pesquisas ainda são necessárias, antes do detalhamento ou até mesmo da sua
definição mais geral, para que este processo possa definitivamente ser assentado;
porém, é possível presumir que as mudanças, às quais foi submetido o comércio,
incidiram sobre as razões de migrações e guerras constantemente presentes na
história do deserto. O controle de uma rota comercial, graças ao produto dos
impostos ou serviços por ele assegurados, era uma enorme fonte de recursos
 . A kasba [citadela] de Murzuk, no Fezzān, em 1869. [Fonte: G. Nachtigal, Sahara and Sudan
(trad. e org. A. G. B. e H. J. Fisher), vol. I, 1974, Hurst, Londres. © Hurst, Londres. Ilustração reproduzida
com a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
607
O Saara no século XIX
e, com a mesma intensidade, aqueles que o exerciam eram obrigados a vencer
a concorrência de nômades rivais. A concentração de riquezas em linhagens,
segmentos sociais ou grupos étnicos inteiros, muito amiúde perturbava o curso
natural dos assuntos políticos locais, apoiados sobre uma divisão, sensivelmente
equânime, dos poderes exercidos por frações sociais, em dado nível da estrutura.
Os grupos ricos possuíam melhores chances de preservação das suas posições;
entretanto, a facilidade, mediante a qual as grandes caravanas, elas próprias,
caíam em emboscadas nas mãos dos saqueadores, introduzia um fator de ins-
tabilidade. Finalmente, o declínio de uma rota comercial, outrora ativa, exigia
readaptações. A escassez de documentos históricos, relativos a esta questão, não
permite tirar conclusões; alguns grupos, à imagem dos chaambas, reagiram à
decadência do comércio por eles praticado, aumentando a sua participação no
comércio regional até os confins do deserto ou promovendo incursões junto
aos seus vizinhos abastados; ao passo que outros, como os khabbābīsh do Nilo
desértico, decididos a virarem a página após a ruína do “caminho dos quarenta
dias”, assim como a quase exclusivamente consagrarem -se à criação de animais,
aparentam terem logrado melhor adaptação
22
.
Primeiramente, o que se deve reter, em respeito à rao do deslocamento
dos eixos comerciais e da variação no volume do comércio realizado através
do deserto, é o fato de ter ocorrido, na Argélia, um distanciamento do fluxo
comercial vis -à -vis dos franceses, trazendo assim a ruína por ironia do des-
tino aos objetivos econômicos imperialistas. Nos primórdios da ocupão
francesa, o comércio apresentou uma retomada: o tráfego das caravanas entre
Fez e Tlemcen foi restabelecido, após 1833, e os produtos britânicos importa-
dos através do porto marroquino de Tétouan penetraram pelo Oeste da Argé-
lia. O comércio entre Tétouan e os domínios de Abd al -dir aumentou, após
1837, e com maior ênfase após 1839; enquanto a demanda por armamento
alimentava um ativo comércio. Contudo, após a queda do Estado de Abd
al -Kādir, os intercâmbios comerciais conheceram um declínio, parcialmente
imputável às proibitivas taxas de importação cobradas pelos produtos transa-
arianos em trânsito, originários do Sudão ocidental, assim como às restrições
para a entrada na Argélia das mercadorias provenientes dos territórios circun-
vizinhos. Os franceses buscaram remediar estas duas situações nos anos 1850 e
1860; no entanto, assim mesmo o comércio não se restabeleceu
23
. Outro fator
foi a profunda queda na demanda argelina por escravos; mas, conquanto este
22 Y. Tégnier, 1939, pp. 108 e seguintes; T. Asad, 1966.
23 J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. 2, pp. 158 -163; vol, 3, pp. 74 -75.
608
África do século XIX à década de 1880
fenômeno seja frequentemente citado para explicar as dificuldades comerciais
da Argélia, ele merece reavaliação à luz de recentes indicações segundo as quais
o comércio argelino dos escravos não teria jamais sido importante, compa-
rativamente a outras zonas de importão de escravos na África do Norte
24
.
Enfim, convém observar que o território argelino não oferecia grandes vanta-
gens quanto à segurança das caravanas, haja vista que, a qualquer momento, a
hostilidade entre os franceses e um grupo qualquer no Saara argelino sempre
fora capaz de ameaçar a segurança do comércio.
24 R. A. Austen, 1979.
 . A sociedade oasiana: mulheres no mercado de Murzuk, 1869. [Fonte: G. Nachtigal, Sahara and
Sudan (trad. e org. A. G. B. e H. J. Fisher), vol. I, 1974, Hurst, Londres. © Hurst, Londres. Ilustração repro-
duzida com a autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
609
O Saara no século XIX
 . Os minaretes da mesquita de Agadès. [Fonte: J. Vansina, Art history in Africa, 1984, Longman,
Londres, © Werner Forman Archive, Londres.]
610
África do século XIX à década de 1880
A rota pelo Oeste da Argélia prosperou até o final dos anos 1870, quando
teve início o seu declínio definitivo, sucedido pelo seu deslocamento para o Mar-
rocos, anteriormente ao final do século XIX. Concomitantemente ao progressivo
declínio da importância de Figuig, situada perto da fronteira argelina, aumen-
tava a influência de Abū Am, localizada a aproximadamente 240km a Sudoeste;
de tal modo que, este oásis tornou -se a porta de entrada para o essencial do
comércio de escravos com destino ao Marrocos. A maior parte do comércio tra-
dicional deslocou -se ainda mais rumo ao Oeste, em direção ao litoral atlântico,
em consequência da construção do porto de Mogador. A sua posição estratégica
permitiu -lhe absorver um crescente volume do comércio transaariano após os
anos 1840
25
. Uma escala na rota de Mogador estabeleceu -se em Tindouf, no
lugar de um ksār, quando uma aliança apoiada essencialmente sobre os tadjakant
venceu os regibat, em meados do século. Uma aliança ampliada defendeu o oásis
de Tindouf até 1884, no momento em que os regibat realizaram a sua revan-
che
26
. O declínio do comércio representou, indubitavelmente, um fator relevante
nesta luta; o comércio direcionado a Mogador atingiu o seu apogeu em 1878,
entretanto, começou a periclitar, atingindo o seu ocaso quando, em 1894, os
franceses dominaram Tombouctou e outra rota, parcialmente fluvial, foi aberta
entre Tombouctou e Saint -Louis, na foz do rio Senegal
27
.
O comércio pela via Trípoli -Kano desenvolveu -se após a metade do século,
sobretudo quando os otomanos lograram estabelecer a paz ao Sul de Ghadāmes,
após 1850. Os trinta anos seguintes representam a idade de ouro do comércio
realizado através desta rota, pois que um súbito crescimento das exportações
de plumas de avestruz, durante os anos 1870, elevou o volume das trocas a
níveis que, provavelmente, foram o seu recorde absoluto. O comércio decli-
nou temporariamente no decorrer da crise dos anos 1880, mas restabeleceu-
-se após 1890, graças ao aumento nas exportações de peles de cabra curtidas.
Os tuaregues ajjer conduziam caravanas entre Ghadāmes e Iférouane, escala
situada na cadeia montanhosa de Aïr; cabendo aos tuaregues da confederação
Kel -Ewey assegurarem a ligação entre Iférouane e Kano. Estes dois grupos
deviam responder às ameaças dos seus vizinhos: ao Norte, os ajjers respondiam
aos ataques dos chaamba e dos tuaregues do Hoggar, ao passo que, no Sul, os
kel -ewey deviam enfrentar as ameaças dos imezureg do Damergou, grupo de
tuaregues semissedentários cujos efetivos militares podiam contar com uma base
25 R. E. Dunn, 1977.
26 A. Pigeot, 1956; A. Laugel, 1959.
27 J. -L. Miège, 1961 -1963, vol. 4, pp. 380 -385.
611
O Saara no século XIX
fixa e asseguravam a taxação do comércio de plumas de avestruz produzidas em
sua região. O comércio Trípoli -Kano foi mais duradouro, comparativamente
àquele realizado com Mogador, em virtude de Kano estar mais protegida da
concorrência representada pelas rotas marítimas; porém, taxas de frete marítimo
pouco elevadas, combinadas com a crescente insegurança nas áreas desérticas
da rota, provocaram o seu brutal declínio após 1900. Na Nigéria, os britânicos
buscavam desviar o comércio Trípoli -Kano para o porto de Lagos, ao passo que
no Níger, os franceses esforçavam -se para manter aberta a rota do deserto. O
golpe final foi proferido contra a antiga rota através da chegada da estrada de
ferro a Kano, em 1911
28
.
Ao final do século, a rota de Benghazi até Wadaī era mais vital que qualquer
outra. Este itinerário direto entre a Cirenaica e o Ouadaī fora descoberto na pri-
meira metade do século; e os sultões do Ouadaī, cujo Estado tornara -se progres-
sivamente mais poderoso após meados do século XVIII, demonstravam muita
vontade em criar uma rota próspera, evitando o Borno, ao Oeste, e o Dārfūr, ao
Leste. A partir de 1860, o futuro da rota comercial esteve intimamente ligado
à sorte da Sanūsiyya, confraria muçulmana que atraiu para si os beduínos da
Cirenaica, após 1843, estendendo -se posteriormente para o Sul, ao longo da rota
comercial. O sucesso desta ordem religiosa teve forte impacto sobre o comér-
cio, em virtude de uma única organização ter coberto toda a extensão da rota,
oferecendo aos mercadores uma mesma infraestrutura legal, social e comercial,
bem como um único serviço postal. Os dignitários da ordem esforçavam -se para
favorecer o comércio, mantendo a paz na extensão do percurso e, para fazê -lo,
postavam -se como mediadores nas diferentes disputas entre linhagens, segmen-
tos sociais ou grupos étnicos inteiros, além de frequentemente procederem com
sucesso em prol da restituição de mercadorias roubadas nos ataques contra as
caravanas. O comércio, por sua parte, representava uma fonte de ganhos para os
responsáveis pela Sanūsiyya, aos quais ele proporcionava receitas provenientes de
impostos, do direito de armazenamento e das doações dos mercadores, trazendo
um elemento de unidade aos vastos domínios sanūsī
29
.
O comércio Benghazi -Ouadaī ainda sobreviveu após a virada do século,
em razão da existência da Sanūsiyya e porque a rota cobria regiões muito mais
distantes, comparativamente às destinações meridionais extremas do comércio
Trípoli -Kano. A rota situada mais ao Leste, a Darb al -Arba ‘īn, caiu em declínio
após a metade do século, em razão do desenvolvimento do comércio entre Ben-
28 M. Johnson, 1976a; S. Baier, 1977, 1980; C. W. Newbury, 1966.
29 D. D. Cordell, 1977, pp. 21 -36.
612
África do século XIX à década de 1880
ghazi e o Wadaī, assim como em função da formação do vasto império de pontos
comerciais dos Djallāba. Após 1885, o Estado madista do Sudão desmantelou
a Darb al -Arba ‘īn, assim como as rotas do Nilo.
O tráfico transaariano de escravos igualmente influenciou, de diversos modos,
a vida das populações nômades. As sociedades saarianas próximas ao Sahel
oeste -africano realizavam incursões junto às populações sudanesas, para delas
capturarem escravos; inclusive, foram registradas ocasionais incursões trans-
-saarianas, executadas com os mesmos objetivos, tal o caso dos awlād sulay-
-mān antes da sua migração rumo à bacia do Tchad, assim como aquele dos
bani muhammad, no início do século XX. Por sua própria conta, os nômades
realizavam o comércio de um limitado volume de escravos, além de negociarem
pequenas quantidades de produtos transaarianos; porém, em seu conjunto, eles
eram transportadores, muito mais que traficantes. O transporte de escravos era
provavelmente, para os nômades, uma fonte de rentabilidade inferior, compara-
tivamente a outras formas de comércio; pois que, embora os mercadores talvez
não pagassem frete pelo transporte, não lhes era possível escapar ao pagamento
dos impostos.
Para as sociedades saarianas, o mais importante efeito do tráfico de escravos
foi, sem dúvida, o fato de ele facilmente prover -lhes uma mão de obra assujei-
tada, a qual se revelou preciosa durante os períodos de expansão, principalmente
nas regiões limítrofes do deserto, onde os escravos podiam ser utilizados não
somente no trato dos rebanhos, mas também na agricultura e no artesanato.
Um caso especial é aquele dos tuaregues kel -ewey, os quais desenvolveram a sua
economia durante o século XIX, época marcada a um tempo por condições
climáticas favoráveis na região, pela prosperidade do comércio transaariano e
pela comercialização do sal, bem como por um crescente aporte de capitais em
toda a região formada no eixo da ligação Aïr -Kano. Dispomos de pouca infor-
mação sobre a evolução dos sistemas de estratificação no deserto, com exceção
de outros grupos de tuaregues. Mencionamos a nova escolha, como atividade
essencial, da agricultura assentada na exploração do trabalho servil no Hoggar;
assim sendo, constatamos que, junto aos kel -gress e tuaregues do Imannen, a
mão de obra servil foi desde então empregada para o recolhimento de tributos
dos agricultores sedentários, muito mais que na guarda dos rebanhos. Esta reo-
rientação teve lugar quando guerreiros do deserto chegaram às zonas do Sahel
onde a agricultura era possível e exigiram dos cultivadores locais o pagamento
de tributos, além de realizarem incursões para capturarem escravos, os quais se
fundiram, com o passar do tempo, à população sedentária e tornaram -se contri-
613
O Saara no século XIX
buintes fiscais
30
. A necessidade de uma mão de obra servil suplementar aparece
em outro caso de expansão econômica, resultante do imperialismo dos aït atta,
os quais, desde o século XVII e continuamente, dirigiam -se aos confins pré-
-saarianos do Marrocos. No século XIX, os aït khabbash, segmento dos aït atta,
conduziram a vanguarda desta expansão no deserto, estendendo a sua influência
sobre o comércio existente entre o Tafilālet e o Tūwāt, bem como extorquindo
dinheiro da população do Tūwāt em troca da sua proteção
31
.
Pouco sabemos a respeito do volume do tráfico de escravos através do deserto
saariano; entretanto, Ralph Austen reuniu estimativas preliminares sobre este
tema que, recolhidas de fontes muito diversas, reservam algumas surpresas.
Segundo o autor, distante do declínio no século XIX, na realidade o comércio
de seres humanos estava em progressão; o número de escravos trazidos às regiões
de importação na África do Norte e no Oriente Médio era, à época, superior
àquele de qualquer século precedente. As cifras indicadas por Austen mostram
que, entre 1800 e 1880, cerca de 500.000 escravos foram introduzidos no Egito e
250.000 outros foram levados ao Marrocos. Poucos escravos chegaram à Argélia
após a conquista francesa; no entanto, a Argélia jamais fora um mercado tão
importante comparativamente a outros existentes
32
. Na Líbia, a rota Benghazi-
-Ouadaī continuou a prover escravos para o Egito e outras regiões do Oriente
Médio, até as últimas décadas do século XIX, em virtude da menor vigilância
dedicada pelos abolicionistas europeus a este itinerário, comparativamente à
rota de Trípoli a Kano. Mais distante, rumo ao Leste e até os primeiros anos do
século XX, o transporte de escravos prosseguia nas vias do Nilo
33
.
O comércio de armas de fogo, destinadas ao deserto e transportadas através
dele, continuou apesar das tentativas das potências europeias de impor -lhe um
termo. Em Trípoli e sobretudo em Benghazi, um comércio ativo de armas de
fogo era registrado no início dos anos 1880 e numerosos fuzis, introduzidos por
contrabando, particularmente carabinas de repetição Winchester de dezoito tiros,
foram importadas com o objetivo de serem utilizadas pelas escoltas das caravanas.
Entretanto, algumas destas modernas armas muito provavelmente chegaram às
os de outros grupos nômades, permitindo -lhes organizarem exitosas incursões,
30 P. E. Lovejoy e S. Baier, 1975; S. Baier, P. E. Lovejoy, 1977. Sobre a sedentarização e o pagamento dos
impostos, conferir P. Bonte, 1976; e H. Guillaume, 1976.
31 R. E. Dunn, 1972.
32 R. A. Austen, 1979.
33 J. -P. Mason, 1971, p. 267; para o tráco de escravos da África Equatorial com destino ao Egito, conferir
D. D. Cordell, 1977b.
614
África do século XIX à década de 1880
 . Artigos de marroquinaria tuaregue à venda em Tomboctou nos anos 1850. [Fonte: H. Barth,
Travel and discoveries in northern and central Africa, 1857, Longman, Londres. Ilustração reproduzida com a
autorização do Conselho de Administração da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
615
O Saara no século XIX
uma vez que o poder de fogo acrescia as vantagens táticas inerentes aos ataques
surpresa, dos quais se beneficiavam os saqueadores
34
. No deserto, a introdu-
ção de moderno armamento de repetição aparenta ter sobretudo acontecido ao
longo da rota Benghazi -Ouadaī; no entanto, outras regiões foram igualmente
servidas. Joseph Smaldone reuniu indicações segundo as quais uma reviravolta
na distribuição de armas de fogo teria acontecido junto aos tuaregues do Hoggar,
durante os anos 1890. No Noroeste, em território marroquino, as vendas do fuzil
Remington, modelo 1860, com carregamento pela culatra, eram de tal ordem que,
ao final do século, este fuzil tornar -se -ia a arma clássica de numerosos grupos em
todo o país, inclusive dos nômades das zonas pré -saarianas. Embora as informa-
ções sobre este tema estejam distantes de uma mais completa apreensão, é cabível
pensar que a crescente insegurança na rota Trípoli -Kano, após 1898, deva -se à
multiplicação das armas de fogo nas fileiras dos saqueadores
35
.
A região próxima à extremidade meridional da rota Tpoli -Kano é um
exemplo da influência econômica, política e religiosa da população do deserto
sobre o Sudão. Na savana, o século XIX marcou o término de um processo no
qual a centralização das estruturas de Estado, a islamização e o crescimento
econômico estiveram estreitamente ligados. Conquanto não representasse senão
uma fase final deste longo processo, a jihad do início do século XIX cedeu lugar à
formação do califado de Sokoto, vasto Estado que favoreceu o desenvolvimento
econômico em sua região central, nas cercanias de Sokoto, de Katsina e de
Zaria (e na sua região central secundária, no vale Sokoto -Rima), ali instalando
populações capturadas como escravas, fruto de incursões realizadas além das
suas fronteiras. No coração da região, ricas terras aráveis apropriadas às culturas
de valor comercial eram cultivadas por camponeses ou escravos e esta produção
suplementar encorajava o desenvolvimento de centros urbanos e atividades
artesanais
36
. Kano e as cidades vizinhas criaram uma indústria têxtil artesanal
que forneceu tecido a uma vasta área do Sudão Central, bem como à região dos
tuaregues do Norte. O desenvolvimento econômico no deserto, especialmente
no corredor entre Zinder e o maciço de Aïr, região sob o domínio dos tuaregues
kel -ewey, acompanhava -se do desenvolvimento da savana. Os tuaregues troca-
vam tâmaras e sal, provenientes de Bilma e Fachi, além de animais e derivados,
por grãos e artigos manufaturados do Sudão. Os kel -ewey e os seus aliados
34 P. Bettoli, 1882, p. 267.
35 J. -P. Smaldone, 1971, pp. 161 -162, e 1977, pp. 100 -101; H. J. Fisher e V. Rowland, 1971, pp. 233 -234
e 240.
36 P. E. Lovejoy e S. Baier, 1975; P. E. Lovejoy, 1978; J. -P. Smaldone, 1977, pp. 39 -68.
616
África do século XIX à década de 1880
mantinham, na savana, uma complexa rede comercial que englobava centros
urbanos de artesãos e comerciantes especializados, em sua maioria de origem
servil, bem como propriedades rurais nas quais trabalhavam escravos ou os seus
descendentes. Estas terras, situadas em toda a extensão do Sahel e da savana,
forneciam parte dos cereais necessários aos nômades do deserto, eram lugares
de repouso para os tuaregues em trânsito durante a estação seca, além de cons-
tituírem refúgios nos períodos de grande seca
37
.
Conquanto as condicionantes da perenidade das relações mantidas entre os
tuaregues e os seus vizinhos sedentários sejam prioritariamente pacíficas trocas
econômicas, ao menos no corredor entre Kano e Aïr, a força econômica dos
nobres tuaregues residia em sua posse de camelos e armas de fogo, assim como
em sua mobilidade. Como primeira hipótese, os tuaregues podiam ser potentes
aliados dos Estados sedentários, apreciados tanto pela sua colaboração em cam-
panhas militares contra inimigos, quanto pelo seu potencial econômico, a exem-
plo do caso representado pelas relações com o Damagaram, Estado formado ao
Norte do califado no início do século XIX, progressivamente mais potente e
tornado insuportável ao final do período. Como segunda opção, os tuaregues
podiam ser inimigos devastadores, como testemunham as destruições às quais
eles se dedicaram no Borno, durante os primórdios deste mesmo século.
Por sua vez, o Saara Meridional desempenhou o papel de reservatório do
saber islâmico, cujo impacto sobre a savana manteve -se contínuo no curso dos
séculos, especialmente ao longo do século XIX
38
. Certo mero de regiões
limítrofes do deserto, notadamente o Sudão Central, a bacia do rio Senegal, o
delta interno do Níger e a bacia do Tchad, forneceram cereais às populações
vizinhas do interior do deserto; deste modo, estes laços econômicos favorece-
ram o intercâmbio de ideias. O traço característico das sociedades do Saara
Meridional era uma divisão entre linhagens guerreiras e linhagens de santos:
os primeiros, aspirantes à guerra e à política, os segundos, cultivadores de uma
ideologia pacifista, experientes comerciantes e portadores de uma tradição inte-
lectual comum. Em sua própria qualidade de estrutura segmentar, esta bipartição
era um modelo de sociedade, muito mais que uma descrição da realidade; a tal
ponto que somente os mais santos entre os santos efetivamente abstinham -se de
participar dos combates e que famílias de guerreiros participavam do comércio,
embora fossem menos especializadas nesta atividade que as famílias religiosas.
Todavia, as linhagens religiosas zāwiya da Mauritânia, os religiosos kunta da
37 P. E. Lovejoy e S. Baier, 1975, pp. 564 -571.
38 C. C. Stewart, 1976a.
617
O Saara no século XIX
curva do Níger e os inislimin junto aos tuaregues, eram todos formados nas duas
ciências politicamente úteis do fikh (jurisprudência) e do tasawwuf (misticismo).
À imagem das linhagens religiosas da Sanūsiyya ou marroquinas, elas exerciam a
respeitosa função de mediação e arbitragem, além das suas atividades possuírem
aspectos econômicos, políticos e de sabedoria. Os seus membros mantiveram e
desenvolveram a ciência islâmica durante séculos e a sua influência estendeu -se
para o Sul do deserto, onde a erudição saariana atuou simultaneamente sobre a
tradição quietista e na propagação do islã por reformadores militantes.
Conclusão
O século XIX foi uma época de espetaculares mudanças no deserto. A ocu-
pação da Argélia esfacelou a unidade econômica da África do Norte, levando
o comércio transaariano a utilizar rotas situadas a Leste e Oeste da Argélia,
e desorganizando o tráfego caravaneiro ao longo dos limites setentrionais do
deserto. O avanço do exército francês na Argélia representou uma manifesta-
ção direta e imediata do impacto da Europa na região; mais distante e quiçá
menos real, era a sua presença alhures, em virtude das variações do comércio
transaariano, em seu volume e sua composição. Ao final do século, o comércio
transaariano, com os rendimentos e a fácil obtenção de mão de obra que lhe
eram próprios, praticamente se desmantelara. A sua importância na vida dos
nômades tende a evidenciar a necessidade de pesquisas complementares acerca
dos efeitos das mudanças às quais ele foi submetido, assim como sobre as razões
do seu declínio: qual teria sido o efeito da formação do Estado governado por
Abd al -Kādir, de parte a outra de uma grande rota leste -oeste? Como as popu-
lações do deserto teriam elas exatamente reagido às vicissitudes do comércio?
De qual modo o declínio do comércio teria ele influenciado na resistência?
A ocupação francesa do deserto introduziu, em suplemento, um novo fator
militar no âmbito das relações entre os povos do deserto e o mundo exterior.
Os nômades podiam, graças à sua mobilidade, escolher entre várias formas de
resistência, capazes de se cristalizarem em torno dos chefes muçulmanos e das
ordens religiosas; porém, a aridez do meio limitava, muito amiúde, a liberdade
de grupos ou indivíduos cujos recursos eram comuns, oferecendo -lhes a escolha
entre a resistência e a sobrevivência. Outro tema merecedor de pesquisas mais
profundas é o efeito desigual e variado da penetração econômica europeia nas
economias regionais situadas às margens do deserto: no Marrocos pré -saariano,
dominado pela expansão dos aït atta; no Marrocos costeiro, onde as relações
618
África do século XIX à década de 1880
econômicas através do Atlas e do Saara estremeceram em suas bases; na Argélia,
com o predomínio das atividades dos franceses; no Norte da bacia do Senegal,
onde as exportações de goma exacerbavam os interesses concorrentes entre os
grupos mouros; ao Norte da curva do Níger, no califado de Sokoto, onde a
potência econômica deve ser considerada, levando -se em conta a abolição do
tráfico negreiro atlântico, assim como a islamização e a centralização da região,
na bacia do Tchad e, ao Leste, com a expansão do Wadaī que transformaria, a um
só tempo, o deserto ao Norte e a floresta ao Sul. A história de cada uma destas
regiões suscita uma série de questões tocantes a temas tais como as mudanças
na estratificação social, as similaridades e diferenças da reação ao exército fran-
cês, bem como acerca do rumo da reorientação das economias regionais. Outra
tarefa para os pesquisadores será, como sugerido por Charles Stewart, apresentar
detalhes sobre os laços religiosos entre o Saara meridional e a África do Oeste e
Central, considerados sobre o prisma da unidade religiosa, política e econômica
destas regiões às margens do deserto
39
.
Um tema que invariavelmente se encontra ao longo da história do deserto é
a influência universal do clima, a seca ou o superpovoamento, os quais expulsam
os nômades das regiões áridas, lançando -os em direção a terras mais férteis, nos
confins do deserto, ou rumo às zonas situadas em regiões de maior altitude e
com maiores índices pluviométricos. Os dados climáticos existentes não auto-
rizam senão as mais genéricas conclusões, no que tange ao século XIX: quando
muito, pode -se dizer que este século não conheceu catástrofes como aquelas de
meados dos séculos XVII e XVIII ou como as grandes secas ocorridas no Sahel,
entre 1911 e 1914, bem como entre 1969 e 1973; que, malgrado a ausência
de períodos de secas devastadoras, salvo na bacia do Tchad nos anos 1830, o
início do século XIX foi mais seco que o período compreendido entre 1600 e
1800; e que certa umidade ressurgiu entre 1870 e 1895; mas que, no entanto, as
condições climáticas degradaram -se aproximadamente ao final do século XIX
até atingirem a grande seca do início do século XX
40
. Estas indicações gerais
mascaram, evidentemente, múltiplas variações locais e regionais. Informações
detalhadas permitiriam melhor compreender numerosos aspectos da atividade
humana e, particularmente, as relações de causa e efeito entre a penúria, por um
lado, e as guerras, migrações e a estratificação, por outra parte; contudo, não resta
senão deplorar a falta, quase total, de tais informações.
39 C. C. Stewart, 1976a. Para um estudo dos laços econômicos entre o deserto e a savana ao Norte do
médio -Níger, conferir R. Roberts, 1978.
40 S. E. Nicholson, 1976, pp. 98 -158, 1980.
C A P Í T U L O 2 1
619
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
O drama, cujo teatro seria a África do Oeste, no século XIX, teve como palco
principal esta estreita faixa territorial que os geógrafos e historiadores árabes
da época clássica denominariam Bilād al -Sūdān (país dos negros). Localizada
entre o deserto do Saara que a invade continuamente ao Norte e uma zona de
clima inospitaleiro em sua face sul, esta região deve a sua importância histórica,
a sua prosperidade e a sua estabilidade à manutenção de um frágil equilíbrio
entre o habitat, o homem e o animal; entre os agricultores sedentários e os pas-
tores nômades; entre os habitantes das cidades e as populações rurais; entre os
homens livres e aqueles de condição servil; igualmente, entre os muçulmanos e
as populações ainda fiéis às suas crenças tradicionais. Em suplemento, o Bilād
al -Sūdān era, desde tempos remotos, um mercado internacional no qual eram
trocadas as mercadorias locais e os produtos importados do estrangeiro; além de
constituir -se em uma zona de passagem e extraordinária miscigenação popula-
cional, como testemunha a expansão dos fulbe (peul), os quais, originários do
Fouta -Toro, se haviam espalhado em um vasto território, estendido do lago
Tchad e do Camarões, ao Leste, até o Oceano Atlântico, em direção ao Oeste.
Tratava -se de uma região onde grandes Estados e impérios haviam conhecido
a prosperidade e a posterior decadência; uma região que fora o primeiro dār
al -islām (lar do islã) na África do Oeste. É justamente neste contexto que, após
uma lenta gestação um longo período de aprendizado e predicação, desdo-
As revoluções islâmicas do século XIX
na África do Oeste
Aziz Batran
620
África do século XIX à década de 1880
brado em explosões de violência nasceriam três califados: Sokoto, no Norte
da Nigéria, Hamdallahi, no Macina, e o califado tijāniyya, da Senegâmbia e
do Macina.
O pano de fundo religioso dos movimentos reformistas
As jihad, cujo teatro foi a África do Oeste no século XIX, eram essencial-
mente campanhas de inspiração religiosa, destinadas a concretizar os principais
ensinamentos e práticas, características dos primórdios do islã; mas, como este
último é uma religião total que engloba todos os aspectos da vida social, os dife-
rentes móveis destes movimentos religiosos, sociais, econômicos e políticos
− são indissociáveis. Assim sendo, as revoluções islâmicas do século XIX foram
a expressão de todo um conjunto de preocupações muito profundas, traduzidas
por uma situação de crise no Sudão.
Os revolucionários da África do Oeste, xeque (Shehu) ‘Uthmān dan Fodio
(Uthn ibn Fudī), Seku Ahmadu (xeque Ahmad Lobbo) e Hadjdj ‘Umar, eram
homens de religião. Teóricos de imensa estatura e chefes carismáticos, cujas vidas
e ações conformavam -se escrupulosamente ao exemplo de Muhammad, bem
como às prescrições da sha ‘a
1
. Eles sinceramente acreditavam que lançando o
seu apelo à restauração e à reforma (tadjd) e ao recorrerem, em último caso, à
ão militante, estariam obedecendo às ordens de Alá, cumprindo as predições do
Profeta, recebendo a aprovão dos seus pais espirituais e situando este conjunto,
deste modo, na linha direta de ações similares, passadas ou contemporâneas. Eles
igualmente se consideravam instrumentos escolhidos por Deus para executar a
Sua vontade.
Os chefes das jihad invocavam vários versetos do Alcorão, as tradições pro-
féticas (hadīth) e o consenso dos juristas (idjmā‘), para insistirem na obrigação
da jihad e nas numerosas recompensas que, no além, esperavam os mudjāhidūn
2
.
1 Existem muitas obras de caráter geral sobre as revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste,
notadamente: J. R. Willis, 1967, p. 359 -416; M. Last, 1974, p. 1 -24; H. F. C. Smith, 1961, p. 169 -185; B.
G. Martin, 1976, p. 13 -35 e 68 -98; M. Hiskett, 1976, p. 125 -169. Sobre a jihad de xeque ‘Uthmān dan
Fodio, conferir: M. Last, 1967a; H. A. S. Johnston, 1967; F. H. al -Mastri, 1963 e 1978; M. Hiskett, 1973.
No tocante ao movimento de Seeku Ahmadu, ver: W. A. Brown, 1969; A. Hampaté Bâ, e J. Daget,1962.
Sobre a jihad de al -Hadjdj ‘Umar, conferir: J. R. Willis, 1940 e 1984; O. Jah, 1973; M. A. Tyam, 1961;
B. O. Oloruntimehin,1972a.
2 Alcorão, s. II, v. 126: “É -vos ordenado o combate, mesmo se vós o repugnais; e é possível que vos desa-
grade o que é bom para vós, tanto quanto é possível que vós ameis o que é ruim para vós; Alá sabe e
vós NÃO sabeis. Alcorão, s. II, v. 193: “E combatei -os até terminar a perseguição e seja restabelecido o
culto a Alá. Caso eles parem, não mais haverá hostilidades, senão contra os injustos.” O hadīth acrescenta:
621
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
Na África do Oeste, como nas outras partes do dār al -islām, convém salientar, a
guerra santa coloria -se de tendências sufi (místicas), enfatizando a mortificação
e a observância de uma rigorosa moral. Os mudjāhidūn deviam levar uma vida
absolutamente exemplar e por em prática aquilo que pregavam.
Além disso, a profecia de Muhammad: “Alá enviará a esta umma (comuni-
dade muçulmana), no início de cada século, aquele que regenerará a sua religião”,
não era muito conhecida, senão no Sudão Ocidental. Na realidade, o conjunto
da tradição escatológica, transmitida pelas gerações precedentes, influenciaria
profundamente os programas e as ações dos chefes das jihad. A receptividade
encontrada por esta tradição junto ao povo e as paixões que ela foi capaz de
desencadear são fenômenos universalmente conhecidos: a figura messiânica
encarnava, com efeito, as esperanças e aspirações das massas, e vinha trazer -lhes
aquilo que elas acreditavam ser uma solução segura para a crise. O libertador
esperado era considerado enviado de Alá, para intervir energicamente, através
da língua (a predicação e o ensino) e, caso necessário, através da mão (a jihad),
com vistas a aplicar o preceito corânico al amr bil -ma ‘ruf wal -nahi ‘an al -munkar
(ordenar o bem e obstruir o mal). Ele devia eliminar a descrença, a injustiça e
a opressão; ele era convocado a construir um mundo melhor e a dotar a umma
de uma religião satisfatória.
Em lugar algum do dār al -islām, a noção de tadjdīd obteve um efeito mais
profundo comparativamente ao ocorrido na África do Oeste durante o século
XIX. À época, os muçulmanos desta região esperavam impacientemente o
advento do mudjaddid (reformador/renovador)
3
. Segundo uma profecia atribu-
ída a Muhammad, ele próprio devia ter doze califas (mudjaddidūn) como suces-
sores; em seguida, viria uma era de anarquia, anunciadora do fim do mundo. As
tradições locais defendiam orgulhosamente que o Profeta reservara ao Takrūr
(África do Oeste) a honra de engendrar os dois últimos mudjaddidūn. A opi-
nião comumente admitida, no Sudão ocidental, consistia em dizer que os dez
primeiros reformadores já haviam aparecido nos países muçulmanos do Oriente
(cinco em Medina, dois no Egito, um na Síria e dois no Iraque), e que Askia al -
Muhammad, o grande monarca songhai (1493 -1528), fora o décimo primeiro.
O décimo segundo e último mudjaddid era anunciado e faria a sua aparição no
“Caso alguém dentre vós perceber qualquer sorte de ação condenável, ele a modicará com a sua mão;
caso não lhe for possível, ele o fará com a sua língua; caso não lhe for possível, ele o fará em seu coração;
é o mínimo que a religião lhe determina.”
3 J. R. Willis, 1967; A. Batran, 1983; M. A. al -Hajj, 1967, pp. 100 -115.
622
África do século XIX à década de 1880
Sudão Ocidental, durante o século XVIII, ou seja, entre 1785 e 1881
4
. No século
XIX, os chefes oeste -africanos da jihad souberam explorar este clima messiânico.
Como notaram alguns autores, xeque ‘Uthmān dan Fodio e Seku Ahmadu,
ambos afirmavam serem o mudjaddid anunciado para o século XVIII, século
este decisivo para a hidjra
5
. A respeito de al -Hadjdj ‘Umar, ele jamais se atribuiu
o título de mudjaddid ou mahdī, adotando entretanto uma versão sufi tijāni,
atribuindo -se a denominação Khalīfat khātim al -awliyā’ (sucessor do Brasão dos
Santos, em outras palavras Ahmad al -Tidjāni, fundador da tarīka tijāniyya)
6
.
Prova suplementar da legitimidade e da validade das jihad, cada um dos três
homens declarava ter sido investido da missão divina pelo Profeta e pelo funda-
dor da tarīka (ordem ou confraria sufi), à qual eles pertenciam. Estas afirmações
eram convincentes acerca da sinceridade do dirigente e estavam na vanguarda
dos ataques contra as jihad, provindos dos céticos e detratores − aqueles chama-
dos ‘ulamā ‘al -su‘ (cartas devotadas e oportunistas). O xeque Uthmān garantia
àqueles vindos escutá -lo que a ordem de travar a jihad lhe fora pessoalmente
dada pelo fundador da tarīka kadiriyy, ‘Abd al -Kādir al -Djilānī (morto em
1166), em presença do Profeta, dos seus Companheiros e de todos os grandes
santos. Ele tivera esta visão mística em 1794, dez anos antes de promover a sua
guerra santa:
Quando eu atingi a idade de 40 anos, 5 meses e alguns dias, Deus levou -me para
Si, e eu vi o Senhor dos djinns e dos homens, o nosso Senhor Muhammad [...].
Consigo encontravam -se os Companheiros, os profetas e os santos. Então, eles me
acolheram e me fizeram sentar entre eles. Em seguida [...], o nosso Senhor ‘Abd
al -Kādir al -Djilānī trouxe um manto verde [...] e um turbante! [...]. O Mensageiro
de Deus manteve -os, por um momento, colados ao seu peito [...]. ‘Abd al -Kādir
al -Djilānī fez -me sentar, em seguida, vestiu -me e me colocou o turbante. Posterior-
mente, chamou -me “imame dos santos” e me comandou fazer o que é aprovado e me
interditou fazer aquilo considerado desaprovado; concedeu -me a Espada da Verdade
[Sayf al -Hakk], para que eu a empregasse contra os inimigos de Deus
7
.
4 Ibid.
5 J. R. Willis, 1967; A. Batran, 1983, pp. 32 -39; U. al -Naqar, 1972, pp. 77 -78; B. A. Brown, 1969, p. 21.
6 O. Jah, 1973, p. 4 e p. 123 e seguintes. Selon J. R. Willis, 1984, e B. Martin (1963, pp. 47 -57), os parti-
dários de al - Hadjdj ‘Umar reivindicavam o título de mahdī e o de wazīr al -mahdī.
7 M. Hiskett, 1973, p. 66.
623
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
Al -Hadjdj ‘Umar teria recebido do seu guia espiritual, Muhammad al -Ghalī,
da Meca, a ordem de levar a reforma ao Sudão Ocidental
8
. Quando, posterior-
mente, um violento enfrentamento com os seus adversários tornou -se inevitável,
al -Hadjdj ‘Umar, começou a ser tomado por visões místicas, ordenando -lhe
lançar a jihad:
Anteriormente, eu não fora autorizado por Muhammad e pelo xeque al -Tidjāni
senão a reunir os descrentes do islã e a guiá -los na via correta [...]; em seguida, eu
fui encarregado de lançar a jihad [...]. A autorização foi -me transmitida por uma
voz divina que me disse: “Tu agora tendes a permissão para conduzir uma jihad.”
Isso se reproduziu na noite do vigésimo primeiro dia da Dhul -Qa’da, no ano 1268
[6 de setembro de 1852]
9
.
Profundamente ancorados na ortodoxia e nas ideias sufi, as jihad conduzidos
na África do Oeste, no curso do século XIX, não eram fenômenos isolados, mas
as últimas manifestações de uma tradição reformista de longa data estabelecida
no Bilād al -Sūdān, cujo objetivo consistia em instaurar, através da revolução, a
equidade e a justiça prometidas pelo islã, todavia recusadas por regimes opres-
sores, comprometidos e iníquos.
Certos autores tentaram ligar a uma origem comum as revoluções islâmicas
ocorridas na África do Oeste: a jihad de Nasīr al -Dīn (morto em 1677)
10
, movi-
mento almorávida do século XI
11
e, inclusive, a revolução kharidjite do século
VIII, na África do Norte
12
. Este procedimento cronológico foi, a justo título,
criticado em razão de “sugerir [...] laços fortuitos ligeiramente esquemáticos”
com estas primeiras explosões de violência militante, muito mais que uma filia-
ção direta
13
. Embora seja inegável que os chefes das jihad travados na África
do Oeste tivessem conhecimento dessas vitoriosas campanhas e, inclusive, de
outras tentativas menos exitosas
14
, é todavia antes plausível apostar que eles se
tenham diretamente inspirado em exemplos mais próximos de si, no tempo e
no espaço, assim como, particularmente, em sucessos obtidos pelos seus pró-
prios ancestrais, os torodbe, no Bundu, no Fouta -Djalon e no Fouta Toro; em
8 J. R. Willis, 1984, cap. 6, pp. 1 -2; O. Jah, 1973, p. 131 -132.
9 Ibid.
10 P. D. Curtin, 1971, pp. 14 -24.
11 M. A. al -Hajj, 1964, p. 58.
12 O. Jah, 1973, pp. 62 -64.
13 C. C. Stewart, 1976a, p. 91.
14 Shaukh Uthmān teria se referido à jihad malsucedida e, inclusive desastroso, lançado por Ahmad ibn
Abu Mahalli, originário do Talālet, no início do século XVII: conferir F. H. al -Masri, 1978, p. 32.
624
África do século XIX à década de 1880
tentativas pacíficas de reforma do xeque al -Mukhtār al -Kuntī e de Muhammad
ibn ‘Abd al -Karīm al -Maghīlī; na reação do sufi aquando da inserção do funda-
mentalismo wahhabite na Arábia; e, no caso do xeque Ahmadu e de al -Hādjdj
‘Umar, na recente jihad do xeque ‘Uthmān, em território hauassa.
Os instigadores das jihad situavam as suas origens na região mais sagrada do
Bilād al -Sudān, o famoso Takrūr (Fouta Toro), legendário berço do primeiro
Estado islâmico da África do Oeste
15
; mas, sobretudo, eles pertenciam todos a
esta “sociedade” de ‘ulamā‘ (letrados), conhecida sob a denominação torodbe. J.
R. Willis ensina -nos que os torodbe eram um grupo heterogêneo de muçulmanos
oriundos de diversas famílias étnicas do Sudão Ocidental e Central
16
. A “socie-
dade” dos torodbe acrescenta ele era composta de grupos de origem fulbe,
wolof, mande, hauassa, berbere, descendentes de escravos e indivíduos de castas.
Entretanto, os torodbe eram semelhantes aos fulbe: eles falavam a sua língua (o
fulfulde), aliavam -se a eles através do casamento e seguiam -nos em suas perpétuas
migrações. Em todo o Sudão Ocidental, a palavra “torodbe” tornou -se sinônimo
de “fulbe” e, de fato, os torodbe formavam a elite intelectual do povo fulbe.
O islã impregnava todos os aspectos da vida dos torodbe; eles nele encon-
travam, a um só tempo, o alimento espiritual e o seu meio de subsistência. Eles
compartilhavam as suas preocupações religiosas com os clãs escolásticos zāwiya,
vizinhos do Saara Ocidental
17
. Todavia, diferentemente dos clãs zāwiya, os
quais constituíam, cada um deles, uma distinta unidade étnica na qual todos os
membros estavam unidos pelos seus laços sanguíneos, os torodbe, por sua vez,
...se haviam libertado da noção equivalente a diferenças étnicas [...], para fundarem
uma sociedade aberta a qualquer pessoa que desejasse assumir os seus costumes e
crenças”
18
. Esta sociedade heterogênea de clérigos e discípulos podia, entretanto,
orgulhar -se por ter originado dinastias de eruditos (bayt al - ‘ilm), como os toronkawa
de xeque ‘Uthmān, os bari de xeque Ahmadu e a própria família de al -Hadjdj
‘Umar, os tall. Em suplemento, os torodbe podiam orgulhosamente evocar todo um
prestigioso passado as jihad torodbe de Mālik Sī, nos últimos decênios do século
XVII, de Karamoko Ibrāhīm Mūsā e de Ibrāhīm Sori, em meados do século XVIII
e de Sulaymān Baal, durante os anos 1770, assim como os imamados torodbe do
15 J. R. Willis, 1978, pp. 195 -196; 1984, cap. 2, pp. 1 -4; B. Martin, 1976, pp. 15 -16; J. S. Trimingham, 1962,
pp. 161 -162.
16 J. R. Willis, 1984, cap. 1, pp. 33 -34; 1978, p. 196 e seguintes.
17 Sobre os zāwiya, conferir por exemplo: J. R. Wilis, 1979b, pp. 3 -12; C. C. Stewart, 1976a, pp. 73 -93; H.
T. Norris, 1968; A. A. Batran, 1972.
18 J. R. Willis, 1984, cap. 3, p. 8.
625
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
Bundu, do Fouta -Djalon e do Fouta Toro, fundados no imediato posterior a estas
guerras. Foi justamente a esta herança histórica que al -Hadjdj ‘Umar fez alusão para
despertar o espírito dos combatentes da fé que encontrava -se adormecido no coração
dos banū toro (filhos do Fouta Toro). Relembrando -lhes que a guerra santa era uma
tradição cara ao seu povo, al -Hadjdj ‘Umar declarou: “os banū toro são semelhantes
aos nossos primeiros ancestrais; trabalhadores e fortes, a fina flor da humanidade e
justos. Banū toro [...] retornai às vossas origens: a jihad contra os inimigos de Alá
[...]. O Monte Sinai é o vosso berço em virtude da jihad [...]. Banū toro [...], sede
dignos de vossos ancestrais
19
.
A tradição revolucionária dos torodbe foi igualmente evidenciada em um
poema atribuído a Muhammad Bello, filho sucessor do xeque ‘Uthmān dan
Fodio. Caso suponhamos a sua autenticidade, este poema teria sido escrito por
Bello antes da sua morte, em 1837. Após um longo elogio de al -Hadjdj ‘Umar,
genro de Bello, ele apresenta “gloriosos feitos” dos banū toro (os torodbe).
Segundo dizeres, al -Hadjdj ‘Umar anexava o poema às mensagens propagan-
dísticas, por ele endereçadas aos dignitários dos Fouta Toro, com a evidente
intenção de convencer os leitores que a família Fodio apoiava a sua jihad (toro-
dbe): “Estes [banū toro/torodbe] são o meu povo; a origem do meu clã; [...] em
defesa do islã, nós estamos ligados; [...] junto a eles, houve aqueles, excelidos
em ciências religiosas [...] e aqueles em guarda contra a perfídia do inimigo, os
quais proclamaram a jihad
20
.”
Outra fonte distinta de inspiração, os chefes da África do Oeste que convo-
cavam para a jihad podiam encontrar um modelo no reformismo “quietista” de
xeque al -Mukhtār al Kuntī (1729 -1811). Aproximadamente de 1750 até a sua
morte, em 1811, al Kuntī elevou fortemente o prestígio da tarīka kadirīyya na
África do Oeste; dela foi o pai fundador e o chefe espiritual
21
. Foi através da
“pena” e não da “espada” que al Kuntī exerceu a sua inigualável influência no
Sudão Ocidental. xeque ‘Uthmān e xeque Ahmadu consideravam -no, ambos,
como o seu chefe espiritual na via kādirī. Os chefes que convocavam para a
jihad faziam muito amiúde referência à sua interpretação da lei sobre questões
religiosas e invocavam o seu nome para avalizar e legitimar a ação revolucionária.
Segundo os dizeres de Muhammad Bello, quando al Kuntī soube da jihad de
xeque ‘Uthmān, ele abençoou a empreitada e previu o seu sucesso. ‘Uthmān
19 J. R. Willis, 1970, pp. 98 -100.
20 Ibid., pp. 97 -98.
21 A. A. Batran, 1973; 1974; 1979.
626
África do século XIX à década de 1880
ibn Fūdī, teria ele declarado, é um dos santos consumados; a sua jihad é justa
22
.”
Com estas palavras, al Kuntī colocava todo o peso do seu imenso prestígio na
balança, em favor do chefe torodbe. Embora adepto de outra confraria sufi,
al -Hādjdj ‘Umar mantinha al -Kuntī em alta estima e, também ele, guiava -se
pelas suas opiniões
23
.
Os reformadores foram igualmente influenciados pelas ideias radicais do
letrado peregrino magrebino Muhammad ibn ‘Abd al -Karīm al -Maghīlī (morto
entre 1503 -1506)
24
. Eles se apoiavam amplamente nos seus pontos de vista
para distinguir o dār al -islām do dār al -harb (país da guerra/dos infiéis), para
definir o Estado de kufr (descrença) e para reconhecer os ‘ulamā’ al -sū’. Segundo
al -Maghili: “Os habitantes de um país refletem os verdadeiros sentimentos reli-
giosos do seu mestre. Se este último é muçulmano, o seu país é Bilād al -islām;
caso ele for kāfir (infiel), seu país será Bilād al -kufr; tratando -se de uma obri-
gação expulsá -lo em benefício de um outro
25
.”
O julgamento defendido por al -Maghīlī sobre soberanos sincretistas e‘ulamā’
al -sū‘ era claro: tratava -se de descrentes e os muçulmanos tinham o dever de
conduzir a jihad contra eles. Estes chefes e letrados, afirmava ele, “envolveram
a verdade com um véu de mentira, levando certo número de muçulmanos igno-
rantes a se desgarrarem”
26
.
Os muçulmanos da África do Oeste em nada estavam fechados às influências
externas. Os acontecimentos religiosos e políticos, advindos nos países islâmicos
do Oriente e, particularmente, aqueles que diretamente concerniam o berço
do islã a Arábia −, tinham repercussões em todo o dār al -islām. Um destes
acontecimentos foi a reação do sufismo do Oriente perante a tomada de Meca
(1803) e, em seguida, a conquista de Medina (1805), pelos fundamentalistas
wahhabites.
Conquanto uma grande parcela do mundo mulmano tenha rejeitado
alguns dos seus aspectos doutrinários, a revolução wahhabite nele naturalmente
interveio como um catalisador da ação militante. Ademais, condenando as suas
crenças e práticas, os wahhabites haviam provocado uma vigorosa renovação
do sufismo, cujos expoentes foram a tarīka khalwatiyya e o ilustre mestre sufi
22 A. A. Batran, 1973, pp. 349 -350.
23 J. R. Willis, 1979c, p. 181.
24 M. Hiskett, 1962, pp. 578 e seguintes; M. A. al -Hajj, 1964, pp. 53 e seguintes; J. R. Willis, 1970, pp.
38 -42 e 148 -151.
25 M. A. al -Hajj, 1964, p. 50; J. R. Willis, 1970, p. 38.
26 M. A. al -Hajj, 1964, p. 56.
627
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
Ahmad ibn Idrīs al -Fāsi (morto em 1837)
27
. Esta renovação traduziu -se nota-
damente pelo nascimento da confraria tijāniyya, à qual al -Hadjdj ‘Umar aderiu
e, da qual, os ensinamentos programáticos ele propagou na África do Oeste,
na qualidade de califa de Ahmad al -Tidjāni. Al -Hadjdj ‘Umar teria sofrido a
influência dos xeques khalwatī, durante a sua passagem pelo Cairo, onde teria
estado em contato direto com eles
28
. Segundo alguns autores, a jihad de xeque
‘Uthmān igualmente ligava -se ao reformismo sufi khalwatī, por intermédio do
seu mentor, Djibrīl ‘ibn ‘Umar
29
.
Assim sendo, embora tenha sido possível para aquelas jihad, travadas na
África do Oeste, substituírem, no quadro mais geral, movimentos de reformas
islâmicos militantes e “quietistas”, havia igualmente incontestáveis laços de
parentesco entre as três correntes. De fato, a jihad de xeque ‘Uthmān, lançado
em 1804, despertaria o fervor religioso revolucionário, latente sob as cinzas
no Sudão ocidental. Os escritos relativos à jihad de Sokoto, “convocando os
muçulmanos a derrubarem os regimes comprometidos e pagãos ou, ao menos,
a livrarem -se da sua autoridade política, assim como as epopeias em fulfulde,
celebrando os feitos dos fūdī e dos mudjāhidūn em território hauassa”, eram
muito conhecidas no Bilād al -Sūdān
30
. Os mudjāhidūn fulbe da curva do Níger
teriam participado da jihad de xeque ‘Uthmān e, quando retornaram, teriam
levado a chama revolucionária aos seus respectivos países de origem. Alguns
autores afirmam, sem muito fundamento, que xeque Ahmadu teria não tão
somente sido aluno de xeque ‘Uthmān, mas que ele igualmente teria partici-
pado ativamente do jihad lançado por este último
31
, recebendo, em suplemento,
o apoio e a benção dos chefes jihad de Sokoto. Ademais, xeque ‘Uthmān lhe
teria pessoalmente entregue uma bandeira, a ser conduzida à frente das suas
tropas mudjāhidūn
32
. Enfim, xeque Ahmadu correspondia -se com ‘Abdullaahi
dan Fodio, irmão e sucessor de xeque ‘Uthmān, requerendo -lhe a sua opinião
de jurista sobre o estatuto dos letrados muçulmanos do Macina, os quais se
27 J. O. Voll, 1969, pp. 90 -103; B. G. Martin, 1972, pp. 302 -303. As reações ao antisusmo wahhabite
foram muito intensas no Sudão Ocidental. Shaukh al -Mukhtar al -Kuntī publicou um fatwā, indicando
que os muçulmanos não tinham a obrigação do hadjdj na situação que prevalecia na Arábia. Conferir
U. al -Naqar, 1972, pp. 47 -48; A. A. Batran, 1972, pp. 186 -189.
28 M. Hiskett, 1976, pp. 161 -162.
29 B. G. Martin, 1976, pp. 24 -25. Djibrīl ibn ‘Umar tentou sem sucesso incitar à jihad na região do Aïr.
Conferir F. H al -Masri, 1963, pp. 438 -439.
30 W. A. Brown, 1969, pp. 66 -67; U. al -Naqar, 1972, p. 51.
31 J. S. Trimingham, 1962, p. 177. É verossímil que xeque Ahmadu não tenha jamais deixado o Macina.
32 U. al -Naqar, 1972, p. 51; W. A. Brown, 1969, pp. 17 e 22.
628
África do século XIX à década de 1880
opunham à sua jihad. Além das jihad de xeque Ahmadu, as regiões setentrionais
foram o teatro de, ao menos, três movimentos inspirados por Sokoto, entre 1816
e 1823. O primeiro, dirigido por um erudito hauassa, Malam Sa‘īd, visava os
tuaregues do Guimbala. Em consequência da derrota das forças de Sa‘īd, os
chefes jihad hauassa desapareceram da região, retornando sem dúvida ao país
hauassa. As duas chefes jihad, Fakīh al -Husayn Koita e Alfaa Ahmad Alfaka,
eram fulbe de origem local. O movimento de Koita eclodiu no Fittuga e aquele
de Alfaka no Farimaka. Temendo que estes dois movimentos ameaçassem dire-
tamente a sua jovem dina (califado), xeque Ahmadu reagiu prontamente, venceu
Koita e assegurou -se dos serviços de Alfaka, como agente de Hamdallahi
33
.
Quanto ao terceiro chefe jihad, al -Hādjdj ‘Umar, este permaneceu por muito
tempo no califado de Sokoto, ali vivendo durante mais de seis anos. Ele esteve,
em duas ocasiões, na rota da sua peregrinação e, posteriormente, no caminho de
retorno. Durante estas estadas, ele prosseguiu as suas atividades como pregador
e mediador, conquistando novos adeptos na confraria tijāniyya.
O substrato dos movimentos reformistas:
motivações e circunstâncias
Instaurar uma autêntica sociedade islâmica e recuar as fronteiras do dār
al -islām, tais eram portanto os objetivos dos chefes que travaram a jihad na
África do Oeste. O islã oferecia, acreditavam eles, um quadro ideal para a orga-
nização da comunidade, assim como um meio de garantir a salvação da sua alma
no outro mundo. Todavia, para traduzirem concretamente estas convicções,
faltava -lhes demonstrar capacidade em agruparem tropas totalmente devotas
à sua causa, além de suficientemente fortes a ponto de operarem as mudanças
desejadas.
Herdeiros de uma rica tradição escolástica, os futuros reformadores haviam
seguido os ensinamentos de ilustres mestres, nas “academiasda sua cidade
de origem ou até mesmo em distantes localidades. Eles ali haviam recebido
uma intensiva formação, englobando as ciências exotéricas tanto quanto as
esotéricas, tornando -se letrados perfeitos e xeques sufi dedicados ao ensino e à
pregação, bem como à expansão das suas respectivas confrarias. Os alunos que
chegavam às zāwiya itinerantes de xeque ‘Uthmān e de xeque Ahmadu eram
33 W. A. Brown, 1969, pp. 66 -67.
629
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
iniciados na Kadirīyya, ao passo que os de al -Hādjdj ‘Umar recebiam o wird
tijāni. Seriam estes grupos de devotos iniciados os constituintes do nódulo cen-
tral dos mudjāhidūn. Perfeitamente instruídos acerca dos segredos da via mística
(asrar al -tarīk), eles se conformavam fielmente aos ideais dos seus mestres. A sua
absoluta e cega obediência aos seus guias espirituais, fruto da sua formação sufi,
transformava -os em uma força potencialmente explosiva: eles estavam sempre
prontos para responderem a um chamado do seu xeque, bem como a lutarem
e morrerem por ele. Aos seus olhos, com efeito, os xeques eram, espiritual e
intelectualmente, superiores a todos os outros ‘ulamā’. Eles eram os santos
favoritos de Alá, detentores da baraka (benção divina e poder milagroso), além
de representarem os únicos laços entre os discípulos e os fundadores das tarīka.
De fato, eles eram os salvadores e libertadores esperados neste XII século da
hégira.
No Sudão Ocidental do século XIX, o islã encontrava -se, seguramente, bem
distante de corresponder aos ideais dos reformadores e dos devotos discípulos,
favoráveis à sua causa. Os reformadores deploravam o apoio manifestado por
numerosos soberanos e pelos seus seguidores a certas práticas contrárias ao islã.
Eles condenavam as injustiças e a opressão atribuídas às dinastias reinantes e
acusavam -nas de mesclar o islã aos tradicionais costumes religiosos (takhlit),
chegando a considerá -las totalmente descrentes. Eles atacavam os ‘ulamā’ que
aprovassem ou mesmo tolerassem o estado de degenerescência no qual perma-
necera o islã. Um dos fatos mais irritantes a este respeito, aos olhos de al -Hādjdj
‘Umar, era a agressiva expansão militar e econômica do franceses (infiéis), no
Fouta Toro e nos territórios vizinhos.
A maioria destas reprovações, senão todas, eram com toda evidência fun-
dadas. Foi sobretudo por intermédio dos comerciantes e eruditos muçulmanos
locais que as influências islâmicas e o conhecimento da língua árabe se expan-
diram no Bilād al -Sūdān
34
. Entretanto, os seus sucessos não devem dissimular o
fato de os novos convertidos não terem contudo negado a sua herança religiosa:
com efeito, este proselitismo não violento derivou, como era devido, para uma
aproximação com o islã e com as crenças africanas tradicionais. Este islamismo
híbrido, sincrético, era praticado pelos membros das classes dirigentes e pelos
seus assujeitados convertidos. Não satisfeitos em manifestarem veementemente
a sua adesão ao islã, os soberanos do país hauassa, do Macina e da Senegâmbia,
mantinham relações muito estreitas com as comunidades de mercadores e letra-
34 Conferir, por exemplo, N. Levtzion, 1973, pp. 183 -199; J. S. Trimingham, 1969, pp. 13 -28.
630
África do século XIX à década de 1880
dos muçulmanos. Os eruditos muçulmanos, conhecedores do árabe e reputados
por possuírem grandes poderes “mágicos”, neste contexto vieram desempenhar
um papel particularmente útil nas cortes reais, como conselheiros políticos ou
funcionários. Os mercadores muçulmanos, os quais sempre e muito diretamente
haviam tomado parte do comércio internacional do ouro, do sal, dos escravos
e de outras mercadorias, constituíam uma importante fonte de riquezas. Igual-
mente, os grupos muçulmanos acolhiam favoravelmente a clientela e a proteção
das dinastias no poder. Naturalmente, eles toleravam a excessiva condescendên-
cia que os soberanos permitiam -se perante o islã, estando inclusive preparados
para justificá -la.
Aos olhos dos reformadores, o autêntico islã não deixava margem a nenhum
compromisso. Igualmente, era necessário impor um termo ao conjunto das
bid‘a (as inovações, ou seja, as práticas religiosas tradicionais enxertadas no
islã). Eles tentaram, primeiramente, alcançar o seu intento através da pregação
− exortando os muçulmanos a voltarem a um islã intacto e puro. Esta pregação
acabou por solapar o poder “constitucional” estabelecido, quando a virulência
dos reformadores estabeleceu os soberanos e letrados das cortes como alvo. Eles
repreendiam os ‘ulamā pela sua moral relaxada e pelo seu cínico oportunismo,
acusando -os de conhecerem -no parcialmente e desnaturarem o islã. Eles conde-
navam a opressão cuja responsabilidade recaía sobre os chefes, repudiavam a sua
corrupção, os seus abusos de poder, os impostos não conformes à lei islâmica,
através dos quais eles massacravam os seus assujeitados, além de especialmente
reprovarem -lhes por “elevar a bandeira do reino temporal além da bandeira do
islã”
35
. Al -Hadjdj ‘Umar lançou esta advertência: “Que cada homem sensato, em
todas as épocas da história da humanidade, saiba que aqueles que se imiscuírem
nos assuntos temporais (mukkibīn ‘ala al -dunya), como os cachorros infiéis, os
reis traidores e os ‘ulam corrompidos, conhecerão a humilhação e a desventura
neste mundo e no além
36
.” Tais propósitos constituem, com total evidência, um
chamado à revolução. Perante o estrondo da tempestade, a reação das autorida-
des não tardou. Elas tentaram esmagar na casca do ovo o eminente levante.
Como era possível prever, os reformadores consideravam estas tentativas
como manifestações de impiedade e os seus autores como infiéis. E, como
fora prescrito: Se o soberano é infiel, o seu país é Bilād al -kufr”; o Sudão
Ocidental era desde então dār al -harb; e a sua conquista e anexação pelo dār
al -islām tornava -se um dever para os muçulmanos. No período de alguns anos,
35 M. A. al -Hajj, 1964, p. 50.
36 O. Jah, 1973, p. 184.
631
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
os mudjāhidūn e os seus aliados suprimiram a autoridade dos sarki dos Estados
hauassa, aquela dos ardo do Macina e dos faama de Ségou (Segu) e do Kaarta,
assim como aquela dos almaami do Bundu, do Fouta -Djalon e do Fouta Toro.
O país hauassa tornou -se um califado dirigido por ‘Uthmān dan Fodio, amīr
al -mu‘minīn (comandante dos crentes); o Macina tornou -se uma dina (califado),
à frente da qual estava xeque Ahmad Lobbo, carregando desde logo o título
de amīr al -mu‘minīn; em seguida, a Senegâmbia foi anexada ao Macina para
formar um califado tijāni, sob a batuta de al -Hādjdj ‘Umar, Khalīfat khātim
al -awliyā’.
Os mudjāhidūn, os quais haviam humilhado os potentes regimes do Bilād
al -Sūdān, provinham de horizontes sociais e étnicos muito diversos. Eles haviam
sido recrutados junto aos fulbe, hauassa, mande, wolof e tuaregues, junto aos
pastores nômades, nas comunidades sedentárias ou semissedentárias, nas fileiras
dos ‘ulamā’ e dos murīd (discípulos sufi) letrados, bem como nas classes iletradas,
em meio aos indivíduos de casta, aos escravos e libertos. Cada grupo possuía as
suas próprias queixas e compartilhava a esperança, segundo a qual, este questio-
namento da ordem estabelecida conceder -lhe -ia importantes vantagens.
A direção destes mudjāhidūn era formada pelos discípulos (murīd/tālib) que
haviam seguido os xeques em suas pregações (siyaha) e, em seguida, em seu
exílio forçado (hidjra) fora do país do kufr. Com os letrados independentes
ou capazes de arcar com suas próprias necessidades, incorporados ao campo
dos xeques, eles formavam a Djamā’a (a Comunidade dos crentes). Guiados
pelo seu zelo religioso e pelas visões de xeques, os membros destas Djamā‘a
tornaram -se os mais devotados combatentes na via de Alá (mudjāhidūn sabil
Allāh). Certamente, o fervor religioso suscitado pelos reformadores igualmente
conquistou alguns elementos muçulmanos que o pertenciam à Dja‘a,
propriamente dita, os quais, subjugados pelo carisma dos xeques, uniram a sua
sorte à dos reformadores. Porém, estes “iniciados”, pontas de lança da reforma,
não eram em nada superiores, no plano numérico ou militar, aos exércitos que
combatiam os soberanos da África do Oeste. Igualmente, a vitória não se tornou
possível, senão após a chegada dos elementos “externos”, os quais reforçaram as
fileiras da Djamā’a, formando, sem dúvida alguma, o maior componente dentre
as forças engajadas. Estes elementos “externos” eram certamente sincretistas
(mu -khallitūn), no entanto, a sua participação na jihad apagava, definitiva-
mente, as diferenças sociais e religiosas que os haviam separado da Djamā’a. Os
“imperfeitos” desde logo se incorporariam ao berço dos mudjāhidūn, cuja última
recompensa era o paraíso.
632
África do século XIX à década de 1880
A grande maioria dos “iniciados”, quiçá igualmente dos elementos externos,
era de origem fulbe. Os próprios reformadores mantinham estreitos laços com
os fulbe e os dirigentes dos califados eram, do mesmo modo e muito amiúde,
fulbe. Esta influência preponderante dos fulbe nos movimentos religiosos levou
alguns autores a concluírem que as jihad haviam sido guerras étnicas, travadas
com objetivo de assentar o domínio dos fulbe em seu países de adoção. Indubita-
velmente, certo número dentre eles aderira às jihad em virtude de considerações
de ordem etno -solidária; contudo, é evidente ter havido, entre eles, muitos que
combateram junto às forças inimigas. Além disso, a jihad de xeque Ahmadu
Lobbo e a de al -Hādjdj ‘Umar foram, em grande parte, dirigidas contra os
chefes políticos fulbe, do Macina e da Senegâmbia.
A diáspora fulbe se disseminara a partir do Fouta Toro, cerca de quatro e
cinco séculos antes das jihad. Por toda a parte, estas populações, compostas
majoritariamente por pastores, viviam fora dos centros urbanos e das comuni-
dades camponesas. As suas migrações sazonais em busca de água e pastagens
conduziam -nos, todavia, às regiões rurais do Sul e aos territórios tuaregues do
Norte
37
. Durante a estação seca, os fulbe eram obrigados a levar os seus rebanhos
a terras cultivadas. A pressão sazonal que eles assim exerciam sobre os cam-
poneses, particularmente em épocas nas quais as colheitas ainda não estavam
concluídas, suscitava tensões com as comunidades camponesas. Em suplemento,
quando penetravam nas zonas controladas pelas autoridades urbanas, os fulbe
eram submetidos a impostos e restrições que limitavam os movimentos dos
seus rebanhos e a utilização das nascentes
38
. Eles igualmente eram submetidos a
multas em razão dos danos causados pelos seus rebanhos às plantações. Durante
a estação úmida, os fulbe conduziam os seus rebanhos para as regiões mais secas
do Norte, onde se encontravam em concorrência pela água com os tuaregues.
Durante este período, os seus animais eram as principais vítimas das incursões
tuaregues
39
. Além disso, estes últimos multiplicavam as depredações e pressões
sobre os nômades fulbe, sempre que a seca ou a fome se abatiam sobre o Sahel.
Desde muito tempo, os fulbe suportavam com dificuldades estas restrições,
estes impostos, estas multas e a ameaça contínua sobre o seu rebanho. As jihad
ofereciam -lhes uma bem -vinda oportunidade de escaparem aos impostos e
multas, além de possibilitarem -lhes proteger -se das ações tuaregues.
37 W. A. Brown, 1969, p. 60; M. Last, 1967, pp. LXII -LXIII; M. Hiskett, 1976, p. 138.
38 M. Last, 1967, pp. LXII -LXXIV; M. Hiskett, 1976, p. 138.
39 W. A. Brown, 1969, pp. 35 -36; M. Last, 1967, p. LXIII.
633
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
Os fulbe do Macina e da Senegâmbia, por sua vez, tinham outros motivos
de insatisfação. Em meados do século XVIII, os bambara de Ségou haviam
logrado estender a sua soberania sobre os fulbe do Macina. Todavia, os faama de
Ségou não administravam diretamente esta região. Eles permitiam às dinastias
reinantes locais os arma (descendentes de marroquinos que haviam conquis-
tado o Songhai) controlarem, em seu lugar, as cidades de Djenné (Jenne),
Tombouctu e Sungojo, e aos chefes militares fulbe e dikko, concediam -lhes
governarem, por sua própria conta, o restante da curva do Níger. Os faama
extorquiam dos fulbe um tributo anual correspondente, segundo estimativas,
a “100 meninos, 100 meninas, 100 cavalos, 100 jumentos, uma medida de
ouro” e um grande número de cabeças de gado
40
. Ademais, os rebanhos fulbe
representavam uma presa ideal para os soberanos bambara e dikko, realizado-
res de frequentes incursões nos acampamentos fulbe. Os arma somavam -se a
estas incursões. Segundo a tradição, foi no momento de uma destas expedições
(1810 -1811) que os bambara teriam permanecido cerca de quatro meses no
Macina, roubando o rebanho dos fulbe e confiscando importantes quantidades
de arroz dos agricultores. O assujeitamento dos fulbe e a pilhagem dos seus
rebanhos, assim como a violência desenfreada perpetrada contra eles, pelos
bambara e autoridades locais, constam entre as principais razões que levaram
esta etnia a se aliar ao xeque Ahmadu.
Tudo leva a crer que a jihad de xeque Ahmadu não seja nada além de uma
dentre as tentativas inspiradas pelos fulbe para quebrar a hegemonia bambara
nesta região. Esta luta nacionalista teve como vencedores os dirigentes fulbe
Hammadi Bodêjo e o seu filho Gelâjo. Em 1815 -1816, apenas dois anos antes
que xeque Ahmadu lançasse a sua jihad, Gelâjo conquistou a região de Kunari
dos bambara. Xeque Ahmadu apressou -se em fazer uma aliança com estas forças
patrióticas. A coalizão conquistou uma impactante vitória contra os dikko e os
bambara, na batalha de Nukuma (Noukouma)
41
.
O futuro dos fulbe da Senegâmbia não era menos inviável. Eles igualmente
sofriam com as depredações e a implacável lei dos almaami torodbe que eles
haviam apoiado em sua chegada ao poder, um ou dois séculos antes. Aproxima-
damente em meados do século XIX, com efeito, os almaami se haviam tornado
oligarquias hereditárias tirânicas que oprimiam os seus sujeitos. Além disso, eles
se associaram econômica e politicamente aos franceses, por eles autorizados a
40 W. A. Brown, 1969, p. 182, nota 25.
41 Ibid., passim. Foi em Nukuma que ocorreu a decisiva batalha, a qual permitiu a criação do califado de
Hamdallahi.
634
África do século XIX à década de 1880
construírem postos fortificados ao longo do vale do rio Senegal. A presença mili-
tar dos franceses e o seu crescente poderio militar na região afrontavam profun-
damente as convicções religiosas de alguns fulbe, para os quais estes estrangeiros
eram ahl al -dhimma (populações protegidas), tolerados através do pagamento da
djizya (imposto de captação ou tributo), prescrito pela lei islâmica, e mediante
a condição de não exercerem influência alguma no dār al -islām
42
. A recusa dos
franceses em pagarem a djizya, como de resto qualquer outro tributo, era julgada
incompatível com o estatuto tributário a eles atribuído pelo direito muçulmano.
Portanto, não causa espécie que os fulbe do Fouta Toro tenham respondido com
entusiasmo quando al -Hadjdj ‘Umar convocou -os a juntarem -se à sua jihad,
travado contra os dirigentes locais corrompidos e “infiéis” franceses. Ao longo
de todas as diferentes fases da jihad, o Fouta Toro, país de origem de ‘Umar,
não cessou o fornecimento da maior parte dos mudjāhidūn tijāni.
Igualmente, os reformadores encontrariam sólido apoio junto à imensa
população de escravos e indivíduos de casta, estabelecidos no Bilād al -Sūdān.
A aristocracia sudanesa do século XIX, ou seja, as dinastias reinantes e comu-
nidades de letrados e mercadores, devia muito da sua riqueza e do seu prestígio
à exploração e ao tráfico destes grupos servis. Os clãs endógamos constituintes
das castas forneciam os artesãos, situados à base da escala social, tais como os
ferreiros, pescadores, tecelãos e curtumeiros. Os escravos eram empregados em
trabalhos agrícolas, nos rebanhos, nas tarefas domésticas e no combate (como
guerreiros e guarda -costas).
A enorme reserva de escravos que existira no Sudão ocidental aparenta ter
consideravelmente crescido às vésperas das jihad, em consequência da introdu-
ção das armas de fogo e da espetacular expansão das exportações de escravos,
vendidos aos mercadores europeus estabelecidos na costa
43
. A aristocracia local
escolhia as suas vítimas junto aos camponeses e pastores, capturando assim
tanto os muçulmanos quanto os não muçulmanos. O temor em serem privados
da sua liberdade e as violências das quais se acompanhava a caça aos escravos
levaram grande número de vítimas potenciais a buscar refúgio junto aos xeques.
Esperando obter a sua recompra ao arrolarem -se para as jihad e tornando -se
membros da nova sociedade, os escravos, muçulmanos ou não, representavam
42 J. R. Willis, 1970, pp. 160 e seguintes; O. Jah, pp. 152 -153, 179 -181, 205 e seguintes.
43 J. R. Willis, 1978, pp. 208 -210; W. A. Brown, 1969, pp. 114 -115, 124 -125; M. Hiskett, 1976, pp. 138-
-139; P. E. Lovejoy, 1983, pp. 188 -199. Segundo algumas estimativas, a população de escravos do Fouta -
Djalon representava, aproximadamente em meados do século XIX, cerca da metade da população total
da região.
635
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
uma enorme proporção dos mudjāhidūn e da multidão de discípulos e inicia-
dos que se agrupara em torno dos reformadores. Ambos com sucesso, xeque
Ahmadu e al -Hadjdj ‘Umar convocaram os escravos para combaterem junto de
si. Xeque Ahmadu teria declarado: “Todos vós, maccube (escravos), vindos hoje
a mim, vós sois livres. Todos os maccube encontrarão o paraíso ao meu lado
44
.”
Não é indiferente que xeque Ahmadu tenha, contra os bambara e os dikko,
tomado posição no Sebera, região onde os escravos e os indivíduos de casta
eram muito numerosos.
Possuidores de uma imensa dívida junto a estas categorias servis, os refor-
madores recompensaram -nas generosamente. Os escravos foram libertos e rece-
beram a sua parte do butim que lhes cabia de direito. Alguns ocuparam postos
de prestígio no seio da administração. Assim, os califados apresentam “este
estranho paradoxo equivalente a fazer ascender às mais altas funções do Estado,
os representantes das ordens mais humildes da humanidade”
45
.
A comunidade dos crentes no dār al -hidjra
Os reformadores prosseguiram o seu ensinamento e a sua pregação durante
muitos decênios, antes que as autoridades começassem a perceber o perigo.
Em contrapartida, logo que os ensinadores transformaram -se em agitadores
políticos, os dirigentes e os seus ‘ulamā’ foram levados a exilá -los, a restringirem
as suas atividades e a perseguirem os seus partidários
46
. Violentos e inevitáveis
enfrentamentos produziram -se em consequência da expulsão dos xeques e dos
seus discípulos, cassados dos seus respectivos centros, Degel, em país hauassa,
Kubi, no Macina, e Jegunko, no Fouta -Djalon, e após o seu ulterior estabe-
lecimento no dār al -hidjra. Foi neste território, em Gudu (1804), Nukuma
(1816 -1817) e Dinguiraye (1849), que a Djamā‘a tomaria a sua forma definitiva.
Escapando, em razão do distanciamento, ao controle das autoridades, a Djamā‘a
preparou -se então para a eminente explosão, reunindo e estocando armas e
erguendo defesas, enquanto ‘Uthmān dan Fodio e Ahmadu Lobbo adquiriam
o título de amīr al -mu‘minīn. Al -Hadjdj ‘Umar, se bem lembramos, fora
nomeado Khalīfat khātim al -awliyā.
44 W. A. Brown, 1969, pp. 188 -189, nota 52.
45 J. R. Willis, 1984, cap. 3, pp. 23 -24.
46 A. A. Batran, 1974, p.49.
636
África do século XIX à década de 1880
Um fluxo contínuo de refugiados, respondendo aos apelos dos xeques ou em
fugas das perseguições, chegava ao dār al -hidjra. Mestres acompanhados dos
seus discípulos, escravos e homens livres, camponeses e nômades, amontoavam-
-se em torno dos chefes jihad, em uma atmosfera marcada por profundo fer-
vor religioso e grandes esperanças. Os discípulos eram iniciados em ciências
islâmicas, especialmente, no sufismo, e recebidos na confraria Kadirīyya ou
Tijāniyya, segundo o caso. Os acontecimentos que se haviam desdobrado na
hidjra (êxodo) e o paralelo por ela sugerido relativamente à hidjra do Profeta,
em sua fuga de Meca para Medina (622), sem dúvida constituíam o tema, ao
mesmo título que os preparativos para a guerra, de infindáveis discussões.
A hidjra certamente representou a fase mais crítica da ão dos reformadores.
Todavia, ela não foi absolutamente autoimposta e, contrariamente ao que leva a sus-
citar grande mero de eruditos, tampouco foi conduzida, de modo deliberado, para
legitimar a jihad
47
. A jihad, em oposição ao geralmente proferido, o foi uma neces-
sidade fundamental para os movimentos reformistas oeste -africanos: com ou sem
ela, as revoltas teriam eclodido. Certamente, a organização havia começado rios
anos antes da hidjra. Citando Taziyyn al -Warakat de Abdullaahi dan Fodio, F. H.
al -Masri diz -nos que os preparativos do jihad de Sokoto, especialmente a coleta
de armas, remontariam a 1797
48
. Nesta data, a jihad adquirira um ímpeto quase
irrevervel; de todo modo, a ideia percorrera o seu caminho no esrito de xeque
‘Uthmān: “a coleta das armas comara desde 1797. Quando a comunidade exigira
uma jihad contra os descrentes, Dan Fodio aconselhara -lhe eno a se armar. Ele
próprio se voltara para as orações e solicitara ao seu xeque ‘Abd al -Kādir al -Djailānī
interceder, para que ele pudesse ver o país hauassa sob a lei ismica
49
.”
Igualmente, as atividades de al -Hadjdj ‘Umar (recrutamento de partidários,
agitação e coleta de armas), antes da sua hidjra em Dinguiraye (1849), haviam
suficientemente inquietado as autoridades do Macina, de Ségou e de toda a
Senegâmbia, a ponto de levá -las a prendê -lo, a planejarem o seu assassinato ou
interditar -lhe a travessia dos seus territórios. Segundo Willis, não é fortuito que
‘Umar tenha escolhido Jegunko para ali estabelecer a sua primeira “academia”,
“pois que a localização da cidade é ideal para que [o xeque] possa dedicar -se
47 O. Jah, 1973, pp. 180 -185, arma que não se sabe realmente se al -Hadjdj ‘Umar teria voluntariamente
deixado Jegunko ou se teria sido expulso pela força. Ele sustenta entretanto que os almaami do Fouta-
-Djalon teriam efetivamente decidido expulsar Umar e que poderiam ter forçado o xeque e a sua djama
a partir, tornando -lhes a vida muito difícil.
48 F. H. al -Masri, 1978, p. 23.
49 Ibid.
637
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
ativamente ao comércio de armas e equipamentos militares”
50
. Mesmo livre
da sua piedosa aparência, segundo a jihad, a hidjra ou, antes, o exílio forçado
dos reformadores, revelou -se extremamente preciosa. Ela permitiu a Djamā‘a
escapar ao perigo imediato, propiciando -lhe o tempo necessário à preparação
para o inevitável enfrentamento.
Incontestavelmente, os reformadores dispunham de esmagadoras vantagens
frente aos seus adversários. Profundamente convencidos do caráter sagrado
da sua missão, eles souberam expressar o descontentamento e as decepções
das massas; e, sobretudo, podiam contar com a absoluta lealdade da Djamā‘a,
pois o ensino do sufismo enfatizava a total e cega obediência à pessoa do xeque
al -tarīka. Segundo os sufi: “O murīd (discípulo/iniciado) é aquele que não pos-
sui outro desejo senão o voto do seu xeque. Ele deve se perder no seu xeque, a
ponto de nada restar -lhe de si mesmo. Ele [deve ser] como o cadáver nas mãos
do seu embalsamador ou a pena entre os dedos do copista
51
.”
Os reformadores ainda possuíam outro trunfo, o seu carisma religioso pes-
soal. Na qualidade de guias espirituais das confrarias sufi, eles eram considerados
santos, detentores da baraka divina. Estes poderes, disso estavam convencidos os
seus partidários, permitiam aos xeques remediarem catástrofes naturais tais como
a seca e a fome, tornar fértil a terra e fecundos os animais e as mulheres, combater
os inimigos, além de outros feitos. Os relatos dos milagres realizados pelos xeques
circulavam e eram admitidos quase por toda a parte. Em uma sociedade na qual
se acreditava na existência de forças sobrenaturais, os eficazes poderes “mágicos”
atribuídos aos xeques, contribuíam consideravelmente para a sua popularidade
52
.
Os múltiplos atentados, aos quais eles haviam escapado, eram a prova tangível
da proteção divina usufruída por eles. Em suplemento, a sua superioridade inte-
lectual, o seu estilo de vida ascético e a distância que os separava dos dirigentes
“corrompidos”, fortificavam a confiança neles depositadas pelas massas.
Os reformadores não mergulharam precipitadamente os seus seguidores em
um temerário aventureirismo. Eles não começaram a responder às provoca-
ções senão quando estavam perfeitamente preparados e no momento por eles
escolhido. xeque ‘Uthmān, por exemplo, colocava os seus discípulos em guarda
contra o aventureirismo, pois este último “não leva senão ao revés e conduz
os muçulmanos frágeis à sua derrota”
53
. Para conquistar tão vastos territórios,
50 J. R. Willis, 1970, p. 90.
51 A. A. Batran, 1974, p. 49.
52 M. Last., 1967, pp. 3 -13; W. A. Brown, 1969, pp. 48, 116, 123; O. Jah, 1973, pp. 237 e seguintes.
53 F. H. al -Masri, 1978, p. 22.
638
África do século XIX à década de 1880
era portanto peremptório que os xeques fossem minuciosamente preparados.
Eles seguramente conquistaram as suas vitórias “a despeito da força dos seus
adversários”, em razão dos fatos em nada corroborarem a ideia, frequentemente
admitida e segundo a qual, o sucesso das jihad explicar -se -ia, sobretudo pelas
rivalidades entre as dinastias, assim como por um pretenso declínio geral do
poder nos Estados sudaneses
54
.
É interessante notar que, diferentemente das jihad de xeque ‘Uthmān e de
xeque Ahmadu, os quais não foram por eles estendidos além das suas respectivas
regiões de origem, o país hauassa e o Macina, as campanhas de al -Hadjdj ‘Umar,
por sua vez, lançadas a partir da fronteira oriental do Fouta -Djalon, visavam
conquistar a totalidade do Sudão Ocidental. ‘Umar jamais logrou tornar -se mes-
tre do Fouta Toro, o seu país natal, pois os franceses lá estavam já solidamente
estabelecidos. Certamente, ele atacou as posições francesas em Medina (1857)
e em Matam (1858 -1859); mas as suas tropas foram rechaçadas e submetidas
a pesadas perdas. Em seguida, ele se voltaria para o Leste e dominaria Ségou
(1861) e, em seguida, o califado de Hamdallahi (1862).
Não é difícil imaginar até onde al -Hadjdj ‘Umar pretendia estender o seu cali-
fado, ao Leste. O seu objetivo era simplesmente assentar a autoridade do Khalīfat
khātim al -awliyā’ em todo o Bilād al -Sūdān
55
. As suas conquistas “no estrangeiro”
foram possíveis em virtude de ‘Umar dispor de uma base militar mais ampla, com-
parativamente a xeque ‘Uthmān ou a xeque Ahmadu. As suas forças, recrutadas
em todas as regiões, eram compostas de adeptos da Tijāniyya, em sua maioria,
bem treinados e equipados, os quais tinham sido por ele próprio iniciados durante
as suas numerosas viagens em todo o Sudão Ocidental. Todavia, a sua trágica
morte no Macina (1864) impôs um termo a esta progressão para o Leste.
Comentários sobre algumas consequências dos jihad
Foi a primeira e, talvez igualmente, a última vez que tão vastos territórios
do Bilād al -Sūdān encontraram -se transformados em teocracias islâmicas cen-
tralizadas. Entretanto, esta centralização foi mais ou menos conduzida de um
califado a outro. Aparentemente, somente o califado de Hamdallahi (1818-
-1862) talvez tenha conhecido um poder muito centralizado, porque se tratava
de um território pouco extenso, habitado por uma pouco numerosa e homo-
54 M. Hiskett, 1976, p. 139.
55 O. Jah, 1973, passim.
639
As revoluções islâmicas do século XIX na África do Oeste
gênea população, e contendo satisfatória comunicação. Por conseguinte, xeque
Ahmadu e os seus sucessores foram capazes de levar a aplicação da sharī ‘a além
do que era possível em outros califados.
As responsabilidades supremas, de amīr al -mu ‘minīn (título que igualmente
portava Ahmadu, o filho e sucessor de al -Hadjdj ‘Umar) e de xeque al -tarīka,
eram passadas aos descendentes dos reformadores residentes nas capitais. Os
califados eram divididos em imārāt (emirados) cada qual governado por um
mudjāhid de alto escalão. A maioria dos amīr (governadores de província) era
composta de letrados; mas, igualmente, havia entre eles chefes de clã e escravos
libertos (al -Hadjdj ‘Umar teria demonstrado certa predileção pelos escravos).
Posteriormente, a nomeação para cargos de alto escalão esteve, em grande parte,
subordinada à existência de laços sanguíneos com a linhagem dos califas ou de
ilustres mudjāhidūn.
Geralmente, o poder tradicional e o prestígio social foram transferidos para
uma nova elite formada por mudjāhidūn. Os fulbe, principal elemento das tro-
pas engajadas nas guerras santas, tornaram -se os aristocratas por excelência do
Sudão Ocidental. Eles ocuparam a maioria dos postos administrativos; além de
numerosos dentre eles terem sido estabelecidos em terras confiscadas ao longo
das jihad. Os fulbe e outros proprietários fundiários necessitavam de escravos
para o cultivo das suas terras
56
e estes últimos, tudo leva a crer, ainda eram tão
numerosos, nos califados e relativamente aos homens livres, quanto o eram à
época das jihad. Os escravos que haviam participado das guerras santas foram
libertos; mas aqueles que não se haviam unido aos xeques foram novamente
assujeitados. Escravos capturados, em incursões além das fronteiras e durante
rebeliões, vieram engrossar as suas fileiras. O estatuto dos escravos capturados
fora definido pela fatwā (decisão jurídica) de al -Maghīlī:
Quanto àquele que vós encontrais em suas mãos (os descrentes), reduzido à escra-
vatura e pretendente a ser um muçulmano nascido livre, vós deveis aceitar a sua
palavra até que se tenha provado tratar -se de um escravo [...]. Qualquer um que vós
libertais por pretender ser um muçulmano nascido livre, escravizai -o novamente caso
torne -se evidente tratar -se de um descrente
57
.
Todos os indivíduos ou grupos habitantes dos califados viram serem garan-
tidas a sua proteção e segurança. Os deslocamentos dos grupos de pastores para
56 M. Last, 1974, p.28; P. E. Lovejoy, 1983, pp. 188 -189. Segundo M. Last, os pastores fulbe estabeleceram-
-se em maior número em Sokoto, comparativamente aos outros califados.
57 F. H. al -Masri (org.), 1979, p. 119.
640
África do século XIX à década de 1880
o Sul foram regulamentados de modo a reduzir as tensões com as comunida-
des camponesas. As fronteiras e as pastagens do Norte foram constantemente
vigiadas para conter as incursões dos tuaregues. Impôs -se um termo aos ataques
lançados contra as comunidades camponesas para a captura de escravos. Foram
criados tribunais para a aplicação da sharī ‘a e os kādī (juízes) foram nomeados
pelos califas e pelos amīr. Numerosas práticas contrárias à lei islâmica foram
banidas: o respeito à interdição do consumo de álcool foi garantido com rigor;
os odiosos impostos, captados pelos regimes desacreditados, foram substituídos
pelo zakāt (dízimo), pelos kharādj (impostos territoriais) e pela djizya, prescritos
pela lei corânica; o número de esposas autorizado foi limitado a quatro e assim
seguiam outras disposições
58
. Os impostos eram repartidos e recebidos pelos
amīr, os quais, muito amiúde, cobravam -nos de modo arbitrário.
Foi na ação educativa e missionária que as revolões representaram o maior
sucesso, fundando escolas por toda parte nos califados e convencendo grande
mero de missionários a levarem o islã até as regiões ainda não convertidas. Um
corpo de ensinadores sufi foi implantado. Alguns se estabeleceram nos centros
de cultura e ensino recentemente criados, como Sokoto, Gwandu, Hamdallahi e
gou ou em outras cidades e comunidades; enquanto outros perpetuavam a tradi-
ção venerada da siyaha. Porém, a maioria destes ensinadores e, sobretudo, aqueles
dos distritos mais isolados, encontraram -se diante do eterno problema do takhlit.
Numerosas normas tradicionais foram finalmente toleradas. Com efeito, uma vez
derrubado o zelo inicial, alguns dos ideais originais foram progressivamente aban-
donados, o pragmatismo e o tempo atuaram favoravelmente. A própria exteno
dos califados e a preponderância dos “elementos externos imperfeitos” no seio
da Dja’a tornavam inevitáveis estes compromissos. o se deve esquecer que,
embora o objetivo declarado dos reformadores fosse assegurar o advento de um
is ideal, a maioria dos mudhin obedecia a móbeis mais concretos. No mais,
as jihad permitiram ao islã e às duas confrarias sufi rivais, a Kadiyya e a Tijāniyya,
implantarem -se duravelmente na África do Oeste. A tradição revolucionária islâ-
mica dos torodbe seria perpetuada por uma nova geração de chefes jihad, tais como
Maba Diakhou, na Gâmbia (1809 -1867), Mahmadou Lamine, na Senegâmbia
(1885 -1888) e Samori Touré, na Gui(1879 -1898), os quais se postaram em
nome do islã contra os invasores estrangeiros e os seus aliados locais, porém foram
finalmente esmagados pela potente máquina de guerra dos europeus
59
.
58 A. G. Hopkins, 1973, p. 144, arma que a interdição do consumo de álcool provocou um aumento na
demanda por kola no país Hauassa, pois este estimulante não era proibido pela lei islâmica.
59 I. Hrbek, C. A. Quinn, Y. Person em J. R. Willis (org.), 1979.
C A P Í T U L O 2 2
641
O califado de Sokoto e o Borno
Introdução
A região à qual pertenciam o califado de Sokoto e o Borno foi dominada pelo
califado durante a maior parte do século XIX. Esta região igualmente compreen-
dia outros Estados e populações que, voluntariamente ou não, desempenharam
um considerável papel. Entretanto, o presente capítulo tratará somente do cali-
fado em questão e do Borno, cujas estruturas e evolução políticas influenciaram
fortemente a história de toda a região.
Quase todos os Estados da região foram o objeto de ao menos um estudo
histórico medianamente detalhado. Praticamente todos estes estudos limitaram-
-se à história política. interesse, outrossim e desde alguns anos, em relação
à história religiosa e, ainda mais recentemente, no tocante à história econômica;
entretanto e malgrado a abundância dos materiais disponíveis, os nossos dados
e a sua interpretação ainda apresentam consideráveis lacunas. Este capítulo não
oferece uma síntese de todos estes estudos; a minha intenção consiste, antes, em
propor um quadro que permita compreender a história da região entre 1820 e
1880, abrindo caminho para novas pesquisas.
O meu propósito versará, essencialmente, sobre o período 1820 -1880, mar-
cado por uma relativa estabilidade política posterior aos conflitos, de um lado, e
pelas grandes fomes e pelo grande deslocamento da sociedade civil, desenrolados
O califado de Sokoto e o Borno
Murray Last
642
África do século XIX à década de 1880
na região durante as guerras, ou jihad, por outra parte. Em termos introdutórios,
o período, compreendido entre aproximadamente 1775 e 1820, será dividido em
três partes: de 1775 a 1795, em Estados como o Gobir, o descontentamento
observado no seio do partido reformista muçulmano é expresso de modo pací-
fico, embora eficazmente; aproximadamente de 1795 a 1810, a oposição de
interesses e ideias torna -se tamanha, entre os diversos grupos participantes do
poder, que os conduz a uma verdadeira guerra; finalmente, entre os anos 1810
e 1820, aproximadamente, os novos governos, buscando resolver os problemas
resultantes da guerra, experimentam novos métodos administrativos ou tentam
povoar novas regiões. Por volta de 1820, as administrações alcançam o seu maior
sucesso ao novamente propiciarem uma estabilidade política para a região, o
que permite um desenvolvimento econômico sem precedentes − um período de
crescimento de amplitude inédita, jamais ocorrido nesta região desde os séculos
XV ou XVI. A contrapartida social deste sucesso foi a perda, por esta região,
de grande parte da sua independência política e econômica, assim como do seu
modo de vida tradicional. Ela não os perdeu sem oferecer resistência, porém a
história desta resistência ainda está por ser escrita.
O início das reformas (aproximadamente 1775 ‑1795)
O partido reformista muçulmano era o mais forte e conquistou os seus mais
notáveis sucessos não no Borno, mas nos Estados huassa e no Nupe, os quais
haviam outrora feito parte de um califado” ampliado do Borno. Homens essen-
cialmente favoráveis a uma reforma religiosa chegaram ao poder, em um con-
texto urbano, por exemplo, em Nupe (o etsu Jibril), em Kano (o sarki Alwali),
em Zaria (o sarki Ishāk) e em Katsina (o sarki Gozo). Inclusive no Gobir, no
Kebbi e no Zamfara, onde o xeque ‘Uthmān dan Fodio pregava a reforma
junto a multidões progressivamente mais numerosas, os sultões, como Bawa Jan
Gwarzo, em Alkalawa, estavam prontos para um entendimento com os refor-
mistas. Entretanto, era nas campanhas que o movimento reformista apresentava
maior profundidade e obtinha os mais espetaculares sucessos. Este movimento
foi inicialmente dirigido, embora sem muita sutileza, por al -Hadjdj Jibril al
Aqdasi (de Agadez); ele se desenvolveu, em seguida, sob a direção muito mais
hábil do xeque ‘Uthmān que cumpria, na região e à imagem de outros letrados, a
função de conselheiro junto aos sultões. Primeiramente, o movimento teve como
objetivo difundir a educação muçulmana e a prática do islã nos campos. Porém,
aproximadamente após 1788, os reformistas esforçaram -se prioritariamente em
fundarem comunidades autônomas, sobretudo na periferia dos Estados huassa,
643
O califado de Sokoto e o Borno
 . O califado de Sokoto, o Borno e os seus vizinhos (segundo M. Last).
644
África do século XIX à década de 1880
além de pleitearem, para os muçulmanos habitantes das comunidades exis-
tentes, o direito de formarem uma “casta autônoma
1
.
Este abandono da estratégia de reforma do Estado, em favor de uma estra-
tégia de autonomia, no interior ou no exterior do Estado, acompanhou -se de
outros acontecimentos no plano potico. O Gobir cessara, em larga medida,
de pagar o tributo ao Borno (talvez tivesse ele assim perdido, aos olhos dos
reformadores, parte da sua legitimidade islâmica); do mesmo modo o sultanato
do Mandara, na extremidade sul do Borno, dele tornara -se independente após
um levante, por volta de 1781 ao passo que, no próprio Borno, o governador
do Daya estava prestes a conquistar e afirmar a sua autonomia
2
. Nesta época
de divisão política, os reformistas aparentemente compreendiam que seriam
somente temporários os seus sucessos, caso eles se contentassem em fazer
nomear sules favoráveis à reforma; e que, mesmo se isso envolvesse maio-
res riscos, eles obteriam resultados mais duradouros, criando comunidades
autônomas e lutando pelo reconhecimento dos seus direitos, como “casta”
autônoma. Esta estratégia apresentava duas vantagens suplementares: pri-
meiramente, ela fora empregada não somente no Borno, mas igualmente
alhures, na África Ocidental; em seguida e sobretudo, ela evocava a experiência
do Profeta em Meca.
A confrontação militar (aproximadamente 1795 ‑1810)
A reivindicação e a conquista de direitos particulares no seio do Estado
muçulmano pelos muçulmanos adeptos de uma orientação particular (os huassa
chamavam os reformistas kadirawa” porque eles pertenciam à confraria da
Kadirīyya) tiveram como consequência a privação dos poderes executivos e
fiscais dos funcionários locais em algumas de suas administrações. Com a rei-
vindicação de novos privilégios por parte crescente da população (aqui compre-
endidos os escravos), as autoridades locais rejeitaram muitas novas demandas
e recorreram à força para restabelecerem o seu poder. Em meio a essa agitação,
1 Para uma bibliograa detalhada do xeque ‘Uthmān b. Fūdī (ou “Dan Fodio em huassa), consultar M.
Hiskett, 1973. Encontraremos uma biograa do xeque, escrita por um dos seus companheiros em: U.
F. Malumfashi, 1973. Para uma nova análise do movimento, reposicionado no contexto oeste -africano,
consultar M. Last, 1988.
2 No tocante ao Mandara, conferir B. M. Barkindo, 1983. Sobre o Borno no século XVIII, referir -se a J.
E. Lavers, 1980, pp. 206 -209. Aparentemente, Daya nalmente entrou em rebelião aproximadamente
em 1805, consultar S. W. Koelle, 1854, pp. 212 -223. As mais profundas razões para o declínio do Borno,
por um lado, e para a penetração do islã nos campos, por outra parte, são complexas e controversas. Uma
das causas econômicas é o deslocamento do comércio rumo ao Sul, no século XVIII, aumentando a
importância dos agricultores -comerciantes e levando -os a lutar pela liberdade comercial.
645
O califado de Sokoto e o Borno
escravos fugiam, buscando a liberdade em novas comunidades autônomas que
se recusavam devolvê -los aos seus mestres em razão dos fugitivos serem muçul-
manos. As medidas, tomadas pelo governo para novamente impor a ordem e
para recuperar as suas perdas, somente haviam agravado a divisão entre a socie-
dade urbana e a sociedade rural: os seus agentes vinham frequentemente aos
mercados confiscar os produtos agrícolas e o gado. Ainda mais graves foram os
ataques lançados − talvez a título de represália − contra os pastores fulbes (peul)
para impor -lhes a escravidão e se apoderar do seu rebanho, acreditando que os
reformistas (dentre os quais muitos falavam a língua dos fulbes, ou fulfulde)
seriam assim levados a interromperem as suas atividades. Pode -se sustentar,
retrospectivamente, que esta decisão, entre todas aquelas tomadas durante a
guerra, teria as mais pesadas consequências: lançando os fulbes no campo dos
reformistas, ela permitiu -lhes pouco a pouco reconstituírem as suas forças, após
desastrosas derrotas e, em definitivo, ganharem a guerra com os seus aliados pas-
tores; ela concedeu ao elemento militar formado pelos pastores uma influência
imprevista no Estado criado após a jihad, modificando consideravelmente, por
conseguinte, a administração do novo Estado. Finalmente, ela reforçou o clichê
muito difundido entre os historiadores do Borno, segundo o qual a jihad não
passava de uma guerra de fulbes, dando portanto crédito à fórmula “o Império
Fulbe”, empregada a propósito do califado
3
.
A guerra foi oficialmente declarada em 1804, após o xeque ‘Uthmān, seguido
pela sua comunidade, ter consumado a hidjra de Degel à Gudum, onde ele foi
eleito imã do novo “Estado”. No início de 1806, estandartes haviam sido
distribuídos e chefes militares posicionados à frente das tropas nas respectivas
regiões. Em cada um dos Estados huassa, a estratégia dos reformistas equivalia,
primeiramente, a deixar as suas tropas operarem localmente para, em seguida,
reuni -las com vistas a um ataque conjugado contra a capital. Deste modo, as
forças armadas do xeque e a dos seus aliados de Kano, por exemplo, combatiam
separadamente, ao passo que, propriamente em Kano, cada unidade conduzia as
suas respectivas operações. A derrota de uma armada não provocava, portanto,
aquela de todo o movimento; no entanto, a descentralização teria importantes
repercussões políticas no futuro.
