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Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA
IV
África do
século XII ao XVI
UNESCO Representação no BRASIL
Ministério da Educação do BRASIL
Universidade Federal de São Carlos
EDITOR DJIBRIL TAMSIR NIANE
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HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA
IV
África do século XII ao XVI
Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
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Coleção História Geral da África da UNESCO
Volume I Metodologia e pré-história da África
(Editor J. Ki-Zerbo)
Volume II África antiga
(Editor G. Mokhtar)
Volume III África do século VII ao XI
(Editor M. El Fasi)
(Editor Assistente I. Hrbek)
Volume IV África do século XII ao XVI
(Editor D. T. Niane)
Volume V África do século XVI ao XVIII
(Editor B. A. Ogot)
Volume VI África do século XIX à década de 1880
(Editor J. F. A. Ajayi)
Volume VII África sob dominação colonial, 1880-1935
(Editor A. A. Boahen)
Volume VIII África desde 1935
(Editor A. A. Mazrui)
(Editor Assistente C. Wondji)
Os autores o responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro,
bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO,
nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e apresentação do
material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte
da UNESCO a respeito da condão judica de qualquer país, território, cidade, região
ou de suas autoridades, tampouco da delimitão de suas fronteiras ou limites.
Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA
IV
África do século
XII ao XVI
EDITOR DJIBRIL TAMSIR NIANE
Organização
das Nações Unidas
para a Educação,
a Ciência e a Cultura
História geral da África, IV: África do século XII ao XVI / editado por Djibril Tamsir
Niane. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010.
896 p.
ISBN: 978-85-7652-126-6
1. História 2. História medieval 3. História africana 4. Culturas africanas 5. África
I. Niane, Djibril Tamsir II. UNESCO III. Brasil. Ministério da Educação IV. Universidade
Federal de São Carlos
Esta versão em português é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil, a
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação do
Brasil (Secad/MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Título original: General History of Africa, IV: Africa from the twelfth to the sixteenth century. Paris:
UNESCO; Berkley, CA: University of California Press; London: Heinemann Educational
Publishers Ltd., 1984. (Primeira edição publicada em inglês).
© UNESCO 2010 (versão em português com revisão ortográca e revisão técnica)
Coordenação geral da edição e atualização: Valter Roberto Silvério
Revisão técnica: Kabengele Munanga
Preparação de texto: Eduardo Roque dos Reis Falcão
Revisão e atualização ortográca: M. Corina Rocha
Projeto gráco e diagramação: Marcia Marques / Casa de Ideias; Edson Fogaça e Paulo Selveira /
UNESCO no Brasil
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
Representação no Brasil
SAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar
70070-912 – Brasília DF – Brasil
Tel.: (55 61) 2106-3500
Fax: (55 61) 3322-4261
Site: www.unesco.org/brasilia
Ministério da Educação (MEC)
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Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
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Bairro Monjolinho
13565-905 – São Carlos – SP – Brasil
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Fax: (55 16) 3361-2081
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Impresso no Brasil
SUMÁRIO
Apresentação ...................................................................................VII
Nota dos Tradutores ..........................................................................IX
Cronologia .......................................................................................XI
Lista de Figuras .............................................................................XIII
Prefácio ..........................................................................................XIX
Apresentação do Projeto .................................................................XXV
Capítulo 1 Introdução ............................................................................... 1
Capítulo 2 A unificação do Magreb sob os Almóadas............................ 17
Capítulo 3 A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a
civilização ocidental .............................................................. 65
Capítulo 4 A desintegração da unidade política no Magreb ................... 89
Capítulo 5 A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos
Almóadas ............................................................................ 117
Capítulo 6 O Mali e a segunda expansão manden ............................... 133
Capítulo 7 O declínio do Império do Mali .......................................... 193
Capítulo 8 Os Songhai do século XII ao XVI ...................................... 211
Capítulo 9 Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta,
do século XII ao XVI .......................................................... 237
Capítulo 10 Reinos e povos do Chade .................................................. 267
VI
África do século  ao século 
Capítulo 11 Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central .................... 299
Capítulo 12 Os povos da costa primeiros contatos com os
portugueses de Casamance às lagunas da costa do
Marfim ............................................................................. 337
Capítulo 13 Das lagunas da Costa do Marfim até o Volta ................... 361
Capítulo 14 Do rio Volta aos Camarões ............................................... 379
Capítulo 15 O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao
início do XVI) .................................................................. 415
Capítulo 16 A Núbia, do fim do século XII até a conquista pelos
Funj, no início do século XVI .......................................... 445
Capítulo 17 O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os
Estados do Chifre da África ............................................ 475
Capítulo 18 O desenvolvimento da civilização swahili ......................... 511
Capítulo 19 Entre a costa e os Grandes Lagos ..................................... 539
Capítulo 20 A região dos Grandes Lagos ............................................. 559
Capítulo 21 As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e
1500 ................................................................................. 591
Capítulo 22 A África equatorial e Angola: as migrações e o
surgimento dos primeiros Estados ................................... 623
Capítulo 23 A África meridional: os povos e as formações sociais ....... 655
Capítulo 24 Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI ...... 677
Capítulo 25 Relações e intercâmbios entre as várias regiões ................ 697
Capítulo 26 A África nas relações intercontinentais ............................. 721
Capítulo 27 Conclusão ......................................................................... 763
Membros do Comitê Científico Internacional para a Redação
de uma História Geral da África ...................................................779
Dados Biográficos dos Autores do Volume IV....................................781
Abreviações e Listas de Periódicos ....................................................785
Referências Bibliográficas ................................................................793
Índice Remissivo ..............................................................................859
VII
APRESENTÃO
“Outra exigência imperativa é de que a história (e a cultura) da África devem pelo menos ser
vistas de dentro, não sendo medidas por réguas de valores estranhos... Mas essas conexões
têm que ser analisadas nos termos de trocas mútuas, e influências multilaterais em que algo
seja ouvido da contribuição africana para o desenvolvimento da espécie humana”. J. Ki-Zerbo,
História Geral da África, vol. I, p. LII.
A Representação da UNESCO no Brasil e o Ministério da Educação têm a satis-
fação de disponibilizar em português a Coleção da História Geral da África. Em seus
oito volumes, que cobrem desde a pré-história do continente africano até sua história
recente, a Coleção apresenta um amplo panorama das civilizações africanas. Com sua
publicação em língua portuguesa, cumpre-se o objetivo inicial da obra de colaborar para
uma nova leitura e melhor compreensão das sociedades e culturas africanas, e demons-
trar a importância das contribuições da África para a história do mundo. Cumpre-se,
também, o intuito de contribuir para uma disseminação, de forma ampla, e para uma
visão equilibrada e objetiva do importante e valioso papel da África para a humanidade,
assim como para o estreitamento dos laços históricos existentes entre o Brasil e a África.
O acesso aos registros sobre a história e cultura africanas contidos nesta Coleção se
reveste de significativa importância. Apesar de passados mais de 26 anos após o lança-
mento do seu primeiro volume, ainda hoje sua relevância e singularidade são mundial-
mente reconhecidas, especialmente por ser uma história escrita ao longo de trinta anos
por mais de 350 especialistas, sob a coordenação de um comitê científico internacional
constituído por 39 intelectuais, dos quais dois terços africanos.
A imensa riqueza cultural, simbólica e tecnológica subtraída da África para o conti-
nente americano criou condições para o desenvolvimento de sociedades onde elementos
europeus, africanos, das populações originárias e, posteriormente, de outras regiões do
mundo se combinassem de formas distintas e complexas. Apenas recentemente, tem-
se considerado o papel civilizatório que os negros vindos da África desempenharam
na formação da sociedade brasileira. Essa compreensão, no entanto, ainda está restrita
aos altos estudos acadêmicos e são poucas as fontes de acesso público para avaliar este
complexo processo, considerando inclusive o ponto de vista do continente africano.
APRESENTAÇÃO
VIII
África do século  ao século 
A publicação da Coleção da História Geral da África em português é também resul-
tado do compromisso de ambas as instituições em combater todas as formas de desigual-
dades, conforme estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
especialmente no sentido de contribuir para a prevenção e eliminação de todas as formas
de manifestação de discriminação étnica e racial, conforme estabelecido na Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1965.
Para o Brasil, que vem fortalecendo as relações diplomáticas, a cooperação econô-
mica e o intercâmbio cultural com aquele continente, essa iniciativa é mais um passo
importante para a consolidação da nova agenda política. A crescente aproximação com
os países da África se reflete internamente na crescente valorização do papel do negro
na sociedade brasileira e na denúncia das diversas formas de racismo. O enfrentamento
da desigualdade entre brancos e negros no país e a educação para as relações étnicas
e raciais ganhou maior relevância com a Constituição de 1988. O reconhecimento da
prática do racismo como crime é uma das expressões da decisão da sociedade brasileira
de superar a herança persistente da escravidão. Recentemente, o sistema educacional
recebeu a responsabilidade de promover a valorização da contribuição africana quando,
por meio da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e
com a aprovação da Lei 10.639 de 2003, tornou-se obrigatório o ensino da história e
da cultura africana e afro-brasileira no currículo da educação básica.
Essa Lei é um marco histórico para a educação e a sociedade brasileira por criar, via
currículo escolar, um espaço de diálogo e de aprendizagem visando estimular o conheci-
mento sobre a história e cultura da África e dos africanos, a história e cultura dos negros
no Brasil e as contribuições na formação da sociedade brasileira nas suas diferentes
áreas: social, econômica e política. Colabora, nessa direção, para dar acesso a negros e
não negros a novas possibilidades educacionais pautadas nas diferenças socioculturais
presentes na formação do país. Mais ainda, contribui para o processo de conhecimento,
reconhecimento e valorização da diversidade étnica e racial brasileira.
Nessa perspectiva, a UNESCO e o Minisrio da Educação acreditam que esta publica-
ção estimulará o necessário avanço e aprofundamento de estudos, debates e pesquisas sobre
a temática, bem como a elaboração de materiais pedagicos que subsidiem a formação
inicial e continuada de professores e o seu trabalho junto aos alunos. Objetivam assim com
esta edição em português da História Geral da África contribuir para uma efetiva educação
das relações étnicas e raciais no país, conforme orienta as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relões Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-
brasileira e Africana aprovada em 2004 pelo Conselho Nacional de Educação.
Boa leitura e sejam bem-vindos ao Continente Africano.
Vincent Defourny Fernando Haddad
Representante da UNESCO no Brasil Ministro de Estado da Educação do Brasil
IX
NOTA DOS TRADUTORES
NOTA DOS TRADUTORES
A Conferência de Durban ocorreu em 2001 em um contexto mundial dife-
rente daquele que motivou as duas primeiras conferências organizadas pela
ONU sobre o tema da discriminação racial e do racismo: em 1978 e 1983 em
Genebra, na Suíça, o alvo da condenação era o apartheid.
A conferência de Durban em 2001 tratou de um amplo leque de temas, entre
os quais vale destacar a avaliação dos avanços na luta contra o racismo, na luta
contra a discriminação racial e as formas correlatas de discriminação; a avaliação
dos obstáculos que impedem esse avanço em seus diversos contextos; bem como
a sugestão de medidas de combate às expressões de racismo e intolerâncias.
Após Durban, no caso brasileiro, um dos aspectos para o equacionamento
da questão social na agenda do governo federal é a implementação de políticas
públicas para a eliminação das desvantagens raciais, de que o grupo afrodescen-
dente padece, e, ao mesmo tempo, a possibilidade de cumprir parte importante
das recomendações da conferência para os Estados Nacionais e organismos
internacionais.
No que se refere à educação, o diagnóstico realizado em novembro de 2007,
a partir de uma parceria entre a UNESCO do Brasil e a Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/
MEC), constatou que existia um amplo consenso entre os diferentes participan-
tes, que concordavam, no tocante a Lei 10.639-2003, em relação ao seu baixo
grau de institucionalização e sua desigual aplicação no território nacional. Entre
X
África do século  ao século 
os fatores assinalados para a explicação da pouca institucionalização da lei estava
a falta de materiais de referência e didáticos voltados à História de África.
Por outra parte, no que diz respeito aos manuais e estudos disponíveis sobre
a História da África, havia um certo consenso em afirmar que durante muito
tempo, e ainda hoje, a maior parte deles apresenta uma imagem racializada e
eurocêntrica do continente africano, desfigurando e desumanizando especial-
mente sua história, uma história quase inexistente para muitos até a chegada
dos europeus e do colonialismo no século XIX.
Rompendo com essa visão, a Hisria Geral da África publicada pela UNESCO
é uma obra coletiva cujo objetivo é a melhor compreensão das sociedades e cul-
turas africanas e demonstrar a importância das contribuições da África para a
história do mundo. Ela nasceu da demanda feita à UNESCO pelas novas nações
africanas recém-independentes, que viam a importância de contar com uma his-
tória da África que oferecesse uma visão abrangente e completa do continente,
para além das leituras e compreensões convencionais. Em 1964, a UNESCO
assumiu o compromisso da preparação e publicação da História Geral da África.
Uma das suas características mais relevantes é que ela permite compreender
a evolução histórica dos povos africanos em sua relação com os outros povos.
Contudo, até os dias de hoje, o uso da História Geral da África tem se limitado
sobretudo a um grupo restrito de historiadores e especialistas e tem sido menos
usada pelos professores/as e estudantes. No caso brasileiro, um dos motivos
desta limitação era a ausência de uma tradução do conjunto dos volumes que
compõem a obra em língua portuguesa.
A Universidade Federal de São Carlos, por meio do Núcleo de Estudos
Afrobrasileiros (NEAB/UFSCar) e seus parceiros, ao concluir o trabalho de
tradução e atualização ortográfica do conjunto dos volumes, agradece o apoio
da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD),
do Ministério da Educação (MEC) e da UNESCO por terem propiciado as
condições para que um conjunto cada vez maior de brasileiros possa conhecer e
ter orgulho de compartilhar com outros povos do continente americano o legado
do continente africano para nossa formação social e cultural.
XI
Cronologia
Na apresentação das datas da pré -história convencionou -se adotar dois tipos
de notação, com base nos seguintes critérios:
• Tomando como ponto de partida a época atual, isto é, datas B.P. (before
present), tendo como referência o ano de + 1950; nesse caso, as datas são
todas negativas em relação a + 1950.
• Usando como referencial o início da Era Cristã; nesse caso, as datas
são simplesmente precedidas dos sinais - ou +. No que diz respeito aos
séculos, as menções antes de Cristo e “depois de Cristo são substituídas
por “antes da Era Cristã”,da Era Cristã”.
Exemplos:
(i) 2300 B.P. = -350
(ii) 2900 a.C. = -2900
1800 d.C. = +1800
(iii) século V a.C. = século V antes da Era Cristã
século III d.C. = século III da Era Cristã
CRONOLOGIA
XIII
Lista de Figuras
Figura 1.1 Mapa -múndi de al -Idrs .......................................................................................5
Figura 2.1 Mapa do Magreb durante o século XII atividades econômicas. ........................ 18
Figura 2.2 Muro ocidental (kibla) da mesquita em Tnmallal (Marrocos) ............................ 29
Figura 2.3 Pátio interno da mesquita em Tnmallal. .............................................................29
Figura 2.4 Minarete da mesquita Hasan (inacabada) em Rabat ...........................................34
Figura 2.5 Mapa da reconquista almóada .............................................................................. 38
Figura 2.6 Porta da kasaba (fortaleza) de Udāya, em Rabat ..................................................40
Figura. 2.7 Porta da kasaba de Udāya em Rabat ....................................................................40
Figura 3.1 O Alhambra de Granada. Sala lateral do Pátio dos Leões. ..................................73
Figura 3.2 Arcadas do claustro, em Soria ..............................................................................86
Figura 4.1 Mapa do desmembramento do Império Almóada ...............................................92
Figura 4.2 A madraça Bou Inania, em Fés. Detalhe de uma janela do pátio ........................98
Figura 4.3 A madraça Bou Inania, em Fés. Detalhe de uma meia -porta ..............................99
Figura 4.4 A mesquita de Karawiyyn, em Fés ....................................................................100
Figura 5.1 Aghadīr (celeiro fortificado) de Fri -Fri, região de Tiznit (Sul do Marrocos) ..... 119
Figura 5.2
A mesquita da
kasaba
em Túnis ................................................................129
Figura 6.1 Kumbi -Sāleh ...................................................................................................... 137
Figura 6.2 Toguéré Galia. .................................................................................................... 138
Figura 6.3 Toguéré Galia .............................................................................................138
Figura 6.4 Toguéré Doupwil. Corte C com urna funerária
in situ
...............................139
Figura 6.5 Toguéré Doupwil. Corte C com urna funerária contendo um esqueleto
in situ
..........................................................................................................139
LISTA DE FIGURAS
XIV
África do século  ao século 
Figura 6.6 Mapa do antigo Manden ................................................................................... 145
Figura 6.7 Mapa das escavações do sítio de Niani............................................................... 157
Figura 6.8 Mapa dos sítios de Niani ...................................................................................158
Figura 6.9 Niani. Sítio 1 ......................................................................................................159
Figura 6.10 Niani. Sítio 29 ......................................................................................................159
Figura 6.11 Niani. Sítio 1 ....................................................................................................160
Figura 6.12 Niani. Sítio 6D (Quarteirão árabe) ..................................................................161
Figura 6.13 Niani. Sítio 6D (Quarteirão árabe) ..................................................................162
Figura 6.14 Niani. Sítio 1 ....................................................................................................163
Figura 6.15 Niani. Sítio 32 (cemitério) ............................................................................... 164
Figura 6.16 Mapa do Império do Mali ............................................................................... 173
Figura 6.17 Mapa das principais rotas transaarianas no século XIV ................................... 177
Figura 6.18 Vista da caverna P de Tellem: celeiros de tijolo cru ......................................... 182
Figura 6.19 Ta de Tellem com quatro pés munidos de base, da caverna D ...................... 182
Figura 6.20 Túnica de algodão de Tellem encontrada na caverna C ................................... 183
Figura 6.21 Império do Mali.............................................................................................. 184
Figura 6.22 Estátua de cavaleiro encontrada na região de Bamako .................................... 185
Figura 6.23 Império do Mali: estatueta de figura barbada, feita em terracota. ....................189
Figura 6.24 Império do Mali: estatueta em terracota de mãe com criança ......................... 190
Figura 6.25 Império do Mali: serpente em terracota ...........................................................191
Figura 6.26 Império do Mali: estatueta em terracota de figura ajoelhada, da região de
Bankoni ........................................................................................................... 192
Figura 7.1 Fachada do kamablon de Kangaba ......................................................................196
Figura 7.2 O kamablon de Kangaba, cabana das cerimônias setenais ..................................196
Figura 7.3 Vista de Kamalia, no sudeste de Kangaba, Mali ................................................197
Figura 7.4 Mapa dos Estados do Sudão, no século XVI .....................................................202
Figura 8.1 Estela 11 de Gao -Sané (SO 50 -59 bis), retangular, de quartzo .........................219
Figura 8.2 Estela 14 de Gao -Sané (SO 50 -54), de xisto, coloração verde -amarela ............. 220
Figura 8.3 Mapa do Império Songhai no fim do século XVI .............................................227
Figura 9.1 Mapa da região da curva do Níger e da bacia do Volta, 1100 -1600. .................. 245
Figura 10.1 Mapa da região do lago Chade (lago Kūr). ..................................................... 270
Figura 10.2 Mapa simplificado, extraído do grande mapa de al -Idrs (1154) ....................271
Figura 10.3 Mapa simplificado, extraído do “Pequeno Idrs” (1192) .................................272
Figura 10.4 Mapa dos povos e reinos do Chade no século XIV ......................................... 288
Figura 10.5 Mapa dos povos e reinos do Chade no século XV ........................................... 291
Figura 10.6 Genealogia dos Sēfuwa ....................................................................................292
Figura 11.1 Mapa da localização dos Haussa e de outros povos na Nigéria setentrional .... 323
Figura 12.1 Portulano de Mecia de Viladestes, 1413 .......................................................... 340
Figura 12.2 Mapa da alta Guiné no século XVI ................................................................. 342
Figura 12.3 Nomoli (estatuetas de esteatita) da República de Serra Leoa .......................... 345
XV
Lista de Figuras
Figura 12.4 Escultura africana em marfim .......................................................................... 347
Figura 12.5 Trompa de marfim com cenas de caça..............................................................348
Figura 12.6 Comerciantes europeus em contato com os habitantes do Cayor em
Cabo Verde. Água -forte ...................................................................................355
Figura 12.7 Habitações dos negros......................................................................................356
Figura 12.8 A cidade negra de Rufisco ............................................................................... 356
Figura 12.9 Fetiches ............................................................................................................ 357
Figura 12.10 O rei de Sestro (século XVII) ........................................................................ 358
Figura 12.11 Fauna e flora da alta Guiné ............................................................................ 358
Figura 13.1 Mapa dos sítios arqueológicos na laguna Aby .................................................. 365
Figura 13.2 Cachimbos descobertos no sítio de Séguié ...................................................... 366
Figura 13.3 Cachimbos descobertos na necrópole de Nyamwã. ..........................................366
Figura 13.4 Bracelete descoberto no sítio de Séguié ........................................................... 367
Figura 13.5 Vasos descobertos na necrópole de Nyamwã .................................................... 367
Figura 13.6 Mapa das migrações akan ................................................................................371
Figura 13.7 Mapa da área entre o vale do Níger e o golfo da Guiné .................................. 374
Figura 14.1 Mapa da região entre o Volta e os Camarões no período de +1100 a +1500 ...381
Figura 14.2 Mapa das populações do delta do Níger .......................................................... 383
Figura 14.3 Cabeça em terracota (Owo, Nigéria) ...............................................................391
Figura 14.4 Cidade de Benin .............................................................................................. 397
Figura 14.5 Placa do Benin .................................................................................................399
Figura 14.6 Benin: tocador de flauta em bronze .................................................................400
Figura 14.7 Vaso em bronze enfeitado com corda ............................................................... 402
Figura 14.8 Desenho esquemático do mesmo vaso .................................................................402
Figura 14.9 Bronze esculpido em forma de altar.................................................................403
Figura 14.10 Cabaça ritual .................................................................................................. 403
Figura 14.11 Grande vaso em bronze, visto de cima ........................................................... 405
Figura 14.12 O mesmo vaso, visto lateralmente .................................................................. 405
Figura 14.13 Bracelete de bronze feito em forma de nó ..................................................... 406
Figura 14.14 Cerâmica: vista geral ...................................................................................... 406
Figura 14.15 Cerâmica: detalhe........................................................................................... 407
Figura 14.16 Cerâmica: vista geral ...................................................................................... 407
Figura 14.17 Reconstituição feita por arqueólogos do enterro de um chefe em
Igdo -Ikwu ...................................................................................................... 409
Figura 14.18 Mapa dos sítios dos bronzes de Tsoede. ......................................................... 410
Figura 14.19 Estátua em bronze (de Tsoede), de uma figura sentada ................................. 411
Figura 15.1 Mapa do Oriente Médio sob os Mamelucos ...................................................423
Figura 15.2 Cairo: túmulo de Kayt Bay (1472 -1474) ......................................................... 431
Figura 15.3 Cairo: pórtico monumental da mesquita de Kansuh al -Ghūri. ........................ 432
Figura 15.4 Cairo: interior da mesquita de Djawhar al -Lāla, de origem etíope (1430) ......433
XVI
África do século  ao século 
Figura 15.5 Candeeiro em vidro esmaltado (época mameluca) ........................................... 442
Figura 16.1 Mapa da Núbia do fim do século XII ao começo do XVI ............................... 448
Figura 16.2 A igreja e o monastério de Faras (Núbia) circundados por fortificações
árabes ............................................................................................................... 458
Figura 16.3 Muralha da cidadela árabe de Faras .................................................................459
Figura 17.1 Mapa da Etiópia e do Chifre da África ........................................................... 477
Figura 17.2 Lalibela: igreja (“casa”) de São Jorge ................................................................ 498
Figura 17.3 Lalibela: parte superior da igreja (“casa”) de São Jorge .................................... 498
Figura 17.4 Lalibela: elevação vertical da igreja (“casa”) de São Jorge. ................................499
Figura 17.5 Lalibela: janela da igreja (“casa”) do Redentor do Mundo ............................... 499
Figura 17.6 Manuscrito etíope do século XV, representando a árvore da vida .................... 502
Figura 17.7 Manuscrito etíope do século XV, representando a Crucificação ...................... 503
Figura 17.8 Manuscrito etíope do século XV, representando a Anunciação .......................504
Figura 18.1 Mapa das rotas de comércio interno e transoceânico das cidades da costa
da África oriental ............................................................................................. 516
Figura 18.2 Siyu, ilha de Pate .............................................................................................. 520
Figura18.3 Ilha de Mafia. ....................................................................................................520
Figura 18.4 Mapa da ilha e da cidade de Kilwa .................................................................. 522
Figura 18.5 A grande mesquita de Kilwa, com suas duas partes geminadas ...........................530
Figura 18.6 Vista geral do portal de entrada do forte de Kilwa Kisiwani ...........................532
Figura 18.7 Detalhe do portal de entrada do forte de Kilwa Kisiwani ............................... 532
Figura 18.8 Ilha do Songo Mnara: ruínas da mesquita de Nabkhani ................................. 533
Figura 18.9 Mihrāb da grande mesquita de Gedi ................................................................ 533
Figura 19.1 Mapa da localização aproximada provável dos povos do interior da África
oriental no século XII ...................................................................................... 556
Figura 19.2 Mapa da localização aproximada provável dos povos do interior da África
oriental no século XVI .....................................................................................557
Figura 20.1 Mapa das primeiras migrações dos Luo ........................................................... 570
Figura 20.2 Mapa da localização dos Bachwezi e dos imigrantes .......................................576
Figura 20.3 Mapa do itinerário do complexo de Kintu e do complexo de Kimera .............586
Figura 21.1 Mapa dos sítios e tradições arqueológicas mencionados no texto .................... 592
Figura 21.2 A colina de Isamu Pati (Zâmbia), durante as escavações ................................. 594
Figura 21.3 Ruínas do Grande Zimbábue. Mapa do sítio principal .................................... 606
Figura 21.4 O Grande Zimbábue: a Acrópole e o Grande Cercado ................................... 607
Figura 21.5 Cerâmica extraída dos estratos superiores da Acrópole, no Grande
Zimbábue ........................................................................................................608
Figura 21.6 Vista interior da plataforma elíptica................................................................. 609
Figura 21.7 A muralha do Grande Cercado no Grande Zimbábue ....................................611
Figura 21.8 Escultura em pedra -sabão de um pássaro numa base monolítica .....................611
Figura 21.9 A torre cônica do Grande Zimbábue ...........................................................611
Figura 21.10 Cerâmica extraída de Chedzugwe, Zimbábue ................................................ 615
XVII
Lista de Figuras
Figura 21.11 Dois lingotes de cobre em forma de cruz do Ingombe Ilede, Zâmbia ........... 616
Figura 21.12 As tradições e fases arqueológicas .................................................................. 620
Figura 22.1 Mapa da África central ....................................................................................626
Figura 22.2 Sino duplo de ferro, de Mangbetu (Zaire) ....................................................... 637
Figura 22.3 Jarra antropomórfica (período Kisaliense). ....................................................... 640
Figura 22.4 Túmulo de Kikulu (KUL -T) ........................................................................... 642
Figura 22.5 Conteúdo de um túmulo kisaliense clássico, no sítio de Kanga ....................... 643
Figura 22.6 Estátua “Ntadi Kongo”, de pedra, de Mboma, baixo Zaire .............................. 643
Figura 23.1 Mapa da África meridional: sítios arqueológicos (1100 -1500) ........................ 662
Figura 23.2 Mapa da expansão khoi -khoi ...........................................................................671
Figura 24.1 Madagáscar. Mapa das vias de migrações e povoamento da ilha ..................... 678
Figura 24.2 Sítio de Antongona (séculos XV -XVIII) .........................................................688
Figura 24.3 Antsoheribory, na baía de Boina .........................................................................688
Figura 24.4 Ambohitrikanjaka (Imerina) ........................................................................................690
Figura 24.5 Reconstituição de uma tigela encontrada em Milangana no Vakinisisaony ..... 692
Figura 25.1 Mapa da circulação de homens e técnicas na áfrica ocidental .......................... 710
Figura 25.2 Mapa da África central, oriental e meridional do século XI ao XV ................. 713
Figura 26.1 A Terra segundo al- Idrs e Ibn Khaldūn ........................................................724
Figura 26.2
Relações econômicas entre as margens do Mediterrâneo ocidental ..................729
Figura 26.3 Mapa dos locais onde o ouro africano era procurado (séculos XII- XV)
pelos comerciantes europeus ............................................................................ 730
Figura 26.4 Mapa do fluxo do ouro africano na economia muçulmana da África
setentrional ...................................................................................................... 733
Figura 26.5 Manuscrito árabe do século XIII mostrando a presença de negros nas
embarcações do oceano Índico. ........................................................................ 741
Figura 26.6 Mapa do cerco português da África no século XV ..........................................746
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie esconderam do
mundo a real história da África. As sociedades africanas passavam por socie-
dades que não podiam ter história. Apesar de importantes trabalhos efetuados
desde as primeiras décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius,
Maurice Delafosse e Arturo Labriola, um grande número de especialistas não
africanos, ligados a certos postulados, sustentavam que essas sociedades não
podiam ser objeto de um estudo científico, notadamente por falta de fontes e
documentos escritos.
Se a Ilíada e a Odisseia podiam ser devidamente consideradas como fontes
essenciais da história da Grécia antiga, em contrapartida, negava-se todo valor
à tradição oral africana, essa memória dos povos que fornece, em suas vidas, a
trama de tantos acontecimentos marcantes. Ao escrever a história de grande
parte da África, recorria-se somente a fontes externas à África, oferecendo
uma visão não do que poderia ser o percurso dos povos africanos, mas daquilo
que se pensava que ele deveria ser. Tomando frequentemente a “Idade Média
europeia como ponto de referência, os modos de produção, as relações sociais
tanto quanto as instituições políticas não eram percebidos senão em referência
ao passado da Europa.
Com efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador
de culturas originais que floresceram e se perpetuaram, através dos séculos, por
PREFÁCIO
por M. Amadou - Mahtar M’Bow,
Diretor Geral da UNESCO (1974-1987)
XX
África do século  ao século 
vias que lhes são próprias e que o historiador só pode apreender renunciando a
certos preconceitos e renovando seu método.
Da mesma forma, o continente africano quase nunca era considerado como
uma entidade histórica. Em contrário, enfatizava-se tudo o que pudesse refor-
çar a ideia de uma cisão que teria existido, desde sempre, entre uma África
branca” e uma “África negra que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se
frequentemente o Saara como um espaço impenetrável que tornaria impossíveis
misturas entre etnias e povos, bem como trocas de bens, crenças, hábitos e ideias
entre as sociedades constituídas de um lado e de outro do deserto. Traçavam-se
fronteiras intransponíveis entre as civilizações do antigo Egito e da Núbia e
aquelas dos povos subsaarianos.
Certamente, a história da África norte-saariana esteve antes ligada àquela da
bacia mediterrânea, muito mais que a história da África subsaariana mas, nos
dias atuais, é amplamente reconhecido que as civilizações do continente africano,
pela sua variedade linguística e cultural, formam em graus variados as vertentes
históricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços seculares.
Um outro fenômeno que grandes danos causou ao estudo objetivo do passado
africano foi o aparecimento, com o tráfico negreiro e a colonização, de estereótipos
raciais criadores de desprezo e incompreensão, tão profundamente consolidados
que corromperam inclusive os próprios conceitos da historiografia. Desde que
foram empregadas as noções de “brancos” e negros”, para nomear genericamente
os colonizadores, considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram
levados a lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado
pela pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria entre outras,
e destinado ao trabalho forçado, o africano veio a simbolizar, na consciência de
seus dominadores, uma essência racial imaginária e ilusoriamente inferior: a de
negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos africanos
no espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história, em cuja apreciação das
realidades históricas e culturais não podia ser senão falseada.
A situação evoluiu muito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em
particular, desde que os países da África, tendo alcançado sua independência,
começaram a participar ativamente da vida da comunidade internacional e dos
intercâmbios a ela inerentes. Historiadores, em número crescente, têm se esfor-
çado em abordar o estudo da África com mais rigor, objetividade e abertura de
espírito, empregando obviamente com as devidas precauções fontes africanas
originais. No exercício de seu direito à iniciativa histórica, os próprios africanos
sentiram profundamente a necessidade de restabelecer, em bases sólidas, a his-
toricidade de suas sociedades.
XXI
Prefácio
É nesse contexto que emerge a importância da História Geral da África, em
oito volumes, cuja publicação a Unesco começou.
Os especialistas de numerosos países que se empenharam nessa obra, pre-
ocuparam-se, primeiramente, em estabelecer-lhe os fundamentos teóricos e
metodológicos. Eles tiveram o cuidado em questionar as simplificações abusivas
criadas por uma concepção linear e limitativa da história universal, bem como
em restabelecer a verdade dos fatos sempre que necessário e possível. Eles esfor-
çaram-se para extrair os dados históricos que permitissem melhor acompanhar
a evolução dos diferentes povos africanos em sua especificidade sociocultural.
Nessa tarefa imensa, complexa e árdua em vista da diversidade de fontes e
da dispersão dos documentos, a UNESCO procedeu por etapas. A primeira
fase (1965-1969) consistiu em trabalhos de documentação e de planificação da
obra. Atividades operacionais foram conduzidas in loco, através de pesquisas de
campo: campanhas de coleta da tradição oral, criação de centros regionais de
documentação para a tradição oral, coleta de manuscritos inéditos em árabe e
ajami (línguas africanas escritas em caracteres árabes), compilação de inventários
de arquivos e preparação de um Guia das fontes da história da África, publicado
posteriormente, em nove volumes, a partir dos arquivos e bibliotecas dos países
da Europa. Por outro lado, foram organizados encontros, entre especialistas
africanos e de outros continentes, durante os quais se discutiu questões meto-
dológicas e traçou-se as grandes linhas do projeto, após atencioso exame das
fontes disponíveis.
Uma segunda etapa (1969 a 1971) foi consagrada ao detalhamento e à articu-
lação do conjunto da obra. Durante esse período, realizaram-se reuniões interna-
cionais de especialistas em Paris (1969) e Addis-Abeba (1970), com o propósito
de examinar e detalhar os problemas relativos à redação e à publicação da obra:
apresentação em oito volumes, edição principal em inglês, francês e árabe, assim
como traduções para línguas africanas, tais como o kiswahili, o hawsa, o peul, o
yoruba ou o lingala. Igualmente estão previstas traduções para o alemão, russo,
português, espanhol e chinês
1
, além de edições resumidas, destinadas a um
público mais amplo, tanto africano quanto internacional.
1 O volume I foi publicado em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano, kiswahi-
li, peul e português; o volume II, em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano,
kiswahili, peul e português; o volume III, em inglês, árabe, espanhol e francês; o volume IV, em inglês,
árabe, chinês, espanhol, francês e português; o volume V, em inglês e árabe; o volume VI, em inglês,
árabe e francês; o volume VII, em inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e português; o VIII, em inglês
e francês.
XXII
África do século  ao século 
A terceira e última fase constituiu-se na redação e na publicação do trabalho.
Ela começou pela nomeação de um Comitê Científico Internacional de trinta e
nove membros, composto por africanos e não africanos, na respectiva proporção
de dois terços e um terço, a quem incumbiu-se a responsabilidade intelectual
pela obra.
Interdisciplinar, o método seguido caracterizou-se tanto pela pluralidade
de abordagens teóricas quanto de fontes. Dentre essas últimas, é preciso citar
primeiramente a arqueologia, detentora de grande parte das chaves da história
das culturas e das civilizações africanas. Graças a ela, admite-se, nos dias atuais,
reconhecer que a África foi, com toda probabilidade, o berço da humanidade,
palco de uma das primeiras revoluções tecnológicas da história, ocorrida no
período Neolítico. A arqueologia igualmente mostrou que, na África, especifi-
camente no Egito, desenvolveu-se uma das antigas civilizações mais brilhantes
do mundo. Outra fonte digna de nota é a tradição oral que, até recentemente
desconhecida, aparece hoje como uma preciosa fonte para a reconstituição da
história da África, permitindo seguir o percurso de seus diferentes povos no
tempo e no espaço, compreender, a partir de seu interior, a visão africana do
mundo, e apreender os traços originais dos valores que fundam as culturas e as
instituições do continente.
Saber-se-á reconhecer o mérito do Comitê Científico Internacional encarre-
gado dessa História geral da África, de seu relator, bem como de seus coordena-
dores e autores dos diferentes volumes e capítulos, por terem lançado uma luz
original sobre o passado da África, abraçado em sua totalidade, evitando todo
dogmatismo no estudo de questões essenciais, tais como: o tráfico negreiro, essa
sangria sem fim”, responsável por umas das deportações mais cruéis da história
dos povos e que despojou o continente de uma parte de suas forças vivas, no
momento em que esse último desempenhava um papel determinante no pro-
gresso econômico e comercial da Europa; a colonização, com todas suas conse-
quências nos âmbitos demográfico, econômico, psicológico e cultural; as relações
entre a África ao sul do Saara e o mundo árabe; o processo de descolonização e
de construção nacional, mobilizador da razão e da paixão de pessoas ainda vivas
e muitas vezes em plena atividade. Todas essas questões foram abordadas com
grande preocupação quanto à honestidade e ao rigor científico, o que constitui
um mérito não desprezível da presente obra. Ao fazer o balanço de nossos
conhecimentos sobre a África, propondo diversas perspectivas sobre as culturas
africanas e oferecendo uma nova leitura da história, a História geral da África
tem a indiscutível vantagem de destacar tanto as luzes quanto as sombras, sem
dissimular as divergências de opinião entre os estudiosos.
XXIII
Prefácio
Ao demonstrar a insuficiência dos enfoques metodológicos amiúde utiliza-
dos na pesquisa sobre a África, essa nova publicação convida à renovação e ao
aprofundamento de uma dupla problemática, da historiografia e da identidade
cultural, unidas por laços de reciprocidade. Ela inaugura a via, como todo tra-
balho histórico de valor, para múltiplas novas pesquisas.
É assim que, em estreita colaboração com a UNESCO, o Comitê Científico
Internacional decidiu empreender estudos complementares com o intuito de
aprofundar algumas questões que permitirão uma visão mais clara sobre certos
aspectos do passado da África. Esses trabalhos, publicados na coleção UNESCO
História geral da África: estudos e documentos, virão a constituir, de modo útil,
um suplemento à presente obra
2
. Igualmente, tal esforço desdobrar-se-á na ela-
boração de publicações versando sobre a história nacional ou sub-regional.
Essa História geral da África coloca simultaneamente em foco a unidade his-
tórica da África e suas relações com os outros continentes, especialmente com as
Américas e o Caribe. Por muito tempo, as expressões da criatividade dos afro-
descendentes nas Américas haviam sido isoladas por certos historiadores em um
agregado heteróclito de africanismos; essa visão, obviamente, não corresponde
àquela dos autores da presente obra. Aqui, a resistência dos escravos deportados
para a América, o fato tocante ao marronage [fuga ou clandestinidade] político
e cultural, a participação constante e massiva dos afrodescendentes nas lutas da
primeira independência americana, bem como nos movimentos nacionais de
libertação, esses fatos são justamente apreciados pelo que eles realmente foram:
vigorosas afirmações de identidade que contribuíram para forjar o conceito
universal de humanidade. É hoje evidente que a herança africana marcou, em
maior ou menor grau, segundo as regiões, as maneiras de sentir, pensar, sonhar
e agir de certas nações do hemisfério ocidental. Do sul dos Estados Unidos ao
norte do Brasil, passando pelo Caribe e pela costa do Pacífico, as contribuições
culturais herdadas da África são visíveis por toda parte; em certos casos, inclu-
sive, elas constituem os fundamentos essenciais da identidade cultural de alguns
dos elementos mais importantes da população.
2 Doze números dessa série foram publicados; eles tratam respectivamente sobre: n. 1 O povoamento
do Egito antigo e a decodicação da escrita meroítica; n. 2 − O tráco negreiro do século XV ao século
XIX; n. 3 – Relações históricas através do Oceano Índico; n. 4 – A historiograa da África Meridional;
n. 5 A descolonização da África: África Meridional e Chifre da África [Nordeste da África]; n. 6
Etnonímias e toponímias; n. 7 – As relações históricas e socioculturais entre a África e o mundo árabe; n.
8 A metodologia da história da África contemporânea; n. 9 – O processo de educação e a historiograa
na África; n. 10 – A África e a Segunda Guerra Mundial; n. 11 Líbia Antiqua; n. 12 – O papel dos
movimentos estudantis africanos na evolução política e social da África de 1900 a 1975.
XXIV
África do século  ao século 
Igualmente, essa obra faz aparecerem nitidamente as relações da África com
o sul da Ásia através do Oceano Índico, além de evidenciar as contribuições
africanas junto a outras civilizações em seu jogo de trocas mútuas.
Estou convencido de que os esforços dos povos da África para conquistar
ou reforçar sua independência, assegurar seu desenvolvimento e consolidar suas
especificidades culturais devem enraizar-se em uma consciência histórica reno-
vada, intensamente vivida e assumida de geração em geração.
Minha formação pessoal, a experiência adquirida como professor e, desde
os primórdios da independência, como presidente da primeira comissão criada
com vistas à reforma dos programas de ensino de história e de geografia de
certos países da África Ocidental e Central, ensinaram-me o quanto era neces-
sário, para a educação da juventude e para a informação do público, uma obra
de história elaborada por pesquisadores que conhecessem desde o seu interior
os problemas e as esperanças da África, pensadores capazes de considerar o
continente em sua totalidade.
Por todas essas razões, a UNESCO zelará para que essa História Geral da
África seja amplamente difundida, em numerosos idiomas, e constitua base
da elaboração de livros infantis, manuais escolares e emissões televisivas ou
radiofônicas. Dessa forma, jovens, escolares, estudantes e adultos, da África
e de outras partes, poderão ter uma melhor visão do passado do continente
africano e dos fatores que o explicam, além de lhes oferecer uma compreensão
mais precisa acerca de seu patrimônio cultural e de sua contribuição ao pro-
gresso geral da humanidade. Essa obra deverá então contribuir para favorecer
a cooperação internacional e reforçar a solidariedade entre os povos em suas
aspirações por justiça, progresso e paz. Pelo menos, esse é o voto que manifesto
muito sinceramente.
Resta-me ainda expressar minha profunda gratidão aos membros do Comitê
Científico Internacional, ao redator, aos coordenadores dos diferentes volu-
mes, aos autores e a todos aqueles que colaboraram para a realizão desta
prodigiosa empreitada. O trabalho por eles efetuado e a contribuição por eles
trazida mostram, com clareza, o quanto homens vindos de diversos horizontes,
conquanto animados por uma mesma vontade e igual entusiasmo a serviço da
verdade de todos os homens, podem fazer, no quadro internacional oferecido
pela UNESCO, para lograr êxito em um projeto de tamanho valor científico
e cultural. Meu reconhecimento igualmente estende-se às organizações e aos
governos que, graças a suas generosas doações, permitiram à UNESCO publi-
car essa obra em diferentes línguas e assegurar-lhe a difusão universal que ela
merece, em prol da comunidade internacional em sua totalidade.
XXV
Apresentação do Projeto
A Conferência Geral da UNESCO, em sua décima sexta sessão, solicitou
ao Diretor -geral que empreendesse a redação de uma História Geral da África.
Esse considerável trabalho foi confiado a um Comitê Científico Internacional
criado pelo Conselho Executivo em 1970.
Segundo os termos dos estatutos adotados pelo Conselho Executivo da
UNESCO, em 1971, esse Comitê compõe -se de trinta e nove membros res-
ponsáveis (dentre os quais dois terços africanos e um terço de não africanos),
nomeados pelo Diretor -geral da UNESCO por um período correspondente à
duração do mandato do Comitê.
A primeira tarefa do Comitê consistiu em definir as principais características
da obra. Ele definiu -as em sua primeira sessão, nos seguintes termos:
• Em que pese visar a maior qualidade científica possível, a História Geral
da África não busca a exaustão e se pretende uma obra de síntese que
evitará o dogmatismo. Sob muitos aspectos, ela constitui uma exposição
dos problemas indicadores do atual estádio dos conhecimentos e das
grandes correntes de pensamento e pesquisa, não hesitando em assinalar,
em tais circunstâncias, as divergências de opinião. Ela assim preparará o
caminho para posteriores publicações.
• A África é aqui considerada como um todo. O objetivo é mostrar as
relações históricas entre as diferentes partes do continente, muito amiúde
APRESENTAÇÃO DO PROJETO
pelo Professor Bethwell Allan Ogot
Presidente do Comitê Cientíco Internacional
para a redação de uma História Geral da África
XXVI
África do século  ao século 
subdividido, nas obras publicadas até o momento. Os laços históricos
da África com os outros continentes recebem a atenção merecida e são
analisados sob o ângulo dos intercâmbios mútuos e das influências mul-
tilaterais, de forma a fazer ressurgir, oportunamente, a contribuição da
África para o desenvolvimento da humanidade.
A História Geral da África consiste, antes de tudo, em uma hisria das ideias
e das civilizações, das sociedades e das instituições. Ela fundamenta -se sobre
uma grande diversidade de fontes, aqui compreendidas a tradão oral e a
expressão artística.
• A História Geral da África é aqui essencialmente examinada de seu inte-
rior. Obra erudita, ela também é, em larga medida, o fiel reflexo da
maneira através da qual os autores africanos veem sua própria civilização.
Embora elaborada em âmbito internacional e recorrendo a todos os
dados científicos atuais, a História será igualmente um elemento capital
para o reconhecimento do patrimônio cultural africano, evidenciando os
fatores que contribuem para a unidade do continente. Essa vontade de
examinar os fatos de seu interior constitui o ineditismo da obra e poderá,
além de suas qualidades científicas, conferir -lhe um grande valor de
atualidade. Ao evidenciar a verdadeira face da África, a História poderia,
em uma época dominada por rivalidades econômicas e técnicas, propor
uma concepção particular dos valores humanos.
O Comitê decidiu apresentar a obra, dedicada ao estudo de mais de 3 milhões
de anos de história da África, em oito volumes, cada qual compreendendo
aproximadamente oitocentas páginas de texto com ilustrações (fotos, mapas e
desenhos tracejados).
Para cada volume designou -se um coordenador principal, assistido, quando
necessário, por um ou dois codiretores assistentes.
Os coordenadores dos volumes são escolhidos, tanto entre os membros do
Comitê quanto fora dele, em meio a especialistas externos ao organismo, todos
eleitos por esse último, pela maioria de dois terços. Eles se encarregam da ela-
boração dos volumes, em conformidade com as decisões e segundo os planos
decididos pelo Comitê. São eles os responsáveis, no plano científico, perante
o Comitê ou, entre duas sessões do Comitê, perante o Conselho Executivo,
pelo conteúdo dos volumes, pela redação final dos textos ou ilustrações e, de
uma maneira geral, por todos os aspectos científicos e técnicos da História. É
o Conselho Executivo quem aprova, em última instância, o original definitivo.
Uma vez considerado pronto para a edição, o texto é remetido ao Diretor -Geral
XXVII
Apresentação do Projeto
da UNESCO. A responsabilidade pela obra cabe, dessa forma, ao Comitê ou,
entre duas sessões do Comitê, ao Conselho Executivo.
Cada volume compreende por volta de 30 capítulos. Cada qual redigido por
um autor principal, assistido por um ou dois colaboradores, caso necessário.
Os autores são escolhidos pelo Comitê em função de seu curriculum vitae.
A preferência é concedida aos autores africanos, sob reserva de sua adequação
aos títulos requeridos. Além disso, o Comitê zela, tanto quanto possível, para
que todas as regiões da África, bem como outras regiões que tenham mantido
relações históricas ou culturais com o continente, estejam de forma equitativa
representadas no quadro dos autores.
Após aprovação pelo coordenador do volume, os textos dos diferentes capítu-
los são enviados a todos os membros do Comitê para submissão à sua crítica.
Ademais e finalmente, o texto do coordenador do volume é submetido ao
exame de um comitê de leitura, designado no seio do Comitê Científico Inter-
nacional, em função de suas competências; cabe a esse comitê realizar uma
profunda análise tanto do conteúdo quanto da forma dos capítulos.
Ao Conselho Executivo cabe aprovar, em última instância, os originais.
Tal procedimento, aparentemente longo e complexo, revelou -se necessário,
pois permite assegurar o máximo de rigor científico à História Geral da África.
Com efeito, houve ocasiões nas quais o Conselho Executivo rejeitou origi-
nais, solicitou reestruturações importantes ou, inclusive, confiou a redação de
um capítulo a um novo autor. Eventualmente, especialistas de uma questão ou
período específico da história foram consultados para a finalização definitiva
de um volume.
Primeiramente, uma edição principal da obra em inglês, francês e árabe será
publicada, posteriormente haverá uma edição em forma de brochura, nesses
mesmos idiomas.
Uma versão resumida em inglês e francês servirá como base para a tradução
em línguas africanas. O Comi Científico Internacional determinou quais
os idiomas africanos para os quais serão realizadas as primeiras traduções: o
kiswahili e o haussa.
Tanto quanto possível, pretende -se igualmente assegurar a publicação da
História Geral da África em vários idiomas de grande difusão internacional
(dentre outros: alemão, chinês, italiano, japonês, português, russo, etc.).
Trata -se, portanto, como se pode constatar, de uma empreitada gigantesca
que constitui um ingente desafio para os historiadores da África e para a comu-
nidade científica em geral, bem como para a UNESCO que lhe oferece sua
chancela. Com efeito, pode -se facilmente imaginar a complexidade de uma
XXVIII
África do século  ao século 
tarefa tal qual a redação de uma história da África, que cobre no espaço todo
um continente e, no tempo, os quatro últimos milhões de anos, respeitando,
todavia, as mais elevadas normas científicas e convocando, como é necessário,
estudiosos pertencentes a todo um leque de países, culturas, ideologias e tra-
dições históricas. Trata -se de um empreendimento continental, internacional e
interdisciplinar, de grande envergadura.
Em conclusão, obrigo -me a sublinhar a importância dessa obra para a África
e para todo o mundo. No momento em que os povos da África lutam para se unir
e para, em conjunto, melhor forjar seus respectivos destinos, um conhecimento
adequado sobre o passado da África, uma tomada de consciência no tocante
aos elos que unem os Africanos entre si e a África aos demais continentes, tudo
isso deveria facilitar, em grande medida, a compreensão mútua entre os povos
da Terra e, além disso, propiciar sobretudo o conhecimento de um patrimônio
cultural cuja riqueza consiste em um bem de toda a Humanidade.
Bethwell Allan Ogot
Em 8 de agosto de 1979
Presidente do Comitê Científico Internacional
para a redação de uma História Geral da África
C A P Í T U L O 1
1
Introdução
O presente volume abarca a história da África do século XII ao XVI. A
periodização e a divisão cronológica clássicas são pouco convenientes à aborda-
gem em questão: como pode uma data ou um século ter a mesma importância
para todo um continente? É lícito então perguntar se esse período é significativo
para todas as regiões do continente.
Embora o problema da divisão ainda se coloque, parece -nos que o período
considerado apresenta certa unidade e constitui, sob mais de um aspecto, um
momento de importância capital na evolução histórica do continente como um
todo. É um período privilegiado, em que a África desenvolve culturas originais e,
sem perder sua personalidade, assimila influências do exterior. No volume ante-
rior, vemos a África emergir das sombras graças aos escritos árabes: os muçul-
manos descobrem o rico Sudão, ao sul do Saara, dominado pelos Soninke, cujo
soberano, o kaya maghan, tinha sob sua autoridade todas as regiões ocidentais
do Sudão, da curva do Níger à embocadura do Senegal. Esse vasto império, que
teve seus fastos evocados por al -Bakr, não era a única unidade política; outras
lhe foram contemporâneas, como o Songhai e, mais para leste, estendendo -se até
o lago Chade, os países e reinos do Kanem -Bornu. A partir do final do século
XI a documentação escrita relativa à África ao sul do Saara torna -se cada vez
mais abundante, principalmente no período que vai do fim do século XIII ao
final do XIV. Em meados do século XV, as fontes portuguesas vêm preencher
Introdução
Djibril Tamsir Niane
2
África do século  ao século 
uma lacuna informando -nos sobre os reinos da costa da África ocidental, então
em pleno desenvolvimento mais uma prova de que a ausência de documen-
tação escrita nada significa. O golfo do Benin e a embocadura do rio Zaire (rio
Congo) foram importantes focos de civilização. Esse período apresenta várias
características fundamentais.
Em primeiro lugar, assiste -se ao triunfo do Islã em grande parte do conti-
nente. Essa religião teve como propagadores a um tempo guerreiros e comer-
ciantes. Os muçulmanos revelaram -se excelentes mercadores e dominaram o
comércio mundial, contribuindo para o desenvolvimento da ciência, da filosofia
e da técnica em todas as regiões em que se instalaram. Fato essencial para o
continente é que, tanto no norte quanto no vasto Sudão ao sul do Saara, a África
imprimiu ao Islã a marca de sua originalidade. Lembremos que, no século XI,
os Almorávidas cujos exércitos contavam grandes contingentes de negros do
Takrūr, após conquistarem parte do Magreb e da península Ibérica, oriundos
da foz do Senegal, restauraram a suna, ortodoxia rigorosa, em todo o Ocidente
muçulmano.
A partir de 1050 os Almorávidas combatem o Império de Gana, que acaba
por sucumbir em, aproximadamente, 1076; para o Sudão, essa última data marca
o início de um período de luta pela hegemonia entre as províncias do império.
1076 é um ano importante tanto na história do Magreb como na do Sudão;
no entanto a queda de Kumbi,capital de Gana, ocorrida por essa época, passa
quase despercebida uma vez que o comércio do ouro praticamente não sofre
interrupção, tornando -se, ao contrário, mais intenso: certos reinos vassalos de
Gana, ricos em ouro (Takrūr, “Mandeng”) e o velho reino de Gao, situado no
ramo oriental do Níger,muito islamizados, continuam a animar os intercâm-
bios comerciais com os árabo -berberes. Por outro lado, mercadores provenien-
tes da Arábia e do golfo Pérsico abrem a costa oriental africana, do Chifre da
África a Madagáscar, ao comércio intercontinental. Os ricos centros comerciais
de Sofala, Kilwa e Mogadíscio tornam -se as portas da África para o oceano
Índico. Partindo do Egito, o Islã expande -se rumo à Núbia, o Sudão oriental;
ali encontra forte resistência dos antigos reinos cristãos coptas, o que, durante
algum tempo, detém sua marcha sobre o Nilo. No entanto, do mar Vermelho
e principalmente do Chifre da África, o Islã difunde-se para o interior, favore-
cendo a emergência de reinos muçulmanos ao redor dos cristãos. A luta entre
as duas religiões será árdua nessa região; a Etiópia irá encarar essa resistência
ao Islã do século XII ao XV, antes que os negus tivessem o apoio da nova força
cristã representada por Portugal nos fins do século XV e início do XVI. No
capítulo 17, o professor Tadesse Tamrat dá ênfase a essa forma particularmente
3
Introdução
africana do cristianismo, com sua arte não menos original e suas igrejas de
estilo tão característico. Ao fundar uma nova capital, o rei Lalibela (c. 1181 – c.
1221), chamado o “São Luís etíope”, batiza -a com o nome de Nova Jerusa-
lém; tinha, o devoto soberano, o intuito de oferecer a seus súditos um local de
peregrinação, já que a Etiópia fora desligada do patriarcado de Alexandria e do
berço do cristianismo. Nos planaltos da Etiópia os conventos multiplicam -se. É
em meio ao silêncio desses mosteiros, construídos em locais elevados, pratica-
mente inexpugnáveis, que os monges escreverão a história dos reis e elaborarão
uma reforma. Em meados do século XV o cristianismo etíope encontra -se em
pleno florescimento. Mantendo as velhas práticas religiosas africanas pré -cristãs,
-lhes uma forma cristã; a antiga influência cuxita manifesta -se nas festas, nas
danças, nos cantos e nos sacrifícios de animais. Aqui também domina, em todos
os aspectos, a personalidade africana, que o cristianismo da Núbia e da Etiópia
é completamente africanizado, assim como o Islã africano.
Ao longo da costa, do Chifre da África a Madagáscar, tendo como centro as
feitorias muçulmanas, desenvolve -se uma civilização afro -muçulmana original: a
civilização suaíli. Esta se exprime na língua de mesmo nome, que, embora com
diversos empréstimos ao árabe, conserva a estrutura bantu. Será essa a língua de
comunicação em toda a África oriental, do litoral aos Grandes Lagos africanos
e, pouco a pouco, até o rio Zaire (Congo). Assim, direta ou indiretamente, a
influência do Islã se faz sentir em toda a região. É comum indagar -se acerca das
razões pelas quais o Islã obteve aceitação tão rápida não na África como tam-
bém em outros locais; ora, é preciso lembrar que o modo de vida dos nômades
da Arábia pouco diferia, na época, daquele dos berberes e dos felás da África
setentrional. Excetuando -se as guerras empreendidas pelos Almorávidas no
Sudão, o islamismo difunde -se lenta e pacificamente no interior da África. Não
existe clero constituído, nem missionários como no Ocidente cristão; religião
de cidades e cortes, o Islã na África não ameaça as estruturas tradicionais. Nem
os reis sudaneses nem os sultões da África oriental promoverão guerras para
converter as populações; acima de tudo está o comércio. A flexibilidade que
o Islã irá demonstrar para com os povos vencidos deles exigindo apenas um
imposto – permitirá que conservem sua individualidade.
O segundo tema de importância a se destacar no estudo do período em
questão encontra -se intimamente ligado ao Islã e à sua expansão. Trata -se do
formidável desenvolvimento das relações comerciais, dos intercâmbios culturais
e dos contatos humanos. Do Indo ao Gibraltar, do mar Vermelho a Madagáscar,
da África setentrional às regiões subsaarianas, homens e mercadorias circulam
livremente, e de maneira tal que Robert Cornevin escreve, acerca da unidade
4
África do século  ao século 
econômica do mundo muçulmano e da independência política do Islã africano
face a Bagdá:
Unidade que dificilmente imaginamos em nosso mundo abarrotado de fronteiras,
em que passaporte e visto são indispensáveis a qualquer deslocamento. Durante toda
a Idade Média, o comerciante ou o peregrino muçulmano encontrou, do Indo até a
Espanha e no Sudão, a mesma língua, o mesmo modo de vida e também a mesma
religião, malgrado as heresias caridjitas e xiitas, que, aliás, parecem mais políticas
que propriamente religiosas.
Aliás, do século XII ao XVI a África torna -se, em muitos aspectos, uma
encruzilhada do comércio internacional. A atração que exerce sobre o resto do
mundo é extraordinária; disso trata Jean Devisse, com eloquência, no capítulo
26. Mais do que o Mediterrâneo, é o oceano Índico que se torna uma espé-
cie de Mare islamicum antes da instauração da hegemonia chinesa fundada na
navegação em butres.
Não menos intensas são as relações inter -regionais; o Saara é percorrido de
norte a sul por grandes caravanas, que contam por vezes de 6 a 12 mil camelos e
transportam gêneros e produtos de toda espécie. Entre as savanas sudanesas e as
regiões de floresta mais ao sul, do rio Casamance ao golfo do Benin, desenvolve-
-se um intenso comércio, de cuja existência os árabes pouco suspeitam, visto
que consideram deserto todo o território situado além de Gao e do Mali. Nos
dias de hoje a arqueologia, a toponímia e a linguística ajudam -nos a perceber
com maior clareza essas relações seculares entre a savana e a floresta. Ao sul do
Equador, onde a influência muçulmana é nula, os intercâmbios entre regiões
não serão menos significativos, graças aos deslocamentos de populações e aos
inúmeros contatos ocorridos por ocasião dos mercados ou feiras.
Os frequentes intercâmbios inter -regionais de que a África foi palco nesse
período explicam a unidade cultural fundamental do continente. Novas plantas
alimentares são introduzidas, vindas principalmente do oceano Índico; operam-
-se transferências de técnicas de uma região a outra. Para ressaltar a originali-
dade da África ao sul do Sudão, menos conhecida pelos árabes e demais povos
estrangeiros, os autores dos capítulos 19, 20, 21, 22 e 23 o ênfase à vida
econômica, social e política das regiões que se estendem dos Grandes Lagos
até os rios Zaire (Congo), Zambeze e Limpopo, vastas zonas que quase não
sofreram a influência do Islã. Merece destaque a porção da África meridional
posterior ao vale do alto Nilo, que vai de Assuã às cabeceiras do rio; voltaremos
a ela mais adiante. Além do ouro, a África exporta marfim bruto ou trabalhado
para a Arábia e a Índia através do oceano Índico. O tráfico transaariano, por sua
5
Introdução
vez, é alimentado pelo florescente artesanato do Sudão e pela rica agricultura
do vale do Níger: grãos, sandálias, peles, tecidos de algodão são exportados para
o Norte, enquanto as cortes reais de Niani, de Gao, as vilas como Tombuctu, e
as cidades hauçá Kano e Katsina importam principalmente produtos de luxo
como sedas, brocados, armas ricamente ornamentadas etc.
O Sudão exporta igualmente escravos para suprir as necessidades das cortes
magrebinas e egípcias (mulheres para os haréns e homens para formar a guarda
de honra dos sultões). Note -se que os peregrinos sudaneses também compram
escravos no Cairo, principalmente escravos artistas músicos, entre outros.
Alguns autores aumentaram exageradamente o número de escravos originários
do Sudão ou da costa oriental levados para os países árabes. Qualquer que tenha
sido a importância numérica dos negros no Iraque, no Marrocos ou no Magreb
em geral, não há nada em comum entre o comércio de escravos no período em
estudo e o que será instaurado no litoral atlântico da África pelos europeus, após
a descoberta do novo mundo, visando obter mão -de -obra para as plantações de
cana -de -açúcar ou algodão. Os volumes V e VI darão ênfase a essa “hemorragia
que foi o tráfico negreiro.
F . Mapa -múndi de al -Idrs (século XII da era cristã). Carta do Egito, da Arábia e do Irã; a costa
oriental da África pode ser vista embaixo, à direita. Aqui, al -Idrs retoma a concepção cartográca apre-
sentada por Ptolomeu. (Original guardado na sala de manuscritos para as coleções geográcas da Biblioteca
Real, sob a referência de n. BN/GE AA 2004.)
6
África do século  ao século 
Enfim, um fato muito importante a ser sublinhado é o desenvolvimento
dos reinos e impérios entre os séculos XII e XVI; durante muito tempo os
historiadores e pesquisadores coloniais quiseram tornar plausível a ideia de que
os Estados ao sul do Saara desenvolveram -se graças à influência dos árabes.
Embora a influência árabe seja incontestável na zona sudano -saheliana – ainda
que vários reinos tenham aparecido antes da introdução do Islã na região –,
somos obrigados a convir que Estados como o reino do Congo, o Zimbábue e
o Monomotapa (Mwene Mutapa) praticamente não sofreram a influência do
Islã. Evidentemente, é graças aos documentos escritos em árabe que se conhece
melhor a vida urbana nas cidades magrebinas e sudano -sahelianas.
Cidades de atividade mercantil margeiam as orlas do deserto: uma classe
dinâmica de mercadores e letrados anima a vida econômica e cultural de Djenné,
Niani, Gao, Tombuctu, Walata no Sudão ocidental; no norte do Saara, Sidjil-
masa, Tuat, Wargla, Marrakech, Fés e Cairo. No Sudão central, no Kanem -
-Bornu e nas cidades hauçá tais como Zaria, Katsina e Kano, a vida cultural e
econômica não é menos intensa; sob a influência dos Wangara, povos como os
Hauçás especializam -se no comércio. Na costa da África oriental, as colônias
árabo -persas, instaladas nos portos a partir dos séculos IX e X, fazem de Mom-
baça e principalmente de Sofala e Madagáscar centros comerciais ativos, que
mantêm relações constantes com a Índia e a China.
No plano político, entretanto, o Sudão tem instituições e estruturas sociais
próprias, que o Islã superficial das cortes deixa intactas... Os berberes arabizam -
-se lentamente. Nas cidades do Sudão, o árabe é a língua dos letrados, gravitando
em torno das mesquitas, e de alguns mercadores abastados; não há arabização.
Mesmo no Magreb, onde a arabização seguiu de perto a imposição do Islã, a
influência berbere permanecerá viva, sendo a língua berbere ainda falada em
nossos dias nas regiões montanhosas.
O Egito passa a ser o centro cultural do mundo muçulmano, tomando o lugar
de Bagdá, Damasco e das cidades da Arábia, às quais restara a auréola da pere-
grinação. No Oeste, Magreb e Andaluzia tornam -se, a partir dos séculos X e XI,
centros de difusão cultural, principalmente da ciência e da filosofia, absorvidas
pela Europa. Magrebinos e andaluzes participam ativamente na preparação de
um renascimento científico e cultural na Europa.
A Itália meridional não ficará imune à influência muçulmana; lembremos
que é na corte do rei cristão Rogério da Sicília que al -Idrs escreverá sua famosa
Geografia, somatória dos conhecimentos sobre os países do mundo na época.
Essa obra, que representa grande progresso, permitiu à Itália descobrir a África;
7
Introdução
a partir daí, os negociantes passam a se interessar por esse Eldorado. A Europa,
entretanto, ainda aguarda sua vez.
No plano político, após o movimento almorávida, que fez afluir o ouro do
Sudão até a Espanha, os homens do “Ribāt logo perderão o fôlego e seu impé-
rio entrará em decadência no início do século XII. Afonso VI, rei de Castela,
reconquista aos muçulmanos a rica cidade de Toledo. Em 1086, no entanto, Ibn
Tāshfin reaviva por momentos a chama almorávida: à frente das tropas muçul-
manas, que abrigam grande contingente de habitantes do Takrūr, sai vitorioso
na batalha contra os cristãos em Zallaca, em que ficaram célebres os guerreiros
negros das forças almorávidas. No próprio continente africano, no Sudão e no
Magreb, o século XI termina com a desintegração do poder dos Almorávidas; a
rivalidade entre os Kabla do Magreb e os do Saara e a resistência das provín-
cias de Gana após a morte de Abū Bakr em 1087, em Tagant, põem termo aos
esforços dos Almorávidas na África subsaariana.
Assim, o século XII inicia -se na África setentrional com um recuo dos Almo-
rávidas em várias frentes. Rogério II, rei das Duas Sicílias, aventura -se até as
costas da África e impõe um tributo a certos portos de onde partiam os piratas
berberes. .. Mas essa ousadia será refreada pelo reflorescimento muçulmano, sob
a égide dos Almóadas, no século XII, e, a leste, no Egito, esse reflorescimento
terá lugar sob os Aiúbidas e principalmente sob os Mamelucos, durante os sécu-
los XIII e XIV. Precisamente nessa época os cristãos irão intensificar o movi-
mento das cruzadas no Oriente Próximo; mas esta expansão será contida pelo
Egito dos Mamelucos, tendo os cruzados que se refugiar em kraks, ou fortalezas,
já sem controle sobre Jerusalém. Nos séculos XIII e XIV, ao mesmo tempo que
o Egito detém o perigo cristão, suas escolas florescem e imprimem à civilização
muçulmana um brilho especial. Esta é também a época de expansão e apogeu
dos reinos e impérios sudaneses, de que trataremos em seguida.
O esplendor dos Estados do Mali, do Songhai, do Kanem -Bornu, e dos
reinos mossi e dagomba, na curva do Níger, são temas dos capítulos de 6 a 10,
de autoria de especialistas negro -africanos. O estudo das instituições no Mali e
nos reinos Mossi, por exemplo, revela a influência tradicional africana comum.
O Islã, religião oficial do Mali e de Gao, favorecerá a emergência de uma classe
de letrados; desde os tempos de Gana, os Wangara (Soninke e Maninke
“Malinke”), especializados no comércio, animam a vida econômica: organizam
caravanas, que partem para as florestas do Sul, onde trocam peixe defumado,
tecidos de algodão e objetos de cobre por nozes -de -cola, ouro, azeite de dendê
(óleo -de -palma), marfim e madeiras preciosas.
8
África do século  ao século 
Os imperadores muçulmanos do Mali intensificarão suas relações com o
Egito em detrimento do Magreb. No século XIV o império atinge o apogeu.
O século XII, entretanto, é pouco conhecido; felizmente, al -Idrs nos informa
da existência dos reinos do Takrūr, do Do, ou Dodugu, do Mali e de Gao, reto-
mando, em parte, os dados fornecidos por al -Bakr. As tradições do Manden,
do Wagadu e do Takrūr permitem -nos hoje entrever a luta obstinada que opôs
as províncias nascidas da desagregação do Império de Gana.
Sabe -se hoje, pelo estudo das tradições orais, que entre a queda de Gana
e a emergência do Mali houve o intermédio da dominação dos Sosoe (fra-
ção soninke -manden rebelde ao Islã), os quais, por algum tempo, unificaram
as províncias que os kaya maghan controlavam; com o século XIII começa a
ascensão do reino de Melli, ou Mali. O grande conquistador Sundiata Keita
derrota Sumaoro Kante (rei dos Sosoe) na famosa batalha de Kirina, em 1235,
e funda o novo Império Manden. Fiel à tradição de seus ancestrais, islamizados
desde 1050, Sundiata reata relações com os comerciantes e os letrados negros
e árabes ao restabelecer o império. De 1230 a 1255, coloca em funcionamento
instituições que marcarão por séculos os sucessivos reinos do Sudão ocidental.
A peregrinação e o grande tráfico transaariano reanimam as rotas do Saara.
Comerciantes e peregrinos negros encontram -se pelas encruzilhadas do
Cairo; estabelecem -se embaixadas negras nas cidades do Magreb; intensificam -
-se as relações culturais e econômicas com o mundo muçulmano, sobretudo no
século XIV, sob o reinado do faustuoso mansa Mūsā I e sob o do mansa Solimão;
no Sudão central, Kanem e Bornu têm relações ainda mais frequentes com o
Egito e a Líbia. As fontes árabes, os escritos locais e a tradição oral mais uma
vez nos trazem importantes esclarecimentos sobre o século XIV no Sudão.
É o momento de mencionar certos escritores árabes – historiadores, geógra-
fos, viajantes e secretários das cortes – que nos deixaram excelente documenta-
ção sobre a África, notadamente no século XIV.
O maior historiador da “Idade dia”, Ibn Khaldūn, é magrebino (1332–1406).
Participa da vida política de seu tempo, tanto nas cortes de Fés e de Túnis
quanto nas de Andaluzia. Após vários infortúnios, retira -se para um castelo”
e empreende a redação de sua obra histórica. Sua monumental Kitāb al -’Ibār
(Hisria universal), que inclui a Histoire des Berbères ... (História dos berberes ...), é
o estudo sócio -histórico mais minucioso escrito sobre o Magreb; é num dos
volumes dessa História que o autor dedica ao Império do Mali páginas que
ficaram célebres. A ele devemos a lista dos soberanos dos séculos XIII e XIV
até 1390. Os Prolegômenos (Mukaddima) dessa grande obra lançam as bases
9
Introdução
da sociologia e evidenciam os princípios de uma história científica, objetiva,
fundada na crítica das fontes.
Ibn Battūta, célebre por suas viagens, é um verdadeiro andarilho do século
XIV. Suas informações sobre a China, sobre a costa oriental da África, o relato
de sua viagem ao Mali continuam sendo o modelo do gênero etnológico. Nada
escapa à sua atenção: modo de vida, problemas alimentares, tipo de governo,
costumes dos povos são tratados com maestria e precisão. Ibn Battūta legou -
nos as informações mais completas sobre a costa da África oriental, sobre o
comércio inter -regional na África e a imporncia do comércio no Índico.
Referindo -se às ilhas Maldivas, escreve:
A moeda dessas ilhas é o cauri. Trata -se de um animal recolhido no mar. É colocado
em fossos, onde sua carne desaparece, restando apenas um osso branco... Comercia-
-se por meio desses cauris a razão de quatro bustu por um dinar. Pode ocorrer que
seu preço baixe a ponto de se vender doze bustu por um dinar. São vendidos aos
habitantes de Bangala [Bengala] em troca de arroz. É também a moeda dos habi-
tantes do Bilad Bangala... O cauri é ainda a moeda dos ‘Sudan [os negros] em seu
país. Vi -os serem vendidos em Melli [Niani, no Império do Mali] e Gugu [Gao,
capital do Songhai] à razão de 1150 por um dinar de ouro.
Essa concha, o cauri, sea moeda da maior parte dos reinos sudaneses
durante o período em estudo. É encontrada unicamente nas ilhas Maldivas,
o que permite medir a intensidade da circulação de homens e bens na África
e no oceano Índico.
Um terceiro autor, cujas informações precisas fundam -se numa documentação
filtrada, é al -‘Umar Ibn Fadl Allāh, secretário na corte dos Mamelucos entre
1340 e 1348. Na época, os reis sudaneses mantêm no Cairo consulados para a
recepção de centenas de peregrinos que se dirigem à Meca. Assim, al -‘Ulmar
dispõe, por um lado, dos arquivos reais; por outro, obtém infor - mações junto
aos cairotas que, em viagem, frequentam os reis sudaneses, e junto aos próprios
sudaneses. Sua L’Afrique moins l’Égypte (A África com exceção do Egito) é uma
das principais fontes para a história da África medieval.
Finalmente, citemos Lo, o Africano, hóspede do papa, que esteve por
duas vezes no Sudão no início do século XVI. Suas informações sobre o Sudão
ocidental e central constituem importante testemunho sobre uma época em
que os ventos da história sopraram a favor dasbrancas caravelas”.
No fim do século XVI a decadência é total; as cidades sudanesas pouco a
pouco vão perdendo seu brilho.
10
África do século  ao século 
Cinco séculos após seu desaparecimento, Kumbi Sāleh (Gana) é identificada
e escavada (1914); o sítio de Awdaghust, célebre centro comercial entre Kumbi-
- Sāleh e Sidjilmasa, dez anos vem atraindo a atenção dos arqueólogos. Os
professores J. Devisse e S. Robert descobriram ali vários estágios de ocupações
humanas; os tesouros exumados atestam que Awker foi realmente a “terra do
ouro”. Mais ao sul, Niani, a capital do Mali, cidade edificada com tijolos de
terra batida, seus tumuli esquadrinhados e escavados; ano após ano a cidade
medieval”, a capital de Sundiata e do mansa Mūsā I, revela seus segredos. A
arqueologia mostra -se cada vez mais uma ciência indispensável para extrair do
solo africano documentos mais eloquentes que os textos ou a tradição.
É tempo de falar do restante da África, que o Islã não conheceu. Como
dissemos, a ausência de documentação escrita nada significa; os monumentos de
pedra da África equatorial, central e meridional são prova disso, fazendo pensar
imediatamente em reinos do tipo antigo Egito”. Essas construções ciclópicas, os
Zimbábue e os Mapungubwe, situadas longe da costa, contam -se por dezenas.
Obra das populações Bantu, essas cidades fortificadas, essas escadas gigantes
provam a que ponto de desenvolvimento chegaram certas técnicas de construção,
isso na ausência de qualquer tipo de escrita. De bom grado passaremos por cima
das múltiplas teorias elaboradas acerca dos construtores desses monumentos
de pedra, que os colonizadores, naturalmente, não podiam admitir que os
ancestrais dos Shona e dos Natibete (Matabele) tivessem sido os artesãos desses
monumentos, que confundiam a imaginação dos visitantes. Tampouco histo-
riadores coloniais estavam preparados para admitir que os negros pudessem ser
autores de construções de pedra.
Em sua obra Africa before the White Men, Basil Davidson intitula “Os edifi-
cadores do Sul” o capítulo 9, dedicado à África central e meridional; propondo
uma nova visão das questões colocadas pela história da África, o autor devolve
ao continente o que lhe é devido: o ganho moral da obra de seus ancestrais.
Já ao abordar a costa oriental do continente, após ter dobrado o cabo da Boa
Esperança, os portugueses ouviriam falar, em Sofala, de um poderoso império do
interior; chegaram mesmo a entrar em contato com alguns nativos que vinham
regularmente ao litoral comerciar com os árabes. Os primeiros documentos
portugueses falam do reino de Benametapa. Uma das primeiras descrições desses
monumentos de pedra, que a fotografia tornou familiares, deve -se a Damião
de Góis:
No centro desse país encontra -se uma fortaleza construída de grandes e pesadas
pedras tanto no interior quanto no exterior (...) uma construção muito curiosa e
11
Introdução
bem edificada, pois, segundo o que se conta, não se vê nenhuma argamassa a unir as
pedras. Em outras regiões da sobredita planície, há outras fortalezas construídas do
mesmo modo, em cada uma das quais o rei tem capitães. O rei do Benametapa vive
em meio ao luxo, sendo servido com grande devoção e deferência.
João de Barros acrescenta que
os indígenas desse país chamam a todos esses edifícios de simbaoé, o que, em sua
língua, significa ‘corte’, pois pode ser assim chamado qualquer lugar onde Bename-
tapa possa se encontrar; dizem eles que, sendo propriedades reais, todas as demais
moradas do rei trazem esse nome.
Fato análogo ao que ocorre no Mali, onde as residências dos soberanos rece -
bem a denominação de madugu.
Graças aos trabalhos de inúmeros pesquisadores, a África central e a África
meridional são hoje mais bem conhecidas. Os esforços conjuntos dos linguis-
tas, arqueólogos e antropólogos trazem grandes esclarecimentos sobre esses
monumentos e seus construtores. O Zimbábue e o Mwene Mutapa (Bename-
tapa para os portugueses, e modernamente, Monomotapa) são reinos poderosos
cujo apogeu situar -se -ia precisamente entre os séculos XI e XIV; são, portanto,
contemporâneos de Gana e do Mali, ao norte. O vigor desses reinos funda -se
numa sólida organização social e política. Assim como o kaya maghan, o mwene
mutapa (título real) detém o monopólio do ouro; como seu contemporâneo
sudanês, ele é senhor dos metais”. Esses reinos, cujas áreas cobrem hoje parte da
República Popular de Moçambique, da República do Zimbábue, da República
de Zâmbia e da República do Malavi, situavam -se numa região rica em cobre,
ferro e ouro. Segundo Davidson, “foram registradas milhares de antigas minas,
talvez até 60 ou 70 mil”.
A cronologia constitui ainda um problema; certo é, porém, que o Mwene
Mutapa e o Zimbábue começavam a entrar em decadência quando da chegada
dos portugueses, embora ainda aparecessem como grandes potências; essa deca-
dência irá se precipitar com a rapacidade e as pilhagens dos portugueses e dos
demais europeus que os seguirão. As populações dessas regiões, que praticam a
cultura em terraços, desenvolveram rica agricultura. Toma corpo a ideia de que
as diferentes etnias e culturas locais têm a mesma origem bantu. A etnologia,
em certo sentido, prestou péssimo serviço à história ao considerar cada etnia
como uma raça distinta; felizmente, a linguística permite restabelecer a ordem
das coisas. Todos esses pequenos grupos nascidos de quatro séculos de tráfico de
12
África do século  ao século 
escravos, de caça ao homem, participam do mesmo mundo bantu; os Bantu se
sobrepuseram a antigas populações e expulsaram pigmeus e outros grupos para
as florestas inóspitas ou para os desertos. Em Zâmbia as escavações prosseguem;
a jovem República do Zimbábue abre um campo de pesquisas bastante promis-
sor. No Transvaal e em outras regiões da África do Sul encontram -se vestígios
de brilhantes civilizações, anteriores ao século XII.
Rejeitada a tese que atribui o Zimbábue e o Mwene Mutapa aos fenícios,
retomando a lenda dourada da região de Ofir”, a objetividade terminou por
prevalecer entre os pesquisadores: a maioria reconhece hoje que as influências
externas foram nulas. David Randall MacIver, egiptólogo que realizou pesqui-
sas na “Rodésia do Sul” (Zimbábue), afirma que os monumentos têm origem
africana; por sua pena, assim se expressa a arqueologia científica:
Não há traços de estilo oriental ou europeu, seja de que época for (...) O caráter das
habitações cercadas pelas ruínas de pedra, das quais são parte integrante, é africano
sem sombra de dúvida.
E prossegue:
As artes e técnicas de que são testemunhos os objetos encontrados nas habi - tações
são tipicamente africanas, salvo quando se trata de nítidas importações medievais
ou pós -medievais.
MacIver escreveu estas linhas em 1905; no entanto as provas arqueológicas
que apresentou não chegaram a desarmar os defensores da teoria ofiriana”. Um
quarto de século mais tarde, todavia, a arqueóloga Gertrude Caton -Thompson
publicou um relatório sobre a civilização de Zimbábue, em que confirma as
palavras de MacIver com “clareza de diamante”, segundo Basil Davidson, e
grande intuição arqueológica. Caton -Thompson, cuja obra se funda em estudo
rigorosamente arqueológico, escreve:
O exame de todos os documentos recolhidos em cada setor não pode, no entanto,
produzir um só objeto que esteja em desacordo com a reivindicação de origem bantu
e de data medieval.
Respaldando -se em trabalhos arqueológicos, o professor Brian Murray Fagan
mostra, no capítulo 21, que o Zimbábue e as demais civilizações do Sul flo-
resceram bem antes do século XVI, praticamente resguardados de quaisquer
influências exteriores; pelo menos, estas não tiveram papel decisivo na gênese
daquelas culturas.
13
Introdução
É fácil imaginar o que a pena grandiloquente de um autor árabe nos teria
legado se o Zimbábue e o reino do “senhor dos metais” tivessem recebido a visita
de geógrafos e viajantes como os que estiveram em Gana e no Mali, algo como:
O Grande Zimbábue e seus muros de pedra, enigmáticos como as pirâmides,
são testemunhos da solidez e da coesão das instituições que regeram a vida dos
construtores desses monumentos erigidos para a glória de seus reis e de seus
deuses.
O espanto e o encantamento dos navegadores portugueses ao desembarcarem
na “Etiópia ocidental”, a atual África ocidental,começa na foz do rio Senegal.
É na Senegâmbia que eles entram em contato com os mansa do Mali e travam
relações com os reis do Diolof (Wolof). A bordo de suas caravelas, nos estuários
dos rios, esses êmulos dos muçulmanos procuram descobrir as fontes do ouro.
O que desde o início os impressiona é a organização político -administrativa, a
prosperidade e a riqueza da região.
Quanto mais se afastam rumo ao sul, mais se conscientizam de sua própria
pobreza; e o sentimento de superioridade advindo da fé cristã vai cedendo lugar
à cupidez.
Os capítulos 12, 13 e 14 abordam o estudo da costa atlântica da Guiné e
do golfo da Guiné, isto é, da Senegâmbia à foz do Níger. Não obstante a exi-
guidade de conhecimentos, ficou estabelecido que a floresta não foi um meio
hostil à ocupação humana, como propalaram inúmeros africanistas; está aberto
vasto campo de pesquisa para historiadores e arqueólogos. As cidades do Benin
e a bela estatuária ioruba desenvolveram -se em meio florestal. As cabeças de
latão, os baixos -relevos dos palácios e muitas outras obras de arte, que hoje se
encontram no Museu Britânico ou nos museus de Berlim e de Bruxelas, foram
atribuídos a hipotéticos estrangeiros antes que o bom -senso triunfasse, rein-
serindo essas peças em seu contexto sociocultural e reconhecendo nos nativos
seus únicos autores. Graças às pesquisas arqueológicas, pode -se hoje estabelecer
facilmente a relação entre as terracotas de Nok (500 antes da era cristã) e as
cabeças de bronze do Benin (séculos X–XIV). Mas quanta tinta se derramou
inutilmente para alijar a África de seu passado! Quantos crimes para arrancar
ao continente suas obras -primas!
Como se mostrou rapidamente nos parágrafos anteriores, várias formas de
Estado existiram na África. O clã ou linhagem é a forma rudimentar do Estado;
seus membros reconhecem um ancestral comum e vivem sob a autoridade de
um chefe eleito ou de um patriarca, cuja função essencial é zelar por uma divisão
equitativa dos ganhos do grupo; é pai provedor e pai justiceiro. O clã vive num
14
África do século  ao século 
território de limites precisos ou possui uma área de reserva no caso de seus mem-
bros praticarem a pecuária itinerante. Nos desertos (Saara) ou nas florestas, dis-
põem de território mais ou menos extenso. Vivem frequentemente em simbiose
com os povos sedentários, com os quais trocam o produto de suas atividades. O
chefe do clã não exerce poder discricionário, mas, quando a produção do grupo
aumenta, é dispensado dos trabalhos braçais, beneficiando -se do excedente; é
árbitro nos conflitos surgidos por ocasião da partilha das terras.
O reino congrega vários clãs, sendo o rei, frequentemente, um chefe de c
que impôs sua autoridade a outros clãs; é o caso do clã Keita, fundador do Impé-
rio do Mali (século XIII). O rei dispõe de um conselho cujos membros vivem de
seus benefícios, ocupando o reino território bastante extenso; no entanto cada
clã conserva sua estrutura fundiária e seus ritos particulares. Fato importante é
o compromisso de fidelidade ao rei, que se traduz pelo pagamento de um imposto,
frequentemente em nero. Chefe político, o rei mantém, normalmente, os
atributos religiosos do chefe de clã; sua pessoa é sagrada. Esse caráter sagrado
manifesta -se nitidamente no caso do rei do Congo, do soberano do Monomo-
tapa e do imperador do Mali, cujos súditos juravam por seu nome.
Os soberanos que chamamos “imperadores” controlam, em princípio, senão
um vasto território, ao menos reis, que gozam de grande autonomia. Temos
como exemplo o Império Almóada, que se estendeu por boa parte do Magreb:
o sultão, originário de uma kabīla, ou clã, comanda outros sultões, que, por sua
vez, comandam chefes de kabīla, ou xeques. O imperador, ou mansa, do Mali
tinha sob sua autoridade doze províncias, das quais duas eram reinos. Seja rei
ou imperador, o soberano está sempre rodeado de um conselho; este, em geral,
exerce influência moderadora sobre o poder real, que invariavelmente é circuns-
crito por uma “constituição ou “costume”.
mencionamos as cidades -Estado, que são, na verdade, reinos reduzidos
às dimensões de uma cidade e seus arredores. As cidades hauçá e as cidades
ioruba do Benin constituem os casos mais típicos, com instituições bastante
elaboradas e uma corte formada por funcionários e pela aristocracia. As cidades
hauçá reconheciam uma cidade -mãe, Daura; no caso dos Yoruba, era Ife que
desempenhava esse papel. A comunidade cultural é o cimento que une esses
Estados, frequentemente em guerra entre si.
Assim, banimos do nosso vocabulário as expressões “sociedade sem Estado”
e sociedade segmentar”, caras aos pesquisadores e historiadores de certa época.
Também banimos termos como “tribo”, “camita”, hamita”, “fetichista”. Em
certas partes da África, a palavra “tribo adquiriu conotação bastante pejorativa.
Após as independências, os conflitos sociais e políticos passaram a ser qualifica-
15
Introdução
dos de “guerras tribais” entenda -se,guerras entre selvagens”; para referir tais
circunstâncias, criou -se a palavra “tribalismo”. Tribo” designava originalmente
um grupo sociocultural; hoje, aplicada à África, significa formação primitiva”
ou retrógrada”. A palavra “fetichismo tem acepção igualmente pejorativa: os
africanistas empregam -na para designar a religião tradicional africana; é sinô-
nimo de charlatanismo”, de religião dos selvagens”, se é que se pode chamar
religião às práticas africanas.Animismo”, que designa a religião tradicional na
África, também comporta carga negativa: assim, usaremos a expressão religião
tradicional africana em lugar de “animismo” ou “fetichismo”. A palavra “camita
ou hamita” tem longa história. Designava -se com esse termo os povos pastores
brancos ou assim supostos portadores de civilização”. Esses hipotéticos pas-
tores, cuja realidade ou historicidade nunca foi demonstrada, teriam se deslocado
através do continente, levando aqui e acolá a cultura e a civilização aos agricul-
tores negros. O mais curioso é que a palavra “camita” deriva de Cam (nome do
ancestral dos negros, segundo a Bíblia); é, pois, muito intrigante que tenha vindo
a designar um povo branco. De fato, trata -se nada menos do que uma das maio-
res mistificações da história. Os historiadores coloniais admitiam por princípio
a superioridade dos pastores sobre os agricultores! Afirmação completamente
gratuita. Infelizmente, o colonialismo, exacerbando as rivalidades entre clãs,
entre agricultores e pastores, transformou o Ruanda e o Burundi, por exemplo,
à época das independências, num verdadeiro barril de pólvora; as lutas entre os
Batutsi (Tutsi) e os Bahima (Bahutu), as perseguições e os episódios sangrentos
de 1962 -1963 devem ser creditados aos colonialistas belgas, que, durante mais
de meio século, sopraram o fogo da discórdia entre os clãs de suas colônias”,
entre pastores ditos “camitas” e agricultores “negros”.
Descolonizar a história é precisamente derrubar as falsas teorias e todos
os preconceitos criados pelo colonialismo para melhor assentar seu sistema
de dominação e exploração e justificar a política de intervenção. Essas teorias
pseudocientíficas ainda são veiculadas em muitos livros... e até nas publicações
didáticas utilizadas em nossas escolas. É importante que, aqui, se traga à história
algum rigor.
C A P Í T U L O 2
17
A unicação do Magreb sob os Almóadas
A época almóada, que se estende de meados do século XII a meados do
século XIII, marca o apogeu do esforço de unificação do Magreb e mesmo de
todo o ocidente muçulmano. A unificação almóada, que os poderes posteriores
em vão tentaram reconstituir, ultrapassa amplamente, em extensão, aquela efe-
tivada pelos Almorávidas. Teve como ponto de partida uma “reforma religiosa”
encabeçada pelo famoso mahdī dos Almóadas, Ibn Tūmart. Apoiando -se numa
comunidade solidamente organizada, a dos muwahhidūn (unitários ou unitaris-
tas), essa reforma desenvolveu -se e adquiriu as dimensões de um empreendi-
mento político global.
Conduzido pelos soberanos da dinastia fundada por um dos mais antigos
e notáveis companheiros de Ibn Tūmart, a dos Mumínidas, o movimento não
teve apenas – longe disso – finalidades e razões religiosas e políticas; seu desen-
rolar seguiu igualmente considerações, imperativos e necessidades de ordem
econômica, cujos dois elementos essenciais residiam, por um lado, no controle
das principais rotas do comércio transaariano ou pelo menos das suas saídas
setentrionais –, e por outro, na integração dos diversos pólos de desenvolvimento
econômico do Magreb e do ocidente muçulmano através da ampliação dos
antigos domínios almorávidas no Magreb e na Ifrkiya.
A unicação do Magreb sob os Almóadas
O. Saidi
18
África do século  ao século 
F . Mapa do Magreb durante o século XII atividades econômicas. (Mapa de J. Devisse, seg. O. Saidi e C. Vanacker.)
19
A unicação do Magreb sob os Almóadas
A situação religiosa no Magreb e a corrente almóada
Ortodoxia e Islã
Em meados do século XI, o proselitismo (da’wā) xiita batinita (esotérico)
ainda era vigoroso, a despeito do enfraquecimento político dos Fatímidas do
Egito
1
, e o gradual movimento de unificação comunitária, deflagrado havia
muito tempo (ao menos desde a derrota mutazilita, ocorrida em meados do
século IX), permanecia bastante esparso.
A busca da unificação processou -se por diferentes caminhos, que ainda não
tinham alcançado uma síntese doutrinal: o da purificação ascética, fundado no
estudo da tradição sunita e do hadīth que podia levar aos excessos do sufismo;
o da sistematização jurídica, que com frequência caía no formalismo e num
ritualismo quase mecânico; enfim, o do aprofundamento e aperfeiçoamento das
proposições teológicas da síntese asharita
2
.
Face ao xiismo e à falsafa (filosofia), essas várias correntes e tentativas de
sínteses parciais senão pessoais, como veremos adiante foram marcadas
por real esforço de unificação comunitária, cujo avanço era, muito tempo,
inversamente proporcional ao desmembramento político do mundo islâmico. É
à luz dessa evolução que deve ser examinada a situação do Islã e da ortodoxia
no Magreb e também no ocidente muçulmano
3
.
O Islã encontrou no Magreb grandes dificuldades para estabelecer sua domi-
nação e fundar sua unidade
4
: teve, aí, de enfrentar obstinada e duradoura resis-
tência, rapidamente corporificada na heresia caridjita – mistura de anarquismo
e igualitarismo que seduziu particularmente os meios nômades e as sociedades
rurais. Respaldada em concepções, tradições e formas de organização étnicas,
essa “heresia tirou partido das condições particulares criadas pelo exercício da
soberania islâmica para se implantar entre os berberes, pregando a negação do
princípio da hereditariedade na ascensão ao califado bem como da preeminência
de qualquer cabila, ainda que fosse a do profeta
5
.
1 Ver LAROUI, 1970, p. 163.
2 Ver verbete al -Ash‘ar” (nascido em 873 -874, morto em 935 -936) in Encyclopaedia of Islam, nova ed., v.1,
p. 694 -5.
3 É evidente que a contestação tumartiana da situação religiosa no Magreb constitui índice concreto dessa
própria situação e da atitude do ocidente muçulmano em relação às diferentes escolas islâmicas de pen-
samento religioso.
4 Ver notadamente GOLDZIHER, 1887 e TALBI, 1966, p. 17 -21.
5 A propósito do sucesso dessas posições e da atitude recalcitrante dos berberes, ver TALBI, 1966, p. 19.
20
África do século  ao século 
No Magreb, o caridjismo serviu igualmente de fachada ideológica a toda sorte
de oposição; por vezes, o termo podia designar grande negligência na observân-
cia dos deveres religiosos e, em certos casos, a negação pura e simples do Islã.
A isso somava -se a longa persistência do direito consuetudinário berbere, que
se manteve, contradizendo por vezes a jurisprudência islâmica, até a intervenção
do almorávida Yūsuf ben Tāshfn. A despeito do imenso esforço de islamização
promovido pelos Omíadas da Espanha, pelos Idrísidas e mesmo pelos Fatímidas,
foi preciso esperar pelos Almorávidas e Almóadas para ver desaparecer as graves
alterações do Islã e as formas mais manifestas da dissidência berbere, que reco-
briam atitudes socioeconômicas ainda não inteiramente esclarecidas.
Outra característica do Islã magrebino é a adoção do maliquismo, ainda hoje
predominante na região. Os discípulos de Mālik ben Anas, como Ibn al -Kāsim
6
,
propagaram e fortaleceram sua escola jurídica arrebanhando adeptos autóctones.
Kayrawān (Kairuan) tornou -se rapidamente centro de difusão do maliquismo,
produzindo uma linhagem de doutores entre os quais se destaca o imã
Sahnūn (776 -854), zeloso divulgador da obra de Ibn al -Kāsim – que por diver-
sas vezes obtiveram o apoio das populações, notadamente quando da ofensiva
xiita fatímida do século X
7
.
Enquanto se reduzia cada vez mais o estudo dos fundamentos da lei religiosa
(o Corão e os hadīth), os manuais de furū‘ (tratados jurídicos práticos) consti-
tuíam a principal referência no exercício do direito. Essa tendência, por vezes,
redundava em real desprezo pelo estudo dos hadīth, conforme testemunha o
exemplo de al -Asbagh Ibn Khall
8
, grande sábio e cádi de Córdoba.
As raras e tímidas tentativas como as de Bak ben Makhlad
9
nada podiam
contra a fortaleza que constituía, então, a “corporação” dos juristas maliquitas,
que eram muitas vezes grandes proprietários de terras.
Essa situação caracteriza -se igualmente pelo pouco interesse dos juristas, ou
fukahā’, pela dogmática espiritualista que então dominava no Oriente. Preten-
diam eles ater -se à “verdade” literal da palavra de Deus, abstendo -se de toda
interpretação, que, a seus olhos, poderia ser fonte de alteração.
Tal atitude encobria certas dificuldades, senão contradições, particularmente
no que se refere aos atributos de Deus; é a razão pela qual os Fukahā’ maliquitas
6 Morto no Cairo em 806, Ibn al -Kāsim é autor de al -Mudawwāna; principal livro do rito maliquita depois
da famosa obra do imã Mālik ben Anas, o Kitāb al -Muwatta’ (A senda suave).
7 Ver MONÉS, 1962, v. 1, p. 197 -220
8 A respeito do maliquismo andaluz, ver GOLDZIHER, 1903.
9 A respeito desse exegeta cordobês, ver Encyclopaedia of lslam, nova ed., v. 1, p. 956 -7.
21
A unicação do Magreb sob os Almóadas
eram acusados de antropomorfismo”, ou hashwīya, isto é, de ater -se unicamente
aos sinais exteriores, ligando -se servilmente às ciências das aplicações jurídicas,
colocando a salvação dos fiéis na prática exterior das prescrições da lei e des-
considerando totalmente a vida religiosa interior.
Assim, nenhuma tentativa de renovação ou de aprofundamento pôde fruti-
ficar, e a dominação dos maliquitas, exclusiva e perseguidora, isolou os poucos
adeptos das vias de reflexão e de busca que no Oriente tinham terminado por
triunfar. Esse imobilismo suscitou reações extremas em nome da liberdade de
pensamento e até mesmo em defesa de uma espécie de religião universal, criando
um paralelismo que excluía qualquer tentativa de síntese
10
. Fazia grande falta no
Magreb a teologia especulativa asharita, que tendia a se colocar entre o espiritu-
alismo intelectualista dos mutazilitas e o literalismo “antropomorfista”. Mesmo
os filósofos do Ocidente muçulmano, como Ibn Rushd (Averróis), incitavam as
populações a esse paralelismo, aclamando a massa dos fiéis refratária à especula-
ção e acusando os asharitas de perturbar a fé dos simples. Faziam, assim, o jogo
dos maliquitas, que demonstravam grande tolerância para com eles.
Concluindo, a ortodoxia islâmica no Magreb e na Andaluzia (al -Andalus)
reduzia -se, à época de Ibn Tūmart, a uma doutrina caracterizada por preocu-
pações normativas, da qual se excluíam inquietações e mistérios. A religião
tornou -se uma questão de previsão, de cálculo e de “capitalização”; foi o triunfo
do ritualismo, limitado à repetição monótona de certos ritos que asseguravam,
em troca, uma “remuneração”. o é de admirar, portanto, que grandes espí-
ritos como al -Ghazzāl e Ibn Hazm tenham considerado essa prática do Islã,
reduzido a uma atividade ritualística e codificadora, como ameaça à verdadeira
11
. Al -Ghazzāl, em particular, critica violentamente essa espécie de fukahā’
em sua famosa obra Ihyā’ulūm al -dīn (Vivificação das ciências da religião), ao
acusar os maliquitas de fazer da vida religiosa um monopólio e tirar proveito
da administração de montepios religiosos e dos bens dos órfãos para enrique-
cimento próprio. Critica igualmente a casuística que utilizavam para justificar
os atos do poder temporal, ao qual estavam ligados por servilismo indigno dos
verdadeiros homens de religião. Seu formalismo dessecado foi rejeitado em favor
do retorno e do acesso à água vivificante das fontes que constituíam a suna e o
Corão. Por essa razão, al -Ghazzāl foi alvo de intensa hostilidade por parte dos
fukahā’ maliquitas, sendo absurdamente acusado de trocar a verdadeira pela
sua dogmática asharita e por suas tendências místicas.
10 Sobre Ibn Masarra, morto em 931, ver Encyclopaedia of Islam, v. 3, p. 868 -72.
11 Ver MERAD, 1960 -1961, v. 17 -19, p. 379.
22
África do século  ao século 
A formação de Ibn Tūmart
Pouco sabemos sobre a vida de Ibn Tūmart
12
; seu destino foi tal que passou
à posteridade rodeado de lendas, mistérios e fabulações. Teria nascido em torno
de 1075 no Antiatlas marroquino, em Īgllz -n -Hargha (Idjli -en -Warghān). Seu
pai pertencia à cabila dos Hargha
13
e sua mãe à dos Masakkāla, ambas frações
do grupo Masmūda, atualmente conhecido pelo nome de Shleūh (Shlūh). As
necessidades ideológicas de sua predicação e suas pretensões mahdistas fizeram
com que ele se atribuísse ou se fizesse atribuir nome árabe e ascendência
xarifina (mas com interferências berberes)
14
.
Contudo, devia pertencer a uma família abastada, pois seu pai ostentava o
título de amghar, que, no sul do Marrocos, designava o chefe de aldeia ou de
cabila. Além disso, teve condições para instruir -se e completar seus estudos no
Oriente. Segundo Ibn Khaldūn
15
, a família de Ibn Tūmart distinguia -se por
sua devoção; ele mesmo mereceu o epíteto de asafu (tocha, em shleūh) por sua
assiduidade no estudo e na oração.
Em 1107, Ibn Tūmart partiu para um longo périplo com a finalidade de
completar seu aprendizado; o itinerário, as etapas e a extensão real dessa via-
gem são objeto de muita controvérsia e de inúmeras versões
16
. Por outro lado,
contrariamente à hagiografia tumartiana
17
, ficou provado que ele não encontrou
al -Ghazzāl, o grande imã místico, nem seguiu seus ensinamentos e muito
menos dele recebeu a missão de reformar o Islã no Magreb ou de eliminar o
poder dos Almorávidas
18
.