3 No que tange às acusações da época, segundo as quais, a jihad não dizia respeito senão aos fulbes,
consultar as cartas provenientes do Borno, citadas por Muhammad Bello, 1951, e a carta do letrado
Abd al -Salām, citada por Muhammad Bello, 1970, vol. 1, pp. 18 -35. Os documentos de época não nos
informam, em detalhes, senão sobre os combates da jihad desenrolados na região de Sokoto; encontramos
resumos em M. Hiskett, 1973, e M. Last, 1967a.
646
África do século XIX à década de 1880
Utilizando a tática e as armas da guerrilha, os reformistas gozavam de uma
relativa segurança nos campos. Eles diziam perder menos homens em combate,
comparativamente àqueles mortos pela fome e pelas epidemias. Contudo, a
armada do xeque foi quase dizimada em pelo menos duas ocasiões (Tsuntsua,
1804; Alwassa, 1805), e as perdas sofridas, sobretudo quando elas atingiam letra-
dos e estudantes, fizeram -lhes mais do que nunca depender do apoio dos pasto-
res. Ademais, em razão da fome, os tuaregues dirigiam -se para o Sul em número
sempre mais elevado, para comprarem víveres ou para se apossarem deles, além
de disputarem as pastagens e os cereais − já raros − com os reformistas e os seus
aliados pastores. Até então (aproximadamente em 1804), os reformistas, entre
os quais havia letrados tuaregues aliados do sultão de Agadez, haviam logrado
evitar qualquer conflito de maiores proporções com os tuaregues.
Para ganhar rapidamente a guerra era necessário tomar e conservar o palácio
do sultão de cada Estado. Com efeito, a guerra tinha como desafio maior, neste
estádio, muito mais a tomada do poder que o controle de um território. Somente
no Borno a autoridade do may foi forte o suficiente para sobreviver à perda da
sua capital, Birni Ngazargamo, em parte, porque os reformistas, após terem con-
quistado a cidade, foram eles próprios incapazes de ali se manterem, finalmente
abandonando -a. No plano militar, a realeza era simbolizada − e defendidapela
cavalaria pesada, monopólio do Estado. Graças ao seu elevado moral e à sua tática
superior, os arqueiros e lanceiros dos reformistas podiam, apoiados por alguns
cavaleiros e assim que tivessem o controle do terreno, derrotar a relativamente
ineficaz cavalaria real. Porém, para ganharem a guerra, os reformistas necessita-
vam da sua própria cavalaria e faltava -lhes modificarem, por conseguinte, a sua
organização militar. As “guerrilhas” deviam transformar -se em governo.
Em janeiro de 1809, após quatro anos de combates intermitentes, os prin-
cipais Estados huassa haviam capitulado e os seus sultões tomado o caminho
do exílio. Os mais severos combates haviam sido travados pelas tropas do xeque
em Gobir. Em que pese a sua inferioridade numérica e bélica, os reformistas
muçulmanos haviam conquistado, nos anos 1807 e 1808, uma série de vitórias
em todas as frentes, o que lhes aparentava ser um milagre e a prova da sua justa
causa; igualmente, neste caso, o paralelo com a vitória do Profeta na batalha de
Badr não fazia senão confirmar esta convicção.
As consequências da guerra (aproximadamente 1810 ‑1820)
Após quatro anos de guerra, fome e epidemias, o maior problema era a
reconstrução. Alguns dos vencidos, como os may do Borno e os antigos sultões
647
O califado de Sokoto e o Borno
huassa, tentaram no exílio reconstituir uma corte e um exército para recon-
quistarem os seus reinos. Os mais exitosos foram os may do Borno, quanto
aos mais desaventurados, estes sem dúvida foram os antigos sultões de Kano;
outros soberanos no exílio apenas concluíram um acordo com o novo regime.
Em algumas regiões, como o Nupe, a guerra ainda não findara; em outras, a
exemplo do Oyo, ela apenas começara.
Para os vencedores, a tarefa da reconstrão foi complicada em razão da
necessidade de rigorosa observância da lei islâmica. Inicialmente, o xeque
‘Uthmān demonstrava -se muito estrito em sua interpretação da lei; no entanto,
após 1810, a sua atitude mudou progressivamente e ele passou a tolerar prá-
ticas (por exemplo, a música) anteriormente por ele condenadas
4
. Contudo, os
chefes da jihad, o xeque Uthmān, o seu irmão Abdullāh e o filho do xeque,
Muhammad Bello, dedicaram -se a nomear, para todos os escalões da adminis-
tração, homens que possuíssem, simultaneamente, a instrução necessária para a
compreensão da lei islâmica e a autoridade necessária para aplicá -la. Todavia,
muitos letrados e estudantes haviam sido mortos durante a guerra e, mesmo
na região de Sokoto, não restava suficiente número de homens instruídos para
a ocupação, nos campos, de todos os postos de emir, juiz ou imã. Em outras
regiões do califado, esta carência era ainda mais aguda, embora o xeque tivesse
como política enviar estudantes às suas regiões de origem. Para compensar esta
insuficiência, foi necessário, sob a supervisão da administração central, confiar
postos vagos a familiares de funcionários que estavam in loco.
Outra solução provisória consistia em recorrer a funcionários do antigo
regime. Em princípio, alguns foram nomeados para postos da administração
local ou do poder judiciário (em Kano, eles eram chamados “huassaua”), porém
a sua fidelidade ao governo foi muito rapidamente posta em dúvida e muitos
foram substituídos no nível local. Igualmente, colocava -se a questão relativa a
saber se era necessário autorizar os comerciantes das antigas “regiões inimigas”
a operarem nos mercados do califado. Tudo leva a crer que este comércio trans-
fronteiriço tenha rapidamente despertado a desconfiança, colocando em uma
delicada situação os comerciantes huassa, os quais haviam permanecido imó-
veis, bem como os funcionários huassa, dedicados a reerguerem uma economia
fundada no comércio.
Haja vista a inexperiência da nova administração e a latente desconfiança, a
direção dos assuntos do califado foi, inicialmente, uma tarefa muito difícil. O
4 Para maior detalhamento sobre esta mudança, vericar F. H. al -Masri 1978, pp. 13 -33.
648
África do século XIX à década de 1880
 . Carta de Muhammad Bello, califa de Sokoto, 1817 -1837, ao ‘Umar Dadi de Kanoma, xando
os detalhes de um encontro com vistas a uma campanha. [Fonte: J. F. A. Ajayi e M. Crowder (org., History of
West Africa, vol. 2, 1974, 1
a
edição Longman, Londres. Foto: para a nossa grande infelicidade, não encontra-
mos vestígios do detentor dos direitos autorais desta foto; qualquer indicação permitindo cobrir esta lacuna
será bem -vinda.]
649
O califado de Sokoto e o Borno
xeque era confrontado a grande número de disputas, surgidas em todo o califado.
Tratava -se, em primeiro lugar, de contendas opondo os chefes militares ou os
letrados, os quais disputavam entre si o governo de territórios. Na realidade, boa
parte destas disputas era resolvida pela força ou pela decisão da parte lesada de
restabelecer a sua autoridade, sem considerar o seu adversário e levando o pleito
diretamente ao xeque. Em segundo lugar, havia problemas referentes a queixas
resultantes de abusos cometidos, durante a guerra, pelos exércitos da jihad as
questões ligadas ao assujeitamento injustificado ou à apropriação ilícita de bens
ou terras. Finalmente, tinha lugar o problema relativo à decepção demonstrada
por alguns letrados, parcialmente devida à adoção das ideias milenaristas pelo
xeque, seguida da sua palinódia após 1810
5
. Ao menos um mahdī manifestou-
-se, encontrando adeptos no novo califado; mas ele foi queimado na fogueira.
Todavia, outros letrados, como Dan Buya ou os partidários de Abdul -Salām,
continuaram a entrar em dissidência.
As dissensões multiplicaram -se e se complicaram, a tal ponto que o xeque
decidiu retirar -se para se consagrar ao ensino e à escrita; ele adoeceu por volta
de 1815 e morreu dois anos mais tarde. Como desde 1812, ou seja, cinco anos
antes, a tarefa de arbitragem fora compartilhada entre ‘Abdullaahi dan Fodio e
Muhammad Bello, filho do xeque, a morte deste último não provocou mudança
brutal na orientação política do califado. A maioria dos desacordos referia -se,
em parte, à estrutura dos emirados nesta época, caracterizada pela descentra-
lização que marcara a organização militar da jihad. O emir, embora fosse o
primeiro titular desta função e o seu porta -estandarte”, não era mais que o
primus inter pares; em alguns casos, havia vários “porta -estandartes”, ao passo
que, em outros, o primeiro emir não lograva impor a sua autoridade. Em 1820,
uma parte dos mais antigos porta -estandartes” estava morta ou se havia
concluído um acordo.
À época, finalmente, os reformistas não dominavam sem compartilhamento
senão um território relativamente limitado. No que tange estritamente a Sokoto,
a zona habitada e controlada reduzia -se a uma faixa de 40 km de largura e 65
km de extensão, estendida em direção ao Sul de Sokoto. Igualmente, no tocante
a Kano, Katsina, Daura e Zaria, eles apenas controlavam uma pequena parte
do interior do país e a sua situação territorial era provavelmente ainda mais
precária em emirados como aquele de Bauchi. O importante a reter é que, em
1820, não havia outro governo viável, usufruindo de aparente legitimidade ou
5 Para maior detalhamento sobre o mahdismo, conferir M. A. al -Hajj, 1973.
650
África do século XIX à década de 1880
amplo apoio, que pudesse rivalizar com a nova administração. Por conseguinte,
o problema desta última consistia em ampliar a sua autoridade para os campos,
incorporando -os ao califado. No Borno, em contrapartida, o problema dos may
equivalia a usufruir dos laços que eles haviam conservado com os campos, para
reorganizar o Estado e salvaguardar a sua autonomia frente ao novo califado.
O califado de Sokoto de 1820 a 1880
Em 1820, o califado de Sokoto compreendia sete emirados principais e dois
outros grandes emirados ainda estavam em formação. O Borno reconstituiu-
-se após ter perdido a sua capital e grande parte dos seus territórios a Oeste
e Sul. Para permitir a compreensão das mudanças que significavam os termos
califado e emirado”, cabe -nos descrever, rápida e esquematicamente, o sistema
político que os reformistas haviam substituído.
O aspecto mais notável deste sistema era o papel nele representado pelo
rei, designado pelo nome de may, sarkin, etsu ou alafin. Antes das mudanças
políticas advindas ao final do século XVIII, o rei desempenhava funções rituais
e tinha um papel que exigia certo isolamento perante o seu povo; o palácio real
representava mais que uma simples morada; ele possuía algo de sagrado. O rei
estava, por assim dizer, acima da política; ele simbolizava a autoridade suprema
e todos os atos da vida pública eram realizados em seu nome; ele representava
o Estado. Eunucos e escravos de ambos os sexos, sem pais ou herdeiros, asse-
guravam o serviço do palácio e da pessoa do reino, constituindo um setor da
administração. Outra seção compunha -se de grandes famílias independentes,
detentoras de títulos hereditários dos quais os titulares possuíam a sua própria
sequência. Uma terceira seção era composta pela família do rei, em particular,
pela sua mãe ou irmã, pelos seus irmãos e filhos. A composição dos conselhos
dos órgãos, encarregados dos ritos ou investidos do comando militar, variava
em seu detalhamento segundo os Estados; os escravos do palácio e os homens
livres titulares de cargos eram frequentemente divididos em ordens, no seio das
quais eles podiam gozar de promoções. A rivalidade política limitava -se às fun-
ções estabelecidas sob a autoridade do rei. É verossímil que, ao final do século
XVIII, o rei tenha tendido a participar mais ativamente da vida política, a se
conformar de modo mais exclusivo às exigências do islã e a promover reformas
inspiradas em concepções políticas islâmicas
6
. Na esfera econômica, tudo leva
6 Para uma análise da estrutura política do Borno, antes da jihad, consultar J. E. Lavers, 1980, pp. 187 -209;
N. M. Alkali, 1978. Sobre os Estados huassa, antes da jihad, conferir A. Hassan e A. S. Naibi, 1962; M.
G. Smith, 1960; e Y. B. Usman, 1981.
651
O califado de Sokoto e o Borno
a crer que nesta mesma época o consumo, especialmente de tecidos em algo-
dão, tenha aumentado, assim como a demanda por escravos; a necessidade de
regulamentar e proteger este mercado em expansão era notável. Estas mudanças
repercutiram nos campos, sobre os comerciantes, cultivadores e pastores, pois
aqueles que entre si disputavam o poder político buscaram consolidar a base
do seu poderio. Igualmente, as vítimas destas mudanças tomaram, em grande
número, partido da jihad.
Os reformistas muçulmanos (que compreendiam ao menos um dos últimos
reis huassa reformadores) pretendiam implantar um sistema político muito dis-
tinto. O rei foi substituído por um emir cuja pessoa e tampouco o palácio eram
sagrados. A origem da sua autoridade não era mais o Estado, personificado pelo
rei, mas Alá. Consequentemente, o emir era designado o em rao de um caráter
sagrado hereditário, mas pela sua piedade. O emir era primus inter pares; os seus
companheiros, tomados coletivamente, eram convocados a dividir o poder, sob a
sua direção. Portanto, os escravos do palácio não tinham mais como atribuição
senão o serviço pessoal do emir; as dignidades da rainha -mãe e da rainha -ir
foram abolidas. O emir fazia parte do mundo político e as suas funções podiam,
teoricamente, ser ocupadas por qualquer candidato suficientemente pio. Em con-
formidade com o projeto dos reformistas, uma administração restrita, composta
por ministros, juízes, inspetores, policiais e imames foi estabelecida; a sharī ‘a, tal
qual interpretada pela escola malikite, deveria reger as relações entre os indivíduos
e os grupos. Tratava -se de limitar e tratar os processos políticos, evitar os desvios
das regras até então não escritas e restringir o papel político do palácio, cuja
importância aumentava progressivamente. Os reis eram muçulmanos, embora
detivessem um poder ritual fundado em crenças religiosas locais e tradicionais.
Era necessário substituir este poder ambíguo por um poder fundado em Alá,o
somente aceitável para a comunidade muçulmana, mas igualmente, responsável
vis -vis desta comunidade. O projeto dos reformistas foi exposto, clara e nitida-
mente, por Abdullahi dan Fodio em sua obra o Diya ’al -hukkam, destinada a fami-
liarizar a comunidade de Kano com a nova constituição
7
. Concomitantemente ao
surgimento dos problemas, Muhammad Bello e os califas seguidores escreveram
aos dirigentes das novas comunidades para atraírem a sua atenção sobre os ele-
7 Para um estudo mais recente acerca das ideias de Abdullāh dan Fodio e do seu contexto, consultar A.
A. A. Hamid, 1980. Para um estudo geral da teoria e da ação política do califado, conferir M. M. Tukur,
1977. Numerosos títulos tradicionais anteriores à jihad foram em seguida restabelecidos, inclusive, em
certos emirados, títulos reservados às mulheres tendo desempenhado um importante papel na família
reinante (por exemplo: madaki, em Kano e inna, em Sokoto). No tangente ao papel e à organização das
mulheres no século XIX: referir -se a J. Boyd, 1982.
652
África do século XIX à década de 1880
mentos essenciais do novo sistema e acrescentar detalhes práticos. Pode -se consi-
derar a história política e intelectual da região, no século XIX, como um esfoo
prolongado para aplicar, por vezes com modificações, o projeto dos reformistas,
além disso (o projeto também o justifica), como a história de desenvolvimento e
integração deliberados das economias rurais da rego e do estreitamento dos seus
laços, primeiramente com as economias mediterrâneas e, posteriormente, com as
economias atnticas. Os reformistas tinham uma preocupação suplementar, reves-
tida de um caráter premente e grave: era preciso reerguer a tempo a comunidade,
material e espiritualmente, para a esperada vinda do Mahdī.
A função do califa
Uma das mais importantes inovações dos reformistas foi o estabelecimento
da função de califa. No século XVIII, os Estados huassa e os seus vizinhos eram
unidades políticas autônomas. Em diferentes épocas, o Borno exercera certa
soberania sobre estes Estados, aludindo à noção de califado; o seu may perma-
necia, no século XVIII, na qualidade de mais antigo soberano e, provavelmente,
o mais potente da região. O novo sistema explicitamente colocava os emirados
sob a soberania do califado de Sokoto, designador dos detentores do poder nas
diferentes regiões. Fundado na prática constitucional do islã, o poder do cali-
fado transcendia todas as especificidades locais ou étnicas, conferindo -lhe uma
proeminência que nenhum soberano alcançara antes de si, haja vista a origem
divina do seu poder, era preciso que ele tivesse um comportamento visivelmente
diferente daquele dos soberanos do regime precedente, recusando o decoro, a
ritualização e a riqueza ostentatória. Antes mesmo da morte do xeque ‘Uthmān
dan Fodio, em abril de 1817, o califado fora dividido em duas grandes regiões
administrativas (Sifawa, 1812).
A divisão de um território em quadrantes é um procedimento assaz difun-
dido; ele foi provavelmente empregado no Wadāi e no Borno. Os mapas sim-
bólicos das cidades huassa eram concebidos segundo a mesma lógica. As quatro
zonas, agrupadas em duplas, formavam duas grandes zonas administrativas cada
qual dirigida por um chefe assistido por dois adjuntos.
Quando Bello tornou -se califa, em 1817, esta organização foi modificada.
Antes de 1817, o califa, o xeque ‘Uthmān delegava todos os seus poderes ao seu
irmão ‘Abdullāh, na qualidade de vizir, e ao seu filho Muhammad Bello, como
āmir al -Sūdān (“Emir dos Negros”). Em 1817, o novo califa (Muhammad Bello)
deixou, por sua vez, o governo dos emirados ocidentais ao seu tio Abdullāh,
desde logo simplesmente chamado o emir”; entretanto ele guardou para si
653
O califado de Sokoto e o Borno
Divisão do califado em quadrantes. A maioria dos emirados indicados neste mapa foi fundada após 1812.
mesmo o governo dos emirados orientais, delegando somente poderes executivos
ao seu amigo e servidor Gidado, quem recebeu o título de vizir.
Como a administração tinha como responsabilidade a cobrança do imposto,
era normal que os mais ricos emirados fossem diretamente colocados sob a
autoridade do califa. Os emirados orientais, em particular Kano e Zaria, durante
o período inicial, podiam suprir as necessidades financeiras do califado. Sem a
sua contribuição, teria sido difícil desenvolver a capital e as regiões interioranas
ou até mesmo receber os visitantes com a devida generosidade. Estes dois emi-
rados enviavam regularmente escravos a Sokoto, assim como tecidos e outros
produtos. Estes escravos eram especialmente indispensáveis para expandir as
terras cultivadas em torno de Sokoto e localidades vizinhas (pois esta região
não era antes absolutamente cultivada), além de serem fundamentais para a
constrão de obras defensivas: muralhas em terra e prédios com tetos acha-
654
África do século XIX à década de 1880
tados à prova de fogo, bem como mesquitas permanentes destinadas às novas
comunidades
8
.
As relações entre Sokoto e Guandu eram demasiado complexas para que
fosse aqui possível descrevê -las em detalhes; inclusive, elas dependiam em parte
da personalidade dos emires. Contudo, elas derivavam do sistema dualista, tão
expandido na África Ocidental: enquanto Guandu desempenhava o papel do tio
e representava o poder ritual (os emires de Guandu eram conhecidos pela sua
piedade), em Sokoto, por sua vez, o califa desempenhava o papel de sobrinho
empreendedor, depositário da responsabilidade pelos negócios e detentor do real
poder político. Uma relação deste gênero aparenta ter existido entre ‘Abdullāh
e Bello e entre Khalīl e Alī, inibindo qualquer conflito e explicando porque
Guandu em nada se preocupou com o fortalecimento do seu poder sobre os
emirados a ele subordinados.
As relões entre os emires e o califa, durante o período 1820 -1845,
assemelhavam -se muito mais àquelas que uniam antigos companheiros de armas
ou antigos condiscípulos, comparativamente às verdadeiras relações hierárquicas.
O emir Yakubu de Bauchi, companheiro de primeira ordem e de origem não
fulbe, contrariamente aos demais emires, manteve com os califas, após a morte
de Bello, relações particularmente estreitas, quase correspondentes àquelas de
um tio com os seus sobrinhos. Os emires adquiriram inevitavelmente uma
grande autonomia, consolidando as bases territoriais da sua autoridade; porém
é difícil determinar com precisão se o califa não verificava ou não recomendava
certas nomeações nos emirados (por exemplo, aquele de Kano), do mesmo
modo que, durante a jihad, o xeque Uthmān as supervisionara minuciosamente,
distribuindo com rigor os estandartes.
A administração do califado
Como Muhammad Bello acumulava três funções (califa, chefe dos emirados
orientais e chefe da região de Sokoto), ele foi obrigado a estabelecer uma admi-
nistração. Na qualidade de califa, ele era chamado a escrever livros e cartas de
opinião; como chefe militar local, ele devia assegurar a defesa de Sokoto. Além
disso, ele somente se movimentava entre Sokoto e Zamfara. A sua administra-
ção era, por conseguinte, em larga medida encarregada da administração dos
8 Não se sabe exatamente quando começaram estas forticações, tampouco qual foi a sua dimensão. As
somas requisitadas aumentaram brutalmente aproximadamente em 1850. Conferir M. G. Smith, 1960,
pp. 154 e 157.
655
O califado de Sokoto e o Borno
emirados orientais e, especialmente, da arrecadação dos impostos necessários
ao califado.
O califa recrutava os seus funcionários nos cinco grupos seguintes: entre os
seus domésticos, em sua maioria escravos ou eunucos, os quais se ocupavam, por
exemplo, dos estábulos; entre os seus antigos companheiros de armas que agora
desempenhavam as funções de conselheiros ou mensageiros extraordinários;
entre os parentes próximos do seu pai, o xeque; entre os chefes de clãs fulbe;
e, finalmente, entre as famílias que haviam pertencido à comunidade dirigida
pelo seu pai, as quais agora formavam, em Sokoto, a classe dos letrados. A estes
últimos foram confiadas funções jurídicas ou religiosas na nova administração,
além de postos regionais subalternos, ao passo que as mais importantes respon-
sabilidades, em Sokoto, eram atribuídas aos chefes de clãs e aos parentes do
califa. Os conselheiros do califa, portadores de títulos tais como waziri, magajin
gari, magajin rafi ou galadima, eram encarregados das relações do califa com os
emirados, os quais dependiam, em sua maioria, da administração do vizir. Estes
funcionários possuíam, eles próprios, empregados domésticos, sendo -lhes reser-
vados alguns bairros de Sokoto; no entanto, eles inicialmente desempenharam
um papel relativamente menor na administração da região, assim como na vida
política local; pois eles estavam eclipsados pelo sarkin yaki ou pelos letrados
da família do xeque. Contudo, durante o século e na justa medida em que a
sua própria linhagem se desenvolvia e enriquecia, eles passaram a exercer uma
crescente influência na política de Sokoto, particularmente no tocante à eleição
do califa.
Uma das principais tarefas da administração do califado consistia em nomear
os emires ou ratificar a sua nomeação, assim como regular as querelas sucessórias.
O delegado do califa (por exemplo, o waziri) instalava o novo emir em suas
funções; ele trazia consigo a carta apropriada, com o brasão do califa, na qual
bastava inscrever o nome do emir. No ano seguinte, o novo emir ia pessoalmente
a Sokoto para homenagear o califa. Como os interregnos podiam facilmente
tornar -se períodos de anarquia e distúrbios, era importante não permitir o seu
prolongamento além de uma semana. A responsabilidade dos delegados do califa
era, portanto e em alguns casos, considerável. Deste poder, referente a nomear
ou demitir os emires, derivava uma função de mediação, exercida pelo califa e
pelos seus delegados: eles tratavam, em última instância, os graves diferendos
com os quais estava envolvido um emir. Concomitantemente à ampliação das
suas competências, o waziri foi necessariamente chamado a resolver problemas
de mais e mais diversos, sobretudo porque este ministro, ele próprio possuidor de
656
África do século XIX à década de 1880
delegados residentes permanentes nos dois grandes emirados de Kano e Zaria,
era o único delegado itinerante do califa
9
.
Outra tarefa da administração consistia em receber ou coletar as doações, os
impostos e os tributos destinados ao Tesouro de Sokoto. Os pagamentos ocor-
riam ao menos duas vezes por ano, por ocasião das duas festas do ano muçul-
mano; porém as contribuições eram invariavelmente cobradas nos emirados
após as colheitas, qualquer fosse a data destas festas. Nós não sabemos em qual
proporção as somas pagas em cada emirado eram enviadas a Sokoto. Em suple-
mento, quando morria um emir, o califa herdava parte da sua fortuna; e, aquando
da sua posse, os novos emires lhe ofereciam um presente. O califa igualmente
recebia uma parte do butim recolhido pelos emires após as suas campanhas; a
parte do califa era então, ao que tudo indica, maior ou menor, segundo os emires
e em função de insistência com a qual o seu delegado a tivesse reclamado. Como
muito destes pagamentos não supunham nenhuma formalidade, não causa espé-
cie que se tenha, muito amiúde, taxado a administração do califado como rapi-
nante. Considerando o crescimento da dimensão política e da importância das
suas funções, o waziri foi obrigado a exigir ainda mais riquezas, para distribuí-
-las e conservar a sua posição no sistema. Ao longo do século, quando começou
a desempenhar um papel de maior importância na política interna do califado,
ele se viu obrigado a basear a sua potência em recursos financeiros comparáveis
àqueles dos outros notáveis, os quais, por sua vez, administravam diretamente
os territórios. As necessidades financeiras do califa igualmente aumentaram
durante o século, na justa medida em que aumentava o prestígio internacional
do califado. Em razão da relativa pobreza da região de Sokoto, em virtude dos
letrados estudantes serem particularmente numerosos na região, em função do
pequeno número de agricultores e do elevado número de pastores os quais
escapavam todos do imposto, com exceção da zakāt (caridade legal) −, Sokoto
representava um fardo para os emirados. Aparentara ser desejável, inicialmente,
estabelecer a nova comunidade na região praticamente inabitada, com o objetivo
de isolá -la das tentações do materialismo. Em consequência, o califado deveu
constantemente contar com a generosidade dos emirados, bem como com a sua
capacidade administrativa em mantê -la.
A própria extensão do califado impunha um problema; muito tempo era
necessário para percorrer distâncias tão consideráveis: quatro meses para atra-
vessar o país de Leste a Oeste e dois meses para percorrê -lo de Norte a Sul,
9 Para um estudo detalhado do vizirato, consultar M. Last, 1967a.
657
O califado de Sokoto e o Borno
segundo cálculos de um contemporâneo. Um mensageiro podia superar a pé,
em oito dias, os 650 km que separam Sokoto de Bauchi; porém funcionários
como o vizir, não percorriam em média senão 25 km por dia. Por outro lado, a
presença militar era fraca.
Atividades militares e diplomáticas
O califado não possuía exército permanente. Em realidade, comparado a
outros Estados de superfície equivalente, o califado de Sokoto não representava,
de modo algum, uma máquina de guerra
10
. Frequentemente, as manobras anuais
não tinham outro objetivo senão manifestar a fidelidade da armada ao califa,
impressionar os adversários do regime e manter a paz nas fronteiras. Após as
campanhas iniciais, cujo objetivo fora estabelecer estas fronteiras, jamais as
forças do califa se uniram para conquistar novos territórios; ademais, nenhum
projeto foi concebido a este fim. As iniciativas de alguns emires e chefes mili-
tares independentes permitiram ao califado, pouco a pouco, estender -se a Sul
e Leste; entretanto, esta expansão resultou tanto da política dos emires quanto
daquela do califa. Além da obrigação religiosa da jihad, a única razão que podia,
permanentemente, levar o califado a realizar ações militares nos emirados era a
necessidade de sanar o constante deficit orçamentário de Sokoto. O califa então
participou de numerosas campanhas na região de Sokoto e de Zamfara, jamais
alhures. Importantes campanhas foram igualmente conduzidas, à época, nos
emirados orientais; mas foi o vizir (ou, por duas vezes, o emir de Bauchi) quem
dirigiu as forças de Sokoto.
Os soldados não eram profissionais nem escravos. Os funcionários recrutavam-
-nos junto aos seus domésticos e nas localidades por eles administradas. Em
geral, não era o Estado que fornecia armas ou cavalos aos soldados e eles não
recebiam outro salário senão aquele correspondente a uma parte do butim. O
serviço militar era considerado um dever, conquanto não fosse obrigatório;
inclusive, era certamente muito perigoso permanecer em sua localidade para
defendê -la dos saqueadores e dos animais selvagens. As campanhas ocorriam
na estação seca, mais frequentemente a partir da época das colheitas (mesmo
10 No tocante às questões militares, conferir os estudos que lhes foram dedicados por J. P. Smaldone, 1977;
R. C. C. Law, 1980 (consultar, entretanto, R. Harris, 1982). O meu ponto de vista difere um pouco das
análises de Smaldone e Law, sobretudo na medida em que acordo menor importância ao papel dos
militares. M
me
Jean Boyd amavelmente chamou -me a atenção para a formação, aproximadamente em
1850, de uma guarda pretoriana, aparentemente encarregada de proteger o califa tanto no exterior quanto
no interior do palácio (Alhaji Junaidu, 1957, p. 54). Não há estudo sobre a organização da segurança no
palácio e acerca dos homens dela encarregados, embora esta questão seja frequentemente evocada.
658
África do século XIX à década de 1880
que faltassem voluntários), com o objetivo de destruir as colheitas do inimigo.
Era praticamente impossível fazer a guerra durante a estação das chuvas, não
somente porque era necessário então dedicar -se a outros trabalhos ou em razão
do estado da terra, mas igualmente porque a chuva tinha um efeito desastroso
sobre os escudos em couro e sobre as cordas dos arcos. A atividade militar dimi-
nuía ao final da estação seca, em virtude da escassez de água para os soldados e
os seus cavalos, embora pequenos bandos pudessem executar ataques -surpresa
durante todo o ano.
A maioria dos soldados era armada com lanças, arcos ou espadas; em cada
regimento, alguns montavam cavalos ou camelos. Algumas etnias, especializadas
no arco e flecha, envenenavam as suas flechas para compensar a insuficiente
força de penetração. Outras utilizavam lanças farpadas. As espadas eram menos
difundidas, pois que elas podiam representar antes uma deficiência, quando não
produzidas em ferro local de boa qualidade ou aço importado. Os fuzis não
surgiram senão ao final do período considerado; eles foram então, sobretudo
utilizados pelas armadas particulares, semiprofissionais e, portanto, compostas
de escravos; entretanto, a falta de treinamento impediu esta nova armada de pro-
duzir todos os seus efeitos. À imagem dos Estados do século XVIII, a cavalaria
constituía a arma mais eficaz do califado. Durante a jihad, a falta de cavalos e
camelos trouxera desvantagens aos reformistas, relativamente aos tuaregues e
às armadas do Gobir. Contudo, a cavalaria não obteve sucesso algum frente aos
soldados muito motivados da jihad e, tampouco, perante as cidades fortificadas
e fortalezas situadas nas montanhas. A história do califado é composta, em igual
medida, de derrotas e vitórias; as formações compostas somente por pequeno
número de cavaleiros eram provavelmente muito mais eficazes. Às batalhas
entre tropas enfileiradas (daga), geradoras de consideráveis perdas, opunham -se
os assaltos (hari), dirigidos contra a população civil. Haja vista o caráter hete-
rogêneo muito móbil da sociedade huassa, composta de mercadores, escravos e
refugiados, era fácil introduzir espiões e elementos infiltrados em uma comuni-
dade inconsciente do perigo e, deste modo, tomar de surpresa as cidades.
Em suma, o califado em nada inovou nos âmbitos da estratégia ou da técnica
militar, não gozando de nenhuma vantagem determinante, salvo a abundância
dos seus potenciais recursos embora estes últimos não fossem jamais mobi-
lizados em conjunto. Durante boa parte do século, ele sofreu com a guerrilha,
originária nos sucessivos deslocamentos populacionais provocados pela jihad,
nas disputas ocasionadas pela desorganização da agricultura ou, simplesmente,
nos ganhos a serem obtidos com a venda de prisioneiros. Pode -se facilmente
exagerar a importância da insegurança, mas é possível dizer que, ao menos em
659
O califado de Sokoto e o Borno
algumas regiões, era grande a possibilidade do indivíduo ser reduzido à escravi-
dão durante parte da sua vida
11
. Certos prisioneiros pagavam um resgate, outros
eram liberados, alguns conseguiam escapar; mas, como era frequente, se toda
uma localidade ou família fosse dispersa em razão de um ataque, a sua liberdade
efetivamente não lhes servia. A guerra não aparenta ter causado grande dano
ao comércio, embora ela por vezes isolasse algumas regiões. Os mercadores
deslocavam -se em caravanas armadas e alguns tinham, como principal atividade,
fornecer cavalos e armas às forças armadas, em troca de prisioneiros, por eles
vendidos em alguma localidade distante do seu lugar de origem.
Considerando as insuficiências do califado na esfera militar, a diplomacia
possuía um importante papel em sua política
12
. Tudo leva a crer que os próprios
califas se tenham encarregado do essencial da correspondência diplomática. Eles
não estiveram jamais em visita oficial ao estrangeiro, tampouco enviaram qual-
quer importante funcionário em representação diplomática. Os viajantes sábios,
peregrinos, mercadores atuavam como mensageiros e levavam informações
acerca de acontecimentos políticos advindos no estrangeiro. A correspondência
mantida com o Marrocos, Trípoli e a Inglaterra chegou ao nosso conhecimento;
entretanto, não dúvida que comunicações muito mais importantes, verbais
ou escritas, não nos foram acessíveis. O interesse de Muhammad Bello pelas
relações exteriores era de ordem intelectual, tanto quanto comercial ou política.
Este califa, cobiçoso e capaz de se manter informado sobre os acontecimentos,
ideias e inovações na África do Norte e no restante do mundo, preocupava -se
em aproximar o califado dos outros países muçulmanos. Ademais, atento à ideia
da proximidade do fim do mundo e ao possível imperativo de se estabelecer
em Meca, esforçou -se em manter aberta a via que deveria para conduzi -lo,
encarregando um parente distante do xeque de vigiar o trecho desta estrada que
atravessava o Baguirmi.
A diplomacia também ocupava um importante posto no âmbito das rela-
ções do califado com os seus vizinhos do Norte e do Oeste. Na fronteira norte,
as relações com os tuaregues eram tão ambíguas que a situação política era
fluída. Um dos mais antigos aliados do califado era o sultão de Agadez, quem
pretendia controlar as populações sedentarizadas, quiçá até mesmo as popula-
11 Encontraremos um testemunho direto e muito vivo sobre uma destas capturas, aproximadamente no
ano 1850, em A. H. M. Kirk -Greene e P. Newman (org.), 1971, pp. 29 -101.
12 Para estudos gerais sobre questões diplomáticas, consultar R. A. Adeleye, 1970, e M. Minna, 1982. As
relações diplomáticas com os outros Estados sem dúvida caracterizam -se por uma importância secun-
dária, em respeito a pessoas que acreditavam no eminente m do mundo; isso talvez explique as razões
pelas quais existam tão poucos vestígios nos arquivos de Sokoto.
660
África do século XIX à década de 1880
ções nômades, da região. O califa igualmente possuía aliados entre os xeques e
mercadores. Um destes xeques, Muhammad Djailani, o qual tentou iniciar um
jihad, aparenta ter logrado maior êxito nesta ação que Jibril b. Umar, ao final
do século XVIII
13
. Porém, a nobreza targui, especialmente os ulemiden, conse-
guiu, com a ajuda dos seus vassalos, impedir a formação de um potente grupo
muçulmano. Consequentemente, o califado não pôde contar, nesta região, com
a ajuda de uma rede de xeques, análoga àquela dos kunta, em Tombuctu. O
califa tentou criar uma rede deste gênero em Sokoto e desempenhar o papel de
mediador junto aos tuaregues; mas ele não obteve senão muito limitado sucesso.
Em contrapartida, ele permitiu aos letrados tuaregues e aos seus partidários
refugiarem -se em Sokoto.
Entretanto, as relações com os xeques kunta de Tombuctu eram excelentes.
Como se tratava do principal centro muçulmano do Oeste, os letrados de Sokoto
voltavam -se muito mais para esta região, comparativamente ao Borno. Poemas
e visitas eram trocados. Os letrados de Sokoto tomaram por empréstimo dos
kunta o seu wird kādirī e parte do seu salasil. No tocante à controvérsia relativa
à Tijāniyya, os kunta de Tombuctu foram os campeões da ortodoxia kādirī
14
.
O surgimento de um novo califado, no Macina, provocou problemas em
Sokoto, tanto quanto para os xeques kunta. Ainda é insuficientemente conhecida
a história das relações Sokoto -Macina, todavia, elas aparentam estar inextrica-
velmente ligadas aos problemas mais circunscritos do conflito entre o Macina
e os kunta
15
. O califa de Sokoto podia pretender exercer a sua soberania além
do Liptako, até as fronteiras do Macina, mas não sobre o próprio território do
Macina, haja vista que o emir de Guandu não podia ali assegurar presença mili-
tar. A evidente impossibilidade de controlar o eixo Argungu -Mauri -Zaberma
constituía o obstáculo maior, com o qual se confrontava a política das relações
com o Oeste; entretanto, a reticência do emir de Guandu em organizar -se mili-
tarmente talvez igualmente representasse um sério obstáculo. Contrariamente
ao califa de Sokoto, ele não podia em nada contar com Yauri, Nupe e Ilorin,
todas vítimas de desordens civis desconhecidas dos emirados orientais. O emir
de Guandu desempenhava o papel de mediador e conselheiro, inclusive dirigia-
-se pessoalmente a Nupe; porém as condições necessárias para a organização
13 No que tange à jihad de Muhammad Djailani, consultar H. T. Norris, 1975, capítulo 11; conferir D.
Hamani, 1979.
14 Relativamente aos kunta, consultar A. Zebadia, 1974.
15 No tocante ao Macina, conferir W. A. Brown, 1969, e C. C. Stewart, 1979.
661
O califado de Sokoto e o Borno
de um exército eficaz, bem como os meios para a sua manutenção, faltaram ao
emirado de Guandu, ao menos até o final do século XIX.
Finalmente, na fronteira com o Borno, cujos territórios ocidentais consti-
tuíam os embrionários emirados do Hadejia, Katagum, Missau e Gombe, o
fracasso da primeira tentativa de compromisso (na célebre correspondência
trocada entre Muhammad Bello e o xeque al -Kanēmi durante a jihad) deveria
dar o tom para o resto do século. Qualquer mediação foi rejeitada quando, de
1824 a 1826, o Borno invadiu o Leste do emirado de Kano e a paz jamais seria,
futura e oficialmente, assinada entre os dois Estados. As hostilidades organiza-
das cessaram progressivamente, sem intervenção diplomática e sem que um dos
adversários tivesse conquistado a vitória decisiva. Portanto, os dois Estados não
trocaram “presentes”, estes símbolos essenciais das relações internacionais.
O califado foi mais exitoso quando, combinando diplomacia e ação militar,
obteve tréguas (por exemplo, o Lafiyar Togo com Kebbi, de 1886 a 1874) ou
tratados com comunidades vizinhas de menor importância, às quais oferecia a
sua proteção (amana), em contrapartida de um imposto. Em algumas regiões,
este imposto, estabelecido em uma base coletiva, deveria ser pago na forma
de escravos ou produtos têxteis, assemelhando -se portanto ao imposto pago
pelos emirados. Entretanto, nós ignoramos em qual medida o montante do
imposto (por habitante) diferia do montante cobrado junto aos muçulmanos
do califado.
Além dos aspectos diplomático e militar, o instrumento mais comumente
utilizado na política das relações entre Estados era o instrumento econômico. A
destruição das colheitas e celeiros pelos soldados não representava senão um dos
meios empregados. Alguns grupos, a exemplo dos tuaregues, podiam encontrar
o bloqueio do seu acesso aos mercados, poços ou ao direito de comprar certos
produtos, como cereais. Haja vista as variações pluviométricas anuais, tais medi-
das podiam ser muito eficazes. Menos eficazes eram, por exemplo, os embargos
sobre a exportação ou importação de cavalos, armas, sal e alguns tipos de tecido,
em virtude da enorme dificuldade em se manter o completo bloqueio de uma
cidade ou região e dos elevados lucros gerados pelo consequente contrabando.
Todavia, os danos causados ao comércio exterior do califado pelos ataques dos
ningi e dos mbutawa, por exemplo, eram suficientemente sérios, a ponto de pro-
vocarem uma reação. As graves disputas e a interrupção do comércio dos cereais,
produzidas durante a jihad, haviam transformado homens como Muhammad
Bello, tornando -os extremamente sensíveis à importância consistente em faci-
litar as trocas, mantendo abertas as rotas comerciais, criando mercados e apli-
cando leis para garantir a honestidade das transações. Por conseguinte, como
662
África do século XIX à década de 1880
a economia do califado era pouco produtiva e os povos vizinhos dependiam
de mais e mais do sistema comercial e dos mercadores do califado, a política
econômica tornou -se progressivamente, para este último, um instrumento de
dominação mais eficaz que a guerra.
A estrutura política dos emirados
Neste capítulo não seria cabível estudar separadamente a evolução de cada
um dos emirados. A minha intenção consiste em compará -los, para permitir
evidenciar as principais diferenças que existiam entre eles, assim como poste-
riormente formular algumas observações gerais sobre a sua estrutura social.
Embora, inicialmente, a função do emir fosse teoricamente acessível a nume-
rosos candidatos, em todos os emirados com exceção de somente um −, o
emir era escolhido com base nos princípios de hereditariedade e ancianidade de
uma determinada linhagem; em alguns emirados, muitas ramificações de uma
linhagem “real” alternavam -se no trono. Foi somente em Zaria que o emir era
escolhido, alternadamente, em três linhagens completamente distintas.
A natureza e a repartição dos cargos oficiais variavam em cada emirado;
contudo, pode -se distinguir, por via de regra, dois tipos de estruturas políticas,
cada qual subdividido em dois subtipos:
1. Os emirados apoiados em importantes e coerentes grupos, nos quais
alguns dos mais importantes postos da administração central e regio-
nal eram repartidos entre os membros destes grupos ou entre aqueles
a eles associados. Os titulares destes postos transmitiam -nos aos seus
descendentes com o correlato patrimônio. Estes emirados, fundados na
linhagem, eram subdivididos em duas subcategorias:
a) Aqueles emirados, tais como Zaria e Kano, onde os principais funcio-
nários (aqui compreendidos os parentes do emir) residiam na capital
e formavam o conselho do emir, contando com recurso de delegados
para administrarem os territórios sob a sua responsabilidade.
b) Os emirados, outros, tais como Sokoto e Katagum, nos quais os fun-
cionários da administração regional (aqui incluídos os parentes do
emir) residiam fora da capital; o conselho do emir era, nestes casos,
constituído por conselheiros designados a título pessoal e desligados
dos grupos de pressão determinados; estes conselheiros atuavam
como intermediários entre o emir e os potentes funcionários que
residiam fora da capital.
663
O califado de Sokoto e o Borno
2. Os emirados (uma pequena minoria) que não se apoiavam em um ou
vários grupos importantes, mas sobre um conjunto heterogêneo de indi-
víduos, pessoalmente ligados ao serviço do emir, como amigos ou escra-
vos. Não foi criada, nestes emirados, nenhuma dinastia de funcionários e,
por conseguinte, nenhum posto permanente acompanhado de correlato
patrimônio (com exceção, bem entendido, do caso do emir). Estes emi-
rados (fundados na clientela) subdividiam -se em duas subcategorias:
a) Em um emirado como aquele de Hadejia, o poder era estável e con-
centrado nas mãos do emir, em sua capital; a administração igual-
mente contava com grande número de escravos; o conselho do emir
não tinha caráter oficial e não possibilitava o encontro de diversos
grupos de interesse.
b) Emirados, tais como Ilorin ou Nupe, ou a administração do
al -Kanēmi, no Borno, foram, ao menos durante um curto período,
diarquias: o soberano tradicional observava a sua corte, ao passo
que o mallam (em Nupe e Ilorin) ou o xeque (no Borno) dirigia
a sua própria administração centralizada, fundada em relações de
clientela.
Os emirados do segundo tipo geralmente conheciam a guerra civil. Nas
diarquias, o soberano tradicional foi rapidamente eliminado (nos anos 1830
em Nupe e Ilorin, e em 1846 no Borno), entretanto, a sua eliminão o
trouxe necessariamente a paz. Guerras civis eclodiram entre pretendentes no
seio da dinastia do emir, em Hadejia, Nupe e no Borno; nem Hadejia, nem
Nupe, tiveram governos estáveis antes de 1860, aproximadamente. Uma estru-
tura política do tipo 1 (a) foi então estabelecida em Nupe (como em Zaria,
embora aqui houvesse um lo de parentesco entre as linhagens mediante as
quais o emir era escolhido alternadamente), ao passo que Hadejia e Borno
conservaram um governo fundado nas relações de clientela, controlado por
um emir possuidor do poder supremo e apoiado por um importante grupo
de escravos reais.
Os emirados do primeiro tipo eram mais numerosos e, por conseguinte, mais
variados. O lugar de residência dos funcionários ofereceu um critério cômodo,
embora superficial, caso queiramos distinguir estes emirados entre si. A des-
centralização dos lugares de residência supunha a existência, na capital, de uma
categoria de intermediários que podemos, à primeira vista, considerar como
clientes” do emir. Mas, neste sistema político, baseado na noção de linhagem,
os intermediários constituíram suas próprias linhagens. Em consequência, o
emir criou uma nova categoria de clientes entre aqueles que não podiam cons-
664
África do século XIX à década de 1880
tituir linhagens, a saber, os escravos do palácio; todavia, eles desempenharam
um papel de menor importância. A centralização dos lugares de residência, em
contrapartida, não supunha intermediários entre o emir e a sua administração;
no entanto, o emir finalmente transformou alguns escravos do palácio em seus
agentes pessoais, confiando -lhes importantes funções políticas. A centraliza-
ção dos lugares de residência igualmente significava que um funcionário podia
administrar cidades, localidades ou populações muito dispersas (situação que
impedia a formação de centros de poder regionais). Ao contrário, a sua descen-
tralização geralmente significava que o alto -funcionário residia em uma região
que lhe fora submetida em seu conjunto, com a possível exceção de algumas
localidades ligadas a outra administração.
O lugar de residência dos funcionários não oferecia, portanto, um critério
muito preciso. Numerosos emirados modificaram, no transcorrer do século, as
suas regras relativas ao lugar de residência de diversos funcionários. No emirado
de Bauchi, por exemplo, o madaki, que residia em Wase, exerceu novamente as
suas funções na capital, a partir do início do século. Era frequente que os fun-
cionários tivessem muitos lugares de residência e não se sabe exatamente quanto
tempo eles passavam em cada uma delas, tampouco se conhece a frequência dos
deslocamentos realizados pelos funcionários residentes fora da capital, com o
objetivo de irem até ela e participarem de importantes reuniões. Finalmente, a
importância relativa dos postos da administração podia evoluir; em um emirado,
como aquele de Bauchi, tudo leva a crer que ora a administração central, ora
administração de certas regiões tenham detido os mais relevantes poderes. O
lugar de residência dos funcionários reflete melhor a situação de cada emirado
no início da sua história e permite atrair a atenção sobre importantes diferenças,
existentes entre os emirados nos planos econômico e político.
A estrutura política dos emirados do tipo 1 (b) (ou seja, aqueles nos quais
os funcionários da administração regional residiam fora da capital) respondia à
exigência fundamental da jihad, consistente em estabelecer e defender fronteiras
no interior das quais a economia do emirado pudesse se reerguer. Estes emira-
dos, desprovidos de cidades e de concentrações populacionais sedentárias sobre
as quais pudessem se apoiar, estavam em uma situação muito precária no plano
militar. Inicialmente, grande parte da mão de obra e do tempo disponíveis foi
empregada na construção das fortalezas (tradicionalmente designadas no islã
sob o nome ribāt, nas quais os habitantes eram chamados murābitūn), assim
como na organização da agricultura frente aos ataques e às ameaças de ataques.
Ademais, quando pastores deviam ser sedentarizados ou uma população não
mulçumana devia ser assimilada no emirado, era preciso ajudá -los a adaptarem-
665
O califado de Sokoto e o Borno
-se às atividades e regras da vida mulçumana nas ribāt. As obras dos dirigentes
reformistas e as cartas trocadas entre eles oferecem uma excelente ideia sobre
os problemas encontrados a este respeito.
No plano econômico, os emirados sofriam com uma penúria crônica de mão
de obra. As rotas comerciais ainda não estavam bem estabelecidas e bem pro-
tegidas. Não havia terras suficientes, passíveis de cultivo sem incorrer no risco
de ser atacado por populações em trânsito ou hostis. Em suma, não se deve
subestimar a precariedade da situação de alguns emirados no início do período,
nem tampouco e, por conseguinte, acordar demasiada importância à estrutura
formal da administração ou da organizão política. Haja vista esta funda-
mental instabilidade, o maior perigo, tanto no início quanto durante o restante
do século, era que um funcionário potente buscasse tornar -se completamente
independente, solicitando a Sokoto que lhe concedesse o título de emir. Neste
caso, a diplomacia nem sempre lograva impedir um conflito armado.
Ao longo do século, os postos da administração central tenderam a ganhar
maior importância, comparativamente àqueles da administração regional, com
uma ou duas possíveis exceções. Por conseguinte, os funcionários desta última
administração (particularmente os parentes do emir com pretensões relativas
à sucessão) tenderam a residir preferencialmente na capital, visando preservar
a sua situação. Esta tendência estava ligada ao crescimento demográfico e ao
estabelecimento de uma maior segurança nas fronteiras, à assimilação progres-
siva, pela sociedade mais homogênea do califado, de grupos antes distintos, bem
como à oficialização do papel do emir, na qualidade de única fonte do poder
no emirado.
Os emirados do tipo 1 (a), cujos principais funcionários residiam na capi-
tal, oferecem um leque de situações muito heterogêneas no início do califado.
Somente os emirados de Kano e Zaria apresentavam as condições exigidas
para que uma corte importante pudesse se desenvolver na capital, porque esta
última estava construída, bem como em razão da produção agrícola e das
redes comerciais já estarem bem organizadas. Embora as cidades, também neste
contexto, tivessem sido batizadas ribāt, a defesa do território colocava menos
problemas que alhures, pois que a vasta população sedentarizada não estava
disposta à rebelião e os reis depostos de Kano e Zaria não representavam uma
real ameaça em seu longínquo exílio.
A potência econômica destes emirados tornava -os financeiramente indispen-
sáveis e estabelecia o risco, caso o emir lograsse estabelecer um poder indivisível,
de incitá -los a se colocarem como rivais do califa. Eis a razão do objetivo da
administração do califado, assim como dos grupos que não podiam alcançar a
666
África do século XIX à década de 1880
função do emir, relativo a impedir uma excessiva concentração do poder. Em
Zaria, o problema foi resolvido através da escolha dos emires e de alguns impor-
tantes funcionários de modo alternado nas três distintas linhagens; além disso, o
califa não hesitava em depor os emires de Zaria; finalmente, estes últimos jamais
reinaram por muito tempo (os dois reinos mais duradouros não existiram além
de quatorze anos). O inconveniente desta situação era que, por vezes, o emir
tornava -se um incapaz. Em Kano, contrariamente, a longa guerra civil posterior
à chegada do segundo emir, Ibrāhīm Dabo, bem como a duração do seu reinado
(27 anos, de 1819 a 1846), interditaram o recurso à alternância para limitar a
concentração do poder. O poder dos alto -funcionários nos territórios por eles
administrados, a sua independência como conselheiros, bem como a sua influên-
cia na designação dos emires, estavam garantidos − todavia não completamente,
haja vista que o segundo reinado de 27 anos, aquele do quarto emir,Abdullāh,
filho de Dabo, ainda concentrou fortemente os postos e os recursos nas mãos
dos seus familiares. Caso suponhamos que ele tenha detido o poder, o califa
de Sokoto não tinha razão legítima para depor o emir de Kano. O número de
pessoas, susceptíveis de ocuparem um cargo na administração, diminuiu por-
tanto rapidamente (em razão deste direito ser transmitido de pai para filho).
Os “excluídos” sofriam com um relativo empobrecimento e com uma perda de
prestígio, os quais igualmente atingiam os seus descendentes e dependentes.
Portanto, era forte a concorrência entre os membros da linhagem “real” e esta
situação provocou uma guerra civil que rasgou o emirado de 1893 a 1895. A
concentração da administração na capital não somente custava sempre mais,
em razão da necessidade de se manter uma classe de funcionários cujo número
aumentava rapidamente e com possibilidades de transformar -se em classe diri-
gente (inicialmente, talvez somente Kano e Zaria possuíssem os meios), mas,
além disso, esta concentração podia igualmente provocar um conflito no coração
do emirado. Em contrapartida, as guerras civis que atingiram, ao final do século,
emirados do tipo 1 (b), aqueles de Gombe e Katagum, foram guerras centrí-
fugas. Paradoxalmente, no emirado de Bauchi, foi necessário descentralizar a
administração para prevenir revoltas centrífugas. Entretanto, ao diminuir ainda
mais a importância dos postos que os parentes do emir podiam ocupar na capital
(na qual, ao final de um período de centralização, a administração do palácio,
composta de conselheiros pessoais do emir e de escravos -funcionários, tornara-
-se relativamente potente), a descentralização não provocou senão o aumento
da concorrência para um único posto verdadeiramente importante que restara,
o posto do emir. Deste estado de coisas resultou uma guerra desastrosa que
devastou a capital e o seu entorno, aproximadamente em 1881 -1882.
667
O califado de Sokoto e o Borno
No caso de Katsina, a centralização inicial, relativamente limitada e fundada
na linhagem, sob a influência do militarismo cedeu lugar a um poder palaciano,
de mais em mais autocrático. Esta transformação operou -se sem desordens civis,
parcialmente porque as zonas periféricas sempre haviam gozado de considerável
autonomia; era precisamente a prosperidade econômica destas zonas que dimi-
nuía a importância dos funcionários da administração central.
Até o presente momento não consideramos senão os escalões superiores da
administração. Em seus escalões inferiores, esta última apresentava uma maior
uniformidade, assemelhando -se àquela das outras regiões da África Ocidental.
As unidades menores lares ou acampamentos eram agrupadas no seio de
unidades mais importantes, definidas territorialmente ou através das relações de
parentesco, às quais era atribuída a maior relevância na sociedade pastoril, entre
tuaregues e fulbes, comparativamente ao papel por elas desempenhado junto aos
agricultores; igualmente, os pastores conservaram os seus próprios ardo’ en ou
tambura como chefes. A sua coesão conferia -lhes uma potência política da qual
não dispunham os cultivadores, menos unidos; porém esta relativa superioridade
não durou além de meados do século.
As cidades e as mais importantes localidades, criadas há muito tempo, esta-
vam recortadas em setores cujos representantes subordinavam -se a um chefe
escolhido entre eles, chamado may gari, magaji, dagaci ou mukoshi. A ligação
entre estes representantes e o poder central era assegurada por serviços ou por
agentes da administração local chamados jakadu. Igualmente, o contato entre
a administração e o emir era garantido por mensageiros. A tarefa essencial da
administração consistia em receber os tributos, embora, neste caso, a ação fosse
tanto política quanto econômica: pagar o imposto representava, outrossim, um
ato simbólico de submissão, ao passo que, recusar -se a pagá -lo representava um
gesto de rebeldia. Naquilo que diz respeito à arrecadação do imposto, a admi-
nistração era convocada a recolher informações de ordem política; a ratificar
as nomeações; a recolher uma parte das heranças; a administrar os bens dos
estrangeiros que, em trânsito, tivessem falecido no emirado; a encarcerar os
criminosos e escravos fugitivos; a assegurar a presença dos defensores nas con-
trovérsias judiciais civis; a conceder a liberdade às pessoas detidas injustamente
ou constrangidas a pagarem fianças; a atuar como mediadora nos litígios inso-
lúveis ou a comparecer, ela própria, perante o tribunal pessoal do emir, quando
fosse acusada de malversação ou, finalmente, em tempos de guerra, a organizar
as operações de recrutamento. Correspondências de funcionários, conservadas
pelos seus descendentes, oferecem -nos uma imagem daquilo que seria a admi-
nistração, ao final do século XIX, em Sokoto, Gombe e Bauchi.
668
África do século XIX à década de 1880
A estrutura social
A sociedade própria ao califado compreendia, em linhas gerais, dois compo-
nentes. O primeiro, baseado nos funcionários, comportava além destes últimos,
os seus parentes, letrados, clientes e escravos; o outro abrangia agricultores,
comerciantes e diversos artesãos, cujo trabalho contribuía para a complexa e
próspera economia do califado, assim como para os seus escravos. A demarca-
ção entre as duas categorias jamais foi muito nítida e era possível transitar de
uma categoria a outra. Letrados e escravos, em especial, podiam ligar -se a cada
uma das duas categorias. Por exemplo, os letrados encontravam -se distantes de
tenderem todos em favor da categoria dos funcionários; esta postura conduzia-
-os a um modelo de devoção segundo o qual as funções administrativas não
possuíam o seu espaço, extraindo a sua inspiração junto ao fundador do califado
’Uthmān dan Fodio.
Os funcionários, bem como aqueles a eles eventualmente associados,
caracterizavam -se pela sua fraca mobilidade. Quando eles deixavam o emirado,
no qual tinham o direito de ocupar um posto oficial, perdiam este privilégio em
seu exílio, inclusive nos casos em que eram autorizados, por concessão, a con-
servarem o seu título. Em contrapartida, nada impedia aos sujeitos ordinários
de abandonarem um Emirado rumo a outro; atitude tomada sempre que eles se
julgassem vítimas de uma repressão excessiva. Como os escravos dificilmente
podiam mover -se sem evitar a sua captura como fugitivos, eram justamente os
plebeus livres (talakawa) que detinham o controle sobre o comércio, os trans-
portes e sobre todas as atividades exigidas pelos deslocamentos; caso necessário,
eles eram acompanhados dos seus escravos, os quais lhes serviam como ajudantes
ou carregadores.
Os funcionários, bem como aqueles a eles eventualmente associados, igual-
mente caracterizavam -se pelo seu interesse atribuído à genealogia, às alianças
dinásticas e às regras, relativamente estritas, de sucessão patrilinear. Em con-
trapartida, os plebeus identificavam -se, por via de regra, com uma região ou
grupo étnico determinado, pelos traços faciais e costumes específicos; embora
não conhecessem detalhadamente a sua genealogia. Os plebeus exerciam, geral-
mente, o mesmo ofício que os seus pais; no entanto, não havia sistema rígido
de castas, à imagem de outras regiões da África Ocidental. Ademais, enquanto
as esposas dos alto -funcionários viviam confinadas nos cômodos da casa a elas
reservados, de onde comandavam grande número de concubinas e serviçais, as
mulheres dos plebeus gozavam de maior liberdade e, na maioria das regiões do
califado, participavam do comércio, da produção artesanal e da agricultura.
669
O califado de Sokoto e o Borno
É impossível avaliar com precisão qual proporção da população era represen-
tada pelos funcionários e pelo seu séquito. Todavia, estimou -se que os escravos
representavam, relativamente aos homens livres, uma proporção variável entre
vinte e cinco e cinquenta por cento; entretanto, não sabemos ao certo como
esta proporção foi calculada. O número de escravos pertencentes a esta catego-
ria social provavelmente cresceu ao longo do século; a importância dos cargos
que alguns dentre eles ocupavam na administração certamente aumentou, na
justa medida em que os emires tomavam consciência da sua necessidade de
apoiarem -se em funcionários fiéis e desprovidos de ambição política. Nós não
sabemos como a proporção de escravos variou nos campos; porém, é provável
que o seu número tenha aumentado durante o século. Recorria -se ao trabalho
dos escravos para compensar a penúria crônica de mão de obra, sobretudo nos
territórios subpovoados, como Sokoto, fundado à margem dos antigos Estados
da região. Igualmente, as regiões das grandes planícies, como Bauchi, requeriam
homens para o trabalho da terra. A porcentagem de escravos reexportados,
com vistas a serem revendidos na costa atlântica ou na África do Norte, não é
conhecida; no entanto, sabemos que a revenda de certas categorias de escravos
estava submetida a restrições e que o tráfico diminuiu no transcorrer da segunda
metade do século
16
.
Os escravos estavam autorizados a possuírem bens e podiam dispor do tempo
para trabalhar por sua própria conta, esperando, com isso, o benefício da pos-
sibilidade de comprarem a sua liberdade. Os seus proprietários não tinham,
invariavelmente, suficiente trabalho para atribuir -lhes, e estavam dispostos a
permitir -lhes oferecerem os seus serviços a terceiros. Igualmente, era plausí-
vel que um proprietário concedesse a alforria a um dos seus escravos, para
recompensá -lo ou para agradecer a Alá por um feliz acontecimento. Neste caso,
tampouco sabemos quantos escravos puderam ser libertos ou qual o ritmo desta
concessão.
As mulheres escravas podiam casar -se com outros escravos e as suas crian-
ças, elas próprias escravas, em geral participavam do serviço ao mestre como
domésticas. Uma escrava podia igualmente ter filhos com um homem livre, cir-
cunstância que conferia a liberdade a esta criança e à sua mãe, a quem a alforria
seria dada na ocasião da morte do seu mestre. Tal qual nas famílias reinantes, os
16 Todavia,o existe estudo detalhado sobre a escravatura, em todas as suas formas, no califado de Sokoto;
contudo, vários estudos tratam deste problema tal como ele se coloca em uma região e um período deter-
minados. Por exemplo, no que se refere ao emirado de Kano, conferir P. Hill, 1977, capítulo XIII; para
o emirado de Zaria, J. S. Hogendorn, 1977; no tangente ao Adawama, P. Burnham, 1980; em referência
ao tráco de escravos em geral, consultar D. C. Tambo, 1976.
670
África do século XIX à década de 1880
homens apoderavam -se de concubinas antes do seu casamento oficial; os primo-
gênitos eram, muito amiúde, filhos de concubinas. A lei islâmica, contrariamente
à tradição dos pastores fulbes, não estabelecia, em matéria de sucessão, nenhuma
distinção entre os filhos nascidos de uma esposa livre e aqueles nascidos de uma
concubina. Por conseguinte, certo número de emires eram filhos de concubinas;
de fato, a qualidade de filho de concubina era uma condição necessária para que
eles se tornassem verdadeiros” emires, porque neste caso, indubitavelmente,
não haveria temor de uma possível influência da sua família materna. A lei
islâmica tampouco reconhecia a distinção, frequentemente realizada na África
Ocidental, entre escravos nascidos cativos e aqueles nascidos livres, segundo a
qual os primeiros não poderiam, em princípio, ser separados dos seus pais para
serem vendidos. Embora esta condição continuasse a vigorar em certas regiões e
classes (a palavra huassa cucenawa era a mesma no Borno e no Fezzān, onde era
sinônimo de haratin), aparentemente, os reformistas da jihad não interditaram
a exportação de escravos nascidos cativos, senão nos casos de escravos muçul-
manos, em particular quando eles deviam ser vendidos a Estados cristãos. Estes
escravos pertenciam, desde o nascimento, não a uma linhagem determinada, mas
à sociedade muçulmana como um todo. Esta modificação igualmente indica
que os escravos eram mais facilmente comercializáveis e, por conseguinte, que
a escravatura era mais amplamente difundida.
Os escravos não pagavam imposto. Eles geralmente trabalhavam com os
filhos e mulheres do seu mestre, no quadro do gandu (ou seja, por conta do
chefe da casa); à sua imagem, eles consagravam setenta e cinco por cento do seu
tempo de trabalho ao serviço do seu mestre; todavia e contrariamente aos filhos
do mestre, eles não podiam contar sucedê -lo: eles permaneciam sempre “filhos”.
Nas comunidades escravistas, pertencentes ao Estado ou a famílias, os escravos
possuíam as suas próprias casas e trabalhavam sob a direção do seu chefe; nada
aparentemente distinguia estas comunidades das outras.
Se os escravos não pagavam imposto, muitos dos seus mestres tampouco o
faziam. Não sabemos exatamente quem eram os contribuintes e quanto eles
pagavam em tal ou qual momento. Os habitantes de Sokoto, por exemplo, eram
isentos do imposto fundiário geral, o kurdin kasa, também chamado haraji (Kha-
radj). Os pastores fulbes pagavam um imposto (jangali) referente aos rebanhos,
ao qual se denominava ora pela nomenclatura oficial, djizya, ora pelo nome zakāt
(esmola legal). Aproximadamente em 1850, no emirado de Kano, os agricultores
huassa pagavam cada um cerca de 2500 cauris/ano; ao passo que, no emirado de
Zaria, havia um imposto sobre as enxadas (sem dúvida porque as mulheres neste
território desempenhavam um papel particularmente importante na agricul-
671
O califado de Sokoto e o Borno
tura); talvez pela mesma razão, os maguzawa (huassa não muçulmanos) pagavam
a Kano impostos mais elevados que os outros habitantes do emirado. Inclusive,
o imposto era mais oneroso para todas as comunidades não muçulmanas, haja
vista o seu estatuto de comunidades tributárias dos Estados muçulmanos. Os
comerciantes e alguns artesãos, como os tintureiros e os camponeses que culti-
vavam alguns produtos de luxo, pagavam impostos cobrados durante a estação
seca. Em suplemento, doações anuais eram obrigatórias, por ocasião de festas
ou lutos; era necessário depositar esmolas e, sem dúvida, fornecer víveres às
armadas em trânsito pelo local. É evidentemente impossível avaliar o montante
de todas estas contribuições, as quais, de todo modo, podiam variar muito sensi-
velmente. Contudo, caso possa permitir -me supor uma estimativa geral, eu diria
que o imposto agrícola basal não representava senão uma fração relativamente
pequena da renda anual; talvez sequer equivalesse a uma jornada de trabalho
por semana, ao longo de toda a estação de trabalhos agrícolas.
A contribuição dos funcionários tomava sobretudo a forma de impostos
sobre o direito de herança; impostos a pagar aquando do início do exercício
funcional; além de presentes a oferecer ao emir ou ao califa, por ocasião da sua
nomeação. Eles extraíam a sua própria renda através da cobrança de taxas sobre
os impostos que eles arrecadavam, bem como sobre os butins e presentes por
eles recebidos; entretanto, o essencial das suas fontes de renda provavelmente
provinha da exploração das terras cultivadas pelos escravos, as quais constituíam
o patrimônio ligado à sua função oficial ou eram pertencentes à sua família.
Os funcionários do califado não tinham despesas tão ostentatórias quanto
aqueles dos outros Estados. Além dos cavalos e das vestimentas, os sinais mais
visíveis de riqueza correspondiam ao número de homens “ociosos” do séquito
e à amplitude da sua generosidade. Portanto, era necessário suficiente volume
de alimentos; mas estes alimentos, salvo algumas raras especiarias, a carne, o
mel, a noz de cola, não eram particularmente refinados. As funções oficiais,
inclusive no caso do califa, tampouco exigiam aparato custoso: nenhum trono
ou banquetas em ouro; nada de coroas ou joias preciosas; sequer fantasias, tais
como a utilização de tecidos axânti (os altos dignitários deviam simplesmente
vestir roupas brancas).
Havia, entretanto, grandes diferenças de fortuna, não somente entre os fun-
cionários e os plebeus, mas, igualmente, entre os próprios plebeus; a repartição
dos escravos constituía, quanto a isso, o melhor índice: alguns cultivadores (e
certos escravos) possuíam uma centena ou mais destes escravos; todavia, o preço
dos escravos era suficientemente reduzido, a ponto de permitir à maioria das
famílias possuírem um ou dois. Os pastores fulbes, por exemplo, utilizavam -nos
672
África do século XIX à década de 1880
para guardar os seus rebanhos; os maguzawa integravam -nos às suas famílias.
Contudo, a riqueza era algo muito precário. Uma família de cultivadores podia
arruinar -se em poucos anos, à imagem daquela de Baba de Karo
17
, caso devesse
pagar um resgate e, além disso, na hipótese de fuga dos seus escravos. Ela podia,
outrossim, ser arruinada pela perda de uma caravana. Em suplemento, em razão
de no momento da morte do chefe da família a sua sucessão ser dividida entre
todos os seus filhos, assim como em virtude dos ricos terem tendência a pos-
suírem várias mulheres e, por conseguinte, filhos, era raro que uma família
plebeia conservasse a sua fortuna durante várias gerações. Finalmente, como
demonstram os escritos dos fundadores do califado e os poemas de inspiração
popular dos letrados, a ética em vigor questionava o valor a ser atribuído, em
última análise, à riqueza e ao luxo.
Portanto, parece -me provável que:
• o imposto pago pelos homens livres não fosse geralmente exorbitante;
quanto aos escravos, as taxas incidentes sobre a sua produção, embora
bem mais pesadas, não seriam insuportáveis, haja vista que provavel-
mente não ultrapassem a cota de contribuição cobrada de um filho a
trabalho no gandu do seu pai;
• o nível de consumo dos funcionários fosse relativamente baixo; mesmo
quando, em certas regiões como Sokoto, o volume de consumidores era
provavelmente elevado;
• como a população do califado era relativamente densa (comparativa-
mente aos séculos precedentes), a proporção entre o número de benefici-
ários do imposto e de contribuintes permanecesse suficientemente baixa,
para que a soma das pequenas contribuições, pagas por grande número
de indivíduos, fosse suficiente não somente para manter a administração,
mas, igualmente, para financiar as despesas ostentatórias que, no califado,
estavam na base das diferenças sociais;
• finalmente, conquanto os ganhos obtidos através do comércio exterior não
constituíssem a principal fonte de renda, aqueles mais relevantes, que podia
prover a exportação de escravos, fossem aparentemente suficientes para
permitir enfrentar qualquer deficit. Entretanto, em que pese a demanda
das exportações, muitos escravos permaneciam no califado. Por outro lado,
este último não detinha, à imagem de outros Estados, o monopólio sobre
a extração do ouro ou do sal e, tampouco, de certas culturas como aquelas
17 M. Smith, 1954. Baba evoca, bem entendido, acontecimentos posteriores a 1880.
673
O califado de Sokoto e o Borno
da coleira e da palmeira; ele não possuía o monopólio sobre as licenças
comerciais, os transportes e as importações (o que corresponderia impor
um ponto de passagem obrigatória). Aparentemente, na realidade não
houve sequer o monopólio da força. Caso esta análise da economia do
califado esteja exata baixo nível de exploração dos recursos e limitado
controle estatal −, isso indica a existência de um potencial excedente de
riquezas e força de trabalho, suficiente para favorecer o desenvolvimento
das trocas e da produção durante a segunda metade do século.
O fundamento econômico desta expansão é a infraestrutura agrícola, implan-
tada pelo califado graças a consideráveis investimentos em mão de obra cuja
composição, inicialmente, devia -se em grande parte à importação de escravos.
As terras foram desmatadas e progressivamente fertilizadas, através de uma
drenagem metódica, pela rotação das culturas e graças ao emprego do esterco
dos rebanhos que os novos cultivadores desde antes possuíam. As rotas segui-
das pelos rebanhos foram delimitadas com cercas; poços foram escavados para
suprimir a necessidade do transporte de água; as ribāt, recentemente fortificadas,
asseguravam maior segurança. Contudo e provavelmente, a agricultura também
se tornou relativamente mais produtiva em virtude de uma melhor divisão do
tempo de trabalho, do estímulo à produção privada, bem como em razão da pos-
sibilidade de dispor de suficiente quantidade de ferro para produzir ferramentas
agrícolas e utilizá -las em larga escala, com finalidades específicas. O shadūf sur-
giu em Sokoto e − outra inovação técnica − criou -se, aparentemente a partir de
um modelo similar ao modelo brasileiro, pequenas plantações de cana -de -açúcar,
assim como usinas de beneficiamento. Eu acredito que o aprimoramento da
produção agrícola permitiu a extensão das culturas comerciais, como o algodão,
a cebola e o amendoim (transformadas para rapidamente serem consumidas),
além de crer que esta própria extensão tenha provocado um progressivo desen-
volvimento da atividade dos artesãos e, igualmente, dos cultivadores, os quais
ademais exerciam as funções relativas ao transporte e à comercialização. Em
função da falta de documentos, é todavia difícil avaliar e datar, precisamente,
estes progressos; porém, a importância do investimento global, na agricultura
dos primórdios do califado, não poderia ser negligenciada.
A evolução do califado de Sokoto, de 1820 a 1880
Eu indiquei, em múltiplas passagens deste capítulo, as tendências e as evo-
luções. Talvez fosse útil, neste estádio, resumir as transformações ocorridas,
674
África do século XIX à década de 1880
dividindo o período 1820 -1880 em três fases: uma fase de organização (1820-
-1845); uma fase de transição e agitação (1845 -1855); e uma fase de expansão
econômica (1855 -1880).
1820 ‑1845
O período de 1820 -1845 foi dominado por dois imperativos: primeiramente,
a necessidade de se defender contra os ataques dos povos vencidos ou deslocados
por ocasião do estabelecimento do califado e, em segundo lugar, a necessidade
não somente de reconstruir uma economia agrícola desorganizada pela guerra e
pela pilhagem, mas, do mesmo modo, de integralmente criar unidades agrícolas
e militares com indivíduos que, em muitas ocasiões, ainda não haviam conhecido
similar experiência.
Para vencer esses desafios, eram necessários chefes de considerável carisma e
com um espírito de corpo originado, junto aos muçulmanos, na sua comum
e, no que diz respeito aos fulbes, em seu orgulho de pertencerem a este grupo.
Existia, igualmente, um sentimento de urgência, pois que se acreditava no emi-
nente fim do mundo e porque, em certos emirados, a vida era então muito
precária.
A história deste período reduz -se, portanto e frequentemente, a uma crônica
relatando as campanhas, à fundação de tal ou qual ribāt ou ao controle de tal
ou qual cidade, indicando o número de mortos ou prisioneiros. O califado não
conheceu, durante este período, as grandes fomes, as epidemias e as invasões
de gafanhotos que haviam marcado os anos da jihad. Trata -se também de um
período de relativa estabilidade política interna, durante o qual as administra-
ções começaram a se formar e os cargos (os quais em geral conservam a sua
antiga nomenclatura huassa) eram atribuídos a homens de cujas informações
são escassas.
Kano, Zaria e Katsina são exceções, haja vista que a infra -estrutura constitu-
ída pelo antigo Estado huassa neles fora mantida intacta. Entretanto, o comércio
destas regiões sofreu com as hostilidades em relação ao Borno e, ao Norte, com
os tuaregues e os huassa. Em Kano (1819) e Zaria (1821), a ascensão de um
novo emir provocou uma reorganização do sistema político. Em Zaria, esta
reorganização produziu -se sem a transformação das ameaças em atos concretos
de violência. Em Kano, o emir foi obrigado a reprimir um vasto movimento de
revolta dirigida pelo seu próprio galadima e a caçar o chefe muçulmano Dan
Tunku, quem posteriormente tornar -se -ia emir de Kazaure.
675
O califado de Sokoto e o Borno
Ao final deste período, os emirados estavam solidamente implantados, com
exceção de Nupe. Por toda parte, salvo no emirado de Hadejia, capitais haviam
sido construídas e, segundo relatos de viajantes europeus concernentes ao Níger,
o comércio era bem organizado, malgrado as incertezas relativas à situação em
Nupe e apesar de uma certa inflação. A administração do califado se havia
demonstrado ativa, intervindo em Zaria no tocante à nomeação de alguns fun-
cionários do emirado. Finalmente, por volta de 1840, o perigo de invasão dimi-
nuíra consideravelmente.
A vida intelectual, durante este período, se reflete na produção ininterrupta
de livros, poemas e cartas que o califa Muhammad Bello escreveu em árabe,
versando sobre temas muito variados, desde o direito constitucional, passando
pela medicina, até o misticismo. Porém, ele não é o único a escrever, o seu vizir
Gidado escrevia obras de história e a sua irmã, Asma, poemas; em suplemento,
deve -se grande número de escritos aos parentes e discípulos do xeque. Visi-
tas, cartas e poemas enfatizando a adesão comum à Kadirīyya foram trocados
com o xeques Kunta de Tombuctu e com Qamar al -Dīn. O califa igualmente
recebeu a visita de al -Hadjdj ‘Umar, quem logrou, após uma permanência de
cerca de oito anos, traduzir alguns letrados de Sokoto e alhures para o wird
tijāni. Durante todo este período, o espírito da jihad não deixou de inspirar os
letrados, os quais continuaram a gozar de um papel importante na vida política
da maior parte dos emirados. Um exemplo típico é aquele do emir de Kano,
Ibrāhīm Dabo, quem encontrou tempo para escrever uma obra sobre a prática
do misticismo, embora tenha sido, inclusive, assaz realista ao restabelecer, com
a permissão do califa Muhammad Bello, alguns símbolos e práticas huassa
anteriores à jihad, afim de fortalecer a sua autoridade sobre os huassa. Entre-
tanto, este período foi sobretudo marcado pelo desenvolvimento da educação,
tanto na cidade quanto nas localidades menores. Não dispomos de estatísticas
para o século XIX; todavia, estimou -se a existência de 40.000 mallam em 1920
(portanto, provavelmente mais em 1900, antes da imigração); também sabemos,
que grande número de letrados e estudantes haviam falecido durante a jihad,
não somente em razão de guerra, mas, igualmente, em função de doenças e da
fome
18
. O papel desempenhado pelas mulheres, no curso dos primeiros anos da
educação corânica das crianças no seio das grandes famílias, é um dos fatores
18 O recenseamento de 1921 situa 34.903 mallam sob a rubrica professores”, indicando todavia cerca de
46.000 pessoas no exercício da prossão de mallam e embora reconhecendo que, bem entendido, as
duas categorias estivessem, sobrepostas. Estes números devem naturalmente ser tratados com precaução.
Conferir C. K. Meek, 1925, vol. II, pp. 218, 226 e 256 -257.
676
África do século XIX à década de 1880
deste desenvolvimento; no entanto, também devemos levar em conta a difusão
da política consistente em copiar os manuais, derivada da aparente possibilidade
em se obter papel em maior quantidade e a um custo inferior, comparativamente
a períodos precedentes.
1845 ‑1855
Estes dez anos representaram uma transição, marcada por grandes mudan-
ças. Trata -se de um período decisivo, durante o qual o esforço realizado para
estabelecer um Estado estável, baseado em princípios islâmicos, foi temporaria-
mente ameaçado. A causa principal destas mudanças foi, tão simplesmente, o
envelhecimento. Em 1840, os reformistas que haviam dirigido a jihad estavam
envelhecidos e estes líderes morreriam, uns após os outros, ou aposentar -se -iam,
após terem governado por mais de trinta anos: Buba Yero de Gombe, em 1841;
Atiku de Sokoto, em 1842; Yakubu de Bauchi, em 1845; Sambo de Hadejia,
em 1845, Dan Kawa de Katagum, em 1846; Ibrāhīm Dabo de Kano, em 1846;
e Adama de Adamawa (Fombina), em 1848. Os emirados orientais foram os
mais atingidos; por outro lado, no Oeste, o emir de Yauri perdeu o poder de
1844 a 1848 e aquele de Nupe foi substituído por um chefe de mercenários, de
1847 a 1856.
Na esfera militar, multiplicaram -se as ameaças e derrotas. Em 1843 e 1844,
os katsinawa refugiados no Maradi desencadearam, no Oeste do emirado de
Katsina, um grave levante, reprimido pelas forças aliadas de seis emirados; a
zona rebelde foi com tamanha severidade punida pelo emir de Katsina que
o califa foi obrigado a destituí -lo. Muito mais graves foram a sublevações em
Zaberma, Kebbi e Gobir, de 1849 a 1854, as quais puseram em perigo Sokoto e
Guandu; assim como a rebelião dirigida por Bukhari, em Hadejia, que ao final
das contas levou à derrota de Sokoto. A autonomia de Hadejia, em vigor de
1843 a 1863, provocou a devastação e uma grande fome, em larga escala, bem
como o assujeitamento de populações inteiras. Em 1847, o emirado de Kano
pela primeira vez conhecera a fome, após várias décadas, de modo que as guerras
travadas por Bukhari tiveram como efeito prolongar esta fome durante muitos
anos ao leste do emirado.
Finalmente, movimentos intelectuais e religiosos provocaram emigrações
durante o decênio 1845 -1855. O lançamento do livro de al -Hadjdj ‘Umar, em
1845, atiçou a controvérsia referente à confraria da Tijāniyya e, em particular,
acerca do interesse que lhe teria conferido o califa Muhammad Bello assunto
677
O califado de Sokoto e o Borno
que levou os vizires de Sokoto a redigirem longas cartas contestatórias
19
. O
primeiro -ministro do emir de Guandu, Modibo Raji, quem igualmente era um
eminente letrado da época da jihad, pediu demissão aproximadamente em 1850,
revelando que pertencera secretamente à Tijāniyya e, posteriormente, partindo
rumo ao Leste para estabelecer -se em Adamawa. Outros tijānī, vindos de Kano,
juntaram -se a ele, ao passo que Zaria também se tornava um polo de atração para
os letrados tijānī. Uma linhagem real”, os mallawa, aderiu à Tijāniyya, entretanto
o único emir tijānī de Zaria no século XIX, SīdīAbd al -Kādir, foi deposto após
nove meses de reinado, em dezembro de 1854. Associados, talvez erroneamente,
a este movimento, Mallam Hamza e quinze outros letrados deixaram Kano em
sinal de protesto e, finalmente, estabeleceram -se no Ningi; em seguida, eles orga-
nizaram um Estado nessa região de onde incursões foram realizadas, com sucesso,
contra os emirados de Kano e Bauchi. Por volta de 1855, um certo Ibrāhīm Sharīf
al -Dīn, sem vida fortalecido em seus objetivos pela situação econômica reinante
no Leste do emirado de Kano, logrou êxito em conduzir numerosos sujeitos de
Kano e dos emirados orientais para uma vasta migração de inspiração mahdista
rumo ao Leste, onde foram massacrados no Baguirmi.
Malgrado todas estas revoltas, certos sinais de estabilidade subsistiram.
Justa e finalmente, esta estabilidade do sistema deve consistir em seu traço
mais notável. Durante todo o período considerado, as duas principais figuras
do califado, o emir de Guandu, Khalīl, cujo reinado durou de 1833 a 1858
sem contudo tomar parte nas operações militares a partir de 1849, e o jovem
califa ‘Alī b. Bello (1842 -1859) permaneceram no exercício das suas funções, à
imagem de vários jovens emires ao Leste do califado. Nós conhecemos, parti-
cularmente bem, a situação geral do califado no período em questão, graças ao
diário do viajante Heinrich Barth, habitante da região de 1851 a 1855. Barth
nota um sentimento de insegurança; entretanto, nada em seu relato indica o
reinado da desordem, situação plausível em razão das revoltas acima evocadas.
O ajudante huassa de Barth, Dorugu, nesta época escravo na fronteira entre o
emirado Daura e o Damagaram, forneceram, todavia, um testemunho pessoal
sobre os efeitos que as incursões e a fome exerciam na vida dos cultivadores e
das suas famílias
20
.
19 U. al -Fūtī, 1845. Sobre a controvérsia, consultar M. Last, 1967a, pp. 215 -219. No tangente a relações
em certa medida divergentes sobre a carreira de al -Hadjdj ‘Umar, conferir J. R. Willis, 1970, e O. Jah,
1973.
20 H. Barth, 1857. A autobiograa de Dorugu está reproduzida em: A. H. M. Kirk -Greene e P. Newman
(org.), 1971, pp. 29 -201.
678
África do século XIX à década de 1880
Talvez seja simplista dizer que, ao longo deste período de transição, o poder
tenha passado de uma geração à sua sucessora, não somente no califado, mas
também junto aos seus inimigos, por exemplo no Borno e no Maradi. Mas o fato
concreto é que, dos dois lados da fronteira, a maioria dos emires reinantes por
volta de 1855 permaneceu no exercício das suas funções ainda durante quinze
ou vinte anos, efetivamente constituindo em conjunto uma nova geração. Cabe
observar que o califado e os seus vizinhos não eram os únicos Estados do mundo
que, após terem vivido uma grande revolta no início do século, conheceram um
período crítico nos idos de 1850; refiro -me, evidentemente, ao Egito, à França,
à Áustria e à Itália. Aquilo que caracteriza a década, tanto no califado quanto
nestes países, é o mal -estar intelectual que, tudo leva a crer, conduziu ao ques-
tionamento da legitimidade do Estado, em nome dos próprios princípios que
este último supostamente deveria encarnar. Ainda não sabemos exatamente
porque este mal -estar manifestou -se à luz do dia, nem qual foi a reação dos
letrados ligados ao regime; porém, haja vista a natureza da controvérsia e dos
antagonismos, certo número de documentos escritos chegaram às nossas mãos
a este respeito. Tenho a impressão que nesta época a comunidade dos letrados
dividiu -se, de forma duradoura, em dois campos, uns renunciariam doravante a
ocuparem -se dos assuntos do Estado, outros tentariam preservar uma adminis-
tração islâmica. Cinquenta anos mais tarde, quando as potências coloniais cristãs
impuseram o seu domínio, um problema similar causou semelhante divisão,
porém o desafio era então mais claro.
1855 ‑1880
O mais notável resultado dos acontecimentos ocorridos entre 1845 e 1855
foi o estabelecimento do status quo político, aceito tanto pelo califado quanto
por numerosos dentre seus inimigos. Em 1863, com a morte do emir rebelde
Bukhari, Hadejia foi, automática e novamente, submetida à autoridade do califa.
Inclusive em Nupe, as guerras civis interromperam -se ao final de 1859. Nupe
tornou -se, pela primeira vez, uma entidade política estável: entretanto, este fato
ocorreu em detrimento dos seus vizinhos do Norte, onde um novo emirado,
Kontagora, formava -se na fronteira do emirado de Yauri, de Nupe e do emirado
de Zaria. Kontagora atraiu os aventureiros, muitos dentre os quais de sangue
real”, que não podiam satisfazer as suas ambições nos emirados existentes. Estes
aventureiros eram igualmente atraídos por outras regiões, notadamente aquela
da fronteira entre os emirados de Zaria e de Bauchi e, no Leste, pelos emirados
semiautônomos de Adamawa. Entre os imigrantes,o havia peregrinos; porém
679
O califado de Sokoto e o Borno
não existiam somente guerreiros. Os elementos móveis da população, de origem
tanto externa quanto interna ao califado, não mais praticavam os ofícios das
armas; alguns viviam do transporte, do comércio ou da caça de elefantes, em
razão do marfim e, posteriormente, da extração do látex. Estes homens, qual
fosse a sua origem, eram geralmente chamados huassa”, o que indicava per-
tencerem não a um determinado grupo étnico, mas à sociedade mais ampla do
califado, com a sua economia atomizada e complexa e a sua língua veicular
21
.
Ao longo deste período, a história dos emirados apresenta duas caracterís-
ticas principais. A primeira é representada pela paz e pela estabilidade relativas
das quais gozava a região. Incursões e ataques prosseguiram, no entanto, não
se tratava de invasões capazes de colocar o califado seriamente em risco ou de
derrubá -lo. Igualmente, os emires prosseguiram com as suas atividades militares,
contudo, os adversários se neutralizavam. Os inimigos do califado haviam, eles
próprios, estabelecido regimes políticos estáveis. Foi justamente após 1880 que
a região recomeçou a viver crises.
A segunda importante característica é a expansão econômica do califado,
da qual testemunham os seguintes fatos: a valorização de novas terras; o esta-
belecimento de novas comunidades e o prosseguimento da imigração de mão
de obra livre ou servil; o crescimento quantitativo dos mercadores e trans-
portadores estabelecidos em país huassa, nas principais vias comerciais e em
atividade comercial ligada aos principais produtos, situação que aparentemente
indica a vinda e a instalação de mercadores estrangeiros nas cidades huassa;
o aumento do raio de ação dos mercadores huassa em direção a novas zonas
situadas distante das fronteiras do califado, com a simultânea adoção do cauri
como moeda nestas regiões; a elevação das exportações de tecidos processados
e outras mercadorias para outras regiões do Sudão ocidental, assim como, por
exemplo, das exportações de marfim e manteiga de carité para a Europa e o
aumento nas importações de produtos muito apreciados, como a noz -de -cola e
diversos produtos europeus. Tudo leva a crer que se teria facilmente encontrado a
mão de obra suplementar necessária não somente para a produção, mas também
para o transporte e o acondicionamento: por exemplo, embora Michael Mason
tenha calculado serem necessários 1.500 potes para acondicionar somente 25
toneladas de manteiga de carité, as exportações de manteiga de Nupe passaram
de 120 para 1.500 toneladas entre 1871 e 1878
22
.
21 Sobre a diáspora huassa, consultar M. Adamu, 1978.
22 M. Mason, 1970, capítulo 3. No tocante aos tecidos, conferir P. J. Shea, 1974.
680
África do século XIX à década de 1880
O desenvolvimento econômico foi acompanhado de inflação. Todavia, é
impossível conhecer com precisão não somente as consequências sociais desta
inflação, mas, inclusive, as suas características e, tampouco, as especificidades
locais. As taxas de câmbio publicadas por Marion Johnson mostram que o dólar-
-moeda, equivalente a 2.500 cauris em 1855, era trocado por 5.000 cauris em
1890
23
. De acordo com os números fornecidos por M. G. Smith, os impostos
aparentam ter aumentado quase no mesmo ritmo, ao passo que, segundo os
preços mencionados por Barth e outros viajantes que posteriormente visitaram
o califado, o custo de vida, ao menos para os ricos, teria aumentado duas vezes
mais rapidamente
24
. Caso as estimativas estejam aproximadamente corretas,
isso significaria que a baixa nobreza, captando recursos medianos, embora não
provindos da esfera estatal, tampouco da venda de escravos ou do comércio
exterior especializado, foi obrigada a sofrer uma redução no seu padrão de vida
para progressivamente aproximar -se daquele próprio aos produtores primários
cultivadores e artesãos, escravos ou livres −, os quais provavelmente tiraram
algum proveito da inflação. Esta evolução teria permitido avivar a concorrência
pelos cargos administrativos e, simultaneamente, favorecido as ideias milena-
ristas que continuavam latentes no califado, a ponto de suscitar as imigrações
e as guerras civis que marcaram os vinte últimos anos do século. Estas crises
evidenciavam um fundamental problema do derradeiro período do califado: o
perigo do aumento contínuo do número de funcionários, dos seus familiares e
clientes, com as suas respectivas expectativas, a despeito de qualquer recessão
econômica.
No plano intelectual, o período em questão esmarcado pelo crescente
emprego da língua huassa, em detrimento do uso do árabe e do fulfulde, nos
livros e poemas. Familiares do xeque traduziram poemas da época da jihad, o
que suscita pensar que as ideias e ações dos primeiros reformistas interessavam
a um público relativamente vasto, com maior domínio do huassa transcrito em
caracteres árabes, comparativamente ao árabe
25
. São menos numerosas as obras
originais deste período às quais tivemos acesso, comparativamente àquelas dos
23 M. Johnson, 1970.
24 É muito difícil avaliar a elevação do custo de vida para tal ou qual grupo. Podemos, segundo indicações
de H. Barth, 1857, estabelecer o preço de diversos produtos, entretanto, as informações que nos fornecem
os relatos de viajantes são menos completas e precisas para os anos 1880 e 1890; consultar, por exemplo,
P. Staudinger, 1889; P. L. Monteil, 1894; C. H. Robinson, 1895. O problema é ainda mais complexo em
razão dos preços terem consideravelmente variado, segundo as regiões e estações climáticas. Estas varia-
ções são talvez acentuadas, no caso de Monteil, pelo grande número de pessoas que o acompanhavam
e, em relação a Robinson, pela guerra civil no emirado de Kano. Sobre Kano, conferir M. G. Smith.
25 Sobre este movimento, consultar B. Sa ‘īd, 1978.
681
O califado de Sokoto e o Borno
períodos precedentes. Aparentemente, inclusive em Adamawa, houve certa ten-
são entre o governo e os letrados; o emir buscou impor a sua vontade no tocante
aos livros a serem estudados; porém esta medida, sem dúvida dirigida contra os
tijānī, foi revogada pelo seu sucessor, o emir Sanda, quem permitiu a entrada
dos letrados no seu conselho. Como o século XIII da hégira alcançava o seu
fim (1300 da hégira = 1883 da era cristã), é muito provável que tenha havido
expectativas milenaristas; mas elas não ganhariam uma expressão política senão
por volta de 1883, em Kano, sob o impulso de Liman Yamusa, na fronteira do
Borno, sob o impulso de Jibril Gaini, assim como em Adamawa, sob a direção
do bisneto do xeque Hayatu. Em outras regiões a situação permaneceu tran-
quila, em função da provável imigração dos habitantes do Oeste em direção a
estes domínios do Estado para realizarem a sua última peregrinação, ocorrida
somente em 1903.
O Borno de 1820 a 1880
A história do califado está inextricavelmente ligada àquela dos seus vizinhos
e inimigos. Os pequenos Estados vizinhos do califado foram conduzidos, sob o
efeito desta proximidade, a adotarem instituições políticas capazes de resistirem
às pressões externas; estas instituições espelhavam -se, muito amiúde, naquelas
dos Estados muçulmanos. Chefes ou homens fortes” surgiram em sociedades
que nunca haviam tido organização política unificada −, mas a história destas
sociedades ainda está por ser escrita e é possível que ela jamais seja analisada. O
sismo de cujo Sokoto foi o epicentro teve repercussões que alcançaram regiões
muito distantes; os dependentes do califado voltaram -se contra os seus vizi-
nhos mais fracos, contra os quais realizavam incursões e dos quais exigiam, eles
próprios, um tributo. Entretanto, as relações não se traduziam em guerras. O
comércio estava organizado séculos, em que pese o fraco desenvolvimento
demográfico e econômico dos Estados concernidos. Os mercadores do cali-
fado, à imagem do que haviam anteriormente feito aqueles de outros Estados
dominantes, infiltraram -se sem se preocuparem com as fronteiras desta rede
comercial, desenvolvida e transformada por eles.
Na realidade, a palavra “fronteiras”, é de difícil emprego neste contexto; ela era
aplicada, aparentemente, muito mais no âmbito do direito de imposição, compara-
tivamente ao seu uso na esfera da movimentação dos indivíduos. Isso igualmente
aplica -se à palavra inimigo”. Deste modo, o emir da Katsina, Siddiku, rechaçou
invasões vindas de Maradi; posteriormente, após a sua deposição pelo califa, em
682
África do século XIX à década de 1880
 . Artigos do artesanato huassa colecionados por Gustav Nachtigal, em 1870. [Fonte: G. Nachti-
gal, Sahara and Sudan (tradução de A. G. B. e H. J. Fisher), 1980, vol. II, Hurst, Londres. © Hurst, Londres.
Ilustrações reproduzidas com a autorização do Conselho Administrativo da Biblioteca da Universidade de
Cambridge.]
683
O califado de Sokoto e o Borno
razão de ter demasiado severamente punido os aliados de Maradi, ele se refugiou
em Maradi e com a sua ajuda invadiu o Zamfara, dependente do califado; final-
mente, quando se retirou, foi novamente em Sokoto que escolheu estabelecer -se.
Igualmente, qualquer rebelado contra um emirado podia refugiar -se no emirado
vizinho, sem que isso provocasse tensão entre os dois emirados. Os mercadores
huassa comercializavam frequentemente com o inimigo, em tempos de guerra, e
seguiam qualquer armada invasora, prontos a comprarem os prisioneiros que ela
fizesse com armas e cavalos, utilizados como moeda.
Em suma, as identidades fundadas com base nos nacionalismos locais ou na
origem étnica serviam, caso necessário, para organizar as relações entre os grupos
e não para isolá -los. O califado formava, por conseguinte, juntamente com os
Estados e os povos circunvizinhos, um conjunto social e econômico, no qual − o
que não causa surpresa os acontecimentos políticos que se reproduziam em
um Estado podiam provocar um eco praticamente imediato em outro, em cuja
orientação geral e a cronologia destes acontecimentos eram similares.
A história do Borno oferece um exemplo desta interdependência. O Borno
era o adversário e o mais importante vizinho do califado, o qual lhe usurpara a
supremacia; o ocorrido no plano político em um desses dois Estados revestia -se
de grande importância para o outro. Embora o modelo do Borno fosse muito
diferente daquele do califado, ele oferecia uma solução alternativa à qual o xeque
‘Uthmān quase recorrera.
Não é possível neste capítulo detalhadamente retraçar a jihad conduzido
pelo xeque ‘Uthmān dan Fodio e, tampouco, descrever os efeitos imediatos que
ele teve no Borno
26
. Basta relembrar que o Borno resistiu aos ataques lançados
contra as suas populações e, por conseguinte, perdeu temporariamente a sua
capital tomada pelos mudjahindūn e, definitivamente, grande parte do seu
território. O may de Borno adquiriu armas similares àquelas de Sokoto para
enfrentar, simultaneamente, o desafio ideológico e o desafio militar: ele fez
chamado ao xeque al -Hadjdj Muhammad al -Amīn al -Kanēmi, estimado letrado
que conhecia bem a vida política do mundo mediterrâneo e possuía ligações
no Fezzān; no próprio Borno, ele era ligado aos pastores árabes shuwa e o seu
entourage compreendia indivíduos kanembu. Em suma, ele representava a ordem
internacional estabelecida frente aos reformistas “fellata” (fulbes).
Após as vitórias militares de al -Kanēmi, um may concedeu -lhe o estatuto
de chefe semiautônomo residente em Ngurno, uma espécie de vice -rei compa-
26 Para precisões sobre a jihad, conferir L. Brenner, 1973, pp. 26 -47. O principal texto sobre a jihad escrito
por um contemporâneo é aquele de Muhammad Bello, 1951 ou 1964.
684
África do século XIX à década de 1880
rável ao tradicional galadima do Borno que, por sua vez, residia em Nguro. Ele
não recebeu ou alcançou nenhum título oficial; embora tenha posteriormente
sido qualificado como waziri, este título indicaria a sua aceitação não somente
do regime político, mas, igualmente, do seu papel subordinado neste regime
27
.
Ademais, como nenhum outro dignitário, anteriormente a ele, desempenhara
funções tão abrangentes, haja vista que estava, a um tempo, investido do
comando militar e encarregado da administração de um território sobre o qual
exercia uma autoridade mais pessoal, comparativamente às funções do may no
resto do Borno. Dado este estado de coisas, al -Kanēmi delegou aos seus escravos
o governo das cidades e estendeu o seu próprio poder, administrando direta-
mente as chefaturas semiautônomas a ele subordinadas. Ele muniu -se de uma
armada permanente de lanceiros kanembu e estabeleceu nas fronteiras, sob o
comando de escravos, guarnições comparáveis aos murābitūn de Sokoto. O seu
conselho era composto de seis dentre os seus amigos, alguns por ele conhecidos
desde a sua infância. Como o território sobre o qual ele exercia a sua autoridade
era, nos primórdios, relativamente exíguo e pouco povoado, o comércio e a venda
de escravos proporcionavam -lhe maior rendimento que os seus feudos, nos quais
ele buscava atrair diversos grupos populacionais. A sua corte era restrita e ele
confiava, preferencialmente, as tarefas oficiais a escravos, pois que estes últimos
não pertenciam a grandes famílias, além de lhe serem eles totalmente fiéis e,
igualmente, custarem menos.
Em contrapartida e ao conservar a sua corte, o may não mais extraía suficien-
tes recursos do seu consideravelmente reduzido território, recursos estes capazes
de permitirem -lhe manter e recompensar os seus cortesãos; em suplemento, ele
não pôde ou não desejou amparar -se de uma chefatura semiautônoma como
aquela de Marte, integrante do seu raio de influência. Porém, ele conservava a
autoridade tradicional, graças à sua legitimidade dinástica, assim como à esta-
bilidade e ao sentimento de identidade ligados a estas circunstâncias.
O primeiro período: a diarquia do Borno (1820 ‑1845)
Em 1820, o Borno dividia -se politicamente em duas zonas que, por vezes,
sobrepunham -se: o xeque e seus conselheiros, residentes desde então em Kakawa,
exerciam a sua autoridade sobre o Sul, o Leste e o Oeste; o may e a sua corte,
em Birni Kafela, exerciam -na sobre o restante do Borno. Em 1820, a posição
27 Consultar o documento traduzido por H. R. Palmer, 1928, vol. II, p. 119 (tratando da restauração de
Dunama como may e da “déposition de Ngnileroma).
685
O califado de Sokoto e o Borno
 . O xeque Muhammad al -Amīn al -Kānemi. [Fonte: Denham, Clapperton e Oudney, Narrative
of travels and discoveries in northern and central Africa, 1826, Londres. Ilustração reproduzida com a autorização
do Conselho Administrativo da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
686
África do século XIX à década de 1880
do xeque se fortalecera consideravelmente, tornando -se praticamente oficial.
O may Dunama fora morto durante uma batalha travada contra o Baguirmi e
al -Kanēmi presidira a ascensão ao trono de Ibrāhīm, filho caçula de Dunama.
Justamente neste momento, al -Kanēmi adquiriu o título de xeque e o seu bra-
são exibia a data de 1235 (equivalente a 1819 -1820 da era cristã), como ano
da sua própria chegada ao poder, visto que esta era a data que ele primava em
comemorar.
É habitual relatar a história do Borno como se fosse a partir deste momento
que al -Kanēmi teria passado a exercer a autoridade suprema. Talvez esta apre-
ciação seja exata, porém os documentos dos quais dispomos não são conclusivos.
Trata -se notadamente dos relatórios de duas testemunhas oculares, os enviados
britânicos Denham e Clapperton
28
. Estes relatórios manifestam tamanha par-
cialidade em favor de al -Kanēmi e contra o may Ibrāhīm que eles não podem
absolutamente ser considerados como análises políticas objetivas
29
. Convidado
de al -Kanēmi, amigo de mercadores norte -africanos que frequentavam a sua
corte e viajavam sob a proteção de um tripolitano e habitual parceiro comercial
do xeque, Denham manifesta consideráveis reservas contra o may, de quem ele
não frequenta e em nada compreende a corte.
Aparente e retrospectivamente, forte possibilidade que al -Kanēmi tenha
alcançado assaz prematuramente a autoridade suprema; porém este domínio
sem dúvida não se revelou tão nitidamente aos olhos dos seus contemporâneos.
O may Ibrāhīm mantinha uma corte ainda muito numerosa: segundo Denham,
de 260 a 300 cortesãos assistiam ao despertar do may e, entre eles, certamente
havia feudatários acompanhados dos seus seguidores. O próprio al -Kanēmi
devia, à imagem de todos os outros feudatários, enviar ao may uma parte das
rendas que arrecadava dos seus feudos a metade do total, segundo Denham.
Alguns partidários do may mostravam -se particularmente hostis aos recém-
-chegados, por exemplo, os sugurti kanembu, os negros shuwa e renomados
letrados, tais como Mallam Abdullāh, de Yale Garua, ou o Mallam Fanami,
de Manga. Era igualmente previsível que os dignitários tradicionais, como o
galadima ou o martema se opusessem ao aumento do poder de al -Kanēmi.
Poder -se -ia igualmente mencionar os chima jilibe, comandantes dos clãs kanuri;
28 H. Clapperton, 1829.
29 L. Brenner, 1973, pp. 21 -22 e 46 -47, cita trechos de Denham e Clapperton, sobre al -Kanēmi e o may
Ibrāhīm, nos quais a sua parcialidade nitidamente aparece. A maioria das informações que guram nesta
seção foi extraída desta obra de L. Brenner e do estudo de J. E. Lavers, 1977. Devo grande reconheci-
mento a John Lavers, pelos seus comentários sobre esta seção; todavia, ele não está de acordo com todas
as minhas interpretações.
687
O califado de Sokoto e o Borno
entretanto, os escritos dos historiadores não permitem saber em qual medida,
inicialmente, estes chefes de clãs ainda eram nomeados pelo may ou se eles lhe
permaneciam leais. Tampouco sabemos exatamente a partir de quando os res-
ponsáveis regionais (chima chidibe) foram nomeados por al -Kanēmi; no entanto,
os pleitos posteriormente formulados concernentes à extensão do domínio dos
shuwa (na província de Gazir, em 1842) levam a supor que esta extensão não
tenha sido muito rápida e tampouco integral. Finalmente, a divisão do poder
entre responsáveis regionais e chefes de clã podia facilmente ser adaptada ao
tipo de diarquia por mim evocada. Eis a razão pela qual, embora não saibamos
ao certo quais chima residiam na corte do may em Birni Kafela, estimo ser
plausível supor que a maioria dos negros da “aristocracia kanuri ali residisse,
embora fossem simultaneamente representados em kukawa, junto ao xeque, por
um familiar mais jovem.
Para melhor compreender a conduta de al -Kamēni, é necessário enxergar, na
pessoa do may Ibrāhīm, não o personagem ridículo que Denham descreve -nos,
mas o chefe de um Estado ainda potente. As funções de al -Kamēni, as quais
faziam dele uma espécie de super -galadima ou vice -rei, compreendiam a vigi-
lância fronteiriça não somente no sudoeste (ao galadima cabendo o encargo da
fronteira do Oeste), mas, igualmente, no Sul. Ele tinha o direito de mobilizar
tropas. Os norte -africanos instalados no Borno dele dependiam, do mesmo
modo que as relações internacionais derivadas da presença destas populações.
Em direção ao Oeste, de 1824 a 1830, al -Kamēni preocupou -se em menor grau
com ataques contra o califado, comparativamente à atenção dedicada ao resta-
belecimento, em Nguderi, de um Borno ocidental que escapasse à autoridade do
galadima. A sua provável intenção consistia em incluir, neste Estado, alguns dos
emirados orientais de Sokoto e, quiçá, de Kano; todavia, ele não logrou êxito em
seus planos. Entretanto, ele conseguiu caçar Muhammad Manga, um tributário
do califa, além de, ao avançar até Kano, ter demonstrado a potência militar do
Borno nesta região fronteiriça. Além disso, ele contribuiu para novamente esta-
belecer o Estado de Gumel, do qual obteve ajuda, ganhando apoio dos manga
que ele recentemente derrotara. Assim acuado, o galadima evadiu -se para Sokoto
e, posteriormente, voltou a se submeter a al -Kamēni, quem não lhe concederia
senão um território muito reduzido. Em 1830, al -Kamēni possuía, portanto,
o seu próprio Estado, o Borno ocidental, por ele governado com o concurso
de escravos os katchella −, no qual as diversas populações não demonstravam
particular lealdade vis -vis do may.
A este “sub -Estado” ocidental acrescentava -se, ao Sul, uma zona similar,
também administrada por escravos e compreendendo essencialmente as cidades
688
África do século XIX à década de 1880
kotoko e os mercados de Barguirmi. Inicialmente, de 1818 a 1824, al -Kamēni
em vão ensaiara, com a ajuda dos norte -africanos, estabelecer no sudeste um
grande protetorado do Kanem, contando com o Baguirmi como vassalo. As
guerras que permitiram esta expansão atraíram certamente inumeráveis voluntá-
rios cavaleiros vindos de Birni Kafela −, comparáveis aos voluntários de Sokoto
que partiram para combater nos emirados de Zaria e de Bauchi. Contudo, a
maior parte do Borno, propriamente dito, situada ao Leste do Lago Tchad,
permanecia sob a tradicional autoridade dos chefes kanuri, fiéis ao may.
Inexistem razões para crer que esta divisão de poder não tenha sido exitosa: o
may governava a maior parte do país kanuri, dele extraindo a sua renda, o xeque
governava as zonas fronteiriças, do Oeste e do Sul, utilizando a cavalaria do
Borno e enviando ao may a sua cota -parte das rendas. Na realidade, sob certos
aspectos, eles se conformavam ao antigo modelo que prevê uma separação de
alguns quilômetros da cidade real tradicional relativamente à cidade comercial,
somente habitada por muçulmanos, com exceção de um bairro reservado aos
estrangeiros. E, para estrangeiros como Denham e os seus amigos, toda atividade
aparentava estar concentrada em Kukawa.
Pouquíssimas indicações chegaram -nos acerca das atividades da corte do
may Ibrāhīm, tanto quanto foram raros aqueles que sobreviveram à destruição
da dinastia em 1846. Durante a sua visita ao Borno, al -Hadjdj ‘Umar converteu
à Tijāniyya um importante membro da família do may, o que veio a trazer -lhe,
segundo a tradição histórica, a hostilidade de al -Kanēmi (na realidade, ignora-
mos tratar -se de al -Kanēmi ou do may)
30
.
Segundo a minha apreciação, uma das razões para o bom condicionamento
do dispositivo implementado pelo may e por al -Kanēmi teria sido a notável
ausência, no caso deste último, de qualquer dogmatismo ou ambição. Ele não
aparenta ter planejado a transformação do Borno. Os seus escritos não contêm
nenhum projeto de reforma. Ele não compartilhava nem as expectativas mine-
rárias, nem a vontade de agir rapidamente, própria aos dirigentes de Sokoto,
além de não atrair em torno de si homens com o mesmo sentimento referente a
terem uma missão a cumprir. Ele repugnava a si mesmo informar sobre as razões
que lhe obrigavam a permanecer no Borno. A sua curiosidade o conduzia para
amplos horizontes e ele recusava fidelidade a uma etnia determinada. A ausên-
cia de ideologia, desta segurança e deste dinamismo que uma ideologia pode
inspirar, confere ao Borno uma nítida distinção frente ao califado de Sokoto. A
30 U. al -Naqar, 1972, pp. 72 -74 e 144.
689
O califado de Sokoto e o Borno
 . Um dos lanceiros kanembu do xeque al -Kanēmi. [Fonte: Denham, Clapperton e Oudney,
Narrative of travels and discoveries in northern and central Africa, 1826, Londres. Ilustrações reproduzidas com
a autorização do Conselho Administrativo da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
poesia nele não cantava a glória dos mártires”. Embora tenha terminado com o
monopólio do conjunto de facilidades das quais o may se havia beneficiado até
então, al -Kanēmi não ofereceu nada em contrapartida, senão a nova facilidade
em relação à sua própria pessoa, uma hostilidade comum vis -vis dos fulbes de
690
África do século XIX à década de 1880
Sokoto e uma adesão ao mundo islâmico, em seu conjunto, ao qual ele mesmo
tinha a sensação de pertencer. Ele soube se servir da realeza como uma institui-
ção em torno da qual podia reunir todos os habitantes do Borno, transcendente
aos interesses dos diferentes grupos; do mesmo modo, o may podia apoiar -se
no xeque, precisamente porque este último não compartilhava o zelo reformista
que teria destruído o Borno tradicional. Mesmo que tivesse desejado, al -Kanēmi
provavelmente não era assaz poderoso, a ponto de derrubar o may e tampouco
poderia introduzir reformas fundamentais por tanto tempo quanto necessitasse
do may para preservar a unidade do Borno. Certamente, ele enviou durante os
anos 1830 um representante diplomático junto à Porta, atitude que demonstra
a sua rejeição à tradicional pretensão do may ao título de califa; entretanto,
isso não teve consequência alguma à época. O Borno não se encontrou em
dificuldades quando o Estado não pôde apoiar -se nas instituições tradicionais
e tampouco em uma mobilização ideológica suficientemente forte; justamente
a partir deste momento (e não antes, a meu juízo) é possível analisar a política
do Borno em termos de relação patrão -cliente, considerando o interesse pessoal
como a motivação essencial.
A relação de interdependência entre o may Ibrāhīm e al -Kanēmi devia -se à
personalidade dos dois homens. Foi notável, aquando da morte de al -Kanēmi
em 1837, a necessidade do estabelecimento, em novos parâmetros, das rela-
ções do may com o xeque; tudo leva a crer, foram os três conselheiros shuwa
de al -Kanēmi, muito mais que o seu filho Umar, que propuseram, ou melhor,
determinaram ao may as novas condições. O may, aparentemente a justo título,
ordenou a vinda de ‘Umar à sua corte para nela assumir as funções do seu pai;
entretanto, os conselheiros kukawa ameaçaram o may com a possibilidade de
atacarem Birni Kafela, caso ele próprio não viesse oferecer fidelidade ao novo
xeque. Jamais, ao nosso conhecimento, o may teria antes visitado Kukawa e o
significado simbólico deste ato não poderia ser subestimado. Naturalmente, o
novo xeque não se contentou com esta afronta e depositou ao may um tributo
inferior àquele anteriormente pago pelo seu pai. Os conselheiros de Umar com-
prometeram, deste modo, os resultados de vinte anos de cooperação com o may,
o que lhes custou a vida, tal como sucedeu com o mais antigo conselheiro de
al -Kanēmi, al -Hadjdj Sudani, quem teria sem dúvida preferido ver outro filho
seu como sucessor do xeque, Abd al -Rahmān. A ascensão de ‘Umar deveria,
portanto, não somente opô -lo ao may Ibrāhīm, mas, igualmente, ao seu próprio
irmão.
691
O califado de Sokoto e o Borno
Borno (1845 ‑1855): um período de transição
De 1845 a 1855, o Borno conheceu dificuldades ainda muito mais graves
que o califado, em razão não somente das invasões, da guerra civil e das exe-
cuções, mas também pelas reviravoltas no sistema político. A dignidade do
may foi abolida e a sua corte dissolvida; a corte do xeque, desprovida de brilho,
embora mantivesse diversas relações internacionais, também ela desapareceu.
Promovendo a fusão das funções do xeque e do may, ‘Umar estabeleceu um novo
modo de governo que não somente diferia dos regimes anteriores do Borno, mas,
igualmente, do regime do califado de Sokoto.
Eis aqui, brevemente expostos, os acontecimentos deste decênio. Acom-
panhando a seriedade do questionamento à sua autoridade, em 1846, o may
Ibrāhīm incitou o sultão de Wadaī a invadir o Borno. Deste modo, ele nova-
mente incorria no erro que custara a vida ao seu pai Dunama, vinte e sete
anos antes, quando este último chamara o sultão de Baguirmi para combater
al -Kanēmi. Dois dentre os principais conselheiros do ‘Umar, Mallam Tirab e
Ahmad Gonimi, foram mortos durante uma batalha contra as forças do Wadaī;
após esta batalha, ‘Umar ordenou a execução do may Ibrāhīm e, em seguida,
depôs o seu sucessor, o mayAlī.
O novo vizir, al -Hadjdj Bashir, tornou -se o favorito do xeque, suplantando
Abd al -Rahmān. Em 1853, este último depôs ‘Umar e Bashir foi morto, porém
no ano seguinte, ele próprio foi deposto e executado. Umar retomou o poder,
exercendo -o durante vinte e seis anos, até a sua morte em 1881.
Eu creio que não se deva entrever uma simples coincidência no fato de a
mesma década se ter revelado crítica, tanto para o califado quanto para o Borno.
A jihad, opondo os dois Estados, neles havia conduzido ao poder homens com
idades correspondentes; não causa, portanto espécie que os problemas suces-
sórios tenham surgido simultaneamente nos dois Estados. Em suplemento, o
califado não mais exercia uma pressão tão relevante sobre o Borno: no plano
ideológico, os espíritos estavam, durante os anos 1840, mais preocupados com
o milenarismo e a Tijāniyya, comparativamente ao interesse demonstrado pela
jihad; ao passo que, no plano militar, a distensão reinava, malgrado campanhas
episódicas e limitadas nas fronteiras. Talvez tenha sido justamente esta distensão
que permitiu a manifestação das rivalidades internas: a corte de Kukawa não
mais necessitava do may como símbolo da unidade do Borno; sequer ainda
havia necessidade de unidade em Kukawa. Uma reação em cadeia sobreveio: a
guerra civil do Borno encorajou Bukhari a se revoltar contra Sokoto; a confu-
são reinante na fronteira ocidental do Borno conduziu Bashir a tomar riscos
692
África do século XIX à década de 1880
excessivos; e Abd al -Rahmān foi levado a ousar depor o ‘Umar. O efeito destes
acontecimentos nas massas manifestou -se pelo apoio por elas dedicado ao diri-
gente milenarista, Ibrāhīm Sharī al -Dīn, aquando da sua marcha para o Leste,
atravessando o Borno em 1856. Entretanto, salta aos olhos que nenhum dos
dois Estados tenha podido ou desejado tirar proveito das desordens que ocor-
riam em seu vizinho, bem como que a situação tenha rapidamente recuperado
a normalidade após 1855.
O segundo período (1855 ‑1880): o sistema político do Borno
O Borno foi, durante este período, um Estado unitário. ‘Umar, embora con-
servasse o título de xeque e continuasse a residir em Kukawa, conferiu à sua
função de chefe de Estado um caráter mais formal, fazendo -se acompanhar de
uma corte mais numerosa. Ele nomeou um primeiro -ministro ao qual conferiu
consideveis poderes; entretanto, toda a autoridade estava concentrada em
suas mãos e ele a delegava a quem julgasse convir. A corte era composta, como
anteriormente, de parentes do xeque, notáveis livres e escravos funcionários;
ademais, decidiu -se preservar os nomes dos conselheiros de al -Kanēmi para
os novos títulos criados; porém os escravos, aqui compreendidos aqueles que
constituíam um exército real composto por cerca de 3.000 homens, desempe-
nhavam um papel mais relevante que outrora, embora os seus postos, a título
puramente individual, estivessem totalmente submetidos à boa vontade do
xeque. Era possível que o filho de um escravo herdasse o posto de seu pai; no
entanto, os escravos não podiam pretender, em virtude de um direito hereditá-
rio, uma função ou um patrimônio determinados. O crescimento da proporção
de escravos na administração teve um efeito no processo de recrutamento de
funcionários livres: efetivamente, o título herdado por um funcionário livre não
supunha forçosamente funções ou poderes específicos. Portanto, era impossí-
vel preservar o “equilíbrio de poderes” e não havia linhagens tradicionalmente
fortes, dispondo de base própria; muitos personagens importantes não tinham
título oficial. O avanço dos funcionários ocorria no quadro de uma hierarquia
definida por relações de clientela, caracterizada, em seu topo, pela presença do
xeque. No tocante a Sokoto, a concorrência era livre, sem que direitos relativos
ao nascimento ou ao grau constituíssem obstáculos.
Caso esta análise, a caracterizar a política do Borno como um sistema de
relações de clientela, esteja correta (ela é inclusive similar àquela de R. Cohen
693
O califado de Sokoto e o Borno
e L. Brenner), este sistema dataria da época de al -Kanēmi que, inicialmente,
confiara a administração do Estado a escravos e alguns amigos
31
.
Como os membros das linhagens mais antigas permaneciam, sem dúvida,
fiéis ao may, o xeque não pôde recorrer a funcionários hereditários; posterior-
mente, a morte dos seus antigos conselheiros, durante as desordens de 1846-
-1854, interrompeu na raiz qualquer evolução neste sentido. Como, por outro
lado, os funcionários do may caíram em descrédito após 1846, dificilmente pode-
mos imaginar qual outro sistema de recrutamento poderia ter sido aplicado pelo
xeque ‘Umar. Todavia, talvez seja cometer um anacronismo considerar, no início
do século XIX, as relações de clientela como o sistema tradicional do Borno
ou mesmo como o seu sistema dominante. Os conselheiros de al -Kanēmi não
eram seus clientes, mas, antes e sobretudo, associados seus, os quais gozavam de
grande independência; de onde deriva o papel capital por eles desempenhado
nos acontecimentos posteriores à sua morte. Ter -nos -ia ainda sido possível assis-
tir à fundação de dinastias de ministros. Considerando este conjunto, eu creio
poder dizer que importantes mudanças políticas efetivamente produziram -se
após o período 1845 -1855, entrementes, estas mudanças tornaram -se mais fáceis
pela simples aplicação, ao conjunto do quadro político funcional, do princípio
observado por al -Kanēmi no âmbito da designação dos escravos -funcionários.
Tão importantes quanto estas tendências políticas foram as transformações
da economia que serviria de base ao sistema político. O fato marcante do perí-
odo, como observamos, é o surgimento do comércio e da produção no califado,
com a colonização das terras virgens no interior das fronteiras e, externamente,
uma considerável extensão do raio de ação dos mercadores huassa. Não somente
estes últimos dirigiam -se ao Borno, mas os mercadores do Borno tendiam a se
instalar, em número cada vez maior, no país huassa. A distensão política e ideo-
lógica entre os dois Estados permitia este intercâmbio; finalmente, os embargos
do início do século eram considerados medidas excepcionais, se contextualizados
na longa história de trocas mantidas pelo Borno com os países situados ao Oeste.
Porém, tudo leva a crer que o Borno, em concorrência com os pequenos centros
comerciais do califado, tenha sido incapaz de oferecer variedade de produtos.
Ele continuava a exportar natrão, embora sem dúvida enfrentasse a crescente
concorrência de outros tipos de sal produzidos em outras regiões. Outra expor-
tação básica, de escravos, aparentemente diminuiu de forma progressiva; embora
seja possível que o emprego de mão de obra servil tenha aumentado no Borno,
31 L. Brenner e R. Cohen, 1988.
694
África do século XIX à década de 1880
 . Blusa bordada de uma mulher do Borno, feita nos anos 1870. [Fonte: G. Nachtigal, Sahara and
Sudan (tradução de A. G. B. e H. J. Fisher), 1980, vol. II, Hurst, Londres. © Hurst, Londres. Ilustrações repro-
duzidas com a autorização do Conselho Administrativo da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
a base produtiva da sua economia não aparenta ter se desenvolvido no mesmo
ritmo que a sua correspondente no califado. À imagem das rotas utilizadas
pelo comércio de natrão e escravos, a exportação ou a re -exportação das peles,
do couro, do marfim ou das plumas de avestruz, ocorriam através dos mesmos
itinerários comerciais dos huassa, enquanto novos produtos de importação eram
buscados sob o controle do califado, como o marfim de Adamawa. Em suma,
aparentemente o Borno foi levado a desempenhar, em relação à economia do
califado, o papel de fornecedor de matérias -primas e consumidor de produtos
de luxo; estado de coisas que provocou uma diminuição dos ganhos extraídos
através do comércio pelos detentores do poder. Final e aproximadamente em
1850, a entrada do Borno na zona monetária do cauri, englobando a África
Ocidental, simboliza esta evolução. Outro símbolo: as dificuldades encontradas
pelos mercadores no sentido de receberem os seus créditos na capital talvez
o volume das trocas não mais justificasse estas despesas levaram os merca-
695
O califado de Sokoto e o Borno
dores norte -africanos a começarem a evitar o Borno. O comércio transaariano
constituíra um importante elemento da política de al -Kanēmi e, por esta razão,
o Borno retomara, ao longo dos anos 1840, o controle de Zinder, importante
localidade do ponto de vista do comércio exterior. Todavia, esta vantagem não
era suficiente a ponto de permitir ao Borno resistir à concorrência do califado.
Caso somarmos todos estes fatores aumento do mero de cortesãos
(escravos e homens livres), aumento do preço dos produtos de luxo, insuficiência
da produção destinada à exportação, fim da hegemonia comercial do Borno −,
melhor compreenderemos as razões pelas quais a cobrança dos créditos comer-
ciais se tenha tornado mais complexa ou porque, em 1883, tenha sido necessário
confiscar a metade dos bens de cada contribuinte. Na justa medida em que
este confisco foi a consequência da crônica incapacidade dos contribuintes em
pagarem o seu imposto anual, podemos supor que a economia rural não mais
produzia excedentes. Contudo, nada sabemos com precisão sobre o que se repro-
duziu nos campos, de 1855 a 1880, senão que não houve revoltas camponesas
antes dos movimentos milenaristas dos anos 1880.
A estagnação da economia, provável e parcialmente, devia -se à incompe-
tência do xeque ‘Umar; mas ela sem dúvida possuía uma razão mais profunda,
devida à relação existente entre a economia do Borno e a economia em expansão
do califado.
Caso isso seja verdade, o Borno oferece uma esclarecedora ilustração dos
efeitos exercidos pelo desenvolvimento econômico do califado sobre um Estado
limítrofe, assim como um modelo que permite comparar a experiência de outros
Estados em uma mesma situação periférica. Retrospectivamente, tudo leva a crer
que, do ponto de vista político, a escolha das possibilidades, oferecidas ao xeque
‘Umar e à sua administração, tenha sido limitada. O Borno, desde então com
dificuldades em conservar o controle do Damagaram, no Nordeste, via as suas
possibilidades de real expansão territorial limitadas, a Oeste e Sul, pela expansão
do califado, bem como, no Leste, pelo Baguirmi e pelo Wadaī. Outra solução
possível consistiria em reduzir o número de cortesãos e descentralizar a adminis-
tração; entretanto, esta política chocar -se -ia com a tendência seguida há muitas
décadas, solapando o sistema fundado em relações de clientela e requerendo
uma expansão territorial ou das migrações. Neste caso, à estabilidade do reino
do xeque ‘Umar sucedeu um terceiro tipo de situação a irrupção da violência
na política e a eliminação dos rivais; porém estes acontecimentos ultrapassam o
enquadramento proposto neste capítulo.
696
África do século XIX à década de 1880
Conclusão
Malgrado as notáveis diferenças, no tocante à supercie e à população,
existentes entre o Borno e o califado, a comparação entre estes dois Estados
evidencia os fatores que explicam a divergência em suas respectivas evoluções
históricas. Caso nos posicionemos ao nível mais reduzido, relativo às pessoas, a
oposição inicial pode assim ser resumida:
• Al -Kanēmi devia dividir o poder com um may que, a despeito da sua
fraqueza militar, possuía grande autoridade fundada no ritual; em contra-
partida, o califado não tinha, à época de Muhammad Bello, um soberano
tradicional deste gênero.
• Al -Kanēmi não dispunha da vasta rede de relações de clãs e familiares,
sobre a qual tão eficazmente podia apoiar -se Muhammad Bello.
• Conseguintemente, al -Kanēmi apoiava -se em escravos e nos seus ami-
gos, concentrando o poder em suas mãos, ao passo que Muhammad
Bello foi obrigado a delegar parte dos seus poderes aos seus companhei-
ros mudjāhidūn e murābitūn, os quais tinham tendência a constituírem
linhagens ou grupos de pressão locais.
• Após as derrotas sofridas pelo Borno, al -Kanēmi foi levado, para unir o
país, a recorrer à tradicional fidelidade perante o may e a contar com o
seu próprio carisma, no sentido do interesse pessoal, e com o sentimento
de hostilidade compartilhado vis -vis dos fulbes; ao passo que Muham-
mad Bello, após o espetacular sucesso da jihad, pôde unir os seus emires,
muito dispersos, em torno da forte motivação milenarista do islã.
Para compensar a diminuição das suas rendas, o Borno dependia da expor-
tação de escravos, parcialmente estimulada pelas privilegiadas relações mantidas
entre o Borno e a África do Norte; Sokoto, dispondo de recursos mais diversi-
ficados, era em contrário comprador de escravos; esta demanda era estimulada
pelas diversas linhagens e pela pequena nobreza, as quais necessitavam de mão
de obra para a produção agrícola e artesanal, para grande proveito da economia
do califado, a longo prazo.
Estas tensões entre os dois Estados, durante o primeiro período, constituem
em suplemento um importante fator para a sua revolução política e ideológica.
Inversamente, a relativa atenuação destas tensões favoreceu indiretamente as
desordens do período 1845 -1855 e a sua contenção.
Após 1885, quando a rivalidade tornou -se mais econômica que política, o
sistema político do Borno tendeu a conceder importante espaço para as relações
697
O califado de Sokoto e o Borno
de clientela e para o crescimento individual; ao passo que o governo do califado
favorecia a criação de grupos de interesse, preservando todavia a fidelidade ao
islã que, embora não mais fosse dominada pela inspiração milenarista, permitia
limitar estes interesses e propiciava uma regra moral. Em razão do relativo dina-
mismo do califado que, além de tudo, dispunha de riquezas naturais superiores,
o Borno acompanhou o progressivo enfraquecimento da sua economia; embora
a distensão tenha permitido aos agricultores e mercadores do Borno mais facil-
mente escoarem os seus produtos no mercado em expansão do califado. Se, no
Borno, foram justamente os habitantes da capital que mais fortemente sofreram
com o declínio econômico, no califado, por sua vez, foi a devota pequena nobreza
quem aparenta ter sido a principal vítima da evolução do regime.
C A P Í T U L O 2 3
699
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
O Macina
Como observamos nos capítulos 21 e 22, o final do século XVIII e o início
do século XIX são marcados, quase por toda a África Ocidental, pela emer-
gência de uma categoria social, até então dominada pelos sedentários, os fulbes
nômades. Após o século XV, o seu número não cessou de aumentar graças às
sucessivas ondas migratórias e, paralelamente, o seu peso econômico igualmente
não cessou de crescer, desde que o ouro deixou de ser o motor da economia no
Oeste africano.
Sucessivamente, no Futa Djalon e no Futa Toro, guiados pelas ideias de
justiça e igualdade do islã, eles se libertaram do domínio dos sedentários. Nos
primeiros anos do século XIX, o movimento ganhou as regiões haussas e, a partir
destas regiões, o Liptako e o Macina. Desde anteriormente, nos últimos anos
do século XVIII, sob o reinado do faama de Ségou, Ngolo Jara (Diarra) (1766-
-1790), uma primeira tentativa de emancipação dos fulbes do delta interno do
rio Níger se consumara em derrota
1
. Porém, foi sobretudo no início do século
1 Durante oito anos, Ngolo Jara travou uma guerra sem trégua contra os fulbes. Muitos se refugiaram
no Wasulu, conferir E. Mage, 1868, p. 401. Igualmente consultar L. Tauxier, 1942, p. 90. No que diz
respeito às datas dos reinos dos faama de Ségou, nós adotamos em geral aquelas propostas por L. Tauxier,
que delas faz um estudo crítico e comparado. Nós sabemos que todas estas datas não são senão muito
aproximativas.
O Macina e o Império Torodbe
(Tucolor) até 1878
Madina Ly -Tall
700
África do século XIX à década de 1880
XIX, com Da Monzon (1808 -1827), que a pressão bambara mostrou toda a
sua força no delta interior do rio Níger, criando uma situação de insegurança
para os fulbes.
A revolução islâmica muçulmana no Macina:
O reino de Seku Ahmadu (xeque Ahmad Lobbo)
Situação de insegurança dos fulbes, no delta interior do rio
Níger, no limiar do desencadeamento da revolução
Desde o reinado de Ngolo Jara, o poder de Ségou não cessou de expandir-
-se em direção a todas as regiões vizinhas. Sob Monzon Jara (1790 -1808), ele
manifestou -se até o Bundu (Boundou), no Oeste, e em país dogon, ao Leste
2
.
Com Da Monzon, as exações dos tonzon de Ségou nos acampamentos fulbes
somente aumentaram. Paralelamente, nos centros muçulmanos como Djenné
(Jenne), o islã perdera toda a sua vitalidade, em razão da sua acomodação a
práticas habituais e exigências do comércio
3
. Naquele período, desde a segunda
metade do século XVIII, os sucessos das revoluções islâmicas fulbes, no Futa
Djalon e no Futa Toro, haviam aberto novas perspectivas para toda a comuni-
dade islâmica da África do Oeste. Proximamente ao Macina, no Sokoto e no
Liptako, as chefaturas tradicionais recém haviam sido derrubadas, de 1804 a
1810. Numerosos fulbes do delta interior do Níger haviam participado deste
movimento. Aquando do seu retorno à sua terra de origem, eles contribuíram
para a difusão das novas ideias revolucionárias.
Os primórdios da revolução islâmica no delta interior do Níger
Entre 1815 e 1818, muitos marabutos tentaram explorar a atmosfera revolu-
cionária prevalecente no delta, para sacudir o jugo bambara. Foi primeiramente
um letrado, vindo de Sokoto em 1815, Ibn Sa‘īd, que logrou conquistar para a
sua causa toda a província do Gimballa. Entretanto, ele finalmente fracassaria
junto aos outros fulbes e sobretudo em meio aos tuaregues. Simultaneamente, no
Farimaka, outro marabuto, Ahmadu Alfaka Kujajo, pregava pela jihad. Todos se
2 L. Tauxier, 1942, p. 101. Em 1796, todos os países compreendidos entre o Níger, o Kaarta e o Bundu
foram devastados, os países mais próximos (Beledugu, Dedugu, Fuladugu) foram submetidos.
3 C. Monteil, 1932, pp. 52 a 54.
701
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
prevaleciam da fidelidade a ‘Uthmān dan Fodio
4
. Todavia, os dois candidatos de
maior sucesso foram Ahmadu Hammadi Bubu Sangare, de Runde Siru (xeque
Ahmad Lobbo), e al -Husayn Koyta, da província de Fittuga
5
. Justa e finalmente,
foi o primeiro que se impôs como chefe da jihad no Macina.
Seku Ahmadu, fundador da Diina do Macina
Nascido aproximadamente no ano 1773, em Malangal, na proncia do
Macina, ele era notável pela sua piedade, honestidade e humildade; qualidades
que o tornavam uma excelente liderança para outros homens. De modesta ori-
gem social, ele recebera uma formação teológica das mais ordinárias
6
. Foi em
idade avançada, por volta de vinte e dois anos, que ele começou a aprofundar
os seus conhecimentos junto a um grande místico de Djenné, Kabara Farma.
A sua reputação de santidade, bem como a sua pregação em favor do retorno a
um islã puro, rapidamente atraíram para si uma multidão de tālib (discípulos),
desde anteriormente conquistados para as ideias vindas de Sokoto. Em 1816,
ele solicitou a devoção a ‘Uthmān dan Fodio, que lhe enviou um estandarte,
concedendo -lhe o título de xeque
7
. Ele recebera de Sokoto, na mesma ocasião,
muitos livros de direito muçulmano
8
.
Foi justamente na forma de uma revolta, organizada por Seku Ahmadu
contra as exigências da dinastia dos ardo e dos seus aliados de Ségou, que o
movimento eclodiu em 1818
9
. O faama de Ségou, subestimando a amplitude
do movimento, solicitou a uma das suas colunas, em movimento no Gimballa
para uma operação policial, para que punisse, de passagem, o marabuto e os
seus partidários”
10
. A derrota da armada de Ségou em Nukuma (Noukouma)
provocou um reagrupamento da grande maioria dos fulbes, em torno daquele
4 H. Diallo, 1979, p. 138, e F. B. S. Diarah, 1982, pp. 97, 98
5 L. Diallo, 1979, p. 140.
6 F. B. S. Diarah, 1982, p. 84.
7 Este nome tornou -se, nas línguas oeste -africanas, Sheykhu, Saykhu ou Seeku, que nós escrevemos Seku,
para simplicar; de onde Seku Ahmadu, Sayku ‘Umar.
8 Segundo algumas fontes, ele recebeu quatro livros que tratavam do comando, do comportamento do
príncipe, das instruções em matéria de justiça e dos trechos difíceis do Alcorão; conferir H. Diallo, 1979,
p. 138. Além desta delidade do chefe do jihad de Sokoto, ao menos inicialmente, Seku Ahmadu foi
fortemente favorecido pela manipulação que ele impôs ao Ta ‘rikh al -Fattāsh, para se fazer passar pelo
décimo segundo califa, cuja chegada fora predita por Askiya Muhammad, aquando da sua peregrinação
à Meca (consultar M. Ly -Tall, 1972). A crença das populações oprimidas do século XIX em um madhī
já fora bem explorada por ‘Uthmān dan Fodio no país haussa.
9 Consultar A. Hampaté Bâ e J. Daget, 1962, pp. 29 -31.
10 C. Monteil, 1932, p. 103.
702
África do século XIX à década de 1880
 . As páginas iniciais de al -Idtirar, supostamente o único livro escrito por Seku Ahmadu (xeque
Ahmad Lobbo). [Foto: A. Batran.]
que desde então figurava como protetor contra a tirania bambara. Paralelamente,
os marabutos de Djenné, os quais haviam desde a abordagem demonstrado
grande hostilidade por Seku Ahmadu, foram reduzidos, em 1819, após um
longo cerco. Os fulbes converteram -se em massa e, muito rapidamente, graças
a um excepcional espírito de organização, o Macina impôs -se como um potente
Estado muçulmano, às portas de Ségou. A guerra foi implacável entre os dois
vizinhos, sob o reinado de Da Monzon. Ela ainda estava muito viva em março
de 1828, quando René Caillié chegou a Djenné: “Ségo -Ahmadou, chefe do país
de Jenné, ainda mantém um combate muito acirrado com os bambaras de Ségo
que ele pretendia aliar sob o estandarte do Profeta; todavia, estes bambaras são
belicosos e lhe demonstram resistência
11
.”
11 R. Caillié, 1830, tomo II, p. 214.
703
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
A guerra não foi interrompida senão muito após a passagem do viajante
francês, em consequência do esgotamento dos combatentes, provocado por uma
grande penúria na região
12
. Os bambaras finalmente renderam -se à evidência
e aceitaram a ideia da presença, em suas fronteiras, de um Estado muçulmano.
Mas Seku Ahmadu teria que enfrentar outra resistência mais insidiosa, refe-
rente aos fulbes do Fittuga, onde outro marabuto, al -Husayn Koita, dirigia um
movimento que também tinha como vocação o lançamento de uma jihad no
delta interior do rio Níger. Situado na rota que ligava Tombuctu a Guandu, o
Fittuga tinha capital importância comercial, a um tempo, para os kunta e
para Sokoto. Muhammad Bello, o sucessor de ‘Uthmān dan Fodio, apoiava com
tamanha intensidade o movimento de al -Husayn Koita, que Seku Ahmadu,
por sua vez, tirou proveito da crise de sucessão, advinda de modo explosivo no
imediato posterior ao desaparecimento de Uthmān dan Fodio, para romper a
obediência a Sokoto. O Fittuga, apoiado pelos kunta e por Muhammad Bello,
resistiu a Seku Ahmadu, até 1823, data em que ele foi reduzido e o seu chefe
executado
13
. A via estaria aberta, doravante, para a conquista de Tombuctu.
Desde o desmembramento do Império Songhai, nenhum poder político se
impusera de modo durável em Tombuctu. Submetida ora à influência dos arma,
ora àquela dos bambaras ou tuaregues, Tombuctu lograra manter a prosperidade
do seu comércio graças à proteção dos kunta, “tribo moura” que se impusera na
segunda metade do século XVIII. Finos comerciantes, eles se haviam tornado
os protetores de todas as estradas que religavam as diferentes regiões do Saara
a Tombuctu. Eles se beneficiavam, concomitantemente, de grande autoridade
religiosa, em toda a região, desde quando um dos seus, Muhammad al -Mukhtar
al Kuntī (1729/1730 -1811), ali introduzira, no início do século XIX, a confraria
Kadirīyya. O seu neto al -Mukhtar al -Saghīr, após o chamado dos comerciantes
e chefes políticos de Tombuctu, foi ao socorro, em 1826, da célebre metrópole
invadida pelas tropas do Macina:
Em 1826, os fulbes do Macina dominaram Tombuctu e, prática e definitivamente,
arruinaram o seu comércio, enquanto as exações dos conquistadores estendiam -se
não somente sobre a população idólatra (mandingue, mossi, sonrhai), mas, igual-
mente, sobre os correligionários mercadores do Touat e de Gadamès. Estes últimos,
considerando -se oprimidos, promoveram a vinda, de Azaouad, do xeque El -Mou-
12 L. Faidherbe, 1863, p. 11.
13 H. Diallo, 1979, pp. 138 -142.
704
África do século XIX à década de 1880
chtar, irmão mais velho de El -Bekhay, da tribo dos kunta, homem muito influente
junto às populações berberes, e confiaram -lhe os seus interesses
14
.
O xeque kunta não logrou impedir a conquista da cidade e a sua ocupação
por uma organização militar, até a morte de Seku Ahmadu
15
. No imediato pos-
terior a este desaparecimento, em 1845, a autoridade do Macina estendeu -se
de Djenné até Tombuctu, assim como da região de Nampala ao país dogon
16
.
Em vinte e cinco anos de reinado, Seku Ahmadu igualmente dotou o novo
Estado teocrático, apelidado diina (a religião), de sólidas estruturas religiosas e
administrativas.
As instituições da diina
Como no Futa Djalon, no Futa Toro e nas regiões haussas, a lei islâmica regia
todos os setores vitais do Estado. Um grande conselho de quarenta membros,
designados por Seku Ahmadu, concedia -lhe assistência em todas as esferas do
exercício do poder. Para ser membro desta ilustre assembleia, era necessário ser
casado, ter uma vida irrepreensível, gozar de uma boa cultura e ter quarenta anos.
Dois dentre estes grandes conselheiros constituíam um conselho restrito, junto
a Seku Ahmadu, com o qual examinavam todos os assuntos do Estado, antes
de submetê -los ao grande conselho.
A justiça era invariavelmente exercida em primeira instância, pelos kādī. A
organização judiciária suprema era, teoricamente, o grande conselho; entretanto,
decorridos os primeiros anos durante os quais ele não lograra invariavelmente
manter o seu poder junto a alguns velhos marabutos, mais instruídos que ele
17
,
Seku Ahmadu finalmente conquistou o apoio do grande conselho para todas
as suas posições. Diversas anedotas, reportadas por A. Hampaté e J. Daget,
tendem a mostrar que Seku Ahmadu não respeitava invariavelmente as insti-
tuições relativamente democráticas, por ele próprio estabelecidas. Ele se opôs,
notadamente e de modo muito incisivo, à abolição das castas, decidida pelo
grande conselho:
Os marabutos do grande conselho, baseados no versículo corânico: “todos os crentes
são irmãos”, haviam demandado a abolição das castas. No dia seguinte, Seku Ahmadu
14 J. Ancelle, 1887, p. 114; conferir também H. Barth, 1863, vol. IV, pp. 32 -33; P. Marty, 1920 -1921, vol.
I, p. 75; A. Raenel, 1856, vol. II, pp. 352 -353.
15 L. Faidherbe, 1863, p. 11; M. Delafosse, 1972, vol. II, pp. 236 -239.
16 M. Delafosse, 1972, vol. II, pp. 236 -237; igualmente consultar L. Faidherbe, 1863, p. 51.
17 A. Hampaté Bâ e J. Dage, 1962, p. 62.
705
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
 . O Macina em seu apogeu, 1830 (segundo M. Ly -Tall).
706
África do século XIX à década de 1880
ordenou o preparo de lagartos, rãs, peixes, frangos e carneiros, tudo ao mesmo tempo.
Ele apresentou o prato aos marabutos e convidou -os a comerem. “Como, indagaram
eles, tu queres nos fazer experimentar tal mistura?” Entre estas carnes, haveria ao
menos uma que seria proibida pelo Corão” replicou Sekou Ahmadu. Não. Entre-
tanto, embora o Livro não o proíba, ele nos desaconselha a comermos lagarto e rãs,
bem como a misturarmos estas carnes com aquelas que temos o hábito de consumir”.
“Igualmente, embora o Livro não proíba, ele repugna misturar os nobres e os indi-
víduos de casta, assim como suprimir a barreira através da qual nós temos o hábito
de separá -los”
18
.
As saões eram muito severas. Ahmadu -Hammadi Samba -Bukari, diz
Hambarke Samatata, que desempenhava o ofício de representante do ministé-
rio público, era de um rigor implacável: “Ele sempre tinha ao alcance das suas
mãos o seu livro de jurisprudência, o seu Alcorão, o seu sabre e o seu chicote.
Durante todo o tempo de permanência da diina em Nukuma, ele fazia a justiça
in loco e executava, ele próprio, a imediata sentença
19
.”
Com o mesmo rigor, impostos e taxas eram cobrados por funcionários par-
cialmente remunerados com o fruto do seu trabalho. Além das obrigações ordi-
nárias previstas pelo islã (zakāt, muddu, usuru), o grande conselho instituiu o
paabe, ou esforço de guerra, para aqueles que não podiam dela participar fisi-
camente e para os camponeses vencidos e não islamizados
20
. Ademais, grandes
superfícies eram cultivadas por cativos, em prol da diina. A província do Macina
produzia muito arroz, painço e legumes diversos
21
.
Em contrapartida, o comércio sofreu sobremaneira com o constante estado
de guerra mantido com os vizinhos bambaras. Djenné, a grande metrópole
comercial da região, não mais se relacionava com o Bure (Bouré) e os seus mer-
cados estavam dizimados pelos mouros:
Esta guerra traz muito prejuízo ao comércio de Jenné, porque ela intercepta toda
espécie de comunicação com Yamina e Sansanding, Bamako e Bouré, de onde é
retirado o ouro que circula em todo o interior [...]. Os mercadores e negociantes de
Jenné sofrem muito com esta guerra, porém eles temeriam reclamar abertamente;
eu creio, inclusive, que eles não ganhariam nada com isso. Muitos Negros disseram-
18 A. Hampaté e J. Daget, 1962, pp. 67 -68. Sobre o caráter frequentemente pessoal do poder de Seku
Ahmadu, consultar igualmente C. Monteil, 1932, p. 108 e pp. 112 -113.
19 A. Hampaté Bâ e J. Daget, 1962, p. 65.
20 Ibid., p. 67 e 280.
21 R. Caillié, 1830, vol. II, pp. 217 -128.
707
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
 . Ruínas de uma torre de defesa do tatá [fortaleza] de Hamdallahi. [Foto: Institut fondamental
d’Afrique noire (IFAN), Dakar.]
-me que, desde que ela eclodiu, os mouros desertavam desta posição comercial para
dirigirem -se a Sansanding
22
.
Administrativamente, o país foi dividido em cinco províncias militares, con-
fiadas a parentes ou fiéis discípulos. No Jenneri, ‘Uthmān Bukhari Hamma-
dun Sangare, o seu primeiro discípulo, devia vigiar o tráfico no rio Níger e na
fronteira entre o Níger e o Bani; ele portava o titulo de amiiru -manngal
23
. De
Tenenku, o chefe da província do Macina, Bori Hamsala, sobrinho de Seku
Ahmadu, devia zelar pela fronteira ocidental. O chefe de Fakala, Alfaa Samaba
Fuuta, era encarregado de vigiar a margem direita do rio Bani. Finalmente, o
chefes do Haïre, do Nabbe e Dunde, deviam respectivamente guardar as fron-
teiras orientais e a região dos Lagos.
A nova capital, Hamdallahi, criada em 1820, era a sede do poder central.
Nukuma, situada em plena zona natural de inundações era muito vulnerável
durante a estação das águas. Seku Ahmadu preferiu instalá -la em um sítio mais
defensivo, a 25 quilômetros ao Sul/Sudeste da atual cidade de Mopti, em uma zona
de contato, intermediária entre as terras inundáveis e as terras secas. Os trabalhos
22 Ibid., pp. 214 -215.
23 Tratava -se do general em chefe da armada.
708
África do século XIX à década de 1880
durariam 3 anos. A mesquita, construída por pedreiros de Djen, e o palácio de
Seku Ahmadu eram os monumentos mais imponentes do lugar. A cidade popular,
composta por aproximadamente vinte e oito bairros, era cercada por um muro
fortificado atravessado por quatro portas. O serviço policial era garantido por
setes marabutos assistidos por um grande número de cavaleiros que, em pequenos
grupos, faziam a ronda nestes bairros. A cidade era reputada como limpa
24
.
A vida em Hamdallahi era organizada por uma enorme austeridade. A utili-
zação do tempo das diferentes categorias da sociedade era rigorosamente regu-
lamentada. Após as orações da noite, por exemplo, qualquer pessoa encontrada
na rua era obrigada a apresentar a sua identidade e, caso fosse casada, ela teria
que comparecer perante a justiça. Na cidade, os cavaleiros não podiam, sob pena
de graves sanções, lançar o olhar em direção ao interior das habitações que eles
percorriam; as viúvas, jovem ou idosas, deveriam ser enclausuradas para evitar
que os velhos rememorassem a sua juventude, etc.
A obra -prima de Seku Ahmadu foi, incontestavelmente, um esforço empre-
endido para sedentarizar os fulbes. Além de Hamdallahi, ele promoveu a
construção de numerosas cidades, baseadas na plantação e no pastoreio. Esta
última atividade, como era imaginada, reteve toda a atenção dos organizadores.
As pastagens e o trânsito humano foram minuciosamente regulamentados.
Encontrava -se igualmente um tipo de organização paramilitar
25
.
Todas estas instituões não trouxeram os seus frutos senão sob Ahmadu -Seku.
O reinado de Ahmadu: 1845 ‑1853
Este reino era considerado no Macina como o mais calmo e próspero, em
oposição àquele do seu pai, repleto de guerras, assim como àquele do seu filho,
profundamente marcado pelo conflito com Sayku ‘Umar (al -Hadjdj ‘Umar)
26
.
Entretanto, não foram fáceis os primeiros tempos deste reino. As primeiras difi-
culdades surgiram no momento da sucessão. Seku Ahmadu morreu no dia 19 de
março de 1845. Segundo a tradição do Macina, os únicos critérios observados,
em princípio, no tocante à nomeação de um novo chefe da diina, eram a ciência
e a devoção. Se os partidários de uma sucessão dinástica em favor da família
de Seku Ahmadu puderam, por sua vez, acalmar os apetites do seu sobrinho
Balobbo, concedendo -lhe o posto de general -chefe do exército, por outro lado,
24 A. Hampaté Bâ e J. Daget, 1962, pp. 43 -50; referir -se igualmente a F. B. S. Diarah, 1982, pp. 122 -139.
25 A. Hampaté Bâ e J. Daget, 1962, pp. 81 -103; conferir igualmente N. Waïgalo, 1977, pp. 8 e 9.
26 I. Barry, 1975, pp. 24 -25.
709
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
 . Sepultura de Seku Ahmadu em Hamdallahi. [Foto: Institut fondamental d’Afrique noire
(IFAN), Dakar.]
restavam outras pessoas, como Alfaa Nuhum Tayru e al -Hadjdj Modi Seydu,
que não eram da família do falecido chefe, mas, no entanto, melhor cumpriam as
condições exigidas, comparativamente ao primogênito deste último
27
. A nome-
ação de Ahmadu -Seku não deixaria de provocar certo mal -estar.
O rigor da diina tornava -se de mais e mais intolerável para os jovens. Do
mesmo modo, assim que o novo chefe manifestou as suas intenções de prosse-
guir, sem modificar em nada, a política do seu pai, panfletos foram cantados em
toda Hamdallahi, contra estes velhos marabutos de turbante, sempre prontos a
levarem à estrita aplicação das leis islâmicas, sem a menor indulgência”
28
.
A estas dificuldades internas acrescentou -se, desde o anúncio da morte de
Seku Ahmadu, o levante dos bambaras do Saro e dos tuaregues da região de
Tombuctu: quando anunciou -se a morte de Seku Ahmadu, enquanto o Macina
sofria, tambores felizes ecoavam nas regiões bambaras e os próprios tuaregues,
27 Ibid., p. 15.
28 Ibid., p. 21; consultar igualmente A. Hampaté e J. Danget, 1962, p. 259.
710
África do século XIX à década de 1880
precisamente aqueles do lago de Gossi, imediatamente organizaram festejos para
agradecer aos céus por -los livrado do seu mais temido inimigo”
29
.
Se a repressão em Saro, região de origem da mãe de Balobbo, jamais fora
demasiado violenta contra os tuaregues, em contrapartida, ela foi empreendida
com a maior energia pelo próprio Balobbo, que, dizia -se, pretendia aproveitar
esta ocasião para provar ao grande conselho que este se enganara, ao preterir -lhe
em prol do seu primo
30
.
Tirando proveito da crise de sucessão em Hamdallahi, os tuaregues da região
de Tombuctu se haviam livrado de Sansirfi que ali representava o poder central;
eles haviam inclusive proclamado a sua independência. Desde o início do ano
1846, Balobbo marchou contra eles. Atacados de surpresa, eles foram retalhados
em pedaços pelos lanceiros fulbes, nas proximidades do lago de Gossi. Eles soli-
citaram a intercessão da família Kunta em seu favor. Com a morte do xeque Sīdī
al -Mukhtar, pouco após o falecimento de Seku Ahmadu, foi o seu irmão, o xeque
Sīdī al -Bekkaay que esteve à frente das negociações com o Macina. Ilegalmente
promovido ao título de xeque al -Kuntī, Sīdī al -Bekkaay decidira realizar todos os
esforços com o objetivo de assumir a efetiva direção dos assuntos de Tombuctu
31
.
Malgrado a oposição dos chefes de Hamdallahi, ele ali esteve em 1847; Sīdī
al -Bekkaay logrou obter a dissolução da guarnição militar de Tombuctu; porém
ele não conseguiu evitar a retorno de Sansirfi ao seu posto. Após os tuaregues, os
bambaras de Monimpe representaram o segundo alvo prioritário de Hamdallahi,
sob Ahmadu -Seku. Os derradeiros anos deste reinado foram todavia assaz tran-
quilos e, em seu conjunto, aliando a um tempo firmeza e diplomacia, o sucessor
de Seku Ahmadu logrou manter intactas as fronteiras do reino e estabelecer um
certo entendimento em seu interior. No momento da sua morte, em fevereiro de
1853, as dificuldades tanto internas quanto externas ressurgiram, amplificadas.
Ahmadu ‑Ahmadu, último rei do Macina: 1853 ‑1862
Este reinado iniciou -se com uma grande crise sucessória, confrontando os
diferentes membros da família de Seku Ahmadu. Fora estabelecido o hábito de
escolher o chefe da diina junto aos descendentes de Seku Ahmadu. Balobbo, à
29 I. Barry, 1975, p. 21.
30 A. Hampaté Bâ e J. Danget, 1962, pp. 259, 266 -267.
31 Ele recém -afastara o seu irmão mais velho, xeque Sīdī Hammada, do título de xeque al -Kuntī, destinado
de direito a este último. Barth, que todavia era seu amigo, identicaria entre os traços de caráter de Sīdī
al -Bekaaya o fato de ele não hesitar em empregar todos os meios para alcançar os seus objetivos (H.
Barth, 1863, vol. IV, p[p]. 86 -87); conferir igualmente A. Hampaté Bâ e J. Daget, 1962, p. 274).
711
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
época certamente gozando de prestígio como chefe militar, tinha consciência da
sua incapacidade em preencher todas as condições da escolha, notadamente em
referência à erudição. Ele então conspirou com o jovem Ahmadu -Ahmadu, filho
do falecido
32
, alcançando convencê -lo a nomeá -lo para a suprema magistratura
e esperando mantê -lo sob tutela
33
, lançando assim os germes da discórdia no
Macina. O candidato que preenchia todas as condições para se eleito, Abdullahi-
-Seku, irmão do falecido, não se deu por vencido:
Ele decidiu, com o apoio dos kunta, das armadas do Kunari e do Haïre, marchar
em direção a Hamdallahi, por ele cercada. A capital dividiu -se entre partidários de
Ahmadu -Ahmadu e de Abdulaye -Seku. A emoção era viva. O choque podia acon-
tecer a qualquer momento; o pior foi evitado graças à intervenção da anciã Adya
junto ao seu filho Abdulaye - Seku
34
.
Entretanto, a partir deste momento, o Macina estaria dividido em partes
inimigas, em guerra não declarada
35
.
O reinado de Ahmadu -Ahmadu não produziu senão o agravamento destas
divisões. Ele não possuía nem a cultura e tampouco a envergadura política
dos seus antecessores. Desde a sua chegada ao poder, ele provocou profundas
reviravoltas nos próprios fundamentos da diina: os veneráveis marabutos foram
substituídos por jovens da sua idade e os hábitos foram liberalizados
36
. Quarenta
anos após a fundação da diina, informa -nos Ibrahima Barry, o entusiasmo se
dissolvera, as rivalidades, as mesquinharias e os interesses pessoais estariam
novamente à frente”
37
. Este mesmo autor reporta -nos uma anedota assaz sig-
nificativa, relativa à atmosfera reinante em meio à classe dirigente do Macina:
um dos membros do complô de Balobbo, detido por Sayku ‘Umar, confidenciou
um dia ao seu carcereiro que dele debochava, independentemente da pena à
qual eu for submetido [ele seria condenado à morte], eu a prefiro ao comando
do pequeno”. O pequeno era Ahmadu -Ahmadu
38
.
32 A sua idade varia entre dezoito e vinte e quatro anos, segundo os informadores.
33 A. Hampa Bâ e J. Daget, 1962, p. 286. Consultar também I. Barry, 1975, pp. 29 -30; N. Waïgalo, 1977, pp. 1 -2.
34 Tratava -se igualmente da mãe do morto e da avó de d’Ahmadu -Ahmadu. Ela deixava entrever uma
preferência pelo seu neto.
35 N. Waïgalo, 1977, p. 2.
36 I. Barry, 1975, pp. 32, 36, 38 -41; N. Waïgalo, 1977, p. 34. Igualmente consultar F. B. S. Diarah, 1982, pp.
321 -332.
37 I. Barry, 1975, p. 42.
38 Ibid. Acerca das divisões internas do Macina sob o reinado de Ahmadu -Ahmadu, também conferir E.
Mage, 1868, p. 263; al -Hajj ‘Umar, 1983, pp. 52 -53.
712
África do século XIX à década de 1880
Compreende -se facilmente que ao Macina, minado pelas suas divisões inter-
nas, não lhe tenha sido possível opor resistência eficaz ao movimento de Sayku
‘Umar.
O Império Torodbe (Tucolor)
No Sudão Ocidental, como no Sudão Central, o tráfico negreiro, ao abalar os
tradicionais fundamentos da sociedade, criou uma situação de crise constante e
favoreceu o quase generalizado surgimento de Estados que somente sobreviviam
graças ao comércio de escravos. No Futa Djalon, no Futa Toro, em Sokoto e no
Macina, regiões onde a comunidade muçulmana possuía relativa importância,
a reação do islã a este estado de coisas revestiu -se do caráter de uma revolução
nacional, dirigida pela etnia mais oprimida da época, os fulbes. A escravatura
não foi suprimida, embora tenha sido regulamentada por um texto jurídico,
o Alcorão. Ao Oeste do Níger, entre o Macina, o Futa Djalon e o Futa Toro,
uma quantidade dispersa de pequenos Estados, mais ou menos dependentes de
Ségou ou do Kaarta, ainda escapavam à lei islâmica. Fragmentados e em meio
a divisões internas, não lhes seria possível opor resistência eficaz ao proselitismo
combatente de uma jovem confraria islâmica, a Tijāniyya
39
.
A jihad de al ‑Hadjdj ‘Umar e o nascimento do
império muçulmano de Ségou, 1852 ‑1864
Após o sucesso do século XVIII e do início do século XIX, a islamização
encontrava -se em relativa estagnação quase por toda parte. As novas teocracias
haviam igualmente sido sacudidas pelas crises de sucessão às quais é necessário
acrescentar, no tocante ao Sudão Ocidental, o perigo representado pela potência
francesa, resoluta adversária da revolução muçulmana. Assim sendo, no Futa
Toro, durante a primeira metade do século XIX, o islã também estava ameaçado
internamente, tanto a Leste quanto Oeste. O movimento de Sayku ‘Umar foi
uma resposta a esta situação.
39 Do nome do seu fundador Ahmad al -Tijāni (1737 -1815), esta confraria nasceu no Sul argelino, apro-
ximadamente em 1782. Ela se expandiu muito rapidamente em toda a África do Norte, especialmente
no Marrocos, onde a Zāwiya de Fez tornou -se o mais importante centro. Ela se diferenciava das outras
confrarias pelo seu caráter relativamente mais liberal e pela simplicidade dos seus princípios de base.
Foi através dos Idawa ‘li que ela foi introduzida pela primeira vez no Sul do Saara; entretanto, ela não
conheceria uma maior difusão nesta região senão através de Sayku ‘Umar.
713
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
Os traços gerais da vida de ‘Umar Saydu
‘Umar Saydu (al -Hadjdj ‘Umar) nasceu aproximadamente no ano de 1796
40
,
em Halwar, no Toro, a mais próxima província da colônia francesa de Saint-
-Louis. Oriundo de uma família que participara ativamente da grande revolu-
ção islâmica no final do século XVIII, toda a sua infância repousa na cultura
islâmica. A sua excepcional inteligência e a sua perspicácia fazem -lhe assimilar
e muito precocemente aprofundar todas as ciências islâmicas. Ele tardou em
rejeitar a velha confraria Kadirīyya
41
, consequentemente à qual se haviam criado,
de modo quase generalizado na Senegâmbia, verdadeiros feudos marabutos.
Iniciado na jovem confraria tijāni, ele deixou o Futa em 1826 para investigar a
fundo, diretamente na fonte, os princípios da sua nova confraria. Ele retornaria
à sua localidade natal somente no início 1847
42
.
Vinte anos de viagem, dos quais três em lugares santos do islã, proporcionaram-
-lhe um saber único na África negra desta época e uma grande experiência, tanto
no tocante aos países muçulmanos percorridos, quanto em relação aos Estados
não islâmicos visitados. Ele retornou com o título de califa da Tijāniyya
43
, com
a missão de concluir o processo de conversão da África negra ao islã.
Em Sokoto, onde permaneceria de 1830 a 1838
44
, ele adquiriu junto a
Muhammad Bello conhecimentos sobre a guerra santa. A sua vasta cultura e a
sua forte personalidade transformaram -lhe em um dos personagens mais impor-
tantes do Estado muçulmano de Sokoto. Em 1838, convocado pelos seus, ele se
dirigiria ao seu país. O Futa Toro, enfraquecido pelas intervenções sempre mais
frequentes dos franceses e pelas incursões periódicas dos massassi nas províncias
orientais, não mais podia representar uma base sólida para o lançamento de
uma jihad. ‘Umar fixou -se portanto no Futa Djalon, onde a Tijāniyya contava
com numerosos adeptos e na qual, no próprio seio da Kadirīyya, ele sabia que
poderia contar com o apoio dos alfaayaa, muçulmanos integralistas e fervorosos
40 As tradições do Futa sugerem o seu nascimento na véspera da batalha de Bungowi, travada em 1796
pelo Almami Abdul -Kadri para converter ao islã o damel do Kayor, Amari Ngone Ndella. Justamente,
foi o eminente nascimento de ‘Umar que impediu o seu pai Saydu ‘Uthman, um dos condiscípulos de
Sulaymān Bal, de participar desta batalha. Consultar, entre outros, M. Kamara, 1975, p. 154, e F. Dumont,
1974, p. 4.
41 A kadirīyya é uma das mais antigas confrarias ao Sul do Saara, onde foi introduzida pelos kunta.
42 F. Carrère e P. Holle, 1855, p. 194.
43 Em outros termos, o comandante supremo da confraria para o país dos negros.
44 Estas são as datas consagradas pelos historiadores da Universidade Ahmadu Bello, em Zaria (Nigéria),
após uma correspondência de 24 de dezembro de chefe de departamento da época, Mahdī Adamu.
714
África do século XIX à década de 1880
partidários de um islamismo combatente
45
. Malgrado a hostilidade do partido
soriyaa, no poder à época, Sayku ‘Umar fez de Jegunko a primeira base para as
suas operações; recrutamentos e compra de armas intensificaram -se. Paralela-
mente, ele conclui, através da sua mais célebre obra, o Rimah, o instrumento
ideológico da sua ação
46
. Em seu retorno da campanha de esclarecimentos e
recrutamento no Futa Toro, em 1847, ele acelera os preparativos e transfere a
sua capital para Dinguiraye, em região jalonke, cujo chefe Gimba Sakho não
tardaria em arrepender -se por ter -lhe concedido asilo. Todavia, convencido da
sua superioridade militar, Gimba Sakho lançou as suas tropas contra Dingui-
raye. Ele foi expulso e, após vários sucessos em pequenas localidades vizinhas,
os mudjāhidūn
47
dominaram, em 1852, a temida fortaleza de Tamba, a capital
do país jalonke.
O desencadeamento da jihad
Vindos da região de Ségou, os massassi fundaram, entre meados do século
XVIII e o século XIX, um Estado cuja influência manifestou -se do Bakhunu
(Bakhounou) até Gajaga.
A sua potência assentava -se sobre um temido exército profissional, essencial-
mente composto de cativos da Coroa, devotos de corpo e alma aos seus mestres.
Sempre em primeira linha, eram eles os encarregados de abrirem brechas nos
campos inimigos. O chefe desta força militar desempenhava um papel proe-
minente na corte do faama
48
, sobretudo por ocasião das mudanças de reinado.
Era ele quem dirigia todos os assuntos do país, entre a morte de um faama e a
ascensão do presumido herdeiro
49
. O segundo elemento que conferia este poder
às tropas do Kaarta, foi justamente a sua cavalaria montada quase que exclusi-
vamente por massassi. Finalmente, um certo domínio na fabricação da pólvora
fazia desta armada uma das mais temidas do alto Senegal.
45 Conferir Tal, al Hajj ‘Umar, sem datação b, T. Diallo, 1972, pp. 37, 38, 148 a 150. Os soriyaa, contra-
riamente, originados do chefe militar Ibrahima Sori -Mawdo, que deveu a sua entronização somente à
pressão exercida pelos jalonke e fulbes sobre o novo Estado, aqueles eram mais políticos que religiosos.
46 Ele desenvolve, em uma linguagem simples que o coloca ao alcance dos seus compatriotas, as principais
teses da Tijāniyya, enriquecidas pela sua experiência pessoal e pelos comentários de numerosos sábios
desta nova confraria. Recopiado em numerosos exemplares, ele foi difundido em toda a África subsaa-
riana e mesmo além dela. F. Dumont (1974, pp. 64 -75) diz -nos que o Rimah é ainda atualmente “o livro
por excelência dos letrados tijāni, do mais modesto marabuto ao mais elevado guia”.
47 Nome no islã atribuído aos combatentes da fé.
48 Trata -se do título que portavam os reis bambaras.
49 A. Raenel, 1856, vol. I, p. 387.
715
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
O poder era organizado em uma espécie de monarquia absoluta, com suces-
são em linha colateral no seio da família Kurubari (Kulibali). Uma justiça rápida
e severa finalmente concedia a este Estado uma grande eficiência de intervenção,
ao passo que, através de um criterioso sistema endogâmico, os massassi fortale-
ciam a sua potência graças a alianças matrimoniais devidamente planejadas.
Muito rapidamente, eles se haviam tornado os grandes árbitros de todos os
conflitos da Senegâmbia
50
. O seu apoio era frequentemente requerido para regular
as controvérsias que opunham um país a outro, estado de coisas que lhe permitia
realizar frutuosas incursões. Muito mais bem formados na arte da guerra, compa-
rativamente aos seus vizinhos, eles extraíam, em suplemento e graças a estes ser-
viços prestados, um pesado imposto. Deste modo, uma a uma, todas as pequenas
chefaturas da região, o Bundu, o Xaso e o Gajaga, foram desestabilizadas. A sua
pressão era notável até nas províncias orientais do Futa Toro
51
.
Assim prosseguiu a situação aa guerra civil que eclodiu, em 1843, no
Kaarta, entre massassi e jawara (diawara). Quando eles chegaram à região, apro-
ximadamente em meados do século XVIII, os primeiros comportaram -se como
protetores dos segundos, os quais haviam sido encontrados in loco. Porém, uma
vez à frente do país, eles não tardariam em comportarem -se como verdadeiros
mestres, expulsando os jawara em direção ao Sul e impondo -lhes, doravante,
pesados impostos e toda espécie de humilhações
52
. Em 1843, os jawara, expulsos
da sua capital Nioro, revoltaram -se e mergulharam o Kaarta em uma guerra civil
que duraria sete anos. Os massassi ganharam a guerra em 1850; no entanto,
estariam desde então enfraquecidos e divididos
53
.
Os massassi do Oeste (aqueles da região de Koniakary) não haviam aceitado
participar da guerra contra os jawara, segundo eles, declarada por Mamadi Kan-
dia, o último rei kurubari, por razões pessoais
54
. Após a tomada de Koniakary,
os massassi reuniram -se em Yeliman, no mês de fevereiro de 1855, constituindo
50 A. Hampaté Bâ, gravações dos dias 10 e 11 de fevereiro de 1982. Referir -se igualmente a F. Carrère e
P. Holle, 1855, p. 181; e a E. Mage, 1980, p. 97.
51 Os escravos, capturados aquando destas guerras e invasões, eram vendidos às autoridades de Saint -Louis
ou da Gâmbia, das quais eles se haviam tornado os grandes fornecedores.
52 A. Raenel, 1846, pp. 298 -301, e 1856, vol. I, p. 337.
53 A. Hampaté Bâ, gravações dos dias 10, 11 e 15 de fevereiro de 1982; F. Carrère e P. Holle, 1855, p. 184.
54 O pretexto para o conito foi o assassinato de um príncipe jawara pelo lho de Mamadi Kandia. Porém, a
mais profunda razão era que os jawara não mais suportavam a dominação bambara, tornada insuportável
(arrogância, tributos exorbitantes e, além disso tudo, a sua expulsão de Nioro), segundo o jeli bambara
reportado por D. S. Diallo, 1977, p. 10.
716
África do século XIX à década de 1880
a entrada triunfal dos mudjāhidūn em Nioro. As regras do islã foram impostas
aos massassi.
Eles suportaram em seu cotidiano tamanhas reviravoltas que revoltas não
tardariam a explodir de modo quase generalizado, mantendo as tropas muçul-
manas em alerta até 1856. A repressão foi de extrema violência; o Mamadi Kan-
diae e grande número de massassi foram aniquilados. Aqueles que escaparam
refugiaram -se nas fronteiras de Ségou.
Sayku ‘Umar deixou a província sob a direção de Alfaa ‘Umar Ceerno Baylaa
e dirigiu -se rumo ao Khasso que os franceses haviam retirado da sua esfera de
influência e onde haviam criado uma confederação dirigida pelo seu amigo
Diouka Sambala, de Medina. O cerco desta cidade foi o mais difícil dentre os
enfrentados pela armada muçulmana. Em que pese uma artilharia que a des-
pedaçava, ela resistiu com uma disposição de tal ordem que gerou a admiração
dos seus adversários. O desafio era relevante. Tratava -se, no que tange aos fuu-
tanke, de devolver muitos anos de humilhação e vexações impostas pela nova
política francesa praticada no Senegal. Não foi obra do acaso que o general de
maior destaque em Medina tenha sido Mamadou Kuro, o chefe da localidade
de Ngano, destruída pelas tropas francesas em 1854.
Toda a base ideológica da jihad repousava sobre a proteção divina; compreende-
-se, por conseguinte, que os discípulos de Sayku ‘Umar, Mohammadou Aliou
Tyam e Ceerno Abdul
55
, tenham ensaiado justificar a derrota de Medina pela
indisciplina dos tālib ou pelo fato do seu xeque não ter recebido a missão de
combater os brancos. A duração do cerco, os sucessivos reforços encaminha-
dos a Medina e a raiva demonstrada pelos mudjāhidūn durante os combates,
demonstram perfeitamente a concordância do xeque. Inclusive, nos primeiros
relatos dos quais dispomos sobre a batalha, em momento algum referência de
quaisquer reservas de Sayku ‘Umar, acerca do desencadeamento do conflito. Em
contrapartida, sabemos que Mohammadou Aliou Tyam teve, ao longo de toda
a sua obra, a preocupação de justificar todas as derrotas da armada muçulmana
pela indisciplina dos tālib
56
. O cerco durou três meses e a situação dos sitiados
era quase desesperadora, quando uma alta inesperada das águas permitiu a Fai-
dherbe, ele próprio, vir desbloquear a fortaleza, em 18 de julho de 1857.
O Futa perdeu, em Medina, muitos dos seus filhos, dentre os quais, os
melhores. Fora dada a prova que os franceses se haviam tornado os senhores
da Senegâmbia. Para recompor as suas forças, Sayku ‘Umar prosseguiu a sua
55 Trata -se do principal informador de E. Mage sobre a vida de Sayku ‘Umar.
56 As atuais tradições, pelas mesmas razões, não fazem senão retomar esta versão.
717
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
 . Império Torodbe em seu apogeu (segundo M. Ly -Tall).
718
África do século XIX à década de 1880
marcha rumo ao Bundu e ao Futa. Por toda parte, ele exortou as populações
a recusarem a coabitação com os brancos, emigrando rumo ao novo Estado
muçulmano por ele recém -fundado no Leste. Desde então, produziu -se a luta
sem piedade contra os franceses, em Ndium -du -Ferlo (fevereiro de 1858), em
Matam (abril de 1859), bem como em Arundu (Arundou) e Gemu (Gémou)
(outubro de 1859).
Acompanhado de uma força avaliada em ao menos 40.000 indivíduos, por
ele trazidos do Futa em julho de 1859
57
, que a luta contra os franceses não tenha
sido a missão primordial assumida por Sayku ‘Umar, quanto a isso não resta
dúvida alguma; porém malgrado uma consciência muito nítida da superioridade
do seu armamento, ele os combateu com vigor em Medina, Gemu, Ndium e
Matam
58
.
A marcha rumo a Ségou
Com maior intensidade que aqueles do Kaarta, os bambara do Beledugu
(Beledougou) e de Ségou eram refratários ao islã. Aqueles de Ségou haviam
especialmente resistido a muitos séculos de proselitismo dos marabutos marka
(dafin), bozo, somomo e à jihad da diina do Macina. Fundada na primeira metade
do século XVIII, em razão do vazio político criado pelo desmembramento dos
impérios do Mali e do Songhai, o fanga (poder) de Ségou, era exercido com
força sob Ngolo Jara (1766 -1790), do Mande até Tombuctu. Guarnições de
tonjon (os escravos da Coroa), estacionados nos diferentes pontos estratégicos,
garantiam a segurança do país, ao passo que o restante da armada, através de
incursões regulares nos vizinhos, provia escravos aos mercados de Kangaba e
Sansanding. Era essa a principal fonte de renda dos faama e dos tonjon. No
âmbito administrativo, o país estava dividido em cinco províncias, cada qual
tendo à frente um filho do faama.
Sob Monzon, filho e sucessor de NgoloJara (1790 -1808), a força de Ségou
manifestou -se até a Senegâmbia. Em 1796, todos os países situados entre o
Níger, o Kaarta e o Bundu, foram pilhados pelas suas forças armadas; os vizi-
nhos imediatos, o Beledugu, o Dedugu (Dedougou) e o Fuladugu (Fuladougou),
foram dominados
59
.
57 Segundo as informações recolhidas por par E. Mage em Ségou, no ano 1864, numerosos contingentes
o haviam precedido em Nioro. Mas não podemos piamente considerar estes números.
58 De modo generalizado, na África Ocidental, os franceses eram os agressores e não os agredidos. Foram
eles que tomaram a iniciativa de combater os chefes que atrapalhassem os seus interesses econômicos.
59 L. Tauxier, 1942, p. 101.
719
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
Com o reinado de Da Monzon (1808 -1827), iniciou -se uma longa decadên-
cia, especialmente marcada pela emancipação dos fulbes e pelo nascimento, nas
fronteiras orientais de Ségou, de um Estado muçulmano de mais em mais ame-
açador, a diina de Hamdallahi. Foi um país em crise, aquele visitado aproxima-
damente em 1839 por Sayku ‘Umar, aquando do seu retorno da Meca. O faama
reinante, Cefolo, estava muito doente, quase morto. A luta pelo poder já estava
em curso no seio da família real. Um dos pretendentes ao trono, Torokoro Mari,
inclusive aceitou, na prisão, a sua conversão pelo marabuto tucolor, mediante
as suas bênçãos e orações
60
. Uma aliança entre eles selada deveria permitir, em
momento oportuno, uma islamização pacífica de Ségou.
Entretanto, em 1859, Torokoro Mari, cujas resoluções haviam sido satis-
feitas e reinante seis anos, foi denunciado e executado pelos tonjon
61
. Sayku
‘Umar, retornando do Futa, decidiu marchar sobre a capital bambara. Ele deixou
Nioro em 12 de setembro de 1859, dirigindo -se rumo a gou, pregando e
convertendo durante o percurso. No Beledugu, em 20 de novembro de 1859, a
temida cidadela de Merkoïa, na qual haviam encontrado refúgio os fugitivos do
Kaarta, opôs uma severa resistência a este avanço do islã e, pela primeira vez,
os mudjāhidūn foram obrigados a empregar dois lança -morteiros tomados dos
franceses em 1858. Desde logo, a progressão tornou -se lenta. Em 25 de maio de
1860, o Níger foi atacado em Niamina. A armada muçulmana assim penetrou
no território de Ségou.
Na capital bambara,Alī Monzon Jara substituíra, em 1859, Torokoro Mari,
julgado demasiado favorável aos funcionários; ele não foi empossado senão após
ter jurado defender Ségou contra qualquer intrusão do islã
62
. Portanto e apesar
do seu nome muçulmano, ele não podia sinceramente abraçar esta religião,
como o fariam posteriormente os chefes do Macina. Ele reuniu uma poderosa
armada sob o comando do seu próprio filho em Woïtala. A batalha travada nesta
localidade é considerada como uma das mais mortíferas da jihad. Esta fortaleza
foi tomada somente após quatro dias de combates, em 9 de setembro de 1859,
abrindo caminho para a marcha sobre Ségou.
A única via de salvação para Alī Monzon era a aliança com os seus adver-
sários de outrora, os chefes do Macina. Desde a revolução islâmica neste país,
Hamdallahi e Ségou haviam sempre estado em guerra. Todas as tentativas dos
diferentes chefes do Macina com vistas a submeterem Ségou se haviam tradu-
60 A. Koné, 1978, p. 62.
61 Ibid.; igualmente conferir E. Mage, 1868, pp. 234 -246.
62 E. Mage, 1868, p. 246.
720
África do século XIX à década de 1880
zido em derrota
63
. Tirando proveito inclusive das crises de sucessão no Macina,
os bambaras ali haviam travado a guerra em múltiplas ocasiões
64
. Entretanto,
o chefe de Hamdallahi demonstrara, à imagem daquele de Ségou, tamanha
disposição em fazer tábula rasa do passado, que Sayku ‘Umar, em razão da sua
presença no Sudão nigeriano, questionava a um só tempo a sua hegemonia
política e a sua supremacia religiosa. Porém, confrontados a profundas crises,
ambos não seriam capazes de oferecer eficaz resistência frente à armada do
xeque, mais unida, mais bem organizada e equipada. Em 9 de março de 1861,
a armada muçulmana entrou em Ségou. Alī Jara, informado, somente teve o
tempo necessário para salvar a sua cabeça, refugiando -se no Macina.
O conito com o Macina
De Sokoto a Jegunko, o peregrino tucolor, com as suas imponentes forças,
os seus numerosos bens e as suas mal veladas intenções de entrar em guerra
contra os infiéis, não deixou de inquietar os soberanos, tradicionalistas ou não.
Os muçulmanos espalhavam -se entre três grandes áreas de influência: o Futa
Toro (no Nordeste), o Futa Djalon (no Sudoeste) e o Macina (no Leste). No
interior deste triângulo, excetuado o Bundu, havia uma massa de regiões não
muçulmanas, na qual, quando se apresentavam as condições, os muçulmanos
lançavam expedições caracterizadas como guerras santas; entretanto, o seu móbil
essencial era, muito amiúde, permitir a captura de escravos
65
. o era menos
frequente, de modo quase generalizado, que os soberanos muçulmanos, após os
sucessos dos primeiros anos, antes estivessem na defensiva. Justa e notoriamente,
era este o caso daqueles do Macina, no âmbito das suas relações com os seus
vizinhos não muçulmanos.
Sayku ‘Umar não podia deixar de ser visto como um perigoso rival. Após
a sua vitória sobre os massassi, em abril de 1855, ele anunciou a boa nova” a
grande número de soberanos muçulmanos, dentre os quais aquele do Macina; a
resposta deste último, ordenando o seu retorno aos seus domínios, não sugeria
nada de positivo quanto às relações futuras entre as duas personalidades reli-
giosas do Sudão nigeriano
66
. A partir do ano seguinte, em agosto de 1856, uma
63 M. Delafosse, 1972, vol. II, p. 293.
64 I. Barry, 1975, p. 27.
65 Encontramos este fenômeno igualmente nos países haussas, onde os soberanos muçulmanos dedicavam-
-se a islamizar todo mundo, com o objetivo de não se privarem de reservas de escravos.
66 Para Ahmadu -Ahmadu do Macina, todos os países não muçulmanos compreendidos entre o Níger e o
Kaarta, estavam em sua zona de inuência.
721
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
armada do Macina postou -se perante Sayku ‘Umar. O confronto, em Kasakary,
constituiu o ponto de partida de um conflito que duraria até 1864.
E, todavia, os chefes muçulmanos haviam tentado, através de várias correspon-
dências, encontrar uma solução para as suas discórdias. No entanto, esta relação
praticamente assemelhava -se a um diálogo de surdos: Sayku ‘Umar apoiava -se
em sua vasta cultura islâmica para demonstrar ao soberano do Macina que,
distante de combatê -lo, este último deveria associar -se a ele para lutar contra
os infiéis; Ahmadu -Ahmadu, quanto a ele, apresentava argumentos de ordem
sobretudo política, considerando todo o território, de Ségou até Kaarta, como
pertencente ao seu raio de influência
67
.
Após a entrada da armada de Sayku ‘Umar em Sansanding, em outubro de
1860, as forças armadas de Ségou e do Macina, coligadas, acampariam às portas
desta cidade. Este face a face duraria dois meses e nenhuma das partes tomaria
a iniciativa dos combates. Contudo, em meio a esta atmosfera de grande tensão,
um pequeno incidente bastaria para provocar o choque, em fevereiro de 1861
68
.
Entrevemos, portanto, que Sayku ‘Umar até o último instante não aparenta
ter desejado o conflito
69
. Ele próprio não teria condenado, em termos violentos,
o conflito armado entre os sultões do Borno e de Sokoto? Aparentemente,
era muito sincera a sua proposta sugerindo -lhe a ele se associar, endereçada
ao soberano do Macina, o qual não lograra converter os bambaras de Ségou
70
.
Porém, era igualmente difícil para Ahmadu -Ahmadu aceitar esta proposição,
pois que ela equivaleria a reconhecer a supremacia daquele outro. Em que pese a
troca de numerosas cartas, o conflito era, portanto e dificilmente, evitável, dada
67 Consultar, acerca desta troca de correspondências entre ‘Umar e Ahmadu -Ahmadu, a recente tradução
e anotação, em al -Hājj ‘Umar Tal, 1983; podemos igualmente conferir, com interesse, F. Dumont, 1974;
F. B. S. Diarah, 1982 e M. al -Haz al -Tidjani, 1983.
68 Tiros dos macinanke sobre os partidários de Sayku ‘Umar que se banhavam, segundo F. Dumont, 1974,
p. 126; trocas de tiro de fuzil entre os pescadores dos dois campos, segundo E. Mage. Quando Sayku
‘Umar, informado, tentou conter as suas tropas, elas haviam começado a atravessar o rio, E. Mage,
1980, p. 106.
69 Segundo todos os nossos informadores do Futa, ele não o quis (O. Bâ, sem datação, p. 109, verso; Tapsiru
Ahmadu Abdul Niagane, gravação do dia 3 de maio de 1981; al -Hadj Ahmadu Ibrahima Datt, gravação
do dia 4 de maio de 1981). No desencadeamento da grande jihad, em junho de 1854, o Kaarta e Ségou
eram os únicos objetivos que se xava ‘Umar, segundo M. A. Tyam, 1935, p. 45. Igualmente do lado das
tradições do Macina, N. Waïgalo (1977, p. 6) reporta -nos que a missão de Ahmadu Haimut de Haïré
tinha o objetivo de evitar o conito e de solicitar o apoio do chefe do Macina, para o prosseguimento
do jihad em direção ao país Mossi.
70 Com a aproximação de Sayku ‘Umar, algumas mudanças circunstanciais aconteceram; entretanto, elas em
nada transformaram o fundo do problema: os bambaras de Ségou permaneciam profundamente ligados às
suas religiões. Os numerosos símbolos de adoração encontrados em Ségou seriam expostos em Hamdallahi
(M. A. Tyam, 1935, pp. 183 -184). Sobre a religião dos bambaras antes do jihad do xeque, consultar E.
Mage, 1868, M. Delafosse, 1972, L. Tauxier, 1942, C. Monteil, 1977 e al -Hājj ‘Umar Tal, 1983.
722
África do século XIX à década de 1880
a intransigência das respectivas posições
71
. A aliança do chefe do Macina com
Ségou proporcionou a Sayku ‘Umar o argumento jurídico para combatê -lo.
Após permanência de um ano na capital bambara, Umar marchou rumo
ao Macina, em abril de 1862. Hamdallahi foi ocupada a partir do s subse-
quente. Ahmadu -Ahmadu, ferido durante a batalha de Tyayawal (10 de maio
de 1862)
72
, foi rendido. Balobbo, que jamais renunciara ao trono do Macina,
submeteu -se assaz facilmente, esperando assim alcançar os seus objetivos.
Mas SaykuUmar jamais abandonava o poder àqueles seus antigos inimigos.
Acreditando ter realizado, com o desaparecimento de Ahmadu -Ahmadu, a tão
solicitada unidade com o Macina, ele abandonou todos os grandes dignirios
no exercício das suas funções no país
73
; todavia, em janeiro de 1863, ele os
forçou à dependência vis -vis do seu filho Ahmadu, propondo -se, ele próprio,
a “continuar a operar contra os infiéis, à frente das suas tropas, acrescidas por
aquelas do Macina”
74
.
Balobbo, decepcionado, voltou -se para Tombuctu, em março de 1863; ele
sabia ter encontrado, na pessoa de Sīdī Ahmad al -Bekkaay, um adversário reso-
luto contra Sayku ‘Umar. Informado, este último arrestou -o, assim como nume-
rosos dentre os seus partidários.
A coalizão Tombuctu ‑Macina e o m de Sayku ‘Umar
Vimos que Tombuctu formalmente dependia de Hamadallahi. A realidade
do poder estava, efetivamente, nas mãos dos kunta, cujo chefe, Sīdī Ahmad
al -Bekkaay, demonstrava particular apego por determinada supremacia religiosa,
por ele mantida em todo o Sudão nigeriano. A progressão da armada do xeque
não poderia deixar de inquietá -lo. Desde 1860, ele entrou em contato com os
bambaras, oferecendo -lhes o seu apoio moral
75
. Dois anos mais tarde, em 1862,
enquanto propunha a paz a Sayku ‘Umar, ele simultaneamente oferecia o seu
71 Conferir os detalhes destas cartas em F. Dumont, 1974, pp. 141 -182, e em al -Hājj ‘Umar Tal, 1983.
72 Tyayawal era um bosque em uma zona de mangue que se encontrava nas proximidades de Sofara. Foi ali
que aconteceu o último grande enfrentamento entre as armadas de Ahmadu -Ahmadu e Sayku ‘Umar.
Os macinanke defenderam -se com ardor, entretanto, alguns chefes militares do Macina se ausentariam
voluntariamente do combate de Tyayawal (N. Waïgalo, 1977, p. 32) e, sobretudo, a armada do xeque
dominava aquela do Macina, tanto pelo seu armamento quanto pela sua força organizacional. As ações
de impacto individual tinham demasiado grande importância junto aos fulbes.
73 N. Waïgalo, 1977, p. 33.
74 E. Mage, 1868, p. 268.
75 Em 1860, ele envia uma carta neste sentido a ‘Alī Monzon (C. Gerresch, 1976, p. 894).
723
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
apoio na revolta que rondava Hamadallahi
76
. Balobbo e os seus partidários eva-
didos organizaram a revolta com o seu apoio. Primeiramente em Mani -Mani,
seguidos pelo Kunari, os coligados impuseram à armada do xeque, severas derro-
tas; causando a perda dos seus melhores generais, Alfaa ‘Umar Ceerno Baylaa e
Alfaa Uthmān, em maio e junho de 1863
77
. Após oito meses de cerco, o restante
da armada tentou uma saída, no dia 7 de fevereiro de 1864. Perseguido, Sayku
‘Umar refugiou -se na gruta de Degembere, onde morreria em 14 de fevereiro de
1864, horas antes da chegada dos reforços enviados pelo seu sobrinho Tijjaani-
-Alfaa. Este último, enraivecido, permaneceu em furiosa luta contra os coligados,
desde logo em total desentendimento (cada qual pretendendo a exclusividade do
poder). Um a um, eles foram batidos. Em fevereiro de 1865
78
, Sīdī al -Bekkaay, a
alma da coalizão, foi morto, em um combate em Sare Dina, no Sebera. Tijjaani
tornou -se o mestre do Macina e do Tombuctu. Após Kaarta e Ségou, esta se
tornaria a mais importante província do império.
Estruturas políticas, econômicas e sociais do Império torodbe
Sayku ‘Umar e o exército dos mudjāhidūn
Com a ocupação do Macina, o império atingiu os seus limites máximos,
cruzando terras do Gidimaka a Tombuctu e de Dinguiraye ao Saara
79
. Além
de um Estado centralizado, este imenso território apresentava -se como uma
sequência de fortalezas nas quais uma administração político -religiosa tinha
como vocação consolidar a conversão ao islã. Sayku ‘Umar, acima do prestígio
sobre quem repousava toda esta construção, considerava -se exclusivamente um
mudjāhid, um combatente da fé. Ele não se preocupava sobremaneira com a
organização ou a administração, contentando -se em nomear os tālib, em todas
as localidades recém -convertidas. Esta escolha efetuava -se, por via de regra,
baseada nos critérios da instrução e da moralidade
80
.
76 C. Gerresch, 1976, p. 895. Toda a família kunta não compartilhava as posições de Sīdī Ahmad al -Bekkaay.
Grande parte desta família era antes favorável a Sayku ‘Umar (C. Gerresch, 1976, p. 893).
77 M. A. Tyam, 1935, pp. 190 -192, notas 1092 e 1110.
78 E. Mage, 1868, p. 450.
79 E. Mage, 1980, p. 113, sugere como limites ocidentais, Medina e Tengrela; Dinguiraye e o Gidimala
aparentam melhor corresponder à realidade.
80 Como bem demonstrou F. Dumont (1974, p. 121), tratava -se de um “anti -sultão”. É signicativo que
tenha sido um estudioso do islã quem, pela primeira vez, tenha salientado este caráter fundamental de
Sayku ‘Umar. Infelizmente, numerosos escritos deste último ainda não foram traduzidos.
724
África do século XIX à década de 1880
Coube aos tālib a tarefa da organização. Sayku ‘Umar, ele próprio, era antes
e sobretudo um místico
81
, convencido da sua predestinação a uma missão divina
consistente em concluir o processo de conversão dos negros ao islamismo.
Durante a execão desta tarefa, nada o interrompia, nem a hostilidade de
alguns soberanos muçulmanos e tampouco a feroz resistência dos não muçulma-
nos. À imagem do profeta, de quem estava convencido ser o herdeiro, os obstá-
culos encontrados, distantes de desestimulá -lo, fortaleciam a sua determinação:
“O herdeiro herda tudo aquilo que possui aquele de quem ele é o herdeiro
82
.
No plano físico, o único testemunho ocular do qual dispomos, referente a ele,
é pertencente a Paul Holle, que afirma -lo visto, em agosto de 1847, em
Bakel; ele o apresenta como um homem de notável presença, sobre a qual se
delineiam viva inteligência e um sentimento de meditação e cálculo”
83
. Ele era
brilhantemente auxiliado pelo seu mais importante general, Alfaa ‘Umar Ceerno
Baylaa Waan, com o qual ele dizia possuir, invariavelmente, total identidade
de propósitos
84
. O segundo personagem que lhe era mais próximo,Abdullaahi
Hawsa, seguira -o desde Sokoto. De um modo geral, em que pese a ascendência
pessoal que tinha sobre os seus companheiros, a qual reforçava a doutrina da
Tijāniyya referente às relações entre o xeque e os seus discípulos, ele associava
os tālib a todas as grandes decisões. Esta situação inclusive não podia ser dife-
rente neste meio predominantemente torodbe, no qual cada um zelava pela sua
pequena personalidade. Justamente durante os seus retiros espirituais, ocorreu
o amadurecimento de grande parte dos seus projetos, amplamente inspirados
na experiência do profeta Muhammad e dos seus califas do islã, os seus prede-
cessores. Em seguida, ele submetia as suas teses à aprovação do conselho dos
tālib
85
. Com efeito, era muito importante, para o sucesso da jihad, conquistar a
adesão permanente destes discípulos desgarrados, os quais haviam abandonado
a família e a pátria para segui -lo. Igualmente, ele não media nenhum esforço
para ligá -los à sua pessoa, tanto por meio de demonstrações dos seus poderes
sobrenaturais, quanto através de distribuições de bens. As tradições guardaram a
81 Ele estava frequentemente em khalwa. Todas as grandes decisões eram tomadas após um dos seus retiros
espirituais.
82 Al -Hājj ‘Umar Tal, sem datação, (b).
83 F. Carrère e P. Holle, 1855, pp. 191 -192.
84 Tapsiru Ahmadu Abdul Niagane, gravação do dia 3 de maio de 1982.
85 M. A. Tyam (1935) mostra -nos frequentemente em khalwa. Este mesmo autor traz -nos o conhecimento
de desobediências dos tālib, embora sempre para justicar uma derrota. Igualmente não sabemos qual o
crédito que se deve acordar a estes diferentes testemunhos; a sua quantidade basta para militar em favor
da veracidade de alguns.
725
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
sua imagem, como a de um homem muito generoso
86
. Ele zelava especialmente
pela manutenção da armada.
Foi nas regiões haussas que Sayku ‘Umar recrutou os primeiros elementos
deste exército, o qual não deixaria de crescer, de Sokoto até Dinguiraye. Mul-
tirracial, esta força compreendia os contingentes do Futa Toro, do Haussa, do
Futa Djalon, do Khasso, do Kaarta e de Ségou. Os primeiros eram largamente
os mais importantes: de Jegunko até a partida de Nioro em 1859, o Futa Toro
não deixou de alimentar a armada da jihad
87
.
Esta armada compreendia quatro batalhões organizados, cada qual em torno
de um contingente do Futa: o batalhão do Toro compreendia o Toro, o Bundu, o
Gidimaka, e uma parte do Futa Djalon; o batalhão dos yirlabe reunia os yirlabe,
os habbiyabe, o Xaso, o Diafunu (Diafounou), o Bakhunu, os fulbes wolarbe;
quanto ao batalhão do Ngenar, ele compreendia os ngenar, os bosseyabe, os
jawara, os massassi; finalmente, o batalhão do Murgula reagrupava os malinke e
uma parte dos futa -djalon. A guarda do xeque era garantida por um importante
grupo predominantemente haussa
88
. Cada um dos batalhões era representado
por uma bandeira distinta (preta para os yirlabe, vermelha e branca para os
toro).
O armamento era essencialmente composto por fuzis de assalto e sabres:
alguns raros privilegiados possuíam fuzis de dois tiros. Um importante grupo
de ferreiros seguia a armada e a reabastecia de munição
89
.
No mês de julho de 1858, em Ndium -du -Ferlo, partidários do Sayku Umar
tomaram do capitão Cornu, naquele momento em debandada, dois obuses de
campanha, em pane. Reparados pelo engenheiro militar Samba Ndiaye, eles
desempenharam um importante papel nas campanhas do Beledugu e de Ségou.
Porém, o que tornava fortes os mudjahidūn, era sobretudo a sua fé e uma estra-
tégia relativamente elaborada. Regularmente, o xeque os entretinha com pro-
86 Distribuição de bens em Nioro, antes da partida rumo a Medina, e em Ségou, antes da partida para o
Macina.
87 Em cada ocasião em que ele teve que reconstituir a sua armada, foi em direção ao Futa Toro que enviou
os seus emissários: em 1849, para preparar o ataque de Tamba, em 1854, antes da grande jihad, e após a
mortífera batalha de Teliman, em 1855 (M. A. Tyam, 1935, pp. 43, 44, 47). O movimento continuaria
sob o seu lho Ahmadu. Ele próprio percorreu, em 1858 -1859, antes de marchar sobre Ségou, um
importante circuito, após o qual trouxe consigo, entre civis e militares, mais de 40.000 pessoas.
88 O. Bâ, sem datação, p. 78 (verso). Nós observamos que os sofa ainda não existiam como batalhão.
89 E. Mage faz -nos o inventário das munições de Ahmadu, na véspera da batalha de Toghu: 4.200 kg de
pólvora local, 15 a 20 kg de pólvora europeia, 9 sacos grandes de pedra para fuzil, 150.000 balas (E.
Mage, 1868, p. 415).
726
África do século XIX à década de 1880
messas de deleite neste mundo e no outro, dirigidas aos combatentes da
90
.
Nos momentos imediatamente precedentes aos mais difíceis combates, nós o
acompanhamos redobrar a sua atividade. Bebendo na fonte do Alcorão e nos
principais escritos sobre a vida do profeta Muhammad e dos seus companheiros,
ele incentivava os seus homens a superarem bravamente todas as dificuldades.
Assim aconteceu em Yaguinne,
o Diferenciador ordenou aos gritadores para convocarem a armada; a armada
reuniu -se, o xeque fez o sermão, o sábio que não se engana [...]. Lá, o único
acolheu aos talibãs; atraiu a sua atenção para as promessas [de recompen-
sas] e para as ameaças de [castigos eternos]; as tradições, [em respeito ao
Profeta] e as máximas foram expostas. Ele pregou, preencheu o corão
dos seus seguidores [de aspirações] rumo ao outro mundo, de tal modo que
apresentou para eles este mundo como um rolo compressor e o outro mundo
tornou -se [o seu] objetivo
91
.
Do mesmo modo, durante o cerco a Medina, nós o acompanhamos despren-
der uma inesgotável energia para levantar o moral da suas tropas e assegurar -lhes
a proteção divina no paraíso. E quando Paul Holle, para denegri -lo, disse a um
jovem tālib moribundo: “Infeliz, porque o teu Al Aghi não marchou na linha
de frente da incursão? O moribundo, lançando sobre Paul Holle um olhar de
pura piedade, gritou: Meu Deus, meu Deus! Eu te agradeço, eu morro! Eu vejo
o paraíso [...]”.
Esta fanática armada tinha diante de si adversários frequentemente dividi-
dos, tal foi o caso no Bambuk (Bambouk), no Kaarta, em Ségou e no Macina.
Ela igualmente possuía uma nítida superioridade em relação à estratégia de
combate: manobra de divisões, cerco ao inimigo, rapidez de movimento, todas
técnicas militares que haviam permitido ao Profeta e aos seus companhei-
ros reconquistarem, em alguns anos, imensos territórios. Inclusive o terror era
uma arma estratégica: massacres humanos, redução das mulheres e crianças à
escravatura
92
, quebrando a moral dos países ameaçados e conduzindo alguns
à rendição sem combate. Na chegada a um país, o procedimento era sempre
similar: emissários eram enviados junto ao chefe para convidá -lo à conversão;
caso consentisse, se lhe raspavam a cabeça, davam -lhe um chapéu, um satala,
90 Segundo as tradições, ele pregava todas as noites (O. Bâ, sem datação, p. 86).
91 M. A. Tyam, 1935, pp. 56 -57.
92 A lei muçulmana não permite matar em combate senão aqueles capazes de portar uma arma. As mulheres
e crianças de menos de quinze anos eram poupadas.
727
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
F . De Dinguiraye a Hamdallahi (segundo M. Ly -Tall).
728
África do século XIX à década de 1880
ensinavam -lhe as regras elementares do islã, procedendo deste modo junto aos
seus sujeitos; um tālib e uma pequena guarnição eram encarregados de concluir
esta conversão. Este recurso à conversão pacífica permitiu -lhes evitar nume-
rosas batalhas, dentre as quais, algumas poderiam ser difíceis. Assim sendo, a
temida cidadela de Farabana foi tomada sem grande resistência em 1854. Em
1856, novamente Sayku ‘Umar mostrou -se muito conciliador com os habitan-
tes revoltados de Farabugu (Farabougou); e, após a tomada de Dyangunte no
mesmo ano, ele não hesitou em negociar com os kamori, para conduzi -los a se
conformarem às regras muçulmanas relativas às posses dos vencidos
93
.
O combate não era levado a cabo senão quando havia recusa em abraçar o
islã, caso infelizmente mais recorrente.
O grande general desta armada foi Alfaa ‘Umar Ceerno Baylaa Waan. Certo
dia, uma controvérsia eclodiu acerca da definição sobre quem, entre Alfaa ‘Umar
Ceerno Baylaa e Abdullaahi Hawsa, era o mais ligado a Sayku ‘Umar. Para
alguns, era o primeiro, para outros o segundo. Para definir a situação, as duas
partes dirigiram -se junto ao próprio Sayku ‘Umar que, por sua vez, disse -lhes:
“Se alguém aparece com um sabre e solicita que se escolha entre a sua cabeça
e a cabeça de ‘Umar, será Abdullaahi Hawsa que apresentará a sua. Caso eu
tenha algo muito importante a realizar, Alfaa ‘Umar terá integralmente a mesma
opinião que a minha
94
.”
Alfaa Umar Ceerno Baylaa Waan representou o braço forte da jihad; pode -se
dizer que Sayku ‘Umar dele não foi nada além do cérebro.
Outros chefes militares tornaram -se muito célebres na memória dos fuutanke.
Tal foi o caso de Alfaa Umar Ceerno Molle Lii, um dos primeiros companhei-
ros, morto em Merkoïa; de Alfaa ‘Uthmān, morto em Macina; e de Mammadu
Hamat Kuro Waan, um dos mais intrépidos. Originário da localidade de Ngano
(perto de Kanel), onde se havia particularmente sofrido com as exações da nova
política de intervenção das autoridades de Saint -Louis, este último juntou -se a
Sayku Umar, acompanhado de todos os seus concidadãos, em Farabana, no ano
de 1854. Tratava -se de um dos mais violentos adversários dos franceses. Foi ele
quem, enfrentando as balas dos canhões, logrou escalar a fortaleza de Medina e
ali cravar a bandeira muçulmana. Pouco após, ele foi derrubado por uma rajada
de fuzil -metralhadora.