A invocação e a apropriação do prestígio de al -Ghazzāl foram, na verdade,
bastante tardias: seu nome só aparece, como ponto de partida da carreira de Ibn
Tūmart, no preciso momento em que se extingue a antipatia que os fukahā’ do
Magreb alimentavam pelo sistema teológico do grande imã oriental
19
.
12 Sobre Ibn Tūmart, ver Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 3, p. 958 -60.
13 Sobre as questões relativas a essa cabila berbere, ver VI -PROVENÇAL, 1928b, p. 55, e MONTAGNE,
1930, p. 64; ver tb. o excelente artigo da Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 3, p. 207.
14 O mesmo ocorreu com seu pai, que de Tūmart Ibn Ugallid passou a ‘Abd -Allāh.
15 IBN KHALDŪN, 1852 -1856, v. 2, p. 163.
16 Ver, por exemplo, IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 4, e IBN KUNFUDH, 1968, p. 100.
17 Ver IBN AL -ATHĪR (reed. 1876 -1891), v. 10, p. 400 -7 que nega o encontro, e princi palmente HUICI
MIRANDA, 1949, v. 14, p. 342 -5.
18 Ver IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 14 -8, e LE TOURNEAU, 1969, p. 79, citando al -Hulal
al -Mawshiyya.
19 Ver GOLDZIHER, 1903.
23
A unicação do Magreb sob os Almóadas
A carreira de Ibn Tūmart pode ser dividida em várias etapas. Foi sucessiva-
mente o censor de costumes, o teólogo que se impôs em Marrakech, o chefe de
uma nova escola em Aghmāt e finalmente o chefe de um partido -comunidade
e candidato ao poder solidamente protegido pelos muros de Tnmallal, em
plena montanha.
Na Ifrkiya, seu saber e devoção foram, ao que parece, objeto de grande
admiração; nas várias cidades em que se deteve, multidões cada vez maiores
teriam se reunido para ouvi -lo.
No curso de sua viagem para o oeste, a etapa de Bidjāya (atual Bougie), bri-
lhante e próspera capital dos Hamádidas onde os costumes eram particulamente
livres, constitui o ponto culminante das intervenções de Ibn Tūmart como cen-
sor de costumes. Sabendo -se em perigo, partiu para Mallāla, nos arredores de
Bidjāya, onde, ao que parece, passou longo período mergulhado no estudo e na
reflexão.
Por seu significado ulterior, essa etapa reveste -se de grande importância: foi
ali que Ibn Tūmart encontrou -se com seu futuro sucessor, Abd al -Mū’min ben
Al ben ‘Alw ben Ya‘al -Kūm Abū Muhammad
20
, que então se dirigia para
o Oriente em viagem de estudos. Este foi demovido da ideia de prosseguir e
permaneceu ao lado de Ibn Tūmart. O encontro foi rodeado de lendas e de um
simbolismo misterioso; certo é, porém, que a partir daí Ibn Tūmart não estava
mais só: fazendo -se acompanhar de um grupo cada vez maior de seguidores, sua
marcha para oeste torna -se, ao que parece, mais organizada.
Às sessões improvisadas de ensino e de discussão sucederam encontros com
religiosos. Ibn Tūmart começa a receber informações sobre o extremo Magreb
e talvez até alguns emissários. A cada parada fazia novos contatos
21
.
Ao passar de Sala (atual Salé) para Marrakech, Ibn Tūmart recusa -se a
pagar o direito de passagem; na capital almorávida tem lugar a famosa sessão
de confrontos intelectuais com os fukahā’ da corte, durante a qual, na presença
do emir almorávida Al Ibn Yūsuf, reduziu ao silêncio seus adversários, os quais
dominavam o soberano.
Ultrapassando, assim, o domínio teogico, as críticas de Ibn Tūmart
tornavam -se perigosas, o que levou o vizir Mālik Ibn Wuhaib a sugerir que
ele fosse eliminado; no entanto, outro personagem da corte, Yintān ben ‘Umar,
tomou -o sob sua proteção e o persuadiu a fugir da capital. Ele parte, então, para
20 Sobre ‘Abd al -Mū’min e seu país, ver Encyclopaedia of lslam, nova ed., v. 1, p. 78 -80.
21 Um mapa do itinerário de Ibn Tūmart seria interessante por vários motivos, principalmente se comparado
ao roteiro da marcha conquistadora de ‘Abd al -Mū’min rumo leste, mais tarde.
24
África do século  ao século 
Aghmāt
22
, onde tem início nova fase de sua carreira: nessa cidade, Ibn Tūmart
rebela -se abertamente contra os Almorávidas, recusando -se a retornar a Mar-
rakech quando o emir assim o ordena.
A partir daí, as preocupações de Ibn Tūmart concentram -se na organização
e implantação efetiva de um movimento o movimento almóada – cujo projeto
político, a derrubada do regime almorávida, dia após dia vai tomando corpo. Ibn
Tūmart torna -se progressivamente o chefe espiritual de forças cada vez mais
numerosas, unidas, a essa altura, mais por sentimentos tribais antialmorávidas
que por preocupações quanto à pureza da lei ou ao rigor da prática islâmica.
A reforma almóada de Ibn Tūmart
Os princípios, as ideias e a formulação da reforma de Ibn Tūmart em maté-
ria de moral, de dogmática teológica e de legislação parecem ter amadurecido
progressivamente durante sua viagem de estudos ao Oriente, no caminho de
regresso ao extremo Magreb e nos contatos com seus companheiros, cada vez
mais numerosos, com os quais finalmente se instala em seu país natal
23
.
O primeiro princípio dizia respeito, evidentemente, ao tawhīd (afirmação da
unicidade de Deus), que, segundo escreve, é a “afirmação de um Deus único e a
negação de tudo o que o é Ele: divindade, associado, santo, ídolo
24
. Baseando -se
em vários hadīth, afirmava que o tawhīd era o primeiro dentre os conhecimentos
obrigatórios, pelas três razões seguintes: é um dos fundamentos da religião, a
mais importante das obrigações e a religião dos primeiros e dos últimos profetas.
Os Almóadas (corruptela de al -Muwahhidūn, que significa crentes da unici-
dade de Deus al -Muwahhūd) pregavam um misticismo marcado pela influên-
cia de al -Ghazzāl; tratava -se, com efeito, de um retorno às fontes do Islã como
reação aos Almorávidas, mais ligados à jurisprudência e ao estudo dos textos que
à busca de uma lei despojada. Os almóadas distinguiam -se pela austeridade de
costumes e pela sobriedade, qualidades muito apreciadas pelos berberes, povo
rural pouco afeito ao luxo. Importante é notar que o mahdī utilizava a língua
22 Sobre Aghmat, ver Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 1, p. 250 -1, e DEVISSE, 1972, p. 63, 66 e 70.
23 515/1121*: Īgllz, sua aldeia natal, onde se instalou em uma caverna declarada a partir daí al -Ghār
al -mukaddas (caverna sagrada); 517/1123: Tinmallal, no vale superior do Ns, a aproximadamente 75
km a sudoeste de Marrakech.
*Alguns acontecimentos do mundo muçulmano foram indicados com duas datas (por exemplo: 515/1121).
A primeira (515) se refere ao calendário muçulmano (que teve início em 622 da era cristã, por ocasião da
Hégira, quando Maomé se retira de Meca para Medina), e a segunda (1121) ao calendário cristão. (N. da
Ed.)
24 IBN TŪMART, trad. francesa, 1903, p. 271.
25
A unicação do Magreb sob os Almóadas
berbere em suas pregações: até mesmo redigiu opúsculos em sua língua materna.
No plano político, apoiava -se no conselho dos notáveis, à maneira berbere, per-
manecendo fiel às regras do kabīla Shleūh.
Ibn Tūmart adotou as ideias dos mutazilitas, que consideravam Alá como
puro espírito
25
, e preconizou a interpretação alegórica de certos versículos do
Corão, tidos como ambíguos, em que eram empregados termos e fórmulas de
caráter material ou humano, principalmente no que diz respeito aos atributos de
Deus. Para ele, o importante não era exigir o respeito à literalidade de expres-
sões que beiravam os limites da razão humana, mas recorrer à interpretação
alegórica, a qual excluía o tashbīh (comparação) e o taklif (modalidade). É este
um dos pontos essenciais de sua condenação aos Almorávidas
26
. Considerava -os
infiéis porque eram culpados, particularmente, de “tadjsīm(antropomorfismo).
Nesta questão Ibn Tūmart mostrava -se radical, apontando sistematicamente
para a excomunhão, que, por princípio, atribuía aos que detinham o poder a
responsabilidade pela conduta de seus súditos, o que fazia dos Almorávidas os
principais culpados pelo antropomorfismo corrente no Magreb. Assim, procla-
mava que deviam ser combatidos numa guerra santa (djihād), no que seguia as
posições asharitas e mutazilitas mais extremas.
O tawhīd de Ibn Tūmart fazia -o negar a própria existência dos atributos de
Deus e criticar duramente aqueles a quem denominava mushrikūn (associacio-
nistas, isto é, aqueles que conferem atributos a Deus). Opunha -se, ao mesmo
tempo, aos asharitas segundo os quais Deus tinha atributos eternos inerentes à
sua essência e aos tradicionalistas para os quais esses atributos eram distintos
da essência divina.
Para ele, os epítetos dados a Deus, al -asmā’ al -husnā (os mais belos nomes),
não passavam de qualidades destinadas a confirmar sua unicidade absoluta.
Assim, o criador era, necessariamente, vivo, sábio, poderoso, dotado de vontade,
e tudo isso sem que se possa apreender a modalidade dessas qualidades
27
.
Após ter demonstrado a unicidade de Deus, Ibn Tūmart preocupa -se em des-
tacar sua eternidade: Deus é o criador e nada o pode preceder; é, pois, o primeiro,
sem ter começo, e o último, sem ter fim
28
. Também ênfase especial à onipotên-
25 Ver a carta de Ibn Tūmart à comunidade almóada in LÉVI -PROVENÇAL, 1928a, p. 78, na qual adverte
seus adeptos contra a tendência de ligar Deus aos limites e às direções, o que teria por consequência
aproximar a divindade de uma criatura; aquele que chegasse a esse ponto seria como que o adorador de
um ídolo.
26 Ver BOUROUIBA, 1973, p. 145.
27 IBN TŪMART, trad. francesa, 1903, p. 235.
28 Ibid., p. 232.
26
África do século  ao século 
cia divina, temperada pelo fato de que Deus impõe às criaturas aquilo que está
no âmbito das possibilidades destas; essa afirmação aproxima -o dos mutazilitas.
Quanto ao conceito de missão profética, Ibn Tūmart adotava o ponto de vista
dos sunitas, que reconheciam a veracidade do enviado de Deus através de sinais
extraordinários, as provas (āyāt). Ao abordar uma questão tão crucial quanto
a da predestinação, que podia ter e teve implicações políticas, Ibn Tūmart
afastou -se do dualismo mutazilita (onipotência e justiça de Deus); a despeito
de sua afirmação da sabedoria divina, admitiu a predestinação.
um elemento da doutrina tumartiana que se desviava nitidamente das
posições sunitas: é a crença num mahdī (o guia impecável), que é guiado por Deus.
As tradições relativas ao mahremontam ao Profeta, a quem se atribuem hadīth
que anunciam a vinda de um restaurador, de um redentor, pertencente à família do
Profeta. Para os sunitas, o mahdī deverá aparecer à véspera do fim dos tempos,
para restabelecer e aplicar a verdadeira religião. Para os xiitas, é um imã oculto
que deve reaparecer e governar pessoalmente por direito divino. Entre as classes
populares, a crença no mahera bastante difundida por simbolizar a justiça; essa
esperança é ainda atestada no século XIV por Ibn Khaldūn
29
em Massa, no Sūs.
Ibn Tūmart situa sua própria missão de imã imediatamente após a morte de
Alī, ocorrida em 661 ; é, pois, obrigatório obedecê -lo cegamente em tudo o que
concerne à religião e às coisas deste mundo, imitá -lo em todos os seus gestos,
aceitar suas decisões e a ele se dirigir em qualquer situação. Obedecer ao mah
é obedecer a Deus e ao seu Profeta, pela simples razão de ser o mahdī aquele
que melhor conhece Deus e seu Profeta. Para alguns, o fato de Ibn Tūmart ter-
-se proclamado mahdi corresponderia à culminação lógica de sua vocação para
exaltar o bem e proibir o mal; para outros, não teria feito mais do que utilizar-
-se de tradições e crenças locais
30
revestidas de referências islâmicas, invocando
hadīth provavelmente apócrifos que anunciavam um papel excepcional para o
povo do Magreb. Essas duas hipóteses não são necessariamente contraditórias.
É preciso ressaltar, no entanto, que o credo do mahdismo suspende, por assim
dizer, aqueles aspectos da doutrina almóada que poderiam levar a um aprofun-
damento teológico suscetível de enriquecer o Islã, então superficial e formalista.
Ibn Tūmart rejeita a apreciação individual, julgando -a fonte de erro; nisso
adota uma postura idêntica à dos zairitas. Para responder à objeção implícita
29 IBN KHALDŪN,trad. francesa, 1863 -1868, v. 2, p. 200.
30 Por exemplo, Sālih, profeta dos Barghawāta, e -Mm, profeta do Rif.
27
A unicação do Magreb sob os Almóadas
relativa à shahāda (testemunho), ele acrescenta que esta não constitui um prin-
cípio absoluto (asl), mas simplesmente uma indicação de valor relativo
31
.
Assim, as fontes que devem ser utilizadas no estabelecimento das leis da
religião são, para Ibn Tūmart, o Corão e a suna e, em certas circunstâncias, o
consenso e o raciocínio por analogia. Quanto aos hadīth, sua preferência recai
sobre o povo de Medina, fato que vem comprovar sua preocupação que mani-
festa em se aferrar às fontes mais próximas do Profeta. Não podemos concordar
com I. Goldziher
32
quando relaciona o interesse de Ibn Tūmart pela tradição
e pela prática medinenses com o desejo de manter boas relações com a escola
maliquita. Ibn Tūmart limita o idjmā (consenso) aos companheiros do Profeta;
com relação ao kiyās (analogia), sua posição é prudente: condena, efetivamente,
o al-kiyās akli (analogia especulativa).
Após ter enumerado as fontes do direito muçulmano (fikh), Ibn Tūmart
prega sua utilização direta e condena o uso exclusivo dos tratados de furū (tra-
tados de aplicações jurídicas); é a ocasião, para ele, de criticar os doutores almo-
rávidas, culpados, a seus olhos, de negligenciarem e abandonarem as tradições,
por vezes até desprezando -as.
Para Ibn Tūmart, o fikh deve ser modificado e enriquecido, pois o idjtihād
não termina com Malik e outros chefes de escola; qualquer pessoa versada na
ciência do usūl al -fikh (fundamentos, fontes da lei) pode deduzir por si próprio a
lei das fontes. O mahdī condena a filiação a uma escola jurídica (madhhab), pois,
segundo diz, é absurdo que haja grande variedade de opiniões acerca da mesma
questão. Seguindo a mesma linha de raciocínio, sublinha a impossibilidade de
se reduzir a casos particulares uma ordem expressa de forma generalizada, ideia
que compartilha com os zairitas.
A organização do movimento almóada: um partido de propaganda,
de doutrinação e de combate
Foi provavelmente a partir de seu retiro em Aghmāt que Ibn Tūmart viu -se pro-
gressivamente à frente de um movimento que iria se expandir para alcançar objetivos
o apenas religiosos mas também poticos, e ao qual iriam se engajar as populações
do Atlas. É provavelmente nessa perspectiva que Ibn Tūmart alimentou a ideia
de tornar -se mah; pois logo após seu regresso a Īgllz, em 1121, empenhou -se
em imitar o comportamento do Profeta – entre outras coisas, instalando -se numa
31 GOLDZIHER, 1903, p. 46.
32 Ibid., p. 50.
28
África do século  ao século 
caverna – e, desse modo, preparar os esritos ao advento do mahdī, que outro não
seria senão ele próprio. Fez -se proclamar mahdī por dez de seus companheiros, entre
eles Abd al -Mūmin, fato que evoca os al -‘Ashara al -Mubashshara (os dez a quem
foi prometido o paraíso)
33
. A proclamação aconteceu sob uma árvore, como a bay a
em al -Ridn. As expedões de Ibn Tūmart o denominadas maghāzi; como as
do Profeta; seu retiro em Tnmallal é designado por hidjra (gira) e o povo dessa
localidade, os Ahl Tnmallal, o assimilados aos An.
Partindo dessa organização inicial, Ibn Tūmart conquista a maior parte do
Antiatlas e do Sūs através de escaramuças e de ataques -surpresa; todas as cabilas
dos Masmūda estavam prontas a apoiá -lo.
No entanto, como a pressão almorávida aumentava cada vez mais, Ibn Tūmart
julgou mais prudente retirar -se para uma posição que oferecesse melhores con-
dições de defesa; assim, emigra para Tnmallal em 1123. Sua instalação nessa
localidade parece ter transcorrido de maneira violenta: os Ahl Tnmallal da
hierarquia almóada aparecem como um grupo heterogêneo, o que faz supor que
os antigos habitantes tenham sido liquidados e substituídos por um grupo de
partidários almóadas de diversas procedências. Numa etapa seguinte, o movi-
mento almóada aproveitou -se das dificuldades por que passavam os Almorávidas
na Espanha, bem como da hostilidade que contra estes manifestavam as cabilas
montanhesas, para se expandir e consolidar -se. No entanto, as fileiras almóadas
sofreram várias dissensões internas e os Masmūda, fragmentados em inúmeros
grupos, estavam despreparados para se incorporarem em federação mais ampla.
Desde o início, efetivamente, a estruturação partidária do movimento
estendeu -se ao funcionamento do Estado; por esse motivo, o estudo da orga-
nização partidária pode constituir uma abordagem frutífera na elucidação das
bases do edifício almóada, bem como das orientações e dos fatores que deter-
minaram o movimento.
Os Dez distinguiam -se pela ciência, pela capacidade de organizão e
pelo espírito de sacrifício; foram companheiros de Ibn Tūmart antes de este
proclamar -se mahdī
34
, salvo Abū Hafs ‘Umar Ibn Yahyā al -Hintāt; cooptado
após o tawhīd, proveniente de Hintāta, numeroso grupo de kabīla das quais era
um dos principais chefes
35
. Constata -se, aliás, que esse grupo não abrigava um
único membro dos Hargha.
33 Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 1, p. 693.
34 IBN ‘IDHĀRI AL -MARRĀKUSHĪ, 1949, p. 188; IBN ABĪ ZAR‘, trad. latina, 1843, p. 113.
35 IBN AL -KATTAN, s.d. (1964?), p. 87; HUICI MlRANDA, 1956b, v. 1, p. 103.
29
A unicação do Magreb sob os Almóadas
F . Muro ocidental (kibla) da mesquita em Tnmallal (Marrocos). Primeiro grande lugar de oração
da comunidade almóada, a mesquita é exemplo da austeridade arquitetônica e decorativa que os Almóadas
desejavam impor. (Foto J. -L. Arbey.)
F . Pátio interno da mesquita em Tnmallal. (Foto J. -L. Arbey.)
30
África do século  ao século 
A constituição dos “Cinquenta (Ahl al -Khamsīn), por sua vez, operou -se pro-
gressivamente
36
. Os Cinquenta representavam as cabilas almóadas que estiveram à
base do movimento, integrando -se a este em diferentes momentos
37
; os Haskura,
por exemplo, aderiram ao movimento sob o reino de ‘Abd al -Mū’min
38
. Isso
nos inclina a pensar que o conselho devia estar em gestação em Īgllz e come-
çou a adquirir sua forma funcional em Tnmallal
39
. Certas cabilas devem ter tido
representação nesse conselho antes de sua incorporação coletiva.
O grupo dos talaba parece ter sido anterior aos dois precedentes.
Al -Marrākush
40
relata que, antes de Ibn Tūmart proclamar -se mahdī; enviava
às cabilas homens cujo espírito ele apreciava, no intuito de conseguir adesões
à sua causa. Esses talaba foram, assim, os propagadores do movimento, e sua
atividade deveria se prolongar após a proclamação de Ibn Tūmart
41
.
Cada um desses organismos tinha função específica, fato que nos ajuda a
visualizá -los com maior clareza.
Os Dez Ahl al ‑Djamā‘a
O duplo nome que as fontes atribuem a esse conselho
42
ashara (os Dez)
e Ahl al -Djamā‘a (literalmente, povo da comunidade) torna difícil saber se a
designação se refere à instituição ou ao número de membros que a compõem,
que varia conforme a fonte. Registram -se os números sete, dez e doze
43
, o que
sugere que o número dez tenha sido atribuído ao conselho por uma preocupação
de analogia aos companheiros do Profeta. O número real e a composição devem
ter variado devido a exclusões, como a de al -Fakh al -Ifrki
44
, ou a substituições.
Por outro lado, certos autores
45
indicam personagens que pertencem ao mesmo
tempo aos Dez e aos Ahl al -Dar (as “pessoas da casa ou conselho particular
do mahdī), o que implica certa flexibilidade e uma circulação funcional entre
36 VI -PROVENÇAL, 1928a, p. 35 -6.
37 Ibid., p. 28; IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 28, 92 -3.
38 Ibid., p. 76; IBN KHALDŪN, trad. francesa, 1956, v. 6, p. 476.
39 HUICI MIRANDA, 1956b, v. 1, p. 103.
40 IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, 1949, p. 187.
41 VI -PROVENÇAL, 1928a, p. 132; IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 84 -93.
42 Ver VI -PROVENÇAL, 1928a; al -Baydhak chama -os apenas Ahl al -Djamā‘a. Ver IBN ‘IDHĀRĪ
AL -MARRĀKUSHĪ, 1949, p. 188 e 337; IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 28, 30, 74 e 76; IBN ABĪ
ZAR‘ , trad. latina, 1843, p. 113.
43 IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 97.
44 Ibid., p. 97.
45 VI -PROVENÇAL, 1928a, p. 34.
31
A unicação do Magreb sob os Almóadas
os dois organismos. A ordem em que são citados os membros do Conselho
dos Dez varia segundo a fonte e pouco nos auxilia a apreender a importância
e o papel de cada um deles. A maior parte das fontes atribui a chefia a Abd
al -Mū’min, talvez por se tratar do sucessor do mahdī; alguns autores, entretanto,
colocam nessa posição Abd al -Wahd Ash -Shark, ou, ainda, o famoso al -Bashir
al -Wanshar; arquiteto do conhecido tamyīz (1128 -1129), que, ao que parece,
teria sido a pessoa mais bem colocada para suceder a Ibn Tūmart, caso não
tivesse morrido na batalha de al -Buhayra
46
.
Os membros do Conselho dos Dez ou Ahl al -Djamā‘a eram, de certo modo,
o ministério do mahdī; eram homens de confiança que ele consultava acerca
de questões importantes, encarregados de pôr em prática as grandes decisões
47
.
Dentre eles, al -Bashr (com frequência), Abd al -Mū’min, Umar Asnadj e Mūsā
Ibn Tamara (em algumas ocasiões) desempenharam o papel de comandantes
militares
48
. Outros foram secretários, cádis
49
etc.
O Conselho dos Cinquenta – Ahl al ‑Khamsīn
Seguiam -se então os conselhos consultivos, dos quais o mais importante parece
ter sido o Conselho dos Cinquenta (Ahl al -Khamsīn); o número cinquenta consti-
tui um ponto de partida sobre o qual a maioria das fontes estão de acordo; todavia,
algumas exibem os números sete, quarenta e setenta
50
. Como foi exposto, o con-
selho representava as cabilas afiliadas ao movimento; ora, o movimento de adesão
faz supor certa flutuação no número de membros, o que explicaria as cifras de
quarenta a setenta
51
encontradas nos documentos. Enfim, os sete, conforme algu-
mas fontes
52
, constituiriam um subgrupo do Conselho dos Cinquenta, onde repre-
sentariam as três mais importantes cabilas, a saber, os Hargha, os Ahl -Tnmallal e
os Hintāta. Quanto ao número setenta, poderia ter resultado da combinação entre
o Conselho dos Cinquenta e outra instituição almóada
53
.
46 Ver MUSA, 1969, v. 23, p. 59 e nota 42; LÉVI -PROVEAL, 1928a, p. 36; IBN AL -KATTĀN, s.d.
(1964?) , p. 102 -3; HUICI MIRANDA, 1956b, v. 1, p. 101.
47 Ver IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 74, 81 e 117; e al -Hulal al -Mawshiyya, trad. fran cesa, 1936, p. 88.
48 VI -PROVENÇAL, 1928a, p. 75; IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 117.
49 VI -PROVENÇAL, 1928a, p. 33; IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, 1949, p. 338.
50 IBN AL -KATTĀN, s.d, (1964?), p. 28 -9 e 32.
51 Em 524/1130, mais de dez pessoas foram acrescentadas ao Conselho dos Cinquenta após o expurgo;
LÉVI -PROVENÇAL, 1928b, p. 35.
52 IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 30 -1; VI -PROVENÇAL, 1928b, p. 33 -5.
53 Os Cinquenta e o Ahl
al -Djamā‘a,
ou os Cinqüenta e o Ahl al -Dar; ver HOPKINS, 1958, p. 90.
32
África do século  ao século 
Os grupos majoritários eram os Ahl -Tnmallal, grupo misto aliado aos
Hintāta desde o início do movimento, os Hargha (a cabila do mahdī) e os
Djanfsa
54
. Os Cinquenta eram descritos como sendo as pessoas que Ibn Tūmart
consultava e com as quais se aconselhava (ashab mashwaratihi)
55
.
As talaba
Essa palavra, cuja origem as fontes não nos revelam, é, ao que parece, inven-
ção almóada
56
. Na época em que o mahdī ainda estava vivo já havia numerosas
talaba. Em 1121, foi grande o número de talaba enviado ao Sūs
57
, o que faz pensar
tratar -se de discípulos de Ibn Tūmart formados e instruídos durante as inúmeras
discussões e controvérsias animadas pelo mahdī no curso de sua viagem de regresso
ao Marrocos. Ao passar por Marrakech atraiu ainda mais seguidores; o ensino que
a eles dispensou em Īgllz, durante cerca de um ano antes de sua proclamação
como mahdī, deve ter contribuído para consolidar esse corpo de discípulos
58
.
Al ‑Kaa
É a palavra que designa o conjunto dos almóadas. Esta instância tampouco
permaneceu desorganizada, já que Ibn Tūmart fez da cabila uma unidade polí-
tica e religiosa. Colocou à testa de cada dezena de pessoas um nakīb
59
, proce-
dendo a constantes revistas ’ard). Entre os almóadas, cada categoria correspondia
a um posto (rutba), que eram em número de 14 segundo Ibn al -Kattān
60
.
Essas formas de organização permitiram doutrinamento intenso frequen-
temente eficaz, cujos propósitos eram, a um tempo, inculcar nos almóadas um
sentimento de exclusividade e uma atitude de sistemática e violenta hostilidade
em relação aos o -aladas. Essa dupla atitude deveria assegurar uma perfeita
obedncia, como a que emanava do sistema de educação. Este fundava -se em três
elementos: as ideias de Ibn Tūmart, as fontes e as vias de acesso ao conhecimento
54 Ver MUSA, 1969, v. 23, p. 63.
55 IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 75 e 81; IBN ABĪ ZAR‘, trad. latina, 1843, p. 114.
56 IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, in HUICI MIRANDA, 1965, v. 3, p. 18.
57 1500, segundo IBN ABĪ ZAR‘, trad. latina, 1843, p. 113.
58 Ver IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 87 e 93;VI -PROVENÇAL, 1928b, p. 132; IBN ABĪ ZAR‘
trad. latina, 1843, p. 113; AL -SALĀWĪ, 1894, v. 2, p. 92.
59 Ver IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 27; al -Hulāl al -Mawshiyya, trad. francesa, 1936, p. 89, onde se que
o nakīb era também chamado de mizr. Sobre isso, consultar IBN AL -KATTĀN, 1316, AH, v. I, p. 93.
60 IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 28 -9 e 81.
33
A unicação do Magreb sob os Almóadas
que contavam com seu benepcito e os métodos de aprendizado que ele havia
elaborado.
As ideias de Ibn Tūmart não podem ser reduzidas a qualquer outra dou-
trina elaborada. Elas se distinguem por sutil ecletismo doutrinal que parece
ter favorecido, entre os almóadas, o sentimento de exclusividade, de unidade e
mesmo de isolamento nessa exclusividade na verdadeira com relação a
todos os outros muçulmanos. A doutrina tumartiana rompeu totalmente com
as práticas adotadas pelo maliquismo
61
. Os almóadas deviam se distinguir dos
outros até no vestir, evitando os lugares onde os homens não acreditassem na
uni cidade de Deus
62
e unindo -se aos seus irmãos na verdadeira religião.
Tudo isso foi incansavelmente transmitido pelo mahdī, sob a forma de prele-
ções, inicialmente, e depois de tratados abundantemente comentados. Preocupava-
- se em unir ciência e ão (ilm e ‘amal), utilizando o árabe e o berbere
63
e
modulando sua ação formadora em função dos diferentes níveis de intelecção
64
.
Esses métodos de formação pautavam -se por uma severidade muitas vezes exces-
siva, a qual assegurava uma obediência cega que podia levar um almóada a exe-
cutar seu pai, irmão ou filho, caso isso lhe fosse ordenado. Um tal rigor não raro
traduzia -se por expurgos, que por vezes constituíam verdadeiras carnificinas
65
.
A organização almóada não permaneceu imutável. Após a morte de Ibn
Tūmart, os Ahl al -Djamā‘ e os Ahl al -Khamsīn só são mencionados por ocasião
da bay‘ a (compromisso de fidelidade) a Abd al -Mū’min, o que leva a supor que
este último tenha suprimido os dois conselhos. De fato, Ibn Tūmart morreu
após a grande derrota de al -Buhayra, e sua sucessão parece ter abalado a unidade
almóada, Abd al -Mū’min, que ao que parece viu -se bastante isolado, deve ter
julgado mais hábil colaborar com indivíduos pertencentes a essas instituições,
sem, no entanto, considerá -las como tais
66
. É o que poderia explicar o apare-
cimento do conselho dos xeques almóadas, que aparentemente suplantou os
conselhos dos Ahl al -Djamā‘a e dos Ahl al -Khamsīn. Essa reorganização tática
61 IBN TŪMART, trad. francesa, 1903, p. 258 -64, 266 -7, 290 e 296; IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p.
42, 46 e 85.
62 IBN TŪMART, trad. francesa, 1903, p. 261, 263 -4.
63 IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, 1949, p. 188; IBN ABĪ ZAR‘, trad. latina, 1843, p. 114.
64 IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 24, 29 e 103; IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, 1949, p. 191;
IBN ABĪ ZAR‘,trad. latina, 1843, p. 118 -9.
65 MUSA, 1969, v. 23, p. 71 -2.
66 HUICI MIRANDA, 1956b, v. 1, p. 102.
34
África do século  ao século 
F . Minarete da mesquita Hasan (inacabada) em Rabat; belo exemplo da escultura decorativa dos
Almóadas. (Foto J. Devisse.)
35
A unicação do Magreb sob os Almóadas
parece encontrar -se na origem do descontentamento dos dignitários almóadas,
manifestado pela revolta de Ibn Mālwiya em 1133
67
.
Os xeques, cujo papel crescia em importância, tinham tendência a constituir
um poder paralelo ao dos califas; isso levou o califa al -Nāsir a desferir rude golpe
no prestígio daqueles às vésperas da batalha de Las Navas de Tolosa, o que pode
ter sido uma das causas dessa grave derrota
68
. O enfraquecimento do califado
almóada deveria lhes dar novo alento; constituíram, então, uma espécie de “c
cuja pressão tornou -se insuportável para o califa al -Ma’mūn, que terminou por
suprimir o credo no mahdī.
A maior parte dos xeques descendiam dos membros dos Ahl al -Djamā‘a e dos
Ahl al -Khamsīn
69
, em particular dos Hintāta e dos habitantes de Tnmallal;
entre os Hargha, ao que parece, não houve nenhum xeque influente, o que teria
originado a revolta dos dois irmãos do mahdī. O conselho dos xeques parece
ter sido uma estrutura constituída para ampliar a base do movimento almóada;
efetivamente, serviu de modelo para a organização de novos setores afiliados.
Assim, aparecem o conselho dos xeques árabes
70
e o conselho dos xeques anda-
luzes do Djund
71
, cujo papel era, entretanto, eminentemente militar.
O corpo dos talaba foi objeto de especial atenção por parte de Abd al -Mū’min.
A atuação destes como propagandistas continua importante após a tomada de
Marrakech, conforme demonstram as cartas oficiais entre as quais a missiva
enviada por Abd al -Mūmin aos talaba da Andaluzia em 543/1148. Entretanto, eles
adquirem outras competências e sua ação se exerce em diversos domínios: educão,
ensino, administração e exército. É certo que Abd al -Mūmin os incumbiu parti-
cularmente de ordenar o bem e proibir o mal”, mas, com a amplião do império,
parecem assumir cada vez mais o papel de comissários políticos e “ideogicos”,
principalmente no interior das forças armadas e em particular na marinha
72
.
67 IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, ed. Lévi -Provençal, s.d. (1929?), v. 3, p. 240 -1; IBN ABI ZAR ,
trad. latina, 1843, p. 169.
68 IBN ‘IDHĀ AL -MARRĀKUSHĪ, ed. Lévi -Provençal, s.d. (1929?) , v. 3, p. 85; IBN SĀHIB
AL -SALĀT, 1964, p. 148, 324 e 399 -400; IBN AL -ATHĪR, 1851 -1876, V. 11, p. 186.
69 IBN KHALDŪN, 1956 -1959, V. 6, p. 534, 542, 545 -6.
70 IBN SĀHIB AL -SALĀT, 1964, p. 218, 399 -400; IBN IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, ed. vi -
-Provençal, s.d. (1929?), v. 3, p. 85.
71 IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 226.
72 Ver o texto da carta in IBN AL -KATTĀN, s.d. (1964?), p. 150 et seq., e VI -PROVEAL, 1941b, p.
6, acerca de uma comissão de talaba encarregada de supervisar a cons trução da cidade de Djabal al -Fath;
ver IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, ed. Lévi -Provençal, s.d. (1929?), v. 4, p~ 43 -4, sobre o papel
administrativo dos talaba em Gafsa após a retomada dessa cidade pelos almóadas em 583/1187; ver
LÉVI -PROVENÇAL, 1928a, p. 215.
36
África do século  ao século 
A atitude sectária dos almóadas foi, certamente, mantida por longo tempo
73
;
entanto, parece ter se ressentido muito cedo do fator de isolamento político
74
, o
que explicaria o abandono do dogma do mahdismo por al -Ma’mūn
75
.
A unicação do Magreb pelos califas almóadas mumínidas
O movimento almóada havia levado à organização de um partido cujo projeto
político se tornava cada vez mais nítido: o estabelecimento de um novo poder
visando aplicar a reforma de Ibn Tūmart. Os Almorávidas estavam conscientes
disso. Os inícios do confronto foram marcados por três eventos de importância:
o fracasso dos Almorávidas contra Aghmāt; a primeira vitória dos almóadas em
Kik (1122)
76
, após a qual fixam Marrakech como objetivo; o cerco a Marrakech,
em que os almóadas são fragorosamente derrotados pela cavalaria almorávida na
batalha de al -Buhayra (522/1128)
77
após terem sitiado a cidade por quatro dias.
Essa batalha foi para os almóadas um verdadeiro desastre: nela perdeu a vida
al -Bashr al -Wanshar, um dos principais companheiros de Ibn Tūmart; Abd
al -Mū’min ficou gravemente ferido e com grande esforço conseguiu conduzir
os remanescentes das forças almóadas até Tnmallal
78
.
Foi em meio a estas circunstâncias adversas que Ibn Tūmart veio a falecer,
em 524/1130; a organização de sua sucessão e a ascensão de Abd al -Mū’min
ao poder em 527/1130 não devem ter transcorrido sem problemas. Ibn Tūmart
foi enterrado em Tnmallal onde, segundo Leão, o Africano, seu túmulo ainda
era venerado cinco séculos mais tarde.
O período de Abd al Mū’min IbnA e a fundação do império
(1133 ‑1163)
O movimento almóada certamente atravessou crise bastante longa após a morte
de Ibn Tūmart; pouco se sabe, todavia, sobre ela. A ascensão de ‘Abd al -Mū’min
ao poder foi objeto de diversas interpretações, dentre as quais as tribalistas” nos
73 Ver MUSA, 1969, v. 23, p. 23; IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, ed. Lévi -Provençal, s.d. (1929?), v.
3, p. 85.
74 Ibid., p. 291 -2.
75 Ibid., p. 263 -8; IBN KHALDŪN, 1956 -1959, v. 6, p. 630 -7; IBN A ZAR‘, trad. latina, 1843, p. 167 -8.
76 VI -PROVENÇAL, 1928a, p. 122 et seq.
77 524/1130, segundo LÉVI -PROVENÇAL, in Encyclopaedia of lslam, nova ed., v. 3, p. 959.
78 Sobre a batalha de al -Buhayra, ver al -Hulal al -Mawshiyya, 1936, p. 94; LÉVI -PROVEAL, 1925, frag-
mento 4; IBN AL -ATHĪR, nova ed., trad. latina, 1876 -1891, v. 10, p. 407, e trad. francesa, 1901, p. 536.
37
A unicação do Magreb sob os Almóadas
parecem por demais superficiais. Em nossa opino, Jean Devisse
79
está correto ao
colocar no cerne da questão o papel de Abd al -Mū’min ao lado de Ibn Tūmart e
no seio do movimento, a partir do encontro ocorrido em Malla. Nessa perspectiva,
sua ascensão para a qual parece ter contribuído de maneira decisiva outro compa-
nheiro, A Hafs ‘Umar al -Hint deve ser vista como superação do messianismo
local, o que provavelmente correspondia a um projeto ideado pelo próprio Abd
al -Mūmin. Estaria ele concretizando o sonho, acalentado desde Malla, de ver o
Magreb reunificado na estrita observância do Islã? Ou teria atuado como o edifica-
dor de um império em seu próprio interesse ou no de sua família? Ou, ainda o que
parece mais provável –, teria ele concebido um plano para conciliar as duas coisas?
No curso de um reino de 30 anos,Abd al -Mū’min – tinha 35 anos de idade
quando subiu ao poder vai pôr em evidência suas eminentes qualidades de
general, de estadista e de chefe enérgico de uma coalizão ainda heterogênea.
Tais qualidades eram indispensáveis para que desenvolvesse com sucesso a dupla
ação de djihād contra os Almorávidas e de organização e consolidação do movi-
mento almóada, cujo objetivo deveria ser a conquista do Magreb, sua submissão
e “pacificação e a consolidação do seu poder político.
Essa tarefa, que se revelou longa e dicil, foi cumprida metodicamente e em várias
etapas, segundo uma estragia bastante precisa em que se combinavam preocupa-
ções militares e ecomicas
80
.o pretendemos, aqui, apresentar todos os detalhes,
nem retraçar todos os episódios, mas simplesmente ressaltar as etapas decisivas.
A conquista do Marrocos
A primeira etapa, que teve por objetivo assegurar a posse do Marrocos,
desenrolou -se em duas fases. Após a derrota de al -Buhayra, Abd al -Mū’min
procurou evitar as planícies, onde a cavalaria almorávida encontrava -se em posi-
ção de vantagem, tratando de submeter as montanhas berberes no intuito de
apoderar -se das riquezas minerais e de controlar as vias comerciais
81
. Obtendo
a adesão de numerosas cabilas do Atlas
82
, submeteu o Sūs e o Wād Dara (Dra),
regiões essenciais para o lucrativo comércio que os Almorávidas mantinham
com a África subsaariana, e ali constituiu sólida base de ataque e, eventualmente,
79 DEVISSE, comunicação sobre LE TOURNEAU, 1969.
80 Ibid.
81 Ver ROSENBERGER, 1970.
82 A opinião de LE TOURNEAU, 1969, p. 52, sobre a transigência deAbd al -Mūmin, deve ser vista com
nuances.
38
África do século  ao século 
F . Mapa da reconquista almóada (seg. O. Saidi)
39
A unicação do Magreb sob os Almóadas
de recuo. Os almóadas poderiam, assim, investir contra a linha de fortalezas
que, cercando o Alto Atlas, ao norte, defendiam o acesso às planícies e à capital.
Deixando as planícies, o exército almóada seguiu o caminho das montanhas
rumo nordeste
83
, manobra destinada a isolar o território almorávida central.
Durante os anos 1040 -1041, assegurou -se da posse do Médio Atlas e dos sis do
Tāflet
84
. Chegando ao norte do Marrocos e baseando -se no maciço montanhoso
de Djebala, os almóadas tomaram as fortalezas da região de Tāzā. Partindo desta
sólida posição, Abd al -Mūmin empreendeu a conquista das cabilas submediter-
neas da região, e terminou por entrar em triunfo na sua própria aldeia natal, Tagra.
Desse modo, as posições almorávidas encontravam -se totalmente franqueadas; a
estratégia de assédio tinha chegado a bom termo. Pesquisas recentes
85
nos levam
a crer que esse itinerário não tinha apenas valor militar, mas perseguia igualmente
objetivo econômico: as minas das montanhas, o centro nevrálgico da guerra.
A partir de então, Abd al -Mūmin, à frente de forças consideráveis e dispondo
sem dúvida de importantes recursos, julgou -se preparado para enfrentar os almo-
rávidas nas planícies. As condições eram bastante favoráveis a essa iniciativa. Em
1143, a sucessão de Al Ibn Yūsuf Ibn Tāshfn provocou dissensões entre os chefes
lamtūna e sufa, pilares do regime almorávida. Em 1145, a morte do catalão
Reverter (al -Ruburtayr), chefe das milícias cristãs dos almorávidas, privou estes
últimos de um de seus generais mais devotados e hábeis. Finalmente, o tawhīd
(adesão aos almóadas) dos Zenāta fez com que a balança pendesse em favor dos
almóadas, que tomaram Tlemcen e obrigaram o emir almorávida Tāshfn Ibn Ali
a recuar para Orã, onde morreu em consequência de uma queda de cavalo.
A essa altura, todo o Atlas até o Rif –, a costa mediterrânea e a por-
ção ocidental do Magreb central tinham sido submetidos. O cerco almóada
fechava -se sobre o território almorávida, onde o poder se encontrava cada vez
mais desorganizado.Abd al -Mū’min empreendeu a organização de suas novas
conquistas tomando por base o sistema político da comunidade almóada. Estas
se mostraram indóceis, e o novo califa precisou usar de extrema severidade para
reprimir revoltas e conjurações
86
.
Abd al -Mū’min não obteve o apoio unânime dos almóadas, que na época ainda
o constituíam um grupo homogêneo; assim, enquanto alguns contestavam o
novo chefe, outros manifestavam veleidades de retornar à antiga liberdade. Com
83 LAROUI, 1970, p. 168.
84 Ver Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 1, p. 78.
85 ROSENBERGER, 1964, p. 73.
86 MERAD, 1957, p. 114 et seq.
40
África do século  ao século 
F . Porta da kasaba (fortaleza) de Udāya, em Rabat, construída pelos Almóadas diante da cidade
de Sala’, para vigiar os territórios ainda não submetidos da costa atlântica do Marrocos (vista geral). (Foto
J. -L. Arbey.)
F. . Porta da kasaba de Udāya em Rabat (detalhe). A decoração nos arcos de entrada monumentais
é encontrada em cidades da Espanha e do Marrocos. (Foto J. -L. Arbey.)
41
A unicação do Magreb sob os Almóadas
efeito, dois almóadas Ibn Mālwiyya, antigo xeque do Ahl al -Djamā‘a que repre-
sentava os Djanfsa, e ‘Abd al -‘Aziz Ibn Karman al -Harghi, da própria cabila de
Ibn Tūmart – revoltaram -se, mas sem ameaçar realmente o novo poder. Também
no desenrolar da própria conquista, os almóadas tiveram de enfrentar inúmeras
revoltas e movimentos de resistência, dentre os quais os mais importantes foram
o liderado por um personagem cognominado Masbūgh al - Yādayn (o homem de
os tingidas), na região de Adjarsf (Guercif) e de Fés, o de Abū Ya la, da cabila
dos Izmāsin (Sanhadja) e o de Sā‘id dos Ghayyāta, da região de Tāzā.
A despeito desses movimentos, os almóadas acabaram por constituir um
poderio militar que controlava exatamente o eixo comercial então em franco
desenvolvimento que ligava o Sudão à porção mediterrânea do Marrocos
oriental. A partir desse momento as revoltas suscetíveis de persistir por certo
tempo no Sūs e na região de Ceuta a Agadir (Aghadr), zonas que então tinham
se tornado economicamente secundárias, deixavam de representar real ameaça
87
,
tanto mais que os almóadas, empenhados numa obra monumental, acumu-
lando vitórias e butins, mantinham -se solidamente unidos em torno de Abd
al -Mū’min. Este, por sua vez, permanecia fiel à doutrina do mahdī, abstinha -se
de inovações e mantinha a seu lado os famosos xeques, guardiães dos interesses
dos almóadas e garantia da fidelidade destes.
No entanto, deve -se medir a importância da mudança pelo modo como foi
operada e pela reação das populações atingidas. Os sucessos almóadas foram, na
maior parte das vezes, episódios sangrentos; na conquista que empreenderam,
não registro de ataques fulgurantes, de vitórias fáceis ou de cidades impor-
tantes tomadas de assalto. A sociedade almorávida parecia ter estruturas relati-
vamente flexíveis
88
: segundo o autor do al -Anīs al -Mutrib bi -Rawd al -Kirtās e o
do Hulāl (anônimo)
89
, a época almorávida era de calma e prosperidade; as popu-
lações certamente não consideravam os Almorávidas como príncipes ímpios e
aceitavam bem o maliquismo. Desse modo, os almóadas não poderiam ser per-
cebidos como libertadores – salvo, talvez, nas montanhas de Masmūda – senão
por aqueles que, descontentes, procuravam escapar, ainda que provisoriamente,
das imposições do fisco. A maior parte das cidades – polos de desenvolvimento,
sem dúvida resistiu aos assaltos dos Almôadas, que demoraram 15 anos para
submeter a totalidade do Marrocos. Assim, não é de admirar que a tomada de
Marrakech por Abd al -Mū’min tenha sido sucedida por frequentes revoltas,
87 DEVISSE, comunicação sobre LE TOURNEAU, 1969.
88 AL -IDRĪSĪ, 1866, p. 8, sobre Aghmāt, Fés e Zarkashi.
89 IBN ABĪ ZAR‘, trad. latina, 1843, p. 108; al -Hulāl al -Mawshiyya, 1936, p. 115 -6.
42
África do século  ao século 
encorajadas por inúmeras cumplicidades e devidas, sem dúvida, a motivos bem
mais determinantes que a devoção religiosa ao maliquismo. Exprimem, mais
provavelmente, a reação de uma sociedade radicalmente contestada por uma
comunidade exclusivista” que se impôs através de uma guerra implacável.
A conquista do Magreb central
Após ter restabelecido solidamente sua posição no extremo Magreb, Abd
al -Mū’min julgou possível estender suas conquistas, para além dos limites das
possessões almorávidas, a todo o resto do Magreb. Antes de empreender o pro-
jeto, todavia, o califa foi chamado a intervir na Andaluzia, onde as populações
não suportavam mais a autoridade dos Almorávidas e o perigo castelhano
tornava -se cada vez maior
90
. Já durante o cerco a Marrakech, o califa tinha
recebido uma deputação andaluza, após obter a adesão de cidades como Jerez
(1144). Enviou então um corpo expedicionário do qual participaram dois irmãos
do mahdī, Abd al -‘Aziz e ‘Isa Amghar
91
. Seguiram -se outras adesões, dentre
as quais as de Sevilha e Córdoba, mas as províncias orientais mantiveram suas
reservas para com os Almóadas; é a razão pela qual Abd al -Mū’min, ao receber,
em 1150, uma delegação da Andaluzia que vinha prestar o juramento de fideli-
dade, não pensou em se engajar de imediato nos negócios da península, olhando,
antes, para o leste. Não se pode deixar de pensar que, por essa época meados
do século XII –, o primeiro califa almóada começava a formular planos políticos
bastante precisos: garantir, antes de tudo, uma base sólida através da unificação
do Magreb, depois lançar -se para além do estreito de Gibraltar.
A Ifrkiya via -se ameaçada igualmente pelos cristãos. Com efeito, o poder
das dinastias sanhadjianas de Kayrawān (Kairuan) e de Bidjāya estava minado
na base por uma nova organização do espaço na Ifrkiya e no Magreb central,
a qual beneficiava os principados sanhadjianos e árabes do interior, enquanto
os normandos, liderados pelo rei das Duas Sicílias, Rogério II, firmavam
nos principais portos do litoral. Uma expedição almóada à Ifrkiya poderia,
desde então, justificar -se, valendo -se, especialmente, do dever do djihād
92
. Após
dois anos de preparativos, Abd al -Mū’min dirigiu -se a Ceuta, e tudo levava a
crer que tinha a intenção de passar à Espanha. No entanto, fingindo retomar a
90 Sobre o início do estabelecimento dos almóadas na península Ibérica, ver Encyclopaedia of Islam, nova ed.,
v. 1, p. 79.
91 Ver detalhes em IBN KHALDŪN, 1852 -1856, v. 2, p. 183 -8.
92 A respeito do Magreb central e da Ifrkiya, no período que vai da metade do século VI ao século XII, ver
IDRIS, 1962, v. 1, cap. 6, p. 303 et seq., p. 363 et seq. Sobre a conquista do Magreb central pelos almóadas,
há um bom resumo em BRIGNON et a!ii, 1967, p. 112.
43
A unicação do Magreb sob os Almóadas
Marrakech, tomou o caminho do leste (início do verão de 1152) e, forçando a
marcha, atingiu o Magreb central
93
.
Começou por tomar Argel, ocupando em seguida Bidjāya, sem grandes dificul-
dades. Enviou, eno, um destacamento comandado por seu filho Abd Allāh para
capturar a antiga capital hamádida, a kal‘a; este tomou a cidade à força, saqueou -a e
passou a população a fio de espada. Constantine, cidade onde o príncipe hamádida
YahIbn Abd al -‘Aziz tinha buscado refúgio, foi entregue pelo vizir do soberano
hamádida; de lá enviou -se uma expedição contra os beduínos da região. Durante
essas operações, um certo Abū Kasaba, acompanhado dos Banū Zaldaww, reali-
zou contra Bidjāya ataque muito semelhante a uma operação de comando desti-
nada a assassinar o califa. A repressão foi intensa e ‘Abd al -Mūmin dispersou os
Sanhadja, os Luwata e os Kutama que se tinham unido a eles
94
.
A mudança que se operava nos destinos do Magreb central alertou os árabes
aliados ou clientes da Dinastia vencida dos Sanhadja –, que acorreram em socorro
de Bidjāya, no momento em que Abd al -Mūmin iniciava o regresso ao extremo
Magreb. Rechaçados pelos almóadas e arrastados até a planície de Setif, após três
dias de heróica resistência foram derrotados (1153) e despojados de seus bens e
de suas mulheres e crianças. A organização, a solidez e a disciplina do aguerrido
exército almóada conferiam -lhe mobilidade e ímpeto. A batalha teve considerável
repercussão e marcou nova fase nos destinos do novo poder almóada.
O califa almóada, reputado severo e mesmo cruel, mostrou -se surpreendente-
mente generoso para com os árabes vencidos, cuja coalizão havia rompido. Teria
querido impressio-los com uma prova de força, para em seguida mostrar -lhes
sua clemência e fazê -los aderir à sua causa? Isso é provável, se levarmos em con-
sideração a importância do fator árabe no Magreb central e na Ifrkiya e a neces-
sidade do califa de alargar a base berbere -almóada de seu regime na proporção
de seu império nascente
95
. Poderia, igualmente, pensar em utilizar contingentes
árabes em nome do djihād na Andaluzia, onde se multiplicavam os pedidos
de socorro diante da crescente ameaça cristã. Após esses acontecimentos, o califa
preferiu o se aventurar para além da área de Constantine; deixando governa-
dores e guarnições no Magreb central, tomou o caminho do extremo Magreb.
93 No Magreb central, os últimos Hamádidas de Bidjāya, al -Mansur, al -Aziz e Yahyā, tinham estabelecido
um
modus vivendi
com os hilalianos, os novos senhores dos planal tos, desenvolvido o comércio e o corso
- aproveitando -se das diculdades de seus sobri nhos zíridas de
Mahdyya -,
e iniciado um real restabe-
lecimento. Ver LAROUI, 1970, p. 168.
94 Ver LÉVI -PROVENÇAL, 1928a, texto p. 115 e trad. francesa p. 189 -90; IBN AL -ATHĪR, trad. fran-
cesa, 1901, p, 504.
95 Ibid., p. 576.
44
África do século  ao século 
A consolidação do poder mumínida
Como já foi dito, a ascensão de ‘Abd al -Mū’min ao califado esteve longe de
obter aprovação unânime; no entanto, a energia e a capacidade de que a todo
instante dava provas deveriam dissuadir as surdas oposições que permeavam as
fileiras almóadas. Aumentando as chances de perpetuação de seu poder, suas
vitórias deviam ter exacerbado a impaciência da oposição, que acabou por se
declarar, sob o impulso dos próprios parentes do mahdī Ibn Tūmart
96
, entre os
Hargha e os habitantes de Tnmallal (sem, entretanto, se estender a outras cabi-
las almóadas). Abd al -Mū’min mandou executar os revoltosos e enviou a família
de Ibn Tūmart, os Ait Amghār, para a cidade de Fés, onde permaneceriam em
prisão domiciliar. Após essa crise, partiu em peregrinação para Tnmallal, onde
fez doações e mandou ampliar a mesquita – o santuário do mahdī –, no intuito
de desviar a atenção da opinião pública dos fatos sangrentos ocorridos há pouco
e de preparar, ao mesmo tempo, a fundação de sua própria dinastia. Com efeito,
em 1156 -1157, no campo de Sala
97
, conseguiu que seu filho mais velho fosse
reconhecido como herdeiro presuntivo e em seguida nomeou seus outros filhos
governadores das principais metrópoles do império com o título de saiyid.
Tais medidas foram efetivadas graças ao apoio das novas forças imperiais, os
árabes hilalianos e as cabilas do leste (em particular os Sanhadja) e puderam ser
aplicadas graças à anuência do famoso xeque almóada al -Adjall (“o eminente”)
Abū Hafs ‘Umar al -Hintāt. Ao término dessas operações, o califa apressou -se
em divulgar entre as “colônias” almóadas das várias províncias, para apaziguar
os espíritos, a notícia de que cada saiyid mumínida seria acompanhado de um
xeque almóada como lugar -tenente vizir, mas também conselheiro. As con-
quistas e vitórias de Abd al -Mū’min esmagavam os dignitários dos primeiros
tempos; a aprovação dos chefes do Atlas era, assim, menos prova de adesão leal
que índice de fraqueza. As medidas tomadas pelo califa provocaram a sublevação
de inúmeras cabilas, em particular no sudeste
98
.
Os Djazūla deram boa acolhida ao famoso Yah al -Sahrāwi, antigo governador
almovida de Fés e antigo chefe da revolta de Ceuta, e provocaram agitações nos
confins do Sūs. Os Lamuta, os Hashka, os Lamtūna e alguns outros também se
sublevaram; a revolta desses grupos, que se colocavam à margem da potica alada,
96 MERAD, 1957, p. 135 et seq.
97 Ibid., p. 142; ver tb. VI -PROVENÇAL, 1941b, p. 34 -7; IBN AL -ATHĪR, trad. francesa, 1901, p.
581, cuja cronologia coincide com a das cartas ociais.
98 MERAD, 1957, p. 146.
45
A unicação do Magreb sob os Almóadas
teria suas origens nos excessos cometidos pelos governadores mumínidas
99
. De um
modo mais geral, esses movimentos parecem ter marcado uma fase da evolão do
novo regime, no decorrer da qual o poder mumínida buscava seu equilíbrio.
Essas revoltas, como um todo, poderiam ser consideradas sem gravidade, se
comparadas a outro evento muito mais significativo por seus prolongamentos
anteriores: trata -se do complô tramado em Marrakech pelos dois irmãos do
mahd Ibn Tūmart, ‘Isa e Abd al -‘Aziz, que por pouco não teve sucesso. O califa
retomou à capital em marcha forçada e, após inquérito, descobriram -se do-
cumentos que revelavam a lista dos conjurados: 300 mercadores de Marrakech,
cinco dos quais notáveis. Foram todos entregues à cólera da população.
As tais provões, Abd al -Mū’min torna -se definitivamente o chefe de um
imrio mais que chefe de uma “comunidade de fiéis” – e uma espécie de frieza
se estabelece entre ele e as grandes personalidades do movimento almóada. Após o
malogro da conspiração dos Ait Amghār, Abd al -Mū’min teria reunido a população
de Marrakech, conforme nos relata al -Baydhak, para declarar: “Hoje sei que, exceto
vós, o tenho nem iros nem clientes ...”
100
. Confiso sincera e amarga – ou
demagogia? Um fato, em todo o caso, parece certo: a partir de eno, Abd al -Mū’min
imprime nova orientação à sua política; cessa de confiar exclusivamente no clã
dirigente, na aristocracia Masmuda, e procura estender as bases de seu poder às
outras cabilas, particularmente às dos árabes hilalianos e às do Magreb central. Abd
al -Mūmin vai aos poucos se libertando do conceito tumartiano de comunidade,
fundado no clã e na seita, e passa a promover uma verdadeira política imperial,
levando em consideração todas as camadas sociais do novo imrio.
A conquista da Ifrīkiya
Em 1156, o poder munida se encontrava solidamente estabelecido, estando
reduzidas todas as contestações e oposições
101
. Abd al -Mū’min podia, eno, empre-
ender a segunda campanha para o leste, ao término da qual deveria, pela primeira
99 VI -PROVENÇAL, 1928a, texto p. 177 e trad. francesa p. 193, cita as palavras de Abd al -Mū’min
a Abū Hafs, encarregado de reprimir as revoltas: “a camela ergueu -se a despeito de sua carga, o Abū
Hafs”.
100 Ibid., texto p. 119 e trad. francesa p. 198 -9.
101 A carta ocial n. XVII fala -nos de uma peregrinação de Abd al -Mū’min – espécie de excursão de inspeção
efetuada pelo califa e seu séquito. Ele esteve em Īgllz e Tnmallal, recebendo durante a viagem delegações
de inúmeras cabilas – éis desde o princípio ou submetidas num passado tormentoso - que o certicaram
quanto à sua lealdade. O califa exortou as populações a reforçar seus vínculos com a doutrina almóada.
Retomando a Marrakech a 28 Ramadã 552/4 de novembro de 1157, pôde festejar a Īd al -Fitr (festa da
ruptura do jejum) como uma festa da paz mumínida no extremo Magreb. Ver MERAD, 1957, p. 154.
46
África do século  ao século 
vez, unificar o Magreb sob uma única e mesma auto ridade
102
. Preparou cuidadosa-
mente a campanha, e em 1159 decidiu marchar sobre o leste. A refugiada zírida
al -Hasan Ibn Ali não cessava de encorajá -lo, enquanto as populações da Ifrkiya
multiplicavam os pedidos de socorro contra as atividades dos crisos.
Deixando Abū Hafs como tenente no Marrocos, o califa parte de Sala na
primavera de 1159 à frente de forças consideráveis
103
, enquanto uma frota impo-
nente singra paralelamente rumo leste. Seis meses mais tarde o exército almóada
chega a Túnis
104
que é tomada após bloqueio. Depois foi a vez de Mahdyya,
doze anos nas mãos dos cristãos normandos, submetida igualmente após sete
meses de bloqueio e poderosos ataques. O filho do califa, Abd -Allāh, apossa-
-se de Gabes e Gafsa; nesse meio -tempo, Sfax e Trípoli caem nas mãos dos
almóadas. Os ataques combinados da frota contra o litoral e as investidas da
cavalaria no sul acabaram por submeter a Ifrkiya. Assim, desaparecem os peque-
nos principados que tinham repartido entre si os despojos do reino zírida, e os
normandos encontram -se desalojados do litoral: o Magreb está unificado.
Preparativos para a intervenção na Andaluzia e o m do reinado de
Abd al ‑Mū’min
Na Andaluzia, a situação tornava -se cada vez mais inquietante. Um dos
maiores senhores andaluzes, Ibn Mardansh
105
, sublevara -se contra a autoridade
almóada e ameaçava todo o levante; o último representante da Dinastia Almo-
rávida, Ibn Ghāniya
106
, sustentava o movimento antialmóada; finalmente, os
cristãos ganhavam terreno multiplicando suas incursões ao norte da Andaluzia.
De volta ao Marrocos, Abd al -Mū’min empenhou -se nos preparativos de
sua intervenção na Espanha. O exército almóada, graças aos reforços enviados
que incluíam contingentes árabes –, conquistou vitórias em Badajoz e Beja.
Dirigindo -se a Marrakech,Abd al -Mū’min recebeu inúmeros kumiyya de seus
contribuintes, destinados, ao que parece, à constituição de sua guarda pessoal, e
em 1163 tomou o caminho de Sala para dirigir grande expedição à Espanha. No
entanto, a morte o surpreendeu antes que seu projeto se concretizasse; transpor-
tado a Tnmallal, foi inumado perto do túmulo do mahdī Ibn Tūmart.
102 Sobre a conquista da Ifrkiya por ‘Abd al -Mūmin, ver IDRIS, 1962, v. 1, p. 384 et seq.
103 Ver MERAD, 1957, p. 154 -5, a respeito do número de tropas segundo as diferentes fontes.
104 Ver detalhes em ‘INĀN, 1964, v. 1, p. 289 -302.
105 Ver a Encyclopaedia of
lslam,
nova ed., v. 1, p. 84 -5; os detalhes sobre os negócios da Espanha ver em
‘INĀN, 1964, v. 1, p. 304 -411.
106 Ver Encyclopaedia of lslam, nova ed., v. 2, p. 1007 -8.
47
A unicação do Magreb sob os Almóadas
Não é preciso insistir sobre as qualidades de Abd al -Mū’min como chefe
militar e estrategista; cabe, no entanto, sublinhar que empreendeu a conquista
de maneira metódica, dando mostras de grande capacidade de organização e
de profundo conhecimento da região e da ciência militar. Mas o mais notável
é o fato de sua política de conquista visar, também, objetivos econômicos: o
Marrocos atlântico, que sob os Almorávidas passara a participar das grandes
relações com o Saara, é desligado de seus contatos africanos, e ‘Abd al -Mū’min
assegura -se do controle de um eixo que une o Dar‘a (Dra) a Orã, doravante rota
de caravanas que trazem ouro e demais produtos do Sudão ocidental.
Por outro lado, o califa não podia deixar de olhar para o norte e para o leste,
que o Mediterrâneo era essencial para o Magreb, sobretudo num momento em
que a cristandade passava à ofensiva em todas as frentes. Assim, podemos entrever
as dificuldades que teria de enfrentar a empresa almóada unitarista, para a qual
devia ser virtualmente impossível conservar tanto a Andaluzia quanto a Ifrkiya.
Desfrutando de unidade cultural e econômica bastante antiga, o Magreb
adquiriu com ‘Abd al -Mūmin também unidade política. Rompendo com a tra-
dição almorávida, por sua vez inspirada na organização hispano - omíada, Abd
al -Mūmin estruturou um sistema administrativo que levava em conta tanto as
necessidades políticas impostas pela grande extensão do império, quanto o desejo
de não ferir a suscetibilidade de sua entourage, constituída por berberes almóadas
dos primeiros tempos. Muitas regras desse sistema subsistem na organização do
Makhzen do Marrocos moderno. A estrutura administrativa almóada combinou
as preocupações de ordem técnica recorrendo, por exemplo, a andaluzes ou
magrebinos formados, na escola andaluza – às de natureza política, expressas pela
dualidade saiyid mumínidas/xeques almóadas, e ideológica, representadas pelos
talaba e pelos huffās; verdadeiros comissários políticos” do regime.
Esta organização, muito mais diferenciada que a dos Almorávidas, era financiada
por um novo sistema fiscal. Conta -se que ao retomar da Ifrkiya, em 555/1160,
Abd al -Mū’min mandou executar uma agrimensura
107
de todo o Magreb, desde
Barka, na Tripolitânia, até Nul, no sul do Marrocos; um terço foi deduzido como
montanhas e terras improdutivas, e o resto submetido ao kharādj (imposto territo-
rial), pagável em dinheiro ou neros. Abd al -Mūmin foi o primeiro a estabelecer
um cadastro desde a época romana; pode -se, assim, imaginar os consideráveis
recursos de que dispunha o califa. Este fez com que todos os habitantes – exceto
a comunidade almóada pagassem o kharādj, assimilando -os, desse modo, aos
107 IBN ABĪ ZAR‘, 1843, texto p. 129 e 1860, trad. francesa, p. 174.
48
África do século  ao século 
o muçulmanos, uma vez que não eram verdadeiros muwahhidūn (unitaristas). É
provável que os hilalianos tivessem instituído um imposto semelhante no Magreb
oriental, e que Abd al -Mūmin tenha se limitado a generali-lo
108
, utilizando
esses mesmos hilalianos como coletores. os territórios dos Almóadas não eram
submetidos ao kharādj; assim, o Magreb central e a Ifrkiya eram considerados
terras de conquista. Como se vê, a unidade deu -se em proveito do vencedor, o
que tornou mais difícil a unificação do Magreb, com o agravante de a ideolo-
gia almóada, o obstante as reformas deAbd al -Mūmin, ter permanecido por
demais sectária para poder acalmar os espíritos”
109
.
Abd al -Mū’min parece ter contado mais com seu exército e sua frota que
com uma real política de unificação, a despeito da ampliação do núcleo Mas-
muda original. Graças ao seu sistema fiscal e à sua sólida moeda, os Almóadas
puderam constituir exército e marinha bastante poderosos. Conhecido por sua
organização, disciplina e qualidades de combate, o exército nunca foi, entretanto,
unificado, ponto fraco que iria se agravar com o correr dos anos.
É importante mencionar, ainda, outro aspecto do reinado de Abd al -Mū’min
– difícil de ser apreciado nos limites do presente trabalho – trata -se do processo
conhecido como deportação” hilaliana. A transferência dos beduínos obedeceu
a muitas variáveis e teve muitas consequências para poder ser julgada em poucas
palavras, tal como fez Le Tourneau
110
, que, levado pelos preconceitos do recente
período colonial francês, qualificou -a de “calamidade”.
O período de estabilidade e equilíbrio
Abū Yūsuf Ya‘kūb (1163 ‑1184)
o foi o herdeiro presuntivo Muhammad, designado em 1154, que sucedeu
a ‘Abd al -Mūmin, mas outro filho deste último, Abū Yūsuf Ya‘kūb, que só rece-
beu o título califal de amīr al -muminīn em 1168. Houve, portanto, uma crise de
sucessão que teria sido a causa dos levantes que estouraram no norte do Marrocos
entre os Ghumāra, opondo Ceuta e al -Kasr al -Kabr (Ksar -el -Kebir). A agitação
transmitiu -se para os vizinhos Sanhadja e Awraba e terminou com a eleição de um
chefe, o qual teria chegado a cunhar moeda
111
. Da leitura do al -Anis al -Mutrib bi
108 LAROUI, 1970, p. 171.
109 Ibid., p. 172.
110 LE TOURNEAU, 1969, p. 59.
111 Ver Encyclopaedia of lslam, nova ed., v. 2, p. 1121; MERAD, 1962, p. 409 e notas; IBN ABĪ ZAR‘, 1843,
texto p. 137 e 1860, trad. francesa, p. 296.
49
A unicação do Magreb sob os Almóadas
Rawd al -Kirtas
112
depreende -se que a agitação deveu -se ao fato de o novo califa ter
licenciado o exército recrutado por Abd al -Mūmin para a expedição à Andaluzia.
A correspondência oficial (XXIV) fornece, por sua vez, uma explicação religiosa
para a revolta que, conduzida por um certo Saba Ibn Managhfād, teria durado
dois anos; a resistência maliquita da região de Ceuta, liderada pelo famoso cádi
‘Iyād, pode conferir certa verossimilhança a esta explicação.
O movimento foi, em todo caso, de incontestável gravidade, e o novo califa
viu -se obrigado a conduzir ele mesmo, em companhia de seus irmãos ‘Umar e
‘Uthmān, uma expedição contra os rebeldes (1166 -1167). Segundo Ibn al -Athr,
a vitória do califa terminou em massacre
113
. Foi nesse contexto que ele tomou
o título califal de amīr al -muminīn e, para coroar sua campanha, confiou ao
próprio irmão o governo da cidade de Ceuta, com a missão de vigiar o Rif.
A campanha da Andaluzia
O califa fez -se preceder por seus irmãos Umar e ‘Uthmān, que conseguiram
vencer Ibn Mardansh e seus mercenários cristãos em 1165. A capital, Murcia,
conseguiu resistir e o principado manteve -se independente por mais cinco anos.
Por essa época, uma grande ameaça começava a tomar corpo no oeste, em Por-
tugal: Giraldo Sempavor, o famoso capitão de Afonso Henriques, apossa -se de
várias localidades (1165) e depois empreende, juntamente com o rei, o assédio
a Badajoz, que foi salva graças à intervenção de Fernando II de Leão, aliado
dos Almóadas.
Nesse meio -tempo, a ameaça de Ibn Mardansh no levante foi afastada,
quase sem despesa para os almóadas. Tendo rompido com seu sogro, o tenente
Ibn Hamushk (o Hemochico das crônicas cristãs), viu -se abandonado pela
maioria dos partidários e morreu em 1172, amargurado por constatar o fracasso
de sua obra. Os membros de sua família juntaram -se aos almóadas, tornando -se
preciosos conselheiros. Em 1172 -1173, o malogro do cerco a Huete (Wabdha),
centro recentemente repopulado que constituía uma ameaça para Cuenca e
para a fronteira do levante, revelou as fraquezas do exército e da intendência
almóadas, bem como a falta de energia do califa. A aproximação das forças cas-
telhanas foi suficiente para que o cerco fosse suspenso; os almóadas recuaram
para Murcia, onde seu exército foi licenciado. Em 1181 -1182, o califa chega
a Marrakech com seu exército, ao qual se incorporam contingentes árabes da
Ifrkiya conduzidos pelo xeque árabe Abū Sirhān Mas‘ūd Ibn Sultān.
112 Ibid., texto p. 137 -8 e trad. francesa p. 295.
113 Ver ‘INĀN, 1964, V. 2, p. 23 et seq.; Encyclopaedia of Islam, nova ed., v.
1,
p. 160 -1.
50
África do século  ao século 
Abū Yūsuf Ya‘kūb al ‑Mansūr (1184 ‑1199)
O príncipe Abū Yūsuf Ya‘kūb al -Mansūr não foi, ao que parece, designado
como herdeiro presuntivo
114
. Sua eleição pelos almóadas foi motivo de protes-
tos; dentre os insatisfeitos estava o seu irmão ‘Umar, governador de Murcia
115
.
No entanto, deve ter -se imposto rapidamente, conhecido que era pela bravura
e dinamismo; ademais, na qualidade de antigo vizir e colaborador do pai, fora
iniciado nos negócios do Estado
116
. Entretanto, o início de seu reinado foi mar-
cado por dificuldades que não deixavam de ser solidárias com o aumento das
agitações no Magreb central e na Ifrkiya, provocadas, desta vez, por agentes
determinados a contestar a ordem almóada: os Banū Ghāniya.
Os Banū Ghāniya no Magreb central
O nome dessa família deriva do da princesa almorávida Ghāniya, que foi
dada em casamento pelo sultão almorávida Yūsuf Ibn Tāshfin a ‘Al Ibn Yūsuf
al -Masufi. O casal teve dois filhos, Yahyā e Muhammad
117
, os quais tiveram
papel considerável durante o período almorávida, em particular na Espanha
118
.
Muhammad era governador das Baleares quando da queda dos Almorávidas;
proclamando -se independente, fez das ilhas base de refúgio para onde se diri-
giram numerosos partidários da dinastia vencida. Seu filho Ishāk deu continui-
dade a essa política e fez prosperar o pequeno reino graças à pirataria. O filho
de Ishāk, Muhammad
119
, dispôs -se a reconhecer a suserania almóada, mas foi
deposto pelos irmãos em favor de outro irmão, Al. Decidiram, então, mover luta
implacável contra os almóadas para impedi -los de se apossar das ilhas
120
. Pouco
depois, resolveram levar a guerra ao Magreb, por razões principalmente econô-
micas. Não se trata de simples rebelião, mas de empreendimento quase político
que iria ter profunda repercussão entre as populações do Magreb e pesadas
114 Sobre o reinado desse príncipe, ver Encyclopaedia of lslam, nova ed., v. 1, p. 165 -6; MERAD, 1962.
115 IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, ed. Lévi -Provençal, s.d. (1929?), texto p. 189 e 192 e trad. francesa
p. 226 e 229; LÉVI -PROVENÇAL, 1941a, n. XXVII, p. 158 -62, onde se afasta toda decisão da parte do
califa Abū Yūsuf Ya‘kūb.
116 IBN AL -ATHĪR, trad. francesa, 1901; IBN ‘IDHĀRĪ AL -MARRĀKUSHĪ, ed. Lévi -Provençal, s.d.
(1929?),texto p. 192 e trad. francesa p. 229.
117 Ver Encyclopaedia of lslam, nova ed., v. 2, p. 1007; BEL, 1903.
118 Ver detalhes em ‘INĀN, 1964, v. 1, p. 305 et seq., principalmente p. 314 -5, e v. 2, p. 144 et seq.
119 Ibid., v. 1, p. 148; Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 2, p. 1007.
120 Ver MERAD, 1962, p. 422, nota 9.
51
A unicação do Magreb sob os Almóadas
consequências para a empresa almóada.Al, conhecido como Al Ibn Ghāniya,
iria deflagrar a luta, pressionado por um círculo de irredutíveis almorávidas.
O novo califa, Ya‘kūb, acedeu ao poder em condições pouco brilhantes. Os
Sanhadja hamádidas de Bidjāya não tinham perdido a esperança de restaurar
seu poder; aproveitando a oportunidade, os almorávidas maiorquinos realizaram
audaciosa investida que terminou com a tomada de Bidjāya, a 12 de novem-
bro de 1184
121
. Empenharam -se, então, em reconstituir, por conta própria, o
antigo reino hamádida. O sucesso desse ataque inesperado, realizado com meios
modestos 20 navios, 200 cavaleiros e 4 000 soldados de infantaria –, demonstra
a fragilidade do poder almóada, alvo de numerosas forças que se coligaram no
intuito de facilitar a operação maiorquina; esta consegue expulsar o governador
almóada, que recua para Tlemcen.
Após esse impulso inicial, AlIbn Ghāniya, ajudado pelos árabes Riyah,
Athbadj e Djudhām, e deixando seu irmão Yahyā em Bidjāya, toma o rumo do
oeste visando retirar o Magreb central da autoridade almóada. Consegue ocupar
Argel, Mūzaya e Miliana, onde deixa governadores e guarnições. Não vai mais
longe por temer o choque com as populações da região de Tlemcen, favoráveis
aos almóadas; retoma, então, para o leste, toma a kal‘a e ataca Constantine, que
lhe opõe forte resistência. A aproximação do califa almóada -lo recuar
122
e,
finalmente, fugir. Embora esta primeira investida almorávida durasse pouco
123
,
teve repercussão considerável, e é com certa razão que o autor do Mu’djib
124
considerou -a como o primeiro golpe sério desferido contra o Império Mas-
mudita; no momento em que escrevia (1224 -1225), os efeitos daquela ainda se
faziam sentir.
Todavia, o maiorquino refez -se e mobilizou todas as forças antialmóadas, que
nele tinham encontrado, certamente, o chefe que desejavam. Ibn Khaldūn
125
,
por exemplo, descreve com que zelo os árabes o apoiaram. É preciso sublinhar
igualmente a notória lentidão do governo central almóada, que reagiu após
seis meses, tempo suficiente para inquietar as populações menos inclinadas a
contestar sua autoridade.
Ibn Ghāniya havia tirado proveito das dificuldades do início do reinado; no
entanto, logo que retomou de Sevilha, o novo califa tratou de preparar, com muito
121 MIRANDA xa como data 19 Safar 581/22 de maio de 1185.
122 Ver ‘INAN, 1964, V. 2, p. 148 et seq.; MERAD, 1962, p. 424.
123 Sobre a situação das Baleares durante a ação de Ibn Ghãniya no Magreb, ver ‘INAN, 1964, V. 2, p. 156 -8.
124 IBN ‘IDHARI AL -MARRAKUSHI, ed. Léví -Provençal, s.d. (1929?), p. 230.
125 IBN KHALDŪN, 1852 -1856, v. 2, p. 90; MERAD, 1962, p. 427 et seq.
52
África do século  ao século 
empenho, o contra -ataque. Enviou de Ceuta uma expedição por via marítima e
terrestre para atacar Argel. Embora a operação, bem sucedida, tenha devolvido aos
Almóadas os territórios perdidos, o comandante do exército, o saiyid Abū Zayd,
sobrinho do califa, cometeu o grave erro de julgar que Ibn Ghāniya, o qual fugira
em direção ao Moab, estivesse fora de combate. Refugiado com seus irmãos na
Ifrkiya, este recuperava suas energias para retomar a luta com novo ímpeto.
Os Banū Ghāniya na Ifrīkiya
Com a frota destruída e a caba -de -ponte de Bidjāya reocupada pelos
Almóadas, os Banū Ghāniya iriam imprimir novo estilo à luta antialmóada.
Esta adquire a configuração de guerrilha, tendo como base de reagrupamento e
recuo o deserto, cujas populações se encontravam em estado de dissidência endê-
mica.Al Ibn Ghāniya voltou ao Djard e, com o auxílio dos árabes da região,
tomou Gafsa. Diante da resistência de Nafzawa (Tozeur), uniu forças com o
armênio Karākūsh, escravo liberto de um sobrinho do aiúbida Salah al -Dn
(Saladino), que, com uma tropa de turcomanos Ghuzz, controlava a região de
Trípoli. No caminho, Ibn Ghāniya obteve a adesão dos berberes Lamtūna e
Māsufa, bem como o apoio dos árabes Banū Sulaym
126
. Estando sua posição
consideravelmente reforçada, toma uma iniciativa que revela as reais dimen-
sões de sua ambição política: presta juramento de fidelidade ao califa abássida
al -Nāsir, do qual obtém apoio e promessa de auxílio. Segundo Ibn Khaldūn
127
, o
abássida insta Saladino a favorecer a colaboração entre Karākūsh e Ibn Ghāniya,
a qual não tarda em frutificar: o armênio faz de Gabes sua base principal e o
maiorquino ocupa todo o Djard, constituindo um domínio homogêneo no
sudoeste tunisiano.
A partir dessas posições, as incursões dos dois aliados iriam se multiplicar
na Ifrkiya, chegando a atingir o cabo Bon; só Túnis e Mahdyya escapavam às
investidas
128
. Impunha -se uma intervenção do governo imperial.
A intervenção de Abū Yūsuf Ya‘kūb na Ifrīkiya
Apesar das reticências e inquietações surgidas entre os próprios membros da
família mumínida, o califa resolveu conduzir pessoalmente uma expedição para
126 Algumas frações dos Banū Sulaym recusaram -se a deixar seus territórios da Tripoli tânia e da Cirenaica,
a despeito das advertências do califa Yiūsuf; ver LÉVI -PROVENÇAL, 1941a, n. XXVI, p. 156.
127 Ver IBN KHALDŪN, 1852 -1856, v. 2, p. 93 -4.
128 IBN AL -ATHĪR, trad. francesa, 1901, p. 607 -8.
53
A unicação do Magreb sob os Almóadas
o leste
129
. À frente de 20 000 cavaleiros, dirige -se para Túnis em dezembro de
1186. Ao saber da notícia, Ibn Ghāniya licencia seus soldados e retira -se para o
Djard. Perseguido por uma tropa almóada de 6 000 cavaleiros, empenha -se em
atraí -los para o seu território e se volta contra eles em ‘Umra, nas cercanias
de Gafsa, onde lhes inflige pesada derrota em 24 de junho de 1187. O califa,
que participa pessoalmente das operações, marcha sobre Kayrawān e impede Ibn
Ghāniya de se retirar para Gafsa. Este é, então, derrotado em al -Hamma em
14 de outubro de 1187, tendo suas tropas aniquiladas; embora ferido, consegue
desaparecer” no deserto. O califa comete o erro de não o perseguir, preferindo
voltar -se contra Karākūsh e ocupar -lhe a base, Gabes, em 15 de outubro de
1187, capturando sua família e apossando -se de seus tesouros, mas poupando-
-lhe a vida.
Após essas vitórias, o califa esforçou -se por restabelecer a autoridade almóada
nas regiões conturbadas. Organizou operações de limpeza em todo o Djard, o
rico manancial que alimentava as forças do adversário
130
. Apossou -se de Tozeur,
Takyus e Naft, e, após duro assédio, retomou Gafsa, castigando os agentes
almorávidas com rigor mas mostrando -se clemente com os Ghuzz, com os quais,
ao que parece, pretendia constituir um corpo de elite em seu exército.
Aniquiladas as forças almorávidas, desmanteladas suas bases e dispersos
os aliados
131
, todo o sul da Tunísia encontrava -se novamente sob a autoridade
almóada. Ao termo de sua campanha, Abū Yūsuf Ya‘kūb procedeu a uma grande
deportação”
132
de grupos Djudhām, Riyah e Āsim, os quais, em sua maioria,
deveriam se instalar em Tāmasnā, região virtualmente esvaziada de seus habi-
tantes, os famosos Barghawāta, desde a conquista almorávida e as sucessivas
expedições repressivas almóadas. Assim, o contingente árabe no Marrocos cres-
ceu substancialmente.
Os acontecimentos subsequentes deveriam demonstrar que a Ifrkiya estava
longe de ter sido pacificada. Sucedendo a seu irmão Ali, Yahya Ibn Ghāniya
iria, com habilidade e energia incomuns, reconstituir a coalizão antialmóada
e dar continuidade, durante cerca de meio culo, à luta contra o Império
Almóada, desferindo duros golpes em seu poder. Minando sua província orien-
tal, causou grandes dificuldades ao Império Almóada e contribuiu para seu
enfraquecimento.
129 MERAD, 1962, p. 432 et seq.
130 LÉVI -PROVENÇAL, 1941a, v. 1, n. XXXI, p. 218.
131 Ibid., n. XXXII, p. 218; id., 1941b, p. 63 -4.
132 Ibid., 1941a, v. 2, n. XXXIII (de Manzil Ab Sa‘d, perto de Mahdyya, datado de 10 Rabi’), p. 584.
54
África do século  ao século 
Reaparecimento dos Banū Ghāniya na Ifrīkiya e no Magreb central
O novo chefe dos Banū Ghāniya, Yahya, reconstitui as forças, reata a aliança
com Karākūsh e retoma suas atividades. Evitando a Ifrkiya, onde a popula-
ção árabe nômade havia diminuído em consequência da grande deportação de
1187–1188, concentra seus ataques no Magreb central. Buscaria ele, com essa
tática, alcançar o litoral e restabelecer contato com Maiorca
133
? Em todo caso,
como seus ataques contra Constantine não obtêm sucesso, ele se retira para o sul
onde encontra Karākūsh, com quem suas relões se tornam cada vez mais difíceis.
Nesse ínterim, Karākūsh retira seu apoio tático aos Almóadas
134
e graças
ao auxílio de um chefe árabe Riyah, Mas‘ūd al -Bult, reconstitui seus antigos
domínios, que se estendem de Trípoli a Gabes
135
; Yahiyā torna -se senhor de
Biskra e passa novamente a controlar, juntamente com o aliado, todo o interior
da Tunísia. Em 1195, um conflito opõe os dois aliados; Yahiyā consegue expulsar
Karākūsh para o Djabal Nafūsa, graças à intervenção de uma esquadra que seu
irmão Abdallah enviara das Baleares. Torna -se, assim, senhor de vasto território
que vai da Tripolitânia ao Djard.
Uma crise nas fileiras almóadas veio enfraquecer ainda mais suas posições na
Ifrkiya. Em 1198, um oficial almóada de nome Muhammad Ibn Abd al -Karim
al -Raghraghi, muito popular em Mahdyya, sua cidade natal, que defendia contra
as incursões dos nômades, entra em conflito com o governador almóada de Túnis
e proclama -se independente, tomando, mesmo, o título de al -mutawakkīl
136
. A
empresa malogra em pouco tempo; todavia, o desaparecimento de al -Raghraghi
abre amplas perspectivas a Yahiyā, o qual, em dois anos de campanha, consegue
devastar a região, tomando Beja, Biskra, Tebessa, Kayrawān e Annāba (Bône).
O governador alada de Túnis termina por se submeter; uma ação dos cari-
djitas do Djabal Nafūsa vem oportunamente reforçar a posição de Ibn Ghāniya, que,
senhor de toda a banda oriental do Magreb, encontrava -se no apogeu do poder.
A campanha de al ‑Arak (Alarcos) e o m do reinado de Ya‘kūb
Os alarmantes acontecimentos do leste coincidiram com dificuldades igual-
mente graves na Espanha
137
, acentuando -se o dilema almóada da impossibi-
133 Sobre sua atuação, ver BEL, 1903, p. 89.
134 Provavelmente após o malogro da embaixada de Saladino junto a Ya‘kūb al -Mansūr em 586/1194; ver
‘INĀN, 1964, v. 2, p. 181 -6.
135 MARÇAIS, 1913, p. 203 -4.
136 Ver detalhes em MERAD, 1962, p. 440.
137 Ver detalhes em ‘INĀN, 1964, v. 2, p. 196 et seq.
55
A unicação do Magreb sob os Almóadas
lidade de intervenção em duas frentes. As fontes são contraditórias quanto à
atitude tomada por Ya‘kūb diante desses eventos
138
; sabe -se, contudo, que a partir
de 1194 o califa parecia resignado a abandonar a Ifrkiya à própria sorte
139
e
voltar -se exclusivamente aos negócios da Espanha.
A trégua de 1190 com os castelhanos chegava ao seu termo, e Afonso VIII
aproximava -se da região de Sevilha. Atravessando mais uma vez o estreito de
Gibraltar, o califa vence a famosa batalha de al -Arak, contra os castelhanos, a 18
de julho de 1195; essa vitória lhe valeu o título de al -mansūr billah (o vitorioso
pela vontade de Deus). Empreende no ano seguinte uma campanha de devasta-
ção que o leva até os muros de Madri, auxiliado, em particular, pelos desacordos
entre castelhanos, navarros e leoneses. Mas essas operações não passavam de
incursões sem futuro e Ya‘kūb devia estar consciente disso, pois apressou -se em
aceitar as propostas de trégua da parte de Castela, que se tinha aliado a Aragão
contra o reino de Leão.
Em março de 1198, o califa deixa Sevilha e parte para o Marrocos. Minado
pela doença, designa, logo ao chegar, seu filho Muhammad como herdeiro pre-
suntivo; entra, em seguida, numa fase de recolhimento que dura até sua morte,
em janeiro de 1199.
Abu ‘Abd Allah Muhammad el ‑Nāsir (1199 ‑1214)
A ascensão de Muhammad transcorreu sem problemas
140
; no entanto, este
herdou uma situação pouco animadora: embora o Marrocos aparentemente
atravessasse um período de paz e prosperidade
141
, na Espanha a relação de forças
não se tinha modificado, e na Ifrkiya Ibn Ghāniya era senhor absoluto após a
submissão do governador de Túnis.
O novo califa deu prioridade à Ifrkiya, enviando corpos de tropa na ten-
tativa de conter Ibn Ghāniya. Este, no entanto, expandia suas possessões cada
vez mais rumo oeste, instalava governadores e fazia recitar as preces em nome
do califa “abássida”
142
.
Apesar disso, o califa não teve condições de organizar uma intervenção
maciça no leste, pois uma revolta, irrompida simultaneamente no Sūs e entre
138 Ver MERAD, 1962, p. 443.
139 IBN AL -ATHĪR, trad. francesa, 1901, p. 613.
140 Embora o autor de al -Kirtas (1843, texto p. 153) assinale uma revolta na terra dos Ghumāra em 596.
141 IBN ABĪ ZAR‘, 1843, texto p. 153.
142 IBN KHALDŪN, 1852 -1856.
56
África do século  ao século 
os Djazūla e liderada por um certo Abū Kasaba
143
, que se dizia o esperado
kahtani, opôs -se aos Almóadas no Marrocos, onde eram combatidos em nome
do próprio mahdismo. Foi preciso grande campanha para reprimir o levante,
o que foi feito graças, principalmente, aos contingentes Ghuzz do exército
144
.
Amargurado, o califa censurou as populações da região por terem permitido
que o movimento de Abū Kasaba adquirisse tais proporções, justamente em
território que fora o berço do movimento almóada
145
.
Por pode -se aferir o quanto os almóadas desse fim do século XII eram
diferentes dos cavaleiros” da e da reforma unitarista dos primeiros tempos.
A apatia e o cansaço que grassavam em suas fileiras constituíam a mais grave
ameaça para o movimento. Essa atitude derrotista manifestou -se mais clara-
mente no momento em que se fez necessário adotar uma atitude com relação
a Ibn Ghāniya. De todos os conselheiros do califa, Abū Muhammad Abd
al -Wāhid, filho do famoso xeque Abū Hafs ‘Umar, opôs -se à ideia de fazer a paz
com o almorávida, preconizando uma expedição destinada a expulsá -lo defini-
tivamente da Ifrkiya
146
. Assim, sinais de abandono que anunciavam o fracasso
da ideia imperial apareciam até na entourage do califa. Todavia, num ímpeto de
energia, este decidiu lançar grande ofensiva contra Ibn Ghāniya.
A ofensiva de al ‑Nāsir contra os Banū Ghāniya e a reorganização do
poder almóada na Ifrīkiya
A ofensiva de al -Nāsir
147
distinguiu -se por nova estratégia: começou por
reduzir o refúgio almorávida das Baleares, tomando de assalto a ilha de Maiorca
em dezembro de 1203
148
, privando os Banū Ghāniya da base naval e sobretudo
comercial –, a partir da qual mantinham boas relações com Aragão, Gênova
e Pisa, que nutriam comum hostilidade aos almóadas. Contudo, as posições
almorávidas na Ifrkiya consolidavam -se cada vez mais, e a 15 de dezembro de
1203 tomavam Túnis. O califa entra, então, em campanha
149
; à sua aproximação,
Ibn Ghāniya foge para o interior – após deixar família e tesouros em segurança
143 Ver detalhes em ‘INĀN, 1964, v. 2, p. 656; MERAD, 1962, p. 448 -9.
144 IBN ‘IDHĀRI AL -MARRĀKUSHĪ, ed. Lévi -Provençal, s.d. (1929?), p. 276.
145 Ibid., p. 276.
146 IBN KHALDŪN, 1852 -1856. v. 2, p. 220 -1.
147 Ver detalhes em ‘INĀN, 1964, v. 2, p. 257 -61.
148 LÉVI -PROVENÇAL, 1941a.
149 Ver detalhes em ‘INĀN, 1964, v. 2, p. 263 -70.
57
A unicação do Magreb sob os Almóadas
em Mahdyya –, e chega à cidade de Gafsa, uma das suas posições mais sólidas.
Um desembarque almóada culminou com a tomada de Túnis, que terminou
em grande massacre
150
; em seguida, as forças almóadas desdobraram -se em
duas direções: o califa marchou sobre Mahdyya, enquanto Abū Muhammad
se lançava à perseguição de Ibn Ghāniya.
Mahdyya foi tomada após longo e árduo cerco, e seu governador, Al Ibn
Ghazi, sobrinho de Ibn Ghāniya, terminou por se render e por se juntar aos
almóadas (11 de janeiro de 1206). Retornando a Túnis, onde permaneceria
por um ano, o califa dedica -se à reorganização da província, confiando sua
reconquista e pacificação ao irmão Abū Ishāk. Este submeteu os Matmata e
os Nafūsa, e perseguiu Ibn Ghāniya que nesse ínterim fora vencido por Abū
Muhammad Abd al -Wāhid, o haféssida, em Tadjra, perto de Gabes, e despo-
jado de todas as suas riquezas, até do território de Barka –, sem, no entanto,
conseguir capturá -lo.
Seguindo o conselho judicioso, embora não isento, de seus principais tenen-
tes, decide nomear para a importante e difícil função de governador da Ifrkiya
o xeque hintatiano vencedor em Tadjra, Abū Muhammad ‘Abd al -Wāhid. Na
qualidade de “grande do império”, o xeque aceita esta delicada missão – que
o afastava do poder central – sob a insistência do soberano e sob condições que
praticamente lhe conferiam poderes de vice -rei
151
. Tal medida de prudência era
atestado suplementar do fracasso da empresa imperial almóada.
Em maio de 1207, o califa retoma o caminho do Marrocos. Ibn Ghāniya
reaparece e, com o apoio de numerosos árabes, Riyah, Sulaym e Dawāwida,
tenta interceptá -lo, mas é vencido na planície do Chelif. Este bate em retirada
seguindo a orla do deserto e reaparece no sul da Ifrkiya, mas o novo governador,
que se tinha aliado a importantes facções sulaymidas, vence -o no wād Shabrou,
nos arredores de Tebessa, em 1208.
Ibn Ghāniya adentra, então, o deserto para ressurgir no leste. Tendo atingido
o Tāflālet, toma e pilha Sidjilmāsa, vence e executa o governador de Tlemcen.
Durante essa campanha devastou todo o Magreb central, região que no século
XIV seria assim descrita por Ibn Khaldūn: Não se encontra mais um único
fogo aceso e não mais se ouve o canto do galo”
152
.
Abd al -Wāhid, o novo governador da Ifrkiya, intercepta Ibn Ghāniya
quando este retornava de sua devastadora campanha, vence -o e despoja -o de
150 IBN KHALDŪN, 1852 -1856, v. 2, p. 221 -2 e 286 -7.
151 BRUNSCHVIG, 1940, v. 1, p. 13.
152 Ver Encyclopaedia of
Islam,
nova ed., v. 2, p. 1007 -8.
58
África do século  ao século 
todo seu butim nas proximidades do Chelif
153
. O maiorquino retira -se para a
Tripolitânia junto com seus aliados, onde prepara seu último combate contra
Abd al -Wāhid; este, no entanto, vence -o em 1209–1210, no sopé do Djabal
Nafūsa, contando com o auxílio de grande contingente de árabes – Riyah, Awf,
Dabbab, Dawāwida – e numerosos Zenāta. Os dez anos que se seguiram foram
de paz para a Ifrkiya, graças à energia do novo governador
154
. Ibn Ghāniya
penetra mais para o sul, no Waddān, onde se livra de seu velho aliado e rival
Karākūsh, mandando executá -lo e tomando o seu lugar em 1212. Em 1233
deveria, por sua vez, ser capturado pelo sucessor de ‘Abd al -Wāhid.
Diversas são as apreciações acerca da tumultuosa época dos Banū Ghāniya,
que se prolongou durante mais de meio século, combinando, de maneira notável,
uma dimensão marítima e insular com uma dimensão nômade e saariana, fato
que lembra irresistivelmente os começos da epopeia almorávida. Georges Mar-
çais, atendo -se mais aos efeitos que às causas, conseguiu ver nesse movimento
um prolongamento daquilo que denomina a catástrofe hilaliana, acusando
os maiorquinos de ter propagado o “flagelo árabe no Magreb central
155
. Esse
empreendimento não pode, no entanto, ser reduzido a simples agitação, a uma
rebelião sem horizontes políticos. Trata -se, na verdade, de uma luta de admirá-
vel constância contra a dinastia Mumínida e, mais ainda, contra todo o sistema
almóada. Em suma, os Banū Ghāniya moveram uma luta de potências com o
propósito de apresentarem -se como solução alternativa para a ordem almóada.
A perseverança, a resistência e a constância que caracterizaram sua luta mostram
que sua ação tinha motivações profundas e servia a uma causa à qual deviam
estar fortemente ligados. Dentre os motivos da luta, os políticos e ideológicos
tiveram, sem dúvida, grande importância, uma vez que ela reuniu todas as opo-
sições aos Almóadas: antigas dinastias destronadas, meios maliquitas, meios fiéis
ao califado abássida de Bagdá, cabilas árabes nômades e berberes da Tripolitânia
desejosos de sair do seu isolamento montanhoso
156
.
Duas características podem nos ajudar a pelo menos entrever prováveis
razões econômicas para o relativo sucesso dos maiorquinos. A primeira é que
Maiorca constituía uma base marítima, comercial e diplomática, e sua queda
153 Detalhes em MERAD, 1962, p. 454 et seq.; ‘INĀN, 1964, v. 2, p. 271 -6.
154 IBN KHALDŪN, 1852 -1856, v. 2, p. 290 -1.
155 Ver Encyclopaedia of lslam, nova ed., v. 2, p. 1007 -8. Atualmente, a questão dos hilalianos tem sido estudada
com maior seriedade, tendo pesquisadores e historiadores abandonado a tendenciosa teoria segundo a
qual os “beduínos seriam o agelo da civilização.
156 Muito útil seria um estudo sobre esses opositores e seu papel na “epopéia maiorquina”.
59
A unicação do Magreb sob os Almóadas
anunciou o fim dos Banū Ghāniya. A segunda diz respeito à esfera de influência
geopolítica dos Banū Ghāniya, constituída essencialmente por uma zona que
ia do Waddān e do sudoeste da Tripolitânia, a leste, aos antigos povoamentos
caridjitas do sul do Magreb central, a oeste. Esta longa faixa horizontal, que
podia estender -se para o sul e, por vezes, para o norte, abrangia os ricos oásis e
as populações dissidentes; mas constituía, principalmente, a saída das grandes
e tradicionais rotas transaarianas, cujo interesse é ressaltado em mais de um
capítulo do presente volume. O comércio transaariano foi de importância capital
na economia do Magreb.
Assim considerada, a luta dos Banū Ghāniya bem podia ter tido como obje-
tivo reunir as heranças fatímida, zírida e almorávida no domínio fundamental
dos intercâmbios comerciais. Em contrapartida, o eixo do poder almorávida, a
despeito da atração exercida pela Espanha, parece ter -se orientado sempre no
sentido oeste -leste, alinhado com o Tell e com o Baixo Tell. Por esse motivo,
é lícito pensar que o empreendimento almóada se realizou em período menos
próspero que o que viu nascer e desenvolver -se a epopeia almorávida: confron-
tados com os progressos da reconquista espanhola, os Almóadas parecem ter
sempre carecido da profundidade comercial e estratégica do rico Sudão, cujo
ouro constituía os pulmões da economia mediterrânea.
A derrota de al ‑‘Ikāh (Las Navas de Tolosa) e o m do reinado de
al ‑Nāsir
157
A batalha de Alarcos (em 1195) tinha sido um sinal de alarma para os cris-
tãos; assim, não demoraram muito a esquecer suas dissensões, reorganizar -se e
retomar suas atividades antialmóadas, apesar da trégua assinada e dos protestos
de al -Nāsir. Em 1200, Afonso VIII de Castela ameaçou atacar a região de Mur-
cia e, em 1210, Pedro II de Leão infligiu severas destruições à região de Valencia;
tais acontecimentos eram indício de uma nova situação do lado cristão. Sob o
impulso do famoso bispo de Toledo, Rodrigo Jiménez de Rada, a reconquista
iria se tornar verdadeira cruzada que faria calar os desacordos entre os cristãos,
recebendo reforços de toda a Europa. A atuação do bispo de Toledo foi coroada
pela obtenção de uma declaração de cruzada pelo papa Inocêncio III.
Por essa época, as fileiras almóadas careciam de solidez e unidade. Uma das
primeiras medidas de al -Nāsir ao cruzar o estreito de Gibraltar foi proceder a
um expurgo no exército através da execução de vários oficiais superiores. Nesse
157 Ver detalhes em ‘INÃN, 1964, V. 2, p. 282 -326.
60
África do século  ao século 
contexto, não deve causar espanto a severa derrota sofrida pelos almóadas em
16 de julho de 1212 em Las Navas de Tolosa, a qual adquiriu rapidamente as
proporções de desastre. Os cristãos exageraram, é evidente, a extensão de sua
vitória, mas um erudito espanhol, Ambrosio Huici Miranda
158
, reduziu -a às suas
reais dimensões, observando que ela não chegou a provocar o desmoronamento
das posições muçulmanas na Espanha. Las Navas de Tolosa vale, todavia, como
símbolo, tendo alcançado grande repercussão: foi a primeira grande vitória dos
cristãos unidos contra os muçulmanos da Espanha e do Magreb, conduzidos
pelo califa em pessoa; não se tratava da derrota de um simples exército almóada,
mas de todo o Império Almóada, encabeçado pelo próprio califa.