93 M. A. Tyam, 1935, pp. 81, 82, 98, 100, 124 -126. Ele daria provas do mesmo espírito no Gidimala e no
Diafunu.
94 Tapsiru Ahmadu Abdul Niagane, gravação do dia 3 de maio de 1981.
729
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
Malgrado a sua coragem e a sua organização, esta armada não escapava deste
grave defeito próprio a todas armadas africanas da época: serem dependentes do
butim de guerra. Embora a lei muçulmana concedesse certa ordem na partilha
desses recursos, não era menos verdade que o butim tivesse uma crucial impor-
tância nos combates, a ponto de não poder condicionar os seus desdobramentos.
A personalidade de Sayku ‘Umar e a sua preocupação em dividir este espólio,
equânime e regularmente, mantiveram a coesão da armada até a sua morte. Não
sucedeu de modo semelhante durante o período de Ahmadu. Pois que a armada
desempenhava um papel muito importante no sistema e dela especialmente
dependia a submissão das diferentes províncias do império.
A administração das províncias: uma administração descentralizada
As províncias, como observamos, eram demarcadas por fortificações, a partir
das quais o islã deveria exercer o seu poder de expansão. As mais importantes
eram Dinguiraye, Kundian, Nioro, Koniakary, Dyangunte, Diala, Farabugu,
Murgula e Ségou. Dinguiraye, Nioro, Koniakary e Ségou existiam na qualidade
de capitais regionais.
Nos confins do Futa Djalon e do país Mande, Dinguiraye é a primeira
província histórica do império. Foi ela que abrigou, durante muito tempo, toda
a família de Sayku ‘Umar, sob a direção do seu filho Mohammadu Habibu
(neto de Muhammad Bello). Dela, igual e teoricamente, dependia a fortaleza
de Kundian, no Bambuk, construída em 1858 sob o acompanhamento direto do
próprio Sayku ‘Umar; ela deveria assegurar o respeito de todos os países mande
95
.
Mage, impressionado diz -nos “que ela imporia grandes dificuldades ao ataque de
tropas regulares”. A administração apresentava -se bicéfala: um liberto, Django,
assistido por um tālib, e Racine Tall, primo de Sayku ‘Umar.
O Nioro era a mais importante província sob Sayku ‘Umar. Ele contava
com numerosas fortalezas, dentre as quais as mais importantes eram aquelas de
Farabugu, Dyangunte e do próprio Nioro. Uma forte colônia fulbe e torodbe
ocupava maior parte das localidades das quais os massassi haviam sido expulsos.
Concomitantemente ao aumento da opressão do poder colonial, intensificava -se
o afluxo de imigrantes do Futa. A administração provisória, instaurada em 1857
sob a direção geral de Alfaa ‘Umar Ceerno Baylaa, foi sensivelmente modificada
95 E. Mage, que passou por Kundian em 1863, descreve a fortaleza como “um quadrado de 60 metros pro-
tegido por seis torres, com altura de 4 a 8metros, com uma espessura na base de 1,5 metros” (E. Mage,
1868, p. 82 -83).
730
África do século XIX à década de 1880
em 1859 para permitir enfrentar as necessidades da campanha de Ségou
96
. Com
a quebra definitiva da resistência massassi, Sayku Umar partiu de Nioro com
numerosos chefes de distrito. Não restaram no Kaarta senão civis protegidos
por pequenas guarnições. Em Dyangunte, Ceerno Buubakar Siree Lii substituiu
Abdullaahi Hawsa; em Farabugu e no Nioro, os libertos Dandangura e Mustafā
sucederam Khalidu Elimane Demba e Alfaa ‘Umar Ceerno Baylaa.
O Diombokho era a província mais próxima de Medina e Bakel. O tata de
Koniakary
97
, construído em janeiro de 1857, devia proteger o Diombokho, simul-
taneamente contra os franceses e o seu aliado Diouka Sambala. Em 1866, o chefe
dos tālib, Ceerno Muusaa
98
, instigador da convenção local assinada em 1860 com
o comandante de Bakel, nesta ocasião reservou uma cordial recepção a Mage; o
governador militar, San Mody, em contrapartida não escondeu a sua hostilidade.
Nioro encontrava -se muito pximo dos franceses; e, no entanto, nós sabemos
que Sayku ‘Umar particularmente detestava a coabitação com eles. Eis o que certa-
mente explica a importância adquirida por Ségou no Império Torodbe, do qual ela
tornar -se -ia a capital sob Ahmadu. Anteriormente a 1864, ela o passava de uma
capital provincial como as outras, tendo à frente, a partir de abril de 1862, o pri-
mogênito de ‘Umar. Ele era assistido por alguns velhos companheiros do seu pai,
como Ceerno ‘Abdul Segu, Ceerno Ahmadu e Samba Ndiaye, engenheiro chefe
da maioria das fortificações do império
99
. Porém, os mais influentes personagens
da corte eram, sem dúvida, Baba Ulibo e Bobbo, respectivamente vice -rei e con-
selheiro diplomático
100
. No que tange à defesa da cidade e do seu entorno, ele o
dispunha, no momento da partida de Sayku ‘Umar em direção ao Macina, senão
de 1.500 tālib e de um contingente jawara e massassi de sofa, sob a direção -geral
de Ceerno Alasan Baa. Ahmadu deveu, portanto, tudo organizar nesta província,
na qual, como sempre ocorrera alhures, Sayku ‘Umar somente havia passado
101
.
96 Eis como se apresentava esta administração em 1857 (O. Bâ, op. cit., p. 96, verso): ierno Djubaïru Bubu
Haruna, no Diafunu, ierno Ahmadu Umakala, no Kaniarene, Modi Mamadu Pakao, em Niogomera,
Sulayman Baba Raki, em Diala, Kalidu Elimane Dema, em Farabugu, ‘Umar Mamadu Lamine, em
Gemukura, Abdulaye Hawsa, em Dyangute, Abdulaye Alī no Bakhunu. Igualmente consultar B. O.
Oloruntimehin, 1972, p. 92.
97 Inteiramente erguida em pedra, ela tinha dois metros de espessura e muitos metros de altura; os vestígios
que resistiram à artilharia de Archinard ainda são impressionantes.
98 Foi ele quem substituiu ierno Djibi neste posto, em 1859.
99 E. Mage, 1868, p. 222.
100 O segundo era originário do Haussa. Ele desempenhou um papel muito importante nas negociações
entre Mage e Ahmadu. Tratava -se do mais antifranceses dentre os colaboradores de Ahmadu. Quanto
ao primeiro, lho de Ulibo Bâ, que acompanhara Sayku ‘Umar desde Nioro; ele próprio era, em contra-
partida, pró -franceses.
101 Ele permaneceu um ano em Ségou, tempo por ele empregado sobretudo para redigir a sua obra, le Bayān
mā waqa ‘a.
731
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
Em fevereiro de 1863, este vasto território teoricamente engrandeceu -se com o
Macina. Porém, a revolta ali eclodida, desde o s subsequente, impediu a com-
pleta concretização deste engrandecimento. Após o desaparecimento do ‘Umar, a
reconquista do Macina foi realizada por Tijjaani -Alfaa, em seu proveito.
Em todas as fortalezas muçulmanas dos territórios recém -convertidos, nos
quais não se escondia a hostilidade frente ao islã, a administração era invaria-
velmente bicéfala, contando com um chefe religioso para dar continuidade à
islamização, sob a proteção de um governador militar. Em cada uma delas, Sayku
‘Umar possuía uma casa e abrigava uma parte da sua família. Portanto, não era
concebível a existência de uma residência fixa, à moda dos chefes temporais.
Como no Futa Toro, cada uma das províncias estava organizada de modo
autônomo; Sayku ‘Umar era somente o chefe espiritual de todo este conjunto.
O sistema era muito eficaz, caso dermos crédito ao testemunho de Mage, que
visitou a maior parte delas, de 1863 a 1866. Malgrado a existência de alguns
focos de revolta (dificilmente poderia ser diferente, considerando todas as revi-
ravoltas que o novo poder trazia no tocante aos hábitos ancestrais das popula-
ções concernidas), o viajante francês impactou -se com a ordem e a segurança
reinantes neste conjunto
102
.
Em todas as províncias, a justiça era garantida segundo a lei corânica, através
dos , ao nível dos delitos civis; os crimes e delitos políticos eram levados
à apreciação do chefe religioso da capital provincial. Assim sendo, em Ségou,
Mage nos informa que os dois grandes justiceiros eram o kādī e o próprio
Ahmadu e os seus julgamentos não admitiam recurso. As sanções eram idênticas
àquelas de todos os países muçulmanos; os enforcamentos eram o método mais
frequente, aos quais não escapavam sequer os altos -funcionários do império
103
.
A economia e as nanças do Império
O objetivo autoatribuído por Sayku Umar deixava pouco espaço para o
desenvolvimento econômico dos territórios conquistados. As riquezas acumula-
das desde Sokoto e o butim de guerra cobrado das populações vencidas bastavam
amplamente para por em marcha a máquina de guerra, cuja desmobilização não
aconteceria senão por ocasião da sua morte. Portanto, incumbiu -se justamente
às autoridades provinciais a decisão sobre as desavenças de ordem econômica.
102 E. Mage, 1868, p. 86. Ele não pôde deixar de comparar esta situação com aquela que prevalecia, por
exemplo, no Xaso, segundo ele caracterizada por uma desordem e uma total insegurança, provocadas
pelas múltiplas invasões organizadas por Diuku Sambala nos países vizinhos.
103 E. Mage, 1968, p. 344.
732
África do século XIX à década de 1880
As consequências da guerra foram, por via de regra, relativamente nefastas
para a economia dos países conquistados. No entanto, todas as províncias não
haviam sido atingidas de modo semelhante. A agricultura, setor mais afetado
pela jihad, aparentemente esboçou uma sensível retomada, nos anos 1863 -1864.
Os países mande, atravessados por Mage, eram particularmente ricos em algo-
dão. Na província de Kita, as localidades eram circundadas pelas plantações de
tabaco, legumes, melancias e vitelárias
104
. Em Guettala, no Bague, os kagoro,
livres da intensa pressão dos massassi, haviam aumentado o seu vigor para o
trabalho:Eles me diziam estarem felizes, por não serem mais saqueados, pela
tranquilidade em vigor no seu país e em virtude de todo mundo trabalhar graças
às ordens determinadas pelo al -Hadjdj ‘Umar”
105
.
No Kaarta e no Dyangunte, Mage refere -se à existência de uma verdadeira
abundância (boa colheita de painço, em Bambara Mutan e Madiaga). Porém,
foi sobretudo a própria localidade de Dyangunte, rica com suas culturas de
arroz, painço, milho, amendoim, algodão, feijão, tomate, cebola e tabaco, que
impressionou o viajante francês: “Na realidade, à noite, os meus homens rece-
beram um copioso cuscuz e a mim ofereceram seis litros de leite; nós recebemos
ainda maior abundância de comida em virtude da nossa oferta de presentes a
Fahmara
106
. Inclusive os rebanhos, incluídos em grande proporção no butim
da jihad, encontravam -se em abundância no Kaarta
107
. A província de Ségou,
propriamente dita, não era menos próspera: a agricultura era relativamente
variada
108
e numerosos rebanhos bovinos alimentavam o tradicional comércio
em direção ao Bure (Bouré).
No Sudão Central, o estado de guerra jamais fora totalmente interrompido,
pois que todos os beligerantes tinham os seus interesses nesta região. As princi-
pais rotas das caravanas, ligando o Sudão Central ao Norte e ao Sul, permaneciam
ativas. Numerosas caravanas transportavam sal e animais de Nioro para o Bure,
de onde traziam ouro e escravos
109
. Nioro, Koniakary, Kita, Banamba, Niamina
e Ségou representavam importantes escalas para este comércio, cujo destino
encontrava -se tradicionalmente em Bakel, Médine, Freetown, Bathurst ou na
região moura. Após o conflito com os franceses, as relações com Medina e Bakel
104 Ibid., pp. 89 -100.
105 Ibid., p. 116.
106 Ibid., pp. 137 -138.
107 Ibid., p. 123.
108 Ibid., pp. 148, 156, 161, 165.
109 Ibid., pp. 105 -123.
733
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
haviam sido suspensas
110
. Um dos objetivos da viagem de Mage era precisamente
negociar o restabelecimento deste fluxo comercial. Todavia, é necessário notar
o declínio de cidades tais como Niamina e Sansanding, decadência esboçada
desde a revolução teocrática do Macina. Na qualidade de entreposto comercial
de Tombuctu, Sansanding fora igualmente o primeiro mercado de escravos da
região. Reis de Ségou e chefes cissé da cidade haviam enriquecido considera-
velmente graças a este tráfico de escravos
111
. Ocupando -a em setembro de 1860,
Sayku ‘Umar eliminou os diversos impostos pagos a uns e outros (transformando
Boubou Cissé em adversário) e substituiu -os por taxas mulçumanas. Todavia,
desde março de 1863, no próprio momento em que os enviados de Sīdī Ahmad
al -Bekkaay tentavam sublevar todo o Ségou e o Macina, Ahmadu foi desatento
ao impor um imposto especial à cidade. A rica cidade soninquê basculou para o
campo rebelde do qual não tardaria a tornar -se o centro nervoso.
Após cada vitória, todos os bens dos vencidos eram embargados e divididos
em cinco partes, das quais uma era concedida ao Estado e as quatro restantes
aos combatentes. Consideráveis reservas de ouro, rebanhos e suprimentos de
toda espécie foram acumulados em Dinguiraye, Nioro e Ségou. Sayku ‘Umar
periodicamente delas fazia uma grande distribuição aos seus tālib
112
, ele próprio
não vivia senão dos seus próprios bens. O zakāt, ou dízimo, era arrecadado in
natura e, exclusivamente, junto aos muçulmanos; ele servia para suprir as nume-
rosas exigências referentes à hospitalidade e na ajuda aos indigentes e órfãos
113
.
O mudu, ou doação anual, era cobrado de todo muçulmano na época da festa
do Ramadã; ele era destinado aos funcionários do culto (imām, kādī, consultores
jurídicos e leitores do Alcorão) e igualmente aos indigentes. O usuru era, inicial
e unicamente, pago pelas caravanas, na proporção de um décimo do valor das
mercadorias; ele seria posteriormente estendido aos criadores, na razão de uma
cabeça de gado para cada trinta animais
114
.
Embora as modalidades e o destino destas diferentes prestações fossem
sempre perfeitamente respeitados durante a hegemonia do chefe da jihad, sob
Ahmadu, elas seriam uma fonte frequente de revoltas
115
. Igualmente ocorreu
110 Ibid., p. 120.
111 Ibid., p. 126.
112 Tal foi o caso, primeiramente de Nioro, em 1859, e posteriormente de Ségou, em 1862.
113 Uma considerável parte servia para o abastecimento das famílias dos soldados mortos no jihad.
114 B. O. Oloruntimehin, 1972a, p. 117.
115 À imagem daquela da comunidade soninquê de Sansanding, em 1863, provocada pelo recolhimento de
uma altíssima e excepcional contribuição (E. Mage, 1868, p. 275).
734
África do século XIX à década de 1880
uma surda oposição dos tālib, os quais reprovariam ao sucessor de Sayku ‘Umar
por não ser tão generoso quanto o seu pai.
Uma sociedade dominada pelos tālib
Os tālib, ou discípulos de Sayku Umar, pertenciam a todas as etnias e a todo
o país
116
. Eles eram provenientes dos mais diversos meios sociais. Em meio aos
mais próximos companheiros, identificavam -se tanto príncipes quanto antigos
escravos. Vimos que um dos objetivos do xeque era democratizar a sociedade
contra o jugo das famílias feudais.
Portanto, quase generalizadamente no império, a tradicional aristocracia,
fundada em laços sanguíneos, foi suplantada por essa nova elite político -religiosa
recrutada com base nos seus conhecimentos e práticas islâmicos. Em todas as
sedes provinciais, em todas as grandes localidades, estavam eles, em número
sempre relativamente importante, para ajudar a população recém -convertida a
familiarizar -se com os ritos da sua nova religião. Assim sendo, em Dyangunte,
no s de fevereiro de 1864, eles eram 540 indivíduos, vindos de todos os
horizontes; alguns inclusive falavam um pouco de francês, o que leva a acreditar
serem procedentes de Saint -Louis. Sob a direção de Ceerno Buubakar Siree Lii,
eles passavam boa parte do seu tempo em um hangar, perto da mesquita, lendo e
escrevendo ou ensinando o Alcorão
117
. Eles monopolizavam todas as funções do
império. Igualmente, sob Ahmadu, eles não tardariam a constituírem -se como
uma importante aristocracia. Ahmadu, que não possuía a envergadura religiosa
ou militar, comparativamente a Sayku ‘Umar, tinha dificuldades para se impor
perante os antigos companheiros do seu pai; estado de coisas que lhe permitiu
naturalmente apoiar -se sobre os sofa.
Esta última categoria social, possuidora de funções mais militares que reli-
giosas, era constituída pela massa dos povos vencidos arrolados para servirem à
armada da jihad. Recém -convertidos ao islã, apenas elementar era o seu conhe-
cimento a este respeito
118
. Sob Sayku ‘Umar, eles eram integrados ao batalhão do
Ngenar. Entretanto, após a partida de grande parte da armada rumo ao Macina,
Ahmadu necessitava reconstituir uma armada para si; os imigrantes do Futa
preferiam permanecer no Kaarta, mais proximamente do seu país; não lhe res-
116 Ibid., pp. 78 -344.
117 Ibid., p. 141.
118 A diferença entre sofa e tālib era uma simples diferença de nível de instrução. Os antigos escravos bem
instruídos tornavam -se tālib.
735
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
tavam senão voluntários das regiões dominadas; eles foram organizados em um
batalhão autônomo. Ahmadu lhes confiou inclusive algumas pequenas funções
na administração, para reduzir a influência dos tālib. Esta rivalidade entre os
tālib e os sofa foi uma das dificuldades com as quais o sucessor de Sayku ‘Umar
teve de confrontar -se ao longo do seu reinado.
Os problemas impostos pela sucessão de Sayku ‘Umar: as
tentativas de Ahmadu para prosseguir a obra do seu pai
Uma difícil sucessão: os primeiros anos do
governo de Ahmadu (1862 ‑1869)
No imediato posterior ao desastre de Degembere, Ahmadu, o primogênito
de Sayku Umar, encontrava -se à frente de um imenso império muito descentra-
lizado e organizado em torno de quatro províncias tão distintas quanto o Din-
guiraye, com Mohamadou Habibu Sayku, o Kaarta, sob o comando de Mustafā,
liberto do Bornouan, o Diombokho, com Ceerno Muusaa, e o Ségou, do qual ele
próprio era o chefe. Cada um destes chefes de província devia periodicamente
passar -lhe um relatório sobre a sua gestão
119
. Entretanto, embora o primeiro ano
de sua instalação em Ségou tenha se passado sem problemas, desde março de
1863, simultaneamente a Hamdallahi, um complô foi descoberto. O bloqueio
das comunicações com o Macina, desde o final de maio, impôs uma difícil
situação a Ahmadu, levando -o ao isolamento em um país hostil, acompanhado
de um punhado de homens (1.500 tālib). Para enfrentar esta situação, impostos
excepcionais foram cobrados, provocando um aumento do descontentamento.
A rica cidade soninquê, Sansanding, entrou em rebelião declarada, em dezem-
bro de 1863; malgrado o reforço de mais de 2.000 homens enviados de Nioro,
Ahmadu não logrou restabelecer a sua autoridade nesta localidade. Não resta
dúvida que este novo contingente de imigrantes torodbe, recentemente chegados
em Nioro, deixara o Futa muito mais para escapar ao poder colonial que para
fazer a jihad. Não se tratando daqueles pessoalmente doutrinados pelo próprio
xeque, eles estavam mais voltados para os bens desta terra. Mestres desde logo
de Sansanding, a sede pelo butim fez -lhes perder a sua vitória
120
.
119 Não há dúvida que Sayku ‘Umar tenha deixado ao seu lho mais velho a totalidade da sua sucessão. E.
Mage (1980, p. 113) obteve esta informação em Ségou, apenas um ano depois da primeira conrmação
desta nomeação, em um momento onde não era certo que o próprio Ahmadu tenha duvidado desta
decisão de Sayku ‘Umar.
120 Conferir E. Mage, 1868, p. 279.
736
África do século XIX à década de 1880
 . Entrada do palácio de Ahmadu, em Ségou -Sikoro. [Fonte: E. Mage, Voyage au Soudan occidental,
1868, Hachette, Paris. Illustration: © Hachette, Paris.]
Ahmadu encontrava -se, portanto, à frente de dois tipos de tālib, os antigos
companheiros do seu pai, mais motivados pela fé, embora o considerassem como
uma criança
121
, e os novos tālib, menos desinteressados e mais disciplinados. Ele
fez uso, para a sua infelicidade, de uma terceira carta, referente aos voluntários
dos países dominados, os sofa
122
.
Muito culto, Ahmadu fora formado pelo próprio Sayku ‘Umar, que, segundo
Mohammadou Aliou Tyam, dera -lhe tudo. Porém, em que pese uma notável
inteligência e uma grande piedade, ele não soube impor -se, como o fizera o seu
pai; ele era menos enérgico, como descreve Mage:
À primeira vista, eu atribuíra a Ahmadu dezenove ou vinte anos; na realidade,
ele alcançara trinta anos. Sentado, ele aparentava ser pequeno; e ele era antes
grande e tinha belos traços. Sua face era muito doce, seu olhar calmo e indicava
ser inteligente [...]. Ele carregava à o um chapéu que ele desfiava, resmungando
121 Ibid., p. 318.
122 Sobre as diculdades de Ahmadu com os tālib do seu pai, consultar E. Mage, 1868, pp. 222 -305.
737
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
durante os intervalos da conversa. Diante de si, sobre a sua pele de cabra, estavam
dispostos um livro em árabe e as suas sandálias, bem como o seu sabre
123
.
Os primeiros anos do seu reinado foram anos marcadamente difíceis. Mal-
grado uma importante guarnição estacionada em Niamina, com o objetivo de
assegurar as comunicações com o Nioro, e uma outra em Tenengu, a revolta
ecoava de modo generalizado na região. Até 1866, as vitórias foram duvidosas; a
existência mais resoluta provinha de Beledugu. Em alguns momentos, a rota de
Nioro foi inclusive interrompida. A revolta de Belegudu, assim como aquela de
Sansanding, apoiada por Mari Jara, mantiveram as populações em compasso de
espera, até 1869. A agricultura e inclusive o comércio sofreram muito. De loca-
lidades tais como Tombula, cuja prosperidade impressionara Mage, em 1863,
não restavam senão ruínas apenas dois anos depois. Entretanto, a situação estava
longe de ser desesperadora. Em 1866, o emissário francês, a quem não escapava
à percepção nenhuma fraqueza do regime de Ségou, acreditava que Ahmadu
finalmente restabeleceria a sua autoridade, senão sobre todo o seu império, ao
menos sobre toda a província de Ségou. Fato consumado em 1869.
Todavia, enquanto estava em conflito com a resistência bambara, Ahmadu
era menos capaz de se ocupar das outras partes do império. Conquanto Mustafā,
de Nioro, abastecesse assaz regularmente a sua guarnição (numerosos emissários
de Nioro haviam chegado a Ségou enquanto Mage ali estava), o mesmo não
aconteceu relativamente ao seu primo Tijjaani -Alfaa, que, após ter submetido
o Macina, administrava -o de modo totalmente independente. Ele igualmente
declarava -se legítimo sucessor de Sayku ‘Umar, do qual exibia algumas relí-
quias para justificar a sua asserção. Ele soube habilmente lidar com a raiva
nutrida pelos habés contra os seus antigos mestres fulbes. Um grande chefe
militar fortalecido por um grande chefe religioso, Tijjaani -Alfaa perpetuou em
Bandiagara, a sua nova capital, o fervor religioso do seu tio: Em Bandiagara,
a jornada se desenrola em meio a preces e poder -se -ia dizer que a cidade é um
vasto seminário, do qual Tidjani era o superior. Nem um grito, sem cantos,
música ou danças”
124
.
Mas a oposição de maior fúria a Ahmadu proveio do seu irmão Mohammadu
Habibu, que, após o desaparecimento do seu pai, tomara certo distanciamento
125
.
123 Ibid., p. 214.
124 Relatório do lugar -tenente de navio Caron, citado em Y. J. Saint -Martin, 1970, p. 103.
125 As relações entre os dois irmãos eram aparentemente boas antes que Habibu soubesse que o seu pai tudo
deixara para Ahmadu. Assim, em fevereiro de 1864, Mage percorreu um bom trecho com mercadores
soninquê, dentre os quais havia um encarregado de levar a Ahmadu ricos presentes de Habibu (E. Mage,
1868, p. 108).
738
África do século XIX à década de 1880
Outro irmão, Mukhtar, instalara -se por sua própria conta em Koniakary e,
em acordo com Habibu, aspirava substituir Mustafā em Nioro, todavia fiel a
Ahmadu. Em 1869, a calma voltara à região de Ségou; Ahmadu ali deixou o seu
irmão Agibu e dirigiu -se para o Kaarta, de onde Mustafā acabara de adverti -lo
sobre a ameaça que os seus irmãos Mohammadu Habibu e Mukhtar faziam
pesar sobre Nioro, onde muitos tālib já estavam ganhos para a sua causa. Ambos
netos de Muhammad Bello, através da sua mãe, eles acrescentavam a esta ilustre
filiação materna uma grande inteligência, assim como muita generosidade e
savoir -faire
126
.
Ahmadu fortalece a sua autoridade: 1869 -1878
Ahmadu, por sua vez, o podia deixar um chefe hostil instalar -se em
Nioro, localidade que representava o pulmão do Ségou. Ao final de 1869, ele
chegou ao Kaarta. Na mesma época, um xerife marroquino da dinastia alawite,
conferiu -lhe o importante título religioso de amīr al -mu ‘minīn, em outros
termos, “chefe dos crentes”. Ele poderia doravante impor -se sobre todos os
seus outros irmãos. Durante quatro anos, ele conduziu uma árdua luta contra
todos aqueles que haviam permanecido no Kaarta, habitantes que apoiavam
Habibu e Mukhtar em suas reivindicações em favor de uma partilha da herança
paterna. Paralelamente ele aumentou a sua autoridade em Gidimaka e no ter-
ritório xasonke do Logo
127
, além de destruir alguns focos rebeldes bambara e
soninquê.
Em 1874, ele estava no auge da sua potência
128
. Porém, embora ele tenha
saído vitorioso desta guerra fratricida, o mal -estar persistiu durante muito
tempo no Kaarta. Os tālib desaprovaram a ligação entre Habibu e Mukhtar.
Ahmadu foi portanto obrigado a mostrar -se mais conciliador perante os seus
dois outros irmãos e a muito mais levar em conta a sua vontade de participarem
na administração do império estabelecido pelo seu pai. Deste modo, Mustafā
foi confirmado à frente de Nioro, onde Ahmadu o designara desde março de
1873. Ele tornou -se o chefe de todo o Kaarta, mantendo sob a sua autoridade
os seus irmãos Seydu, em Dinguiraye, Bassiru, em Koniakary, Daye, em Diala e
Nuru, em Diafunu. Anualmente, por ocasião da festa da tabaski, todos deveriam
126 B. O. Oloruntimehi, 1972a, p. 179.
127 Os chefes do Logo jamais aceitaram a supremacia de Diouka Sambala, imposta pelos franceses.
128 Y. J. Saint -Martin, 1967, p. 150.
739
O Macina e o Império Torodbe (Tucolor) até 1878
encontrar -se em Ségou para negociar
129
. Ainda em Ségou, Ahmadu reforçou a
sua administração. O seu conselho informal, composto por autoridades militares
e religiosas como Ceerno Alasan Baa, Ceerno Abdul -Qaadiri Baa, Baaba Ulibo
e Bobbo, era acrescido dos seus parentes, como Seydu Jelyia e Muhammadu
Jeliya. Nos confins, o sistema administrativo tradicional era geralmente mantido;
Ahmadu teve somente que substituir os chefes recalcitrantes pelos seus parentes
mais favoráveis e nomear junto a eles um quadro pessoal de fiscalização; loca-
lidades torodbe fortificadas, criadas de modo quase generalizado, reforçaram a
segurança nas zonas dominadas
130
.
Paralelamente à retomada dos fluxos comerciais tradicionais junto às casas
comerciais francesas do alto Senegal
131
, o comércio com os estabelecimentos
ingleses desenvolveu -se, criando certa diversificação econômica
132
. O comércio
haussa e o tráfico da noz -de -cola igualmente se intensificaram. Ao abrigo das
ingerências dos franceses, voltados desde 1866 sobretudo para os rios do Sul, um
novo equilíbrio desenhou -se no Sudão Central. Contudo, o processo foi brutal-
mente interrompido em 1878, em razão da intervenção francesa no Logo.
Conclusão
Em 1878, Ahmadu superara todos os obstáculos que se lhe haviam imposto,
no imediato posterior ao desaparecimento do seu pai. Certamente, os bambara,
sobretudo aqueles originários de Beledugu, ainda não haviam renunciado à
defesa das suas crenças ancestrais. Mas eles não mais representavam um rele-
vante perigo para a consolidação do império
133
. As numerosas guarnições, temi-
das à época, e a vocação universal do islã produziriam, neste grande conjunto, um
cimento nacional. A aliança com todas as etnias e categorias sociais, inaugurada
pelo próprio Sayku ‘Umar, foi amplamente seguida pelos seus filhos e todos
os torodbe, criando as condições para uma integração cultural. É significativo,
neste particular, que o Sudão francês, país que não representava senão o antigo
Império Torodbe, tenha sido, entre os Estados do Oeste africano, um dentre
129 Este sistema não funcionaria como devido e, em 1884, Ahmadu retornaria novamente ao Kaarta para
lutar contra a dissidência dos seus irmãos.
130 Arquivos da antiga A. O. F., Notice sur le cercle du Ségou, 1 G320/I, 1904, pp. 15 -16.
131 Ahmadu suspendera as relações comerciais durante toda a duração da luta contra os seus irmãos.
132 B. O. Oloruntimehin (1972a, p. 207) nota o envio de uma missão inglesa dirigida pelo próprio gover-
nador da Gâmbia até Ségou, em maio de 1876.
133 Y. J. Saint -Martin, 1970, p. 119.
740
África do século XIX à década de 1880
 . Ahmadu recebendo a corte do seu palácio. [Fonte: E. Mage, Voyage au Soudan occidental, 1868,
Hachette, Paris. Illustration: © Hachette, Paris.]
os quais havia menor volume de problemas étnicos. Assim sendo, embora a
violência − através da qual o islã fora imposto a povos moldados durante vários
séculos pela crença em suas religiões tradicionais − explicasse facilmente as suas
reticências, o campo aparentava estar pronto para um mais pacífico proselitismo,
fosse na Senegâmbia, na qual a potência colonial acreditava ter eliminado a sua
influência, ou no Sudão Central, onde a maior parte dos grandes chefes reli-
giosos, emergentes após Sayku ‘Umar, de um modo ou de outro reclamaram -se
da sua herança.
C A P Í T U L O 2 4
741
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
Haveria unidade na história dos povos da costa ocidental da África, desde
o Senegal até o Bandama
1
? Esta apreciação parece duvidosa, embora o período
do pré -imperialismo, estendido do icio do culo, com o final do tfico
institucionalizado, até o peodo imediatamente anterior ao grande avanço
colonial, apresente uma relativa homogeneidade. É precisamente porque o
setor assim definido abrange zonas culturais muito diversas, de tal modo que
o único fator de unidade que se ime é justamente a inflncia europeia
presente ao longo de toda a costa, em razão da formação dos primeiros encla-
ves coloniais, tema estudado em outro capítulo; justamente em razão disso, o
presente capítulo deve necessariamente ser constrdo do ponto de vista dos
povos africanos. Ele seguirá, portanto, um plano geográfico, abordando suces-
sivamente as grandes zonas culturais, a saber, a Senegâmbia, a Alta Guie
o Fouta -Djalon, as regiões kru, os mande do Sul e, finalmente, os mande do
Alto -Níger até o Bandama.
1 O autor gostaria de agradecer Charles Stewart, que generosamente leu a primeira versão deste capítulo
à qual trouxe certo número de sugestões úteis.
Estados e povos da Senegâmbia
e da Alta Guiné
Yves Person
742
África do século XIX à década de 1880
A Senegâmbia
A Senegâmbia
2
é a única região na qual o antigo eixo cultural do Sudão Oci-
dental, caracterizado por grandes Estados, com um importante, porém minori-
tário islã, confluiu para as margens do Atlântico, com a zona onde a corrosiva
potência da Europa era exercida desde séculos e manifestava -se especialmente
pelo tráfico de negros para a América. Estas sociedades, cujo caráter sudanês
e muçulmano as tornava mais estáveis comparativamente àquelas do Golfo da
Guiné, não foram menos sacudidas pelo aumento da demanda externa, consti-
tuída pelas suas riquezas. O tráfico de negros começara a regredir nesta região
desde 1760, em que pese uma breve retomada nos anos 1780. Nem a abolição
do tráfico pela Inglaterra, em 1808, e sequer a efetiva aplicação da legislação
francesa antiescravagista, em 1831, tiveram grande efeito sobre um comércio,
demonstrando indícios de declínio, mas que se manteve em escala reduzida,
sob várias formas travestidas ou clandestinas, até 1880. A explosão dos preços
representada pelos produtos da Senegâmbia marcou o principal ponto de infle-
xão econômico. Em 1830, o valor médio anual das exportações de Goma se
encontrava em níveis cinco vezes superiores àqueles que as exportações de escra-
vos haviam atingido, no auge do tráfico. Paralelamente à retomada do comércio
da goma, as exportações de ouro, couro, marfim e cera de abelha conheciam um
notável desenvolvimento, ao passo que o amendoim, chamado a desempenhar
em meados do século o papel de primeiro item de exportação, começa a surgir no
mercado
3
. Esta reestruturação do comércio externo teve igualmente profundas
repercussões na economia local, arruinando os antigos beneficiários do tráfico,
em proveito de grupos bem posicionados com objetivo de tirar partido desta
nova produção.
A partir do final do culo XVIII e por raes, as quais ao menos par-
cialmente, não tinham nada em comum com o fator europeu, o islã adquirira
novo dinamismo. As classes camponesas convertiam -se em massa, especial-
mente para protestar contra os excessos de uma aristocracia que buscava tirar
proveito dos novos circuitos econômicos, arruinando o povo em lugar de
prote -lo. Portanto, as sociedades da Senegâmbia encontravam -se presas
às garras de duas foas perturbadoras: o novo e agressivo islã e a profunda
mutação em curso na economia mundial, sob o efeito da industrializão. As
velhas estruturas políticas e sociais, devido à sua incapacidade de renovão,
2 J. Dubief, 1973, pp. 125 -130.
3 A. Cauneille, 1968, pp. 108 -109.
743
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
 . Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné (mapa de Y. Person).
744
África do século XIX à década de 1880
seriam impotentes para enfrentar a grave crise que assim se inaugurava, cuja
durão alcançaria o dia do estabelecimento do sistema colonial, imposto na
qualidade de nova ordem.
Isso é particularmente nítido, ao Norte, no tocante aos reinos dos wolof e
dos serere, pois que estas duas nacionalidades constituem uma unidade histórica
bem distinta.
A derrota avassaladora de almaami Abdul -Kādiri Kaan, do Fouta -Toro, frente
ao damel do Kayor (Cayor), Amari Ngone, em 1786, restabelecera o poder da
aristocracia neste Estado e no Waalo. Mas, na justa medida em que os príncipes
revelavam um retorno às práticas religiosas tradicionais, as massas acentuavam
a sua conversão ao islã.
O Waalo era corroído em sua circunvizinhança imediata pela feitoria francesa
de Saint -Louis, a qual cairia em mãos britânicas de 1809 a 1817. Ele igualmente
sofria a pressão direta dos mouros trarza, aos quais recém havia cedido a margem
direita do rio e dos quais ele não lograva repelir as frequentes incursões.
Justamente este país, fraco e transtornado, foi o palco onde novas relações
com a Europa, não sem dificuldades, adquiriram os seus contornos. O tráfico
ilegal organizava -se, entretanto, ele não logrou estender -se ao Norte da Guiné
portuguesa. Quando os franceses reocuparam Saint -Louis e Gorée em 1817,
foi necessário encontrar um novo objeto para as relações comerciais. A goma,
as peles e a cera eram gêneros que qualquer camponês poderia produzir. Os
franceses, no Senegal, a exemplo dos britânicos, mais ao Sul, em Serra Leoa,
desejavam criar plantações em substituição àquelas das Antilhas. Este foi o
objeto do grande esforço de colonização agrícola, sobretudo fundado no algo-
dão, exercido pelo governador Schmaltz e o barão Roger à custa do Waalo,
de 1819 a 1827. O projeto fracassou, por erros técnicos, falta de mão de obra,
oposição ao comércio e hostilidade dos autóctones. Retornou -se então a uma
política puramente comercial, mediante à qual os negociantes de Saint -Louis
foram levados à acomodação, em função da crescente influência de grandes
casas exportadoras, sobretudo originárias de Bordéus. Aquando das enchentes,
os captadores de impostos dirigiam -se às escalas situadas nas duas margens do
rio, moura e negra, rio -acima até Bakel, situada no Gadiaga.
Direitos progressivamente mais importantes foram momentaneamente pagos
à aristocracia wolof, o que não fez senão agravar as guerras de sucessão, normais
neste sistema. De 1827 a 1840, a luta é constante entre as matrilinhagens tejek
(teedyekk) e os jos (dyoos), representados notadamente pelos brak Fara Penda
Adam Sall (1827 -1840) e Xerfi Xari Daaro (1830 -1835). Entretanto, o povo não
respondeu e tudo aparentemente arruinou -se em 1830, quando um movimento
745
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
muçulmano, reprimido no Cayor, em 1827, e refugiado na fronteira do Waalo,
passou a ser liderado por um homem de casta, o ferreiro Diile. Em algumas
semanas, este último conquistou todo o país em nome de um islã igualitário e o
sistema tradicional parecia destruído, porém ele seria brevemente restabelecido
pelo governador de Saint -Louis, o qual interveio militarmente, massacrou Diile,
arrestou -o e levou -o publicamente à forca.
Após isso, a França recusou -se a intervir na luta das facções, na qual se
ingeriram progressivamente os trarza que atravessavam sistematicamente o rio
e devastavam o Waalo. Renunciando ao combate, alguns dignitários formaram
um partido mouro elevaram ao casamento, em 1833, a jovem lingeer Njambot
(Ndyöböt), oriunda do ctejek, com Muhammad al -Habīb, emir dos trarza,
atitude que não conduziu à paz. O governador de Saint -Louis, furioso ao notar-
-se cercado por mouros, ofereceu desde então todo o seu apoio aos jos. Os tejek
saíram entretanto vitoriosos e, com a morte de Njambot, em 1846, sob o manto
de um brak fantoche, Mo Mbodj Maalik (1840 -1855), o domínio do país passou
para a sua irmã, Ndate Yalla.
Esta hostilidade na periferia de Saint -Louis tornava -se insuportável quando
a França adotava uma atitude imperialista. A primeira tarefa de Faidherbe con-
sistiu na total anexação do Waalo, em três campanhas militares, conduzidas de
janeiro a junho de 1855. O país foi dividido em cinco regiões; entretanto, em
que pese o despovoamento, o ocaso do velho reino seria mal assimilado. Em vão
os franceses tentaram usar Léon Diop Sidia, herdeiro dos brak educado por eles:
eles foram obrigados a depor-lo para o Gabão. Entretanto, seria exatamente
neste país, de 1855 a 1880, que os franceses poriam em prática os métodos
administrativos e de conquista que demonstrariam a sua eficácia, pouco mais
tarde em todo o Oeste africano.
Muito mais rico e povoado, comparativamente ao Waalo, e mais afastado de
Saint -Louis, o Cayor primeiramente demonstrou fortíssima resistência. Desde
meados do século XVIII até 1855, uma união pessoal passou inclusive a ligá-
-lo ao reino parcialmente seereer formado em Bawol (Baol). Neste caso e uma
vez mais, a ascensão do islã, ao redor do centro de Koki, ameaçou a aristocracia
tradicional. Malgrado a vitória real de 1786, os muçulmanos refugiaram -se em
grande número no Cabo Verde, onde constituíram a “república” dos lébu. Os
damel não lograram atingir a pequena costa senão pelo dificultoso porto de
Rufisque; além disso, a província vizinha do Jaander (Diander), profundamente
islamizada, não era segura. Após a repressão dos muçulmanos do Norte, em
1827, o reinado de Maisa Tenda Joor (1832 -1855) foi, entretanto, um período
de calmaria.
746
África do século XIX à década de 1880
Porém, começa a seguir a crise derradeira. Os franceses, comprimidos em
Gorée, ocuparam Dakar em 1857 e rapidamente projetaram uni -la a Saint-
-Louis por telégrafo. O Cayor encontrar -se -ia desde logo preso. Ele mergulharia
na desordem durante os breves reinados de Makodu (1859 -1861) e Majoojo
(Madiodio) (1861 -1864). Contudo, após 1862, o partido da resistência ao damel
conduziu a eleição do jovem Laat Joor Ngone Latir Jop (Lat -Dior). Cassado
pelos franceses, este último refugiou -se junto a Maba, o chefe muçulmano de
Salum, convertendo -se ao islã em sua forma tijāni. A confraria de al -Hadjdj
‘Umar Tal e diversos movimentos religiosos semelhantes proliferariam muito
rapidamente em um país que não conhecia senão a velha Kādirīyya. Esta diver-
sidade anunciou o fenômeno marabuto, marcante na região no período colonial
e futuro constituinte de um dos aspectos da resistência africana. Sabemos que a
crise europeia de 1867 e, com maior intensidade, o desastre de 1870 incitaram
a França ao recuo além -mar/aquém -mar. Laat Joor, novamente em Cayor como
chefe de cantão, conquistou o título de damel e imediatamente dedicou -se a con-
cluir a islamização do país, com vistas a restabelecer a união entre a aristocracia
e o povo. Ele articulou com a França, decidido a não ceder fundamentalmente
em sua ação. Justamente com a ajuda dos franceses, em 1875, ele expulsou o
marabuto tukuloor Amadu Sheku, do Jolof, para ali empossar o seu parente
al -Buuri Ndyay.
Entretanto, desde 1850, a cultura do amendoim expandiu -se em toda a
Senegâmbia, estabelecendo assim a sua dependência perante o mercado mun-
dial. Esta situação seria consumada, em 1879, pelo projeto da estrada de ferro
Dakar -Saint -Louis, em princípio aceito por Laat Joor. Entretanto, ele percebeu
estar em vias de perder o seu país e, após ter tergiversado, interrompeu os traba-
lhos em 1881, preferindo a resistência sem esperanças à submissão. A sua morte,
após uma longa guerrilha, em 1886, marcaria o fim do reinado e a instalação
da ordem colonial.
Pobre e isolado no interior do país, os jolof também enfrentaria a ascensão
do islã, não sentindo tão diretamente a influência da Europa. A sua história está
ligada àquela do Cayor, contudo, al -Buuri seria capaz de prolongar a sua resis-
tência até 1890, ora ativa, ora passivamente. Recusando -se a aceitar a submissão,
ele então se somou a Ahmadu de Ségou, filho de al -Hadjdj ‘Umar, e com ele
ganhou os confins de Sokoto, onde encontraria a morte, aproximadamente no
ano 1900, em um dos últimos setores da África livre.
Apesar de uma língua muito diferente, muito mais próxima do fulfulde
dos fulbes que do wolof, os seereer, com o seu notável sistema agro -pastoral,
formaram, a partir do século XIV, sólidos reinos fundados no mesmo tipo de
747
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
organização social que os reinos wolof. O Siin (Sine), puramente seereer, igno-
rou absolutamente o islã até a colonização francesa. O Salum, mais potente,
era menos homogêneo. No século XVIII, ele estava em plena expansão militar
e estendia o seu território até o Gâmbia. Todavia, estas terras a Leste eram
exclusivamente povoadas pelos wolof e malinke. A autoridade dos maad (buur)
impôs -se fora do Salum, ao Sul, sobre os velhos reinos malinke do Nyumi e
do Baadibu (Rip). O islã, minoritário estava invariavelmente presente sob a sua
forma wolof -tukuloor ou sob a sua forma malinke. O único setor puramente
seereer que permaneceu ligado às tradições foi a província vizinha da capital,
Kahane (região de Kaolack).
Nesta área, iniciou -se muito cedo a cultura do amendoim, exportada simulta-
neamente pelo Gâmbia e pela Pequena Costa (Joal, Portugal), onde as missões
católicas atuavam desde 1849. Elas esperavam tirar proveito da ausência do islã e
da existência de uma antiga comunidade luso -africana, a qual recém -abandonara
o emprego do crioulo português.
A exemplo do Baixo Senegal, a aristocracia tradicionalista, seereer ou
malinke, encontrava -se em uma difícil situão, acuada entre as exigências
dos europeus e o islã contestador, o qual contra ela organizou os camponeses
e as minorias. O dinamismo da Tijāniyya veio incorporar -se a este contexto,
com a visita de al -Hadjdj ‘Umar, aproximadamente em 1847, antes de iniciar
a sua guerra. Seria um dos seus discípulos, Maaba Jaaxu (Maba), um marabuto
tukuloor instalado nas comunidades wolof do Baadibu, que viria transtornar
a antiga ordem. Em homenagem ao seu mestre, ele batizou a sua residência
com o nome Nioro.
A “guerra dos marabutos” abatia -se desde 1845 sobre o Kombo, nos arredores
de Banjul, ao Sul do rio, quando, em 1859, Faidherbe e o governador da Gâmbia,
Benjamim d’Arcy, lançaram uma ação convergente sobre o Salum (ocupação de
Kaolack) e no Baadibu. Em 1861, Maba levantou os muçulmanos do Baadibu,
do qual brevemente ele seria o mestre, e em seguida interviria na guerra civil do
Nyumi, onde limitou os seus sucessos, para não desagradar aos britânicos. Após
unificar os muçulmanos do Salum oriental, ele lançar -se -ia em 1862 ao assalto
deste Estado, cujo buur, Samba Laobe Fal, mostrar -se -ia incapaz de opor -lhe
resistência, apesar do apoio dos franceses. A partir desta região, com o apoio
de Laat Joor, ele se tornaria mestre de uma parte do Bawol e de todo o Jolof,
em 1865. À ameaça sobre Cayor, os franceses reagiriam queimando Nioro, no
Baadibu, após uma indefinida batalha.
O fim, entretanto, originou -se alhures. Em julho de 1867, Maba invadiu o
Siin, enfrentando, todavia, neste país homogêneo sem muçulmanos, uma verda-
748
África do século XIX à década de 1880
 . Chefes da região costeira de Mandinka na Gâmbia em 1805.
749
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
deira resistência nacional dos seereer. Ele foi então derrotado e morto pelo buur
Kumba Ndofen Juuf (Diouf) (1853 -1871).
O império mal unificado de Maba rapidamente enfraquecerá em meio às
querelas dos seus sucessores, permitindo certa reconstrução do Salum, onde
a intervenção dos franceses de Kaolack seria de mais em mais direta. Namur
Ndari, sucessor de Maba, estendeu contudo a sua influência rio acima, na Gâm-
bia, atingindo Niani e o Wuli, porém as suas intervenções ao Sul do rio foram
mal -sucedidas. Os franceses ocupariam a região sem dificuldades em 1887.
A Alta Guiné e o Fouta ‑Djalon
O Gâmbia, navegável em centenas de quilômetros, garantia culos o
escoamento por via marítima da produção das minas de ouro em países mande,
no Alto Senegal e no Alto Níger. Mais ao Sul, entramos em um mundo dife-
rente, a Alta Guiné, onde povos de cultivadores sem tradição de centraliza-
ção política, frequentemente empregando línguas oeste -atlânticas, controlaram
durante muito tempo a costa. A zona sudanesa não estabeleceu de fato ligações
com o mar, da Monróvia ao Gâmbia, senão a partir do século XVIII. Também
nesta região estabeleceu -se um dos mais antigos centros de influência europeia,
na Guiné -Bissau, berço da cultura crioula e, posteriormente, em Serra Leoa e na
Libéria. Como a Senegâmbia, esta região teve certa importância para o tráfico
negreiro desde o século XVI, embora o seu papel tenha declinado durante o
século XVIII.
Além da zona costeira, os dois mais importantes povos eram os malinke,
cujo império do Kaabu (Gabu) sem dúvida remontava ao século XIII e era
independente do velho Mali desde o século XVI, e os fulbes, presentes ao menos
desde o século XV embora não tivessem constituído o Estado muçulmano do
Fouta -Djalon senão em 1727.
No início do século XIX, a influência portuguesa estava em declínio, porém
o tráfico clandestino prosseguiria por um período relativamente longo, de parte
a outra do centro antiescravagista de Serra Leoa. O Kaabu dos malinke difi-
cilmente manteve a sua influência até as margens ao Sul do Gâmbia, mas os
seus antigos vassalos, os costeiros bainuk, estavam a caminho da ruína. Os
foa (balanta), camponeses sem tradição de centralização política, destruiriam a
capital dos bainuk em 1830 e a maior parte dos sobreviventes seria assimilada
pelos malinke ou pelos joola (diola), estes robustos rizicultores, tradicionalistas e
anarquistas”, que controlavam toda a zona costeira ao Norte. Ao Leste, os fulbes
750
África do século XIX à década de 1880
do Fouta -Dijalon dominavam os malinke até a Gâmbia (Kantora). No Kaabu
e dependências, a maioria fulbe ganhou maiores proporções, tendo dificilmente
suportado a sua posição subordinada.
Justamente neste momento os franceses instalaram -se em Casamance, na
Karabane, no ano 1836, em seguida em Seeju (Sediou), no ano 1838. O comér-
cio de amendoim organizou -se rapidamente, com previsíveis consequências
econômicas e sociais
4
.
Entretanto, a perturbação da antiga ordem começou em 1859, quando o Fouta-
-Dijalon e, particularmente, o grande alfaa -mo -Labe, Yaya Mawdo, iniciaram uma
decisiva luta contra o Kaabu, cujo rei Yargi Sayon foi assassinado. O velho império
entrou em colapso no ano 1867, na catarata de Kansala (situada na futura Gui
portuguesa), as o almaami Umara de Timbo ter se juntado ao alfaa -mo -Labe.
Dentre os reinos malinke vassalos, o Brasu rapidamente sucumbiria frente a Alfaa
Moolo, mas o Oio manteria a sua liberdade até a conquista portuguesa em 1905.
A queda do Kaabu teve consideráveis repercussões, uma vez que os fulbes
revoltaram -se contra os seus mestres malinke até as margens do Gâmbia. Em
1869, Alfaa Moolo, personagem de origem obscura, organizou o reino do Fula-
dugu, de Kolda a Velingara, rio acima a partir de Seeju. Ele reconheceu vaga-
mente a autonomia de Timbo, aplicando uma política de assimilação sistemática
dos seus sujeitos. Até a sua morte, em 1881, este neo -muçulmano seria o grande
obstáculo dos malinke.
Estes últimos tentaram se organizar em torno de Seeju com Sunkari Kamara,
cuja oposição ao comércio brevemente lançá -lo -ia contra os franceses. A revolta
por ele desencadeada em 1873, contra a influência francesa, estaria contudo
fadada à derrota, haja vista que os balanta e os fulbes de Muusa Moolo (filho
de Alfaa Moolo) haviam cerrado fileiras junto aos franceses. Sunkari foi levado
a submeter -se, antes de se lançar, em 1882, em uma derradeira e vã revolta que
marcaria o fim da sua carreira.
Mais eficaz foi o reagrupamento dos malinke ribeirinhos da Gâmbia, rea-
lizado em torno de um chefe religioso de origem jaaxanke (dyakhanke, alto
Senegal), o famoso Fobe Kaba Dumbuya. A partir de 1875, ele se transformou
em chefe de guerra, com o apoio de indivíduos de Maba, para resistir a Alfaa
Moolo. Entretanto, este último expulsou -o rumo ao Oeste e, a partir de 1878,
Fode Kaba manter -se -ia dominante, ao conquistar os joola (diola, dyola, jola,
djola) do Fonyi, os quais ele parcialmente converteria ao islã.
4 D. M. Hart, 1967, 1970; E. Gellner, 1972, 1969, pp. 35 -69; E. E. Evans -Pritchard, 1949, pp. 29 -61.
751
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
A resistência dos malinke da Casamance, constritos entre os fulbes e france-
ses, finalmente demonstrou -se eficaz, em razão deles terem logrado preservar a
sua nacionalidade, aliando -se massivamente ao islã sob a influência de Sunkari
e Fode Kaba. A aliança com a França, desde 1883, promovida por Muusaa
Moolo, filho de Alfaa Moolo, seria contudo capaz de conceder certa vantagem
aos fulbes. Tirando proveito das rivalidades franco -inglesas, o Fode Kaba seria
capaz de se manter na fronteira da Gâmbia, até a sua derrota em 1901. Quanto
à resistência armada dos anarquistas”, como os joola, ela manter -se -ia até 1913,
quiçá até o imediato posterior à Primeira Guerra Mundial.
Da Gâmbia à Serra Leoa, a história de toda a região foi dominada, desde o
início do século XVIII, pela evolução do grande Estado fulbe do Fouta -Djalon
5
.
Graças a ele, o comércio de longas distâncias, caracterizado por influências
sudanesas, desembocava fortemente no mar, onde ele se associava aos europeus,
ao passo que, até o início do século XVIII, ele apenas dificilmente ocorria, neste
mundo marcado por sociedades descentralizadas. Rotas de caravanas regulares
desciam rio abaixo desde então do alto Níger, através dos altos planaltos do
Fouta, em direção às feitorias portuguesas do rio Geba (Bissau, Buba), rumo ao
rio Nuñez e ao rio Pongo, onde os franceses construíram Boke, em 1866, e Boffa,
em 1867, assim como em direção a Serra Leoa. Nesta região, surgia novamente
o amendoim, embora ele estivesse no limite da sua fronteira natural: tratava -se
justamente da famosa costa dos rios, tão cara aos viajantes franceses do século
XIX. Os ingleses, os quais a consideravam desde Serra Leoa, denominavam -na
os rios do Norte” (Northern Rivers). Em razão dos seus profundos recuos e das
suas baías de difícil acesso, esta região foi um dos pontos onde o tráfico clandes-
tino de negros prosseguiria de modo mais duradouro, até meados do século.
Esta persistência explica -se pela proximidade do Fouta -Djalon, uma vez que
o grande Estado fulbe, muito ávido por escravos, pilhava e importava grande
número destes últimos no interior do país ou deles apoderava -se como meio de
pagamento cobrado junto às minorias costeiras. Alguns estavam então dispo-
níveis para a exportação. No início do século XIX, a sociedade fulbe do Fouta-
-Djalon aparentava estar relativamente estabilizada. Os vencedores da guerra
santa constituíram uma nova aristocracia, estabelecida à frente de uma sociedade
extremamente rígida e hierarquizada. Ao nível do Estado e na esfera das ampla-
mente autônomas nove províncias (diiwal) que o constituíam, tanto quanto
no âmbito das paróquias” (misiide), as quais uniam uma localidade “nobre” e
5 E. Gellner, 1978.
752
África do século XIX à década de 1880
numerosas aglomerações de agricultores, era justamente uma classe altiva e certa
de si que imperava. Os vencidos, sobretudo antigos jalonke (yalunke), foram
oprimidos a ponto de perderem a sua língua; as suas fileiras foram acrescidas
por escravos importados. Compondo ao menos três quartos da população, eles
eram fortemente vigiados e duramente explorados. Em meio às redes desta cruel
sociedade, encontramos os marginais, excluídos e no limite da legalidade. Foram
especialmente as linhagens fulbe pobres que não puderam se amparar de terras
durante a guerra, sobrevivendo de magros rebanhos nos intervalos territoriais
localizados entre as misiide. No ativo, pode -se agregar uma notável difusão da
cultura islâmica, acompanhada, fato raro na África negra, por um frequente
emprego da língua fulfulde, em uma forma escrita. Embora fosse muito culta,
a aristocracia caracterizava -se entretanto pela criação de animais e pela guerra,
assim como por certas modalidades aventureiras de comércio. A tradição cultu-
ral, fundamento da construção política, permanecia viva e localizava -se no diiwal
de Fugumba, no qual os marabutos arbitravam as lutas políticas, consagrando
os almaami.
No entanto, os fulbes não preservaram o monopólio da função religiosa,
inclusive dela confiaram o mais prestigiado exercício a alógenos, considerados
neutros. Ela foi obra de uma minoria étnica muito bem conhecida, os jaaxanke,
os quais cobriam, desde o século XVI, a Gâmbia, o Fouta e a Região dos Rios,
com as suas empresas comerciais. Os joola (diola) do Oeste eram, primeira-
mente, homens de religião e, em princípio, não violentos. No Fouta, à margem
do comércio de longas distâncias, eles tornaram -se os mestres da cultura reli-
giosa desde que fundaram Tuba, nas proximidades de Labe, aproximadamente
em 1810. A aristocracia encorajou -os, em razão da sua neutralidade política
e a sua influência extensa de Kankan, na bacia do alto Níger, até as feitorias
europeias de Serra Leoa.
A potência do Fouta -Djalon repousava a sua força militar sobre esta massa
de cavaleiros vestidos de branco que desciam dos altos planaltos rochosos para
executarem as incursões, a eles retornando logo após as ações. Entretanto, esta
força dependia da sua unidade política, quase totalmente abalada em seus fun-
damentos pelas perturbações ao final do século XVIII. Em um reflexo de sobre-
vida, a aristocracia limitou os danos ao ratificar o compromisso de 1799. Cada
uma das duas grandes famílias, alffayaa e soriyaa, designava simultaneamente
um almaami e estes dois personagens reinavam alternadamente em Timbo onde
cada qual exercia o seu poder de dois em dois anos. Este célebre compromisso
não foi invariavelmente respeitado e provocou inumeráveis combates; porém,
essencialmente, ele mostrou -se eficaz. As guerras civis eram na realidade um
753
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
traço estrutural, uma via normal de acesso ao poder e a regra limitava a violência.
Em razão destas circunstâncias, elas próprias, a explosão do Estado encontrava-
-se excluída: estava presente a clivagem entre os dois partidos ao nível de cada
diiwal e de cada misiide. Assim sendo, embora o grande diiwal do Norte, o Labe,
dominado pelos jallo (diallo), fosse sozinho mais potente que todo o restante do
Fouta, ele não sonhou em nenhum momento, em separar -se deste último.
Embora não fossem menos profundas, estas divisões limitavam a potência
de agressão do fulbes. Com efeito, no início do século XIX, o território do
Fouta estava constituído e não mais se estenderia, cabendo ao Labe constituir
a grande exceção. Aqueles dentre os jalonke que não haviam sido subjugados
organizaram -se ao Leste e ao Sul, apoiados pelos malinke aos quais progres-
sivamente assimilar -se -iam. Assim sendo, constitui -se o reino de Tamba que
fecharia a rota do Níger e dominaria as minas de ouro do Bure. Deste modo,
organizou -se o Solimana, entorno da fortaleza de Falaba, a qual fecharia a rota
do Sul aos fulbes, igualmente barrada por Farana, instalado nos vaus do Níger,
pelos malinke do Sankaran.
 . Vista de Timbo, capital de Futa Djalon, c. 1815.
754
África do século XIX à década de 1880
No início do século XIX, a única exceção a este bloqueio de fronteiras foi
Labe que, à época, rumo ao Norte, não ultrapassaria o curso superior do rio
Grande. Contudo, a partir dos anos 1810 -1820, ele se lançaria além destes
limites e rapidamente atingiria a alta Gâmbia, onde dominaria os malinke do
Kantora. Esta expansão, responsável por um verdadeiro genocídio junto a diver-
sos povos tradicionalistas da família badiar ou tanda (chapi, pakesi, bassari), foi
obra dos potentes alfaa -mo -labe, na ocasião fortalecidos pelos próprios almaami,
os quais convocariam às armas todo o Fouta para uma espécie de cruzada. Este
seria especialmente o caso de Umaru, almaamia soriya, de 1840 à sua morte em
1869, que compensaria, com as suas guerras ao Norte, as suas derrotas frente aos
hubbu. Vimos que esta expansão triunfou definitivamente com a destruição, em
1867, do Império Malinke do Kaabu e com a associação, ao menos provisória,
do novo Estado fulbe de Alfaa Moolo.
Enquanto o Labe desenvolve -se ao Norte, a luta das facções entorno de
Timbo primeiramente não passava de um jogo estéril e sangrento, ao longo da
primeira metade do século. O detalhamento desta situação é bem conhecido,
vão seria aqui retraçá -lo. Após a interminável luta que opôs, no início do século,
Abdullaahi -Babemba (alfaayaa) e Abdul -Gadiri (soriya), o filho do primeiro,
Bubakar Mawdo, manteve -se durante doze anos no poder, violando a alternância
(1827 -1839). A guerra civil atingiria o seu auge em 1844, quando al -Hadjdj
‘Umar, retornando da sua famosa peregrinação, instalou -se no Fouta e impôs a
aceitação da sua mediação.
O sistema funcionaria doravante quase regularmente; entretanto, não se
poderia explicá -lo unicamente pelo crédito do marabuto da Tijāniyya, que inclu-
sive abandonara o Fouta, aproximadamente em 1847. Na realidade, a partir
de meados do século, a aristocracia do Fouta logrou calar as suas querelas, em
razão da sua necessidade de enfrentar um perigo sem precedentes: a revolta dos
hubbu.
Os Hubbu rassul -Allaahi, aqueles que amam o Enviado de Deus”, adquiriram
um perfil de uma seita religiosa composta por membros extremistas e puritanos
da Kādiriyya, os quais se distanciavam da aristocracia fulbe, no momento em
que esta última passava, em grande parte, para a Tijāniyya, sob a influência
de al -Hadjdj Umar, todavia incitando este último a deixar o país, temendo o
seu radicalismo. Era certamente deste modo que o fundador, Hubbu Moodi
Mamadu Juhe (Dyuhe), renomado sábio que estudara na Mauritânia junto a
Shaykh Sidia, via as coisas. Embora as pesquisas fundamentais não tenham
sido realizadas, pode -se entretanto avançar a hipótese segundo a qual esta efer-
vescência religiosa permitiu aos excluídos da sociedade fulbe organizarem o
755
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
seu protesto. Os hubbu aparentavam ter reunido fulbes marginais, excluídos
da partilha, com servos de origem jalonke ou escravos recém -importados. O
movimento estourou quase de modo generalizado atravessando o Fouta; em
1849, entretanto, ele foi julgado no conjunto do país, os insurrectos refugiaram-
-se na periferia, na zona costeira ou em direção ao alto -Níger. Estes últimos,
sob a direção pessoal de Juhe, em seguida do seu filho Abal, protegeram -se no
Fitaba, constituindo -se desde logo em uma temida ameaça, jamais eliminada
pelos almaani. Malgrado a sua fraqueza numérica, eles atraíram para si margi-
nais de toda origem, criando em sua fortaleza, Bokeeto, uma atmosfera de febril
misticismo. Eles foram temidos combatentes e devem ter despertado algo na
consciência dos fulbes, pois que os almaani não lograram, em absoluto, mobili-
zar estes últimos contra aqueles. Os hubbu poriam Timbo às chamas, em duas
ocasiões, e todos os ataques lançados contra Bokeeto encontrariam o fracasso.
Em 1871, o almaani alfaayaa, Ibraahiima Sori Daara, morreria tentando derrotar
a fortaleza. Seria finalmente necessário que os fulbes apelassem a Samori, cujo
acesso ao mar era perturbado pelos hubbu, para que este foco de contestação
fosse esmagado, em 1884.
A aliança com Samori, chegado às suas fronteiras em 1879, mostrar -se -ia
proveitosa para os fulbes do Fouta, os quais lhe venderiam bois em troca de
escravos. Mesmo com a diminuição da ameaça, esta sociedade não seria todavia
capaz de manter o equilíbrio entre as suas divisões, não oferecendo senão uma
fraca resistência à conquista colonial.
Substituindo uma estrutura política esfacelada, a formação do Fouta -Djalon
abrira um imenso espaço para o comércio sudanês direcionado ao caminho do
mar, não obstante a segurança permanecesse relativa e embora a aristocracia
fulbe tivesse uma curiosa concepção acerca da protão às caravanas. René
Caillié, que atravessou o país de Boke ao Níger, testemunhou desta situação
desde 1827.
A abertura do litoral às influências sudanesas transformaria profundamente
a civilização dos povos das terras baixas, com tamanha intensidade que muitos
dentre eles seriam obrigados a aceitar a autoridade política da Fouta -Djalon
6
.
Em direção Noroeste, os fulbes dominavam grande parte da atual Guiné-
-Bissau, este domínio foi ampliado em sua extensão após a queda de Kansala
(1867). Mais ao Sul, eles controlavam a navegação do rio Nuñez, impondo a
sua autoridade sobre os landuman de Boke, junto aos quais era feita a ligação
6 A. Martel, 1965, vol. 1, pp. 101 -132. Sobre o papel dos britânicos no bloqueio da progressão francesa
rumo a Ghadāmes, consultar: A. A. Boahen, 1964, pp. 132 -212.
756
África do século XIX à década de 1880
com os brancos. Embora tenham massacrado os comerciantes fulbe em 1840,
os landuman foram incapazes de se libertar e se lançaram em uma longa guerra
civil de 1844 a 1849. Em 1856, Faidherbe levou -os a precocemente entrar na
era colonial, construindo um forte.
Na faixa marítima, os biafada na Guiné Bissau e os nalu no rio Nuñes esca-
pavam à autoridade dos Fulbe em eu país alagado, porém em nada perturbavam
o comércio com os brancos. Conquanto a sua cultura sequer se assemelhasse
àquela dos mande, a linhagem nalu dos tawela reivindicava para si a mesma
origem; tal estado de coisas foi ilustrado pela ambígua resistência do rei Dina
Salifu frente à autoridade francesa.
Foi mais ao Sul, no rio Pongo, junto aos soso (susu), vizinhos de Boffa, que
a autoridade de Timbo fora mais forte. Parentes próximos dos mande, os soso
tinham então uma cultura profundamente marcada pelo substrato costeiro e
florestano, bem como e especialmente pelos baga, parentes dos temne, os quais
teriam sido assimilados pelos soso. Eles haviam sido fortemente atingidos pelo
tráfico negreiro e a influência europeia caracterizava -se, em seu contexto social,
pela existência de numerosas famílias de mestiços, originadas pela presença de
mercadores de escravos americanos ou britânicos. Pela ação destes últimos, o
tráfico clandestino não decidia extinguir -se. Posicionados nos confins do Fouta-
-Djalon, os soso percebiam no entanto a infiltração do islã e a sua cultura voltaria
a ser fortemente influenciada pela cultura sudanesa, em ritmo crescente durante
a era colonial. Aqueles do rio Pongo constituíam o reino de Tya, dominado
pelo clã damba (kati). A “guerra dos mulatos”, iniciada em 1865, saldou -se pela
derrota do partido escravagista e pró -fulbe: os lightburn timbo recém se haviam
resignado a este fracasso quando ocorreu a ocupação francesa em 1868.
Mais ao Sul, a autoridade do Fouta não se estendeu até o mar, mas a influên-
cia sudanesa não era menos profunda. Desde meados do século XVIII, o Moera
(Melakori) era dominado por uma linhagem do cture, linguisticamente assi-
milado aos soso e proveniente graças ao comércio de Kankan, mantido todavia
estritamente muçulmano
7
. Os almaami deste pequeno Estado impuseram -se
com a ajuda dos jalonke do Solimana. A partir de 1865, uma interminável guerra
civil dividiu -os, opondo o partido islamizante do almaami Bokari aos mala-
guistas” de Maliki Gheli. A instalação dos franceses, não distantes, em Benty
desde 1869, não traria nenhuma solução, pois que, este conflito tornar -se -ia um
elemento da rivalidade fronteiriça franco -inglesa. Ele suscitaria a intervenção
7 Para uma história geral da Tripolitânia, conferir L. C. Féraud, 1927. Para uma história da Awdjīla,
consultar J. P. Mason, 1971, pp. 200 -206, e a Révue d’histoire maghrebine, 1976, vol. 6, pp. 180 -188.
757
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
dos temne de Satan Lahay e dos soso de Karimu, senhores do Tambaxa e grande
inimigo dos ingleses. Samori, ele próprio, interviria após 1884 e o assunto não
seria resolvido senão após a delimitação franco -inglesa de 1889.
O caso do Morea ilustra a contento o fenômeno sociocultural em curso,
desde o século XVIII, na região costeira dos Rios. Os povos de línguas diversas
que viviam em civilizações agrícolas costeiras haviam sofrido, no século XVI,
um impacto proveniente do Norte, a invasão somba; porém, eles não o haviam
absorvido. Desde então, com a chegada ao mar do comércio sudanês, estas
culturas transformaram -se profundamente. Instalaram -se de modo generali-
zado linhagens malinke ou fulbe, impondo -se politicamente e introduzindo
um novo conceito sobre a política. Assim sendo, sociedades igualitárias e pouco
hierarquizadas aceitaram uma organização baseada em chefaturas guerreiras,
quase Estados. Estes povos guardaram entretanto a sua particularidade cultu-
ral: estes recém -chegados, pouco numerosos, foram totalmente assimilados no
plano linguístico. Este fenômeno cobriu essencialmente o Sul do país soso e os
domínios dos limba, loko e temne. Ele se interrompeu nitidamente na altura
de Serra Leoa, ou seja, no seio do domínio florestano do Sul, extremamente
fechado às rotas do comércio sudanês. Fenômenos sociais maiores estenderam-
-se, no entanto, muito mais além. Deste modo, a vida social e política dos temne
kpelle da Libéria era dominada por grandes sociedades de iniciação, dentre
as quais a mais conhecida, própria aos homens, frequentemente denominada
poron (a ser comparada com o poro, dos senufo)
8
. Trata -se portanto de um dado
social fundamental, transcendente aos limites das zonas históricas logo acima
por mim definidas.
Os loko, vanguarda dos mande, encontravam -se isolados entre os temne e os
limba, fortemente acuados. Eles sobreviveriam sob a direção de uma linhagem
de origem malinquê que lhes proveria um grande chefe, Pa -Koba, aliado de
Samori
9
.
Os temne, falantes de uma língua oeste -atlântica próxima do baga e do lan-
duman, foram obrigados a ceder Serra Leoa, após 1787, à colônia inglesa que
servia como base à cruzada anti -escravista e onde viria brevemente constituir -se
8 D. D. Cordell, 1977a; E. E. Evans -Pritchard, 1949.
9 Para uma exposição geral a obra a resistência no interior da Tripolitânia, consultar A. Martel, 1965, pp.
103 -106; no que concerne uma história detalhada dos Awlād Sulaymān, sobre a qual apoia -se a exposição
pré -citada, consultar D. D. Cordell, 1972, pp. 11 -45. Neste caso, so refere -se a um pacto realizado entre
os Awlād Sulaymān e um outro grupo de beduínos; porém, as alianças so, à imagem das alianças le no
Marrocos, igualmente eram capazes de unir grupos no interior de uma cabilda e, eventual e parcialmente,
substituir as relações de descendência ou se opôs a elas.
758
África do século XIX à década de 1880
a etnia crioula (krio). O seu grande centro foi Porto -Loko, destino das carava-
nas do Fouta e do alto -Níger, onde os soso tomaram o poder ao final do século
XVIII. Em 1818, indivíduos temne islamizados expulsaram os soso e seu chefe,
o alkali, aliando -se aos britânicos a partir de 1825. O Norte do país temne
era dominado por Kambia, onde reinava a família Satan Lahay que pretendia,
malgrado a sua total assimilação, ser originária dos ture do Bate (kankan). Ao
Sul do Rokel, os yoni, os quais compunham a vanguarda dos temne, sentiam-
-se isolados na justa medida do desenvolvimento do comércio de Freetown, em
torno deles, e da expansão dos kpa mende, fechando -lhes o Sul. Eles se lança-
riam em longas guerras para se libertarem e a resolução do problema seria obra
da armada britânica, em 1886.
Porém ao Sul do Rokel, entramos em um novo setor onde a imponência
do maciço florestal impediu a manutenção das ligações sudanesas esboçadas
no século XVI. O tráfico negreiro, em contrapartida, exerceu -se fortemente na
região costeira e persistiria até 1845, na clandestinidade, em que pese a proxi-
midade com Freetown e Monróvia. O interior não se estruturaria e tampouco
se esclareceria aos nossos olhos, senão em meados do século, quando uma rede
comercial animada pelos crioulos de Serra Leoa iria penetrá -lo, encetando a
sua integração ao mercado mundial, todavia sem alcançar os destinos das pistas
sudanesas, como ocorrido ao Norte. Este novo campo de forças multiplicaria os
conflitos locais, imprimindo -lhes uma nova configuração.
Ao Sul dos temne, o século XVIII foi o momento da potente retomada da
expansão de um grande povo mande do Sul, os mende, parentes próximos dos
toma. Eles se aproximaram do mar ao terem absorvido os bulom, os quais se
encontravam desde logo definitivamente separados dos kissi. Os mende cons-
tituíram grandes chefaturas guerreiras, quase pequenos Estados, cabendo às
mulheres, em seu meio, um excepcional papel político. A sua vanguarda, os
kpa -mende, aos quais a luta contra os yoni atrairia para a aliança britânica,
seria governada, aproximadamente em 1880, pela famosa Madam Yoko. Em
direção ao extremo leste do domínio mende, a grande chefatura de Luawa seria
dominada, ao final do século, por um potente conquistador de origem kisse, Kai-
-Lundu, cuja armada de mercenários enfrentou as vanguardas samori e invadiu
profundamente os países kpelle e toma, na atual Libéria
10
.
10 A. Bernard, 1906, pp. 16 -110; no que tange à região fronteiriça entre a Argélia e o Marrocos, referir -se
a R. E. Dunn, 1977, pp. 137 -175; em relação à vitória sobre os tuaregues, consultar J. Keenan, 1977, pp.
72 -85.
759
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
O avanço dos mende separou dois povos mande muito próximos, os kono,
encravados nas montanhas do interior, onde se escondiam diamantes até então
desconhecidos, e os vai, estabelecidos o mais tardar em meados do século XV,
na costa, no limite entre Serra Leoa e Libéria. Estes últimos mantinham che-
faturas assaz importantes, oriundas do Império” somba do século XVI, e parti-
ciparam ativamente do crescimento do tráfico negreiro, marcante na região no
século XVIII. Não causa espécie, portanto, que eles tenham colaborado com o
tráfico clandestino cujo mais eminente representante em sua região foi o espa-
nhol Pedro Blanco, até aproximadamente 1845. Estas relações ambíguas com
o mundo exterior suscitaram uma forte aculturação dos vai, embora tenham
igualmente valorizado a sua iniciativa criadora. Com efeito, foi por volta de 1818
que eles inventaram, em condições obscuras, um dos raros sistemas de escrita
tipicamente africanos
11
.
Contudo, após o século XVIII, os vai e os seus vizinhos a Leste, os de da
Monróvia, falantes da língua kru, encontravam -se comprimidos na costa, em
razão da extremamente vigorosa expansão de um povo do interior
12
. Tratava -se
dos gola que, falantes de uma língua oeste -atlântica como os kissi, deixaram
a sua pátria do Kongaba para expandirem -se em direção ao mar, empurrados
para o Norte pelos mende e povos aparentados. No início do século XIX, a sua
vanguarda, alcançando o contato com os kpelle, interpunha -se entre a costa e
a rota do Sudão.
Atingimos, na realidade, o eixo do Saint -Paul que unia a costa da Monróvia
às altas terras do Konyan, marcando o limite do mundo sudanês dos malinke.
Em seu conjunto, a barreira florestal permanecera inviolada ao Sul do Rokel,
assim como da ligação do alto -Níger e da costa de Serra Leoa, atravessando o
Fouta -Dijalon, até o Bandama e inclusive no Comoé, bem além rumo ao Leste.
Este eixo do Saint -Paul, abertura isolada entre a savana e o mar, determinante
na configuração da Monróvia e na localização dos vai, foi valorizado em virtude
da grande invasão somba no século XVI, entretanto, entrara posteriormente em
inatividade. No século XVIII, quando o tráfico negreiro desenvolveu -se da Serra
Leoa à costa dos kru, tal rota, ao permitir o escoamento dos escravos provenien-
tes do interior, conheceu novo vigor. Assim sendo, ao final do século, um afluxo
de malinquê vindos do Konyan constituiu o Estado guerreiro do Kondo, em
11 R. E. Dunn, 1972, pp. 106 -107 e pp. 31 -49, 137 -175; E. Burke III, 1972, pp. 176 -178, e 1976, pp. 1 -40;
J. M. Abun -Nasr, 1975, pp. 284 -303; sobre os kunta, conferir A. Zebadia, 1974, e A. A. Batran, 1974.
12 C. R. Ageron, 1968, vol.1, pp.3 -56, 239 -265, 367 -393, e vol. 2, pp. 737 -858; A. Bernard e N. Lacroix,
1906, pp. 122 -126.
760
África do século XIX à década de 1880
torno da chefatura de Bopolu. Encarregados em manter aberta a via, os chefes
de Bopolu organizaram, no baixo Saint -Paul, uma confederação de chefaturas
loma (toma), kpelle (guerze), vai, de e gola. Pouco após 1820, Bopolu tornou -se
a capital de um oficial por mérito, o famoso Sau Boso, que estreitamente ligar-
-se -ia, à imagem dos vai, aos fundadores da Libéria. Após 1830, no entanto, o
seu poder foi ameaçado pelo chefe Gola Jenkins e, após a sua morte, em 1836,
a hegemonia do Kondo sucumbiria
13
. Seriam justamente os gola, hostis e dora-
vante hegemônicos, com os quais deveriam negociar os liberianos: notadamente,
este estado de coisas estaria à origem da viagem de Anderson que alcançaria o
Konyan, em 1869. Os samorianos interviriam para reabrir a rota, após 1885, e
somente em 1898 uma parte dos gola aliar -se -ia ao governo do Monróvia.
O bloco kru
De Monróvia a Bandama, o último setor costeiro que nós devemos exa-
minar serve como fachada ao enorme e maciço florestal, habitado pelos povos
da família kru
14
. Cultivadores da floresta, caçadores e também notáveis mari-
nheiros, sabemos que os kru distinguiam -se pela antropologia física (ausência
de siclemia) e pelas línguas tonais por eles faladas, cuja tamanha originalidade
impossibilitava a sua filiação a qualquer outro grupo conhecido.
Nesta ocasião, nenhuma comunicação entre o mar e a savana era possível a
Oeste do Bandama, cujo vale inclusive foi fechado pelos baulê (baoulé), no início
do século XVIII. Os rios eram pouco navegáveis. Neste país protegido, no qual
as sociedades não conheciam nenhuma tradição de centralização política ou de
comércio a longa distância, este último foi substituído por um sistema de inter-
mediação que assegurava as trocas entre povos vizinhos. O passado deste país
é, portanto, caracterizado pela existência de pequenos grupos que se cindiram
ininterruptamente para ocupar o espaço, pelas suas trocas culturais e técnicas e
pelas suas relações com o comércio marítimo europeu ao longo dos séculos pre-
cedentes. O nome kru aparenta representar uma deformação de krawi, nome de
uma das etnias costeiras do grupo ocidental, entre os bassa e os grebo. Este nome
foi estendido ao conjunto da família linguística do qual ele era o mais conhecido
membro. Com efeito, em que pese a grande homogeneidade dos kru, pode -se
13 R. E Dunn, 1977, p. 225.
14 Ibidem.
761
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
distinguir duas subfamílias, de parte a outra do Sassandra: o grupo bete -dida ao
Leste e o grupo bakwe a Oeste, do qual primeiramente nos ocuparemos.
No início do século XIX, um movimento do Leste para o Oeste das linha-
gens wenyon (kran, gere) estava em marcha séculos nas terras pouco povoadas
do interior. Após expandir -se do Sassandra até Cavally, atravessando os planaltos
de Guiglo e Toulepleu, ele encontraria o seu fim aproximadamente em meados
do século, quando a sua vanguarda chocar -se -ia com os gio (dan), solidamente
estabelecidos no alto -Cestos, ao passo que à sua esquerda, aqueles que tomaram
o nome de sapo aproximar -se -iam do mar, em direção à foz do Sino, quase
dividindo os krawi em dois. Grupos de mesma origem, estabelecidos rio Cavally
abaixo, integraram -se ao grupo grebo, cujos componentes costeiros, vindos do
Leste, pelo mar, estavam estabilizados ao menos desde 1701.
As mais espetaculares e conhecidas transformações produziam -se, entretanto,
na costa marítima. A oposição entre camponeses e marinheiros, bushmen e
“fishmen”, era antiga; porém, a importância que tomou o tráfico negreiro, no
século XVIII, nesta região relativamente poupada, reforçou a posição dos pri-
meiros. Um particular papel foi entretanto desempenhado, neste tráfico, pelo
famoso grupo das “cinco cidades kru”, as quais aparentemente teriam chegado
assaz recentemente do interior (século XVI) e onde as duas sociedades, campo-
nesa e marinha, estavam fortemente integradas. Este distrito, coração do país
 . Barqueiros kru. [Fonte: L. G. Binger, Du Niger au golfe de Guinée, 1892, Hachette, Paris.]
F . Casas kru. [Fonte: G. Brooks, e Kru mariner in the nineteenth century, 1972, Liberian Studies
Association, Newark, N. J. (original em J. L. Wilson, Western Africa, 1856, New York).]
762
África do século XIX à década de 1880
krawi, em torno de Setta -Kru, estabeleceria muito em breve laços privilegiados
com Serra Leoa, esboçando assim um processo de renovação cultural. Aparen-
temente, desde os anos 1780, numerosas embarcações habitualmente encarre-
gavam “fishmen como intérpretes ou práticos, antes de prosseguirem rumo ao
golfo da Guiné. Este movimento, interrompido pelas guerras da Revolução e
do Império, foi retomado com força após 1815, ao passo que o tráfico clandes-
tino coexiste com o comércio legítimo em vias de implantação. Rapidamente,
os kru instalaram -se em grande mero na cidade de Freetown, posterior-
mente na Monróvia, como práticos ou lenhadores. Eles guardaram a sua coesão,
impregnando -se contudo da cultura crioula. As linhagens costeiras (“fishmen
ou krumen”) utilizaram muito rapidamente seus laços com o interior para
mobilizarem mão de obra. Durante todo o século XIX, as embarcações não
mais passaram pela costa, em seu rumo para o Leste, sem contratar “krumen”,
desenvolvendo esta atividade até Sassandra. Ela mudaria um pouco de caráter,
mas não de importância, a partir de 1850, quando o vapor substituiria a vela.
A atividade europeia aparentava inserir -se em uma antiga comunidade de
pescadores costeiros, estendida até o Krawi a Leste a partir da Gold Coast,
simbolizada pelo culto ao famoso “Big Devil” de Hedie, perto da foz do Cavally,
onde se chega a partir do país alladian (Costa do Marfim). No caminho de
volta, os veleiros que navegavam em direção ao Oeste, em geral afastavam -se
da costa para evitar os ventos e correntes contrários. Porém, os krumen”, ao
desembarcarem com os seus soldos muito distantes para o Leste, não encontra-
ram dificuldade alguma em voltar ao país. O problema sequer estaria colocado
à época dos vapores, visto que estes últimos faziam o caminho de volta ao longo
da costa.
A partir de 1821, a faixa litorânea passou a ser relativamente dominada pelas
autoridades do governo liberiano; o que o constitui objeto deste catulo. Nota-
remos, entretanto, que a aculturação esboçada em Freetown acentuar -se -ia em algu-
mas zonas sob a influência das missões protestantes, especialmente junto aos grebo,
os quais começariam a escrever a sua ngua e atingiriam o limiar de uma consciência
nacional. Em 1871, após tomarem consciência da existência da confederação fanti,
na Costa do Ouro, eles fundaram umreino dos grebo”, cujo domínio militar, em
um primeiro momento, os liberianos demonstraram -se incapazes de levar a cabo.
Somente em 1910, eles lograram -na efetivamente. Um dos inspiradores do nacio-
nalismo grebo seria o futuro profeta Harris, lebre na Costa do Marfim
15
.
15 C. R. Ageron, 1968, vol. 1, pp. 62 -66; J. M. Abun -Nasr, 1975, pp. 240 -246; e B. G. Martin, 1976, pp. 36 -67.
763
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
Além do Sassandra, era possível encontrar as maiores concentrações huma-
nas do país kru junto aos bete de Gagnoa e alguns dida, em regiões que haviam
sido submetidas a um certo esmagamento em razão da expansão para o Norte
dos povos pré -florestanos, como os mande do Sul, os guro ou os baule, os quais
haviam sido dotados de sólidas estruturas políticas por uma minoria akan, no
século XVIII, além do Bandama. Esta pressão e a instalação de outros akan, os
avikan, vanguarda dos nnajan (alladian), na foz do Bandama, haviam provocado
o encravamento dos Dida, inclusive penetrados por linhagens baule.
Em contrapartida, o eixo do Sassandra permanecia sob dominação kru: uma
certa navegabilidade existia em seu curso e movimentos leste -oeste de linha-
gens, provenientes de Soubré ou de Gagnoa com o objetivo de conquistar a
costa marítima, mostravam que a influência do comércio europeu era crescente.
Estas linhagens fortaleciam, na foz do rio, o povo neyo, cuja cultura começara a
se alterar pelo contato com navegadores europeus notadamente originários de
Liverpool. Contudo, violentos incidentes mostraram que os marinheiros eram
os herdeiros daqueles que, por muito tempo, haviam feito valer a esta região o
nome de “Costa da Gente Ruim”.
O Sul do mundo mande
Entre as savanas guineanas e os povos costeiros, estendia -se a faixa dos povos
mande do Sul, mende, toma, kpelle (guerze), dan (yakouba) e kwenu (gouro),
para não citar senão os principais dentre eles
16
. Habitantes das savanas pré-
-florestais ou profundamente embrenhados na grande selva, eles levaram as suas
vanguardas até a costa atlântica. Oriunda dos confins da savana, a civilização
desses povos, porém tinha muitos traços em comum com aquela das populações
ribeirinhas, salvo com os kru. Na ausência de qualquer formação estatal centrali-
zada, a vida política era dominada por grandes e secretas sociedades de iniciação,
as quais produziam, entre outros objetos, máscaras espetaculares.
A história destes povos de transição é inseparável daquela dos habitantes
costeiros, aos quais eles sempre se misturaram. Porém, ela não pode ser abordada
sem entender os mande do Sul, os quais os delimitavam ao Norte e, sécu-
los, os haviam feito recuar, além de -los invadido e aculturado, sem contudo
demonstrar consciência acerca do longínquo parentesco de todas as línguas
mande.
16 J. Keenan, 1977, pp. 63 -85, 139 -140, e 1972; J. Dubief, 1947, pp. 15 -16; G. Gardel, 1961, pp. 126, 144 -156.
764
África do século XIX à década de 1880
Os mande do Sul, em outros termos, negligenciando os kono e os vai, os
malinke do alto -Níger, ocuparam um território que abrangia os confins do
Fouta -Djalon até o Bandama, onde eles se depararam com os senufo ou com
os baule. Eles pertenciam manifestadamente ao mundo sudanês das savanas.
Esta zona meridional das savanas jamais pertencera ao Império do Mali, mas,
no início do século XIX, muito tempo, os malinke do Sul haviam nesta
região suplantado ou assimilado os mande do Sul ou voltaicos, cobrindo toda a
região com um tecido social relativamente maleável, inervado pelas malhas de
uma rede comercial de longa distância que dirigia, rumo ao eixo do Níger, os
kola das florestas do Sul. Estas estradas meridianas desembocavam necessaria-
mente na zona de grandes aldeias de comerciantes em contato com os habitantes
da floresta. Graças às relações regulares que mantinham com os bárbaros”, o
abastecimento em noz -de -cola, para os comerciantes ambulantes e as caravanas,
estava assegurado. Importantes setores do artesanato, especialmente tecelagem,
estavam ligados a estas atividades.
De Leste a Oeste, cada setor pré -florestano estava acoplado a uma zona de
etapas situada mais ao Norte: os Sankaran e o Kuranko, pelo contato com os
kissi, o Toron e o Konyan de Beyla, pelo contato com os toma e kpelle, o país
de Odienné (Kabadugu) e o Maw de Touba, pelo contato com os dan, e, final-
mente, o Worodugu de Séguéla e o Koyara de Monkono, pelo contato com os
gouro. René Caillié muito bem descreveu este comércio notavelmente especu-
lativo, pois a noz -de -cola não se conservava e a sua cotação estava submetida a
variações extremas.
Nesta sociedade globalmente tradicionalista, dominada por uma aristocra-
cia guerreira, o islã, minoritário embora necessário e invariavelmente presente,
encontrava -se naturalmente ligado a esta rede comercial. Mas esta última esbar-
rava ao Sul perante a muralha intransponível representada pela floresta, de onde
saíam os kola, pois que o traço mais notável da região, até a conquista colonial,
era o seu isolamento relativamente à costa marítima. Vimos que o mar não era
acessível senão pelo Oeste, do alto -Níger até o Fouta -Djalon, a Região dos
Rios ou Serra Leoa, em menor escala do Konyan ao Cape Mount (região da
Monróvia). Estas rotas somente adquiririam certa importância no século XVIII,
com a ascensão do tráfico negreiro. A Leste, o Bandama outrora assegurara uma
via de escoamento para o Worodugu e, mais além, ao país de Kong; mais este
derivativo fora fechado pelos baule, aproximadamente em 1720, e foi necessá-
rio desde então dirigir -se até o Comoé ou a Kumasi para encontrar uma saída
marítima. Portanto, o país dos mande do Sul representava um impasse, mirando
tradicionalmente para o Sudão nigeriano, de cuja civilização provinha.
765
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
Somente em direção ao extremo oeste ele alcançaria o mar, graças ao
Fouta -Djalon. Tirando proveito desta situação, a cidade de Kankan, no Milo,
transformou -se ao longo do culo XVIII em poderosa metrópole comercial,
simétrica ao Kong, no Comoé. Kankan estava admiravelmente posicionada
rio acima relativamente ao canal navegável após Bamako, no ponto de con-
vergência das rotas mais curtas originárias da floresta, em país kissi, com o
mar, através do Fouta -Djalon ou de Serra Leoa. Justamente, era este o berço
dos famosos maninka -mori, ou malinke muçulmanos, cuja cultura impregnava
todo o mundo dos juula (dioula), pobres comerciantes ambulantes ou ricos
negociantes, os quais animavam as rotas do Sul. Os Kaba, dominantes em
Kankan, eram uma família a um tempo política, comerciante e religiosa,
o obstante, nesta última atividade, houvesse a concorncia dos sherifu.
Mamadu Sanusi Kaba, por muito tempo comandante da cidade (aproximada-
mente de 1810 a 1850), mantivera a aliança com Timbo e relativamente pouco
combatera, senão contra os jalonke de Tamba, os quais haviam interrompido,
em ltiplas ocasiões, o comércio pela rota do Ségou. Mas al -HadjdjUmar
visitara a cidade por volta do ano 1845, ao retornar de Meca, e os kaba por
ele convertidos ajudaram -no, em 1851, no início da guerra santa, a destruir o
reino jalonke de Tamba. Alfa Mamadu Kaba em seguida pretendeu impor a
sua lei, através das armas, aos seus vizinhos tradicionalistas; mas Kankan, iso-
lada, encontrava -se impotente. Os kaba conheceram graves revezes e a cidade
foi submetida a um verdadeiro bloqueio comercial; o que explica, em 1874, o
seu pedido de socorro junto ao novo conquistador muçulmano, organizador
das terras ao Sul, Samori Touré.
Na realidade, a reviravolta da antiga ordem, junto aos malinke do Sul, come-
çara ao Sul de Kankan, no Toron e no Konyan, antes da visita de al -Hadjdj
‘Umar.
A explicação mais verossímil para este fenômeno indica que a abertura da
Região dos Rios, no século XVIII, e das rotas em direção à costa, tenha acrescido
o peso social e a importância do papel social dos comerciantes e muçulmanos. A
exportação dos escravos produzidos pelas guerras locais prosseguiria até meados
do século, no que diz respeito ao tráfico clandestino e, até a conquista colonial,
no tocante ao Fouta -Djalon. Posteriormente, a necessidade de importação de
tecidos e armas europeias muito bem se estabelecera. Indispensável à sociedade
global, a crescente minoria juula encontrava -se, através do islã, sensibilizada
pelas guerras santas e pelas teocracias muçulmanas do Norte. A influência do
Fouta -Djalon avançava pelo Kankan e as caravanas de kola alcançavam inclu-
sive o Macina, de Seku Ahmadu. Chegara o momento no qual a etnia juula
766
África do século XIX à década de 1880
muçulmana não mais aceitava o posto a ela atribuído pela sociedade global,
ao passo que esta última, bloqueada pela tradição, era incapaz de se reformar.
Assistimos então a uma série de conflitos localizados, do Noroeste da Costa do
Marfim até o alto -Níger. Porém, a resistência permanecia insuperável. Fez -se
necessário, para generalizar o movimento, o surgimento de um filho do país,
quem visivelmente desejasse transformar e não destruir a sociedade da qual
advinha, porém suficientemente aberto ao mundo exterior a ponto de promover
novos métodos. Isso seria obra de Samori e eu propus denominar o conjunto
do movimento como revolução juula; todavia, tratava -se então da segunda, caso
igualmente se conceda esta denominação à formação do império de Kong, no
início do século XVIII.
Muito distante em direção ao Sul, nos confins do Toron e do Konyan, a
curta distância dos toma, produtores de kola, foi nesta região onde o primeiro
movimento começou, aproximadamente em 1835. Isso foi obra de Moriwle
Sise, homem de religião originário da região de Kankan, entretanto formado
no Fouta, quem reuniu em torno de si aventureiros de toda origem, na nova
cidade de Madina (Toron). Após um período de radicalismo destruidor, ele foi
morto em 1845 e o seu Estado quase caiu em desgraça. Quando ele foi recons-
truído pelos seus filhos Sere Burlay (Abdulaye) (1845 -1859) e Sere Brema
(Ibrahima) (1859 -1881), a necessidade de um compromisso com os autóctones
e de um relativo respeito às suas instituições era a todos imposta. Contudo, o
seu domínio permaneceu invariavelmente estável e frágil. Conquanto tenham
eles, durante certo tempo, amplamente expandido o seu poder em direção ao
Sul, atravessando o alto -Konyan, até os confins florestais do país Kpelle, rumo ao
Norte, eles jamais lograriam estabelecer a ligação com o Kankan. Nesta direção,
no Sabadugu, um grande chefe de guerra tradicionalista, Nantenen -Famudu
Kuruma, organizou a resistência contra as duas potências muçulmanas, entre as
quais se interpôs (baixo -Toron).
No alto vale do Milo, a cavalo sobre o Toron e o Konyan, contrariamente,
foi uma outra linhagem juula, os berete, quem constituiu, em nome dos tradi-
cionalistas konate, uma hegemonia local que bloqueava o Oeste aos sise. Em
duas ocasiões, estes últimos finalmente venceriam, porém isto aconteceria para
preparar o terreno em proveito de Samori.
Moriwle fora eliminado por Vakaba Ture, um jovem juula originário da
região de Odienné que, embora primeiramente tivesse combatido sob as suas
ordens, viera defender a sua localidade materna. A região de Odienné estava
ocupada desde o século XVIII por um Estado militar tradicionalista, o Nafana,
o qual repulsara os senufo para proteger os juula. Vakaba soube mobilizar os
767
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
muçulmanos e ganhar a adesão de numerosos tradicionalistas, com o objetivo
de destruir Nafana e construir, sob as suas ruínas, o Kabadugu (ou Kabasarana).
Mais bem enraizado, este novo reino mostrou -se muito mais estável e sólido
que o domínio dos sise. Ele estendeu a sua autoridade ao longo das vias medi-
terrâneas de kola, até as portas do Touba. Vakaba morreu em 1857 e o mais
guerreiro soberano da família foi o seu filho Vamuktar (1858 -1875). Em duas
ocasiões, ele incentivou o seu primo Bunu Mameri a conquistar um novo reino
para os touré, nas estradas do Norte, no Wasulu de Bougouni (Mali) (1868 -1870
e 1873 -1875). A intervenção dos sise e a reação dos Wasulunke provocaram a
derrota deste grande projeto, interrompido com a morte de Vamuktar.
O Kabadugu conheceu então uma grave crise, quando grande parte dos
cantões vassalos revoltou -se com a ascensão de Mangbe Amadu, último filho
de Vakaba (1875 -1894). Um dos principais generais, Vakuru Bamba, patrocinou
uma secessão e construiu perto de Touba um pequeno Estado militar que ele
estenderia posteriormente em direção a Séguéla e Mankono. Ahmadu levou
muitos anos para impor pelas armas a sua autoridade; assim compreende -se
porque o Kabadugu, enfraquecido, tenha se aliado sem hesitar a Samori, desde
a chegada deste último às fronteiras, em 1881. Alianças matrimoniais selaram
esta submissão que se revelaria sincera e durável.
O espaço é aqui insuficiente para a abordagem de movimentos juula secun-
dários, à imagem daquele de Fode Drame no Sankaran, no alto -Níger, de Mori-
-Sulemani Savane, nas grandes bordas florestais do país Kissi ou de Hedi Mori,
no Koyara de Mankono (Costa do Marfim). Todos estão ligados, em diferentes
aspectos, ao islã e ao mundo do comércio. Malgrado a sua diversidade, eles
demonstram claramente que esta minoria não mais aceitava a posição que ela
tradicionalmente ocupava e estava prestes a revolucionar a sociedade como um
todo. Eles oferecem o quadro necessário para entender Samori, que conduziu o
movimento ao seu ponto culminante, eliminando ou fazendo aliança com todos
os seus rivais, além de ter tornado aceitável ou mesmo desejável a reviravolta por
ele imposta ao conjunto dos malinke, aqui compreendidos os tradicionalistas aos
quais ele estava estreitamente ligado.
Samori Touré era originário do baixo -Konyan, ou seja, do vale do alto-
-Milo, nos confins do Toron. Seus ancestrais eram comerciantes ambulantes
vindos da região de Kankan, porém, isolados em um meio tradicionalista no
qual se casavam, eles haviam pouco a pouco retomado práticas religiosas tradi-
cionais, estabilizando -se como tecelãos, agricultores e criadores. Samori, nascido
aproximadamente no ano 1830, em Manyambaladugu, descendia sobretudo de
768
África do século XIX à década de 1880
ancestrais de Kamara ou Konate, camponeses tradicionalistas, muito mais que
de comerciantes muçulmanos.
De volta à atividade comercial para escapar da autoridade paterna, Samori
descobriu a sua vocação guerreira engajando -se junto aos sise para libertar a
sua mãe, capturada durante a guerra contra os berete (1848). Em seguida, estes
últimos solicitaram as suas competências quando ele irritou -se com os mestres
de Madina (1859 -1861). Mas, finalmente em 1861, Samori encontrava -se
e coagido, sendo levado a começar a sua carreira pessoal na mais precária das
situações.
Neste espaço não é cabível retomar e expor estes acontecimentos, tema de
abundantes publicações.
Samori foi vitorioso, aliando os tradicionalistas do baixo -Toron, seus parentes
maternos, os quais, sentindo -se impotentes diante dos conquistadores muçul-
manos vindos de toda parte, fizeram chamado às competências militares deste
brilhante sobrinho”. Este último efetivamente os protegeria até a invasão fran-
cesa, sem contudo deixar de diminuir em certa medida a sua liberdade. Em
contrapartida, eles lhe ofereceram os meios para a conquista do seu primeiro
domínio.
O seu estilo de comando e a transformação que ele impôs à sociedade
malinke, colocando um fim aos conflitos, abrindo as estradas e libertando os
juula muçulmanos sem assujeitar os tradicionalistas, brevemente fariam afluir
os partidários e surgir as alianças. Assim sendo, posta em marcha a máquina
de guerra, a expansão adquiriu toda a sua força com ímpeto crescente, de 1871
a 1881, e o apogeu se aproximava quando a irrupção imprevista dos franceses
transformou o caráter do movimento.
Apoiado pela maioria dos Kamara e submetendo os demais, Samori, insta-
lado em Sanankoro, tornou -se primeiramente mestre do alto -Milo, impondo a
sua ão junto aos sise, os quais ele tão logo convocaria contra os berete. Uma
vez eliminados estes últimos, Sere -Brema contudo inquietou -se com a nova
potência e Samori evitou o conflito refugiando -se na floresta, juntos aos toma.
Retornando em 1867 com novas forças, ele tirou proveito da mobilização dos
sise no Wasulu, onde eles usavam a sua energia contra os touré.
Samori organizou -se então e cuidadosamente armou -se, abandonando o
alto -Konyan aos Kamara tradicionalistas de Saxajiigi, contra os quais ele decla-
rava não pretender combater, em razão do seu parentesco. Em 1871, ele marchou
diretamente para o Norte, eliminando a tradicional hegemonia de Nantenen-
-Famudu, diante do qual os sise haviam definitivamente fracassado. Foi justa-
mente nesta região recém -conquistada, em Bissandugu (Bissandougou), onde
769
Estados e povos da Senegâmbia e da Alta Guiné
ele instalou a sua capital, para indicar que ele estava a criar o seu próprio império,
independentemente dos seus pais e do seu país natal.
Em razão dos sise não reagirem, Samori aliou -se então, em nome do islã,
com o Kankan, região que ele livrara do bloqueio comercial. Guardando para si
a autoridade sobre os vencidos, ele amparou -se consequentemente do rico vale
do alto -Níger, das fronteiras do Fouta -Djalon e de Kurussa (Kouroussa) até o
Siguiri e o Bure.
Deste modo, ele encontrava -se à frente de um império, amplamente superior
àqueles dos seus predecessores e vizinhos, cuja organização territorial suscitava,
no imediato, difíceis problemas. Ele os solucionou inspirando -se no império
tukuloor, do qual se tornara vizinho e ao qual tão logo oporia uma surda hosti-
lidade. Era possível prever que lhe seria necessário eliminá -lo caso pretendesse
prosseguir a sua expansão ao Norte.
Entretanto e primeiramente, esse crescimento demasiado acelerado desenca-
deou uma grave crise. Em 1878, os sise expulsaram Samori do Sankaran, plane-
jando reconquistar o Oeste até Serra Leoa, com o objetivo de enfrentar e limitar
o domínio do conquistador. Kankan, sob a influência dos tukuloor, quebrou a
solidariedade com ele mantida. Então, em 1879, Samori voltou -se simultanea-
mente contra os seus dois vizinhos muçulmanos. Tirando proveito da dispersão
do seu dispositivo, ele os eliminou em duas brilhantes campanhas (dezembro de
1879 a abril de 1881). Kankan finalmente submeteu -se relativamente sem ofere-
cer grande resistência, com a fuga de uma parte dos kaba para o Ségou, de onde
eles retornariam com os franceses. Os sise estiveram desde então cativos, Madina
foi destruída e a sua população foi transferida para Bissandugu. Finalmente,
Odienné também se aliou, abrindo os horizontes da alta -Costa do Marfim.
Foi precisamente nesta região, a Gbeleba, que Samori passou a invernada
de 1881, quando o lugar -tenente senegalês Alakamessa vem apresentar -lhe o
desafio proposto pelos franceses, então em marcha rumo ao Níger, em nome
do comandante de Kita. Este último o proibiu de atacar Kenyeran, para onde
haviam recuado os vencidos de Kankan. O confronto militar, desencadeado no
início de 1882, duraria com intervalos de paz até 1896. O seu estudo ultrapassa
o propósito deste volume, tanto temática quanto cronologicamente.
Em 1881, o Império de Samori estava essencialmente estabelecido. Tratava-
-se de uma hegemonia militar que transformara a sociedade malinke sem toda-
via destruí -la; neste caldo de cultura social, os elementos comercial e muçulmano
tiveram seu espaço ampliado, embora o elemento tradicionalista tenha guardado
a sua liberdade. O soberano, a quem fora atribuído, aproximadamente em 1868,
o título de faama, denotando um poder militar, não adotaria a titulação almaani,
770
África do século XIX à década de 1880
inspirado no Fouta -Djalon, senão em 1884. Isso indica, inclusive, o crescimento
da influência muçulmana após a anexação de Kankan; porém, a crise de iden-
tidade subsequente não pode aqui ser analisada: ela está ligada ao início da luta
contra a França.
Em 1880 -1881, o novo império, em que pese a sua direção ter sido assegurada
por uma classe islamizada, não pode ser considerado como Estado muçulmano.
Samori não era um muçulmano culto, não obstante tenha tardia e notavelmente
empreendido esforços para se instruir. Ele estabeleceu um controle territo-
rial militar, inspirando -se por vezes em algumas realizações dos fulbe ou dos
tukuloor; no entanto, negligenciando o voluntarismo religioso destes últimos.
Samori, um gênio empirista, lograra em vinte anos oferecer a esta sociedade um
novo equilíbrio, mais favorável aos juula, encontrando assim uma solução para
a crise que ela atravessava meio século. Nós o deixamos aqui, no auge do
seu triunfo, quando ele subitamente defrontou -se com a irrupção dos franceses,
estado de coisas que conferiria um novo sentido a este seu final de carreira. Não
mais se trataria de reconstruir uma sociedade africana, com contornos africanos,
para responder a uma crise africana, mas de tentar repelir a irrupção estrangeira
e, na justa medida do realizável, durar tanto quanto possível.
Conclusão
Portanto e a justo título, o único fator comum a toda a região estudada,
durante o período precedente à conquista colonial da África, foi a progressão
da influência europeia. Esta última era evidentemente forte na costa. O tráfico
clandestino ali persistiu até meados do século; entretanto, o fato maior consis-
tia no surgimento de novos produtos africanos, óleo de palma ou amendoim,
os quais permitiram a difusão, nas massas, de produtos europeus reservados à
aristocracia. A zona costeira encontrava -se assim integrada ao mercado mundial
e submetida à dependência econômica muito antes que a conquista militar e a
dominação política adquirissem atualidade.
Estas influências são muito menores no interior, onde a tradição sudanesa
ligada ao islã prosseguia. Entretanto, o crescimento do comércio com o mundo
exterior explica a revolução juula. Sem sabê -lo, foi em certa medida em resposta
aos impulsos do mundo exterior que Samori construiu um império, logrando
retardar em cerca de vinte anos o advento da conquista colonial.
C A P Í T U L O 2 5
771
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
Para os países do Arco do Níger e do Volta, o século XIX foi incontesta-
velmente um período de decisivas e multiformes reviravoltas, desmantelamen-
tos políticos e institucionais que atingiram particularmente as estruturas estatais
centralizadas, sobretudo quando elas estavam articuladas em impérios como o
Ashanti, o Kong, e os reinos mossi e bambara. Estes distúrbios eram, bem enten-
dido, o resultado de tensões internas, embora derivassem progressivamente de
ões externas, notadamente as grandes mudanças nos fluxos comerciais. Assisti-
mos a deslocamentos populacionais, sobretudo daqueles grupos não centralizados,
Völkerwanderungen, os quais muito amiúde desenharam o mapa étnico tal qual
ele apresenta -se ainda nos dias atuais. Mutações econômicas consagram o final
de um mundo e anunciam uma nova era, o período colonial. Estas mudanças
o frequentemente a causa e, por vezes, a consequência das reviravoltas políti-
cas. Assistimos igualmente à acelerada expansão das religiões islâmica e cristã,
favorecidas pelas hegemonias islâmicas estabelecidas nas regiões sahelianas ou
pelo impulso colonizador dos europeus. Todos estes processos contribuem para
remodelar vigorosamente a fisionomia desta região, para enfraquecê -la e facilitar,
quiçá convocar, o estabelecimento do sistema colonial.
Estados e povos do Arco do Níger
e do Volta
Kwame Arhin e Joseph Ki -Zerbo
772
África do século XIX à década de 1880
Reviravoltas políticas e institucionais
Os países da bacia voltaica e do Arco do Níger foram, durante o século
XVIII, o berço de poderes políticos que extrapolaram a região e sucederam o
vasto Império de Gao, derrubado ao final do século XVI, ou tentaram explorar
as novas condições econômicas e políticas instauradas na Costa do Ouro através
do tráfico negreiro. Entretanto, novas condições provocaram, no século XIX,
o desmantelamento dos grandes reinos e desencadearam migrações junto aos
povos não integrados pelos poderes centralizados.
O sistema ashanti: do apogeu ao declínio
Observamos, no volume precedente
1
, os meios pelos quais as dinastias ashanti
se haviam formado, no século XVIII, no coração da floresta e no Arco da Volta
Negra, constituindo um vasto império. Graças a Osei Tutu, o fundador, a Opoku
Ware e a Osei Kodjo, este conjunto estava fortemente integrado em seu nódulo
central, em torno de Kumashi e da Banqueta de ouro (sikadua).
Ele exercia na costa, assim como nos reinos dependentes ao Norte, um incon-
testável poder político e econômico. Na região central, os reinos associados ao
clã oyoko de Kumashi tornaram -se pouco a pouco subordinados e dependentes,
graças às reformas estruturais realizadas por Osei Kodjo, primeiramente no reino
de Kumashi, em seguida, à custa dos reinos akan vizinhos: Manpong, Nsuta,
Dwaben, Bekwai, Kokofu, Bono, bem como, Denkyira, Ahafo, Sefwi, Adansi etc.
Nesta região, o kumasihene (rei de Kumashi) tornou -se o ashantihene. A partir
desta base, as dinastias ashanti controlaram política e economicamente os reinos
akan da região costeira (Wassa, Nzima, Twifu, Akwamu, Akyem, Akwapim,
Ga, Adangbe) e, sobretudo, a faixa litorânea das chefaturas fanti. Igualmente,
ao Norte, os reinos de Gyaman (Abron), do Gonja, de Dagomba e inclusive do
Mamprusi, tombaram sob dominação do Ashanti, sobretudo a partir do tratado
de 1794, estado de coisas do qual derivaria um tributo anual (ayibuade) de dois
mil escravos.
Eis que o século XIX inaugurar -se -ia com o reinado de um dos maiores
ashantihene, Osei Bonsu (1801 -1824). Em uma série de campanhas (1807, 1811,
1814), ele conduziria as suas forças militares vitoriosas até a costa. Os ingleses,
à época envolvidos nas guerras napoleônicas e sem doutrina precisa para os seus
estabelecimentos da Costa do Ouro, não tiveram outra opção, senão reconhece-
1 Consultar B. A. Ogot, 1992, capítulo 12.
773
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
 . Povos e cidades da África Ocidental mencionados no texto (segundo K. Arhin).
774
África do século XIX à década de 1880
rem através do coronel Torrane, presidente do Conselho dos mercadores e dos
seus sucessores, a realidade correspondente à autoridade, quiçá soberania, do
Ashanti sobre todos os povos costeiros.
 . A banqueta de ouro dos ashanti. [Foto realizada por K. Arhin, com a autorização do ashantihene.]
775
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
Os ashanti tiraram proveito para esmagar, ao Norte, uma rebelião do Gonja
e, posteriormente, do Gyaman (Abron). Todavia, após ter ganho tempo, trans-
ferindo a responsabilidade das casas comerciais para a London Company of Mer-
chants e expedindo para a corte do ashantihene emissários (Bowdich e Dupuis)
portadores de projetos de tratados que praticamente permaneceriam letra morta,
a Coroa britânica retomaria os fortes para confiá -los à autoridade do governador
de Serra Leoa, sir Charles McCarthy. Este último, no curso da arriscada ofensiva
em direção a Kumashi, sofreu o desastre de Nsamanku (1824), onde foi derro-
tado pelas forças ashanti
2
. Estimulados por este êxito, os ashanti retomaram a
ofensiva rumo à costa, sendo todavia esmagados em Dodowa (1826) por uma
grande coalizão de povos da costa, sob a égide dos ingleses. Era o anúncio do
final da potência ashanti.
O período seguinte (1826 -1874) foi marcado por algumas vitórias sem efeito
decisivo para as tropas ashanti e, sobretudo, pela direção pacífica do governador
George Maclean (1830 -1843), assim como pelas notáveis tentativas dos fanti e
de outros povos da costa no sentido de alcançarem uma real autonomia, frente
às ameaças de Kumashi e às invasões dos europeus.
A carreira de Maclean
3
desenvolveu -se a partir da nova retirada das auto-
ridades britânicas, as quais, acuadas entre os seus incômodos aliados da costa e
o dinamismo batalhante dos ashanti, estimaram que a Costa do Ouro custava
demasiado caro, em dinheiro e vidas humanas, em que pesasse a sua vitória
de Dodowa. Assim sendo, Maclean, presidente do Conselho dos mercadores
que herdara os fortes, pôde liberar, frequentemente ignorando as instruções de
Londres, o seu agudo tino comercial e a sua capacidade de avaliação sobre os
seres humanos. O seu objetivo era duplo: manter uma relação respeitosa com
os ashanti e dominar os povos da costa. Deste modo, ele promoveu a assinatura
de um tratado tripartite, fanti -inglês -ashanti, através do qual estes últimos reco-
nheciam a independência dos países costeiros ao Sul do rio Pra, aceitavam enca-
minhar perante a parte inglesa os eventuais conflitos e engajavam -se a manter
abertas as rotas comerciais. Maclean tentou familiarizar os fanti, paulatinamente,
aos princípios jurídicos ingleses, através de uma hierarquia de tribunais com
base nas cortes de chefes até alcançar a jurisdição por ele próprio presidida. As
milícias locais, posicionadas junto aos chefes, ajudavam na aplicação das novas
normas, ao passo que a introdução dos cauris para as transações de menor porte
2 No tocante a sir Charles MacCarthy, referir -se a A. A. Boahen, 1974, pp. 188 -189.
3 Sobre a carreira de Maclean, conferir G. E. Metcalfe, 1962, pp. 33 -34 e p. 45.
776
África do século XIX à década de 1880
e o encorajamento à produção de óleo de palma começavam a transformar a
estrutura econômica.
Mas o governo britânico decidira retomar o controle sobre os estabelecimen-
tos da costa em 1843, regendo -os por uma convenção judicial que oficializava a
lei britânica (Bond de 1844)
4
. Através da portaria municipal de 1858, a Costa
do Ouro, na qualidade de protetorado, foi novamente separada de Serra Leoa e
recebeu um governador que controlava um conselho legislativo e um conselho
executivo.
Segundo o princípio geral mediante o qual as populações locais deveriam
arcar com os custos do seu progresso material, social e intelectual, um imposto
de captação de um shilling foi instaurado em 1852, sendo geralmente aceito,
embora de modo efêmero
5
. Na realidade, a resistência contra o imposto rapida-
mente tornou -se muito viva, nem tanto porque os empregados encarregados da
coleta suplantassem os chefes, mas, antes, porque somente 8% das receitas eram
destinadas às escolas e estradas, servindo o essencial para pagar toda a gama de
funcionários empregados na administração. Malgrado as tentativas ulteriores de
reformas e as expedições punitivas, o governador Pine foi obrigado a renunciar
ao imposto em 1864.
Justamente, este foi o primeiro movimento de resistência de caráter pura-
mente social e nacional, ou seja, não étnico. Inclusive, ele foi muito rapidamente
seguido por uma ação
6
de alcance muito mais considerável, pois que diretamente
política.
Desde 1864, os chefes da Costa do Ouro enviavam um caderno de reclama-
ções ao governador, protestando contra as usurpações dos seus direitos e inte-
resses, mostrando -as através de exemplos concretos, como a sua subordinação a
simples funcionários e a intensidade do questionamento à sua dignidade
7
. Pouco
após, Aggrey, rei” de Cape Coast, iria mais além, seguindo conselhos de um
advogado, Charles Bannerman. Ele protestou contra o fato de se tratar os habi-
tantes do seu território como indivíduos britânicos, exigiu que as relações entre
os chefes e o governador fossem definidas e questionou sobre as razões pelas
quais a ele não cabia nenhuma participação nas receitas fiscais
8
. Finalmente, ele
4 Lord Stanley ao lugar -tenente governador H. W. Hill, 16 de dezembro de 1843, n
o
124, em: G. E.
Metcalfe,1964.
5 e Poll Tax Ordinance, 19 de abril de 1852, n
o
181, em: G. E. Metcalfe, 1964.
6 Conferir A. A. Boahen, 1974, p. 239.
7 Documento n
o
243, em: G.E Metcalfe, 1964.
8 Carnavon a Blackhall, 23 de fevereiro de 1867, n
o
258, em: G. E. Metcalfe, 1964.
777
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
ameaçaria montar uma milícia local para a segurança do seu território. Aggrey
foi deportado para Serra Leoa.
No entanto, o movimento foi retomado com ainda maior intensidade, sob
a inspiração dos intelectuais africanos que o Colonial Office já identificara, em
1855, como uma classe intermediária, semicivilizada, com ideias adquiridas
junto aos missionários e de outras fontes. Eles impulsionavam a emancipação
dizendo aos africanos: Vós não sois cidadãos britânicos, portanto, nada vos
obriga à obediência. Vós tendes direito a uma parcela do poder em vosso país.
Somente a união levar -vos a alcançarem os vossos direitos.” Tais eram as
ideias de J. Africanus Horton, serra -leonês, de Joseph Smith, Henri Barnes, T.
Hugues, F. L. Grant e R. J. Ghartey. No entanto, os chefes da região costeira
estavam muito sensibilizados por estes argumentos, em virtude dos aconteci-
mentos que se desenrolavam. Temendo os retornos ofensivos dos ashanti, eles
estavam decididos a contribuírem em prol da sua própria defesa, embora repro-
vassem a impassibilidade dos holandeses perante Kumashi e o seu aliado local,
Elmina. Portanto, estes chefes opuseram -se à troca de fortes que os ingleses
haviam previsto com os holandeses, com vistas a homogeneizar os seus respec-
tivos territórios. Mas eles igualmente temiam serem abandonados pelos ingleses,
os quais os impulsionavam para a união contra o Ashanti, visando à defesa da
costa, embora não lhes provessem os meios necessários. Duas experiências de
autonomia foram então ensaiadas, no Oeste e ao Leste da costa.
No Oeste, a assembleia de Mankessim, composta pelos chefes fanti e, igual-
mente, de delegados do Denkyira, de Wassa, de Twifu e da Assínia, elaborou
sucessivamente três constituições
9
: a primeira, em 1868, a segunda, assinada e
selada por 31 chefes e reis, instaura um rei -presidente eleito pelos seus pares e
que preside a Assembleia Nacional composta pelos chefes. Por sua vez, a Assem-
bleia representativa, esta terceira, era constituída por delegações na proporção
de dois membros (um chefe e um letrado) por reino e presidida pelo vice-
-presidente, quem igualmente dirigia o Conselho Executivo. Ora, desde 1872,
esta constituição fora emendada para submeter à legitimidade da Confederação
ao reconhecimento do governo britânico, o qual era solicitado, por outro lado,
para fornecer a metade de orçamento da Confederação e, caso necessário, para
assumir todas as suas responsabilidades, transformando a Costa do Ouro em
colônia.
9 Quassie (Kwassi); Edoo e colaboradores ao sir A. F. Kennedy, 24 de novembro de 1871, documento
contido no n
o
278, em: G. E. Metcalfe, op. cit.
778
África do século XIX à década de 1880
Em três anos, a Confederação alcançara funcionalidade, organizando um
exército de 15.000 homens, estabelecendo as instituições e encarregando as
personalidades, inclusive para a Corte Suprema, bem como instaurando um
imposto cujos dois terços do total destinavam -se à Confederação e a terça parte
restante cabia às chefaturas participantes.
Ela chegou a inspirar a Leste, no entorno de Accra, uma confederação simé-
trica, todavia muito tímida comparativamente à potência dos chefes desta região.
No Oeste, por outro lado, o movimento autonomista esgotava -se desde 1872,
haja vista que, neste ano, os holandeses finalmente haviam vendido os seus for-
tes e haviam deixado o litoral, atitude que suprimia um dos motivos do receio
dos chefes confederados. Além disso, o exército destes últimos não era capaz
de forçar a decisão contra o forte de Elmina, além de demonstrar -se a notória
insuficiência de recursos financeiros. Mas, sobretudo, os britânicos utilizaram
todos os meios para reprimir os intelectuais e dividir os chefes, até o esfacela-
mento da Confederação fanti.
Embora de curta duração, a Confederação fanti adquiriu muita importância.
Último sopro de protesto na Costa do Ouro contra o avanço do colonialismo,
ela tentava recriar a unidade fanti, destruída sob o efeito decisivo da presença
europeia, e anunciava o papel que a elite instruída futuramente desempenharia
nos negócios do litoral: guiar os chefes tradicionais, totalmente analfabetos.
Portanto, ela mostrava como, ao instruir, o colonialismo fornecia a arma que
conduziria um dia à sua derrota. A hostilidade, posteriormente manifestada
pelos governos coloniais frente à elite destruída, encontra aqui a sua origem.
Após ter eliminado a Confederação e comprado a retirada dos holandeses,
em 1872, os ingleses aproveitaram a primeira oportunidade para resolverem,
em definitivo, a questão ashanti. A invasão ashanti, ocorrida naquele ano para
reconquistar Elmina, muito tempo considerada como sua pelo Ashanti, e
para reivindicar novamente Assin, Denkyira e Akyem, forneceu -lhe o pretexto.
Em 1874, eles enviaram um potente exército, comandado pelo general Wolseley,
que capturou e incendiou Kumashi. No mesmo ano, Kofi Karikari foi obrigado
a assinar o Tratado de Fonema, através do qual o Ashanti renunciava definiti-
vamente a todos os seus direitos sobre o litoral.
No ano seguinte, o Ashanti enfraquecer -se -ia ainda mais, em razão da guerra
entre Kumashi e Dwaben, a ponto de ser esmagado e ver os seus habitan-
tes refugiarem -se no protetorado britânico. Na ocasião, Dwaben era um dos
mais valorosos e fiéis centros ashanti. Desde então, a anarquia instalou -se em
Kumashi e nos países tributários ao Norte, malgrado a política de consolidação
de Kwaku Dwa III, dito Prempeh (o Gordo). Este último seria detido por extor-
779
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
são, no momento da corrida colonial, e deportado. O que havia consolidado a
incontestável potência do Ashanti, no século XVIII e início do século XIX, fora
certamente a sua posição intermediária entre os polos representados pelo Arco
do Níger e pela costa do golfo da Guiné; e, igualmente, o gênio da organização
político -administrativa que possuíam os seus dirigentes
10
.
No início do século XIX, este sistema atingira um alto grau de perfeição
e eficiência que por si justificava a sua crescente extensão até englobar os
Estado fanti. O grande conjunto ashanti compreendia então três tipos de uni-
dades territoriais.
Em primeiro lugar, o grupo de chefaturas ashanti, unidas de longa data sob
a autoridade do ashantihene, graças à unidade linguística, à contiguidade geo-
gráfica, a uma vasta rede de laços de parentesco e afinidades, a um século de
atividade e fidelidade militares comuns, assim como à sanção mística da na
potência tutelar da Banqueta de Ouro dos ashanti e dos espíritos dos ancestrais
do ashantihene
11
. Os testemunhos concretos do pertencimento à união eram
os seguintes: participação dos chefes dos Estados membros na entronização
do chefe de Estado de Kumashi, soberano ashanti; juramento de fidelidade a
este último; participação na assembleia geral (nhyamu) dos chefes, na qual se
deliberava acerca dos assuntos políticos mais relevantes (guerra, paz, tratados
etc.); aceitação do grande juramento dos ashanti, como instrumento de justiça
suprema sob todos os territórios do ashantihene
12
.
Estas instituições integradoras constituíam as bases essenciais do aparelho
de Estado. Elas eram encontradas em todos os Estados akan no exterior do
Ashanti, situação que indicava a superação da ideia de identidade política fun-
dada no parentesco e na religião pela ideia da legitimidade do poder através da
guerra.
Assim sendo, a segunda categoria de Estados neste vasto império foi cons-
tituída por Estados akan limítrofes do país Ashanti. Os povos destes Estados
compreendiam o significado destas instituições. Esperava -se deles que vivessem
sob a autoridade do ashantihene, com objetivo de lhes extrair os mesmos bene-
fícios que aqueles subtraídos dos próprios povos ashanti.
Finalmente, a terceira categoria de Estados compreendia territórios geo-
gráfica e culturalmente distantes, como o Dagomba, o Mamprusi e o Gonja.
Eles eram essencialmente considerados como obrigados a contribuírem para o
10 Consultar B. A. Ogot, 1992.
11 Conferir R. S. Rattray, 1929, pp. 398 -409; K. A. Busia, 1951; I. Wilks, 1975, capítulo 2.
12 I. Wilks, 1975; J. M. Sarbah, 1906; K. A. Busia, 1951, p. 78; R. S. Rattray, 1929, pp. 388 -389.
780
África do século XIX à década de 1880
desenvolvimento econômico ashanti. Estes Estados não akan do Norte esta-
vam submetidos a um controle militar e político, em razão dos seus recursos
econômicos. Eles igualmente forneciam, sob a forma de imposto, grande parte
dos homens destinados às guerras e à agricultura do Ashanti
13
. Esta importante
distinção foi contestada, pretendia -se que as motivações econômicas e políticas
estivessem presentes em todas as guerras ashanti. No mesmo sentido, invocou -se
a existência de representantes do Ashanti em todos os tipos de Estado, assim
como foi sugerida a “ashantização” do exército do Dagomba ou as intervenções
do ashantihene nas querelas sucessórias do Gonja e do Dagomba
14
.
Todavia, é evidente que os comissários regionais possuíam mandatos diferen-
tes, em cada caso específico. Nas regiões akan, eles deviam ocupar -se da solução
dos conflitos, zelando pelo comprimento do juramento perante o ashantihene, de
modo a confirmar a sua soberania sobre estes territórios; a cobrança dos impos-
tos nestas regiões, considerada pelos observadores europeus da época como
uma exploração, não suscitava problemas para o ashantihene, pois os mesmos
encargos pesavam sobre os Estados ashanti, propriamente ditos
15
. O verdadeiro
problema consistia na soberania territorial. Nas regiões não akan, os comis-
sários dedicavam -se a fortalecer os termos do “tratado entre o ashantihene e
o Dagomba, por exemplo
16
, no tocante ao tributo. Em contrapartida, nós não
possuímos documentos que atestem a presença de contingentes do Gonja ou
do Dagomba no exército ashanti, nem tampouco o pagamento, por estes países,
do imposto de guerra ashanti (apeatoo). A solução dos conflitos sucessórios no
Gonja e Dagomba devia, portanto, ser considerada como uma ação política de
objetivo econômico: a paz nestes territórios garantia o pagamento do tributo,
no mesmo sentido agia a “ashantização” do exército dagomba. Um velho infor-
mador ashanti declarava a este propósito: Na yene wonom nko nhyiamu (“Nós
não participávamos do conselho com eles”).
Com os Estados akan, o problema essencialmente consistia na questão da
soberania. A dimensão econômica das conquistas ashanti no Sul é indubitável.
Embora seja claro que, no início do século XIX, os ashanti interessavam -se
essencialmente em dominar politicamente os outros povos akan, aos quais eles
buscavam impor as suas próprias instituições centrais. Primeiramente, o tributo
extorquido junto aos povos vencidos foi, neste caso, pouco a pouco transformado
13 T. E. Bowdich, 1819, pp. 320 -321.
14 J. K. Fynn, 1974; I. Wilks rejeita esta categorização, 1975, pp.42 -60.
15 B. Cruickshank, 1853, vol. II, p. 143.
16 T. E. Bowdich, 1819, p. 235.
781
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
 . A corte das nanças, Kumashi, 1817. [Fonte: T. E. Bowdich, Mission from Cape Coast Castle to
Ashantee, 1819, Londres, John Murray. Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho Administrativo
da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
em imposto de guerra (apeatoo)
17
. Em seguida, o grande juramento ashanti,
Ntam Kesie, considerado como o supremo instrumento da justiça, foi instituído
junto aos povos akan e os seus próprios juramentos locais lhe foram subordina-
dos
18
. Em terceiro lugar, a presença dos principais dirigentes akan da periferia
era exigida aquando da festa anual do Odwira, na qual eles deviam homenagear
o seu “soberano”, o ashantihene
19
. Finalmente, contingentes de todos os Estados
akan combatiam como forças ashanti nas guerras dos ashanti, no interior e no
exterior do império. O problema da soberania estava na origem dos frequentes
choques entre os ashanti e os outros akan ou contra os europeus. O fechamento
das rotas comerciais com destino a Accra, decretada pelos akim e pelos akwapim,
provocou guerras com o ashantihene, em razão deste último sobretudo -la
interpretado como uma rebelião, uma recusa à dominação política dos ashanti.
Os ataques destes últimos contra os fanti eram inspirados por esta mesma von-
tade de hegemonia política.
17 Ibid., p. 320.
18 Conferir Major Chisholm a sir Charles MacCarthy, em 30 de setembro de 1822, documento n
o
56, em:
G. E. Metcalfe, 1964.
19 J. M. Sarbah, 1906.
782
África do século XIX à década de 1880
 . O primeiro dia da festa anual do Odwira, em Kumashi, 1817. [Fonte: T. E. Bowdich, Mission
from Cape Coast Castle to Ashantee, 1819, John Murray, Londres. Ilustração reproduzida com a autorização do
Conselho Administrativo da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
Como prova da sua soberania, o ashantihene citava documentos que engajavam
os signatários a pagarem um aluguel pelo castelo de Cape Coast e pelo forte de
Anomabo, os quais ele dizia ter adquirido por ocasião da conquista do país fanti, em
1807
20
. Após a derrota do Gyaman, em 1818, o ashantihene declarou que os habitan-
tes de Kommenda e de Cape Coast deviam a aseda, contribuição a tulo de gratio,
como prova de alegria pela viria do seu senhor e mestre
21
. Finalmente, em 1822,
os comissários do ashantihene exigiram o julgamento e a punição de um sargento
de polícia do forte de Anomabo, porque ele o reagiu corretamente quando um
mercador ashanti pronunciara diante dele o juramento do ashantihene
22
.
Os Estados mossi
O país Mossi, o qual desde o século XVI conhecera um notável desenvol-
vimento culminante no culo XVIII
23
, estava, no início do século XIX, em
estado de decomposição que paralisou por dentro e desmantelou por fora os
20 T. E. Bowdich, 1819, pp. 47 e 68.
21 O governador e o Conselho para o comitê africano, 11 de janeiro de 1819, documento n
o
39, em: G. E.
Metcalfe, 1964; igualmente consultar o governador e o Conselho ao comitê, em 22 de março de 1819,
documento n
o
110, ibid.
22 Conferir o documento n
o
63, ibid.; K. A. Busia (1951, p. 78) dene um sermão como “uma fórmula este-
reotipada aludindo, muito obscuramente, a um evento trágico na história da comunidade política à qual
ele se refere e na qual o chefe é considerado possuidor do sermão”. Relembrando o evento em questão, o
sermão seria supostamente capaz de perturbar os espíritos dos ancestrais falecidos da linhagem real; estes
últimos deveriam ser apaziguados através de sacrifícios. Razão pela qual um sermão não devia ser pronun-
ciado senão mediante regras prescritas, como instrumento judicial intimando uma parte de um conito a
comparecer perante o tribunal do dirigente ao qual o sermão era prestado ou na qualidade de meio para o
recurso a um tribunal superior. Referir -se a R. S. Rattray, 1929, pp. 76, 102 -104, 315 e seguintes.
23 Consultar B. A. Ogot, 1992, capítulo 12.
783
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
dois principais reinos de Uagadugu e do Yatenga. Somente o reino de Busuma
(Boussouma) tirou proveito desta debacle para se ampliar e se consolidar. Dois
exemplos bastarão para demonstrar a grave decadência na qual sucumbira o
potente reino de Uagadugu: a guerra de Busuma e a guerra de Lallé.
O reino de Busuma, em plena expansão, chocou -se no início do século com
o seu consorte de Uagadugu, então comandado por Mogho Naaba Dulugu.
Foi imiscuindo -se na querelas intestinas do Salmatenga (região de Kaya) que
Naaba Piga de Bussuma logrou colocar a mão sobre esta chefatura. Entretanto,
ao acolher um exilado do reino de Uagadugu, ele sofreu a invasão das forças de
Mogho Naaba Dulugu, sendo levado a refugiar -se em Mane, localidade na qual
ele próprio guerreara contra o chefe do Zitenga, um protegido de Uagadugu.
Tratava -se então de uma guerra circular, durante a qual numerosos príncipes
descontentes com a campanha contra Mane desertaram e na qual Mogho Naaba
Dulugu de Uagadugu foi mortalmente ferido. O sucessor de Naaba Piga, consi-
derando que o chefe de Mane fora o responsável pela morte de Mogho Naaba
Dulugu, obrigou o naaba de Mane a envenenar -se, enquanto o sucessor de
Dulugu, Naaba Sawadogho, obrigava o chefe de Zitenga, o seu próprio irmão
que ousara com ele disputar o trono, a se suicidar.
Cinquenta anos após, Uagadugu, aliado de Boulsa, atacaria uma vez mais
Bussuma, aliado de Pisila. No entanto, Naaba Ligidi de Bussuma, embora ator-
mentado, lograria organizar uma invasão com a sua cavalaria sobre a capital do
mogho naaba, em Uagadugu, no curso da qual os danos materiais e humanos
seriam consideráveis
24
.
Por outro lado, as guerras entre o Bussuma e o reino de Riziam permiti-
ram, não sem dificuldades, anexar as chefaturas do Salmatenga e de Pikutenga
(Pikoutenga). Para estas mobilizações, Naaba Koabgha de Riziam solicitara o
apoio de um chefe fulbe do Djelgodji.
Na ocasião, em 1881, Naaba Ligidi de Bussuma lançava uma expedição
contra Koala, ao Norte do país gulmance e nas fronteiras do reino fulbe de Dori
e do país mossi. As tropas de Bussuma dificilmente venceram a resistência da
fortificação de Koala, localidade da qual o emir de Dori esperava a derrota para
dela se apoderar. Naaba Ligidi tomou as devidas precauções para não favorecer
este objetivo dos fulbes
25
.
Aquando de sua morte, em 1890, Naaba Ligidi levara as fronteiras do
reino de Bussuma aos seus mais extremos limites. Ao preço de numerosos
24 Y. Tiendrebeogo, 1964, pp. 57 -58.
25 P. Delmond, 1953, p. 39.
784
África do século XIX à década de 1880
enfrentamentos, ele assegurara a sua preponderância na fronteira do país fulbe
e gulmance.
Enquanto o Bussuma impunha -se ao Leste de Uagadugu, no Oeste, o mestre
de Lalle, uma potente chefatura vizinha do país gurunsi, rebelava -se fortemente.
Esta guerra, de longa duração, reiniciada após cinquenta anos, conduziria pro-
gressivamente os povos a tormentas, até a conquista francesa.
Ela começa sob Naaba Karfo (1842 -1849) de Uagadugu a partir de um
incidente banal, o que demonstra o grau de decrepidez do sistema mossi nesta
época. Ela foi terrivelmente agravada pelo fato de, contra o mogho naaba de
Uagadugu, terem se aliado um dos seus mais potentes vassalos e o seu principal
ministro”, o widi -naaba
26
. Esta coalizão era temida, pois que ela reunia dois
grupos sociais geralmente antagônicos: um elemento da nobreza posicionada à
frente dos comandos territoriais e o mais eminente representante da casta “buro-
crática” de origem plebeia, o qual, em torno do soberano e todavia, gerenciava os
grandes negócios do Estado. Nesta guerra civil que anunciava o ocaso do reino
de Uagadugu, Naaba Wobgho de Lalle, cuja parte oriental do território estava
demasiado encravada no meio de terras legalistas, apoiou -se de mais em mais na
zona ocidental, em grande parte povoada por elementos gurunsi, os quais foram
amplamente levados a colaborar, enquanto o mogho naaba de Uagadugu lograva,
através de estratagemas, provocar o aniquilamento do seu “ministro rebelde.
Entretanto, à época de Mogho Naaba Sanem de Uagadugu (1871 -1889),
o conflito foi retomado com maior intensidade com Naaba Wobgho de Lalle.
Ele prosseguiu sob o mogho naaba de Uagadugu, também chamado Wobgho
(1889 -1897). A primeira batalha levou à debandada das forças reais. O mogho
naaba, incapaz de abafar a rebelião, voltou -se, renunciando a combater, para os
mercenários zamberma (zambarima) com o objetivo de resolver a questão.
Os zamberma haviam deixado o seu país (atual Níger) para escaparem das
exações dos fulbes
27
. Eles se colocaram ao serviço de Ya Na, rei de Yendi, Na
Abdoulaye, como caçadores de escravos. Eles marchavam sob as ordens de Alfa
Hano, posteriormente de Gazari e, finalmente, de Babato. Em razão de discór-
dias com o rei de Yendi, eles empenharam -se em controlar o rico país gurunsi
ao qual impuseram onerosos sacrifícios. Como Mogho Naaba Wobgho os con-
vocara contra o Lalle, eles avançaram em país Mossi sem ninguém perdoar. Os
chefes” fiéis ao mogho naaba de Uagadugu opuseram -se a eles e barraram -lhes
a estrada, como em Saponé, onde eles foram esmagados, e em Kayao. O próprio
26 Y. Tiendrebeogo, 1964, pp. 48 -49.
27 M. Izard, 1970, tomo I, pp. 183 e seguintes.
785
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
exército do rei lhes infligiu pesadas perdas e o tapsoba (comandante em chefe)
não os deixou passar senão a contragosto, após ter recebido a ordem de Uaga-
dugu. Justa e posteriormente a muitos sangrentos combates, os enfraquecidos
zamberma refugiaram -se em grande número na província rebelde do Lalle que
os confinou nos pântanos onde foram dizimados. Somente fragmentos desta
coluna de intervenção alcançariam Léo
28
. A macabra ironia do destino quis
que a conquista europeia provocasse, ao final do século, a fuga do mogho naaba
de Uagadugu, rumo ao território britânico em 1897, enquanto o seu vassalo
e homônimo Wobgbo de Lalle era derrotado e executado pelos franceses em
Uagadugu.
No país Mossi ao Norte, a preponderância do Yatenga era patente: porém, no
transcorrer do século XIX, a decadência igualmente era evidente. Na realidade,
salvo algumas operações de expansão com vistas à integração, como nos reinos
de Yako e do Tatenga (Riziam), as outras ações do Yatenga consistiriam, durante
este período, em reações contra as ameaças externas, dentre as quais os exemplos
típicos residem nas operações de Djelgodji e na interminável guerra civil entre os
pretendentes ao trono, após a qual a maioria não teria tempo para alcançá -lo.
Em matéria de integração pela conquista, as duas principais iniciativas foram
aquelas de Naaba Tuguri (1806 -1822) contra Yako
29
. Mas o mestre deste reino,
intermediário entre o mogho naaba de Uagadugu e aquele do Yatenga, estava
antes sob as ordens do primeiro. Naaba Silem de Yako, destituído por Naaba
Tuguri do Yatenga, não se manteria durante mais de um ano. E, sem dúvida, com
a ajuda do grande vizinho de Uagadugu, ele retomaria o seu comando.
Quanto à ação contra o Riziam, ela não podia senão produzir os seus frutos.
Com efeito, este reino, cuja capital Sabce estava descentralizada na região Sul,
havia conduzido todos os seus esforços nesta região, particularmente contra os
potentes naaba de Bussuma. O Norte, cuja comunicação com a região Sul não
era possível senão através de um estreito e pouco povoado corredor, não mais
estava ligado à base meridional do reino. Em contrapartida, esta região seten-
trional estava, desde o reinado de Naaba Kango, sob a influência e a pressão
do Yatenga. As campanhas dos naaba Totebalbo (1834 -1850) e Yemde (1850-
-1877) desdobraram -se na anexação pura e simples dos territórios de Titao e de
Toulfé, situação que isolou ainda mais a chefatura rumba de Mengao e aquela
do Toulfé; na realidade, um chefe guerreiro de origem escrava, estabelecera -se
em Titao. Com o chefe de Kossouka encarregado da vigilância, o mestre de
28 Y. Tiendrebeogo, 1964, pp. 70 -71.
29 Conferir D. Nacanabo, 1982.
786
África do século XIX à década de 1880
 . Personagens mascarados mossi, provavelmente sacerdotes da terra” representando a autori-
dade aborígene, no início do século XIX. [Fonte: J. Vansina, Art history in Africa, 1984, Longman, Londres.
Ilustração: © Frobenius Institute.]
 . Mogho Naaba Sanem festejado pelos seus sujeitos em 1888. [Fonte: L. G. Binger, Du Niger au
golfe de Guinée, 1982, Hachette, Paris. Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho Administrativo
da Biblioteca da Universidade de Cambridge.]
787
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
Zitenga em Tiraké encontrava -se sob um severo controle; estado de coisas que
o conduziria a reaproximar -se ainda mais do seu “irmão”, o naaba do Datenga
e até mesmo do rei de Riziam.
Por outro lado, as campanhas extremamente rudes do Riziam, país de colinas
escarpadas, haviam custado muito caro ao Yatenga, inclusive a própria vida de
Naaba Totebalbo. Os frutos das campanhas contra o Djelgodji igualmente teriam
um preço muito elevado. Certamente, a fronteira com o Império do Macina fora
então mais bem estabelecida; porém, o Djelgodji extraíra das intervenções mossi
um anseio suplementar de independência vis -vis do Yatenga
30
.
Finalmente, no tocante à anarquia e à guerra civil, elas se encontravam
potencialmente contidas na eleição de Naaba Tuguri, no início do século, contra
a vontade dos seus numerosos irmãos. Frequentemente, dois concorrentes se
sucederiam em curtos intervalos, reinando por alternância ou mesmo simul-
taneamente, cada qual com o seu ce a sua capital. Foram estes os casos de
Naaba Wobgho e Naaba Nyambemogho, por um lado, e de Naaba Korogho e
Naaba Ragongo, por outra parte. Os príncipes compunham então as suas tropas
junto aos povos san (samo) de Gomboro (fornecedores de arqueiros) e/ou fulbe
de Tiou (fornecedores de cavaleiros), para forçar a decisão política através das
armas
31
.
Em seu conjunto, o processo histórico no Yatenga do século XIX mostrou -se,
à imagem do século XVIII, muito extrovertido, com a particularidade dos desa-
fios e riscos que se revelavam desde então muito mais graves. Sob Naaba Baogho
(1885 -1894), apoiado pelos filhos de Sagha (com exceção do cde Tuguri), as
lutas fratricidas se instalaram. Com efeito, os filhos de Sagha subdividiram -se,
por sua vez, em um cde Totelbalbo e outro de Yemde. Eles finalmente se
entenderam para impor Naaba Baogho; porém, este último seria brevemente
contestado pelos filhos de Tuguri: ocasião propícia à intervenção francesa
32
.
Os planaltos voltaicos a Oeste e Sul
Nesta região, grupos e clãs de mesma linhagem, em sua maioria sem poder
centralizado, resistiram relativamente bem às reviravoltas do tempo, cujos
vetores, alguns séculos, eram os juula (dioula) ou os marka (dafin) que
30 M. Izard, 1970, tomo 2, p. 350.
31 Ibid., pp. 331 -333.
32 J. Ki -Zerbo, 1953. As guerras fratricidas entre “os lhos de Tuguri” e “os lhos de Sagha geraram a
possibilidade de intervenção francesa.
788
África do século XIX à década de 1880
constituíam, juntamente com os autóctones, amálgamas biológicos, sociais e
econômicos dentre os quais um dos protótipos seria o povo bobojuula. Inclusive,
não é necessário traçar uma fronteira puramente teórica entre os povos com
o poder centralizado e os demais. Na realidade, a centralização pôde tomar
formas que não eram políticas, à imagem do poro de Senufo, comunidade de
grande envergadura, de caráter religioso que determinou a hierarquia social. Era,
portanto, normal que os povos pouco hierarquizados politicamente acusassem
os golpes das convulsões do século XIX de modo diferente, comparativamente
às sociedades politicamente pouco estruturadas. Estas observações ajudam a
compreender a tumultuada história dos grupos voltaicos desta região, durante o
século invasões, incursões preventivas, resistências, adaptações e mestiçagens
diversas. Em geral, embora repelindo mais ou menos vigorosamente as tentativas
de dominação dos grupos mande, mossi, zarma, marka, fulbe, os povos mais
sedentários, senão autóctones, acomodaram -se com a sua presença e com a sua
atividade econômica, admitindo o risco de operar transferências geográficas
quando a pressão política ou a punção econômica se tornavam demasiado fortes.
Vejamos alguns exemplos a este propósito.
O Gwiriko e o Kenedugu (Kénédougou) eram ambos emanações do poder
dos ouattara de Kong
33
. Eles seriam substituídos, aproximadamente ao final do
século XIX, pelo deslocamento rumo ao Leste de outro império juula (dioula),
aquele de Samori Touré
34
.
O Gwiriko
35
, formado no século XVIII no entorno de Bobo -Dioulasso e do
arco norte do Volta Negro, florescia graças a revoltas matées, entre as sucessivas
hegemonias do Arco do Níger (Ségou, Macina, Império Tucolor) e os reinos do
planalto central mossi. Porém, após Maghan Oulé Outtara (1749 -1809) e o seu
filho, Diori Ouattara, o império se esfacelou de modo generalizado − em razão
de resistências secessionistas dos povos submetidos pela imigração de pequenos
grupos juula (dioula), os quais tentavam a seu turno alcançar a bonança. Os tiéfo,
bobo -juula (dioula), bolon etc., estremeceram o jugo. Bako Morou (1839 -1851)
interrompeu momentaneamente a debacle, aliando -se aos tiéfo e aos bobo -juula
(dioula) para esmagar as forças do Kenedugu em Ouléni, onde o futuro rei,
Tiéba, seria capturado e vendido como escravo.
Após este período, a decadência prosseguiu. Assim sendo, ao redor de Boromo
uma família de marabutos marka, proveniente de Djenné, instituiu um feudo
33 No tocante à ascensão do império de Kong, consultar B. A. Ogot, 1992, capítulo 12.
34 Conferir o capítulo 24, acima.
35 Referir -se a B. A. Ogot, 1992, capítulo 12.
789
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
que, sob as ordens de Mamadou Karantao, reuniu Marka, Mossi e Dagari -Juula
(Dioula). Os kô autóctones foram expulsos de Boromo. Em seguida, desafiando
a autoridade dos ouattara, Mamadou Karantao lançou -se à conquista do Bwamu
(país dos bwaba) e fundou Ouahabou. O seu filho, Karamoko Moktar, prosse-
guiu a sua obra, não sem dificuldades e derrotas, no Bwamu e em terras dagari
e wiile.
As intenções de Karamoko Moktar, ao Sul do Gwiriko, foram alcançadas
pelo Kenedugu pelo Norte. Organizado no século XVIII em torno de Sikasso,
tratava -se de uma extensão longínqua de Kong sob os traoré, Senufo dioulaïsés,
ou seja, islamizados. Foi entre 1850 e 1860 que Laoula consolidou a potência dos
traoré, com base em pequenas chefaturas senufo. Este poder seria confirmado a
partir de 1875 pelo rei Tiéba, aliado dos franceses. Após se ter aproximado dos
kiembagha de Korogho e ter vitoriosamente repelido o cerco de Samori, atrás
da fortaleza fortemente construída de Sikasso, ele próprio fracassaria, em 1890,
perante Sinématiali.
Os povos do Sudoeste do Alto Volta (Burkina Faso) viveram neste período
em meio ao mesmo clima de pressões, instabilidades e conflitos. Migrações
étnicas: tal é o esquema geral que prevalecia nesta região. Aqui os pwa, sissala,
gan, dyan, birifor, dagara, dagara -juula sucederam -se, pressionados, repelidos,
esposados e separados, sobretudo durante os primeiros decênios do século XIX.
Bem entendido, não se tratava de um tsunami humano
36
. M. Père, citando os
seus informadores, menciona grupos restritos, por vezes compostos de algumas
unidades em movimento -relâmpago “para conferir se o lugar era bom”; poste-
riormente, outros, ao perceberem realmente tratar -se de um lugar adequado”,
uniam -se aos primeiros. Fato notável aqui consiste em haver, entre estas etnias,
o parentesco mais íntimo em meio à mais estrita diversidade. Eles se uniam, por
exemplo, aos quatro grandes clãs matriarcais, adotando as suas matronímias
37
.
Eles falavam todos línguas voltaicas, frequentemente próximas uma das outras.
Eles tinham os mesmos hábitos culturais, funerários, matrimoniais e de inicia-
ção, o mesmo habitat disperso, estruturas sociais similares, métodos agrários
análogos (intensivos nas terras aluviais ou domésticas, extensivos alhures), entre
outros. E, no entanto, em todas estas esferas, havia diferenças o bastante para
que cada grupo mantivesse por todos os meios a sua própria identidade.
Na aurora do século XIX, os kulango, teese, gan, pwa e dyan se encon-
travam presentes, sucederam -nos então os lobi, muito mais numerosos. Eles
36 Consultar H. Guilhem e J. Hébert, 1961, 1961, pp. 87 e seguintes.
37 M. Père, 1982. As matronímias eram: Hien/Da/Kambou -Kambiré/Sib -Sou -Palé.
790
África do século XIX à década de 1880
atravessaram o Volta Negro, ao final do século XVIII, vindos do atual Gana
em dois grupos: ao Norte, aqueles de Nako (os lobi da planície) e, ao Sul, os
lobi montanheses. Eles repeliam os dyan, gan e teese em um processo contínuo,
difuso e sem grandes choques; através de migrantes pioneiros e desmatadores,
oriundos de regiões superpovoadas, à custa dos povos esparsos; situação que não
excluía conflitos localizados em zonas marginais de fricção. Posteriormente, em
três eixos principais e da mesma origem, chegaram os birifor. Eles se incrustaram
entre Dagara -Wiile e Lobi, entre Dyan e Pwa, bem como em pleno coração do
país lobi. Eles eram os protótipos, por excelência, da mestiçagem, aproximando-
-se dos lobi, no plano cultural, e dos dagara por intermédio da língua; eles eram,
muito amiúde, trilíngues. Finalmente, foram os dagara que, por sua vez, atraves-
saram o Volta Negro, de Leste (margem esquerda) a Oeste (margem direita).
Distinguimos junto a eles dois grupos: os dagara -wiile, instalados no Nordeste,
e os dagara -lobi, estabelecidos às margens do rio.
Todos estes povos passariam a maior parte do seu tempo ocupados em
implantarem -se e defenderem -se, não tanto contra os seus vizinhos imediatos,
mas contra os contingentes juula (dioula), os quais os exploravam por toda parte,
sem lograr assujeitá -los.
Outros povos
A mesma observação vale igualmente para os povos voltaicos de poder o cen-
tralizado, a exemplo dos gurunsi, bisa e samo (sanan), noculo XIX. Vimos como
os zamberma sangraram intensamente os gurunsi, os quais em tempos de normali-
dade pagavam um pesado tributo aos reinos mossi, assegurando todavia com estes
últimos uma pronunciada mestiçagem, perene durante culos. Os bisa não somente
mantiveram as suas posões no Sudoeste do bloco moaga, mas, inclusive, aparentam
ter migrado durante este período. “Para s, tudo leva a crer que, distantes de serem
repelidos pelos mossi, os bisa [...] teriam ganhado terreno sobre os seus vizinhos. A
chefatura bisa de Garango seria, deste modo, muito recente
38
.”
Quanto ao país san (samo) do Norte, na fronteira com o Yatenga, longe de ser
conquistado, ele serviu em múltiplas ocasiões como base de recuo e santuário
para as intermináveis lutas dinásticas do Yatenga, durante o período em questão.
Eles e outros povos igualmente deviam contar com as chefaturas marka (dafin),
recentemente instaladas à imagem daquelas chefaturas de Lanfiera. Em suma, ao
final do século XIX, os povos de poder não centralizado apresentavam desem-
38 M. Izard, 1970, tomo 2, p. 226.
791
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
penhos relativamente consideráveis. Desde 1885, uma coalizão entre os bwaga,
kô e gurunsi, similar às coalizões que se estabeleciam alhures contra Kong, Bobo
ou Sikasso, infringiu aos zamberma uma derrota acachapante. Estas democracias
baseadas em pequenas localidades africanas, adeptas da religião tradicional, pos-
suíam um ímpeto notável, o qual se afirmaria brilhantemente frente aos coloniza-
dores, porém a sua história não mereceu suficiente apreciação até os nossos dias.
As regiões orientais dos planaltos voltaicos
Aqui na região Norte, o Djelgodji e o Liptako formavam uma zona intermedi-
ária entre os novos poderes do Macina e do Sokoto, por um lado, e o envelhecido
Yatenga, por outra parte. Seria o Liptako que tiraria maior proveito desta situação
para repelir rumo ao Sul a presença recém -dominante dos gulmanceba.
No início do século, os fulbes aqui se apresentavam na forma de agrupamen-
tos e acampamentos assujeitados, ao Norte, dos ardo fulbes do Arco do Níger,
ou, ao Sul, dos chefes gulmanceba.
No Djelgodji, ao início do século, os fulbes djelgobe estavam dependentes
dos jallube, para os quais eles pastoreavam os rebanhos em uma região povoada
por indivíduos kurumba, eles próprios tributários dos jallube. Contra estes últi-
mos, os djelgobe revoltaram -se e, final e possivelmente contando com o apoio
do Yatenga, livraram -se da sua dominação. Simultaneamente, eles abalaram a
tutela dos autóctones dirigidos pela aristocracia dos konfé, sob a égide do ayo
(rei) do Lurum (Louroum) sediado em Mengao, fundando os principados de
Djibo e Barbulle. No Liptako, os fulbes ferobe, também provenientes do Macina,
instalaram -se em Weendu sob o comando de Birmali Sala Paté, na dependência
dos gulmanceba de Koala, até aproximadamente 1810.
A vitória da jihad em Sokoto foi à ocasião considerada por estes fulbes
como um assunto islâmico e fulbe. Ela lhes inspirou um levante etno -religioso
contra os seus mestres gulmanceba, devotos da religião tradicional
39
. Brahima
Saïdou Diandikko enviou então uma delegação a Sokoto para solicitar ao xeque
‘Uthmān a sua benção. Ele traria um estandarte, legitimando a luta contra os
gulmanceba. As artimanhas e exações dos senhores gulmanceba permitiram, na
ocasião, a ação dos fulbes: gestantes mortas, leite derramado ou bebido por cães,
mulher fulbe amarrada e com a cabeça raspada, confisco das heranças; tudo isso
depunha contra o islã e a “via fulbe”.
39 H. Diallo, 1979, pp. 97 e seguintes.
792
África do século XIX à década de 1880
Brahima Sdou, o jooro (chefe local) de Weendu, designado pelo chefe
gulmance de Kaola, tornou -se amiiru (emir) e lançou uma jihad que se desdo-
brou no recuo dos gulmanceba para o Sul, embora deixando amplas zonas de
povoamento misto.
Entretanto, os outros clãs fulbe (torodbe e kamba [akamba]) contestaram
o crescente poder de Brahima Saïdou. Por conseguinte, eles enviaram uma
delegação a Dan Fodio, quem lhes respondeu ser de maior valia deixar o poder
àquele a quem Deus o havia destinado”, perguntando -lhes todavia por que,
apesar da sua autoridade neste meio pagão”, comparativamente aos ferobe,
eles não haviam declarado a jihad
40
. A influência político -religiosa de Sokoto
sempre manteve a nova dinastia e interveio quando necessário, como em 1890,
para apartar candidatos rivais do emirado. Em contrapartida, o emir de Dori
ofereceu relativamente pouco a Sokoto: ele não lhe trouxe ajuda militar e, no
tocante ao tributo anual em espécie (grãos, gado, escravos, tecidos), foi frequen-
temente impossível encaminhá -lo, em razão da falta de segurança das estradas,
sobretudo quando, após a divisão do império, Dori dependeu do Gwandu. Efe-
tivamente, o Kebbi rebelde, posteriormente o Arewa e os zamberma formavam
uma temida cortina. A jihad do Macina, em contrário, não produziu um impacto
relevante sobre as chefaturas de Djibo e Barbulle. Nestas regiões, as influências
das religiões tradicionais persistiram, ao passo que, malgrado o tributo pago a
Hamdallahi até 1858, Djibo e Barbulle não se consideravam dependentes do
Macina
41
, talvez em razão deste último não possuir nenhum representante in
loco. Havia autonomia, ao menos de fato. Portanto, o tributo representava um
ato de deferência, visando igualmente e sem dúvida prevenir uma eventual
pretensão de conquista. No Macina, contrariamente, ele constituía indubitavel-
mente a materialização de um controle que se pretendia fortalecer. A ocasião
surgiu em 1858
42
, aquando de uma querela sucessória em Barbulle. Um corpo
de intervenção foi enviado por Hamdallahi, sob o comando de Alhajji Modi.
Este último esmagou as forças finalmente reconciliadas de Djibo, Barbulle e
Tongomayel. O Yatenga e o Datenga, inquietos, responderam ao chamado de
Djelgodji. Reunidos em Pobé Mengao, eles impuseram uma derrota cabal aos
macinankobe. Estes últimos retornaram fortemente com Balobbo. Ora, neste
ínterim, as exações e pretensões dos vencedores mossi haviam sido de tal ordem
40 Ibid., p. 107.
41 Ibid., p. 118.
42 A. Hampaté Bâ e J. Daget, 1962; M. Izard, 1970, tomo 2, 1970, pp. 334 e seguintes.
793
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
que os fulbes rebelaram -se, massacraram os mossi e estreitaram os seus laços
com o Macina.
Na realidade, em Djibo, a exemplo de Barbulle, muitas famílias disputavam
arduamente o poder entre si e, em razão disso, eram levadas a apoiarem -se sobre
o Yatenga quando os rivais estavam próximos do Macina. Cabe acrescentar,
neste contexto, as lutas intestinas entre as chefaturas e a surda resistência dos
autóctones de Kurumba, o qual, sob o principado de Aribinda, tornou -se, ao
final do século, um perigo suficientemente importante a ponto de provocar a
coalizão entre Djelgodji e Liptako.
Seria igualmente necessário contar com os tuaregues. Desde 1804, os tua-
regues oudalan se haviam instalado na região que levava o seu nome, extor-
quindo um tributo dos gulmanceba e dos Songhai. Sori Hamma (1832 -1861)
e, posteriormente, Bokar Sori (1890 -1892), foram por eles batidos e levados
a fortificarem Dori com muralhas. Efetivamente, a consolidação do Império
do Macina expulsara os tuaregues para o Leste, onde eles se estabeleceriam ao
longo do rio Béli.
A organização política do Liptako integrava nas suas próprias estruturas a
vontade de equilíbrio entre os clãs. Com efeito, o poder transmitiu -se na des-
cendência linear patriarcal de Saïdou, pai de Brahima, aquele que dirigiu a jihad.
Porém, os ferobe finalmente decidiram ou aceitaram que os seus antagonistas,
os torodbe, constituíssem o colégio eleitoral para designar o emir. Este colégio
pronunciava -se, após efetuar levantamentos, sobre as qualidades pessoais (jus-
tiça, piedade), os serviços prestados, a importância dos laços matrimoniais etc.,
do candidato a emir. Mediante esta participação, os torodbe, embora excluídos
do poder, exerciam uma espécie de arbitragem entre os pretendentes ferobe,
integrando -se deste modo ao sistema
43
.
O pretenso emir era submetido a uma entrevista e devia responder a questões
capciosas. Em seguida, animais eram sacrificados para os gênios e para uma
serpente fetiche. Procedia -se posteriormente à confecção de um novo tambor
tradicional, integrado aos atributos do poder segundo o conselho de Sokoto
44
.
Coberto com o turbante por um dos torodbe, perante o imã e o kādī e em frente
ao estandarte, o novo emir jurava respeitar os costumes e princípios do islã e
garantir a felicidade do seu povo. Havia neste contexto um ritual de revitalização
político -ideológica de dimensões cósmicas, objetivando a conciliação com as
forças sobrenaturais de toda ordem. As autoridades religiosas eram constituídas
43 H. Diallo, 1979, pp. 155 e seguintes.
44 Ibid., p. 161.
794
África do século XIX à década de 1880
pelo kādī de Dori e investidas do poder judiciário, na qualidade de tribunal de
última instância. Por outro lado, uma rede de imames das localidades era coroada
pelo grande imã de Dori.
O poder local era organizado para também associar os mais antigos clãs
fulbes, os quais não podiam pretender ao emirado; na realidade, era junto aos
chefes de família das mais antigas linhagens que se escolhia os jooro (chefes
locais). Em Djelgodji, apresentava -se o mesmo sistema de integrão dos clãs:
o chefe era escolhido por um colégio eleitoral composto por notáveis anciãos
da linhagem dos sadaabe, os quais dominavam o interior do país à chegada
dos djelgobe, únicos pretendentes à chefatura. Esta última foi inclusive de fato
monopolizada pela falia de Nyorgo. A insígnia principesca era um bastão
(simbolizando o pastoreio) adornado com gêneros agrícolas. Aqui, igualmente,
sacrifícios realizados pelos autóctones kurumba garantiriam a prosperidade
material do reino.
Os reinos bambara de Ségou e do Kaarta
Após terem atingido o seu auge durante o século XVIII, estes reinos sobre-
viveram marcados pelos aspectos mais negativos da sua política: ajudas conside-
radas como atos de bravura; incursões sem esforço de organização; assim como
guerras fratricidas entre si e no interior de cada um dentre eles. Na realidade,
os massassi do Kaarta, de linhagem real, consideravam os mestres de Ségou, ao
menos a partir dos sucessores de Denkoro, filho de Biton Kulibali, como chefes
militares escravos, profissionais da guerra. Na ocasião, o reino de Ségou era
mais povoado e mais forte. Os reis de Ségou detestavam os massassi, os quais
cordialmente os desprezavam. De onde derivam estes persistentes assaltos de
Ségou contra o Kaarta, geralmente batido, porém jamais conquistado
45
.
Este período foi igualmente marcado pela crescente importância adquirida
pelos tonjon (libertos tornados guerreiros) que abusavam da sua força. Assim
sendo, ao longo de uma guerra promovida por Toukoro Mari (1854 -1856)
contra o seu irmão Kégué Mari, em Massala, os tonjon mobilizados pelos dois
irmãos decidiram atirar a esmo
46
. Percebendo não existirem feridos em meio aos
invasores e tampouco junto aos sitiados, Toukoro espantou -se. Foi então que
um tonjon declarou -lhe sem delongas: Nós estamos fartos das vossas guerras
fratricidas. É preciso que elas cessem!” E esta guerra cessou.
45 L. Tauxier, 1942, p. 143.
46 Ibid., p. 99
795
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
 . Tipos de casa bambara, 1887. [Fonte: L. G. Binger, Du Niger au golfe de Guinée, 1982, vol. I,
p. 17, Hachette, Paris. Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho Administrativo da Biblioteca
da Universidade de Cambridge.]
No reino de Ségou, Monzon Jara (1787 -1808) distinguiu -se por campanhas
contra o Kaarta e o Macina e igualmente contra os dogon e os mossi. O seu
sucessor, Da Jara (1808 -1827), foi derrotado por Seku Ahmadu do Macina,
durante a tentativa de socorrer o seu próprio vassalo, o ardo Dikko, fulbe não
muçulmano. Ele então compreendeu que o principal inimigo não era o reino
“irmão do Kaarta. Da Jara era um homem feroz e pérfido
47
. O seu sucessor,
Cefolo (1827 -1839), cometeu o erro de capturar um peregrino pouco ordinário
vindo da Meca; tratava -se de al -Hadjdj ‘Umar, quem jamais esqueceria esta
humilhação mesmo após ter sido libertado mediante a insistência de notáveis
muçulmanos dentre os quais o tucolor Ceerno ‘Abdul.
47 A este respeito, vale lembrar o episódio de Mama Dyetoura, “o mais belo dos homens”, segundo a
apreciação das mulheres de Da Monzon, quem, mortalmente enciumado, lograria eliminá -lo em uma
cilada. Conferir C. Monteil, 1977, pp. 92 e seguintes.
796
África do século XIX à década de 1880
Os anos de anarquia posteriores ao reino de Cefolo foram marcados pela
lendária figura e épica de Bakari Dyan, chefe dos deferobe (fulbes libertos para
servirem ao Estado, porém não exclusivamente fulbes, longe disso). Bakari Dyan
não somente resistiria vitoriosamente aos ataques provenientes do Macina,
inclusive matando o temido Blissi, mas, inclusive, tomaria numerosas localida-
des, para a grande alegria dos habitantes de Ségou.
Sucedeu -lhe uma série de reis insignificantes até Alī Monzon Jara, quem
seria vencido e morto por al -Hadjdj ‘Umar. A resistência bambara continuaria
todavia sob os chefes eleitos, a partir da margem direita do Bani.
O reino do Kaarta era obrigado a mover -se entre as bacias do Senegal e do
Níger. Ao passo que Desse Koro, no início do século, tirou proveito dos distúr-
bios de Ségou para amparar -se de Nyamina; Moussa Koura Bo, o seu sucessor,
aliou -se ao Bundu contra o Abd al -Kādir do Futa Toro, quem seria vencido e
morto em 1807. Porém, ele igualmente operou contra os kagoro do Beledugu
e o Mande. Sob Bodian Moriba le Grand (1815 -1838), aconteceu a aliança
com o Alto -Galam contra o almaami do Bundu, ligado ao Xaso. Os kaartanke
alcançaram uma vitória decisiva em 1818, enquanto o filho de Moriba devastava
o Fuladuu (região de Kita).
Perante o expansionismo fulbe e tucolor, Naniemiba (1839 -1841) e Kirango
(1841 -1844), de Ségou, finalmente negociaram a reconciliação com Nyaralen
Gran (1832 -1843) e Mamadu Kandyan (1843 -1854), os quais lutavam contra
os jawara (Diawara). Demasiado tarde, eles seriam todos varridos − aqui incluso
o adversário fulbe do Macina pela jihad de al -Hadjdj ‘Umar.
Assim sendo, no centro e no Norte das regiões concernidas pelo presente
capítulo, vários conjuntos políticos degradaram -se a um ritmo acelerado no curso
do século XIX, por vezes em proveito de novas hegemonias, particularmente
aquelas produzidas pelas jihad. Estes últimos tiraram proveito da decomposição
interna dos poderes estabelecidos para implantarem -se antes de serem rejeitados,
a seu turno, por forças estrangeiras diferentemente temidas.
Como sempre, a explicação para tamanho declínio não poderia ser unívoca,
por exemplo, sugerindo exclusivamente a existência de influências externas e
uma espécie de predestinação para a colonização.
Certamente, no tocante aos reinos e aos povos de regime não centralizado,
processos em curso há muito tempo haviam atingido o limiar da ruptura, tanto
no plano interno quanto do ponto de vista dos impactos externos.
Sucessivamente, na realidade, os reinos mossi, bambara e juula haviam
ensaiado garantir um espaço que incluía, a um só tempo, as margens do deserto
e as bordas da floresta. Embora nenhum deles tenha persistido de forma durável
797
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
nesta região, cada um dentre eles viu coincidir o seu apogeu com o máximo da
sua extensão, a Norte e Sul, conquanto o império bambara de Ségou agregasse
sobremaneira ao seu núcleo o eixo oeste -leste do vale do Níger. No entanto,
com o século XIX, a instabilidade política e os deslocamentos populacionais
prevaleceram. Os brutais extermínios e os fenômenos secessionistas provinham
justamente daqueles que supostamente deveriam constituir os fundamentos
do poder, como os tonjon de Ségou ou os ministros da corte de Uagadugu.
Malgrado algumas brilhantes exceções, o ritmo e a amplitude dos conflitos se
acentuaram. Esta tendência para o deslocamento estava indubitavelmente ligada
à circunstância, em função da qual, com progressiva facilidade, os poderes peri-
féricos e rebeldes podiam adquirir armas e, por conseguinte, desafiar os chefes
reinantes.
Por outro lado, os cativos, dos quais estes reinos necessitavam, na qualidade
de moeda de troca para comprarem os gêneros raros ou equipamentos de guerra,
eram capturados a um ritmo cada vez menos compatível com a sobrevivência
destas sociedades, inclusive e sobretudo quando eles eram arrancados de povos
submetidos à tributação; pois esta ação esgotava as reservas dos poderes domi-
nantes. No entanto, em consequência de uma decalagem normal, as decisões
europeias, referentes à abolição do tráfico,o impediriam este último de atingir
o seu paroxismo, durante o século XIX, em numerosos países do Arco do Níger e
da bacia superior dos Voltas. A libertação pelo Estado ou a reintegração ao nível
das linhagens, lograram apenas reduzir os efeitos destruidores desta desgraça que
se abateria sobre a região até o final do século XIX. Efetivamente, estes países,
cuja economia encontrava -se recentemente irrigada pelos portos do deserto”,
estes pontos de chegadas das caravanas, estavam agora cercados e bloqueados,
em razão de estarem separados da costa por outros Estados, no momento em
que o essencial dos fluxos comerciais basculava. Portanto, eles não podiam senão
declinar lentamente, porém inexoravelmente.
Nestas condições, como frequentemente acontece nos períodos de crise, as
clivagens sociais agravaram -se, transformando as estruturas mais igualitárias que,
até bem pouco, haviam marcado as sociedades do Sahel, em sua fase ascendente.
A isso se acrescentava a evolução dos movimentos religiosos que, tolerantes em
relação aos cultos tradicionais durante os séculos precedentes, transformaram -se
sob a influência do rigorismo veiculado pelas jihad, os quais triunfaram em Lip-
tako e varreram os Estados bambara. Embora os yarse do país mossi, até então
muito flexíveis nos planos religioso e político, tivessem começado a endurecer
as suas posições e fazer proselitismo. Mas os Estados muçulmanos sucessores
seriam, eles próprios, efêmeros, pois que estavam dominados pelas mesmas
798
África do século XIX à década de 1880
condições objetivas que desde então condenavam ao fracasso o desenvolvimento
autônomo dos Estados africanos.
Todavia, não esqueçamos que, sob a casca dos aparelhos de Estado que,
durante este período foram enfraquecidos ou deslocados, numerosos povos
prosseguiram, em razão das puões das quais foram vítimas e por vezes
através de dramáticas migrações, por uma via tenaz de produção econômica
e reprodução social. Esta evolução relembra -nos que, além dos sobressaltos
endógenos ou provocados por forças externas, os grupos sicos estavam dis-
tantes do esgotamento, estado de coisas confirmado pela sua notável capa-
cidade em superarem os maiores desafios, notadamente aquele representado
pela intrusão colonial.
Tensões socioeconômicas
Produção e comércio
Durante este período, muito mais que atualmente, a base da atividade eco-
nômica era a agricultura. Na falta de estatísticas, pode -se dizer sem incorrer
em erro que 99% da população desta região estava empregada nesta atividade,
particularmente os povos sedentários e autóctones. A pequena minoria, além
dos artesãos, que se dedicava ao comércio, era sobretudo composta de grupos
originários dos povos mercadores ou atraídos pela conquista, eventualmente
combinando estes dois perfis, a exemplo dos juula (dioula). A título de esquema
geral, é possível dizer que, entre os países costeiros compradores essencialmente
de escravos, de ouro e fornecedores de produtos europeus, por um lado, e o Sahel,
consumidor de noz -de -cola, das suas armas e exportador sobretudo de sal, de
gado e de escravos, por outra parte, havia zonas intermediárias de savana que
vendiam, igualmente elas, escravos e gado (asnos para o comércio, cavalos para
a guerra e para as cortes principescas), além de cereais e ouro.
Após a abolição da escravatura pela Inglaterra em 1807, um desequilíbrio
estrutural ocorreu neste esquema, sobretudo no Sul, onde os controles foram os
mais estritos e precoces, embora a escravatura doméstica fosse tolerada
48
. Assim
sendo, durante a segunda metade do século XIX, sobretudo no Arco do Níger,
a escravatura conheceu um enorme crescimento: como as armas eram vendidas
a preços crescentes, era necessário em troca fornecer cada vez mais escravos.
48 A. A. Boahen, 1974, p. 179.
799
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
Compreendem -se as razões pelas quais grupos inteiros, como os zamberna, se
tenham especializado nesta indústria de extração do minério negro”. Porém, os
principais fornecedores não eram somente as grandes jihad dos líderes muçul-
manos do Norte, nem tampouco os conflitos dos mogho naaba. O complexo
escravista era alimentado por uma enormidade de canais coletores baseados
nos povos, nas centenas de chefaturas, desde os territórios dos tuaregues até as
proximidades das casas comerciais estabelecidas na costa. Durante os últimos
decênios do século XIX, praticamente jamais houve época de paz em qualquer
região, isso equivale a dizer que sempre houve cativos. As vítimas eram essen-
cialmente as comunidades agrícolas sedentárias, verdadeiros viveiros para o
tráfico. De onde derivavam as zonas de subpovoamento por vezes identificadas
em algumas regiões literalmente sangradas. Os tributos pagos com cativos eram
frequentemente muito pesados. E quando os autóctones se organizavam para se
defenderem, não se hesitava em recorrer a eles como mercenários, para travar a
guerra em outros setores; tal foi o caso de alguns gurunsi recrutados na horda dos
zamberma e dos samo (sanan), engajados nas guerras dinásticas do Yatenga.
Os circuitos comerciais
No Sul da região considerada, como vimos, o Ashanti lutou desesperada-
mente para controlar as casas comerciais instaladas na faixa litorânea, verdadei-
ros balões de oxigênio para a sua sobrevivência, as quais lhe proporcionavam o
domínio nas duas extremidades da cadeia comercial. Pois que a supressão do
tráfico, responsável por nove décimos do total de exportações da Costa do Ouro
no início do século, introduziu abruptamente uma mutação econômica. Desde
1840, o principal item de exportação da costa oriental fora o óleo de palma, espe-
cialmente graças à política de Maclean. A exportação de borracha começou entre
os anos 1870 e 1880 e, juntamente com o óleo de palma, lançaria as bases para
a transformação das estruturas econômicas na região sul da Costa do Ouro.
Enquanto o ouro ashanti e voltaico dirigia -se sobretudo para o Sul, a noz -de-
-cola destinava -se para o Norte. Entretanto, as rotas do Oeste, através de Kong
e Buna, cedem progressivamente àquelas do Nordeste, através do país dagomba
e haussa, como testemunha Thomas Bowdich. O comércio do Norte foi ativado,
em suplemento, pela supressão do tráfico costeiro, pelo fechamento esporádico
das rotas para o país fanti e pela estabilidade política do Borno após a jihad
de ‘Uthmān dan Fodio. Assim sendo, os produtos de luxo europeus chegavam
através da África do Norte, do Fezzān e de Trípoli ou até mesmo pela costa do
Daomé alcançando Kano e, a partir deste ponto, eram encaminhados para o
800
África do século XIX à década de 1880
Arco do Níger. As sedas e tapetes da Turquia e de Trípoli, o natrão de Borno e
as vestimentas haussas eram assim trocados pela noz -de -cola e pelo ouro, pelos
tecidos em algodão do Dagomba, do Mossi e do Mande, pela manteiga de carité,
bem como pelo gado do Sahel sudanês.
De onde derivou, nesta época, a expansão fulgurante de Salaga
49
. Este centro
substituiu então Gbuipe, no Gonja. De Salaga ia -se rumo a Yendi, Sansanne-
-Mango e, deste ponto, em direção aos países voltaicos, haussa ou iorubá. Salaga,
diz -nos Dupuis, possuía o dobro do tamanho de Kumashi, com uma população
de 400.000 almas. Este desenvolvimento prosseguiria até a queda do poder
ashanti, quando as rotas seriam desviadas em direção a Kintampo. Nas tran-
sações, geralmente prevalecia o escambo, mas igualmente o ouro em era
empregado nas trocas mais importantes, assim como os cauris que Maclean
legalizou na região costeira. J. B. Kietegha descobriu em Logofiela reservas de
cauris vizinhas a fragmentos de jarros, os quais seria possível reconstituir assim
como exumar a partir dos bancos de areia da região de Pura
50
.
Além do ouro ashanti e lobi, a margem esquerda do alto -Volta Negro conhe-
ceu, sobretudo no século XIX, uma notável concentração de pioneiros de diver-
sas origens: Dyan, Dagara, Bobo -Juula (Dioula), Bwaba e Mossi, além dos
gurunsi autóctones. A exploração realizava -se com a ajuda de instrumentos
rudimentares (alviões, picaretas, jarros, cabaças e gamelas). A divisão do trabalho
reservava aos homens, exclusivamente, a prospecção, a escavação e a moagem
do quartzo, além de serem eles os únicos que podiam ver o ouro e matá -lo”, ao
passo que, às mulheres, cabiam o transporte e a lavagem do mineral. Ao final do
século, a proporção de escravos nestas comunidades era considerável (sessenta
por família de Pura)
51
. É notável aqui tratar -se de uma exploração familiar ou
individual, não ligada a um Estado centralizado. A invasão dos zamberma em
várias localidades do setor aurífero conduziu os camponeses a esconderem os
seus instrumentos nas colinas e a se colocarem em de guerra; os homens cap-
turados eram vendidos por 100.000 cauris e as mulheres pelo dobro deste valor.
Com efeito, e em certa medida, havia contradições entre a produção de ouro
e a caça aos escravos. Todavia, os grupos armados evidentemente preferiam os
49 K. Arhin, 1979, capítulo III.
50 Os pequenos cauris, preferidos em relação aos grandes, eram trocados contra estes últimos à razão de
10.000 por 11.000. De onde derivam as operações dos cambistas que nelas ganhavam 10%; conferir
L.G. Binger, 1892, citado por J. B. Kietegha, 1983, p. 185.
51 J. B. Kietegha, 1983.
801
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
 . Um mercador ambulante mossi, 1888. [Fonte: L. G. Binger, Du Niger au golfe de Guinée, 1892,
vol. 1, Hachette, Paris. Ilustração reproduzida com a autorização da Biblioteca Nacional, Paris.]
802
África do século XIX à década de 1880
 . Mapa de Kintampo, cidade comercial do interior da Costa do Ouro. (segundo L. G. Binger,
1892).
803
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
escravos, os quais rendiam muito mais
52
, além de igualmente serem utilizados no
garimpo. Na primeira metade do século XIX, a produção anual de ouro atingia
possivelmente 50 kg, somente na região de Pura
53
.
Enquanto este ouro seguia sobretudo em direção ao Saara e ao Marrocos,
o ouro do Lobi rumava para a Costa do Ouro ou para a Libéria. Este ouro era
parcialmente entesourado sob a forma de pó ou pepitas, em cilindros de bambu
ou peças de tecido, escondido nos tãos ou enterrado em potes cerâmicos.
Ele era transportado pelas rotas comerciais locais e regionais, quer seja rumo
a Bobo, San, Djenée e Mopti ou para Kong e o Ashanti, quer seja para Gaoua
(Lobi) ou Salaga, passando por Wessa e Wa, ou ainda rumo a Uagadugu, e de
para Puytenga, Tenkodogo e Salaga. Nas trocas locais, ele servia para comprar
o sal, a noz -de -cola, os bubus, os escravos e os grãos. Segundo L. G. Binger, o
sal em barras do deserto, era excepcionalmente mais estimado; ele chegava de
Taoudeni por Tombouctou, Mopti, Djenée, Bla e San, de onde era disseminado
no Sahel e na savana. Igualmente ocorria em relação ao sal vindo por Adrār e
52 A venda de escravos teria proporcionado aos negreiros um ganho 90 vezes maior que o ouro, segundo
V. Kachinsky, 1935, p. 192, citado por J. B. Kietegha, 1983, p. 155.
53 J. Sagatzky, 23 de julho de 1940, folha 5.
F . Salaga em 1888.
804
África do século XIX à década de 1880
Tichitt com destino a Ségou. O sal marinho da costa e o sal em de Daboya
eram direcionados até Kong. No Sahel voltaico, os chefes de Djibo tinham um
meio astucioso para acumular os escravos. Se um escravo matasse alguém e fosse
confidenciar -se junto ao chefe, ele seria absolvido e passaria a ser escravo deste
último; em caso de roubo, se o ladrão fosse rico, o chefe apropriar -se -ia da sua
riqueza
54
. Ao final do século, havia 50.000 cativos para cada 50.000 homens
livres em Dori. No entanto, em sua passagem pela região, aproximadamente
no ano 1853, Heinrich Barth, sempre tão preciso e perspicaz, não se refere
a escravos. No entanto, na segunda metade do século houve um considerável
crescimento do tráfico negreiro nesta região.
A concentração de estradas em torno de Dori oferece uma ideia da abertura
do Sahel para todos os horizontes. Como a legislação do Império do Macina era
muito dura em Tombouctou (pesadas taxas, interdição do tabaco), os mercadores
desviaram as rotas para Gao, controlado pelos mouros e tuaregues, numerosos
em Dori. Enquanto a rota de Kayes até Dori, passando por Bamako e Bandia-
gara, era controlada pelos juula (dioula), aquela ligando Sokoto a Dori, passando
por Sansanné -Mango, era dominada pelos haussas. Aquelas de Ouahigouya até
Dori, passando por Yako e Kaya, ou de Uagadugu a Dori, passando por Zitenga
e Puytenga, estas eram praticadas pelos mossi. Importavam -se para Dori o
tabaco, esteiras, gado, o sal do Norte, produtos fornecidos em troca de faixas de
algodão, turbantes haussas e produtos manufaturados europeus. Do país haussa
vinham as cangas e os bubus, trocados pelo gado e pelo sal. Do Mossi provinham
escravos, faixas de tecido, cobre trabalhado e asnos, os quais eram trocados por
noz -de -cola do Ashanti, sal e gado. Dos países juula (dioula) chegavam estopas
da Guiné e quinquilharias trocadas por sal e gado. Em Djibo, onde abundavam
comerciantes yarsé oriundos de Ouahigouya, prevalecia o escambo, ao passo
que os cauris eram utilizados em Dori. Nesta cidade, os comerciantes estavam
associados, em virtude da sua própria profissão, aos clãs aristocráticos, aos quais
eles eventualmente se associavam através de casamentos; porém, instalados em
bairros exclusivos, eles eram mantidos à margem da política.
Em seu conjunto, embora marginal relativamente ao conjunto da economia, a
atividade dos mercadores teve um notável impacto qualitativo na vida de todos.
Para convencermo -nos deste estado de coisas, basta relembrar a importância de
localidades intermediárias, tais como Begho, Kafaba, Kintampo, Atebibi, nas
quais sociedades pluri -étnicas rapidamente foram constituídas. Para Salaga,
54 H. Diallo, 1979, p. 169.
805
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
afluíam os gonja, juula (dioula), haussas, dagdon, ashanti, fulbes, iorubás, dendi,
bornouan, bariba, kulango, gurunsi etc.
55
. Tratava -se de um verdadeiro microcos-
mos onde, comparativamente à sociedade autóctone mais homogênea, a divisão
do trabalho era mais intensa, com proprietários, locatários, intermediadores e
diversos artesãos
56
.
Tensões sociais
As tensões sociais eram normais em períodos de reviravoltas. Tal foi o caso
dos países do Arco do Níger e da bacia do Volta, no século XIX. Porém, em
que pese a raridade de documentos sob este aspecto do processo histórico, apa-
rentemente, abalos sociais afetaram muito mais os Estados centralizados que as
sociedades fundadas com maior ênfase na auto -gestão, atingindo sobremaneira
as regiões costeiras, comparativamente às zonas interioranas, e incidindo muito
mais sobre as regiões islamizadas se confrontadas com as demais. Com efeito,
as sociedades sedentárias com poder não centralizado, embora se apresentassem
como as mais marcadas pelas convulsões da época, refugiavam -se na fidelidade
ao seu código de vida tradicional, como antídoto para a agudez dos desafios.
A condição dos escravos e homens de casta era bem mais grave nos Esta-
dos centralizados. A mais radical reviravolta, indubitavelmente, foi aquela dos
agrupamentos fulbes que, de nômades e assujeitados nos Gulmanceba, alguns
anos após a jihad, transformaram -se em senhores dominantes perante popu-
lações autóctones ou reduzidas ao estatuto de plebeus, cativos e servos (bellah
ou riimaaybe), fadados aos trabalhos agrícolas e ao pastoreio. Neste contexto,
acrescentam -se os artesãos e griôs. Sociedade minuciosamente estratificada onde
cada um possuía e reconhecia o seu posto. Além da quinta parte recolhida sobre
o butim das invasões
57
, o emir do Liptako recebia doações e cobrava um tributo
sobre as colheitas batizado zakāt. Os chefes de Djibo igualmente recebiam
presentes por ocasião das “saudações” e recolhiam o imposto sobre o sal junto
aos comerciantes. Os aristocratas estavam por vezes rodeados de centenas de
dependentes. Conquanto a sorte dos escravos melhorasse com a ancianidade (os
riimaaybe podiam tornar -se proprietários), a condição dos cativos criaria pro-
blemas no Liptako. O próprio Dan Fodio recomendou ao emir a libertação dos
escravos que tivessem participado dos combates contra os gulmanceba. Por outro
55 L. G. Binger citado em M. Johnson, sem datação, SAL/19/1.
56 K. Arhin, 1979, capítulo III.
57 Segundo a estrita ortodoxia, era o kādi quem deveria recebê -lo; conferir H. Diallo, 1979, p. 274.
806
África do século XIX à década de 1880
lado, em 1861, o emir Seeku Saalu foi obrigado a enfrentar uma insurreição
servil, estimulada pelo marabuto Abdul -Kaadiri, cuja intenção era amparar -se
do poder. O emir não poderia livrar -se desta situação senão determinando a
concessão das libertações.
Quanto aos artesãos, excluídos dos direitos pertinentes aos homens livres e
nobres, eles foram reduzidos à endogamia. Enquanto um nobre podia casar -se
com garotas escravas, o artesão não podia esposar a filha de um ferreiro
58
. E, no
entanto, à imagem do gr, que através da magia do verbo consolidava o poder
e também dele participava muito marginalmente, o ferreiro era temido em
razão do caráter mágico da sua profissão. Este último igualmente exercia função
similar àquela de um mediador, nos conflitos entre indivíduos e famílias. Neste
contexto não faltariam temas criadores de tensões
59
.
No reino mossi de Uagadugu, transformava -se escravos em eunucos em
número suficiente para permitir a sua exportação em direção ao Norte. No
tocante ao Ashanti, a massa de rebanhos humanos obtida através da tribu-
tação era tamanha que, quando o tráfico foi abolido, o ashantihene declarou
ser -lhe impossível alimentar os 20.000 cativos que ele detinha, acrescentando:
“Salvo matando -os ou vendendo -os, eles se multiplicarão e matarão os meus
sujeitos
60
.”
No entanto, as relações sociais entre os escravos e os seus proprietários, apa-
rentemente, foram menos conflituosas nas sociedades sem poder centralizado.
informações, segundo as quais, em uma localidade de Pura, os escravos eram
alimentados “como todo mundo”.
M. Père diz -nos que, no ps lobi, cada subclã matriarcal era dividido
em dois grupos: os weya de nascimento autêntico e os dea de origem cativa.
Acrescentavam -se os indivíduos adotados em razão de serem fugitivos de uma
grande fome ou de uma invasão; eles teriam sido encontrados pela manhã em
frente à porta. Entretanto, tanto uns quanto os outros estavam intimamente
integrados na estrutura social, na qualidade de força produtiva e reprodutiva.
A este título, o escravo vivia na mesma habitação do seu mestre, a quem cha-
58 Tal era a situação no Yatenga até meados do século XX.
59 Foi reportado que caso fosse ordenado ao chefe da localidade para que ele trouxesse um cavalo e ele
o pegasse de um ferreiro, todos os ferreiros do Liptako se reuniam. Eles pegavam as suas bigornas e
vinham colocá -las diante do amiiru. Eles lhe diziam: “O país te pertence, mas as nossas ferraduras nos
pertencem. Nós não fabricaremos nem enxada, nem enxadão, nem lança. Caso as pessoas queiram que
elas não mais cultivem”. Ao nal o amiiru entendia -se com eles, enviava -lhes o cavalo e eles voltavam
para a sua morada. (H. Diallo, 1979, p. 186).
60 J. Dupuis citado por A. A. Boahen, 1974, p. 179.
807
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
mava “meu pai”; ele participava do mesmo grupo de parentes que o seu mestre,
estava sujeito aos mesmos rituais e proibições, a trabalhos idênticos, dele rece-
bia uma mulher, possuía um campo e podia fazer frutificarem os seus cauris,
até novamente comprar ou comprar outro homem para substituí -lo
61
. Aqui se
manifestava uma vontade de utilização da escravatura como um processo de
fortalecimento dos grupos clânicos ou territoriais.
Outros tipos de tensão acentuaram -se nos Estados centralizados desta época;
trata -se dos conflitos entre os senhores ou nobres e o soberano, tanto no Ashanti
quanto nos reinos bambaras, no yatenga e no reino de Uagadugu ou no Gwiriko.
No reino de Ouadagoudou, por exemplo, Mogho Naaba Karfo (1842 -1849)
decidiu distribuir aos pobres da plebe os bens confiscados dos ricos. Os nobres
bem como os plebeus tinham igual acesso a ele, quando lhe cabia tomar medidas
judiciais. É fortemente provável que esta política social tenha contribuído para a
grande rebelião dos príncipes em seu próprio reino, instigada pelo seu principal
ministro, o widi -naaba.
Finalmente, citemos o caso das regiões costeiras, nas quais as dinâmicas
comercial e educacional produziam uma estratificão social de gênero qua-
litativamente novo. Na realidade, a partir do momento em que as transações
não mais repousavam sobre o comércio de escravos, mas sobre a troca dos
produtos europeus pelo ouro, o marfim, o óleo de palma e a borracha, desde
logo uma nova classe comerciante emergia, operando a partir de créditos de
campanha concedidos por companhias europeias, das quais na verdade ela era
representante. Este foi o ponto de partida para o surgimento de numerosos
atacadistas, estabelecidos nas ruas dos centros costeiros. Abaixo deles, um
grande número de pequenos recolhedores de impostos, cujo papel consistia
em agilizar os tmites junto a fornecedores que gravitavam e dependiam dos
negociantes
62
. Era igualmente necessário contar com os mercadores ashanti,
os akonkofo
63
, os quais controlavam a oferta de produtos africanos provenientes
do interior.
Do mesmo modo, no âmbito educacional, categorias ou até mesmo classes
sociais instalar -se -iam na costa. No topo da hierarquia, estavam os descendentes
das grandes famílias comerciantes que, como os Bannerman da Costa do Ouro,
haviam sido, desde o começo do século, educados na Europa ou no Fourah
Bay College (Serra Leoa), fundado em 1827. Eles se faziam passar por gen-
61 M. Père, 1982, pp. 214 e seguintes.
62 B. Cruickshank, 1853, vol. II, pp. 30 -94.
63 I. Wilks, 1975, pp. 699 -705.
808
África do século XIX à década de 1880
tlemen ingleses” e se comportavam como tais. Aceitos no meio europeu, se lhes
eram atribuídas responsabilidades na qualidade de magistrados, comandantes
de fortificações etc. Na outra extremidade, havia um vasto grupo de indivíduos
sumariamente instruídos, ironicamente chamados “os eruditos de Cape Coast”.
Empregados como secretários, mal pagos ou desempregados, eles se resignavam
a percorrer a selva como representantes dos negociantes ingleses ou africanos.
Eram tratados com desprezo, como caricaturas da civilização inglesa, como
parasitas vivendo sobre as costas dos chefes não letrados e dos seus povos. Entre
os dois encontravam -se os africanos que, sem terem levado muito adiante os
seus estudos, haviam recebido uma razoável formação a ponto de permitir -lhes
atuarem como comerciantes independentes ou gerentes em cidades litorâneas
64
.
Desta forma, estabeleciam -se as bases das ulteriores contradições sociais. Toda-
via, deve -se notar que a Confederação fanti não teria sido possível sem a coo-
peração desta classe média instruída.
Expansão religiosa
O século XIX foi, nesta região, um período de acelerada progressão do islã,
no Norte e no Centro, e de reimplantação do cristianismo no Sul. Como nunca,
estas duas religiões foram ornamentadas pelo prestígio da educação, pelo domí-
nio da escrita e associadas a um universo que ultrapassava sobremaneira o hori-
zonte local.
Ao Norte da região, foi a propagação das jihad de eminentes personalidades
(‘Uthmān dan Fodio, de Sokoto, Seku Ahmadu, do Macina, e al -Hadjdj ‘Umar
Tal) que produziu efeitos intensos e duráveis, por exemplo, em razão da jihad e
do emirado do Liptako.
Inclusive os reinos bambara e mossi foram atraídos ou influenciados por esse
sobressalto de proselitismo islâmico. Com efeito, embora o clichê que descreve
os bambaras e os mossi como muralhas contra a expansão do islã jamais se
tenha mostrado verdadeiro, esta apreciação pode ser pertinente para o século
XIX, durante o qual, o islã agiu nestes reinos, simultaneamente, no topo e sobre
todas as camadas do corpo social. Para atermo -nos ao reino de Ségou, no iní-
cio do século, sob Monzon Jara, a sua mãe Makoro recorreu aos marabutos de
Ségou Sikoro e Tégou para reconciliá -lo com o seu irmão Nyanakoro Da. O
seu sucessor, Monzon Jara, solicitou a um sábio marabuto dos seus amigos um
64 P. Foster, 1965, pp. 68 -69.
809
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
talismã de vitória. Torokoro Mari (1854 -1856) confiou a educação de um dos
seus filhos a al -Hadjdj Umar. É verdade que os sofa (guerreiros do monarca)
o abandonaram em razão disso, assassinando -o por afogamento e declarando
ao seu sucessor: “Nós eliminamos o teu irmão porque ele pretendia nos forçar
a tornamo -nos muçulmanos e porque ele desperdiçava os bens do Estado, em
presentes aos marabutos
65
.” Nos reinos mossi, os únicos muçulmanos até então
eram os yarse. A partir do século XIX, os mogho naaba aderiram abertamente à
islâmica, criando eles próprios centros de proselitismo.
Naaba Dulugu de Uagadugu construiu uma mesquita e transformou o imã
em um importante personagem da corte. Entretanto, talvez para evitar uma
mudança demasiado brutal, ele afastou o seu filho, o futuro Naaba Sawadogo, e
destituiu Pwanda, chefe de Kombissiri. Estes dois adeptos inclusive recolheram-
-se em Basan -Warga dela fazendo uma base religiosa. Quando Naaba Sawadogo
tomou o poder, ele restabeleceu a chefatura de Kombissiri, a qual se tornou,
por sua vez, um centro da religião, além de enviar o seu próprio filho à escola
corânica de Sarabatenga Yarse.
Sob Naaba Karfo, o rebelde Naaba Wobgho de Lalle encontraria o imã de
Uagadugu, para solicitar -lhe que intercedesse em seu favor junto ao rei. Ao final
das contas, Naaba Kutu recebera uma verdadeira educação corânica. Renunciando
conciliar a sua com as práticas rituais tradicionais, ele confiou estas últimas aos
seus ministros, procedendo da mesma forma no tocante à justiça fundada nos
costumes. Ele construiu uma mesquita na porta oriental (utilizada pelas mulheres
e pelos cativos) do palácio, satisfez as prescrições islâmicas e enviou um dos seus
filhos à escola corânica. Em contrapartida, Naaba Kutu ajudou Naaba Peogho
de Bulsa (Boulsa) a reprimir um movimento rebelde de inspiração muçulmana,
suscitado pelo fulbe Modibo Mamadou, oriundo do Futa -Djalon. Decepcionado
com a atitude do naaba perante os seus apelos favoráveis à conversão, este per-
sonagem, auto -intitulado wālī (santo),o hesitou em provocar uma insurreição
especialmente sustentada por forças yarse, maranse (Songhai) e pelos fulbes. Ele
foi obrigado a fugir e o seus tālib (discípulos) foram massacrados
66
. A bem da
verdade, a partir do momento em que os mossi engajaram -se em maior número
no comércio, eles não podiam deixar de ser levados à islamização. Esta última
ganhara ímpeto há muito tempo no Oeste do Volta e prosseguia sob a égide de
Kong, do Gwiriko, de Bobo -Dioulasso, e por um breve período, posteriormente,
de Samori Touré. Este processo expandia -se em regiões bwa, san, gurunsi ou lobi,
65 C. Monteil, 1977, p. 100.
66 Consultar G. Chéron, 1924, p. 653; J. Withers -Gill, 1924; N. Levtzion, 1968, p. 170.
810
África do século XIX à década de 1880
relativamente refratárias, graças a comerciantes juula ou marabutos marka (dafin),
como aqueles de Wahabu e Lanfiera.
No centro da região em questão, foi no século XIX que o islã tornou -se
a principal religião do Dagomba e do Mamprusi, assim como em Sansanne
Mango. Os imames eram personagens religiosos e políticos. No Ashanti, Osei
Kwane (1777 -1801) foi um simpatizante do islã. Seria essa a razão de sua desti-
tuição? Quanto a Osei Bonsu, ele declarava: “O Alcorão é forte, eu o amo, pois
que se trata do livro do Grande Deus.” Bowdich indica a existência de milhares
de muçulmanos em Kumashi, sob a batuta de Muhammad al -Ghamba, dito
Baba; tratava -se do filho do imã do Mamprusi; ele se valia de ser membro do
Conselho Real. Bem entendido, os comerciantes muçulmanos vindos do mundo
árabe afluíam para a capital e a cotação dos amuletos, sobretudo aquele do colete
de guerra, preparado pelos marabutos, era elevada
67
. Certamente, não se deve
superestimar o impacto exercido pelo islã sobre o sistema religioso autóctone
do Império Ashanti, praticamente identificado com a estrutura política. Porém,
esta influência existia e tinha como particular efeito desviar os príncipes dos
67 Conferir A. A. Boahen, 1974, vol. II, pp. 191 e seguintes.
 . Uma ocina de carpintaria da missão de Balê, em Christiansborg (Accra). Gravura realizada
segundo um clichê original, provavelmente em 1870.
811
Estados e povos do Arco do Níger e do Volta
missionários e da religião cristã, como igualmente era o caso no Buganda, apro-
ximadamente na mesma época.
Conquanto tenha sido introduzido em Tombouctou, pelos padres missio-
nários brancos, somente ao final do século XIX, o cristianismo ressurgiria após
muito tempo na parte meridional da Costa do Ouro.
A missão evangélica de Bâle e a posterior missão de Brême estabeleceram-
-se, desde 1828, em todo o Sudeste da Costa do Ouro (costa akwapim, Accra,
região akyem, Ada e nas regiões de Keta e Peki, de língua ewe), na qual eles
implantaram unidades rurais modelo e escolas técnicas
68
. Sob a égide de George
Maclean, os missionários metodistas concentravam os seus esforços na costa
oeste, onde Cape Coast servia -lhes de base. Um homem de grande envergadura,
Thomas Birch Freeman, esforçou -se para multiplicar as escolas metodistas nas
regiões interioranas, até o país ashanti, e na região litorânea, alcançando o país
iorubá
69
.
Ele estava inspirado pelos ideais da Sociedade para a Abolição do Tráfico e
pela Civilização da África, cujos objetivos eram os seguintes:
Estudar os principais dialetos e línguas, assim como a transcrição dos mais impor-
tantes dentre estes últimos; introduzir a imprensa escrita e as manufaturas locais de
papel; pesquisar o clima das diferentes localidades e introduzir a ciência médica;
melhorar as estradas e as vias para os transportes e criar um sistema eficaz de dre-
nagem com objetivos sanitários; compartilhar com os africanos os mais adiantados
conhecimentos em matéria agrícola e fornecer -lhes equipamentos e sementes de
qualidade, além de prover -lhes informações acerca das mais apropriadas culturas
para o mercado mundial
70
.
Os metodistas, a exemplo da missão de Bâle, criaram unidades agrícolas
modelo no distrito de Cape Coast. Eles abriram vagas para meninas cujo número
atingia frequentemente um terço dos efetivos em suas escolas
71
. Ainda melhor,
com o objetivo de eliminarem a barreira linguística que impedia a evangelização,
eles haviam, desde o século XVIII, traduzido os textos fundamentais do cristia-
nismo para o idioma ga. O reverendo J. G. Christaller redigiu, em 1875, uma
68 H. W. Debrunner, 1967, capítulos VI -VII.
69 Referir -se a T. B. Freeman, 1843.
70 H. W. Debrunner, 1967, p. 104.
71 Testemunho do reverendo J. Beecham. Atos do Comitê Especial sobre o Relatório do Doutor Madden,
1842, em G. E. Metcalfe, 1964, p. 176.
812
África do século XIX à década de 1880
gramática da língua twi; além disso, o seu dicionário da língua akan, publicado
em 1881, ainda atualmente permanece o melhor nesta matéria
72
.
Malgrado os esforços do cristianismo e do islã na região, a religião tradicional
permaneceu amplamente majoritária, inclusive sobrevivendo no bojo das novas
religiões.
Conclusão
Em seu conjunto, os países do Arco do Níger e da bacia do Volta prepa-
raram, em razão dos seus conflitos fratricidas e intestinos, ocorridos durante
todo o século XIX, as condições favoráveis para agressões externas que, even-
tualmente, chegaram ao ponto de serem suscitadas, com vistas à obtenção de
uma arbitragem. Mas este processo, não estaria ele potencialmente contido
nas contradições econômicas desencadeadas séculos pelo tráfico negreiro?