Do lado muçulmano, a derrota revelou, além das falhas militares, a fragilidade
do sistema alada. Mais que revés militar, significou a derrota potica de um
regime que entrava em crise, assim como a falência de uma força militar que havia
perdido o ânimo de combater. O Imrio Almóada certamente ainda iria conhecer
alguns anos de brilho, mas Las Navas de Tolosa foi sintoma inegável do início da
desintegração do regime. É significativo, enfim, que o ocidente muçulmano o
tenha esboçado nenhuma reação as a derrota; pode -se falar mesmo em passi-
vidade e quase indiferença: temos o exemplo do próprio califa, que, após retornar
rapidamente para Marrakech, mergulhou num estado de depreso que durou até
sua morte, em 1213, fato que lembra, curiosamente, a atitude de seu pai em 1198.
A fragmentação do império e a desintegração do
sistema almóada
O sucessor de al -Nāsir, Yūsuf al -Muntasir (ou al -Mustansir), era um jovem
cuja entronização pelos dignitários almóadas fez -se acompanhar de condições
que limitavam seu poder
159
: ele se propunha a não reter por muito tempo em
território inimigo os contingentes almóadas e a não atrasar o pagamento de
seus soldos. Os negócios do Estado
160
conheceram, então, sensível deterioração.
Entretanto, o reinado transcorreu sem grandes problemas, a despeito do
aparecimento, primeiro entre os Sanhadja e depois entre os Djazūla, de dois
personagens que se diziam descendentes dos fatímidas e mahdīs. A tranquili-
dade deveria prolongar -se até 1218, data em que os Banū Marn apareceram
158 HUICI MIRANDA, 1956a, p. 219 -327; 1956b, v. 2, p. 428 -9.
159 MERAD, 1962, p. 459 -60.
160 IBN KHALDŪN, 1852 -1856, v. 2, p. 227; IBN ABĪ ZAR‘, 1843, texto p. 161 e trad. francesa p. 186 -7.
61
A unicação do Magreb sob os Almóadas
pela primeira vez nos arredores de Fés
161
. No entanto, essa calma era apenas
aparente: a ameaça cristã crescia cada dia mais, os Banū Ghāniya deslocavam -se
novamente e os Banū Marn, que até então tinham sido mantidos para além das
fronteiras saarianas do império, penetravam no coração do extremo Magreb, de
início na região entre Tāzā e Meknes, depois na região de Fés
162
. Ademais, no
que diz respeito ao funcionamento interno do regime, os vizires começavam a
se investir de poderes exorbitantes, usurpando a própria autoridade do Estado.
Deste modo, podemos dizer que o reinado de al -Mustansir foi um período
de calmaria enganadora e de expectativa; novos protagonistas o tardariam a
se manifestar no sentido de apressar o fim do império. A partir da morte de
al -Mustansir, em 1224, os acontecimentos se precipitam e inicia -se longo período
de confusão e de lenta agonia
163
. Dois soberanos, al -Man (1227 -1232) e seu
filho al -Sa‘d (1242 -1248), marcaram esse período com atitudes enérgicas, mas
suas tentativas de reerguer o império estavam fadadas ao fracasso, tendo as causas
da desagregação se tornado muito profundas
164
. Dentre elas, a mais grave seria,
talvez, o enfraquecimento do exército. As forças conquistadoras de outros tempos
cederam lugar a um exército pouco homogêneo, que não soube resistir nas várias
frentes e terminou por ceder sob a pressão daquilo que se tornava uma cruzada do
ocidente
165
. Atingidas as frentes militares, outras fraquezas foram aparecendo, em
particular a incapacidade dos Almóadas de impor sua doutrina e a surda hostili-
dade entre Mumínidas e xeques almóadas. Estes últimos iriam, a partir de 1224,
tentar retomar o poder e se vingar particularmente dos vizires, como Ibn Djāmi;
entretanto, sem chefes e sem horizontes, suas tentativas mostraram -se incipien-
tes e só fizeram aumentar o tumulto. As arrecadações de impostos, verdadeiras
pilhagens organizadas por uma corte enfraquecida por crescentes necessidades,
acabaram de alienar os xeques, que se apresentaram como defensores do povo.
Após a morte de al -Mustansir, os xeques almóadas proclamaram califa um
homem idoso que na época era contestado pelo levante andaluz, onde foi pro-
clamado al -Adil, irmão de al -Nāsir, que terminou por se impor. Por meio de
intrigas, em particular com os cristãos, os xeques conseguiram que al -Adil fosse
161 Ibid., p. 228.
162 A situação dos Banū Marn nos planaltos de Figuig, onde não reconheciam a autoridade almóada, prova,
entre outras coisas, que o poder almóadao mais ultrapassava o Tell no Magreb central; ver LE TOUR-
NEAU, 1969, p. 90 -1.
163 Ver HUICI MlRANDA, 1956b, v. 2, p. 451 et seq., e 1954.
164 Ver o capítulo 4 do presente volume.
165 A partir do reinado de al -Mustansir - talvez antes -, os Almóadas passaram a utilizar milícias cristãs no
Marrocos para defender seu regime. Ver DUFOURQ, 1968, p. 41.
62
África do século  ao século 
assassinado em 1227, fato que provocou a rebelião de várias cabilas, dentre as
quais a dos Khult. Inaugurava -se, assim, um período de lutas internas, em que os
cristãos e as cabilas árabes iriam desempenhar papel de importância crescente.
Abūl -‘alā Idrs, que havia tomado o título califal de al -Man em Sevilha
no ano de 1227, concluiu um acordo com Fernando III de Castela, pelo qual lhe
era permitido recrutar uma milícia cristã mediante a cessão de algumas fortifica-
ções na Andaluzia. Graças a essa milícia, pôde vencer seu concorrente, Yahyā Ibn
al -Nāsir, aclamado em Marrakech e apoiado por Tnmallal e pelos Hintāta.
Em 1230, al -Mamūn era senhor de todo o império quando tomou duas
atitudes reveladoras: a primeira consistiu na adoção de política de tolerância e de
entendimento com os cristãos; a segunda, mais significativa, foi a de renunciar
solenemente à doutrina almóada e ao princípio do mahdī e de sua infalibili-
dade
166
. Essa segunda medida provocou numerosas controvérsias, sendo objeto
de explicações e interpretações bastante diversas. Tratava -se de uma iniciativa
tomada contra a aristocracia almóada ou um gesto de boa vontade para com os
maliquitas? Seja como for, al -Ma’mūn parece ter tomado uma decisão oportu-
nista
167
, cujo efeito foi, na verdade, o de minar sua própria dinastia, privando -a
de toda legitimidade e de todo fundamento moral e ideológico.
A partir de 1230, ele se viu condenado a fazer concessões cada vez mais
importantes aos cristãos, dos quais passou a depender, fato que deve estar na
origem da implantação do comércio cristão do Marrocos e dos privilégios con-
cedidos aos árabes hilalianos encarregados da arrecadação dos impostos. Morreu
em 1232 no vale do Wād Oum al -Rabi‘ quando marchava contra seu rival
Yahyā, que havia retomado Marrakech.
O filho de al -Ma’mūn, al -Rāshid, foi aclamado sucessor graças à astúcia
de sua mãe Habbada, escrava de origem cristã, e à energia do chefe cristão da
milícia
168
. O reinado desse soberano de apenas 14 anos de idade inaugurou um
período de anarquia e de lutas entre as diversas facções, fato de que as milícias
cristãs procuraram, tanto quanto possível, tirar partido, particularmente nos por-
tos mediterrâneos do Marrocos
169
. Al -Rāshid teve de lutar até a morte, ocorrida
em dezembro de 1242, contra os Banū Marn e contra seu rival Yahyā, sempre
pronto a se refugiar no Atlas e preparar um novo ataque.
166 Ibid., p. 43.
167 Antes de morrer (em 1232), al -Man teve tempo de restabelecer a ortodoxia alada e - sob a pressão dos
xeques almóadas - a preeminência do
mahdī
Ibn Tūmart. Ver BRUNSCHVIG, 1940, v. 1, p. 22, nota 4.
168 DUFOURQ, 1968, p. 54.
169 Ibid., p. 55.
63
A unicação do Magreb sob os Almóadas
Sucedeu -o seu jovem meio -irmão al -Sa‘d, filho de al -Mamūn e de uma
escrava negra. Dando continuidade à política de seu antecessor, teve de fazer
frente aos contínuos ataques dos Banū Marn e dos Abd al -Wadid, de Tlemcen.
Sua morte, ocorrida em 1248, abriu longa crise que durou até 1269, ano
em que os Banū Marn conquistaram Marrakech. De 1269 a 1275, um “poder”
almóada manteve -se em Tnmallal. Símbolo um tanto quanto curioso esse
retorno ao ponto de partida!
A agonia dos Almóadas estendeu -se, assim, por quase meio século; sua área
de autoridade não cessou de se retrair sob os golpes de múltiplos adversários e
de forças centrífugas cada vez mais poderosas. A Ifrkiya foi a primeira região
a se destacar do império
170
, como consequência da longa e obstinada resistência
de Yahyā Ibn Ghāniya, o qual fez fracassar todas as intervenções imperiais no
leste. Abū Zakariyyā, filho do haféssida Abd al -Wahid, tomou o poder em 1228,
capturou Ibn Ghāniya em 1233 e, sob o pretexto de modificar o estado de coi-
sas deixado por al -Mamūn, proclamou a independência, colocando -se entre os
pretendentes ao cargo de califa.
A indiferença e a perda da Espanha seguiram um padrão que se tornara
familiar desde o início do século XI. A autoridade fraciona -se entre os governa-
dores almóadas, que cedem o lugar aos andaluzes, os quais, por sua vez, recorrem
ao auxílio dos reis cristãos e, transcorrido certo tempo, submetem -se a eles”
171
.
De resto, o exemplo vem de cima, que os diversos pretendentes ao califado
com frequência procuraram apoio junto aos cristãos. A situação assim criada
abriu caminho para os descendentes das antigas dinastias locais, Banū Hūd e
Banū Mardansh, os quais constituíram emirados que deveriam inexoravelmente
tornar -se vassalos dos soberanos cristãos. Em 1230, o poder almóada desaparecia
da península, sendo substituído seja pela vaga e longínqua suserania “abássida”,
seja pela suserania dos Haféssidas da Ifrkiya. As metrópoles muçulmanas da
Andaluzia começaram, então, a cair uma a uma sob o domínio dos reis de Cas-
tela (Córdoba, 1236) ou de Aragão (Valencia, 1238).
170 BRUNSCHVIG, 1940, v. 1, p. 18 -23.
171 Essa desintegração da unidade e a ingerência dos cristãos na política interna do oci dente muçulmano
anunciam o m da hegemonia muçulmana no Mediterrâneo.
C A P Í T U L O 3
65
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
O século dos Almóadas
Apogeu
É difícil precisar o momento de apogeu de uma civilização. Para o Magreb,
terá sido sob os Aglábidas, quando, no século IX, os exércitos da Ifrkiya ame-
açavam Roma e reinavam sobre o Mediterrâneo? Ou no século X, quando os
Fatímidas transformaram Mahdyya na sede de um califado que rivalizava com o
de Bagdá? Ou terá sido na época dos Almóadas (1147 -1269), que pela primeira
vez uniram, sob a autoridade de uma dinastia local e autenticamente berbere, um
imenso império, que se estendia de Trípoli a Sevilha? É preciso reconhecer que
houve vários períodos de glória; e, entre eles, o do século XII não foi, certamente,
o de menor importância.
E a Espanha? Talvez tenha perdido sua antiga importância política sob o do-
nio de Abd al -Rahmān III (912 -961), ou sob o reinado do ditador al -Mansūr
ben AmAmr, o terrível Almansor das crônicas cristãs. Mas o caso de Espa-
nha e Magreb pode ser comparado ao de Grécia e Roma: a Espanha conquistou
duplamente seus rudes conquistadores berberes Almorávidas ou Almóadas e,
oferecendo -lhes os tesouros seculares de suas tradições artísticas e culturais, -los
construtores de uma civilização. Também a civilização do Ocidente muçulmano foi,
a partir do século XII, mais do que no passado, uma civilização ibero -magrebina.
A expansão da civilização magrebina:
seu impacto sobre a civilização ocidental
Mohamed Talbi
66
África do século  ao século 
Em propoões difíceis de precisar, os negros originários de regiões situadas ao
sul do Saara colaboraram para a formação dessa civilização. Havia grande número
deles no Marrocos e em todo o Magreb. A mestiçagem, contra a qual o existia
preconceito, era frequente e teve naturalmente alguma inflncia biocultural, difícil,
no entanto, de se indicar com exatidão
1
. Tamm havia negros na Espanha, princi-
palmente em Sevilha e Granada. Como escravos por um tempo, ou homens livres,
tiveram participação considevel no exército e na vida ecomica, introduzindo
alguns costumes de seus países de origem
2
. Alguns deles, como João Latino, pro-
fessor universitário na Espanha, atingiram o nível mais elevado da vida intelectual e
deram à civilização ibero -magrebina um sentido mais amplamente africano.
A arte
Na época que nos interessa, o centro dessa civilização situava -se na metade
ocidental do Magreb. O declínio de Kayrawān era evidente, e a Ifrkiya já havia
perdido sua primazia. É preciso observar que o século dos Almóadas foi tam-
bém o dos Almorávidas (1061 -1147). Afora os aspectos religiosos, no plano
da civilização, não houve um corte entre as duas dinastias
3
. A arte almóada em
particular foi apenas o florescimento e o resultado final de processos elaborados
ou introduzidos na Espanha pelos Almorávidas.
Os Almorávidas foram grandes construtores. Pouco sobreviveu de sua arqui-
tetura civil, mais exposta à fúria dos homens e aos danos do tempo. Nada se
conservou dos palácios erguidos em Marrakech e em Tagrart; poucos vestí-
gios de suas fortalezas; e sabe -se muito pouco a respeito das obras de utilidade
pública, principalmente no campo da irrigação. Mas ainda é possível admirar os
mais belos monumentos consagrados ao culto. Os mais característicos situam -se
na atual Argélia. A grande mesquita de Marrakech infelizmente desapareceu,
levada pela maré almóada. Em Fés, a mesquita de al -Karawiyyn não é total-
mente almorávida: trata -se de um edifício de meados do século IX alterado
e aumentado. a grande mesquita de Argel, construída por volta de 1096, é
uma fundação almorávida autêntica, que não sofreu muito com as alterações
introduzidas no século XIV e depois, durante o período turco. Pode -se também
citar a mesquita de Nedroma. Mas, sem dúvida, o edifício mais belo é a grande
mesquita de Tlemcen, monumento imponente de 50 m por 60 m, iniciado por
1 Ver BRUNSCHVIG, 1947, v. 2, p. 158.
2 Ver, mais adiante, capítulo 26.
3 Ver capítulos 2 e 5 deste volume.
67
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
volta de 1082 e terminado em 1136. Alia o vigor e a majestade dos edifícios
saarianos ao requinte e à delicadeza da arte andaluza.
Não é necessário escreve G. Marçais
4
enfatizar a importância da grande mes-
quita de Tlemcen. As peculiaridades de seu projeto e, mais ainda, o fato de estarem
reunidos, e até mesmo estreitamente associados, a cúpula com nervuras andaluzas e
o consolo de mukarnas [estalactites] de origem iraniana (...) conferem -lhe lugar de
destaque entre as obras muçulmanas.
A arte almóada deu continuidade e desenvolveu a arte almorávida. Pela
majestade das proporções, equilíbrio dos volumes e riqueza da decorão,
acrescentou -lhe nobreza e graça. Foi o apogeu da arte muçulmana do Ocidente.
Sua maior expressão é Kutubiyyn, a mesquita dos Livreiros em Marrakech,
uma das criações mais belas do Islã, construída, como a de Tnmallal, pelo
fundador da dinastia, Abd al -Mū’min ben Al (1133 -1163). Seu minarete de
seis andares, com salas cobertas por abóbadas variadas, eleva -se a mais de 67
m do solo. Cinco cúpulas de estalactites, “que podem ser consideradas como o
ponto alto da história das mukarnas
5
, ornam a nave transversal. Mais do que
em Tlemcen, em Kutubiyyn os arcos lobados ou festonados, enriquecidos com
motivos decorativos, estendem -se sobre as 17 naves e sete traves, cruzando -se no
infinito, dando a impressão de amplitude e espaço. A grande mesquita de Sevi-
lha, outra joia da arte almóada, foi obra do filho e sucessor de ‘Abd al -Mū’min,
Abū Ya‘kūb Yūsuf (1163 -1184). Depois da Reconquista, foi substituída por
uma catedral; dela restou o minarete, a famosa Giralda, terminado por Abū
Yūsuf Ya‘kūb al -Mansūr (1184 -1199) e coroado, a partir do século XVI, por um
lanternim cristão. O monumento mais grandioso, a mesquita Hasan, iniciado em
Rabat por al -Mansūr, nunca chegou a ser acabado. É possível, no entanto,
admirar -se ainda hoje sua floresta de colunas, que se elevam de uma super-
cie de 183 m por 139 m, e seu minarete imponente, a famosa torre Hasan, que
brota majestosamente do meio da fachada. A mesquita da kasaba de Marrakech,
também fundada por al -Mansūr, foi por demais alterada em tempos posteriores
para poder refletir fielmente a arte almóada.
Pelas mesmas razões e da mesma forma que a almorávida, a arquitetura civil
almóada foi menos preservada. Nada resta de seus palácios nem do grande hos-
pital que havia em sua capital. Rabat, fundada por al -Mansūr, conserva duas
portas de sua antiga muralha de taipa, que se estendia por mais de 5 km:
4 MARÇAIS, 1954. p. 196.
5 Ibid.,
p.
237.
68
África do século  ao século 
Bāb al -Ruwāh (ou Bāb er -Ruāh) e Bāb -Udāya. Deve -se também aos Almóadas, entre
outras obras, a kasaba de Badajoz, a Alcalá de Guadaira cidadela construída a 15 km de
Sevilha e a célebre Torre do Ouro, de forma dodecagonal, que controlava a navegação
no Guadalquivir. Finalmente, deve -se observar que a arte almóada alia a majestade e a
força à leveza vaporosa da decoração e a cores iridescentes graças, principalmente, ao uso
da faiança policrômica (zallīdj). É uma arte de maturidade, poder e grandeza.
As letras
O século XII também foi um período de brilhante atividade literária. A
reserva inicial dos Almorávidas e dos Almóadas em relação aos poetas e às obras
profanas em geral logo se dissolveu sob o sol quente da Espanha. Levando
adiante a tradição segundo a qual os soberanos árabes eram mecenas inte-
ressados e ilustrados, os príncipes das duas dinastias favoreceram a cultura
e protegeram os homens de letras.
Também nesse plano o lugar de honra foi ocupado pela parte ocidental do
conjunto ibero -magrebino; a Ifrkiya não se destacou. Pode -se, quando muito,
citar Ibn Hamds (c. 1055 -1133), poeta autêntico e de grande renome, mas
mesmo este era nascido na Sicília. Jovem, teve de deixar sua pátria siciliana”,
conquistada pelos normandos, e a partir de então não cessou de evocar suas lem-
branças com cativante nostalgia. Após rápida estada na corte de al -Mu‘tamid ala
llāh (ou, mais propriamente, Muhammad ben Abbād al -Mu‘tadid) em Sevilha,
instalou -se na Ifrkiya, onde passou a maior parte de sua vida.
No extremo Magreb, e sobretudo na Espanha, sabia -se cortejar melhor as
musas. Entre os artistas que mais se valeram de seus favores, citemos: Ibn Abdūn
(morto em Evora em 1134); Ibn al -Zakkāk al -Balans(morto por volta de
1133); Ibn Bak (morto em 1150), que passou toda a sua vida em peregrinações
entre a Espanha e o Marrocos, e cujas muwashshah gênero no qual era exce-
lente – acabam com khardja (êxodo ) em romance; Abū Bahr Safwān ben Idrs
(morto em 1222); Abu l- Hasan Ab ben Hark (morto em 1225); Muhammad
ben Idrs Mardj al -Kul (morto em 1236); Ibn Dihya, que, saindo da Espanha,
morreu no Cairo após ter percorrido todo o Magreb e residido algum tempo
em Túnis; Ibn Sahl (morto em 1251), sevilhano de origem judaica, de grande
sensibilidade poética, que passou a servir o governador de Ceuta após a queda
de sua cidade natal nas mãos de Fernando III (1248); Abu l -Mutarrif ben
Amra (morto por volta de 1258), que, nascido em Valencia, serviu os últimos
Almóadas em várias cidades do Marrocos e no final de sua vida participou da
corte dos Haféssidas de Túnis.
69
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
Dois literatos tiveram brilho excepcional: Ibn Khafādja (1058 -1139), tio de
Ibn al -Zakkāk, e principalmente Ibn Kuzmān (nascido d. 1086 e morto em
1160). O primeiro, sem ser exatamente poeta de corte vinha de família abastada
de Arcila (Asilah), na província de Valencia –, submeteu -se à tradição e exaltou
os poderosos da época, entre eles, o príncipe almorávida Abū Ishāk Ibrāhm ben
Tāshfn. Mas alcançou a posteridade como inimitável poeta da natureza. Em
seus versos canta, com sensualidade e toques românticos, a alegria de viver, a
água dos rios e lagos, os jardins e as flores, os frutos e os prazeres da existência.
Foi cognominado al -Djannān (o campestre) e toda antologia antiga ou moderna
contém uma seleção de seus poemas. É um clássico da poesia árabe.
Ibn Kuzmān foi, indiscutivelmente, o príncipe da poesia popular” (imām
al -zadjdjālīm) abandonando a linguagem erudita, exprimiu -se com virtuosismo
no hispano -árabe coloquial. Grande e muito feio, com barba ruiva, olhos peque-
nos e estrábico, levou vida escandalosa, libertina e licenciosa, com muita bebida
e sem respeitar qualquer proibição sexual (adultério e sodomia). Sempre sem
dinheiro, errava de cidade em cidade sem jamais sair da Espanha à procura de
protetores generosos e de casos de amor. Naturalmente não deixou de ser preso
e só escapou à morte a chicotadas pela intervenção de um dignitário almorávida,
Muhammad ben Sr. Sem recursos, inspirado e vagabundo, chega a lembrar -nos,
em seu arrependimento – provavelmente sincero com a idade –, o destino atípico
de um Abū Nuwās ou de um François Villon. Seus zadjal, dedicados na maioria a
seus protetores, são como que baladas ora muito breves (três estrofes), ora muito
longas (42 estrofes), onde o poeta, rompendo com a arte poética clássica, cria
novos metros e varia as rimas. O panegírico final, espécie de posfácio dos poemas
com dedicatória, é um trabalho bastante banal. A arte do poeta desabrocha nos
zadjal sem dedicatória que cantam o amor e o vinho ou nas brincadeiras”
que introduzem as obras com dedicatória: o poeta se deixa levar por sua inspi-
ração, e esboça quadros impressionantes e burlescos de seus contemporâneos,
reproduzindo brigas de bêbados, problemas de maridos enganados e outras cenas
cômicas da existência cotidiana. Descreve os cantos e danças e adora a natureza
civilizada dos jardins e piscinas, cenário onde evoluem belas banhistas. É rude,
mas raramente obsceno. Enfim, sua arte tem inspiração autenticamente popular,
e é enriquecida por um raro dom de observação e incansável brio. A tradição
que sedimentou e da qual foi mestre teria continuidade com seu compatriota
Madghals e seria imitada por muito tempo até no Oriente.
Não literatura viva sem críticos e antologistas. Ibn Bassām (morto em
1148), que vez por outra fazia versos, preocupava -se sobretudo em defender e
ilustrar as letras de sua pátria espanhola. Sua Dhakhira, vasta e inteligente anto-
70
África do século  ao século 
logia ditada pelo orgulho nacional contra a pretensa superioridade do Oriente,
é a melhor fonte sobre a atividade literária na Espanha do século XI e começo
do século XII. Deve -se a seu compatriota Ibn Bashkuwāl (filho de Pascual,
morto em 1183) o Kitāb al -Sila (terminado em 1139), que, concebido como
continuação do Ta’rīkh de Ibn al -Farad (morto em 1013), reuniu 1400
biografias de celebridades da Espanha muçulmana.
Dois eminentes especialistas representaram a filologia: Ibn Khayr al -Ishbl
(morto em 1179), autor da Fahrasa (catálogo), que nos informa sobre as obras
ensinadas em seu tempo, e principalmente Ibn Madā’ al -Kurtub (morto em
1195), que, muitos séculos antes dos atuais partidários da simplificação da gra-
mática árabe, criticou severamente e denunciou no Kitāb al -Radd ‘alā ’l -nuhāt
6
sua excessiva e desnecessária complexidade.
Não nos é possível citar todos os bons historiadores e geógrafos da época,
mas um, geógrafo, não podemos deixar de mencionar, “talvez o maior do mundo
islâmico
7
, al - Idrs (1099 -c. 1166), que viveu na corte de Rogério II das Duas
Sicílias. Uma edição científica de sua obra está sendo preparada na Itália
8
.
Filosoa, medicina e ciências
O século dos Almóadas foi principalmente o século da filosofia, representada
por grande número de nomes ilustres: Ibn Bādjdja (Avempace, morto em 1139),
Abū Bakr, também conhecido como Ibn Tufayl ou al -Andalus (Abubacer,
morto em 1185), Ibn Rushd (Averróis, 1126 -1198) e o judeu andaluz Ibn
Maymūn (Mois Maimônides, 1135 -1204). Com exceção de Ibn Maymūn,
que emigrou para o Egito antes de 1166, todos estes filósofos serviram aos
Almóadas e gozaram, apesar de alguns reveses passageiros, de sua proteção
e de seus subsídios. Afora a filosofia, todos adquiriram bom conhecimento
das disciplinas religiosas e cultivaramrias ciências práticas: a matemática, a
astronomia, a botânica e principalmente a medicina. Todos – como demonstra
a deformação latina de seus nomes – foram absorvidos pela Idade Média cristã,
alimentada, por muito tempo, pelo pensamento destes sábios.
Já que não podemos estudá -los um a um, falemos daquele que mais brilhou:
o cordovês A verróis. Além de filósofo, foi [akih. (especialista na lei religiosa) e
exerceu a função de cádi. Fez observações de astronomia e escreveu uma obra
6 Ed. do Cairo, 1947.
7 MIELI, 1966, p. 198.
8 AL -IDRĪSĪ, 1970. Sobre as qualidades cientícas da obra de al -Idr, pode -se também consultar
LEWICKI, 1966, v. 1, p. 41 -55.
71
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
de medicina, Kitāb al -Kulliyāt. O acontecimento decisivo de sua carreira
situou -se por volta de 1169, quando seu amigo Ibn Tufayl apresentou -o
ao califa Abū Yakūb Yūsuf, que começava a se apaixonar pela filosofia e
lamentava -se da falta de clareza das obras de Aristóteles. Convidado pelo
califa, Averis elaborou um comentário e passou para a posteridade como
o intérprete genial e continuador do grande filósofo da Antiguidade.
Apesar do apoio e da proteção do califa, a voz de Averróis foi calada pela
intolerância. Condenado pelos teólogos, caiu em desgraça e foi banido. Suas
obras foram queimadas. Apenas parte delas, em árabe, sobreviveu. A maioria
de seus escritos chegou a nós em traduções latinas ou hebraicas. Além dos
Comentários, devem -se mencionar principalmente o Fasl al -Makāl (O tratado
decisivo), onde Averróis tentou resolver o difícil e eterno conflito entre a fé e a
razão, e o Tahāfut al -Tahāfut (A incoerência da incoerência), refutação detalhada
e minuciosa do Tahāfut al -Falāsifa (A incoerência dos filósofos) de al -Ghazzāl,
o maior teólogo do Islã ortodoxo.
As opiniões sobre as ideias e a contribuição de Averróis variam. Pôs -se em
discussão sua originalidade. Enfatizou -se sua duplicidade, que o levava a enco-
brir seu materialismo ateu, reservado à elite, sob um discurso ortodoxo, desti-
nado ao vulgo. Na verdade, ainda se está longe da última palavra a respeito do
pensamento de Averróis, apesar das inúmeras obras a ele consagradas. Ninguém
chegou a explorá -la totalmente e a seguir integralmente sua evolução através dos
textos árabes, latinos e hebraicos nos quais se exprimiu. Como todos os filósofos
da Idade Média, Averróis muito deve a Aristóteles. Mas não se pode esquecer
que seu pensamento formou -se em contato com toda uma corrente filosófica
árabe e, com frequência, em reação a esta corrente. Também é preciso tomar
cuidado para não se separar em Averróis como se fez por vezes arbitrariamente
o teólogo do filósofo. Em nossa opinião, não se pode duvidar da sinceridade
de sua esclarecida, e, portanto, suspeita. Averróis foi incontestavelmente
um genial comentador de Aristóteles, “o maior comentador de filosofia que a
História conheceu”, estima A. R. Badaw
9
. Também foi, e indubitavelmente,
um pensador profundo, rico e original. Não importa que alguns encontrem
esta originalidade sobretudo no Fasl al -Makāl e outros no Tahāfut: isto vem
sublinhar a riqueza e a flexibilidade do pensamento do autor, à vontade tanto
na teologia ou no fikh (Fasl al -Makāl), quanto na filosofia pura (Tahāfut). Seu
gênio foi o canto do cisne da filosofia muçulmana do Ocidente.
9 BADAWĪ, 1972, v. 2, p. 869.
72
África do século  ao século 
O século dos Almóadas contou também com eminentes cientistas, dentre os
quais citamos, sem nos deter, os médicos Abū l-‘Alā’ ben Zuhr (Aboali, morto
em 1130) e seu filho Abū Marwān (Avensoar, morto em 1161); os botânicos
Ibn al -Rūmiya, al -Ashshāb (o Herbalista, morto em 1239) e Ibn al -Baytār
(morto em 1248), e sobretudo os astrônomos e matemáticos Djābir ben Aflah,
al -Bitrūdja e al -Zarkāl, os três do século XII.
Os últimos raios antes do crepúsculo
O império fundado por Abd al -Mū’min não resistiu ao desastre sofrido
em Las Navas de Tolosa (1212). Exaurido pelas guerras externas e corroído no
plano interno, cedeu lugar a quatro reinos independentes: um na Espanha e
três no Magreb.
Granada, ou um certo apogeu
O pequeno reino de Granada, escrínio precioso da joia que é o Alhambra,
foi considerado, também por influência do romantismo, o apogeu da civilização
muçulmana medieval. Julgamento, naturalmente, bastante exagerado. Talvez,
tenha sido o apogeu do luxo e de um certo refinamento. Mas, na verdade, como
observa H. Terrasse, em todos os aspectos, este pequeno reino foi apenas um
reflexo diminuto e tardio do califado de Córdoba”
10
.
Devem -se aos sridas de Granada numerosos monumentos civis e militares,
dentre os quais o mais famoso é o Alhambra. O visitante tem a impressão de ser o
Alhambra produto da mais exuberante fantasia. Portas, janelas geminadas, fileiras
de arcos cobertos de rendas que sobem por esguias colunas de mármore, vãos de
luz e manchas de sombra, galerias e corredores, tudo parece ter sido concebido
para ajustar sabiamente os efeitos de contraste, para surpreender a cada passagem
e romper a monotonia dos espaços fechados com perspectivas sutis e descon-
certantes. A desordem da fantasia é apenas aparente: visto de fora ou de cima, o
edifício impressiona pelo equilíbrio das formas e pela distribuição harmoniosa
dos volumes. Mas o charme maior do monumento, aquilo que impressiona de
imediato o visitante e o marca mais profundamente é, sem dúvida, a riqueza e a
suntuosidade da decoração. Não invenções, mas sábia utilização de todas as
aquisições da arte hispano -magrebina e habilidade técnica perfeita. Domos de
estalactites, tetos de madeira pintada, esculturas no estuque, panôs e afrescos, uma
10 TERRASSE, 1958, p. 203.
73
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
sinfonia de cores discretas ou voluntariamente agressivas, tudo foi reunido para
criar um ambiente de opulência tranquila, de sensualidade e de sonho. A arte de
Granada odeia a solidão do vazio. As paredes são cobertas por motivos florais,
epigráficos ou geométricos. Arte abstrata e alegórica,impressão de amplitude,
de infinito. As linhas se alongam, fogem em todas as direções, param, brotam
novamente, cruzam -se em louca dança, num movimento perpétuo. A música sutil
dessas caligrafias esculpidas ou gravadas, frequentemente compondo as palavras
de lbn Zamrak, vem enfeitiçando há gerações os visitantes menos avisados. Arte
mágica, mas também, é preciso dizer, arte sem vigor, último canto de uma civi-
lização que se fecha em seus meandros, no casulo aconchegante de seus sonhos,
sem força para se renovar nem para enfrentar a vida.
Sob os Násridas, a cultura apresenta a mesma fisionomia, constituindo -se
num prolongamento do passado e podendo parecer, em alguns domínios, bas-
tante brilhante. No entanto a filosofia entra em declínio, sem nenhum repre-
sentante de valor. Também as ciências, como um todo, estacionam ou mesmo
regridem. Não podemos deixar de citar o médico Ibn Khātima (morto em 1369)
e o matemático al -Kalasād (1412 -1486); mas apenas estes.
No campo das letras, Granada conservou certo brilho até o fim de seus dias.
Nunca lhe faltaram filólogos, poetas e estilistas que soubessem cinzelar com arte
F . O Alhambra de Granada. Sala lateral do Pátio dos Leões; decoração do século XIV. (Foto J.
Devisse.)
74
África do século  ao século 
– a mesma que recobre as paredes do Alhambra – a prosa rimada, tão apreciada
pelo público culto da época. O escritor mais representativo foi Lisān al -Dn Ibn
al -Khātb (1313 -1375), o maior humanista de seu tempo, tido como grande
clássico da literatura árabe. Seu amigo Ibn Khaldūn considerava -o “verdadeiro
prodígio na prosa e no verso, nas ciências e nas letras”. Secrerio e vizir dos
Násridas, obteve as mais altas honras e distinguiu -se em todos os ramos do
saber: poesia, antologia, epistolografia, relatos de viagem, história, stica
e medicina; produziu pelo menos 60 obras. Impôs -se, principalmente, pela
magia do estilo e pelo inegável virtuosismo da linguagem. O mágico virtuose
teve, no entanto, terrível fim: em virtude de falsa acusação de heresia por
personagens poderosos entre os quais, seu protegido, o poeta Ibn Zamrak
(1333 - d. 1393), que o sucedeu como vizir –, foi sumariamente estrangulado
numa sombria cela em Fés, e seus restos, queimados. A arte de seu sucessor
não era menos fascinante... e seu fim não foi menos trágico: Ibn Zamrak,
outro mágico do verbo em verso e prosa, acabou sendo assassinado por ordem
do sultão. Seu dīwān (obra poética) não chegou até nossos dias, mas alguns
de seus poemas, transfigurados em hieroglíficas belezas, em caligrafias refi-
nadas misturadas a arabescos e ornamentos
11
, ainda adornam as paredes do
Alhambra. Nada exprime melhor o jogo sutil de relações entre a arte e a
literatura dos Násridas.
Granada foi uma civilização que terminou em eruditos arabescos verbais e arqui-
tenicos, arabescos extraordirios, mas antiquados, como tantas peças de museu.
Como poderia ela escutar a voz de Ibn al -Hudhayl (morto d. 1392), que tentou, em
o, arran-la de seu sonho e louvou -lhe as virtudes viris da arte equestre?
Os herdeiros magrebinos dos Almóadas
A falta de vitalidade grassava em todos os domínios no Ocidente muçulmano.
A história do Magreb sob os Marínidas, os Zaiânidas (‘Abd al -Wādid) e os Hafés-
sidas, isto é, aas últimas décadas do século XVI, é de uma lenta paralisação.
Não nos cabe aqui seguir a evolução dessa letargia geradora de decadência,
fenômeno capital, porém ainda não suficientemente estudado. No entanto um
fato é certo: enquanto no Ocidente cristão ocorria verdadeira explosão demo-
gráfica, o Ocidente muçulmano se despovoava. Esse decnio demográfico já
era sensível em meados do século XI e parece ter atingido seu vel extremo
na metade do século XIV. Ibn Khaldūn observou o fenômeno e apontou -o, com
11 GARCIA -GOMEZ, apud TERRASSE, 1958, p. 211.
75
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
razão, como um dos elementos decisivos da regressão e da morte das civilizações.
A agricultura e principalmente a arboricultura recuavam; o nomadismo se alas-
trava. Cidades e aldeias desapareciam ou se despovoavam. Kayrawān, que contava
centenas de milhares de habitantes nos culos IX e X, transformou -se numa cida-
dezinha. Leão, o Africano
12
, assinala que em Bidjāya só havia 8 mil lares, quando
a cidade podia comportar facilmente 24 mil. Extrapolando – por o dispormos
ainda de estudos de demografia histórica, indispensáveis para o entendimento
desse período –, podemos estimar que a população do Magreb reduziu -se a um
terço. Por quê? As pestes – que não são apenas causas, mas também efeitos – não
constituem motivo suficiente. Em todo caso, o declínio demográfico violento
sofrido pelo Magreb explica melhor do que qualquer outro evento que certa-
mente seria apenas um epifenômeno – o crescente desequilíbrio entre o norte do
Mediterrâneo, onde, como notou Ibn Khāldun
13
, despontava a Renascença, e o sul,
progressivamente mergulhado nas sombras aa Nahda contemporânea, acom-
panhada – fortuitamente? – por uma explosão demográfica, que ainda prossegue.
A arquitetura do Magreb, principalmente a do Marrocos e da parte ocidental
da Argélia, continuou a sofrer influências andaluzas (de Granada). Estas influên-
cias o menos manifestas na Ifrkiya, onde se conservam relativamente poucos
monumentos haféssidas. Os grandes construtores da época foram os Marínidas.
É impossível citar todas as suas obras. Observemos apenas que o século XIII foi
marcado pelo surgimento de novo tipo de monumento de inspiração oriental: a
madraça, instituto de estudos islâmicos. Em geral, seu projeto é bastante simples:
um pátio interior, cercado de galerias, com uma fonte no centro, para onde se
voltam os quartos dos estudantes. Num dos lados há um grande salão dotado de
um mihrāb, que servia como sala de aula ou oratório. Todas as capitais do Magreb
e muitas cidades importantes tiveram suas madraças. A mais monumental é a
Abū ‘Ināniyya de Fés (1350–1357). Outro tipo de edifício que surgiu na época
foi a zāwiya, sede de congregação e santuário fúnebre do santo fundador. A arte
magrebina pós -almóada pode ser considerada da maturidade; representa certo
classicismo. Embora tecnicamente perfeita, não aponta nenhuma evolução, per-
manecendo num estado de estagnação rígida, que anuncia sua decadência.
A cultura sofre do mesmo mal. Ibn Khaldūn observa, com sua perspicácia
habitual, que em seu tempo o “mercado do saber estava em pleno marasmo no
Magreb”; adiante, no capítulo consagrado às ciências exatas, acrescenta que estas,
principalmente, “haviam quase desaparecido e eram cultivadas por raros indi-
12 LEÃO, o Africano, trad. francesa, 1956, v. 2, p. 361.
13 IBN KHALDŪN, trad. francesa, 1956 -1959, p. 700, 866.
76
África do século  ao século 
víduos, que sofriam a censura dos doutores ortodoxos”
14
. Atribuía esta situação
ao declínio da civilização e à diminuição da população (tanākus al -‘Umrān).
O marroquino Ibn al -Bannā (1256–1321) foi o último matemático de valor,
e Ibn al -Kammād, da Ifrkiya, o último astrônomo. Na filosofia, pode -se citar
al -Ābil (1282 -1356), de Tlemcen, cujo principal mérito foi ter contribuído
para a formação de Ibn Khaldūn. O mestre da geografia descritiva na forma de
relato de viagem (rihla) foi o marroquino Ibn Battūta (1304- c. 1377), que
visitou a Índia, a China e a África, e cuja competência ultrapassava, de longe, a
de seus êmulos e contemporâneos al -‘Abdar, Khālid al -Balaw e al -Tdjan. Não
é possível citar todos os historiadores – entre os quais se destaca a figura de Ibn
Khaldūn (1332 -1406) nem todos os hagiógrafos, biógrafos e antologistas. Não
faltaram poetas nem tampouco prosadores, mas a época que ora tratamos, apesar
de alguns trabalhos bem-sucedidos, foi marcada pela decadência. Continuava -se,
naturalmente, a compor kasīda, panegíricos cada vez mais pomposos, que hoje
nos parecem ainda mais ridículos por deformarem grotescamente a realidade.
Também se escreviam rithā
15
, uma efusão de lágrimas de crocodilo derramadas
sobre os poderosos, raramente de inspiração em dor verdadeira. As pessoas se
deliciavam com o gênero descritivo. Adorava -se evocar a beleza efêmera de um
lírio ou flor de amendoeira e gemer com a na’ūra (roda -d’água). Cantava -se
o amor místico, mas também o vinho, e as pessoas deixavam -se embalar pelo
charme equívoco da poesia erótica, onde, com frequência, a silhueta da amante
confundia -se com a de um jovem efebo. Temas que muito haviam se tor-
nado clássicos eram tratados sem nenhuma originalidade. Faziam -se versos
antigos” sem “novos pensadores”. Havia -se esgotado a seiva, mas o ofício con-
tinuava perfeito. O que as pessoas saboreavam era a delicadeza do artista ou
a habilidade do menestrel. Gostavam de ouvi -lo desfiar lugares -comuns, que
consideravam, de boa vontade, obras -primas, desde que a forma fosse perfeita.
Era a literatura de uma classe refinada, refugiada nos perfumes, ou no éter do
passado. Literatura onde o verso e a prosa frequentemente misturados em
ternas epístolas eram bibelôs finamente cinzelados, bibelôs cujo desenho e
graça evocavam irresistivelmente os frágeis e graciosos arabescos que ornavam
os palácios e as habitações burguesas. Formas estagnadas e decadentes, porém
reflexos de uma cultura real, a da burguesia urbana. Nunca, talvez, os livros e
as bibliotecas foram tão apreciados. O ensino, incluindo -se a educação das
14 Ibid., p. 789 e 866.
15 A palavra rithā designa um gênero elegíaco, de estilo muitas vezes convencional; esse gênero triste e
lamentoso é mais conhecido como marthiya.
77
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
mulheres, era bastante difundido. Adorava -se a música, com certeza dominada
pela influência andaluza o mālūf. Leão, o Africano, observa a respeito
de Tadelles (Dellys): As pessoas são amáveis e levam vida alegre. Quase
todos tocam bem o alaúde e a harpa”
16
; e acrescenta adiante: Os homens
de Bidjāya são homens agradáveis. Adoram divertir -se: todos sabem fazer
sica e dançar, principalmente os senhores
17
. Foram os últimos raios de
uma civilizão crepuscular.
Impacto sobre a civilização ocidental
Apesar dos inevitáveis conflitos e da divergência de destinos, os intercâm-
bios materiais e culturais entre o Ocidente muçulmano e o Ocidente cristão
nunca foram interrompidos. Para esboçar um quadro equilibrado, exporemos
brevemente, em primeiro lugar, os traços específicos dos intercâmbios materiais,
limitando -nos à Espanha, principal plataforma do trânsito cultural.
Os intercâmbios materiais
O comércio com a Espanha, assim como com o resto da Europa, era regido
por tratados, que fixavam as modalidades em que deveria desenvolver -se e
regulavam o estabelecimento de negócios pessoais. De acordo com esses trata-
dos, os ibéricos entre os quais o estava ausente a rivalidade dispunham,
em todos os portos magrebinos e até no interior (por exemplo, em Tlemcen e
Marrakech), de uma cadeia de funduk. Ao mesmo tempo albergue (com capela,
fornos, tavernas etc.), entreposto e centro de negócios, os funduk eram, em
geral, geridos por cônsules, que representavam seus iguais junto aos poderes
locais.
Menos dinâmicos e isto deve ser enfatizado –, os magrebinos não conse-
guiram se apoiar em organizações semelhantes em terras cristãs. Também no
transporte marítimo, seu papel era negligenciável. A burguesia aceitou o desen-
volvimento comercial, dele obtendo certo lucro, mas não se integrou ao comércio.
o tomou iniciativas empresariais nem estimulou a produção interna destinada
16 LEÃO, o Africano, trad. francesa, 1956, p. 352.
17 Ibid., p. 361.
78
África do século  ao século 
à exportação. Os lucros, principalmente sob a forma de censos fiscais pagos pelos
estrangeiros, acabaram enriquecendo principalmente os cofres do Estado
18
.
O desequilíbrio também aparecia nos produtos permutados. Em princípio,
o havia limitações à importação por qualquer uma das partes. Mas as exporta-
ções eram controladas: estabeleciam -se quotas para alguns produtos vitais, como
os cereais, e havia a proibição mais ou menos respeitada de exportar mate-
riais estratégicos, como armas, ferro, madeira etc. Os ibéricos exportavam para o
Magreb metais, madeira, ferragens, especiarias compradas no Oriente, corantes,
vinho, papel e principalmente tecidos de toda espécie. Importavam lãs, peles,
cera – da qual veio o nome atual da cidade de Bougie (vela, em francês) –, tâma-
ras, tapetes e outros artigos de artesanato. O reino de Arao exigia frequente-
mente desconto sobre os direitos alfandegários pagos por seus comerciantes e, por
diversos meios, esforçava -se por manter o controle do eixo comercial Barcelona-
-Maiorca -Tlemcen -Sidjilmāsa, uma das vias que levavam ao ouro do Sudão
19
.
Em posição de inferioridade quanto aos intercâmbios materiais, o Magreb
exportava em larga escala aquisições de seu patrimônio cultural, que não mais
sabia apreciar devidamente nem fazer frutificar. O Ocidente descobria com
entusiasmo o inestimável valor dessa cultura, estimulando seu “renascimento
em todos os campos.
Os intercâmbios culturais
O Magreb teve papel duplo: serviu como intermediário, lugar de passagem
obrigatória de todos os valores da civilização árabo -muçulmana introduzidos no
Ocidente, e exportou seus próprios bens culturais. Aqui, vamos nos limitar ao
segundo aspecto da questão, geralmente pouco enfatizado.
Ambiente e motivações
A transferência de valores culturais do Ocidente muçulmano para o Ocidente
criso foi favorecida, principalmente nos séculos XII e XIII, pelo ambiente de
grande tolerância que eno prevalecia e que começou a se deteriorar seriamente
culminando com o advento da Inquisição e com a expulsão dos mouros em
1609 após a queda de Granada (1492). Havia dois motivos para essa tolerância:
simpatia desinteressada e estratégia espiritual. Por gosto pessoal, Rogério II das
18 Sobre o comércio com a Europa e a hegemonia marítima dos cristãos, ver capítulo 26 deste volume.
19 Um quadro geral da atividade aragonesa no Magreb pode ser encontrado em DUFOURCQ, 1966, p. 644.
79
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
Duas Sicílias (1105 -1154) cercou -se de literatos árabes. A tradição manteve -se
e ampliou -se no reinado de Frederico II (1197 -1250), o qual tinha profunda
admiração pelo pensamento muçulmano. Na Espanha, Pedro I de Aragão (1094-
-1104) assinava suas cartas em árabe e cunhava moedas de tipo muçulmano
20
.
Mas havia também preocupações de ordem tática: os dominicanos e franciscanos,
principalmente, sonhavam com conquistas espirituais. O estudo da língua árabe
e do pensamento muçulmano com objetivos táticos o que não excluía neces-
sariamente a generosidade visando apoiar os esfoos missionários data dessa
época, e o mais desapareceu. Ramón Llull (Raimundo Lúlio - c. 1235 -1315),
uma das personalidades mais marcantes da Idade Média espanhola, é quem mais
bem simboliza esse espírito. Durante toda a sua vida procurou o “diálogo com os
muçulmanos, escreveu tratados em árabe e pregou no Marrocos, em Túnis e em
Bidya, pondo em risco sua vida e sua liberdade. Embora preferisse a via filosófica
para converter os muçulmanos, o deixou de insuflar os ventos das Cruzadas,
recorrendo ao papa Celestino V em 1294, a Bonifácio VIII em 1295, a Filipe, o
Belo, em 1298 e a Clemente V em 1302. No Concílio de Viena, em 1311, propôs
o somente a fundação de colégios para o estudo do árabe, mas também a cria-
ção de uma ordem militar para combater o Islã. Nesta dupla “cruzada”, o estudo
do árabe era apenas uma arma entre outras. O homem que, talvez mais do que
nenhum outro, havia contribuído para forjá -la não sabia que a posteridade o
veria como um “sufi cristão”, devido à sua permeabilidade às influências de Ibn
al -Arab (1165 -1240), o maior místico do Islã espanhol. Desse modo, simpa-
tia desinteressada e preocupações táticas convergiam de maneira a favorecer
o impacto da civilizão árabo -muçulmana sobre um Ocidente cristão que
vibra com toda a energia fretica, o entusiasmo e o apetite da adolescência.
Os “studia arabica”
As contribuições dessa civilização transitaram por duas rotas, uma prove-
niente da Sicília e da Itália, e outra, muito mais importante, oriunda da Espanha
e da França meridional. As Cruzadas tiveram apenas papel secundário, contra-
riando uma opinião outrora comum.
A primeira escola a difundir a ciência árabe na Itália foi, ao que parece, a
de Salerno. Atribui -se sua fundação a Constantino, o Africano, médico e nego-
ciante nascido em Túnis por volta de 1015. Muçulmano convertido ao cristia-
nismo, no final de sua vida e (1087) foi abade do mosteiro de Monte Cassino.
20 Ibid., p. 23.
80
África do século  ao século 
Mas a influência árabe mais frutífera exerceu -se sobretudo a partir de Palermo,
graças ao apoio de Frederico II, de seu filho natural Manfredo (1258 -1266) e
dos primeiros angevinos. Na Sicília, foi o período áureo das traduções do árabe
para o latim, em que se destacaram o astrólogo Teodoro, além de João e Moisés
de Palermo, e principalmente o inglês Michael Scot (morto em 1235), todos eles
da corte de Frederico II. Deve -se acrescentar o nome do judeu Faradj ben Sālim
de Agrigento, que pôs sua escrita a serviço de Carlos de Anjou (1264 -1282).
Na Espanha, o movimento iniciado no século X na Catalunha, no famoso
mosteiro de Ripoli – onde estudou o monge Gerberto, que fez parte da embai-
xada de Córdoba (971) e que se tornaria o papa Silvestre II (999-1003) – ainda
não é bem conhecido. Alguns detalhes daquele movimento só se tornam dispo-
níveis a partir do primeiro quartel do século XII.
Barcelona foi a primeira a se destacar na área da tradução; seus tradutores
mais notáveis foram Platão de Tívoli e o judeu andaluz Abraham Bar -Hiyyā
(morto por volta de 1136), mais conhecido pelo nome de Savasorda (Sāhib
al -Shurta). Ambos colaboraram na tradução de várias obras de astrologia e de
astronomia, entre as quais as preciosas tábuas do oriental al -Battān (Albatênio,
morto em 929).
Em seguida, foi a cidade de Toledo que passou para o primeiro plano, eclip-
sando com seu brilho todos os outros centros. Atraiu sábios de toda a Europa:
da Inglaterra, da França, da Alemanha, da Itália e da Dalmácia. Na fecundação
da cultura do Ocidente cristão pela cultura árabo -muçulmana, Toledo teve
o mesmo papel que a Bagdá do culo IX em relação à herança helênica, e
Afonso X, o bio (1252 -1284), foi a réplica exata de al -Mamūn (813 -833),
que sonhava com Aristóteles. Podemos distinguir dois períodos principais nas
atividades da escola de Toledo. O arcebispo Raimundo (1125 -1152) inspirou
o primeiro, e Rodrigo Jiménez de Rada (1170 -1247), também arcebispo, o
segundo. A princípio, judeus e moçárabes serviram de guias e introdutores
à língua árabe. As traduções passavam frequentemente por várias etapas; o
árabe era primeiramente transposto para o hebraico e para o castelhano antes
de chegar à forma latina definitiva; daí surgirem erros, inevitáveis. Entre os
tradutores do primeiro período, devemos mencionar o arquidiácono de Segó-
via, Dominicus Gondisalvius (morto em 1181), um dos principais filósofos da
Idade Média espanhola, profundamente influenciado pelo peripatetismo árabe.
Seu colaborador foi João de Espanha Abendaud (morto em 1166), judeu con-
vertido ao cristianismo. Mas a figura mais importante foi indubitavelmente o
lombardo Gerardo de Cremona (1114 -1187). Aprendeu o árabe com o moçá-
rabe Galippus (Ghālib) e obteve rapidamente o domínio da língua que pôs a
81
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
serviço de seu infatigável zelo de tradutor. Devem -se a ele não menos do que 70
traduções. Mencionemos também dois ingleses – Adelardo de Bath e Roberto
de Ketton; o último fez para Pedro, o Venerável (1092 -1156), reformador de
Cluny, a primeira tradão latina do Corão, terminada em 1143. Devemos
acrescentar ainda o nome de Hermann da Dalmácia. O segundo período tole-
dano foi dominado por dois tradutores: Michael Scot e Hermann, o Alemão.
A imensa fama de Toledo tornou -se contagiante. Multiplicaram -se os studia
arabica. Em 1236, os frades missionários, reunidos em Paris, recomendaram que
se estudasse o árabe em todo lugar em que os cristãos tivessem contato com os
muçulmanos. Em 1250, Ibn Rashk de Murcia nos descreve com admiração
as atividades do convento dessa cidade ainda muçulmana –, onde encontrou
monges, com certeza dominicanos, que conheciam perfeitamente o árabe e o
Corão. O studium arabicum de Túnis, fundado por dominicanos sob a reco-
mendação do rei de Aragão, Jaime I, o Conquistador (1213 -1276), estava em
plena atividade na mesma época e acolhia, com outros sete frades missionários,
Ramón Martí (1230 -1286), o autor de Pugio Fidei adversus Mauros et Judaeos
(O punhal da fé dirigido contra os muçulmanos e judeus). Ramón Martí tinha
perfeito conhecimento da língua árabe, como prova o dicionário árabo -latino
que lhe é atribuído
21
. Em 1256, uma escola funcionava também em Sevilha,
fundada por iniciativa de Afonso X e dirigida por Egídio de Tebaldis e Pedro
de Reggio. A última celebridade desta escola foi Arnaldo de Vilanova (morto
em 1312). Em 1269, Afonso X confiou a direção da escola de Murcia – cidade
conquistada em 1266 a um filósofo muçulmano da região, al -Rakūt, antes
de transferi -la, em 1280, para Sevilha. Em 1276, o franciscano Raimundo
Lúlio fundou em Maiorca o famoso colégio Miramar, onde 13 frades menores
estudaram árabe antes de irem evangelizar as terras do Islã. Enfim, a partir da
sugestão do Concílio de Viena (1311), studia arabica foram abertos em Oxford,
Paris, Salamanca, Roma e Bolonha, onde, no século XVI, ainda lecionava Leão,
o Africano (c. 1489 - c. 1550).
No sul da França destacou -se a atividade de uma família judia originária de
Granada, a dos Ibn Tibbon. Devem -se sobretudo a Yudah Ibn Tibbon, fale-
cido em Lunel em 1190, e a seu filho Samuel, falecido em Marselha em 1232,
numerosas traduções do árabe para o hebraico. Seus netos mantiveram ainda
por certo tempo a tradição da família.
21 Ed. Sciaparelli, 1872.
82
África do século  ao século 
As traduções de obras andaluzo ‑magrebinas e seu impacto
A losoa
Embora a corrente de transmissão direta nunca tenha sido interrompida,
é certo que a Idade dia cris de descobrir, apreciar e compreender
realmente a herança do pensamento antigo através das obras dos filósofos
árabo -muçulmanos, entre os quais os andaluzes e magrebinos ocupam lugar
de honra. Não possuímos nenhuma versão latina da obra de Ibn Bādjdja: só
chegaram a nossos dias versões hebraicas, como a do Tadbīr al -Mutawahhid
(O regime do solitário), feita por Moisés de Narbona em meados do século
XIV. O mesmo ocorreu com a obra de Ibn Tufayl: seu Hayy ben Yakzān, tra-
duzido para o hebraico em data indeterminada, foi comentado por Moisés de
Narbona, na mesma língua, em 1349. A primeira tradução latina de que temos
conhecimento, realizada por Pococke com o título de Philosophus autodidactus,
data de 1671. É certo, no entanto, que Ibn Bādjdja e Abū Bakr (Ibn Tufayl),
chamados respectivamente de Avempace e Abubacer, não eram desconhecidos
da Idade Média latina.
Mas o grande mestre foi incontestavelmente Ibn Rushd (Averróis). Muitas de
suas obras foram traduzidas a ponto de terem chegado a nós, em grande parte,
exclusivamente em versão latina ou hebraica e discutidas com paixão. Da multio
de seus tradutores emerge a figura do inglês Michael Scot, que pode ser considerado
pioneiro na difusão do averroísmo. A seu lado destacou -se Hermann, o Alemão
(morto em 1272). Os dois integravam a corte de Frederico II e haviam trabalhado
em Toledo. Assinalemos tamm que os Ibn Tibbon da Provença se esforçaram para
difundir o averroísmo entre os judeus. O sucesso das obras de Averróis foi o grande
que várias veres de seus Comentários foram elaboradas já no século XIII.
Averis, adversário de al -Ghazzāl e autor do Tahāfut (traduzido com o título
de Destructio destructionis), aparecia naturalmente como o campo do racionalismo
e do antidogmatismo aos olhos dos literatos da Idade dia latina. Destarte, o
Ocidente cristão dividiu -se em dois campos: os averrstas e os antiaverrstas. O
defensor mais fervoroso de Averróis na Universidade de Paris foi Sigério de Bra-
bante. No entanto as teses consideradas averrstas as quais, entre outras coisas,
afirmavam a eternidade do mundo e negavam a imortalidade da alma individual
– não podiam deixar de mobilizar os defensores da Igreja. Alberto Magno (1206-
-1280), Santo Tomás de Aquino (1225 -1274) e Raimundo Lúlio dirigiram ofensiva
particularmente vigorosa contra elas. O averrsmo continuava, no entanto, a seduzir.
Em 1277, foi preciso condená -lo oficialmente. Sigério, preso e excomungado, teve
fim trágico, por volta de 1281. Que as condenões fossem devidas a um erro de
83
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
interpretação, pouco importa. Jules Romains mostrou, em Donogoo, como o erro
pode ser rtil. Averróis abalou violentamente os esritos; fez pensar, quer por
adesão, quer por reão. Um sinal seguro de seu sucesso e das paixões que desper-
tou é o fato de se ter tornado um mbolo de descrença até para os pintores. Em
Pisa, Andrea Orcagna oferece -lhe um lugar de destaque, ao lado de Maomé e do
Anticristo, em seu Inferno, que orna o Campo -Santo, e, na Igreja de Santa Catarina,
numa pintura de Francesco Traini, executada por volta de 1340, pode -se ver o filó-
sofo de cabeça para baixo aoss de Santo Tomás. Ora, por uma dessas ironias do
destino que revertem as situões, Averróis teve seu maior triunfo justamente sobre
o seu suposto vencedor. Santo Tos é ao mesmo tempo o mais sério adverrio da
doutrina averrsta e, pode -se dizer sem paradoxo, o primeiro discípulo do grande
comentarista”, escreve Ernest Renan
22
. M. Asín Palacios e José María Casciaro
compartilham esse ponto de vista ao apontarem o “averrsmo teológico de Santo
Tos, em cuja obra se encontram nada menos do que 503 citões do grande
filósofo. Expurgado, ou mais bem compreendido, Averis conheceu triunfo ainda
maior no século XIV. João Baconthorpe (morto em 1346), provincial dos carmelitas
da Inglaterra, foi considerado o príncipe dos averroístas de seu tempo”. E, em 1473,
quando reorganizava o ensino da filosofia, Luís XI recomendou a doutrina de Aris-
teles e seu comentarista Averróis, reconhecida, muito tempo, como befica
e salutar”
23
. Mas foi na Universidade de Pádua onde estudou Cesare Cremonini
(morto em 1631), último dos grandes discípulos de Averróis que o averrsmo
exerceu seus efeitos mais brilhantes e duradouros; sua tradição veio a se extinguir
por completo no século XVIII.
As ciências
Na Idade Média, os filósofos com frequência exerciam a medicina. Averróis
também legou ao Ocidente cristão uma obra médica; Kitāb al -Kulliyāt (Livro
das generalidades) foi traduzido em Pádua em 1255 pelo judeu Bonacossa, com
o título de Colliget. As melhores obras dos representantes da célebre escola de
medicina de Kayrawān Ishāk ben ‘Imrān (morto em 893), Ishāk ben Sulaymān
al -Isrā’l (morto em 932) e Ibn al -Djazzār (morto em 1004) haviam sido
traduzidas no século XI por Constantino, o Africano, e eram usadas para o ensino
em Salerno. A obra médica de Ishāk al -Isrā’l permaneceu em alta conta até o
fim do século XVI. Foi publicada em Lião, em 1575, com o título de Omnia opera
22 RENAN, 1866, p. 236.
23 Ibid., p. 317.
84
África do século  ao século 
Ysaac. O Zād al -Musāfir (Viático do viajante), de Ibn al -Djazzār, teve o mesmo
sucesso. Além da versão latina, existem uma em grego e outra em hebraico. O
Kitāb al -Ta‘rīf do andaluz Abū al -Kāsim al -Zahrāw (conhecido como
Abulcasis, 9311013), parcialmente traduzido por Gerardo de Cremona
com o título de Alsaharavius ou Açaravius, gozou de grande renome durante
toda a Idade Média, principalmente no que concerne à cirurgia. Finalmente,
a versão latina do Taysīr, de Ibn Zuhr, feita por Paravicius, tornou -se conhe-
cida em Veneza em 1280. Todas essas obras, embora não tivessem alcançado o
mesmo nível de difusão ou a notoriedade do Cânon da medicina a bíblia de
todos os médicos da Idade Média –, do oriental Avicena, muito contribuíram
para o progresso dos estudos médicos no Ocidente cristão. A farmacologia
medieval deve ao andaluz Ibn Wāfid (Abenguefit, 988 -1074) uma de suas
obras sicas, também traduzida por Gerardo de Cremona com o título de
De medicamentis simplicibus.
A contribuição andaluza e magrebina à difusão das ciências matemáticas e
astromicas no Ocidente cristão não foi menos importante. Adelardo de Bath
traduziu as Tábuas astronômicas de Maslama al -Madjrt, estabelecidas por volta
do ano 1000 com base no trabalho de al -Khwārizm (morto em 849). Yehu
ben Moshe concluiu em 1254 a tradução castelhana da vasta enciclopédia astro-
lógica de Ibn Ab al -Ridjāl (morto após 1037), da Ifrkiya, o Kitāb al -Bāri
fī -ahkām al -Nudjūm. O texto castelhano serviu de base para duas versões latinas,
três hebraicas, uma portuguesa, e outras em francês e em inglês, o que indica o
enorme sucesso da obra. Deve -se a Gerardo de Cremona a tradução das Tábuas de
al -Zarkāl (Azarquiel) que, com o tulo de Tablas toledanas, se impuseram a toda
a Europa medieval – e uma vero do Islāh al -Madjistī (Reforma do Almagesto),
de Djāhir ben Aflah (Geber ou Jabir). O Tratado de astronomia (Kitāb fī ’l-Hay’a)
de al -Bitrūdj (Alpetragius) foi traduzido para o latim por Michael Scot e para o
hebraico por Moisés ben Tibbon em 1259. A partir dessa versão, Kalonimos ben
David fez, em 1526, nova tradução latina, impressa em Veneza em 1531, sinal do
contínuo sucesso da obra. Destaquemos, enfim, que o gênio matemático Leonardo
de Pisa ou Fibonacci (nascido por volta de 1175, passou muito tempo em Bidjāya,
onde o pai era notário) muito deve, principalmente no domínio da álgebra, à
influência árabe, cujo sistema numérico ele introduziu na Europa.
Letras, língua e arte
O problema da influência da literatura de expressão árabe na Europa medieval
foi objeto de debates, com frequência acalorados. A poesia dos trovadores, que
85
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
floresceu nos séculos XII e XIII, tão original por sua forma estrófica ritmada
e rimada, por seu clima psicológico e por seus temas que versam sobre o amor
cortês, é de origem árabe? Não, responde Jean Anglade, os trovadores criaram
tudo, forma e conteúdo”. Sim, estimam Juan Ribera e principalmente Ramón
Mendez Pidal
24
, um dos maiores especialistas da literatura de romanças. De fato,
as semelhanças entre o muwashshah ou o zadjal da Espanha muçulmana (gêne-
ros nos quais, como vimos, Ibn Kuzmān era mestre) e a poesia do Languedoc,
representada por Guilherme IX de Poitiers, são surpreendentes, ninguém
de negar. Ademais, os contatos entre cristãos e muçulmanos, principalmente
na Espanha, eram frequentes, quando não íntimos. Nessas condições, por que
não teria havido influência? Mas alguns especialistas contemporâneos, como Le
Gentil, ainda não estão convencidos a esse respeito; o debate prossegue. Outra
discussão (esta, ao que parece,encerrada, embora só depois de ter feito correr
muita tinta) desenvolveu -se em torno da Divina Comédia: em La escatología
musulmana en la Divina Comedia, análise que pode ser considerada modelo do
gênero, M. Asín Palacios apontou na obra de Dante indubitáveis influências
árabo -muçulmanas. Seu ponto de vista não foi unanimemente aceito. O elo
perdido que viria assegurar definitivamente a aceitação de sua tese foi desco-
berto numa versão do Mi‘rādj, relato popular da ascensão de Maoao céu,
que esteve em voga na Espanha muçulmana. Foi traduzido para o castelhano
para Afonso X e, a partir dessa versão, hoje perdida, o italiano Boaventura de Siena
realizou duas traduções, uma para o latim, o Liber scalae Machometi, e outra para
o francês antigo, o Livre de leschiele Mahomet. Hoje já está estabelecido aceita -o
E. Cerulli
25
, entre outros que Dante conhecia o Mi‘rādj, o que, naturalmente,
em nada diminui seu gênio; a questão que ora se apresenta é quanto à exteno
da influência muçulmana na Divina Comédia. Deve -se acrescentar que a Europa
medieval também foi influenciada pela literatura árabe de filosofia moral, comum
na Espanha e popularizada por Pedro Afonso, entre outros, em sua Disciplina cleri-
calis, escrita para Afonso I de Aragão (1104 -1134); o sucesso desta obra manteve-
-se até os tempos modernos.
Dessa longa intimidade entre o Ocidente muçulmano e o Ocidente cristão,
entre a África de língua árabe e a Europa, restam muitos vestígios nas línguas
europeias. Palavras como álgebra, logaritmo, zênite, nadir, azimute, alambique, álcool,
cifra, tarifa, xarope, açúcar e centenas de outras do vocabulário da matemática, da
24 MENÉNDEZ PIDAL, 1941.
25
CERULLI,
1949.
86
África do século  ao século 
astronomia, da medicina, da química, da botânica ou mesmo da vida cotidiana são
de origem árabe. No castelhano há cerca de 4 mil destas palavras.
As influências são também perceptíveis na arte; não apenas na arte mudéjar,
esta “flor outonal” da arquitetura hispano -mourisca, segundo G. Marçais, mas
também na arte românica. Apontado pela primeira vez nas análises de E. Mâle,
esse segundo aspecto tem sido confirmado em diversos estudos. Terminemos
sublinhando que, como demonstrou Maxime Rodinson, até a cozinha da Europa
medieval deve algo à arte culinária dos árabes.
Conclusão
Graças a estas duas pontes a Sicília e sobretudo a Espanha que ligam a
África à Europa através do Mediterrâneo, os intercâmbios materiais e culturais
entre os dois mundos, entre os dois continentes, nunca foram interrompidos.
No século XII, a chama da cultura africana, em sua forma andaluzo -magrebina,
brilhou pela última vez, antes que sua luz, cada vez mais vacilante, se extinguisse
na obscuridade da decadência. O colapso demográfico, gerador de estagnação,
de atraso ou de regressão econômica provocou a atrofia cultural. A seiva cessou
de fluir nos ramos secos e asfixiados. Foi então que a herança acumulada nos
F . Arcadas do claustro, em Soria; exemplo da inuência da estética muçulmana na arte cristã
espanhola. (Foto J. Devisse.)
87
A expansão da civilização magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental
confins setentrionais da África e na Espanha muçulmana foi recolhida por uma
Europa que, em plena expansão demográfica, descobriu, com entusiasmo, seu
inestimável valor cultural e tático. Esta herança constituiu poderoso estímulo
para a Renascença européia.
Hoje, o Magreb e a África como um todo são grandes consumidores dos
frutos da civilização ocidental, fato que não deixa de gerar conflitos, crises de
consciência, crises em cujo cerne à modernidade não raro se opõe a autentici-
dade. Quais serão as consequências?
C A P Í T U L O 4
89
A desintegração da unidade política no Magreb
A desintegração da
unidade política no Magreb
Ivan Hrbek
A queda dos Almóadas
Costuma -se considerar a derrota infligida ao exército almóada pelas forças uni-
das dos reinos cristãos da Espanha, na batalha de Las Navas de Tolosa (al -‘Ikāb),
em 1212, como o marco inicial da queda do Império Almóada. Queda que, no
entanto, não se deu abruptamente, e tampouco resultou de processo demorado.
A desintegração do império começou lentamente logo após a batalha, ganhando,
em seguida, rapidez e intensidade crescentes: o território controlado efetivamente
pelos soberanos almóadas tornava -se cada vez mais reduzido, processo este que
teve origem na parte oriental do Magreb (Ifrkiya) ao mesmo tempo que em
Al -Andalus (Espanha muçulmana), estendendo -se depois ao Magreb central
(Tlemcen) e ao Marrocos, e chegando finalmente ao sul desse país último reduto
do Estado almóada –, que foi conquistado pelos Marínidas em 1269.
Quando estudamos as causas profundas da decadência dos Almóadas, nota-
mos que elas podem ser várias, algumas estreitamente articuladas, outras, à
primeira vista, sem nenhuma relação entre si.
Embora numerosos soberanos almóadas tivessem tentado melhorar as comuni-
cações no interior de seus Estados mediante a construção de estradas, as dimensões
mesmas de seu império que englobava Al -Andalus e todo o Magreb tornavam
extremamente difícil o funcionamento de uma administração central, e a situação
geográfica excêntrica da capital, Marrakech, só fazia agravar esse problema.
90
África do século  ao século 
Com os combates que se via obrigado a travar em suas duas extremidades,
Ifrkiya e Espanha, o império esgotava seus recursos. Precisava a um só tempo
combater os inimigos externos e reprimir as numerosas revoltas e levantes dos
árabes nômades, dos Banū Ghāniya, dos diferentes grupos berberes e até dos
habitantes das cidades. Para tanto, a dinastia recrutava cada vez mais mercená-
rios de origem árabe, Zenāta e mesmo cristã, o que acabou fazendo Com que o
exército almóada perdesse seu antigo espírito de luta. A aristocracia almóada era
extremamente ciosa de seus privilégios e considerava infiéis todos os muçulmanos
o almóadas; esses, em grande número, viram -se privados do direito à terra e
progressivamente esmagados pelos impostos. Essa clivagem entre a massa dos
governados e uma pequena elite dirigente esteve na base de diversas revoltas e
levantes, quer no Magreb, quer na Andaluzia. A própria aristocracia almóada
dividia -se em duas facções hostis: de um lado, os descendentes de Abd al -Mūmin,
que usavam o título de saiyid e apoiavam sua própria cabila, os miya (ramo dos
Zenāta) e alguns árabes; de outro, os Almóadas Masmūda, que incluíam tanto os
chefes das várias linhagens quanto os xeques religiosos. A essa divisão somavam-
-se as tensões entre os xeques e a burocracia andaluza, que não compartilhava as
crenças dos Almóadas e o reconhecia outra autoridade além da do califa.
A sucessão de califas sem forças para impor -se após a morte de al -Nāsir (1199-
-1213) também contribuiu para a queda da dinastia, retalhada por conflitos
internos. As rivalidades que opunham os xeques almóadas à dinastia vieram à luz
em 1230, quando o califa de Sevilha al -Mamūn invadiu a África do Norte. À
frente de um destacamento da cavalaria cris que o rei de Castela pusera à sua
disposição, derrotou o exército do califa reinante, Yah Ibn al -Nāsir, e dos xeques
aladas, e proclamou -se amīr al -muminīn. Até a morte, em 1232, manteve vio-
lenta campanha contra os xeques religiosos, chegando a renegar publicamente a
doutrina almóada, o que implicava privar de legitimidade religiosa sua própria
dinastia. Embora seu filho e sucessor, al -Rāshid (1232–1242), se empenhasse em
r termo a esses conflitos intestinos, restaurando a doutrina do mahdī e chegando
a um acordo com os xeques, era tarde demais: o imrio, incapaz de recuperar -se da
anarquia, desintegrava -se. A dinastia ainda manteve seu reinado no Marrocos, mas
sobre um território que se foi reduzindo incessantemente a 1269, data em que o
último califa alada, al -Wāthik (1266–1269) foi deposto pelos Marínidas.
A tripartição do Magreb
A queda dos Almóadas devolveu o Magreb à situação que precedera a asceno
dos Fatímidas (ver volume 3, capítulo 10); ts Estados independentes não raro,
91
A desintegração da unidade política no Magreb
adversários formaram -se sobre os restos do império, internamente minados pelas
querelas dinásticas e pelas revoltas e, no plano externo, cada vez mais ameaçados
pelos ataques do inimigo cristão. Esses três territórios terminariam por dar ori-
gem aos Estados que tomaram os nomes de Tunísia, Argélia e Marrocos e que, a
despeito das várias características comuns, evoluíram de maneiras diferentes.
Como o capítulo seguinte (capítulo 5) traz uma descrição pormenorizada da
sociedade do Magreb pós -almóada, limitar -nos -emos, aqui, a traçar um resumo
com as características gerais das estruturas políticas e sociais daqueles Estados.
Cada um dos três territórios foi governado por uma dinastia de origem berbere,
porém profundamente arabizada, que contava com o apoio das cabilas makhzen
1
e que, na prática, controlava apenas as cidades e os grupos sedentarizados das
planícies. As reges montanhosas e as vastas estepes constitam bastiões
dos montanheses berberes ou de nômades árabes sempre prontos a atacar as
regiões periféricas do território makhzen. A obediência aos decretos do sobe-
rano media - se segundo o poder efetivo deste e sua capacidade de exercê -lo.
Os sultões haféssidas e marínidas disputaram seguidas vezes o tulo de califa,
único meio de conseguir de seus turbulentos súditos o reconhecimento de sua
autoridade espiritual. Suas pretensões, porém, jamais alcançaram eco além das
fronteiras de seus próprios territórios. Excetuando -se o efêmero reconheci-
mento do soberano haféssida al -Mustansir, em meados do século XIII, pelos
xarifes de Meca e pelos Mamelucos do Egito, esses “califas” ocidentais foram
incapazes de rivalizar com o califado abássida do Cairo no que diz respeito ao
reconhecimento da função de califa pelo conjunto do mundo islâmico.
Durante o período pós -almóada, os três Estados também tiveram que lutar
contra a pressão cada vez mais forte que os Estados cristãos da península Ibérica,
da Itália, da Sicília e da França exerciam sobre todo o Magreb. Tal pressão – a
um tempo militar, política e econômica era consequência das modificações
ocorridas no equilíbrio de forças entre a Europa ocidental e os países islâmicos
do Mediterrâneo. Os três Estados do Magreb tentaram encontrar os meios de
enfrentar essa agressividade, nova, do mundo cristão e, embora tivessem sofrido
várias perdas menores e não conseguissem evitar que Granada, último reduto
da presença muçulmana na Espanha, caísse em poder dos cristãos, de modo
geral foram capazes de preservar seu patrimônio. Podemos indagar, porém, se
o Magreb em seu conjunto ou pelo menos em suas regiões orientais não
teria conhecido destino idêntico ao de Granada, no século XVI, não fosse
1 Makhzen signicava originalmente “tesouro”; com o passar do tempo, veio a designar o sistema ocial
de governo vigente no Marrocos (Encyclopaedia of lslam, 1. ed., v. 3, p. 166 -71).
92
África do século  ao século 
F . Mapa do desmembramento do Império Almóada. (I.Hrbek.)
93
A desintegração da unidade política no Magreb
o surgimento de uma nova potência islâmica, o Império Otomano, que nesse
período decisivo restabeleceu o equilíbrio de forças na bacia do Mediterrâneo.
Não se deve esquecer que, nessa época, os Estados ibéricos Portugal e Espanha
envolviam -se cada vez mais em empresas ultramarinas, as quais concentravam
quase todos os seus interesses e a maior parte dos seus recursos humanos.
Três dinastias sucederam aos Almóadas, repartindo entre si o Magreb e
conservando -se no poder durante a maior parte do período que ora nos interessa:
a dos Haféssidas (1228–1574), que teve Túnis por capital, a dos Zaiânidas (‘Abd
al -Wādid - 1235–1554), que governou em Tlemcen (Tilimsan), e a dos Marínidas
(c. 1230–1472), instalada no Marrocos. Começaremos por situar os principais
acontecimentos que marcaram a história dessas três dinastias, para depois exami-
nar os fatos essenciais da história da África setentrional como um todo.
Os Haféssidas
O ancestral epônimo da dinastia foi o célebre companheiro do mahdī Ibn
Tūmart, Abū Hafs ‘Umar al -Hintāt, xeque dos berberes Hintāta, que em muito
contribuiu para o esplendor do Império Almóada. Seu filho Abd al -Wahd Ibn
Ab Hafs governou a Ifrkiya de 1207 a 1221 com poderes quase autônomos
de fato, lançando dessa forma as bases para a futura independência da região.
Em 1228, Abū Zakariyyā’, filho de Abd al -Wahd que se distinguira na luta
contra os Banū Ghāniya (últimos representantes dos Almorávidas na Ifrkiya),
assumiu o governo. Sob o pretexto de defender o verdadeiro ensinamento e
espírito do movimento almóada eram os tempos em que tal doutrina estava
repudiada pelo próprio califa almóada –, Abū Zakariyyā’ deixou de citar o nome
do soberano no sermão (khutba) do meio -dia de sexta -feira e assumiu o título
de emir independente (em 1229). Sete anos mais tarde, afirmou sua soberania
em caráter definitivo ao incluir o próprio nome na khutba.
Embora tivesse rompido com a tutela política dos califas almóadas, Abū
Zakariyyā’ não renegou a doutrina almóada: ao contrário, justificou sua própria
ascensão ao poder como sendo um meio de fazer reviver a autêntica ortodoxia
almóada, e nisso teve certo êxito, pois vários centros do Marrocos e da Andaluzia
reconheceram -no como califa legítimo. Em 1233, pôs termo, definitivamente,
à rebelião dos Banū Ghāniya na região meridional da Ifrkiya. Suas campa-
nhas a oeste saldaram -se por vitórias: sucessivamente conquistou Constan-
tine, Bidjāya e Argel; a leste, submeteu toda a costa da Tripolitânia. Assim,
reuniu os elementos que iriam constituir o território haféssida. O próprio
fundador da Dinastia Zaiânida (‘Abd al -Wādid), Yaghmuran Ibn Zayyan,
94
África do século  ao século 
submeteu -se à sua autoridade, e tanto os Marínidas quanto os Násridas de Gra-
nada reconheceram - no como suserano.
O estabelecimento da paz e da segurança permitiu rápido crescimento eco-
nômico, e a capital Túnis voltou a ser frequentada por mercadores estrangeiros,
provenientes da Provença, da Catalunha e das repúblicas italianas. As relações
com a Sicília tornaram -se amistosas, mas em 1239 o soberano haféssida pas-
sou a pagar tributo a Frederico II pelo direito ao comércio marítimo e à livre
importação do trigo da ilha.
Quando Abū Zakariyyā’ morreu, em 1249, deixou a seu filho e sucessor,
Abū Abd Allāh Muhammad al -Mustansir (1249–1277), um Estado próspero
e seguro, de incontestada hegemonia na África setentrional. Conspirações e
revoltas jamais ameaçaram seriamente a autoridade de al -Mustansir, ainda que
a abalassem ocasionalmente as rivalidades entre os xeques almóadas e os refu-
giados e imigrantes andaluzes, os quais constituíam elite política de considerável
influência. Em 1253, al -Mustansir tomou o título de amīr al -mu’minīn, sendo
reconhecido como califa pelos xarifes de Meca em 1259 e, um ano mais tarde,
pelos Mamelucos do Egito. Mas durou pouco esse seu reconhecimento pelo
Oriente, que, aliás, se devia apenas a um concurso de circunstâncias excepcionais:
o último califa abássida de Bagdá fora morto em 1258 pelos mongóis, deixando
vago o califado. Em 1261, o sultão mameluco Baybars instalou no Cairo um
califa abássida fantoche, cuja linhagem seria a única reconhecida por todo o
Oriente muçulmano até 1517. Apesar disso, o efêmero califado de al -Mustansir
comprova o grande prestígio dos Haféssidas no mundo islâmico, em que seu
Estado era tido como um dos mais poderosos e estáveis.
Alguns anos mais tarde, al -Mustansir teve a oportunidade de aumentar sua
reputão no mundo muçulmano, graças aos efeitos da Cruzada conduzida
contra Túnis por Luís IX, rei de França, em 1270. Não são muito claras as
razões para essa Cruzada tardia, e existem numerosas interpretações a respeito
2
.
Aventou -se a hipótese de que os franceses teriam sido atraídos pela prosperidade
da Ifrkiya, ou ainda, conforme relata Ibn Khaldūn, de que comerciantes da
Provença, diante da dificuldade de obterem o retorno do dinheiro que haviam
emprestado aos tunisianos, teriam insistido para que se fizesse a expedição. Por
sua vez, São Luís (Luís IX) acreditava que al -Mustansir queria se converter ao
cristianismo; ademais, tencionava usar a Ifrkiya como base para futura cam-
panha contra o Egito. A expedição foi mal preparada até mesmo Carlos de
2 Ver MOLLAT, 1972, p. 289·303.
95
A desintegração da unidade política no Magreb
Anjou, rei da Sicília, irmão de São Luís, só foi informado da empresa no último
instante. Os cruzados desembarcaram em Cartago, mas, passadas poucas sema-
nas, uma epidemia devastou seu campo, matando o próprio rei. Carlos de Anjou
apressou -se em concluir a paz: a Cruzada era -lhe inteiramente indiferente, e,
por outro lado, tinha interesse em restabelecer as boas relações comerciais com
o Estado haféssida. Al -Mustansir, que desde o começo das hostilidades pro-
clamara a djihād (guerra santa) e reunira destacamentos compostos de homens
de diversas cidades e de nômades árabes, estava tão disposto quanto Carlos de
Anjou a encerrar rapidamente essa infeliz história, ainda mais que seus aliados
nômades começavam a voltar para o sul, buscando as pastagens de inverno.
O tratado de paz foi um compromisso, e o califa haféssida aceitou continuar
pagando tributo à Sicília, assim como os impostos sobre as importações de trigo;
concordou igualmente em expulsar da Ifrkiya os últimos representantes da
Dinastia dos Hohenstaufen, que se haviam refugiado em terra africana depois
de vencidos por Carlos de Anjou. Conclusão bastante inesperada a dessa última
Cruzada: as relações comerciais tornaram -se ainda mais intensas do que antes.
Sob os reinados de Abū Zakariyyā’ e de al -Mustansir, a Dinastia Haféssida
teve seu primeiro apogeu: reconheceu -se sua hegemonia em todo o Magreb,
entendendo -se sua autoridade até a Espanha muçulmana, a oeste, e até o Hidjāz
(Hedjaz), a leste; os Estados europeus do Mediterrâneo ocidental não puderam
ignorar seu poderio, e os governantes espanhóis e italianos empenharam -se em
firmar alianças com o império.
Após a morte de al -Mustansir a situação foi se deteriorando, e durante mais
de um século o Império Haféssida conheceu lutas intestinas periódicas entre os
membros da dinastia reinante, sendo também abalado pelas revoltas dos árabes e
pela dissidência de cidades e mesmo de regiões inteiras. Bidjāya e Constantine,
cidades onde essa dissidência manifestou -se com maior intensidade, em várias
ocasiões constituíram principados independentes governados por membros da
dinastia que se opunham ao poder central. Essas tendências centrífugas se fizeram
sentir com maior vigor nas épocas em que o poder central se revelava enfraque-
cido: chegou a haver ocasiões em que três ou mais governantes haféssidas de
diferentes cidades reivindicavam simultaneamente o trono de Túnis. Tal estado
de coisas forçosamente reverteria o movimento do pêndulo do poder em favor
do Magreb ocidental, ou seja, dos Marínidas do Marrocos, que, em duas ocasiões,
em 1348 e 1357, lograram ocupar com suas tropas parte considerável do território
haféssida, inclusive a própria capital, Túnis. Mas essas duas ocupações foram de
curta duração, tendo os nômades árabes depressa expulsado os invasores. Pelo
fim do reinado de Abū Ishāk (1350 -1369), Bidjāya, Constantine e Túnis eram
96
África do século  ao século 
governadas por três soberanos haféssidas independentes entre si, enquanto o sul,
o sudeste e parte do litoral (Sāhil) se mantinham independentes de Túnis.
O renascimento do poderio hassida teve icio com Abū l-‘Abs (1370-1394)
e prosseguiu sob os longos reinados de seus sucessores Abū Fāris (1394 -1434) e
‘Uthmān (1435 -1488). Abū l-‘Abs conseguiu reunificar e reorganizar o país;
anulou as concessões de terras, refreou as tendências locais à insubordinação
e restaurou o prestígio da dinastia. Dados os conflitos internos que por essa
data grassavam em Tlemcen e a hostilidade então declarada entre Zaiânidas
e Marínidas, nada tinha a recear quanto a seu flanco ocidental. Seu filho Abū
Fāris completou a obra de reunificão por ele iniciada e destituiu as dinastias
locais de Bidjāya, Constantine, Trípoli, Gafsa, Nafzawa e Biskra; para essas
cidades nomeou governadores que escolheu dentre seus pprios escravos
libertos. Posteriormente, estendeu sua autoridade aos Zaiânidas de Tlemcen e
por diversas vezes interveio no Marrocos e até na Andaluzia. O sucesso de Abū
Fāris devia -se, em grande parte, ao fato de praticar uma potica de equilíbrio entre
os principais grupos que compunham a população de seu reino – almóadas, árabes
e andaluzes. Embora fosse mulmano fervoroso, mostrou -se tolerante para com os
judeus; a popularidade de que desfrutou vinha essencialmente de sua preocupação
em ser justo, dos favores com que brindou as autoridades religiosas tanto ulemás
(‘ulamā) quanto xarifes da supressão dos impostos ilegais, das construções que man-
dou edificar e, finalmente, da pompa com que fazia celebrar as festas muçulmanas.
Embora os primeiros anos do reinado de Uthmān, seu neto, tenham sido
perturbados pela luta que o opôs a certos membros rebeldes de sua família, em
linhas gerais o longo período em que governou foi pacífico; o sultão mostrou -se
capaz de manter a integridade de seu reino. Num segundo momento, o governo
de ‘Uthmān foi abalado pela fome e por epidemias de peste, assim como pelo
reinício da agitação árabe no sul. Ainda assim, porém, conseguiu, não sem difi-
culdades, manter sua influência sobre Tlemcen, e foi reconhecido pelo fundador
da nova dinastia dos Watássidas (Banū Wattās) de Fés. Não se conhecem bem os
últimos anos do reinado de ‘Uthmān, porém, ao que parece, ele próprio semeou
os germes de problemas futuros ao retomar a prática de nomear membros de
sua família para o posto de governador provincial. Se sua forte personalidade se
revelara capaz de deter a propensão natural desses governadores à independên-
cia, seus sucessores não conseguiram conter o fluxo da anarquia, e o segundo
período de hegemonia haféssida esboroou -se tão abruptamente quanto o pri-
meiro. Assim, o final do século XV e o começo do XVI viram a anarquia minar
novamente a dinastia, a tal ponto que esta se tornou incapaz de fazer frente à
perigosa situação criada pela rivalidade entre a Espanha e o Império Otomano,
97
A desintegração da unidade política no Magreb
ambos desejosos de obter a hegemonia na bacia mediterrânica. Mas os esforços
desesperados dos Haféssidas para preservar sua independência num mundo em
transformação pertencem já ao período estudado no volume V.
Os Marínidas
Ibn Ab Zar‘ assim descreve os Marínidas:
“Originários do deserto, onde pertenciam aos mais nobres dentre os Zenāta, os
Marínidas vinham do Zāb [região da atual Argélia]. Não conheciam nem a prata,
nem a moeda, nem a agricultura, nem o comércio. Toda a sua riqueza se reduzia a
camelos, cavalos e escravos”
3
.
Os Marínidas parecem fornecer o modelo ideal para a teoria de Ibn Khaldūn
sobre a ascensão das dinastias nômades e sua asabiyya, ou “espírito de clã”, na
qual o historiador identificava a força que fez os nômades saírem do deserto
para conquistar territórios e fundar Estados. Após a batalha de Las Navas de
Tolosa (1212), os Banū Marn, que viviam nas estepes pré -saarianas situadas
entre Tāflālet e Figuig, iniciaram a invasão do nordeste do Marrocos e, valendo-
- se do enfraquecimento do governo almóada, impuseram sua hegemonia aos
agricultores locais, chegando a obrigar até cidades como Tāzā, Fés e al -Kasr
al -Kabr a lhes pagar tributo. Só os impelia, a princípio, o desejo natural de
todos os nômades de enriquecer às custas dos povos sedentários, mas seus chefes
vieram gradualmente a nutrir ambições políticas.
Entre 1240, data em que os Marínidas foram derrotados pelo exército almóada
no cerco de Miknāsa (Meknes), e 1269, quando conquistaram Marrakech, a luta
desenvolveu -se com sucesso intermitente. A lentidão para se chegar à conquista
sem dúvida se explica pela falta de motivação religiosa no conflito, que foi
essa motivação o que contribuiu para que as conquistas dos Almorávidas e dos
Almóadas se processassem num curto espaço de tempo. Contudo o primeiro
ímpeto marínida, em 1248, foi coroado de sucesso; nesse ano, seu chefe Abū Yah
(1244 -1258) tomou Fés, Tāzā, Miknāsa, Sala e Rabat. Sob o reinado de Abū Yūsuf
Ya‘kūb (1258 -1286), que pode ser considerado o verdadeiro fundador do sultanato
marínida, os últimos territórios ainda sob dominação almóada (o Alto Atlas, o Sūs
e a região de Marrakech) foram sendo integrados ao novo reino, e a conquista de
Marrakech, em 1269, pôs termo ao poder dos Almóadas.
3 IBN ABĪ ZAR‘, trad. francesa, 1860, p. 401.
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África do século  ao século 
F . A madraça Bou Inania, em Fés. Detalhe de uma janela do pátio; século XIV. (Foto Unesco/
Dominique Roger.)
99
A desintegração da unidade política no Magreb
F . A madraça Bou Inania, em Fés. Detalhe de uma meia -porta; século XIV. (Foto Unesco/
Dominique Roger.)
100
África do século  ao século 
F . A mesquita de Karawiyyn, em Fés. Restauração da época almorávida; no pátio, a entrada central
da sala de oração. (Clichê J. -L. Arbey.)
101
A desintegração da unidade política no Magreb
Em lugar de Marrakech, a nova dinastia escolheu Fés como capital; lá Abū
Yūsuf fundou uma cidade, Fās al -Djadd (Nova Fés), passando a aglomeração
mais antiga a chamar -se Fās Bāl.
Embora não pudessem reivindicar nenhuma legitimidade religiosa, os Maríni-
das logo se consideraram os herdeiros dos Almóadas, cujo império se esforçaram
por restaurar, manifestando preferência por sua componente ibérica, o que, no
entanto, não os impedia de se voltarem para o Oriente sempre que as condições se
apresentassem favoráveis. Curioso fenômeno essa atração que as colinas verdes e as
planícies rteis da Andaluzia exerciam sobre esses berberes originários do deserto,
da estepe e da montanha, fossem eles Almorávidas, Almóadas ou Marínidas!
Como a história dos Haféssidas, a dos Marínidas pode ser dividida em dois
grandes períodos, embora de menor duração: o primeiro cobre os reinados de
Abū Yūsuf Ya‘kūb e de seu filho Abū Ya‘b Yūsuf (1286–1307); o segundo
abrange os reinados de Abū l-Hasan (1331–1348) e de seu filho Abū Inān Fāris
(1349–1358). Foi apenas durante esse segundo período que os Marínidas pude-
ram aspirar, por pouquíssimo tempo, a uma autêntica hegemonia no Magreb.
A crescente influência dos árabes no Marrocos foi um dos dados marcan-
tes do reinado dos Marínidas. sob os Almóadas os nômades árabes haviam
começado a penetrar no território marroquino, modificando assim seu caráter
exclusivamente berbere. A política dos Banū Marn face aos árabes, porém, foi
ditada por considerações aritméticas: dada a fraqueza numérica dos Zenāta, que
os apoiavam, eles podiam acolher de bom grado a colaboração dos nôma-
des árabes. Os próprios Zenāta em muito se haviam assimilado aos árabes,
e o makhzen marínida compunha -se de ambos os grupos. Todos esses fatores
criavam condições favoráveis à expansão territorial dos árabes no Marrocos, em
cujas planícies eles, de preferência, se fixavam. Numerosos grupos berberes foram
arabizados. Ao contrário dos exércitos almorávidas e almóadas, onde se falava o
berbere, sob os Marínidas a língua corrente e oficial passou a ser o árabe.
Esse processo de expansão dos árabes nômades também teve aspectos nega-
tivos; enquanto o domínio dos nômades crescia incessantemente, diminuía o
dos agricultores: campos, jardins e florestas eram transformados pelos nômades
em áreas de pastagem. O desenvolvimento do nomadismo contribuiu, em
grande parte, para cristalizar a estrutura social que iria caracterizar o Mar-
rocos nos culos seguintes: a divisão da populão em nômades, citadinos e
montanheses.
No plano político, resultava dessa divisão que somente as cidades e as zonas
rurais adjacentes eram diretamente administradas pelos sultões, ao passo que as
tribos makhzen, os árabes e os Zenāta desfrutavam de ampla autonomia, e, em
102
África do século  ao século 
troca do serviço militar que prestavam, recebiam o direito de cobrar impostos
dos camponeses. Porém, como não pudessem confiar inteiramente na lealdade
e eficiência desses contingentes nômades, os governantes marínidas, da mesma
forma que seus predecessores e vizinhos, passaram a depender mais e mais de exér-
citos compostos por escravos mercenários, aquartelados nas grandes cidades. Os
berberes do Atlas, do Rif e do Djibāl permaneceram fora do sistema de governo
propriamente dito, embora às vezes reconhecessem a soberania dos sultões; no
período de declínio dos Marínidas, lançaram incursões contra os territórios do
makhzen (bilād al -makhzen) e impuseram sua dominação ou protetorado a certas
regiões, assim ampliando os limites da “terra de dissidência (bilād al -sibā).
O afluxo regular de imigrantes andaluzes, que traziam consigo estilo mais
requintado em matéria de arquitetura, artes e artesanatos diversos, assim como
na literatura, imprimiu novo vigor à vida e à civilização urbanas. A capital, Fés,
tornou -se o grande centro cultural do Marrocos, enquanto a antiga metró-
pole, Marrakech, atravessou período de decadência. O enriquecimento cultural
urbano, contudo, veio aprofundar a separação entre as cidades e as zonas
rurais, que continuavam a ter existência autônoma. Essa diferença era especial-
mente perceptível no que diz respeito às modalidades da vida religiosa. Em Fés
e em todas as grandes cidades esta se organizava em torno das universidades,
como a de al -Karawiyyn, e das numerosas madraças (instituições de estudos
islâmicos), nas quais predominava o rito ortodoxo maliquita, sob a proteção
oficial dos sultões marínidas; os moradores dos campos, por sua vez, sentiam -se
cada vez mais atraídos pelas zāwiya, pelas lojas das confrarias místicas (tarīka)
e pelos santuários dos santos locais, os marabus. Essa tendência já começara a
manifestar -se sob os Almóadas; estes haviam incorporado ao ensino oficial
a doutrina de al -Ghazzāl (morto em 1111) que integrara o misticismo
(tasawwuf ) ao islamismo ortodoxo. Sob o reinado dos Marínidas, a criação
de várias ordens sufi, que na sua maior parte constituíam ramificações da
kādirīya, marcou a institucionalização do misticismo. Tal manifestação do
islamismo popular muito contribuiu para a islamização das áreas rurais na
medida em que conseguiu penetrar as regiões mais afastadas do Marrocos,
alcançando as populações montanhesas berberes, que até então mal haviam
sido atingidas pelo Islã.
Os diferentes aspectos do desafio cristão e da correspondente reação dos
muçulmanos na África do noroeste serão examinados mais adiante; no entanto
faz -se necessário abordar desde já, ainda que de maneira sucinta, a questão das
intervenções marínidas na península Ibérica. Após ter consolidado sua autori-
dade no Marrocos, Abū Yūsuf Ya‘b atravessou o estreito de Gibraltar (1275)
103
A desintegração da unidade política no Magreb
e conseguiu vitória decisiva sobre os castelhanos nas proximidades de Ecija
(Istidja’). Até o ano de 1285 o sultão lançou três novas campanhas contra os
exércitos espanhóis, tendo a armada marínida derrotado a esquadra castelhana
em 1279; este fato teve por efeito conter momentaneamente a ameaça que os
cristãos representavam para o Marrocos e Granada. A quarta campanha resultou
num acordo segundo o qual o rei de Castela se comprometia a não intervir nos
negócios dos territórios muçulmanos na Espanha e a restituir os manuscritos
árabes de que os cristãos se haviam apossado anteriormente. Essa paz de com-
promisso (1285) foi exaltada pelos Marínidas como se fosse uma vitória.
O sultão Abū Ya‘kūb Yūsuf precisou reprimir uma série de revoltas no sul do
Marrocos, envolvendo -se com toda a energia na tentativa de conquistar Tlemcen
e liquidar a Dinastia Zaiânida. Por essas razões, estava pouco disposto a dispen-
sar suas forças intervindo do outro lado do estreito; em 1291, porém, como o rei
de Castela rompesse o acordo firmado seis anos antes, o sultão viu -se forçado
a empreender curta campanha que não trouxe nenhum resultado positivo –,
retomando, em seguida, as operações contra Tlemcen.
Depois do assassinato de Abū Yakūb, a Dinastia Marínida atravessou
período de eclipse devido, principalmente, à dissidência de um dos membros
da família reinante, que se havia apoderado de vastas regiões do sul do Mar-
rocos e assumido o controle do comércio transaariano. Só se pôs fim à rebelião
depois que Abūl -Hasan ascendeu ao trono, em 1331. Enquanto durou essa
luta intestina, os Marínidas tiveram que renunciar à sua política ofensiva, tanto
na Espanha quanto no Magreb.
Abū l -Hasan foi, sem dúvida, o maior dos sultões marínidas. Pouco após sua
ascensão ao poder, reafirmou a autoridade de Fés sobre o Marrocos meridional,
pôs fim aos conflitos internos e retomou a política de conquistas. Durante a
primeira metade do reinado, consagrou todos os esforços ao restabelecimento
da soberania muçulmana na Espanha, o que se tornava premente, pois em 1337
o rei de Castela retomou as hostilidades contra Granada. Em 1333, o exército
marínida atravessou o estreito de Gibraltar e conquistou Algeciras. Nos seis anos
que se seguiram, Al -Hasan e o emir násrida de Granada juntaram forças
na tentativa de vibrar golpe mortal contra a Espanha cristã, ameaça que levou
à aliança entre Castela e Aragão. A frota marínida, com o reforço de alguns
navios haféssidas, conseguiu garantir o controle sobre o estreito e vencer, em
1340, as forças navais castelhanas em batalha decisiva. O exército muçulmano
cercou, então, a fortaleza de Tarifa, que conseguiu resistir até a chegada das
tropas cristãs enviadas em seu socorro. Nos ferozes combates que marcaram a
batalha de Rio Salado (1340), o exército muçulmano sofreu pesada derrota, a
104
África do século  ao século 
mais grave desde Las Navas de Tolosa. Em 1344, Algeciras foi recuperada pelos
cristãos. Embora Gibraltar continuasse em poder dos Marínidas, a derrota de
Rio Salado, a que logo se seguiram novos desastres na Ifrkiya, forçou o sultão
a desistir de sua aventura espanhola. A partir de então, os Marínidas assim
como todas as demais dinastias marroquinas que os sucederam viram -se sem
condições de intervir ativamente na Espanha. O último vestígio do que fora o
glorioso império muçulmano na Espanha, o emirado de Granada, ficou, assim,
entregue a si mesmo, em sua desesperada luta pela sobrevivência.
Tanto os Zaiânidas de Tlemcen quanto os Marínidas de Fés aproveitaram-
- se da fraqueza dos Haféssidas durante a primeira metade do século XIV para
alargar seus respectivos domínios. Abū l -Hasan valeu -se da ocasião com muita
habilidade; a pretexto de socorrer os Haféssidas ameaçados pelo soberano zaiâ-
nida, invadiu o Magreb central em 1235 e, após assédio de dois anos, conquistou
Tlemcen, capital zaiânida. Essa vitória sobre seus tradicionais adversários
vitória que ele fez proclamar perante todos os monarcas do mundo muçulmano
deu a Abū ’l -Hasan a possibilidade de concretizar seu sonho de um Magreb
unificado sob sua autoridade. O território zaiânida foi ocupado pelos exércitos
marínidas, e os Haféssidas tornaram -se praticamente vassalos de Abū l -Hasan.
Mais tarde, num momento em que a Dinastia Haféssida se encontrava nova-
mente às voltas com conflitos de sucessão, o sultão marchou sobre Túnis (1347)
e anexou o Reino Haféssida. Essa conquista marcou o ponto culminante de seu
reinado e da história da Dinastia Marínida
4
.
Ao apogeu seguiu -se a queda: a política de interferência nos negócios das cabilas
árabes da Ifrkiya conduzida por Abū l -Hasan terminou por levá -las a uma revolta
generalizada; em 1348, o exército do sultão sofreu uma derrota perto de Kayrawān,
e Abū l -Hasan viu -se cercado em sua própria capital. Embora conseguisse escapar
e restabelecer, ao menos em parte, sua autoridade em Túnis, essa derrota revelava a
fragilidade da hegemonia manida sobre o Magreb. Tlemcen repeliu o jugo da
Dinastia Marínida; os príncipes hassidas de Bidjāya, Constantine e Annāba
(Bône) seguiram -lhe o exemplo. O filho de Abū l -Hasan, Abū Inān ris,
proclamou -se sultão em Fés, depondo o próprio pai; quando este tentou recon-
quistar o trono, com o que restara de seu exército, foi derrotado por Abū Inān
ris, em 1350, vendo -se obrigado a buscar refúgio nas montanhas, onde
morreu um ano mais tarde.
4 O grande historiador Ibn Khaldūn alimentou, por muito tempo, a esperança de que os Marínidas
pudessem reunicar o Magreb; assim, o insucesso de Abū l -Hasan trouxe -lhe grande decepção. Ver
IBN KHALDŪN, trad. francesa, 1852 -1856, v. 4, p. 253.
105
A desintegração da unidade política no Magreb
A ascensão e queda de Abū l -Hasan pode ser vista como uma síntese da
história heroica e trágica do Magreb sob as dinastias berberes: uma lenta acumu-
lação de forças, a que se segue um longo período de sucessos cada vez maiores, e
repentinamente, no apogeu da glória, no momento em que finalmente parecem
realizar -se os projetos mais audaciosos, o desastre e a queda que destroçam tudo
o que até então se conquistou, liberando por completo as forças da anarquia e
da discórdia. As causas do revés final de Abū l -Hasan lembram as que levaram
ao declínio dos Almóadas: excessiva dispersão dos recursos humanos e materiais
em campanhas ofensivas lançadas em duas direções, incapacidade de admitir os
particularismos e interesses locais e tribais, situação financeira precária, falta de
coesão interna até mesmo no seio da própria dinastia.
Os primeiros anos do reinado de Abū Inān Fāris transcorreram em clima
de prosperidade, tal como no governo do pai, vinte anos antes. Demonstrando
ambição igual à de Abū l -Hasan, arrogou -se o título de amīr al -muminīn, pri-
vativo dos califas, e quis reunificar o Magreb. Em 1352, reconquistou Tlemcen;
no ano seguinte, foi a vez de Bidjāya, e, em 1357, no ápice da glória, tomou
Túnis. Apesar de todos esses sucessos, sua queda foi tão rápida quanto a do pai
e deveu -se às mesmas razões basicamente a oposição dos árabes, que o obrigou
a abandonar a Ifrkiya e retornar a Fés, onde foi assassinado, pouco tempo mais
tarde, por um dos vizires. Com a morte de Abū Inān Fāris encerra -se o período
da grandeza marínida. A partir de então, a história da dinastia, até sua extinção
no século XV, foi apenas de anarquia, revolta e decadência em todos os níveis,
político, econômico e cultural. Entre 1358 e 1465, nada menos que 17 sultões
sucederam -se no trono de Fés, porém nenhum capaz de conter quer as forças de
dissensão interna, quer a ameaça externa. Os vizires viram aumentar seu poder,
sendo que, a partir de 1420, tal função se tornou privilégio dos membros do clã
Banu Wattās, da tribo dos Zenāta. Os Watássidas, cuja influência era crescente,
tiveram o poder de fazer reis durante a segunda metade do século XV até 1472,
data em que Muhammad al -Shaykh foi proclamado sultão em Fés, após seis
anos de lutas contra os xarifes que se pretendiam descendentes de Idris II (fun-
dador de Fés) e objetivavam o poder político. A ascensão desses xarifes estava
relacionada ao culto dos santos e à crença na baraka (bênção) que podia ser
concedida pelos marabus e, mais especialmente, pelos descendentes do profeta
Maomé. Por outro lado, a crescente pressão exercida sobre o Marrocos pelos
portugueses suscitou amplo descontentamento popular e a oposição à Dinastia
Marínida, que se mostrara incapaz de conter as incursões dos infiéis.
Embora os primeiros sultões watássidas, Muhammad al -Shaykh (1472–
1505) e seu filho Muhammad al -Burtukāl (1505–1524), tivessem conseguido
106
África do século  ao século 
restabelecer, em certa medida, o poder do sultanato de Fés, contendo o movi-
mento xarifino, não foram capazes de impedir a expansão portuguesa no litoral
atlântico. Ademais, a área de autoridade dos Watássidas quase não ia além de
Fés e arredores; as regiões do sul do Marrocos, praticamente independentes,
escapavam ao seu controle. Foi nessas regiões que as novas forças populares,
sob o comando de uma família xarifina, deflagraram, no início do século XVI,
guerra santa contra os fortes portugueses da zona costeira. Esses combates cons-
tituíram os primeiros passos rumo à queda definitiva da Dinastia Watássida
5
.
Os Zaiânidas (‘Abd al ‑Wādidas)
Originário de um ramo menor dos Zenāta, o governador almóada de Tilimsan
(Tlemcen), Yaghmurāsan Ibn Zayyān, proclamou -se independente da tutela do
sulo – que reinava sobre um império em plena desagregação – no ano de 1235,
tal como fizera Abū Zakariyyā em Túnis. A dinastia que fundou sobreviveu por
mais de ts séculos (até 1554). Desde o nascimento, o novo reino teve a exis-
tência ameaçada por vizinhos, mais poderosos, do oeste e do leste, e pelos árabes
mades do sul. É quase um milagre que tenha sobrevivido por tanto tempo. Tal
longevidade foi fruto de política hábil, conduzida por alguns soberanos muito
capazes, dentre os quais, os mais bem -sucedidos foram o próprio Yaghmurāsan,
fundador da dinastia (1235 -1283), e Abū Hammū II (1359–1389). Sob esses
soberanos, o reino de Tlemcen tomou por diversas vezes a ofensiva contra os
Marínidas e Haféssidas, tendo como objetivo atingir o vale do Chelif e Bidjāya,
a leste, e chegar até as cercanias de Fés, a oeste. A maior parte do tempo, porém,
os Zaiânidas foram forçados à defensiva. Tlemcen foi atacada e cercada seguidas
vezes por tropas marínidas, e, no século XV, os marroquinos ocuparam por vários
decênios a maior porção do território zaiânida.
Os períodos de fraqueza da dinastia foram todos explorados pelos árabes
nômades, que penetraram sistematicamente até o centro do reino, conseguindo
privá -lo de algumas das suas províncias periféricas. Paralelamente, a arabização
dos berberes Zenāta intensificou -se de tal modo que a Argélia ocidental veio a
perder seu caráter essencialmente berbere.
A principal debilidade do reino devia -se ao fato de serem suas bases eco-
nômicas estreitas e unilaterais: o Estado, cujo território compreendia as regiões
menos férteis do Tell, tinha uma população sedentária numericamente pequena
e uma grande maioria de pastores nômades, os quais, por sua vez, sofriam a
5 Ver o capítulo 8 do volume V.
107
A desintegração da unidade política no Magreb
pressão das incursões dos árabes originários do sul, perdendo regularmente suas
pastagens. A instabilidade assim criada contribuiu em grande medida para a
multiplicação dos conflitos tanto no interior da sociedade como no seio da pró-
pria dinastia. Não surpreende, dadas estas condições, que os Zaiânidas tenham
estado submetidos por longos períodos aos protetorados marínida, haféssida e,
ainda, ao aragonês.
Em condições políticas e econômicas tão desfavoráveis, parece inacreditá-
vel que esse Estado tenha conseguido sobreviver até a conquista otomana, em
meados do século XVI. Seu principal trunfo foi a cidade de Tlemcen, o mais
importante dos entrepostos comerciais do Magreb central, depois de Tāhart,
Graças à sua posição geográfica no encontro da privilegiada rota norte -sul,
que ia de Orã (Wahrān) aos oásis saarianos, prosseguindo até o Sudão, com o
eixo oeste -leste, que ligava Fés à Ifrkiya Tlemcen logo superou as demais
metrópoles, tornando -se o ponto central no comércio entre a Europa, o Magreb
e o Sudão ocidental. Ademais a cidade ligava -se diretamente com Sidjilmāsa,
o término setentrional das vias comerciais que atravessavam o Saara. A disputa
pelo controle do comércio transaariano explica parcialmente a luta travada entre
as duas dinastias rivais, Marínida e Zaiânida. Yaghmurāsan lbn Zayyān foi o pri-
meiro a perceber a importância da obtenção de tal controle. Após uma primeira
tentativa, infeliz, em 1257, conseguiu conquistar Sidjilmāsa em 1264, mantendo
a cidade em seu poder durante cerca de dez anos; era a primeira vez que uma
única autoridade submetia as duas principais saídas do comércio transaariano,
Tlemcen e Sidjilmāsa. Embora os Zaiânidas logo perdessem Sidjilmāsa para os
Marínidas, Tlemcen continuou atraindo a maior parte do comércio que passava
pela região.
Essa rica cidade comercial logo excitou a cobiça dos Marínidas e dos Hafés-
sidas. Os primeiros tentaram, por diversas vezes, sua conquista. Entre 1299 e
1307, Abū Ya‘kūb Yūsuf cercou Tlemcen e mandou construir uma nova cidade
à sua frente, que chamou de al -Mansūra, mais conhecida como Nova Tlemcen
(Tilimsān al -Djadd); esta rapidamente se transformou em importante centro
comercial, açambarcando a maior parte das atividades mercantis de sua rival.
Contudo, após a morte de Abū Yakūb Yūsuf, o exército manida teve que se
retirar e, uma vez libertada Tlemcen do assédio inimigo, a primeira coisa que
fizeram os Zaiânidas foi destruir a cidade adversária de al -Mansūra.
Nos 30 anos que se seguiram, Tlemcen recuperou a posição de importante
metrópole comercial, atraindo os mercadores da Europa, do Magreb e do Oriente
108
África do século  ao século 
muçulmano. Contava, então, cerca de quarenta mil habitantes
6
. Um provérbio
corrente até hoje em Tlemcen evoca as riquezas que o comércio transaariano
proporcionava à cidade: “O melhor remédio contra a pobreza é o Sudão”. O
Estado pôde igualmente adquirir maior liberdade política e desenvolver uma
política ofensiva contra os enfraquecidos Haféssidas, num momento em que
também a Dinastia Marínida tinha de enfrentar querelas internas.
Contudo a ascensão de Abū ’l -Hasan ao trono dos Marínidas pôs termo à
expansão zaiânida. Depois de assédio que durou dois anos, Tlemcen foi conquis-
tada em 1337, e os terminais do comércio transaariano passaram ao poder dos
Marínidas. Apesar disso, como já indicamos acima, os esforços de Abū l -Hasan
com vistas à reunificação do Magreb não tiveram futuro; enquanto esse sultão e
seu filho disputavam o poder, Tlemcen recobrou a independência.
Embora o Estado de Tlemcen conhecesse período de expansão e abundância
sob o reinado do competente soberano Abū Hammū Mūsã II (1359 -1389), na
segunda metade do século XIV foi ocupado duas vezes pelos sultões marínidas,
sendo palco, ainda, de incursões e revoltas árabes. Foi por essa época que o grande
historiador Ibn Khaldūn viveu em Tlemcen e serviu como intermediário de Abū
Hammū junto aos chefes dos grupos nômades árabes, o que lhe permitiu com-
preender bem os mecanismos da vida política e da troca de alianças. Também
deixou seu depoimento sobre a cultura zaiânida: Aqui [em Tlemcen] a ciência
e as artes prosperaram. Nesta cidade nasceram sábios e homens excepcionais,
cuja glória transpôs suas fronteiras”. Tlemcen ornou -se de vários monumentos
que, tendo sobrevivido até nossos dias, fizeram dessa cidade o mais importante
centro da arquitetura islâmica do Magreb central.
Depois que Abū Hammū foi destronado pelo próprio filho, Abū Tāshfn II
(1389–1394), o reino de Tlemcen entrou em longo período de decadência, durante
o qual foi vassalo ora de Fés, ora de Túnis, tendo papel de somenos importância
na política do Magreb. No correr do século XV, tornou -se praticamente proteto-
rado de Aragão e terminou por se fracionar em grande número de componentes,
ficando a autoridade dos emires zaiânidas de Tlemcen restrita à cidade e seus
arredores. Os conflitos de sucessão obrigaram -nos a requerer, cada vez mais, a
ajuda dos espanhóis e a se apoiarem nos mercenários cristãos, que acabaram por
ter nas mãos o poder efetivo. No século XVI, o reino de Tlemcen não passava de
simples peão na grande partida disputada pela Espanha e pelo Império Otomano
e terminou desaparecendo, ante os ataques dos turcos, em 1554.
6 Pela mesma época, Fés e Túnis possuíam cerca de 100 mil habitantes cada uma, enquanto Marrakech
contava aproximadamente 60 mil. Ver LACOSTE, 1966, p. 50.
109
A desintegração da unidade política no Magreb
O desao da Europa cristã
Do século XIII até o XVI, os contatos entre o Ocidente muçulmano e a
Europa cristã foram muito mais profundos do que haviam sido até então. Seria
errôneo, porém, considerar cada um dos lados como entidade única e homogênea,
com rígida política de hostilidade contra o outro. Após o desaparecimento dos
Almóadas, o Ocidente muçulmano cindiu -se em quatro entidades políticas: o
emirado násrida de Granada, o sultanato marínida do Marrocos, o reino zaiânida
de Tlemcen e o sultanato haféssida de Túnis. Seus adversários da outra margem do
Mediterrâneo encontravam -se ainda mais divididos. Na península Ibérica, havia
os reinos de Castela e Aragão, aos quais depois se juntou o de Portugal; na Itália,
Gênova, Pisa e Veneza, assim como a Sicília (antes de ser anexada por Aragão),
tinham políticas independentes e muitas vezes conflituosas. Os franceses, após
o fracasso da última Cruzada, dirigida por São Luís, passaram a segundo plano,
desempenhando papel menor no Magreb.
Com essa multiplicidade de Estados abrindo enorme gama de possibilidades
a um jogo de alianças que tantas vezes ignorava as fronteiras religiosas, seria
muito simplista reduzir as relações entre muçulmanos e cristãos do Mediter-
râneo ocidental, nesse período, a uma guerra inexorável entre dois adversários
inflexíveis, um animado pelo espírito do djihād (guerra santa), o outro imbuído
do fervor das Cruzadas. Não que esses fenômenos fossem irrelevantes. Com
efeito, chegaram a ser mesmo determinantes em certos períodos, mas pode -se
discernir por trás deles um confronto de interesses econômicos e comerciais,
que explica o emaranhado de alianças e contra -alianças firmadas entre Esta-
dos muçulmanos e cristãos, incompreensível de outro modo. Como o capítulo
26 deste volume examina esses fatores subjacentes numa perspectiva ampla e
intercontinental, aqui nos contentaremos em estudar os aspectos políticos das
relações entre muçulmanos e cristãos.
Uma mudança decisiva marcou a história do Mediterrâneo ocidental em
meados do século XVII, quando a Reconquista
7
atingiu seu ponto culminante
7 O termo Reconquista é utilizado na historiograa ibérica e europeia para designar o processo da resis-
tência cristã à dominação muçulmana e as guerras que tiveram por objetivo sua expulsão da península.
Cobre, tradicionalmente, o período que vai de 722 a 1492, isto é, da batalha de Covadonga até a queda
de Granada. Nos últimos anos, alguns estudiosos espanhóis têm começado a criticar a noção mesma de
“reconquista”, assinalando que nos períodos de 722 a 1031 e de 1252 a 1481 não houve conquistas nem
reconquistas cristãs, e que o próprio termo “conquista”poderia adequar -se ao período de 1035 a 1262,
e mais especicamente aos anos que vão da tomada de Toledo, em 1085, à conquista de quase toda a
Andaluzia, em 1249, e ao período que se estende de 1481 a 1492, culminando na queda de Granada.
Ver CRUZ HERNÁNDEZ, 1970.
110
África do século  ao século 
com a tomada dos territórios centrais da Andaluzia pelos cristãos. Os domínios
muçulmanos que sucessivamente caíram em poder dos diferentes reinos ibéricos
foram os seguintes: ilhas Baleares (Maiorca) em 1229, Badajoz em 1230, Cór-
doba em 1236, Valencia em 1238, Murcia em 1243. Jaen (Djayyān) em 1246,
Sevilha em 1248, Algarve (Gharb al -Andalus) em 1249, Cádiz (Kādis), Jerez
e Niebla (Labla ) em 1260–1262. Assim, aproximadamente nove décimos da
península Ibérica encontravam -se agora sob controle cristão, restringindo -se o
território muçulmano ao pequeno emirado násrida de Granada, fundado em
1232. Graças à rivalidade entre Castela e Aragão, e à ajuda que os Marínidas
lhe proporcionaram no primeiro século de existência, Granada conseguiu sobre-
viver até 1492. Embora os emires násridas às vezes interviessem ativamente na
política norte -africana, e assim contribuíssem para tornar ainda mais complexa
a situação política, o papel da Espanha muçulmana enquanto potência mediter-
rânica independente podia considerar -se praticamente encerrado.
Essa modificação no equilíbrio de forças não se fez sentir de imediato; como
vimos, os Marínidas tentaram várias vezes mudar o rumo da situação no seu
entender, apenas provisória na Espanha e assim reconstituir o Império Almóada
nas suas antigas fronteiras. Foi somente em meados do século XIV que a vanta-
gem dos cristãos tornou -se evidente, estando o Magreb reduzido à defensiva.
mencionamos alguns dos fatores que explicam o declínio do poder político
e militar dos Estados muçulmanos. Em todos esses Estados, o poder político,
centralizado quando do nascimento das novas dinastias, sofreu erosão regu-
lar e crescente por parte de diversas forças centrífugas membros dissidentes
das famílias reinantes, chefes de tribos nômades, mercenários cristãos, xeques
sufi, xarifes. Todos estes pretendiam seja participar do exercício do poder, seja
adquirir o máximo de autonomia sem nenhuma preocupação com o que fosse
de interesse geral. A dicotomia existente, de um lado, entre as cidades litorâ-
neas, voltadas para o comércio exterior, e o campo, e, de outro, entre nômades e
sedentários, constituía fator suplementar de divisão, numa sociedade em que se
enfrentavam facções com quase nada em comum.
O agravamento da crise que afetava o Magreb deveu -se, igualmente, a fatores
intrínsecos. Comparada com outras partes do Mediterrâneo, a região era rela-
tivamente subpovoada, e parece que durante esses séculos críticos sua taxa de
crescimento demográfico manteve -se baixa
8
. O afluxo de refugiados andaluzes
8 A população do conjunto do Magreb em ns do século XVI era estimada em três milhões. Pela mesma
época, a península Ibérica contava cerca de nove milhões de habitantes; a França, aproximadamente
quinze milhões; e a Itália, doze milhões. Ver MONLAÜ, 1964, p. 39 -40.
111
A desintegração da unidade política no Magreb
mal compensava o número de vítimas causadas, em meados do século XIV,
pela epidemia conhecida como peste negra. O regime feudal e a instabilidade
generalizada resultaram, em várias regiões, no abandono das terras cultivadas.
Documentos datados do início do século XVI trazem abundantes referências a
terras abandonadas, mostrando que, mesmo em regiões anteriormente cultivadas
e bem povoadas, a população tornou -se rarefeita. A progressiva deterioração dos
solos também esteve entre as causas do abandono das terras; devia -se em parte
aos rebanhos dos nômades, em parte à diminuição da fertilidade em zonas ári-
das, exauridas por uma agricultura excessivamente intensiva. Além disso, a escas-
sez de mão de obra não permitia que se recuperasse a produtividade anterior.
O comércio transaariano, que durante vários séculos assegurou a prosperidade
econômica do Magreb, começava, a partir da década de 1350, a orientar -se mais
e mais para o Egito. As repercussões dessa mudança fizeram -se sentir o apenas
no seio da classe comerciante, mas também, e ainda mais, na classe governante,
pois as taxas alfandegárias cobradas sobre as mercadorias representavam uma das
suas fontes mais fáceis de renda.
Tudo isso acontecia na mesma época em que os Estados cristãos consolidavam
seu poder político, militar e econômico. Embora o Magreb oriental, então sob o
reinado dos Haféssidas, não se encontrasse tão ameaçado quanto as regiões mais
a oeste, esteve sujeito de tempos em tempos a incursões e campanhas militares.
Em 1282, Carlos de Anjou ocupa Collo; nos anos seguintes, forças sicilianas e
aragonesas, sob o comando do almirante Rogério de Lauria, conquistam Djārba
(Djerba), Kerkenna e Marsā al -Khāriz (La Calle ). A ilha de Djārba permaneceu
em poder dos cristãos até 1335, como um espinho nos flancos do Estado haféssida.
Pelo final do século XIV, as frotas cristãs retomam os ataques contra as regiões
litorâneas. Os franceses, aliados dessa feita aos venezianos, assediam sem sucesso
al -Mahdyya (1390). As armadas de Valencia e Maiorca atacam Tedelles (Dellys)
(1398) e Annāba (1399). Os aragoneses renovam a ofensiva contra Kerkenna e
Djārba em 1424 e 1432; e até o final do século XV, os vários portos da região
entre Trípoli e Argel irão sofrer inúmeros ataques e incursões de genoveses e
venezianos. Esses atos hostis, assim como as ões dos corsários magrebinos,
podiam agravar as relações entre os Haféssidas e os Estados cristãos; no entanto
jamais acarretaram a ruptura total dessas relões, e a atividade comercial nada
perdeu de seu vigor. Politicamente, os italianos o representavam ameaça séria,
que, movidos por objetivos puramente comerciais, não aspiravam à conquista
de novos territórios. Os dirigentes muçulmanos em geral relacionavam -se mais
facilmente com os mercadores italianos do que com os da península Ibérica, cujas
ambições eram, acima de tudo, políticas.
112
África do século  ao século 
A situação que imperava no Magreb central e ocidental era diferente, e mais
complexa. Durante todo o culo XIV e a primeira metade do culo XV, os reis
de Aragão mantiveram relações políticas amistosas com o Marrocos e exerceram
forte influência em Tlemcen. Essa conduta era ditada pela rivalidade que os opu-
nha a Castela bem como por suas ambições políticas na Itália e no centro da bacia
mediterrânica. Em compensação, Castela e Portugal esperavam apenas uma oca-
sião para intervir no Marrocos. A viria de Rio Salado marcou o fim da presea
marroquina em solo espanhol, que, a partir dessa batalha, a luta entre Castela e
Granada assumiu mais o caráter de conflito feudal entre suserano e vassalo do que o
de guerra entre cristãos e mulmanos. Para os castelhanos, os verdadeiros inimigos
eram os muçulmanos do Magreb; assim, esforçaram -se por repelir um duplo perigo:
a ameaça de invasão marroquina e a intensificação das atividades dos corrios.
A pirataria não cessara no Mediterneo desde a Antiguidade, tendo sido
praticada na Idade Média tanto por muçulmanos quanto por cristãos. Mas
a reconquista da Espanha pelos cristãos deu a essa atividade cujo principal
objetivo era, obviamente, material – uma colorão religiosa; a partir do século
XV os corsários mulmanos, e muito especialmente os que haviam sido
expulsos da Andaluzia, passaram a considerar suas ações como uma escie
de djihād (guerra santa) e como uma forma de represália por sua expulsão. Em
alguns dos portos mais importantes do Magreb, os corsários haviam fundado
“repúblicas” independentes, com base nas quais se dedicavam a atividades
muitas vezes contrárias à vontade das autoridades oficiais. Perante os corsários,
os Marínidas e Watássidas, assim como os Hassidas, haviam adotado uma
política oscilante: ora lhes emprestavam apoio, ora se empenhavam em conter
suas atividades, temendo que fornecessem às potências cristãs pretexto para
expedões punitivas. Algumas das incures às regiões costeiras da África
setentrional, mencionadas acima, foram na verdade represálias a ataques de
corsários muçulmanos contra navios cristãos ou contra as costas da Espanha.
Recolocadas em perspectiva histórica, as atividades dos corsários muçulmanos
aparecem como uma espécie de resposta ao desafio cristão, numa época em que
os governos dos Estados magrebinos, internamente debilitados, não estavam
aptos a fazer frente à ofensiva europeia. Sob certos aspectos, as atividades dos
corsários podem ser comparadas aos movimentos populares que se desenvol-
veram no interior do Marrocos durante os séculos XV e XVI, sob a direção
dos xarifes e marabus, contra um poder central que se mostrava incapaz de
expulsar os portugueses.
A situação interna da Espanha antes da união de Aragão e Castela (1479)
não lhe permitia lançar de imediato uma ofensiva conjunta contra o Magreb.
113
A desintegração da unidade política no Magreb
A ocupação temporária de Tetuan (Tittāwn) pelos castelhanos em 1399, no
correr da qual metade da população foi massacrada e a outra metade reduzida
à escravidão, foi durante muito tempo a única intervenção espanhola de
importância em terririo marroquino. A Espanha voltou à ofensiva após
a tomada de Granada, em 1492.
Os portugueses haviam -se revelado agressores muito mais perigosos, tanto
para o Magreb quanto para o resto do continente africano. Após expulsarem os
últimos mouros de seus territórios, os reis da dinastia de Avis, que tomaram o
poder em 1385, decidiram levar adiante a luta contra os infiéis, em solo africano.
Eram complexos os seus verdadeiros móveis, que aliavam o fervor religioso, a
esperança de conquistar territórios e de reunir um rico butim e o desejo de
acabar de uma vez por todas com os corsários muçulmanos.
Em 1415, sob o comando dos infantes Henrique (o futuro Henrique, o
Navegador) e Fernando, filhos do rei D. João I, a frota e o exército portugueses
conquistaram, após breves combates, o porto marroquino de Ceuta; essa vitória
marcou os começos da expansão colonial portuguesa no além -mar. Para quase
todos os historiadores, a tomada de Ceuta constitui marco importante na histó-
ria europeia, ou mesmo universal: nela veem o ponto de partida para a expansão
da Europa, além de suas fronteiras naturais, no rumo da conquista e da coloni-
zação. Tal juízo deve, porém, ser matizado, pois as Cruzadas já representavam –
não devemos esquecer – tentativa análoga de expansão no ultramar, de controle
sobre o comércio oriental e de exploração de países e povos não europeus. Em
compensação, é indiscutível que o ano de 1415 marcou o início dessa política
de agressão ininterrupta dos Estados da Europa ocidental, que iria permitir -lhes
adquirir pouco a pouco o domínio de outros continentes e descobrir terras novas,
nas quais pudessem dar continuidade à sua empresa colonizadora. Esse aspecto
geral será estudado mais amplamente na introdução ao próximo volume; aqui
nos contentaremos em examinar as consequências da agressão portuguesa na
África do noroeste e, em especial, no Marrocos.
As ambições dos portugueses não se limitavam, evidentemente, à conquista
de um único porto; seu objetivo era ocupar a totalidade do território marroquino,
visando obter o controle do lucrativo tráfico do ouro. Conforme dissemos, a
Dinastia Marínida revelara -se incapaz de resistir a tal ameaça, e foi, na verdade,
o vizir Abū Zakariyyā al -Wattās quem se empenhou em mobilizar o país. Em
1437, sob o comando dos dois infantes, os portugueses fizeram nova tentativa
de conquistar Tânger (Tandja), mas sofreram formidável derrota e foram obri-
gados a devolver Ceuta aos marroquinos vitoriosos, deixando como refém desse
compromisso o infante Fernando. Apesar disso, seu irmão, o rei D. Duarte,
114
África do século  ao século 
recusou -se obstinadamente a abandonar a posição -chave que ocupava em solo
africano, e o infeliz Fernando morreu no cativeiro, em Fés.
A derrota de Tânger modificou, até certo ponto, a política e os projetos de
expansão dos portugueses, na medida em que deixou evidente a impossibilidade
de conquistarem o Marrocos e as vias comerciais sudanesas através de um ataque
frontal. Precisaram, pois, buscar outros meios para chegar às fontes de provisiona-
mento de ouro. Ao mesmo tempo, alimentavam a esperança de encontrar, ao sul
do Marrocos, um aliado que pudesse ajudá -los a avançar sobre as terras do inimigo
mulmano. Essa mudança de prioridades não significava, obviamente, que os reis
e a burguesia de Portugal tivessem abandonado seus projetos para a África do noro-
este; sua atenção se fixava cada vez mais na costa atlântica. A partir de meados do
culo XV, ocuparam, sucessivamente, as seguintes cidades do litoral do Marrocos:
al -Kasr al -Kabr (1458), An(1469), Arcla (1471), Massat (1488), Agadir (1505),
Sāf(1508), Azamr (1513), Mazaghan (1514) e Aghūz (1519). Foi em 1471
que conseguiram, finalmente, apoderar -se de Tânger. A seus olhos, a conquista do
Marrocoso constituía simplesmente uma etapa a mais de seu avanço expansio-
nista ao longo da costa africana; tinha também valor intrínseco, que o Tesouro
portugs retirava lucros substanciais das incures efetuadas no interior do país.
Durante essas incursões, muitas cidades (inclusive Marrakech, em 1515) e aldeias
foram saqueadas, e seus habitantes escravizados e vendidos. Ao mesmo tempo,
curiosamente, os portugueses continuaram a manter relações comerciais amistosas
com os marroquinos, de quem compravam basicamente cereais, cavalos e, sobretudo,
tecidos de lã, que depois trocavam na África ocidental por escravos e ouro.
Enquanto a expansão portuguesa prosseguia com sucesso ao longo da costa
atlântica do Marrocos e mais ao sul, à procura de ouro e do legendário Preste
João – em quem esperavam encontrar um aliado contra o inimigo muçulmano,
inaugurando dessa forma a era dos grandes descobrimentos e dos impérios
coloniais –, Castela e Aragão selavam sua união mediante o casamento do rei
Fernando com a rainha Isabel. Depois de guerra que durou dez anos, Granada
caiu em mãos dos espanhóis. No mesmo ano (1492), Cristóvão Colombo fazia
sua primeira viagem, no curso da qual descobriria a via de acesso mais curta a
esse Novo Mundo que, mais tarde, viria a receber o nome de América.
A descoberta de novos horizontes além dos mares não desviou, porém, a
atenção dos espanhóis de seus inimigos imediatos na África setentrional.
Em 1494 o papa sanciona o acordo pelo qual os dois reinos da península
Irica dividiam entre si o Magreb: as regiões a oeste de Ceuta caberiam a
Portugal, enquanto as que estavam a leste seriam da Espanha. Os espanhóis
não tardaram a se valer desse acordo, bem como da fraqueza dos Zaiânidas e
115
A desintegração da unidade política no Magreb
dos Haféssidas. Entre 1496 e 1510, apoderaram -se de rios portos mediter-
nicos; dentre os mais importantes, citemos Melilla (Malla), Mers al -Kabr,
Orã, Bidjāya (Bougie) e Trípoli. Foram, porém, incapazes de penetrar mais a
fundo no interior do país; seus presidios (entre os quais Melilla, ainda hoje con-
trolada pela Espanha) limitavam -se aos portos e só podiam ser abastecidos por
mar, o que os tornava particularmente vulneráveis perante qualquer potência
naval.
No final do século XV, portanto, o enfraquecimento do poder islâmico no
Magreb chegou a seu ponto máximo. A maior parte dos portos muçulmanos,
tanto no litoral atlântico como nas costas do Mediterrâneo, estava agora nas os
dos cristãos; o poder central, em cada um dos Estados magrebinos, apresentava -se
ineficiente e fraco; os próprios países encontravam -se divididos entre numerosas
facções rivais; suas economias eram precárias e prejudicadas pelas tensões nasci-
das da ruptura do equilíbrio global de forças. Embora o século XVI fosse para
o Magreb uma era de renascimento, graças ao pujante movimento popular que
se manifestou em suas partes ocidentais, bem como à intervenção dos corsários
turcos e, mais tarde, à intervenção do próprio Império Otomano, o Magreb jamais
tornaria a atingir o esplendor político, econômico e cultural que conhecera sob o
reinado dos Almorávidas, dos Almóadas e dos primeiros soberanos haféssidas e
marínidas.
C A P Í T U L O 5
117
A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas
Embora a historiografia do Magreb esteja bastante desenvolvida, pelo menos
para algumas fases do período aqui estudado, a história social da região ainda
não foi levantada. A escassez de obras de síntese sobre o assunto reflete esta situ-
ação
1
; faz -se necessário sério trabalho de pesquisa, de análise e de interpretação
de documentos. As generalizações sobre o Islã medieval não deixam, decerto,
de ser úteis para a compreensão de muitas questões, mas é preciso considerar
as diferenças entre o Oriente e o Ocidente e suas formas de evolução diversas,
ainda que se revelem vagas ou lentas
2
.
O predomínio do nomadismo e a vida urbana
Os nômades
A partir do culo XI, rompe -se o equibrio secular, mas prerio, entre os modos
de vida sedentário e made, em favor do último, devido à invao dos mades
árabes, os Ba Hil, a quem seguiram, no século XII, os Banū Sulaym. No icio
do século XIII, a ação devastadora desses povos arruinou as culturas e semeou a
1 Dispõe -se, no entanto, de duas obras de valor: MARÇAIS, 1913; BRUNSCHVIG, 1940, v. 1, e 1947, v. 2.
2 A respeito da hisria urbana, de particular importância neste catulo, pode -se consultar, sob perspectivas
comparativas, uma coletânea de estudos sobre as cidades orientais: HOURANI, A. H. & STERN, 1970.
A sociedade no Magreb após o
desaparecimento dos Almóadas
Hady Roger Idris
118
África do século  ao século 
anarquia na Ifrkiya e no Magreb central
3
. Os Aladas, por queses de estratégia
econômica e militar, cederam -lhes as planícies atlânticas, para onde se transferiram
em grande número, enquanto outros bednos, os BaMa‘kil, ocupavam o sul
e o leste do Atlas marroquino. Desta forma, o Magreb encontrou -se separado do
Oriente, suas relações com o Sudão enfraqueceram -se bastante, e sua civilização,
principalmente no leste e no centro, foi empurrada para a costa mediterrânica.
A população rural
Os camponeses criadores de gado sedentários, agricultores, arboricultores
ou horticultores, dependendo das terras onde habitavam – constituíam a maior
parte da população, mesmo porque havia certa interpenetração entre as popu-
lações urbana, sobretudo dos burgos, e rural. A numerosa mão de obra exigida
pela agricultura, que pouco havia progredido desde a Antiguidade, não era
serva; dominavam pequenas culturas familiares. Alguns indivíduos poderosos
tinham grandes propriedades, mas a grande maioria dos habitantes do campo
vivia e trabalhava em propriedades coletivas. Muitos lotes eram habous
4
privados
ou blicos cultivados pelos próprios adjudicatários ou por eles arrendados.
Frequentemente, se não na maioria dos casos, a terra era cultivada segundo um
contrato concluído com o proprietário: as plantações eram arrendadas a diversos
agricultores, e havia várias formas de arrendamento e parceria, sendo o quinto a
mais comum. Os parceiros (khammā) nem sempre conseguiam garantir a sub-
sistência, e, em geral, viviam em condições miseráveis, principalmente nos anos
de colheita. As famílias tiravam seu magro sustento da terra que possuíam
ou cultivavam para o proprietário. Os produtos da agricultura e da criação, assim
como os do artesanato rural ou urbano, eram trocados nos mercados rurais
semanais ou sazonais –, que comumente se transformavam em burgos, onde
sedentários, nômades e seminômades entravam em contato.
Dada a falta de documentação, é arriscado analisar a estrutura social das
aldeias. Variando segundo a área, essa estrutura manteve -se intacta nas regiões
isoladas, onde, até épocas recentes, persistiu o uso da língua berbere; nas
zonas em que sofreu a influência dos nômades sem ter sido por eles absorvida,
3 Os historiadores estão longe de concordar com a tese dessa ação devastadora”. LAROUI (1970, p. 139 -46)
faz uma crítica nada negligenciável deste ponto de vista.
4 O habous ou wakf era uma doação ou fundo religioso, público ou privado, constituído por bens de mão-
-morta, cujo usufruto estava reservado aos cessionários (que podiam ser os pobres de uma cidade, grupos
sociais, famílias particulares ou estudantes).
119
A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas
seu novo equilíbrio, na essência, deu continuidade ao passado, permanecendo
inalterado ao longo dos séculos.
A população urbana
A vida urbana deve ser analisada separadamente em cada um dos três
Estados do Magreb, começando -se pelo oeste, de onde vem a influência
preponderante. Antes, pom, cabe apontar alguns tros de ordem geral.
Não é necessário estendermo -nos sobre as características da sociedade
árabo - muçulmana: família patriarcal, separação de sexos com o uso do véu
F . Aghadīr (celeiro forticado) de Fri -Fri, região de Tiznit (Sul do Marrocos). (Fonte: Camps,
1980.)
120
África do século  ao século 
pelas citadinas, poligamia, concubinagem, endogamia, distinção entre homens
livres e escravos, entre muçulmanos e tributários etc. O mesmo se pode dizer
da organização urbana tradicional dos muçulmanos: a grande mesquita em
meio às ruelas comerciais (suk) estreitas e sinuosas, hammām
5
, muralhas com
portões, perto dos quais se situavam os cemitérios, mercados e surbios.
Os tecidos importados eram armazenados em depósitos (kaysariyya), e outras
mercadorias em caravançarás (funduk), cujas salas davam para um pátio interno.
Os negociantes europeus hospedados nos portos ficavam no funduk de sua
nacionalidade, e cada funduk tinha seu próprio cônsul. Os corsários traziam
escravos, que eram empregados sobretudo em tarefas domésticas; por vezes,
monges cristãos resgatavam -nos.
A populão judaica aumentou no fim do culo XIV em rao da chegada de
grande número de refugiados das perseguições cristãs. Os judeus tiveram papel pre-
ponderante na economia devido ao capital que detinham, às suas aptidões e às rela-
ções que mantinham com os judeus que haviam permanecido na Europa. Muitos se
estabeleceram em Tlemcen e Bidjāya. Apesar de terem sido bem recebidos na Ifrkiya,
não alcançaram ali os altos postos que com frequência ocupavam no Marrocos. Em
Fés, eclodiram pogroms no início e no final do reinado dos Manidas. A comunidade
judaica de Tuat também foi perseguida durante a segunda metade do século XV.
A imigração mais importante foi, porém, a de espanhóis muçulmanos, ime-
diatamente após a Reconquista; desenrolou -se num fluxo contínuo, com alguns
pontos altos na primeira metade do século XIII e no final do século XV. Esses
andaluzes instalaram -se principalmente nos portos, formando grupos coesos,
cujos membros exerciam atividades diversas, de cima a baixo da escala social:
homens de letras, músicos, juristas, secretários, militares, comerciantes, tecelãos,
bordadores, pedreiros, jardineiros, agricultores etc. Era entre eles que, com fre-
quência, os sultões escolhiam seus favoritos.
Por outro lado, observava -se, nas cidades e em algumas populações rurais
e nômades, uma mestiçagem decorrente do afluxo de escravos negros dos dois
sexos e do concubinato com mulheres negras.
A simbiose árabo -berbere
6
iniciou -se logo após a conquista e já se encontrava
bastante avançada no como do século IX. No entanto, mesmo nas cidades, seu
meio mais procio, ela o extirpou certo tribalismo, que continuou profundamente
enraizado apesar do islamismo. É bem conhecida a vocação urbana da religião
5 “Hammān: literalmente, calefator (árabe: hamma, esquentar; hebraico: hāmam, estar quente), banho de
vapor quente. O
hammām
é edifício isolado, que se comunica com a rua por uma porta mais ou menos
monumental.” Encyclopaedia of lslam, 1. ed.,
v.
2,
p.
253.
6
IDRIS,
1973b.
121
A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas
ismica, nascida numa cidade de corcio e de caravanas da Arábia; é, portanto,
com refencia na vida urbana que se deve traçar o quadro da evolução religiosa da
sociedade magrebina, fundamentalmente sacra, do século XIII ao XVI.
O triunfo do maliquismo e as correntes místicas
O almoadismo não abalou o maliquismo dos magrebinos; constou como
religião oficial para legitimar o poder dos Masmūda, mas sofreu golpe fatal com
sua queda. Sem uma doutrina religiosa própria, seus sucessores, os Marínidas e
Zaiânidas, adotaram a ortodoxia maliquita, que estimularam fundando muitas
madraças, onde eram hospedados e instruídos os estudantes, entre os quais
recrutavam seus funcionários; a influência andaluza logo se fez sentir.
No leste da região berbere, a situação foi diferente. Os Haféssidas eram
Almóadas que continuavam fiéis à doutrina que suas primeiras madraças se
empenharam em difundir sem sucesso, no entanto, pois os habitantes da
Ifriya permaneciam profundamente maliquitas. Ademais, na segunda metade
do século XII, eminentes doutores trouxeram novo brilho ao maliquismo, que
passou a orientar todas as instituições religiosas, magistraturas e o ensino nas
madraças. Os Haféssidas não permitiram que essa evolução ocorresse, como
também colaboraram com os doutores maliquitas, e, graças ao célebre Ibn Arafa,
o maliquismo chega ao auge na segunda metade do século XIV.
O maliquismo não foi o único fator de unificação religiosa. Desde o século
XII, a religião popular magrebina vinha se impregnando de misticismo. O povo
marroquino havia sofrido a coerção da jurisprudência rígida, estreita e des-
secante dos Almorávidas, autores do auto -de -fé das obras de al -Ghazzāl. Os
Almóadas em vão tentaram impor aos marroquinos sua doutrina – mais flexível,
mas por demais racionalista –, a qual, ao proclamar a impecabilidade do mahdī
e condenar a jurisprudência, feria o maliquismo inerradicável desse povo, que se
voltava para o sufismo, com ele nutrindo sua devoção frustrada. Com o desapa-
recimento dos Almóadas, esse movimento desenvolveu -se consideravelmente no
Marrocos, influenciado pelo sufismo andaluz e por um antigo ascetismo local,
difundido por bom número de chefes sticos, que se tornaram santos populares;
espalhou -se, em seguida, pelo Magreb central e pela Ifrkiya.
As ter estudado mística com os marroquinos, Abū Madyan al -Andalus (Sd
Bu Medine), nascido perto de Sevilha, foi procurar as origens dessa ciência no
Oriente. Depois de longa estada em Bidjāya, foi chamado pelo califa de Marrakech,
que já se inquietava com a grande reputação do religioso, e morreu a caminho de
122
África do século  ao século 
Tlemcen (1197–1198). Teve um rival em Naft (Nefta) , Sd AAli al -Naft, e,
entre seus dispulos, al -Dahmāni (morto em 1224), bedno origirio da estepe
de Kayrawān, e al -Mahwi (morto em 1224), de Mahdyya. Abū Sa‘d al -Bādj
(Sd Bu Sa‘d, morto em 1231) pregou o sufismo em Túnis e seus arredores.
Outro dispulo de Abū Madyan, Mulay Abd al -Sam ben Mashsh, era grande
homem santo da região. Seu aluno, Abū ’l -Hasan al -Shādhil (Sd Belhasen), nas-
cido ao sul de Tetuan (Titwn - c. 1197), começou a pregar nos arredores de Túnis,
onde se instalou, cercado de muitos fis, após um retiro em Djebel Zaghuān. Sus-
peito de ser um agitador ‘Alid – dizia -se xarife e descendente de al -Hasan ben ‘Al
, foi obrigado a se retirar para o Oriente, onde morreu (1258); deixou em Túnis
imeros adeptos. Seu sufismo, fervoroso mas primitivo, tendia ao culto dos santos
(marabsmo, baraka, taumaturgia, pobreza, excentricidade, vida numa cela ou numa
wiya) e à confraria religiosa. Mais tarde seria conhecido como shadilismo, no
Marrocos, país considerado pioneiro da seita.
Entre os cerca de 50 companheiros de al -Shādhil, pode -se citar Lalla
Manubiyya, mulher da Ifrkiya haféssida (morta em 1267), temida e vene-
rada a despeito de sua demência; juristas ortodoxos pediram sua prisão, mas
o soberano se lhes opôs. Extravagâncias desse tipo logo deixaram de esbarrar
em oposição séria. Al -Murdjani (morto em 1300), xeque de wiya, manteve
até excelentes relações com a corte e os teólogos...
No período seguinte destacou -se Sd ben Arūs (morto em 1463). Originário
do cabo Bon, exerceu, a princípio, tarefas humildes, enquanto estudava o sufismo
na Tunísia e no Marrocos, onde habitou por muito tempo. De volta a Túnis,
viveu como marabu giróvago
7
e taumaturgo, abandonando -se a excentricidades
escandalosas e ao tahrīb (violação de regras morais e religiosas). Sofreu a hosti-
lidade de alguns juristas, mas gozou de grande popularidade e da solicitude de
muitos Haféssidas. Quando enterrado em sua zāwiya, toda a população, do mais
humilde ao mais abastado, chorou um santo que foi comparado imediatamente
a Sd Mahrez, patrono de Túnis cinco séculos. Deixou numerosos adeptos,
mas a confraria dos ‘Arūsiyya foi criada no século XVI.
Na Ifrkiya proliferaram os ascetas, e constituíram -se cabilas de marabus,
como a dos Shābbiyya’, que fundaram um Estado marabuísta, tendo Kayrawān
como capital. Este Estado mais tarde se levantou contra espanhóis e turcos. Mas
foi no Marrocos, pátria de seu fundador, que o shadilismo floresceu com maior
7 Giróvago - nome dado aos monges que passavam a vida vagando de província em província, de cela em
cela, permanecendo apenas três ou quatro dias no mesmo local e vivendo de esmolas; também eram
chamados de “messalianos”.
123
A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas
vigor; principalmente em Aghmāt e Marrakech. Em 1370, os Ragrāga fundaram
uma zāwiya shadilita, cujos missionários se espalharam por todo o sul do país,
tanto na planície quanto nas montanhas.
Finalmente, o advento de al -Djazūl (morto em 1465) deu novo impulso ao
sufismo, orientando -o para o marabuísmo e para o xarifismo. Este berbere do
Sus, que, segundo a lenda, descendia do Profeta, foi contemporâneo da descoberta
de um corpo (1437), milagrosamente conservado numa mesquita de Fés, logo
atribuído a Idrs II. Mulay Idrs tornou -se, assim, objeto de culto fervoroso. Em
Meknes e Fés, os xarifes idrísidas formaram grupos poderosos, que, por condes-
cendência dos Marínidas, eram representados por um nakīb. Al -DjazūI, que
adotara e praticava o shadilismo, logo passou a contar com numerosos adeptos,
organizados, provavelmente, numa verdadeira confraria. O sul do Marrocos fer-
vilhava de marabus, que vagavam para o norte e para o leste aa Tripolitânia. O
marabuísmo e o xarifismo associaram -se estreitamente; as confrarias contaram
com a adesão de letrados e juristas que haviam abandonado o sufismo. Com a
morte do mestre, um discípulo de al -Djazūl organizou poderosa revolta no Sūs,
transportando consigo, durante 20 anos, o corpo de seu xeque num esquife. O
xarife sádida al -A‘radj transferiu (1524), enfim, o corpo, com o do próprio pai,
para um mesmo mausoléu em Marrakech, selando assim a aliança da nova dinas-
tia com o djazulismo, que, desta forma, teve seu triunfo assegurado.
Foi também a partir do Marrocos que o mawlid (ou mawlūd), festa da nativi-
dade do Profeta (12 Rabi‘I), celebrada no Oriente pelos Aiúbidas no começo do
século XIII, espalhou -se pela região berbere, palco de grande exaltação religiosa.
A festa, mencionada pela primeira vez em Ceuta em meados do século XIII,
foi oficializada pelo marínida Abū Ya‘kūb Yūsuf em 1292. Na metade do século
seguinte, o zaiânida Abū Hammū II celebrou -a com grande pompa em Tle-
mcen. O haféssida Abū Yahyā (1318 -1346) quis fazer o mesmo em Túnis, mas
renunciou a essa iniciativa devido à violenta reprovação dos juristas. A Ifrkiya
adotou definitivamente o mawlid como no Marrocos e Tlemcen, com recita-
ção de poemas, cantos, música, iluminações etc. – no governo do haféssida Abū
Fāris (1394 -1434). Também na Ifrkiya a festa foi iniciada e monopolizada pelas
confrarias, e sua celebração provocou o aumento do prestígio dos xarifes.
O poder dinástico e a estrutura social
As dinastias marínida, zaiânida e haféssida foram fundadas pelas tribos ber-
beres conquistadoras, e o clã vencedor, o makhzen, identificou -se com o Estado.
124
África do século  ao século 
Esta distinção entre vencidos e vencedores era diferente da divisão tradicional
entre khāssa (particulares, cortesãos, aristocracia político -militar, elite etc.) e
ammā (homens comuns, plebe, povo etc.), criada pelos juristas, historiógrafos
e governantes. Além disso, o igualitarismo fundamental do islamismo é bem
conhecido; o termo khāssa, com frequência, aplicava -se aos letrados, e ammā,
aos analfabetos. Não obstante, em Fés, Tlemcen e Túnis, uma classe média,
espécie de pequena burguesia com grande poder de assimilação, rompe este
bipartidarismo teórico, temperando o espírito de casta. Abre -se para todos a
possibilidade de ascensão social pela fortuna ou cultura, ou mesmo pela piedade
ou favor dos poderosos.
Os Marínidas
Em tempo de guerra, os Marínidas convocavam cavaleiros Zenāta do Magreb
central e árabes, para reforçar sua pequena força de cavalaria. Dispunham de cerca
de 8 mil cavaleiros mercenários (turcomanos, francos, renegados
8
, andaluzes) e de
uma guarda do sulo, provavelmente Zenāta. Os Zenāta constitam a aristocracia
político -militar, de onde provinham os altos funcionários ou vizires, pertencentes
a famílias rivais cada vez mais influentes. A família dos Banū Wattās proveu de
regentes até o último marínida e fundou uma dinastia que controlou Fés e parte
do país. A chancelaria e a contabilidade eram confiadas a secretários (kātib) marro-
quinos ou andaluzes. Os camareiros (hādjib), em sua maioria escravos libertos, não
tinham autoridade política; o caso único de um judeu, djib de AYab
Yūsuf (1286 -1307), que acabou se tornando chefe de governo, e o de outros
dois, que foram encarregados pelo último marínida, em débito com os judeus, de
receber os impostos. Os djāndār
9
ficavam à porta do soberano e executavam suas
ordens; seu preboste era o mizwār, que cuidava da observância da etiqueta nas
audiências dadas no dār al -ammā (“casa do povo”). O herdeiro presuntivo estava
estreitamente vinculado ao exercício do poder. Os grandes governadores de pro-
víncia eram príncipes de sangue ou chefes Zenāta ou árabes.
No Atlas, praticamente autônomo, as cabilas submissas eram dirigidas por
poderosos emires, escolhidos nas grandes famílias fiéis à dinastia. Às cabilas
8 Os renegados eram mercenários geralmente apóstatas que, vindos da Espanha em sua maioria, se punham
a serviço do exército magrebino.
9 Dndār (ou djandār): no reinado dos Mamelucos e dos Manidas, a Nōbat al -Djān dāriyā era a guarda parti-
cular do sultão, tanto em palácio como em viagens; encarregavam -se de introduzir os emires nos aposentos do
sultão para audiências ou para render -lhe homenagens... Encyclopaedia of lslam, 1. ed., v. 1, p. 1014.
125
A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas
árabes reservava -se o direito de arrecadar o imposto (iktā)
10
; os xarifes e os
homens santos beneficiavam -se de parte da receita fiscal, e as confrarias, das
isenções de impostos.
Fés atingiu o apogeu em meados do culo XIV. senhor do Marrocos, Abū
Yūsuf Ya‘b abandonou Marrakech, capital dos Almovidas vencidos, e se instalou
em Fés, onde fundou, em 1276, uma nova cidade, Fās al -Djadd (Nova Fés). Cidade
administrativa e militar, compreendia o bairro dos príncipes, um outro, dito dos
cristãos”, e um terceiro, que se tornaria o Mallāh (bairro judeu). Os judeus que se con-
vertiam – aqueles que não aceitavam viver no Mallāh – misturavam -se à população
mulmana, dedicando -se ao comércio atacadista. Numerosos refugiados andaluzes
vieram refoar a elite intelectual, artística e comercial.
Para alojar, alimentar e educar os estudantes que afluíam a Fés, Abū Yūsuf
Ya‘kūb fundou, na cidade velha, a primeira das famosas madraças marínidas, que
dispunham de fundações habous; quatro outras foram edificadas de 1320 a 1323,
uma sexta em 1346–1347, tendo Abū ‘Inān Fāris (1349–1358) a elas somado
a que leva seu nome.
O comércio com a Espanha, Portugal, nova e Veneza era intenso. A
comunidade de mercadores cristãos reunia -se num edifício, sob a autoridade de
uma espécie de cônsul comum (o “feitor” dos textos portugueses); a comunidade
judaica tinha seu chefe e administração próprios. O muhtasib
11
controlava a
atividade comercial.
A prosperidade econômica e intelectual de Fés declinou com a dinastia. O
advento dos Sádidas pouco favoreceu a cidade, que eles escolheram Marrakech,
eclipsada e quase arruinada, para sua capital, dando -lhe, com isso, novo vigor.
Zaiânidas (‘Abd al ‑Wādid)
Parentes e rivais dos Marínidas, os Zaiânidas de Tlemcen eram, como
aqueles, berberes nômades Zenāta que assumiram a liderança de um Estado
sedentário. O fundador da dinastia, Yaghmurāsan (12351283), viveu em
tendas até por volta de seus 30 anos e só falava o berbere. O vizirato, con-
10 É difícil encontrar nas línguas europeias (ver Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 3, p. 1088) um correspondente
tanto para o termo iktā‘ como para a realidade jurídica e scal que designa. Neste caso, signica o direito de
arrecadar o imposto.
11 Muhtasib: censor, funcionário nomeado pelo califa ou por seu vizir para observar se os preceitos religiosos
do Islã são respeitados, descobrir delitos e punir os delinquentes. Em alguns casos, suas funções eram
paralelas às do cádi, mas a jurisdição do muhtasib limitava -se às questões relativas a transações comerciais,
pesos e medidas irregulares, vendas fraudulentas e não pagamento das dívidas. Encyclopaedia of lslam,
1. ed., v. 3, p. 702 -3.
126
África do século  ao século 
fiado a prinpio a parentes do soberano, passou, a partir de Abū Hammū I
(1308–1318), para as mãos de cambistas, cuja família já exercera essa profissão
em rdoba; estes adquiriram terras nos subúrbios de Tlemcen, fazendo -as
valorizar. Um desses, do Malh, foi ministro das finanças de Yaghmusan.
O intendente do palácio, escolhido entre os juristas, era também encarregado,
entre outras coisas, da chancelaria e da contabilidade.
Abū Tashfn I (1318–1337) escolheu para djib (mestre de cerimônias,
superintendente do palácio ou primeiro -ministro), com poder supremo na
administrão, um liberto andaluz, Hilal, o Catalão.
Yaghmurāsan empregou mercenários turcos, curdos e cristãos que haviam ser-
vido aos Almóadas (os cristãos foram dispensados após 1254). Mas o corpo principal
do ercito era formado pelos Banū Hil; estes, além de se beneficiarem de importan-
tes conceses fiscais (iktā), coletavam os impostos, dos quais retinham uma parte.
Muito devoto, Yaghmurāsan mandou construir minaretes nas grandes mes-
quitas de Tlemcen e Agadir. A ele se atribui a fundação da fortaleza de Mashwār,
onde residiu. Seu sucessor ergueu a mesquita de Sd Bel Hasen (1296), e Abū
Hammū I construiu uma madraça para que dois doutores ali difundissem seu
saber. Seu filho fundou mais uma madraça e edificou três palácios. Tlemcen
atingiu, nessa época, o auge da prosperidade.
Durante o cerco de Tlemcen (1298–1306), o marínida Abū Yab Yūsuf
construiu a cidade -fortaleza de al -Mansūra, que Abū l -Hasan retomou e for-
tificou durante novo cerco (1335). Senhores de Tlemcen de 1337 a 1348, os
Marínidas fomentaram o culto a Sd Bu Medine (Abū Madyan); embelezaram
seu mausoléu e acrescentaram à sua construção a mesquita de al -‘Ubbad e uma
madraça. Durante a segunda ocupação marínida (1352–1359), Abū ‘Inān ris
mandou construir a mesquita de Sd l -Halw santo de origem andaluza que se
havia estabelecido em Tlemcen no início do século XIII –, com uma madraça e
uma zāwiya. Mashwār conheceu seus melhores dias no reinado de Abū Hammū II
(1359–1389); durante as noites do mawlid eram oferecidas esplêndidas recepções
aos dignitários e ao povo, nas quais a mangana, relógio monumental com figuras
que se movimentavam, era muito admirada. Abū Hammū II construiu também
vasto conjunto de edificações religiosas nos arredores da cidade: um mausoléu
de família, uma madraça e uma zāwiya. Deve -se a Abū l -‘Abbās (1430–1461) o
mausoléu e a mesquita dedicados a Sd Lahsan (morto em 1453).
Mesmo atravessando vicissitudes políticas, Tlemcen nada perdeu em brilho, tam-
pouco sua riqueza parece ter -se abalado. A opulência de seus mercadores, mul-
manos e judeus, repousava no corcio exterior florescente. Tecidos importados
da Europa eram estocados e vendidos numa kaysariyya perto da Grande Mesquita.
127
A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas
Os mercadores genoveses e venezianos comerciavam no funduk reservado para cada
nacionalidade. A atividade artesanal era intensa: produziam -se tecidos de lã, tapetes,
faianças, arreios, couros bordados etc. O tráfego matimo passava por Hunayn e Orã.
Enfim, Tlemcen parece ter suplantado Marrakech como escala do corcio saariano,
que passou por certa renovação nos séculos XIII e XIV. O ouro e os escravos chega-
vam de Sidjilsa a Tlemcen por uma rota controlada pelos Banū Ma‘kil.
Os Haféssidas
Bidjāya, porto comercial, base de corsários, centro intelectual e religioso e
por vezes capital, foi, junto com Tlemcen, um dos polos do Magreb central. A
floresta da Cabília fornecia aos estaleiros madeira e piche. Além dos estrangeiros
em trânsito, dos hóspedes periódicos e de uma comunidade judaica e cristã, a
população era formada por indivíduos provenientes da Cabília e da Andalu-
zia. Ao que parece. na cidade não havia madraças nem zāwiya enquanto em
Constantine, cidade do mesmo porte, contavam -se várias. Constantine abrigava
numerosa comunidade judaica e uma rica e antiga burguesia.
Na região berbere oriental, os Haféssidas perpetuaram a ordem almóada.
Seus parentes foram reunidos sob a autoridade de um deles, que tomou o
título de mazwār al -karāba. Os homens ligados ao exercício do poder, princi-
palmente os governadores de província, recebiam o título de emir. Seus filhos,
criados na corte com os do sultão e os dos principais cortesãos, eram os sibyān
(garçons ou pajens), e recebiam educação primorosa. Entre os servidores do
palácio, os renegados cristãos, antigos escravos, tinham papel cada vez mais
importante no alto comando civil e militar. O intendente palaciano era um
eunuco. O cdos xeques almóadas, aristocracia militar, agrupava os descen-
dentes das “tribos” almóadas primitivas; cada uma delas era liderada por um
mazwār
12
, e todas obedeciam ao xeque al -muwahhidūn, um dos mais poderosos
pilares do Estado, cujo cargo era vitalício. Os “grandes xeques” eram divididos
em grupos de Três, de Dez e de Cinquenta
13
. Os pequenos xeques participavam
das cerimônias. Em virtude do igualitarismo almóada, todos os xeques, assim
como o sultão, ganhavam o mesmo soldo; além disso, recebiam concessões de
terras e doação anual em dinheiro e espécie. Embora viessem a perder pouco a
pouco sua influência para os andaluzes e alguns libertos, houve momentos de
12 “O termo mizwār (ou mazwār) aparece cedo na historiograa magrebina, relacionado às instituições
almóadas. Designa o chefe da facção e a função correspondente, que, à época, parece ter sido confundida
com a do hafīz ou do muhtasib. Ibid., p. 543.
13 Quanto à origem destes diferentes grupos, ver à contribuição de Omar Saidi, capítulo 2.
128
África do século  ao século 
brilhante revivescência. O conselho (shūrā) era composto por Almóadas e outros
notáveis. O califa encabeçava frequentes reuniões públicas e privadas, e toda
semana reunia em conselho os cádis e os muftis, os juristas da capital. Assumia
pessoalmente a repressão aos abusos (radd al -mazālim)
Enquanto eram apenas governadores almóadas, os Haféssidas designavam
como deputado um kātib, espécie de primeiro -ministro. Abū Zakariyyā (1228–
1249) tinha três vizires: o do exército, grande xeque almóada ou mesmo o xeque
dos Almóadas, que desempenhava a função de primeiro -ministro, o das finanças
e o da chancelaria. No final do século XIII aparece a função de camareiro (hādjib),
de origem espanhola e essencialmente doméstica, exercida por andaluzes, cuja
influência aumentava; no século XIV, o djib torna -se o primeiro -ministro.
Após o governo do hādjib Ibn Tafrādjin (1350 -1364), um ditador, embora o
título tenha subsistido, o cargo torna -se honorário. O vizir das finanças, a prin-
cípio escolhido entre os xeques almóadas, passa a -la entre funcionários ou
andaluzes. A partir de Abū Fāris (fim do século XIV e começo do século XV),
o al -munaffid, coordenador das despesas da casa real, é quem detém o poder
supremo sobre as finanças; depois do desaparecimento do xeque dos Almóadas
e hādjib (em 1462), ele passa a ocupar o posto mais elevado na hierarquia dos
funcionários, enquanto o vizir das finanças é relegado à função de tesoureiro. O
mazwār mordomo do palácio, porteiro e chefe das guardas e dos servidores
no final do século XV chega a controlar a administração do exército e a ocupar
o segundo lugar na hierarquia depois do munaffid. Os escribas, em sua maioria
andaluzes, gradualmente vão sendo substituídos por naturais da Ifrkiya.
Inicialmente, os xeques aladas eram encarregados das províncias; nos séculos
XIV e XV cedem lugar a funciorios de origem frequentemente servil, os ‘id.
Os Haféssidas escolhiam os principais governadores regionais entre os parentes,
principalmente os filhos, em particular os primogênitos, que assim faziam sua apren-
dizagem; cada um deles tinha um assistente, inicialmente chamado kātib e depois
hādjib. Os xeques tribais, escolhidos entre os membros de uma família ou clã que,
tendo alcançado a supremacia, havia sido investida pelo sulo, comandavam o
contingente de sua cabila e coletavam os impostos para o tesouro, beneficiando -se
de concessões fiscais e doações de terras.
O exército, bastante heterogêneo, era constituído por Aladas, árabes nômades,
berberes do Magreb ou da Ifrkiya, orientais, andaluzes e francos cristãos; mas a força
dos primeiros era pouco significativa se comparada à do contingente de árabes da
Ifrkiya, de peso considerável. Havia uma milícia urbana, uma andaluza, outra de
mercerios turcomanos e outra ainda de cavaleiros crisos; estes, vindos da Espa-
nha ou da Ilia, formavam a guarda sultanesca, praticavam sua religião e moravam
129
A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas
num surbio da capital. Os renegados crisos, escravos libertos em sua maioria,
constituíam umlido elemento militar; os generais eram, com frequência, escravos
libertos ou renegados. O corso tinha papel importante: os navios eram armados pelo
governo ou por homens de negócios.
Voltados para o mar, os Haféssidas o se esforçaram para reintegrar Kayrawān,
a antiga capital da Ifrkiya, que a invasão dos Banū Hilāl reduziria à obscuridade.
A antiga população urbana foi absorvida pela horda beduína, que tomou conta das
planícies. O artesanato em Kayrawān manteve certa vitalidade graças à produção
dos pastores nômades. Foram fundadas na cidade numerosas zāwiya.
Túnis era uma metpole em expansão. A kasaba (casbá) almóada foi refor-
mada por Abū Zakariy’, que a transformou numa pequena cidade governa-
mental. Por volta de 1240, ele mandou construir, perto da grande mesquita de
Zaytūna, a madraça de al -Samma‘iyya, a mais antiga da África setentrional. A
partir do século XV, uma dezena de outras foram fundadas por príncipes e prin-
cesas. As zāwiya multiplicaram -se na madīna e nos subúrbios. Na área do porto,
elevavam -se os funduk de mercadores cristãos, agrupados por nacionalidade. Nos
F . A mesquita da
kasaba
em Túnis. (Foto B. Nantet.)
130
África do século  ao século 
subúrbios, numerosos pomares e hortas eram cultivados por andaluzes. Os parques
e habitações de príncipes abundavam; o Bardo já era mencionado em 1420.
Em Túnis nasceu a personagem mais representativa de seu tempo, Ibn
Khaldūn (1332–1406); alguns detalhes de sua existência e suas reflexões sobre
a época servirão de conclusão a este estudo.
Árabes de origem iemenita, estabelecidos em Sevilha, desde sua conquista e
ali exercendo funções políticas, os Khaldūn emigraram, devido à Reconquista,
para Ceuta, e depois para a Ifrkiya. O tataravô de Ibn Khaldūn serviu a Abū
Zakariyyā’ em Annāba, seu bisavô foi ministro das finanças de Abū Ishāk, e seu
avô foi sucessivamente hādjib de Abū Fāris em Bidjāya, primeiro -ministro de
Abū Hafs, vice -hādjib de Abū Asd e favorito de Abū Yahyā Abū Bakr. Seu pai
dedicava -se às letras, ao fikh e à religião; morreu durante a Grande Peste (1349).
Ibn Khaldūn, então com 17 anos, tinha sólida formação cultural, adquirida em
Túnis, onde pôde aprender com os doutores que para afluíram à época da
invasão marínida (1347–1349). No ano seguinte, recebeu o cargo de escrevente
(‘alāma) de Abū Ishāk II. Quando o emir de Constantine invadiu a Ifrkiya,
Ibn Khaldūn foge para o oeste, inaugurando uma carreira movimentada e fér-
til em reviravoltas e intrigas. Após ter passado a servir o marínida Abū Inān
Fāris em Fés, completou sua educação, mas participou de uma conspiração e
permaneceu aprisionado por dois anos (1357–1358). Secretário de chancelaria e
panegirista de Abū Salm, foi nomeado juiz dos mazālin. As intrigas obrigaram-
-no a se refugiar em Granada, onde foi acolhido por seu amigo, o vizir Ibn
al -Hatb; em 1364, foi encarregado de uma embaixada junto a Pedro, o Cruel,
em Sevilha. No ano seguinte, foi djib do hassida de Bidjāya, deposto pouco
tempo depois por seu primo de Constantine, ao qual Ibn Khaldūn entregou a cidade
(1366). Logo teve de se refugiar entre os árabes Dawida, e, pouco depois, junto aos
Banū Muznde Biskra. Recusou o cargo de hādjib oferecido pelo sulo de Tlemcen,
Abū Hammū II, alegando querer dedicar -se aos estudos. E realmente o fez, sem
contudo renunciar à política: favoreceu a aliança do haféssida de Túnis com o zanida
de Tlemcen contra o hassida de Bidjāya, recrutando, a seguir, contingentes árabes
para o marínida de Fés. Apos muitas outras tribulações no Magreb central, em Fés
e em Granada, voltou a Tlemcen (1375), onde o sulo Abū Hammū II confiou -lhe
miso junto aos Dawida. Aproveitou a ocasião para fazer um retiro em Kala lbn
Sama, perto de Tiaret, onde, durante quatro anos, elaborou a célebre al -Mukaddima.
No intuito de consultar documentos que lhe permitiriam dar prosseguimento à sua
obra, conseguiu autorizão do hassida para voltar a Túnis (dezembro de 1378),
onde lecionou e pôde terminar sua História, da qual ofereceu um exemplar ao sultão.
A conspiração liderada pelo jurista Ibn Arafa obrigou -o a fazer a peregrinação à
131
A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas
Meca (1382). Passou o resto da vida no Cairo, onde lecionou e exerceu por rias
vezes a fuão de grande di maliquita. Encontrava -se em Damasco quando esta
foi sitiada por Tamerlão; teve, assim, oportunidade de conhecer, alguns anos antes de
morrer, o conquistador mongol. A obra de Ibn Khaldūn alimentou -se da experncia
do autor no Magreb, da qual ele soube extrair ensinamentos geniais, de originalidade
surpreendente.
Al -Mukaddima é fruto da prodigiosa reflexão de um quinquagenário sobre o
que viu e fez. Ao redigir este tratado de epistemologia hisrica, Ibn Khaln tinha
consciência de que estava fundando uma ciência nova”: a história da civilização.
Sua intenção era compreender e explicar os fatos que obedecem a leis, e elaborar
uma filosofia da história. Considerava dois dados fundamentais: o modo de vida e o
tribalismo. Opunha a vida made, primitiva, à vida urbana, civilizada. A primeira
baseava -se essencialmente na cabila e na conscncia de grupo (asabiyya), força viva
que fundava novos impérios e ameaçava continuamente os Estados constituídos; a
segunda desabrochava, definhava e por fim desaparecia sob o impacto de nova força
nômade. Para ele, a invasão dos Banū Hilāl e a Grande Peste trouxeram tão profundas
transformões na vida do Ocidente muçulmano, que chega a falar de ummundo
novo”. Sua visãoclica da evolução não é otimista nem pessimista, mas fundamen-
tada na natureza das coisas tais quais ele as observava. O mesmo se pode dizer de sua
teoria segundo a qual a soberania só se mantém por quatro gerões.
O que impressiona no pensamento de Ibn Khaldūn é o realismo, a ausência
de apriorismo, o determinismo científico, em uma palavra, a modernidade.
Compreende -se por que esse genial filósofo da história tem sido considerado
precursor da hisria “total”, da economia social e até mesmo da sociologia
moderna e do materialismo histórico, não obstante sua obra também eviden-
ciar traços próprios do homem de seu tempo e de seu meio. É um sacrigio
querer interpretar anacronicamente esse monumento, edificado com tanto
senso de proporção gras a um equilíbrio constante entre o realismo, fruto da
observação, e o racionalismo, que explica e deduz leis inelutáveis.
Embora sua História universal (Kitāb al -‘Ibār) não aplique o método preco-
nizado em sua “Introdução à profissão de historiador”, diferentemente dos anais
árabo -muçulmanos tradicionais, ela estuda primeiro a história das cabilas árabes
e de suas dinastias, e depois a dos berberes e de seus reinados. Constitui, para o
período mais próximo da vida do autor, a fonte documentária fundamental.
C A P Í T U L O 6
133
O Mali e a segunda expansão manden
O povo Manden (Mandenka ou Mandingo) compreende vários grupos e
subgrupos, dispersos por toda a zona sudano -saheliana, do Atntico até o maco
do Air, com projeções bastante profundas nas florestas do golfo do Benin. No icio
do culo XII, pom, o habitat dos Manden era muito mais restrito. No apogeu do
Império de Gana, ao findar o século XI, podiam -se distinguir três grandes grupos:
os Soninke ou Sarakolle, fundadores de Gana, ocupavam especialmente as províncias
de Wagadu (Awker), Baxunu (Bakhunu) e Kaniaga; ao sul, aos s dos montes de
Kulikoro, estavam instalados os Sosoe, ou Sosso, que tinham sua capital na cidade
de Sosoe; e, ainda mais ao sul, viviam os Maninka ou Malinké, do terririo cha-
mado Mande ou Manden, situado na bacia do alto Níger, entre Kangaba e Siguiri.
Os Soninke, também conhecidos como Marka ou Wakore (Wangara)
1
fundaram o
Império de Gana, primeira expressão da expansão manden
2
. Quando o império ruiu,
sob os repetidos ataques dos Almorávidas, os Soninke já haviam deixado em grande
1 A palavra Wangara (que os franceses escrevem Ouangara) é utilizada pelos Fulbe (Peul) e Haussa
(Hawsa) para designar os Manden (ou Mandingo). Wangara e Wakore têm a mesma origem, embora
Wakore se aplique mais especicamente aos Soninke (ou Sarakolle). Na oresta da Costa do Marm,
os Manden (Mandingo) são conhecidos como Jula (ou Diula ), que signica comerciante, em língua
malinké. Wangara e Jula (Diula) são sinônimos e indicam, mais particularmente, os Manden (Mandingo)
que se dedicam ao comércio.
2 Segundo MAHMŪD KA‘TI, 1964, “o Império do Mali se constitui realmente depois da queda da
Dinastia dos Kayamaga, cujo poder se estendia por toda a região ocidental, sem exceção de nenhuma
província”.
O Mali e a segunda expansão manden
Djibril Tamsir Niane
134
África do século  ao século 
número o Wagadu natal, para se mesclarem com os povos das margens do Níger,
onde se estabeleceram. A busca do ouro levou -os longe, em direção do sul, até
a orla da floresta. Acredita -se que a cidade de Djenné – que teve seu apogeu no
século XV tenha sido fundada por comerciantes Soninke, provavelmente muito
antes da chegada dos árabes à rego.
Neste ponto, impõe -se uma pequena digressão sobre o desenvolvimento de
Djenné. Nos últimos anos, tem -se obtido mero cada vez maior de informações
sobre a cidade e seus arredores; seu antigo sítio, chamado Djenne -Djeno, foi estudado
por arqueólogos, e os resultados colhidos provam que o desenvolvimento da cidade
não se deve ao corcio transaariano promovido pelos árabes a partir dos culos
IX e X. Na verdade, a ocupação mais antiga de Djenne -Djeno remonta ao culo
III antes da era cristã; a cidade foi constrda por populações que se dedicavam à
agricultura, à criação de animais e ao trabalho do ferro
3
. Excetuando -se o planalto
de Bauchi, na Nigéria, a antiga cidade de Djenne -Djeno é o único lugar da África
ocidental no qual se evidenciou a prática da metalurgia à época.
O arroz era cultivado na região desde o século I da era cristã; assim, se
a cultura da variedade africana desse cereal (Oryza glaberrima) remonta a essa
data pelo menos, fica definitivamente refutada a tese dos que pretendem que
a planta é originária da Ásia. Por volta do século III, Djenne -Djeno era uma
grande cidade, com pequenas aldeias de agricultores, em contato com aldeias
maiores, espalhadas ao longo do rio Níger e de seu afluente, o Bani
4
.
Por volta do ano 500 existia um comércio transaariano, conforme atestam
objetos de cobre encontrados em Djenne -Djeno datados desse período; esse metal
poderia provir das minas do Saara, mais especificamente, de Takedda. Por essa época
a cidade atingiu sua exteno máxima, a saber, 34 hectares; sua periferia também era
amplamente povoada, como provaram escavações efetuadas em 1977.
Quando e por que a população abandonou Djenne -Djeno para se instalar em
Djenné? É provável que o cleo de comerciantes mulmanos da antiga cidade
tenha preferido afastar -se da grande massa, que se conservara pa. Por volta do ano
800, a nova cidade era importante centro comercial, em ligação com os terririos
da savana e do Sahel. Tal como Igbo -Ikwu, na foz do Níger, Djenné era grande
importadora do cobre do sul, que trocava por ouro, nozes - de -cola e marfim
5
.
3 Ver McINTOSH & McINTOSH, 1981.
4 A arqueologia conrma as informações do Ta’rīkh al -Sūdān: a região de Djenné era tão populosa e as
aldeias tão próximas umas das outras que as ordens do rei eram proclamadas do alto dos bastiões e
retransmitidas de aldeia em aldeia pelos arautos. O limo depositado pelos dois rios era muito fértil e
facilitava o cultivo do arroz.
5 Ver o capítulo 14 deste volume.
135
O Mali e a segunda expansão manden
O cobre encontrado em Djenné e Igbo -Ikwu, datado de antes do século VIII,
constitui prova de que os árabes foram responsáveis tão -somente pela ampliação
do comércio transaariano. A atividade comercial dos Wangara, ou Jula, é anterior
à chegada dos árabes à região. Através da guerra e do comércio, os Wangara
puderam estender amplamente em todas as direções sua área de influência.
Após a queda de Kumbi -Sāleh, no final do século XI, iniciou -se um período
sobre o qual pouco se conhece. Desse espaço de tempo entre a conquista da
cidade pelos Almorávidas, por volta de 1076, e a vitória de Sundiata em 1235,
data em que nasceu o Mali, são poucas as fontes escritas de que dispomos
relativas ao Sudão ocidental. A segunda expansão manden correspondeu ao
surgimento do Mali. Partindo do alto Níger, os clãs Maninka levaram a guerra
até o Atlântico, a oeste, e estabeleceram -se na Senegâmbia. No século XIV,
os mercadores mandenka (mandingo) introduziram o Islã nas terras haussa e,
seguindo para o sul, chegaram a penetrar a floresta, onde iam comprar de povos
não convertidos ao Islã ouro e as preciosas nozes -de -cola.
Essa expansão dos Mandenka teve ao mesmo tempo caráter pacífico e guerreiro.
No território haussa, e em direção ao sul, ela se deveu aos mercadores e aos marabus,
enquanto na Senembia, a oeste, foi, a princípio, belicosa; após os conquistadores,
contudo, marabus e mercadores acorreram em grande número à rego. Com isso,
as províncias ocidentais tornaram -se um prolongamento do antigo Manden.
O Império Manden entrou em declínio no século XV; no entanto manteve
sua atividade expansionista, sobretudo em direção ao sul, onde os Maninka
fundaram vários centros comerciais, sendo um dos mais importantes Begho, no
território bron ou akan, particularmente rico em ouro.
No presente estudo procuraremos identificar os primórdios dessa expansão e seu
desenvolvimento entre os séculos XIII e XIV, e distinguir os traços fundamentais da
civilização manden. Antes, pom, duas questões devem ser respondidas: 1) Qual era
a situação do Sudão ocidental no icio do século XII? 2) Como se apresentavam os
povos e reinos da rego após a queda de Kumbi -Sāleh?
Reinos e províncias do Sudão ocidental no século XII
Kumbi -Sāleh, capital de Gana, caiu em poder dos Almorávidas em cerca
de 1076. Muito pouco se conhece da história do Sudão no século XII; entre
as valiosas informações fornecidas por al -Bakr por volta de 1068 e os relatos
do geógrafo al -Idrs, escritos em 1154, há uma grande lacuna documental.
Contudo, após a independência dos Estados da África ocidental, passaram a
136
África do século  ao século 
ser feitas coletas de tradições orais, através das quais começamos a conhecer a
história interna de Gana posterior à queda de Kumbi -Sāleh
6
; os ta’rīkh sudane-
ses do século XII, baseados em tradições orais, incluem sequências importantes
sobre o conjunto do Sudão ocidental. A essas fontes, acrescente -se o papel cada
vez mais significativo da arqueologia: escavações realizadas nos últimos vinte
anos nos sítios das cidades de Kumbi -Sāleh, Awdaghust e Niani forneceram
abundante material e confirmaram muitos dados da tradição oral
7
.
O Takrūr
Desde meados do culo XI
8
, o Takrūr, como o Manden e outras províncias
importantes, o mais se encontrava sob o domínio de Gana. Wardjabi, rei do
Takrūr, convertido ao Islã, tomara parte ativa na guerra santa iniciada pelos Almo-
rávidas; seu filho Labi (ou Laba) deu prosseguimento a essa política de aliança
com os Almorávidas, tendo ao lado deles combatido os Godala
9
em 1056.
Mantendo o domínio sobre o rio Senegal e o controle sobre as minas de ouro
de Galam, o Takrūr por algum tempo tomou o lugar de Kumbi -Sāleh como
centro comercial. Segundo al -Idrs, no século XII o Takrūr era poderoso reino,
e sua autoridade sobre o rio Senegal, incontestável; além de haver anexado a
cidade de Barissa, tinha sob o controle de seus reis as minas de sal de Awlil.
Nessa época, o Takrūr era o reino mais conhecido dos árabes depois de
Gana. Ao que parece, seus comerciantes chegaram a superar os de Gana, que
se viam prejudicados pela guerra civil que devastava as proncias soninke
de Wagadu, Baxunu, Kaniaga e Nema (ou Mema). O Senegal, navegável até
Gundiuru (rego de Kayes), constita moda via de penetrão para os
comerciantes do Takrūr (ou Tukuloor), que dele se serviam para trocar o sal de
Awlil por ouro, adiante de Barissa
10
.
Parece cada vez mais evidente que o apogeu do reino do Takrūr se deu entre
o término do século XI e a metade do XII. Antes da emergência do Sosoe e do
Mali, foi o Takrūr que exerceu papel econômico de primeiro plano; assim, não é
de se estranhar que os árabes designassem por Takrūr todo o Sudão ocidental.
As cidades de Sangana, Takrūr e Sylla eram frequentadas por comerciantes
árabo -berberes; a queda de Kumbi -Sāleh não interrompera o tráfico do ouro; ao
6 SYLLA, 1975.
7 ROBERT, ROBERT & DEVISSE, 1970.
8 Ver AL IDRĪSĪ, 1866; ver também IBN SA‘ĪD, in CUOQ, 1975.
9 Os Godala, ou Gdala, faziam parte das cabilas berberes Sanhadja, que viviam no Saara.
10 AL IDRĪSĪ, 1866; ver também IBN SA‘ĪD, in CUOQ, 1975, p. 201 -5.
137
O Mali e a segunda expansão manden
contrário, o Takrūr por certo tempo ocupou o espaço deixado por Kumbi -Sāleh
11
.
A cidade de Takrūr, como a descreve al -Bakr, era uma grande metrópole que,
da mesma forma que Kumbi -Sāleh, tinha um bairro de árabo -berberes.
No entanto o reino do Takrūr restringiu sua área de influência à bacia do rio
Senegal, não tomando parte na luta pela hegemonia, que opunha os Soninke e
Maninka aos Sosoe.
O Songhai
O Império de Gana não estendeu seu domínio ao Songhai. Este reino, antigo,
desde cedo manteve relações com o Magreb; seus reis, convertidos ao Islã por volta
11 Al -BAKRĪ, AL -IDRĪSĪ e IBN SA‘ĪD citam as cidades do Takrūr, mas até hoje não se empreendeu
qualquer trabalho de envergadura para localizar os sítios de tais centros, enterrados pelo deserto ou
destruídos por guerras. A tradução do livro de al -Bakr é muito antiga; relendo -a, é possível, hoje,
decifrar nomes de lugares e pessoas. As cidades de Sangana, Takrūr e Barissa, porém, ainda não foram
localizadas ao longo do rio Senegal.
F . Kumbi -Sāleh. As escavações mostram partes da mesquita construída entre os séculos X e XIV.
(Clichê I. M. R. S.)
138
África do século  ao século 
F . Toguéré Galia. Corte com três urnas funerárias
in situ.
Datação:
posterior ao Pe
ríodo II
(1600
?).
(Clichê G.
Jansen.)
F . Toguéré Galia. Plano geral do outeiro interceptado pelo rio Bani, visto de oeste. (Clichê G.
Jansen, Instituto de Antropobiologia, Universidade do Estado, Utrecht.)
139
O Mali e a segunda expansão manden
F . Tog Doupwil.
Corte C com urna funerária contendo
um esqueleto
in situ.
Indivíduo adulto,
certamente masculino, em posição fIe-
tida. Datação: Período I,culo XIII-
-XIV? (Clichê G. Jansen.) (Fonte:
Palaeohistoria
n. XX, 1978, Recherches
archéologi
ques dans le delta intérieur
du Niger.)
F . Togré Doupwil.
Corte C com urna funerária
in situ.
A tampa é selada com moldura de
argila. Datação: Período I, culo
XIII -XIV?
(Clichê
G. Jansen.)
140
África do século  ao século 
de 1010, haviam atraído para Kūkya e Gao letrados e mercadores árabo -berberes
12
.
Foi no final do século XI que os Songhai subiram o Níger, partindo de Kūkya, no
Dendi, para ocupar a curva do rio, transferindo para Gao a capital, até então em
Kūkya. Em cerca de 1100, ao final do século V da Hégira, os tuaregues Magcharen
fundaram a cidade de Tombuctu.
Vinham a essas regiões apascentar seu rebanhos... No início, era ali que se encon-
travam os que viajavam por terra e os que vinham pela água”
13
.
Os Songhai não tardaram a ocupar toda a curva do Níger. Sua instalação em Tom-
buctu fez dessa nova cidade importante ponto de cruzamento das rotas comerciais.
A progressão dos reis de Gao rumo ao delta interior do Níger parece indicar que
eles também pretendiam desempenhar papel político na região; no entanto sua hora
ainda não tinha chegado.
As províncias soninke
A tomada de Kumbi -Sāleh provocou uma série de guerras e de desloca-
mentos de população entre os Soninke. Antes mesmo de cair em mãos dos
Almorávidas, Kumbi -Sāleh contava numerosos adeptos do Islã entre seus
mercadores; conta -nos al -Bakr que um parente do rei havia se convertido à
nova religião: A cidade de Aluken [...] obedece a um senhor de nome Canmer,
filho de Beci [o rei]. Dizem que ele é muçulmano, porém oculta sua fé
14
. Não
esqueçamos que, desde o século VIII, Gana mantinha relações comerciais com
o Magreb. Na corte, havia muçulmanos árabo -berberes ocupando altos pos-
tos
15
; mas, de modo geral, a massa da população conservava -se fiel à religião
dos ancestrais. Lutas confusas opuseram as proncias umas às outras e, no
interior delas, os clãs.
Wagadu, província central, foi palco de sangrentas guerras civis; alguns
grupos Soninke que se haviam mantido fiéis aos ritos antigos fugiram para a
província de Nema, onde se estabeleceram
16
; lutas de igual natureza também
12 Ver o capítulo 3 do volume III. O rei Za -Kosoi converteu -se ao Islã em 1010; ver AL -SA‘DĪ’, 1964, p.
5. AL BAKRĪ fala em Kūgha, ou Gao, “cujos habitantes são muçulmanos [...] As mercadorias que
chegam em maior quantidade são o sal, os cauris, o cobre e o eufórbio.” In CUOQ, 1975, p. 365.
13 AL -SA‘DĪ’, 1964, p. 36 -7.
14 AL -BAKRĪ, 1965, p. 335.
15 Ver o capítulo 3 do volume III.
16 LEVTZION, 1973, p. 46 -9; MONTEIL, C., 1929, p. 353.
141
O Mali e a segunda expansão manden
dividiram os habitantes de Kaniaga. A propósito dessa última província, escreve
Mahmūd Kati:
Havia em Kaniaga uma cidade importante e antiga, anteriormente instalada em Zara
(Diara), e que servia de capital; chamavam -na Sain Demba; era a principal cidade dos
habitantes do Diafunu, chamados Diafununke. Existia desde o tempo dos Kayamaga
e arruinou -se quando dos distúrbios que se seguiram à derrota destes. Foi após a
destruição do Império de Kayamaga que se edificou Zara. Parte dos habitantes do
império emigrou para Kussata a eles se deu o nome de Kussa. Outros seguiram
para Diara; foram vencidos pelo Kaniaga faren, que tomou seu reino e submeteu os
árabes que ali viviam, chegando até Fututi, Tichit e Takanaka
17
.
O reino de Zara participou das lutas pela hegemonia e enfrentou os Sosoe,
na época em plena expansão.
A hegemonia sosoe
Foi de curta duração e situou -se entre 1180 e 1230. Ao findar o culo XII, o
povo Sosoe, sob a dinastia dos Kante, entrou em guerra contra os mulmanos.
Os Sosoe
Constituem uma frão do grupo Maninka. Segundo a tradão, o sítio de
sua capital, Sosoe, estaria na região de Kulikoro, nas montanhas (a 80 km ao
norte de Bamako)
18
. Mas até o presente, ao contrio do que se fez em Gana e
no Mali, não houve pesquisas na região para tentar identificar suas rnas. Os
Sosoe, na verdade, não passavam de um clã Maninka especializado na meta-
lurgia do ferro. Desde meados do culo XII, esse clã de ferreiros manifestou
a firme vontade de repelir o Islã e impor -se no espaço soninke
19
. De acordo
com a lenda, o c Soninke dos Jarisso (Diarisso) tornou -se independente de
Gana antes mesmo da queda de Kumbi -Sāleh; os Kante tomaram o poder no
Sosoe e no Kaniaga, e fundaram uma dinastia. O rei Sosoe Kemoko, no final
do século XII, juntou o Kaniaga e o Sosoe num reino; seu filho Sumaoro
17 KA‘TI, 1964, p. 70 -1; sobre os Kussa, ver MEILLASSOUX, DOUCOURÉ & SIMAGHA, 1967, p. 9.
18 Foi a cidade que deu nome ao povo. Os Sosoe constituíam uma fração dos Maninka, estando, a única
diferença entre os dois grupos, no fato de que os Maninka e seus reis eram favoráveis ao Islã, enquanto
os Sosoe mostravam -se hostis à nova religião e apegados às tradições ancestrais.
19 LEVTZION, 1973, p. 51.
142
África do século  ao século 
(ou Sumanguru) Kante sucedeu -lhe no trono e deu prosseguimento a suas
conquistas.
Sumaoro Kante
As tradições orais mandenka (mandingo) relatam as façanhas de guerra de
Sumaoro Kante, cujo reinado se situa entre 1200 e 1235
20
. Segundo essas fontes,
depois de submeter as províncias soninke, Sumaoro Kante atacou o Manden,
cujos reis lhe opuseram obstinada resistência; Sumaoro teria “quebrado (saque-
ado) nove vezes o Manden; a cada vez, porém, os Maninka recompuseram suas
forças e revidaram o ataque
21
. Após a morte do rei Nare Fa Maghan, seu filho
mais velho, o mansa Dankaran Tuman, entendeu ser mais prudente compor -se
com Sumaoro Kante. Para melhor marcar sua submissão, deu -lhe em casamento
a irmã, a princesa Nana Triban; a autoridade do rei de Sosoe estendia -se a todas
as províncias outrora sob o domínio de Gana, com exceção do Manden.
As tradições orais enfatizam a crueldade de Sumaoro Kante: ele fez reinar o
terror no Manden a tal ponto que os homens o se atreviam sequer a conversar,
de medo que o vento levasse suas palavras ao rei”. Sumaoro Kante atemorizava os
povos tanto pela força militar quanto pelo poder mágico; com efeito, era temido
como grande mago ou feiticeiro. Chamavam -no de Rei -Feiticeiro
22
. A ele se atri-
bui também a invenção do balafo e do dan, violão tetrardio usado pelo griot dos
caçadores. Mas é outro aspecto de Sumaoro Kante, inteiramente distinto deste, que
nos revelam as pesquisas realizadas entre os ferreiros kante: ao que parece, ele teria
tentado suprimir o tráfico de escravos, exercido pelos Soninke com a conivência
dos Maninka. O que de comum porém, em todos os relatos, é que Sumaoro
20 A cronologia do Mali foi estabelecida por Maurice Delafosse com base na duração dos reinados
registrada por Ibn Khaldūn. Trata -se, porém, de cronologia relativa; seu término ad quem é dado
pelo início do reinado de Maghan III, em 1390, evento referido por Ibn Khaldūn, que concluiu sua
História dos berberes logo após essa data.
21 Sobre a lenda de Sumaoro Kante, ver DELAFOSSE, 1913; MONTEIL, C., 1929; NIANE, 1960;
PREMIER COLLOQUE INTERNATlONAL DE BAMAKO, 1975; INNES, 1974.
22 Ver PREMIER COLLOQUE... Uma tradição recolhida pelos pesquisadores da Fundação SCOA,
que a ouviram de Wa Kamissoko, griot de Kirina, arma que a intenção inicial de Sumaoro Kante era
unicamente expulsar do país os mercadores soninke, que alimentavam o tráco de escravos. Os Maninka
repeliram, porém, os propósitos do rei de Sosoe.
Constata -se que é possível ainda recolher boas informações sobre esse período mediante o estudo das
sociedades secretas, das confrarias de caçadores, que conservam as tradições não -ociais como as dos
descendentes de griots que serviam os príncipes do Mali.
Obs.: A palavra francesa griot é usada aqui para referir o menestrel da tradição africana (dieli, em
bambara), embora não seja muito precisa, sob certos aspectos. Sobre as funções do dieli/griot, ver o
capítulo 8, de autoria de A. Hampa, no volume I, especialmente p. 202 -8.
143
O Mali e a segunda expansão manden
Kante foi feroz adversário do Islã – teria vencido e matado nove reis. Os excessos
do Rei -Feiticeiro levaram os habitantes do Manden a se revoltarem uma vez mais.
Estes tentaram persuadir o mansa Dankaran Tuman a coman-los; contudo,
temendo as represálias de Sumaoro Kante, o rei do Manden fugiu para o sul e
fundou, em plena floresta, Kissidugu, a cidade da salvação”. No vazio de poder que
resultou da deserção do mansa, os insurretos recorreram a Sundiata Keita, segundo
filho de Nare Fa Maghan, que eno vivia exilado em Nema
23
. Antes, pom, de
tratarmos das guerras e conquistas do jovem príncipe, convém apresentarmos em
linhas gerais um quadro do Manden, núcleo do futuro Império do Mali
24
.
O Manden antes de Sundiata
Fontes escritas
Al -Bakr, no século XI, foi o primeiro viajante a mencionar o Mali que
chama de Malel e o reino de Do.
Os negros Adjemm, denominados Nungharmata [Wangara], são negociantes e
transportam ouro em de Iresni para outros países. Defronte dessa cidade, do outro
lado do rio [Senegal], existe um grande reino cuja travessia exige oito jornadas e
cujo soberano porta o título de du [do]. Seu povo vai à guerra armado com flechas.
Para além das fronteiras desse país, outro, chamado Malel, cujo rei tem o título
de al -Muslimani
25
.
Um século mais tarde, al -Idrs retoma as informações de al -Bakr,
acrescentando - lhes detalhes interessantes. Conta que, ao sul de Barissa (a Iresni
referida por al -Bakr), encontrava -se o território dos Lem -Lem, alvo constante
das incursões dos habitantes do Takrūr e de Gana, que buscavam escravos. O
geógrafo árabe refere -se a duas cidades, Malel e Do
26
, separadas por quatro dias
de marcha.
23 NIANE, 1960.
24 No presente estudo, para evitar -se qualquer confusão, Manden designará o núcleo original dos Maninka
(Malinké). Empregaremos o termo Mandenka (Mandingo) para indicar todos os povos que se aparentam
linguisticamente aos Soninke e Maninka. Sob diversas denominações, encontram -se falantes da língua
do Manden nas Repúblicas da Guiné, do Mali, do Senegal, da Guiné -Bissau, da Costa do Marm, do
Burkina Fasso (ex -Alto Volta), da Libéria, de Serra Leoa etc. Essa expansão, a partir do núcleo central,
ocorreu entre os séculos XII e XIX.
25 AL -BAKRĪ, in CUOQ, 1975, p. 33. Na mesma passagem, o autor descreve as circunstâncias em que o
rei do Manden foi convertido por um hóspede muçulmano que vivia em sua corte.
26 AL -IDRĪSĪ, in CUOQ, 1975, p. 132.
144
África do século  ao século 
Os dois autores referem duas entidades políticas, o Malel (ou Mand) e Do;
ambos mencionam os comerciantes Wangara. É interessante notar que al -Idrs
conta que os habitantes de Gana e do Takrūr organizavam ataques -surpresa às
terras dos pagãos no intuito de fazer prisioneiros e vendê -los como escravos;
na mesma passagem, al -Idrs assinala que os Lem -Lem marcavam o próprio
rosto (tratava -se de estigmas ou escarificações): em muitos detalhes, todas essas
descrições se aplicam aos povos do alto Níger e do Senegal
27
.
Fontes orais
As fontes orais permitem -nos conhecer, a partir de uma perspectiva interna,
a história da região; há duas décadas elas vêm sendo coletadas em toda a zona
da savana. Existem vários centros, ou “escolas”, de tradições orais no territó-
rio mandenka (mandingo). Citemos, entre elas, Keyla, nas proximidades de
Kangaba, mantida pelos griots do clã Diabate; Niagassola; Djelibakoro; Keita;
Fadama etc. (ver fig. 6.6)
28
. As tradições ensinadas nestas escolas” dirigidas
pelos Mestres da Palavra”, ou belen -tigui, constituem variantes do corpus da
história do Mali, que tem como personagem central a figura de Sundiata
Keita. Com diferença de pormenores, os principais traços acerca das origens
do Mali e das façanhas militares do fundador do império são os mesmos em
todas as “escolas”.
Estas fontes confirmam que, inicialmente, existiam dois reinos o de Do e
o de Kiri, ou Manden. O último nome veio a designar, mais tarde, o conjunto
dos territórios maninka. O reino de Do, ou Dodugu, era habitado pelo clã dos
Konde e situava -se ao norte do território de Kiri (Manden), habitado pelos
Konate e pelos Keita. O cdos Kamara tinha como principais cidades Sibi e
Tabon e aos poucos foi conquistando toda a margem direita do rio Níger. Os
27 DELAFOSSE, 1913; MONTEIL, C., 1929, p. 320 -35. Malel ou Mali designa o núcleo original do
qual partiram os Maninka para criar o Império do Mali.
28 Situada a 10 km da cidade de Kangaba (na República do Mali), Keyla é a aldeia dos griots que conservam
as tradições orais da família imperial dos Keita.
É
o cDiabate de Keyla que organiza, a cada sete
anos, a cerimônia de restauração do telhado da Cabana -Museu (ou kamablon) de Kangaba. Durante as
festividades que marcam essa cerimônia, o chefe do clã Diabate conta a história de Sundiata Keita e a
gênese do Império do Mali. Kita é outro centro de tradições orais. Massa Makan Diabaté, da grande
família dos griots dessa região, recolheu e transcreveu os relatos do tio, o célebre Kele Monzon (ver
DIABATÉ, 1970). Fadama, às margens do rio Niandan, na Guiné, é centro de tradições orais dirigido
pelos griots Konde (ou Condé); outro centro, também na Guiné, é o de Djelibakoro.
É
possível ainda
recolher tradições orais em Niani, pequena aldeia dos Keita, localizada no sítio da antiga capital (na
Guiné). Na Senegâmbia, os griots ensinam história, porém, a par da gesta de Sundiata Keita, atribuem
grande importância a seu general Tiramaghan Traore, que conquistou a região e é considerado o
fundador do reino de Gabu ou Kaabu (entre o rio mbia e o Rio Grande).
145
O Mali e a segunda expansão manden
 . Mapa do antigo Manden. (D. T. Niane.)
146
África do século  ao século 
Traore, por sua vez, ocupavam parte de Kiri, mas, na sua maioria, viviam na pro-
víncia que mais tarde teria o nome de Gangaran. O poderoso reino de Dodugu
contava 12 cidades, cujos nomes a tradição não conservou, e a margem direita
do Níger (ou Bako, ou ainda, Mane), quatro
29
.
As tradições históricas da região confirmam, portanto, as informações escri-
tas quanto à existência de pelo menos dois reinos, Do e Malel (ou, segundo a
tradição oral, Do e Kiri). A unificação dos dois será efetuada pelo Malel, e o
nome Do irá desaparecer.
Al -Bakr informa -nos que o rei do Malel se converteu ao Islã antes da queda
de Kumbi -Sāleh, mas é Ibn Khaldūn quem nos fornece o nome desse monarca:
Barmandana ou Sarmandana
30
. É possível identifi-lo com um mansa Beremun
da lista de reis mandenka (mandingo) que Massa Makan Diabaté recolheu em
Kita
31
. Todos os pequenos reinos do alto ger foram unificados pela ação dos reis
do clã Keita, entre os séculos XI e XII. Segundo Ibn Khaldūn, o rei Barmandana
converteu -se ao Islã e foi em peregrinação a Meca; ora, essa expedição poderia
ter sido realizada se em seu tempo Do e Kiri já constituíssem um único reino, ou
se, pelo menos, o Malel já fosse bastante poderoso.
Os Keita, fundadores do Mali, acreditam ser descendentes de Dion Bilali (ou
Bilali Bunama ou Bilāl ben Rabāh), companheiro do Profeta Maomé e primeiro
almuadem ou muezim (mu’addhin) da comunidade muçulmana
32
. Seu filho
Lawalo ter -se -ia instalado no Manden, fundando a cidade de Kiri ou Ki
33
.