As migrações e a nova implantação dos povos, as tensões sociais e mesmo as
expansões político -religiosas não são compreensíveis na ausência de referência
a este fenômeno maior, dominante ao longo dos séculos precedentes, para o
qual o século XIX constituiu, a um tempo, o paroxismo e o arremate. Neste
sentido, aqui e alhures na África, o século XIX é perfeitamente o final de um
período muito longo.
72 J. G. Christaller, 1875, 1933.
C A P Í T U L O 2 6
813
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou)
e Benim no século XIX
A. I. Asiwaju
A região contida entre o Mono e o
Níger como unidade de análise
A região estudada neste capítulo é delimitada a Oeste pelo rio Mono (atual
fronteira entre o Benin e o Togo), a Leste e Norte pelo rio Níger e no Sul pelo
golfo do Benin, frente o Oceano Atlântico. Essencialmente, ela é constituída
pela planície ondulada, apresentando uma elevação geral da costa em direção
ao interior, onde o relevo culmina com a cadeia montanhosa de Atakora e o
Kukuru. Em seu conjunto, a vegetação pertence à família das herbáceas. As
florestas úmidas, muito densas, são encontradas principalmente no Sudeste
ou seja, nesta parte do antigo Império do Benin onde atualmente encontra-se
no Estado de Bendel, na Nigéria e, em menor escala, ao longo dos vales dos
principais cursos de água.
A região ocupa uma extensa parte da famosa zona de “anomalia climática
da África Ocidental, onde o cinturão de savanas do Sudão Ocidental e Central
prolonga-se através da zona das florestas até o mar. A totalidade do antigo
império fon de Daomé e a metade ocidental do país iorubá, assim como o
Borgu, situam-se na mesma faixa. Diversos rios irrigam a região, dentre os quais
Níger, Benin, Owena, Osun, Ogun, Yewa, Weme (Ouémé nos mapas franceses),
Opara, Zou e o Mono.
814
África do século XIX à década de 1880
Quatro grandes áreas culturais distintas, embora manifestadamente entre-
cruzadas, dividem a região: aja no Oeste, iorubá no centro, borgu (pronunciado
bohou) ao Norte e edo a Leste. Como era previsto, cada uma das áreas apresenta
várias subdivisões em função de traços culturais, como o dialeto, a ecologia ou
a ocupação específica.
As populações de língua aja
1
dividem-se em três grandes subgrupos: os fon,
dominantes no antigo império de Daomé; os gun, do vale do Weme e da área
situada entre Porto-Novo e Badagri, em ambas as partes da atual fronteira entre
a Nigéria e o Benin (antigo Daomé); e, finalmente, os ewe estabelecidos entre
os rios Cufo (Coufo) e o Mono, no Sudoeste do atual Benin, a grande maioria
dentre eles ocupando as regiões vizinhas do Sul do Togo e do Gana. A Norte e
Leste do território fon, encontravam-se os mahi, concentrados no planalto de
Abomé (Abomey) em Paouignan, Savalu Weze, Dassa-Zoumé, Jaluku e Kove
(Cové), que igualmente apresentavam traços culturais secundários aja e conser-
vavam a lembrança de um distante vínculo de parentesco com esta etnia.
A área cultural iorubá (nagô) é, consideravelmente, a mais importante da
região Mono-Níger
2
, porque engloba os Estados de Ogun, Lagos, Oyo e Ondo,
na atual Nigéria, bem como quase a metade do Estado de Kwara, além de
regiões contíguas, ao Leste do Benin, e, finalmente, aquelas do centro do Togo,
mais ao Oeste. Ela inclui numerosas subdivisões, desde as menores como os
ifé, formando um único império, até os ekiti, organizados em variadas monar-
quias autônomas. Na região da Nigéria, os principais subgrupos iorubás eram
representados pelos oyo (o mais numeroso, em relação ao qual o território e a
população dividiam-se entre os Estados de Oyo e Kwara); pelos ibarapa, esta-
belecidos em ambas as partes da fronteira entre os Estados de Oyo e de Ogun;
pelos ifé e os ijesa, estabelecidos no atual Estado de Oyo; pelos ijebu, ocupantes
de um território situado entre os Estados de Ogun e de Lagos; pelos egba e os
egbado no Estado de Ogun; pelos ondo, ikale, ekiti, owo e akoko no Estado de
Ondo; por fim, pelos awori e os subgrupos egbado que lhes eram aparentados,
no Estado de Lagos. Na atual fronteira entre a Nigéria e o Benin sucediam-se,
de Norte a Sul, os sabe (savé), os ketu, os ohori (holli), os ifonyin e os anagô.
A esta lista, bem longa, ainda é preciso acrescentar os ana, os fe (ifé) e os
mayinbiri (manigri), os quais povoavam as porções medianas do Benin e a região
de Atakpamé, no Togo.
1 A. I. Asiwaju, 1979.
2 D. Forde, 1951; J. Bertho, 1949; E. G. Parrinder, 1947 e 1955; P. Mercier, 1950.
815
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
 26.1 Escultura representando um guerreiro sobre os ombros de um babalaô [feiticeiro-curandeiro],
provavelmente proveniente do Nordeste do país iorubá, esculpida entre 1850 e 1875. [Fonte: W. B. Fagge e
J. Pemberton III, Yoruba sculpture of West Africa (org.: Bryce Holcombe), 1962, New York. Foto: © National
Museum, Lagos.]
816
África do século XIX à década de 1880
A exemplo do país iorubá, nos dias de hoje o Borgu é uma área cultural
fragmentada pelas fronteiras internacionais
3
. Busa e Illo (dois dos três gran-
des centros políticos tradicionais) situavam-se em uma faixa que corresponde,
essencialmente, ao distrito atual de Borgu, no Estado de Kwara, e às porções
vizinhas do Estado de Sokoto, na atual Nigéria, ao passo que Nikki, o terceiro e
mais extenso dos Estados tradicionais, no presente momento é dividido em dois
pela fronteira entre a Nigéria e o Benin: a cidade de Nikki e a metade ocidental
do antigo império encontram-se em território beninense e a parte restante do
lado nigeriano.
As subdivisões culturais correspondem aproximadamente ao perfil e aos
níveis de diferenciação sociopolíticos tradicionais. Como a justo título nota
Marjorie Stewart, o Borgu é descoberto, sem dúvida, ao final do século XV,
como um conglomerado de Estados politicamente independentes, cujos grandes
centros eram Busa, Nikki e Illo. Aparentemente, estes impérios nasceram muito
cedo, a partir da fusão de um grupo de recém-chegados, muito provavelmente
de língua mande, do Mali, e de uma população autóctone, resultando na for-
mação de um novo Estado e de uma cultura distinta. Eis o que tenderiam a
confirmar as tradições relativas à origem dos Estados do Borgu e o que aparenta
perfeitamente ser corroborado pelo fato de duas grandes línguas serem faladas
nesta região: o batonu (igualmente chamado baruba, bariba ou barba), língua
voltaica em uso pela maior parte das massas, e o boko (igualmente chamado
zugwenu), língua sul-oriental da família mande, empregada pela classe dirigente
dos wasangari.
Cada uma destas duas grandes línguas formou diversos dialetos distintos.
O boko, por exemplo, divide-se em quatro dialetos principais, dentre os quais
o bokobusa (bisagwe), falado em Busa e Wawa; o boko-nikki, em Nikki,
Segbana e Kandi, no atual Benin e em diversas chefaturas ligadas a Nikki
(Yeshikera, Kaiama, Sandiru, Ilesa Bariba, Aliyara e Okuta, em território
nigeriano); e o tienga ou kienga, em Illo, Dekala e ao Norte do distrito de
Aliyara. A unidade linguística do Borgu será garantida pelo bilinguismo que
permitiria superar o abismo existente entre o povo e as classes dirigentes tra-
dicionais. A unidade cultural, aparente no emprego lingstico, é consolidada
pelas tradições que atribuem uma origem comum aos diferentes impérios,
convergindo para o reconhecimento de Busa como beo ancestral de todos
os soberanos do Borgu.
3 O. Bagodo, 1979; M. Stewart 1984-1985.
817
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
 . O país iorubá-aja e o antigo Império Oyo (início do século XIX). [Fonte: J. F. Ade. Ajayi e M.
Crowder (org.), History of West Africa, Longman, 1974, p. 131.]
818
África do século XIX à década de 1880
A quarta grande área cultural da região em questão é aquela composta pelos
povos de expressão edo, no reino do Benin
4
, a saber, não somente os edo da
cidade de Benin e dos seus arredores, como também os povos que lhes são apa-
rentados, simultaneamente pela língua e pela história: os ishan (esan), ivbiosakan
e akoko edo ao Norte, e os itsekiri, urhobo e isoko a Sul e Sudeste.
Estas quatro áreas culturais não estavam voltadas para si mesmas. De fato, no
início do século XIX, a interpenetração cultural ou étnica atingira tal ponto que
não mais se discernia, senão uma única civilização, da qual, os iorubás, os aja, os
povos do Borgu e os edo podem ser considerados como subconjuntos. Abstração
feita da ideologia unitária, realçada pelas tradições que proclamam uma origem
comum, procurando estabelecer relações ao menos entre as elites dirigentes
tradicionais de quatro ramificações culturais, outros fatores, culturais espe-
cialmente linguísticos –, econômicos e políticos explicam estas inter-relações.
Estes laços, evidenciados por diversos estudos
5
, indicam imigrações sucessivas,
provocando afluxos e refluxos populacionais, persistentes até o culo XIX,
antes de serem formalmente desestimuladas pelo estabelecimento dos Estados
coloniais europeus, cujos territórios eram rigorosamente delimitados por rígidas
fronteiras. A história da região que se estende do Mono ao Níger deve, portanto,
ser considerada sobretudo como aquela da interpenetração não somente entre
os aja, iorubás, bariba e edo, entre si, mas, igualmente, de um ou vários dentre
estes povos com os seus vizinhos nupe, jukun, kanuri, gbari, hauassa e fulbe,
ao Norte; ewe, ga, adangbe, krobo e fanti, no Oeste; e, finalmente, ijo, itsekiri,
isoko, urhobo, igbo ocidentais, igala, igabira e basa, ao Leste.
A queda do antigo Oyo
No início do século XIX, o mais forte Estado, dominante em grande parte
dos territórios e populações da região contida entre os rios Mono e o Níger, era
o império do Oyo (Old Oyo)
6
. Embora o núcleo deste famoso Estado iorubá
não se estendesse além das localidades situadas entre as bacias do Osun e do
4 R. E. Bradbury, 1957; A. F. C. Ryder, 1969.
5 As tradições dos kisra, relativas à sua origem, ligam os iorubá ao Borgu. Ife é reconhecido como o berço
ancestral de todos os monarcas iorubá e beninenses, assim como os aja, por sua vez, situam a sua longínqua
origem a Ife. Consultar os atos do Colóquio Internacional sobre a história dos povos ajaewe, realizado sob os
auspícios da UNESCO, na Universidade Nacional de Benin, em Cotonou, no mês de dezembro de 1977 (F. de
Medeiros, 1984), assim como aqueles da Conferência sobre a Civilização Iorubá, organizada na Universidade
de Ifé, em julho de 1976 (I. A. AKinjogbin e G. O. Ekemode [org.], 1976).
6 R. C. C. Law, 1977a.
819
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
Ogun, território sobre o qual ele arrecadava tributos e onde, em diversos níveis,
exercia uma influência ou um controle militar, político, econômico e cultural
perceptível, esta porção territorial correspondia aproximadamente à metade
ocidental da região que nos interessa.
Rumo ao extremo oeste, o Estado aja de Daomé fora forçado ao tributo em
1748, após uma série de ataques lançados por Oyo, aproximadamente a partir
de 1740; situação mantida até o início dos anos 1820. Porto-Novo conhecera o
mesmo destino quando Oyo dele se apoderou, tornando-o o seu principal porto
para o tráfico de escravos
7
. A rota unindo este porto a Oyo atravessava os terri-
tórios dos subgrupos iorubás, egba e egbado, nos quais as autoridades imperiais
de Oyo foram levadas, para controlá-los, a enviarem funcionários (ajele), espe-
cialmente a estabelecimentos egbado, tão importantes estrategicamente quanto
Ilaro e, posteriormente, Ijanna. No plano cultural e econômico, os territórios
egba e egbado foram igualmente submetidos a uma intensa penetração por
parte de Oyo: colônias de Oyo seriam fundadas naquela região e comerciantes
7 P. Morton-Williams, 1964.
 . A porta da cidade iorubá de Ipara, no país ijebu, aproximadamente em 1855. [Fonte: Church
Mission of Gleaver, 1855. Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho Administrativo da Biblioteca
da Universidade de Cambridge.]
820
África do século XIX à década de 1880
do império ali exerceriam as suas atividades
8
. Dois outros importantes povos
iorubás, fundadores a Oeste dos impérios de Ketu e Sabe, haviam preservado
a sua tradicional autonomia política, mas, igualmente, mantinham relações de
boa vizinhança com Oyo, beneficiando-se da influência protetora exercida pelo
império sobre toda a região. O Borgu oriental, a exemplo do Sudoeste de Nupe,
também reconhecia a autoridade do alafin (rei e imperador) de Oyo. Em todas
estas regiões, situadas na área de “anomalia climática” já mencionada, a cavalaria
oyo podia agir e os representantes do governo dispunham, evidentemente, de
facilidades bem razoáveis de acesso e comunicação.
A outra parte da rego, ou seja, a sua metade oriental, encontrava-se na
área de florestas tropicais. Além do restante da área cultural ioru terri-
rios dos ifé e ijesa, no centro, dos ekiti, ondo, akoko e owo, ao Leste, dos
ijebu, ikale, okiti-pupa e awori, ao Sul , ela englobava o império do Benin,
o outro grande Estado africano da região, rival em poder hegemônico e
esplendor frente ao império do Oyo; porém e inclusive neste caso, muitos
indicadores atestam a existência de laços vitais com o império do Oyo.
Alguns indicam que este último interveio, mais ou menos constantemente,
na história dos ifé, ijessá, ekiti, ondo e dos ijebu. Am das tradições reco-
lhidas por Samuel Johnson
9
, há a opinião de S. A. Akintoye, segundo a qual,
“em diferentes épocas e graus diversos, os ekiti, ijesa e igbomina igualmente
foram submetidos à influência de Oyo”
10
. Conquanto nada permita afirmar,
como o fez Peter Morton-Williams, que os ekiti, ijesa e akoko tenham
servido como “reservas de escravos para o império do Oyo
11
, algumas indi-
cões certamente provam que este último exerceu pressões militares sobre
os ijesa os quais vitoriosamente resistiram. A fundação de Ede pelo Oyo
e de Osogbo pelos ijesa foram explicadas pela necessidade demonstrada
pelos dois Estados iorubá de disporem de um posto militar avançado, para
mutuamente vigiarem-se. As relações posteriormente estabelecidas entre as
duas comunidades vizinhas testemunham o grau de interpenetrão ao qual
chegariam estas duas culturas iorus.
As relações entre os imrios do Oyo e do Benin o ainda mais ampla-
mente atestadas
12
. As dinastias reinantes nos dois Estados afirmavam ambas
8 H. Clapperton, 1829; R. Lander, 1830.
9 S. Johnson, 1921, citado em J. F. A. Ajayi e M. Crowder, 1974.
10 S. A. Akintoye, 1971, pp. 29-30.
11 Ibid.; P. Morton-Williams, 1964.
12 J. F. A. Ajayi e M. Crowder (org.), 1974, vol. II.
821
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
o somente serem origirias do Ifé, mas, igualmente, descenderem de um
mesmo fundador: Oranyan. Portanto, ambas mantinham laços rituais com
Ifé. Estes sentimentos fraternais recíprocos provavelmente eram tanto mais
fortes quanto fossem reduzidos os riscos de conflito entre os dois Estados:
a poncia do Oyo era fundada em sua cavalaria e, de certo modo, limitada
às áreas relativamente descobertas, a Oeste e Norte da região em questão; ao
passo que, as ticas militares do Benin não se adequavam senão às famosas
“florestas ombfilas” da sua metade oriental. Inclusive, foi justamente em
razão destas diferenças ecológicas que as atividades comerciais dos Estados
também se mostraram complementares.
A principal conclusão a derivar destas observações é que o império de Oyo
esteve, a esta altura, no coração da história de toda a região, do Mono ao Níger,
e que a sua queda, no terceiro decênio do século XIX, não poderia deixar de
provocar um turbilhão no plano social e político, não exclusivamente em país
iorubá, mas, além, no Daomé, no Borgu e na região do império do Benin. Como
observa tão oportunamente J. F. A. Ajavi, a queda do império de Oyo [...] teria
importantes consequências para os povos de língua aja, no Oeste, tanto quanto
para o império do Benin, ao Leste
13
. Efetivamente, ela marcou na região o
início de um período quase ininterrupto de guerras e insegurança generalizada.
Os seus inevitáveis efeitos negativos sobre o comércio europeu, ao longo do
litoral atlântico no golfo do Benin, criaram nesta região condições propícias às
intervenções rivais da Grã-Bretanha, da França e, posteriormente, da Alemanha,
nos assuntos políticos da região.
É impossível e sem dúvida supérfluo
14
aqui relatar detalhadamente a queda
do império de Oyo. Bastaria observar que, à imagem de outros Estados tão
solidamente estabelecidos e antigos, este não foi um desmoronamento brutal. Os
sinais do declínio já eram perceptíveis no século XVIII e somente intensificar-
se-iam durante os dois primeiros decênios do século XIX.
Às causas internas, das quais a manifestação mais notável foi a luta pelo
poder que opôs rios e sucessivos alafin a chefes de linhagem, a partir da
segunda metade do século XVIII, acrescentaram-se progressivamente os efeitos
de fatores externos: o declínio do tráfico de escravos com o ultramar e, com
maior ênfase, a extensão rumo ao Sul da jihad de ‘Uthman dan Fodio.
13 Ibid.; p. 129.
14 Ver J. F. A. Ajayi, 1974, pp. 129-166; R. C. C. Law, 1977; J. F. A. Ajayi e S. A. Akintoye, na obra publicada
sob a direção de O. Ikime, 1980, pp. 280 a 302; I. A. Akinjogbin, 1965.
822
África do século XIX à década de 1880
Desde o século XVIII, igual e paradoxalmente, época durante a qual ele
conheceu a sua maior expansão e encontrou-se no cume da sua potência, o
império de Oyo começara a apresentar sinais de vulnerabilidade e desinte-
gração nos planos militar e territorial. Após a vitória da rebelião fomentada
pelos egba, sob a direção de Lisabi, o seu legenrio hei, aproximadamente
em 1774, as forças militares de Oyo seriam vencidas pelo Borgu em 1783, e
pelos nupe, em seguida, no ano de 1791. A debacle do imrio produziu-se
por volta de 1835, ao rmino de um período de total desorganizão política
no curso do qual se sucedeu uma série de efêmeras alafin, em sua maioria
impotentes, dentre as quais Aole e Maku, encerrando-se por um prolongado
ínterim de cerca de duas décadas.
A revolta de Afonja, are-ona-kakanfo (comandante em chefe) da armada
imperial, que tentou, com a ajuda dos iorubás muçulmanos de Oyo, procla-
mar-se soberano independente de Ilorin, precipitou a queda do reino. Como
Afonja não tardou a perder o controle da Djmā’a a força armada que os seus
partidários muçulmanos iorubá haviam composto para sustentá-lo −, o fulbe
muçulmano al-Sālih Alimi, pregador e místico itinerante com o qual Afonja se
 . Vista de Ibadan, em 1854, em primeiro plano as instalações da Church Missionary Society.
[Fonte: A. Hinderer, Seventeenn years in Yorubaland, 1872, Londres. Ilustração: British Library, Londres.]
823
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
aliara para conduzir com êxito a sua revolta contra a autoridade do alafin, tomou
a frente da Djamā’a e finalmente eliminou-o. Justamente, foi Abdul-Salām,
filho e sucessor de Alimi, quem realizou a independência de Ilorin vis-à-vis de
Oyo. Após ter obtido a benção do califado de Sokoto e se ter transformado no
primeiro emir, ele fez de Ilorin, “província rebelde de Oyo, um posto avançado
da jihad dos fulani”
15
.
A queda de Oyo foi sentida muito mais profundamente na metade ocidental
da região, onde o império, mais forte e diretamente, exercera a sua influência.
Em linhas gerais, seria uma situação de guerra e, por conseguinte, insegurança
generalizada que reinaria praticamente até o final do século, provocando final-
mente a desorganização do comércio litorâneo e a intervenção dos europeus
nos assuntos políticos das regiões interioranas. Uma vez mais, nós abordamos
um episódio da história africana que foi tão satisfatoriamente explorado, sobre
o qual dispomos de tamanha profusão de publicações, que somente um simples
resumo deve bastar.
Após se ter estendido até Ilorin, em favor da crise que tomava o reino de
Oyo, a jihad de ‘Uthmān dan Fodio expandiu-se em outras direções, alcançando
o Borgu e Sabe, Estado iorubá do Noroeste muito estreitamente ligado a ele,
atingindo igualmente as regiões vizinhas de expressão aja
16
. Segundo algumas
indicações, elementos considerados partidários da jihad fulbe pelas populações
locais faziam incursões em comunidades egbado do Norte
17
. Fato característico,
a ameaça fulbe levou os Estados do Borgu a cerrarem fileiras frente ao inimigo
externo comum. O Borgu e Oyo fecharam uma aliança no bojo de um esforço
desesperado, embora vão, de enfrentar os fulbes: trata-se da guerra de Eleduwe,
em 1836. A ameaça de um prosseguimento da expansão do califado de Sokoto
até o coração do país iorubá, ao Sul de Ilorin, não seria freada senão após a
derrota decisiva que lhe foi imposta em Osogbo, no ano 1840.
Todavia, as mais devastadoras guerras não foram estas jihad, mas as lutas
intestinas entre iorubás.
Elas podem ser decompostas em três grandes fases: a guerra de Owu, de
aproximadamente 1820 a 1825; aquela de Ijaye, de 1860 a 1865; e aquela de Eki-
tiparapo ou Kiriji, com duração de dezesseis anos, de 1877 a 1893
18
. A primeira
foi essencialmente uma luta pelo controle do mercado de Apomu entre, por um
15 J. F. A. Ajayi, 1974, p. 144.
16 D. Ross, 1967.
17 A. I. Asiwaju, 1976.
18 J. F. A. Ajayi e R. S. Smith, 1964; S. A. Akintoye, 1971; B. Awe, 1964.
824
África do século XIX à década de 1880
lado, os ifé, aliados dos ijebu e, por outra parte, os owu, os quais se teriam bene-
ficiado do apoio dos seus vizinhos egba. A coalizão dos ifé e dos ijebu tinha o
apoio de guerreiros oyo que faziam parte da importante população de refugiados
instalados ao Sul, em consequência de distúrbios ocorridos em Oyo.
A guerra de Owu desdobrou-se na destruição deste reino e no deslocamento
rumo ao Oeste da totalidade das comunidades egba desde sempre estabelecidas
na floresta. A fundação de Ibadan, complexo militar mantido pelos vencedores
em Owu, por volta de 1829, bem como a fundação de Abeokuta, campo de
refugiados egba, aproximadamente em 1830, foram descritas como consequências
desta guerra. Igualmente nesta época, ou quase, situam-se a fundação de Ijaye,
sob o reinado de Kurumi, assim como a reconstituição do império de Oyo, com
uma nova capital em Ago-Oja (na localização da atual Oyo, a cerca de 50 km
de Ibadan), pelo alafin Atiba. Estas aglomerações rapidamente tornar-se-iam
novas potências em país iorubá, rivalizando para obterem a supremacia política e
ocuparem o posto, por assim dizer, deixado vago com desaparecimento da antiga
Oyo. A guerra de Ijaye, opondo principalmente Ijaye e o seu aliado Abeokuta, em
Idaban, deve ser interpretada como um episódio maior desta luta pela hegemonia.
Embora a destruição de Ijaye, em 1862, tenha dela sido o ponto culminante, as
hostilidades não cessariam realmente senão após os derradeiros combates de
Ikorodu, em 1865
19
. Como o nome indica, Ekitiparapo era uma coalizão que
reunia, contra Ibadan, os ekiti, os ijesa e os igbomina que Ibadan conquistara e
agregara ao seu império nascente, após o seu triunfo sobre Ijaye
20
.
O surgimento do Daomé (Danxome) como reino independente, aproxima-
damente em 1820, e as suas frequentes incursões no país iorubá, ao longo de
todo o século XIX, aa conquista francesa em 1892, também são consequências
diretas do desaparecimento do antigo império de Oyo
21
. Estendendo a sua auto-
ridade do Weme, ao Leste, até o Cufo, no Oeste e a 7 graus de latitude norte
do Oceano Atlântico, o reino do Daomé representava, por volta do ano 1800,
acerca da terça parte do território do atual Benin.
Todos os monarcas daomeanos desde Kpengla (1774-1789) haviam buscado
livrar-se da tutela de Oyo; porém, o reino não se libertaria do jugo imperial
senão nos primeiros anos do reino de Ghezo (1818-1858). A despeito dos
ocasionais distúrbios e de violentos episódios na corte de Abomé como o
assassinato do rei Agonglo (filho e sucessor de Kpengla), em 1797, e a deposição
19 J. F. A. Ajayi e R. S. Smith, 1964, p.120.
20 B. Awe, 1964.
21 D. Ross, 1967; K. Folayan, 1967; S. O. Biobaku, 1957.
825
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
de Adandozan (reinante de 1797 a 1818) em favor de Ghezo (seu irmão caçula)
−, o Daomé distinguiu-se do império de Oyo, nos séculos XVIII e XIX, pela
notável duração dos reinados dos seus soberanos.
Esta estabilidade política era reforçada pelo bom funcionamento da
administração, muito centralizada, objeto de fama para o reino. O movi-
mento abolicionista conferiu um golpe na economia do país, fundada quase
exclusivamente no tráfico de escravos. Ghezo, no entanto, continuou tanto
quanto antes a satisfazer a demanda dos negreiros portugueses, aproveitando
inclusive a possibilidade de exportar óleo de palma, produto finalmente des-
tinado a substituir os escravos como principal item de exportação
22
. Estes
sinais de relativa prosperidade potica e ecomica no Daomé tornaram-se
percepveis exatamente na mesma ocaso em que os sintomas de um avan-
çado declínio de Oyo ganhavam progressiva notoriedade. Justamente, foi a
conjugão destes fatores que estimulou Ghezo a proclamar unilateralmente
a independência do Daomé, no início dos 1820.
Segundo a versão geralmente aceita, Oyo teria respondido enviando um corpo
expedicionário dirigido por um certo Balogun Ajnaku. No entanto, esta força
armada teria sido levada à debandada pelo Daomé. Na realidade, tudo indica
ser evidente que, nesta época, Oyo não estivesse, em hipótese alguma, em con-
dições de enviar um exército digno deste nome, para acalmar uma rebelião em
lugar tão remoto quanto o Daomé. Realmente, as pesquisas efetuadas sobre este
tema indicam que, ao invés de exército imperial oficial, as tropas lançadas contra
Dao, sob a direção de Ajanaku, no início dos anos 1820, eram com maior
probabilidade uma expedição conjunta entre Sabe e Ketu
23
. Elas eram compostas
por guerreiros iorubá e mahi, e embora Ajanaku fosse frequentemente descrito
como um balogun (chefe militar) de Oyo, ele era, caso considerarmos verdadeiras
as mais confiáveis tradições locais dos fon, originário, na realidade, de Sabe. Esta
operação militar inscrevia-se no quadro familiar de alianças que os iorubás e as
comunidades aparentadas, as quais precedentemente se haviam beneficiado da
proteção de Oyo contra o Daomé, formavam para se defender e lançarem ataques
preventivos contra o inimigo comum, uma vez destruído o império
24
. De toda
22 Para um estudo da política econômica do reino independente do Daomé, referir-se a E. Soumoni,
1983.
23 D. Ross, 1967, pp. 37-40.
24 No século XIX, alianças deste tipo haviam sido notadamente rmadas entre os ketu e os ohori, bem
como entre os okeodan e os ipokia. Consultar A. I. Asiwaju, 1976.
826
África do século XIX à década de 1880
forma, as tropas de Ajanaku seriam desmobilizadas e ele próprio capturado e
executado por Ghezo.
Foi então que o Daomé se lançou em uma série de invasões sistemáticas
sobre o país iorubá, ditadas por considerações de segurança tanto quanto pela
insaciável procura por escravos − para a exportação, as plantações comerciais ou
a agricultura de subsistência, assim como para os sacrifícios humanos, comuns
nos famosos rituais anuais −, estas invasões não se limitariam a toda a região
do território iorubá, situada a Oeste do Ogun, porém estender-se-iam até as
comunidades e Estados aja e mahi, situados a Leste de Weme, aqui incluso
Porto-Novo
25
.
Enquanto na década precedente, os mahi estabelecidos no Sudeste, proxi-
mamente ao Norte de Abomé (Abomey) e de Porto-Novo, seriam os invadidos,
a partir de 1830, as campanhas daomeanas concentrar-se-iam, desta feita, em
Ijanna e Refurefu, invadidas respectivamente em 1831 e 1836. Ijanna, como
vimos, fora a residência do representante imperial de Oyo e o principal centro
de arrecadação e encaminhamento de impostos, levantados junto aos egbado e
territórios vizinhos. No decorrer dos anos 1840 e novamente nos anos 1880,
Okeodan e Sabe seriam a seu turno devastadas. Igualmente, o reino de Ketu,
invadido a partir do final dos anos 1870, seria de fato destruído em 1886, quatro
anos após o incêndio de Imeko, outra grande cidade do império.
Nos anos 1850 e 1860, os ataques ativeram-se ao novo Estado egba-iorubá
de Abeokuta, em cujo Agbome julgava perigoso o desenvolvimento, naquilo que
dizia respeito à independência do Daomé. O perigo tornou-se real quando os
egba engajaram-se em campanhas militares e estenderam a sua influência polí-
tica até inclusive as regiões do Oeste do país iorubá, onde o Daomé igualmente
executou incursões. O confronto travado na cidade awori de Ado-Odo, em 1844,
e a derrota final do Daomé, estariam à origem de futuros rancores. Conquanto
as duas ofensivas lançadas diretamente pelo Daomé contra Abeokuta, em 1851
e 1864, tenham se saldado por retumbantes derrotas, a expedição punitiva con-
duzida contra os egbado, aliados dos egba, desdobrou-se, em 1862, na destruição
de Isaga e na devastação da região circundante. As incursões daomeanas nos
territórios iorubá do alto-Ogun manter-se-iam durante os anos 1880 e o início
dos anos 1890, não cessando realmente senão após a derrota imposta ao reino
fon pelos franceses, em 1892.
25 A. I. Asiwaju, 1979; T. Moulero, 1966.
827
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
Não mais que as outras guerras da mesma época, aquelas conduzidas pelo
Daomé não eram necessariamente conflitos entre etnias diferentes. Testemu-
nham desta apreciação não somente a invasão das comunidades aja do vale do
Weme, mas, igualmente, as mortíferas campanhas contra Porto-Novo, ao final
dos anos 1880 e no início dos anos 1890, após a ruptura de um acordo que,
concluído pouco após os ataques dos anos 1820, garantira, durante décadas,
pacíficas relações entre os dois Estados aja e os seus satélites.
As guerras que, no culo XIX, devastaram a metade ocidental da rego Mono-
Níger, provocariam deslocamentos populacionais e reviravoltas demográficas de
considerável alcance. Em primeiro lugar, os iorubás e as populões aja a eles apa-
rentadas foram massivamente reduzidos à escravatura e deportados para o Novo-
Mundo e tamm rumo a Serra-Leoa, proximamente situada. No próprio seio
das comunidades da África Ocidental concernidas, massivas migrações populacio-
nais provocaram mudanças sociopoticas de caráter revoluciorio
26
. Em território
iorubá, estas guerras desembocariam na destruição de numerosos estabelecimentos,
anteriores ao culo XIX, na fundação de toda uma rie de novas cidades e no
considerável desenvolvimento daquelas p-existentes. Na região de Old Oyo, onde
o despovoamento foi especialmente impressionante, cidades desde muito estabe-
lecidas, como a própria antiga capital Oyo e outras, como Igboho, Ikoyi, Igbon, Iresa
e Oje, foram destruídas. Mais além, a mesma sorte abateu-se sobre outras cidades
iorubás, como Sabe, Ketu, Owu e um grande número de estabelecimentos egba e
comunidades remo aparentadas.
Deste modo, é possível explicar estas cidades em ruína”, observadas em país
iorubá pelos viajantes do século XIX. O êxodo geral para o Sul, das populações
em fuga das turbulentas regiões ao Norte, provocou a criação de numerosos
estabelecimentos, especialmente Ibadan, Abeokuta, Sagamu, Okeodan e Aiyede.
O litoral e as suas regiões mais próximas, no imediato interior do país, em seu
conjunto menos povoadas por volta do ano 1800, tornaram-se, ao final do século,
o formigueiro da região.
Na região linguística aja, as migrações realizaram-se, em sua maior parte, do
Sul rumo ao Leste. No século XIX, os refugiados aja, em fuga do vale do Weme e
da região de Porto-Novo, engordariam as fileiras das comunidades aparentadas,
estabelecidas no século XVIII em territórios vizinhos dos Estados de Lagos e
Ogun, na atual Nigéria, após a conquista dos Estados aja litorâneos de Allada
e Ouidah pelo Daomé, respectivamente em 1724 e 1727
27
. Esta expansão para
26 P. Verger, 1955, pp. 3-11; C. Fyfe, 1962, pp. 292-293.
27 A. I. Asiwaju, 1979.
828
África do século XIX à década de 1880
o Leste da área cultural aja, devida às guerras do século XIX, contribuiria for-
temente para a mistura étnica da região.
Por via de regra, as guerras e as suas repercussões sociais derivaram para
o surgimento de uma nova sociedade que, por sua vez, exigiu a elaboração de
novos métodos e estilos de governo. Assim sendo, os guerreiros tornaram-se a
classe dominante, banindo a antiga classe monárquica, especialmente na região
iorubá, onde de modo generalizado os oba perderam o seu poder em proveito
dos balogun ou chefes militares. As tentativas de instauração de uma ditadura
militar em Ijaiye, sob Kurumi, de uma federação em Abeokuta, sob Sodeke, e de
uma monarquia constitucional em Epe, sob Kosoko, ilustram perfeitamente os
esforços empreendidos no século XIX, em país iorubá, para forjar novas consti-
tuições, mais bem adaptadas à administração política da nova sociedade nascida
das guerras
28
. A posterior adoção, no século XX, do título e das funções da oba,
segundo o modelo iorubá, por algumas comunidades aja da região da Nigéria, é
um bom exemplo da continuidade deste processo de adaptação cultural
29
.
O declínio do reino de Benin
A excepcional potência da sua monarquia e a solidez das suas instituições cen-
tralizadas evitaram que o Benin conhecesse, a exemplo do Oyo, um verdadeiro des-
moronamento anterior à era da conquista europeia − estado de coisas que, todavia,
o significa ter ele escapado das influências destrutivas do culo XIX
30
.
Por volta do ano 1800, o reino do Benin estendia-se sobre um território
equivalente, por pouco que não, à metade oriental da região compreendida entre
o Mono e o Níger, a Leste de uma linha norte-sul ligando Otun, em país ekiti,
ao litoral. Este território englobava os Estados iorubá orientais de Ekiti, Ondo
e Owo, as comunidades dos igbo ocidentais, a Oeste do delta do Níger, bem
como os territórios dos urhobo, itsekiri e ijo, ao Sul. Enquanto os edo da cidade
de Benin e arredores formavam o coração do reino, os outros povos deste grupo
linguístico como os esan e os edo setentrionais, no Nordeste, ou os urhobo e
os isoko, no Sudeste poderiam ser considerados como constituintes da pro-
gressão do reino, nos limites do território submetido à sua autoridade. Mais
além, a influência do Benin, senão a sua soberania, era reconhecida em toda a
28 G. O. Oguntomisin, 1979; J. A. Atanda, 1984.
29 A. I. Asiwaju, 1979, pp. 22-23.
30 R. E. Bradbury, em D. Forde (org.), 1967; O. Ikime, 1980.
829
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
costa atlântica até Lagos, no Oeste, e mesmo além destes limites. À imagem do
caso dos itsekiri, era geralmente muito aceito que as dinastias do Benin esti-
vessem ligadas às elites dirigentes da maioria das chefaturas dos awori-iorubá
e dos anago, as quais lhes eram aparentadas e cujos títulos e cerimoniais da
corte (como aqueles de Ekiti, de Owo e Ondo) carregavam ainda nitidamente,
inclusive, a marca da influência beninense
31
.
O Benin dos culos XVIII e XIX foi geralmente descrito como um reino em
inexorável declínio. Caso seja verdadeiro que este declínio, longe de ter sido contí-
nuo, como apontaram pesquisas recentes, tenha sido recortado por fases de renas-
cimento e expano territorial, entrementes, não aparenta ser nada duvidoso que os
três ou quatro denios, precedentes à perda da sua independência, tenham sido para
o reino do Benin, atacado em três frentes, uma época de recuo radical.
A jihad fulbe, que vencera a resistência do império de Oyo, igualmente
ganhou o Norte e o Nordeste do reino do Benin. Enquanto os fulbes estabele-
31 A. I. Asiwaju, 1976, pp. 18-19.
 . Altar no recinto do rei, Benin.
830
África do século XIX à década de 1880
cidos em território nupe forçavam alguns grupos edo do Norte, como os esan
e os ivbiosakon, a pagarem um tributo ao emir de Bida e tornarem-se perme-
áveis à islamização, a Djamā‘a de Ilorin realizava incursões nos Estados ekiti
do Norte. À ameaça fulbe, acrescentava-se a expansão para o Leste de Ibadan,
novamente empenhada em conquistar os domínios do Benin situados no Leste
do país iorubá. A impotência do Benin em socorrer estes Estados vassalos, assim
assediados, provava nitidamente que o prestigioso Estado da floresta da África
Ocidental atravessava um período sombrio.
Derradeira amea, a penetrão europeia acontecia, simultaneamente,
pelo Lagos, o mais importante centro litorâneo, situado na área de influência
do Benin, e pelo Níger, no Sudeste. O reino do Benin dela sentiu os primei-
ros efeitos quando os privilégios dos quais ele gozava no comércio litorâneo,
especialmente o controle do tráfico no Benin, no Oeste do delta do ger,
comaram a ser ameados pelos comerciantes europeus, em sua maioria
britânicos e pelos seus intermediários africanos, particularmente itsekiri e
ijo. O eclipse do seu porto fluvial de Ughoton (Gwato) representou, para o
Benin, a dolorosa prova do fim da época equivalente ao seu quase monopólio
sobre o comércio litorâneo.
Junto aos itsekiri, este comércio alimentou o desejo de autonomia política.
Além da guerra que ele finalmente provocou entre o olu, de Warri, e o oba, do
Benin, esta nova riqueza alimentou conflitos políticos no próprio seio do reino
 . Vista da cidade de Benin na época da invasão britânica, 1897.
831
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
de Warri. Assim sendo, as rivalidades e hostilidades entre clãs, as querelas suces-
sórias desencadeadoras de migrações, assim como a criação de centros de poder
independentes e rivais, multiplicaram-se a tal ponto que, até o final do século, foi
impossível encontrar um sucessor, aceitável por todos, ao trono do olu de Warri,
após a morte, em 1848, de Akengbuwa, o seu ocupante desde 1809. À imagem
do reino de Itskiri, Agbor, Estado vassalo do Benin cuja monarquia estava
organizada com base no modelo beninense, tornar-se-ia progressivamente um
Estado autônomo, em grande parte favorável ao novo comércio litorâneo. Foi
especialmente com a intenção de restaurar parte da potência do seu reino que
Ovonramwen, o último oba do Benin independente, lançou uma expedição con-
tra Agbor, com vistas a restabelecer a sua autoridade nesta região, todavia muito
tardiamente: em 1897, as tropas beninenses estavam apenas recém-posicionadas
em Obadan, quando chegou a notícia indicando que o corpo expedicionário
britânico, enviado contra o próprio Benin, estava às portas da capital
32
.
Enquanto o reino sofria estes ataques externos, a calma estava distante de
reinar na capital. As querelas sucesrias desestabilizavam consideravelmente
a monarquia. Embora por ocasião da morte do oba Osemwede, em 1851,
Adolo o tenha sucedido, esta substituição não aconteceria senão as uma
violenta crise sucessória. A multiplicação dos sacricios humanos em Benin,
na capital, a partir do final dos anos 1880, de ser interpretada como um
sinal do desespero dos dirigentes, os quais teriam buscado, através destas prá-
ticas rituais, conjurar o eminente esfacelamento político. A legitimidade do
oba Ovonramwen aparenta ter sido abertamente contestada por Orokhoro,
o seu próprio iro, e alguns chefes de alto escalão, como Eriko, Oburaye
e Osia. Determinado a consolidar a sua posição pessoal e a regenerar o seu
reino, o oba foi obrigado a levar estes dignirios à execução. Para melhor
medir o sentimento antieuropeu, reinante no Benin durante os anos 1890, às
speras da conquista brinica, é necessário avaliá-lo a partir da perspectiva
desta desesperadora situação interna.
A progressão dos interesses europeus
Para analisar a expansão dos interesses europeus na região da África Oci-
dental que nos ocupa, é adequado distinguir duas fases: uma época de livre-
iniciativa, até 1861, data da anexação de Lagos à Coroa britânica, sucedida por
32 O. Ikime, 1980.
832
África do século XIX à década de 1880
um período de rivalidades entre a França, a Grã-Bretanha e, após os anos 1880,
a Alemanha, situação que não terminaria senão em 1889, com a partilha da
região entre a Grã-Bretanha e a França. Aquilo que todavia merece ser subli-
nhado diz respeito, invariavelmente, à configuração das atividades dos europeus
na região, realizadas em função das exigências das metrópoles europeias e das
possibilidades locais.
Na primeira fase, os comerciantes, exploradores ou viajantes europeus, assim
como os missionários cristãos, agiam na África sem que a sua nacionalidade
fosse considerada. O lebre explorador alemão Heinrich Barth podia assim
participar de uma “expedição oficial britânica”, enquanto um explorador britâ-
nico da estatura de H. M. Stanley, tornado célebre no Congo, estava a serviço
do rei Leopoldo da Bélgica.
As grandes missões cristãs, como a Church Missionary Society (CMS),
anglicana, e a Société des Missions Africaines (SMA), católica e sediada em Lyon,
recrutavam pastores europeus de diversas nacionalidades. O padre Boghero,
que à frente da SMA esforçou-se, no século XIX, para reintroduzir a religião
católica na África Ocidental, era italiano. Os padres da SMA, promotores de
uma obra pioneira na maior parte da região hoje representada pela Nigéria,
eram franceses, e foram missionários britânicos, como o metodista Thomas
Birch Freeman ou o anglicano Samuel Ajayi Crowther, que implantaram as
primeiras missões cristãs no território futuramente representado pelo Daomé
francês (o atual Benin)
33
. Os comerciantes britânicos, franceses, alemães e por-
tugueses estabeleciam-se lado a lado e, como testemunha o caso de Badagri, os
grandes portos da costa do Golfo do Benin abrigavam bairros residenciais para
europeus de diversas nacionalidades.
Os negociantes moviam-se de um porto a outro, em busca de condições
mais vantajosas e em função da riqueza variável destes portos e Estados, cuja
economia passou a progressivamente depender deste comércio.
A esta mobilidade na composição e nas atividades das diferentes categorias
de europeus, correspondia uma não menos importante mobilidade na situa-
ção local que, como observamos, caracterizava-se muito mais por uma rede de
relações e uma interpenetração históricas e culturais que por rígidas diferencia-
ções. Foi em grande parte o movimento abolicionista que esteve à origem dos
deslocamentos e das expedições dos comerciantes, viajantes e missionários, em
virtude da sua compreensão, segundo a qual, o tráfico de escravos não poderia
33 A. O. Makozi e G. J. A. Ojo, 1982; E. G. Parrinder, 1967.
833
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
ser eficazmente jugulado senão em sua fonte de abastecimento, as regiões inte-
rioranas. A exploração da África pelos europeus, ilustrada na região que nos
interessa por Mungo Park, Hugh Clapperton e os irmãos Lander, visava a reco-
lher tanto dados científicos quanto informações de ordem político-estratégica,
principalmente empregados pelo movimento abolicionista; igualmente por esta
razão, missionários geralmente seguiam ou acompanhavam os exploradores.
Bem entendido, esta nova corrente também deixava espaço para os interesses dos
comerciantes europeus, pretendentes ao acesso direto aos mercados do interior,
preferencialmente a continuarem a tratar com os intermediários litorâneos.
Em todas estas atividades, os europeus deviam considerar a situação local.
Exploradores, missionários e comerciantes eram obrigados a utilizar os meios de
transporte e os sistemas de comunicação existentes, além de levarem em conta
a estrutura das interações geográficas e etnográficas. Mungo Park encontrou a
morte no rio Níger, a bordo de uma piroga modo secular e tradicional de trans-
porte −, não distante de Busa, no Borgu. Para as célebres expedições em busca
da nascente do Níger, Hugh Clapperton e os irmãos Lander utilizaram uma
antiga pista que ligava diferentes subgrupos iorubás aos seus vizinhos de língua
aja, assim como o país iorubá no Borgu, ao país hauassa, no Borno, prosseguindo
mais além. Os missionários cristãos não foram capazes de atravessar as vastas
extensões iorubás de Norte a Sul e de Leste a Oeste, nem tampouco puderam
mover-se entre o país iorubá e o Daomé, mesmo com a pregressa existência das
vias necessárias para ligar estes territórios.
Em razão deste entrelaçamento de territórios e populações, o que acontecia
em um setor jamais deixava de repercutir e ter consequências em outros. Assim
sendo, os abolicionistas europeus deram-se conta que, para impor um termo
ao tráfico de escravos e às guerras interioranas, era-lhes necessário contar não
somente com os dirigentes do litoral, mas, em suplemento, com os diferentes
soberanos do interior. Na primeira metade do século, as missões organizadas
pelos abolicionistas britânicos ou franceses, a partir de diferentes pontos da
costa da Baixa-Guiné, foram obrigadas com frequência a dirigirem-se a Abomé,
junto aos reis do Daomé. Para desempenharem o papel de mediadores nas
guerras entre o Daomé e os iorubás, eles foram levados a empreenderem visitas
a Abeokuta e a Abomé. Do mesmo modo que os britânicos, os quais no século
XIX esforçaram-se para pacificar os iorubás, foram conduzidos a praticamente
percorrerem toda a correlata área cultural.
Infelizmente, a postura europeia foi um fator de divisão, haja vista que ela
tendeu a traduzir-se por uma diferenciação ao nível das estruturas políticas.
Este fenômeno era perceptível desde o final dos anos 1840 e início dos anos
834
África do século XIX à década de 1880
1950. A nomeação de John Beecroft, em 1849, para o posto de cônsul britânico
nos golfos do Benin e de Bonny (antigo Biafra) marcou o início de uma nova
era. A Grã-Bretanha passou a proteger exclusivamente os seus próprios inte-
resses frente àqueles dos outros países europeus, defendendo-os em detrimento
daqueles dos africanos locais.assinalamos a penetração britânica na zona do
Benin, a partir do delta do Níger, assim como o golpe que ela provocara em
seu comércio no interior do país, a ponto de causar o abandono de Ughoton, o
tradicional porto do reino. Mais a Oeste, os anseios políticos da Grã-Bretanha
começaram a se precisar quando, em 1851, a esquadra antiescravista britânica
bombardeou Lagos.
Todavia, o verdadeiro ponto de inflexão aconteceria com a oficial anexação de
Lagos pela Coroa britânica, em 1861, e com o ataque lançado sobre Porto-Novo
pela frota inglesa, pouco após, durante o mesmo ano
34
. Estas duas operações
britânicas naturalmente acenderam os ânimos dos franceses, detentores de con-
sideráveis interesses comerciais em Ouidah e Porto-Novo. Em 1863, atendendo
a pedidos das próprias autoridades de Porto-Novo, eles declararam este Estado
aja litorâneo um protetorado francês, visando bloquear qualquer nova expansão
britânica rumo ao Oeste, pela costa. Os britânicos, como os franceses, não tar-
daram a se render à evidência: era o comércio com o interior iorubá e aja, por
eles compartilhado, que conferia o verdadeiro interesse de Lagos e Porto-Novo.
Esta intervenção da Grã-Bretanha e da França, respectivamente, nos assuntos
comerciais e políticos destes dois portos, desencadeou entre estas duas potên-
cias uma espetacular fase de concorrência, cujo desafio era o controle do país
iorubá, particularmente das suas partes ocidentais, assim como das comunidades
vizinhas, de expressão aja. O Oeste do país iorubá tornou-se então o principal
teatro desta rivalidade anglo-francesa, em razão da reação favorável das popu-
lações autóctones que percebiam nesta intervenção dos europeus a solução para
o problema referente às contínuas invasões do seu território pelos seus mais
potentes vizinhos.
Eis a razão pela qual, a partir dos anos 1860, quando os governos francês e
britânico eram ambos hostis, em seu conjunto, a uma política de colonização e
expansão na África, os dados particulares da situação local conduziram, desde
logo, as duas nações mais ativas da Europa a uma luta pela posse de territórios
nesta parte do continente. Pela convenção franco-inglesa de agosto de 1863,
as duas potências chegaram a um acordo sobre a partilha deste setor, de parte
34 C. W. Newbury, 1961; A. I. Asiwaju, 1976.
835
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
a outra do rio Yewa, a cerca de vinte quilômetros a Oeste do futuro traçado
fronteiriço de 1889. As declarações através das quais a França e a Grã-Bretanha
instituíram protetorados nesta região, entre 1862 e 1863, jamais seriam oficial-
mente ratificadas e, durante os anos 1870, seriam consideradas nulas. A luta
seria todavia retomada no século seguinte, reanimada, por um lado, em razão
de novas invasões daomeanas, as quais incitariam os dirigentes de Porto-Novo
e dos Estados da zona ocidental do país iorubá a buscarem a proteção dos
franceses ou britânicos. A conquista francesa do Daomé, em 1892, a partilha
do Borgu entre a Inglaterra e França, em 1895, a extensão da autoridade britâ-
nica até o restante do país iorubá e a conquista inglesa do Benin, em 1897, não
podiam representar senão a conclusão lógica desta rivalidade que opusera as duas
potências nos anos 1860, como consequência do isolamento pré-existente das
regiões interioranas do país vis-à-vis dos portos, através dos quais elas buscavam
garantir o domínio da costa.
Mudança socioeconômica e adaptação das instituições
A despeito do seu espetacular caráter, as guerras do século XIX e a conse-
quente intervenção dos europeus nos assuntos políticos da região Mono-Níger
não devem levar a esquecer as transformações internas, muito mais profundas
embora menos marcantes, que conheceram as sociedades desta região, neste
mesmo período. Já evocamos os efeitos dos massivos deslocamentos populacio-
nais, tanto no interior deste setor quanto além dele. Estas migrações forçadas
acentuaram a interpenetração e o amálgama dos diferentes grupos e subgrupos
étnicos, além de terem provocado o desenvolvimento de novos estabelecimentos
no seio da região, simultâneo a um afluxo de escravos e, por conseguinte, a um
aumento da população de origem africana no Novo-Mundo, especialmente no
Estado da Bahia, no Brasil. Esta chegada massiva de escravos ao continente
americano, originários da zona Mono-Níger, desempenharia um importante
papel na modernizão desta região, com o retorno dos “Saros” e Amaros”
(brasileiros) e a chegada dos missionários cristãos.
Houve, como observamos, uma forte corrente migratória de povos de expres-
são aja do Oeste para o Leste, em particular, na segunda metade do século
XIX, quando o Daomé novamente invadiu os Estados e as comunidades gun e
iorubá situadas ao Leste do vale do Weme. Estes movimentos provocaram não
somente o desenvolvimento, para o Leste, de estabelecimentos aja já existentes,
836
África do século XIX à década de 1880
mas, igualmente, a criação de numerosas novas localidades no Oeste e Sudoeste
do atual território dos Estados de Lagos e Ogum, na Nigéria
35
.
Um processo de colonização idêntico podia ser observado mais ao Leste. Em
país iorubá, por exemplo, produzia-se uma interpenetração e uma mistura notá-
veis entre diferentes subgrupos étnicos. Nesta zona, o fenômeno mais marcante
foi a diáspora oyo, esboçada nos dois primeiros decênios do século, quando a
capital do antigo império tornou-se motivo de uma incontrolável instabilidade.
Desde 1830, Ibadan, Ijaye e a atual cidade de Oyo, ao Norte de Ibadan, eram
os principais focos de imigração oyo. Todavia, foi com a expansão imperialista
de Ibadan, nas décadas de 1840 a 1860, que a diáspora oyo ganharia toda a sua
amplitude. Muitas comunidades oyo, oriundas do Nordeste, estabeleceram-se
assim junto aos igbomina, ijesa, ekiti, akoko, ondo, ikale e aos ilaje, do Leste e
do Sudeste do país iorubá
36
. Em sentido inverso, alguns grupos orientais iorubá,
como os ekiti e os ijesa, trazidos como cativos ou vindos por vontade própria,
fixaram-se em Ibadan e em muitos outros estabelecimentos situados a Oeste
e Sul, nos territórios dos osun, ijebu e dos egba. No Borgu, a jihad fulbe do
século XIX desencadeou um movimento populacional orientado para o Sul,
em direção à área cultural iorubá, comparável àquele produzido no século XVI,
sob a pressão dos mande vindos do Norte, após a queda do Império Songhai
37
.
As migrações do século XIX viriam fortalecer a rede pré-existente de relações
de interpenetração entre o Borgu e algumas comunidades iorubás do Noroeste,
como os oyo, os sabe e os ketu.
Este amálgama de grupos e subgrupos étnicos provocou consideráveis inter-
câmbios de ideias e materiais culturais. Como observamos, a expansão dos aja na
área cultural iorubá deve-se às migrações do século XIX e dos séculos preceden-
tes, justamente a elas devemos remeter a evolução que, no século XX, conduziu
os aja, estabelecidos no território do atual distrito de Badagri, no Estado de
Lagos, na Nigéria, a adotarem a instituição monárquica iorubá, denominada oba.
Igualmente, é preciso reconhecer nas influências culturais oyo, identificadas na
parte oriental do país iorubá − culto de Xangô, difusão do ofício tecelão mascu-
lino e do tambor com alça −, nem tanto uma prova da hegemonia exercida pelo
Oyo antes de 1800, mas, sobretudo, uma consequência da diáspora desta etnia
no século XIX, após a queda do império
38
.
35 A. I. Asiwaju, 1979.
36 S. A. Akintoye, 1971, pp. 213 e seguintes.
37 T. Moulero, 1964; A. I. Asiwaju, 1973.
38 J. F. A. Ajayi, 1974.
837
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
A influência análoga exercida pelo Benin, notadamente sobre as cerimô-
nias da corte, as insígnias da realeza e os títulos das chefaturas dos owo, ekiti,
akoko, ondo e dos ijesa tal como junto aos awori, estabelecidos de parte a
outra da atual fronteira entre a Nigéria e o Benin −, mostra a amplitude dos
fenômenos de interpenetração dos grupos e, consequentemente, da adaptação
das instituições resultantes. A dimensão demográfica desta influência cultural
do Benin exercida sobre os iorubás encontra-se facilmente em algumas tradições
identificadas em estabelecimentos beninenses nas zonas iorubás em questão. A
influência sociopolítica do Benin sobre as outras etnias de língua edo, assim
como sobre os itsekiri, urhobo e isoko do Leste e do Norte, foi muito mais
metodicamente estudada
39
.
Acima de tudo, o século XIX seria marcado pela fundação de estabeleci-
mentos de tipo moderno, os quais tiraram grandes vantagens da sua localização
litorânea e das suas proximidades testemunha, por exemplo, a elevação do
prestígio de Warri no Benin; de Lagos em relação ao restante do país iorubá;
e dos portos de Porto-Novo, Ouidah e, sobretudo, de modo particularmente
espetacular, de Cotonou, sobre a costa aja. Este período também anunciaria as
novas sociedades da era colonial e pós-colonial, através de uma mais estreita
associação, senão integração, com a economia e a cultura europeias.
Estas mudanças resultavam da conjugação de múltiplos fatores: as guer-
ras do século XIX que, por exemplo em país iorubá, haviam transformado as
zonas litorâneas em focos de imigração relativamente seguros e atrativos para as
populações do interior, onde se concentrava o essencial dos combates; o comér-
cio marítimo que, com o abandono do tráfico de escravos em prol das trocas
legítimas”, tomaram caráter permanente, assim conferindo às regiões costeiras
uma vantagem econômica incontestável; finalmente, a contínua expansão dos
interesses europeus, ampliadora do papel tradicional de muitas cidades do litoral,
como Lagos, Porto-Novo e, posteriormente, Cotonou, na justa e proporcional
medida em que elas assumiam novas e crescentes funções, tanto como portos
quanto na qualidade de capitais dos nascentes Estados coloniais e das nações
africanas independentes que lhes sucederiam.
De todo modo, foi o fator econômico que aparentemente desempenhou,
nestas mudanças, o papel determinante, especialmente no referente à presença
europeia. Foi o comércio que conduzira os europeus à África; ele foi o motivo
da sua permanência.
39 S. A. Akintoye, 1969; A. I. Asiwaju, 1976, pp. 18 e 19.
838
África do século XIX à década de 1880
O século XIX seria um período particularmente crítico em razão da aboli-
ção do tráfico de escravos ter abalado a estrutura de trocas, das quais ele fora
o principal componente três séculos. Designada nos documentos europeus
anteriores à abolição sob a nomenclatura “costa dos escravos”, a parte da África
Ocidental que nos ocupa foi um dos mais ativos focos do tráfico negreiro; se
a passagem para o comércio legítimo efetuou-se sem muitos choques, justa-
mente e em última análise, esta situação deveu-se à capacidade de adaptação
das sociedades autóctones, às quais cabe o mérito.
 . Estátua de um homem em pé, braço direito levantado e esquerdo dobrado, considerada uma
representação simbólica do rei Ghezo (1818-1858).
 . O rei Glélé (1858-1889), simbolicamente sob a forma de um leão. [Ilustrações: Photothèque,
Musée de l’Homme, Paris.]
839
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
Não existe, indubitavelmente, melhor exemplo a este respeito que o caso
do Daomé, tradicionalmente considerado como o último país da África Oci-
dental a capturar e vender escravos. Se, em 1851, a esquadra antiescravista
brinica, por sua vez, alcaara jugular o tráfico transatlântico ao longo da
costa, na região de Porto-Novo, o porto daomeano de Ouidah, a seu turno,
o abandonaria realmente este tráfico seo as abolição da escravatura
no Brasil, em 1888
40
. Esta complacência do Daomé transformou a costa aja
e, especialmente, a poão do litoral compreendida entre Weme e Mono, em
um território preferencial para os negreiros portugueses (em sua maioria
brasileiros) que haviam sido expulsos de portos como Lagos e Badagri, nos
quais as medidas antiescravistas dos britânicos haviam muito cedo entrado
em vigor. O Daomé continuou a praticar o tfico de escravos, desde que
houvesse clientela.
Na realidade, as autoridades daomeanas não podiam compreender as razões
pelas quais muitas delegações, britânicas e francesas sucessivas, lhes houvessem
solicitado impor um termo a este tráfico, enquanto os negreiros portugueses
instalados no Brasil prosseguiam o seu tráfico nos portos daomeanos.
O Daomé seria todavia levado a compreender que as coisas cambiavam.
Ele visivelmente iniciou a sua adaptação em face das novas realidades, aproxi-
madamente em meados do século, ocasião em que, sob o impulso da feitoria
francesa Victor Régis, o seu soberano, o rei Ghezo (aproximadamente nos anos
1818-1858), foi persuadido a desenvolver o comércio do óleo de palma, inicial-
mente de modo complementar e, posteriormente, como principal componente
da sua atividade econômica voltada para a exportação
41
. Para passar do tráfico
de escravos ao comércio “legítimo”, ele foi obrigado a conservar maior volume
de prisioneiros de guerra, com vistas a assegurar o bom andamento e a expan-
são da indústria do óleo de palma. Assim sendo, existiam escravos empregados
no carregamento de mercadorias entre o interior e o litoral, em lugar de serem
vendidos como itens de exportação. No momento da conquista francesa, nos
anos 1892-1894, as bases da economia daomeana, fundada na monocultura
dos eléis, já haviam sido lançadas. Este tipo de evolução desdobra-se em outras
partes da região Mono-Níger, como em país iorubá, onde cativos que até muito
recentemente seriam vendidos e deportados para o estrangeiro, estavam desde
logo e em massa empregados na exploração das plantações ou no transporte das
mercadorias entre as regiões interioranas e o litoral.
40 E. Soumoni, 1983; P. Verger, 1976.
41 E. Soumoni, 1983.
840
África do século XIX à década de 1880
Em suplemento, o movimento abolicionista teve outras consequências de
grande alcance para a região Mono-Níger, dentre as quais as mais importantes
são incontestavelmente aquelas tocantes ao processo de modernização. O fator,
a este respeito, mais determinante foi, manifestamente, o retorno dos escravos
libertos em sua maioria os “Saros” de Serra Leoa e os Amaros”, ou brasileiros”
da Bahia, porém igualmente de Cuba e outras regiões das Antilhas. Além de
terem justificado originalmente a chegada dos missionários cristãos europeus,
dos quais conhecemos a ação modernizadora no golfo da Guiné
42
, estes africa-
nos libertos desempenharam, nos primórdios, o papel crucial correspondente a
representarem a primeira geração de classe média no continente. Em razão da
sua submissão, segundo a fórmula de um autor, à “dura escola da escravatura”
43
,
os libertos em retorno de Serra Leoa constituíam uma “elite formada” e
profundamente ligada aos modelos culturais da Inglaterra vitoriana de então,
ao passo que aqueles vindos do Brasil eram artesãos, comerciantes, mecânicos
e “cultivadores experientes”. Alguns atuaram como pioneiros, seja a serviço das
Igrejas cristãs, à imagem do bispo Samuel Ajayi Crowther e do reverendo James
Johnson (por vezes chamado santo” Johnson), ilustres na região da Nigéria, seja
no estudo das línguas africanas, no âmbito da atividade gráfica, na edição ou no
desenvolvimento de outras atividades do mesmo gênero, a exemplo de outros
menos proeminentes.
Primeiramente estabelecidos ao longo do litoral, em cidades como Ouidah,
Agoué, Porto-Novo, Badagri e Lagos, eles todavia tornaram sensíveis à sua
influência e à sua ação, em território muito mais distante, nos confins do países
iorubá e aja, e além deles. Na realidade, a verdadeira inserção da diáspora dos
“Saros” em país iorubá ocorreu sobretudo em Abeokuta, comparativamente a
Lagos; e a influência da arquitetura brasileira um dos principais marcos da pre-
sença dos brasileiros em Lagos, no século XIX se havia estendido, fato público
e notório, até Ijebu Ode, Ibadan e Ilesa. Os “Saros” e Amaros” estabeleceram-se
voluntariamente ao longo do golfo do Benin, sem sofrerem exclusão ou segrega-
ção: alguns “Saros” viviam e trabalhavam em Porto-Novo ou mais a Oeste
44
, ao
passo que, na colônia de Lagos − particularmente sob a administração de Alfred
Moloney (em múltiplas ocasiões governador entre 1878 e 1890) −, a política
britânica favorecia expressamente a implantação dos brasileiros”. No entanto, a
cultura e a história representaram fatores de diferenciação entre os dois grupos,
42 J. F. A. Ajaya, 1969; E. A. Ayandele, 1966.
43 A. B. Aderibigbe, 1959, p. 174.
44 P. Verger, 1976, pp. 536-537.
841
Daomé, país iorubá, Borgu (Borgou) e Benim no século XIX
suscitando o surgimento de áreas de efetiva concentração e de influência global
bem distintas. Assim sendo, os “Saros” anglófonos, majoritariamente protestan-
tes, marcaram sobremaneira a sua presença na região situada a Leste do vale
do Weme, a qual se havia tornado, ao final do século, uma zona de influência
colonial anglo-saxã, antes de passar para o controle britânico.
Rumo ao Oeste, os africanos do Brasil, em sua maioria católicos e lusófonos,
primeiramente encontraram um ambiente cultural mais acolhedor em Porto-
Novo e Ouidah, onde os havia precedido uma comunidade brasileira”, fundada
por negreiros portugueses do Brasil, constrangidos a circunscreverem-se em sua
totalidade nos limites da costa aja, em consequência das atividades desenvolvidas
mais a Leste, pela esquadra antiescravagista britânica. A chegada dos franceses,
substitutos dos portugueses nesta parte do golfo de Benin, a Oeste do Weme,
suficientemente preservara a cultura latina, a ponto de conferir maior poder atra-
tivo a esta região, aos olhos dos negros do Brasil, comparativamente ao exercido
pelas regiões situadas mais a Leste, nas quais esta cultura estaria condenada a
desaparecer. Outrossim, seria neste território do futuro Daomé francês em
outros termos, na parte ocidental da região que nos interessa − que os africanos
do Brasil exerceriam a maior influência. Além de terem colaborado com os fran-
ceses com o objetivo de ajudá-los a conquistar o Daomé e transformá-lo em uma
nova colônia, os brasileiros” foram posteriormente os mais prestes a plenamente
tirar proveito da educação colonial francesa, contribuindo assim, decisivamente,
a fazer do Daomé o “Quartier latin da África Ocidental francesa
45
.
Não se deve todavia acreditar que esta dicotomia, ao nível dos focos de influ-
ência entre “Saros” e “brasileiros”, em nada contradiga a ideia segundo a qual a
região compreendida entre o Mono e o Níger desenvolveu-se, em seu conjunto,
como um todo homogêneo. A força dos sentimentos de solidariedade, fundados
em laços de parentesco específicos e afinidades histórico-culturais gerais, que
uniam os descendentes dos da Silva, d’Almeida, dos Regos, de Souza, Pedro,
Martin, Pereira e outros, de Lagos, como de Ouidah, Agoué ou Porto-Novo,
deve prevenir contra tal interpretação. Com efeito, a perpetuação até os dias
atuais dos laços de união entre as famílias dos brasileiros da África Ocidental
às suas bases originais no Brasil, especialmente no Estado da Bahia, ilustra de
modo impactante a unidade fundamental da África, não somente em respeito
à sua história, mas, em suplemento, em referência aos contatos de importância
vital que o continente manteve com a diáspora negra.
45 D. d’Almeida, 1973, capítulos 1 e 2.
C A P Í T U L O 2 7
843
O delta do Níger e Camarões
O delta do Níger e Camarões
Ebiegberi J. Alagoa
com as contribuições de Lovett Z. Elango
e de Nicolas Metegue N’Nah
para Camarões e Congo, respectivamente
O presente estudo dedica -se à região e ao litoral do golfo do Benin e da baía
de Bonny, antigo Biafra, estendida do estuário do Benin, a Oeste, à bacia de
Ogoué, a Leste. No Oeste, a maior parte da região costeira, aqui compreendidos
as regiões alagáveis e os mangues do delta do Níger, era habitada pelos ijo; entre-
tanto, vastas zonas do delta assim sofreram a influência do pequeno reino de
Itsekiri, situado em sua porção mais ocidental. Foi nas terras interioranas, ime-
diatamente a Oeste desta região, onde se estabeleceu o potente reino do Benin,
no qual viviam diversos grupos a ele ligados por laços políticos ou culturais. O
imenso interior igbo estendia -se de cada lado da porção norte do delta do Níger,
nas duas margens do curso inferior do rio. O país igbo era muito mais vasto na
parte ao Leste do rio, prolongando -se até o Norte da bacia do Cross.
Ao Leste do delta do Níger, corre o Cross, cujo estuário, no século XIX
era dominado pelo Estado efik de Calabar. O resto do vale do Cross era e
permanece essencialmente habitado por diversos grupos ibibio e, em sua parte
setentrional, por um mosaico de povos aparentados aos bantos. A quarta sub-
-região compreendia a costa de Camarões e o seu interior, a Leste do Cross. A
quinta região englobava a bacia do Ogoué e as regiões circunvizinhas da Guiné
Equatorial e do Gabão.
844
África do século XIX à década de 1880
 . O delta do Níger e Camarões no século XIX (segundo E. J. Alagoa).
845
O delta do Níger e Camarões
Todas as populações da região estavam ligadas entre si desde tempos pré-
-históricos; pertenciam todas, na realidade, à família linguística nígero -congolesa
1
.
Os igbo e as outras populações da periferia do delta do Níger eram ligados à
subfamília dos kwa, ao passo que as populações do vale do Cross e a maioria das
populações litorâneas de Camarões e da Guiné Equatorial eram grupos bantos.
Os ijo do delta constituíam uma subfamília distinta.
Antigos parentescos, atestados por semelhaas linguísticas, tradições liga-
das à origem dos povos e migrões, foram reforçados, no século XIX, por
contatos comerciais
2
. Anteriormente ao século XIX, as rotas comerciais atra-
vessavam o delta do Níger de Leste a Oeste e penetravam rumo ao interior
onde cruzavam outras rotas orientadas para o Norte. O Níger, o Cross e os
outros grandes cursos dágua da região, eram artérias comerciais que serviam
como elo entre as populações instaladas às suas margens, as quais recebiam as
mercadorias que lhes eram encaminhadas através das rotas interioranas, tais
como aquelas ligando o vale do Cross ao interior da região camaronesa e a
costa, ao Sul.
O comércio europeu realizado ao longo da costa e, posterior e paulatina-
mente, rio -acima pelos cursos dágua, utilizava os antigos centros comerciais
do litoral para receber as mercadorias do interior. A presença europeia na
costa representou, por conseguinte, um novo fator de unidade na história
da região, em razão da semelhança entre os problemas por ela provocados e
pelas mudanças por ela incitadas. Assim sendo, cada uma das populões da
região, em face das inflncias estrangeiras e do desafio da intrusão europeia,
foi conduzida a adaptar as suas estruturas sociais, poticas e culturais. A
inflncia europeia fez -se sentir nas seguintes esferas: no tráfico de escravos
e nos efeitos da sua abolão, no século XIX; na passagem do tráfico de escra-
vos para o corcio dos produtos locais, por vezes denominado “comércio
legítimo”; na chegada dos missionários cristãos à rego; e, finalmente, no
início do imperialismo europeu e da conquista colonial. Desde logo, convém
analisar estes diferentes aspectos da questão relativamente a cada sub -região,
com o objetivo de extrair uma ideia geral da história do conjunto da região
no século XIX.
1 J. H. Greenberg, 1966.
2 E. J. Alagoa, 1970; R. Harris, 1972; E. M. Chilver, 1961.
846
África do século XIX à década de 1880
O delta do Níger
O Oeste do delta
O reino itsekiri de Warri (Ode Itsekiri) foi, do século XV ao início do século
XIX, o mais importante centro comercial e político da parte ocidental do delta
do Níger. Os ijo, estabelecidos de parte a outra dos itsekiri, eram mais numero-
sos; porém,o criaram entidades políticas centralizadas suficientemente fortes
a ponto de lhes estabelecerem uma real concorrência. No interior mais próximo,
os urhobo e os isoko estavam, igualmente e em certa medida, organizados em
comunidades descentralizadas e forneciam escravos, assim como ulteriormente,
óleo de palma e de palmiste aos intermediários itsekiri. Contudo, até o século
XIX, os viajantes europeus consideravam o reino itsekiri como um simples
principado do reino do Benin. Habitualmente, aqueles que se deslocavam para
a parte ocidental do delta do Níger atravessavam portanto o Benin até o porto
de Gwato (Ughoton), onde negociavam com os agentes da oba do Benin.
Aproximadamente a partir do final do século XVII, a influência direta do
reino do Benin sobre a parte ocidental do delta do Níger começou a declinar e
os comerciantes europeus emprestaram os portos do delta, Escravos e Forcados,
 . Uma localidade itsekiri no rio Benin, nos anos 1890. [Fonte: H. Ling Roth, Great Benin, its
custom, art and horrors, 1903 (ilustração original publicada em Globus, vol. 1, p. XXII), Kings and Sons, Halifax,
reproduzida com a autorização do Conselho Administrativo da Universidade de Cambridge.]
847
O delta do Níger e Camarões
 . Nana Olomu de Itsekiri. [Fonte: O. Ikime, Merchant Prince of the Niger delta: the rise and fall
of Nana Olomu, last governor of the Benin river, 1968, Heinemann, Londres.]
848
África do século XIX à década de 1880
situados nos estuários do Benin. Por volta do início do século XIX, muitos chefes
itsekiri deixaram Warri (Ode Itsekiri) para estabelecerem feitorias no estuário
do Benin e, muito rapidamente, o porto beninense de Gwto (Ughoton) deixou
de ser um centro para o comércio exterior. Deste modo, no curso do século XIX,
os itsekiri tornaram -se os verdadeiros mestres do comércio do delta ocidental
e foram eles que abasteceram o reino de Benin em mercadorias europeias
3
. O
Benin, tentando manter o seu domínio sobre o reino itsekiri, exigia de olu de
Warri o pagamento de um tributo, realizado com artigos oriundos do tráfico, sob
pena de fechamento das rotas comerciais no interior do país. Olu Akengbuwa,
contudo, soube resistir ao oba de Benin, inclusive a ponto de conceder asilo a
um chefe dissidente beninense. Mas, aquando da morte de Akengbuwa, em
1848, os seus sujeitos acreditaram ter ele sido vítima de uma maldição do oba,
à qual igualmente atribuiu -se o fato dos itsekiri terem sido privados de chefe,
entre 1848 e 1936.
Olu Akengbuwa instalara agentes, os governadores do rio”, no estuário do
Benin, com o objetivo de recolher os impostos junto aos comerciantes europeus
e fixar o preço dos produtos. No início do século XIX, os “governadores do rio”
eram de fato os mais elevados chefes na hierarquia, como o iyatsere (capitão de
guerra) e o uwangue (porta -voz do chefe e guardião das insígnias reais). Porém,
durante os anos 1840, Akengbuwa confiou estes postos aos seus filhos. Conse-
quentemente, após 1848, o procedimento de nomeação para este cargo tornou-
-se impreciso e os cônsules e comerciantes britânicos intervieram em numerosos
conflitos. Deste modo, eles empossaram Diare, em 1851, e depuseram Tsanomi,
o seu sucessor, em 1879, em razão da sua tentativa de forçar os comerciantes
britânicos a pagarem um preço justo pelo óleo de palma. Nana Olomu, o mais
célebre e último dos “governadores do rio” Benin (1884 -1894), foi obrigado a
travar uma guerra sangrenta com fuzileiros navais ingleses, antes de ser captu-
rado e exilado em Calabar, no ano 1894, vítima, entre outros, da conquista da
Nigéria pelo Império Britânico.
Os ijo do Oeste do delta controlavam a maioria das vias navegáveis. Dada a
sua impossibilidade de diretamente entrarem em contato com os comerciantes
europeus, eles haviam recorrido à pirataria, perseguindo os navios dos europeus
e dos itsekiri. Entrementes, algumas comunidades ijo continuavam a manter,
em escala local, relações comerciais com os itsekiri e com os outros grupos. Os
itsekiri forneciam cerâmica a comunidades ijo, como os Gbaramatu e os Bassan,
3 P. C. Llyod, 1963; O. Ikime, 1968; A. F. C. Ryder, 1961.
849
O delta do Níger e Camarões
além de venderem sal aos comerciantes vindos do Leste do delta que, em seguida,
subiam o Níger. Os ijo de Egbema e Olodiama, os quais viviam na região florestal
deste curso superior do Benin, igualmente fabricavam pirogas e recolhiam, nas
regiões de lagunas, madeira para pintura por eles vendida no Oeste, em país
Ijebu e inclusive em Lagos (Eko). Em contrapartida, os ijebu forneciam -lhes
tecidos de fabricação local. Outros ijo também trocavam peixe seco e sal, produtos
igualmente preparados pelos itsekiri, juntamente com os urhobo, isoko e igbo,
habitantes da periferia do delta e do curso inferior do Níger.
No século XIX, o Oeste do delta não desempenhou um papel tão impor-
tante, comparativamente ao Leste, no tocante à exportação de escravos, óleo de
palma e palmiste. Assim sendo, nos anos 1840, somente duas empresas inglesas
comercializavam nos portos de Bobi e Jakpa; três outras viriam agregar -se no
curso da década seguinte. John Beecroft, primeiro cônsul da Grã -Bretanha para
o golfo do Benin e a baía de Bonny, em 1849, instalou -se em Fernando Poo,
proximamente ao litoral camaronês e à parte oriental do delta oriental do Níger.
Somente em 1891, um vice -cônsul seria enviado a Sapele, no delta ocidental,
para acompanhar a colonização desta região do interior do país nigeriano. A esta
época, a corrida para os territórios africanos começara e Nana Olomu deveu
combater para tentar interrompê -la. Os missionários seguiram o movimento
rumo ao delta ocidental do Níger.
O Leste do delta
Os grupos ijo do delta criaram instituições estatais em torno de algumas
cidades ou aglomerações como Nembe, Bonny, Elem Kalabari e Okrika
4
. Estes
Estados ou, para retomar a terminologia de K. O. Dike
5
, estas cidades -Estado
haviam baseado as suas instituições originais sobre um alicerce comum, a saber,
as comunidades ijo com estruturas políticas descentralizadas, a Oeste e na parte
central do delta, ação empreendida com o objetivo de responder às condições
ecológicas dos mangues a Leste do delta, às necessidades comerciais dos distan-
tes centros do interior do país igbo (troca de peixe e sal contra inhame, escravos
e outros produtos) e às exigências do comércio do sal, dos objetos cerâmicos, de
subprodutos da mandioca e pirogas, com a parte ocidental do delta.
Nestes Estados, o comércio longínquo e o tráfico atlântico de escravos esta-
vam nas mãos dos dirigentes políticos, a saber, os reis ou amanyanabo, e os chefes
4 R. Horton, 1969; E. J. Alagoa, 1917a.
5 K. O. Dike, 1956.
850
África do século XIX à década de 1880
de casa (chefes das wari, unidades políticas de caráter familiar que constituíam
as cidadelas). Os critérios oficiais de promoção neste sistema administrativo
facilitavam o recrutamento de novos membros, escravos ou refugiados.
É importante reconhecer esta situação dos Estados ao Leste do delta antes
do século XIX caso desejarmos melhor compreender as repercussões às quais eles
foram submetidos, em razão da influência e da intervenção europeias, sempre
crescentes ao longo do século seguinte. Foram as diferenças entre as situações
iniciais que determinaram as distinções entre os efeitos de influências externas
semelhantes exercidas sobre os Estados do delta, bem como sobre Calabar e a
região litorânea de Camarões.
A abolição do tráfico de escravos pela Grã -Bretanha, em 1807, representou
um importante fator de mudanças. Os esforços dos ingleses para imporem um
termo ao comércio dos escravos haviam conduzido comerciantes, cônsules e ofi-
ciais da marinha britânica a empreenderem novas atividades e, por conseguinte,
estabelecerem um novo tipo de relação com os Estados do delta. Primeiramente,
estes esforços provocaram um fortalecimento da presença inglesa na baía de
Bonny. Assim sendo, por exemplo, em 1827, uma esquadra foi estacionada
em Fernando Poo e, em 1849, foi nomeado o primeiro cônsul britânico, John
Beecroft, para todos os territórios do golfo de Benin e da baía de Bonny. Além
disso, o Tribunal das Comissões Mistas” foi constituído em Freetown (Serra
Leoa), para julgar os capitães de navios negreiros capturados e libertar os escra-
vos. Para os Estados do delta, estes novos fatos implicavam a demonstração
da potência britânica em suas águas e inauguravam a era da democracia dos
canhões”: os cônsules britânicos serviam -se da potência naval para negociar
melhores condições em benefício dos seus compatriotas comerciantes, missioná-
rios e exploradores. Na realidade, os cônsules continuaram uma política lançada
no decorrer dos anos 1830 por Edward Nicolls, governador de Fernando Poo,
inclusive intensificando -a, sobretudo após 1850, política esta consistente em
assinar tratados com os chefes locais
6
. Estes tratados estipulavam que os chefes
deveriam eliminar o tráfico de escravos e substituí -lo pelo comércio legítimo”
(ou seja, pelo comércio de gêneros diferentes dos escravos), eles enunciavam
regulamentos para a realização do comércio legítimo e estipulavam as tarifas
aduaneiras (comey) impostas aos comerciantes, assim como os subsídios que o
governo britânico deveria conceder aos dirigentes locais que houvessem renun-
ciado ao tráfico de escravos.
6 G. I. Jones, 1963, pp. 221 -242; E. J. Alagoa e A. Fombo, 1972, pp. 90 -121.
851
O delta do Níger e Camarões
Todos estes aspectos da atividade britânica na costa testemunham da gradual
degradação do poder dos dirigentes locais, erosão particularmente manifesta
quando os cônsules e oficiais da marinha ajudaram os comerciantes ingleses a
criarem o seu próprio sistema judiciário, superposto às leis locais, instituindo
as “Courts of Equity”, tribunais essencialmente compostos por comerciantes
britânicos, dos quais participavam alguns chefes locais. Naturalmente, estes
tribunais encontravam -se submetidos à autoridade dos ingleses e não àquela
dos chefes locais.
Aos cônsules e oficiais da marinha britânica, instalados na costa,
acrescentavam -se os comerciantes e missionários britânicos que tentavam
penetrar no interior do país, por exemplo, patrocinando viagens de explorão.
Os esforços empreendidos pelos ingleses, durante muitas cadas, para des-
cobrirem o curso e a nascente do ger, foram coroados de sucesso em 1830,
quando Richard e John Lander foram a Aboh e Nembe (Brass), após convite
do rei Boy Amain. Quando descobriram que os numerosos estuários do delta
eram vias de acesso ao grande rio ger, os ingleses redobraram o interesse
por uma região que lhes abriria a rota, rumo às ricas extensões territoriais
interioranas da Nigéria e da África Ocidental. Durante os anos 1830 e até o
final dos anos 1850, comerciantes britânicos como McGregor Laird, homens
guiados por um ideal humanitário e missionários tentaram subir a partir do
delta rumo ao interior do país.
Na zona oriental do delta, sob a direção do bispo Ajayi Crowther, antigo
escravo nigeriano, a Church Missionary Society criou missões em Bonny, no ano
1864, em Twon -Brass, no reino nembe, no ano 1868, em Elem Kalabari (nos
documentos chamados New Calabar), no ano 1874, e em Okrika, no ano 1880.
Em Bonny e Nembe, as autoridades locais convidavam os missionários por
algumas razões específicas. Alguns pretendiam que eles abrissem escolas onde
as suas crianças pudessem aprender a ler, escrever e falar inglês, para facilitar as
suas relações comerciais com as empresas britânicas. Eles acreditavam que, ao
autorizarem a instalação dos missionários, contribuiriam assim para melhorar
as relações junto ao governo britânico, representado pelos cônsules e oficiais da
marinha, assim como e consequentemente, para consolidar a sua posição em
suas lutas intestinas pelo poder, travadas com os países vizinhos. Estas mesmas
razões por vezes levaram à rejeição dos missionários em outras partes da zona
oriental do delta. Foi assim que, após a instalação da Chuch Missionary Society
em Bonny, Jaja de Opobo, que se separara de Bonny em 1869 para formar o
seu próprio Estado, Opobo, sequer admitia menção a esta missão. A criação de
missões cristãs chocava -se todavia com potentes interesses, haja vista que, no
852
África do século XIX à década de 1880
século XIX em todos os Estados do delta, o cristianismo representou um fator
de agitação social. Segundo o professor Dike, o cristianismo teria transformado
os escravos em revolucionários, os quais estariam na origem de levantes nestes
Estados; porém, trabalhos recentes mostraram ser necessário atribuir a outros
fatores sociais e políticos os problemas que os Estados do delta conheceram no
século XIX
7
.
Os problemas sociais dos Estados do delta podem ser explicados em função
das dificuldades equivalentes, para os grupos dirigentes, à passagem de uma
economia fundada no tráfico de escravos para uma economia baseada no óleo
de palma e de palmiste. Estes grupos, praticantes de longa data do tráfico, não
estavam conscientes da força dos elementos externos, subjacentes ao movimento
abolicionista, e não demonstravam capacidade em consagrarem -se inteiramente
a um comércio novo e difícil. Esta reorientação supunha uma mudança de anti-
gos hábitos e métodos comerciais, assim como das relações comerciais com novos
comerciantes brancos. No plano interno, por outro lado, era relativamente difícil
7 K. O. Dike, 1956, notadamente capítulo V, pp. 135 -165; E. J. Alagoa, 1971b; G. I. Jones, 1963, pp. 124-
-132, 150 -161.
 . O rei Jaja de Opobo. [Ilustração: Nigerian Information Service Centre, embaixada da Nigéria,
Paris.]
853
O delta do Níger e Camarões
tratar o óleo de palma e quebrar o babaçu para dele extrair o óleo de palmiste.
Os comerciantes do delta deviam penetrar mais profundamente no interior do
país para atingirem as zonas de produção, além de ser -lhes necessário utilizar
pirogas e uma mão -de -obra mais numerosa. Esta situação era capaz de provocar
a queda de dirigentes há muito no poder e propiciar a ascensão de novos chefes
empreendedores. Ela teve três grandes consequências: primeiramente, as exigên-
cias do novo comércio provocaram um recrudescimento do tráfico de escravos
no interior do país, com vistas a satisfazer necessidades referentes à mão -de-
-obra, nos Estados do delta; em segundo lugar, o desenvolvimento de novas casas
administrativas e novos chefes perturbou o equilíbrio político interno (consultar
As revoltas de escravos” de Dike); e, em terceiro lugar, a luta pelos mercados
interioranos esteve na origem de muitas guerras entre os Estados do delta.
A introdução de escravos nas comunidades do delta começara bem antes
do século XIX e cada Estado já estabelecera modalidades de integração para os
novos componentes da sociedade. Entretanto, na maioria dos Estados durante
o século XIX, aumentou o mero de escravos a serem integrados e a sua
aculturação foi realizada segundo novos e radicais métodos. Em quase todos os
Estados do delta, raspava -se ritualisticamente o crânio do novo escravo como
aquele de um recém -nascido, buscando assim simbolizar o seu renascimento na
comunidade. Desde logo, ele tornava -se filho de um dos anciãos da família do
chefe que o comprara. O escravo assim adquiria todos os direitos de um membro
de uma unidade familiar, além de poder, segundo as suas capacidades, evoluir na
hierarquia do grupo, bem como dele tornar -se um chefe.
Pertencer a sociedades secretas ekine ou sekiapu provocava uma rápida acultu-
ração dos escravos, nos planos folclórico e linguístico. Em certos Estados, como
Elem Kalabari, os membros de uma milícia, os Koronogbo, aterrorizavam aqueles
que não adotassem, completa ou rapidamente, a sua cultura. Nestas condições, os
escravos não tinham identidade social própria, não constituindo um grupo assaz
distinto, nem tampouco suficientemente vítima de medidas discriminatórias, a
ponto de serem levados à revolta ou serem capazes de empreendê -la.
Todavia, o recrutamento de mão -de -obra para o comércio do óleo de palma
aumentou o número de pessoas dependentes de chefes secundários, as quais
finalmente separar -se -iam do seu grupo familiar. O crescimento de algumas
famílias, através da formação de novos ramos familiares, acontecia por vezes à
custa de famílias mais antigas, abandonadas por alguns dos seus membros, em
prol de outras mais prósperas, em razão de endividamento ou outras causas.
Esta concorrência para o comércio e a mão -de -obra rapidamente provocou
uma perturbação no equilíbrio das riquezas e do poder político em nível local.
854
África do século XIX à década de 1880
Inclusive nas antigas famílias, o poder trocou de mãos. Assim sendo, ao longo do
período crucial 1860 -1870, Jaja e Oko Jumbo, ambos descendentes de escravos,
tomaram a frente das duas facções reais de Anna Pepple e de Manilla Pepple, no
reino de Bonny. A luta pelo poder no Estado de Bonny, durante os anos 1860,
desdobrou -se na criação, em 1869, do novo Estado de Opobo, do qual Jaja foi o
amanyanabo ou o rei. Convém notar que o monarca reinante de Bonny, George
Pepple (1866 -1888), foi incapaz de impor um termo à luta das facções.
Elem Kalabari conheceu, em 1882 -1884, uma crise similar àquela de Bonny.
Duas facções, ambas de ascendência real, lutavam pelo poder. A faão de
Amakari saiu vitoriosa e aquela de Barboy ou de Will Braide foi obrigada
a instalar -se na nova cidade de Bakana. No entanto, inclusive o grupo vito-
rioso foi obrigado a deixar Elem Kalabari, perigosamente próxima do Estado
rival de Bonny. Duas novas cidades foram fundadas no imediato posterior ao
desmembramento de Elem Kalabari: Buguma, onde residia Amakiri, o chefe
superior de Kalabari, e Abonnema, ambas mais próximas dos planaltos das
regiões interioranas.
Nos dois outros Estados ao Leste do delta, Nembe e Okrika, o sistema polí-
tico não sofreu nenhuma perturbação importante. A única crise interna, jamais
outrora ocorrida no Estado de Nembe, no século XIX, sobreveio aquando dos
funerais do rei Ockiya, em 1879, durante os quais os cristãos e os adeptos da
religião tradicional disputaram entre si o direito de praticar os ritos fúnebres
sobre os restos mortais do defunto. O acordo produziu -se baseado em um com-
promisso, segundo o qual cada grupo praticaria os ritos isoladamente do outro.
Os escravos e os homens livres não constituíam facções distintas. Durante o
século XVIII, Nembe e Okrika haviam conhecido grandes crises políticas, com
a chegada ao poder de novas dinastias, dos mingi, no Nembe, e aquela dos ado,
no Okrika. Estas dinastias ainda estavam no poder no século XIX e nenhuma
oposição relevante se constituíra. Convém notar que o comércio destes dois
Estados com o estrangeiro não atingia nível similar àquele dos Estados de
Bonny e de Elem Kalabari.
O reino de Elem Kalabari aparentava ser o pivô do equilíbrio de poder no
Leste do delta. Em meados e ao final do século XIX, ele lutou contra Nembe, no
Oeste, contra Bonny, no Sudeste, e contra Okrika no Leste. Estes outros Estados
eventualmente formavam alianças, embora Okrika tenha dificilmente suportado
a sua situação de aparente dependência perante o reino de Bonny, do qual ele
utilizava o porto para exportar os seus produtos. O reino de Elem Kalabari,
entretanto, teve um aliado, ao menos contra o Estado de Bonny, após a instalação
de Jaja em Opobo, no ano de 1869. Até o final do século, Opobo tentou manter
855
O delta do Níger e Camarões
Bonny distante dos seus tradicionais mercados no vale do Imo. Tornou -se, por
conseguinte, ainda mais urgente para Bonny buscar outros mercados rio -abaixo,
rumo à foz do New Calabar, na região de Obiatubo, reivindicada pelo Estado
de Elem Kalabari, assim como no território dos kalabari, até o Baixo -Níger, ao
Norte do país Nembe. Os Kalabari, também eles, subiram os rios Engenni e
Orashi em territórios anteriormente submetidos à autoridade de Nembe.
Os cônsules ingleses do litoral tentaram tirar proveito destas guerras entre
Estados para abrirem a rota rumo ao interior do país, em benefício dos seus
compatriotas comerciantes e missionários. Eles se desdobraram para atuarem
como mediadores entre os Estados concernidos, por ocasião da conclusão dos
tratados de paz. Assim sendo, através da sua mediação, tratados foram assinados
entre os Estados de Bonny e Elem Kalabari, em 1871, e entre Opobo e Bonny,
no ano 1873, Bonny e Elem Kalabari, em 1879, Elem Kalabari e Okrika, no ano
1871, e Nembe e Elem Kalabari, em 1871. As guerras travadas entre os Estados
não abalaram a sua resolução consistente em impedir que os comerciantes euro-
peus se intrometessem em sua zona comercial ou ameaçassem a sua soberania.
Desde 1854, os ingleses entraram em conflito com Willian Pepple, rei de Bonny,
quem eles foram obrigados a exilar em Fernando Poo, Ascension, Serra Leoa
e em Londres. A luta das facções lhes havia servido como pretexto. Em 1887,
eles não mais podiam invocá -la no momento em que provocaram a queda de
Jaja, rei de Opobo, quem se opunha à instalação de comerciantes britânicos no
vale do Imo. Os dirigentes de Nembe (Brass), reino situado no Nun, principal
afluente do Níger, estavam envolvidos em querelas que opunham, desde os anos
1830, os exploradores e os comerciantes ingleses às populações locais, quando
alguns cidadãos britânicos haviam sido baleados, provocando a morte de alguns
dentre eles. Contudo, foi em 1895 que ocorreu a derradeira prova de força, na
ocasião em que os nembe atacaram e destruíram o principal depósito da Royal
Niger Company, em Akassa, protestando contra as tentativas realizadas pela
companhia com vistas a monopolizar o comércio entre Akassa (no delta) e
Lokoja (na confluência do Níger e da Bénoué). No ano 1898, o rei de Okrika,
Ibanichuka, foi capturado pelo cônsul britânico em razão de ter se recusado a
obedecer às ordens da administração do novo protetorado da Nigéria do Sul.
O rei de Nembe, Koko, logrou escapar da prisão escondendo -se nas longínquas
localidades do seu reino.
Desta forma, por volta do final do século XIX, o poder passara às mãos
dos britânicos na parte oriental do delta do Níger e, durante os vinte ou trinta
primeiros anos do século XX, estes Estados não poderiam coroar novos reis; no
856
África do século XIX à década de 1880
entanto, a perda da sua soberania não provocaria o seu definitivo desapareci-
mento, tampouco dos seus valores culturais e sociais fundamentais.
No interior do país Igbo
Durante muito tempo, o país igbo aparentemente caracterizou -se por uma
população relativamente densa e pela sua organização em pequenas unidades
políticas. Estas características transformavam -no em um país especialmente
vulnerável aos efeitos destruidores do tráfico de escravos, na justa medida em
que não havia Estados assaz potentes a ponto de protegerem os seus residentes.
Com efeito, as diversas comunidades igbo, tudo leva a crer, envolveram -se em
guerras entre grupos, incursões e capturas de homens, por eles posteriormente
vendidos aos Estados do delta e aos efik de Calabar, os quais atuavam como
intermediários. Em outros termos, embora o país Igbo tenha fornecido a maioria
dos escravos vendidos nos portos de Bonny, de Elem Kalabari, no delta do Níger,
e em Calabar, no estuário do Cross, os igbo não entraram em contato direto
com os europeus antes dos últimos anos do século XIX e no início do século
XX. Quando houve o contato, ele ocorreu ao longo de vias navegáveis como o
Níger, o Imo e o Cross. Assim sendo, os centros comerciais situados nestes rios,
onde se encontravam os atravessadores do litoral e os comerciantes do inte-
rior do país, tornaram -se mais bem conhecidos que o restante do país. Os aro,
controladores das rotas comerciais do interior e de alguns mercados nos quais
os intermediários compravam escravos e posteriormente, óleo de palma e de
palmiste, tornaram -se célebres pela sua aptidão para o comércio e pelos oráculos
que eles ofereciam. Igualmente, as cidades ndoki de Akwete e Ohombele, no
Imo, serviam como centros comerciais para os Estados de Bonny e Opobo. No
Níger, os Estados de Aboh, Osomari, Oguta, Asaba e Onitsha transformaram -se
em centros comerciais e, consequentemente, em focos de influência estrangeira
e para contatos com o exterior.
O comércio transatlântico de escravos, embora oficialmente abolido pelos
ingleses em 1807, persistiu no litoral até aproximadamente 1850. Durante a
segunda metade do século, desenvolveu -se o tráfico interno em meio aos povos
do litoral, em razão das exigências do comércio do óleo de palma. As demandas
similares por mão -de -obra destinada à exploração do óleo de palma e de pal-
miste, à agricultura e aos serviços rituais, encorajaram a continuação do tráfico
de escravos em país igbo
8
. O tráfico e a escravatura devem, por conseguinte, ser
8 W. R. G. Horton, 1954; E. Isichei, 1973.
857
O delta do Níger e Camarões
considerados como um importante fator de mudança no país igbo, durante a
maior parte do século XIX.
O comércio de escravos possuía um caráter eminentemente perturbador
sob diversos aspectos. Primeiramente, a maneira através da qual os escravos
eram obtidos tendia a destruir as estruturas sociais e políticas. Os fora da lei e
delinquentes eram reduzidos à escravatura. Alguns indivíduos eram vendidos
durante os períodos de grande fome ou para a quitação de uma dívida. Porém,
é verossímil que a maioria dos escravos tenha sido obtida no decorrer de gran-
des capturas, incursões ou guerras. Sabe -se igualmente que o sacerdote dos aro
vendia as pessoas sempre que as julgasse culpadas. Mas a rede comercial dos
aro estendida sobre a maior parte do país igbo obtinha a maioria dentre os seus
escravos em incursões efetuadas pelos seus aliados mercenários, os abam, ohaffia,
abiriba e edda. Vemos, portanto, que a grande influência exercida pelos aro no
país igbo, por intermédio do seu oráculo, não teve efeito unificador
9
. A influência
dos aro distingue -se, conseguintemente, pelo caráter violento inerente ao tráfico
de escravos, originado na influência religiosa precedentemente exercida pelos
nri sobre vastas regiões do país igbo.
Igualmente, na esfera econômica, as atividades agrícolas normais devem
ter sido consideravelmente perturbadas. Além disso, como era o caso entre os
atravessadores do litoral e os europeus, o produto obtido pelos igbo em troca
dos escravos que lhes eram fornecidos, não era proporcional a tudo que eles
perdiam em razão do tráfico. Os escravos eram trocados contra sal, peixe, licores,
armas de fogo, chapéus, colares e barras de ferro, cobre e bronze. As barras de
metal eram transformadas em objetos de estanho, sinos rituais, espadas solenes,
tornozeleiras ornamentais e outros adereços. Entretanto, o fornecimento destes
produtos metálicos substituiu as indústrias locais, levando os ferreiros akwa a
virarem as costas às suas fontes locais de metal. Do mesmo modo, a importação
de sal e de tecidos pôs fim a indústrias locais.
Os primeiros relatos diretos sobre as regiões interioranas igbo foram repor-
tados na Europa por Richard e John Lander, em 1830, quando passaram por
Onitsha, Asaba e Aboh com o objetivo de alcançarem o delta do Níger. Eles
foram seguidos por outros exploradores, comerciantes e missionários ingleses,
em 1841 e 1854. Em 1856, MacGregor Laird criou a primeira casa comercial em
Onitsha e, em 1879, a United African Company foi constituída em consequência
da fusão de numerosas firmas britânicas rivais que tentavam se instalar ao longo
9 S. Ottenberg, 1958; F. I. Ekejiuba, 1972.
858
África do século XIX à década de 1880
do Níger. Em 1886, uma carta real, transformando -a na Royal Niger Company,
conferiu -lhe poderes administrativos. Ela estabeleceu um dos seus principais
depósitos no território igbo, em Asaba, munindo -lhe de um posto policial e de
uma casa comercial. A atividade das missões, junto aos igbo do Níger, começara
desde 1856 em Onitsha, sob a direção do bispo Ajayi Crowther e de outros
escravos libertos oriundos de Serra Leoa, dentre os quais alguns eram de origem
igbo e membros da Church Missionary Society. Entrementes, a Société de Missions
Africaines (SMA), vinda de Lyon, estabeleceu missões católicas rivais na margem
ocidental do Níger, aproximadamente a partir de 1880, primeiramente em Asaba
e, posteriormente, em Isele -Uku e Ibusa.
Foram os comerciantes e missionários que primeiramente penetraram em
país igbo, seguindo o curso do Níger. Sabemos que eles se chocaram com a
resistência da população
10
. Junto aos igbo ocidentais, a resistência tomou a forma
de revoltas organizadas pelas sociedades secretas ekumeku, entre 1898 e 1911.
Em um primeiro momento, a Royal Niger Company e, após 1900, o governo do
protetorado britânico reprimiriam dura e brutalmente qualquer manifestação de
resistência. O mais espetacular esforço dos ingleses foi, em 1900, a expedição
contra os aro que ocupou 15.500 km
2
do território igbo, da qual participaram
quatro unidades provenientes de Unwana, Itu, Akwete e Oguta, convergentes
rumo a Bende e Arochukwu. Assim sendo, o país igbo foi oficialmente con-
quistado no curso de uma operação pouco gloriosa, pois que o sistema dos aro,
militarmente atacado pelos britânicos, não passava, ao final das contas, de um
grupo de padres e comerciantes trabalhando em colaboração. As forças britâni-
cas não encontrariam nenhuma resistência armada. O desafio lançado pelos aro
contra a autoridade britânica fora indireto, ou seja, comercial e ideológico.
Todos os atuais estudos sobre a conquista do país igbo pelos ingleses, os quais
desmontaram o sistema dos aro fundado no oráculo e venceram a oposição da
sociedade secreta ekumeku, no interior do país asaba, permitem compreender as
razões pelas quais, posteriormente, a sociedade igbo se abriria amplamente às
influências estrangeiras. A conversão para o cristianismo, por exemplo, tornar-
-se -ia massiva” e “espetacular”. Segundo F. K. Ekechi, o movimento de massas
mais desconcertante da primeira década do século XX foi atribuído parcialmente
às tentativas realizadas pelos igbo com vistas a contornarem certos aspectos da
dominação britânica”, ao passo que, para Simon Ottenberg, os igbo se teriam
demonstrado particularmente receptivos à mudança, em razão das suas estrutu-
10 F. K. Ekechi, 1972; P. A. Igbafe, 1971.
859
O delta do Níger e Camarões
ras sociais, da sua mentalidade e da sua história
11
. Porém, nada comprova que os
igbo tenham realmente abandonado a sua cultura e a sua religião tradicionais,
para abraçar o cristianismo de modo mais amplo, comparativamente à postura
de outros grupos da Nigéria e do restante da África.
A bacia do Cross
O Estado efik de Calabar, no estuário do Cross, controlava o comércio na
região ribeirinha deste rio. Ao longo do litoral, a sua zona comercial encontrava
a sua consorte no Estado de Opobo, situado na bacia do Ibeno e do Qua -Iboe.
Entretanto, o mais importante grupo étnico da bacia era formado pelos ibibio,
de onde provinha a maior parte dos escravos exportados a partir desta zona da
costa. Os produtos agrícolas, originários do curso superior do Cross e do país
igbo ao Nordeste, atingiam os mercados efik por intermédio dos aro, controla-
dores do mercado ibibio de Itu. Contudo, alguns dos grupos do curso superior
do Cross, os quais igualmente ensaiavam obter uma parte dos benefícios obtidos
através do comércio com os efik, interceptavam as mercadorias ou impunham o
pagamento de taxas. De modo que os itu, os umon e os akunakuna, entre outros,
invariavelmente opunham -se, de forma ou outra, às feitorias de Calabar. Alguns
dos grupos do curso superior do Cross mantinham diretamente, também eles,
relações comerciais com as populações do Norte de Camarões, bem como com
os Ikom, no Oeste, e com o Calabar, ao Sul.
Embora o Estado de Calabar tenha, também ele, à imagem dos Estados do
delta, comercializado escravos, em seguida óleo de palma e de palmiste, ele teve
uma história diferente, porque o seu meio ecológico e a sua estrutura social
eram diferentes. As duas principais comunidades do Estado efik − Duke Town
e Creek Town estavam instaladas em terra firme, ao passo que, no Oeste, os
seus vizinhos viviam em regiões de mangue do delta. Portanto, Calabar dispunha
de unidades agrícolas nas quais trabalhavam escravos e através das quais eram
satisfeitas algumas das suas necessidades, inclusive provendo -lhe alguns produ-
tos de exportação como o óleo de palma. Porém, a estrutura social do Estado de
Calabar não favorecia a integração dos escravos ao sistema político. Embora os
escravos domésticos que viviam nas cidades igualmente participassem do comér-
cio exterior e pudessem se tornar ricos e influentes, a sociedade secreta ekpe de
Calabar interditava -lhes o acesso aos graus superiores e, consequentemente, ao
11 S. Ottenberg, 1959; F. K. Ekechi, 1972, p. XIII.
860
África do século XIX à década de 1880
poder de Estado. Esta atitude contrastava com aquela das sociedades ekine ou
sekiapu dos Estados do delta, as quais, abertas a todos, eram verdadeiras agentes
de aculturação e integração dos escravos à comunidade.
Os fatores externos de mudança representados pelos comerciantes, cônsules e
missionários europeus, exerceram uma influência maior em Calabar. Os comer-
ciantes não foram imediatamente autorizados a criarem feitorias em terra firme;
eles eram obrigados a viver sobre plataformas, navios cobertos e ancorados em
permanência no rio, onde instalaram os seus alojamentos e escritórios. Eles ten-
tavam exercer alguma influência oferecendo crédito aos mercadores efik e, por
vezes, recorriam a sanções econômicas, interrompendo coletivamente qualquer
comércio com um negociante efik que faltasse com as suas obrigações. No século
XIX, quando os efik comaram a se desentender entre si, os comerciantes
intervieram como árbitros e na qualidade de fazedores de reis.
Os missionários da Igreja da Escócia, instalados em Calabar, no ano de 1846,
formavam uma pequena colônia autônoma, estabelecida em Duke Town e Creek
Town, composta de cinco ou seis missionários brancos, professores, domésti-
cas e convertidos. A missão servia como abrigo para os refugiados. Porém, os
missionários igualmente observavam a vida local, endereçavam relatórios ao
cônsul da Grã -Bretanha e tentavam exercer uma influência moral ou intervir
por outros meios.
Como o estuário do Cross era muito acessível para a esquadra preventiva
britânica, estacionada em Fernando Poo, foi relativamente fácil impor um termo
ao tráfico de escravos em Calabar. Um tratado de abolição foi assinado, em
1842, em virtude do qual as autoridades de Calabar deviam receber uma sub-
venção anual. A partir de 1842, a influência britânica em Calabar gradualmente
acresceu -se, até a criação de um protetorado no ano 1891
12
.
O obong de Calabar
Uma das razões da intervenção britânica em Calabar foi a difícil posição
do seu rei, o obong, devida ao relativo ineditismo da instituição real. Viajan-
tes que percorreram o delta do Níger e seguiram o curso do Cross, no século
XVIII, falam de um rei único para o país do delta, mencionando todavia “reis”
(no plural) quando se trata de Calabar. Alguns destes dirigentes talvez fossem
chefes de linhagem ou nobres ekpe. A posição do obong (ou rei) não começaria
a consolidar -se senão a partir do início do século XIX. Duke Ephraïm (Efiom)
12 D. Forde (org.), 1956; K. K. Nair, 1972; A. J. H. Latham, 1973.
861
O delta do Níger e Camarões
(aproximadamente 1800 -1834) tornou -se o primeiro chefe superior de Duke
Town e o mais potente chefe ribeirinho do Cross. Eyo Honesty I de Creek
Town (morto em 1820) ocupava um posto semelhante em Creek Town. Em
razão das suas imensas riquezas adquiridas graças ao comércio exterior, estes
dois homens impuseram -se perante os seus pares.
A monarquia de Calabar, além do seu ineditismo, era muito frágil sob
outros aspectos. Em primeiro lugar, dois reis rivais coexistiam, um em Duke
Town e outro em Creek Town; em segundo lugar, rios dirigentes políticos
membros da sociedade secreta ekpe lutavam pelo poder. A sua rivalidade os
conduziu a solicitarem a arbitragem do cônsul da Grã -Bretanha, de comer-
ciantes ou missionários britânicos e, sobretudo, no século XIX a função de
obong finalmente identificar -se -ia com o comércio exterior. As tradicionais
atribuições e autoridade do obong eram limitadas; toda a sua atividade balizava-
-se pelo comércio com o estrangeiro. Ele cobrava as taxas ou comey junto aos
comerciantes estrangeiros, outorgava direitos de ancoragem e comércio aos
sobrecargas e desencadeava os procedimentos judiciais tradicionais, caso o
pedido lhe fosse endereçado. O poder de produzir leis e zelar pela sua aplica-
ção pertencia ao chefe da sociedade secreta ekpe. A principal função do obong,
no século XIX, era, portanto, servir como intermediário entre as comunidades
locais e os brancos, de onde derivava o interesse acordado por estes últimos
à sua nomeação.
Os poderes relativos dos reis de Duke Town e Creek Town variaram durante
a primeira metade do século XIX. Duke Ephraïm de Duke Town (1800 -1854)
era não somente o mais rico chefe da região, mas, além disso, portava o título
de eyamba, mais elevada titulação na hierarquia da sociedade ekpe. Cabia -lhe
a maior parte do comey, do qual ele dividia o restante entre os outros chefes.
Após a morte de Duke Ephraïm, Eyo Honesty I de Creek Town (1836 -1858)
tornou -se o mais influente comerciante. Em 1852, ele recebia dois terços do
comey, ao passo que o rei de Duke Town dele não arrecadava senão a terça parte.
Malgrado a riqueza dos reis de Creek Town, aqueles de Duke Town geralmente
lograram conservar o título eyamba da sociedade ekpe, reservando aos soberanos
de Creek Town o segundo título, obunko.
Os conflitos sucessórios em Duke Town e Creek Town representavam uma
seríssima fonte de dificuldades para o sistema político da região. A linhagem
dos eyo muito cedo logrou consolidar a sua autoridade em Creek Town e a
conservá -la até o final do século. A linhagem rival dos akabom imigrou e fundou
Cobham Town. A situação era distinta em Duke Town. Quando Duke Ephraïm
morreu, em 1834, ele teve como sucessor Eyamba V, em outros termos, o quinto
862
África do século XIX à década de 1880
eyamba da sociedade ekpe e não o seu filho ou de um membro da sua linhagem.
Após a morte de Eyamba V, em 1847, as famílias do eyamba e de Duke Ephraïm
disputaram o poder entre si. Os ingleses empossaram um terceiro candidato,
Archibong I. Na ocasião da morte deste último, em 1852, os comerciantes e o
cônsul reconheceram Ephraïm Duke, provocando um conflito entre as linhagens
de Duke, de Eyamba e Archibong. Uns e outros se acusavam mutuamente de
bruxaria e haviam recorrido a ordálias, utilizando com este objetivo um veneno
extraído da semente do eserê ou fava -de -Calabar
13
.
A sociedade ekpe e os bloodmen
A sociedade ekpe de Calabar estava ligada a um culto do leopardo, praticado
por numerosos grupos florestanos do vale do Cross e de algumas regiões de
Camarões. Este culto tomava a forma de uma dança mascarada da qual par-
ticipavam jovens indivíduos vestidos com um manto em ráfia, cujo cerimonial
exigia das mulheres e pessoas estranhas à sociedade a permanência em suas casas.
Cabendo aos membros o papel essencial referente a examinarem questões sociais
durante reuniões hebdomadárias.
A sociedade ekpe, composta nas localidades do interior por todos os anciãos,
tornou -se, na sociedade comerciante de Calabar, uma organização secreta e
fechada. Além disso, ela se hierarquizou progressivamente e as suas patentes,
em número de cinco no ano 1828, passaram a dez em 1840 e a onze no ano
1858. Originalmente, os escravos estavam excluídos da sociedade; no entanto, os
escravos da terceira geração nascidos em famílias dos seus membros finalmente
seriam admitidos nas patentes inferiores. Todavia, como era necessário pagar
para alcançar uma patente, os homens livres e afortunados da nobreza mono-
polizavam as patentes superiores, das quais as mais elevadas eram reservadas aos
chefes políticos de Duke Town e Creek Town.
No século XIX a sociedade ekpe detinha os poderes legislativo e executivo
em Calabar e, a este tulo, os europeus utilizaram -na. Assim sendo, em 1850,
missionários, sobrecargas e o cônsul exerceram preses sobre as autoridades
de Calabar, para que elas promulgassem uma lei concernente à sociedade
ekpe, proibindo sacrifícios humanos aquando da morte dos chefes. A socie-
dade ekpe pode ser considerada como um trunfo interessante no sistema
político de Calabar, na justa medida que ela reagrupava todos os homens
livres, ricos e influentes no próprio seio da organizão. Porém, em meados
13 A. J. H. Latham, 1972.
863
O delta do Níger e Camarões
do culo XIX, o seu ostracismo perante os pobres e a numerosa populão
de origem servil, provocou distúrbios sociais, asrevoltas de escravos, men-
cionadas por Dike.
A associação dos Bloodmen, reagrupando escravos de plantações, esteve na
origem de um grupo de pressão destinado a impedir os sacrifícios de escravos
aquando da morte dos reis ou chefes de linhagem. Esta organização, fundada
no pacto de sangue,de constituir -se em Calabar em razão da concentração
de escravos nas plantações e dos males dos quais eles padeciam. Esta associa-
ção todavia não desencadeou revoltas pela emancipação dos escravos ou pela
conquista do poder potico controlado pela sociedade ekpe. O máximo que
ela de fazer foi organizar uma grande reunião em Calabar toda vez que
um notável estivesse convalescendo ou morrendo, assim como na ocaso em
que escravos corriam o risco de serem sacrificados ou submetidos à prova do
veneno. A sua agitão desdobrou -se na promulgação, pela sociedade ekpe,
em 1850 -1851, da lei contra os sacricios humanos; e o rei Archibong I
julgou necesrio assegurar o seu apoio na luta contra as faões pelo título
de obong.
Portanto, Calabar conheceu uma história social e política similar àquela
dos Estados do delta, pelos tipos de pressão externa aos quais estava exposto o
sistema político, porém distinta no tocante à maneira pela qual os problemas
eram internamente resolvidos. A sociedade ekpe, a situação da monarquia e os
Bloodmen são fenômenos próprios a Calabar.
O litoral camaronês e as regiões interioranas
14
A costa de Camarões, aqui incluídas algumas ilhas rochosas nela situadas,
geralmente apresenta -se sob a forma de um labirinto de mangues, baías e bra-
ços de mar, aos quais imediatamente sucede a floresta tropical úmida. Ela era
habitada pelos três principais grupos bantos do Nordeste, a saber, os kpe -mboko,
os duala -limba e os tanga -yasa
15
, divididos em numerosos clãs e subclãs. Estas
populações que, segundo as suas tradições, teriam origens comuns e afinidades,
eram essencialmente compostas por agricultores, pescadores e caçadores. Nos
mercados, elas trocavam o peixe por produtos agrícolas. Elas estavam geralmente
14 Esta seção resume um estudo do Doutor Lovett Z. Elango, conferencista do departamento de história
da Universidade de Yaoundé.
15 E. Ardener, 1956, p. 39.
864
África do século XIX à década de 1880
organizadas em vilarejos, mas, eventualmente, tinham à sua frente chefes de mais
baixo escalão, notadamente os bubi, dualas e isuwu. Relativamente aos dualas,
aos isuwu e a outros povos, a sociedade secreta mais prestigiada era o jengu,
fundada na veneração dos espíritos da água
16
.
No século XIX, como no caso das populações do delta do Níger, todas
estas sociedades bantas do Noroeste sofreram a pressão das missões cristãs, dos
comerciantes e dos imperialistas europeus. Elas estiveram sobretudo expostas
aos ataques dos abolicionistas
17
, pois que, no início do século, elas compreen-
diam uma casta inferior de escravos e os esforços empreendidos para abolir a
escravatura colocaram -nas em uma situação econômica crítica, obrigando -as a
encontrarem, por um lado, produtos como o óleo de palma e de palmiste, capa-
zes de substituir os escravos, e, por outra parte, a mão -de -obra necessária à sua
produção e ao seu transporte.
Os dualas de Camarões provavelmente viviam no litoral desde o século XVI,
todavia, não fundariam um Estado senão após terem submetido e integrado
outros grupos bantos, a partir de aproximadamente 1706
18
. Eles possuíam um
chefe superior; porém os comerciantes ingleses, instalados no rio, foram obri-
gados a intervir, desde 1792, em um conflito sucessório. Eles impuseram aos
dualas um candidato de baixa linhagem, conhecido sob o nome de King Bell.
Em 1814, Akwa, mais popular candidato e melhor nascido, proclamou a sua
independência. Por conseguinte, durante a maior parte do século XIX, os dualas
estiveram divididos em dois grandes grupos, os bell e os akwa; e era justamente
em torno dos reis Bell e Akwa que gravitava a vida política dos dualas. Os grupos
rivais eram subdivididos em municípios” ou distritos”. Porém, para preserva-
rem a sua solidariedade étnica em face da tendência à cisão, os dualas criaram
uma nova sociedade, o ngondo, assembleia de notáveis dualas que compreendia
representantes de todos os conselhos dos diferentes vilarejos dualas
19
.
Na vertente oeste do monte Camarões e nas margens do Bimbia, afluente do
Camarões, estava instalado o Estado isuwu de Bimbia, cuja principal atividade
era o comércio. Este Estado, composto por três vilarejos à frente de cada qual
havia chefes de linhagens assistidos por um conselho de chefes, era conhecido
como centro comercial secundário, ao menos desde meados do século XVII. O
poder e a autoridade destes chefes e do próprio Bimbia derivavam do seu papel,
16 R. Bureau, 1962, pp. 107 -138.
17 L. Z. Elango, 1974.
18 E. Mveng, 1963.
19 V. T. Levine, 1971.
865
O delta do Níger e Camarões
na qualidade de intermediadores, exercido no comércio exterior. Os chefes de
Bimbia igualmente obtinham o seu prestígio do jengu, do qual eles eram mem-
bros e sobre o qual se apoiavam.
O mais rico e célebre dentre os príncipes comerciantes de Bimbia era Bile,
chamado rei William pelos europeus. A sua mãe era oriunda da família diri-
gente de Bimbia; porém, em sua infância, ele vivera junto ao seu pai duala, na
foz do rio Camarões. Conduzido a Bimbia por homens da sua família paterna,
ele estabeleceu laços mais estreitos com o primogênito dos seus tios maternos,
que lhe empregara como emissário para os assuntos ligados à sua relação com
os europeus, em virtude da experiência por ele adquirida junto ao seu pai. Bile,
fortalecido pelas suas riquezas, pela sua nova experiência e pela sua influência,
foi designado como o sucessor lógico do seu tio. Em 1833, ele logrou con-
vencer o coronel Nicolls, representante da Grã -Bretanha em Fernando Poo, a
reconhecê -lo como rei de toda a região litorânea, estendida de Bimbia a Rio del
Rey, incluindo as ilhas Bubi, oferecendo -lhe em contrapartida ceder esta região
à Inglaterra sob a forma de protetorado. Malgrado a rejeição pelos ingleses a
esta cessão voluntária, Bile conservou o título de rei até a sua morte, em 1879.
 . A casa do rei Bell, na década de 1840. [Fonte: Allen e ompson, Narrative of an expedition,
1848, Londres. Ilustração reproduzida com a autorização do Conselho Administrativo da biblioteca da
Universidade de Cambridge].
866
África do século XIX à década de 1880
Portanto, os Estados de Duala e Bimbia estabeleceram relações no século XIX.
Estes laços culturais foram fortalecidos tanto pela solidariedade dos membros do
jengu quanto pela ascendência duala do rei William. Os negociantes de Bimbia
e de Bell Town cooperavam para o desenvolvimento do comércio na região do
Rio del Rey. Eles criaram duas rotas principais: a primeira foi a estrada costeira,
atravessando as enseadas que ligam as duas zonas, ainda atualmente utilizada.
Alguns comerciantes dualas ou originários de Bimbia se haviam instalado em
diferentes vilarejos, situados ao longo da estrada, com o objetivo de fazerem
escambo com as populações locais. A segunda estrada passava pelas terras e
era usada quando a estrada das enseadas apresentava perigos, em razão do mau
tempo e das condições marítimas. Esta rota, contornando o monte Camarões,
escoava igualmente os recursos em marfim. A rede de estradas comerciais do
interior das zonas comerciais de Bimbia e de Bell Town sobrepunha -se àquela
dos comerciantes efik de Calabar e do Cross, em torno do Rio del Rey.
A unidade comercial da região Camarões -Bimbia -Rio del Rey era também
intensificada pelas relações que cada uma destas partes mantinha com as prada-
rias de Bamenda, no interior do país
20
. Assim sendo, grande número de escra-
vos que atingiram o litoral entre os anos 1820 e 1840 provinham desta região
e alcançavam Bimbia e o Camarões passando pelo Rio del Rey. Entretanto,
aproximadamente em meados do século XIX, os mercadores de Bell Town e
de Bimbia, naquele momento associados, haviam iniciado uma concorrência
pacífica com os grandes negociantes do Rio del Rey.
Os escravos que alcançaram o litoral ao longo dos anos 1840, os quais, em
sua maioria, haviam sido capturados durante invasões dos Bali -Chamba, nas
pradarias de Bamenda, constituíam um elemento decisivo na passagem das
sociedades costeiras, baseadas no tráfico de escravos, para o comércio legítimo.
No estuário do Wouri e em Bimbia, tanto quanto em Calabar e no delta do
Níger, os escravos eram empregados na extração do óleo de palma e de pal-
miste, bem como de outros gêneros comerciais legítimos. Em Bimbia e nas
margens do estuário do Wouri, um sistema muito bem organizado permitia
aos reis William e Bell alugarem os seus escravos para a West African Company
de Fernando Poo. Este sistema era de caráter contratual e constituía uma
fonte suplementar de riquezas para os dois monarcas. No entanto, em razão
de abusos, ele provocou uma investigação do Parlamento Britânico e levou o
rei William a protestar, não somente contra a não retribuição do trabalho dos
20 E. M. Chilver, 1961.
867
O delta do Níger e Camarões
seus homens pela companhia, mas, igualmente, contra os maus tratos que ela
lhes impunha.
O interesse que os ingleses atribuíam à abolição do tráfico de escravos e à
instituição do comércio legítimo desdobrou -se na assinatura de tratados e na
progressiva perda da soberania dos dirigentes locais. Em que pese a rejeição
do tratado de 1833, concluído entre Nicolls e o rei William, agentes britânicos
concluíram, em 1840 e 1844, tratados que legitimavam a sua intervenção na
política local. Esta intervenção consistia, muito amiúde, em utilizar canhões
para intimidar os chefes que violassem as cusulas dos tratados ou com o
objetivo de recuperar somas devidas a europeus. Em 1852, John Beecroft inclu-
sive chegou ao ponto de presidir a eleição de um novo chefe para Akwa. A
intervenção e a arbitragem dos ingleses eram eventualmente solicitadas pelos
chefes locais. O rei William, por exemplo, a ela recorreu para consolidar a sua
autoridade em Bimbia e Rio del Rey. Porém, as intervenções britânicas tinham
mais frequentemente como pretexto a mediação das disputas que opunham
europeus a comerciantes locais, aos quais eles haviam oferecido crédito. Em
1856, o sistema de arbitragem e solução de conflitos entre africanos e euro-
peus fora institucionalizado e dependia de um tribunal denominado “Court of
Equity”, sediado em Duala.
Os missionários representavam um importante elemento da inflncia
estrangeira. Em 1843, a British Baptist Mission Society enviou para Fernando
Poo o mulato antilhano Joseph Merrick. Este último criou, no mesmo ano, uma
missão em Bell Town e, posteriormente, em Bimbia
21
, no ano 1844. Progres-
sivamente, ele construiu igrejas, escolas e oficinas de marcenaria com os seus
colaboradores, além de estabelecer uma gráfica em Bimbia. Muito rapidamente,
o seu proselitismo suscitou a oposição das populações locais. Os conflitos com
os missionários intensificaram -se, ao longo dos anos 1850, com as epidemias de
varíola, as guerras interétnicas e as grandes fomes, a tal ponto que os ingleses
foram obrigados a intervir para protegerem os missionários e os convertidos.
Como o governador espanhol proclamara oficial o catolicismo em Fernando
Poo, no ano 1858, a situação dos batistas tornou -se insustentável em Clarence.
Consequentemente, Alfred Saker fundou, em junho de 1858, na baía de Ambas,
uma nova colônia denominada Victoria. Entretanto, a oposição local aos batistas
permaneceu muito viva, com ainda maior intensidade em razão de numerosos
21 S. N. Gwei, 1966.
868
África do século XIX à década de 1880
colonos anglo -antilhanos de Victoria fazerem concorrência aos comerciantes
de Bimbia.
No decorrer dos anos 1860 e 1870, o comércio do litoral de Camarões peri-
clitou, criando um sentimento de insegurança junto aos dirigentes e a constante
insubordinação dos pequenos chefes locais. A situação conduziu, por conse-
guinte, à solicitação da proteção da rainha Victoria. Foi mediante estas circuns-
tâncias que os alemães anexaram Camarões em 1884. A resistência à anexação
alemã foi quase imediata e sustentada, em certa medida, pelos ingleses. Ela
se endureceu ainda mais, quando os chefes compreenderam que os alemães
estavam determinados a penetrar no país e, por conseguinte, a destruir o seu
monopólio na intermediação. A resistência e as tentativas de pacificação não
cessariam senão com o desencadeamento da Primeira Guerra Mundial
22
. Os
ingleses, por sua vez, demonstravam incapacidade em reverter a situação. Victo-
ria permaneceu como um único ponto de apoio inglês; porém, uma vez mais, os
missionários não estavam em condições de resistirem aos constantes ataques dos
alemães. Victoria foi finalmente cedida à Alemanha, em 28 de março de 1887.
Os alemães imediatamente penetrariam no interior, até a região de Bamenda,
para assegurarem o controle sobre o comércio do interior do país e afastá -lo de
Calabar que começara a atraí -lo.
A bacia de Ogoué e as regiões circunvizinhas
23
Ao Sul de Camarões, a bacia do Ogoué e as regiões circunvizinhas (bacia do
Woleu, da Noya e do Como, rumo ao Norte, bacia da Nyanga, em direção ao
Sul) correspondiam, grosso modo, aos territórios da Guiné Equatorial e do Gabão.
Em sua maior parte, coberta pela floresta equatorial, esta vasta região compreen-
dida nos limites da bacia do Congo, a Norte e Leste, foi habitada pelo homem
desde os mais remotos tempos da história, como atestam os vestígios de objetos
em pedra talhada descobertos durante escavações arqueológicas conduzidas em
diversos sítios do Gabão, cerca de vinte anos.
Contudo, nada sabemos até o momento dos traços físicos e tampouco sobre
os hábitos e o modo de vida destes primeiros habitantes da região. Talvez eles
tenham sido os ancestrais dos pigmeus, atualmente encontrados de modo dis-
perso em pequenos grupos na floresta, onde vivem da caça e da pesca cujo
22 H. R. Rudin, 1938; R. A. Joseph, 1974.
23 Esta seção resume um estudo de Nicolas Metegue N’Nhah, chefe do departamento de história da
Universidade de Libreville.
869
O delta do Níger e Camarões
produto alimenta as trocas, na forma de escambo, por eles mantidas com os
vizinhos povos bantos.
Estes últimos formavam, no século XIX, numerosas entidades políticas mais
ou menos importantes: cidades -Estado (Fang, Kélé, Séké, Benga), confederações
(Mpongwé, Gisir, Punu, Obamba) e reinos (Nkomi, Orungu, Galwa, a partir de
1860)
24
. No interior destas entidades políticas, os diferentes povos dedicavam -se
a diversas atividades: agricultura itinerante baseada em queimadas, caça, pesca
e artesanato. Este último distinguia -se sobretudo pela qualidade dos seus pro-
dutos, tais como os objetos em ferro fabricados pelos fang considerados, no
século XIX, pelos viajantes europeus como os melhores ferreiros da região e os
tecidos dos povos do alto -Ngunyi (Gisir, Apindji e Mitsogo, notadamente). Os
produtos destas atividades econômicas alimentavam importantes intercâmbios
comerciais entre as diferentes comunidades. Assim sendo, entre a confederação
mpongwé, no estuário do Como, e o reino orungu, no delta do Ogoué, realizava-
-se um ativo comércio de farinha de mandioca e peixe seco; do alto -Ngungyi
provinham até a costa, passando por Ogoué e Rembo -Nkomi, os famosos bongo,
produtos de tecelãos das regiões interioranas; finalmente, do litoral atlântico,
partiam em direção ao interior do país, comboios carregados de fardos de sal,
originado localmente. Após a chegada dos portugueses ao litoral, em 1471, estes
intercâmbios comerciais intensificaram -se a ponto de se tornarem a principal
atividade dos povos litorâneos nos séculos XVII, XVIII e XIX, época em que
o conjunto dos produtos europeus (fuzis, bebidas alcoólicas, tecidos, artigos em
vidro e diversos bibelôs) era sobretudo trocado por escravos, marfim, óleo de
palma, borracha, ébano e sequóia.
Este desenvolvimento da atividade comercial no litoral teve importantes con-
sequências. Por um lado, provocou a migração de alguns povos, como os fang, os
quais, a partir da região englobando o Norte do Gabão, o Sul de Camarões e o
Leste da Guiné Equatorial, onde estavam instalados muito tempo, dirigiram-
-se rumo ao litoral, precedidos pelos kélé, continuando até Eliva Nkomi (laguna
do Fernan -Vaz), alcançada ao final do século XIX. Por outro lado, ele esteve na
origem de uma profunda mutação das sociedades autóctones. A antiga estru-
tura social, marcada por laços sanguíneos e permitindo em cada ctrês classes
sociais, a saber, os puro -sangue (fumu, em punu, awo -ntche, em amyene, atem
bo bayong, em fang), os metecos (awoga, em omyene, mintobe, em fang) e os
escravos, começou a ser substituída por outra estratificação social baseada na
24 Consultar N. Metegue N’Nhah, 1979. É necessário sublinhar que, até o século XVII, os reinos tyo e vili
englobavam vastas regiões do atual Gabão.
870
África do século XIX à década de 1880
fortuna, colocando em relevo, ao lado de uma classe média e das camadas mais
inferiores, uma burguesia comerciante essencialmente composta por chefes e
notáveis, os quais monopolizavam o grande comércio.
Esta evolução social, pouco evidente em meio aos povos interioranos do país,
no início do século XIX, era mais acentuada no litoral, onde foram assinados,
a partir de 1839
25
, os tratados que deram origem à feitoria francesa do Gabão,
da qual Libreville, fundada em 1849 na foz do Como, tornou -se a sede. Deste
estabelecimento muito cedo partiriam numerosas missões de exploração que
estenderam as possessões francesas em profundidade, rumo ao interior do país,
transformando o Gabão na porta de penetração europeia para a África Cen-
tral: viagens de Paul Belloni du Chaillu (1856 -1859 e 1863 -1865), de Serval
25 O primeiro tratado de ocupação colonial, assinado na região em questão, foi concluído no dia 9 de
fevereiro de 1839, por E. Bouët -Willaumez e Antchuwe Kowe Rapontchombo, igualmente conhecido
como “rei Denis”.
 . Ouassengo, comerciante de Ogoué, empunhando presas de elefante, acompanhado das suas
mulheres. [Fonte: E. M’Bokolo, Noirs et Blancs en Afrique équatoriale, 1981, Éditions de l’École des hautes
études en sciences sociales, Paris. Ilustração reproduzida segundo Grion du Bellay, “Le Gabon”, Le tour du
monde, 1865 (detentor dos direitos autorais desta foto desconhecido).]
871
O delta do Níger e Camarões
e Griffon du Bellay (1862), de Aymes (1867), de Alfred Marche e do Mar-
quês de Compiègne (1873 -1874), de Pierre Savorgnan de Brazza (1875 -1878,
1879 -1882 e 1883 -1885), de Paul Crampel (1888 -1889), de Fourneau e Doli-
sie (1889). Rumo ao Norte, os franceses chocaram -se com os espanhóis que,
estabelecidos em Fernando Poo desde 1778, lançaram várias expedições para o
rio Muni, notadamente aquelas de Nicolas Mantorela e Guillemar de Aragon
(1845), de Manuel Iradier, Ossorio e Montes de Oca (1884).
Enquanto avançava a exploração do país e malgrado a resistência empreen-
dida pelos autóctones contra a penetração europeia, desde o seu início, tratados
eram concluídos com alguns chefes, possibilitando a implantação de comercian-
tes e missionários ocidentais em diferentes regiões. Aproximadamente em 1882,
a bacia do Ogoué e as regiões circunvizinhas comportavam mais de noventa
estabelecimentos comerciais pertencentes, em geral, às companhias inglesas
(John Holt, Hatton e Cookson), alemãs (Woermann, Schulze, Lübke, Küder-
ling), espanholas (Transatlantica) e francesas (Dubarry Frères). Contava -se, em
 . Antchuwe Kowe Rapontchombo (o “rei Denis”), soberano das margens do Ogoué, com a sua
grande mulher. [Fonte: E. M’Bokolo, Noirs et Blancs en Afriqué équatoriale, 1981, Éditions de l’École des
Hautes Études en sciences sociales, Paris. Ilustração reproduzida segundo Grion du Bellay, “Le Gabon”, Le
tour du monde, 1865 (detentor dos direitos autorais desta foto desconhecido).]
872
África do século XIX à década de 1880
suplemento, mais de vinte estações missionárias e um número aproximadamente
similar de escolas exclusivamente confessionais.
Porém, apesar desta profunda penetração da influência ocidental, as socieda-
des autóctones souberam conservar a sua originalidade. Com efeito, é necessário
dizer que, aproximadamente ao final do século XIX, vastas regiões permaneciam
pouco afetadas por estas influências externas. Além disso, onde estas influências
já eram muito fortes, a exemplo da região litorânea, elas enfrentavam elementos
irredutíveis que lhes opunham as culturas locais. Assim sendo, o maciço processo
de evangelização das populações chocava -se com a prática de cultos autóctones,
amplamente difundidos, à imagem do Bwiti, do Bieri e do Ombwiri, assim como
com alguns hábitos, a exemplo da poligamia.
Conclusão
Deste modo, o século XIX viu os ingleses progressivamente expandirem
a sua influência em uma grande parte da região, igualmente acompanharam-
-nos os franceses, sucedidos pelos alemães, ao fincarem os pés em Camarões.
Todavia e nitidamente, o interior do país escapou da influência direta europeia
até o final do século. Inclusive, até mesmo a conquista das regiões litorâneas, as
quais haviam estado em contato direto com os comerciantes europeus, muito
anteriormente ao século XIX, não ocorreu sem dificuldades; além disso, a sua
história interna foi determinada por fatores locais e, muito amiúde, pelas suas
relações com os Estados vizinhos. Assim sendo, embora todas as comunidades
do litoral tenham tomado parte no comércio exterior, cada uma delas estabeleceu
instituições diferentes para limitar o seu impacto e os problemas comuns foram
resolvidos em contextos históricos e culturais distintos. A instituição dos wari
ou casas, nos Estados do delta, era diferente daquelas dos efik do Cross River,
os quais adaptaram a novas funções a sociedade ekpe das populações do interior.
Em circunstâncias semelhantes, as populações litorâneas de Camarões criaram a
sociedade dos jengu, diferente da sociedade secreta ekpe dos efik e da sociedade
aberta dos mascarados ekine ou sekiapu dos Estados do delta, ou bwiti, bieri e
ombwiri da bacia do Ogoué e do Gabão.
Ademais, não se deve perder de vista que, no século XIX, malgrado a impor-
tância do comércio exterior de escravos, em seguida, do óleo de palma e de
palmiste, no desenvolvimento destas comunidades, a economia da maioria da
população essencialmente repousava no comércio interno e na troca de produ-
tos agrícolas entre os diferentes grupos. Na esfera política, os fatores culturais
873
O delta do Níger e Camarões
internos ainda predominavam, inclusive ao longo da costa: os itsekiri do delta
ocidental do Níger ainda consideravam a maldição do oba do Benin como um
fator histórico determinante, em que pese a soberania de fato e os sucessos do
comércio exterior conquistados no século XIX pelo reino de Warri.
Em suma, a importância atribuída às forças externas comércio europeu,
ão dos missionários e conquista colonial o suplantaria o primado dos
fatores internos na história das populações instaladas entre o delta do Níger
e a bacia do Ogoué no século XIX. Em outros termos, os fatores externos
não tinham, em absoluto, profundas consequências imediatas e as populações
continuaram a gozar de certa autonomia, na maioria dos aspectos da sua
existência. Esta autonomia, essencial no referente ao nascente império do
mundo ocidental, manter -se -ia durante todo o período colonial, de modo
que as populações locais não perderiam inteiramente a sua cultura, as suas
instituições e a sua identidade.
C A P Í T U L O 2 8
875
A diáspora africana
A diáspora africana
Franklin W. Knight
com contribuições de Yusuf Talib e Philip D. Curtin
Em virtude da sua amplitude, a imigração dos africanos rumo às Américas,
ao Oriente Médio e à Europa, em função dos diferentes itinerários, notada-
mente transatlânticos, empregados pelo tráfico de escravos, constitui um dos
acontecimentos dominantes da história da África e do mundo
1
. Esta imigração,
essencialmente consumada contra a vontade dos participantes, durou séculos e
deixou, de modo generalizado na Europa, no Oriente Médio e nas Américas,
comunidades residuais de proporções diversas
2
.
O êxodo rumo à Ásia Menor e ao Levante Mediterrâneo é o mais antigo e
durável dentre as correntes da diáspora africana. Provavelmente, ele teve início
muitos séculos antes da era cristã, conhecendo o seu apogeu a partir do século
VII, no curso da expansão do islã. A maior parte dos africanos assim chegou pelas
diversas vias do tráfico transaariano, conquanto bom número tenha igualmente
imigrado por sua própria vontade, como intelectuais, professores, comerciantes e
1 A obra de J. M. McPherson, L. B. Holland et al (1971) forneceu uma boa base inicial para o estudo da
diáspora africana. Após a sua publicação, assistimos a uma verdadeira orada de excelentes monograas,
tratando especialmente o tema afro-americano. Citemos, entre outros: D. B. Davis, 1975; R. W. Fogel e
S. L. Engerman, 1974; H. G. Gutman, 1975; E. D. Genovese, 1974; S. L. Engerman e E. D. Genovese
(org.), 1975; G. M. Hall, 1971; D. W. Cohen e J. P. Greene (org.), 1972; H. Hoetink, 1973; R. Anstey,
1975; J. Palacios Preciados, 1973; R. Sheridan, 1976; R. S. Dunn, 1972; C. A. Palmer, 1976, 1981; R.
Bean, 1975; H. Klein, 1978; L. Rout, 1976; F. P. Bowser, 1974; W. Dean, 1976; B. W. Higman, 1976;
M. Craton, 1978, 1979; O. Patterson, 1982; I. Berlin e R. Homan (org.), 1983; P. D. Curtin, 1979.
2 Consultar R. David, 1970, pp. 33-50; L. Bugner, 1980; M. Moreno Fraginals, 1977.
876
África do século XIX à década de 1880
peregrinos vindos às cidades sagradas de Meca e Medina. Como o mundo medi-
terrâneo não praticava a agricultura extensiva, o número de africanos de origem
subsaariana nele permaneceu invariável e relativamente fraco, provavelmente
nada além de algumas centenas de imigrantes por ano. No Império Otomano,
muitos eram empregados como soldados e marinheiros, eunucos, concubinas,
administradores e, eventualmente, como ocorrido com Abū l-Misk Kāfūr do
Egito (morto em 968), inclusive tornaram-se chefes de Estado. Nos Estados
muçulmanos, o estatuto de escravo não era hereditário; houve exemplos nos
quais africanos foram capazes de manter a coesão da sua cultura em interação
com aquela dos seus anfitriões.
Os africanos seguiram o movimento de expansão do is que alcançou,
por via terrestre ou marítima, a Índia e o Extremo Oriente. Até os anos 1520
e 1530, havia cerca de 5.000 soldados africanos junto às tropas do sultão do
Bahadur do Gujarat, ao passo que outros serviam em sua marinha. Havia,
outrossim, certo número nas forças armadas do sultão de Delhi, bem como no
Bengale e no Decão. Finalmente, a expansão do Império Otomano na Europa
do Sudeste do mesmo modo trouxe africanos, como soldados e empregados
administrativos.
O contato dos africanos com a Europa teve lugar no prolongamento da ati-
vidade comercial e militar no Mediterrâneo. No século XV, o tráfico de escravos
africanos era um pequeno e muito próspero setor do comércio, encontravam-se,
por conseguinte, africanos em bom número na Sicília, em Chipre, Creta, bem
como no litoral meridional da Espanha. Sevilha possuía, no início do século
XVI, uma população de aproximadamente 5.000 habitantes negros cujo número
era igualmente relevante em Málaga, Huelva,diz e Lisboa. As ligações marí-
timas diretas entre a Europa e a África aumentaram os seus efetivos, de modo
que, por volta do final do século XVIII, havia 2.000 negros na França e 15.000
na Inglaterra. Estes são, bem entendido, números derrisórios se comparados às
ondas de africanos despejados, na mesma época, nas Américas, conquanto e
todavia fossem suficientes para preocuparem as autoridades dos dois países. Os
casamentos inter-raciais foram proibidos na França, por decreto real, em 1777,
ao passo que, na Inglaterra, o célebre decreto Mansfield instituía, em 1772, que
os africanos não podiam ser mantidos como escravos.
No entanto, foi nas Américas que a diáspora africana teve a sua amplitude
máxima. Os africanos e os seus descendentes, chamados em geral africanos-
americanos (expressão recém-substitda por afro-americanos), desempenha-
ram um papel de forte importância no desenvolvimento de todas as sociedades
do Novo Mundo, desde a descoberta da região pelos europeus, ao final do
877
A diáspora africana
século XV, até os tempos modernos. Qualquer tenha sido o número de africa-
nos em tal ou qual país, a África imprimiu, na América, a sua marca profunda
e indevel.
Escravos ou homens livres, os africanos e afro-americanos contribuíram
para domesticar toda a extensão selvagem do continente americano, do Alaska
até a Argentina. Eles atravessaram os grandes rios com os primeiros explora-
dores do Novo Mundo. Eles ajudaram a conquistar e a submeter as populações
autóctones menos civilizadas e as evoluídas civilizações do México e do Peru.
Eles participaram ativamente da criação das novas comunidades de onde nas-
ceriam as sociedades heterogêneas e multilíngues da América. Eles ajudaram
a construir as novas cidades dos espanhóis e portugueses: Santo Domingo em
1496; Cidade do México e Havana em 1522; Pernambuco e Lima em 1535;
Buenos Aires e Valparaíso em 1536; Bahia em 1549; Rio de Janeiro em 1565.
Igualmente, foram eles que ergueram as cidades portuárias dos colonos ingleses
no século XVII e no início do século XVIII: Boston, Nova Iorque, Filadélfia,
Jamestown e Charleston.
Do mesmo modo que os grupos de imigrantes livres vindos para as Amé-
ricas entre os séculos XVI e XIX, os africanos trabalharam em todos os tipos
de produção e desempenharam todos os papéis sociais. Eles foram pioneiros e
conquistadores, piratas e bucaneiros, gaúchos, llaneros, bandeirantes, proprietá-
rios de escravos, negociantes, domésticos e escravos. Eles melhor se distinguiram
em certos ofícios comparativamente a outros, mas, no entanto, o acesso às mais
elevadas posições sociais lhes fora interditado pela lei. Após o século XVII,
entretanto, os africanos eram os únicos escravos legais nas duas Américas e as
populações africanas no seio das sociedades americanas estariam predestinadas
a carregar, durante um longo período, os estigmas desta condição
3
. Antes da
abolição definitiva da escravatura no Brasil, em 1888, a maioria dos africanos das
Américas era escrava e eram eles quem cumpriam a maior parte dos trabalhos
manuais e dos serviços que exigiam um esforço físico, frequentemente estafante,
sem os quais as colônias, possessões e nações não teriam sido capazes de alcançar
a prosperidade econômica.
Desde muito tempo associados, em importantes e variadas atividades, à
evolução das sociedades americanas modernas, os africanos lograram impor
peremptoriamente a sua marca nas línguas, culturas, economias, além de parti-
cipar, quase invariavelmente, na composição étnica das comunidades do Novo
3 D. B. Davis, 1966, pp. 223-261.
878
África do século XIX à década de 1880
 . Figura masculina de tipo negróide suportando nas costas o peso de um cris indonésio preso à
cintura, provavelmente proveniente da região do atual Vietnã e datado, é verossímil, do século XVII. [Fonte
e ©: Arts of Asia, março-abril 1978, Hong-Kong.]
879
A diáspora africana
Mundo
4
. A sua influência alcançou mais fortemente as regiões do latifúndio
agrícola, em comunidades cujo desenvolvimento ocorreu nos territórios às mar-
gens do Atlântico e do mar das Antilhas, do Sudeste dos Estados Unidos da
América do Norte até a porção nordeste do Brasil, e ao longo das costas do
Pacífico, na Colômbia, Equador e no Peru.
O Oriente Médio e o Sudeste Asiático
5
Os etíopes eram muito estimados na Arábia e na Índia, em razão da sua
inteligência e do seu aspecto físico. Os escravos exportados da Etiópia no século
XIX, para diversas regiões da Ásia, eram principalmente crianças com idade de
oito a dezesseis anos. Alguns destes escravos eram cativos capturados no curso
das guerras que o reino de Shoa, na Etiópia do Sul, travava contra os povos
oromos (galla), habitantes das suas regiões fronteiriças; eles eram encaminhados
às centenas em caravanas até a costa etíope, da qual embarcavam nos portos
de Berbera, Zeila, Tajura, Assab, Obock e Massaoua, para atravessarem o Mar
Vermelho e chegarem aos portos de Djeddah, Moka e Hoideida. Nestas regiões,
eles eram vendidos aos compradores oriundos de muitas cidades do Iêmen e do
Hedjāz, assim como a marinheiros mercantes de Hadramawt, Zanzibar, Omã,
da Índia e do Golfo Pérsico. Este comércio estava em grande parte nas mãos
dos árabes, apoiados por financistas indianos do Gujarat (os banianes)
6
.
Todavia, a África Oriental era a principal fonte para o aprovisionamento deste
tráfico de escravos. Como sublinhou J. B. Kelly
7
, o tráfico de escravos provenientes
de Zanzibar era praticamente monopolizado pelos árabes de Mascate e os seus che-
fes obtinham as suas rendas através das taxas aduaneiras recolhidas deste comércio.
Mascate era, no início do século XIX, o maior mercado de escravos ao serviço do
golfo, da Pérsia, do Iraque e da Índia; posteriormente, no transcorrer deste século, a
sua preponderância foi nova e progressivamente posta em causa pela concorrência
do porto de Sur, mais ao Sul. A maioria dos escravos desembarcados em Mascate
4 Edição especial de Deadalus (Journal of the American Academy of Arts an Sciences), 1974, 103, n
o
2; S. W.
Mintz, 1971; B. Nuñez, 1980; R. M. Levine, 1980; N. Sanchez-Albornoz, 1974.
5 A necessidade de trabalhos mais aprofundados foi sublinhada por B. A. Ogot, 1979, p. 175. No
tocante aos arquivos turcos, consultar C. Orhanlu, 1972 e 1976-1977, pp. 145-156. Para os primeiros
trabalhos de antropologia, consultar R. Skene, 1917; G. Pesenti, 1912, 1929; D. C. Philliot e R. F. Azoo,
1906-1907.
6 R. H. K. Darkwah, 1975, p. 168; J. B. Kelly, 1968, pp. 417-418.
7 J. B. Kelly, 1968, pp. 413-414.
880
África do século XIX à década de 1880
era vendida em Omã. Os outros eram comprados por agentes dos Estados da
Tgua, especialmente o Kawāsim, para serem revendidos no litoral e nos merca-
dos da Pérsia, do Iraque, de Bahreïn, do Kuwait, de Hasa e de Najd. Os escravos
também eram transportados de Mascate e de Sur, nos porões de barcos vindos de
Bahreïn, do Kuwait e da Índia, rumo aos portos de Sindh, Kutch, Kathiawar e à
presincia de Bombaim. Aqueles destinados à Pérsia eram desembarcados em
Bushire ou enviados através do golfo a Lingah, a partir de Sharjah. Observamos
quão era raro, no início do século XIX, que os escravos fossem transportados do
Mar Vermelho atravessando toda a Abia para serem vendidos na costa do golfo.
Basra era o principal mercado para os escravos destinados ao golfo.
Os negreiros britânicos e holandeses igualmente tomaram parte neste lucra-
tivo negócio. Escravos principalmente provenientes de Madagascar conhecidos
como Kāfirs”
8
eram importados pelas presidências de Bombaim e Madras, na
8 Da palavra árabe kār que signica: inel, miserável, impiedoso, indivíduo que não reconhece os desíg-
nios divinos; mas também quer dizer cobrir, dissimular, negar. Apelação em geral conferida pelos árabes
a todos os não muçulmanos e, portanto, entre eles a determinados grupos. Conferir e Oxford-English
Dictionary, Oxford, 1933, p. 18. A palavra era frequentemente usada na Índia e no arquipélago malaio
para designar os escravos africanos, não cristãos e não muçulmanos. Consultar H. Yule e A. C. Burnell,
1886, pp. 141-142.
 . O tráco de escravos da África do Leste nos anos 1850, visto por sir Richard Burton. [Fonte:
R. F. Burton, First footsteps in East Africa, 1966, Routledge e Kegan Paul Ltd, Londres. Ilustração: British
Library, Londres.]
881
A diáspora africana
Índia, assim como em todos os primeiros estabelecimentos britânicos na costa
oeste de Sumatra, para suprir as necessidades de mão-de-obra das suas respec-
tivas fábricas
9
. Faz-se necessário sublinhar que toda a região do Oceano Índico
foi, no século XIX, o teatro de movimentos não somente de populações africa-
nas, mas, igualmente, de malaios, indianos, chineses, escravos ou trabalhadores
contratados. Estas interações entre indivíduos vindos de diversos horizontes,
inclusive, merecem ser estudadas mais profundamente
10
.
Convém, outrossim, notar que a peregrinação anual a Meca desempenhou
um importante papel, embora sazonal, nos movimentos populacionais volun-
tários e involuntários para o Oriente Médio. Numerosos peregrinos oeste-afri-
canos chegavam a Meca em caravanas, pelo Cairo ou passando pelos portos de
Suakin e Massawa, no Mar Vermelho, constituindo consequentemente pequenas
comunidades da diáspora
11
. Desde a época do grande rei do Mali, Mansa Mūsā,
estes ricos peregrinos africanos levavam em sua companhia certo número de
escravos dentre os quais alguns eram vendidos durante o trajeto como uma
espécie de cheque-de-viagem, para pagar os custos da expedição”
12
. Portanto,
não é fortuito que Meca tenha figurado como principal mercado de escravos
da península arábica. A ela eram levados para venda não somente escravos
africanos, mas, igualmente, escravos circassianos, malaios, indianos e da Ásia
Central. Estes escravos eram, em seguida, dispersos pelos seus compradores em
todo o mundo muçulmano
13
.
Um pequeno número de africanos permanecia nas cidades santas da Arábia
Ocidental para ali levarem mais adiante os seus estudos teológicos. Os mais
numerosos eram africanos do Oeste, pertencentes à escola de direito maliquita
14
.
Aqueles da África Oriental iriam sentar-se aos pés dos seus professores shāfi
9 H. H. Dodwell (org.), 1920, pp. 100, 104, 135, 159-160, 188, 202, 223; F. W. Mees (org.), 1928, p. 76.
10 Estas comunidades da diáspora não contavam exclusivamente com escravos; igualmente havia certo
número de exilados políticos. Por exemplo, os chefes das revoltas anticoloniais abortadas na Indonésia,
que foram deportados para estabelecimentos holandeses do Sri Lanka e para a Colônia do Cabo. Para
estimativas relativas ao número de escravos transportados em direção à Ásia, referir-se a B. A. Ogot,
1979, p. 177. Para outros números, consultar J. B. Kelly, 1968, pp. 414-416; W. Wilburn, 1913, vol. 1,
pp. 35, 60.
11 Para recentes estudos sobre os peregrinos oeste-africanos, conferir U. al-Naqar, 1972, e J. S. Berks,
1978.
12 B. Lewis, 1971.
13 Para maior detalhamento sobre o mercado de escravos de Meca, conferir J. S. Hurgronje, 1970, pp. 14-15;
R. F. Burton, 1964, vol. 1, p. 252. Sobre a redistribuição dos escravos africanos, consultar R. Winstedt,
1958, p. 53; W. Ochsenswald, 1980.
14 J. S. Hurgronje, 1970, p. 182.
882
África do século XIX à década de 1880
‘ītes nas cidades iemenitas do Norte, como Zabid e Beit al-Fakīh, e nos célebres
centros religiosos de Hadramawt-Tarim, como ‘Ainat, Seiwun e Gaidun
15
.
À imagem dos séculos precedentes, a mão-de-obra africana servil era
indispensável em diversas esferas econômicas, políticas e sociais de numerosas
sociedades da Ásia. Nas regiões dominadas pelas potências coloniais britânica
e holandesa, particularmente na Índia e no arquipélago malaio, os escravos,
sobretudo africanos, estavam na base de uma economia fundada no grande
latifúndio agrícola, similar àquela encontrada nas Américas. No Oriente Médio,
especialmente na Arábia, um grande número de escravos africanos ocupava
profissões diversas, tais como domésticos, especialmente empregadas domésticas,
marinheiros, soldados, empregados administrativos, ajudantes em boutiques etc.
Nas regiões rurais, eles eram empregados como operários agrícolas, carregado-
res de água, cameleiros e pastores. Como dissemos, os etíopes, em oposição
aos núbios, sudaneses e africanos do Leste, eram os mais apreciados e foram
encarregados das tarefas menos penosas
16
. J. L. Burckhardt, o viajante da época
vitoriana, observava que lado a lado com os seus compatriotas assujeitados, pere-
grinos africanos pobres, vindos em sua maioria da África Ocidental conhe-
cidos in loco pelo nome “Tekrourys” −, se ocupavam durante a sua estadia como
carregadores, estivadores, varredores de rua, lenhadores, barristas, tapeceiros,
cesteiros e fabricantes de uma bebida embriagante chamada “bouza”
17
.
Na Índia, os escravos africanos eram encarregados das tarefas junto aos
ancilares, as quais os indianos não podiam (em razão das restrições de casta) ou
não pretendiam desempenhar, e que os britânicos estimavam indignas para eles.
Nos Estados principescos, os escravos, sobretudo africanos, em geral serviam
como domésticos, concubinas, eunucos, carregadores de água, barbeiros, guarda-
costas, estribeiros etc. Sabemos que o rei de Oudh (o atual Uttar Pradesh) tinha
ao seu serviço, no início do século XIX, numerosos escravos etíopes, homens e
mulheres, e que pagava somas principescas para adquiri-los. No momento da
sua compra, eles eram todos convertidos ao islã. É-nos igualmente reportado
que os ricos aristocratas muçulmanos, em particular aqueles que viviam em
cidades como Patna e Calcutá, possuíam, além dos escravos de ambos os sexos,
um grande número de eunucos habshi
18
(etíopes). À imagem das épocas pre-
gressas, a posse de escravos africanos era um sinal externo de riqueza que con-
15 Referir-se à revista Majalah al-Rabitah al- ‘Alawi, 1350 de l’hégire, vol. IV, pp. 30-31.
16 J. S. Hurgronje, 1970, pp. 11, 13.
17 J. L. Burckhardt, 1829, pp. 258-275, 382.
18 A. K. Chattopadhyay, 1977, pp. 29, 40-41.
883
A diáspora africana
feria prestígio. A posição social de um proprietário era avaliada pela quantidade
dos seus escravos, os quais compunham uma considerável fração do seu séquito
e equivaliam a um indicador no estabelecimento dos níveis de riqueza e poder.
Nas presidências do Bengale, de Bombaim e de Madras, os escravos, notada-
mente malgaxes, além de serem naturalmente encarregados da obras, igualmente
desempenharam papéis econômicos e militares essenciais no desenvolvimento
destas colônias da Coroa Britânica, ainda embrionárias. Os livros da Companhia
Inglesa das Índias Orientais, ao final do século XVIII e no início do século XIX,
são testemunhos do rude labor realizado pelos escravos durante a construção das
fortificações (por exemplo no forte Saint-David, no Sul da Índia), na qualidade
de soldados, marinheiros, estivadores e operários agrícolas
19
.
No arquipélago malaio, especialmente na costa oeste de Sumatra, a exemplo
do estabelecimento britânico de Benkulen
20
, os escravos africanos não somente
efetuavam a triagem e o transporte da pimenta, mas, igualmente, estavam ocu-
pados em todo tipo de função, como soldados, mecânicos, pedreiros, ou car-
pinteiros. Os mais desafortunados eram aqueles a trabalharem em condições
desumanas, nas minas de ouro holandesas, especialmente em Salida
21
.
A assimilação dos povos de origem africana às populações locais da Ásia não
ocorreu com tamanha frequência, tal como usualmente sugerido, a despeito do
ancestral costume da concubinagem
22
. Observavam-se, muito amiúde, traços
característicos de um modo de escravismo fechado”, análogo àquele praticado
19 H. H. Dodwell (org.), 1920, pp. 104, 135.
20 F. W. Mees (org.), 1928 (Court to Fort Marlborough, 25 février 1773). Os escravos também trabalhavam
na produção de açúcar e de arak.
21 Consultar J. Paulus (org.), 1917-1921, pp. 806-811.
22 Consultar o artigo de propaganda resumido em C. Doughty, vol. 1, 1926, pp. 554-555. Junto aos
africanos, não há vestígio de ressentimento pelo fato de terem sido reduzidos à escravatura − eles eram,
frequentemente, cativos feitos prisioneiros em suas próprias guerras −, embora os ladrões de homens os
tenham arrancado de suas famílias. Os senhores que os adquiriram empregaram-nos em suas dependên-
cias domésticas, os homens são circuncisos − fato que liberta as suas almas, mesmo na longa saudade do
seu país − e Deus os visitou no penar; eles dizem: ‘Isso foi a Sua Graça’, haja vista que deste modo eles
aderiram à religião salvadora. Eis, portanto, dizem eles, o melhor dos países”. A comparar com as descri-
ções de crueldade, discriminação, fugas e revoltas que abundam em todo tipo de documento, por exemplo:
SFR (Fort Malb. to Court, 10 de abril de 1818); D. Lombard, 1971, p. 237; A. K. Chattopadhyay, 1977,
pp. 42, 45, 53; P. H. Colomb, 1873, pp. 101-102; H. R. Dickson, 1941, p. 502, sobre as atitudes dos
árabes concernentes ao tratamento dos escravos domésticos; e D. C. Philliot e R. F. Azoo, 1906-1907,
pp. 431, 434, sobre os manifestos preconceitos dirigidos aos africanos no Hadramrawt. Sobre os ilês de
Negrais, na foz do rio Bassein, na baixa Birmânia, um estabelecimento criado pelo governo do Forte
Sait-George, na Índia, onde reinava,em razão da postura inexível e perversa do seu superintendente,
um clima de permanente ebulição. “Os escravos cafres, os quais haviam sido introduzidos para o cultivo
da terra, levantaram-se contra os seus senhores e, dominando os barcos pertencentes à ilha, lograram
fugir” (M. Symes, 1800, p. 10).
884
África do século XIX à década de 1880
nos sistemas escravagistas das Américas. Era inconcebível que um africano,
escravo ou liberto, pudesse ser aceito no sistema parental do seu mestre.
Os africanos eram mantidos em grupos étnicos separados, nos quais a repro-
dução natural era completada por um constante recrutamento”. Formidáveis
barreiras sociais eram erguidas para impedir a sua introdução no principal corpo
societário. Não somente eles não eram assimilados, mas, inclusive, eram manti-
dos à distância unicamente em função da sua condição escrava, a estigmatizar-
lhes”
23
.
Nos vales e cidades da Arábia do Sudeste, ainda nos dias atuais grupos
populacionais muito diversos de origem africana: Akhdam, Subyan, Hudjūr e
Gabart
24
. Eles dedicam-se à maioria dos ofícios inferiores, como lixeiros e var-
redores, julgados aviltantes e impuros pelos habitantes árabes. Eles eram prati-
camente considerados párias e viam-se obrigados a viver em bairros separados.
Os peregrinos africanos pobres do Hedjāz não tinham absolutamente melhor
sorte. Os relatos destes homens os apresentam, em sua maioria, amontoados em
miseráveis barracos de “El Menakh”, na cidade santa de Medina
25
. Caso dermos
crédito a H. R. Dickson
26
, nenhum árabe digno de si teria esposado uma escrava
liberta. Isso equivaleria a sujar a honra e o sangue dos seus. Numerosos sidi
viviam na cidade indiana de Bombaim, onde possuíam o seu próprio bairro, nos
arredores da prisão municipal
27
. Os escravos da Companhia Inglesa das Índias
Orientais, na ilha de Sumatra, eram forçados a habitar em um pequeno vilarejo
à beira-mar separado das moradias malaias e do forte
28
”.
É interessante notar que estas comunidades díspares da diáspora africana
eram bem organizadas e conservavam vivas as suas próprias tradições nacionais.
J. S. Hurgronje observa que os núbios da Meca não eram muçulmanos senão
23 Conferir a análise de M. I. Finley, 1976.
24 R. B. Serjeant, 1966, pp. 28-33.
25 J. L. Burckhardt, 1829, p. 382.
26 H. R. Dickson, 1941, p. 503.
27 e Gazetter of Bombay City and Island, Bombay, 1910, II, p. 262. O termo “sidis”, em inglês da Índia,
designa africanos e etíopes (NT).
28 J. Bastin, 1977, p. 43. No Império Britânico da Índias, o possuidor de escravos tinha, legalmente, a inte-
gral propriedade do seu bem. Julgava-se totalmente legítimo buscar recuperar os escravos em fuga. Era
ilegal, para todo indivíduo, “Conceder asilo a estes fugitivos, assim como aceitar, com conhecimento de
causa, um bem roubado”. O escravo que fugisse era passível de castigo − em geral, o agelo. Numerosos
anúncios eram publicados na imprensa da época, oferecendo recompensas a quem recapturasse escravos
em fuga, advertindo contra o possível emprego do escravo em questão. Conferir A. K. Chattopadhyay,
1977, p. 57. Na Idade Média, os casos de escravos fugitivos eram recorrentes e remontavam, tanto quanto
se pode saber com segurança, ao Iraque do século X. Para maior detalhamento, consultar C. Pellat, 1953,
pp. 233-234. Para Sumatra, referir-se a J. Bastin, 1977, p. 89.
885
A diáspora africana
 . Serviçal negra e eunuco negro com a criança do seu mestre na Índia Oriental, no século XIX.
[Fonte: J. S. Hurgronje, Mekka in the latter part of the ninettenth century: daily life, customs and learning: the
Muslims of the East-Indian Archipelago, 1970, E. J. Brill, Leyde. Ilustração: © E. J. Brill.]
886
África do século XIX à década de 1880
superficialmente, falavam pouco o árabe e “fazem a festa de quinta-feira após o
almoço até sexta-feira pela manhã, entregando-se aos prazeres da música, dos
cantos e danças típicos do seu país. Cada uma destas comunidades negras tem
o seu próprio xeque, a quem cabe promover a justiça, e um subalterno, armado
com um bastão, mantido ao seu lado para executar as sentenças
29
”.
A diáspora na Europa
Embora a diáspora africana essencialmente explique-se pela matriz do tráfico
de escravos, muito amiúde, africanos abriram um caminho fora dos limites áfri-
cos, como homens livres, independentemente do tráfico, ou, em uma nova etapa
da sua existência, posterior a um período de escravidão nas Américas. De fato, a
presença dos africanos na Europa Ocidental remontava à Antiguidade Clássica,
conquanto o seu número somente se tenha sensivelmente elevado, a partir do
século XV, quando os africanos negros surgiram, primeiramente como escravos
e, posteriormente, como libertos, no Sul da Espanha e de Portugal, onde che-
garam, sobretudo, através do tráfico transaariano em direção à África do Norte.
Em seguida, quando começou a se abrir a rota comercial marítima direta com a
Europa, na segunda metade do século, os africanos estiveram progressivamente
em maior número na Europa
30
.
Muitos dentre eles foram escravos em um primeiro momento, sobretudo
em Portugal, país este que, aproximadamente na metade do século XVII, era a
única potência europeia substancialmente dedicada ao tráfico de escravos. Após
certo tempo, contudo, numerosos dentre eles abriram um caminho na sociedade
europeia, embora isso acontecesse no mais baixo escalão da hierarquia social,
pois que a sua condição assemelhava-se àquela dos seus irmãos africanos, sobre
os quais recaía a maior parte do labor físico executado nas colônias tropicais. O
seu estatuto jurídico era igualmente ambíguo. No conjunto da Europa do Norte,
a lei não mais reconhecia a condição escrava, conquanto a aceitasse em suas
colônias. Após 1685, a residência na França supostamente conferiria a liberdade,
tal qual na Inglaterra, após o decreto legal, antes mencionado e assinado pelo
lorde Mansfield em 1772. Todavia, nestes dois países, os escravos vindos das
colônias eram sempre, em muitos casos invariavelmente, escravos de fato, até o
momento em que as potências europeias aboliriam a escravatura nas próprias
29 J. S. Hurgronje, 1970, pp. 11-12. Igualmente conferir M. B. Hashim, 1350 de l’hégire, pp. 42-43.
30 A. C. de C. M. Saunders, 1982.
887
A diáspora africana
colônias, em 1834, no tocante à Grã-Bretanha, no ano 1848, para a França, e
em 1888, no caso do Brasil.
Em que pese toda a ambiguidade deste estatuto jurídico, havia ainda um
considerável número de africanos livres no conjunto da Europa do Oeste, ao
menos a partir da metade do século XVIII. As estimativas são variáveis, porém,
aproximadamente em 1800, certamente deles havia alguns milhares por país, na
Espanha, em Portugal, na França e na Grã-Bretanha; na Espanha e em Por-
tugal, provavelmente houvera maior número no passado. De todo modo, estes
efetivos eram fracos, relativamente ao total das populações europeias; entretanto,
os imigrantes africanos tendencialmente concentravam-se nas grandes cidades,
especialmente as portuárias, de forma que a sua presença era mais notável que
a impressão proporcionada pelos números
31
. Obviamente, em qualquer época
anterior aos anos 1840, era possível encontrar muito mais indivíduos originários
da África Tropical na Europa, comparativamente aos europeus estabelecidos na
África Tropical.
Esta comunidade de africanos na Europa exercia igualmente as suas ativi-
dades em determinadas funções, especialmente o serviço doméstico, em parte
porque se tratava de uma das tradicionais ocupações dos africanos vindos das
Antilhas, onde eram escravos, e também por outro lado devido à inclinação dos
europeus pelos serviçais exóticos. As frotas mercantis igualmente contavam, à
época, com numerosos marinheiros africanos, embora marcassem maior pre-
sença em Portugal, comparativamente à França e Grã-Bretanha. Outro grupo
notável, embora menor, era formado pelos estudantes, os quais começaram a
chegar em número relativamente importante à Europa, a partir de meados do
século XVIII, e cujos efetivos cresceram ao longo de todo o século XIX. Em uma
época na qual as relações comerciais entre a Europa e a África intensificavam-
se progressivamente, era notoriamente necessário para os negociantes africanos
saberem ler e escrever uma língua europeia e possuírem algumas noções sobre
os sistemas europeus de contabilidade. Muitos destes estudantes chegavam
portanto através dos bons ofícios dos mercadores de escravos europeus e estu-
davam sob a sua proteção nos principais portos do tráfico, tais como Liverpool
ou Nantes.
Outra particularidade das comunidades africanas na Europa corresponde a
serem elas compostas, quase exclusivamente, por homens, fato de importantes conse-
quências. A comunidade africana o se renovava por si mesma. O seu efetivo seria
31 P. D. Curtin (org.), 1967, em particular pp. 3-16; W. Rodney, 1975; W. B. Cohen, 1980, especialmente
pp. 110-152.
888
África do século XIX à década de 1880
e era constantemente mantido com a chegada de novos imigrantes. Esta situação
o significa que os africanos o mantivessem relações sexuais com mulheres euro-
peias; entretanto, o fruto destas relações tendia a se agregar à cultura europeia, muito
mais que à africana. As algumas gerações, os tros físicos africanos tinham uma
inclinação a fundirem-se na massa do patrimônio genético europeu.
Outrossim, alguns africanos infiltraram-se até a Europa Oriental, conquanto
as ligações marítimas com a África nesta região fossem muito menos intensas. A
principal rota era o tráfico otomano de escravos, no qual os africanos do Norte
não eram os únicos concernidos, pois que ela incluía africanos subsaarianos,
conduzidos através do Saara até os portos associados ao Império Otomano,
a exemplo de Trípoli, ou trazidos do atual Sudão Meridional, rumo ao Norte,
descendo o Nilo
32
.
Em alguns raros casos, pequenos bolsões de cultura africana mantiveram-se
em algumas localidades do Império Otomano, até o século XX: podemos citar,
notadamente, uma pequena comunidade de língua haussa ainda existente na
ex-Iugoslávia.
A diáspora africana nas Américas:
situação geral no século XIX
A diáspora africana foi muito mais importante nas Américas que na Europa
e na Ásia. No início do século XIX, a população afro-americana total, livre e
assujeitada, correspondia a cerca de 8,5 milhões de pessoas. Deste total, mais
de 2 milhões, ou seja, aproximadamente 25%, viviam nos Estados Unidos da
América do Norte, a sua grande maioria nos “Estados escravocratas” às margens
do Atlântico, do Delaware até a Flórida, com pequenas concentrações repar-
tidas em todos os Estados setentrionais e do interior, ao Leste do Mississipi,
especialmente nas grandes cidades, como Nova Iorque, Boston e Filadélfia. Em
1810, havia cerca de 2 milhões de africanos e afro-americanos nas ilhas do mar
das Antilhas. Pouco acima de um milhão encontrava-se nas ilhas das Antilhas
inglesas: Jamaica, Saint-Christophe, Antígua, Nevis, Anguilla, Sainte-Lucie,
Saint-Vicent, Barbados, Granada e Trinidad. Aproximadamente 450.000 viviam
no Haiti, a antiga e florescente colônia francesa de Santo Domingo, produtora
de açúcar. Cuba comportava 400.000 e Porto Rico 280.000. O Brasil abrigava
32 E. R. Toledano, 1982.
889
A diáspora africana
2,5 milhões e a América espanhola continental um total combinado de 1,3
milhão. A maioria dos afro-americanos de Porto Rico era liberta, assim como
grande parte dos 400.000 residentes no México, dos 400.000 estabelecidos na
Venezuela, dos 200.000 habitantes na Colômbia, dos 50.000 do Equador, dos
30.000 do Chile e dos 30.000 locados na Argentina
33
.
A situação geral na qual se encontrava a população africana e afro-americana,
no século XIX, dependia consequentemente de múltiplos fatores. Um dentre estes
consistia na relativa importância da população não branca. Outro era o número
de escravos proporcionalmente aos libertos. As características do tráfico, a gênese
de cada colônia e as transformações socioeconômicas advindas com o passar do
tempo, igualmente influenciaram a situação dos negros nas Américas. Esta influ-
ência era muito variável em todo o Novo Mundo, o devendo ser considerada
como um vetor único e estável em todas as colônias e regiões. A sociedade afro-
americana modelou-se sempre em função das condições locais, embora seja possí-
vel discernir, dos Estados Unidos da América do Norte ao Brasil, esquemas sociais
que ilustrem uma uniformidade ou uma similaridade fundamentais
34
.
As divisões essenciais da sociedade e da cultura afro-americanas originaram-
se em menor grau nas fronteiras coloniais, influentes na evolução das sociedades
americanas, comparativamente à influência das circunstâncias fortuitas do lugar,
da exploração agrícola e das estruturas socioeconômicas. Em todo o continente
americano, os africanos escravos ou libertos que viviam e trabalhavam nas
cidades, aparentemente, beneficiavam-se de mais amplos contatos e tinham
maiores oportunidades de ascensão social e maiores possibilidades de alcança-
rem a liberdade, comparativamente àqueles cujos indivíduos compunham gran-
des grupos de trabalho, nas plantações, fazendas e usinas de cana-de-açúcar. Esta
generalização aparentava ser válida além das divisões coloniais convencionais.
Por outro lado, salvo nos Estados Unidos da América do Norte, a expectativa de
vida dos escravos era muito inferior àquela da população livre, o que significava
que todas as sociedades escravagistas americanas estabelecidas ao Sul do Rio
Bravo (denominado Rio Grande nos Estados Unidos da América do Norte)
computavam um declínio em termos absolutos da população assujeitada, no seio
do setor não liberto
35
.
33 Os números populacionais, arredondados e ajustados em alguns casos, foram extraídos de J. H. Franklin,
1969, pp. 120, 145-149, 171, 174, 186; F. Tannembaum, 1946, pp. 8-14; R. Conrad, 1972, p. 283; D.
Lombardi, 1971a, p. 35; P. D. Curtin, 1969, p. 22; G. Aguirre Beltran, 1972, pp. 233-234; F. P. Bowser,
1974, p. 333; D. W. Cohen e J. P. Greene (org.), 1972, pp. 4, 10, 14.
34 M. Harris, 1964; H. Hoetink, 1973; R. B. Toplin (org.), 1974, 1981; P. Villiers, 1982.
35 P. D. Curtin, 1969; S. L. Engerman e E. D. Genovese (org.), 1975.
890
África do século XIX à década de 1880
Os latino-americanos tinham maior experiência que os seus homólogos colo-
nos da América francesa ou britânica, no concernente à instituição da escravidão
e dos seus efeitos sociais. Independentemente da sua experiência nos confins
ibéricos, os colonos espanhóis e portugueses utilizaram o africano como escravo
durante mais de cem anos antes da criação, pelos ingleses e franceses, das suas
colônias escravistas em Barbados, na Jamaica, em Plymouth, na Virgínia, na
Carolina, na Louisiana e em Santo Domingo
36
.
Contudo, no início do século XIX, os regimes escravistas do continente
americano apresentavam entre si diferenças de grau, muito mais que distinções
fundamentais de natureza. Em todos estes regimes, a libertação do escravo era
relativamente rara, as mulheres dispunham de um tratamento legal mais favorável
que os homens, a integridade familiar permanecia frágil, assim como a cor e a
origem constituíam fatores dominantes no tocante às considerações estatutárias.
Teríamos uma ideia do triste destino ao qual, por via de regra, foi submetida a
população afro-americana, durante os séculos da sua existência nas Américas, caso
considerássemos que o efetivo total de 8,5 milhões de africanos e afro-americanos
habitantes do Novo Mundo, no início do século XIX, era provavelmente inferior
ao total de africanos transportados pelo Atlântico a partir do ano 1600
37
.
O Brasil foi o maior importador de africanos. Ao longo de todo o período
de tráfico negreiro, este país recebeu cerca de 38% do efetivo total de africa-
nos introduzidos no Novo Mundo. A região, a qual atualmente compreende
a América Latina e as Antilhas, absorveu ao total 86% do tráfico de escravos,
cabendo às ilhas do mar das Antilhas receberem 36%. Porém, não se pode for-
mular uma opinião sobre a história dos africanos no Novo Mundo unicamente
considerando números absolutos do tráfico, como se estivéssemos lidando com
algum carregamento de produtos a granel descarregado em diversos Estados
das Américas. Melhor avaliaríamos as repercussões, maiores ou menores, da
presença dos africanos e das suas possibilidades diversas de desenvolvimento,
caso examinássemos o peso relativo destas regiões, século a século. As variações
de efetivos no ponto inicial do tráfico transatlântico e as flutuações da aceitação
36 L. Hanke, 1970; M. Crahan e F. W. Knight (org), 1979.
37 A estimativa relativa ao número de africanos que chegaram às Américas, através do tráco de escravos,
varia de um mínimo de 3,5 milhões a 25 milhões. P. D. Curtin (org.), 1969, é quem oferece a melhor
imagem global da grandeza deste uxo, sugerindo uma cifra de aproximadamente 10 milhões. Esta
estimativa foi recentemente aumentada de 2 a 3%, com base em dados muito numerosos surgidos após
1969. Consultar J. E. Inikori, 1976a; E. Vila Vilar, 1977; S. L. Engerman e E. D. Genovese (org.), 1975,
pp. 3-128; H. A. Gemery e J. S. Hogendorn (org.), 1979 e, sobretudo P. E. Lovejoy, 1982.
891
A diáspora africana
na outra extremidade, desempenharam um papel determinado nas formações
demográficas e culturais que surgiriam nas Américas, ao final do século XIX.
Anteriormente a 1600, as Américas eram, propriamente ditas, exclusivas dos
ibéricos; os espanhóis e os portugueses dividiam os africanos que chegavam
ao Novo Mundo, aos primeiros coube obterem cerca de 60% do total, ou seja,
125.000
38
. Estes africanos contribuíram para manter a viabilidade da sociedade
quando as novas doenças, introduzidas pelos europeus e africanos, dizimaram as
populações indígenas autóctones, sobretudo nos planaltos do México e do Peru
39
.
Quando se conhece a história ulterior dos africanos no Novo Mundo, é interes-
sante notar que, ao final do século XVI, em geral os africanos consideravam-se
superiores aos indígenas, tratando-os com uma arrogância e uma condescendên-
cia iguais àquelas dos conquistadores espanhóis na América espanhola
40
.
Aproximadamente um milhão e meio de africanos desembarcaram na Amé-
rica durante o século XVII. Deste total, 41% foram ao Brasil, 35% para as
colônias recém-fundadas pelos britânicos, holandeses e franceses (sobretudo
no conjunto da região das Antilhas) e 22% tiveram como destino a América
espanhola. Este período foi marcado pelo início do tráfico negreiro atlântico,
perfeitamente organizado e fortemente alimentado por capitais. O número
médio anual de africanos importados, cujo total fora de apenas 1.800 durante
o século XVI, passou para mais de 17.000. A diminuição da parte relativa aos
espanhóis resultava da recomposição demográfica das populações indígenas do
continente. Entretanto, esta inflexão no setor espanhol era mais que compensada
pela crescente demanda de mão-de-obra, devida à expansão das zonas açucarei-
ras do Nordeste brasileiro e ao desenvolvimento do complexo socioeconômico
açucareiro nas ilhas orientais do mar das Antilhas.
O século XVIII correspondeu ao apogeu da migração dos africanos para as
Américas. As sociedades baseadas no latifúndio agrícola da América e o tráfico
negreiro que satisfazia as suas necessidades em mão-de-obra, atingiram à época
o seu pleno desenvolvimento. Número superior à metade dos africanos vindos
ao Novo Mundo, ao longo de toda a história, nele desembarcaram entre 1700
e 1810. Eles foram talvez mais de seis milhões. Do ponto de vista demográfico,
este provavelmente foi o período de mais profundo impacto recíproco entre a
38 P. D. Curtin, 1969; E. Vila Vilar, 1973, 1977; J. Palacios Preciados, 1973.
39 W. M. Denevan (org.), 1976; E. Wolf, 1959, pp. 194-196; C. Gibson, 1967, pp. 140-159; A. W. Crosby,
1972.
40 J. Lockhart, 1968, pp. 171-198.
892
África do século XIX à década de 1880
África e o vasto mundo, graças aos laços comerciais estabelecidos tanto através
do Oceano Índico, quanto com a Europa e as Américas.
Do conjunto impressionante de africanos importados no século XVIII, a parte
do Brasil foi de 31,3%, ou seja, mais de 1,8 milhão de indivíduos. À sua consorte
das Antilhas britânicas correspondeu 23,2% ou seja, cerca de 1,4 milhão de
escravos −, dos quais mais de 600.000 tiveram como destino a Jamaica, principal
ilha produtora de açúcar. As Antilhas francesas receberam 22,3% do total, mais
de 1,3 milhão de africanos, dos quais cerca de 800.000 em sua principal colônia
produtora, Santo Domingo, a parte ocidental do Haiti. A América espanhola
importou 9,6%, 600.000 escravos, sobretudo dirigidos às ilhas antilhanas de Cuba
e Porto Rico, para as colônias da costa setentrional da América do Sul e rumo ao
interior do Peru, através da região do Rio de la Plata. As Antilhas holandesas e
dinamarquesas importaram 8% do total de africanos, aproximadamente 450.000
indivíduos, e os Estados Unidos da América do Norte os quais, até 1776, englo-
bavam as colônias da América do Norte britânica absorveram cerca de 5,8%,
em outros termos, pouco menos que 400.000 africanos
41
.
T . Importação de escravos de 1700 a 1810
Região
Percentagem
aproximada do
total de africanos*
Número aproximado de
africanos
Brasil 31,3 1.800.000
Antilhas britânicas 23,2 1.400.000
Antilhas francesas 22,3 1.300.000
América espanhola 9,6 600.000
Antilhas holandesas
e dinamarquesas
8,0 450.000
América do Norte
britânica/Estados
Unidos da América
do Norte
5,8 350.000
TOTAL 5.900.000
* O total não é igual a 100 porque os números foram arredondados.
41 Estes números são baseados naqueles de P. D. Curtin, após ajustes, 1969 e 1976.
893
A diáspora africana
Portanto, o século XVIII representou por excelência o período do desenvol-
vimento das sociedades baseadas no latifúndio agrícola, fundado na escravatura
do Novo Mundo. Os exemplos clássicos são as plantações de açúcar, anileira,
cae ervas da região das Antilhas e do Brasil, assim como as florescentes
plantações de algodão do Sul e do sudoeste dos Estados Unidos da América do
Norte, após 1790. Este período foi aquele durante o qual a revolução agrícola
estava em pleno desenvolvimento nas Américas, simultaneamente ao desenvol-
vimento e à estabilização das economias locais de exportação
42
. Além disso, ao
final do século, as sociedades locais haviam atingido um determinado grau de
solidez, segurança e maturidade, as quais influenciariam as suas atitudes e os seus
modos de vida nos últimos anos do século XIX. Estas atitudes determinaram
as tendências para a inclusão ou não inclusão de todos os imigrantes vindos
posteriormente às Américas, estabelecendo definitivamente as características
de todos os grupos nas sociedades locais. Não causa espanto que, no próprio
momento durante o qual as colônias americanas dos europeus quebravam, em
nome da liberdade, os laços que as prendiam à sua metrópole, elas se tenham
dedicado a restringir, rigorosa e progressivamente, a liberdade, as esperanças
e os direitos da população não branca. Seria justamente no século XVIII que
começaria o mais sombrio período de aviltamento e exploração dos africanos
no Novo Mundo
43
.
O período do abolicionismo
Entretanto, em 1810, a situação começara a inexoravelmente evoluir para
a sociedade escravagista americana, cujas instituições pouco a pouco desaba-
riam, tanto interna quanto externamente. A liberdade política que conferia aos
americanos brancos uma maior margem de gestão dos seus próprios assuntos,
o interesse econômico, os sentimentos humanitários e a incompatibilidade com
o colonialismo, estes componentes formavam um curioso amálgama que, ao
se combinar com a sede permanente de liberdade das populações assujeitadas,
finalmente destruiu o sistema escravista americano
44
. A independência política
dos Estados Unidos da América do Norte, após 1776, do Haiti, no ano 1804,
das colônias espanholas do continente, a partir de 1825, e do Brasil, em 1822,
42 R. Davis, 1973.
43 F. W. Knight, 1974; R. B. Toplin (org.), 1974.
44 I. Berlin e R. Homan (org.), 1983.
894
África do século XIX à década de 1880
modificou profundamente, em sua dimensão política, o sistema escravagista e
o tráfico negreiro, repercutindo além do quadro das particularidades de cada
império, colônia ou Estado.
A perda das colônias norte-americanas pela Coroa Britânica, em 1783, e
o término do comércio britânico de escravos, no ano 1808, tiveram profundas
incidências sobre a escravatura e o destino dos africanos. O mais importante e
eficaz fornecedor retirava-se do mercado por iniciativa própria, empreendendo
uma ativa campanha com o objetivo de incitar os outros Estados europeus a
seguirem o seu exemplo. A campanha antiescravista britânica reduziu forte-
mente o número de africanos levados para as Américas no curso do século XIX,
embora o total permaneça impressionante. Até o final do tráfico, em 1870, o seu
perfil permaneceu o mesmo que prevalecia em seus primórdios
45
. As colônias
espanholas e portuguesas voltaram a ser os principais importadores. De um total
de quase dois milhões de africanos que pisaram no Novo Mundo no transcorrer
deste período, mais de 1,1 milhão ou 60% foram para o Brasil. Mais de 600.000,
aproximadamente 31,9%, desembarcaram nas Antilhas espanholas, majoritaria-
mente em Cuba. Os demais foram para as Antilhas francesas e apenas alguns
se dirigiram aos Estados Unidos da América do Norte.
O tráfico transatlântico de escravos e, por conseguinte, a migração dos afri-
canos respondia às crescentes demandas por mão-de-obra, com vistas ao desen-
volvimento do potencial agrícola das terras recém-descobertas e igualmente
explicavam-se em razão da possibilidade em se obter africanos na África
46
.
A maioria dos africanos que chegaram às Américas foi portanto utilizada em
complexos latifundiários agrícolas.
Contudo, haja vista a diversificão dos sistemas agrícolas, os fatores de
desenvolvimento das relações sociais, mediante as quais seria moldada a cul-
tura americana própria aos africanos, igualmente variavam. Por conseguinte,
de parte a outra das Américas, o amálgama cultural ocorreu segundo os mais
diversos modos.
Este fenômeno é certamente visível no tocante à evolução do culto de
Xangô, provavelmente a mais difundida variante da religião africana no Novo
Mundo
47
. Embora jamais houvesse dúvida que este culto seria originário da
Nigéria, mais precisamente junto aos iorus, Xangô tomou formas muito
45 H. Hoetik, 1979, pp. 20-40.
46 H. S. Klein, 1978, pp. 239-245; S. Miers e I. Kopyto (org.), 1977, pp. 3-78.
47 W. R. Bascom, 1972; R. G. Hamilton, 1970; M. Schuler, 1980, pp. 30-44; G. E. Simpson, 1978, pp.
75-82 e 190-192.
895
A diáspora africana
diversificadas segundo o lugar onde o seu culto era praticado, em Cuba, Trini-
dad, Haiti ou no Brasil. Especificamente em Cuba, o culto foi profundamente
catolicizado e o Xangô africano, em sua origem masculino, tornou-se femi-
nino, ao passo que outras formas do ritual, assim como do simbolismo, eram
transpostas e transformadas em algumas regiões. O que ocorreu em relação ao
culto de Xangô igualmente atingiu outros aspectos da vida e da organização
das comunidades. Tornou-se progressivamente mais difícil para os africanos,
quão numerosos fossem eles, conservarem no Novo Mundo as suas formas
sociais originais, em razão do estabelecimento de uma estrutura, estabilizada no
início do culo XIX, da qual eles foram obrigados a fazer parte, consentindo
o necessário esforço de adaptação.
Os africanos vindos ao Novo Mundo, no século XIX, não podiam escapar da
realidade, segundo a qual, simultaneamente à sua influência sempre por eles
exercida sobre as formas de transmissão cultural, eles próprios sofreram, em
larga medida, as repercussões das profundas transformações que a escravatura e
o tráfico negreiro haviam suscitado na África, na América e na Europa. Estas
transformações tinham, naturalmente e por sua vez, efeitos na cultura destas
três regiões, contribuindo para uma distinção e uma discriminação mais nítida
da cultura específica de cada região
48
.
Evidentemente, um aspecto desta realidade consistia na extrema diversidade
de situações nas quais podia encontrar-se um africano no momento da sua che-
gada. Nas Antilhas, os africanos compunham a maioria da população, portanto
o fenótipo era negro. Nos Estados Unidos da América do Norte, em contra-
partida, os fenótipos negros eram minoritários em meio à população nacional,
qualquer fosse a sua concentração nos diversos Estados. Em muitas regiões da
América Latina, notadamente no Equador, Chile e na Argentina, os negros
se haviam, por assim dizer, geneticamente dissolvidos nos grupos indígenas
americanos e junto aos europeus, estado de coisas que derivou em uma grande
variedade de miscigenações biológicas
49
.
Por outro lado, a evolução demográfica das diferentes regiões não seguiu
a lógica da participação no tráfico transatlântico dos negros. O componente
afro-americano das sociedades americanas não necessariamente correspondia
à proporção de africanos importados ao longo dos séculos de tráfico. O Brasil,
por exemplo, importou cerca de quatro milhões de escravos durante o período
do tráfico, número que representa, como observamos, aproximadamente 38% do
48 H. L. Shapiro, 1953.
49 G. R. Andrews, 1980.
896
África do século XIX à década de 1880
tráfico transatlântico
50
. Em 1890, momento da abolição da escravatura, este país
possuía uma população afro-americana de cerca de quatro milhões de pessoas,
representando 33% da população brasileira local e por volta de 36% do total da
população afro-americana no continente. A região das Antilhas importou cinco
milhões de escravos, aproximadamente 43% do tráfico; e, no entanto, quando
a última das ilhas a abolir a escravatura, Cuba, o fez em 1886, a região contava
menos de três milhões de afro-americanos, os quais, embora constituíssem 60%
da populão local, não representavam senão 18% dos afro-americanos. Os
Estados Unidos da América do Norte receberam, através do tráfico, aproxima-
damente meio milhão de africanos, correspondentes a cerca de 4,5% do tráfico;
mas, quando determinaram o final da escravatura, em 1865, eles tinham uma
população afro-americana de aproximadamente 4,5 milhões de indivíduos. Este
grupo não equivalia senão a 7% da população local, embora representasse 40,5%
do total de afro-americanos do continente.
T . Importações de escravos e populações no século XIX
Região
Escravos
(milhões)
Percentagem
do tráfico
População
afro‑americana
(milhões)
Percentagem da
população Local
Continental
Brasil 4,0 38,0 4,0 (1890) 33,0 36,0
Antilhas 5,0 43,0 2,2 (1886) 60,0 18,0
Estados
Unidos da
América
do Norte
0,5 4,5 4,5 (1865) 7,0 40,5
Os números acima realçam nitidamente as diferenças marcantes, segundo as
regiões, relativas à aptidão das populações negras em se desenvolverem durante
o período do tráfico negreiro e da escravatura. Por via de regra, com exceção
daquelas dos Estados Unidos da América do Norte, as populações afro-ame-
ricanas estiveram estagnadas ou em situação de incapacidade de crescimento
natural. Na América Latina e nas Antilhas, as populações escravas diminuíram
na espantosa proporção de 2 a 4% ao ano, de modo que, no momento da abolição
da escravatura, o total da população assujeitada era muito inferior ao número
50 Números relativos à importação de escravos segundo P. D. Curtin, 1969; populações afro-americanas
extraídas de D. W. Cohen e J. P. Greene (org.), 1972, pp. 4-14.
897
A diáspora africana
total de escravos importados para as colônias, diminuição esta que não poderia
ser compensada pelo crescimento sadio e normal da população livre.
Alguns exemplos ilustram perfeitamente esta tendência geral. Somente no
transcorrer do culo XVIII, a Jamaica importou mais de 600.000 escravos.
Em 1838, momento da abolição da escravatura, a população assujeitada cor-
respondia a menos de 250.000 indivíduos e a população negra total sequer
alcançava 350.000. Santo Domingo importou mais de 800.000 escravos, ao
longo do século XVIII e, no entanto, a população servil não ultrapassava 480.000
indivíduos em 1790, às vésperas da revolução nesta colônia. A população não
branca não alcançava, em seu conjunto, meio milhão de indivíduos. Entre 1810
e 1870, Cuba importou aproximadamente 600.000 escravos africanos. Em 1810,
a população livre não branca atingia cerca de 114.000 indivíduos. Em 1880, a
população escrava era estimada em 200.000 e a população livre não branca em
pouco mais de 269.000.
O brutal declínio das populões de escravos no continente americano
(com exceção do caso dos Estados Unidos da América do Norte) constitui
a acusão de maior gravidade que possa ser formulada contra o escravismo,
dada a sua terrível incapacidade, tanto para criar uma sociedade naturalmente
viável e capaz de se reproduzir por si mesma, quanto para prover, de modo
eficaz e seguro, a mão-de-obra necessária. Em suplemento, as sequelas da
escravatura comprometeram por muito tempo as possibilidades das populações
afro-americanas em ocuparem, de fato, um espaço nas estruturas políticas, eco-
nômicas e sociais dos países onde elas não constituíam a esmagadora maioria
da população.
O impacto da África
Quando, durante o século XIX, os sistemas escravistas americanos se desin-
tegraram, as formas institucionais e as posturas sociais das sociedades estavam,
essencialmente, estabelecidas. De modo geral, as sociedades americanas foram
hostis aos africanos e à cultura africana.
Todavia, a África não poderia deixar de exercer influências sobre numerosos
aspectos da sociedade americana: fenótipo, língua, música, religião, culinária,
artes, agricultura e arquitetura. Em alguns casos, as influências africanas foram
suficientemente fortes e penetrantes para que se constituísse uma autêntica
cultura afro-americana, capaz de concorrer e, por vezes, completar as formas
derivadas da cultura europeia.
898
África do século XIX à década de 1880
Nos Estados Unidos da América do Norte, a estrutura política impunha na
população uma peremptória distinção entre brancos e negros, segundo a qual
todo indivíduo que minimamente tivesse sangue africano nas veias era relegado
à categoria dos negros
51
. Em contrapartida, no restante de todo o continente
prevalecia uma estrutura social com três escalas, correspondentes aos principais
grupos: negros, mulatos e brancos. Como as pessoas de raça branca, ocupantes
do topo da pirâmide social, eram relativamente pouco numerosas em grande
parte das sociedades, as maiorias africanas não tiveram dificuldade alguma em
impor os seus valores e as suas culturas ao restante da sociedade.
No interior desta estrutura de três níveis, cada casta tinha o seu próprio
sistema de direitos legais e privilégios sociais, assentados em uma combinação
de parâmetros de cor, fortuna e profissão. Nas áreas de economia açucareira e
latifundiária do Brasil, das Antilhas e das planícies do México, da Colômbia e do
Peru, os direitos dos escravos e aqueles das pessoas de cor livres tinham tendên-
cia a serem limitados, em função das exigências gerais do seu trabalho. Nas áreas
cafeeiras e nas regiões de criação de gado e de pesca, do Sudeste do Brasil, de
Porto Rico e do Leste de Cuba, assim como nas províncias do interior da Vene-
zuela e da Argentina, a tendência era para uma maior mobilidade social, para
a redução das distâncias sociais e para diferenciações internas, de classe e casta,
menos rígidas e sistemáticas, comparativamente às zonas de plantação extensiva.
Entretanto, em cidades como Buenos Aires, Lima, São Paulo, Caracas, Havana,
Vera Cruz, Puebla e México, os africanos gozavam, em ampla medida, de uma
ausência de obstáculos e podiam frequentemente postular certos empregos, do
mesmo modo que outros membros livres da sociedade. Estas disposições sociais
influenciaram mas não determinariam as relações entre os afro-americanos e o
restante da população, ao final do século XIX e durante o século XX.
Durante todo o período de escravatura, a maioria dos africanos e afro-ame-
ricanos foi utilizada quer seja como trabalhadores agrícolas ou na função de
domésticos. Porém, 20% desta população exerceu a profissão de marinheiros,
salgadores, artesãos, arreeiros, babás, amas-de-leite, negociantes, proprietários
(inclusive de escravos), comerciantes, mestres mineiros ou açucareiros, peixeiros,
vendedores de condimentos e alimentos. Com efeito, por exemplo, ao final do
século XVIII, Edward Long deplorava que, na Jamaica, o dinheiro estivesse em
grande parte nas mãos desta fração da população e que ela monopolizasse os
meios de transporte, tanto nas regiões interioranas quanto ao longo do litoral
52
.
51 L. Foner, 1970; W. Jordan, 1968; P. Mason, 1970.
52 E. Long, 1774.
899
A diáspora africana
Esta situação em nada mudou após a abolição da escravatura, embora o
número de camponeses, agricultores de ascendência africana, tenha fortemente
aumentado nas Antilhas. A atividade exercida e a herança biológica podiam
aumentar, e efetivamente fizeram-no, a mobilidade de classe e de casta, durante
e após a escravatura. Um indivíduo ou uma família podia abrir caminhos fora
da servidão e, frequentemente, melhorar a sua condição social em liberdade
ou, ainda, passar da condição de negro para aquela de mulato (especialmente
no Brasil e na América espanhola) ou, até mesmo, da condição de mulato para
aquela de branco (feito excepcional que exigia muito dinheiro), quando os sinais
distintivos da raça eram mais fortemente culturais que biológicos. Ao final do
século XVIII, alguns plantadores e comerciantes hispano-americanos, incertos
acerca do seu estatuto, compraram da Coroa certificados chamados de limpieza
de sangre, os quais garantiam que eles não possuíam nenhum traço de sangue
mouro ou judeu desde, ao menos, quatro gerações. Em última instância, todavia,
a mobilidade social interna e a qualidade geral de vida dependiam do contexto
imediato da comunidade: fatores demográficos, econômicos e jurídicos, filosofia
política e social, bem como grau de pluralismo cultural. Tanto menos estável e
madura fosse a sociedade, tanto mais os africanos e afro-americanos influen-
ciariam a sua estrutura e conquistariam um espaço para si mesmos e para os
seus descendentes.
Quando lhes era possível caso não lhes restasse outro recurso −, os africanos
e afro-americanos adaptavam-se às condições nas quais se encontravam. Em um
ambiente de simbiose cultural, a contribuição dos africanos era ao menos igual
àquela que eles aceitavam do restante da sociedade. Evidentemente, tanto mais
estavam eles desmunidos e abandonados à sua própria sorte, maior era o estímulo
à sua criatividade, como revelam os patoás falados nas antigas ilhas francesas do
Leste antilhano e o papiamento das antigas Antilhas holandesas. A criatividade
tornava-se particularmente necessária quando um pequeno número de europeus
vivia em meio a um grande número de africanos, a exemplo de muitas colônias
de exploração, como a Jamaica, Barbados, Trinidad e Santo Domingo. Quando
a população europeia não atingia uma determinada massa crítica, os africanos
eram levados a construir uma sociedade a partir de uma coletividade heteróclita,
cujos indivíduos nada possuíam em comum senão a cor da sua pele e a sua
servidão. A adoção dos seus costumes e do seu comportamento pela fração não
africana da população indica a medida do seu sucesso.
Os africanos nem sempre se acomodaram à sociedade na qual se encon-
travam introduzidos. Durante séculos, a marronnage, em outros termos, a
900
África do século XIX à década de 1880
fuga de escravos, foi parte integrante do universo escravista
53
. No Nordeste
do Brasil, o exemplo foi o Quilombo dos Palmares, com quase um culo de
durão e cujo aniquilamento exigiu o recurso à mais potente força militar
jamais reunida na América, pelos portugueses e brasileiros. Cidades de escra-
vos marrons existiram, durante períodos igualmente duradouros, na província
de Esmeraldas, no Equador, e em algumas partes das Blue Mountains e da
Cockpit Country, na Jamaica. A marronnage não somente indicava um desejo
de ser livre; ela era uma eloquente e visível condenação do sistema escravocrata
pelos africanos.
Quando a escravização dos africanos foi abolida em toda a América, a situ-
ação da fração africana da população dramaticamente piorou, relativamente ao
que fora um século antes. A reconstrução política e econômica subsequente à
guerra de Secessão nos Estados Unidos da América do Norte foi acompanhada
de um movimento de discriminação legalizado e de exclusão econômica e social
da população não branca, caracterizado pela existência de instituições separadas,
linchamentos, sociedades e organizações abertamente racistas, as quais perdu-
raram até meados do século XX
54
. A condição dos negros americanos era então,
em seu conjunto, comparável àquela que conheceram, até recentemente e em
grau mais extremo, os negros da África do Sul.
Nos Estados Unidos da América do Norte, os afro-americanos compunham
uma pequena minoria quase impotente em matéria política. No Haiti, contraria-
mente, eles tomaram o comando do Estado a partir da revolução de 1789 e, ao
longo de todo o século XIX, o renascimento da cultura africana tornou-se o mais
sólido cimento social, unificando este país empobrecido e isolado, como prova,
por exemplo, o culto sincrético do vodu. Alhures, como em Cuba, Barbados, na
Jamaica e no Brasil, um pequeno número de afro-americanos atingiu posições
que conferia prestígio social e poder político aos seus membros. As guerras civis,
duradouras, árduas e difíceis travadas em Cuba, entre 1868 e 1898, transforma-
ram alguns afro-cubanos em heróis nacionais e figuras internacionais da luta
pela independência política, à imagem de Antonio Maceo e Maximo Gomez.
Entretanto, em 1912, Cuba ainda permanecia rasgada por uma guerra racial e a
hostilidade relativa aos afro-cubanos não seria desarmada senão após a revolução
castrista de 1959.
As realizões individuais e coletivas dos afro-americanos foram notáveis,
no decorrer do século XIX. Malgrado as vias divergentes seguidas pela África
53 Y. Debbasch, 1961-1962, pp. 1-112, 1962; M. Schuler, 1970; R. Price, 1973.
54 G. Myrdal, 1944.
901
A diáspora africana
e pelas Américas, apesar da monumental incapacidade da qual padeciam nos
planos jurídico e social, mesmo com as suas enormes desvantagens eco-
micas, em que pese o agressivo antagonismo dos americanos de ra branca,
os africanos lograram com sucesso criar comunidades em toda a extensão do
continente americano. Eles fundaram instituições educacionais, a exemplo
dos cogios Mico na Antígua e na Jamaica, do Cogio Codrington, em
Barbados, assim como de alguns cogios universirios nos Estados Unidos
da América do Norte: Virginia Union University (1864), Atlanta University
e Fisk University (1865), o Hampton Insitute e Howard University em 1867.