O filho de Lawalo, Latal Kalabi, era pai de Damal Kalabi, cujo filho, Lahila-
tul Kalabi, foi o primeiro rei do Manden a fazer a peregrinação a Meca. O neto
de Lahilatul Kalabi, Mamadi Kani, mestre -caçador
34
, estendeu a dominação
dos Keita aos reinos do Do, Kiri, Bako e Burem. Na sua maioria, esses reis
29
É
uma fórmula vocal que nos essa informação: Do ni Kiri, Dodugu tan nifla; Bako dugu nani, isto é,
“Do e Kiri, país das doze cidades; Bako, reino das quatro cidades”. MONTEIL, C. (1929, p. 320 -1)
acredita terem existido dois reinos, o Mali setentrional e Mali meridional. Este último desenvolveu -se
sob Sundiata Keita, vindo a tornar -se o Império do Mali. O berço dos Keita é a região montanhosa
do Manden, em torno das cidades de Dakadiala, Narena e Kiri. Ainda hoje, uma província da região
de Siguiri (Guiné) tem o nome de Kende (Manden). Mali é uma alteração da palavra Manden, que se
processou entre os Fulbe; Mellit é a variante berbere.
30 Ver IBN KHALDŪN, in
CUOQ,
1975.
31 DIABATÉ, M., 1970.
32 Ver LEVITZION, 1973, p. 53 -61; MONTEIL, C., 1929, p. 345 -6. A adoção de ancestrais muçulma-
nos originários do Oriente era prática corrente nas cortes sudanesas.
É
de se notar que os Keita não
reivindicam um ancestral branco, mas um negro abissínio, Bilāl ben Rabāh.
33 Ki signica trabalho; Kele Monzon exalta o trabalho quando canta a origem de Kiri: “No princípio era
o trabalho”. Ver DIABATÉ, M., 1970, p. 9.
34 NIANE, 1960, p. 15 -6.
147
O Mali e a segunda expansão manden
foram grandes caçadores; ao que parece, a primeira força militar do Man-
den era constituída de cadores
35
. No território maninka, até data recente,
os cadores formavam uma associação bastante fechada, que tinha a fama
de possuir muitos segredos do bosque e da floresta; o tulo de simbon, ou
mestre -caçador, era bastante cobiçado. Os cadores, relata a tradão, foram
os primeiros defensores das comunidades alds. Para formar seu ercito,
Mamadi Kani reuniu os cadores que pertenciam aos clãs Kamara, Keita,
Konate e Traore.
O reinado de Mamadi Kani pode ser datado do começo do século XII.
Este soberano teve quatro filhos, um dos quais, o simbon Bamari Tagnogokelin, foi
pai de Mbali Nene, cujo bisneto Maghan Kon Fatta (ou Farako Maghan Kegni) foi
pai de Sundiata Keita, o conquistador fundador do Império do Mali. Maghan Kon
Fatta reinou no icio do século XIII, quando o Sosoe se encontrava em plena expan-
são sob a Dinastia dos Kante. Após sua morte, o filho mais velho, o mansa Dankaran
Tuman, subiu ao trono, porém Sumaoro Kante, rei de Sosoe, anexou o Manden.
Assim, segundo a tradição
36
, dezesseis reis precederam Sundiata Keita no
trono. As listas de reis diferem de “escola para “escola”; a de Kele Monzon, de
Kita, menciona, como vimos, um certo mansa Beremun, que identificamos como
sendo o Barmandana (ou Baramundana) de Ibn Khaldūn. As tradições orais do
Siguiri citam Lahilatul Kalabi como primeiro rei manden a fazer peregrinação
a Meca. Todas as tradições concordam, porém, em afirmar que os primeiros reis
foram mestres -caçadores” ou simbon, e todas enfatizam o fato de o Islã ter sido
introduzido bem cedo no Manden.
Os caçadores desempenharam papel de primeiro plano nas origens do Mali;
a mãe de Sundiata Keita foi dada em casamento a Maghan Kon Fatta por
caçadores do clã Traore
37
. Os membros dos clãs a que pertenciam dominavam
vasto território, o Gangaran, a noroeste do Burem, anexado ao Manden pouco
antes do reinado de Farako Maghan Kegni.
A união dos clãs Maninka (Malinké)
Sob o reinado do mansa Dankaran Tuman, os Maninka (Malinké)
sublevaram -se mais uma vez contra a autoridade de Sumaoro Kante; diante
35 Ibid., p. 16.
36 Ibid., p. 14 -7.
37 CISSÉ, 1964, p. 175 -6.
148
África do século  ao século 
da fuga do rei, apelaram, conforme dissemos, para seu irmão Sundiata. A
guerra que opôs o Manden ao Sosoe situa -se entre 1220 e 1235.
A personalidade de Sundiata Keita
É bem provável que, se Ibn Battūta e Ibn Khaln não tivessem mencionado o
conquistador em seus escritos em 1353 e 1376 respectivamente, os historiadores
europeus considerassem Sundiata Keita ancestral mítico ou lenrio, tamanha é a
imporncia dele na hisria tradicional do Mali.
O mais poderoso desses monarcas foi o que submeteu os Susso [Sosoe], ocupou-
- lhes a cidade e tomou -lhes o poder supremo. Chamava -se Mari Diata; na sua
ngua, mari quer dizer emir, diata significa lo. Esse rei, cuja genealogia não
pudemos descobrir, reinou vinte anos, de acordo com o que me foi narrado
38
.
Ibn Khaldūn consultou as fontes originais; além disso, foi o único autor da
época a citar os Sosoe, que tinham hegemonia no espaço soninke -maninka.
Mas o que mais sabemos de Sundiata Keita? Se os escritos nos dizem pouco, a
tradão oral sobre seus feitos mais noveis
39
é prolixa. Sundiata Keita teve infância
difícil; durante muito tempo sofreu de paralisia nas pernas, motivo pelo qual sua
e, Sogolon Konde, era objeto do escárnio das outras esposas do rei. Quando
finalmente conseguiu andar, Sundiata tornou -se chefe de seu grupo etário; pom,
perseguido por Dankaran Tuman, teve que fugir com a mãe e o irmão Mande
Bugari (Abubakar)
40
. Esse exílio (nieni na bori) durou longos anos; como nenhum
chefe maninka se atrevesse a hospedá -los, precisaram seguir para Gana: Sundiata
Keita foi bem recebido em Kumbi -Sāleh, porém acabou por se estabelecer em
Nema com a e e o iro. O rei de Nema, o mansa Tunkara ou Nema Farin
Tunkara, admirado com a bravura do jovem Diata confiou - lhe tarefas de grande
responsabilidade. Foi em Nema que os mensageiros do Manden o encontraram; o
rei forneceu -lhe um contingente de soldados, e ele retomou ao ps de origem.
38 IBN KHALDŪN, in CUOQ, 1975, p. 344.
39 Depois da publicação de Soundjata ou lépopée mandingue, tornou -se sistemática a coleta de tradições
orais. Ver INNES, 1974, que recolheu na Senegâmbia três versões da história de Sundiata; ver também
CISSOKO, 1966; LY -TALL, 1977 e 1981; PREMIER COLLOQUE INTERNATlONAL DE
BAMAKO, 1975, e os colóquios de 1977 e 1980; e o COLLOQUE da Fundação Senghor sobre as
tradições orais da região de Gabu (Kaabu), 1980.
40 NIANE, 1960, p. 56 -73. Com poucas diferenças, a epopEia de Sundiata Keita narrada pelas diversas
escolas” coincide nos pontos essenciais: a difícil infância do herói, seu exílio em Nema, o envio de emissários
à
sua procura, o retorno, a aliança com os chefes de clã e seu juramento, a derrota e desaparecimento de
Sumaoro Kante, proclamação de Sundiata Keita como mansa (rei, imperador).
149
O Mali e a segunda expansão manden
A batalha de Kirina
O anúncio de sua chegada suscitou grande entusiasmo entre os Maninka.
Cada c havia formado um exército, e os principais generais, como Tabon
Wana (Tabon Ghana), pertenciam ao mesmo grupo etário de Sundiata. Tabon
Wana chefiava uma fração dos Kamara, da mesma forma que o primo Kama-
dian Kamara, de Sibi (localizada entre Siguiri e Kangaba). Faoni Konde, Siara
Kuman Konate e Tiramaghan Traore, chefes militares, assumiram essa causa em
comum acordo: encontraram -se com Sundiata na planície de Sibi, e ali selaram
a união de suas forças; Sundiata assumiu a direção das operações militares.
Os Kamara das aldeias de Niani, Selefugu e Tigan, na margem direita do rio
Níger, reunidos em torno do mansa Kara Noro, haviam sido os primeiros a se revoltar,
opondo então viva resistência a Sumaoro Kante, cuja viria se devera unicamente à
atuação do sobrinho Fakoli, general -em -chefe de suas tropas. A luta fora árdua, por-
que os soldados do mansa Kara Noro portavam armaduras de ferro; Fakoli conseguiu
derrotá -los graças à traição da rainha, que lhe entregou o próprio marido.
Para celebrar essa vitória, Sumaoro Kante organizou grandes festas em Niani,
capital do mansa Kara Noro; foi então que rompeu com o sobrinho Fakoli, tam-
bém conhecido como Wana ou Ghana Fakoli. Seduzido pelo talento culinário
de Keleya Konkon, mulher do sobrinho, Sumaoro tirou -a dele. Ofendido, Fakoli
atravessou o Níger com suas tropas e, num gesto de vingança, juntou -se aos
aliados, reunidos em Sibi. Sumaoro perdia, assim, seu melhor lugar -tenente; no
entanto, passou imediatamente à ofensiva. Após duas batalhas indefinidas, os
Maninka se encorajaram. O combate decisivo travou -se em Kirina, lugar difícil
de situar pois, segundo as tradições orais, a atual aldeia de Kirina é de fundação
recente. Sabe -se que o exército de Sumaoro Kante era bastante numeroso; é
difícil, no entanto, sugerir qualquer cifra. Dentre seus generais estava Diolofing
(Jolofing) Mansa, rei do Diolof (Jolof) e chefe dos Tunkara de Kita, também
conhecido como grande feiticeiro. A cavalaria de Sumaoro Kante era célebre:
não havia como resistir a suas cargas. Mas as tropas de Sundiata Keita trans-
bordavam de entusiasmo, e o chefe dos aliados exibia muita segurança. Sua
irmã Nana Triban, que fora forçada a casar -se com Sumaoro Kante, conseguira
fugir de Sosoe e juntar -se a Sundiata; assim, ele detinha o segredo da força de
Sumaoro Kante. Na África antiga, a magia era inseparável de toda e qualquer
ação. Sumaoro Kante era invulnerável ao ferro; seu tana (totem) era uma espora
de galo branco. Mas ele sabia, desde a fuga da mulher e do griot Bala Fasseke
Kuyate, que seu segredo fora violado. Apareceu desanimado no campo de bata-
lha, não tinha a imponência nem a arrogância que tanto inflamam os soldados.
150
África do século  ao século 
Contudo dominou sua perturbação interior e aceitou a batalha. A debandada
dos Sosoe foi completa; Sundiata Keita perseguiu o adversário até Kulikoro, mas
não conseguiu aprisioná -lo. Avançou sobre a cidade de Sosoe e arrasou -a.
A vitória de Kirina não foi apenas um triunfo militar dos aliados; consolidou
também a aliança entre os clãs, e, embora essa guerra de fetiches e magia tivesse
garantido a hegemonia da dinastia dos Keita, paradoxalmente foi o prelúdio da
expansão do Islã, pois Sundiata fez -se protetor dos muçulmanos. A delegação
que partiu em sua busca, quando estava exilado, incluía alguns marabus. Esse
defensor inconsciente do Islã não é citado por nenhum autor árabe do século
XIII, e a batalha de Kirina tampouco aparece nos anais árabes. Contudo Ibn
Battūta relata -nos que Sundiata ou Maridiata converteu -se ao islamismo por
intermédio de um certo Mudrik, cujo neto vivia na corte do mansa Mūsā
41
. As
tradições orais, porém, nele reconhecem o libertador dos Maninka.
A obra de Sundiata Keita
As conquistas militares
Assistido por brilhantes generais, Sundiata dominou quase todos os territó-
rios outrora controlados pelo Império de Gana; as tradições orais conservaram,
dos seus chefes militares, os nomes de Tiramaghan Traore e Fakoli Kuruma (ou
Koroma). O primeiro recebeu a incumbência de invadir o Diolof e combater
Diolofing Mansa, que detivera uma caravana de mercadores encarregada por
Sundiata de comprar cavalos. Depois de vencer o rei do Diolof, Tiramaghan
levou a guerra à Senegâmbia, conquistando Casamance e a região montanhosa
da atual Guiné -Bissau, o Gabu (ou Kaabu). Tiramaghan é considerado pelos
Mandenka ocidentais fundador de vários reinos, dos quais o mais importante foi
o de Gabu
42
. Quanto a Fakoli Kuruma, submeteu as regiões sulinas limítrofes
41
IBN
BATTA, 1966, p. 63.
42 O episódio de Diolong Mansa é muito importante na epopEia de Sundiata Keita. O rei de Diolof fora
aliado de Sumaoro Kante e, como este, era hostil ao Islã. Tendo conscado os cavalos de Sundiata Keita,
enviou -lhe uma pele, sugerindo que dela zesse sapatos, que não era nem caçador nem rei digno de
montar
a
cavalo. Sundiata teve um acesso de cólera e encerrou -se, sem ver ninguém, durante vários dias;
quando reapareceu, reuniu seus generais e ordenou o ataque ao Diolof. Tiramaghan suplicou -lhe que
o autorizasse a ir sozinho combater o inimigo, alegando que para essa tarefa não havia necessidade de
mobilizar todas as tropas. Diante da insistência do general, que até ameaçou matar -se caso seu pedido não
fosse atendido, Sundiata Keita conou -lhe um corpo de exército, e ele partiu. Tiramaghan Traore venceu
Diolong Mansa, conquistou a Senegâmbia e o
Gabu.
Sua gesta é cantada pelos griots do Gabu em longos
poemas acompanhados pelo som da kora. Várias aldeias do Gabu armam que são depositárias dos restos
de Tiramaghan Traore. Contudo, segundo certas tradições do Gangaran o vencedor de Diolong Mansa
teria retornado ao Mali. (Ver
CISSOKO,
1981a e b e LY -TALL, 1981.) Ainda não foram realizadas
coletas de tradições orais no alto Gâmbia e no Senegal oriental; essas regiões possuem sítios e aldeias de
grande importância para o conhecimento da expansão dos Manden em direção a oeste.
151
O Mali e a segunda expansão manden
da floresta e conquistou o alto Senegal
43
. Pessoalmente, Sundiata Keita venceu
os reis de Diaghan (ou Diafunu) e de Kita, ambos aliados de Sumaoro Kante.
Restabeleceu, assim, a unidade do Sudão ocidental. Seu filho e seus generais
darão prosseguimento a suas conquistas anexando Gao e o Takrūr.
A constituição do Mali
A tradição do Manden atribui ao jovem vencedor de Kirina a codificação
dos costumes e interditos que ainda hoje regem, de um lado, as relações entre
os clãs Mandenka e, de outro, as relações destes com os demais clãs da África
ocidental. A esse êmulo de Alexandre, o Grande, foram imputados feitos que
lhe são bem posteriores. Contudo, em linhas gerais, a constituição e as estruturas
administrativas que se consolidaram no Império do Mali foram implantadas por
ele. Sundiata foi homem de muitos nomes: na língua soninke chamavam -no de
Maghan Sundiata, o que quer dizer rei Sundiata”; em maninka, foi conhecido
como Maridiata, ou “senhor Diata” (leão); também teve os nomes de Nare
Maghan Konate, isto é, rei dos Konate, filho de Nare Maghan”, e Simbon Salaba,
mestre -caçador de fronte venerável”.
Diz a tradição oral que em Kurukan Fuga, planície relativamente próxima de
Kangaba, realizou -se a Grande Assembleia (Gbara), verdadeira assembleia consti-
tuinte que reuniu os aliados após a vitória, e onde ocorreram os seguintes fatos:
a) Sundiata Keita foi solenemente proclamado mansa (em maninka) ou
maghan (em soninke), isto é, imperador, rei dos reis. Cada chefe aliado foi
confirmado farin de sua província; apenas os chefes de Nema e Wagadu
receberam o título de rei.
b) A Assembleia decretou que o imperador deveria ser escolhido na linhagem
de Sundiata, e que os príncipes escolheriam sua primeira esposa no clã Konde
(como recordação do feliz matrinio de Nare Fa Maghan e Sogolon Konde,
mãe de Sundiata Keita).
c) Decidiu -se que, em conformidade com a tradição antiga, o irmão sucederia
ao irmão (sucessão fratrilinear).
d) Proclamou -se que o mansa seria o juiz supremo, o patriarca, o “pai de todos
os seus súditos” daí a fórmula Nfa mansa, “Senhor, meu pai”, usada por
quem se dirigia a ele.
43 Dele descendem os clãs Cissoko, Dumbuya e Kuruma; em Norassoba, aldeia dos Kuruma, na República
da Guiné, estariam os fetiches e vestimentas de guerra que teriam pertencido a Fakoli. Em geral, os
Manden mantêm pequenos museus, reservados a um público restrito de iniciados e privilegiados. Dessa
forma, conservam -se relíquias das mais antigas.
152
África do século  ao século 
e) Os Maninka e aliados agruparam -se em 16 clãs de homens livres ou nobres
(tonta -dion tani woro), os “portadores de aljavas”
44
.
f) Os cinco clãs de marabus – entre os quais os Ture e os Berete aliados desde
o início, que participaram da missão que fora buscar Sundiata Keita no
exílio, foram proclamados os “cinco guardiães da fé”, ou mori kanda lolu.
Entre esses clãs, é preciso incluir os Cisse (Sisse) do Wagadu, islamizados,
aliados políticos de Sundiata Keita.
g) Os homens que praticavam determinados ofícios foram divididos em quatro
clãs (nara nani), entre os quais os griots, os sapateiros e certos clãs de ferreiros.
Os nomes clânicos mandenka foram reconhecidos como correspondentes de
nomes clânicos de outras etnias do Sudão; estabeleceram -se relações jocosas
de parentesco entre as etnias, prática que perdurou após a morte de Sundiata,
e que não raro contribuiu para reduzir tenes entre grupos étnicos
45
. Para
recompensar os barqueiros somono e bozo do Níger, Sundiata deu -lhes otulo
de mestres das águas. Conforme narra a tradição, o imperador dividiu o mundo,
isto é, fixou os direitos e deveres de cada clã.
h) Medida especial aplicou -se aos Sosoe: foram divididos entre os clãs de ofí-
cio ou castas, e seu território foi declarado domínio imperial. Muitos deles
emigraram para oeste.
O valor e o alcance dessa constituição foram notáveis. Antes de mais nada, ela
reproduzia a estrutura social do Império de Gana, que reconhecia o caráter parti-
cular de cada região. Além disso, Sundiata codificou o sistema dos clãs de ofício,
tornando -se, as profissões, hereditárias. Nos tempos de Gana, ao que parece, cada
um praticava o ofício de sua escolha; doravante o filho deveria seguir o do pai,
principalmente se pertencesse a um dos quatro clãs ou castas de ofício.
O governo de Sundiata
Sundiata instalou -se no governo com os companheiros. Além de militares e
homens de guerra, cercou -se de letrados negros pertencentes aos clãs de marabus
44 O arco e a aljava eram a insígnia dos homens livres. Somente eles tinham o direito de andar armados. Os
portugueses observaram, no século XV, que os nobres maninka passeavam nas cidades com suas aljavas
carregadas de echas, das quais nunca se separavam, pois era este o sinal que os distinguia.
45 Por exemplo, entre os Wolof, um homem do clã Konde é considerado irmão pelos membros do clã
Ndiaye; da mesma forma, um Traore é tratado como irmão pelos Diop (Jop) etc. Um Traore que se
instale em território wolof pode tomar o nome clânico Diop; inversamente, um Diop torna -se Traore
se for morar entre os Mandenka. Esse parentesco ctício, essa fraternidade entre clãs, desempenhou e
continua a desempenhar papel importante no Sudão ocidental. Desde o tempo de Sundiata, novos elos
se estabeleceram entre os Mandenka e os povos dos territórios em que eles se instalaram (região orestal
da Guiné, da Libéria e da Costa do Marm).
153
O Mali e a segunda expansão manden
referidos, cujos membros eram “primos jocosos” dos integrantes do cdos
Keita. É provável que durante seu reinado alguns mercadores árabes tenham
frequentado a corte. Como vimos, segundo Ibn Battūta, um descendente de
certo Mudrik, que converteu Maridiata ao islamismo, vivia na corte do mansa
Solimão. A tradição, contudo, Sundiata como libertador do Manden e
protetor dos oprimidos, e não como propagador do Islã.
Havia dois tipos de província: aquelas que se tinham unido, desde o início,
aos aliados, cujos reis conservaram os títulos caso de Gana (Kumbi -Sāleh) e
de Nema
46
–, e as províncias conquistadas. Nessas últimas, ao lado do chefe tra-
dicional, um governador ou farin representava o mansa. Sundiata Keita respeitou
as instituições tradicionais das províncias que conquistou; o caráter flexível de
sua administração fazia com que o império se assemelhasse mais a uma federa-
ção de reinos ou províncias do que a uma organização unitária. Por outro lado,
a existência de guarnições mandenka nas principais regiões garantia a segurança,
ao mesmo tempo que servia como força de dissuasão.
Foi provavelmente Sundiata Keita quem dividiu o império em duas regiões
militares.
“O príncipe tinha sob suas ordens dois generais: um para a parte meridional, outro
para a setentrional; o primeiro chamava -se Sangar Zuma, o segundo Faran Sura.
Cada um comandava certo número de caídes e de tropas”
47
.
Niani, capital do Mali
A cidade de Niani, situada às margens do rio Sankarani, encontrava -se em
território kamara. Vimos anteriormente que os Keita estavam estabelecidos,
desde tempos remotos, em Dakadiala, Kiri e Narena. Na verdade, foi após a
vitória de Kirina que Sundiata Keita decidiu instalar a capital no território de
46 “Em toda a extensão do reino desse soberano [mansa], ninguém tem o título de rei, a não ser o governante
de Gana, que hoje, porém, é mero lugar -tenente do soberano.” AL -‘UMARĪ, 1927, p. 57. Essa passagem
refuta a armação de Maurice Delafosse, de que Mari Diata teria destruído Gana em 1240. A tradição é
formal a esse respeito: os reis do Wagadu, os de Sisse e os de Nema estiveram entre os primeiros aliados
de Sundiata Keita, o que explica o privilégio concedido a eles.
47 AL -SA‘DĪ’, 1964, p. 20.certamente um erro nessa leitura. Na língua manden, dir -se -ia sankaran soma
para chefe do Sankaran, província meridional que compreendia a bacia do alto Níger e seus auentes;
ao invés de faran sura, proponho que se leia sura
farin,
isto é, “chefe dos territórios setentrionais”. Sura
designa os territórios do Sahel, ocupados pelos mouros e pelos tuaregues, que na língua maninka eram
chamados “gente de Sura”, ou Suraka.
154
África do século  ao século 
Mani
48
, então rica em ouro e ferro. O historiador pode perguntar -se por que
Sundiata preferiu o Mani à velha aldeia de Dakadiala, que fora residência real
durante várias gerações. As razões são múltiplas
49
:
a) O conquistador não se sentia seguro no interior do próprio clã, em Dakadiala;
b) A cidade, rodeada de montanhas, era de difícil acesso;
c) Niani possuía boas defesas naturais. A cidade localizava -se na extensa planície
ao longo do Sankarani, cercada de um semicírculo de colinas interligadas
por passos e dominadas por um pico rochoso, o Niani Kuru. Além disso, o
Sankarani é profundo e navegável o ano todo;
d) Mani ou Niani limitava -se com a floresta, de onde vinham ouro, nozes - de -cola
e azeite -de -dendê, e aonde os comerciantes maninka iam vender tecidos de
algodão e objetos de cobre. Até eno o passara de cidade pequena, famosa
apenas pela resisncia que seu rei opusera a Sumaoro. Situada muito ao sul, a
nova capital estava longe da zona de turbulência dos povos nômades do Sahel.
A cidade desenvolveu -se rapidamente na vasta planície, tornando -se a capital
política e econômica do império. Duas grandes pistas partiam de Niani: a rota
do Manden, que apontava para o norte (Manden sila)
50
, e a rota das caravanas
(Sarakolle sila), orientada para nordeste. Esta última seguia pelo passo que separa
o monte Niani do monte Dauleni Kuru (ou montanha da Porta Vermelha).
Niani atraiu tanto mercadores negros quanto árabo -berberes. Ibn Battūta,
que a visitou em 1353, chamou -a de “Malli”. Mas Ibn Fadl Allāh al -‘Umar
foi mais preciso:
A região do Mali é aquela em que se encontra a residência do rei, a cidade de Nyeni,
e da qual dependem todas as outras regiões; estas, aliás, têm o nome oficial de Mali,
porque é a capital das regiões desse reino
51
.
48 Niani situa -se no território kamara. O primeiro povoado com esse nome, fundado pelos Kamara de
Sibi, encontrava -se nas montanhas da margem esquerda, entre Bamako e Kangaba. Ver PREMIER
COLLOQUE INTERNATIONAL DE BAMAKO, 1975 (comunicação de Y. Cissé).
49 Ver DELAFOSSE, 1912, v. 2, p. 181 -2 para a identicação de Niani. Baseando -se nas pesquisas que Vidal e
Gaillard realizaram no tio de Niani, e efetuando minuciosa análise do itinerário percorrido por Ibn Batta,
Maurice Delafosse concluiu (corretamente) que a capital dos mansa situava -se mesmo em Niani.
50 Os Maninka designam habitualmente os Soninke pelos nomes de Marka ou Sarakolle; na sua própria
língua, por sinal, usam os termos Soninke ou Sununke para se referirem aos Maninka que conservam a
religião tradicional. Na Senegâmbia, Soninke é sinônimo do Mandenka el à religião tradicional; nesse
país, pouco se utiliza a palavra Sarakolle. Manden sila quer dizer estrada do Mande; Sarakolle sila, a dos
Sarakolle. A primeira dirige -se para o norte (onde ca o Manden), a segunda para o leste.
51 Ver AL -‘UMARĪ, trad. francesa, 1927, p. 57.
155
O Mali e a segunda expansão manden
O problema da localização da capital do Mali preocupou durante muito tempo
os historiadores; surgiram numerosas hipóteses até que Maurice Delafosse con-
seguiu fazer uma leitura correta do manuscrito de al -‘Umar . Foi este texto que
permitiu conhecer o nome exato da capital do Mali. Tratava -se mesmo de Nyeni
ou Niani, que Delafosse localizou perto da atual aldeia de Niani, à margem do rio
Sankarani, onde hoje está a fronteira do Mali com a Guiné.
Desde sua identificação, na década de 1920, o sítio de Niani recebeu a visita
de muitos pesquisadores
52
. Mas foi em 1968 que se realizaram trabalhos
arqueológicos importantes; desde aquele ano, uma missão guinéu -polonesa vem
escavando o tio: foram identificados a Vila Real e o quarteirão árabe, e
exumados os alicerces das casas de pedra assim como as fundações e o mihrāb
de uma mesquita na Vila Real. Também se localizou o traçado do muro que
circundava esta vila. Vale a pena notar que todas as construções eram de tijolos
de terra batida (ou banco), como assinalava al -‘Umar :
As casas dessa cidade são construídas com camadas de argila, como os muros dos
jardins de Damasco. Eis como são edificadas: constrói -se em argila até uma altura
de dois terços de um vado e deixa -se secar; em seguida, constrói -se por cima, e
assim sucessivamente, até o término da obra. Os tetos são feitos com vigas e caniços
[bambus]; em geral, têm forma de cúpula [entenda -se cônica] ou de corcovas de
camelo, como arcos de abóbada. O chão das casas é de terra misturada com areia
53
.
O estilo de construção descrito por al -‘Umar manteve -se até a chegada dos
colonizadores, quando foi introduzido o tijolo moldado; mas, como se sabe, são
ainda frequentes em toda a savana mandenka as casas com telhado cônico de
palha e chão de terra batida. A precisa descrição de al -‘Umar constituiu impor-
tante orientação para os estudiosos, que a cotejaram com relatos das tradições.
A cidade de Nyeni é extensa, tanto no comprimento como na largura; mede cerca de
1 berid (23 km) por 1 berid. Não é rodeada por muralhas, e de modo geral as casas são
isoladas. O rei possui um conjunto de palácios, protegidos por um muro circular
54
.
Os arqueólogos confirmaram que as moradias eram dispersas; à volta da
Vila Real, havia grande número de aldeias ou aglomerações das castas de ofício
(ferreiros, pescadores etc.). Hoje as ruínas se estendem de Niani até Sidikila,
por cerca de 25 km.
52 GAILLARD, J., 1923; VIDAL, J., 1924, p. 251 -68; MAUNY, 1961; FILIPOWIAK, 1972 e 1979.
53 AL -‘UMARĪ, 1927, p. 54 -6.
54 Ibid., p. 57.
156
África do século  ao século 
Sundiata Keita declarou Niani território imperial e pátria comum de todos
os povos
55
. A cidade tinha uma população cosmopolita, que abrigava repre-
sentantes de todas as províncias, bem como de todas as corporações de ofício. O
conquistador restaurou a tradição segundo a qual os filhos dos farin e dos reis
vassalos deviam ser educados na corte, como no tempo dos kaya maghan.
A morte de Sundiata Keita
Correm várias lendas sobre a morte do conquistador; tudo o que nos resta
o hiteses, uma vez que não há concorncia entre os detentores da tradi-
ção oral. Ademais, no território manden é proibido revelar onde se encontram
os túmulos dos grandes reis. Não se conhece nem cemitério nem local de
inumão dos soberanos. Segundo tradição recolhida por Maurice Delafosse,
Sundiata Keita teria sido flechado acidentalmente durante uma cerimônia.
A nosso ver, porém, Sundiata Keita teria morrido afogado nas águas do
Sankarani, em condões que ficaram obscuras, pois sabemos que, 10 km a
montante de Niani, encontra -se o lugar que tem por nome Sundiata -dun
(água profunda de Sundiata). Essa parte do Sankarani é muito profunda
e agitada por redemoinhos; as pirogas evitam -na. Nessa altura do rio, os
Keita de Niani estabeleceram locais de culto em ambas as margens, onde
os privilegiados descendentes do conquistador reúnem -se periodicamente
para sacrificar frangos, carneiros, cabras e bois. Várias aldeias conservam
locais de culto em meria de Sundiata Keita: em Kirina, noger, os tra-
dicionalistas Mamissoko oferecem -lhe sacrifícios numa floresta sagrada.
Em Tigan, a nordeste de Niani, existe em território kamara um enorme monte
de cinzas, conhecido como bundalin, sob o qual se encontrariam calçados, uma
faca e um traje de guerra que teriam pertencido a Sundiata Keita. Também é
conhecido o culto celebrado a cada sete anos em Kangaba, junto ao santuário cha-
mado Kamablon, que conteria igualmente objetos pertencentes ao conquistador
56
.
Para terminar, notemos que asica tradicional mandenka nasceu no tempo de
Sundiata (Sundiata tele). A saga do herói é declamada com o acompanhamento
de árias bem definidas; essa epopeia, ou Sundiata fassa, foi composta por Bala
Fasseke Kuyate, griot do conquistador. O canto conhecido como Boloba (a Grande
sica), composto pelos griots de Sumaoro Kante, foi adotado por Sundiata Keita
55
Tradição
recolhida pelo autor deste capítulo. Comunicação ao PREMIER COLLOQUE
INTERNATIONAL DE BAMAKO, 1975.
56 Tradição recolhida pelo autor deste capítulo em Niani em 1968.
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O Mali e a segunda expansão manden
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F . Mapa das escavações do sítio de Niani. (W. Filipowiak.)
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África do século  ao século 
F . Mapa dos sítios de Niani. (D. T. Niane.)
159
O Mali e a segunda expansão manden
F . Niani. Sítio 29. Grandes doleritos na encosta do Niani Kuru, onde foram encontrados numerosos
fragmentos de cerâmica. Teria sido local de culto religioso?
F . Niani. Sítio 1. Vista geral das fundações das cabanas na área habitada (camada II).
160
África do século  ao século 
F . Niani. Sítio 1. Conjunto de rodelas de fuso encontradas nas camadas do setor residencial da
Vila Real.
161
O Mali e a segunda expansão manden
F . Niani. Sítio 6D (Quarteirão árabe). Seleção de tipos de cerâmica das camadas III -VI; datadas
por C14.
162
África do século  ao século 
F . Niani. Sítio 6D (Quarteirão árabe). Seleção de cerâmicas das camadas I -IIb.
163
O Mali e a segunda expansão manden
F . Niani. Sítio 1. Seleção de tipos de cerâmica das camadas datadas por C14.
164
África do século  ao século 
como a música de todo guerreiro mandenka; isto significa que qualquer Maninka
pode solicitar a um griot que o execute, seja para ouvi -lo, seja para dançá -lo. A
canção conhecida por Janjon (Glória ao Guerreiro) foi composta em homenagem
a Fakoli Kuruma, por seus feitos no campo de batalha; o Tiramaghan Fassa
57
canta
a bravura e as façanhas de guerra do conquistador das províncias ocidentais do
Império do Mali. Duga, velha música guerreira, é bem anterior a Sundiata, sendo
reservada aos guerreiros que mais se distinguiam no império.
Os sucessores de Sundiata Keita
Devemos a Ibn Khaldūn a lista completa dos mansa do Mali, de meados do
século XIII até o final do século XIV. Essa relação coincide, em muitos pontos,
com a fornecida pelas tradições históricas do Manden
58
.
Em sua notável Hisria dos berberes e nos Prolegômenos, Ibn Khaln mostrou
toda a imporncia potica e ecomica do Mali no mundo muçulmano do século
XIV. As informações que coletou foram obtidas junto a mercadores árabes e embai-
xadas malienses no Cairo. Consciente do papel do Mali no mundo mulmano do
século XIV, Ibn Khaldūn dedicou longas páginas à história do imrio dos mansa.
57 Trata -se de Tiramaghan Traore.
58 Para a cronologia dos mansa do Mali, ver
LEVTZION,
1963.
F . Niani. Sítio 32 (cemitério). Ta de argila do aterro do tumulus n. 1. (Fonte das gs. 6.7,
6.9 -6.15: Filopowiak, 1979.)
165
O Mali e a segunda expansão manden
O velho princípio de sucessão colateral (fratrilinear) o foi respeitado após
a morte de Sundiata Keita. Seu filho mais velho, mansa Yerelenku (ou Walin, ou
Ulin), tomou o poder, reinando de 1250 a cerca de 1270. Soube manter coeso o
exército; os generais prosseguiram as conquistas. Foi certamente em seu reinado que
os Maninka dominaram a rego do Takrūr e consolidaram as conquistas de Tira-
maghan Traore na Senegâmbia; nessas terras os Mandenka implantaram colônias
de povoamento. A peregrinação de mansa Yerelenku a Meca chamou a atenção dos
países árabes para o Mali. As a morte do mansa, o império esteve a ponto de se
desagregar, devido a intrigas palacianas. Foi salvo por Sakura, general de Sundiata
Keita
59
, que retomou as conquistas, submeteu as “tribos” tuaregues, reafirmou a
autoridade do Mali sobre o vale do ger e tornou -se senhor de Gao. Depois de
restabelecer a ordem, partiu para Meca, mas foi assassinado, quando retomava, por
bandidos do Saara. Conta -se que seu corpo foi levado de volta ao Mali, onde rece-
beu honras reais
60
. Sucederam -lhe soberanos de pouca expreso. Por volta de 1307,
pom, subiu ao trono um sobrinho de Sundiata Keita, Kanku , Sob o tulo de
mansa sā I, reinou de 1307 a cerca de 1332. Sua peregrinação a Meca, em 1325,
foi descrita por diversos autores. Em seu reinado, o Mali atingiu o apogeu. Teve por
sucessor o filho Maghan I, ou Soma Burema Maghan Kegni, que foi deposto por
volta de 1336 pelo mansa Solio, iro do mansa Mūsā I. Embora ele conseguisse
manter toda a grandeza do império, a corte viu -se novamente dividida por intrigas
ao rmino de seu reinado
61
. Vários clãs poticos se haviam formado em torno dos
príncipes que descendiam do mansa I e do mansa Solio; por outro lado, o
clã Keita o ocultava mais suas pretenes à coroa. Fomba (ou Kassa), filho do
mansa Solimão, manteve -se no trono por apenas um ano (1359). Foi destronado por
Mari Diata (ou Sundiata) II, que reinou como verdadeiro déspota.
Tinha arruinado o império [...] exaurido o tesouro real [...] Vendeu a célebre peça
de ouro que era guardada como um de Seus mais raros tesouros; a massa de metal
pesava 20 kintār. Esse príncipe dissipador conclui Ibn Khaldūn vendeu -a a preço
vil a mercadores egípcios
62
.
Vencido pela doença do sono, Mari Diata II viu -se afastado do poder; o filho
mansa II (1374 -1387) substituiu -o, porém quem governou de fato foi seu
59
IBN KHALDŪN,
in CUOQ, 1975, p. 345.
60
DELAFOSSE,
1912, v. 2,
p.
185 -6.
61
IBN BAITŪTA,
1966, p. 62 -3. O célebre viajante conta como a esposa do mansa Solimão participou
da conspiração para depor o próprio marido. Essas lutas intestinas seriam a causa da decadência do
império.
62
IBN KHALDŪN,
in CUOQ, 1975,
p.
348 -9.
166
África do século  ao século 
general, que dirigiu com seriedade os negócios do Estado, restaurou a ordem sufo-
cando um levante em Tiggida (Takedda), cidade famosa pelo trabalho do cobre.
Intrigas palacianas, fomentadas pelas princesas, conturbaram o final do século XIV.
Não obstante o fato de os governadores provinciais respeitarem cada vez menos a
autoridade central, o império ainda conservaria seu presgio por muito tempo.
Genealogia dos mansa do Mali, segundo lbn Khaldūn
(Os nomes fornecidos pela tradição oral figuram entre parênteses.)
Estas são as datas, estimadas por Maurice Delafosse, de duração dos reinados
de Sundiata a mansa Mūsā I
63
:
Sundiata 1230–1255
mansa Ulin (Yerelenku) 1255–1270
Wal 1270–1274
Khalifa (Xalifa) 1274–1275
Abū Bakr 1273–1285
Sakura (1285–1300)
Kaw (Ko) 1300–1305
Muhammad 1305–l310
63 Segundo IBN KHALDŪN, mansa Mūsā reinou 25 anos; seria necessário, pois, corrigir esse quadro, de
modo a datar seu reinado de 1307 a 1332. In CUOQ, 1975, p. 343 -6.
167
O Mali e a segunda expansão manden
O triunfo do Islã, sob o reinado de mansa Mūsā
Mansa Mūsā I (1307 ‑1332)
Foi o mais conhecido dos imperadores do Mali, e essa reputação se deveu
à sua peregrinação a Meca em 1325 e, sobretudo, à temporada no Cairo, onde
distribuiu ouro em tal quantidade que fez baixar a cotação do precioso metal
por muito tempo.
Essa peregrinação teve consequências bastante importantes para a subsequente
história do Sudão ocidental, região que doravante passaria a ocupar a mente dos
homens; Egito, Magreb, Portugal e as cidades mercantis da Itália interessavam -se
cada vez mais pelo Mali. O próprio mansa Mūsā, orgulhoso de seu poder, muito
fez para que o Mali se afigurasse um Eldorado aos olhos dos estrangeiros
64
.
Uma vez no trono, tratou de consolidar as aquisições dos predecessores e de
fazer respeitada a autoridade central, contando, para isso, com a ajuda do insigne
general Saran Mandian. Este reafirmou o poder do soberano, não apenas no vale
do Níger até adiante de Gao, como também em todo o Sahel, conquistando a
submissão dos mades saarianos, tão inclinados ao saque e à revolta. Desse modo,
criou condições favoráveis à viagem do seu senhor a Meca, pois a morte de Sakura
por nômades saarianos não se apagara da lembrança dos soberanos maninka.
Mansa Mūsā I preparou a viagem com toda a minúcia requerida pela tra-
dição, solicitando a todas as cidades mercantis e províncias uma contribuição
particular. Deixou Niani acompanhado por enorme escolta; as cifras fornecidas
pelos autores árabes podem parecer excessivas, mas fazem entrever o poderio
do soberano maninka: 60 mil carregadores e 500 servidores com vestimentas
recamadas de ouro, cada um com uma bengala também de ouro. No início
do século XVI, Mahmūd Ka‘ti relata, segundo tradição então escrita, que o
imperador ainda se encontrava em palácio quando a cabeça da caravana chegava
a Tombuctu. Mansa Mūsā I recebeu no Cairo as honras devidas a um grande
sultão; impunha -se pelo porte e por generosidade digna dos reis das Mil e uma
noites. É um dos raros soberanos de quem nos chegou uma descrição física.
“Era escreveu al -Makrzum rapaz de tez morena, fisionomia agradável e de belo
estilo, instruído no rito maliquita. Exibia -se magnificamente vestido e montado, entre
64 Mansa Mūsā partiu com numeroso séquito: levou consigo “80 volumes de ouro em , cada um dos quais
pesava 3 kintār, isto é, cerca de 3,8 kg. Fazia -se acompanhar de 60 mil carregadores e de 500 escravos;
destes, cada um levava uma bengala de ouro pesando mais de 500 mithkāl, ou seja, mais ou menos 3 kg”.
DELAFOSSE, 1913, p. 187. em 1375, os cartógrafos representavam o Sudão com um retrato de
mansa Mūsā segurando uma pepita de ouro.
168
África do século  ao século 
seus companheiros; acompanhavam -no mais de 10 mil súditos. Levava presentes que
maravilhavam o olhar, por sua beleza e esplendor”
65
.
Segundo a tradição oral, comprou terras e casas em Meca e no Cairo para abrigar os
peregrinos sudaneses. O importante, porém, é que mansa Mūsā estabeleceulidas
relações com os países que percorreu.
Mansa , construtor e mecenas
Certamente impressionado pela beleza e majestade dos palácios do Cairo,
mansa Mūsā voltou ao seu país com um arquiteto, o célebre Ishāk al -Tuedjin,
que construiu a grande mesquita de Gao (da qual hoje só restam algumas ruínas
e parte do mihrāb. Em Tombuctu, o arquiteto do imperador ergueu a grande
mesquita ou djinguereber, e um palácio real ou madugu. Mas a mais bela obra de
al -Tuedjin foi, sem dúvida, a célebre sala de audiências construída em Niani, na
qual empregou todos os recursos de sua arte. O imperador queria uma construção
sólida revestida de gesso, al -Tuedjin
construiu uma sala quadrada encimada por uma pula [...] e, tendo -a reves-
tido com gesso e adornado com arabescos em cores vivas, fez dela um admi-
rável monumento. Como a arquitetura era desconhecida no país, o sultão
ficou encantado, e deu a al -Tuedjin 12 mil mithkāl de ouro em pó, em sinal de
reconhecimento
66
.
Não dúvida de que o arquiteto do imperador teve de empregar o mate-
rial mais comum nessa parte do Sudão, a terra batida. Na latitude de Niani,
monumentos construídos com esse material necessitam de constantes trabalhos
de restauração; mais ao norte, o baixo índice pluviométrico permite melhor
conservação dos edifícios é o caso das mesquitas de Djenné, Tombuctu e
Gao. Na falta de pedra, a terra batida (ou banco) é reforçada por uma armação
de madeira: daí vem o estilo original das mesquitas sudanesas, guarnecidas com
madeira. Após as sucessivas destruições de que Niani foi vítima, as construções
perderam seu revestimento de gesso e a obra do poeta -arquiteto, como a maior
parte dos monumentos da capital, transformou -se, sob a ão das chuvas, num
amálgama de argila e pedra.
No Cairo, o mansa respondeu, prestativo, às perguntas que lhe formularam
os sábios e cortesãos que gravitavam à sua volta. Deu -lhes muitas informações
65 AL -MAKRĪZĪ, in CUOQ, 1975, p. 91 -2.
66
IBN KHALDŪN,
in CUOQ, 1975,
p.
348.
169
O Mali e a segunda expansão manden
sobre o império, frequentemente exageradas. Afirmou que possa “direitos
exclusivos sobre o ouro e recolhia -o como tributo”. Ibn Amr Adjib, gover-
nador do Cairo e de Karafa, que o sultão mameluco pusera a serviço do real
peregrino, conta -nos que as cores do viajante eram o amarelo sobre fundo
vermelho:
Quando está a cavalo, fazem pairar sobre sua cabeça os estandartes reais, enormes
bandeiras”. E a respeito de seu império: os habitantes são inúmeros, uma imensa
multidão. Contudo [a população do império], se comparada aos povos negros que
a rodeiam, que se estendem rumo ao sul, não passa de pequena mancha branca no
dorso de uma vaca preta.
Mansa Mūsā sabia perfeitamente da existência de povos e reinos ao sul do
Mali. O soberano também revelou que possuía uma cidade de nome Tiggida
(Takedda, atual Azelik) onde se encontra uma mina de cobre vermelho”; o
metal era levado em lingotes até Niani.
“Nada existe em meu Império”, contou -me o sultão, que me forneça tantas taxas
quanto a importação desse cobre bruto: o metal vem dessa mina apenas; de nenhuma
outra mais. Nós o enviamos ao território dos negros pagãos, onde o vendemos à razão
de 1 mithkāl por dois terços do seu peso em ouro
67
.
Foi ainda no Cairo que mansa Mūsā I revelou que seu predecessor morrera
numa expedição marítima,
pois esse soberano não queria admitir ser impossível chegar à outra extremidade do
mar circundante; quis atingi -la e obstinou -se em seu desígnio”. Depois do fracasso
de duzentos navios “repletos de homens, e outros tantos, abarrotados de ouro, água
e víveres suficientes para alguns anos ...”,
o próprio imperador assumiu o comando das operações, equipou 2 mil navios
e partiu – para nunca mais voltar. Qual foi a sorte dessa expedição, e que crédito
podemos dar ao relato de mansa Mūsā I? Alguns autores, como L. Wiener e
M. D. W. J effreys, levantaram a questão da descoberta da América pelos
Maninka. Os negros teriam chegado às costas americanas dois séculos antes
de Colombo! O que a anedota nos prova, no entanto, é que os conquistadores
67 AL -‘UMARĪ, 1927, p. 80 -81. Esse detalhe é muito interessante, porque documenta a intensa atividade
comercial entre o Mali e os territórios da oresta, de onde o império importava o azeite -de -dendê,
nozes -de -cola e ouro; ver o capítulo 25 deste volume.
170
África do século  ao século 
manden, ao se estabelecerem no litoral, especialmente na Gâmbia, não eram
indiferentes aos problemas da navegação marítima
68
.
O grande peregrino atraiu à sua corte numerosos homens de letras; ele próprio
era um fino letrado árabe, mas servia -se sempre de intérpretes para falar com os
árabes. Teve cádis, secretários e genuínos diwān, mas por ostentação.
Depois dessa célebre peregrinação, os Marínidas de Fés e as cidades comer-
ciais do Magreb passaram a demonstrar vivo interesse pelo Mali, havendo troca
de presentes e embaixadas entre seus soberanos. Mansa Mūsā abriu escolas
corânicas; comprara grande número de livros nos lugares santos e no Cairo. Foi
provavelmente em seu reinado que Walata ganhou importância e que se iniciou
em Djenné e Tombuctu o processo de desenvolvimento que as transformaria,
um século mais tarde, em centros urbanos de renome mundial.
Como construtor, mansa Mūsā I deixou obra duradoura: sua marca ficou nos
monumentos de terra batida, guarnecidos com madeira, ainda hoje encontrados
em todas as cidades sudanesas. As mesquitas de Djenné e Tombuctu são o pro-
tótipo do que se convencionou chamar de estilo sudanês. Enquanto mecenas e
protetor das belas -letras, mansa Mūsā contribuiu para o aparecimento de uma
literatura negra de expressão árabe, que dará seus mais belos frutos nos séculos
XIV e XVI, nas cidades de Djenné e Tombuctu
69
.
Mansa Solimão
A vida na corte
Depois do curto reinado de Maghan I, filho de mansa Mūsā, o trono passou
ao irmão deste, mansa Solimão (1336–1358), o legítimo herdeiro, segundo a
tradição. Foi durante seu reinado que o célebre viajante Ibn Battūta visitou o
Mali, permanecendo na capital por nove meses. Este completou as informações
coletadas por al -‘Umar e deixou -nos um quadro vívido da corte e da adminis-
68 Ivan Sertima, pesquisador afro -americano, propõe a hipótese de que os negros teriam sido os primeiros a
navegar para a América. Em obra publicada em 1976, faz minuciosa análise das civilizações do México
e da América Central, para concluir que nessas culturas existem elementos mandenka. A tese é sedutora,
mas aguarda conrmação.
69 raras menções de mansa Mūsā nas tradições orais. Algumas até o ignoram completamente. Após
longas investigações, concluiu -se que mansa Mūsā é considerado “inel à tradição ancestral manden”;
sua peregrinação é bem conhecida de alguns tradicionalistas, já que estes o culpam de haver dilapidado
o tesouro imperial. Ver o COLLOQUE, de 1980, da Fundação SCOA. Pode -se situar em seu reinado
o surgimento da sociedade secreta do Komo, criada pelos Bambara (Bamana), que romperam com os
Maninka
(Man
den islamizados) e, para se manterem éis à religião tradicional, renegaram a autoridade
do mansa. Ver o Recueil de littérature mandingue, 1980, p. 215 -27.
171
O Mali e a segunda expansão manden
tração do império. Um protocolo muito estrito presidia as cerimônias da corte;
Ibn Battūta descreve -o nos menores detalhes.
O mansa e sua corte
Como o kaya maghan, o mansa é conhecido, antes de mais nada, como justi-
ceiro, o patriarca que recebe as queixas de todos. Nas regiões, é representado pelos
governadores, mas, se estes cometem atos injustos, em princípio são destituídos
o logo o mansa seja informado. Os súditos abordam o mansa com humildade;
cobrindo -se de poeira e dizendo -lhe Nfa Mansa, “Senhor, meu pai”. Segundo Ibn
Battūta, o mansa dava duas audiências: uma, na famosa sala de audiência cons-
truída por Mūsā I, dentro do palácio; outra, ao ar livre, debaixo de uma árvore,
ficando o trono sustentado por armações de marfim e ouro. O lugar -tenente geral
do reino (kankoro sigui), os dignitários, os governadores, o sacerdote e os juriscon-
sultos assentavam -se, e o dieli ou griot, que atuava como porta -voz ou mestre -de -
cerinias, ficava de pé perante a assembleia reunida na sala de audiência.
Seu turbante é adornado com franjas, que esse povo sabe arrumar com muita beleza.
De seu colo pende um sabre, numa bainha de ouro; nos pés, traz botas e esporas;
ninguém, a não ser ele, calça botas nos dias de audiência. Empunha duas lanças
curtas, uma de prata e outra de ouro, ambas com ponta de ferro
70
.
A sessão ao ar livre, também descrita por Ibn Battūta, não era menos solene.
Tal audiência era concedida, ritualmente, todas as sextas -feiras após a prece do
meio -dia. Nessa ocasião o griot “recitava a história, recordando a lista dos reis
e as façanhas destes. A tradição oral então triunfava. A história era ensinada
permanentemente, tanto na corte como no seio das famílias. O povo jurava em
nome do rei, prática que perdurou até o século XIX.
O cerimonial de Niani retomava, mas com maior fausto, o protocolo dos kaya
maghan; a novidade, porém, estava em ser o imperador muçulmano. O mansa cele-
brava com toda a solenidade as grandes festas mulmanas; no entanto conservava-
-se fiel a certas práticas pagãs. Ibn Battūta escandalizou -se com algumas práticas
pouco ortodoxas; excetuando -se a presença dos árabes e o fraco verniz muçulmano,
o que se passava na corte dos mansa era pouco diferente do que se poderia observar
na corte de reis não muçulmanos, como, por exemplo, os Mossi
71
.
70 IBN BATTŪTA, 1966.
71 Ver o volume 3, capítulos 9 e 10.
172
África do século  ao século 
Os dignitários
Segundo al -‘Umar; estes se apresentavam esplendidamente trajados e cober-
tos de ouro, ostentando armas magníficas. Os militares distinguiam -se por suas
aljavas; a nobreza de aljava era formada por descendentes dos conquistadores,
enquanto os marabus negros provenientes dos cinco clãs guardiães da (mori
kanda lolu) constituíam a nobreza de turbante.
A civilização mandenka (mandingo)
Os povos do império
Em seu apogeu, sob os reinados de mansa Mūsā I e mansa Solimão, o Império
do Mali abrangia toda a África ocidental sudano -saheliana; diversos povos e
etnias faziam parte, assim, de um único conjunto político.
Nômades e pastores
Os grandes nômades do Saara, especialmente os Messufa, possuíam vasto
domínio de pastoreio, que ia das salinas de Teghazza até a cidade de Walata,
grande centro maliense do comércio transaariano. Os Messufa eram os principais
agentes do comércio do sal, e entre eles se recrutavam os guias das caravanas, pois
era preciso conhecer perfeitamente o Saara para viajar do Magreb ao Sudão. A
oeste, perto do Atlântico, os Lamtūna Sanhadja e os Godala, berberes que ocu-
pavam a região correspondente à atual Mauritânia, como os Messufa, também
exploravam as minas de sal de Idjil e o comércio transaariano. De Walata até a
curva do Níger, estendia -se o território dos tuaregues. Todos esses povos nômades
do deserto eram controlados por guarnições estacionadas em Walata, Tombuctu,
Gao e Kumbi -Sāleh. O vasto domínio saariano estava subordinado ao comando
militar do sura farin.
Os povos do Sahel
Àquela época, o clima do Sahel era mais moderado, e suas pastagens,
abundantes. Nessa zona se encontravam as cidades setentrionais do Sudão,
como Takrūr, Awdaghust, Kumbi -Sleh, Walata e Tombuctu.
Da foz do Senegal, no Atlântico, até a curva do Níger, viviam os nômades
Fulbe (Fulani), criadores de bovinos. Em tempos mais antigos praticavam a
transumância em espaço bastante restrito. No século XIV, contudo, alguns gru-
173
O Mali e a segunda expansão manden
F . Mapa do Império do Mali, em 1325. (D. T. Niane.)
174
África do século  ao século 
pos Fulbe haviam se infiltrado bem ao sul e tendiam a sedentarizar -se, espe-
cialmente na região de Djenné, bem como na margem direita do rio Sankarani,
perto de Niani, e na zona do Takrūr
72
.
Os agricultores sahelianos Tukuloor
73
, Soninke e Songhai –, todos eles
islamizados já nos séculos XI e XII, viviam em grandes aldeias. Nessa região de
planícies as comunicações eram fáceis, o que favorecia a fundação de cidades
novas e a constituição de cultura comum, mesmo entre povos que não falavam
a mesma língua.
Os povos da savana
Os principais grupos eram, de oeste para leste, os Diolof (Wolof), os Mandenka
(Mandingo) e os Soninke. Os Maninka (Malinké) instalaram -se em massa na região
de Casamance e na Senegâmbia, as as conquistas de Tiramaghan Traore; esses
terririos ocidentais foram, eno, colônias de povoamento. Coloca -se, pom, a
questão de saber se já o haveria grupos Maninka na Senembia antes do reinado
de Sundiata. Parece bastante provável que mercadores e marabus soninke e maninka
frequentassem essas reges muito antes do culo XIII
74
. Os Maninka instalaram -se
à volta das comunidades de agricultores da costa Biafada, Balante, Felup e Bainuk
que viviam entre a Gâmbia e o Rio Grande e se dedicavam à rizicultura.
Em meados do culo XV, os navegantes portugueses, chegando à embo-
cadura do rio mbia, entraram em contato com o mansa; graças a eles,
sabemos que essas regiões ocidentais eram fortemente influenciadas pelos
Mandenka
75
.
Também sabemos, pelos cronistas de Tombuctu, que o Mali era muito
povoado, especialmente a região de Djenné, conforme relata o autor do Ta’rīkh
Al -Sūdān:
72 A ocupação peul (“pullo”) da margem direita do Sankarani resultou, dois séculos mais tarde, no
surgimento da província de Wasulu. Os Fulbe (Peul) dessa região esqueceram seu idioma, passando a
expressar -se em maninka. Provavelmente a inltração peul nas regiões de Futa -Djalon, Takrūr, Bundu,
e Macina começou por volta dos séculos XI e XII, intensicando -se a partir do século XV.
73 Tukuloor (ou Toucouleur) é deformação de Takrūr; os povos assim conhecidos dão a si próprios o
nome de
Hal pulaaren
(os que falam
pular,
isto é, peul). Mas todos os seus vizinhos, Diolof ou Seereer,
chamam -nos de Tukuloor. Ocupam -se principalmente da agricultura e do comércio e, em menor escala,
do pastoreio. Os linguistas classicam as línguas pular (ou peul), diolof e seereer na mesma família
linguística atlântico -ocidental.
74 Ver CISSOKO, 1981a, e MANÉ, 1981.
75 Ver os capítulos 7 e 12 deste volume; DONELHA, 1977, p. 107 -21, e
KAKÉ,
1981.
175
O Mali e a segunda expansão manden
O território de Djenné é rtil e povoado; conta, todos os dias da semana, com numerosas
feiras. Afirma -se que abriga 7077 aldeias bastante próximas umas das outras. E o fato
seguinte bastará para dar ideia dessa proximidade das aglomerações: se o sultão precisa,
por exemplo, mandar chamar um morador de aldeia situada na região do lago Debo, seu
mensageiro vai até uma das portas dos bastiões, de onde grita a mensagem; esta é repetida
de aldeia em aldeia, de modo que a mensagem chega prontamente ao interessado, que
então obedece à convocação que assim lhe foi transmitida
76
.
Ainda que possa parecer exagero a presença de 7077 aldeias só na região de
Djenné, convém notarmos, de passagem, a importância da oralidade como meio
de transmissão.
Mahmūd Ka‘ti, por sua vez, afirma que o Mali
abrange cerca de 400 cidades e sua terra é extremamente rica. Dentre os reinos dos
soberanos do mundo, somente a Síria é país mais belo. Os seus habitantes são ricos
e vivem confortavelmente
77
.
Essas cifras querem significar, apenas, que o reino era muito populoso; pode -se
admitir que a populão do Mali chegava, à época, a 40–50 miles de habitantes.
Os vales dos rios ger e Senegal constitam verdadeiros formigueiros humanos.
Noculo XIV, Niani, a capital, contava pelo menos 100 mil almas
78
.
Os imperadores do Mali não parecem ter -se interessado pela margem direita
do Níger, na altura de Tombuctu; o mesmo não aconteceu, porém, com os
soberanos de Gao, que delegaram um governador para Hombori, no sopé das
montanhas
79
, perto do território dogon.
A cultura dogon é das mais estudadas da África negra, porém segundo perspectiva
etnológica limitada, que não nos permite situar os Dogon dos primeiros tempos no
seu contexto histórico, em relação às outras populões do Sudão.
Deste modo, a originalidade dos trabalhos de R. M. A. Bedaux está em procu-
rarem estabelecer relações entre os Dogon, os Tellem e outros povos da curva do
76 AL -SA‘DĪ’, 1964, p. 24 -5.
77 KA‘TI, 1964, p. 67.
78 No começo do século XVI, quando Niani já deixara de ser a grande metrópole sudanesa, Leão, o Afri-
cano, avaliava sua população em 6 mil lares, o que cerca de 60 mil habitantes, supondo a média de
dez moradores por casa - o que, tratando -se da África, é o mínimo que se deve considerar.
79 KA‘TI, 1964, p. 150, 254 -5. Chi Al morreu quando retomava de uma campanha que empreendera
perto do país dos Tombo (ou Habe, ou Dogon), em 1492. Uma tradição recolhida em Niani arma
que as conquistas dos Keita se estenderam até o Kado Kuru (montanha dos Dogon). Tais conquistas
são atribuídas a Sere Nandiugu, rei do século XVII, o que parece plausível, uma vez que nessa época o
governante de Niani não controlava mais o conjunto do país maninka: o império se desagregara.
176
África do século  ao século 
ger, numa perspectiva sócio -histórica. Os objetos de arte dogon são conhecidos
no mundo inteiro; no entanto, os mais belos não estão no Museu de Bamako, mas
nas coleções particulares euro -americanas e nos museus da Europa
80
.
Os Dogon
Pela região da curva do Níger estendem -se falésias pertencentes ao con-
junto montanhoso de Hombori, das quais a mais conhecida é a de Bandiagara.
Nessa região montanhosa, viviam os Dogon, sobre os quais os soberanos da
savana tinham pouco controle; todas as tentativas de dominá -los fracassaram.
Distribuíam -se em pequenas aldeias presas aos flancos da montanha
81
. Quem
eram os Dogon? Segundo sua própria tradição oral, eles teriam emigrado do
Manden para as montanhas, instalando -se, por volta dos séculos XIV e XV,
no sítio de Sanga
82
. Os Dogon teriam encontrado outros povos vivendo nas
montanhas, a quem deram o nome de Tellem (“achamo -los no lugar”). Estes
teriam deixado a região à sua chegada, para irem se estabelecer no Yatenga.
Admite -se hoje que os Dogon vieram das regiões meridionais (Manden),
porém muitas questões permanecem em aberto, tanto sobre eles quanto sobre os
Tellem. Estudos comparativos de cerâmicas dogon e maninka de Niani – cerâ-
micas com pés permitem supor que houve contato entre essas duas culturas.
Uma cultura comum ligava os povos do Sahel sudanês. O quadro criado
pelo império reforçou os pontos comuns e atenuou as divergências, gras ao
sistema de correspondência de nomes, às relações de parentesco, e também
às relações jocosas de parentesco, que se estabeleceram entre os Mandenka e
os Fulbe, entre estes e os Diolof, e entre os Mandenka e os povos da costa de
modo geral.
A organização política e administrativa
Esse vasto império era, em última análise, uma espécie de confederação, na qual
cada província conservava ampla autonomia;vimos que reinos vassalos, como
Gana e Nema, ligavam -se ao poder central por submissão quase simbólica.
80 Ver GRIAULE, 1938 e 1966; CISSOKO, 1968; ROUCH, 1953; BEDAUX, 1972 e 1974; DESPLAGNES,
1907.
81 Os Dogon são chamados de Habe pelos Fulbe, e de Kado pelos Maninka. As tradições mandenka dizem
que são originários do Manden, mas esta armação deve ser vericada.
82
BEDAUX,
1977, p. 87
e
92.
177
O Mali e a segunda expansão manden
F . Mapa das principais rotas transaarianas no século XIV. (D. T. Niane.)
178
África do século  ao século 
O poder central
O mansa era o chefe do governo e fonte de todo o poder. Cercava -se de altos
funcionários e dignitários escolhidos entre os descendentes dos companheiros
de Sundiata Keita.
No Manden, a aldeia ou dugu constituía a base do edifício político. Normal-
mente, uma aldeia compunha -se de descendentes do mesmo patriarca. Várias
aldeias, submetidas ao mesmo chefe, formavam uma província ou kafu (jamana).
No princípio, o rei do Manden era um chefe entre outros; foi a união das
províncias de Do, Kiri e Bako que fez do chefe keita um rei poderoso. Graças às
conquistas de Sundiata Keita e seus sucessores, ele tornou -se mansa (imperador),
tendo autoridade sobre vários reis. Os descendentes dos generais de Sundiata
Keita constituíram a aristocracia militar; junto ao mansa, formaram um conselho
cuja opinião pesava nas decisões do soberano. O griot era também personagem
importante; Ibn Battūta deixou -nos preciosas informações acerca da função
deste na corte do mansa Solimão. Sabemos que o cargo era hereditário – o griot
do mansa era sempre escolhido no clã dos Kuyate, descendentes de Bala Faseke,
griot de Sundiata Keita. Seu primeiro encargo era o de porta -voz do mansa, pois
este deveria falar baixo: o griot repetia, em voz alta, suas palavras. Diariamente,
partiam estafetas a cavalo de Niani; os que vinham das províncias dirigiam -se ao
griot. Este também era preceptor dos príncipes, mestre de cerimônias e regente
da orquestra da corte
83
.
No século XIV, desde o reinado de mansa Mūsā I, o soberano dispunha de um
corpo de secretários, que só funcionava quando o mansa enviava mensagens aos
sultões ou recebia os comunicados destes. No entanto, a oralidade mantinha -se
como forma corrente de se transmitir ou de se conservar mensagens.
O imperador sempre fez questão de exercer o papel de pai do povo”; assim, ele
distribuía a justiça pessoalmente
84
em sessões solenes. Ele mesmo ouvia as queixas
dos súditos contra os governadores ou farin que o representavam nas províncias.
Também julgava litígios entre particulares, com base nas leis existentes.
Assim, apesar de todas as aparências de uma corte muçulmana, o mansa
manteve -se como o patriarca, o pai a quem todos podiam pedir justiça. Nas pron-
cias, a justiça era dispensada segundo a lei corânica, por cádis que ele nomeava.
83 IBN BATTŪTA, 1975, p. 303 -5.
84 AL -‘UMARĪ, 1927, p. 57 -8; IBN BATTA, 1975, p. 303 -5. Os camponeses caminhavam dezenas
de quilômetros a pé, para se
queixarem dos excessos dos governadores; se o mansa julgava que tinham
razão, demitia o governador. Ibid., p. 309.
179
O Mali e a segunda expansão manden
Os funcionários
Excetuando -se o griot, cuja importante função foi descrita por Ibn Battūta,
conhecemos mal os demais agentes do poder central. Segundo o mesmo viajante,
o mansa tinha a secundá -lo um lugar -tenente geral, cujas funções não eram
muito claras; parece ter sido o chefe das forças armadas
85
.
O santigui (senhor do tesouro) era uma espécie de ministro das Finanças.
Inicialmente, fora incumbido de zelar pelos celeiros reais. Com o aumento das
fontes de renda, passou a ter a guarda dos depósitos de ouro e outras riquezas,
como marfim, cobre e pedras preciosas. Suas funções, nos primeiros tempos,
eram exercidas por um escravo do soberano.
Sabemos pela tradição oral que todas as castas de ofícios faziam -se representar
por chefes junto ao mansa. Este lhes dava ordens, que eles transmitiam às respectivas
castas; assim, o chefe dos ferreiros, ou o dos barqueiros e pescadores ou o dos sapa-
teiros, era, na verdade, responsável por uma verdadeira corporação de arteos.
Governo das províncias
O império era constituído por províncias e reinos vassalos. Cada uma das
províncias conhecia a autoridade de um governador (ou farin).
No século XIV, quando atingiu o apogeu, o império contava doze provín-
cias
86
. Destas, as mais importantes eram: o Takrūr, no baixo e médio Senegal, na
verdade um reino conquistado pelas armas, que compreendia numerosas cidades
comerciais, sobressaindo Sylla e a própria cidade de Takrūr; Bambuku, conhe-
cida por suas minas de ouro, cuja população se compunha quase exclusivamente
de Maninka; Dia (Zaga ou Ja), no território de Diafunu (Diaghan), no vale do
médio Níger; Gao ou Songhai, reino anexado pelos sucessores de Mari Diata,
cuja capital, Gao, se achava em plena expansão no século XIV (já no fim desse
século os Songhai conseguiriam libertar -se da dominação mandenka); Sanagana,
85 Ibid., p. 304. Ver, também, o capítulo 8 deste volume. Parece plausível que os Songhai tenham se ins-
pirado nas estruturas administrativas do Mali. Em Gao, instalaram -se vários ministérios, cuja origem
remonta aos tempos do Império do Mali. Citemos, entre outros, o ministro das Finanças, ou xalis farma;
o ministro dos brancos (estrangeiros), korei
farma;
o
kanfari
ou balama, que era uma espécie de vice -rei
ou intendente -geral do império; o waney farma dos Songhai, que equivalia ao santigui dos Maninka e
controlava as propriedades reais; o sao farma, que era o tu tigui dos Mandenka, isto é, o encarregado das
orestas (função que no Mali cabia inicialmente a um príncipe de sangue, e depois passou ao chefe dos
ferreiros); e, nalmente, o hari farma songhai, que correspondia ao
djitigui,
ou senhor das águas, dos
Maninka (escolhido entre os Somono ou Bozo).
86 AL -‘UMARĪ, 1972. Algumas províncias citadas por AL -‘UMARĪ não puderam ser identicadas, talvez
por terem seus nomes deformados.
180
África do século  ao século 
citada por al -‘Umar, território de nomadismo dos Sanagana (Sanhadja) e Godala
(trata -se da atual Mauritânia); finalmente, os reinos de Gana e Nema, aliados
de primeira hora de Sundiata Keita. O Manden, onde se encontrava a capital,
dependia diretamente do mansa.
Cada província dividia -se em canes, que por vezes correspondiam ao território
de um clã. O governo provincial reproduzia, em escala menor, o poder central: o farin
rodeava -se de dignirios e noveis, respeitando usos e costumes dos mesmos. o
cantão compunha -se de comunidades alds, reunidas sob a autoridade de um chefe
tradicional local (dugutigui).
Essa flexível organização provincial, baseada na incorporação dos chefes
locais, foi responsável pela grande estabilidade interna do Mali. A segurança
dos bens e das pessoas era garantida por uma política eficaz e por um exército
que se manteve invencível durante muito tempo.
O exército
Dispomos de poucas informações sobre os efetivos do exército. A cifra que
figura habitualmente nos documentos árabes é a de 100 mil homens, o que
apenas serve para indicar sua relativa grandeza. A força desse exército residia
no temperamento guerreiro e no senso de disciplina dos Mandenka, que for-
neciam a maioria dos efetivos. Havia uma guarnição acantonada em cada uma
das principais cidades do império, como Walata, Gao, Tombuctu, Niani etc. A
autoridade dos mansa fazia -se sentir até Teghazza; pode -se medir o respeito que
o Mali inspirava aos príncipes magrebinos quando estes, depostos, chegaram a
pedir a mansa Mūsā I que os ajudasse a recuperar o trono
87
.
A aristocracia, ou nobreza de aljava”, dava preferência às funções militares.
A cavalaria era formada pelos tontigui, ou portadores de aljavas”. Os cavalos
vinham, na maior parte, do Takrūr e do Diolof, mas sua criação rapidamente
se desenvolveu no vale do rio Níger. O cavaleiro mandenka portava, além da
aljava e do arco, longas lanças e sabres
88
. Desde Sundiata Keita, a cavalaria era
o corpo de elite, e ficava diretamente sob as ordens do mansa. A infantaria era
comandada pela pequena nobreza; conforme a região de origem, os soldados
vinham armados de lanças ou aljavas. Os do Manden geralmente muniam -se
de flechas e aljavas, enquanto os do Saara protegiam -se com escudos de peles
e lutavam com lanças. Ao que parece, no seu apogeu, o império não utilizou
87 IBN KHALDŪN, in CUOQ, 1975, p. 347; KAKÉ, 1980, p. 46 -51.
88 AL -‘UMARĪ, 1927, p. 57 -9; KAKÉ, 1980.
181
O Mali e a segunda expansão manden
tropas escravas; essas apareceram tardiamente no exército do Mali. Cada
província fornecia um contingente de homens livres; a existência de guarnições
nas cidades e de numerosas forças nas fronteiras nevrálgicas, tais como as do
Sahel -Saara, resguardou por muito tempo o império dos levantes internos e das
incursões dos vizinhos.
A vida econômica
A agricultura
O império dos mansa era conhecido, no estrangeiro, por sua riqueza em ouro;
no entanto, a economia repousava essencialmente na agricultura e na criação,
que ocupavam a maior parte da população. Não conhecemos detalhadamente as
atividades rurais; no entanto, as fontes escritas do século XIV sempre ressaltam a
abundância de víveres. O arroz era cultivado nos vales do Níger e do Sankarani,
na Senegâmbia e no Gabu (Kaabu). Mais indicado para terrenos secos, o milhete
era a principal cultura do Sahel, que então recebia chuva dois ou três meses por
ano. Também se plantava feijão e muitos outros legumes. Ibn Battūta insistiu na
abundância de alimentos que conheceu no Mali: a vida não era cara, e o viajante
não precisava fazer provisões, pois em cada aldeia encontrava mantimentos em
quantidade.
Era essa riqueza agrícola que capacitava o mansa a manter um exército tão
numeroso e a desempenhar o papel de pai do povo”, oferecendo frequentes
banquetes à multidão.
A cada colheita, uma parte, ainda que simbólica, deveria ser oferecida ao mansa
ou a seus representantes; a negação da sua autoridade manifestava -se pela recusa
em lhe dar tais primícias. Era velha tradição, no Manden, reservar os primeiros
frutos do inhame ao chefe
89
em sinal de respeito, razão pela qual o mansa punia
severamente os lades de inhame. A cultura do algodão era muito difundida no
império no final do século XV; os navegantes portugueses
90
mencionam a grande
riqueza de Casamance em algodão, que era trocado por ferro.
89 AL -‘UMARĪ
,
1927. O inhame é de fácil conservação, podendo servir de alimento durante o inverno.
Vários cantos mandenka exaltam a agricultura. Os nobres não desdenhavam cultivar seus campos; depois
da guerra, a lavoura era a ocupação normal do homem livre. A caça ligava -se estreitamente
à
agricultura:
eram estas as duas únicas atividades que um nobre podia exercer sem perder sua posição.
90 Entre eles,
FERNANDES,
1951.
182
África do século  ao século 
F . Vista da caverna P de Tellem: celeiros de tijolo cru. Data: Fase 3 de Tellem, séculos XIII -XIV.
(Foto G. Jansen.)
F . Ta de Tellem com quatro pés munidos de base, da caverna D. Data: Fase 2 de Tellem, séculos
XI -XII. (Museu Nacional de Bamako.)
183
O Mali e a segunda expansão manden
F . Túnica de algodão de Tellem encontrada na caverna C. Data: Fase 2 de Tellem, séculos XI -XII. (Foto G. Jansen.) (Fonte: Bedaux . 1977.)
184
África do século  ao século 
F . Império do Mali: conjunto de estátuas (cavaleiros) encontradas na região de Bamako (provavelmente dos séculos XIV -XV).
185
O Mali e a segunda expansão manden
F . Estátua de cavaleiro encontrada na região de Bamako. Data estimada por termoluminescência:
680 anos, com uma variação de ± 105, antes de 1979 (1194 -1404).
186
África do século  ao século 
A criação e a pesca
A criação de animais era a atividade característica dos povos do Sahel, como
os Fulbe. No século XIV, porém, a maior parte dos camponeses do vale do rio
Níger também praticava a criação de bovinos, ovinos e caprinos. Nessa época,
alguns grupos Fulbe se haviam sedentarizado nas regiões do Diolof, do Takrūr
e do Manden, atraídos pelas ricas pastagens do vale.
A pesca era praticada por grupos étnicos muito especializados: os Somono, no
alto Níger, os Bozo, no seu curso médio, e os Sorko, entre Tombuctu e Gao, em
terririo songhai. O peixe, defumado ou seco, era embalado em grandes cestos para
ser vendido por todo o imrio, até a orla da floresta, bem no sul. o muito
tempo, ainda se consumia em Gana, na Costa do Marfim e em Burkina Fasso
(ex -Alto Volta) o peixe de Mopti (cidade que ocupou o lugar de Djenné)
91
.
Os artesãos
O artesanato reservava -se às castas. O trabalho com o ferro era limitado aos
ferreiros; com o metal, abundante nos montes Manden, assim como na região
de Niani, estes fabricavam ferramentas para arar (daba, foice) e armas. O mansa
possuía grandes forjas em Niani
92
.
Peles e couros, tratados pelos clãs de sapateiros, constituíam considerável
fonte de recursos, pois eram importados em grande quantidade pelos países da
África setentrional.
O trabalho do ouro era atividade honrada. No Manden, ela cabia a uma
fração de ferreiros conhecidos como siaki, que residiam nos grandes centros
urbanos. No Takrūr e no Diolof, os metais preciosos eram trabalhados desde
os tempos dos kaya maghan; os artesãos dessas regiões são dos mais reputados
da África ocidental.
A tecelagem também florescia, movimentando grande comércio de tecidos de
algodão que eram exportados em rolos das províncias para o sul. Os tecidos tingi-
dos com índigo logo se converteram na especialidade dos Tukuloor e dos Soninke.
No Takrūr, uma casta especial, o clã Mabo, dedicava -se à tecelagem e à tintura.
Os artesãos praticavam a endogamia. Sob os mansa, as castas certamente
tinham deveres, mas gozavam, igualmente, de alguns direitos muito precisos:
91 Ver o capítulo 8. As somas exigidas dos pescadores e camponeses eram xadas pelo costume e pagas
pelas famílias. Tratava -se de quantias xas, que fazem pensar mais em servidão do que em escravidão.
92 FILIPOWIAK, 1970.
À
volta do sítio de Niani, vários pontos de extração do ferro foram localizados
pelos arqueólogos. O minério da região contém bom teor de ferro.
187
O Mali e a segunda expansão manden
nem o imperador, nem os nobres, e muito menos os homens livres podiam exigir
deles mais do que era fixado pelo costume.
O comércio
O ouro, o sal, o cobre e as nozes -de -cola desempenharam papel importan-
tíssimo na economia do Mali. O império possuía numerosas minas de ouro, o
que o tornava o maior produtor de metais preciosos do Velho Mundo: explorava
o ouro do Burem província limítrofe do Manden cuja população se dedicava
unicamente à extração do metal do Bambuku, do Galam (no alto Senegal) e
da região de Niani. Da mesma forma que os antigos kaya maghan, o mansa tinha
direitos exclusivos sobre as pepitas de ouro
93
. O metal vinha -lhe, igualmente,
das florestas do sul.
Begho, em território bron (na atual Gana), era grande centro de comércio de
nozes -de -cola, ouro e cobre
94
. O sal extraído em Teghazza e Idjil era vendido no
varejo pelos Diula (comerciantes), em todas as partes do império; as regiões cos-
teiras da Senegâmbia produziam sal marinho, mas este o chegava até as terras
do interior. Takedda constituía, eno, o maior centro de produção e comercia-
lização do cobre; fundido em hastes, o metal era exportado para o sul, onde era
mais apreciado que o próprio ouro. Sabemos, hoje, que esse cobre se vendia o
somente entre os Akan, mas também na área cultural Benin -Ife/Igbo -Ikwu
95
.
O comércio das nozes -de -cola, importadas pelo Mali dos países ao sul, colocou
os Soninke e Maninka em contato com vários povos da floresta, entre os quais
os Akan e os Guro (etnias que hoje vivem na Costa do Marfim e em Gana).
Estes povos da floresta deram àqueles o nome de Diula ou Wangara, que significa
comerciante
96
.
Procurando nozes -de -cola e ouro, os Mandenka estabeleceram postos nas
estradas que levam das margens do Níger até Kong (na atual Costa do Marfim)
e Begho (na atual Gana); também difundiram o Islã e a cultura mandenka até
regiões distantes, no sul
97
. Rezam as tradições haussa que o Islã foi introduzido
93 AL -‘UMARĪ, 1927.
94 POSNANSKY, 1974. Seria arriscado especular qual a quantidade de ouro enviada por ano para os
países setentrionais.
O
certo, porém, é que no século XIV havia forte demanda desse metal na bacia do
Mediterrâneo, dada a adoção do padrão -ouro por cidades mercantis como Marselha, Gênova etc.
95 Ver o capítulo 25 deste volume, sobre o comércio transaariano e o comércio entre a savana e a oresta.
96 Sobre o comércio de nozes -de -cola na região das orestas, ver ZUNON GNOBO, 1977.
97 O avanço dos Mandenka para o sul intensicou -se pelo nal do século XV, quando o Mali perdeu as
províncias orientais da curva do Níger.
188
África do século  ao século 
no Sudão central pelos Wangara no século XIV
98
. Os Diula ou Wangara envia-
vam para a floresta caravanas de burros carregados de sal, tecidos de algodão e
objetos de cobre; também utilizavam carregadores. Conta Valentim Fernandes
que alguns Wangara de Djenné chegavam a possuir duzentos escravos para
transportar rumo ao sul o sal que trocavam pelo ouro das florestas
99
.
Essa tradição e o tino comercial ainda hoje caracterizam os Mandenka, que
são dos principais comerciantes na África ocidental.
98 Ver os capítulos 11 e 25 deste volume.
99 Ver FERNANDES, 1938, p. 85 -6; ver, também, o capítulo 25 deste volume.
189
O Mali e a segunda expansão manden
F. Império do Mali: estatueta de gura barbada, feita em terracota. Data estimada por termoluminesncia: 860
anos, com uma varião de ± 180, antes de 1979 (939 -1299). (Foto R. Asselberghs.) (Fonte: De Grunne, 1980.)
190
África do século  ao século 
F . Imrio do Mali: estatueta em terracota de e com criaa. Data estimada por termoluminescência:
± 690 anos antes de 1979 (1184 -1394). (Foto R. Asselberghs.) (Fonte: De Grunne, 1980.)
191
O Mali e a segunda expansão manden
F. Império do Mali: serpente em terracota. Data estimada por termoluminescência: 420 anos, com
uma variação de ± 65, antes de 1979 (1494 -1624). (Foto R. Asselberghs.) (Fonte: De Grunne. 1980.)
192
África do século  ao século 
F . Império do Mali: estatueta em terracota de gura ajoelhada, da região de Bankoni. Data estimada
por termoluminescência: 1396 -1586. (Foto R. Asselberghs.) (Fonte: De Grunne, 1980.)
C A P Í T U L O 7
193
O declínio do Império do Mali
O declínio do Império do Mali
Madina Ly -Tall
Introdução
Após o século XIV, dominado pela figura notável do mansa Kanku Mūsā,
o Mali entrou num período de declínio gradual
1
.
Os séculos XV e XVI foram
marcados pela mudança progressiva do centro de interesse do império para o
oeste. Enquanto o monopólio comercial muçulmano permanecia intacto nos
demais países do sul do Saara (Songhai, Kanem etc.), o comércio do Mali, até
então também orientado para o mundo árabe, a partir de meados do século XV
voltou -se parcialmente para o litoral. Os mercados de Sutuco e de Djamma
Sura (Djagrancura), às margens do rio Gâmbia, substituíram os de Tombuctu
e de Djenné, agora controlados pelos Songhai. O sensível enfraquecimento das
relações com o mundo muçulmano explica por que temos tão poucas fontes
árabes sobre esse período. Ibn Khaldūn, principal fonte da cronologia dos mansa
do Mali, informou -nos até o fim do século XIV. Foi preciso, porém, esperar
mais de um século pelos últimos testemunhos árabes sobre o Império do Mali,
a Descrição da África, de Leão, o Africano
2
.
1 Estas últimas informações sobre o Mali datam de 1393; Ibn Khaldūn terminou a redação do Kitāb
al -‘Ibār em 1393 -1394, embora a revisasse constantemente até a morte, em 1406.
2 Alguns incios incitam à prudência; Leão, o Africano, como era conhecido na Europa, ou al -‘Hasan ben
Muhammad al -Wuzza’n (c. 1494 -c. 1552) o parece ter efetivamente visitado todos os pses que cita.
194
África do século  ao século 
A importância crescente do oeste do império pode ser explicada pela presea
portuguesa após a tomada de Ceuta, em 1415: os árabes não eram mais os únicos a
comerciar com a África ocidental. As fontes árabes sobre o Mali foram substituídas
pelas europeias, sobretudo pelos relatos de viagem portugueses, principalmente nas
províncias ocidentais da Gâmbia e de Casamance. Os relatos de Ca Da Mosto
3
e de
Diogo Gomes
4
,
que subiram o rio mbia em 1455 e em 1456, respectivamente,
se completam. No início do século XVI, foram apresentados dois testemunhos con-
temponeos: Esmeraldo de situ orbis, de Duarte Pacheco Pereira (1505 -1506)
5
,
e as
preciosas informões de Valentim Fernandes (1506 -1507)
6
.
Mas a fonte mais importante - em que aparecem os últimos resquícios de
poder e de renome do Mali, até o último quartel do século XVI - é o Tratado
breve dos rios de Guiné, de André Álvares D’Almada, português nascido na África,
na ilha de Santiago do Cabo Verde, que comerciava no litoral da Guiné.
Ao lado dos documentos árabes e europeus, têm -se as tradões orais, que, apesar
de antigas, muitas vezes trazem informões valiosas. Apesar da parcialidade de seus
autores, o Takh al -Sūn e o Ta’kh al -fatsh, cnicas sudanesas da metade do
século XVII, são úteis para o conhecimento do Mali após seu desmembramento.
Vêm complemen -las todas as tradões manden (mandingo) da Reblica Popu-
lar Revolucioria da Guiné, da Reblica do Mali e da Reblica de mbia. Os
detentores da tradição oral da rego de Siguiri referem -se, frequentemente, a Niani
Mansa Mamudu, que Yves Person identifica ao mansa Muhammad (Mohamed)
IV
7
.
A oeste, as tradições dos Manden (Mandingo) ocidentais são particularmente
importantes, em virtude do especial papel ecomico da província da Gâmbia no
Império Manden dos culos XV e XVI. Não menos importantes são as tradições
do reino manden do Gabu (Kaabu). As tradões fulbe (peul) do Futa -Toro e do
Futa -Djalon muito esclarecem sobre as relações entre o Império Manden e o Estado
fulbe (peul) de Futa -Toro.
Fontes portuguesas ainda pouco exploradas e pesquisas mais profundas sobre
as tradições permitem abordar o período dos séculos XV e XVI do Império
Manden sob novo ângulo.
3 CA DA MOSTO, 1895.
4 GOMES, 1959.
5 PEREIRA, 1956.
6 FERNANDES, 1951.
7 O primeiro Muhammad (Mohamed) reinou de 1305 a 1310; o que atacou Djenné em 1599 é o quarto
com esse nome.
195
O declínio do Império do Mali
Após o século XIV, as relações do Mali com a África setentrional
intensificaram -se, em consequência da célebre peregrinação do mansa Kanku
sā a Meca. Dessa peregrinão resultou intenso desenvolvimento econô-
mico e cultural, responvel pela expansão da influência do Mali para além
de suas fronteiras. No entanto, a introdução maciça da cultura islâmica per-
turbou os costumes do país. Enquanto o governo esteve em mãos de mansa
ergicos, como Kanku Mū e Solimão, tudo correu bem. Entretanto, no
reinado de seus sucessores, líderes de menor envergadura, multiplicaram -se
as intrigas na corte. O século XIV, durante o qual se assistiu ao apogeu do
império, terminou com o enfraquecimento do poder central.
Enquanto isso, uma nova potência - o Songhai -, que suplantaria o Mali nas
províncias setentrionais, desenvolveu -se no baixo Níger.
O Império do Mali perde o controle do comércio
transaariano
Os primeiros atentados contra o Império Manden foram movidos pelos tua-
regues e por outros berberes, seguidos por Sunn ‘Al e pelas tropas songhai.
Os tuaregues e os berberes
Vários grupos berberes dependiam do Império Manden durante seu apogeu,
no século XIV. Alguns, como os Kel Antessar, os Yantara, os Meddusa (Madasa)
e os Lamtūna (Lemtuna), estavam em processo de sedentarização e pagavam
regularmente tributos aos mansa do Mali; outros, entretanto, que eram nômades
do Air e do Adrar dos Iforha, continuavam bastante rebeldes à autoridade central.
A submissão desses grupos se fez notar em determinados momentos, sob o
reinado de mansa como Kanku Mūsā e Solimão. Por volta de 1387, com a morte
do mansa Mūsā
II, o Manden passou por uma crise de sucessão; os descendentes
de Sundiata Keita - o ramo mais antigo da família real - tentaram reconquistar
o poder, que se encontrava, desde o advento de Kanku Mūsā, nas mãos do ramo
mais jovem, descendente de Mande Bory, irmão caçula de Sundiata.
Em três anos, dois mansa foram assassinados em consequência dessas disputas,
que também contribuíram para o enfraquecimento do poder real e da autoridade
central, principalmente nas regiões do Sahel. A partir doculo XV, os tuaregues,
que após várias investidas conseguiram tomar Tombuctu (1433), apossaram -se da
196
África do século  ao século 
F . Fachada do kamablon de Kangaba. (Foto Madina Ly-Tall.)
F . O kamablon de Kangaba, cabana das cerimônias setenais. (Foto J. Basin.)
197
O declínio do Império do Mali
maioria das cidades do Sahel, entre as quais Walata, Nema (Mema) e, mesmo,
Gao.
Assim, após privar o Mali das antigas dependências setentrionais, esse povo
nômade reforçou, com o avanço para o sul, sua posição e seu papel no comércio
transaariano. Entretanto, sua influência não predominou por muito tempo na
região: a emergência do Estado Songhai, com Sunni Al, foi um sério revés para
os tuaregues, e explica os conflitos posteriores entre esse chefe e a aristocracia
de Tombuctu, formada por sábios e por ulemás originários, em sua maioria, da
cidade berbere de Walata.
Como consequência das atividades militares tuaregues e da hegemonia
songhai, a economia do Mali viu -se seriamente ameaçada. Todavia, o desen-
volvimento do comércio atlântico, com a chegada dos portugueses ao litoral,
F . Vista de Kamalia, no sudeste de Kangaba, Mali. (Fonte: Park, 1799.)
198
África do século  ao século 
deu -lhe novo alento. As províncias ocidentais passaram, então, a desempenhar
papel importante no comércio, substituindo as províncias do interior.
As províncias ocidentais do Mali
Apesar das tentativas infrutíferas de navegão no Atntico durante o reinado
do mansa A Bakr
8
,
predecessor de Kanku, as províncias da Senembia e o
oceano tiveram papel apenas marginal na orientação geopolítica e comercial do Mali
antes da descoberta portuguesa. A partir do culo XV, porém, estabeleceram -se laços
diploticos entre os soberanos de Portugal e do Mali, num momento em que as
relações comerciais já eram intensas.
O comércio
As minas de ouro do Burem continuavam sob o donio dos mansa do Mali;
am disso, os comerciantes Wangara iam a a região ashanti à procura desse metal.
De tempos em tempos, caravanas chegavam à costa para trocar ouro por cobre, teci-
dos de algodão pretos e azuis, linho, tecidos da índia, fibras vermelhas ou vestimentas
ornadas de ouro e de prata
9
.
Frequentemente, os Wangara tinham mais ouro do que
valiam as mercadorias trazidas pelas caravelas e voltavam à sua região com o restante
do metal. Eram, de fato,beis comerciantes, que usavam balanças e pesos e não se
contentavam com estimativas incertas, conseguindo, assim, oximo de lucro com
seu ouro
10
.
Em pouco tempo, os europeus começaram a utilizar as possibilidades de
troca entre as diversas regiões. Compravam cavalos no Futa para vendê -los na
Gâmbia. Esse tráfico, que reforçou os exércitos manden, provocou o desenvolvi-
mento de outro comércio: o de escravos. Diante da crescente demanda de cavalos
por parte dos reis do Diolof (Wolof ) e dos governantes mali da Gâmbia, os
portugueses, que levavam cada vez mais negros para Portugal, habituaram -se a
trocar cavalos por escravos (no começo, um cavalo valia oito escravos, número
que em pouco tempo se elevou para quinze). As relações comerciais alteraram -se
rapidamente, em detrimento dos africanos.
Nas províncias ocidentais do Império do Mali, o comércio continuou intenso
até o fim do século XVI. Em 1594, o português André Álvares D’Almada
8 Ver o capítulo 26 deste volume.
9
PEREIRA,
1956, p. 69 e 73; e
D’ALMADA,
1842, p. 26, 27, 29 e 43.
10
D’ALMADA,
1842, p. 30.
199
O declínio do Império do Mali
escreveu: “O centro comercial mais importante da Guiné é a Gâmbia”, apesar de
a Gâmbia ainda ser província do Mali
11
.
Entretanto, só uma parte especializada
da população participava do comércio – os Wangara –, já que a grande maioria
era composta por agricultores e pastores.
A agricultura e a criação
As proncias ocidentais do Mali, bem regadas pelas chuvas e pelos cursos
de água, ostentavam durante a estação chuvosa belos arrozais e campos de
algodão, principalmente ao longo das margens do Gâmbia
12
.
As chuvas eram
abundantes em todo o curso desse majestoso rio, provendo suas margens de
ricos solos aluviais. As inundações eram tão extensas que, muitas vezes, os
navios que o percorriam deixavam o leito, indo encalhar no meio das árvores
13
.
As florestas -galerias ao longo das margens abrigavam muita ca; no interior
delas, onde a mata era menos densa, viviam enormes manadas de elefantes,
cujas presas alimentavam o comércio do marfim. Assim como os Manden
(Mandingo) orientais, os Manden ocidentais eram grandes cadores. A caça
era inseparável da religião: um caçador reputado deveria, necessariamente,
ser grande conhecedor da floresta, e esse conhecimento achava -se associado
à magia. Nessas províncias ocidentais particularmente úmidas, a criação de
animais estava ligada à agricultura. Os camponeses eram, também, criadores
de animais domésticos. Na mbia e no Gabu, crescia o número de pastores
Fulbe (Peul), que tendiam à sedentarizão em torno dos pastos abundantes.
Por volta do final do século XV, essas comunidades fulbe organizaram -se e
passaram a desempenhar papel político, conforme será visto adiante.
Não se pode negligenciar a importância da criação na economia da região,
embora o comércio de peles viesse a se desenvolver mais tarde.
A sociedade e os costumes dos Manden ocidentais
A família estava baseada na descendência matrilinear. Como entre os
Soninke de Gana, as criaas pertenciam à linhagem dae, o que, no plano
político, se traduzia na sucessão matrilinear. Assim, o chefe de toda a Gâmbia,
o farin Sangoli, era representado em Niumi, perto da foz do Gâmbia, por um
11 Ibid., p. 35.
12
ZURARA,
1960, p. 346, e
CA DA
MOSTO,
1895, p. 70.
13
D’ALMADA,
1842,
p.
33.
200
África do século  ao século 
dos sobrinhos. Para os Manden ocidentais, muitos atributos da mansaya
(realeza) estavam ligados ao sangue real, daí a escolha de um sobrinho
para evitar qualquer erro
14
.
Al -Bakr dá a mesma explicação para a suces-
são matrilinear em Gana. Uma vez designado pelo Conselho dos Anciãos,
o novo farin deveria, em regiões como Casamance, isolar -se durante um
ano para se purificar, período em que o país seria governado por regentes.
Estes eram, geralmente, generais do farin precedente, sendo que pelo menos
um pertencia à família real
15
. Esse costume era, evidentemente, uma porta
aberta para intrigas políticas.
As crenças religiosas constituíam outra característica dos Manden ocidentais,
profundamente animistas”
16
.
Nos processos, as acusações sempre mencionavam
a feitiçaria. Praticamente todos os casos de doença eram imputados a essa prá-
tica. O acusado era citado perante o
farin,
que se valia, como prova, do chamado
“julgamento da água vermelha”: as duas partes eram obrigadas a beber água
avermelhada pelas raízes da Khaya senegalensis; o que vomitasse antes, ganhava
o processo; o perdedor, assim reconhecido como feiticeiro, era jogado às feras
ou posto em cativeiro, juntamente com os familiares
17
.
Para os chefes, tratava -se,
evidentemente, de processo bastante cômodo de obter escravos.
Era entre os chefes que se encontrava o maior número de muçulmanos, na
maioria das vezes um islamismo de fachada. Assim, em Casamance, o mansa
muçulmano tinha o hábito de solicitar ao imã que consultasse os adivinhos,
antes de se engajar numa guerra
18
.
Também em Casamance, o chefe muçulmano
nunca bebia vinho ou dolo sem derramar algumas gotas no chão, como oferenda
aos mortos. Nos campos, estacas emplastradas com farinha de arroz e de milho,
sangue de bode ou vitela deveriam assegurar boas colheitas. O culto agrário era
poderoso. Mais para o interior, no rio Casamance e no Rio Grande, o reino
manden do Gabu (Kaabu) permaneceu muito apegado à religião tradicional. No
século XV, o rei ainda se encontrava sob a autoridade do poder central de Niani,
mas havia subordinado a quase totalidade das províncias manden. As tradições
do Gabu designavam o rei pelo termo kaabu mansaba (o grande rei do Kaabu),
mas nos textos portugueses era conhecido pelo nome de farin Cabo
19
.
14 Ibid., p. 80.
15 Ibid., p. 42.
16 CA DA MOSTO, 1895, p. 70.
17 D’ALMADA, 1842, p. 40.
18 Ibid.,
p.
39.
19 DONELHA, 1977.
201
O declínio do Império do Mali
No século XVI, entretanto, o Islã progrediu bastante nessas regiões
20
.
Em
muitos pontos da costa, circulavam marabus que proibiam a carne de porco
e distribuíam amuletos. No entanto, como no século XIV, o proselitismo dos
marabus era dirigido sobretudo aos chefes: caso estes abraçassem a nova reli-
gião, a conversão dos súditos já estaria garantida - ao menos na aparência. Essa
conversão era, porém, tão superficial que os chefes não hesitavam, na primeira
oportunidade que surgia, em trocar a islâmica pelo cristianismo
21
.
Como se vê, a sociedade manden ocidental precisou confrontar -se com novas
realidades, isto é, a infiltração das culturas muçulmana e cristã. Essas influências
externas não poderiam deixar de perturbar o equilíbrio tradicional; no entanto, o
perigo mais grave era de ordem militar: enquanto os Manden tinham olhos
para seu comércio e sua agricultura, desenvolvia -se ao norte a temível potência
do Grande Ful
22
.
A emergência dos Fulbe: ameaça às províncias ocidentais
do Mali
Os Tenguella: 1490 ‑1512
A partir do século XIII, os Fulbe, que viviam como nômades no Termes,
começaram a se infiltrar em direção ao sul, primeiramente no Futa -Toro e de
para as grandes extensões do Bundu, de Macina e dos planaltos ervosos do
Futa -Djalon. A princípio, submeteram -se aos chefes locais, mas acabaram se
impondo às populações autóctones e fundando poderosos Estados (ver fig. 7.4).
Assim, constituiu -se o Estado fulbe de Futa -Toro, sob a liderança de Tenguella,
cujo filho, Koly, é mais conhecido.
Koly Tenguella foi uma das personagens africanas cuja história virou lenda. As
tradições do Futa -Toro afirmam que era filho de Sundiata Keita; Tenguella seria
apenas seu pai adotivo. Essa filiação pode ser encarada como tentativa de apro-
ximar essas duas grandes figuras históricas da “Idade Média da África ocidental.
Pode -se supor, como muitos o fizeram, que Koly tivesse sangue manden
23
.
20 Este fato relaciona -se, certamente, com mudanças no plano da religião tradicional: no Futa, as crenças
dos Hal Pulaar substituíram as dos Fulbe Denianke.
21 Ver a espetacular conversão do mansa de Niumi em GOMES, 1959, p. 42 -44; ver também D’ALMADA,
1842, p. 25.
22 Assim era chamado o chefe dos Fulbe Denianke.
23 BOULÈGUE, 1968, p. 168.
202
África do século  ao século 
F . Mapa dos Estados do Sudão, no século XVI. (Segundo Madina Ly -Tall.)
203
O declínio do Império do Mali
Liderados por Tenguella e por Koly, os Fulbe Denianke (ou Deniankoobe)
invadiram toda a Senegâmbia. O itinerário percorrido é, ainda, objeto de dis-
cuso. Para alguns, partiram do Futa -Toro em direção ao Futa -Djalon
24
.
Para
outros, fizeram o percurso inverso
25
.
Nos dois casos, tiveram que enfrentar os
Manden
26
.
As guerras entre os Denianke e os mansa do Mali não estão datadas com
precisão; sabe -se, apenas, que ocorreram entre
1481
e
1514.
Os exércitos fulbe
deixaram vivas lembranças nas tradições do país. Quase um século depois, André
Álvares D’Almada ouviria falar que o exército invasor contava numeroso con-
tingente de cavaleiros. As tradições orais, tanto dos Fulbe quanto dos países que
atravessaram, dão ênfase ao grande número de guerreiros e de cabeças de gado,
o que mostra que Koly não conquistou, mas também se instalou no Futa,
atraído pela fertilidade da região.
A autoridade do Mali, que a eno era exercida principalmente sobre
a área dos contrafortes do Futa -Djalon, começou a regredir. Suas linhas de
comunicão com as províncias ocidentais recuaram para o norte, em direção
à Gâmbia e a Casamance
27
.
A partir do século XV e começo do século XVI,
o corredor que ligava o Mali ocidental ao Mali oriental começou a se estreitar.
Os comerciantes enviados pelo mansa do Mali para vender ouro no mercado
de Sutuco, na mbia, o tinham mais seguraa. Eles eram obrigados a
efetuar inúmeros desvios, que prolongavam suas viagens por até seis meses
28
.
Os exércitos de Koly e do pai, reforçados por homens das colônias fulbe
(principalmente de Macina), investiram sobre o Bundu e, depois, sobre
o Futa -Toro
29
.
Atravessaram o rio Gâmbia por um sítio que passou a ser
conhecido, em virtude desse episódio, como a “passagem dos Fulbe. Para
se ter ideia do efetivo desses exércitos, as tradições orais contam que para
fazer um vau de uma légua de largura no rio, cada soldado só precisou
carregar uma pedra. Depois do Bundu, pai e filho se separaram. Tenguella
foi em direção do reino de Zara (Diara) e Koly empreendeu a conquista
do Futa -Toro.
24 É a teoria de Maurice Delafosse, revisada e corrigida, no que concerne às datas, por A. Teixeira da Mota.