Afro-americanos desempenharam um papel importante no âmbito da inova-
ção tecnológica norte-americana. Benjamin Banneker, matemático e editor
de almanaques, nativo de Maryland, ajudou a criar o distrito de Colum-
bia. Entre 1835 e 1836, Henry Blair, escravo de Maryland, patenteou duas
moendas para milho. Durante os anos 1850, Benjamin Montgomery, escravo
pertencente a Jefferson Davis, presidente dos Estados Confederados do Sul,
inventou uma lice para barcos. Norbert Rilleux, nascido em Nova Orle-
ans e formado em Paris, em 1846 inventou a cuba para evaporão a cuo,
geradora de consideráveis progressos nos métodos de refino de úcar. Em
1852, Elijah McKoy inventou um sistema que permitia lubrificar máquinas
em estado de funcionamento. Jan Matzeliger, nascido na Guiana holandesa,
inventou a máquina que revolucionaria de modo duradouro a indústria do
calçado, na Nova Inglaterra. George Washington Carver, químico-agrônomo
do Tuskegee Institute, inventou mais de 300 produtos derivados do amen-
doim, conferindo novo vigor à economia agrícola de numerosas reges do
Sul norte-americano
55
.
A diáspora foi uma cruel e difícil experiência para os africanos transferidos.
Arrancados do seu ambiente e transportados para terras estrangeiras, submeti-
dos à mais penosa servidão e, muito amiúde, inseridos em meio a uma população
hostil, estes africanos provaram possuir uma paciência, uma perseverança, uma
capacidade de adaptação e uma criatividade heróicas. Em suma, eles tornaram-
se, por força das circunstâncias, parte integrante da maioria das sociedades
americanas. Atravessando guerras civis e internacionais, em períodos prósperos
ou de crise econômica, em meio a todo tipo de mudanças políticas, os africanos
trabalharam, combateram e, finalmente, conquistaram um espaço no seio das
diferentes nações que compõem as Américas e a Europa.
55 J. H. Franklin, 1969, p. 197.
902
África do século XIX à década de 1880
 . Toussaint Louverture, líder da revolução de Santo-Domingo e patrono da independência do
Haiti. [Fonte: gravura de Rainsford. Foto: Harlingue-Viollet, Paris.]
903
A diáspora africana
A diáspora e a África
Entrementes, o pensamento africano permaneceu um tema constante, man-
tido com maior ou menor aplicação por americanos, brancos e negros. Nos
Estados Unidos da América do Norte, a ideia da repatriação dos africanos
fora eventualmente emitida, ao longo de todo o século XVIII e, especialmente,
em 1777, quando Thomas Jefferson assumiu a defesa de um relatório sobre a
questão perante uma comissão do corpo legislativo da Virgínia. Porém,o seria
senão a partir de 1815 que efetivamente iniciar-se-ia o repatriamento, quando
um pequeno grupo de 38 americanos negros retornou à África conduzido por
Paul Cuffe. Em 1830, sob o impulso da American Colonization Society e com
o apoio financeiro do Estado Federal e dos governos de numerosos Estados
da União, a Libéria tornar-se-ia o espaço para uma colônia geral de africanos
repatriados, antigos escravos em sua maioria. Em 1860, somente cerca de 15.000
indivíduos haviam retornado à África. Após a Guerra de Secessão, a despeito
da rápida deterioração das condições de vida dos afro-americanos nos Estados
Unidos da América do Norte, sequer 2.000 fizeram a viagem.
Houve ainda duas outras correntes migrarias de retorno. A primeira era
composta de um mero desconhecido de escravos marrons e de africanos
retirados dos navios negreiros confiscados durante o culo XIX, os quais
seriam reembarcados para a África pelos britânicos que tentavam, com muito
zelo, colocar um ponto final no tfico de escravos com vistas a substit-
lo por um “comércio legítimo”. A segunda corrente migratória de africanos
de retorno compreendia um mero ainda menos relevante de missionários
recrutados nas Antilhas e nos Estados da América do Sul, principalmente
pelos irmãos morávios e pelos presbiterianos, para ajudar a evangelizar a África
do Oeste. O exemplo mais conhecido desta política talvez tenha sido a ini-
ciativa de le nos montes Akwapim, em Gana, entre 1830 e 1840, e a sua
decisão, em 1843, de empregar jamaicanos em lugar de missionários alemães
ou suíços, cujo índice de mortalidade revelava-se demasiado elevado para que
a evangelizão fosse eficaz.
Enquanto os africanos desembarcados no Novo Mundo são contados aos
milhões, os seus descendentes retornados à África não passariam de alguns
milhares
56
. Existem várias razões para esta disparidade, a menos importante não
era a indubitável falta de meios financeiros que permitissem criar um sistema
56 T. Shick, 1980.
904
África do século XIX à década de 1880
de transporte análogo àquele precedente que facilitava o tráfico transatlântico
de Leste a Oeste. No decorrer do século XIX, o repatriamento oferecia poucas
perspectivas de vantagem material para os europeus e não europeus e, em 1900,
o contraste entre a África e a América do Norte tornara-se demasiado elevado.
Os americanos de descendência africana não estiveram imunes à onda naciona-
lista xenófoba da época que deixava de conferir à África boa parte do seu poder
de atração. Além disso, o interesse suscitado pela África, após o final do tráfico
negreiro, derivava de apetites nacionais por potência e riqueza; ora, os afro-
americanos não possuíam a potência política e tampouco a riqueza necessárias
para estimular o seu próprio interesse ou para influenciar aqueles que estavam
em vias de dividir a África em domínios coloniais. As aspirações afro-americanas
concentraram-se, antes e sobretudo, nas novas perspectivas que eram oferecidas
em seu continente. As migrações internas e inter-regionais, assim como a luta
pela conquista de melhores condições de vida, perante novos e perturbadores
desafios, absorveram a sua atenção. O laço africano tornou-se impreciso embora
não tenha desaparecido. O movimento de retorno à África encontrou promoto-
res individuais que foram capazes, em certos momentos, de insuflar uma nova
vitalidade ao projeto. Em 1897, Henry Sylvester Williams, jurista nascido em
Trinidad e habitante de Londres, fundou a Pan-African Association, cujos mem-
bros posteriormente teriam entre si: George Padmore, Kwame Nkrumah e C.
L. R. James. No curso dos anos 1920, Marcus Garvey fundou a Universal Negro
Improvement Association cujo objetivo consistia em promover a descolonização
da África e unir os africanos de todo o mundo. A organização de Garvey possuía
antenas no Canadá, nos Estados Unidos da América do Norte, nas Antilhas,
na América Latina e na África
57
. Quando esta associação pereceu, em 1927, a
África, muito particularmente em referência à questão etíope, começava a
desempenhar um papel de primeira grandeza nas questões mundiais.
57 T. Martin, 1976; E. D. Cronon, 1962; R. A. Hill (org.), 1983.
C A P Í T U L O 2 9
905
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
Conclusão: a África às vésperas da
conquista europeia
J. F. Ade. Ajayi
Neste último capítulo, nós gostaríamos de lançar luz sobre as grandes cor-
rentes da evolução histórica que conduziu a África ao princípio do último
quarto do século XIX. Tendências estas particularmente originadas no curso
do período 1875-1885, durante o qual acompanhamos o redirecionamento do
interesse suscitado pela África na Europa, com a Conferência de Berlim sobre
a África do Oeste encaminhando uma trajetória que desembocaria na partilha
e, finalmente, na conquista do continente. Um olhar sobre o conjunto da África,
às vésperas da conquista europeia, permite entrever assaz nitidamente, por um
lado, uma tendência dominante que se afirma a despeito do número e da diver-
sidade dos Estados, povos e regiões, e, por outra parte, algumas tendências quiçá
divergentes. Aparentemente, a tendência dominante seria aquela que conduz
os diversos detentores do poder na África a dedicarem-se deliberadamente
ao fortalecimento da sua potência e dos seus meios de defesa dos territórios e
interesses africanos. Estes esforços foram todavia sistematicamente solapados
e, ao final das contas, anulados pela presença europeia.
Tal como demonstraram os sucessivos capítulos deste volume, o século XIX
foi na África um período de rápidas e, por vezes, contraditórias transformações.
Até o terceiro quarto deste século, as mais profundas mudanças, aquelas de
maior amplitude, estiveram ligadas a fatores de ordem interna. Outras mudan-
ças produziram-se em grande parte sob a influência ou mesmo provocadas pela
906
África do século XIX à década de 1880
incidência das atividades dos negociantes, missionários ou cônsules europeus,
primeiramente concentrados nas regiões litorâneas e posteriormente, sobretudo
a partir de 1850, penetrando progressivamente nas regiões interioranas. Algumas
iniciativas transformadoras, à imagem dos esforços realizados pelos soberanos da
Etiópia para unificar o país e reformar as instituições, não tiveram senão alcance
local. Alhures, atividades a exemplo daquelas próprias aos ambiciosos quedivas
do Egito, no vale do Nilo, repercutiram sobre toda uma região. O Mfecane,
fenômeno originalmente local, não tardou a expandir-se, propagando-se em
toda a África Austral e Central, assim como em algumas partes da África do
Leste, com tamanha intensidade que, às vésperas da conquista europeia, a histó-
ria destas regiões correspondia, em larga medida, àquela de Estados que haviam
surgido deste fenômeno ou que haviam sofrido reviravoltas em função dele
1
.
A jihad estendeu os seus movimentos pela reforma islâmica à totalidade do
Sudão e ao Saara Oriental, até a Cirenaica; eles se prolongaram para o Sul, até
os limites da zona das florestas, atingindo a Senegâmbia, as regiões do Volta
e aquelas ocupadas pelos malinquês do Sul, pelos iorubás do Norte e pelas
populações de língua edo. Juntamente com o crescimento da demanda europeia
por óleo de palma, amendoim, marfim, sisal e borracha, e na justa medida que
uma rede interna de rotas comerciais de longa distância permitia responder a
esta demanda, o comércio, do qual dependiam a aquisição de armas de fogo e
a acumulação de riquezas, tornou-se um fator essencial e capaz de determinar
a ascensão e a queda de Estados, em vastas regiões da África. Em decorrência
desta expansão do comércio europeu, bem como das atividades dos missionários
europeus e norte-americanos, o cristianismo e as ideias europeias relativas à
organização social e política tornaram-se igualmente fatores de transformação,
atravessando uma vasta zona estendida de Serra Leoa até a África Austral,
alcançando Madagascar.
O aspecto mais impactante destes diferentes movimentos é o esforço empre-
endido, no século XIX, por grande número de soberanos africanos para reforma-
rem a sua sociedade, em diferentes partes do continente. Algumas dentre as suas
iniciativas tinham como fonte a herança cultural africana; outras eram animadas
pelas ideias reformistas do islã. Na maioria dos casos, os chefes não demonstra-
vam grande inclinação para tirar proveito das possibilidades oferecidas pela nova
dimensão dos intercâmbios comerciais e pelas atividades dos europeus, fossem
estes últimos negociantes, missionários ou caçadores de animais ou concessões.
1 Consultar I. N. Kimambo, capítulo 10 do presente volume.
907
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
Outro traço, igualmente marcante, é o modo através do qual os projetos refor-
mistas dos dirigentes africanos foram sistematicamente solapados pelas próprias
atividades destes comerciantes, missionários e caçadores, das quais os dirigentes
africanos pretendiam tirar proveito.
É espantoso que este aspecto do século XIX africano o esforço interno
por reformas sistematicamente abafado pela intervenção externa tenha até
os nossos dias retido tão pouca atenção. Convencidos que o colonialismo e a
integração ao sistema capitalista mundial representavam as condições necessá-
rias para a modernização, a maioria dos historiadores não percebeu a enorme
vontade de autodesenvolvimento que animava o esforço dos africanos ao longo
deste século e tampouco a qual ponto a conquista europeia e o colonialismo
constituíram uma subversão deste esforço.
As estruturas políticas
A esfera na qual mais fortemente manifestou-se o esforço de autodesenvolvi-
mento talvez tenha sido aquela referente às estruturas políticas e ao poder estatal.
A grande lição que os povos da África Central e do Oeste tiraram do tráfico de
escravos, à época já antiga − justamente esta lição que a África do Leste reteve,
por sua vez, no transcorrer do século XIX −, equivaleu a saber que o meio de
sobreviver ao tráfico, quiçá dele tirar proveito, era reforçar as estruturas e a base
militar do poder de Estado.
Ao início do século XIX, como nós observamos, as estruturas políticas e
econômicas em grande parte da África aparentavam caracterizar-se por certa
fragilidade. Os limites dos sistemas estatais indicavam estarem submetidos a
um perpétuo movimento de fluxo e refluxo e os centros administrativos, por sua
vez, a movimentos alternados de ascensão e queda
2
”. O grau de submissão, as
contribuições materiais e o serviço militar que o Estado exigia do povo em troca
da sua proteção reduziam-se ao estrito necessário. Em grande parte dos casos,
a vida cotidiana dos indivíduos inscrevia-se em larga escala em um tecido de
relações nas quais intervinham os laços de parentesco e as instituições religiosas,
jurídicas e econômicas que, muito amiúde, não se circunscreviam às fronteiras
dos Estados. O Magreb e o Egito eram as únicas regiões onde se haviam de
longa data estabelecido estruturas políticas relativamente duráveis, derivadas de
vários séculos de aplicação da lei islâmica. Invariavelmente, alhures no conti-
2 Consultar, acima, o capítulo 1.
908
África do século XIX à década de 1880
nente, havia no século XIX um enorme esforço para instaurar novas estruturas
políticas, capazes de se manterem por certo tempo. No jogo de intensas rivali-
dades políticas, resultantes destes esforços, algumas dentre as ações foram, sem
sombra de dúvida, ineficazes e, em determinadas localidades, o seu mais nítido
resultado foi a desintegração dos impérios e a descentralização, por vezes frag-
mentação, da autoridade. Como observam J. Ki-Zerbo e K. Arhin no tocante
às regiões voltaicas:
O século XIX acompanhou a generalização da instabilidade política e dos des-
locamentos populacionais; certo número de massacres e movimentos secessionistas
reproduziram-se sob a responsabilidade daqueles, propriamente aqueles, que supos-
tamente deveriam representar a autoridade; embora tenha havido notáveis exceções,
por via de regra, a frequência e a amplitude destes conflitos acentuaram-se; a ten-
dência para o deslocamento das sociedades esteve, indubitavelmente, ligada ao fato
de as potências periféricas e rebeldes terem progressiva possibilidade de adquirirem
armas e delas servirem-se contra os chefes reinantes
3
.
Esta tendência foi especialmente ilustrada pelo impacto inicial do Mfecane
e do comércio, assim como pelo domínio conquistado pelos chokwe e ovimbun-
dus sobre os territórios dos Estados luba e lunda
4
. Muitos Estados e impérios
desapareceram. Porém, ainda mais impactante é o surgimento de novos centros
de poder nos quais eram experimentadas novas estruturas administrativas que
tendiam, com maior frequência: a um fortalecimento dos meios disponíveis
ao soberano; a uma mais nítida definição dos seus poderes; a um mais estrito
controle sobre os dignatários do Estado, os quais deviam a sua condição muito
mais ao príncipe que aos seus direitos hereditários; e finalmente, para um aper-
feiçoamento do sistema fiscal e de outras reformas da mesma ordem
5
.
Alguns historiadores identificaram estes movimentos de reforma com as ati-
vidades de protonacionalistas e fundadores de impérios” africanos, uma espécie
de corrida africana que teria parcialmente provocado ou, ao menos contribuiria,
para explicar a corrida dos europeus
6
. Na realidade, estas atividades reformistas
de modo algum constituíram um acesso febril, comparável à corrida europeia.
A África buscara estruturas políticas mais estáveis ao longo de todo o século
XIX e, inclusive, anteriormente a esta época; o estado de coisas reproduzido
3 K. Arhin e J. Ki-Zerbo, acima no capítulo 25.
4 Consultar acima nos capítulos 4, 5 e 11.
5 Conferir T. C. McCaskie, 1980.
6 Referir-se, por exemplo, a R. Robinson, 1985.
909
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
no continente não era senão o prolongamento de uma tendência constituinte
da evolução geral destes povos. Talvez tenha havido uma aceleração no século
XIX e as mudanças associadas até então à ascensão de Estados como o antigo
Oyo, no século XVII, ou o Ashanti, o Daomé, o Fouta-Djalon, o Fouta Toro e
o Bondu, no século XVIII, generalizar-se-iam muito mais nesta época. Em todo
caso e aparentemente, houve um esforço mais deliberado para institucionalizar
as transformações políticas, inscrevendo-as em estruturas de caráter mais per-
manente e apoiando-se em novos dispositivos militares, econômicos e sociais.
Dentre os principais Estados sobreviventes ao século XVIII, raros seriam
aqueles que alcançariam esta condição sem realizarem grandes reformas internas.
Com efeito, as rivalidades políticas eram de tamanha intensidade e a necessi-
dade de canalizar o desenvolvimento das relações comerciais impunha proble-
mas a tal ponto que cada Estado devia escolher entre um esforço reformista e
expansionista à custa dos seus vizinhos ou as perspectivas da desintegração e
da fragmentação. Reduzidos em seu número foram os Estados que, à imagem
do Benin, puderam sobreviver simplesmente voltando-se para si
7
. A maioria
foi obrigada, a exemplo do Ashanti, do Daomé, do Buganda, entre outros, a
zelar constantemente pela preservação e inclusive pelo aumento da eficácia do
poder − em amplo grau proporcionada pela capacidade do chefe em centralizar
este poder, enfraquecer os seus subordinados e impor crescentes contribuições
a estes últimos; monopolizar os principais recursos econômicos e estratégicos;
instituir uma função pública e hierarquizada na qual as nomeações, as promo-
ções e a disciplina estivessem submetidas ao controle do monarca; e consolidar
estes poderes através da criação e do enquadramento de uma força armada
permanente e comandada por oficiais similarmente submetidos à autoridade do
chefe de Estado. Tratava-se então de uma verdadeira revolução, eventualmente
exitosa e sem aparente mudança do sistema político; em alguns casos, tal como o
Borno, ela não pôde realizar-se sem uma mudança de dinastia
8
. Frequentemente,
esta revolução derivou de um compromisso, novos homens” eram nomeados
à frente de antigas chefaturas conduzidas a respeitarem o estilo burocrático
recém-introduzido na administração ou, ainda, novas funções adotavam par-
cialmente os ritos ligados aos títulos tradicionais.
O Mfecane expandiu e difundiu amplamente o novo modelo de Estado nguni
do Norte, tal como revolucionado por Shaka. O novo Estado equivalia, essen-
cialmente, a uma adaptação do sistema de grupos etários, com vistas a criar uma
7 A. I. Asiwaju, acima no capítulo 26.
8 M. Last, acima no capítulo 22.
910
África do século XIX à década de 1880
força armada quase constantemente em pé-de-guerra que recrutava em todo o
reino jovens homens a mobilizar, além de mulheres como esposas; todos estavam
ao serviço do rei, ao qual pertencia a totalidade dos recursos, inclusive o gado e
a produção agrícola; pois era necessário alimentar a força armada e uma corte
de mais em mais numerosa. O sistema igualmente organizava a aculturação dos
povos conquistados, integrando-os à cultura dominante, além de introduzir uma
concepção totalmente nova das relações entre o soberano e os seus assujeitados
9
.
A personalidade do soberano e a sua capacidade em governar aparentemente
continuavam a desempenhar um papel mais importante, comparativamente às
estruturas de Estado, além deste último, ele próprio, estar muito amiúde rasgado
por conflitos opondo famílias rivais no seio das dinastias reais.
Entretanto, é incontestável que, além das devastações e da confusão geral
pelas quais ele foi inicialmente responsável, o Mfecane logrou criar muitos gran-
des Estados, mais fortes e eficazes que os seus precedentes e assentados sobre
estruturas mais duráveis. Os novos Estados igualmente possuíam fronteiras
mais nítidas, senão porque as exigências por eles impostas aos seus assujeitados
não deixavam dúvida alguma quanto à extensão ou aos limites dos territórios
submetidos à sua autoridade. Em suplemento, o soberano eventualmente podia
valer-se da função suprema na realização de diversos rituais; no entanto, mani-
festa e progressivamente, ele deixava de ser unicamente um chefe religioso. As
suas capacidades de organização e administração, bem como a sua aptidão para
o comando militar, em sua função de chefe do executivo no seio do aparelho de
Estado, tendiam a sobressair em detrimento das considerações de parentesco e
de laços rituais, este estado de coisas não impedia que, em alguns casos, estes
últimos conservassem um importante papel no plano ideológico e na qualidade
de fontes de reconhecida legitimidade.
No caso etíope, o objetivo da reforma não consistia em criar um novo Estado
ou reforçar o Estado existente, mas em fazer reviver um Estado muito ancião, o
antigo império de inspiração cristã copta que, sob a dupla pressão dos oromos
muçulmanos e dos cristãos na Europa, decompusera-se em várias chefaturas
rivais. Os chefes, assim opostos entre si, tinham sempre o mesmo objetivo:
reivindicar pessoalmente e impor a autoridade do imperador; restabelecer a
sua aliança com a Igreja; reformar esta última, dotando-a de novos meios e
utilizando a sua influência para levar as potências rivais, fossem elas cristãs ou
muçulmanas, a renderem fidelidade ao imperador. As tradições históricas do
9 L. D. Ngcongco, acima no capítulo 5.
911
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
império, a quantidade de chefes rivais entre si e as relações de força existentes
entre eles não concediam senão estreita margem de manobra aos imperadores
Tewodros II e Yohannès IV para o restabelecimento do império. Além disso,
inclusive não se podia imaginar o estabelecimento de novas estruturas enquanto
a supremacia militar não estivesse assegurada. A ação sucessiva dos dois impe-
radores foi assaz exitosa, no tocante aos resultados, a ponto de despertar a cons-
ciência nacional; porém, ela se demonstrou insuficiente para monopolizar os
recursos econômicos e estratégicos ou para totalmente reduzir as ambições das
potências vassalas, inclinadas a colaborarem com os inimigos vindos do Egito
pelo Norte ou com os invasores europeus pela costa
10
.
Trata-se, exatamente e em certa medida, desta mesma nostalgia do passado
que encontramos nos esforços realizados pelos quedivas do Egito com o obje-
tivo de transformarem os seus poderes mantidos em uma potente monarquia
hereditária e nacional, estenderem o domínio do Egito no vale do Nilo e, senão
para fazê-la renascer, ao menos para rivalizar com a antiga glória dos faraós ou
com aquela mais recente, do Egito dos califas fatímidas. O objetivo de Muham-
mad Alī era solapar o poder dos mamlūk e dizimá-los, reorganizar a função
pública e os seus conselhos, bem como levar a cabo uma reforma agrária com
uma redistribuição das terras que permitisse fortalecer o controle exercido pelo
soberano sobre as regiões rurais e a agricultura; conjunto de ações que deveria
permitir uma maior extração de recursos deste setor e assim criar os meios para
a constrão de uma economia industrial moderna, para manter uma força
armada e organizada e para se libertar, através da negociação, da tutela otomana.
O quediva Ismā‘īl reacendia e levou adiante este espírito reformista: ele engajou
europeus para dirigirem empresas abolicionistas e comerciais no Sudão, concluiu
a abertura do canal de Suez e construiu outros canais, realizou obras de irrigação,
assim como abriu vias férreas e outras redes de comunicação. O seu objetivo era,
tanto quanto permitisse a tutela otomana, explorada pelas potências europeias
para imporem tratados desiguais que garantiam os seus interesses, adquirir uma
tecnologia europeia que modernizasse as estruturas e as instituições egípcias
11
.
O objetivo declarado dos movimentos da jihad era fazer renascerem as clás-
sicas instituições islâmicas da época dos califas ortodoxos. Na prática, tratava-se
de instaurar Estados islâmicos teocráticos, em lugar das tradicionais sociedades
governadas por muçulmanos e tradicionalistas. Era imperioso levar ao poder
dirigentes escolhidos pelas suas sapiência e piedade, consagrados à gestão dos
10 R. Pankhurst, acima no capítulo 15. Consultar igualmente R. A. Caulkc, 1972.
11 A. Abdel-Malek, acima no capítulo 13.
912
África do século XIX à década de 1880
assuntos do Estado, segundo os preceitos do Alcorão e das leis islâmicas, e
dedicados a estabelecerem instituições autenticamente islâmicas. Durante os
anos 1870, os sucessores dos fundadores de Sokoto haviam em larga medida
alcançado os seus fins. Os emires, atuando sob a autoridade comum do califa,
haviam incontestavelmente logrado estabelecer estruturas políticas mais durá-
veis que aquelas dos reis huassa, anteriormente por eles eliminados. Certamente,
os soberanos e as classes aristocráticas que os rodeavam haviam assimilado boa
parte da nobreza huassa, além de terem retomado para si grande parte dos
privilégios dos feudais e dos príncipes-mercadores. Entretanto, a paz relativa
usufruída pelo califado, o esforço de desenvolvimento dos mercados, indústrias,
artesanato e rotas comercias, os poderes conferidos aos juízes e outros funcio-
nários, bem como o controle exercido pelos emires sobre a função pública eram
fatores relevantes que concorriam para consideravelmente reforçar a autoridade
no seio do Estado.
Ahmadu Sayku, sucessor de al-Hadjdj ‘Umar Tal, pouco após a incorporação
do Macina ao império, foi obrigado a simultaneamente enfrentar rivalidades
dinásticas internas e a hostilidade dos franceses, os quais encorajavam, pela sua
postura, os grupos dissidentes do interior. Malgrado estas dificuldades e obstácu-
los, o império fornecera o quadro geral de um Estado, dotado de princípios jurí-
dicos e estruturas administrativas que consolidavam a unidade das populações
muito diversas que viviam neste vasto território. Inclusive independentemente
das estruturas de Estado, a ordem tijāni introduzia o suporte de uma religião e
de um modo de vida que constituíam um fator suplementar de unidade e fideli-
dade ao soberano. O exemplo da revolução do Dinguiraye incitou muitos chefes
religiosos a levarem a jihad a outras regiões, a fim de nelas substituir os muçul-
manos de tendência secularista e os tradicionalistas, através de clérigos dispostos
a criarem Estados teocráticos islâmicos. Assim sendo, no império desmembrado
do Jolof, os Estado do Kayor e do Jolof, em razão de terem passado para o raio
de influência dos clérigos, dedicaram-se a propagar o islã como fermento para a
reforma na Senegâmbia. Junto aos malinquês do Sul, região na qual os muçul-
manos constituíam uma minoria, Samori Touré, guerreiro juula (dioula) com
passado de negociador, decidiu servir-se do islã para unificar as populações do
seu país, fossem elas inicialmente muçulmanas ou tradicionalistas
12
. Nós assim
descobrimos o islã sendo utilizado com os mesmos fins em Nupe e Ilorin, onde
os soberanos aderiram a esta religião, à sua tradição escrita e ao seu modelo de
12 Y. Person, acima no capítulo 24.
913
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
instituições políticas e sociais, não tão somente porque pretendiam transformar
uma realeza de tipo ritual tradicional em Estado teocrático funcional, mas,
igualmente, em virtude de identificarem no islã um fator de expansão, através
das conversões, junto aos povos não muçulmanos.
O cristianismo respondeu a uma necessidade análoga, fornecendo o quadro
cultural para a criação de uma sociedade crioula a partir de um conjunto díspar de
povos que se haviam fixado em Freetown e nas localidades circunvizinhas, assim
como em diversos estabelecimentos do litoral liberiano ou ainda em Libreville,
Freretown e em outros estabelecimentos de escravos libertos. Em diversos luga-
res, missionários vindos para obterem conversões receberam frequentemente um
caloroso apoio da parte dos soberanos africanos, os quais demonstravam, todavia,
muito zelo pela sua independência e pouca inclinação a permitirem a conversão
do seu povo; porém, aos olhos deste último as atividades dos missionários ofe-
reciam uma possibilidade de acesso à educação europeia: alfabetização e aquisi-
ção de algumas capacidades técnicas, especialmente em matéria de marcenaria,
impressão gráfica e, caso possível, igualmente de fabricação de armas de fogo
e da pólvora para canhão. Os soberanos de Madagascar, a seu turno, tentaram
manter o equilíbrio entre protestantes ingleses e católicos franceses, em seguida,
rejeitaram ambos e ensejaram proibir as suas atividades religiosas e, finalmente,
viram a corte e a elite administrativa tornarem-se protestantes, ao passo que o
catolicismo progredia sensivelmente em algumas das províncias. Os soberanos
desejaram se inspirar nas ideias europeias em matéria de diplomacia, reforma
judicial e reorganização das forças armadas, assim como para estabelecerem
uma monarquia constitucional
13
. De modo semelhante, certo número de novos
Estados da África Austral, a exemplo do reino sotho de Moshoeshoe, os quais
enfrentavam as ações agressivas do nacionalismo branco, aceitaram missionários
como conselheiros e defensores da sua causa vis-à-vis do mundo exterior, eles
os protegeram e inclusive tomaram medidas de ordem legislativa para ajudá-
los em seu trabalho de conversão
14
. Nos Estados fantis da Costa do Ouro e em
alguns importantes centros missionários, especialmente Abeokuta, no Sudoeste
do país Iorubá, alguns chefes africanos, possuidores de uma educação ocidental,
esforçavam-se para tirar proveito da sua instrução e das suas relações na Europa
para introduzirem reformas nas estruturas do Estado tradicional: por exemplo,
criando uma chancelaria dirigida por africanos instruídos, com vistas a regula-
mentar as relações diplomáticas com os europeus e as relações inter-Estados;
13 P. H. Mutibwa, acima no capítulo 16.
14 N. Bhebe, acima no capítulo 7.
914
África do século XIX à década de 1880
reformando os sistemas fiscais para a introdução de impostos regulamentares
destinados a substituírem o tributo ou as taxas; e aperfeiçoando o sistema judi-
cial, graças ao registro dos atos e à introdução de leis escritas
15
.
A organização militar
Em última análise, a solidez das estruturas políticas repousava no aparato
militar. Jamais isso foi tão verdadeiro quanto no século XIX. Até então, os laços
entrecruzados das relações de parentesco e das relações religiosas provavelmente
contavam muito mais que a organização militar. A tal ponto que esta última
consistia em, episodicamente, decretar a mobilização em massa da população
que, ela própria, trazia as armas e provisões com vistas à defesa das localidades,
quando atacadas, situação que se reproduzia somente durante breves períodos,
na estação das secas e nos intervalos da atividade agrícola normal. A armada
tinha maior importância para as relações com os povos vizinhos que para a estru-
tura do poder no próprio seio do Estado. A capacidade de mobilizar tropas era
função do senso político do soberano e, raramente, este último pôde atribuir-se
o monopólio sobre ela. A formação de um corpo de cavalaria teve como efeito
a criação de uma elite na armada e, geralmente, aconteceu simultaneamente à
constituição de uma classe aristocrática que dividia com o soberano o acesso
aos recursos necessários para adquirir e equipar cavalos, recrutar cavaleiros e
abastecer a tropa.
Sabemos atualmente que, até meados do século XIX, o emprego do mosquete
de carregamento pelo canhão ou dos seus derivados (o fuzil Darne, por exem-
plo), quer fossem eles importados ou de fabricação local, não modificou senão
muito pouco o desfecho dos combates e as estruturas de Estado na África. Indu-
bitavelmente ele propiciou às tropas disciplinadas, durante um período, ganha-
rem vantagem sobre adversários que não estivessem habituados ao emprego das
armas de fogo; tal foi o caso de soldados egípcios no Sudão Meridional, ao longo
dos anos 1840. Todavia, os mosquetes em nada eram capazes de enfrentar uma
cavalaria disciplinada, armada de lanças ou flechas envenenadas, haja vista que
os cavaleiros podiam, tão logo lançada a primeira salva de tiros, contra-atacar
os mosqueteiros antes que eles recarregassem os mosquetes. Os impis de Shaka
demonstraram a superioridade da curta lança sagaie, para o combate corpo-
a-corpo, quando ela estava nas mãos de soldados disciplinados. Os guerreiros
15 Consultar A. Pallinder-Law, 1974; igualmente conferir A. A. Boahen, acima no capítulo 3.
915
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
egba de Abeokuta adquiriram armamento europeu, inclusive alguns canhões,
contribuindo para a sua resistência contra as invasões daomeanas; entretanto,
durante os anos 1860, eles não puderam fazer frente aos soldados de Ibadan,
mais disciplinados e combatentes, em sua maioria munidos de um equipamento
de fabricação local. Do mesmo modo, Téwodros, à frente de soldados dotados
de um equipamento leve, venceu em várias ocasiões, através de ataques-surpresa
e de avanços frontais, tropas que possuíam, no entanto, a vantagem de estarem
armadas com mosquetes
16
.
A maior revolução ocorrida na arte da guerra, no século XIX, foi o surgi-
mento do guerreiro profissional. A força das lutas políticas e a frequência das
guerras haviam criado tal situação que um pequeno número de indivíduos per-
manecia constantemente armado; deste modo surgiu o guerreiro profissional,
na qualidade de membro de pleno direito na sociedade. Por via de regra, não
existia armada propriamente permanente. A guerra era, de certo modo, uma
empreitada entre outras ou um aspecto da ação conduzida para a conquista do
poder político e para dispor dos recursos econômicos. O guerreiro era, muito
amiúde, um empreendedor que, após ter acumulado certa fortuna graças aos
negócios, encontrava-se em condições de se juntar aos guerreiros ou de recrutar/
capturar escravos, por ele mobilizados em sua armada privada. Assim preparado,
ele se lançava em busca dos seus interesses; em outros termos, à procura da
conquista do poder político, quer fosse para si próprio ou porque este poder lhe
garantiria uma parte dos recursos econômicos dos quais normalmente dispõe
um Estado. Caso lograsse êxito, ele adquiriria os títulos de uma função que lhe
permitia integrar-se a um sistema político. Por vezes, um soberano, a exemplo
de Moshoeshoe, era ele próprio o empreendedor que melhor alcançava reunir
os meios necessários para formar uma armada de recrutas e clientes; quanto aos
outros empreendedores de menor envergadura, estes não tinham outra escolha
senão aceitarem a integração segundo as condições ditadas pelo soberano
17
.
Shaka foi o protótipo de um rei que se impôs como chefe de guerra. Sozinho,
ele formou os seus regimentos em grupos etários, organizou o seu treinamento
e a sua provisão, fixou as regras disciplinares e decidiu acerca do equipamento
necessário, de modo a constituir um exército profissional. Ele dotou os seus guer-
reiros de novos equipamentos, cuja fabricação, in loco, foi por ele determinada. A
armada tornou-se, deste modo, o principal sustentáculo do Estado. Numerosos
16 Conferir em JAH, 1971, vol. XII, 2 e 4, os artigos concernentes às armas de fogo na África subsaariana,
I e II, 1971. Igualmente referir-se a J. P. Smaldone, 1972, e R. A. Caulk, 1972.
17 B. Awe, 1973; L. D. Ngcongco, acima no capítulo 5.
916
África do século XIX à década de 1880
generais secessionistas levaram consigo uma fração da armada, à qual impuseram
o seu comando; pilharam vastos territórios e, consequentemente, engrossaram as
suas fileiras com novos recrutas durante o percurso; adquiriram gado, mulheres;
e, finalmente, serviram-se das suas tropas para agrupar, sob a sua autoridade,
comunidades muito diversas, constituindo um reino. A principal força dos guer-
reiros profissionais residia em menor grau no seu armamento que em sua disci-
plina, seu treinamento e na organização do seu abastecimento. Mesmo quando
eles deviam sobreviver com os recursos locais, a requisição era uma operação
organizada que não degenerava em pilhagem. Em meio às armadas permanentes
africanas do século XIX, as mais eficazes apoiavam-se nos recursos locais, em
todos os níveis treinamento, equipamento, comando. Elas assim se situavam,
em oposição àquelas forças armadas que se buscava moldar segundo o modelo
europeu, quer fosse no tocante aos uniformes, à vida na caserna, ao perfil de
treinamento ou às patentes. No caso de Madagascar, chegou-se ao ponto de
adotar, relativamente às reformas, a prática da compra de patentes, assim como
outras práticas habituais nas armadas europeias do início do século XIX.
Como o exemplo das armadas europeias causara grande impressão, o uso do
mosquete europeu expandiu-se; numerosas foram as novas armadas que o ado-
taram, algumas em razão do seu poder de fogo (caso dos fuzis Enfield), outras
em virtude do poder de detonação e da eficácia do efeito produzido por uma
salva de mosquetes, cujo estrondo, somente ele, podia semear o pânico à distân-
cia em um regimento de cavalaria. Numerosos soberanos africanos igualmente
pretenderam adquirir peças de artilharia. Em função do peso dos canhões e da
quantidade da pólvora que eles consumiam, eles tentaram com muito pouco
sucesso, produzi-los in loco. Aproximadamente nos anos 1870, teve início a
importação de um equipamento de guerra mais aperfeiçoado fuzis com car-
regamento pela culatra, carabinas de repetição, metralhadoras e canhões − cujo
nec plus ultra era a metralhadora Maxim que os europeus lograriam monopolizar.
Alguns chefes, à imagem dos chefes egba, empregaram canhões europeus, antes
e sobretudo como arma psicológica, muito mais que na guerra propriamente
dita. Na realidade, desde antes do século XIX, numerosos soberanos haviam
buscado importar armas de fogo europeias. Entretanto, foi necessário esperar a
segunda metade do século, época na qual se começou a importar armas de fogo
mais eficazes, para que os armamentos europeus fossem incontestavelmente
vistos como capazes de decidirem o desfecho dos combates na África. Como as
armas europeias se haviam tornado um fator indiscutível de superioridade, era
desde logo imperioso poder importá-las em tempos de guerra; por conseguinte,
917
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
os esforços realizados para adquiri-las tornaram-se um aspecto essencial do
comércio, da diplomacia e da arte de governar.
A revolução ligada a esta crescente importância é ilustrada pela diferença de
comportamento entre os imperadores da Etiópia, Téwodros e Yohannès. Téwo-
dros tentara produzir in loco canhões de pólvora através de técnicos europeus;
contudo, ele provou ser capaz, mesmo sem isso, de vencer armadas mais bem
equipadas que a sua e munidas de mosquetes. Contrariamente, Yohannès e
com maior ênfase Ménélik, posteriormente a ele compreendeu não lhe ser
possível livrar-se dos seus inimigos do Tigre e das planícies litorâneas, senão
na justa medida do incremento da sua capacidade em tirar proveito da situação
para adquirir armamento europeu em maior quantidade e de melhor qualidade,
comparativamente ao que dispunha. Com este mesmo espírito, os soberanos da
África do Norte e igualmente do Saara e do Sudão dedicaram-se, através do
comércio e da diplomacia, a constituir estoques de armas europeias, principal-
mente importadas pela África do Norte, mas, igualmente, pelas vias comerciais
da costa da África do Oeste e do Leste. Os dirigentes de Madagascar proce-
deram do mesmo modo. No centro e ao leste da África, a principal atividade
comercial era a caça ao elefante; portanto, o marfim, constituindo uma razão
suplementar para a importação das armas de fogo, pela mesma ocasião fortaleceu
a tendência à militarização da sociedade.
Uma das consequências maiores desta crescente importância das armas de
fogo foi o relativo declínio da cavalaria como corpo de elite e tropa de choque,
bem como a sua substituição por uma infantaria armada à moda europeia. Nas
regiões florestais e naquelas onde havia a influência militar nguni, a força de
elite era tradicionalmente a infantaria. A tendência, no século XIX, consistiu
essencialmente em intensificar o treinamento desta infantaria, progressivamente
transformada em armada profissional e, ulteriormente, dotada de um armamento
europeu. Em meio a vastos deslocamentos populacionais que se produziram, por
exemplo, após o Mfecane e o esfacelamento do antigo Império oyo, era possível
que um povo da mata, até então defendido por cavaleiros, penetrasse em região
de mata mais densa onde a guerra a cavalo era mais difícil; estado que coisas
que acentuava o declínio da cavalaria. Em contrapartida, em alguns Estados
diretamente confrontados com colonos europeus, tradicionalmente defendidos
por cavaleiros equipados com armas de fogo, iniciou-se a criação de pequenos
cavalos, com o objetivo de formar novas tropas, capazes de realizarem movi-
mentos rápidos, assim como a importação de armas europeias; permitindo deste
modo a estes Estados garantirem, por algum tempo, a sua superioridade militar.
Quase invariavelmente alhures na África e, particularmente no Sudão, onde
918
África do século XIX à década de 1880
durante séculos a cavalaria fora o núcleo e a elite das forças militares, soldados de
infantaria profissionais, bem treinados e armados de fuzil, tornaram-se o prin-
cipal componente armado e impuseram-se, a seu turno, como elite. A cavalaria
começava então a ser relegada à segunda linha defensiva e à reserva. Este fator
suplementar da revolução ocorrida nas forças armadas africanas não deixaria
de produzir importantes efeitos sociais e econômicos, todos tendencialmente
convergentes para o fortalecimento da posição do soberano, na qualidade de
chefe do poder executivo do Estado.
A transformação econômica e social
O que sabemos sobre o século XIX na África evidencia que a reprodução,
neste continente, de mutações sociais de primeira grandeza, notadamente a trans-
formação do caráter da escravatura, o surgimento de uma classe de guerreiros e
de uma classe de mercadores politicamente muito influente. Estas transforma-
ções facilitaram e, em certa medida, provocaram as mudanças ocorridas − como
mencionado acima nas estruturas políticas e na organização militar, tanto
quanto foram, em parte, estas mesmas transformações o resultado destas últimas.
Além disso, havia uma crescente demanda por mão-de-obra, exercida além dos
tradicionais limites do grupo familiar, das pequenas comunidades locais ou dos
grupos etários organizados. Como no passado, as diversas sociedades africanas
repugnavam a ideia segundo a qual seria possível para um homem livre vender o
seu trabalho; e a tendência dominante, no século XIX, era promover a utilização
de escravos, o trabalho obrigatório e o emprego da mão-de-obra importada. A
tendência global, no terceiro quarto do século XIX, era para uma generalização
da prática escravocrata, inclusive nas zonas rurais; para o aumento do número
de escravos em cada grupo familiar; e para o incremento da sua utilização, com
vistas a alcançar uma produção organizada segundo um modo quase-capitalista,
mediante o qual, as suas condições tornar-se-iam piores que nunca
18
.
A partir do início do século, as tensões causadas pelas rivalidades políticas
agravaram-se progressivamente, tornando-se corriqueiro que os litígios refe-
rentes a terras, gado e, até mesmo, diferenças doutrinais, fossem resolvidos pela
eliminação pura e simples de um dos adversários ou, ao menos, da sua perso-
nalidade própria. Comunidades inteiras foram assim absorvidas por estruturas
políticas existentes, salvo quando eram dispersas, situação que levava à captura
18 G. M. McScherey, 1983.
919
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
dos jovens de ambos os sexos. Estes prisioneiros serviam para satisfazer a cres-
cente demanda por mão-de-obra nos setores agrícola, artesanal e no trabalho
nas minas, além de igualmente contribuírem para prover guerreiros às armadas
em vias de constituição. As novas estruturas estatais e militares afirmavam-se a
despeito das velhas aristocracias, cuja influência, no triplo plano social, político
e econômico, era garantida pelo grande número de esposas e pela importância
da rede familiar; outrossim, simultaneamente e como consequência destas novas
estruturas, constituíram-se novas categorias sociais, compostas de funcionários,
os quais seriam liberados das tarefas agrícolas ordinárias. Estas novas aristo-
cracias não se apoiavam em redes parentais, propriamente ditas, mas, antes, em
vastas “famílias” de “clientes” e cativos que exploravam terras cuja superfície cres-
cia progressivamente para assegurar não somente a subsistência do grupo fami-
liar expandido, mas, igualmente, a manutenção dos contingentes de guerreiros,
quando a armada estivesse em campanha. Todos estes indivíduos eram também
empregados na produção de mercadorias destinadas à venda no mercado local e
no grande comércio, com vistas a se adquirir os recursos financeiros necessários
para atrair mais clientes e comprar armas e munições importadas.
Quando terminou o tráfico atlântico e aumentou a demanda por ouro, óleo
de palma, semente de palmiste e amendoim, na África do Oeste, a demanda
por cana-de-açúcar, nas Ilhas Maurício, na Reunião e em Comores, no Oceano
Índico, assim como aquela por marfim e cravo, na África Oriental e Central,
houve necessidade de crescente volume de mão-de-obra cativa, não somente
para produzir estes artigos, mas, igualmente, para transportá-los, por carregado-
res ou pirogas, até o litoral. A escravatura ligada às plantações surgiu, quer seja
sob a forma de comunidades de escravos organizados segundo o direito consue-
tudinário, na costa da Guiné; com base na lei islâmica, nas regiões muçulmanas;
ou, tal o caso das ilhas do Oceano Índico, de formas análogas às plantações de
tipo americano. Considerando o crescente número de escravos mobilizados nos
exércitos ou em funções administrativas junto a diversas cortes, alguns estima-
ram que, em numerosas regiões africanas, a população de escravos teria atingido
entre 20 e 50% da população total
19
. Embora existissem casos de revoltas entre
os escravos, notadamente aquele dos lozi, os quais se liberaram dos seus senhores
kololo
20
, as populações reduzidas à escravidão não constituíam, por via de regra,
uma classe distinta. Certamente, a maioria dos escravos estava encarregada de
tarefas subalternas, geralmente agrícolas. Todavia, havia outros grupos relati-
19 Consultar igualmente K. Arhin e J. Ki-Zerbo, acima no capítulo 25.
20 W. G Clarence Smith, 1979b.
920
África do século XIX à década de 1880
vamente importantes, a saber, os guerreiros e escravos domésticos, aos quais se
acrescentavam aqueles que, em número reduzido embora considerável, haviam
logrado assumir postos de confiança ou responsabilidade em virtude de se terem
destacado na guerra, no comércio ou na administração. A condição e o modo de
vida destes últimos eram muito variáveis, tornando muito difícil a constituição
de uma classe de escravos homogênea. Somente em algumas regiões, como, por
exemplo, no antigo Calabar, onde os escravos viviam em perpétuo estado de
alienação, onde praticamente nada era feito para integrá-los culturalmente e
onde, tradicionalmente, os membros da elite dirigente vangloriavam-se da sua
fortuna aumentando o número de escravos sacrificados em cerimônias fúne-
bres
21
, unicamente sob tais condições ocorreu o reagrupamento dos escravos
em torno de rituais secretos para exigirem uma melhoria em sua condão.
Alhures, a tendência era a aculturação e a integração à sociedade no seio de lares
aristocráticos. Certamente, esta integração não ultrapassava determinado nível
como atesta o número daqueles que aspiravam serem libertados ou daqueles que,
emancipados pelas leis coloniais, pediram para retornar ao seu lugar de origem
−, conquanto fosse ela real, de todo modo e suficientemente, a ponto de permitir
supor que a dinâmica da mudança, na maioria das comunidades africanas, seria
regida pelas oposições entre os grupos etários e os sexos, no quadro de cada
casa”, assim como por questões estatutárias e ligadas à rivalidade na luta pelo
poder entre linhagens e grupos parentais, muito mais que por tensões entre as
classes sociais lato sensu.
Não é fácil apreciar, do ponto de vista quantitativo, os efeitos do desenvol-
vimento das atividades comerciais nas formações sociais. Não há dúvida que os
efetivos e a força da classe dos mercadores tenham aumentado. Menos nítida é a
medida da pertinência em se poder falar de surgimento de uma classe mercantil
ou capitalista. O comércio longínquo, com os seus centros de caravanas e a sua
organização, sob todos os aspectos e especialmente aqueles ligados à segurança,
ao reabastecimento, às facilidades de crédito e do transporte, era praticado de
longa data na África do Norte e do Oeste e esta atividade expandia-se rapida-
mente no século XIX, na África Central e do Leste. Este fenômeno produziu-se,
tanto em regiões islamizadas, onde a contabilidade era feita em árabe, quanto
nas regiões da África do Oeste, onde se praticava muito tempo o tráfico de
escravos e nas quais as línguas comerciais eram as europeias, assim como nas
regiões da África do Leste, onde o kiswahili ganhava espaço, por sua vez, como
21 K. K. Nair, 1972, p. 48; igualmente conferir acima o capítulo 27.
921
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
língua do negócio. É bem provável que, em algumas partes do litoral oeste-
africano, a utilização da mão-de-obra servil começasse a ser complementada por
antigas formas de trabalho forçado, em curso de expansão, como o empréstimo
de recursos mediante refém”, prática na qual o trabalho do “refém representava
os interesses do tomador de empréstimo e a sua pessoa uma garantia para o
provedor do capital. O considerável desenvolvimento desta forma de trabalho
forçado era um sinal da crescente influência dos grupos mercantis e da função
do banqueiro. Diz-se que na Costa do Ouro, durante os anos 1870, esta prática
ganhou uma amplitude comparável àquela da escravatura propriamente dita, esta
última permitindo recrutar mão-de-obra além da circunvizinhança imediata da
comunidade, ao passo que o sistema de reféns” consistia no meio de recruta-
mento de trabalhadores no interior da própria comunidade
22
. Entretanto, fora
das cidades litorâneas da África do Norte, os mercadores levaram muito tempo
para se constituírem como classe distinta. Nas regiões submetidas à influência do
cristianismo e das ideias europeias, começava a surgir um grupo de mercadores
comparável à classe média vitoriana. Contudo, mesmo nesta região, excetuando-
se a Serra Leoa e a Libéria, os mercadores que pretendiam ganhar influência
e poder no interior dos Estados tradicionais, alcançavam-no principalmente
adquirindo títulos de chefia no seio das estruturas estatais em formação. Em
muitas regiões do Sudão e da Senegâmbia, o grupo dominante de mercadores
estava estreitamente ligado aos chefes religiosos muçulmanos, a tal ponto que
não havia uma classe distinta de mercadores, mas, antes e sobretudo, uma classe
de religiosos que praticavam comércio. Alhures, não existia distinção tida
entre os mercadores ou guerreiros e a elite dirigente. Numerosos dentre aqueles
que, em sua juventude, lançavam-se em projetos comerciais, posteriormente,
tornavam-se suficientemente prósperos para financiarem os projetos similares
de outros, comprando, com a fortuna alcançada, funções tradicionais que lhes
conferiam poderes oficiais, por eles exercidos simultaneamente à sua adminis-
tração das terras, dos rebanhos e de outros bens e à organização, mediante uma
estrutura paramilitar, dos seus clientes e partidários.
Desde os anos 1870, na África Austral, as necessidades da agricultura comer-
cial, sobretudo praticada pelos bôeres, mas, igualmente, por alguns britânicos,
haviam criado uma insaciável demanda por mão-de-obra. A colônia do Cabo
pudera dispor de escravos libertos, “aprendizes” e trabalhadores do exterior, a
exemplo dos mfengu, os quais haviam fugido do Mfecane, ao passo que o Natal,
22 G. M. McSherey, 1983.
922
África do século XIX à década de 1880
o Estado livre de Orange e o Transvaal obtiveram os seus contingentes sobre-
tudo entre os seus vizinhos africanos espoliados das suas terras, cuja liberdade
de deslocamento era restringida pelas Pass Laws. Quando foram descobertas
as jazidas de diamante do Griqualand Ocidental, aumentou sobremaneira a
demanda por mão-de-obra e fez-se necessário trazer de regiões mais distantes
os trabalhadores imigrantes. Embora oficialmente não tenha havido escravatura
na África do Sul e tampouco sistema de reféns”, era notável o nascimento de
um processo de proletarização, ainda pior e cuja receita era a seguinte: arrancar
dos Estados africanos as suas melhores terras, criando populações sem-terra, as
quais não possuíam outra escolha senão trabalharem nas rigorosas condições
fixadas pelos seus impiedosos rivais. Deste modo, a sinistra disputa entre as
colônias brancas e os Estados africanos, desenvolvida com arbitragem parcial do
soberano britânico, não mais e tão somente possuía como objeto terras ou gado,
mas, desta feita, a supremacia total, o poder de obrigar as pessoas a trabalharem
a partir de uma posição de força inexpugnável. Tal combate não poderia encon-
trar desfecho em uma federação no seio de um império informal”. Contudo,
ao passo que esta situação começava a tornar-se progressivamente mais nítida
para os europeus, fossem eles colonos, funcionários coloniais ou membros do
governo imperial, os chefes dos diferentes Estados africanos, por sua vez, não
percebiam a qual ponto a regra do jogo mudara com a aproximação do último
quarto do século XIX.
A evolução das relações de força
Houve, ao longo dos anos 1870, transformações capitais não somente na
estrutura interna dos Estados africanos, mas, igualmente, no tocante ao respec-
tivo papel dos europeus na África e no âmbito dos meios dos quais dispunham
estes últimos. Em 1870, as repercussões da Revolução Industrial e da guerra na
Europa sobre a organização dos Estados e o seu poderio militar tornavam-se
evidentes. Entre as nações europeias e os Estados africanos, as relações de força
começavam a adquirir contornos progressivamente desiguais. Naquele ano, a
Alemanha e a Itália tornaram-se Estados unificados, desde logo mais fortes,
cujos cidadãos não tardariam a exigir uma participação mais ativa na obtenção
dos recursos africanos. Em 1870-1871, Bismarck selou a unidade alemã através
de uma vitória sobre a França, no desfecho de uma guerra que inaugurara o
emprego de novas técnicas militares, especialmente no tocante aos armamentos,
ao treinamento das tropas e à tática. O efeito destas novidades rapidamente foi
923
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
sentido na África, onde se iniciou a importação de armas de fogo mais aper-
feiçoadas. Na França, a necessidade de recuperação após a derrota mencionada
traduziu-se pela vontade de erguer um império na África, tanto pelo valor
intrínseco da empreitada quanto pelas suas repercussões no estado moral da
nação. A França lançou-se portanto em uma nova política de expansão dinâmica
e defesa dos seus interesses nacionais na África, política geralmente aplicada
através de agentes comerciais ou missionários e, mais especificamente, graças
ao fortalecimento da posição francesa na Argélia e na Senegâmbia. A revolta
ocorrida na Kabília foi violentamente reprimida. Ela ofereceu oportunidade de
confisco de consideráveis superfícies de terra cultivável junto aos árabes e de
pastagens a serem distribuídas entre os colonos europeus, ao passo que os árabes
sem-terra foram reduzidos a constituírem uma mão-de-obra barata. Aos colonos
franceses, espanhóis, italianos, malteses ou gregos, cristãos ou judeus, se lhes foi
atribuída a cidadania francesa, situação privilegiada em relação aos árabes que,
por sua vez, eram sujeitos franceses.
Estes acontecimentos tiveram globalmente como efeito o fortalecimento da
concorrência existente entre os europeus. Em face da ação incisiva e deliberada
da França, os britânicos não se mostravam menos pretensos a consolidarem e
defenderem as suas próprias posições. A descoberta de diamantes, em 1869-
1870, na Griqualand Ocidental e a perspectiva de descoberta de ouro em grande
quantidade elevaram a febre por concorrência e profundamente modificaram
as bases sobre as quais repousavam as relações entre europeus na África, assim
como as relações entre europeus e africanos. Diversas atividades às quais os
europeus se haviam aparentemente dedicado até então, de modo desinteres-
sado ou com fins humanitários, passaram a ser consideradas segundo o que
elas eventualmente pudessem oferecer aos interesses nacionais europeus. se
fora o tempo em que os exploradores agiam simplesmente movidos pela curio-
sidade científica; neste período tratar-se-ia sobretudo de agentes encarregados
de recolherem informações estratégicas e segredos comerciais. Os missionários
não eram somente servidores de Deus, obedecendo à vocação de evangeliza-
ção, doravante seriam agentes organizados em prol de um esforço nacional de
aculturação que tinha como objetivo exclusivo enfraquecer a posição cultural
e comercial dos seus anfitriões. Os mercadores não buscavam unicamente o
lucro; eles preparavam o terreno com vistas à instalação do seu país nos postos
de comando. Desta forma, a frequente colaboração entre africanos e europeus
que, até bem pouco, aparentemente tendia a colocar as ideias e as técnicas ao
serviço do fortalecimento das nações africanas, durante a situação revolucionária
do século XIX, transformava-se em um plano de subversão que contribuía dire-
924
África do século XIX à década de 1880
tamente para sistematicamente levar ao aborto os esforços empreendidos pelos
dirigentes africanos com vistas a reformar e modernizar as suas sociedades.
Seguindo a mesma lógica, os soberanos africanos geralmente consideravam
as atividades dos abolicionistas como negativas. Em muitos casos, após resisti-
rem e contemporizarem, eles finalmente aceitaram contribuir para o término do
tráfico transatlântico, na justa medida em que outras possibilidades de exporta-
ção (produtos agrícolas, ouro, marfim etc.) eram-lhes ofertadas em substituição
e mediante a condição de poderem, eles próprios, continuar a possuir escravos,
bem como recorrer a outras formas de trabalho forçado. Existia, portanto, uma
base de cooperação. Tratava-se, como indicamos anteriormente, da crescente
utilização da mão-de-obra escrava. Os europeus reconheceram o estado de fato,
porém, ao longo dos anos 1870 e sem contudo renunciarem à sua postura, eles
passaram a utilizar a emancipação como um fator de natureza a enfraquecer as
bases econômicas dos Estados africanos. Deve-se expressamente notar, a este
respeito, que a maioria das tropas levadas pelos europeus à África, nesta época,
eram compostas por escravos africanos emancipados e que estes últimos perma-
neciam leais aos seus libertadores, os quais os armavam e comandavam.
A maioria dos dirigentes africanos estava igualmente muito preocupada
com os missionários europeus. Por conseguinte, numerosos foram aqueles que
finalmente ofereceram-lhes bom acolhimento, conquanto estes missionários
colocassem, em sua tarefa, menor ênfase sobre as conversões comparativamente
àquela dedicada à educação. Numerosos soberanos demonstravam-se felizes com
a possibilidade oferecida a alguns dos seus escravos ou, inclusive aos seus pró-
prios filhos, de aprenderem a ler e escrever, capacidade considerada a chave do
saber do homem branco, além de um elemento essencial nas relações comerciais.
Os missionários recebiam ainda melhor acolhimento quando ensinavam novas
técnicas, tais como a impressão gráfica, a construção de habitações, a agricultura
mecanizada, a vacinação etc. Eventualmente se lhes solicitava o ensino da arte
de fabricação das armas de fogo e da pólvora, assim como de outros artigos de
importância estratégica ou, ao menos, se lhes requeria assistência na importação
destes artigos. No curso dos anos 1870, já era possível constatar que o processo
de aculturação tinha como efeito o enfraquecimento da identidade dos países
de acolhida e o despertar da sua vontade em manterem a sua independência.
As atividades missionárias igualmente tornaram-se um fator de divisão, na justa
medida em que elas incitaram tal ou qual Estado africano a apoiar os habitantes
locais europeus, ao passo que outros se opunham a eles.
A mais subversiva dentre todas as atividades europeias talvez tenha sido
o comércio. Os intercâmbios comerciais normalmente compunham a base da
925
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
cooperação entre africanos e europeus, os quais demonstravam, ambos, todo o
interesse em promover o desenvolvimento. Cabia aos soberanos africanos, por
razões estratégicas, regulamentar o comércio e permitir aos Estados e merca-
dores africanos dele extraírem as maiores vantagens possíveis. Os comerciantes
europeus igualmente dedicavam-se, bem entendido, a negociar condições que
lhes garantissem os maiores lucros possíveis. Na África do Norte, eles haviam
explorado as fraquezas do imperador otomano para provocar a concessão aos
europeus de privilégios exorbitantes, através de tratado, engajando-se em con-
trapartida a contribuírem para o fortalecimento da tutela otomana; situação esta
que enfraquecia a capacidade dos dirigentes norte-africanos em regulamentarem
o comércio nos seus próprios territórios. Os europeus reservavam-se, outrossim,
o direito de se atribuírem tal ou qual parte do Império Otomano, sempre que
isso parecesse oportuno para o concerto das potências europeias. A França impôs
uma derrota ao dei de Argel, em 1830, fazendo valer pretensões sobre o conjunto
do beilhique e, posteriormente, em 1878, ela reclamou a Tunísia, do mesmo
modo que a Grã-Bretanha o faria em relação ao Egito, no ano de 1882.
Durante os anos 1870, o livre corcio era a palavra de ordem com a qual os
europeus opunham-se ao direito dos chefes africanos de regulamentarem o cor-
cio
23
. Em nome do livre corcio, eles se esforçavam em obter maiores privilégios
para os seus negociantes. Eles encorajavam os soberanos africanos a endividarem-
se pesadamente junto aos bancos europeus e a aventureiros europeus de passado
duvidoso. Eles manipulavam o serviço da dívida de modo a adquirirem, com anos
de antecedência, direitos sobre a prodão agrícola e as receitas aduaneiras. Eles
assinavam acordos desiguais para a cobrança das dívidas e, fortalecidos com estes
privilégios, além de outros que haviam sido concedidos aos seus negociantes, empe-
nhavam-se no enfraquecimento da economia dos Estados, assim como e sobre-
tudo, dedicavam-se a debilitar o controle que os soberanos africanos eram capazes
de exercer sobre os mecanismos ecomicos. No Egito e na Tusia, os europeus
impuseram a vigilância de comises internacionais da dívida, cuja ão atingia
gravemente a autonomia dos dirigentes, além de provocarem levantes, bloquearem
as reformas e conduzirem, em linha reta, para a perda da independência, pratica-
mente sem combate. Porém, o livre comércio o passava de um slogan que marcava
o desejo de passar as deas da economia aos negociantes europeus para que estes
23 A mais nítida expressão deste estado de espírito está contida no Ato Geral da Conferência de Berlim,
no qual o princípio da porta aberta” foi proclamado para o Congo e o Níger, constituindo o prelúdio
da política de monopólio praticada pela Associação Internacional Africana, patrocinada por Léopold
da Bélgica e pela Companhia Real do Níger.
926
África do século XIX à década de 1880
pudessem excluir o somente os negociantes africanos, mas, igualmente, outros
habitantes de origem europeia.
A razão da confiança e da agressividade recém-demonstrada pelos europeus,
a partir dos anos 1870, era a industrialização e um capitalismo em plena maturi-
dade, situação atestada, por exemplo, pelos novos tipos de armas de fogo, as quais
fizeram pender o equilíbrio de forças para o lado dos exércitos conduzidos pelos
europeus. Esta mudança não ocorrera da noite para o dia e os próprios europeus
não forçaram a aceleração do processo. Certamente, até 1871, talvez em grande
parte pela proximidade do país, os franceses mobilizaram até 110.000 homens
na guerra por eles travada na Argélia. Entretanto, caso excetuarmos o caso refe-
rente à guerra anglo-bôer de 1899-1902, a qual aparenta efetivamente ser uma
exceção na qual a Grã-Bretanha engajou um contingente militar ainda maior,
nenhuma outra potência podia manter forças tão importantes na África. A
Grã-Bretanha utilizou até 12.000 homens (em sua maioria tropas indianas) na
invasão da Etiópia, em 1868; no entanto, não mais que 2.500 soldados britânicos
foram comandados por sir Garnet Wolseley, quando o Ashanti foi invadido e
Kumasi saqueada. Posteriormente, os europeus empregariam preferencialmente
escravos emancipados, recrutados e treinados por eles. Várias armadas africanas
à imagem dos impis zulu, dos amazonas do Daomé e dos balouchis de Zanzibar
eram reputadas pela sua disciplina e pela qualidade do seu treinamento. Havia
igualmente generais africanos capazes de rivalizarem com os chefes militares
europeus, além de estarem, os primeiros, mais familiarizados com o terreno. Os
europeus logravam, invariavelmente, não somente recrutar tropas africanas em
número suficiente, mas, igualmente, realizavam alianças. Os serviços de infor-
mação militares, bem como os mercadores e missionários, sempre forneciam
bons indicativos para a abordagem junto a eventuais aliados. Todavia, se os
oficiais europeus e as suas tropas africanas conservavam um moral elevado, isso
se devia antes a um novo sentimento: a confiança nascida da certeza, segundo
a qual, enquanto conservassem a superioridade quanta e qualitativa no tocante
ao armamento, mesmo em caso de possível derrota em batalhas aqui ou acolá,
a guerra finalmente teria um desfecho favorável a eles.
A herança das guerras
Podemos dizer à guisa de conclusão que, nos anos 1870, os esforços empre-
endidos em diferentes partes do continente, para integralmente reconstruir a
sociedade, haviam produzido grandes transformações, as quais, além das tendên-
927
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
cias divergentes, em seu conjunto haviam reforçado a capacidade dos africanos
em se defenderem e preservarem os seus interesses. Igual e nitidamente, durante
este período, a presença europeia operava solapando estas estruturas e fazendo
pesar uma grave ameaça futura; situação exacerbada em rao do altíssimo
preço pago pelos chefes africanos em suas vitórias, ao qual podemos denominar
herança das guerras.
Acompanhamos o surgimento de Estados mais extensos e fortes, nos quais
o poder executivo tinha tendência a se concentrar nas mãos de certo número
de elementos que, a título individual ou na qualidade de detentores de tal ou
qual função, dependiam muito mais diretamente da autoridade do soberano e
de funcionários que deviam as suas atribuições, sobretudo, ao seu mérito, aos
seus atos pregressos e à ão do príncipe, comparativamente à interferência de
antigos direitos hereditários. O processo que conduzira à instauração destes
Estados mais fortes, onde esta concentração tornara o poder executivo mais
eficaz, dilapidara outros Estados, mais fracos. Diversas categorias de indivíduos
em risco de perda do poder, sobre as quais pesava uma ameaça a interesses de
toda espécie por eles anteriormente adquiridos, haviam reagido e a guerra tor-
nara-se um fenômeno endêmico. Tanto mais os europeus tomavam consciência
do aumento do poder estatal na África, mais eles demonstravam decisão em
lhe impor obstáculos; e a sua tarefa era facilitada pela possibilidade que se lhes
oferecia de explorar a herança deste constante estado de guerra para suscitarem
divisões e criarem oportunidades de intervenção.
Os Estados formados haviam constituído instituições políticas mais estáveis
e geralmente mais eficazes que todas as instituições precedentes, com objetivo
atingir a satisfação das exigências do soberano em sua relação com os seus sujei-
tos. Isso supunha, como indicamos anteriormente, uma definição mais precisa
da autoridade, além de um traçado mais nítido das fronteiras. Talvez este fator
tenha igualmente favorecido uma tomada de consciência mais precisa sobre o
valor do solo. De todo modo, os conflitos tornaram-se mais implacáveis que no
passado e tenderam para a guerra total. Eles não tinham simplesmente como
objetivo determinar os limites dos poderes respectivos dos chefes em conflito,
pois que, desta feita, colocava-se em jogo o destino de sociedades inteiras. Não
é raro observar o vencedor fazer prisioneira toda a população ativa, amparar-se
das terras, dos rebanhos e, por vezes, anexar a comunidade inteira, levando-a à
consequente perda da sua identidade.
É imperioso aqui sublinhar que, em larga escala, as guerras do século XIX
não fortaleceram o poder de Estado senão em detrimento de outras formas de
solidariedade. As rivalidades políticas e a concorrência econômica, colocadas em
928
África do século XIX à década de 1880
jogo por estas guerras, eram de tamanha intensidade que sequer respeitavam
aquilo que nós denominaríamos atualmente etnicidade ou seja, as afinidades
culturais criadas pelo emprego de uma mesma língua, pela crença nos mesmos
mitos sobre a origem do homem ou do grupo, assim como pelas redes paren-
tais ou pela interconexão de crenças religiosas que, por via de regra, haviam
no passado transcendido as fronteiras de poder dos Estados. Se este declínio
da etnicidade sem dúvida não era novo, ele certamente jamais fora tão gene-
ralizado quanto no século XIX. Nos enfrentamentos e processos de formação
dos Estados ligados ao Mfecane ou às guerras iorubás, ashanti ou massai deste
século, o poder de Estado sem dúvida alguma desempenhou um papel muito
mais importante que a etnicidade. Com efeito, caso considerarmos a amplitude
das guerras e dos deslocamentos populacionais, ligados ao tráfico de escravos e
ao processo de formação ou reconstrução dos Estados, é paradoxal que tenha
sido possível, no tocante aos povos africanos às vésperas da conquista colonial,
evocar a velha noção antropológica de tribo, cujas características seriam aquelas
de uma entidade biológica imutável. Muito em contrário, na realidade, as novas
estruturas estatais que não repousavam sobre a etnicidade se haviam tornado
mais importantes que a solidariedade étnica, no que dizia respeito a determinar
a reação dos diversos povos africanos frente ao desafio europeu.
A estratégia dos europeus, quando tomaram consciência do fortalecimento
do poder estatal na África, equivaleu primeiramente a cerrar fileiras sob o impe-
rativo do interesse nacional. Os missionários, mercadores, exploradores e agentes
consulares europeus, outrora pretensos a agirem de forma dispersa e, muito ami-
úde, oposta entre si, começaram a se unir sob a bandeira dos interesses nacionais.
A situação ao início do século, época em que era possível observar missionários
alemães patrocinados por instituições britânicas ou ainda negociantes franceses
e britânicos cooperarem na corte de Zanzibar, era progressiva e dificilmente
imaginável nos anos 1870. Esta estratégia dos europeus todavia mostrou-se
ineficaz, haja vista que os soberanos africanos passaram a considerar que todos
os habitantes europeus, fossem eles missionários, comerciantes ou exploradores,
serviam em última análise aos mesmos interesses. Além disso, estes reis se haviam
tornado peritos na arte de jogar as nações europeias umas contra as outras, de
tal modo que os europeus decidiram comportarem-se diferentemente.
Como observamos, o fator que definitivamente fez pender o equilíbrio de
forças na África, nos anos 1870, não foi a natureza das armadas ou a excelência
do seu treinamento, da sua disciplina ou do seu comando, mas a qualidade e a
quantidade das armas de fogo. A última palavra, na luta pelo poder na África,
pertenceria portanto àqueles que tivessem o controle das armas e munições. A
929
Conclusão: a África às vésperas da conquista europeia
situação tenderia a permanecer incerta por tanto tempo quanto os europeus
buscassem separadamente satisfazer os seus interesses nacionais e os chefes de
Estado africanos pudessem jogar as potências umas contra as outras. Ademais,
os europeus, com absoluta necessidade de terem aliados, resignar-se-iam a for-
necer armas de fogo para a obtenção de tratados, concessões, garantias de neu-
tralidade ou, em contrário, para conseguirem a participação ativa em guerras que
os opunham a Estados africanos rivais. Portanto, se lhes tornou essencial subme-
terem a corrida para a África a certas regras baseadas em acordos internacionais
e, muito especialmente, limitarem o fornecimento de armas e munições. A mais
intensa rivalidade colocava em disputa britânicos e franceses. Os britânicos
tentaram, para garantir os seus interesses, constituir-se em protetores, inclusive
dos interesses portugueses, situação que ofereceu a Bismarck a oportunidade
de se intrometer de modo interessado, reunindo em Berlim uma conferência
internacional. O encontro de Berlim, por sua vez, concedeu ao rei Léopold da
Bélgica a ocasião de obter o aval da comunidade internacional acerca das suas
pretensões no Congo, razão pela qual ele proclamou, em alto e bom tom, o
livre comércio e as ideias humanitárias antiescravagistas
24
. Esta evolução abriria
caminho para o Ato de Bruxelas, o qual, em nome da campanha antiescravista,
interditou o fornecimento de armas aos chefes de Estado africanos.
O fato é que, invocando a limitação dos armamentos e a campanha contra
o escravismo, os britânicos puderam isentar os colonos autônomos” da África
do Sul da aplicação dos dispositivos adotados em Bruxelas. Segundo a mesma
lógica, sem deixar de combater tal ou qual Estado da África e negociar múlti-
plos tratados e convenções com soberanos africanos, eles igualmente puderam
sustentar que, em razão de possuírem escravos e serem comerciantes, os Esta-
dos africanos não eram reconhecidos pelo direito internacional. Portanto, foi
possível declarar no Ato Geral da Conferência de Berlim (1885) e no Ato de
Bruxelas (1889) que, segundo o direito internacional, a África era terra nullius e
que somente as potências europeias e os seus colonos nela possuíam interesses,
os quais deviam ser protegidos.
Em outros termos, enquanto na África os países europeus tratavam com tal
ou qual Estado africano, reconhecendo-os, aliando-se com alguns ou comba-
tendo outros, na Europa, ao contrário, eles cerravam fileiras como irmãos de
raça e formavam um cartel para regulamentar o fornecimento dos principais
armamentos aos africanos. Os chefes africanos não tinham nenhum meio de
24 S. Miers, 1971.
930
África do século XIX à década de 1880
resposta a tal estratégia. A luta pelo poder na África encontrava-se portanto
entrelaçada à política internacional do concerto das potências europeias, domí-
nio no qual a diplomacia africana sofria de uma grave desvantagem. É duvidoso
que os africanos se tenham dado conta, antes que fosse tarde demais, da gra-
vidade do perigo que os ameaçava. Habitualmente, eles contavam com o fato
dos europeus estarem, na África, distantes das suas bases e, especialmente, com
a invariável vantagem numérica dos africanos. Eles preservaram a sua conduta
como se pudessem indefinidamente jogar as potências europeias umas contra
as outras. Na África Austral, eles inclusive acreditaram serem capazes de apelar
à rainha da Inglaterra e aos seus representantes diretos para fazer respeitar as
obrigações decorrentes dos tratados, contra a vontade dos colonos anglo-bôeres
e de alguns aventureiros. A mil léguas de imaginar o contrapeso que poderia ter
representado a solidariedade africana, cada Estado comportava-se como julgava
adequado fazê-lo, isoladamente e em seu próprio interesse.
Caso pretendamos encontrar a explicação para este estado de coisas, é neces-
sário invocar, aparentemente, não somente os talentos diplomáticos das estra-
tégias europeias, mas, igualmente, a herança das guerras, aspecto indissociável
das situações revolucionárias que caracterizaram a África no século XIX. Foi a
intensidade e a crueldade das guerras que impediu os dirigentes africanos de
a tempo compreenderem que a resposta à investida europeia deveria tomar a
frente das oposições existentes entre Estados africanos, os quais deveriam se
unir para enfrentar esta ameaça.
931
Membros do Comitê Cientíco Internacional para a Redação de uma História Geral da África
Prof. J. F. A. Ajayi
(Nigéria) –
1971 Coordenador do volume VI
Prof. F. A. Albuquerque Mourão (Brasil)
1975
Prof. A. A. Boahen (Gana)
1971 Coordenador do volume VII
S. Exa. Sr. Boubou Hama (Níger)
1971 -1978
(Demitido em 1978; falecido em 1982)
S. Exa. Sra. Mutumba M. Bull, Ph. D. (Zâmbia)
1971
Prof. D. Chanaiwa (Zimbábue)
1975
Prof. P. D. Curtin (EUA)
1975
Prof.
J.
Devisse (França)
1971
Prof. M. Difuila (Angola)
1978
Prof. Cheikh Anta Diop (Senegal)
1971 Prof. H. Djait (Tunísia)
1975
Prof.
J.
D. Fage (Reino Unido)
1971 -1981
(Demitido)
S. Exa. Sr. M. El Fasi (Marrocos)
1971 Coordenador do volume III
Prof. J. L. Franco (Cuba)
1971
Sr. Musa H. I. Galaal (Somália)
1971 -1981
(
F
alecido)
Prof. Dr. V. L. Grottanelli (Itália)
1971
Prof. E. Haberland (República Federal da Alemanha)
1971
Dr. Aklilu Habte (Etiópia)
1971
S. Exa. Sr. A. Hampaté Ba (Mali)
1971 -1978
(Demitido)
Dr. I. S. El -Hareir (Líbia)
1978
Membros do Comitê Cientíco
Internacional para a Redação de uma
História Geral da África
932
África do século XIX à década de 1880
Dr. I. Hrbek (Tchecoslováquia)
1971 Co diretor do volume III
Dra. A. Jones (Libéria)
1971
Pe. Alexis Kagame (Ruanda)
1971 -1981 (Falecido)
Prof. I. M. Kimambo (Tanzânia)
1971 Prof.
J.
Ki -Zerbo (Alto Volta)
1971
Coordenador do volume I
Sr. D. Laya (Níger)
1979
Dr. A. Letnev (URSS)
1971
Dr. G. Mokhtar (Egito)
1971
Coordenador do volume
II
Prof. P. Mutibwa (Uganda)
1975
Prof. D. T. Niane (Senegal)
1971
Coordenador do volume
IV
Prof. L. D. Ngcongco (Botsuana)
1971 Prof. T. Obenga (República Popular do Congo)
1975
Prof. B. A. Ogot (Quênia)
1971
Coordenador do volume V
Prof. C. Ravoajanahary (Madagáscar)
1971
Sr. W. Rodney (Guiana)
1979 -1980 (Falecido)
Prof. M. Shibeika (Sudão)
1971 -1980 (Falecido)
Prof. Y. A. Talib (Cingapura)
1975
Prof. A. Teixeira da Mota (Portugal)
1978 -1982 (Falecido).
Mons. T. Tshibangu (Zaire)
1971
Prof.
J.
Vansina (Bélgica)
1971
Rt. Hon. Dr. E. Williams (Trinidad e Tobago)
1976 -1978 (Demitido em 1978; fale-
cido em 1980)
Prof. A. Mazrui
(Quênia)
Coordenador do volume
VIII
(não
é
membro do
Comitê)
Prof. C. Wondji (Costa do Marfim)
Codiretor do volume
VIII
(não é membro do
Comitê)
Secretaria do Comitê Científico Internacional para a Redão de Uma Hisria Geral da África
Sr. Maurice
Glelé,
Divisão de Estudos e Difusão de Culturas, Unesco, 1, rue Miollis,
75015 Paris
933
Dados biográcos dos autores do volume VI
Capítulo 1 J. F. ADE. AJAYI (Nigéria). Especialista em história da África Oci-
dental no século XIX; autor de vários artigos e publicações sobre a his-
tória africana; antigo vice-reitor da Universidade de Lagos; professor
emérito do Departamento de História da Universidade de Idaban.
Capítulo 2 I. WALLERSTEIN (E.U.A.). Especialista em sociologia africana e
nos sistemas econômicos mundiais; autor de vários artigos e publi-
cações; foi professor de sociologia na University College de Dar es
Salaam, na Universidade Columbia de Nova-Iorque e na Universi-
dade McGill de Montreal; diretor do Fernand Braudel Center for the
Study of Economies, Historical Systems and Civilizations, SUNY,
Binghamton.
Capítulo 3 A. ADU BOAHEN (Gana). Especialista em história colonial oeste-
africana; autor de numerosas publicações e artigos sobre a história afri-
cana; anteriormente professor e chefe do Departamento de História
na Universidade de Gana.
Capítulo 4 S. DAGET (França). Especialista em história do tráfico de escravos
africanos no século XIX; autor de vários artigos e publicações sobre
o tráfico de escravos africanos; anteriormente professor de história na
Universidade de Nantes. Falecido em 1992.
Capítulo 5 L. D. NGCONGO (Botsuana). Especialista em história da África
Austral; publicou inúmeros estudos a respeito do Botsuana pré-colo-
nial; anteriormente diretor do National Institute of Development,
Dados biográcos dos autores
do volume VI
934
África do século XIX à década de 1880
Research and Documentation; professor e chefe do Departamento de
História da Universidade de Botsuana.
Capítulo 6 E. K. MASHINGAIDZE (Zimbábue). Especialista em história da
África Austral; foi professor titular na Universidade Nacional do
Lesoto e embaixador do Zimbábue junto à Organização das Nações
Unidas, secretário permanente em Harare.
Capítulo 7 N. M. BHEBE (Zimbábue). Especialista em história da África Aus-
tral; autor de várias obras sobre os ndebele; anteriormente professor
titular na Universidade da Suazilândia; “Senior Lecturer” na Univer-
sidade do Zimbábue.
Capítulo 8 A. F. ISAACMAN (E.U.A.). Especialista em história da África; autor
de várias obras sobre a história social de Moçambique nos séculos XIX
e XX; professor de história na Universidade do Minnesota.
Capítulo 9 A. I. SALIM (Quênia). Especialista em história da África Oriental,
autor de numerosos artigos sobre os povos falantes de kiswahili; pro-
fessor e presidente do Departamento de História na Universidade de
Nairóbi.
Capítulo 10 I. N. KIMAMBO (República Unida da Tanzânia). Especialista em
história da África Oriental; autor de várias publicações sobre a história
pré-colonial da Tanzânia; foi administrador universitário; professor do
Departamento de História da Universidade de Dar es Saalam.
Capítulo 11 D. W. COHEN (E.U.A.). Especialista em antropologia histórica
africana, aplicando as técnicas da antropologia e da história social à
exploração dos problemas históricos da região dos Lagos no século
XIX; interessa-se pelas antropologias e histórias que os próprios afri-
canos produziram fora dos círculos acadêmicos; professor de história
e antropologia na Universidade John Hopkins de Baltimore.
Capítulo 12 J.-L. VELLUT (Bélgica). Especialista em história da África Central;
autor de diversos artigos e publicações sobre o Congo, ex-Zaire, e
Angola; professor de história na Universidade de Louvain.
Capítulo 13 A. ABDEL-MALEK (Egito). Especialista em sociologia e filosofia
social do mundo árabe; autor de diversos artigos e publicações sobre o
mundo árabe e afro-asiático segundo a abordagem da teoria política e
social; diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica
(CNRS) de Paris; anteriormente coordenador de projeto e diretor-
geral de publicações (SCA-NST) na Universidade das Nações Unidas
de Tóquio; autor de livros e crônicas, Cairo.
Capítulo 14 H. A. IBRAHIM (Sudão). Especialista em história do Egito e do
Sudão nos séculos XIX e XX; autor de diversos artigos e publicações;
935
Dados biográcos dos autores do volume VI
professor de história e decano da Faculdade de Artes da Universidade
de Cartum.
B. A. OGOT (Quênia). Especialista em história africana; pioneiro em
técnicas de história oral, autor de numerosas publicações sobre a his-
tória da África Oriental; anteriormente diretor do International Louis
Leakey Memorial Institute e professor de história na Universidade
Kenyatta de Nairóbi; diretor do Institue of Research and Postgraduate
Studies em Maseno University College, Maseno.
Capítulo 15 R. PANKHURST (Reino Unido). Especialista em história da Etió-
pia; autor de diversas publicações sobre a história e a cultura etíopes;
anteriormente diretor do Institute of Ethiopian Studies de Addis-
Abeba; professor de estudos etíopes no Institute of Ethiopian Studies
de Addis-Abeba.
Capítulo 16 P. M. MUTIBWA (Uganda). Especialista em história de Madagascar
no século XIX e autor de várias publicações a esse respeito; anterior-
mente professor de história e diretor de pesquisa na Universidade de
Makerere, em Kampala; secretário da Uganda Constitutional Com-
mission em Kampala.
F. V. ESOAVELOMANDROSO (Madagáscar). Especialista em his-
tória de Madagascar nos séculos XVIII e XIX; professor de história
na Faculdade de Letras da Universidade de Antananarivo.
Capítulo 17 M. H. CHÉRIF (Tunísia). Especialista em história social e política
norte-africana; autor de vários artigos sobre a história norte-africana;
professor e decano da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de
Túnis.
Capítulo 18 A. LAROUI (Marrocos). Especialista em história do Magreb; autor
de várias obras sobre a história do Marrocos e da África do Norte no
século XIX; professor de história contemporânea na Universidade de
Rabat.
Capítulo 19 N. A. IVANOV (Federação Russa). Especialista em história medieval
e contemporânea da África do Norte; autor de várias publicações sobre
a história contemporânea da África do Norte; encarregado de pesquisa
no Instituto de Estudos Orientais da Academia de Ciências da Rússia,
Moscou.
Capítulo 20 S. BAIER (E.U.A). Especialista em história econômica da África Oci-
dental e, em particular, da história do Sahel Oeste-africano; autor de
várias publicações sobre as economias sahelianas; anteriormente diretor
adjunto do African Studies Center da Universidade de Boston; enge-
nheiro de software junto a Access Technology, Natick (Massachusetts).
936
África do século XIX à década de 1880
Capítulo 21 A. A. BATRAN (Sudão). Especialista em história do islã na África;
autor de obras e artigos sobre as confrarias religiosas sufis e sobre a
evolução da erudição na África Ocidental e do Norte; professor de
história africana na Universidade Howard, Washington D.C.
Capítulo 22 M. LAST (Reino Unido). Especialista em história e sociologia afri-
canas; autor de várias obras sobre a história e a cultura haussas, bem
como sobre a vida inteletual no Sudão Ocidental; professor de antro-
pologia social no University College de Londres.
Capítulo 23 M. LY-TALL (Mali). Especialista em história do Mali; autor de obras
sobre o Império do Mali e a vida de al-Hadjdj ‘Umar Tall; anterior-
mente professor adjunto no IFAN da Universidade de Dakar; embai-
xador extraordinário e pleinipotenciário, delegado permanente do Mali
junto à UNESCO.
Capítulo 24 Y. PERSON (França). Especialista em história da África e, notada-
mente, do mundo mande; autor de várias obras sobre a história da
África; professor de história na Universidade de Paris-I, Panthéon-
Sorbonne. Falecido em 1982.
Capítulo 25 K. ARHIN (Gana). Especialista em antropologia social, principal-
mente no que diz respeito à história e à cultura dos akan; autor de
várias obras sobre os ashanti; professor de estudos africanos no Insti-
tute of African Studies da Universidade de Gana.
J. Ki-ZERBO (Burkina Faso). Especialista em história africana e sua
metodologia; autor de numerosos trabalhos sobre a África negra e sua
história; professor de história na Universidade de Dakar; diretor do
CEDA de Uagadugu e deputado na Assembléia Nacional do Burkina
Faso.
Capítulo 26 A. I. ASIWAJU (Nigéria). Especialista em história da África; autor
de várias obras relativas aos povos de língua ioruba e aja, assim como
ao impacto da partilha territorial colonial sobre os povos africanos;
professor de história na Universidade de Lagos.
Capítulo 27 E. J. ALAGOA (Nigéria). Especialista em história africana e sua meto-
dologia; autor de numerosos estudos sobre os ijo, as técnicas de história
da tradição oral e a arqueologia; professor de história na Universidade
de Port Harcourt.
L. Z. ELANGO (Camarões). Especialista em história de Camarões;
professor titular do Departamento de História de Yaoundé.
N. METEGUE N’NAH (Gabão). Especialista em história da África
Central; chefe do Departamento de História da Universidade de
Libreville.
937
Dados biográcos dos autores do volume VI
Capítulo 28 F. W. KNIGHT ( Jamaica). Especialista em história da diáspora afri-
cana; autor de diversas publicações sobre Cuba, a sociedade escrava-
gista e a diáspora africana; professor de história da Universidade John
Hopkins de Baltimore.
Y. A. TALIB (Cingapura). Especialista do islã, do mundo malaio e do
Oriente Médio, e mais especificamente da Arábia do Sudoeste; autor
de várias obras a esse respeito; chefe do Departamento de Estudos
Malaios da Universidade Nacional de Cingapura.
P. D. CURTIN (E.U.A.). Especialista em história da África e do trá-
fico de escravos; autor de várias publicações a esse respeito; professor
de história na Universidade John Hopkins de Baltimore.
Capítulo 29 J. F. ADE. AJAYI (Nigéria).
M. A. OMOLEWA, da Universidade de Idaban, ajudou o professor J.
F. Ade. Ajayi na fase final de preparação do presente volume.
939
Abreviações e listas de periódicos
AHS — African Historical Studies (IJAHS em 1972); Boston University, African Stu-
dies Center
BCEHSAOF — Bulletin du Comité d’ Etudes
Historiques
et
Scientiques
de l´Afrique occi-
dentale française, Dakar
BI FAN — Bulletin de l’Institut Français (Fondamental em 1966) de l’ Afrique Noire,
Dakar
BSOAS — Bulletin of the School of Oriental and African Studies, Londres
CEA — Cahiers d Etudes
Africaines,
Paris: Mouton
CJAS — Canadian Journal of African Studies, Canadian Association of African Stu-
dies, Department of Geography, Carleton University, Ottawa
CUP Cambridge University Press
EALB East African Literature Bureau, Nairóbi
EAPH East African Publishing House, Nairóbi
HA — History of Africa: A Journal of Method, Waltham, Massachusetts
HMSO Her (His) Majestys Stationery Oce, Londres
HUP Harvard University Press
IAI International African Institute, Londres
IFAN Institut Français (Fondamental em 1966) de l’Afrique Noire, Dakar
IJAHS — International journal of African Historical Studies, Boston University, African
Studies Center
IRSH Institut de Recherches Humaines, Niamey
IUP Ibadan University Press
Abreviações e
listas de periódicos
940
África do século XIX à década de 1880
JAH — Journal of African History, Cambridge: CUP
JHSN — Journal of the
Historical
Society of
Nigeria,
Ibadan
JHUP Johns Hopkins University Press, Baltimore
JICH — Journal of Imperial and Commonwealth History, Institute of Commonwealth
Studies, Londres
JRAI — Journal of the Royal Anthropological Institute, Londres
JSAS — Journal of Southern African
Studies,
Londres: OUP
KUP Khartoum University Press
MUP Manchester University Press
NEA Nouvelles Editions Africaines, Dakar
NUP Northwestern University Press
OUP Oxford University Press
PUF Presses Universitaires de France, Paris
PUP Princeton University Press
RFHOM — Revue française d’Histoire d’Outre-mer, Paris
ROMM — Revue de l’Occidem Musulman et de la Méditerranée, Aix-en-Provence
SFHOM Société française d’Histoire d’Outre-mer, Paris
SNR — Sudan Notes and Records, Khartoum
SOAS School of Oriental and African Studies, University of London
SUP Stanford University Press
TAJH Transafrican Journal of
History,
Nairóbi: EAPH
THSG Transactions of the Historical Society of Ghana, Legon
TNR Tanzania Notes and Records, Dar es Salaam
UCP University of California Press
UJ — Uganda Journal, Kampala
UPP University of Pennsylvania Press
UWP University of Wisconsin Press
YUP Yale University Press
941
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942
África do século XIX à década de 1880
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Press). Ziadeh, N. (1958) Sanūsīyah: A Study of a Revivalist Movement in lslam
(Leidcn: Brill).
1001
Índice remissivo
África central, 4-5, 7,
28; tendências e pro-
cessos, 47-75.
África equatorial, 48,
69, 868-870.
África meridional, 38-
39, 169-210; Colônia
do Cabo e Natal,
169-210; economia
mundial, 27-46;
expansão britânica,
169-210; no início
do século, 1-26;
relações dos bôeres
com os africanos,
169; República dos
bôeres, 169; retirada
britânica do interior,
170; tendências e
processos, 47-75.
África ocidental, no
início do século
1-26; abolição do
comércio de escra-
vos, 77-104; tendên-
cias e processos, 47-
75
; retorno de escravos
,
835-41; e economia
mundial,
27-46.
África oriental e inte-
rior (1845-1880),
275; abolição do
comércio de escra-
vos, 77-104, 275,
481; comunidades
costeiras (c. 1800)
249-274; diáspora
da, 875; efeitos so-
cioeconômicos da
expansão comercial,
263; invasão Nguni,
298; europeus, 307;
tendências e proces-
sos, 47-75; Massai,
303.
Agricultura/ocupação
do solo, África me-
ridional, 169-210;
África oriental, 275-
342; bacia do Congo
e Angola, 342-376;
delta do Níger e Ca-
marões, 843; diáspo-
ra, 875-930; Egito,
377-410; Etiópia e
Somália, 435-476;
Grandes Lagos,
317-342; Mada-
gascar, 477-516;
Índice remissivo
1002
África do século XIX à década de 1880
Magreb, 525-548;
Marrocos, 549-570;
Macina e Torodbe,
706-741; e Mfecane,
105-146, 147-168;
no início do século,
1-26; tendências e
processos, 47; Saara,
591-618; Senegâm-
bia e Alta Guiné,
741-750; tráco de
escravos e abolição,
77-104; Sokoto e
Borno, 665-697;
Sudão, 416; Zam-
beze,
215-6.
Comércio, no início
do século, 1-26,
435-476; África
ocidental, 619-640;
África oriental,
254-274,
275-316;
África meridional,
158-168, 189-210;
bacia do Congo e
Angola, 342-376;
bacia do Zambeze,
216-247; conquista
europeia, 905-930
;
curva do Níger e
bacia do Volta, 771-
812; delta do Níger e
Camarões, 843-873;
depois da abolição
da escravatura, 98;
Egito, 389-410;
Grandes Lagos, 320-
342; Madagascar,
481-516; Magreb,
519-548; Marrocos,
557-570; Macina e
Torodbe, 699-741;
região do Níger,
771-812, 813-841;
sultanato de Omani,
260-274
;
Saara, 591-
618; Senegâmbia e
Alta Guiné, 741-
760; Sokoto e Borno,
641-697; Sudão,
413-434; Transkei,
132, 149,179; Trans-
vaal, 53, 109, 119,
125, 167, 175-210;
Mfecane, 107-146.
Comércio de escravos,
77-104, 905-930;
no início do século,
1-26; aprendizado,
158, 182; bacia do
Congo e Angola,
345-376; África
oriental, 250-274;
Etiópia e Somália,
443-476; Grandes
Lagos, 324-340;
Madagascar, 481-3,
511-516; Macina e
Torodbe, 712-735;
região do Níger e
Camarões, 771-812,
843-873; Saara, 592-
605; Senegâmbia e
Alta Guiné, 699-
741; Sokoto e Borno,
650-697; Sudão,
430-434; economia
mundial, 27-46;
bacia do Zambeze,
218-247
.
Comércio de sal, 324-
342, 595-617; África
ocidental
,
798-812,
843-873.
Costa da África oriental
e interior, 211-247,
249-274; abolição
do comércio de
escravos, 78-104,
307-316; comu-
nidades costeiras
(c. 1800) 249-251;
diáspora africana
da, 886-904; efeitos
socioeconômicos da
expansão comercial,
263-274; europeus,
307-
316;
invasão
Nguni, 298-303;
Massai, 303-7;
tendências e proces-
sos, 47-75.
Línguas, Adaré, 448;
Aja, 814, 821, 827,
833; Akan, 812;
Amárico,
439,441
;
Árabe,
385, 443, 446, 585,
592, 600, 629; Ba-
tonu, 816; Boko,
816; Edo, 818, 837,
906; Europeias, 920;
Fulfulde, 624, 627,
645; Ge’ez, 436, 443;
1003
Índice remissivo
Grebo, 760; Kat-
icho, 449; Kissi, 758;
Kiswahili, 266, 267;
Kololo, 127, 135;
Kru, 759; Luo, 333;
Mande, 763, 816;
Ndebele, 128; Ngu-
ni, 55, 105-6; Niger-
Congo, 843-873;
Nkonde, 55; Nyanja,
55; Patoá,
899; Sho-
na, 127, 144; Sinde-
bele, 128; Suaíli, 267,
279, 286; Tigrinya,
436; Tumbuka, 244;
Turco, 592; Twi, 812;
Voltaica, 816; Xhosa,
113, 159.
Mapas, África central,
214; missões cristãs,
54; bacia do Congo
e Angola, 346, 358;
África oriental,
251, 256, 277, 282,
300, 304; Egito,
380; Etiópia, 437;
Grandes Lagos, 297,
319, 331; Oceano
Índico, 277; Islã, 54,
552; Kintampo, 802;
Madagascar, 479,
483, 488; Macina,
705; rotas mi-
gratórias, 300; região
do Níger, 817; Mar-
rocos, 552; curva
do Níger e bacia
do Volta, 773, 802;
delta do Níger e Ca-
marões, 844; Norte
da África, 380;
Senegâmbia e Alta
Guiné, 743; comér-
cio de escravos, 86;
Sokoto e Borno, 643;
África meridional,
172; Sudão, 412;
Torodbe, 717, 727;
rotas comerciais, 86,
251, 256, 277, 319,
331, 643, 717; vege-
tação, 346; África
ocidental, 86, 344,
643, 705, 717, 727,
743, 773; bacia do
Zambeze, 214.
Política/políticos/poder/
lei/conitos, bacia
do Congo e Angola,
349-276; África ori-
ental, 249-307; Egi-
to, 377-410; Etiópia
e Somália, 435-466;
Grandes Lagos, 317-
339; Madagascar,
477-511
;
Magreb
518-546, 551-570;
Macina e Torodbe,
699-741; região
do Níger, 771-831;
tendências e proces-
sos, 68-72; delta do
Níger e Camarões,
846-873
;
Saara, 591-
617; Senegâmbia e
Alta Guiné, 744-
770; Sokoto e Borno,
641-697;
Á
frica
meridional, 178-210;
Sudão, 413-434;
bacia do Zambeze,
211-247; conquista
europeia, 905-930.
Sociedade e estrutura
social, África orien-
tal, 249-274, 274-
316; bacia do Congo
e Angola, 349-376;
bacia do Zambeze,
223-243; conquista
europeia, 905-930
;
curva do Níger e
bacia do Volta, 787-
812; diáspora, 875-
904, delta do Níger e
Camarões, 843-873;
efeitos do comércio
Omani 264-269;
Egito, 389-405;
Grandes Lagos, 320-
342; Madagascar,
477-496; Magreb,
572-589; Macina e
Torodbe, 704-735;
Mfecane, 105-113;
Marrocos, 551-570;
região do Níger,
771-812, 813-841;
Saara, 592-613;
Senegâmbia e Alta
Guiné, 744-763;
Sokoto e Borno,
664-673.
Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA
VI
África do século XIX
à década de 1880
UNESCO Representação no BRASIL
Ministério da Educação do BRASIL
Universidade Federal de São Carlos
UNESCO
HISTÓRIA
GERAL
DA ÁFRICA
VI
África do
século XIX
à década
de 1880
EDITOR J. F. ADE AJAYI
UNESCO/BRASIL
MEC BRASIL
UFSCar
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda
espécie ocultaram ao mundo a verdadeira história da
África. As sociedades africanas eram vistas como
sociedades que não podiam ter história. Apesar dos
importantes trabalhos realizados desde as primeiras
décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius,
Maurice Delafosse e Arturo Labriola, um grande
número de estudiosos não africanos, presos a certos
postulados, afirmava que essas sociedades não podiam
ser objeto de um estudo científico, devido, sobretudo,
à ausência de fontes e de documentos escritos.
De fato, havia uma recusa a considerar o povo africano
como criador de culturas originais que floresceram e se
perpetuaram ao longo dos séculos por caminhos
próprios, as quais os historiadores, a menos que
abandonem certos preconceitos e renovem seus
métodos de abordagem, não podem apreender.
A situação evoluiu muito a partir do fim da Segunda
Guerra Mundial e, em particular, desde que os países
africanos, tendo conquistado sua independência,
começaram a participar ativamente da vida da
comunidade internacional e dos intercâmbios que ela
implica. Um número crescente de historiadores tem se
empenhado em abordar o estudo da África com maior
rigor, objetividade e imparcialidade, utilizando com
as devidas precauções fontes africanas originais.
No exercício de seu direito à iniciativa histórica,
os próprios africanos sentiram profundamente a
necessidade de restabelecer em bases sólidas a
historicidade de suas sociedades.
Os especialistas de vários países que trabalharam nesta
obra tiveram o cuidado de questionar as simplificações
excessivas provenientes de uma concepção linear e
restritiva da história universal e de restabelecer a
verdade dos fatos sempre que necessário e possível.
Esforçaram-se por resgatar os dados históricos que
melhor permitissem acompanhar a evolução dos
diferentes povos africanos em seus contextos
socioculturais específicos.
Esta Coleção traz à luz tanto a unidade histórica da
África quanto suas relações com os outros continentes,
sobretudo as Américas e o Caribe. Durante muito
tempo, as manifestações de criatividade dos descendentes
de africanos nas Américas foram isoladas por certos
historiadores num agregado heteróclito de africanismos.
Desnecessário dizer que tal não é a atitude dos autores
desta obra. Aqui, a resistência dos escravos deportados
para as Américas, a “clandestinidade” política e cultural,
a participação constante e maciça dos descendentes de
africanos nas primeiras lutas pela independência, assim
como nos movimentos de libertação nacional, são
entendidas em sua real significação: foram vigorosas
afirmações de identidade que contribuíram para forjar o
conceito universal de Humanidade.
Outro aspecto ressaltado nesta obra são as relações da
África com o sul da Ásia através do oceano Índico,
assim como as contribuições africanas a outras
civilizações por um processo de trocas mútuas.
Avaliando o atual estágio de nossos conhecimentos sobre
a África, propondo diferentes pontos de vista sobre as
culturas africanas e oferecendo uma nova leitura da história,
a História Geral da África tem a indiscutível vantagem
de mostrar tanto a luz quanto a sombra, sem dissimular as
divergências de opinião que existem entre os estudiosos.
Nesse contexto, é de suma importância a publicação
dos oito volumes da História Geral da África que ora se
apresenta em sua atual versão em português como fruto
da parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil,
a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade do Ministério da Educação do Brasil (Secad/
MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
UNESCO HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA VOLUMES I-VIII
Organização
das Nações Unidas
para a Educação,
a Ciência e a Cultura
Organização
das Nações Unidas
para a Educação,
a Ciência e a Cultura
EDITOR J. F. ADE AJAYI
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