25 BOULÈGUE, 1968 (p. 183), demonstra, ao contrário, que os Fulbe progrediram do Futa -Djalon ao
Futa -Toro.
26 Talvez a conexão Ba/Keita entre os clãs Fulbe e Manden tenha sido estabelecida em relação à genealogia
de Koly Tenguella.
27 PERSON, 1970, p. 287.
28 D’ALMAOA, 1842, p. 30 e 31.
29 BOULÈGUE, 1968, p. 186 -9.
204
África do século  ao século 
A conquista do reino de Zara (Diara)
Vimos que o reino de Zara (Diara ou Sankura) havia caído nas mãos dos Songhai,
nos primeiros anos do século XVI
(1500 -1501).
O askiya Muhammad correu em
socorro do irmão ‘Umar Komdiāgho, que se encontrava em dificuldades no reino
manden de Zara, e lá venceu o representante do mansa. O askiya permaneceu por
muito tempo na rego, a fim depacificá -la e organi -la em novas bases
30
.
Entretanto, a paz não durou muito. Os exércitos fulbe, em movimento, logo
irromperam no reino de Zara. O irmão do askiya desencadeou nova campanha,
mais bem -sucedida do que aquela movida contra os Manden:
Tenguella foi vencido e morto em
1511 -1512,
segundo o
Ta’rīkh al -Sūdān
31
ou em
1512 -1513,
segundo o
Ta’rīkh
al -fattāsh
32
.
Mais uma vez os Songhai demonstraram o quanto valorizavam o reino de
Zara, que lhes permitia controlar as minas de Bambuku. Koly o insistiu,
dirigindo -se, então, para o Futa -Toro
33
.
A conquista do Futa ‑Toro e do Diolof (Wolof)
O Futa ainda guardava resqcios da administrão manden. Os diver-
sos farin, que deveriam ser súditos do rei de Zara, quando este ainda estava
subordinado ao mansa do Mali, acabaram por se emancipar, aproveitando a
anexação do reino pelos Songhai.
Os pequenos chefes locais contra os quais Koly teve que lutar encontravam -se divi-
didos, facilitando -lhe grandemente a tarefa. Koly fixou sua capital em Anyam -Godo
e dali liderou diversos ataques contra o imrio do Diolof, do qual conquistou rios
terririos. Segundo as tradições recolhidas por A. Raffenel, em
1846,
Koly
logo se tornou o terror de todos os povos vizinhos, principalmente dos Wolof
(Ouolof ), que derrotou em muitas batalhas. Am disso, acrescentou, às suas
conquistas sobre os mouros, as belas terras que aqueles povos ocupavam. A partir
de então, tudo o que restou aos Wolof foram as terras do sul, afastadas do rio e
de seus afluentes
34
.
A soberania do Futa sobre o Diolof durou até a primeira metade do século XVIII.
30 AL -SA‘DĪ’, 1964, p. 124 e 125.
31 Ibid., p. 127.
32 KA‘T, 1964, p. 127.
33 AL -SA‘DĪ’, 1964, p. 127.
34 RAFFENEL, 1846, p. 317 e 318.
205
O declínio do Império do Mali
Assim, o Mali viu -se privado de suas possessões ocidentais por aquele que
os portugueses denominavam imprecisamente “Grande Ful”, isto é, o silatigui
do Futa. Mesmo assim, a autoridade do Manden mansa (imperador do Mali)
manteve -se do Gâmbia a Casamance até o fim do século XVI, segundo o que
se depreende do testemunho de André Álvares D’Almada. O mansa do Mali
era conhecido e obedecido em regiões distantes mais de
1500
quilômetros de
Sutuco. Nas crenças populares, passava por soberano de todos os negros. Os
habitantes da Mina (Elmina) chamavam -no de “grande elefante”. Um elefante
que, no entanto,sentia o peso da idade.
O
m do Império do Mali
O velho império, atacado pelo leste e pelo oeste, precisou enfrentar ainda
outra ameaça, não menos perigosa, apesar de velada: a ingerência portuguesa na
vida política do oeste africano.
O Mali e os portugueses: mansa Mahmūd II e mansa Mahmūd III.
Após os primeiros contatos particularmente violentos com a África negra, os
portugueses viram -se obrigados a mudar de política, diante da firme resistência
das populações costeiras. Assim, empenharam -se, principalmente, em ganhar
a confiança dos soberanos locais
35
. Os reis de Portugal enviaram numerosas
missões diplomáticas a seus homólogos da África ocidental. Assim, entre 1481
e 1495, D. João II de Portugal enviou embaixadas ao rei do Futa, ao koi de
Tombuctu e ao mansa do Mali.
Duas missões diplomáticas foram enviadas ao Mali, mostrando a importância
que o soberano português atribuía a esse país. A primeira partiu pelo Gâmbia, a
segunda partiu do forte de Elmina. O mansa que as recebeu, Mahmūd, era filho
do mansa Ule (Wule) e neto do mansa Mūsā
36
. O Mali já lutava contra os Fulbe
Denianke, mas seu poder ainda era grande. Numa carta ao rei de Portugal, o
mansa Mahmūd II afirmava que sua autoridade era comparável à de quatro
sultões: o do Iêmen, o de Bagdá, o do Cairo e o do Takrūr
37
. Em 1534, o mansa
Mahmūd III recebeu uma missão portuguesa expedida por João de Barros,
35 Foi uma verdadeira caçada humana; ver LY -TALL, 1977, p. 17.
36 Observe -se a frequência dos nomes Mahmūd, Ule (Wule), Mūsā; a homonímia era corrente na família
real do Mali.
37 O mansa Mahmūd II deve ter cedido à tentação de exagerar seu poder.
206
África do século  ao século 
representante do rei de Portugal no forte de Elmina, que tratou com o soberano
manden de vários negócios relativos ao comércio no rio Gâmbia,
Os portugueses, porém, começavam a se imiscuir nos conflitos internos
dos países costeiros. Por volta de 1482, Bemoy, regente do trono de Diolof,
beneficiou -se do auxílio militar português contra os herdeiros legítimos. Além
disso, as missões de amizade eram, também, fontes de informação sobre a
situação interna do velho império.
Outra estratégia dos portugueses era oferecer vantagens comerciais aos
pequenos chefes da costa, levando -os, assim, a se emanciparem da tutela do
Manden mansa. Este foi o caso do reino de Salum.
O Mali e o reino de Salum
O reino de Salum foi fundado, provavelmente, por Mbegan Ndur, rei de Sine,
no final do século XV, tendo conhecido grande expansão no século XVI. Por
volta de 1566, ocupava todo o norte do rio Gâmbia e grande parte do Sine. Suas
estruturas administrativas e militares eram muito sólidas, o que o tornava uma
das chefarias mais poderosas da província da Gâmbia
38
. A eficácia de sua orga-
nização militar impressionou particularmente o negociante português André
Álvares D’ Almada. Dois capitães -gerais, os jagaraf (ou jaraf) , dominavam todos
os chefes de aldeia, chamados jagodim.
Quando o rei quer levantar um exército, avisa os dois
jagaraf,
que transmitem suas
ordens aos jagodim; cada um reúne sua gente, de maneira que em pouco tempo
forma -se numeroso exército que conta grande número de cavaleiros, montados em
cavalos comprados aos Fulbe e aos mouros - conta André Álvares D’Almada
39
.
O reino de Salum emancipou -se da tutela da Gâmbia e anexou muitas
pequenas chefarias ao longo do rio. No início do século XVII (1620 -1624), o
inglês Richard Jobson não mais ouviria falar do reino da Gâmbia na região. O
lugar dessa importante província do Mali estava ocupado por três reinos: Salum,
Wuli (Uli) e Kantor
40
.
O que restara do velho império do Mali acabava de perder sua única janela
para o exterior. Num último esforço, o mansa do Mali tentou retomar uma base
no delta central do Níger, em 1599. Foi seu canto de cisne.
38 D’ALMADA, 1842, p. 26.
39 Ibid., p. 23.
40 BOULÈGUE, 1968 (p. 238), e DONELHA, 1977, revelaram a existência do reino do Gabu ou Kaabu
(Farin Cabo). Após 1600, esse reino manden cobria, provavelmente, a maior parte da Senegâmbia.
207
O declínio do Império do Mali
O último esforço do Mali: derrota do mansa Mahmūd IV diante de
Djenné, em 1599
O mansa Mahmūd IV tentou tirar partido da situação problemática criada
pela ocupação marroquina do delta do Níger. Fortalecido pelo apoio da maioria
dos chefes locais bambara (bamana) e fulbe -
O
kala chaa de Boka, o kala ou
hamadi amina de Macina e os chefes regionais de Farko e de Oma -, marchou
sobre Djenné. Entretanto, foi traído pelo kala chaa, que, percebendo a ausência
dos dois capitães -gerais do mansa, o zengar zuma e o faran sura, preferiu passar
para o lado dos marroquinos. Caso isso não ocorresse, o mansa do Mali talvez
tivesse sucesso na reconquista de Djenné. Em todo caso, quando chegaram à
cidade, os reforços marroquinos impressionaram -se com o exército do imperador
do Mali, “cujas tropas eram tão numerosas que se estendiam até o braço de rio
por onde os barcos deveriam passar para alcançar a cidade”
41
.
Graças aos conselhos pertinentes do kala chaa, os marroquinos domina-
ram o exército manden, após violenta fuzilaria. Entretanto, mesmo vencido,
o mansa teve direito a honrarias: o kala chaa e o sorya muhammad “foram
encon
trá -lo
em lugar seguro, saudaram -no como sultão e descobriram a cabeça
para prestar -lhe homenagem, como era de costume
42
.
A última tentativa do
mansa Mahmūd para reassumir o controle da grande metrópole comercial da
África ocidental fracassara. As províncias ainda subordinadas ao mansa do
Mali emanciparam -se uma a uma. Segundo al -Sa‘d, esse esfacelamento deu
origem a cinco pequenos reinos
43
.
Os grandes beneficiários da queda do Mali foram os Bambara. Sob a depen-
dência dos mansa até o início do século XVII, estes já haviam formado núcleos
bastante importantes no reino de Zara e no delta interior do Níger. Tais núcleos
foram reforçados durante esse mesmo século por grandes migrações - as mais
importantes foram as lideradas pelos irmãos Baramangolo e Niangolo -, que
serviram de base para a fundação dos reinos bambara de Segu e de Kaarta. O
Mali, reduzido ao reino do Manden, contava apenas com as regiões de Kaabu,
Kita, Dioma e Kyumawanya (Djumawanya)
44
.
41 AL -SA‘DĪ’, 1964, p. 279.
42 Ibid., p. 279.
43 Ibid., p. 21.
44 PERSON, 1970, p. 283.
208
África do século  ao século 
Conclusão geral
O Império do Mali passou por longo período de declínio político. Privado de
suas províncias setentrionais pelos tuaregues e, depois, pelo Songhai na primeira
metade do século XV, manteve -se a par desse novo Estado até o fim do século
XVI, graças ao dinamismo econômico de suas províncias ocidentais. A vitalidade
dos Wangara e dos Jula (Diula) fez dos séculos XV e XVI um período de brilho
cultural e comercial. Os europeus que visitaram o Mali ocidental trouxeram a
imagem de um Estado com sólidas estruturas políticas, econômicas e sociais.
No plano administrativo, o mansa do Mali era representado por um farin, do
qual dependiam vários chefes de aldeia: os niumi mansa, os bati mansa, os casa
mansa etc. Em meados do século XV, o farin chamava -se Sangoli e residia a dez
dias de viagem a su -sudeste da aldeia de Batimansa
45
. Alguns de seus chefes de
aldeia eram escravos ligados à família real; a sucessão era, geralmente, matrili-
near. Diogo Gomes relata que Frangazik, chefe de uma aldeia próxima à foz do
Gâmbia, era sobrinho do farin Sangoli
46
.
No século XVI, entretanto, devido à
conversão de certos mansa locais ao Islã, foi introduzida a sucessão patrilinear.
A partir do século XVI, o Gabu afirmou -se como reino independente e passou
a dominar o conjunto de países da Senegâmbia
47
.
O farin tinha um séquito numeroso, que incluía muitos escravos. Para sau -lo,
os escravos deviam despir -se; os homens livres desarmavam -se e ajoelhavam -se,
colando o rosto ao chão. Funcionários ou farba percorriam as aldeias para receber
impostos, principal fonte de renda dos mansa.
Banhada pelos rios Casamance e Gâmbia, a área era abundante em produtos
agrícolas. Todas as fontes portuguesas dos séculos XV e XVI falam de belos
campos de algodão, vastos arrozais e belas florestas nos reinos da Gâmbia e de
Casamance. Entretanto, a atividade econômica mais importante era o comércio.
Da foz do Gâmbia, o sal era levado ao interior, onde era trocado por ouro. O
comércio deu origem a importantes cidades -mercados ao longo do rio Gâmbia -
Sutuco, Djamma Sura -, frequentadas por negociantes portugueses que vendiam
cavalos, vinho, tecidos da Bretanha, adornos de vidro, contas, pregos e braceletes.
Os Manden impressionaram os portugueses com sua experiência comercial
48
. O
45 CA DA MOSTO, 1937, p. 67.
46 GOMES, 1959, p. 34.
47 D’ALMADA, 1842, p. 8, e DONELHA, 1977, p. 119 e 120.
48 D’ALMADA, 1842, p. 29. Serviam -se de balanças para pesar o ouro e manejavam perfeitamente os
pesos.
209
O declínio do Império do Mali
comércio de ouro, que trazia lucros consideráveis, deu origem a uma casta de ricos
negociantes, os Wangara. Esses precursores dos Jula teriam papel importante na
difuo da cultura manden, principalmente nas regiões florestais do sul (Costa do
Marfim, Gana, Gui).
Nos séculos XV e XVI, a influência do Isna África ocidental continuou
fraca
49
.
Diogo Gomes encontrou, na corte de niumi mansa, um marabu originário
das províncias orientais do Mali, mas a influência deste era tão insignificante que
o viajante o teve dificuldade em convencer o mansa a se converter ao cristia-
nismo
50
.
O Islã começou a penetrar mais profundamente no reino da mbia
apenas na segunda metade do culo XVI. Contudo, apesar de serem, com fre-
quência, muçulmanos, os chefes preservavam suas crenças animistas. Bastião da
religo tradicional da Senegâmbia, o Gabu barrou a entrada dos muçulmanos
fulbe ou soninke até o século XIX
51
.
Com o declínio do comércio do ouro, os Manden retiraram -se para o sul,
atraídos pelo comércio das nozes -de -cola
52
. No final do século XVI, ocorreram
numerosas migrações de povos Manden para o sul e para o sudoeste
53
,
onde
fundaram aldeias ao longo das rotas das nozes -de -cola. Samori Turé se apoiará
sobre estes núcleos para construir seu império, no século XIX.
49 Os habitantes da Gâmbia eram animistas, em sua maioria. Ver BARROS, 1937, p. 70.
50 GOMES, 1959, p. 42 -4.
51 D’ALMADA, 1842, p. 28. Estudos sobre as tradições orais do Gabu: ver CISSOKO, 1972, e a comunicação
de M. Sidibé, no Congresso Mandingo de Londres, em 1972.
52 Uma regressão no comércio do ouro acompanhou a intensicação do comércio de escravos na costa.
53 PERSON, 1970, p. 284.
C A P Í T U L O 8
211
Os Songhai do século XII ao XVI
Ao fim de longa evolução de cerca de oito séculos, os Songhai, estabelecidos
nas duas margens do médio Níger, erigiram um poderoso Estado e unificaram
grande parte do Sudão, permitindo assim o desabrochar de brilhante civilização,
em gestação durante todo esse tempo. Para maior clareza, consideraremos dois
grandes períodos desta evolução, tentando distinguir seus principais aspectos,
na medida em que seja possível discerni -los nos dois Ta’rīkh de Tombuctu
1
, nas
fontes árabes e europeias e nas tradições songhai.
O reino de Gao do século XII ao advento de SunnĪ ‘AlĪ
Ber em 1464
Conhece -se mal a história dos Songhai anterior ao reinado de Sunn AlBer
(1464 -1492). As raras fontes árabes sobre o período mais suscitam problemas do
que informam. As tradições orais dão apenas um quadro imperfeito da realidade
desses tempos antigos. O estudo desse período será, portanto, crítico; levantará
mais questões do que as resolverá, e as soluções propostas servirão apenas como
hipóteses de pesquisa.
1 Ver AL -SA‘DĪ’, 1964; KA‘TI, 1964. Estas duas obras, escritas por sudaneses em meados do século
XVII, constituem as fontes fundamentais da história dos Songhai e do Sudão ocidental para o período
estudado.
Os Songhai do século XII ao XVI
Sékéné Mody Cissoko
212
África do século  ao século 
O reino de Gao no século XII
Por sua posição geográfica às margens do Níger, na zona fronteiriça entre
o Sudão e o Sahel, Gao tornou -se, no século XII, a capital do jovem Estado
songhai, acabando por eclipsar a antiga cidade de Kūkya (ou Kūgha, conforme
os autores árabes). O comércio do sal de Tawtek (local não identificado), a
passagem por Tadmekka de mercadorias provenientes da Líbia, do Egito, da
Ifrkiya, as caravanas do Tuat e de lugares mais distantes do Magreb ocidental
transformaram Gao num grande mercado cosmopolita.
As fontes árabes, no entanto, não são muito precisas quanto ao nome da cidade.
Segundo al -Bakr, que transcreve “Kaw -Kaw
2
, a cidade situava -se no Níger.
Al -Idrs distingue a cidade de gha, “bem populosa”, cercada de muros
3
na
margem norte, a vinte dias de marcha de Kaw -Kaw (Gao -Gao) ao norte. O que
se deve sublinhar é a existência das duas cidades, Gao e Kūkya, no século XII.
O reino que se estendia sobre as duas margens do Níger, de Dendi a Gao, era
dirigido pelos Dia ou Za, provavelmente uma fração dos Songhai miscigenada com
berberes
4
. De qualquer modo, no culo XI o Dia tinha o título songhai de Kanta
ou Kanda. Evento de importância capital foi a convero do Dia kossoy ao Is em
1019; o exemploo parece ter sido seguido pelos Songhai, que por muito tempo
ainda permaneceram fis às suas crenças e práticas religiosas tradicionais.
Estelas funerárias encontradas em Gao -Sané mencionam nomes muçulmanos
diferentes daqueles dos Ta’rīkh. Porrias raes, elas parecem ter sido importadas.
A dominação Manden (Mandingo) e a Dinastia dos Sunnī: séculos
XIII a XV
Provavelmente entre 1285 e 1300
5
, exércitos manden (mandingo) conquis-
taram o reino de Gao. Entre 1324 e 1325 aproximadamente, o mansa Kanku
Mūsā, voltando de peregrinação, construiu uma mesquita em Gao. Sob a direção
dos farin ou governadores, os Manden organizaram a região da curva do Níger
2 MONTEIL, V., 1968, p. 79.
3 AL -IDRĪSĪ, 1866, seção 3, p. 12 -4.
4 AL -SA‘DĪ, 1964, cap. 1, narra a lenda que explica a origem dos Dia (ou Za), cujos ancestrais teriam
vindo do Iêmen. DELAFOSSE, 1912, v. 2, é de opinião que os Dia eram “berberes cristianizados” que
libertaram o reino de Gao da pilhagem dos Sorko. HAMA, 1968, acha que constituíam uma fração
miscigenada e islamizada dos Songhai setentrionais.
5 MONTEIL, V., 1968, esclarece a questão através da crítica rigorosa da tese de DELAFOSSE, 1912, v.
2, que situa a conquista manden entre 1324 -1325.
213
Os Songhai do século  ao 
e encorajaram seu desenvolvimento econômico. Gao tornou -se, então, grande
centro comercial e uma das cidades mais belas do Sudão
6
.
A dominação manden não foi contínua. O Dia de Gao era, na realidade, um
tributário que aproveitou as dificuldades do Mali para se emancipar. Em todo
caso, parece que o final do século XIV marcou o término da dominação manden
sobre o Gao. Uma nova dinastia a dos Sunn fundada por Al Kolon no
século XIII, tornou -se independente e expulsou os Manden.
Segundo Boubou Hama
7
, esta dinastia, cuja origem ainda é objeto de discus-
são, teria vindo de kya e expulsado os Manden de Gao. Os Sunni, também
conhecidos como Sii ou Chi, eram guerreiros. Os três últimos representantes da
linhagem deixaram Gao e levaram a guerra para leste, na direção da rica região
de Macina e do Império do Mali. Sunn Madawu, pai de Sunn Al, empreendeu
grande ataque contra Niani, capital do Império Manden, saqueando -a e tomando
24 tribos de escravos pertencentes ao mansa. Seu sucessor Sunn Solimão Daama,
por sua vez, invadiu e destruiu Nema (Mema), centro da província soninke do
Império do Mali, arrebatando grande butim. As guerras aumentaram os meios
de ação da monarquia. O rei de Gao tornou -se o verdadeiro senhor da curva
do Níger e com a ascensão de Sunn ‘Al, em 1464, a dinastia atingiu o apogeu.
O Império Songhai nos séculos XV e XVI
Sunnī ‘Alī Ber ou Sunnī ‘Alī, o Grande (1464 ‑1492)
Conquista e organização de um império
Sunn Al Ber mudou os destinos do reino de Gao. Abandonou a política de
pilhagem adotada pelos predecessores, substituindo -a pela conquista territorial
8
.
Para tal, contou com um exército experiente e bem estruturado, chefiado por
homens competentes: uma flotilha no Níger comandada pelo hi koy (minis-
tro do rio e da esquadra), uma infantaria que aumentava continuamente com
a incorporação dos guerreiros vencidos e, sobretudo, uma cavalaria que, por
sua mobilidade, foi a ponta -de -lança de suas conquistas. Durante o reinado,
Sunn Al Ber percorreu, à frente dos cavaleiros, o Sudão nigeriano em todos
os sentidos, desconcertando seus adversários pela surpresa e rapidez, e impondo
6 IBN BATTA, 1966, p. 72.
7 HAMA, 1968, cap, 3 -5.
8 A respeito do Império Songhai, pode -se consultar também PARDO, 1971.
214
África do século  ao século 
sua autoridade pela violência e pelo medo. Seus contemporâneos julgavam -no
invencível, a encarnação mesmo do espírito da guerra. Conhecido como grande
mágico, era considerado um homem extraordinário, carismático, tanto que o
povo conferiu -lhe o título de daali
9
.
Como os predecessores, Sunn Al foi atraído pela rica região ocidental,
pelas cidades nigerianas e pelo delta central do Níger. Conquistou sucessi-
vamente Djenné, parte da região de Macina, onde abateu grande número de
Fulbe (Peul ou Fulani), e, o mais importante, Tombuctu (1468). Atacou os
tuaregues, rechaçando -os para o Sahel setentrional; no sul, empreendeu rias
expedições contra os Dogon, os Mossi e os Bariba. Em 1483, nas cercanias de
Djenné, venceu o rei mossi Nasere I, que voltava de Walata trazendo rico butim.
Desta forma, Sunn Al acabou com a ameaça dos Mossi no vale do Níger. Em
1492, ano de sua morte acidental, ele dirigia um grande império que, centrado
no Níger, estendia -se desde a região de Dendi até a de Macina. Organizou -o
segundo o modelo manden. Criou novas províncias, confiadas a soberanos que
se intitulavam fari ou farma (manden) e koy ou mondzo (songhai)
10
. Nomeou
um cádi para Tombuctu e provavelmente para outras cidades muçulmanas.
Todos esses agentes do leste estavam diretamente subordinados a Sunn; desta
forma, o Estado patriarcal e consuetudinário de Gao tornou -se um Estado
centralizado que controlava todas as regiões do Níger. Sunn Al favoreceu
o desenvolvimento econômico do jovem império. Se, por um lado, falhou na
escavação de um canal unindo o Níger a Walata, por outro, construiu diques
no vale do rio e incentivou a agricultura.
Política religiosa
Sunn Al Ber enfrentou grandes dificuldades junto à aristocracia muçulmana,
principalmente em Tombuctu. Dois séculos mais tarde, os ulemás desta cidade
descrevê -lo -iam à posteridade como um soberano cruel, tirânico e libertino;
hoje está reabilitado
11
. Os motivos de sua oposição aos ulemás eram tanto
políticos quanto ideológicos. Tendo sido educado no Faru (Sokoto), terra de sua
mãe, nunca foi bom muçulmano, pois jamais abandonou os cultos tradicionais
songhai. Os ulemás criticavam -no constantemente e muitos deles aliaram -se
9 KA‘TI, 1964, p. 84, traduziu daali pormuito elevado e acha que este título devia ser atribuído a Deus.
10 Ver mais adiante, p. 215, em Organização política e administrativa.
11 Os defensores de Sunn Al
ROUCH,
1953;
HAMA,
1968;
DIOP,
1960;
MAUNY,
1961;
CISSOKO,
1966 e outros historiadores –, corrigiram a injustiça de que foi vítima o grande soberano
e explicaram suas ações pelo contexto histórico em que se encontrava.
215
Os Songhai do século  ao 
aos tuaregues de Akil Ak Melawl, contra os quais Sunn lutava. Acima de tudo,
o imperador simbolizava a cultura tradicional songhai diante de forças novas:
o Islã e as cidades.
A Dinastia dos Askiya (1492 ‑1592)
Askiya Muhammad I, o Syllanke
12
A morte de Sunn Al provocou uma guerra civil. Sunn Baare recusou -se a se
converter ao Islã. Um partido muçulmano, dirigido pelo hombori -loi Muhammad
e seu irmão ‘Umar Komdiāgho, revoltou -se contra o novo sunnī e o derrotou em
Anfao, na região de Gao. Muhammad Turé ou Sylla apossou -se do poder sobe-
rano com o título de askiya, fundando, assim, uma dinastia muçulmana.
O Askiya Muhammad era de origem soninke, do cdos Turé ou Sylla
13
,
provenientes do Takrūr. Apesar de iletrado, era muçulmano fervoroso, homem
equilibrado e moderado, além de político sagaz. Apoiou -se sobre as novas forças
para expandir e consolidar o império fundado por Sunn Al Ber; sua vitória foi
a do Islã. O início de seu reinado foi marcado não tanto pelas conquistas, mas
pela peregrinação que empreendeu a Meca.
Em 1496 -1497, por motivos religiosos e políticos, o novo soberano visitou
os lugares santos do Islã. Fez -se acompanhar de um exército de 800 cavaleiros
e de numerosos ulemás, levando uma soma de cerca de 300 000 dinares para as
despesas. No Cairo, visitou um dos pilares do Islã, o grão -mestre da mesquita
de al -Azhar, al -Suyūt, de quem recebeu conselhos sobre a arte de governar.
Adquiriu uma concessão em Meca para abrigar os peregrinos do Sudão e obteve
do xarife de Meca o título de califa do Sudão, as insígnias do novo poder, assim
como o envio a seu império de embaixador, o xarife al -Sakl. Voltou ao Sudão
legitimado na muçulmana e com seu poder universalmente consagrado.
O Askiya Muhammad deu continuidade à obra de Sunn Al Ber. Auxiliado
pelo irmão Umar Komdiāgho, expandiu o império em todas as fronteiras.
Dominou as regiões de Macina e de Zara (Diara) onde, em 1512, foi morto
Tenguella (Tonguella), sucedido pelo filho Koly Tenguella. Tornou -se senhor
do Saara até as minas de Teghazza, conquistou Agadez e as cidades haussa de
Katsina e Kano. No entanto, as incursões contra os povos do sul os Bariba,
os Mossi e os Dogon não foram bem -sucedidas. Graças a suas conquistas,
12 Syllanke: termo soninke que signica “pertencente à família dos Sylla”.
13 Os dois nomes são dados pelos Ta’rīkh. O askiya era provavelmente do clã Sylla; na época, Turé era um
título religioso como Cisse. O título Turé foi adotado pelos conquistadores marroquinos.
216
África do século  ao século 
consolidou o Império Songhai, expandindo -o a seus limites máxi mos, de Dendi
à Sibiridugu, ao sul de Segu, e de Teghazza à fronteira de Yatenga.
O askiya organizou o império conforme a tradição herdada de Sunn Al.
Para o cargo de kurmina fari, nomeou o iro ‘Umar Komdiāgho, que construiu uma
capital inteiramente nova, Tendirma. Criou, ainda, outras províncias, substituiu os
funcionários de SunnAl por homens que lhe eram fiéis, além de nomear dis para
todas as cidades mulmanas. Também reorganizou a corte e o conselho imperial,
estabelecendo hierarquias e o protocolo, distribuindo as tarefas palacianas entre seus
vários servidores e instituindo normas para os ulemás e osdis da corte.
O Askiya Muhammad foi um soberano esclarecido que se interessou por
todas as atividades do império. Além de ter encorajado o comércio, que muito
enriqueceu o país, esforçou -se por estabelecer e controlar a utilização de instru-
mentos de medida, por garantir a pronta aplicação da justiça pelos cádis e por
assegurar a ordem nos negócios, criando, para isso, um corpo de inspetores de
mercado. Teria construído um canal na região de Kabara -Tombuctu
14
. Incenti-
vou a agricultura criando numerosas colônias de cultivo, povoadas de escravos
trazidos das guerras e, principalmente, diminuindo os impostos pagos sobre os
produtos agrícolas. Favoreceu, ainda, o desenvolvimento dos estudos, distri-
buindo presentes e pensões aos ulemás, e, sobretudo, cercando -os de respeito.
No entanto, o soberano sofreu o infortúnio de ter muitos filhos e permanecer
por muito tempo no poder. Velho e cego, foi derrubado por uma conspiração
dos filhos, liderados pelo primogênito, o fari mondzo (ministro das terras) Mūsā,
que foi proclamado askiya em 1528.
Os sucessores do Askiya Muhammad
Os filhos do Askiya Muhammad sucederam -se no poder a 1583: Mūsā (1528-
-1531), Muhammad II Benkan Kiriai (1531 -1537), Ismā‘l (1537 -1539), Isk I
(1539 -1549), Dāwūd (1549 -1583). Em seguida, a sucessão passou para os filhos
de d: al -Hadj Muhammad III (1583 -1586), Muhammad IV (1586 -1588),
Isk II (1588 -1591) e Muhammad Gao (1592). Não tendo, de fato, mais o que
conquistar, faziam incursões aos países litrofes. No plano interno, a curva do Níger
assistiu, mais de uma vez, a sangrentas crises de sucessão. No exterior, surge novo
problema, o das minas de sal de Teghazza, o qual envenenaria as relações com os
sultões do Marrocos. Examinaremos estes problemas nos três principais reinados.
14 Segundo tradições orais recolhidas em Tombuctu, onde ainda se vê o traçado de um canal em direção a
Kabara.
217
Os Songhai do século  ao 
Ishāk I (1539 -1 549)
15
é descrito nos Ta’rīkh como príncipe autoritário, que
impunha obediência. Seu irmão Dāwūd liderou uma incursão contra a capital
do Mali para pilhá -la. Foi no reinado de Ishāk I que veio à tona a questão de
Teghazza: o sultão do Marrocos, o saMuhammad al -Shaykh reivindicou
o direito de propriedade sobre as minas de sal, mas fracassou na tentativa de
ocupá -las; Ishāk I reagiu, organizando os cavaleiros tuaregues para invadir o
Dra (Dar‘a) marroquino
16
.
Dāwūd (1549 -1583), filho do Askiya Muhammad I, teve um reinado longo
e próspero, que correspondeu ao florescimento do Império Songhai. Os Ta’rīkh
descrevem o askiya Dāwūd como príncipe inteligente, astuto, aberto a tudo,
amigo dos letrados. Sua grande experiência nos negócios e no trato com as pes-
soas decorria do fato de ter exercido vários cargos políticos e de se ter envolvido
nas questões surgidas nos reinados dos irmãos.
O império alcançou o apogeu durante o reinado do askiya d, prosperando
econômica e intelectualmente. O vale do rio foi intensamente cultivado e as gran-
des cidades de comércio mostraram -se mais ativas do que nunca. Era a época em
que as caravanas transaarianas suplantavam as caravelas atlânticas, conforme narra
V. M. Godinho
17
. A prosperidade geral trouxe grandes lucros ao askiya, que chegou
a amealhar um tesouro com o numerário proveniente das taxas sobre o comércio
e as terras imperiais. Seus armazéns recebiam milhares de toneladas de cereais
recolhidos através do império. Como o pai, Dāwūd foi grande mecenas. Honrou
os homens de letras, cumulando -os de consideração e presentes. Contribuiu para
a restauração de mesquitas e para o sustento dos pobres.
No plano militar, o askiya promoveu inúmeras campanhas de pacificação na
região de Macina e a leste, combatendo principalmente os Mossi. O litígio em
torno de Teghazza continuava a ser o problema mais grave. O sultão do Marro-
cos, Mūlay Ahmad al -Mansūr, insistia em reivindicar as minas. Ao que parece,
chegou -se a um acordo pelo qual eram preservados os direitos e propriedades
songhai. No entanto, uma expedição marroquina ocupou as minas durante o
reinado do askiya al -Hadj Muhammad III (1583 -1586). Os tuaregues passaram
a explorar Tenawdara (Taud‘eni), situada 150 quilômetros ao sul de Teghazza,
que logo caiu em ruínas.
Com a morte de Muhammad III em 1586, seu iro Muhammad IV Bano foi
proclamado askiya, fato que terminou por originar uma guerra civil. Muitos irmãos
15 AL -SA‘DĪ’, 1964, p. 157 -64.
16 Ibid., p. 163 -64; ver também MAUNY, 1949.
17 GODINHO, 1969.
218
África do século  ao século 
do askiya revoltaram -se, entre eles o balama da região de Tombuctu, al -Saddk.
Liderando as forças de Kurmina e das províncias ocidentais, al -Saddk marchou
sobre Gao em 1588. Proclamado askiya em Tombuctu, foi, pom, derrotado pelo
novo askiya de Gao, Ishāk II, que reprimiu cruelmente a rebelião e dizimou os exér-
citos ocidentais. O império se viu, assim, moralmente cindido. A região ocidental,
decepcionada, perdeu o interesse por Gao, e muitos príncipes songhai aliaram -se
sem dificuldade aos invasores marroquinos em 1591, três anos após a guerra civil.
O Império Songhai iria, assim, desmoronar, vítima das próprias contradições.
A civilização songhai
Organização política e administrativa
O Império Songhai foi profundamente original quanto à organização política
e administrativa. A forte estruturação do poder, a centralização sistemática e o
absolutismo real são características que atribuíram uma coloração moderna à
monarquia de Gao, distinguindo -a do sistema tradicional de federação de reinos,
vigente nos impérios de Gana e do Mali.
A monarquia
18
A monarquia de Gao sob os askiya, herdeira de longa tradição de governo,
fundava -se nos valores islâmicos e consuetudinários. Segundo os antigos cos-
tumes sudaneses e songhai, o toi (rei) era o pai do povo, dotado de poderes
semissagrados, fonte de fecundidade e prosperidade. Quem dele se aproximasse,
tinha de se prostrar em sinal de veneração. Já a tradição islâmica estipulava que
o monarca de Gao, muçulmano desde o século XI, devia governar segundo os
preceitos do Corão. Estas duas tradições combinavam -se; dependendo da per-
sonalidade do soberano, predominava uma ou outra. O Askiya Muhammad I
e o askiya Dāwūd apoiaram -se no Islã; Sunn ‘Al e a maioria dos outros askiya
foram mais songhai do que muçulmanos.
O imperador residia em Gao, cercado de numerosa corte, a sunna, que com-
preendia membros da família, grandes dignitários e griots* Guesere e Mabo.
Sentava -se numa espécie de estrado, rodeado de setecentos eunucos. O griot
Wandu atuava como arauto. Inúmeros serviçais, geralmente escravos, realizavam
* Sobre a função do griot, ver o capítulo 8, no volume I, especialmente p. 202-8.
219
Os Songhai do século  ao 
F . Estela 11 de Gao -Sané (SO 50 -59 bis), retangular, de quartzo (alt. 38 cm, larg. 28 cm). “Este
é o túmulo de Muhammad b. al -Gum’a; Alá lhe tenha piedade. Faleceu na sexta -feira 6 Sha‘ban 496 (15 de
maio de 1103).” (Foto IFAN.) (Fonte: Viré, 1959.)
220
África do século  ao século 
F. . Estela 14 de Gao -Sané (SO 50 -54), de xisto, coloração verde -amarela (alt. 49 cm, larg. 29 cm).
Todo ser vivo é perecível e deve retornar a Alá: Este é o túmulo de Hawa [?], lha de Muhammad; Alá
lhe tenha piedade. Faleceu na noite de... quinta -feira 12 Ramadān 534 (1 de maio de 1140).” (Foto IFAN.)
(Fonte: Viré, 1959.)
221
Os Songhai do século  ao 
as diversas tarefas domésticas, dirigidos pelo hu hokoroy koy, mordomo -mor do
palácio. O encarregado do guarda -roupa cuidava do vestuário
18
.
Com a morte do soberano, sucedia -lhe o irmão mais velho. De fato, decidia -se
a sucessão pela força, daí as crises periódicas. O novo askiya era proclamado pela
sunna e entronizado na antiga capital de Kūkya.
O governo era constitdo por ministros e conselheiros nomeados, que
podiam ser demitidos pelo askiya, e obedeciam a uma hierarquia segundo a sua
função. Pode -se distinguir o governo central do askiya e o das províncias.
O governo central
Os funcionários do governo central formavam o conselho imperial, que
debatia todos os problemas do império. Um secretário -chanceler redigia as atas
do conselho, tratava da correspondência do soberano, da redação e da execução
de suas leis. Outros funcionários, cujas tarefas são mais ou menos conhecidas,
cuidavam dos vários departamentos administrativos. o havia propriamente
especialização de funções. Os Ta’rīkhi fornecem a lista de dignitários do poder
central, sendo os principais
19
:
O hi koy era o senhor da água”, o chefe da flotilha. Sua fuão era das mais
antigas e importantes, em virtude do papel do ger na vida dos antigos Songhai. O
hi koy tornou -se um dos mais altos dignirios da corte, uma espécie de ministro do
Interior, que dirigia os governadores das províncias. Desta maneira entende -se, sob
o reinado do askiya Isk I, que o hi koy repreenda o príncipe Dāwūd, governador
de Kurmina, ordenando -lhe que volte imediatamente à sua província.
O fari mondzo ou mondio era o ministro da Agricultura. É possível que diri-
gisse as numerosas propriedades imperiais espalhadas pelo país, grandes fontes
de renda. Sua função, muito importante, era geralmente confiada a príncipes
de sangue, senão ao príncipe herdeiro. Com certeza, competia também ao fari
mondzo resolver conflitos de terra. O hari farma, inspetor das águas e lagos, o
saw farma, inspetor das florestas e o waney farma, encarregado das propriedades,
desempenhavam funções semelhantes.
O kalissa farma (ministro das Finanças) tem uma função mal definida nos
Ta’rīkhi; devia estar ligada à tesouraria imperial. Sabe -se que os askiya eram
muito ricos, e que suas rendas em espécie ou dinheiro eram centralizadas em
Gao. O kalissa farma cuidava da guarda do tesouro e controlava as despesas do
18 Quase 210 vestimentas em seda, e algodão. Ver KA‘TI, 1964, p. 260-1.
19 Uma lista completa dos funcionários do governo imperial é dada por KODJO, 1971, p. 270 -2 e ROUCH,
1953, p. 192 -3.
222
África do século  ao século 
soberano. O numerário em moedas constituído pelo askiya Dāwūd estava, sem
dúvida, sob a responsabilidade de um desses funcionários. O kalissa farma era
auxiliado pelo waney farma, senhor dos bens, pelo bana farma, encarregado dos
salários, e pelo doy farma, chefe de compras.
O balama desempenhava funções militares, embora os Ta’rīkhi não as des-
crevam com precisão. Em tempos antigos, o balama era chefe do exército. O
cargo deve ter perdido importância no século XVI, quando não menção
do balama à frente dos exércitos imperiais. O balama tornou -se chefe de um
corpo de exército estacionado na região de Kabara -Tombuctu, com certeza sob
a jurisdição do kurmina fari. Ao que parece, a função era reservada a príncipes
de sangue.
Embora não haja referências nos Ta’rīkhi, é possível que para a administração
do império, Gao possuísse outros departamentos. Pode -se mencionar o korei
farma, ministro encarregado dos estrangeiros brancos, e os comissários imperiais,
que o imperador enviava periodicamente às províncias para resolver problemas
urgentes, arrecadar impostos extraordinários dos comerciantes das grandes cida-
des ou fiscalizar os funcionários e administradores das províncias.
O governo das províncias
Os Songhai adotaram dois sistemas de governo, de acordo com o território
em questão.
Um primeiro grupo compreendia as províncias conquistadas, governadas por
chefes nomeados e demissíveis a qualquer momento pelo askiya. Estes gover-
nadores, hierarquizados, exerciam o poder soberano exceto a justiça, confiada
aos cádis. Eram intitulados fari, farma ou farba, nomes derivados da instituição
manden farin. O Império do Mali havia instituído farin (governadores) na curva
do Níger, e SunnAl e os askiya deram continuidade à função e ao título. O koy
(chefe) era uma instituição songhai de menor importância, assim como o mondzo,
título que se aplicava tanto ao funcionário de uma localidade (Tombuctu mondzo)
quanto ao de um departamento ministerial (fari mondzo). Nada sabemos sobre os
títulos de cha, marenfa e outros.
O império era dividido em duas grandes províncias: Kurmina a oeste e Dendi
a sudeste. A função do kurmina fari ou kanfari era exercida, com raras exceções,
por príncipes de sangue, muito frequentemente pelo próprio príncipe herdeiro
20
.
O kurmina fari habitava Tendirma, aparecendo como o segundo personagem
20 Entre outros, os askiya Muhammad II Benkan e Dāwūd.
223
Os Songhai do século  ao 
em importância do Estado. Não se conhecem com certeza os limites de sua
jurisdição; ao que parece, dirigia todas as províncias a oeste de Tombuctu. Isso
carece, porém, de confirmação, já que os governadores da região eram nomeados
por Gao e subordinados ao askiya. Por volta do final do século XVI, o kurmina
fari tornou -se o verdadeiro chefe de todas as províncias do oeste, impondo -se
pelo seu poderio militar. De fato, dispunha de poderoso exército que, com cerca
de 4 mil homens, era capaz de contrabalançar as forças de Gao, conforme ficou
patente em várias ocasiões.
O dendi fari, governador da província de Dendi, supervisionava toda a rego
dendi, ou seja, a parte sudeste do império. Era o terceiro personagem em importân-
cia do Estado; o titular era geralmente grande dignitário da corte. Seu exército devia
ser pouco mais modesto que o de Kurmina, tendo por função defender as fronteiras
meridionais do império. As províncias secundárias eram governadas por chefes
nomeados pelo askiya: o bara koy, o dirma koy, o hombori koy, o arabinda farma, o
benga farma, o kala cha e o baghena farma, que perdera seu título de askiya.
As cidades de corcio, como Tombuctu, Djen, Teghazza e Walata, gozavam
de certa autonomia sob o governo de seus koy ou mondzo. As atividades comerciais e
artesanais e a grande população requeriam a presea de muitos funcionários admi-
nistrativos. Assim, em Tombuctu, am do di encarregado da justiça e do Tombuctu
koy, chefe da cidade, havia extenso quadro de funcionários: o asara mondzo, espécie de
comissário responsável pelo policiamento dos mercados e pela execão das sentenças
do di, os inspetores de pesos e medidas, os coletores de impostos dos mercados,
os inspetores alfandegários de Kabara, os mestres de diversas profissões, os chefes
das diversas subdivies de etnias agrupadas por bairros e os comisrios das
cabanas dos surbios. Este pessoal formava o núcleo de uma administração eficaz
nas grandes cidades.
Administração indireta
A administração indireta concernia aos países vassalos ou tributários. O chefe
do território era nomeado segundo os costumes locais e reconhecido pelo askiya.
Disputas entre os pretendentes ou rebeliões contra a autoridade imperial, no
entanto, aconteciam. Neste caso, o askiya intervinha e impunha seu candidato.
Dessa forma, o fondoko da região de Macina, Bubu Mariama, foi destronado
pelo askiya al -Hadj Muhammad III, que o exilou em Gao
21
. Os Estados haussa
21 AL -SA‘DĪ’, 1964, p. 189.
224
África do século  ao século 
– Kano e Katsina –, o reino de Agadez, o Império do Mali
22
, a federação tuare-
gue Kel Antessar (os Andassen de al -Sa‘d’), a de “Magcharen
23
(tuaregues de
origem Sanhadja da região de Tombuctu -Walata) agrupavam -se nessa categoria,
sendo mais ou menos tributários, de acordo com a orientação política de Gao.
Seus soberanos deviam pagar tributos periódicos, enviar contingentes de guer-
reiros quando o imperador pedisse e manter boas relações com Gao através de
visitas, presentes e casamentos.
Com estes vários sistemas de administração – o central, o provincial e o indi-
reto, o Império de Gao conseguiu organizar as populações do Sudão nigeriano,
manter pessoas e bens em segurança e alcançar grande desenvolvimento econô-
mico. A monarquia dos askiya foi um poder estruturado e impessoal, enraizado
em valores songhai e islâmicos, que triunfou em diversas crises dinásticas. Se não
houvesse sido debilitada pela conquista marroquina, poderia ter evoluído para
uma forma de Estado moderno africano, que preservasse as liberdades essenciais
do homem apesar da forte centralização política.
As grandes instituições do Estado
O Estado dispunha de importantes recursos para se consolidar e permanecer
independente, e de uma força armada permanente, capaz de proteger o império,
impor a vontade do soberano a seus súditos e dominar qualquer rebelião. Este
aparelho de Estado, poderoso e estável,o era, no entanto, despótico. A justiça,
confiada a cádis quase autônomos ou a chefes consuetudinários, preservava a
liberdade e os direitos do povo. O estudo das engrenagens do Estado põe em
evidência a modernidade do Império Songhai, o qual herdou longa tradição
guerreira. Os Songhai não eram camponeses ou comerciantes, mas guerreiros:
“Os grandes homens do Songhai”, escreveu Mahmūd Ka‘ti,eram versados na arte
da guerra. Eram bravos e audaciosos e conheciam os ardis da guerra”
24
.
22 O domínio dos Songhai sobre o Império do Mali nunca foi contínuo. Segundo LEÃO, o AFRICANO,
1956, o mansa do Mali era tributário do Askiya Muhammad I. Esta dominação, se foi efetiva, não teve
sequência, pois foram necessárias novas expedições contra o Mali no reinado do askiya Ishāk I. Na
realidade, o mansa escapou à suserania de Gao. O Sibiridugu, que fazia fronteira entre os dois impérios,
devia estar situado mais ao sul de Segu, no limite do Manden, na atual região de Kulikoro. É a opinião
de Djibril Tamsir Niane, fundamentada nas tradições manden que coletou na região de Niani.
23 Os Magcharen não eram grupo étnico ou clânico; constituíam a camada nobre da sociedade. Ver
LHOTE, 1955 -1956, p. 334 -70.
24 KA‘TI, 1964, p. 146
225
Os Songhai do século  ao 
A nobreza tinha vocação para as funções políticas e militares. Constituía a
parte essencial da cavalaria, ponta -de -lança do exército songhai. Armados de
longas lanças, sabres e flechas, os cavaleiros songhai usavam armaduras de ferro
sob suas túnicas de guerra. Como os cavalos custavam muito (valiam cerca de
dez escravos no século XVI), à cavalaria pertencia uma elite privilegiada. A
unidade mais numerosa era a infantaria, que reunia homens de todas as camadas
sociais: escravos, baixa nobreza, homens livres etc. Como armas, utilizavam lan-
ças, flechas e escudo de couro ou cobre. Os pescadores do Níger, principalmente
os Sorko, constituíam uma flotilha permanente no rio, de mais de 2 mil pirogas.
O exército levava estandartes e longas trombetas, os kakaki, seguia uma ordem
de marcha e, no combate, procedia à formação em leque.
Ignoram -se os verdadeiros efetivos do exército. As reformas dos askiya
Muhammad I e Muhammad II Benkan aumentaram o exército permanente
de Gao para 4 mil homens, sem contar os 300 guerreiros da guarda pessoal do
soberano, a sunna
25
. Em sua maioria, os soldados eram escravos do askiya, que
lhes herdava os bens e podia desposar suas filhas. O exército completo, reunido
em 1591 na batalha de Tondibi, contava 30 mil soldados de infantaria e 10 mil
cavaleiros. Era a maior força organizada do Sudão ocidental; permitiu que o
askiya impusesse sua vontade e trouxe -lhe substanciais butins de guerra.
Recursos nanceiros
O soberano de Gao era rico e poderoso. A monarquia dispunha de recursos
seguros e permanentes, arrecadados em todo o império e geridos por grande
número de funcionários administrativos, sob a direção do kalissa farma. Havia
diversas fontes de renda imperial: os rendimentos das propriedades pessoais do
soberano, o zakāt, dízimo coletado para o sustento dos pobres, os impostos sobre
as colheitas, o gado e a pesca, pagos em espécie, as taxas e os direitos alfande-
gários sobre a atividade comercial, as contribuições extraordinárias arrecadadas
dos comerciantes das grandes cidades e, principalmente, o butim de guerra quase
anual. O soberano dispunha, portanto, de rendas inesgotáveis, que gastava como
queria. Grande parte era utilizada para a manutenção da corte e do exército
permanente. O askiya também contribuía para a construção e restauração de
mesquitas, para o sustento dos pobres do império, para as esmolas e os presentes
dados aos grandes marabus.
25 Não confundir com a sunna do conselho imperial. Neste caso, trata -se de soldados que, com certeza,
haviam prestado juramento e eram de uma delidade incondicional. A sunna o devia fugir ao combate.
Por esta razão, foi massacrada em Tondibi em 1591.
226
África do século  ao século 
Justiça
A justiça era prerrogativa real. O askiya, como emir dos muçulmanos, pai do
povo, delegava -a a representantes completamente independentes do poder cen-
tral ou de seus funcionários. Pode -se distinguir duas jurisdições, a muçulmana
e a consuetudinária.
A primeira regia as comunidades muçulmanas. Inspirava -se no direito
maliquita, ensinado nas universidades sudanesas. O cádi era o juiz soberano
e supremo, com cargo vitalício outorgado pelo imperador; a reduzida procura
para esse cargo fazia com que, frequentemente, o askiya nomeasse o cádi à força.
Em Tombuctu, durante todo o século XVI, o cargo foi monopólio da família
do cádi Mahmūd ben ‘Umar al -Akit (1498 -1548), a que também pertenciam
os imãs da mesquita de Sankoré
26
. Em numerosas cidades, o cargo tornou -se
hereditário. O cádi era assistido por auxiliares de justiça: oficiais da corte, secre-
tários, notários etc. A execução das penas cabia ao assara mondzo, funcionário
do poder imperial. O cádi julgava todos os assuntos, criminais ou comerciais,
e não era possível recorrer da sentença. Além disso, atuava como uma espécie
de tabelião: registrava alforrias de escravos, partilhas de herança, validava docu-
mentos privados etc. O cádi era o verdadeiro chefe da cidade de Tombuctu; sua
autoridade exercia -se além do quadro da justiça, protegendo também a liberdade
dos cidadãos.
A justiça consuetudinária concernia à maior parte do império, e, mesmo nas
grandes cidades muçulmanas, as pessoas resolviam seus conflitos em família
ou com o chefe do grupo étnico, de acordo com seus próprios costumes. Em
Gao, o conselho imperial mantinha um tribunal para julgar os casos de Estado,
geralmente de conspiradores príncipes e seus cúmplices. Para combater a
licenciosidade e, particularmente, o adultério, um flagelo na refinada sociedade
da curva do Níger, o askiya Ishāk II instituiu um tribunal de adultério que punia
severamente os casos de flagrante. Digno de nota é o fato de a população poder
fazer uso da justiça em seu próprio benefício através de tribunais competentes,
garantia maior da ordem e da liberdade. O Estado songhai favoreceu, deste modo,
o desabrochar de brilhante civilização intelectual e de grande desenvolvimento
econômico e social.
26 A respeito desta família, ver CUOQ, 1978, p. 85 -102.
227
Os Songhai do século  ao 
F . Mapa do Império Songhai no m do século XVI. (Segundo D. T. Niane.)
228
África do século  ao século 
Desenvolvimento econômico
Por sua localização geográfica no centro do Sahel sudanês, o Império Songhai
era uma região privilegiada para os intercâmbios transaarianos. O Níger, que o
atravessava de oeste para leste, facilitava as comunicações, e seu vale fértil era
intensamente cultivado. Assim, distinguem -se dois setores econômicos, um rural
e tradicional, e o outro urbano e comercial.
Setor rural
Os Ta’rīkh dão -nos pouca informação sobre as atividades rurais. As técnicas
agrícolas não evoluíram muito desde aquele tempo. A enxada (o kaunu dos
Songhai), os adubos animais, a prática da horticultura no vale, a cultura itine-
rante na savana etc., são os mesmos séculos, mas o vale do Níger torna -se
mais densamente povoado por indivíduos que praticam a agricultura, a pesca e
a criação. As grandes propriedades dos príncipes ou dos ulemás eram explora-
das por escravos estabelecidos em colônias agrícolas. O próprio askiya, grande
proprietário de terras, tinha seus campos, espalhados pelo vale, cultivados por
comunidades de escravos sob a direção de capatazes, os fanfa. Uma espécie de
imposto era arrecadado sobre as colheitas e enviado a Gao
27
. O mesmo ocorria
com os escravos pertencentes a particulares.
A pesca era praticada pelos Sorko, pelos Do e pelos Bozo. Os peixes eram
secados ou defumados e vendidos por todo o império. A criação de bovinos e
caprinos na região fronteiriça do Sahel e nas regiões de Macina e do Baxunu,
bem como a criação de bovinos praticada pelas populações sedentárias do vale
do Macina, constituíam importante fonte de leite e carne, principalmente para
as populações urbanas.
De fato, grande parte dos produtos agrícolas (cereais, peixe, carne) alimentava
o comércio e permitia à população rural obter produtos de primeira necessidade,
como o sal.
Setor comercial
As cidades do Sahel sudanês Walata, Tombuctu, Djenné, Gao , centros
do grande comércio transaariano, tinham contato com os grandes mercados do
Saara e com as regiões mais longínquas, como a Europa mediterrânica. Do vale
do Níger, partiam caravanas transaarianas, estabelecendo rotas em direção ao
27 KA‘TI, 1964, p. 178 -80.
229
Os Songhai do século  ao 
norte
28
. As principais eram as de Tombuctu–Teghazza Tuat rumo ao Tāflālet
e ao oeste argelino, Tombuctu Walata Tichit Wadane rumo ao Dra (Dra‘a) e
ao Tāflālet , Gao Tadmekka –Ghāt rumo à Líbia e ao Egito, Gao–Tadmekka–
Ghadames rumo à costa líbia e tuni siana, e Gao –Haussa–Kanem-Bornu rumo
ao vale do Nilo. Como se pode observar, o comércio transaariano dos séculos
XV e XVI orientava -se principalmente para o Marrocos, a Argélia e a Líbia.
No centro, as minas de sal de Teghazza e os oásis de Tuat e de Ghāt eram as
grandes etapas comerciais rumo ao Sudão. O comércio estava em mãos de
mercadores árabo -berberes (havia muitos mercadores de Tuat e de Ghadames
em Tombuctu), e dos sudaneses Wangara (Manden), Wakore (Soninke), Mossi,
Haussa e Songhai. Os pontos de encontro eram as cidades em que os habitan-
tes obtinham grandes benefícios com a corretagem. Alguns comerciantes, bem
organizados, tinham sucursais em muitas cidades e acompanhavam, com lucro, a
flutuação dos preços. Dispunham de frota comercial no Níger, de camelos e bois
para o transporte das mercadorias. O porto de Kabara estava repleto de artigos
comerciáveis quando Leão, o Africano, chegou, no início do século XVI
29
.
O comércio se fazia por trocas e mais frequenternente por intermédio de
moeda de transferência: cauris para os pequenos negócios, ouro, sal ou cobre,
conforme o mercado. O Sudão importava tecidos que vinham, em sua maior
parte, da Europa
30
(Veneza, Florença, Gênova, Maiorca, Inglaterra, França etc.),
sal de Teghazza e de Idjil, armas, cavalos, cobre, artigos de vidro, açúcar, arte-
sanato magrebino (sapatos, artigos de lã) etc. O sal era a mola -mestra deste
comércio. Era moldado em blocos retangulares de 25 a 30 kg, e distribuído por
todo o interior do país. Os artigos de exportação do Sudão eram ouro, escra-
vos, marfim, especiarias, nozes -de -cola, artigos de algodão etc. O ouro em
(tibar) ou em pepitas –, proveniente das minas de Bambuku, do Burem, da
região mossi e principalmente da região ashanti, o Bitu, constituía -se no pivô
do comércio transaariano e supria o mercado europeu
31
.
O comércio interno sudanês baseava -se nos produtos locais. Em todas as
aglomerações importantes, havia um mercado, lugar de encontro dos cam-
poneses, que trocavam produtos agcolas e compravam sal, tecidos e demais
28 MAUNY, 1961, v. 3C, n. 5.
29 LEÃO, o AFRICANO, 1956, v. 2, p. 467.
30 BRAUDEL, 1946, HEERS, 1958, e GAUTIER, 1935, demonstraram satisfatoriamente a importância
do comércio sudanês para a economia mediterrânica e europeia na Idade Média. Ver também o artigo
de DEVISSE, no capítulo 26 deste volume.
31 HEERS, 1958.
230
África do século  ao século 
mercadorias de mascates vindos do norte. Os cereais do delta central ou da
região de Dendi, por exemplo, eram encaminhados para Tombuctu, Gao e para
o Sahel, enquanto as nozes -de -cola e o ouro seguiam do sul para o norte, de
onde saíam as mercadorias transaarianas. Djenné teve papel considerável como
mercado de atração e distribuição dos produtos de todo o oeste africano.
Concluindo, o corcio favoreceu o enriquecimento das cidades do vale do Níger
bem como a instalação de um padrão de vida razoável no campo. Infelizmente, só
envolvia pequena parte dos produtos locais, agrícolas ou artesanais. As mercadorias
essenciais eram produtos de extração mineral ou coleta. Em suma, o corcio
transaariano apontava antes para um sistema de trocas de produtos que para
uma verdadeira economia de mercado baseada na prodão local. Não pôde,
assim, provocar mudança nas estruturas sociais nem favorecer a revolução
tecnológica, permitindo, no entanto, certo progresso material nas condições
de vida das populações nigerianas e a ascensão de uma refinada aristocracia.
A longa túnica (bubu), os chinelos (babush), o conforto das resincias, a dieta
variada eram os sinais de progresso na sociedade do Níger.
Sociedade
Em suas estruturas profundas, a sociedade songhai assemelhava -se aos
demais grupos sociais do Sudão ocidental. Sua originalidade baseava -se no
desenvolvimento de uma economia comercial, a qual deu origem a uma socie-
dade urbana com atividades diferenciadas, por sua vez um tanto marginal em
relação ao conjunto da sociedade, fundamentalmente rural.
Estrutura da sociedade do Níger
Na cidade ou no campo, a sociedade songhai definia -se pela importância
atribuída aos laços de parentesco. O elemento básico que coloria todas as insti-
tuições sociais na vida cotidiana era a família.
Os clãs agrupavam muitas famílias. As mais antigas eram de origem Soninke
(os Turé, os Sylla, os Tunkara, os Cisse, os Diakite, os Drame, os Diwara). Poucas
(os Maiga) eram Songhai, o que levanta o problema da própria estrutura do
povo Songhai, bastante miscigenado de Soninke, berberes e outras etnias, como
a Manden, a Gobri, a Haussa etc.
Quanto à composição étnica, ela só é mencionada nos Ta’rīkh para designar
populações servis
32
, ou rurais, presas à cultura dos campos, ou a castas de ofícios.
32 KA‘TI, 1964, p. 20 -1.
231
Os Songhai do século  ao 
A característica fundamental da sociedade songhai era a hierarquização, que
dividia a população em nobreza, homens livres, membros de castas de ofícios
e escravos. No Sudão ocidental, a nobreza se distinguia claramente das demais
classes, por dedicar -se quase exclusivamente à administração e às armas. Os
escravos, bastante numerosos, cumpriam tarefas domésticas ou trabalhavam nos
campos, tendo papel político e militar subalterno.
Sociedade rural
Fora do vale do Níger, onde se encontravam as cidades comerciais, os Son-
ghai e os demais povos do império viviam de atividades rurais. Agrupados em
aldeias de cabanas redondas, os camponeses dos séculos XV e XVI eram pouco
diferentes dos atuais; as estruturas fundamentais não foram modificadas por
revolução técnica ou de qualquer outra natureza. Sem dúvida, as condições de
vida transformaram -se. As poucas informações dos Ta’rīkh mostram uma densa
população rural no vale do Níger, principalmente na região de Djenné, que vivia
sobretudo da agricultura. Lá também se encontravam artesãos divididos em
castas (ferreiros, carpinteiros, ceramistas etc.), mas seu trabalho era temporário
e a maior parte deles tirava o sustento das atividades agrícolas. O mesmo devia
ocorrer com os pescadores do Níger (os Sorko, os Bozo, os Somono ), que cul-
tivavam o solo durante a estação das chuvas. As condições de vida não parecem
ter sido tão miseráveis, como afirma Leão, o Africano
33
. Havia segurança e a
fome era rara. Os Ta’rīkh nos deixam entrever alguns aspectos da vida no campo.
Não há, praticamente, nenhuma alusão a revoltas camponesas; a renda exigida
pelos senhores nunca era esmagadora para os escravos. O inventário da fortuna
de um capataz imperial na região de Dendi dá, ao contrário, a impressão de
certo bem -estar no campo. Os camponeses podiam vender parte da produção
nos mercados locais, onde obtinham produtos como sal e tecidos, participando,
assim, dos intercâmbios comerciais.
O Islã não enraizou no campo: os camponeses mantiveram os valores locais,
e as regiões mais rurais, como a de Dendi e as do sul, permaneceram ligadas
às crenças tradicionais, apesar da islamização superficial. Deste modo, o campo,
aberto à economia comercial, continuou fechado aos valores espirituais originários
das cidades, segundo característica fundamental da sociedade do Níger.
33 LEÃO, o AFRICANO, 1956, v. 2, p. 472, mostra os camponeses miseráveis, ignorantes e esmagados
pelos impostos imperiais.
232
África do século  ao século 
As cidades e a sociedade urbana
A grande expansão comercial permitiu o desenvolvimento da civilização urbana
em toda a região do Sahel sudas. Nos séculos XV e XVI, destacam -se as cidades
de Walata, Djen, Tenenku, Tendirma, Tombuctu, Bamba, Gao, Agadez e as cida-
des haussa de Kano e Katsina. Eram, geralmente, cidades abertas, sem muralhas.
O mercado ficava no interior da cidade, e uma populão vel residia em tendas
e cabanas nos subúrbios. No centro, encontravam -se casas de alvenaria, no estilo
sudanês, de um ou dois andares; um vesbulo dava acesso a um tio interno, para
o qual abriam -se os quartos.
É necessário dizer mais sobre as três maiores cidades: Tombuctu, Djenné
e Gao. Conquistada por Sunn Al por volta de 1468, Tombuctu alcançou o
apogeu no século XVI: teria cerca de 80 mil habitantes
34
no reinado do askiya
Dāwūd. Era então a capital econômica do império, cidade sagrada do Sudão,
célebre pelos homens santos e pela universidade.
Djenné
35
, uma ilha no delta central, ligada econômica e espiritualmente a
Tombuctu, com população de 30 a 40 mil habitantes, constituía a aglomeração
negra mais importante do interior do Sudão. Dominada por sua bela mesquita,
pérola da arte sudanesa, era o grande mercado do sul, tendo contato com a região
da savana e da floresta.
Gao, capital política, mais antiga do que as outras, era uma cidade imensa,
com cerca de 100 mil habitantes
36
. Sua posição orientava -a para o mundo haussa,
para a região do Dendi, a Líbia e o Egito.
Em todas estas cidades, encontrava -se, ao lado de um núcleo Songhai predo-
minante, cuja língua servia de vínculo comum, uma população cosmopolita de
árabo -berberes, Mossi, Haussa, Manden (Wangara), Soninke, Fulbe etc.
O mundo urbano era constituído por uma sociedade hierarquizada segundo o
modelo sudas, mas entre os Songhai o cririo de diferenciação era ecomico. A
sociedade urbana compreendia três elementos sicos, os comerciantes, os artesãos e
os religiosos, que viviam todos, direta ou indiretamente, do comércio.
34 É uma cifra bastante aproximativa; parece -nos, entretanto, mais próxima da realidade do que os 25 mil
habitantes propostos por MAUNY, 1961, p. 497. No século XVI, o sítio de Tombuctu cobria extensa
área. As tradições orais armam unanimemente que o túmulo do cádi Mahmūd, atualmente distante da
cidade, era então sua casa. A areia que diariamente se deposita sobre a cidade nos faz questionar o valor
das fotos aéreas do antigo sítio. Por outro lado, deve -se observar que Tombuctu era uma cidade vertical,
onde havia muitas casas de dois andares. O espaço urbano era muito concentrado
35 Ver o artigo de KEECH & McINTOSH, 1980, que propõe novas soluções para a questão de Djenné.
36 Esta cifra provém do primeiro recenseamento da cidade, feito por volta do m do século XVI, que contou
7 626 casas, excluindo as palhoças do subúrbio.
233
Os Songhai do século  ao 
Os comerciantes eram, na maioria, estrangeiros; os arteos e pequenos
comerciantes, camada dinâmica e ativa, agrupavam -se em corporações, com suas
regras e costumes. Os intelectuais – marabus, estudantes –, pessoas de maneiras
requintadas, gozavam de grande consideração social.
Pelo menos ao nível da aristocracia, a sociedade nigeriana denotava organi-
zação e refinamento. Gostava de roupas amplas, das clássicas babuchas amarelas,
do bem -estar em casa, de pratos bem temperados e principalmente de boa com-
panhia. Isto levou a certa negligência moral, evidenciada pelo grande número
de cortesãs e pela devassidão da aristocracia principesca.
A sociedade urbana distinguia -se, portanto, da sociedade tradicional do
campo, para onde nunca extravasou. Sua camada dirigente era formada, em
geral, por estrangeiros, imbuída de valores islâmicos e comerciais, e parecia
justaposta à sociedade global. Do mesmo modo, a burguesia comerciante não
conseguiu se implantar solidamente no país,que sua economia de trocas não
permitiu que exercesse sobre a sociedade songhai influência mais profunda e
durável.
Desenvolvimento religioso e intelectual
Implantado no Sudão ocidental desde o século XI, o Islã progrediu lenta e
desigualmente, acabando por se impor na curva do ger e na região do Sahel.
Em outras partes, aplicou apenas um frágil verniz sobre as antigas crenças, sem
se enraizar profundamente. Nas zonas urbanas, o Islã criou uma elite letrada que,
através de grande esforço criador, contribuiu para ilustrá -lo e reinterpretá -lo. Este
desenvolvimento foi possível graças à prosperidade geral do Sudão, que atraiu, a
partir do século XV, grande número de intelectuais estrangeiros, principalmente
graças à política benevolente dos soberanos de Gao. Seguindo o exemplo do
fundador da dinastia dos askiya, estes cumularam os doutores muçulmanos de
honras e presentes, assegurando -lhes grande prestígio social no país. O Askiya
Muhammad I adotou uma política muçulmana sistemática, visando implantar e
expandir o Islã no Sudão.
Vida religiosa
A religião dominante nos séculos XV e XVI, no entanto, não foi o Islã. A
grande maioria dos Songhai e dos povos do império, que viviam no campo,
permaneceu ligada às crenças ancestrais da região. Em uma carta a al -Maghl,
o Askiya Muhammad I deplora esta situação, que em vão procurou combater.
234
África do século  ao século 
Os Songhai cultuavam os hole (duplos) e os espíritos que habitavam a natu-
reza, dos quais se podia obter favores
37
. Seu panteão era numeroso, incluindo,
entre outros, Harake Dikko, divindade do rio, e Dongo, do trovão. Seus curan-
deiros mágicos, os sonyanke, considerados descendentes da dinastia deposta dos
Sunn, eram venerados pelo povo e protegiam a sociedade contra os espíritos
maléficos e os feiticeiros tierkei. Todo chefe de clã promovia um culto aos mor-
tos. Deste modo, a religião tradicional, tão viva no campo, servia à sociedade,
protegendo -a, proporcionando -lhe equilíbrio psíquico e continuidade.
Justaposta a estas crenças, a islâmica pouco impacto teve no campo. Urbana
e aristocrática, acabou sofrendo adaptações para melhor se expandir; se tratava,
portanto, de um islamismo negro -africano, tolerante. Ganhou terreno pela ação
do Askiya Muhammad I e dos doutores muçulmanos, bem como pela expansão
pacífica do comércio, ao qual era intimamente ligado desde os começos de sua
difusão na África negra. Aconselhado pelos grandes doutores al -Maghl de
Tuat
38
e al -Suyūt
39
do Cairo, e por grande número de marabus do império,
o Askiya Muhammad I combateu os fetiches, perseguiu os companheiros de
Sunn, os “maus muçulmanos”, impôs o cádi e o direito maliquita a numerosas
comunidades e empreendeu a djihād (guerra santa) contra os infiéis Mossi. Os
vendedores ambulantes e outros negociantes fizeram o resto, levando o Islã ao
coração das zonas florestais do sul.
Assim, no final do século XVI, a religião islâmica dominava toda a curva do
Níger, da região de Macina à do Dendi; seu avanço fora considerável também
em outras partes. A vida religiosa pode ser mais bem entendida observando -se
as cidades. Djenné e Dia no delta central, Gao, Tombuctu etc. tinham mesquita,
imã, cádi, cemitérios e inúmeras escolas dirigidas por homens piedosos e san-
tos, ainda hoje venerados na curva do Níger. Tombuctu servia de modelo: as
três grandes mesquitas Djinguereber, Sd Yahyā e Sankoré (as duas últimas,
construídas na primeira metade do século XV) e a reputação de seus santos
e doutores (o xarife Sd Yahyā, morto em 1464; o cádi Mahmūd ben ‘Umar
al -Akit, morto em 1548 e muitos membros de sua família, como o cádi al -Akb,
que restaurou as grandes mesquitas etc.), tornaram -na conhecida como a cidade
santa do Sudão. Sua universidade contribuiu para a difusão da cultura islâmica
no Sudão ocidental.
37 ROUCH, 1954 e 1960, e BOULNOIS & HAMA, 1954, corrigem a concepção islamocêntrica da hisria songhai.
38 M’BAYE, 1972.
39 HUNWICK, 1970.
235
Os Songhai do século  ao 
Vida intelectual
O Sudão nigeriano conheceu grande florescimento intelectual nos séculos XV
e XVI; o humanismo sudanês impôs -se como componente fundamental do Islã
universal. Formada nos séculos XIV e XV nas universidades de al -Karawiyyn
em Fés e al -Azhar no Cairo, a elite sudanesa emancipou -se e, por seu próprio
esforço, alcançou o apogeu da ciência islâmica. Os centros de movimentação
intelectual continuavam a ser as grandes cidades; os lucros advindos do comér-
cio propiciaram o surgimento de uma classe de letrados dedicada à religião e
aos estudos. A prosperidade geral atraiu para as cidades do Níger estudiosos
de todas as regiões do Sudão e do Sahel
40
. Sem vida, a universidade mais
célebre foi a de Tombuctu, que nos deu os dois Tarīkh; apesar de escritos no
século XVII, constituem a obra histórica mais monumental produzida no
Sudão. A universidade, centro de aquisição e difusão de conhecimento, não era
uma instituição organizada como na África setentrional; compreendia grande
número de escolas autônomas, destacando -se a famosa mesquita de Sankoré,
que ministrava o ensino superior. Tombuctu abrigava, no culo XVI, cerca de
124 escolas conicas frequentadas por milhares de estudantes de todas as regiões do
Suo e do Sahel, que moravam com os professores ou em alojamentos especiais.
Os professores, apesar deo remunerados, não enfrentavam dificuldades materiais,
dedicando todo o seu tempo aos estudos.
Havia dois níveis de estudo: o elementar (escola corânica), centrado na lei-
tura e recitão do Corão, e o superior, em que o estudante aprendia a ciência
islâmica. Como todas as universidades contemporâneas do mundo muçulmano,
a universidade sudanesa ministrava o ensino de humanidades, que comportava
as ciências tradicionais teologia (tawhīd), exegese (tafsīr), tradões (hadīth),
direito maliquita (fikh), gramática, retórica, gica, astrologia, astronomia,
história, geografia etc. Os conhecimentos científicos e matemáticos deviam
ser bem rudimentares. O direito maliquita era a especialidade dos doutores
de Tombuctu, que os Ta’rīkh. chamam de jurisconsultos”. Os todos de
ensino pouco evoluíram desde o século XVI, sendo sua característica essencial
a explicão e o comentário de textos nos moldes escolásticos.
Numerosos professores sudaneses e saarianos aí ensinavam. Destacaram -se,
no século XV, o xarife Sd Yahyā e Moadib Muhammad al -Kabār (originário
de Kabara), que formaram os mestres da geração seguinte. O século XVI viu
surgir uma série de professores famosos na curva do Níger, muitos deles origi-
40 CHERBONNEAU, 1854 -1855.
236
África do século  ao século 
nários de duas grandes famílias berberes, os Akit e os Anda Ag Muhammad,
ligadas entre si por casamentos. Os mais célebres foram o cádi Mahmūd ben
‘Umar al -Akit (1463 -1548), jurista e gramático, seu irmão Ahmad (morto em
1536), seu primo al -Mukhtār, seus sobrinhos, entre os quais o famoso Abbās
Ahmad Baba ibn Ahmad ben Ahmad Akit (1556 -1627)
41
.
Pouco nos chegou da grande atividade intelectual dos séculos XV e XVI.
No entanto, as obras conhecidas por seus títulos constituem, em geral, trabalhos
de erudição que não devem ser subestimados. Os eruditos sudaneses tentaram
entender e interpretar a jurisprudência islâmica, teórica e prática, com seus
próprios recursos.
Esta cultura islâmica deve, porém, ser situada no contexto geral sudanês.
Era fundamentalmente uma cultura de elite, acessível a poucos; embora fosse
baseada na escrita, não chegou a integrar as línguas e culturas auctones.
Urbana, permaneceu marginal e desmoronou com as cidades que lhe deram
origem.
41 Ibid. e HUNWICK, 1964 e 1966a.
C A P Í T U L O 9
237
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta, do século XII ao XVI
Os Mossi da curva do Níger
No esgio atual de nossos conhecimentos, o estudo da história dos povos da
curva do Níger, na época remota que vai do culo XII ao XVI, terá necessariamente
de girar em torno do surgimento e da expansão territorial dos reinos mamprusi,
dagomba e mossi. Isso se deve a duas razões, por sinal interligadas. A primeira é que
as informações que temos sobre esse conjunto de reinos são incomparavelmente
mais ricas do que as disponíveis sobre outras formações históricas da mesma
região, como por exemplo o Gurma e, obviamente, as sociedades nas quais o
poder político não é centralizado. A segunda razão é que qualquer tentativa de se
estabelecer uma história formal dos Mossi suscita a questão capital da identifi-
cação dos “Mossi” mencionados nas duas crônicas clássicas, o Ta’rīkh al -Sūdān e
o Ta’rīkh al -fattāsh; veremos que da solução desse problema depende a definição
de um quadro cronológico satisfatório para o conjunto territorial abordado neste
capítulo.
Deve -se começar necessariamente pela análise das referências que as crônicas
sudanesas fazem aos “Mossi”. O Ta’rīkh al -fattāsh registra incursões mossi no
reino songhai de Gao que teriam ocorrido em meados do século XIII, isto é,
no primeiro quartel do período a que se refere este volume. O za Baray, contra
quem teriam guerreado os Mossi, foi, ao que parece, o mesmo za Beirafoloko
Os povos e reinos da curva do Níger e
da bacia do Volta, do século XII ao XVI
Michel Izard
238
África do século  ao século 
da lista dinástica estabeleci da por Jean Rouch
1
: sua autoridade no vale do Níger
estendia -se de Gao até Tillaberi. Foi no reinado de seu sucessor, o za Asibay,
que o reino de Gao passou à suserania do mansa Walin do Mali, que, segundo
Nehemia Levtzion, reinou de 1260 a 1277. O Ta’rīkh al -fattāsh, que não localiza
o território dos Mossi, conta -nos que estes por vezes invadiam a parte ocidental
da curva do Níger, onde a influência do Mali esbarrava na dos tuaregues, que
dominavam ao norte. Os dois breves fragmentos do Ta’rīkh al -fattāsh a que
nos referimos
2
fornecem importante indicação ao citarem um “Mossi koy”, isto
é, um chefe ou rei” dos Mossi. Nada do que nos chegou permite supor que
esses Mossi fossem bandos de saqueadores mais ou menos sem comando; tudo
indica, ao contrário, que estamos diante de povo ou grupo dirigente dotado de
forte organização política e militar, talvez de tipo estatal, e de sólida base terri-
torial, da qual sabemos apenas que se situava no interior da curva do Níger, sem
qualquer outra precisão. Em todo caso, essa sociedade militar encontrava -se
em condições, desde a metade do culo XIII, de enfrentar os principais
poderes hegemônicos que dividiam entre si a curva do rio. Finalmente, aqueles
fragmentos também mencionam incursões mossi na direção de Tombuctu; como
veremos, os Mossi dos Ta’rīkh terão por objetivo permanente, durante toda a
sucessão de empreendimentos de grande envergadura em que se aventuraram, o
controle direto das praças comerciais do noroeste da curva.
Seguindo a ordem cronológica, tornamos a encontrar os Mossi da curva do
Níger nos tempos do mansa Kanku Mūsā (1312 -1337), sendo que dessa vez os
acontecimentos são relatados pelo Ta’rīkh al -Sūdān. A célebre passagem relativa
à tomada de Tombuctu pelos Mossi merece ser citada integralmente;
“Foi, ao que se afirma, o sultão Kanku Mūsā quem mandou construir o minarete da
grande mesquita de Tombuctu, e foi quando reinava um dos príncipes de sua dinastia
que o sultão dos Mossi, à frente de poderoso exército, comandou uma expedição contra
essa cidade. Aterrorizados, os homens de Melli fugiram, abandonando Tombuctu aos
invasores. O sultão dos Mossi penetrou na cidade, saqueou -a, incendiou -a, arruinou -a
e, depois de mandar matar todos os que encontrou e de tomar todas as riquezas que
viu, retomou a seu país”
3
.
Considera -se geralmente que a tomada de Tombuctu pelos Mossi se deu por
volta de 1337
4
; assim, quase um século depois de ter ameaçado Gao, o somente
1 ROUCH, 1953, p. 174, nota 13.
2 KA‘TI. 1913 -1914, p. 333 -4.
3 AL -SA‘DĪ, 1900, p. 16 -7.
4 MONTEIL, C., 1929, p. 414 -5.
239
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
esse povo guerreiro não recuou, como ainda parece haver aumentado seu poderio.
Partindo de seu enigtico país, o sultão dos Mossi lança expedões contra terras
longínquas, ataca cidades grandes e provavelmente bem defendidas, o que supõe
considerável potencial de homens, cavalos e armas. Ainda o Ta’rīkh al -Sūn narra
uma incursão contra Benka (oeste da curva do Níger, a montante de Tombuctu),
que parece ter ocorrido pouco antes de 1433 -1434, ano em que os tuaregues con-
quistaram Tombuctu
5
. Passara -se mais um culo, e a ameaça mossi ainda persistia.
Com argumentão muito consistente, Rouch inclui a expedição contra Benka
numa série de ações que teriam sido empreendidas na rego dos lagos
6
.
Chegamos agora ao peodo mais conhecido da história dos Mossi setentrionais,
que corresponde aos reinados de Sunn Al e do Askiya Muhammad, menciona-
dos nos dois Ta’kh; as refencias que figuram nessas fontes complementam -se
mutuamente.
Para o reinado de SunnAl (1464 -1492), as seguintes datas servem de
pontos de referência:
1464 -1465: ascensão de Sunn Al ao trono; guerra contra os Mossi, chefia-
dos por um “rei” de nome Komdao; os Mossi são derrotados pelos Songhai,
que os perseguem até o território bambara (Bamana), enquanto Komdao
consegue refugiar -se em sua capital, Arguma;
1470 -1471 até 1471 -1472: incursões songhai em território mossi, inicial-
mente sob o comando de Sunn Ale, depois, do yikoy Yaté; destruição de
Barkana, local de residência do rei dos Mossi, e morte de um chefe mossi a
quem o Ta’rīkh al -fattāsh atribui o título de tenga niama;
1477 -1478: penetração dos Mossi em território songhai, onde permanecem até
1483 -1484; tomada de Sama, localidade situada entre o rio Níger e Walata;
1480: ocupação de Walata pelos Mossi, após um s de assédio, seguida da
retirada dos invasores, que abandonam os prisioneiros de guerra aos moradores
da cidade;
1483 -1484: Batalha de Kobi ou de Djiniki -Tooi, ocorrida após a captura
de membros da casa do chefe dos Mossi e a apropriação de seu tesouro de
guerra pelos Songhai. Os Mossi retrocedem para seu país, acossados pelos
Songhai, que chegam a invadi -lo
7
.
5 Ver AL -SA‘DĪ, 1898, p. 45 -6, a respeito de Benka, e KA‘TI, 1913 -1914, p. 118, 173 e 178, sobre a
tomada de Tombuctu pelos tuaregues.
6 ROUCH, 1953, p. 177.
7 Sobre os Mossi da curva do Níger e Sunn Al, ver KA‘TI, 1913 -1914, p. 85 -6 e 88 -9, e IZARD, 1970,
p. 38 -44.
240
África do século  ao século 
O que aconteceu entre os meados do século XV, marcados acima de tudo
pela incursão contra Tombuctu, e os meados do século seguinte, que parecem
fixar a um tempo o apogeu do expansionismo mossi (com a tomada de
Walata) e o começo de seus reveses? Sobre esse novo período de um século,
as fontes escritas se omitem. Dos acontecimentos que preenchem a segunda
metade do século XV, pode -se ao menos deduzir o seguinte: quando subiu ao
trono Sunn Al, soberano de excepcional capacidade, os Mossi constituíam
tal perigo para o Império Songhai que este poderia firmar seu poder se
conseguisse destruir o adversário. Sob o reinado de Sunn Al, não se trata
mais de expedições ocasionais dos Mossi contra as cidades da curva do Níger,
nem tampouco de reações defensivas por parte dos Songhai; trata -se de guerra
longa e implacável, opondo duas grandes potências militares que disputam a
hegemonia na região. No final do reinado, Sunn Al conseguiu vencer; seus
sucessores, porém,o se contentarão com essa vitória, aplicando -se em aniqui-
lar completamente os Mossi setentrionais, que no início do reinado do Askiya
Muhammad ainda se mantinham como Estado, embora já sem qualquer poder
de iniciativa.
Os fragmentos dos Ta’rīkh que se referem à história dos Mossi setentrio-
nais são muito pobres em fatos, porém fornecem importante informação: sob
Muhammad I (1493 -1529) e seus sucessores, as guerras songhai contra os Mossi
passam a ser movidas em nome do Islã, sendo os Mossi chamados de “pagãos”,
da mesma forma que os habitantes do Gurma
8
. Em 1497 -1498, Muhammad
dirige uma expedição contra o território mossi, governado pelo sultão Na‘asira;
o exército songhai sai vitorioso, enquanto os Mossi contam numerosas perdas,
tendo sua capital destruída e suas mulheres e crianças arrastadas para o cativeiro.
Dāwūd (1549 -1582) guerreia contra os Mossi em três ocasiões: no ano em que
sobe ao trono, em 1561 -1562 e, finalmente, por volta de 1575. A expedição de
1561 -1562 permite datar com precisão o quase desaparecimento do poder mossi
setentrional, que existia, então, até onde sabemos, por três séculos. O Ta’rīkh
al -Sūdān conta -nos que, depois da segunda expedição de Dāwūd, o chefe [dos
Mossi] abandonou o país com todas as suas tropas”. Da terceira e última expe-
dição conduzida por Dāwūd, a de 1575 (?), o mesmo Ta’rīkh diz, lacônico, que
os Songhai retornaram sem nada terem pilhado”, o que certamente significa
que não havia mais nada a pilhar e que o exército songhai invadira um país
despovoado e exaurido pela guerra
9
.
8 Ver KA‘TI, 1913 -1914, p. 114 -5 e 134 -5; AL -SA‘DĪ’, 1900, p. 121 -2 e 124.
9 Ver AL -SA‘DĪ’, 1900, p. 168, 173 e 179.
241
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
Assim, o caráter fragmentário da informação na qual temos de nos apoiar
não nos impede de dar à história dos Mossi da curva do Níger uma trama
relativamente coerente. Durante mais de três séculos, uma sociedade militar
conquistadora lutou contra os Songhai – visando controlar as terras do interior
e, depois, todo o rio até ser finalmente vencida; o antagonismo político foi
reforçado, a partir do reinado de Muhammad I, pelo antagonismo religioso.
Infelizmente só se podem formular hipóteses muito vagas acerca da identidade
dos Mossi, bem como sobre a localização de seu território; tudo indica que,
não sendo possível qualquer recurso à tradição oral, a ampliação dos nossos
conhecimentos nesse setor depende exclusivamente dos resultados das inves-
tigações arqueológicas.
Por enquanto, até que novas linhas de pesquisa sejam exploradas, dispomos
de algumas informações, não provenientes dos Ta’rīkh, que podem contribuir
para o conhecimento sobre os Mossi ou, pelo menos, para tornar mais con-
sistentes as hipóteses acerca desse povo ou grupo. Boubou Hama alude a um
misterioso manuscrito, redigido em árabe e intitulado Aguinass Afriquia, que
dataria do século XV e cujo autor se presume ser Abkal Uld Audar
10
. Segundo
sabemos, essa crônica, também chamada Ta’rīkh de Say, não foi publicada nem
tra duzida; além disso, embora Boubou Hama resuma seu conteúdo, não faz
nenhuma citação literal do texto. Portanto, segundo Boubou Hama inspi-
rado em Audar os Mossi, provenientes do leste, teriam fundado, na margem
esquerda do rio Níger, um Estado de nome Dyamare, cuja última capital foi
Rozi, no Dallol Bosso. O Estado de Rozi teria existido por aproximadamente
quinhentos anos, do culo VIII ao XII. Por volta do culo XII, ainda na
margem haussa do Níger, os Mossi criaram um segundo Dyamare, cujo cen-
tro político era Mindji; Rozi fora abandonada devido à pressão berbere. Foi
efêmera a existência do segundo Dyamare; pouco tempo após sua fundação,
os Mossi, acossados pela fome, atravessaram o rio e se instalaram na margem
gurma. Depois de vencerem os povos da região – os Gurmankyeba e talvez os
Kurumba – fundaram o terceiro e último Dyamare. Enquanto não dispusermos
do texto completo e autenticado do Ta’kh de Say, não poderemos analisar
cientificamente as informações fornecidas por Boubou Hama nem (o que seria
o mais importante) julgar a validade de certas indicações cronológicas por ele
apresentadas – é o caso, por exemplo, da data de 1132, que marcaria a passagem
do segundo ao terceiro Dyamare e que, segundo L. Tauxier
11
, corresponderia
10 HAMA, 1966; ver IZARD, 1970, v. 1, p. 47 -8.
11 TAUXIER, 1924, p. 22.
242
África do século  ao século 
ao início do reinado do za Baray, primeiro soberano songhai a lutar contra os
Mossi, de acordo com os Ta’rīkh clássicos.
Em outro documento árabe, este bem conhecido, o Masālīk al -Absār fī
Mamālīk al -Amsār, escrito em 1337 (o ano em que se supõe ter ocorrido a
tomada de Tombuctu pelos Mossi), Ibn Fadl Allāh al -‘Umar relata uma con -
versa entre o mansa Mūsā e o futuro emir Abū’ l -Hasan Al, um dos informantes
do cronista. Quando o egípcio pergunta ao soberano do Mali contra quem ele
está em guerra, este último responde: Temos um inimigo encarniçado que,
para os negros, é como os tártaros para vós”; o imperador acrescenta que esses
inimigos lançam flechas com muita destreza” e possuem cavalos castrados
de nariz fendido
12
. Embora a prática de castrar cavalos fosse desconhecida no
interior da curva do Níger, podemos nos perguntar se os cavaleiros em questão
não seriam os Mossi setentrionais.
Sabemos que o mercador genovês Antonio Malfante viajou pelo Tuat em
1447; uma carta escrita em latim a seu compatriota Giovanni Mariono editada
por La Roncière
13
contém uma passagem que, segundo Yves Person, aludiria
aos Mossi setentrionais
14
. Falando de uma cidade chamada Vallo (que Person
identifica como Walata), Malfante conta que um “rei ‘fetichista comandando
500 mil homens” veio assediá -la.
Uma última fonte escrita a ser citada o as cadas da Asia (1552 -1553), em
que Jo de Barros fala do povo dos “Moses”. O autor portugs relata a visita de
um príncipe wolof (diolof), de nome Bemoy, à corte de D. João II, em 1488. Bemoy
explicou ao rei de Portugal que o terririo dos “Moses se estendia de Tombuctu
para o leste, localização coerente, em se tratando dos Mossi setentrionais, com a
sugerida pela leitura dos Ta’rīkh. O poderio do rei dos “Moses” pareceu o grande
a D. João II que ele pensou tratar -se do famoso Preste João, descendente da rainha
de Sabá, que está, conforme sabemos, na origem legendária da monarquia etíope.
Bemoy contou que havia guerras entre o rei dos “Moses” e Mandi Mansa,rei dos
Manden”, e apresentou os costumes dos “Moses de tal maneira que seus interlo-
cutores se convenceram de que fossem cristãos; tal como os autores dos Ta’rīkh
15
,
João de Barros conclui que, pelo menos, o eram muçulmanos.
12 Passagem citada no Empire du Mali, 1959, p. 61.
13 LA RONCIÈRE, 1924 -1927, v. 1, p. 156; La Roncière dá o texto latino da carta, bem como a tradução
em francês.
14 PERSON, 1962, p. 45 -6; observemos que o nome Vallo, utilizado por C. de La Roncière, torna -se Wallo,
segundo Y. Person; ver IZARD, 1970, v. 1, p. 50 -3.
15 Ver o texto de João de Barros in MARC, 1909, p. 6 -18; ver igualmente TAUXIER, 1917, p. 84 -5, e
IZARD, 1970, v. 1, p. 53 -5.
243
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
Assim, as Décadas de João de Barros pouco mais fazem que confirmar as crô-
nicas de Tombuctu; quanto às demais fontes escritas citadas, embora não sejam
explícitas, ao menos deixam patente que durante o século XV o Mali e o Império
Songhai confrontaram -se com um poder negro e “pagão”, com o qual as outras
grandes potências hegemônicas dessa parte da África ocidental mantiveram -se
em conflito constante. Além disso, devemos a Claude Meillassoux
16
a coleta
de interessantes tradições orais do Mali, que, não obstante suscitarem delica-
dos problemas de interpretação, parecem referir -se aos Mossi setentrionais.
Meillassoux localiza os vestígios desse povo em região muito distante da curva
do Níger, a do Hodh, do Kaniaga e do Wagadu; até o presente momento são
essas as únicas tradições orais que remetem ao povo guerreiro dos Ta’rīkh. No
Diankoloni (Jankoloni), entre Niamina e Nara, existe uma fileira de poços que,
segundo a memória oral, teriam sido cavados pelos Mossi – o que, havemos de
notar, casa -se mal com a imagem exclusivamente guerreira que temos deles.
Na mesma área, os Mossi teriam aniquilado ou assimilado a maior parte dos
clãs Sumaré, enquanto os clãs Diarisso (Jarisso) resistiram vitoriosamente aos
invasores. Guarda -se a lembrança da batalha que teria sido travada entre os
Mossi e os povos da região, nas cercanias do sítio atual de Dianguité -Kamara,
uns cem quilômetros ao sul de Murdiah. No Hodh, os Mossi teriam ocupado
rias localidades e instalado uma chefaria regional em Gara, controlando cerca de
quarenta aldeias; finalmente, teriam invadido Daolé -Guilbé, a pequena distância
do sítio de Kumbi - Saleh
17
.
Os Mossi da curva do Níger e os Mossi da bacia do Volta:
a tese clássica
Os autores dos primeiros trabalhos sobre os Mossi da bacia do Volta Branco
fundaram suas análises históricas na tradição oral – que associa o conjunto das
dinastias reais Mossi à descendência de um único ancestral, Naaba Wedraogo
e estabeleceram uma relação explícita entre a origem dos reinos mossi e a dos
Estados mamprusi -nanumba -dagomba. Foram M. Delafosse
18
, L. Frobenius
19
e
16 Comunicação pessoal, utilizada por IZARD, 1970, v. 1, p. 55 -6.
17 Kumbi -Sāleh: suposta capital do Império de Gana. O sítio de Kumbi -Sāleh encontra -se 60 quilômetros
ao sul de Timbedra, na Mauritânia.
18 DELAFOSSE, 1912, v. 2, p. 140 -2.
19 FROBENIUS, 1925, p. 260 -2.
244
África do século  ao século 
L. Tauxier
20
os primeiros a tentar traçar uma história dos Mossi, partindo o
primeiro do exame das monografias administrativas coloniais de 1909 e os dois
últimos de materiais que eles próprios recolheram. Nas atuais tradições mossi
não se encontram quaisquer vestígios de ações que esse povo possa ter diri-
gido contra os Songhai no passado, nem de uma duradoura presea mossi no
interior da curva do ger. Os autores citados conheciam o Ta’rīkh al -Sūdān;
o Ta’rīkh al -fattāsh, porém, só foi editado e traduzido posteriormente à outra
grande crônica de Tombuctu, sem exegese tão rigorosa. A despeito do silêncio
da tradição oral mossi acerca daqueles a quem chamamos de Mossi da curva
do Níger, os fundadores da historiografia mossi jamais puseram em questão
que os Mossi setentrionais e os do rio Volta Branco constituíssem um único
povo. Essa hipótese – pois não passava de mera hipótese, fundada quase exclu-
sivamente numa aproximação etnonímica – podia ser formulada, é claro, e era
até normal que o fosse, mas, uma vez apresentada, os historiadores tinham
de verifi -la e, caso faltassem provas decisivas, abandoná -la. Ora, a hitese
jamais foi verificada, pois não se pode considerar como prova razvel de sua
validade a possível relação entre, por exemplo, o nome de um chefe mossi
citado nas crônicas Naasira
21
e o de um dos soberanos do Yatenga, de
quem, por sinal, nada se sabe
22
. Foi, portanto, sobre bases tão frágeis que se
constituiu a história dos Mossi, com o risco de omitir justamente aquilo que
constitui a originalidade das formações estatais ou pré -estatais dos Mossi da
curva do Níger e, mais ainda, de esterilizar a pesquisa histórica sobre eles, ao
dar por resolvida uma questão que nem mesmo foi colocada. Assimilando os
Mossi da curva do Níger aos do Volta Branco, M. Delafosse e L. Tauxier, em
especial, produziam sem maiores esforços um quadro cronológico onde inserir
a história dos reinos mossi atuais; ao mesmo tempo, davam a essa cronologia
uma “extensão” muito superior à que se pode deduzir do simples estudo das
tradições orais desses reinos e das formações históricas vizinhas. Com efeito,
para manter a validade da tradão dominante relativa à origem meridional
dos reinos mossi atuais e fazer dos Mossi do rio Volta Branco os conquista-
dores de Tombuctu era preciso levantar a seguinte hipótese complementar: os
Mossi só puderam laar -se em expedições militares de longo alcance após
terem seu poder solidamente estabelecido entre os povos autóctones da bacia
20 TAUXIER, 1917, p. 67 -84.
21 DELAFOSSE, 1912, v. 2, p. 141 -2; TAUXIER, 1917, p. 81.
22 Trata -se do Yatenga naaba de nome Nasodoba, que reinou, por curto período, na primeira metade do
século XVII.
245
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
F . Mapa da região da curva do Níger e da bacia do Volta, 1100 -1600. (Fonte: Izard, 1970.)
246
África do século  ao século 
do Volta; as ões mencionadas nos Ta’rīkh não poderiam, então, ter ocorrido
nos primeiros tempos da história dos reinos. Para tornar plausível hipótese
tão arriscada quanto carente de verificação, M. Delafosse terminou por situar
os prirdios da história dos atuais reinos mossi por volta do final do culo
X
23
. Isso implicava, quer esticar consideravelmente a duração média do reinado
de cada um dos soberanos mossi cujo tempo de governo não fosse registrado
pela tradão oral, quer considerar que as listas dinásticas recolhidas em terri-
tório mossi comportam numerosas lacunas, o que é a um tempo improvável e
impossível de se verificar, considerando -se a riqueza do material genealógico
que a tradão oral fornece sobre as dinastias de reis e chefes.
Devemos a um administrador militar francês, o capitão Lambert
24
, a crítica,
já em 1907, à assimilação dos Mossi dos Takh aos Mossi atuais. Infelizmente
para a historiografia mossi, o estudo de Lambert – a despeito de sua qualidade
jamais foi publicado, assumindo as teses de M. Delafosse e L. Tauxier o
caráter de dogma, sem que sequer fossem consideradas as divergências entre os
dois autores e, sobretudo, a origem dessas divergências
25
. Foi preciso aguardar
o ano de 1964 para que a tese que chamamos de “clássica” – a de M. Delafosse
e L. Tauxier recebesse crítica radical, por parte do eminente historiador
britânico John Fage. Num artigo memorável
26
, Fage procede a um reexame
atento da tese clássica e, depois de refutá -la, propõe uma reinterpretação de
conjunto da história dos Mossi a partir da nítida distinção entre os Mossi
da curva do Níger e os da bacia do Volta, sem com isso descartar a hipótese
admitida com muitas restrições – de uma possível relação entre os dois grupos.
Para Fage, a tese cssica depara com uma dificuldade insuperável no que se
refere à cronologia. Como resultado de estudo que empreendera juntamente
com o saudoso David Tait acerca das tradições orais dagomba, Fage concluiu
que tanto a cronologia clássica da hisria dos Mossi como a proposta por E.
F. Tamakloe, geralmente aceita para a história dos Dagomba, eram excessiva-
mente longas; assim, propôs situar por volta de 1480 o início do reinado de
Na Nyaghse, fundador do Estado dagomba
27
. Para Fage, o surgimento da for-
mação estatal de que se originaram os reinos em estudo não pode ser anterior
23 DELAFOSSE, 1912.
24 Preserva -se o original da monograa de Lambert nos Arquivos do Senegal, em Dacar.
25 Delafosse jamais revisou sua obra após a publicação (em 1912), ao contrário de Tauxier, cujas teses de
1924 oferecem uma interpretação dos Ta’rīkh mais matizada que as de 1917.
26 FAGE, 1964a.
27 As pesquisas de J. D. Fage e D. Tait sobre a história do reino dagomba não foram publicadas.
247
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
ao século XV. Ele aceita a hipótese da origem comum dos Mossi setentrionais
e dos Mossi dos rios Volta, mas associa os primeiros a uma fase pré -estatal e
os outros a uma fase estatal da mesma história. Seguindo a perspectiva aberta
por Fage, Nehemia Levtzion
28
propôs, em 1965, um quadro cronológico com-
parado para o conjunto dos Estados da bacia do Volta (excluindo o Gurma, a
cujo respeito faltam informações). Estabelecidos com base nas listas dinásticas
disponíveis e atribuindo uma durão média de quarenta anos para cada gera-
ção, os resultados de Levtzion concordam com os de Fage, que o reinado
de Na Nyaghse é situado de 1460 a 1500, correspondendo as duas gerações
anteriores (a primeira, fundão do reino mamprusi; a segunda, fundação do
reino nanumba) às sequências 1380 -1420 e 1420 -1460.
Também procuramos contribuir para esse debate
29
, propondo um quadro
cronogico para a história das formões estatais dos rios Volta, com base
no estudo do material genealógico mossi, especialmente no que se refere aos
dois principais reinos mossi atuais, Uagadugu (Wogodogo) e Yatenga. O
todo empregado consistiu em definir, inicialmente, uma data -pivô para a
fundão do Yatenga, determinando -se, para isso, uma duração média para
as gerões, por sua vez obtida a partir do exame das durões conhecidas
de reinados pré -coloniais. Destarte, chegamos à data de 1540 para a fun-
dação do Yatenga; em seguida, remontamos de Naaba Yadega, fundador do
Yatenga, até seu ancestral Naaba Wubri, fundador do reino de Uagadugu,
utilizando as características distintivas da genealogia dinástica de Uagadugu
para efetuar essa segunda extrapolação. Pudemos, então, situar em 1495 o
início do reinado de Naaba Wubri. Para remontar aos tempos anteriores
à fundação do reino de Uagadugu, a pobreza do material cronológico bem
como as incertezas quanto ao modo de transmissão do poder levaram -nos a
propor uma cronologia aberta, na qual a duraçãodia das gerões variasse
de quinze a trinta anos. Antes de Naaba Wubri, as genealogias reais mossi
citam seu “pai”, Naaba Zungrana, o pai deste, Naaba Wedraogo, e a e
deste último, Yenenga, primeira filha (?) do fundador do reino mamprusi,
chamado de Na Bawa ou Gbewa pelos Mamprusi, e de Na Nedega pelos
Mossi e pelos Dagomba. Assim, obtivemos os seguintes resultados, nos quais
as datas indicadas assinalam os inícios de “reinados” reais ou ficcios este
o caso, pelo menos, de Yenenga):
28 LEVTZION, 1968, p. 194 -203.
29 IZARD, 1970, v. 1, p. 56 -70.
248
África do século  ao século 
Duração
15 anos 20 anos 25 anos 30 anos
Reinado
5.
Naaba Wubri
1495 1495 1495 1495
4.
Naaba Zungrana
1480 1475 1470 1465
3.
Naaba Wedraogo
1465 1455 1445 1435
2.
Yenenga
1450 1435 1420 1405
1. Na Bawa
1435 1415 1395 1375
O leitor observará que, nesse quadro, cada coluna corresponde à mesma dura-
ção média para todas as gerações; pode -se pensar, porém e é esta a hipótese mais
verossímil que, entre uma geração e outra, possam ter variado as durações, de
modo que um quadro completo deveria levar em conta uma verdadeira combi-
natória de tempos distintos. Sob a forma apresentada, essa cronologia aberta não
entra em contradição com a proposta por Levtzion, uma vez que este, baseando-
-se numa duração média de quarenta anos para cada geração, situa o reinado de
Na Bawa entre 1380 e 1420, enquanto nossas hipóteses de duração mais longa
permitem da-lo entre 1395 e 1420 (duração de 25 anos), ou entre 1375 e 1405
(duração de trinta anos).
A origem dos Estados da bacia do Volta:
nossos conhecimentos atuais
Comecemos resumindo o que podemos extrair das diversas fontes relativas
aos Mossi da curva do Níger. Na primeira metade do século XIII, os Proto-
mossi do Dyamare II (que tinham Mindji como capital) atravessaram o rio na
região de Say e fundaram o terceiro Dyamare. Os primeiros tempos da história
do Dyamare III parecem ter sido dominados por guerras contra os Songhai de
Gao, certamente com a finalidade de consolidar a nova formação territorial. No
século XIV, alcançado esse objetivo, a expansão mossi deixou de visar o leste,
voltando -se para o oeste da curva do Níger, como indica a expedição de 1337
contra Tombuctu. O século XV principiou com novo avanço mossi rumo ao
oeste e ao noroeste, em que se inclui a incursão contra Benka. A segunda metade
do século XV foi marcada inicialmente por consideráveis sucessos mossi; depois,
pela vigorosa contra -ofensiva dos Songhai que, sob a chefia de Sunn ‘Al, con-
quistaram rápida vitória. Posteriormente, do reinado do Askiya Muhammad ao
249
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
do askiya Dāwūd por quase um século –, os Mossi mantiveram -se na defensiva,
enquanto os soberanos songhai, muçulmanos, pregavam contra eles a guerra
santa. Por volta de 1575 se esgotara toda a resistência organizada dos Mossi
setentrionais.
Enquanto não pudermos contar com informações satisfatórias sobre o
Gurma, e enquanto a pesquisa arqueológica não constituir alternativa para a
análise de textos e a coleta de tradições orais, não estaremos em condições de
propor hipóteses válidas acerca da relação entre os Mossi setentrionais e os da
bacia do Volta, nem, em escala mais ampla, entre os Mossi dos Dyamare e os
guerreiros que participaram da formação do reino mamprusi, do qual nasceram,
por um lado, as formações nanumba e dagomba, e, por outro, as atuais formações
mossi, das quais talvez tenha surgido, finalmente, a atual Dinastia de Nungu
(Fada Ngurma). A questão é importante; refere -se, na verdade, ao modo pelo
qual se difundiu um modelo de organização política através de vasta região
da África ocidental a partir, talvez, do Bornu, sendo Zamfara, no atual país
haussa, uma de suas possíveis etapas. O que parece firmemente estabelecido
é que os ancestrais dos soberanos mamprusi vinham do leste. As tradições de
Gana setentrional dizem que o ancestral original direto de Na Bawa, primeiro
soberano mamprusi (final do século XIV ou início do XV) teria sido um caça-
dor vermelho”, conhecido pelo nome de Tohajiye. Seguiremos, aqui, a tradição
dominante, recolhida entre os Dagomba por E. F. Tamakloe, em 1931
30
.
Tohajiye vivia numa caverna e caçava em região vizinha ao reino de Malle,
situado nas proximidades do território haussa. Estando em guerra com seus
vizinhos, o rei de Malle pediu ajuda a Tohajiye; uma vez alcançada a paz, o sobe-
rano ofereceu -lhe como recompensa uma das filhas, Pagawolga, que era manca.
Pagawolga deu a luz a um filho, Kpogonumbo; todas as tradições afirmam que
tinha a estatura de um gigante e alguns mitos de fundação acrescentam que
tinha um braço e uma perna”. Kpogonumbo permaneceu junto do pai até che-
gar à idade adulta. Novamente em dificuldades, o rei de Malle solicitou ao filho
a ajuda que já não podia pedir ao pai. Depois de guerrear com sucesso, por conta
de seu protetor, Kpogonumbo preferiu partir para oeste, em vez de retornar à
caverna paterna. Depois de vários dias de viagem, chegou a Biun, no Gurma.
O “senhor da terra” de Biun deu a Kpogo numbo uma das filhas, Suhusabga ou
Sisabge. Dessa união nasceram cinco filhos: dois gêmeos, que morreram cedo,
depois Namzisielle, Nyalgeh e Ngmal -gensam. Desejando tornar -se senhor
30 TAMAKLOE, 1931.
250
África do século  ao século 
de Biun, Kpogonumbo matou o sogro e fez -se reconhecer como chefe. Essa
usurpação, porém, provocou a ira de Daramani, rei do Gurma, que entrou em
guerra contra o novo chefe de Biun; não conseguindo vencer Kpogonumbo,
Daramani decidiu -se a firmar a paz e, em penhor de seu acordo, ofereceu ao
antigo adversário uma das filhas, Soyini ou Solyini. Esta deu à luz àquele que,
mais tarde, seria chamado Na Bawa ou Gbewa, conhecido entre os Dagomba e
os Mossi pelo nome de Na Nedega. Da descendência imediata de Kpogonumbo,
somente esse último filho haveria de deixar o Gurma para procurar a fortuna em
outra parte. À frente de considerável tropa, penetrou no território hoje ocupado
pelos Kusasi e instalou -se em Pusuga, de onde moveu guerra contra os Kusasi
e os Bisa visando firmar sua autoridade na região.
Na Bawa teria tido nove filhos: uma primonita, de nome Kachiogo, e oito
varões, que se chamaram por ordem de nascimento Zirili, Kufogo, Tohago,
Ngmantambo, Sitobo, Sibie, Biemmone e Bogoyelgo. Embora o suces sor devesse
ser Zirili, o mais velho dos filhos homens, Na Bawa entendeu -se com os outros
para excluir do poder o herdeiro presuntivo, de quem receava a perversidade.
Assim, Na Bawa escolheu como sucessor o segundo filho, Kufogo; porém Zirili,
que através da mãe soubera o que se tramava contra ele, mandou matar o herdeiro
designado. Ao ser informado da perda de Kufogo, Na Bawa também morreu. A
filha mais velha de Na Bawa, Kachiogo, subiu ao trono, mas Zirili conseguiu pri -la
do poder régio, só lhe deixando, a título de consolão, a chefia de Gundogo. Zirili
aparece como o verdadeiro organizador do reino mamprusi. Quando morreu, eclo-
diu entre ts dos irmãos mais jovensTohago (Tosugu), Ngmantambo e Sitobo
um conflito pela suceso. Tohago foi expulso do reino de Na Bawa; fundou
Nalerigu, onde se originou a atual Dinastia Mamprusi. Ngmantambo instalou -se
entre os Nanumba, de quem se tornou rei. Quanto a Sitobo, fixou -se primeiro em
Gambaga, depois em Nabare; ainda era vivo quando o filho mais velho, Nyaghse,
estabeleceu -se em Bagale; nele se enraíza a Dinastia Dagomba.
É evidente que o que foi exposto em poucas linhas mereceria desenvolvi-
mento bem mais extenso, pois, a rigor, dever -se -ia considerar a multiplicidade de
variantes que essa tradição geral conhece. Neste trabalho, porém, importa sobre-
tudo tentar extrair desse material indicações históricas válidas para o conjunto.
Se nossa cronologia ou a de Levtzion, o próxima da nossa for aceita, a
proto -história mamprusi ter -se -ia desenvolvido em território haussa (na margem
haussa do Níger), depois no Gurma, no correr do século XIV, isto é, na época em
que os Mossi da curva do ger empenharam -se nas primeiras grandes expedições
rumo a oeste. Se é que alguma relação entre esses Mossi e os ancestrais dos
Mamprusi, ela só poderia situar -se numa origem comum, porém antiga, remon-
251
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
tando talvez aos tempos do segundo reino de Dyamare (margem haussa do Níger)
ou do terceiro (margem Gurma). Poder -se -ia fixar no século XIII a época em que,
partindo da base territorial dos Protomossi, guerreiros mercenários penetraram
no Gurma, atravessaram -no e chegaram à região de Pusuga. Ter -se observado
que as tradições dagomba relatadas por E. F. Tamakloe mencionam um rei de
Malle, nome que bem pode evocar o do Mali. A esse propósito, vale assinalar que
os atuais Mossi do Yatenga distinguem dois “Manden”: um Manden ocidental,
correspondendo ao Mali, e um Manden oriental, do qual proviriam os Kurumba
do Lurum
31
e os Mossi da antiga chefaria menor de Bursuma
32
.
Como dissemos, Na Bawa é conhecido entre os Mossi atuais pelo nome
de Na Nedega, podendo -se assimilar Kachiogo, filha mais velha de Na Bawa
segundo a tradição dagomba, a Yenenga, primogênita de Na Nedega de acordo
com a tradição mossi. O que nos importa aqui é menos o pormenor das tradi-
ções, por sinal tão complexo, do que os dois fatos seguintes: a) existe uma relação
direta entre a formação dos Estados mamprusi, nanumba e da gomba, por um
lado, e os Estados mossi, por outro; b) esta relação direta não é de natureza
agnática tipo de relação que prevalece nas dinastias setentrionais de Gana
porém uterina, o que, numa sociedade patrilinear, é a marca inegável de solução
de continuidade, de uma dialética da continuidade e da ruptura históricas.
Recenseamos pelo menos 15 versões da história legendária da origem dos
reinos mossi, e é certo que uma coleta cuidadosa das tradições orais revelaria
muitas outras. Examinemos a tradição que se poderia chamar dominante, isto é,
a que predomina indiscutivelmente em território mossi, especialmente no reino
do Uagadugu. Diz ela que Na Nedega, rei dos Dagomba (e não dos Mamprusi),
cuja capital era Gambaga, tinha uma filha primogênita, Yenenga, que ele se
recusava a dar em casamento, preferindo conser-la a seu lado em virtude de
suas qualidades guerreiras. As diferentes versões da tradição dominante hesitam
quanto às razões que conduziram Yenenga, montada num garanhão, até uma
floresta nas cercanias de Bitu, onde se perdeu. Estaria fugindo da casa do pai,
pouco desejosa de sacrificar sua feminilidade aos desígnios belicosos daquele,
ou teria seu cavalo, em corrida desenfreada, desgarrado da tropa de cavaleiros
que ela dirigia? O fato é que os azares do galope proposital ou casual a fizeram
conhecer, em plena floresta, um príncipe de origem manden, Ryale ou Ryare, de
31 Para uma síntese de conjunto a respeito dos Kurumba, ver SCHWEEGER -HEFEL & STAUDE, 1972,
especialmente as p. 19 -127.
32 Bursuma é uma aldeia no centro do Yatenga, cujos habitantes dizem ser Mossi do Manden oriental; no
entanto, são considerados pelos demais Mossi como “lhos da terra”.
252
África do século  ao século 
profissão caçador de elefantes. Desse encontro nasceu um menino, conhecido
em território mossi pelo nome de Naaba Wedraogo, da palavra moore (mossi)
wedraogo, que significa “garanhão”. Naaba Wedraogo haveria de ser o primeiro
dos Mossi, o ancestral comum a um povo inteiro.
As tradições disponíveis calam -se a propósito de Ryale, que intervém
como genitor de Naaba Wedraogo; em termos sociais, Naaba Wedraogo não
tem pai”, é filho apenas de Yenenga. Essas mesmas tradições também são avaras
de detalhes acerca do fim da vida de Yenenga e os começos do filho na cena
histórica. Algumas delas, porém, acrescentam que, ao chegar à idade de portar
armas, Naaba Wedraogo foi apresentado pela mãe ao avô materno, que deu ao
neto uterino o comando de uma tropa de guerreiros. Recordemos que agora
estamos, provavelmente, em meados do século XV.
Nessa época já são numerosos os indícios da existência do Estado do Gurma,
ainda que os soberanos de então o pertencessem forçosamente à dinastia reinante
atual. Mais do que um Estado centralizado e único, o Gurma devia ser então – e,
em certa medida, permaneceu uma confederação de chefarias territoriais mais
ou menos independentes entre si. Sabe -se que os Ta’rīkh mencionam o Gurma;
a última expedição de SunnAl foi dirigida contra esse país, no final do século
XV
33
. No século XVI, todos os soberanos songhai efetuaram incursões contra os
pagãos do Gurma. No apêndice ao Ta’rīkh al -fattāsh escrito por Ibn al -Mukhtār,
neto do principal autor da crônica, Mahmūd Ka‘ti, fala -se da entrada do askiya
Isk em Bilanga, resi dência real do soberano do Gurma
34
. Entretanto, com essas
poucas exceções, é quase total nossa ignorância quanto às origens do Estado do
Gurma – ou dos diversos Estados que se sucederam no mesmo território.
A tradição dominante mossi, pom, tem algo a dizer sobre a origem da Dinas-
tia de Nungu: segundo ela, o primeiro nunbado (isto é, soberano de Nungu), Jaaba,
ancestral dos Lompo, seria filho de Naaba Wedraogo. Mas essa tradição é, ao que
parece, relativamente tardia, e, sem dúvida, procede do imperialismo ideológico
mossi. Em Durtenga, Junzo Kawada
35
recolheu uma tradição segundo a qual
Jaaba seria filho de Na Nedega, rei de Gambaga. É significativo que tais tradições
pareçam ser ignoradas justamente em Gurma, onde se conta que, assim como o
primeiro rei kurumba do Lurum
36
, o primeiro soberano de Nungu teria descido
33 AL -SA‘DĪ’, 1900, p. 105, 115 e 116.
34 KA‘TI, 1913 -1914, p. 275 -6, nota 1, e p. 276, nota 2.
35 KAWADA, 1979.
36 STAUDE, 1961.
253
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
do céu, lenda que, ao menos, serve para marcar a autonomia da história dinástica
do Gurma frente às dinastias setentrionais de Gana e dos Mossi.
Os primórdios da história dos reinos Mossi
No decorrer do século XVI, os descendentes de Naaba Wedraogo o ampliar
o domínio sobre o conjunto dos povos do vale do rio Volta Branco; na direção
oeste, atravessarão o Volta Vermelho; Boromo, no vale do Volta Negro, marcará
o termo da expansão ocidental dos Mossi. Em etapa posterior, os contornos do
território mossi se reduzirão, mas também se estabilizarão, conservando -se as
mesmas fronteiras externas até o período colonial, quando se desenvolverá um
expansionismo mossi de novo tipo, centrado na colonização agrícola.
Durante muito tempo os prirdios da hisria do reino mossi mantiveram -se
obscuros para os historiadores, especialmente devido à preeminência que a tra-
dição de Tenkudugo (Tenkogodo) veio a adquirir em épocas mais recentes sobre
as tradições das chefarias meridionais que, embora mais antigas, são hoje pouco
difundidas. Graças aos trabalhos de Junzo Kawada
37
, pode -se hoje conceber
com bastante precisão a complexa formação das chefarias territoriais no sul do
território mossi. Tal complexidade ainda constitui obstáculo para uma visão de
conjunto da história mossi; certo é, pom, que esta pressupõe um longo período
de maturação, que precedeu a conquista propriamente dita do vale do rio Volta
Branco e a implantão das grandes dinastias reais que hoje conhecemos. Segundo
Kawada, o reino mamprusi originou -se sob sua primeira forma, em Pusuga;
Zambarga e Sanga seriam, strictu sensu, as mais antigas chefarias regionais mossi.
Ao que parece, as dinastias locais de Durtenga e Komin -Yanga, cujos chefes são
Gurmankyeba – ou, mais exatamente, Yase
38
–, vieram diretamente de Pusuga, e
já vimos que a atual Dinastia de Nungu poderia ter -se originado em Durtenga.
Da chefaria de Zambarga teria provindo a de Kinzem, que por sua vez teria dado
origem às de Wargay, Lalgay e Tenoagen; os primeiros conquistadores teriam
partido de Kinzem rumo ao noroeste. A Dinastia de Tenoagen teria originado
a de Gode, da qual ter -se -ia destacado a de Tenkudugo.
Durante um peodo que parece ter sido preparario para empreendimentos
político -militares ambiciosos, os Mossi restringiram suas atividades ao território
37 KAWADA, 1979.
38 O termo yanga designa o leste, em língua moore; os Yase vivem a leste dos Mossi da zona meridional e
são considerados intermediários entre os Mossi e os Gurmankyeba.
254
África do século  ao século 
meridional compreendido pelas imediações de Zambarga, Kinzem e algumas loca-
lidades menores. Após isso, as conquistas mossi se expandiram rapidamente. Duas
figuras fundamentais dessa história primitiva Naaba Rawa e Naaba Zungrana,
cujos feitos podem ser situados na segunda metade do século XV colocam -se,
segundo a tradão oral, entre os filhos” de Naaba Wedraogo. É quase desnecesrio
assinalar que as relões de filiação e, da mesma forma, as de fraternidade que
estabelecemos entre os primeiros personagens da história mossi o extremamente
probleticas; é o caso, notadamente, das ligões entre Naaba Wedraogo,
Naaba Rawa e Naaba Zungrana. A esse respeito, aliás, convém notar que as
tradições que se referem a esses dois supostos filhos de Naaba Wedraogo são
mutuamente excludentes: quando se conhece Naaba Rawa, ignora -se Naaba
Zungrana, e vice -versa. Finalmente, se a existência histórica de Naaba Rawa
não admite dúvidas, pela quantidade e coerência das informações e testemunhos
relativos a ele, a de Naaba Zungrana é muito duvidosa. Enquanto deste último
encontramos vestígios em algumas localidades do centro e do sul do território
mossi, Naaba Rawa assume nitidamente a estatura de grande conquistador.
Os músicos do Yatenga saúdam Naaba Rawa com os títulos de chefe de Po
(território kasena, conhecido como Pugo, na língua moore), Zondoma, Sanga
e Dubare; estas três últimas localidades atualmente pertencem ao território
do grande reino mossi setentrional. Naaba Rawa foi o fundador da única das
formações políticas mossi que mereceu o nome de império”. O Império de
Rawatenga
39
reuniu sob uma autoridade única, por curtíssimo espaço de tempo,
a maior parte do atual território mossi, existindo em sua região central consi-
derável rede de chefarias locais, das quais as principais foram Nyu, Nanoro,
Sao, Dapelego, Meje e Yabu. O Rawatenga, porém, não conseguiu manter a
unidade, devido às suas dimensões excessivamente grandes e ao fato de se ter
constituído cedo demais, quando ainda era fraca a densidade das chefarias mossi
e apenas parcial a submissão dos povos autóctones. Embora alguns dos filhos
ou companheiros de Naaba Rawa pudessem conservar por muito tempo suas
chefarias no centro do território mossi, a única formação política coerente a sair
do Rawatenga, ainda em vida de seu fundador, foi o reino de Zondoma, que
assumiu o nome de uma das três residências de Naaba Rawa no atual território
do Yatenga. Naaba Rawa terminou as suas conquistas na planície do Gondo,
povoada pelos Dogon, a quem expulsou do Yatenga para a falésia de Bandiagara
39 A palavra tenga quer dizer “terra”, em moore, tendo também o sentido de “território”; vêm daí formações
como Rawatenga” (território ou terra de Rawa), “Yatenga (terri tório ou terra de Yadega), Wubritenga”
(território ou terra de Wubri) etc.
255
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
(Sanga e Dubare hoje se situam no limite dos territórios mossi e dogon). No
norte, Naaba Rawa criou várias chefarias locais, que entregou a filhos, irmãos
mais moços e lugares -tenentes. Em nossos dias, são numerosos no Yatenga
os chefes que pertencem, diretamente ou por assimilação, à descendência de
Naaba Rawa entre eles se conta o chefe da aldeia de Zondoma, onde está
enterrado o conquistador –; têm o status de “senhores da guerra” (tasobanamba)
e, durante toda a história do reino, forneceram à corte grande número de dig-
nitários (nayiridemba). Foi em grande parte às custas do reino de Zondoma
que se desenvolveu territorialmente o Yatenga, a partir da segunda metade do
século XVI. Conforme foi exposto, a historiografia mossi pouco tem a dizer
a respeito de Naaba Zungrana,irmão mais novo de Naaba Rawa. Há, porém,
vestígios de sua presença em diversos pontos do país, especialmente na região
meridional de Manga, e consta que os dois pequenos reinos do Ratenga e do
Zitenga, que se limitam com o Yatenga ao sudeste, teriam sido fundados por
“filhos” desse chefe pouco conhecido.
Nessa época de implantação das primeiras formações políticas mossi, pode-
mos distinguir cinco grandes correntes de penetração na zona central do rio
Volta Branco, a partir do sul. A primeira afetou o oeste dessa região, com
Naaba Pasgo e Naaba Silga atravessando o Volta Branco e ampliando sua área
de influência até Kombisiri e Manga. A segunda teve por objetivo a região de
Kugupela (Kupela). a terceira atingiu as margens do lago de Bam, onde se
instalou Naaba Ratageba, fundador do Ratenga, enquanto seu irmão Naaba
Ziido fundava, nas proximidades, o Zitenga. A quarta corrente, liderada por
Naaba Gigma, visou a zona de Bulsa, enquanto a última foi dar no âmago
da região central, onde surgiu o Wubritenga, fundado, como o próprio nome
indica, por Naaba Wubri, “filho” de Naaba Zungrana. Dos conquistadores e
fundadores de dinastias do final do século XV e começo do XVI, dois personagens
se destacam particularmente: Naaba Gigma e Naaba Wubri. As tradições do leste
afirmam que Naaba Gigma foi irmão mais velho de Naaba Wubri, descartado
do poder em favor do iro caçula
40
. Naaba Gigma empreendeu a conquista da
porção oriental do que é hoje o território mossi e estendeu sua inflncia até os
confins atuais do Liptako, ao norte
41
. A esse respeito, é interessante notar que as
40 A exclusão do irmão mais velho pelo caçula é tema frequente nas tradições mossi sobre a origem das
chefarias territoriais.
41 Recordemos que o Liptako, emirado fulbe (peul) que tem Dori por capital, formou -se muito tempo
depois do período em pauta; a população dessa região do norte de Burkina Fasso (ex -Alto Volta)
compunha -se provavelmente de Songhai, Kurumba e Gurmankyeba.
256
África do século  ao século 
formações poticas mossi do leste desenharam, em seu conjunto, uma larga faixa
territorial orientada do norte para o sul, ao longo da fronteira do Gurma; isso parece
demonstrar que, nessa época, os Gurmankyeba estavam organizados numa base
suficientemente sólida para que seu terririo fixasse limites definitivos à expano
mossi em direção ao leste.
Naaba Wubri foi o fundador da dinastia que ainda governa o reino de
Uagadugu (Wogodogo), cujos soberanos portam o título de Moogo naaba,
“chefe do Moogo”, isto é, do conjunto do país mossi
42
. Situamos o início da
atividade política de Naaba Wubri bem no final do século XV (1495 cons-
titui uma hipótese formal); na prática, portanto, seu reinado desenrola -se no
começo do século XVI. Naaba Wubri conquistou a região de Zinyare, que mais
tarde viria a chamar -se Wubritenga; conta -se que sua chegada s termo às
ininterruptas guerras em que se confrontavam os povos autóctones. Do Wubri-
tenga, Naaba Wubri ampliou sua autoridade para leste e nordeste; guerreou
contra o povo de Lay, e suas conquistas o levaram até Yako e Kudugu, regiões
que já contavam numerosas chefarias mossi locais, tendo algumas pertencido
ao Rawatenga. Naaba Wubri morreu em La, perto de Yako, onde é possível que
tivesse fixado sua última residência; seus restos foram transladados para a aldeia
que depois se chamou Wubriyao(“lugar da tumba de Wubri”), enquanto
suas relíquias teriam sido depostas em Gilongu, Dabozu-Yaogé e Lumbila,
onde existem santuários dos reis de Uagadugu. Quando Naaba Wubri morreu,
o reino que fundara reunia quase todas as chefarias locais da região central;
os sucessores imediatos prosseguiram sua obra, ampliando o território mossi
sobretudo em direção ao oeste. Sob o governo de Naaba Nasbiire, terceiro filho
de Naaba Wubri a reinar, a capital do reino esteve instalada em La, onde morrera
o fundador da dinastia. Na direção do atual Yatenga partiram dois filhos de Naaba
Wubri: Naaba Rimso, que criou o comando de Gambo, e o irmão caçula,
Naaba Wumtane, fundador do reino de Giti, que lutou contra os Dogon e
escravizou seus ferreiros. Na mesma época, um chefe militar, Naaba Swida,
instalou -se em Minima, perto de Gursi, onde também se estabeleceu outro chefe,
Naaba Warma, vindo do sul.
O início do reinado de Naaba Kumdumye, filho de Naaba Nyingnemdo
e neto de Naaba Wubri, coincidiu com a partida de Naaba Yadega, filho de
Naaba Nasbiire, para a região de Gursi. Naaba Yadega, que fora criado por
Naaba Swida, chefe de Minima, não conseguiu vencer Naaba Kumdumye
42 Os Mossi (Moose, singular Mooga) chamam Moogo ao conjunto territorial por eles controlado; o território
mossi é praticamente assimilado ao mundo”.
257
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
na competição pelo poder e foi tentar a sorte em outro lugar, na companhia
da irmais velha, Pabre, que por ele roubou as insígnias reais das quais ela
tinha a guarda, na qualidade de napoko
43
. Situamos esses acontecimentos, por
hipótese, em 1540: é, como dissemos, nossa segunda data -eixo da história
dos Mossi. Naaba Kumdumye viria a desempenhar papel da maior imporn-
cia na implantação dos atuais reinos mossi. Sob sua chefia, a expansão mossi
atingiu o apogeu, com uma penetrão profunda – porém de curto fôlego – em
terririo gurunsi. Os descendentes diretos de Naaba Kumdumye fundaram
os atuais reinos do Konkistenga, de Yako, Tema, Mane e Busuma. Na gerão
anterior, a Dinastia de Bulsa que dura até hoje fora fundada por um filho
de Naaba Wubri, Naaba Namende, que assim recolheu parte do legado político
de Naaba Gigma; um filho de Naaba Namende, Naaba Kurita
44
, fundou por
sua vez o reino de Kugupel. Na gerão dos netos de Naaba Wubri também se
deve situar a fundão do reino de Kayao por Naaba Yelleku, filho de Naaba
Nasbiire e, portanto, irmão de Naaba Yadega pelo mesmo pai. Com Naaba
Kuda, filho de Naaba Kumdumye, o território mossi central adquiriu, na
segunda metade do século XVI, sua fisionomia definitiva. A principal inicia-
tiva desse soberano, o último Moogo naaba do peodo que ora estudamos, foi
enviar às montanhas do Risyam seu filho Naaba Tasango, fundador do atual
reino do Tatenga.
Quando Naaba Yadega atingiu a região de Gursi, numerosas chefarias mossi
já se estabeleciam no atual território do Yatenga. A mais importante força polí-
tica da região era o reino de Zondoma, avatar setentrional do Rawatenga, que
enfrentava a rivalidade de outras formações, a começar pelo reino de Giti; no
sudoeste, nos confins do recém -estabelecido território mossi e do território samo,
as chefarias de Minima e Gursi eram apenas as principais praças -fortes mossi, em
meio a uma série de outras em torno das quais se formaram chefarias regionais
menores. Ao partir de Gursi, Naaba Yadega tinha três objetivos: neutralizar o pai
adotivo, Naaba Swida, aliar -se com o chefe de Gursi, Naaba Warma, e ampliar
suas conquistas em direção ao território samo. Depois de garantir sua base em
43 Quando morre um chefe ou rei mossi, o poder, entre a proclamação ocial do falecimento (que se
distingue do momento em que ocorre, efetivamente, a morte) e a nomeação do sucessor, compete
interinamente à lha mais velha do defunto, que porta o título de napoko, literalmente “chefa”. A
napoko é a substituta do pai e usa as roupas dele.
44 O kurita é o representante, entre os vivos, de um chefe morto; essa palavra, que signica “morto reinante”,
é construída por analogia a narita, “chefe reinante”. Geralmente se escolhe o kurita entre os lhos do
chefe falecido; seu título não lhe confere poder algum, pelo contrário, até o exclui da sucessão. Mas ele
pode tornar -se chefe numa área fora daquela em que se exerce o comando da família: nesse caso, terá o
epíteto (zab yure) de Naaba Kurita.
258
África do século  ao século 
Gursi
45
, Naaba Yadega instalou uma segunda residência em Lago. No final do
século XVI, seu segundo filho, Naaba Geda, libertou definitivamente o novíssimo
reino do Yatenga de qualquer vínculo com o reino de Uagadugu
46
. A partir de
então, os dois grandes reinos mossi – o de Uagadugu e o do Yatenga – seguiriam
destinos diversos, constituindo os dois grandes polos hegemônicos do território
mossi e abrigando pequenos reinos vassalos em sua zona de influência.
Em resumo, a história dos reinos mossi, que começou na primeira metade
ou, quando muito, em meados do século XV, desenvolveu -se em três fases, no
decorrer do período que nos interessa: uma fase de maturação (segunda metade
do século XV), um período de conquistas (primeira metade do século XVI) e,
finalmente, uma fase de estabilização (segunda metade do século XVI).
O sistema político mossi
Traçaremos aqui um panorama muito sucinto do sistema político mossi, uma
vez que a história das instituições mossi é pouco conhecida, só podendo ser deli-
neada a partir do final do culo XVIII (Yatenga) e do início do século XIX (reino
de Uagadugu). A rica informação recolhida, desde 1907, a respeito da organização
dos reinos mossi nos permite, no máximo, descrever o funcionamento das insti-
tuições públicas quando já terminava o período pré -colonial. A principal caracte-
rística do sistema político mossi – neste ponto, todos os observadores concordam
é a distinção social entre os detentores da terra (tengsobondo) e os do poder
(naam). Os primeiros representam os autóctones, também chamados filhos da
terra ou gente da terra”; os segundos eram, em princípio, os Mossi, embora a esse
respeito a divisão de tarefas entre autóctones e conquistadores nem sempre esteja
isenta de ambiguidade. Assim é que, ao lado dos Mossi propriamente ditos (isto
é, os descendentes de Naaba Wedraogo), incluem -se entre os filhos do poder” os
cativos das cortes reais, em sua maioria de origem o mossi. A distinção entre
autóctones e conquistadores, ou entre “gente da terra e “gente do poder”, liga -se
diretamente a oposição entre o “senhor da terra (tengsoba) e o chefe” (naaba)
45 Atualmente, importante localidade do sudoeste do Yatenga. Ao que parece, Gursi foi, desde tempos
remotos, centro econômico conhecido por seu artesanato e seu comércio, servindo também de parada
na rota das caravanas.
46 O fundador do Yatenga, Naaba Yadega, conservava as insígnias reais de Naaba Wubri, que haviam
sido roubadas pela irmã mais velha, a napoko Pabre. Conta -se, no entanto, que seus dois sucessores
imediatos, Naaba Kurita e Naaba Geda, foram coroados em La, que naquela época era residência dos
reis de Uagadugu.
259
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
oposição que também repercute na ideologia religiosa, já que os filhos da terra se
associam, como o próprio nome indica, ao culto da terra, enquanto a gente do
poder” reconhece a supremacia divina de Wende, de origem celeste e talvez solar.
A unidade da sociedade, em que o sagrado se associa aos auctones e o poder aos
conquistadores, é marcada pela união sincrética de Naaba Wende (naaba = chefe”)
e de Napaga Tenga (napaga = mulher de chefe).
Muito pouco se sabe sobre a identidade dos povos anteriores aos Mossi,
exceto no caso do Yatenga, cujo povoamento tem história escrita
47
. Ao que
parece, podem -se distinguir três grandes grupos entre os autóctones: os povos
chamados Gurunsi, de língua “voltaica” ou gur, aos quais, com base em afini-
dades precisamente linguísticas, podemos vincular os Kurumba, que os Mossi
chamam de Fulse e que constituíram o principal substrato do Yatenga, ante-
riormente aos próprios Mossi; os Dogon (Kibse, na língua moore ), cujo antigo
habitat, no atual território mossi, parece ter sido muito extenso, mas que, devido
à sua resistência armada à conquista, foram as principais vítimas do novo poder;
finalmente, os povos Manden, entre os quais os mais importantes são os Samo
(Nimise) e os Bisa (Busase), hoje separados no plano territorial mas de origem
possivelmente comum. Senhores da terra, os autóctones têm a seu cargo os
ritos anuais de fertilidade; no Yatenga, por exemplo, é através de sacrifícios em
certos altares da terra que o rei recém -designado e que, como todo detentor
do poder, porta o título de naaba (Yatenga naaba) pode ser entronizado e, por
conseguinte, tornar -se rima, o que lhe confere o direito a ter uma sepultura no
cemitério real e, ainda, capacita seus filhos à sucessão régia.
Tomemos ainda o Yatenga como exemplo. Os detentores do poder, além do
próprio rei, dividem -se em três categorias: a “gente da casa do rei” (nayiridemba),
os senhores da guerra (tasobanamba) e os membros da linhagem real ou nakombse,
que constituem o grupo de onde sai o soberano. Os componentes da casa do rei,
ou servidores reais, e os senhores da guerra tanto podem ser Mossi como cativos
de linhagem real; os de origem mossi pertencem a antigas famílias de chefes,
cuja origem muitas vezes remonta a formões políticas anteriores ao Yatenga
(por exemplo, ao reino de Zondoma). Assim, é entre Mossi consideravelmente
afastados do rei, do ponto de vista genealógico, ou entre cativos, que o soberano
escolherá os homens sobre os quais se sustentará diretamente seu poder, enquanto
é contra aqueles que lhe são próximos, os nakombse, que exercerá seu poder. O
Yatenga naaba tem a seu dispor quatro residências reais e vive numa delas, rodeado
47 Ver IZARD, 1965.
260
África do século  ao século 
das esposas e dos servidores, reais ou cativos. Em cada residência real os servi-
dores dividem -se em quatro grupos, cada qual chefiado por um alto dignitário
de nome nesomde (plural, nesomba). Assim, cada uma das quatro cortes potenciais
conta com um colégio de quatro nesomba, sendo três de origem mossi (togo naaba,
balum naaba e weranga naaba) e um de origem cativa (bin naaba ou rasam naaba).
Os nesomba o nomeados pelo rei. O colégio de nesomba que estiver associado
à residência real efetiva constitui o verdadeiro governo do reino; falecendo o rei,
tamm funciona como colégio eleitoral, competindo -lhe a escolha do novo sobe-
rano entre os candidatos ao trono, que o sistema de atribuição do poder ignora
qualquer regra de transmissão automática do mesmo. Com efeito, a passagem do
poder do iro mais velho ao mais novo torna cita a candidatura de todo filho de
rei ou, mais exatamente, de todo aquele que for o mais velho, num grupo de filhos
do mesmo rei. A história do Yatenga no século XIX, bem conhecida, mostra que
a falta de rigor no costume mossi de transmissão do poder resultou em frequen-
tes crises dinásticas, que por sua vez acarretavam verdadeiras guerras civis entre
facções opostas no interior da linhagem real. Pode -se supor que, após o período
das conquistas no Exterior, os Mossi se tenham envolvido em lutas incessantes
pelo poder, no interior de suas fronteiras, isso apesar da progressiva centralização
da autoridade e a despeito da crescente importância assumida pelo aparelho de
Estado em detrimento da nobreza, que fornecia candidatos ao trono.
De um extremo a outro do território mossi, é claro que se constatariam
numerosas variantes nos pormenores das instituições; mas o que mais impres-
siona na sociedade mossi, tão heteróclita do ponto de vista histórico, é sua
notável unidade linguística e cultural unidade que se manifesta ainda mais
na coerência da ideologia do poder e na profundidade de sua filosofia política.
Trata -se de uma das grandes civilizações da África ocidental.
Os povos da bacia do Volta sem sistema político
centralizado
Também aqui parece difícil nos determos em questões que, embora se ins-
crevam no âmbito da historiografia, são muito pouco conhecidas. É certo que
dispomos de um quadro coerente das sociedades sem Estado da bacia do Volta,
mas esse quadro é contemporâneo; na maior parte dos casos, a história daque-
las sociedades ainda está por se fazer. Remontando -se aos tempos anteriores à
colonização, a ausência de estrutura estatal reduz com frequência a história das
sociedades baseadas na linhagem ou em comunidades aldeãs a um inventário de
261
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
migrações recentes (do século XIX) ou ainda e neste caso retomamos à questão
das sociedades com Estado às incidências que sobre elas tiveram as políticas de
conquista e assimilação dos reinos vizinhos. Em quase todos os casos, certamente
devido à falta de investigações sistemáticas, o que hoje sabemos das sociedades
sem Estado o permite um recuo para períodos anteriores ao final do século
XVIII ou começo do XIX: entre a história recente e os mitos de fundação, perma-
nece uma lacuna que o historiador deverá tentar preencher. Em outras palavras:
não margem de certeza possível para discutirmos a história das sociedades
aqui apresentadas, no período que nos interessa (sécs. XII -XVI).
que centramos este estudo na história dos reinos mossi, parece -nos legítimo
começar pelas sociedades denominadas “voltaicas” ou gur, nomes que se devem,
estritamente, a classificações linguísticas.
As línguas gur foram amplamente estudadas segundo perspectiva mais taxio-
nômica do que getica, é verdade – e devemos a Gabriel Manessy
48
o resumo dos
conhecimentos disponíveis sobre essa importante falia lingstica. O grupo gur
compreende grande número das línguas que hoje se falam em Burkina Fasso
(ex -Alto Volta) e em vastas zonas setentrionais da Costa do Marfim, Gana, Togo
e Benin. De Lavergne de Tressan divide as línguas gur em três subgrupos: moore,
lobi -bobo e senufo, sendo que o subgrupo moore compreende, por sua vez, as
línguas moere, gurma, tem e gurunde
49
. D. Westermann e M. A. Bryan identifi-
cam, como G. Manessy, um subgrupo senufo, mas diversificam consideravelmente
os demais subgrupos, isolando assim tamm o kulango, o lobi -dogon (lobi, bobo e
dogon), o grusi, o gurma, o tem, o bargu e o mossi; associam o mossi, por sua vez, a
um grupo de línguas que compreende, além dele, o dagomba, o nankanse, o talensi,
o wala, o dagari, o birifo e o namnam
50
. J. H. Greenberg propõe uma classificação
próxima da anterior, subdividindo a subfamília mossi -grunshi ou gur em sete grupos:
senufo, mossi, grunshi, tem, bargu, gurma, kilinga
51
. O. Köhler, cuja classificação
foi reconstituída por G. Manessy, identifica um núcleo central de línguas gur,
que ele reparte em três grupos: mossi -dagomba (mamprusi, dagomba e mossi,
línguas do Atacora), grusi (grusi oriental: kabre, tem, kala; grusi ocidental; grusi
setentrional: kurumba) e gurma. O. Köhler inclui ainda entre as línguas gur o
senufo e o bariba, assim como certo número de línguas residuais do Togo e o
48 MANESSY, 1963.
49 LAVERGNE DE TRESSAN, 1953.
50 WESTERMANN & BRYAN, 1970.
51 GREENBERG, 1955.
262
África do século  ao século 
dogon, que tem afinidades lexicais com as línguas gur, mas cuja sintaxe seria de
tipo manden
52
.
Embora estejamos longe de um consenso entre os especialistas dos quais,
por sinal, nenhum chegou a sistematizar os critérios formais que fundamentaram
sua classificação considera -se geralmente que entre as línguas gur é possível
distinguir considerável grupo mossi que, por sua vez, compreende três subgrupos:
mossi, dagomba e birifo -dagari -wile; destes, o subgrupo dagomba inclui as nguas
dagomba, mamprusi, nanumba, nankana, talensi e kusasi. Esses problemas de
classificação desembocam em questões mais complexas, de filiação genética entre
as línguas, para cuja elucidação a contribuição da glotocronologia tem sido, até o
momento, bem pequena. O simples agrupamento das línguas segundo suas afini-
dades mostra, pelo menos, que línguas aparentadaso faladas, indiferentemente,
em sociedades com Estado e sem Estado; tal é o caso, por exemplo, do moore (lín-
gua dos Mossi) e do dagari. Pode -se notar, quando muito, que a unificação estatal
resulta em menor dialetização das línguas, ao passo que a não centralização dos
sistemas políticos coincide com a dialetização extrema. Ademais, as classificações
linguísticas levam -nos a colocar o seguinte problema: teriam os conquistadores
estrangeiros – como durante muito tempo se pensou, no caso dos Mossi, e como
certos indícios levam a crer – imposto suangua aos vencidos, que foram obriga-
dos a abandonar os idiomas próprios, ou se terá passado o fenômeno inverso, em
que os donos do poder são, de alguma forma, aculturados pelos filhos da terra?
Quando tivermos condições de responder com precisão essa questão, teremos
dado, sem dúvida, um enorme passo rumo à compreensão de certos mecanismos
fundamentais da implantação dos sistemas centralizados africanos.
Considerando o vasto grupo das línguas gur, somos tentados a passar de uma
classificação das línguas a uma classificação das culturas. Tal transição supõe,
porém, que estejam resolvidos problemas de método que ainda não o foram, e
é isso que explica por que as tentativas de M. Delafosse
53
, H. Baumann e D.
Westermann
54
e G. P. Murdock
55
se revelam, em conjunto, carentes de maiores
resultados. Além disso, não se pode esquecer que os universos linguístico e
cultural “voltaicos” não coincidem com exatidão. Para tomarmos um exemplo:
os Bwa falam uma língua gur, mas são de cultura manden, como seus vizinhos,
os Bobo, que se expressam numa língua manden.
52 KÖHLER, 1958 e MANESSY, 1963.
53 DELAFOSSE, 1912.
54 BAUMANN, 1948? .
55 MURDOCK, 1959.
263
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
Oswald Köhler, a quem citamos
56
, forneceu um quadro bastante completo
das sociedades da bacia do Volta, mas as aproximações que efetua mantêm -se por
demais presas à classificação linguística; assim, chama de “Grusi setentrionais” os
Kurumba, embora estes estejam culturalmente muito distantes do conjunto de
povos que os antropólogos denominam “Gurunsi”, e que ocupam vasta área a oeste
do território mossi. De intenção menos sistemática, porém fundando -se efetiva-
mente na abordagem antropológica das sociedades, o inventário estabelecido por
Guy Le Moal
57
tem o mérito de estar isento de pressuposições taxionômicas.
Entre os povos da bacia do Volta, Le Moal distingue, com base em apro-
ximações culturais e regionais, os conjuntos Mossi, Gurunsi, Bobo, Manden e
Senufo e reúne os povos do sudoeste da atual Burkina Fasso (ex -Alto Volta)
sob uma denominação comum.
Deve -se associar aos Mossi os povos pré -mossi cuja identidade foi parcialmente
preservada. É o caso dos Kurumba, que, conforme se sabe, constituíram uma formação
política o reino do Lurum que incluía elementos de centralização do poder, num
contexto inicial de realeza sagrada”. Com o nome de Fulse, os Kurumba pertencem
aos grupos de filhos da terra dos reinos mossi, especialmente do Yatenga, da mesma
forma que os Marase, que eram Songhai, os Yase, originalmente Manden (em sua
maioria), e os Kambose, de origem bambara, dafin ou jula (diula). Com os Gurunsi,
deixamos o domínio dos Estados. Classicamente, os antropólogos dão o nome
de “Gurunsi” a seis sociedades de base segmentária: Lela, Nuna, Kasena, Sisala,
Ko e Puguli. o -lhes associadas sociedades que se estabeleceram na região onde
hoje se encontram os confins do Gana e de Burkina Fasso (ex -Alto Volta), como
os Talensi, os Kusasi e os Nankanse, povos que podemos considerar culturalmente
autônomos face às formões estatais vizinhas, mas que, do ponto de vista desses
Estados, constituem sociedades triburias. Como sabemos, depois dos trabalhos de
Meyer Fortes
58
, essas últimas sociedades passaram a fornecer à teoria antropogica
o modelo do sistema político conhecido como segmentário por linhagens”.
Os povos de nome Bobo (aos quais podemos associar os Boron, de origem
manden) englobam, essencialmente, os Bwa (a quem antigamente se chamava
de Bobowule) e os Bobo propriamente ditos (os antigos Bobofin). Nessas
sociedades, nas quais a iniciação ligada ao culto do do desempenha impor-
tante papel, a organização potica funda -se na existência de comunidades
alds autônomas. O mesmo ocorre com os Samo e os Bisa, por um lado,
56 KÖHLER. (19..?)
57 LE MOAL, 1963.
58 FORTES, 1940.
264
África do século  ao século 
e com os Dafin ou Marka, por outro. O território dafin estende -se do vale
do Suru, ao norte, à região de Bobo -Diulasso, ao sul. Muçulmanos entre
os quais existiam, porém, consideráveis minorias fiéis à religião tradicional
–, comerciantes e guerreiros, os Dafin foram responsáveis pela fundação de
numerosos pequenos Estados centralizados; seu modo de inseão na história
do vale do Volta Negro é compavel ao dos Jula na história da região que vai
de Bobo -Diulasso até Kong. Dessa cultura são tributárias, em vários aspectos,
as sociedades aparentadas aos Senufo, como os Karaboro, os Tusia, os Turka, os
Gwe e os Wara. Pode -se citar como exemplo os Tusia, que têm uma sociedade
secreta, o lo, com características muito próximas às do poro. Sob a denominação
regional de povos do sudoeste”, G. Le Moal agrupa os Wile, os Dagari, os
Birifo, os Lobi e os Dia, entre outros. Esses grupos, origirios de territórios
atualmente situados na República de Gana, atravessaram o Volta Negro, em
levas sucessivas, a partir do século XVI. Os Wile, primeiros a chegar, forçaram
os Puguli a se retirarem da região; depois vieram os Dagari, deles aparentados
linguística e culturalmente, embora possuam sistema de filião bilateral e
não patrilateral, como o dos Wile. Os Birifo chegaram simultaneamente aos
Dagari, ou seja, depois dos Lobi; têm sistema de filiação compavel ao dos
Dagari. Os Wile, os Dagari e os Birifo falam uma língua pertencente ao grupo
mossi; caracterizam -se, ademais, pela importância atribuída, na vida social, à
iniciação secreta do bagre; os Birifo, vizinhos mais próximos dos Lobi, herda-
ram destes grande número de traços culturais. entre os Lobi os elementos
matrilineares predominam, em larga escala, sobre os patrilineares; a inicião
no dyoro desempenha papel importantíssimo no controle social. Os Dia são
próximos dos Lobi e atravessaram o Volta Negro quase ao mesmo tempo que
eles. Os povos do sudoeste possuem organizão política segmentária, sem
conhecerem, ao contrário dos Gurunsi, formas de centralizão do poder
subordinadas à realeza sagrada.
Além dessas sociedades de agricultores, vale lembrar que existiram socieda-
des pastoris os Fulbe e os tuaregues na curva do Níger e na bacia superior
do Volta. Os Fulbe, encontrados nos vales do Volta Negro e do Suru, na planície
do Gondo, no Jelgoji, no Liptako e no Yoga, constituíram numerosas chefarias
locais (Dokwi, no vale do Volta Negro; Barani, no vale do Suru; Jibo, Barabule,
Tongomayel, no Jelgoji). Esse povo está na origem da fundação do Estado do
Liptako mas, também neste caso, se pode fazer um esboço da história das
formações históricas fulbe para um período mais recente (começando nos
séculos XVII e XVIII) que o estudado neste volume.
265
Os povos e reinos da curva do Níger e da bacia do Volta
Abordagem econômica
A maior parte da zona em estudo encontra -se dominada, no que concerne
às culturas de subsistência, pelo cultivo do milhete, que cede lugar, no norte, às
variedades selvagens e cultivadas do fonio, e, no sul, aos tubérculos. O algodão
da espécie Gossypium punctatum, conhecido ainda hoje, é cultivado, certamente
muitíssimo tempo, na zona de savana arbustiva e seca. O que parece esta-
belecido é que, na época em que se implantaram os primeiros reinos mossi,
a tecelagem era difundida, embora as vestes longas fossem reservadas aos
chefes. Em território mossi, a tecelagem acha -se vinculada aos Yase, originários
do Manden ocidental; a tradição oral dos Yase” do reino de Uagadugu conta
que um tecelão confeccionou para Naaba Wubri um conjunto composto de
blusa, calça e boné. Tão antigo quanto a tecelagem, o artesanato da tinturaria,
especialidade songhai, complementa -a. As duas principais plantas usadas para
tingir são o indigueiro e uma combretácea, Ano geissus leiocarpus, que fornece
tintura de cor amarelo -cáqui.
A criação de bovinos (zebu) é praticada pelos Fulbe, pastores do Sahel. Os
agricultores, por sua vez, criam apenas animais de quintal: ovinos, caprinos,
galináceos. Merece menção particular a criação de burros e cavalos, na qual o
norte do território mossi atual desempenhou papel importante desde tempos
remotos. Assim, o Yatenga exportava burros para o território mossi central e
meridional, e as zonas orientais desse reino eram prezadas pela qualidade dos
cavalos Dongolawi, remotamente originários do Alto Egito. O cavalo, animal
de guerra por excelência (ao passo que o burro serve basicamente para o trans-
porte em caravanas), é representado por cinco raças: as do Yatenga, do Jelgoji,
do território kurumba, da planície do Gondo e de Barani
59
.
As duas instrias locais, geralmente associadas, o a metalurgia e a cerâmica.
Também sob este aspecto o Yatenga distingue -se do restante do território mossi, por
ser rico em mirio de ferro de teor relativamente elevado, embora esse metal seja
encontrado em toda a rego ocidental do atual Burkina Fasso (ex -Alto Volta).
Muito pouco se sabe sobre a história antiga do comércio de longa distância.
Este era praticado pelos Yase na bacia do Volta; ao que parece, já se havia
estabelecido quando chegaram os Mossi, mas é certo que, com a formação dos
novos Estados, conheceu considerável desenvolvimento. A esse respeito, existe
relação direta entre o desenvolvimento do comércio de longa distância e o domí-
59 Ver FRANCO, 1905.
266
África do século  ao século 
nio das técnicas de tecelagem. Os Yase”, tecelões e comerciantes, utilizavam
faixas de tecido de algodão, tanto branco quanto tingido, como mercadoria de
frete local, em suas trocas inter -regionais. Estas se davam segundo um itine-
rário norte–sul e sul –norte, o norte fornecendo especialmente o sal do Saara,
em placas (mas, também, peixe seco e esteiras), e o sul dedicando -se sobretudo
ao comércio de nozes -de -cola. A moeda de troca era o cauri (pesado, Cyprea
annulus, ou leve, Cyprea moneta), cujo valor tinha sido fixado, ainda em tempos
remotos, comparativamente ao do ouro. Na prática, existiam vários padrões de
valor para as mercadorias: o côvado (66 cm) de tecido de algodão servia como
unidade de cálculo para as mercadorias mais comuns, enquanto os cavalos,
por exemplo, eram usualmente pagos em escravos. Os ferreiros dos centros
metalúrgicos comerciavam diretamente seus produtos acabados (ferramentas e
armas), bem como bolas de ferro, destinadas a um artesanato mais refinado.
Enquanto faltarem dados arqueológicos, tudo o que foi dito acerca da economia
da bacia do Volta, no período que se estende dosculos XII ao XVI, não passará,
infelizmente, de extrapolação hipotética construída sobre dados recolhidos por
viajantes europeus do século XIX; aí está, portanto, um campo de pesquisa
cuja investigação se reveste de importância capital.
C A P Í T U L O 1 0
267
Reinos e povos do Chade
No século XII, a maior parte da região do lago Chade era dominada pelo
poderoso reino do Kanem. Nessa época certamente existiam outros reinos na
área, mas a maior parte dos habitantes ainda vivia organizada em clãs e grupos
étnicos independentes. O Kanem foi conhecido em tempos muito remotos pelos
viajantes e geógrafos árabes, desfrutando assim de renome claramente maior
que as outras entidades políticas situadas entre os Nuba do vale do Nilo e os
Kawkaw da curva do Níger.
Tendo -se em vista as fontes existentes e os conhecimentos de que hoje dis-
pomos, nosso estudo se prenderá necessariamente mais ao desenvolvimento
interno do Estado do Kanem e aos povos que viviam nesse reino do que aos
de fora, que não chamaram a atenção dos cronistas e sobre os quais, por isso
mesmo, existe pouca informação.
Mencionado em diversas fontes externas desde o século IX, o Kanem
caracteriza -se também pela exisncia de uma fonte interna: o n dos
sultões do Kanem -Bornu
1
. Ele provavelmente começou a ser redigido na pri-
meira metade do século XIII. Nessa época, os cronistas da corte começaram a
fixar por escrito certos fatos relacionados à história dinástica que até então eram
transmitidos apenas oralmente. Mas, antes de chegar aos acontecimentos de seu
1 O texto do Dīwān foi traduzido e comentado por D. LANGE, 1977a.
Reinos e povos do Chade
Dierk Lange
268
África do século  ao século 
próprio tempo, trataram de registrar os principais elementos de uma tradição
que remontava ao final do século X. Na sequência, a obra foi sendo constante-
mente atualizada, até o século XIX, quando findou a Dinastia dos Sēfuwa: a cada
soberano que morria acrescentava -se um curto parágrafo, resumindo seu reinado.
Esse modo de composição poderia, ao cabo de seis séculos, resultar numa obra
volumosa; na verdade, porém, o Dīwān, em sua forma atual, não passa de cinco
páginas e meia. É certo que as informações que referem -se acima de tudo à
história dinástica do Kanem -Bornu, mas delas também podemos deduzir certas
indicações a respeito de outros aspectos da história do Sudão central
2
.
Por outro lado, também dispomos dos relatos de alguns geógrafos árabes.
Para a história do Sudão central são especialmente preciosos os depoimentos de
al - Idrs (que escreveu em 1154)
3
, Ibn Sa‘d (falecido em 1286)
4
e al -Makrz
(que morreu em 1442)
5
. As duas séries de informações complementam muito
bem uma à outra: os cronistas africanos fornecem o quadro temporal, os geó-
grafos árabes, a dimensão espacial (ver figs. 10.1 a 10.3).
A Dinastia dos Sēfuwa
No terceiro volume vimos que o Kanem esteve sob o poder dos Zaghāwa
durante vários séculos
6
. Essa dominação só terminou durante a segunda metade
do século XI, com o surgimento de nova dinastia, que assumiu o nome de
Sēfuwa porque pretendia descender do herói iemenita Sayf ben Dh Yazan (ver
fig. 10.6).
O fundador dessa dinastia foi Hummay (c. 1075 -1086). Vários indícios
fazem supor que tivesse origem berbere; o nome (derivado de Muhammad)
e sua genealogia mostram ter ele pertencido a um grupo profundamente islami-
zado: sabemos, por meio de al - Idrs, que nesse tempo boa parte dos habitantes
do Kawār eram berberes mulaththamūn (que usavam o lithām)
7
. Outras fontes
permitem afirmar que a islamização dessa região é anterior à segunda metade
2 LANGE, 1977a.
3 AL IDRĪSĪ, 1866.
4 IBN SA‘ĪD, AL-MAGHRIBĪ (ed. J. V. Gines), 1958.
5 Ver AL-MAKRĪZĪ, 1979, e CUOQ, 1975, p. 382-9.
6 Ver o capítulo 15 do volume III.
7 AL IDRĪSĪ, 1866, p. 46.
269
Reinos e povos do Chade
do século IX
8
. Seria tentador pensar que Hummay fosse originário do Kawār;
mas é igualmente possível que pertencesse a um grupo berbere,integrado no
Kanem no tempo em que reinavam os Zaghāwa.
De qualquer forma, a pretensão de ter ascendência iemenita indica clara-
mente que Hummay e os seus estavam em contato com berberes da África
setentrional; estes, para se distinguirem dos árabes adnanitas, tinham o hábito
de reivindicar ancestrais himiaritas. Assim, não pode ser por acaso que o Dīwān
cita, para os supostos ancestrais de Sayf ben Dh Yazan, unicamente nomes
denunciando contexto norte -arábico: encontramos referências a Kuraish (ances-
tral epônimo da tribo do Profeta), a Meca (lugar de peregrinação) e a Bagdá
(capital dos Abássidas) – mas nenhuma alusão a Himyar, a Kahtān nem sequer
ao Iêmen. No começo do século XIII, a genealogia de Hummay foi claramente
esvaziada de seu conteúdo berbere, para receber nova função: em vez de atestar
a origem himiarita, a genealogia oficial dos reis sēfuwa deveria, antes de mais
nada, provar a antiguidade de sua adesão ao islamismo. Por essa ocasião, o nome
de Sayf ben Dh Yazan se tornara um fóssil, despido de qualquer significação
9
.
Outras evidências confirmam que os reis sēfuwa quiseram fazer esquecer sua
verdadeira origem. Os cronistas do século XIII registram, por exemplo, sobre
Salmāma ben Abd Allāh (c. 1182 -1210), filho do bisneto de Hummay, que ele
era muito escuro”. Acrescentam que nenhum sulo nascera negro, do sultão Sayf
até ele, pois eram todos vermelhos como os árabes beduínos” (Dīwān, parágrafo
17). A informação refere -se, está claro, apenas à segunda dinastia. Mesmo assim,
poderíamos esperar nesse ponto alusão à origem berbere dos Sēfuwa; porém,
uma vez mais, os cronistas preferem omiti -la, invocando os árabes no lugar dos
berberes. Esse exemplo mostra claramente que, para os cronistas, a cor branca
tinha prestígio na medida em que estivesse associada à religião muçulmana. Em
outras palavras, era a religo que importava, não a cor da pele.
Uma passagem do texto de Ibn Sa‘d mostra que a lembrança da origem
estrangeira dos fuwa evanesceu -se rapidamente na conscncia popular.
Baseando -se no depoimento de Ibn Fātima, que visitara pessoalmente o Kanem,
Ibn Sa‘d escreve:
8 AL-YA‘KŪBĪ, 1937, p. 205.
9 Numa carta do Bornu, do nal do século XIV, Sayf ben Dh Yazan também é vinculado ao ancestral
epônimo da “tribo” do Profeta. Al-Kalkashand comenta: “Eles estão enganados, porque Sayf ben Dh
Yazan descendia dos Tubba do Iêmen, que são himiaritas”.
270
África do século  ao século 
F . Mapa da região do lago Chade (lago Kūr). (Mapa de D. Lange, reconstituído de extrato do mapa de Ibn Sa‘d, da primeira metade do século XIII.)
271
Reinos e povos do Chade
F . Mapa simplicado, extrdo do grande mapa de al -Idrs (1154) (segundo reconstituição de K. Miller). (Fonte: Yūsuf Kāmal, 1926 -1951, p. 867.)
272
África do século  ao século 
F . Mapa simplicado, extraído do “Pequeno Idrs” (1192) (segundo reconstituição de K. Miller). (Fonte: Miller, 1926 -1931, v. 1, p. 99.)
273
Reinos e povos do Chade
“O sultão do Kanem ( ... ) é Muhammadi ben Djabl, descendente de Sayf ben Dh
Yazan. A capital de seus ancestrais infiéis, antes de eles se converterem ao Islã, era
Mānān; desses antepassados, o seu quarto bisavô tornou -se muçulmano por influên-
cia de um jurisconsulto, após o que o Islã difundiu -se por todo o Kanem
10
Ora, Muhammad ben Djl era o nome pelo qual se fez conhecido no mundo
exterior o grande rei Dūnama Dbalām (c. 1210 -1248). Ibn Fātima estivera no
Kanem durante seu reinado, na primeira metade do século XIII. Vemos, então,
que nessa época os Sēfuwa eram considerados descendentes diretos dos Dūguwa
(reis da Dinastia Zaghāwa). a introdução do Islã, reduzida a uma pacífica
conversão”, e a mudança de capital ainda recordavam, no campo das tradições
populares, as transformações políticas da segunda metade do século XI.
Da continuidade das tradições dinásticas, também corroboradas pelo Dīwān,
pode -se inferir que o Kanem já fosse então um Estado fortemente estrutu-
rado, de sólida organização territorial. Aparentemente, a introdução do Islã e a
mudança dinástica não chegaram a ameaçar os fundamentos desse Estado, cujas
origens remontam, provavelmente, ao final do século VI
11
. A própria mudança
de capital que ocorreu ao mesmo tempo ou logo após o advento da nova
dinastia
12
não parece haver acarretado grandes consequências no tocante ao
desenvolvimento político. Tanto o Estado dos Zaghāwa como o dos Sēfuwa
tinham por centro uma capital permanente: Mānān abrigou os reis dūguwa
durante pelo menos um século, enquanto Djm foi a residência real sēfuwa por
três séculos. Foi somente ao findar o século XIV, quando os Sēfuwa viram -se
forçados a abandonar definitivamente o Kanem, que Djm perdeu seu estatuto
privilegiado, para tornar -se uma cidade como as demais
13
. Quanto à mudança
de capital ocorrida na segunda metade do século XI (ou no começo do XII), é
10 IBN SA‘ĪD, AL-MAGHRIBĪ (ed. J. V. Gines), 1958, p. 95; CUOQ, 1975, p. 209.
11 Vimos que a tradição citada por Ibn Sa‘d não merece grande conança. Al-Idrs, que escreve em meados
do século XII, menciona tanto Mānān quanto Djm. Segundo ele, Mānān seria “a residência do príncipe
e senhor do país” (dos Zaghāwa?) , enquanto de Djm, cidade menor, diz que pertencia ao Kanem.
Parece evidente que al-Idrs tentou combinar dados contemporâneos seus com informações relativas
ao período zaghāwa. Não é impossível, portanto, que nessa época Djm já fosse capital do Kanem.
12 Ver LANGE, 1977a, cap. 7.
13 Além de Djm e Mānān, as únicas cidades do Kanem citadas nas fontes externas o Tarāzaki (por
al-Muhallab) e Nay (por Ibn Sa‘d ). Mais tarde, Ibn Furtūwa, relatando as expedições guerreiras de Idrs
Alawōma (1564-1596), menciona grande número de localidades da região do lago Chade, entre as quais
Djm. Por outro lado, devemos notar que o Dīwān indica os lugares onde foram enterrados todos os reis do
Kanem-Bornu, desde o século XI. Alguns desses lugares talvez fossem cidades relativamente importantes: seria
o caso, em especial, de Zamtam (Dīwān, parágrafos 17 e 38), Nānigham (parágrafos 25 e 36) e Diskama
(parágrafo 20), das quais tudo o que sabemos, em termos de localização, é que se situavam a oeste do
lago. Em Djm, quatro reis foram enterrados, segundo o registro (parágrafos 19, 21, 28 e 29).
274
África do século  ao século 
importante notar que Djm se situava muito mais ao sul do que Mānān: nesse
deslocamento, poderíamos ver o início da crescente influência dos povos seden-
tários do Kanem, em detrimento dos seminômades do Sahel.
Se acompanhamos a política matrimonial dos primeiros reis sēfuwa, tal como
a delineiam as indicações do Dīwān, observamos que a desberberização da nova
dinastia tão perceptível no plano ideológico vai de par com o progressivo
aumento do peso político dos povos sedentários. Graças ao cuidado que os cro-
nistas tiveram, de anotar a origem étnica das rainhas -mães, podemos estabelecer
a seguinte lista: a mãe de Hummay (c. 1075 -1086) descendia dos Kay (Koyām);
a de Dūnama ben Hummay (c. 1086 -1140) era uma Tubu; a de Br ben Dūnama
(c. 1140 -1166) era uma Kay; a de Abd Allāh ben Br (c. 1166 -1182) pertencia aos
Tubu; a de Salmāma ben Abd Allāh (c. 1182 -1210) era uma Dabr; a de Dūnama
ben Salmāma (c. 1210 -1248) era uma Magomi (a linhagem real). Subsequente-
mente, todas as rainhas -mães parecem ter sido de origem magomi, exceto a e
de Ibrāhm ben Br (c. 1296 -1315), que foi uma Kunkuna.
Nota -se, assim, que não se mencionam os Tomaghra que deram duas
rainhas -mães no período dūguwa relacionados aos reis sēfuwa, o que talvez
seja indício de que tivessem perdido a posição de predominância ao ocorrer
a mudança dinástica da segunda metade do século XI. É certo, porém, que os
Tomaghra continuaram a desempenhar papel importante na região do Sudão
central, porque ainda hoje os encontramos no Tibesti e no Kawār (oásis de
Bilma), onde predominam sobre outros grupos tubu. Eles também são encon-
trados no Kanem e no Bornu, onde se assimilaram amplamente aos Kanembu
e aos Kanuri. Segundo tradições recolhidas no Bornu, deles teriam se originado
as dinastias do Munio e do Mandara
14
.
Contrariamente aos Tomaghra, os Kay são citados no contexto de ambas
as dinastias. Portanto, aparentemente seu estatuto político não foi afetado pela
queda dos Dūguwa. Observaremos, particularmente, que a mãe do fundador
da nova dinastia pertencia aos Kay. Hoje, os Kay conhecidos pelo nome de
Koyam – vivem ao norte do Bornu, perto de Komadugu Yobe. São sedentários;
contudo, o fato de continuarem a criar camelos em meio pouco favorável a essa
atividade já basta para atestar suas origens de nômades do norte.
Já os Tubu são mencionados no Dīwān apenas relacionados aos Sēfuwa. Tal
fato pode ser devido à natureza das informações registradas, porque os únicos
reinados dūguwa cuja história os cronistas relatam com certa precisão são os
14 NACHTIGAL, 1967, v. 2, p. 338.
275
Reinos e povos do Chade
posteriores a Ayūma (c. 987 -1007). Contudo, parece significativo que a mãe
de Dūnama ben Hummay portanto, a esposa principal de Hummay fosse
uma Tubu: é bem possível que os Tubu tenham contribuído para a queda dos
Dūguwa. Mas temos de admitir que a relação entre os Tubu do Dīwān e os
Zaghāwa mencionados nas fontes externas está longe de ser clara. Somente o
depoimento de Ibn Fātima, que data da primeira metade do século XIII e que
foi anotado por Ibn Sa‘d, permite distinguir nitidamente as duas entidades
étnicas: os Zaghāwa, mencionados juntamente com os Tadjūwa (Dadjo ), são
situados, de maneira vaga, entre o Kanem e a Núbia, enquanto os Tubu são
localizados, com muita precisão; nas paragens do Bahr al -Ghazāl
15
. alguns
grupos Tubu que ainda vivem nessa região a leste do Kanem. São chamados,
em seu conjunto, de Daza ou Gorhan. Os Tubu autênticos” vivem no Tibesti
e seus arredores. Esse maciço montanhoso é considerado, de modo geral, como o
terririo originário de todos os Tubu (tu -bu significariahabitantes da montanha”),
maso há certeza alguma a esse respeito
16
.
Dois outros grupos étnicos mencionados no Dīwān, os Dabir e os Kunkuna,
não existem mais. Pelas informações recolhidas por G. Nachtigal, os Dabr (ou
melhor, os Dibbri ) teriam sido Kanembu sedentários; depois de se fundirem
com nômades daza, teriam formado o grupo dos Kadawa, que ainda vive no
Kanem. H. Barth e G. Nachtigal consideram que também os Kunkuna teriam
sido um povo de Kanembu sedentários, mas nenhum desses historiadores con-
seguiu filiá -los a qualquer grupo étnico de nossos dias
17
.
Finalmente, os Magomi os cronistas escrevem M.gh.r.m. (Dīwān, pagrafos 17
e 18) constituíam a patrilinhagem dos reis
s
ēfuwa. Se acreditarmos nas indicações
do wān, a e de Dūnama Dbalāmi (c. 1210 -1248) seria filha de irmão de Abd
Allāh Bakarū (c. 1166 -1182). Nisso pode -se ver, ao que parece, o sinal da constitui-
ção de um grupo de linhagem que acaba constituindo o cleo do povo Kanuri.
Nada permite supor que os Magomi existissem antes do reinado dos Sēfuwa, e
sem dúvida seria um engano ver neles a força política que permitiu a Hummay
atingir o poder. Em compensação, é muito provável que eles compreendessem
efetivamente todos os descendentes dos reis sēfuwa (por via agnática), como
15 Os textos existentes do Kitāb al-Djughrāyā apresentam o nome dos Tubu deformado de diversas formas.
Ver MARQUART, 1913, p. LXXXIV, e também LANGE, 1977a, cap. 2, parágrafo 13, n. 2.
16 Sobre os Tubu em geral, ver CHAPELLE, 1957. Mas deve-se notar que o capítulo sobre a história dos
Tubu não merece muita conança, porque o autor se baseou excessivamente na compilação rápida e
supercial efetuada por URVOY, 1949.
17 Sobre os Dabr, ver NACHTIGAL, 1967, v. 2, p. 319-20.
276
África do século  ao século 
sugerem suas genealogias e os nomes de suas diferentes subdivisões
18
. Sendo essa
hipótese correta, os Magomi seriam o núcleo de um povo (os Kanuri), que se
constituiu gradualmente a partir de uma dinastia (a dos Sēfuwa); mas a própria
origem do Estado (do Kanem -Bornu) precederia a do povo que hoje forma seu
principal substrato.
Antes da formão do povo Kanuri, o poder dos reis do Kanem se apoiava sobre
diversos grupos étnicos. Esses grupos compreendiam mades e sedenrios; falavam
línguas nilo -saarianas (como os Tubu, Zaghāwa e Kanuri de nossos dias)
19
e tamm
línguas tcdias
20
. Em certos períodos, como no culo XIII, o poder dos reis do
Kanem deve ter igualmente afetado grupos de fala berbere; mas estes parecem
ter sido sempre culturalmente minoritários, se confrontados com os grupos nilo-
-saarianos
21
. A considerarmos verdadeiros os escassos indícios fornecidos pelo Dīwān,
poderemos pensar numa evolução em três etapas, a qual teria levado ao reforço da
base étnica dos reis sēfuwa.
Na primeira fase, que vai do advento de Hummay até meados do século XII,
dois grupos nômades – os Tubu e os Kay – parecem haver desempenhado papel
predominante. Na segunda, os Dabr e os Kunkuna e provavelmente outros
sedentários – substituíram os Tubu e os Kay na qualidade de principais aliados
dos Sēfuwa
22
. Foi depois dessa inversão de alianças que se afirmou numa
terceira fase a força política da linhagem real dos Magomi: era Magomi a mãe
de Dūnama Dbalāmi (c. 1210 -1248), assim como uma de suas esposas, a que
foi mãe de Kaday (c. 1248 -1277); outra de suas esposas, a mãe de Br (c. 1277-
-1296), talvez também fosse uma Magomi, mas os cronistas omitem sua origem
étnica. Em todo caso, o filho e sucessor de Br, Ibrāhm Nikāle (c. 1296 -1315),
era filho de uma Kunkuna. A partir daí o Dīwān para de indicar a origem étnica
das rainhas -mães: pode -se pensar que, no começo do século XIV, os Magomi
tenham ofuscado definitivamente os demais grupos sedentários do Kanem.
18 NACHTIGAL,1967, v. 2, p.418-9, menciona as seguintes subdivies: Magomi Umewa (descendentes de
Hummay), Magomi Tsilimwa (de Salma), Magomi Biriwa (de Br) e Magomi Dalawa(de ‘Abd Allāh ).
19 Os atuais Zaghāwa não mais se assemelham aos Zaghāwa mencionados pelos autores árabes anteriores
a Ibn Sa‘d, da mesma forma que os Kanuri não se assemelham a qualquer grupo nilo-saariano de antes
do século XIII. Apenas os Tubu preservaram sua identidade étnica e cultural desde aquela época, sem
sofrerem modicações maiores.
20 Entre estas últimas, contam atualmente o ngizim, o kotoko e as línguas hadjeray.
21 Barth atribui origem berbere aos Tomaghra, da mesma forma que considera como sobrevivência berbere
o papel predominante atribuído à rainha-mãe (ghumsa). Em contrapartida, salienta a falta de elementos
berberes no léxico kanuri.
22 Poderíamos ser tentados a explicar a mudança de capital por essa inversão de alianças; nesse caso, daríamos
razão a al-Idrs contra lbn Sa‘d (ver nota 11).
277
Reinos e povos do Chade
O fechamento da linhagem real sobre si mesma poderia explicar, por um lado,
o poderio do reino nos tempos de nama Dbalāmi (c. 1210 -1248) e de seus
sucessores imediatos. Por outro lado, também pode ter sido a causa – pelo menos
indireta – da longa guerra contra os Tubu, que começou durante seu reinado. Se
for verdade, como pensa H. Barth, que a segunda esposa de Dūnama (a mãe de
Br) provinha do grupo étnico conhecido como Lakmama
23
, poderemos atribuir a
formação de linhagens rivais, derivadas dos dois filhos de Dānama – Kaday (cuja
e era uma Magomi) e Br à luta de influências entre os grupos sedentários
do Kanem e a patrilinhagem dos Magomi
24
muito significativo, em todo
caso, que o período pacífico, marcado pelas sucessões de pai para filho, tenha
terminado justamente quando os reis sēfuwa deixaram de tomar estrangeiras
por esposas (principais), passando a escol-las entre mulheres de sua própria
patrilinhagem
25
.
O Kanem no seu apogeu
Não se pode explicar o desenvolvimento do Estado do Kanem se ele for visto
isolado do corcio transaariano. Certamente o foi por acaso que o maior Estado
do Sudão central se formou no terminal sul do grande eixo caravaneiro que passa
pelo Fezzān e pelossis do Kar. Provavelmente essa trilha fosse utilizada no
período romano: constituía a mais direta via de comunicação entre a região do lago
Chade e o Mediterrâneo. A leste, poderia eventualmente fazer -lhe concorncia
a rota que atravessava os oásis de Kufra, mas que era muito penosa ao tráfego; a
oeste, somente a trilha que passava por Takedda e, mais tarde, por Agadez.
A organização política
O Dīwān se omite quase completamente a respeito da organização política do
Kanem. Pode -se supor, porém, que, num primeiro período, que vai até o reinado
23 BARTH, 1965, v. 2, p. 584. Vimos que a esposa principal de Br – a mãe de Ibrāhim Nikāle – tampouco
era uma Magomi.
24 Os cronistas registram, a respeito do reinado de Dūnama Dbalāmi: “Em seu tempo, os lhos do sul-
tão dividiram-se em facções” (Dīwān, parágrafo 17). Esses conitos entre os lhos de Dūnama talvez
constituíssem o reexo, no plano dinástico, da oposição entre os Magomi e os demais grupos étnicos.
Essa oposição poderia, então, ser uma das causas da primeira sucessão colateral que ocorreu na história
da segunda dinastia do Kanem.
25 A primeira sucessão colateral também pode ser explicada pelo enfraquecimento da posição da esposa
principal, fato que, por sua vez, talvez tenha resultado da lenta “desberberização” dos Sēfuwa.
278
África do século  ao século 
de Dūnama Dbalāmi (c. 1210 -1248), os membros da família real ocupassem o
primeiro plano no aparato estatal.
Essa situação modifica -se no século XIII, quando os cronistas dão a enten-
der que o sultão entra em conflito com os próprios filhos (Dīwān, parágrafo
17). Mais tarde, Ibrāhim Nikāle manda executar o próprio filho (parágrafo 20).
Desses indícios, podemos inferir que, do século XIII em diante, os Sēfuwa afastaram
os familiares dos postos -chave do governo, vindo a apoiar -se em elementos estranhos
a seu sangue, eventualmente, em chefes locais. Os títulos de yerima (governador do
norte) e kayghamma (governador do sul) pertencem, com toda a probabilidade,
ao período do Bornu. Ambos parecem ter -se originado em regiões a oeste do
lago Chade. Yeri era o nome de uma província a noroeste de Komadugu Yobe,
e Kāgha, da área próxima à atual cidade de Maiduguri.
Sabemos, no que se refere a períodos mais recentes, que a rainha -mãe exercia
papel da maior importância no Bornu. Não é por acaso, portanto, que o Dīwān
registra a origem étnica das mães dos dez primeiros reis. E um detalhe
interessante a se destacar: o apoio do cda mãe do futuro sultão podia ser
determinante quando terminava um reinado. Mais tarde, a primeira esposa do
rei (a gumsu ou ghumsa) tornou -se mais importante que as outras esposas, e era
dentre seus filhos que o rei escolhia o herdeiro do trono (o shiroma).
Não dispomos de informações precisas sobre a administração territorial,
porém sabemos que, ao encerrar -se o século XV, a autoridade dos Sēfuwa era
reconhecida por doze reinos tributários
26
. A administração direta, por sua vez,
exercia -se sobre um território mais restrito e, provavelmente, estava a cargo
dos escravos da casa do rei.
Quanto à força militar, os textos fazem supor que o rei tivesse um exército
permanente: eles distinguem o djūnūd, combatente convocado para uma cam-
panha, do asākīr, soldado profissional.
A justiça provavelmente pertencia ao rei, da mesma forma que na corte do
mansa do Mali, a despeito da conversão dos soberanos ao Islã. Isso não exclui
que em certas épocas se tenha tentado estabelecer uma jurisdição com base na
sharī‘a (lei canônica do Islã), como aconteceu sob o reinado de Idrs Alawōma
27
.
Direta ou indiretamente, quase todos os Estados da rego foram influenciados
pelo Kanem -Bornu, cuja organização política inspirou tanto os Haussa quanto os
Kotoko e os Bagirmi.
26 Ver AL-MAKRĪZĪ, 1979.
27 Ver IBN FURTŪWA, 1932.
279
Reinos e povos do Chade
O comércio e as trocas
Situado a nordeste do lago Chade, o Kanem forçosamente tenderia a con-
trolar a região a oeste do lago onde mais tarde se formaria o Bornu –, para
garantir o domínio sobre as rotas de comércio do Kawār em direção ao sul.
Mas, como o Kawār também era acessível a partir do Air (Takedda, depois
Agadez), a conquista dessa importante etapa nas rotas comerciais acabaria por
se converter num objetivo primordial tanto para os reis do Kanem quanto para
os do Bornu. O domínio do Kawār revestia -se de importância ainda maior do
que poderia sugerir sua posição estratégica no comércio transaariano; com efeito,
as riquíssimas salinas de Bilma e Aghram (Fachi ) forneciam a seus senhores
rendimentos consideráveis, graças à maciça exportação de sal para os países do
Sahel. Nenhuma outra salina do Saara central tinha valor econômico compa-
rável. É preciso salientar, porém, que não dispomos de qualquer referência que
permita estabelecer exatamente quando começou a exploração do sal no Kawār.
Talvez os autores do Dīwān estejam se referindo a uma primeira conquista das
salinas do Kawār pelos reis do Kanem, quando contam que Arku (c. 1023 -1067)
instalou colônias de escravos em Dirku e Siggedim mas isso não pode ser
afirmado com certeza
28
.
Na primeira metade do culo XII, os habitantes do Kawār mantinham -se inde-
pendentes dos poderosos vizinhos do norte e do sul. Al -Idrs atesta a exisncia,
ali, de numerosas cidadezinhas habitadas por comerciantes e por trabalhadores das
salinas. Os chefes dessas comunidades eram berberes (Tuwārik ou tuaregues) que usa-
vam o lithām. Segundo al -Idrs, a principal ocupação dos habitantes do Kawār
consistia em extrair e comercializar o alume (utilizado em tinturaria e para curtir
couros), que transportavam até o Egito, a leste, e até Wargla, a oeste
29
. Esse
quadro deve -se indubitavelmente à vio ernea de observador estrangeiro; pois,
se o comércio do sal com os países da zona do Sahel era ativo nessa época, sem
dúvida devia superar de longe o volume das exportações de alume dirigidas
para as cidades da África setentrional. Por outro lado, é preciso observar que
al -Idrs sequer menciona o grande comércio transaariano, que tinha no Kawār
a única etapa de pouso entre o Fezzān e a região do lago Chade. Seu silêncio a
esse respeito talvez seja indicativo da importância respectiva desses dois tipos
de atividade comercial: o comércio regional, então florescente, provavelmente
28 Em estudo recente, FUCHS, 1974, forneceu indicações precisas sobre os enormes lucros obtidos pelos
tuaregues do Air, que atualmente se encarregam de transportar o sal de Bilma e Fachi para os países do
Sahel.
29 AL-IDRĪSĪ, 1866.
280
África do século  ao século 
não fosse muito inferior pelo menos em volume, senão em valor ao grande
comércio internacional.
Para o comércio de longa distância, o grupo de oásis do Fezzān era mais
importante que o Kawār: situando -se na intersecção de duas das maiores vias
comerciais da África ocidental, seu controle permitia governar tanto as tro-
cas norte–sul (Ifrkiya/Trípoli –Kanem -Bornu) quanto o comércio leste -oeste
(Egito–Gana/Mali/Songhai). O Kanem não dispunha de rota alternativa para
suas trocas de longa distância com os países do Mediterrâneo (exceto com os
do extremo Magreb): a maior parte das mercadorias que importava e exportava
devia passar por ali. Somente os negociantes que comerciavam com o Magreb
podiam evitar o Fezzãn, se tomassem a rota extremamente difícil que passa
por Djādjā e pelo Tassili. Assim, a segurança no eixo caravaneiro norte –sul e o
Controle das etapas de pouso tinham necessariamente de estar entre os objetivos
primordiais dos reis do Kanem -Bornu.
Que mercadorias o Kanem trocava com o norte? As fontes disponíveis dão
escassas informações a esse respeito; mas podemos supor que o elenco de mer-
cadorias não tenha variado muito entre os primórdios da época muçulmana
e o século XIX: provavelmente o tráfico de escravos tenha tido sempre papel
de destaque nesse comércio. A informação mais antiga acerca disso deve -se a
al -Ya‘kūb, que registra terem os comerciantes berberes do Kawār levado nume-
rosos escravos negros a Zawla, capital do Fezzān
30
. Esses escravos, sem dúvida,
vinham do Kanem. Leão, o Africano, ao iniciar -se o século XVI, fornece -nos
informações mais precisas sobre os comerciantes da África setentrional que,
nessa época, iam até o Bornu para adquirir escravos em troca de cavalos: eram
frequentemente obrigados a esperar um ano inteiro, até que o rei reunisse número
suficiente de cativos
31
. Aparentemente, as incursões efetuadas pelo rei contra os
povos não muçulmanos ao sul do Bornu, com o objetivo de capturar escravos,
não conseguiam satisfazer a intensa demanda. Quando o reino se enfraquecia, os
próprios habitantes do Kanem -Bornu viam -se ameaçados de escravização pelos
inimigos externos, embora desde o século XIII a maior parte deles também fosse
muçulmana. No final do século XIV, Br ben Idrs (c. 1389 -1421) queixou -se,
em carta dirigida ao sultão Baybars do Egito, dos árabes que reduziam os seus
súditos muçulmanos ao cativeiro
32
. Sabemos, graças a D. Girard, que no século
30 AL-YA‘KŪBĪ, 1937, p. 205.
31 LEÃO, o AFRICANO, 1956, v. 2, p. 480.
32 AL-KALKASHAND, in CUOQ, 1975, p. 40.
281
Reinos e povos do Chade
XVII certos habitantes do Bornu padeciam a mesma sorte, em consequência
de ataques tuaregues
33
.
Além dos escravos, as caravanas que se destinavam ao Fezzān e aos centros
mediterrânicos também transportavam alguns produtos exóticos, como presas
de elefantes, penas de avestruz e até animais vivos
34
. Mas, para avaliarmos a
verdadeira importância do tráfico de escravos, é fundamental situá -lo frente ao
conjunto das atividades de produção. Sob esse aspecto, não dúvida de que o
Kanem -Bornu devia sua prosperidade à agricultura em expansão, à criação de
animais e às minas de sal, mais que aos rendimentos proporcionados pelo comér-
cio de escravos. Também se deve destacar o papel importante que cabia ao arte-
sanato, cuja produção era em parte exportada para os países vizinhos. No século
XIV, Ibn Battūta registra que, além de escravos, o Bornu igualmente exportava
roupas bordadas
35
. Não esqueçamos, além do mais, que, segundo al -Idrs (século
XII), o alume do Kawār era muito cotado na África setentrional
36
.
As importações consistiam principalmente em cavalos, que eram procurados
em função de seu valor militar. Os cronistas afirmam que a cavalaria de Dūnama
Dbalāmi (c. 1210 -1248) compunha -se de 41 mil animais (Dīwān; parágrafo
17). Al -Makrz fornece informação interessante: os cavalos do Kanem eram
especialmente pequenos o que pode ser indício de criação autóctone desde
tempos antigos
37
.
Do norte também se importavam produtos manufaturados, como roupas e
tecidos, além de armas de ferro. Ibn Sa‘d observa, de passagem, que nos tempos
de Dūnama Dbalāmi o Kanem importava vestimentas da capital tunisiana
38
.
Anteriormente, al -Muhallab havia observado que o rei dos Zaghāwa usava
roupas de lã e seda provenientes de Sousse. No século XIV, a tecelagem local já
se desenvolvera o bastante para que os habitantes do Kanem utilizassem faixas
de algodão como medida de valor nas trocas comerciais
39
.
Por outro lado, pode -se supor que entre as mercadorias vendidas ao Sudão
central também estivesse o cobre. Sabemos que no século XIV esse metal era
33 Ver LA RONCIÈRE, 1919. A propósito da escravidão e do tráco de escravos no Sudão central, ver
FISHER, A. G. B. & FISHER, H. J., 1970.
34 Sabemos, graças a IBN KHALDŪN, 1852-1856, v. 2, p. 346-7, que em 1268 o soberano de Kanem e senhor
de Bornu enviara ao sultão haféssida al-Mustansir uma girafa, que provocou grande emoção em Túnis”.
35 IBN BATTŪTA, 1853-1859, v. 4, p. 441-2.
36 AL-IDRĪSĪ, 1866, p. 39.
37 AL-MAKRĪZĪ, in HAMAKER, 1820, p. 206.
38 IBN SA‘ĪD, AL MAGHRIBĪ (ed. J. V. Gines), 1958, p. 95.
39 AL-‘UMARĪ, 1927, p. 45.
282
África do século  ao século 
extraído, provavelmente em quantidades pequenas, de minas situadas na região
de Takedda
40
. Nessa época, provavelmente se começara a explorar as jazidas
de estanho do planalto nigeriano. Pétis de la Croix nos informa que, no fim do
século XVII, o estanho era uma das mercadorias que o Bornu vendia a Trípoli
41
.
Ora, o cobre e o estanho (assim como o zinco) são indispensáveis na fabricação
do bronze, e sabe -se que existia uma admirável arte do bronze em Benin e Nupe,
antes mesmo de chegarem os portugueses à costa atlântica.
O volume de trocas norte -sul dependia muito da segurança existente no grande
eixo caravaneiro do Saara central. Na primeira metade do século XII, a segu-
rança da circulação estava a cargo de três diferentes poderes: ao norte, do reino
do Fezzān, dominado desde o começo do século X pela dinastia berbere dos
Banū Khatāb; ao centro, dos chefes berberes do Kawār; ao sul, do Kanem. Assim,
quando o chefe guerreiro mameluco Sharf al -Din Karākūsh conquistou o
Fezn, em 1172 -1173, submetendo o país a ferro e fogo, o antigo equilíbrio
viu -se perigosamente ameaçado
42
. O vazio político criado pela queda dos
Banū Khatāb foaria, mais cedo ou mais tarde, os reis do Kanem a intervir
no Fezzān.
Com efeito, no século XIII Ibn Sa‘d cujos registros sobre o Kanem se
referem ao reinado de Dūnama Dbalāmi (c. 1210 -1248) – observa que o rei do
Kanem dominava o Kawār e o Fezzān
43
. A expansão do Kanem para o norte é
confirmada por al -‘Umar, que escreve em meados do século XIV:
O império [do Kanem] começa ao lado do Egito, numa cidade que se chama Zelia
[a nordeste do Fezzān], e termina, no sentido da largura, numa cidade de nome
Kākā
44
; a distância entre elas é de três meses
45
.
O poderio do Kanem nessa época é também atestado pelo viajante al -Tidjān,
que conta que em 1258 -1259 “emissários” do rei do Kanem conseguiram matar
um dos filhos de Karākūsh, que invadira o Waddān, região situada ao norte do
Fezzān
46
.
40 IBN BATTŪTA, 1853-1859, v. 4, p. 441.
41 Bibliothèque Nationale, Paris, manuscrito 7488 das novas aquisições. (Doravante referido como B. N.,
Paris, Ms. 7488 das n. aq.)
42 AL-TIDJĀNĪ, 1958; 1852 e 1853.
43 IBN SA‘ĪD, AL MAGHRIBĪ, 1970, p. 114-5 e 127.
44 Segundo AL-KALKASHANDĪ, 1913-1919, v. 5, p. 281, Kākā era o nome da capital do Bornu. Kākā
é, provavelmente, a mesma Djādjā de Ibn Sa‘d (ver notas 69 e 79).
45 AL-‘UMAR, 1927, p. 43.
46 AL-TIDJĀNĪ, 1958, p. 111.
283
Reinos e povos do Chade
Mas, para controlar de maneira efetiva todo o corcio entre o Suo central e
a África setentrional, era necesrio garantir que as trocas não fossem desviadas para
rotas secundárias. Assim, Ibn Sa‘d afirma que o rei do Kanem controlava, a oeste,
a cidade de Takedda (no texto, Tadmekka)
47
e que sua autoridade era reconhecida, a
leste, até pelos Tadwa (Dadjo ) e pelos Zaghāwa. O rei do Kanem também domi-
nava o reino de Ddjā, a noroeste do lago Chade, e os berberes do sul (tuaregues)
48
.
Seria imprudente, porém, afirmar que no culo XIII o Kanem fosse um vasto
imrio dotado de sólida organização territorial. Em particular, o dispomos de
nenhuma informação que permita determinar qual era a natureza do poder que o
Kanem exercia sobre o Fezzān: o may Al, cujo mulo ainda se pode ver em Traghen,
era na verdade o rei Idrs ben Al(c. 1677 -1696), que morreu no Fezn durante
uma peregrinação, e não, como se pensou anteriormente, um antigo governador”
ou “vice -rei” representante do rei do Kanem
49
. Por outro lado, o se tem como
totalmente certo que o Kanem dominasse, a leste, até os arredores do Darfūr. O
próprio Ibn Sa‘d informa que os Tubu do Bahr al -Ghazāl o muito longe de
Djmconstituíam um povo independente
50
. Aparentemente, Dūnama Dbami
o conseguira submetê -los, a despeito da longa guerra de sete anos, sete meses e
sete dias de que fala Ibn Furtūwa
51
. Os povos que viviam ao redor do lago Chade e
nas ilhas lacustres também continuaram a defender com sucesso sua indepenncia.
Com base nos relatos de Ibn Fátima, Ibn Sa‘d afirma que o lago Kūr[Chade] está
cercado de sudaneses insubmissos e infis, que comem carne humana
52
. Ao norte
do lago, ele situa os Bad (Bedde?) que, segundo al -Makrz, estavam organizados
em um reino
53
; ao sul, os Ankazar (que seriam os Kotoko?); a noroeste, os Djāb; e
a sudeste, na embocadura – do Bahr al -Ghazāl, os Küri (hoje instalados nas ilhas).
Além disso, havia, à beira do lago, um lugar chamado dar al -sināa (que significa
arsenal” ou, etimologicamente, manufatura”), a cujo respeito Ibn Sa‘d conta:
47 Ver, sobre os problemas suscitados por essa identicação, BUCAILLE, 1975.
48 IBN SA‘ĪD, 1970, p. 94-5.
49 B. N., Paris, Ms. 7488 das n. aq.
50 Ibn Sa‘d arma que os Tubu eram um povo negro e inel. De acordo com informações coletadas por
NACHTIGAL, 1967, v. 3, p. 210, os grupos Tubu do Bahr al-Ghazāl teriam sido os primeiros a se
converter ao Islã.
51 IBN FURŪWA, 1932, p. 123-4.
52 IBN SA‘ĪD, 1970, p. 94.
53 AL-MAKRĪZĪ, 1979.
284
África do século  ao século 
É dali, na maior parte das vezes, que o sultão parte em campanha com sua frota
contra os países infiéis, situados às margens do lago, para atacar suas embarcações,
matando -os e fazendo cativos
54
.
Al -Makrz, também baseado em fonte do século XIII, menciona os nomes de
vários povos pagãos que viviam nas proximidades do Kanem. Entre eles, podemos
identificar os Bedde (?) os Afnu (nome dos Haussa em língua kanuri) e os Kotoko
(no texto, Kan.)
55
. O mesmo autor nota que, por volta de 1252 -1253, o rei do
Kanem, vindo de Djm, fez uma incursão contra os Kālkn, subgrupo dos Mabna
(os Mabba do Wadday?), sem dúvida, com a finalidade de obter cativos
56
.
Parece plausível deduzir dessas informações que a expansão do Kanem se
limitasse à região setentrional. No sul, as relações com os povos não muçul-
manos aparentemente não se haviam modificado, o que não deve causar estra-
nheza, porque a prosperidade do reino ou, pelo menos, a do rei dependia
mais imediatamente dos rendimentos oriundos do comércio transaariano que
do aumento da produção agrícola ou pastoril. Ora, os escravos constituíam a
principal “mercadoria que se podia trocar pelos produtos importados do norte
e eram obtidos através de incursões dirigidas contra os povos não muçulmanos
do sul. Os reis do Kanem, por conseguinte, não tinham interesse em facilitar a
expansão do Islã além de certos limites.
No próprio Kanem, o Islã não deitara raízes profundas antes do século XIII.
Escrevendo no século XV, al -Makrz considera Dūnama Dbalāmi o primeiro
rei muçulmano do Kanem o que, seguramente, é falso. O Dīwān contém
informações provando que todos os Sēfuwa eram muçulmanos. A acreditarmos
nos cronistas, o segundo rei dos Sēfuwa, Dūnama ben Hummay (c. 1086 -1140),
teria até mesmo feito duas vezes a peregrinação a Meca, morrendo durante
a terceira; o próprio Hummay, fundador da dinastia dos fuwa, faleceu no
Egito, informação que se for exata poderia sugerir que também ele estava
em peregrinação (Dīwān, parágrafos 12 e 13). Além disso, é importante recor-
darmos que, desde o reinado de Br ben Dūnama (c. 1140 -1166), as esposas
principais dos reis eram muçulmanas, a julgar por seus nomes ou pelos de seus
pais –, indicados no Dīwān. Mas, provavelmente, foi a partir do reinado de
Dūnama Dbalāmi (c. 1210 -1248) que o Islã em sua forma ortodoxa penetrou
profundamente nas camadas populares.
54 IBN SA‘ĪD, 1970, p. 94-5.
55 As forticações das cidades kotoko podem datar do século XIII ocasião em que tais aglomerações
teriam sido cercadas de muralhas, para poderem resistir às incursões do Kanem.
56 AL-MAKRĪZĪ, 1979.
285
Reinos e povos do Chade
Das fontes internas e externas pode -se deduzir que Dūnama Dbalāmi foi um
grande reformador muçulmano. Os autores do wān que omitem as peregrina-
ções de dois reis do século XIV – e Ibn Furtūwa censuram -no por haver destru-
ído um objeto sagrado, de nome mune. Com toda a probabilidade, tratava -se do
elemento central de um culto régio, herdado da época p -islâmica. Ibn Furtūwa,
embora ele próprio tenha sido imã (no século XVI), viu nesse ato sacrílego a
causa de numerosos distúrbios; atribuiu -lhe, em particular, a responsabilidade
pelo início da longa guerra contra os Tubu
57
. É provável que também tenha sido
Dūnama Dbalāmi quem fundou uma madraça no Cairo, destinada aos súditos
do Kanem
58
. Ibn Sa‘d registra que ele ficoucélebre pela guerra santa e por suas
ões louváveis”, e acrescenta que se rodeou de jurisconsultos muçulmanos. Ele
forçou alguns povos do Sudão central, especialmente certos grupos berberes, a se
converterem ao Islã
59
. Assim se vê claramente que, na primeira metade do século
XIII, a difusão do Islã andava de par com a expansão territorial.
Dūnama Dbalāmi morreu por volta de 1248 e foi enterrado em Zantam,
cidade situada a oeste do lago Chade.o dispomos de nenhuma fonte compa-
rável ao Kitāb al -Djughrāfiyā, de Ibn Sa‘d, para nos informar sobre a extensão
do Kanem e a expansão do Islã no período seguinte. O Dīwān registra, sob o
reinado de Br ben Dūnama (c. 1277 -1296), a visita ao Kanem de dois xeques
dos “Fellata (Fulbe) do Mali, mas sequer menciona as peregrinações de Ibrāhm
ben Br (c. 1296 -1315) e Idrs ben Ibrāhm (c. 1342 -1366)
60
.
Escrevendo em meados do século XIV, al -‘Umar também fornece poucos
dados precisos. Segundo ele, o Kanem era um império muito fraco, de recursos
escassos e tropas pouco numerosas. Em compensação, a religiosidade de seus
habitantes devia ser notável, pois ele afirma: A justiça reina em seu país; seguem
o rito do imã Mālik. Nada usam de supérfluo nas roupas e têm ardente”
61
.
Se al -‘Umar merece crédito, nessa época o Kanem ainda dominava o Fezzān.
Takedda, em compensação, sem dúvida tinha um sultão independente
62
. Foi
certamente em consequência dos conflitos dinásticos que eclodiram na segunda
metade do século XIV que o Kanem precisou dividir o controle sobre a rota das
57 IBN FURTŪWA, 1932, p. 123-4.
58 AL-‘UMARĪ, 1927, p. 46. A mudança foi fundada entre 620 e 630 da Hégira (1242 e 1252 da era
cristã).
59 IBN SA‘ĪD, 1970, p. 95-6.
60 Em sua carta ao sultão do Egito, Br ben Idrs refere-se a eles pelo título de al-Hadjdj (o que fez a
peregrinação a Meca). Ver AL-KALKASHANDĪ, 1931-1919, v. 8 ,p. 117.
61 AL-‘UMARĪ, 1927, p. 43.
62
IBN BATT
ŪTA
,
1853-1859,
v.
4,
p.
441-2.
286
África do século  ao século 
caravanas do Saara central, que até então exercera com exclusividade. Quando,
no final do século XIV, os Bulāla conseguiram conquistar o Kanem e romper
o monopólio do comércio com a África setentrional, os Sēfuwa entraram no
período mais negro de sua história.
Do Kanem ao Bornu
O mais tardar no culo XII, diversos povos do Kanem começaram a
deslocar -se rumo a oeste, para se instalarem no Bornu, a oeste do lago Chade.
Entre os primeiros imigrantes que assim chegaram ao Bornu deviam estar os
Tomaghra, os Tūra, os Kay (Koyam) e os Ngalma Dukko. Os grupos Magomi
mais antigos também devem ter se originado no Kanem, enquanto os que se
constituíram depois do final do século XIV existiam no Bornu. Na segunda
metade do século XVI, depois das expedições vitoriosas de Idrs Alawōma, foi a
vez de um grande número de Tubu e árabes deixarem o Kanem, para ocupar as
terras mais férteis e bem protegidas a oeste do lago Chade. Essa corrente migra-
tória, que, no caso dos seminômades, provavelmente acompanhou a expansão
política, somente se encerrou no início do período colonial
63
.
A oeste do lago Chade, os grupos oriundos do Kanem encontraram diversos
povos sedentários que falavam línguas tchádias. Seguindo o uso das tradições
kanuri, podemos aplicar -lhes o nome coletivo de Sao (So). Esta denominação
não aparece em Ibn Sa‘d nem em al -Makrz. Mas os cronistas registram que
quatro reis sēfuwa morreram, em meados do século XIV, lutando contra os Sao
(Diwān, parágrafos 22 -25). Dois deles foram mortos em Ghaliwa, localidade
que talvez se possa identificar como sendo a atual cidade de Ngala, ao sul do
lago
64
. Ngala tem hoje população Kotoko, mas, segundo tradições orais reco-
lhidas no século XIX, teria sido habitada por Sao em tempos mais remotos
65
.
Nas fontes escritas, os Sao reaparecem na primeira metade do século XVI nos
escritos de Leão, o Africano, que os situa a oeste do lago Chade e ao sul do
Bornu
66
. Meio século mais tarde, Ibn Furtūwa aplica o nome Sao a dois grupos
étnicos: os Ghafatā, que viviam ao longo do Komadugu Yobe, e os Tatāla, da
63 NACHTIGAL, 1967, v. 2, p. 415-47, fornece numerosas informações sobre o povoamento do Bornu.
64 Os últimos cronistas referem-se a essa cidade pelo nome de Ghala (Dīwān, parágrafo 66).
65 NACHTIGAL, 1967, v. 2, p. 426-7, registra em Ngala a existência de enorme mausoléu, com os túmulos
de 45 reis kotoko. Ele supõe se tratar do número de soberanos que reinaram em Ngala depois que os
Kotoko substituíram os Sao.
66 LEÃO, o AFRICANO, 1956, v. 1, p. 5 e 53; v. 2, p. 480.
287
Reinos e povos do Chade
margem ocidental do lago Chade. Idrs Alawōma (1564 -1596) desferiu uma
série de ataques extremamente violentos contra esses dois povos, forçando os
sobreviventes a abandonar suas moradas ancestrais
67
. Alguns se refugiaram nas
ilhas do lago. Ora, em 1582 o geógrafo italiano G. L. Anania aplica ao lago
Chade justamente o nome de “Sauo”
68
. Hoje, Sao (ou So) é o nome pelo qual os
Kanuri designam os povos que os precederam – seja no Kanem, no Bornu ou no
Kawār –, mas a respeito dos quais não se tem nenhuma informação precisa.
É difícil determinar a natureza das relações que existiam entre o Kanem e o
Bornu antes do fim do século XIV. Uma coisa é certa: entre o começo do século
XIII e o final do XIV, o Bornu cresceu em importância, em comparação com o
Kanem. Ibn Sa‘d menciona um reino a oeste do lago Chade, mas cita apenas
a capital, Djādjã
69
. Sua situação geográfica, porém, faz pensar que se tratasse do
Bornu. Diz o autor:
A cidade de Djādjã é a residência [kursī] de um reino distinto, que domina cidades
e terras. Atualmente, pertence ao sultão do Kanem
70
.
Há fortes razões, portanto, para supormos que antes do século XIII o Bornu
constituísse um reino independente. Al -Makrz que teve acesso a um texto,
hoje desaparecido, de Ibn Sa‘d – emprega o mesmo termo ambíguo kursī, mas
usa -o tanto para o Kanem como para o Bornu. Segundo ele, Ibrāhm ben Br
(c. 1296 -1315) possuía o trono (kursī) do Kanem e o trono (kursī do Bornu
71
. Ibn
Khaldūn menciona, a propósito do ano 1268, o soberano do Kanem e senhor do
Bornu
72
. Ibn Battūta, que esteve em Takedda – ao sul do Air –, em 1353, sabia
de um rei sēfuwa do Bornu, mas a distância que indica para se chegar à capital
localiza -a a leste do lago Chade, no Kanem
73
. Poderemos conciliar essas dife-
rentes informações se admitirmos que o Kanem e o Bornu eram inicialmente
dois reinos distintos, que desde o século XIII estariam sob a dominação de uma
única dinastia, a dos Sēfuwa.
Contudo, em meados do século XIV al -Umar afirma que os sules
mamelucos do Egito trocavam cartas tanto com o rei do Kanem quanto com
67 IBN FURTŪWA, 1926, p. 63-9.
68 Ver LANGE e BERTHOUD, 1972, p. 350-1
69 A mesma cidade que al-‘Umar chamou de Kākā. Ver AL-‘UMARĪ, 1927, p. 43.
70 IBN SA‘ĪD, AL MAGHRIBĪ, 1970, p. 94. Ibn Sa‘d fala do Kawār em termos quase idênticos, mas
nesse caso a existência de chefarias mais antigas é conrmada por AL-IDRĪSĪ, 1866, p. 114.
71 AL-MAKRĪZĪ, in HAMAKER, 1820, p. 207.
72 IBN KHALDŪN, 1925-1926, 1956-1959, v. 2, p. 346-7.
73 IBN BATTŪTA, 1853-1859, v. 4, p. 441-2.
288
África do século  ao século 
F . Mapa dos povos e reinos do Chade no século XIV. (D. Lange.)
289
Reinos e povos do Chade
o do Bornu
74
. Aparentemente, podemos deduzir dessa informação que o Bornu
conservara alguma autonomia, apesar da suserania dos reis do Kanem, e que
a antiga dinastia continuava a desempenhar papel importante naquele reino.
Quando o poder dos Sēfuwa se enfraquecia, a autoridade dos reis locais se
fortalecia, para reduzir -se quando se fortaleciam os seus suseranos. O substrato
étnico, porém, devia ser o mesmo nos dois Estados: senão, como Ibn Battūta
teria usado o nome “Bornu” para designar o império dos Sēfuwa?
Essa situação deveria modificar -se por volta do final do século XIV, quando,
em consequência de ataques desferidos pelos Bulāla e pelos árabes, os Sēfuwa
foram forçados a abandonar o Kanem, para se instalarem definitivamente no
Bornu (ver figura 10.4). Os Bulāla eram um povo de pastores que, ao que tudo
indica, estavam estabelecidos na região do lago Fitri onde hoje vivem –,
antes de iniciarem suas incursões no Kanem
75
. Em seu território eles dominavam
os Kuke, povo que falava uma língua aparentada ao sara. Talvez sua ofensiva
contra o Kanem esteja relacionada à migração de algumas tribos árabes rumo ao
oeste, posterior ao desmembramento do reino cristão da Núbia (no começo do
século XIV). No final do século XVI, havia árabes entre os aliados dos Bulāla,
segundo Ibn Furtūwa. Já no fim do século XIV um dos reis sēfuwa morrera em
combate contra os árabes.
Parece que a razão imediata para a intervenção dos Bulāla no Kanem foi a
debilitação do reino dosfuwa, causada pelo conflito dinástico que opôs Dāwūd
ben Ibrāhm Nikāle (c. 1366 -1376) aos filhos do irmão e predecessor, Idrs. O
próprio Dāwūd foi morto pelo rei bulāla Abd al -Djall. Seus três sucessores mor-
reram todos em combate com os Bulāla. O quarto rei depois de Dāwūd, ‘Umar ben
Idrs (c. 1382 -1387), acabou tendo de deixar Djm e, ao que parece, também o
reino inteiro do Kanem (wān, parágrafos 27 -31). Segundo uma carta do irmão
Br ben Idrs, ele foi morto por árabes Djudhām (que devem ser os Djuhayna do
texto)
76
. Mais dois reis sēfuwa ainda deviam morrer em batalha contra os Bulāla
até que, no longo reinado de Br ben Idrs (c. 1389 -1421), fosse possível afastar
a ameaça que esses temíveis inimigos faziam pairar sobre o Império dos Sēfuwa.
74 AL-‘UMARĪ, 1894, p. 27 et seqs.
75 IBN FURTŪWA, 1932, p. 4-5. Segundo BARTH, 1965, v. 2, p. 545, 586, os Bulāla descenderiam de
um certo Djl Shikomēni, que por sua vez seria lho de Dūnama Dbalāmi; mas o mais provável é que
não existisse nenhum parentesco entre os Bulāla e os Sēfuwa (NACHTIGAL, 1967, v. 3, p. 38-9).
76 O nome Djudhām cra em desuso no culo XIV (Encyclodie de l’lslam, v. 1, p. 1090-1). Os
Djuhayna, em compensão, tiveram papel importante no desmembramento do reino cristão da
bia. Posteriormente, seguiram nas direções sul e oeste. Ver MAcMICHAEL, 1922, v. 2, p. 187
et seqs.
290
África do século  ao século 
Tais acontecimentos o passaram despercebidos aos demais países mulmanos.
Al -Makrz assim os resume:
Por volta do ano 700 [a Hégira, isto é, c. 1300 da era cristã], era seu rei al -Hadjdj
Ibrāhm, descendente de Sayf ben Dh Yazan; ele ocupava os tronos do Kanem e do
Bornu. Depois dele reinou o filho al -Hadjdj Idrs, depois o irmão deste, Dāwūd ben
Ibrāhm, depois ‘Umar, filho de seu irmão al -Hadjdj Idrs; finalmente, seu irmão,
‘Uthmān ben Idrs
77
, que reinou pouco antes do ano 800 [+ 1397 -1398]. Mas o povo
do Kanem revoltou -se contra eles [os reis] e renegou sua fé. Já o Bornu permaneceu
em seu império. Seus habitantes são muçulmanos e travam a guerra santa contra o
povo do Kanem. Eles têm doze reinos
78
.
O relato de al -Makrz poderia fazer supor que os Bulāla não fossem
muçulmanos – mais isso não é confirmado pelo Dīwān, nem por Ibn Furtūwa.
Merece maior crédito a parte que se refere ao novo Império dos Sēfuwa. O
Bornu constituiu seu centro, e numerosos chefes locais parecem haver -se
submetido a ele. tornou -se a nova capital
79
. Ao que tudo indica, Br
(‘Uthmān) ben Idrs dispunha de foas suficientes para levar a guerra ao
terririo inimigo.
Os Bulāla, por sua vez, fundaram um poderoso reino no Kanem. Sabemos,
graças a Ibn Furtūwa, que tinham os Tubu e os árabes como aliados. Leão, o
Africano, conheceu seu reino pelo nome de “Gaoga”, certamente derivado de
Kuka
80
. De acordo com suas informações, o Kanem era mais extenso e poderoso
que o Bornu; seu rei mantinha excelentes relações com o sultão do Egito
81
. Essa
descrição não pode referir -se ao começo do século XVI – quando Leão, o Afri-
cano, pretende ter visitado os reinos do Sahel
82
–, mas bem poderia corresponder
à situação do final do século XV, como lhe foi descrita por comerciantes da
77 No Dīwān, seu nome é Br ben Idrs (parágrafo 34).
78 AL-MAKRĪZĪ, manuscrito 1744 da Bibliothèque Nationale de Paris. As traduções anteriores dessa
passagem tiveram como base um texto falho (HAMAKER, 1820, p. 207).
79 AL-KALKASHANDĪ, 1913-1919, v. 5, p. 281. Kākā também é mencionada por al-‘Umar e pode ser
a mesma cidade que a Djādjā de Ibn Sa‘d e a Kāgha do Dīwān (parágrafo 31) (ver notas 44 e 69).
80 Trata-se de um grupo étnico, e não da cidade de Gao ou Gao-Gao, cujo nome é muitas vezes grafado
Kaw-Kaw.
81 LEÃO, o AFRICANO, 1956, v. 1, p. 10; v. 2, p. 479-83.
82 Os numerosos erros contidos em sua “descrição” dos reinos do Sudão excluem a possibilidade de que
Leão, o Africano, tenha visitado pessoalmente a região. Chama de Habraam (Ibrāhm) o rei do Bornu
e menciona dois reis do “Gaoga”, Mose (Mūsā) e Homara (‘Umar). O único soberano de nome Ibrāhm
a reinar no Bornu no período que inclui o século XV e o começo do XVI foi Ibrāhm ben ‘Uthmān (c.
1431-1439). E não se conhece nenhum rei bulāla dessa época que se chamasse Mūsā ou ‘Umar.
291
Reinos e povos do Chade
F . Mapa dos povos e reinos do Chade no século XV. (D. Lange.)
292
África do século  ao século 
F . Genealogia dos Sēfuwa. (D. Lange.)
293
Reinos e povos do Chade
África setentrional. Sabemos, com efeito, que as tropas do Bornu reconquistam
Djm pelo começo do reinado de Idrs Katakarmābi (c. 1497 -1519) 122 anos
depois de serem expulsas da antiga capital
83
. A derrota final dos Bulāla, porém,
ocorrerá frente a Idrs Alawōma, na segunda metade do século XVI.
Crises dinásticas e crises políticas
A maior parte das informações contidas no Dīwān diz respeito à história
dinástica, que, por essa razão, é o aspecto mais bem conhecido na história do
Kanem -Bornu (ver fig. 10.6). Em princípio, o Dīwān fornece apenas informações
ligadas às sucessões (os parágrafos se sucedem segundo a ordem dos reinados),
mas esses registros bastam para podermos determinar as rela ções de filiação entre
os diversos reis (sua genealogia) e a evolução das regras sucessórias. Era com base
em tais regras ou melhor, em tais precedentes que se escolhia um sucessor
para o rei defunto. Embora também fosse levada em consideração a relação de
força entre os vários grupos dinásticos, era a conformidade às regras existentes
que conferia legitimidade a uma determinada sucessão. Essas regras não escritas
eram mais estáveis e duradouras que nossas constituições atuais. variavam após
períodos bastante longos, e em consequência de alterações importantes. Os grupos
dinásticos se constituíam segundo essas regras e o podiam manipulá -las a seu
arbítrio. Por conseguinte, a reconstituição das regras sucessórias e de suas variões
permitirá melhor entendimento o apenas da história dinástica em sentido
estrito –, mas também de certos aspectos do processo histórico.
Segundo o Dīwān, os seis primeiros reis sēfuwa se sucederam no trono,
em linha direta de pai para filho. Os cronistas indicam que o mesmo modo de
sucessão era praticado pelos reis dūguwa; as durações dos reinados destes,
porém, mostram que os reis que se sucediam não podiam pertencer a gerações
distintas. O modelo de sucessão de pai para filho deve ter -se originado, por-
tanto, entre os chefes do Kawār, prováveis ancestrais de Hummay, que fundou
a Dinastia dos Sēfuwa.
Foi entre os filhos de Dūnama Dbalāmi que ocorreu a primeira sucessão
colateral (um irmão sucedendo ao outro); mas é preciso notar que Kaday ben
Dūnama (c. 1248 -1277) e Br ben Dūnama (c. 1277 -1296) eram filhos de
mães diferentes. A mãe de Kaday devia ser uma Magomi, enquanto a de Br
83 IBN FURTŪWA, 1932, fólio 5.
294
África do século  ao século 
possivelmente descendia de um dos antigos clãs do Kanem. Essa interpretação
deve ser vista sob a luz do importante comentário que os cronistas deixaram,
a propósito do reinado de Dūnama Dbalāmi: “No seu tempo, os filhos do
sultão dividiram -se em facções; antes, o havia facções” (Dīwān, parágrafo
17). Parece plausível concluir que a rivalidade entre a descendência de Kaday
e a de Br refletisse conflitos dinásticos que já haviam eclodido na primeira
metade do século XIII. Na base desses conflitos estava, provavelmente, o
crescente antagonismo entre a linhagem real dos Magomi e as linhagens dos
sedentários do Kanem.
É também de se notar que a primeira sucessão colateral na história dos Sēfuwa
se deu, dizem os cronistas, depois da primeira morte violenta de um rei do Kanem
em seu próprio reino (Dūnama ben Hummay foi morto em meio a uma pere-
grinação aos lugares santos): com efeito, Kaday morreu em combate contra o
andākama Dūnama – certamente um dos grandes senhores feudais do reino. Em
compensação, o seu irmão e sucessor Br morreu em Djm, de morte natural.
Ibrāhm Nikāle (c. 1296 -1315) sucedeu ao pai, conforme o modelo sucessório
patrilinear, mas ele próprio sucumbiu a outro grande senhor feudal, o yērima
Muhammad ben Ghad, e o poder passou às mãos do primo, Abd Allāh ben
Kaday (c. 1315 -1335). Depois dele, retornou -se, uma vez mais, ao antigo prinpio
de sucessão: depois de sua morte natural, ocorrida em Djm, sucedeu -lhe o filho
Salmāma (c. 1335 -1339). Dessas informações podemos concluir que, durante a
segunda metade do culo XIII e o começo do XIV, a suceso patrilinear ainda
constituía o modelo predominante, que somente se rompia pela violência.
Posteriormente, pom, a sucessão colateral impôs -se mais e mais: quatro filhos
de Abd Allāh exerceram sucessivamente o poder, mas é preciso ressalvar que todos
eles morreram, após reinados de curta duração, lutando contra os Sao. Aparen-
temente incapazes de derrotar os Sao, os descendentes de Kaday ben Dūnama
cederam o poder a um neto de Br, Idrs ben Ibrāhm Nikāle (c. 1342 -1366). Esse
rei talvez tivesse mais condições de conciliar -se com os autóctones do Bornu, pois
pertencia à linhagem de Br ben Dūnama, que mantinha relões estreitas com os
povos o Magomi do Kanem. Em todo caso, parece que conseguiu estabelecer
um modus vivendi com os grupos Sao e fez reinar a ordem no Bornu.
Quando da morte de Idrs, o problema sucessório se colocou de maneira mais
aguda do que nunca: quem iria suceder -lhe, um filho ou um irmão? Foi esco-
lhido um irmão não uterino, Dāwūd, em prejuízo de seus filhos
84
que, porém,
84 Contrariamente aos lhos de Dūnama Dbalāmi, os de Ibrāhm Nikāle não parecem haver representado
dois grupos distintos: pois, segundo as indicações do Dīwān, as mães de Idrs e Dāwūd eram irmãs. Tudo
indica que ambas fossem Magomi.
295
Reinos e povos do Chade
não aceitaram a eleição. Contam os cronistas que, durante o reinado de Dāwūd,
a guerra eclodiu entre o filho [ou filhos] do sultão e o sultão
85
. Pode -se pen-
sar que essa guerra de sucessão, que enfraqueceu os Sēfuwa, tenha provocado
a nova intervenção dos Bulāla em seus domínios: todos os sete reis que se
sucederam entre 1376 e 1388 morreram lutando contra os invasores (Dīwān,
parágrafos 27 -33). O conflito também acarretou a polarização de dois grupos
de descendência na família real, os Dawúdidas e os Idríssidas, os quais, devido à
competição frequentemente violenta pelo poder debilitaram perigosamente a
monarquia dos Sēfuwa. Levaria um século até se resolver o problema da suces-
são, mediante a eliminação completa de uma das duas linhas.
De imediato, a agreso externa provocou um reflexo de defesa: ‘Uthmān (c.
1376 -1379) sucedeu sem dificuldades ao pai Dād e, na sequência, Dadidas e
Idríssidas reinaram alternadamente, até cessarem os combates no Kanem. Durante
esse período, o modo de sucessão colateral foi -se tornando regra: ‘Uthmān ben
Idrs sucedeu a ‘Uthmān ben d e Umar ben Idrs a Abū Bakr ben Dāwūd.
O princípio de legitimidade na sucessão visivelmente se subordinava aos impe-
rativos políticos do momento.
Não surpreende, nessas circunstâncias, que até mesmo um não sēfuwa ascen-
desse ao trono: o rei (malik, e não sultão) Sa‘d (c. 1387 -1388) assim sucedeu a
‘Umar, que fora forçado pelos Bulāla a abandonar o Kanem. Sa‘d foi, portanto,
o primeiro rei a governar apenas o Bornu. Provavelmente foi escolhido por
representar melhor os interesses dos habitantes dessa parte do antigo reino. A
seríamos tentados a ver nele um membro da antiga dinastia do próprio Bornu.
Ele e seu sucessor Kaday Afnu ben Idrs (c. 1388 -1389) também sucumbiram
lutando contra os Bulāla, antes que Br (‘Uthmān) ben Idrs finalmente conse-
guisse expulsar os invasores.
Seria de se pensar que esse sucesso desse aos Idríssidas elementos suficientes
para excluir definitivamente do poder os descendentes de Dāwūd. A essa altura,
os Dawúdidas haviam sido descartados da sucessão três vezes, e o longo reinado
de Br (‘Uilimãn) ben Idrís (c. 1389 -1421) tornaria ainda mais difícil sua volta
ao poder. Se, apesar disso, ‘Uthmãn Kalnama ben Dãwüd (c. 1421 -1422) conse-
guiu suceder a Bir (‘Uthmān), foi porque nessa época os verdadeiros detentores
do poder já não eram mais os Sēfuwa, porém alguns grandes ministros do reino.
85 Poderia pensar-se que se tratasse dos lhos de Dâwūd, mas, neste caso, os cronistas provavelmente escre-
veriam: A guerra eclodiu entre o sultão e seu [ou seus] lho[s]”, como zeram a propósito do reinado
de Dūnama Dbalāmi (Dīwān, parágrafo 17).
296
África do século  ao século 
O Dīwān conta -nos que o próprio rei Br (‘Uthmān) tivera de combater
o kayghamma (chefe do exército) Muhammad Dalatu. ‘Uthmān Kalnama, seu
sucessor, reinou por apenas nove meses sendo destituído pelo kayghamma
Nikāle ben Ibrāhm e pelo yerima (governador do norte) Kaday Ka‘aku. O poder
passou então a dois dos filhos de ‘Umar ben Idrs, Dūnama (c. 1422 -1424) e
Abd Allāh (c. 1424 -1431), antes de voltar às mãos de dois Dawúdidas, Ibrāhm
ben ‘Uthmān (c. 1431 -1439) e Kaday ben ‘Uthmān (c. 1439 -1440). Essa osci-
lação do poder entre as duas linhagens devia -se incontestavelmente à manipu-
lação da sucessão pelos ministros do reino e, em especial, pelo kayghamma. Os
cronistas não deixam nenhuma dúvida quanto ao enorme poder de que então
dispunha o comandante do exército. Falando do reinado de Abd Allāh ben
‘Umar, assinalam que ele foi deposto pelo kayghamma Abd Allāh Daghalma,
que o substituiu pelo dawúdida Ibrāhm ben‘Uthmān, para depois, após a morte
deste, restaurar no trono o rei que ele próprio afastara. Durante pelo menos vinte
anos, os verdadeiros senhores do Bornu foram, portanto, os chefes militares, e
não os príncipes de sangue real.
Certamente o foi por acaso que a influência crescente dos altos funcionários
do reino, em particular a do kayghamma, fez -se sentir exatamente sob o reinado
de Br (‘Uthmān), isto é, num momento em que o perigo externo, representado
pelos Bulāla, estava descartado. Depois de cessarem as hostilidades, os principais
artífices da consolidação do reino viam -se tentados a impor sua influência à dinas-
tia reinante. Não tinham força suficiente nem a união necessária para tentar
substituir os Sēfuwa
86
. Mas, utilizando -se para seus fins particulares das divisões
existentes no interior da família real, contribuíram para reavivar a crise dinástica,
que, após o longo reinado de Br (‘Uthmān), bem poderia ter sido resolvida.
Houve ainda vinte anos de confrontos diretos entre Dawúdidas e Idríssidas:
Dūnama ben Br (c. 1440 -1444) venceu Kaday ben ‘Uthmān e recuperou a rea-
leza para os descendentes de Idrs. Sucederam -lhe dois irmãos Muhammad ben
Matala e Amr ben ‘A’isha bint Uthmān
87
–, cujos reinados somados não comple-
taram dois anos, depois do que os Dawúdidas retomaram ao trono. o se sabe
em que circunsncias Muhammad ben Kaday (c. 1445 -1449) sucedeu a Amr, mas
86 Os nomes dos diferentes kayghamma não permitem concluir que seu cargo então fosse hereditário.
SMITH, H. F. C., 1971, p. 180, formula a hipótese de que os kayghamma fossem chefes do Kāgha
(na parte sul do Bornu), incomodados pela intromissão dos Sēfuwa em seu domínio próprio. Como a
função militar dos kayghamma só está documentada a partir da segunda metade do século XVI (por Ibn
Furtūwa), essa hipótese é perfeitamente plausível.
87 Se os cronistas não indicam a liação agnática, é provavelmente porque esta se supunha conhecida. De
sua omissão, portanto, não se pode deduzir que Muhammad e ‘Amr fossem usurpadores.
297
Reinos e povos do Chade
é provel que tenha sido pela força. Tamm lhe sucederam seus dois iros:
Ghadj ben Imātā
88
(c. 1449 -1454) e ‘Uthmān ben Kaday (c. 1454 -1459). Este
último foi vencido por Al Ghadjini; assim terminou a existência dos Dadidas
enquanto força política. O grande conflito dinástico, que dilacerara o país durante
quase um século, saldou -se, dessa forma, pela vitória completa dos Idríssidas.
Mas isso não bastou para garantir a sucessão a Al Ghadjidēni, filho de
Dūnama ben Br; parece que dois membros mais antigos da sua linhagem tinham
direitos mais fortes que o seu: assim, ele somente ascendeu ao poder depois de
‘Umar ben Abd Allāh (c. 1459 -1460) e Muhammad (c. 1460 -1465). É de se supor
que, durante a longa luta entre Dawúdidas e Idríssidas, os dois agrupamentos
dinásticos estruturam -se solidamente, impondo -se a sucessão colateral (segundo
a idade) até esgotamento completo de uma geração como regra o estrita que o
próprio vencedor dos Dawúdidas não se pôde furtar a ela.
São muito escassas as informões incontestáveis que nos chegaram sobre o
reinado de Al Ghadjidēni (c. 1465 -1497). Tudo o que sabemos com certeza é
que ele construiu a cidade de Gazargamo (situada entre Kano e o lago Chade),
que foi a capital dos Sēfuwa por mais de três séculos. Contudo, pode -se medir a
importância do reinado de Al Ghadjidēni pela transformação da regra sucessória
que nesse período ocorreu e que veio a beneficiar os descendentes diretos desse
soberano, seu filho Idrs Katakarmābi (c. 1497 -1519) e seu neto Muhammad ben
Idrs (c. 1519 -1538). Depois de longo período de conflitos, o retorno à sucessão
de pai para filho devia aparecer aos habitantes do Bornu como uma volta à idade
de ouro.
88 Ver nota precedente.
C A P Í T U L O 1 1
299
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
A zona tradicionalmente habitada pelos Haussa (Hawsa) situa -se na região
que vai dos montes Air (Azbin), ao norte, até as bordas setentrionais do planalto
de Jos, ao sul, e da fronteira do antigo reino do Bornu, a leste, até o vale do
Níger, a oeste. Nesta área, o haussa é a única língua indígena conhecida, desde
tempos muito antigos. Sublinhando sua imporncia, o território não tinha
nome especial: era chamado simplesmente de Kasar hausa, ou seja, o território
de língua haussa. Acrescentando -se as migrações e a assimilação, a área na qual
o haussa era empregado como língua principal de comunicação expandiu -se
para o sul e para oeste; pelo norte, alguns povos não Haussa, sobretudo os tua-
regues, os Zabarma (Djerma) e os Fulbe (“Fulani”), penetraram e se instalaram
no território.
O haussa é atualmente a língua dominante na zona das savanas do Sudão
central. É falado por vários grupos que, miscigenando -se ao longo dos séculos,
acabaram por ter a mesma identidade cultural. Juntos, deram origem a uma
brilhante civilização. De fato, pode -se afirmar com Guy Nicolas que,
Os Haussa e seus vizinhos
do Sudão central
Mahdi Adamu*
* O Bureau decidiu revisar este capítulo, utilizando uma contribuição de André Salifou. A revisão de
conjunto foi realizada por um subcomitê, designado pelo Comitê Cientíco Internacional, composto
pelos professores Jean Devisse, Ivan Hrbek e Yusuf Talib.
300
África do século  ao século 
por falar a mesma língua, observar os mesmos costumes, obedecer às mesmas ins-
tituições políticas, os Haussa formam um dos grupos étnicos mais importantes da
África. Atraídos por sua cultura, muitos povos vizinhos abandonaram a própria
língua e seus costumes para fazer parte dos Haussa”
1
.
Mas de onde veio este grupo? Qual sua origem? Trataremos destas questões
na primeira parte deste capítulo, antes de examinarmos a formação dos Estados
haussa e sua evolução até o século XVI. Nos itens seguintes, serão examinadas
principalmente a organização política e administrativa, assim como a estrutura
social e econômica. Neste capítulo, também serão analisadas a natureza e especi-
ficidade de relações que existiram entre os territórios componentes dos Estados
haussa, e destes com os Estados vizinhos, como o Songhai e o Bornu.
Origem dos Haussa
Muitas são as teorias propostas para explicar as origens dos Haussa, quase
sempre contraditórias e aqui expostas resumidamente.
A primeira delas, baseada em falsa interpretação da lenda de Bayajida (ou
de Daura), pretende que os ancestrais dos Haussa foram originariamente árabes
de Bagdá, no Iraque
2
. André Salifou propôs recentemente outra versão desta
lenda, que W. K. R. Hallam interpretou como um relato sobre o surgimento de
novas dinastias em território haussa, no início do presente milênio
3
. Segundo
Abdullahi Smith,
se a lenda de Bayajida significa algo, seria sobretudo a influência do Bornu sobre as
instituições políticas dos Haussa, demonstrada até certo ponto pelas palavras kanuri
existentes no vocabulário haussa
4
.
Os historiadores não concordam mais com a teoria da origem árabe.
A segunda teoria sustenta que os Haussa habitavam, originariamente, o sul do
Saara, antes que esta região se tornasse desértica, e que, posteriormente, emigraram
ainda mais para o sul
5
. As terem penetrado, pelo norte, no território da atual
Reblica Federal da Nigéria, os Haussa rechaçaram os povos autóctones para o
1 NICOLAS, 1969, p. 202.
2 PALMER, 1928, v. 3, p. 133 et seqs.
3 SALIFOU, 1971, p. 321 -45; HALLAM, 1966.
4 SMITH, H. F. C., 1970a; sobre a inuência do kanuri na língua haussa, ver GREENBERG, 1960.
5 SMITH, H. F. C., 1970a.
301
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
planalto de Bauchi, ou outra hipótese esse lugar era tão pouco povoado, que
o houve necessidade de expulsão. Esta seria a explicação para a coexistência,
nesse planalto, de numerosas etnias de línguas pertencentes a grupos linguísticos
diferentes do haussa. A teoria da origem saariana dos Haussa é plausível, mas não
qualquer fato real para compro -la, daí continuar sendo apenas uma hitese.
A terceira teoria opõe -se às duas primeiras, afirmando que os ancestrais dos
Haussa eram os povos que viviam da caça, da pesca e da cultura de subsistência,
às margens do grande lago Chade
6
. Quando o lago começou a diminuir até
alcançar seu tamanho atual, decidiram continuar no local, e tornaram -se agricul-
tores sedentários
7
. Segundo esta teoria, a civilização haussa se desenvolveu nos
territórios que constituiriam os reinos de Daura, Kano, Rano e Garun Gobas;
dali estendeu -se para oeste e norte, até incluir as regiões de Katsina, Zazzau,
Gobir, Zamfara e Kebbi. J. E. G. Sutton resume assim sua teoria:
De modo geral, a história do território haussa, no presente milênio, foi um movi-
mento para oeste, da região de Hadejia -Daura -Kano à de Sokoto e para além
8
.
Rejeita, portanto, a tese defendida por Abdullahi Smith, segundo a qual os
Haussa seriam originários do Saara. Faltam, porém, provas decisivas para sua
teoria.
Recentemente, M. Adamu propôs uma quarta explicação para a origem dos
Haussa
9
. O principal argumento em favor desta teoria é o fato de nenhuma
fração dos Haussa jamais ter tido tradição migratória fora do próprio território;
algumas tradições de Zamfara, de Katsina e do sul do Azbin (Air ) chegam a
afirmar que, nestas localidades, os ancestrais dos Haussa “saíram de buracos no
chão”. Esse tipo de tradição, também encontrada em outras regiões da África,
parece significar que eles eram autóctones. É provável, então, que a origem dos
Haussa situe -se precisamente na região hoje conhecida como território haussa.
Este grupo étnico, naturalmente, foi beneficiado pelas grandes ondas imigra-
tórias vindas do norte e do leste; mais tarde, alguns povos Wangara (Jula) e
Fulbe (“Fulani”) instalaram -se no território haussa. Nada vem contradizer a
teoria segundo a qual a etnia e a língua haussa desenvolveram -se, a princípio,
6 O atual lago Chade é o vestígio de antigo mar interior que na época pré -histórica ocupava 400 mil
quilômetros quadrados. O lago atingiu seu nível máximo por volta de -8000, limite que durou até cerca
de -2000. Ver o capítulo 16 do volume I.
7 Esta hipótese foi recentemente difundida por SUTTON, 1979, p. 184 -5.
8 Ibid.
9 ADAMU. A thousand years of Hausaland participation in the trans -saharian trade”. Mesmo SMITH, H.
F. C., 1970a, sustenta que os povos de língua haussa habitam a área atual desde tempos muito antigos.
302
África do século  ao século 
no território haussa, apesar de o processo desta etnogênese ser ainda obscuro
devido à distância temporal
10
.
É, no entanto, bem possível que algumas regiões do sul do Saara, prin-
cipalmente a do Azbin, se incluíssem no território habitado pelos Haussa
11
.
Várias fontes indicam que esta área foi conquistada no século XIV ou XV
pelos tuaregues, que obrigaram a maioria dos Haussa a emigrar rumo ao sul,
para o Gobir. As pressões exercidas ao norte levaram os Haussa a se deslo-
carem em bloco para o sul e a se instalarem em regiões habitadas por outros
grupos étnicos, que, lentamente, nos séculos seguintes, adotaram a língua e os
costumes dos invasores.
Como etnônimo das populações do território haussa, o termo hawsa só
apareceu nos documentos escritos por volta dos séculos XVI ou XVII. Até
então eram conhecidas pelos nomes de suas cidades ou reinos (Kanawa,
Katsinawa, Gobirawa etc.). No início do século XVI, Leão, o Africano, escre-
veu que o gobir era a língua comum na área setentrional da atual República
Federal da Nigéria
12
. No entanto, o poli -historiador egípcio al -Suyūt(1445 -1505)
havia empregado o termo hawsa para designar esse terririo, em suas Epístolas aos reis
do Sudão, Haussa e al -Takrūr
13
. Tamm os autores do Ta’rikh al -fattāsh e do Tarikh
al -n, de Tombuctu, utilizavam regularmente o termo hawsa, ao se referirem às
regiões situadas à margem esquerda do Níger, habitadas pelos Haussa; já para
designar as populações da margem direita, usavam o termo gurma
14
.
Originariamente, o termo hawsa concernia apenas à língua materna dos
habitantes do território haussa, onde as pessoas se autodenominavam hausawa,
ou seja, os que falam haussa
15
. Por vezes, porém, empregavam o termo hawsa
para se referir somente ao território formado pelos antigos reinos de Zamfara,
de Kebbi e do Gobir, o que confirma indiretamente as crônicas sudanesas,
que estes reinos eram as terras haussa mais próximas do Songhai.
10 Deixamos de lado algumas teorias, um tanto forçadas, propostas por MEEK, 1931b, v. 1, p. 61 -87,
NIVEN, 1957, p. 265 -6 ou PALMER (em seus muitos escritos), todas elas variações do mito camítico”,
atualmente desacreditado, segundo o qual os Haussa seriam de origem copta, núbia ou berbere. Ver, a
propósito, o capítulo 1 do volume I.
11 MAUNY, 1961, p. 144, pretende que os atuais Harratin dos oásis saarianos sejam descendentes destes
antigos negros, que eram parte da população de língua haussa.
12 LEÃO, o AFRICANO, 1956, p. 9.
13 Ver PALMER, 1914.
14 KA‘TI, 1913 -1914, p. 53, 178, 330; AL -SA‘DĪ’, 1900, p. 41, 152,232; ver também SKINNER, N.,
1968.
15 OLDEROGGE, 1960, p. 68, estabelece uma ligação entre o etnônimo hawsa e o termo haussa hausa,
que signica linguagem, língua, por exemplo: na gane hawsarka, compreendo sua língua.
303
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
Uma prova de que o emprego generalizado do termo hawsa como etnônimo
é de origem relativamente recente, é o fato de que atualmente certos grupos
não muçulmanos da Nigéria e do Níger, de cultura e língua exclusivamente
haussa, recusam -se a ser chamados de Haussa. Na República Federal da Nigéria,
chamam a si mesmos e são chamados pelos outros Haussa de Maguzawa (ou
Bamaguje), enquanto na República do Níger são conhecidos pelo nome de Azna
ou Arna, palavras haussa para designar pagão. As denominações Azna/Arna
também concernem à extensão geográfica do termo hawsa, na medida em que
se limita às áreas de Zamfara, de Kebbi e do Gobir. Como o termo maguzawa
é provavelmente derivado do árabe madjūs (originariamente adorador do fogo”,
depois pagão”), é possível que a polarização haussa -maguzawa/arna tenha
começado com a difusão do Islã entre os Haussa, ou seja, depois dos séculos
XVII e XVIII.
Neste capítulo, designaremos por Haussa todos os povos cuja língua materna
é o haussa, independentemente de sua localização geográfica ou religião.
Nascimento e evolução dos Estados haussa
A lenda popular sobre a origem dos Haussa evoca a partida do príncipe
Bayajida de Bagdá para oeste, em direção ao Kanem -Bornu
16
. Ali, o mai (rei)
deu -lhe a mão da filha em casamento, mas privou -o da escolta. Com medo do
mai, Bayajida fugiu novamente para oeste, chegando, algum tempo mais tarde,
a uma cidade cujos habitantes eram impedidos de alcançar a água por uma
serpente chamada sarki (chefe). Com sua espada
17
, o príncipe matou a serpente;
como recompensa, Daura, a rainha local, esposou -o e também deu -lhe uma
concubina gwari. Do casamento com Daura, nasceu -lhe um filho chamado
Bawogari; a concubina deu -lhe outro menino, que foi denominado Karbogari
ou Karafgari (conquistador de cidades). A cidade passou a se chamar Daura.
Bawogari, que sucedeu ao pai, teve seis filhos, três pares de gêmeos, que se
tornaram chefes de Kano e Daura, Gobir e Zazzau (Zegzeg ou Zaria), Katsina
e Rano; juntamente com Biram, governado pelo filho que Bayajida teve com a
16 PALMER, 1936, p. 273 -4 e HALLAM, 1966, acreditam que haja conexão histórica entre Bayajida e
Abū Yāzid, que liderou uma revolta dos berberes caridjitas contra os Fatímidas, na África setentrional,
durante a primeira metade do século X. Abū Yāzid nasceu provavelmente no oeste do Sudão; era lho
de uma escrava de Tadmekka, e foi morto pelos Fatímidas em 947.
17 Também entre os Manden (Mandingo) existe a lenda do matador de serpentes (origem dos reis de
Wagadu).
304
África do século  ao século 
princesa de Bornu, estes Estados formaram os hawsa bakwai, os sete (Estados)
haussa. Os filhos de Karbogari também fundaram sete Estados: Kebbi, Zamfara,
Gwari, Jukun (Kwararafa ou Kororofa), Yoruba, Nupe e Yawuri, chamados de
banza bakwai, os sete bastardos ou os sete imprestáveis
18
.
Apesar de conter alguns detalhes mais antigos, esta lenda reflete uma situ-
ação ocorrida no norte da Nigéria, no século XVI. Os Estados que formariam
os hawsa bakwai foram os sobreviventes de séculos de combates vitoriosos con-
tra grupos vizinhos rivais. Como enfatizou Abdullahi Smith, as dinastias e os
governos centralizados não apareceram no território haussa como obra de um
herói civilizador vindo do leste e portador de cultura superior, pois a própria
lenda de Bayajida reconhece que, ao chegar o herói a Daura, encontrou uma
rainha no local
19
. A mesma história repetiu -se em Kano, onde uma dinastia real
governava a cidade antes da chegada de Bagauda, filho de Bayajida, consi-
derado fundador da cidade. Isto significa que o verdadeiro sentido da lenda de
Daura ainda não foi revelado.
A origem relativamente tardia da lenda é atestada pela interessante des-
crição da divisão de trabalho entre as cidades haussa. De acordo com a lenda,
Kano e Rano tornaram -se sarakunan babba (os reis do índigo), pois sua principal
ocupação era a produção e tintura de tecidos; Katsina e Daura foram denominadas
sarakunan kasuwa (os reis do mercado), pois todo o corcio concentrava -se nestas
cidades. Gobir era sarkin yaki (o rei da guerra), e sua função era a de defender
as outras cidades contra os inimigos do exterior; Zazzau (Zegzeg ou Zaria)
tornou -se sarkin bayi (o rei dos escravos), pois fornecia mão de obra servil às
outras cidades haussa
20
. Esta história reflete a situação geral instaurada após a
criação das principais cidades -Estado haussa, surgidas quando atingiram alto
grau de crescimento econômico.
A aparição de Estados centralizados parece estar intimamente ligada ao
estabelecimento de grandes cidades chamadas birane (singular: birni), como
centros de poder político. A importância das cidades haussa variou, conforme a
época. Por esse motivo, só examinaremos Kano, Katsina, Zazzau (Zaria), Gobir
e Kebbi, que tiveram papel importante, principalmente depois do século XIV.
18 Ver PALMER, 1928, v. 3, p. 132 -4. As diversas versões da lenda de Daura divergem quanto à com-
posão destes grupos de sete: entre os hawsa bakwai, encontram -se, às vezes, Zamfara, Kebbi
e Bauchi, excluindo -se Biram e Rano; são incldos, entre os banza bakwai, Gwambe, Bauchi,
Gurma, Zaberma e Borgu. Ver OLDEROGGE, 1960, p. 72 -3, que tabulou estas divergências.
19 SMITH, H. F. C., 1970a, p. 329 et seqs.
20 TREMEARNE, 1913, p. 141.
305
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
Kano
Graças às suas crônicas, e à riqueza da tradição oral, a história de Kano é,
sem dúvida, a mais bem conhecida
21
. O território que mais tarde constituiu o
reino de Kano era, originariamente, dominado por pequenas chefarias, lideradas
por indivíduos cuja autoridade se baseava numa jurisdição ritual. As chefarias
mais importantes eram Sheme, Dala e Santolo. Em Dala, seis gerações de chefes
sucederam -se antes da chegada de Bagauda.
Segundo H. R. Palmer, Bagauda chegou à região de Kano no ano +999; até
hoje, esta data não foi contestada, apesar de ser evidente que a cronologia de
Palmer é arbitrária e bastante aproximativa
22
.
Bagauda viveu e morreu em Sheme, após ter obrigado os autóctones a reco-
nhecerem sua autoridade política. Seu neto Gijimasu (1095–1134) fundou Kano,
aos pés do monte Dala. Iniciou também a construção de fortificações que
seriam acabadas durante o reinado do filho Tsaraki (1136–1194). Em 1200, os
chefes de Kano já haviam submetido praticamente todas as chefarias da região,
exceto Santolo, que continuou independente ainda por um século e meio.
Durante o governo de Yaji (1349–1385), o processo de dominação da área e
da população foi levado a bom termo, apesar das revoltas esporádicas de muitos
grupos, dentro e fora da cidade. A expansão para o exterior foi marcada pela
conquista de chefarias ainda independentes da região de Zamnagaba, e pela
ocupação de Rano por dois anos. A partir dessa época, apesar de continuar a
existir, Rano não mais recuperou a soberania plena.
Segundo a Crônica de Kano, Yaji foi auxiliado, na guerra contra Santolo, por
grande grupo de muçulmanos Wangarawa (Jula), recém -chegados à cidade.
Além de unirem seu exército ao de Yaji, os Wangarawa também rezaram pelo
sucesso da campanha. Finalmente, Santolo foi vencida, e o centro religioso
da cidade, onde ocorriam os sacrifícios tradicionais, completamente destruído.
Esta conquista completou a definição territorial do reino de Kano. É interes-
sante observar que a Crônica de Kano descreve a luta entre a classe dirigente
e o povo que frequentemente se rebelava contra uma forma de autoridade
cada vez mais despótica – como um combate entre os muçulmanos e os adeptos
21 A Crônica de Kano, escrita em árabe, foi composta por volta de 1890, mas baseia -se em textos anteriores
à djihād. Enumera 48 sarakuna reis haussa (ou, após 1807, fulbe), de Bagauda a Muhammad Bello.
A tradução inglesa foi publicada por PALMER, 1909, e reimpressa pelo mesmo, 1928, v. 3, p. 92 -132.
Existe também uma tradução haussa, Tarihin Kano, em EAST, 1933. No Canto de Bagauda, anônimo,
encontra -se uma variante da lista dos reis de Kano; ver HISKETT, 1964, 1965.
22 Ver PALMER, 1928, v. 3, p. 92 et seqs.
306
África do século  ao século 
da religião tradicional
23
. Trata -se, evidentemente, de interpretação tardia do
processo de centralização. A expansão de Kano era orientada para o sul; outras
campanhas seguiram -se à de Santolo nas regiões do sul, onde os exércitos de Kano
defrontaram -se, pela primeira vez, com os Kwararafa (Kororofa ou Jukun). O
resultado da batalha parece não ter sido decisivo, pois os Kwararafa recusaram -se a
pagar tributo a Yagi, mas lhe deram cem escravos.
Kananeji (1390–1410) deu continuidade a esta política de expansão e, após
duas campanhas, submeteu Zazzau, cujo rei foi morto em combate. As relações
com os Kwararafa eram aparentemente pacíficas. Kano lhes dava cavalos em
troca de escravos. Os contatos com o exterior intensificaram -se, como prova a
introdução do lifidi (proteção acolchoada para cavalos de guerra), dos capacetes
de ferro e das cotas de malha
24
. A influência estrangeira aumentou durante o
governo de Dauda (1421–1438), com a chegada a Kano de um príncipe refu-
giado do Bornu, com seus homens e muitos mallam. Além de presentes – cava-
los, tambores, trombetas e bandeiras –, o povo de Bornu trouxe conceitos mais
sofisticados de administração, e a partir desta época, títulos do Bornu, como
galadima, chiroma e kaigama, passaram a ser usados em Kano.
Apesar de as guerras e expedições terem prosseguido por todo o século XV,
as crescentes atividades comerciais dos Kanawa passaram a ser mais importan-
tes. Afirma -se ter sido aberta, em meados do século, uma estrada entre Bornu
e Gwanja (atual Gonja, na República de Gana); os camelos e o sal do Saara
tornaram -se comuns no território haussa, e começou a se expandir o comércio
de nozes -de -cola e de eunucos. Muitos religiosos muçulmanos foram atraídos a
Kano pela crescente prosperidade do reino e por uma islamização acentuada da
classe dirigente. Por volta de 1450, os Fulbe, vindos do Mali, trouxeram os livros
da divindade e da etimologia (anteriormente, no território haussa, só se conhe-
ciam os livros da lei e das tradições). No fim do século, também chegaram ao país
alguns sharīf (descendentes do profeta Maomé) e o enérgico religioso muçulmano
al -Maghl
25
. Por outro lado, os reis de Kano foram obrigados a pagar tributo
ao Bornu, e envolveram -se numa guerra contra Katsina que durou um século.
A Crônica de Kano atribui a Muhammad Rumfa (1466–1499) uma série de
inovações, de maior ou menor importância, tais como a ampliação das muralhas
da cidade e a construção de novas portas, a nomeação de eunucos para cargos
23 Id., ibid., p. 102 et seqs. A Crônica de Kano também menciona a introdução, nesta época, de trombetas e
de um hino nacional, Zauna daidai Kano garingkine – “Coragem, Kano é sua cidade”. Ver ibid., p. 104.
24 Ibid., p. 107.
25 Ibid., p. 111. A respeito de al -Maghl e seu papel, ver adiante.
307
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
de Estado, a criação do mercado de Kurmi (principal mercado de Kano) e a
instituição do Conselho de nove funcionários dirigentes, os Tara -ta -Kano, os
“Nove de Kano”, que formavam uma espécie de ministério. Algumas destas
inovações indicam que Rumfa ambicionava imitar as maneiras das cortes do
Bornu, ou mesmo do Magreb: a construção de um novo palácio (Gidan Rumfa),
a utilização de longas trombetas e leques de penas de avestruz como símbolos
reais, o estabelecimento de um harém fechado com mil esposas e, finalmente, o
festival comemorativo do término do jejum de Ramadan (‘Īd al -fitr).
A primeira guerra contra Katsina ocorreu durante o reinado de Rumfa, durou
onze anos, sem que houvesse vencido ou vencedor. Seus sucessores, Abdūllāh
(1499–1509) e Muhammad Kisoki (1509–1565), deram continuidade a essa
política, lutando, sem muito sucesso, contra Katsina, mas derrotando Zaria. O
poderio crescente do Bornu começava a lançar sombras ameaçadoras sobre o
território haussa. Mais de uma vez, os sarki de Kano foram derrotados pelo mai,
mas, em outras ocasiões, Kano pôde defender vitoriosamente seu território.
Katsina
Existem bem menos informações sobre a história de Katsina
26
, que, de modo
geral, parece ter -se desenvolvido paralelamente à de Kano, mas com um lapso de
tempo considerável. O território, que seria mais tarde conhecido pelo nome de
reino de Katsina, era ocupado, nos séculos XIII e XIV, por chefarias independen-
tes, de língua haussa. A mais importante era Durbi -ta -Kusheyi, a partir da qual
se desenvolveu, finalmente, a cidade -Estado centralizada de Katsina. Com o sarki
Muhammad Korau (1445–1495), provável fundador de nova dinastia, entrou -se
num período historicamente mais estável. Ainda em Durbi, Korau descobriu um
importante sítio no qual se cruzavam muitas rotas comerciais, havendo também
uma mina de ferro e um santuário chamado Bawada. Neste local, o sarki construiu
uma nova cidade fortificada (birni), denominada Katsina
27
. O novo povoamento
logo atraiu habitantes e comerciantes em trânsito, que trouxeram, assim, mais
riqueza e poder a seu senhor. Pouco a pouco, os chefes das redondezas começaram
a pagar -lhe um tributo em barras de ferro; era o começo do haraji (capitação) em
Katsina. Partindo desta sólida base econômica e política, Korau passou a mandar
26 PALMER, 1927, publicou uma lista dos reis de Katsina. Ver também PALMER, 1928, v. 3, p. 78 -82.
Uma referência sobre a história de Katsina é uma tese de doutoramento defendida na Universidade de
Zaria por Y. B. Usman.
27 Y. B. Usman mostra que é errada a armação de alguns autores antigos, segundo a qual a cidade de
Katsina teria sido fundada por imigrantes Wangarawa.
308
África do século  ao século 
expedições para terras mais distantes, até formar um vasto domínio, o reino de
Katsina. Muhammad Korau é considerado, tradicionalmente, o primeiro dirigente
muçulmano de Katsina
28
. Durante seu reinado, al -Maghlesteve na cidade. A
mesquita de Gobarau, ainda existente em parte, foi construída nesse período,
segundo os modelos de Gao e Djen. As campanhas militares de Katsina fora
do território haussa concentraram -se, assim como as de Kano, na região situada
ao sul do reino. A Crônica de Kano lembra
29
que Muhammad Korau lançou -se
numa campanha contra Nupe, que tinha, então, fronteira comum com Katsina.
Talvez esta guerra tenha sido provocada pelo próprio expansionismo nascente de
Nupe, que já havia entrado em conflito com os Yoruba.
Entre os sucessores de Korau, Ibrāhm Sura (1493–1499) passou para a
história como chefe severo, que obrigava os súditos a rezar e prendia os que se
recusavam a fazê -lo. Manteve correspondência com o célebre poli -historiador
al -Suyūt, O sucessor de Ibrāhm, Al, cujo longo reinado cobriu o primeiro
quarto do século XVI, foi chamado murābit, homem do ribat”, talvez por ter
fortificado a cidade
30
.
Zazzau
O quadro da história primeva de Zazzau também chamada Zaria ou Zegzeg
é ainda mais obscuro que o de Katsina. O material histórico é muito limitado
para que se possa reconstituir razoavelmente a história política da região, e as
interpretações feitas a partir das fontes existentes são contraditórias. Segundo
Abdullahi Smith, o povo haussa “já vivia em Zazzau havia mais de um milênio,
antes do advento de um governo centralizado na região, com base, a princípio,
em Turunku
31
. Dali, os chefes estenderam seu território, anexando as pequenas
chefarias vizinhas e estabelecendo, mais tarde, sua nova sede, no sítio da atual
cidade de Zaria. Provavelmente, todos estes fatos se deram no fim do século XV.
Recentemente, Murray Last sugeriu um quadro completamente diferente
para a origem da dominação haussa em Zazzau: em 1200, existia um reino
neste território chamado Kankuma (Kangoma ou Kwangoma, como se pronun-
cia atualmente); seus dirigentes eram kamuku e não haussa. Esta federação kan-
28 SMITH, H.F. C., 1971, p. 196 -8.
29 PALMER, 1928, v. 3, p. 79 -80. Ver também USMAN, 1972.
30 A cronologia da origem de Katsina é confusa. SMITH, H. F. C., 1961, com base na menção de um
eclipse durante o reinado de Aliyu Karyagiwa datado por Palmer de 1419 a 1431 –, demonstrou que
as datações de Palmer antecipam os eventos em mais de um século.
31 SMITH, H. F. C., 1970b.
309
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
goma era “herdeira da cultura nok, e sua economia baseava -se no comércio de
metais”. Quando esta federação se rompeu, “o reino de Kangoma (surgido desta
ruptura), com base em Turunku, foi conhecido, no século XVI, como Zegzeg”.
Foi somente em 1641 que o povo haussa começou a dominar Zegzeg ou Zazzau,
com Zaria como capital
32
. É uma teoria audaciosa, com vários pontos duvidosos
(a maior parte de ordem linguística); enquanto não houver argumentos mais
convincentes para sustentá -la, continuará no domínio das hipóteses.
Abdullahi Smith propõe uma explicação mais satisfatória para a história de
Zazzau nesse período, que pode ser assim resumida: na planície de Zazzau, no
extremo sul do território haussa, foram fundados, pouco antes do século XV,
alguns centros urbanos organizados administrativamente como cidades -Estado.
Enquanto se desenvolviam politicamente, duas cidades, Turunku e Kufena, pas-
saram a exercer autoridade sobre as outras. Ambas eram, originariamente, inde-
pendentes uma da outra, e assim continuaram até o fim do século XV, quando
um dirigente de Turunku, Bakwa, tomou o poder em Kufena. Mais tarde, os
reis de Zazzau, que governavam os antigos territórios de Kufena e Turunku,
instalaram -se permanentemente na nova capital, construída no extremo leste
do birni de Kufena, e chamada Zaria, nome de uma filha de Bakwa, irmã da
célebre Amina. O reino de Zazzau teria nascido, de fato, da fusão de Turunku
e Kufena. A partir do início do século XVI, Zazzau começou a expandir seu
território para oeste e para o sul. Segundo as tradições históricas, o exército,
durante certas campanhas, foi comandado pela gimbiya (princesa) Amina, filha
de Bakwa, que também fortificou Zaria e Kufena, cercando as cidades de gran-
des muralhas.o há nada que comprove, na literatura e nas tradições orais não
palacianas, ter sido Amina rainha de Zazzau. Seu nome não consta em nenhuma
lista dos reis de Zazzau. Viveu e morreu princesa – com certeza, muito influente.
A lenda descreve -a como grande guerreira, empreendedora de campanhas fora
das fronteiras de Zazzau, atingindo a região nupe, a sudoeste, e até Kwararafa,
a sudeste. Na Crônica de Kano, afirma -se que o “sarki de Nupe enviou -lhe 40
eunucos e 10 mil nozes -de -cola. Foi a primeira, no território haussa, a possuir
eunucos e nozes -de -cola. Todos os produtos do oeste foram introduzidos no
território haussa em sua época”
33
.
32 LAST, in ADAMU, no prelo b.
33 PALMER, 1928, v. 3, p. 109. Segundo a Crônica de Kano, ela foi contemporânea de Dauda de Kano
(1421 -1438). Alguns especialistas estão inclinados a aceitar esta data, como ADELEYE, 1971, e
FISHER, H. J., 1977, enquanto outros armam que ela viveu no século XVI, como HOGBEN e
KIRK -GREENE, 1966, p. 216 -8, que a situam depois de 1576, e SMITII, H. F. C., 1970b, que a põe
no começo do século XVI, opinião compartilhada pelos editores deste capítulo.
310
África do século  ao século 
Gobir
Zazzau era o Estado haussa mais meridional; Gobir, o mais setentrional. O
território de origem dos Gobirawa situava -se mais ao norte, a partir da região
de Agadez, incluindo o maciço do Air. O termo haussa para designar essa área
é Azbin (a pronúncia correta é Abzin); a palavra Gobir era empregada para se
referir ao conjunto político formado pelos Gobirawa
34
. Os diversos grupos que o
integravam sofriam, desde o século XII, a pressão dos tuaregues, que os haviam
afastado para o sul. Alguns se estabeleceram nas planícies da região atualmente
chamada Adar, e passaram a ser conhecidos pelo nome de Adarawa. Outros gru-
pos de língua haussa, que mais tarde tornaram -se Gobirawa, também migraram
para o sul, e criaram, em locais e épocas diferentes, o reino de Gobir. Assim, no
período anterior a 1405, este reino situava -se na atual República do Níger (seu
centro seria Marandet?); ulteriormente, deslocou -se para o sul e estabeleceu,
durante algum tempo, a capital em Birnin Lalle. A Crônica de Kano menciona
a chegada dos Abzinawa a Gobir na metade do século XV, e acrescenta que, a
partir desta época, o sal tornou -se artigo comum no território haussa
35
.
As fontes escritas e orais são insuficientes para reconstituir de maneira mais
coerente a história de Gobir ou o processo pelo qual se formou, neste reino,
um Estado centralizado. O mesmo acontece com a cronologia: nenhuma das
versões das listas de reis que chegaram a nós é confiável. No entanto, por
volta do século IX, Marandet se destacava, ao lado de Gao, como importante
centro comercial e industrial, cuja base era o comércio transaariano; é possível,
portanto, que Gobir se tornasse um Estado centralizado àquela época. Apesar
da contínua pressão dos tuaregues, os Gobirawa conseguiram desempenhar com
sucesso, durante esse período e mais tarde, o papel de defensores das fronteiras
setentrionais do território haussa.
Rano
Na maioria das obras que tratam das origens dos Estados haussa, Rano é
apresentado como um dos reinos que se estabeleceram no início do atual milênio,
e que, ulteriormente, perdeu a soberania em favor de Kano. Mais recentemente,
Murray Last chamou a atenção para o fato de que, se a Crônica de Kano fosse
cuidadosamente examinada, não se encontraria nenhuma prova da existência
34 LAST, Murray, in Kano Studies, 1979, p. 13 -5.
35 PALMER, 1928, v. 3, p. 104.
311
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
do reino de Rano antes do século XV
36
. Existia uma chefaria haussa chamada
Zamnagaba (ou Zamnakogi), independente de Kano. Segundo a Crônica de
Kano
37
, o sarkin de Kano Yagi (1349 -1385) expulsou o chefe zamnagaba de sua
capital, e se dirigiu para Rano e Bubu, residindo durante dois anos. Murray
Last sugere que, antes desta conquista, Zamnagaba fazia parte do sistema polí-
tico de Santolo, então independente de Kano, e dominado por Yagi no fim
de seu reinado. Parece que seria preciso reconsiderar a inclusão de Rano entre os
primeiros Estados haussa e examinar mais cuidadosamente as relações de Rano
com Santolo e Kano, respectivamente. Talvez Zamnagaba devesse substituir
Rano na lista dos primeiros hawsa bakwai
38
.
Zamfara
Pode -se dizer que somente no começo do século XVI o reino de Zamfara
surgiu claramente como Estado. Antes dessa época, as principais chefarias da
região eram Dutsi, Togno (Togai), Kiyawa (ou Kiawa) e Jata. Infelizmente,
nenhum dos documentos disponíveis mostra o processo pelo qual se desen-
volveu, nessa região, um sistema de governo centralizado. Parece, porém, que
nas áreas onde, a princípio, criou -se uma administração, também se fundia o
minério de ferro e existiam colinas com significado religioso
39
. O processo de
centralização começou com os senhores de Dutsi, que dominaram as outras che-
farias. A criação de Birnin Zamfara, como capital permanente do reino, pode ter
acontecido em meados do século XVI, pois nessa época Zamfara empreendeu
campanhas em diversas direções, alcançando Yawuri, na bacia do Níger, sem que
disso resultasse ocupação permanente. Até 1600, a principal preocupação dos
líderes de Zamfara era a consolidação do Estado
40
.
Kebbi
Apesar de Kebbi, a parte mais ocidental do território haussa, ter sido habi-
tada desde tempos muito antigos por povos de língua haussa, a tradição local não
inclui as populações desta região entre os hawsa bakwai, e sim entre os banza
36 LAST, Murray, in Kano Studies, 1979, p. 13 -5.
37 PALMER, 1928, v. 3, p. 104.
38 O sentido que a Crônica de Daura (ver ibid., p. 134) a Zamnakogi nome do fundador de Kano
também precisaria ser mais cuidadosamente pesquisado.
39 Ver GARBA, 1977.
40 Ver KRIEGER, 1959.
312
África do século  ao século 
bakwai. De acordo com M. Muhammad Bello, o povo de Kebbi descende de
mãe katsina e pai songhai
41
.
A exclusão de Kebbi dos “sete Estados haussa” pode ter origem no fato de
que, no século XVI, o reino de Kebbi era aliado do Songhai; empreendeu várias
campanhas contra outros Estados haussa, que consideravam -no inimigo.
Kebbi entrou para a história no momento em que essa área caiu, pela primeira
vez, em mãos dos Songhai, durante o reinado de Sunn Al (1464 -1492). Nessa
época, o vale inferior do Rima era administrado por chefes de cque tinham
o título de magaji (sucessor); pouco depois, começaram a chegar imigrantes
de outras regiões haussa. Entre os imigrantes, certo Muhammadu Kanta, de
Kuyambana, ao sul de Katsina, eclipsou rapidamente os magaji locais, gras
às suas proezas militares, e tornou -se governador de facto da subproncia
de Kebbi (Império Songhai)
42
. Ingressando no exército songhai como barde
(capitão), participou da campanha bem -sucedida contra o sultão de Agadez,
quando foi arrebatado grande butim. Não recebendo a parte que esperavam,
Kanta e seus seguidores romperam com o Império Songhai e foram declarados
rebeldes. Isto ocorreu em 1516; seguiram -se vários combates contra os Songhai,
durante alguns anos, mas Kanta conseguiu manter -se independente
43
. Estabe-
leceu, então, a capital em Surame, e encorajou as pequenas aldeias a se unirem
e formarem cidades fortificadas, com muralhas que assegurassem a defesa. Ele
próprio agrupou nove aglomerações separadas para constituir Birnin Laka. Como
base defensiva contra os Songhai, fundou a seguir outra cidade, que se chamou
Birnin Kebbi
44
.
Após ter consolidado o sistema de defesa, Kanta voltou -se para o exterior.
Arrebatou do controle dos Songhai a região de Air (Agadez). M. Muhammad
Bello atribui a Kanta a conquista de todo o território haussa e de algumas
regiões de Bornu
45
. Outras fontes falam das invaes do Yawuri e do Nupe, ao sul
46
.
Kanta o parece ter criado uma administração que integrasse os terririos conquis-
tados à província metropolitana. Bastava -lhe que os Estados vassalos reconhecessem
41 MUHAMMAD BELLO, 1922, p. 13. A exclusão de Kebbi dos “sete Estados haussa” pode ter origem
no fato de que, no século XVI, o reino de Kebbi era aliado do Songhai; empreendeu várias campanhas
contra outros Estados haussa, que consideravam -no inimigo.
42 Sobre a gênese de Kebbi, incluindo a ascensão e queda de Kanta, ver ALKALI, 1969.
43 AL -SA’DĪ’, 1900, p. 129 -30.
44 ALKALI, 1969, p. 55 et seqs
45 MUHAMMAD BELLO, 1922, p. 13 -4.
46
EAST,
1933, v. 1.
313
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
a suserania de Kebbi e lhe pagassem tributo
47
. No século XVI, Kebbi tornou -se
grande potência, que funcionava como uma espécie de Estado -tampão entre
o território haussa e a bacia do Níger. O reino de Bornu, inquieto com o sur-
gimento do novo Estado poderoso, tentou dominá -lo, invadindo os Estados
haussa súditos de Kanta, mas seus exércitos foram esmagados. Kanta morreu
em 1556, ao voltar de outra campanha vitoriosa a oeste de Bornu. Os Estados
haussa pararam de pagar tributos a Kebbi e recobraram a indepenncia. Ahmadu,
primogênito e sucessor de Kanta, não pegou em armas para obrigá -los ao pagamento.
No final do século XVI, os senhores de Kebbi não dominavam nem mesmo Aga-
dez, pois Kano e Katsina lá intervieram para defender um inimigo de Kebbi. De
“império que fora, Kebbi transformou -se em reino local, cuja autoridade sobre o
território haussa desapareceu definitivamente.
Pode -se ver, pelo que foi dito até agora, que o período situado entre 1200 e
1600 deve ser considerado crucial na história dos Haussa. Governos centralizados
estabeleceram -se em meia dúzia de Estados, em torno de capitais fortificadas, que
também eram importantes centros comerciais. Alguns destes Estados começa-
vam a se expandir e a atacar outros povos, no território haussa e no exterior.
As relações com os povos vizinhos
É claro que os Haussa não eram os únicos habitantes do Sudão central, ou
seja, da região que se estende do lago Chade, a leste, à bacia do Níger, a oeste,
e do Sahel, ao norte, à bacia do Benue, ao sul. Neste perímetro, os Haussa
desenvolveram contatos com outros grupos étnicos. A lenda de Daura mito
das origens haussa –, enumera alguns dos povos não Haussa com os quais
se relacionaram por volta de 1500. Apesar de várias listas dos banza bakwai
incluírem, por vezes, grupos de língua haussa (Kebbi, Zamfara), os principais
representantes destes povos eram os Jukun, os Kwararafa, os Gwari, os Yoruba,
os Nupe e os Yawuri. E interessante notar que nenhuma das listas cita os nomes
dos maiores e mais importantes vizinhos o Kanem -Bornu e o Songhai –,
cuja influência, no território haussa, deve ter sido considerável desde tempos
muito antigos.
Barebari (ou Beriberi) era a denominação em geral usada pelos Haussa para
os povos do Império do Kanem -Bornu. Os nomes Kanembu, Kanuri, árabes
Shuwa, Bolawa, Ngizim etc. passaram a ser conhecidos no território haussa
47 ADELEYE, 1971.
314
África do século  ao século 
em tempos modernos. Dentre os Barebari, as classes sociais que dominavam as
relações do Bornu com o território haussa os dirigentes, os comerciantes, os
religiosos muçulmanos eram, geralmente, de origem kanuri; portanto, alguns
aspectos da cultura kanuri se tornaram representativos dos Barebari
48
.
As relações com o Kanem -Bornu foram de grande importância para a histó-
ria do território haussa, pois esse Estado forneceu muitos elementos culturais e
ideias novas, que se tornaram parte integrante da cultura e civilização haussa. Os
contatos entre os Haussa e os Kanuri começaram quando estes ainda habitavam
o Kanem, assumindo nova dimensão quando eles se estabeleceram definitiva-
mente no Bornu, a sudoeste do lago Chade
49
.
Na segunda metade do século XV, após longo período de conflitos inces-
santes, o reino de Bornu entrou num período de estabilidade, associado à cria-
ção de uma capital permanente e fortificada, a oeste do Chade, Ngazargumu,
que passou a ser uma base sólida para a expansão ocidental do Bornu, em
direção ao território haussa
50
. Por volta de 1425, Uthmān Kalnama, dirigente
deposto do Bornu, refugiou -se em Kano com um grupo de partidários, tendo
atuação importante nos reinados de Dauda (1421–1438) e de Abdūllāh Burja
(1438–1452). Como dificilmente o mai do Bornu pudesse ignorar esta ameaça
do território haussa, reduziu Kano e outras partes da região à vassalagem, de
maneira que numerosas cidades passaram a pagar tributo a Bornu
51
.
Por esta época, Katsina também foi parcialmente dominada e obrigada a
enviar o tributo anual de cem escravos a Ngazargumu
52
. Não sabemos até que
ponto o território haussa, como um todo, foi dependente do Bornu, nem por
quanto tempo. M. G. Smith tende a pensar que, a princípio, apenas Biram e
Kano foram vassalos do Bornu, pois Kano, o principal Estado haussa fronteiriço,
foi o primeiro a despertar a ambição dos Kanuri
53
. Por outro lado, conforme a
Sokoto Provincial Gazetteer,
Yawuri enviava um tributo anual a Zaria, seu superior imediato, e portanto, a Bornu.
Todos os outros Estados haussa enviavam seu tributo a Daura, para Bornu
54
.
48 USMAN, 1972.
49 Ver ADAMU, 1979. A história do Kanem -Bornu é tratada no capítulo 10 deste volume.
50 SMITH, H. F. C.; 1971, p. 182.
51 Ver a
Crônica de Kano,
em PALMER, 1928,
v.
3, p. 109 -10
52 Ibid., p. 83.
53 SMITH, M. G., 1964a.
54 Citado por ibid.
315
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
A verdadeira suserania do Bornu sobre o território haussa e suas diversas
regiões, durante esse período, ainda exige outras pesquisas. No entanto, se
estabeleceu que, a partir dessa época, a influência do Bornu, principalmente
sobre Kano, tornou -se mais forte, contribuindo assim para o desenvolvimento
cultural do território haussa.
Durante o século XVI, o advento do Kebbi como o Estado mais belicoso do
Sudão central, provocou lutas prolongadas entre este reino e os senhores do Bornu.
Muhammadu Kanta saiu vencedor dessa luta, que visava principalmente ao domí-
nio do Air (Agadez), importante ponto de cruzamento das rotas transaarianas
que levavam ao território haussa. É ainda difícil dizer em que medida os Estados
haussa participaram deste jogo de poder. Mas parece que Kanta dominou, pelo
menos, algumas cidades -Estado, eliminando, assim, a tutela política do Bornu.
Outro Estado poderoso, limítrofe ao território haussa, era o Império Songhai.
Seu predecessor hegemônico no Sudão central, o Mali
55
, nunca exerceu qualquer
papel político na hisria haussa, apesar de sua influência cultural principalmente
através dos comerciantes e religiosos Wangarawa (Wangara) ter sido, desde cedo,
bastante sentida.
Até pouco tempo, a maioria dos historiadores acreditava que o Askiya
Muhammad I (1492–1528), poderoso chefe do Império Songhai, teria con-
quistado, durante os primeiros anos do século XVI, todo o território haussa,
impondo sua suserania a Kano, Katsina, Gobir, Zamfara e Zazzau. De acordo
com esta tese, a região haussa se teria tornado, nas décadas seguintes, palco da
luta entre dois Estados imperiais, o Songhai e o Bornu, apesar do surgimento de
Kebbi como reino independente ter enfraquecido o domínio direto do Songhai
sobre o território haussa, desde 1515. Mas, como bem demonstrou H. J. Fisher,
a única fonte que evoca esta invasão e ocupação songhai é o relato de Leão, o
Africano, viajante marroquino, que esteve em vários lugares do Sudão ocidental
entre 1510 e 1513
56
. Não se pode negar que a descrição da invasão songhai seja
expressiva e contenha inúmeros detalhes sobre o destino dos chefes haussa, os
tributos esmagadores e as alianças matrimoniais
57
. Mas, por outro lado, as crôni-
cas haussa calam -se a respeito desse acontecimento, tão essencial para a história
política do território. Isto não pode ser explicado unicamente pelo desejo dos
cronistas de suprimir a lembrança de uma derrota humilhante, já que a Crônica
55 O Songhai é frequentemente evocado nas crônicas haussa como o Meli, no sentido de “império
ocidental”.
56 FISHER, H. J., 1978.
57 LEÃO, o AFRICANO, 1956, v. 2, p. 473 et seqs.
316
África do século  ao século 
de Kano evoca frequentemente as derrotas do sarki de Kano, em várias ocasiões,
e frente a Estados menos poderosos, como Katsina, Zaria ou Kwararafa. Mais
importante ainda é o fato de as crônicas de Tombuctu – que narram estes acon-
tecimentos do ponto de vista songhai – não mencionarem a alegada campanha
vitoriosa de seu herói preferido, o Askiya Muhammad I. Referem -se brevemente
a uma expedição menor contra Katsina em 1514, pouco após a visita de Leão,
o Africano
58
. Atualmente, parece mais do que provável que a conquista songhai
do território haussa jamais tenha acontecido, e que os Estados desta área nunca
estiveram, de fato, sob o domínio songhai.
Ao sul do território haussa, às margens do médio Benue, vivem, atualmente, os
Jukun. Embora sejam hoje pouco numerosos, tiveram papel considevel, em outros
tempos, na história das regiões central e setentrional da atual República Federal da
Niria, exercendo influência duradoura sobre muitos de seus vizinhos.
Segundo teoria geralmente aceita, os Jukun vieram do nordeste. Quanto à
região de origem, as tradições são divergentes: algumas mencionam o vale do
Nilo e o Kordofan, outras chegam a indicar a Arábia e o Iêmen. Uma tradição
afirma, ainda, que os Jukun chegaram na mesma época que os Kanuri
59
. Apesar
de tradições de origem muito remota parecerem suspeitas, é plausível que os
Jukun tenham vindo do nordeste através da região situada entre os planaltos de
Mandara e o lago Chade. As provas linguísticas, porém, mostram que a língua
jukun pertence à subfamília de Benue -Congo, assim como o tiv, o ibibio, o efik e
a maioria das línguas do vale do Cross River, o que indicaria uma origem meri-
dional. Não se exclui, no entanto, a possibilidade de os Jukun terem formado a
última onda de um movimento migratório, do norte e do nordeste para o sul.
Duas teorias foram propostas para identificar em qual região da Nigéria os
Jukun teriam, a princípio, estabelecido seu poder político.
A primeira sustenta que os Jukun estabeleceram o Império Kwararafa, fre-
quentemente mencionado nos textos tradicionais haussa
60
, na bacia do médio
Benue, ao sul do leito do rio. As ruínas da cidade conhecida como Kwararafa
ainda podem ser vistas na região. Kwararafa foi o nome que os Haussa deram
aos Jukun, à sua capital e a seu reino
61
. Quando a cidade foi abandonada, no
58 KA‘TI, 1913 -1914, p. 77 e 147; AL -SA‘DĪ’, 1900, p. 78 e 129.
59 MEEK, 1931a, p. XV.
60 Ibid.
61 Kwararafa é derivado de kororo -afa, que geralmente signica “povo do sal”, pois o território jukun era
famoso por suas minas de sal. Ver BAIKIE, 1856, p. 455. Os termos kororofa ou kororofawa que se
encontram nos textos, talvez se reram aos povos em geral do vale do Benue e não forçosamente e
sempre ao mesmo povo os Jukun. Ver HODGKIN, 1975, p. 31.
317
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
fim do século XVIII
62
, Wukari, que ainda existe, foi fundada na mesma área.
A partir do sul da bacia do Benue, os Jukun se espalharam para o norte, para
o vale do Gongola e, mais tarde, para o Kasar Chiki
63
. Esta expansão para o
norte ainda não foi datada, mas ocorreu antes de ser abandonada a cidade de
Kwararafa. As relações entre os Haussa e os Jukun desenvolveram -se, a princí-
pio, ao sul da bacia do Benue. Demonstrou -se que a língua jukun é originária
dessa região, tendo -se expandido, depois, para o norte
64
. A origem meridional do
poder político jukun é ainda sustentada pelas tradições orais de várias cidades do
Kasar Chiki, segundo as quais suas populações descendem de imigrantes Jukun
provenientes do sul (Kwararafa e Wukari).
De acordo com a segunda teoria, os Jukun começaram a organizar seu poder
político, e a estabelecer relações militares e comerciais com os Haussa no vale
do Gongola, ao norte do Benue, e em algumas partes da bacia do Benue. O
domínio jukun ao sul do Benue somente se teria desenvolvido bem mais tarde.
Ainda se ignora quando e como
65
.
Estas duas teorias não são inteiramente incompatíveis, e parece que os Jukun
tinham dois centros de poder político: a parte sul da bacia do Benue e o vale do
Gongola. Por razões ainda obscuras, a região sul da bacia do Benue conseguiu
eclipsar politicamente todas as outras áreas de povoação jukun. É possível que
alguns dos ataques contra os Estados haussa, que partiam do vale do Gongola,
tenham sido ordenados pelo aku, chefe supremo dos Jukun
66
, instalado na região
meridional, na atualmente abandonada cidade de Kwararafa. Apoiando -se no
fato de que os Haussa e os Kanuri chamavam seu inimigo comum por nomes
diferentes – Kwana em kanuri, Kwararafa em haussa –, M. Riad sugeriu a exis-
tência de dois Estados jukun, um ao norte, perto do Bornu, chamado Kwana,
outro mais ao sul, e mais ligado ao território haussa. Estes Estados não teriam
sido contemporâneos, pois o segundo é mencionado, na Crônica de Kano, como
tendo existido no século XIV
67
.
62 A respeito do declínio da cidade de Kwararafa, ver MEEK, 1931a, p. 32 et seqs., e ADAMU, 1978, p.
38 -43.
63 Kasar Chiki é a parte baixa do atual Estado de Plateau, na República Federal da Nigéria, que engloba
as áreas de governo local de Wase (Langtang ), Shendam e Awe. Kasar Chiki signica, literalmente, em
haussa, “entre -territórios”; ainda não se estudou a origem deste termo.
64 Ver a tese de 1971, sobre a língua jukun, de K. Shimuzu.
65 A teoria do Gongola foi sustentada por SMITH, H. F. C., 1971, e ultimamente por ABUBAKAR, 1980,
p. 168 et seqs.
66 O aku devia a posição a seu papel religioso: acreditava -se que era designado pela divindade e servia de
intermediário entre os deuses e o povo. Ver YOUNG, 1966.
67 RIAD, 1960, p. 483 et seqs.
318
África do século  ao século 
Infelizmente, os Jukuno conservaram sua história, nem por escrito, nem em
“história de tambor”
68
. A maioria dos Jukun atuais, com a exceção importante do
grupo Pindiga, esqueceu os detalhes de suas antigas atividades belicosas. Graças
a diversas fontes, é claro, no entanto, que de 1200 a 1600 os Jukun estavam
estabelecidos na bacia do médio Benue e no vale do Gongola. É até posvel que
sua expansão em direção ao Kasar Chiki tenha começado a partir do século XVI.
Durante este período, formaram um Estado poderoso que, em 1600, alcançou o
apogeu de sua força militar. A importância passada dos Jukun também é atestada
pelo fato de grupos étnicos ou afirmarem queo seus descendentes, ou imitarem
aspectos de sua cultura, diretamente ou por interdio dos Igala. Além dos Igala,
estes grupos compreendem os Idoma, os Ankwe, os Montol, os Igbira e outros
69
.
Com os Nupe, atingimos a parte mais meridional do Sudão central. Evidên-
cias linguísticas e tradições orais indicam, no entanto, que as primeiras conexões
importantes foram estabelecidas mais com o sul que o norte. Por sua localização
geográfica, porém, o território nupe estava destinado a ligar a savana, ao norte,
às regiões florestais do sul, tornando -se ponto de encontro e confluência. Tudo
indica que os Nupe eram autóctones na região que ocupam atualmente, próxima
do local onde o Benue se lança no Níger. Mesmo a história de Tsoede “o herói
da cultura e fundador mítico do reino de Nupe”
70
refere -se apenas ao surgi-
mento de um governo centralizado, e não à origem dos Nupe como povo
71
. Antes
da era de Tsoede (seu outro nome, empregado particularmente pelos Haussa, era
Edeji), os Nupe dividiam -se em cinco subgrupos ou clãs: os Ebe, os Beni (ou
Bini), os Ebagi, os Bataci e os Dibo (ou Zitako, também chamados Ganagana
pelos Haussa). Formavam uma confederação pouco centralizada, chamada con-
federação de Beni. Pelas fontes, evidencia -se a exisncia de reis antes da época de
Tsoede: são conhecidos os nomes de alguns deles. M. D. Mason afirma que Tsoede
ésimplesmente a personificação de uma série de acontecimentos que conduziram
à fundação de um Estado supratribal”
72
. Este período foi revolucionário, no sentido
68 Os tambores e os cantores são veículos das tradições orais de muitas comunidades da África ocidental.
Os acontecimentos históricos são geralmente conservados em cantos ou citações, transmitidos de pai
para lho, nas famílias de músicos tradicionais (griots). A maioria destes relatos concerne à história
política, pois só os reis e os chefes podiam permitir -se a assistência contínua dos griots. Os cantos eram
recitados durante as cerimônias. Nos Estados haussa, também existem histórias de tambor”, mas não
foram recolhidas sistematicamente. A maior parte dos historiadores obtém suas informações através dos
relatos de cortesãos do palácio e de religiosos muçulmanos (os mallam), além de documentos escritos.
69 Detalhes a este respeito podem ser encontrados nas obras de TEMPLE, 1922 e MEEK, 1931a.
70 NADEL, 1942, p. 72.
71 MASON, M. D., 1970 -1971, p. 32 -3.
72 Ibid.
319
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
da unificação feita por Tsoede não apenas dos Nupe sedentários, representados
pela confederação de Beni, mas também dos ribeirinhos Kyedye (ou Kede) que
dominavam a água –, e muitos outros subgrupos constituídos pelos Yoruba,
Gwari, Kanuri e Igala imigrantes ou assimilados.
Acredita -se que o próprio Tsoede tivesse vivido na primeira parte do século
XVI, mas esta data é incerta. Apesar de até hoje não se poder situar cronologica-
mente e de forma segura o processo de formação do Estado nupe, as referências
a este povo, nas fontes haussa, remontam ao século XV; é possível que algumas
delas se refiram à confederação de Beni. Desde o século XV, os Nupe faziam
parte de grupo étnico em rápida expansão. Foi reforçado em número por enco-
rajar o estabelecimento e, mais tarde, a assimilação de imigrantes do território
yoruba, de Igala (povo que se supõe ter vindo com Tsoede) e do Bornu, junta-
mente com os Gwari e alguns Kambari. Nos séculos XV e XVI, desenvolveu -se
uma cultura dinâmica para os Nupe como um todo, em detrimento dos valores
dos pequenos grupos étnicos. O Estado de Tsoede evoluiu no sentido de uma
centralização crescente. Durante esse período, os reis de Nupe estabeleceram
relações diplomáticas com as cidades haussa.
Outro grupo a manter relações com os Haussa, nessa época, foram os habi-
tantes de Bauchi. Os Haussa denominavam Bauchi o território situado ao sul
do território haussa Kasashen Bauchi –, que corresponde, na atual República
Federal da Nigéria, às áreas dos Estados de Bauchi, Plateau, o sul de Kaduna, o
norte do Níger e o sul de Sokoto (Zuru e Yawuri)
73
. Muitos povos consideram
este vasto território como sua tria: à exceção dos Kambari, o pequenos
grupos étnicos
74
. Suas tradições – ainda excetuando os Kambari – afirmam que
são originários do território haussa ou do Bornu.
É difícil reconstituir o relacionamento dos Haussa com os povos de Bauchi até o
século XVI, em virtude da escassez de fontes hisricas. Parece que existiram, princi-
palmente, migrações haussa para o território bauchi. Muitos povos aventuraram -se
para o sul com objetivos militares ou comerciais e vários outros como refugiados
75
.
Em sua maioria, estes migrantes exceto os soldados instalavam -se e o mais
voltavam de Kasashen Bauchi. Alguns conservavam a ngua haussa, mas os des-
cendentes de outros grupos foram assimilados linguisticamente pelos povos
que os acolhiam, como os Kambari, Gungawa, Dakarawa, Gwari, Kamuku
ou Warjawa. Por outro lado, o território de Bauchi era o alvo predileto das
73 Uma breve discussão sobre o uso tradicional do termo Bauchi encontra -se em ADAMU, 1978, p. 23.
74 Ver MEEK, 1925 e TEMPLE, 1922.
75 ADAMU, 1978,
p.
39 -40.
320
África do século  ao século 
expedições escravagistas de Kano e Zazzau; daí muitos de seus habitantes serem
conduzidos para o território haussa.
Entre os povos de Bauchi, somente os Kambari e os Kamuku parecem ter
fundado espécies de governos centralizados antes do século XVI. A história polí-
tica de Yawuri mostra que no fim do século XIV, quando os Haussa começaram
a se estabelecer nessa região, chocaram -se com a chefaria kambari de Maginga,
tomando -a e dominando -a a partir de então. É, no entanto, possível que Maginga
formasse um reino kambari por volta do ano de 1200. É difícil precisar sua
relação com os primeiros Estados haussa, em virtude da falta de documentos. É,
porém, interessante observar que os primeiros Haussa a dominarem Yawuri, no
século XIV, eram comerciantes do sul de Katsina, residentes na região
76
.
Quanto aos Kamuku, é possível identificá -los a um povo chamado Karuku,
mencionado por al -Makrz (morto em 1442), em al -Khbar an adjnas al -Sūdān
(As raças do Sudão), e também ao reino de Kankuma (Kwangoma ou Kangoma)
77
.
Não se sabe se o reino pretensamente dominado pelos Kamuku existia em
1200 e se foi ele o Estado predecessor de Zaria, como afirma M. Last
78
. No
entanto, o testemunho de al -Makrzindica a existência de certa forma de
organização política entre os Kamuku, desde os séculos XIV e XV.
Principais acontecimentos do território haussa
A imigração
Um dos principais acontecimentos deste período foi a imigração em massa
de povos e grupos de origens diversas, em diferentes momentos, e com diver-
sos objetivos, para o território haussa. A maioria dos imigrantes era do Sahel,
ao norte, do Bornu, a leste, e de partes dos impérios do Mali e do Songhai, a
oeste. Entre os imigrantes encontravam -se pastores, pescadores, agricultores,
mercadores, negociantes, religiosos muçulmanos, eruditos (mallam, em haussa),
e também alguns aristocratas.
Os primeiros imigrantes pastores foram os Fulbe (“Fulani”), logo seguidos
pelos tuaregues. Do grande número de escritos sobre a história dos Fulbe no
Sudão central não resultou qualquer reconstituição plausível de sua migração,
76 Ver ADAMU, no prelo a, capítulo 2.
77 Uma nova edição deste texto gura em LANGE, 1979b; a tradução anterior é de PALMER, 1928, v. 2, p. 6.
78 Ver LAST, in ADAMU, no prelo b.
321
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
a não ser a concordância da maioria dos especialistas de que chegaram a essa
região pelo oeste. Mas a cronologia e suas rotas continuam pouco conhecidas.
Segundo Yusūfū B. Usman, os Fulbe chegaram a Katsina durante o reinado do
sarki de Katsina Jabdayaki (c. 1405–1445)
79
. Pouco após, sua chegada é men-
cionada pela Crônica de Kano nestes termos:
Na época de Yak’ubu (1452 -1463), os Fulbe chegaram de Melle ao território haussa,
trazendo os livros da divindade e da etimologia. Anteriormente, nossos doutores só
dispunham, além do Corão, dos livros da lei e das tradições. Os Fulbe atravessaram
a região, indo para Bornu; alguns permaneceram no território haussa, com escravos
e pessoas cansadas de viajar
80
.
Apesar de vários destes Fulbe serem religiosos muçulmanos, como indica a
citação, a imensa maioria era de pastores nômades ligados às crenças tradicionais.
Vinham ao território haussa à procura de novas e melhores pastagens para seu
gado caprino e ovino. É impossível determinar o mero de Fulbe que chegou
à região setentrional da atual República Federal da Nigéria naquela época, mas
ele parece ter sido grande. No território haussa, os Fulbe podiam ser encontrados
no centro de Kano, ao norte de Katsina e no vale do Rima (partes de Zamfara e
Kebbi). Os religiosos muçulmanos viviam sobretudo nos centros urbanos, onde
contribuíram para reforçar o Islã, principalmente nos Estados de Katsina e Kano.
Os tuaregues entraram no território haussa por Azbin, no fim do século XIV,
época em que se chocaram com os Haussa do Gobir. observamos que eles
expulsaram os antigos ocupantes e o chefe haussa do Gobir da região do Azbin,
e que instalaram seu sultanato em Agadez em 1405
81
. Sendo pastores, não lhes
interessava a ocupação territorial estável; preocupavam -se principalmente em
trocar seus produtos por outros de origem agrícola, e também em empreender
incursões contra as comunidades sedentárias do sul de Azbin.
Alguns grupos de imigrantes tuaregues, no entanto, continuaram a penetrar
no território haussa, à procura de pastagens, mas o movimento de imigração
se intensificou mais tarde.
As migrações do Bornu para o território haussa constituem, provavelmente,
processo muito antigo
82
, mas foram documentados a partir do século XV. Além
79 USMAN, 1979b.
80 PALMER, 1928, v. 3, p. 111.
81 HUNWICK, 1971b, p. 218 -22.
82 Ver ADAMU, 1979.
322
África do século  ao século 
dos aristocratas refugiados do Bornu, mencionados na Crônica de Kano
83
, muitos
migrantes principalmente eruditos e mercadores continuaram a chegar ao
território haussa. Instalaram -se por todo o território, principalmente em Kano,
Katsina e Zaria
84
apesar de considerarmos que a imigração posterior a 1600 foi
bem menos densa que a anterior. Nada atesta que houvesse artesãos entre os
primeiros imigrantes do Bornu, mas esta possibilidade não deve ser descartada.
Os Wangarawa/Jula constituíram outra onda imigratória. Como sua chegada
está estreitamente ligada ao problema da introdução do Islã nessa região, ainda
se discutindo sua datação, trataremos deste problema mais tarde. À primeira
onda no culo XIV ou XV , seguiu -se a de outros grupos Wangarawa,
principalmente mercadores. Alguns se estabeleceram em Yandoto e Kuyambana,
em Katsina Leka
85
, outros escolheram os centros urbanos de Zazzau
86
, e muitos,
naturalmente, instalaram -se em Kano. Os Wangarawa logo se integraram ao
sistema social haussa, apesar de não terem perdido o controle de suas atividades
econômicas, formando, por algum tempo, um grupo social à parte
87
.
Outro grupo de imigrantes do oeste era formado por pescadores songhai,
que se instalaram no vale do Rima inferior. Quando chegaram, possuíam ins-
trumentos e métodos de pesca bem desenvolvidos
88
, sendo também agricultores.
Como os outros grupos estrangeiros, acabaram por perder todas as marcas da
cultura songhai. Tornaram -se Haussa, e criaram, assim, o que se pode chamar
de fronteiras ocidentais do território haussa
89
.
A última categoria de imigrantes a se mencionar era constituída por mer-
cadores e eruditos árabes e berberes, da África setentrional e de Tombuctu.
Começaram a penetrar no território haussa na segunda metade do século XV,
quase ao mesmo tempo que os Fulbe, e, novamente, Kano e Katsina foram
escolhidas como locais de residência. Kano, em particular, tornou -se centro de
atração para os eruditos muçulmanos de regiões distantes. Este afluxo devia -se
83 PALMER, 1928, v. 3, p. 109.
84 Ver USMAN, 1972, e LAST, in ADAMU, no prelo b.
85 USMAN, 1979b.
86 LAST, in ADAMU, no prelo b.
87 O aspecto mais notável desta adaptação social foi a diminuição do emprego das nisba (nome de clã) em
território haussa. Assim, nunca foram comuns, no país haussa, nomes de clã como Kamara, Cisse (Sisse),
Traore, Watara etc. O haussa tornou -se a única língua de comunicação dos Wangarawa, ao menos em
público.
88 Ver ALKALI, 1969, p. 49; mas A. Augie em sua tese de doutoramento, sobre a história da bacia do
Rima antes da djihād de Sokoto (1804) – discorda de M. B. Alkali.
89 Ver a g. 11.1.
323
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
F . M    H      N . (M. A.)
324
África do século  ao século 
tanto à prosperidade crescente dos Estados haussa, quanto à adoção da religião
islâmica por vários grupos e camadas da população urbana.
A emigração
Assim como o território haussa recebia imigrantes de várias regiões, perdia
população em escala nada negligenciável. A maioria dos emigrantes dirigia -se
para o sul ou para o oeste
90
. O movimento humano que ia do terririo haussa
para reges imediatamente ao sul parece muito antigo, mas nenhum testemunho
a este respeito sobreviveu. Os primeiros textos referentes às emigrações haussa
para o sul tratam, em sua maioria, das campanhas militares empreendidas pelos
senhores de Kano, Katsina e Zaira (Zaria?). no século XIV, os povos não
Haussa dos atuais Estados de Bauchi e Gongola da República Federal da Nigé-
ria como os Kudawa, os Warjawa, os Kwararafa (Jukun) foram atacados
pelos exércitos dos Estados haussa. Nos séculos XV e XVI, estas campanhas
não somente se intensificaram, como se diversificaram
91
. Foram atacadas as altas
terras de Plateau, região atualmente conhecida como Zaria do Sul, e a região
de Yawuri. Algumas destas campanhas incluíam sítios e ocupação prolongada
para operações de limpeza. Os textos mencionam
92
que muitos Haussa não
pertencentes ao corpo do exército deixavam suas casas e seguiam as tropas,
comerciando e providenciando serviços remunerados para os soldados. Grande
parte desta gente nunca voltou ao território haussa, e as campanhas militares
assim contribuíram para a emigração e a dispersão dos Haussa.
Outras categorias de emigrantes incluíam comerciantes e religiosos muçul-
manos. Foi desta forma que gente da região de Kuyambana, ao sul de Katsina,
impôs o domínio haussa a Yawuri, na segunda metade do século XIV
93
. O
Bornu também acolheu alguns Haussa de Kano, no prinpio do culo XV,
de acordo com a Crônica de Kano
94
. Embora os movimentos haussa tivessem
comado durante este período, intensificaram -se somente após o século XVI,
quando se transformaram em vasta dspora haussa em diversas regiões da
África ocidental.
90 Pode -se encontrar uma análise detalhada destes movimentos em ADAMU, 1978, capítulos 3, 5, 6 e 7.
91 Ibid., p. 24 -5.
92 PALMER, 1928, v. 3, p. 110.
93 Ver ADAMU, 1979.
94 PALMER, 1928, v. 3, p. 108.
325
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
A difusão do Islã
A introdução da religião islâmica no território haussa é ainda objeto de polê-
mica entre os especialistas. Muitos autores aceitaram, sem críticas, a afirmação
da Crônica de Kano, segundo a qual o Islã teria sido introduzido, nessa área,
em meados dos séculos XIV pelos Wangarawa ( Jula), vindos do Mali, durante
o reinado do sarki de Kano Yaji (1349–1385). Apesar de se tratar do primeiro
testemunho escrito sobre a religião muçulmana no território haussa, é mais do
que provável que sua difusão já se tivesse iniciado em época bem anterior, pois
ela era praticada no Kanem -Bornu desde o século XI
95
. Seria surpreendente essa
religo não ter atingido o terririo haussa durante o peodo que precedeu o século
XIV, sabendo -se dos contatos contínuos entre os Haussa e o Kanem -Bornu, desde
bem antes dessa época
96
. Kano logo sofreu influências islâmicas deste Estado
vizinho, como atestam os elementos de ordem linguística: muitas palavras árabes
ligadas à religião haviam sido introduzidas na língua haussa por intermédio de
Kanuri
97
, mostrando que o Islã penetrou na área antes pelo leste do que pelo
oeste. Em segundo lugar, a tradição oral, recolhida em Kano recentemente,
indica que o Islã estava presente na cidade de Kano bem antes da chegada
dos Wangarawa
98
. Em terceiro lugar, a rota comercial de Fezzān a Gao atraves-
sava o território do Gobir, onde Marandet se havia desenvolvido, tornando -se
grande centro comercial. Pode -se, então, supor que, por influência dos mercado-
res muçulmanos da África setentrional, o Islã tenha sido introduzido no Gobir
bem antes do século XIV. Em quarto lugar (apesar de admitirmos não se tratar
de argumento decisivo), é preciso levar em conta o fato de, mesmo antes da
época de Yaji, existirem muitas pessoas em Kano com nomes islâmicos, tais
comó Daud (outro nome de Bagauda), Maidawaki, Abdūllāh, Zakar, Salmata,
Usman etc.
99
Um documento árabe recentemente descoberto e publicado, a Crônica dos
Wangarawa (Asl al -Wangariyīn), datado de 1650–1651
100
, nada esclareceu, apesar
das esperanças que despertou, sobre a questão de como o Islã penetrou, pela pri-
meira vez, no território haussa. Este documento descreve detalhadamente a che-
gada dos Wangarawa a Kano, no reinado do sarki de Kano Rumfa (1463–1499),
95 SMITH, H. F. C., 1976, p.165 -6. (Não há mais dados bibliográcos disponíveis.)
96 ADAMU, 1979.
97 GREENBERG, 1960.
98 PADEN, 1973, p. 48 et seqs.
99 Ver a Crônica de Kano em PALMER, 1928, v. 3, p. 99 -100 e 103 -4.
100 AL -HAJJ MBAYE, 1968, p. 7 -16.
326
África do século  ao século 
como contemporânea à do célebre al -Maghl, o que levou A. al -Hajj Mbaye a
concluir que esta missão wangarawa proselitista chegou a Kano no fim do século
XV, e que a data proposta pela Crônica de Kano (século XIV) deveria ser refutada.
A Crônica dos Wangarawa, porém, situando os dois acontecimentos na época de
Rumfa, confundiu -os; de fato, ocorreram com mais de um século de distância
101
.
Como o Asl al -Wangariyīn foi revisto várias vezes e contém algumas contradições,
seu conteúdo não pode ser aceito sem críticas
102
. Convém, portanto, dar prefe-
rência às indicações da Crônica de Kano, no que se refere à data da chegada dos
Wangarawa, ou seja, o século XIV. Independente do fato de se saber qual das
datas século XIV ou XV é correta, o Islã, sem dúvida, foi introduzido bem
antes no território haussa, pelo Air ou pelo Gobir, ou ainda a probabilidade é
maior –, pelo Kanem -Bornu. Não se pode excluir a possibilidade de negociantes
muçulmanos provenientes do oeste (Mali e Songhai) terem difundido o Islã
entre os comerciantes e parte da elite dirigente haussa, antes da chegada dos
Wangarawa – eruditos e missionários muçulmanos imigrantes –, que mais tarde
contribuíram para instaurar uma tradição islâmica mais forte e extensa.
Por outro lado, apesar de o Islã estar bastante disseminado pelo território
haussa no século XIV, continuava sendo sobretudo a religião dos comerciantes
expatriados, de pequenos grupos de mercadores locais e da elite dirigente, pois as
massas continuavam, em geral, apegadas às crenças tradicionais. Contudo, parece
ter sido exatamente no século XV que uma forte tradição islâmica começou
a se estabelecer, principalmente em Kano e Katsina, tendência reforçada não
somente pelos eruditos wangarawa, como também por religiosos muçulmanos
fulbe, que traziam novos livros sobre a teologia e a lei.
Datam dessa época documentos de numerosos eruditos muçulmanos estran-
geiros, muito ativos no território haussa. O mais conhecido e importante foi, sem
dúvida, al -Maghl, de Tuat, no Saara
103
. célebre no Magreb como erudito,
polemista e perseguidor de judeus, visitou Agadez, Takedda, Kano, Katsina e
Gao por volta de 1490. Apesar de ter desempenhado papel muito importante no
território haussa, em Katsina suas obras são lembradas de modo vago, e de forma
bastante contraditória. Segundo alguns textos, o sarki foi convertido pelo próprio
al -Maghl
104
; outras fontes indicam que o povo reagiu mais favoravelmente às
101 Ver FISHER, H. J., 1977, v. 3, p. 296
102 Ver SA’AD, 1979.
103 Ver, a este respeito, BATRAN, 1973.
104 Muhammad Korau, provavelmente contemporâneo de Rumfa em Kano, teria sido o primeiro chefe
de Estado muçulmano. Devido às incertezas da cronologia de Katsina, não se pode saber quem era o
dirigente quando da visita de al -Maghl. Ver SMITH, H. F. C., 1961, p. 7.
327
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
suas pregações do que as classes dirigentes. Muhammad al -Tazakht (morto em
1529–1530), erudito de Tombuctu, tornou -se mais tarde cádi em Katsina, após
ter feito a peregrinação a Meca.
Em Kano, al -Maghlescreveu para o sarki de Kano Muhammad Rumfa um
espelho para os pncipes”, intitulado As obrigões dos príncipes
105
, aparentemente
para mostrar ao sarki de Kano a forma de governar como chefe muçulmano. Pouco
antes de sua visita a Kano, em 1491 -1492, al -Maghlmanteve correspondência
com Rumfa, onde exs sua concepção de governo ideal
106
. É difícil dizer em
que medida o sarki seguiu as exortações de al -Maghl, pois os documentos
são contraditórios. Algumas “inovações mencionadas na Crônica de Kano
107
parecem corresponder aos princípios islâmicos pregados por al -Maghl, outras
não. A Crônica haussa
108
acusa Rumfa de “maneiras desonestas”, aludindo a seu
afastamento do Islã e ao fato de ter introduzido alguns costumes explicitamente
proibidos pela lei islâmica.
Entre as personalidades que contribuíram para reforçar a tradição e o modo
de vida islâmicos em Kano destacou -se Ahmad Ibn ‘Umar Akt de Tombuctu,
ancestral do famoso Ahmad Bābā, que visitou Kano e ali lecionou, por volta de
1487. Entre 1504 e 1518–1519, vindo do Egito, passou a lecionar em Kano o
marroquino Abd al -Rahmān Sukkayn, discípulo do historiador Ibn Ghāz. Seu
colega Makhlūf al -Balbal (morto após 1543) também foi ativo no campo da
educação em Kano e Katsina. Como disse J. O. Hunwick,
as atividades de ensino destes eruditos parecem ter marcado a emergência de Kano
como cidade muçulmana; sua ‘conversão’ foi simbolizada pelo corte das árvores
sagradas, fato que, segundo a Crônica de Kano e as fontes wangara, ocorreu no reinado
de Muhammad Rumfa (1466 -1499)
109
.
Na mesma época, o Islã penetrou em outros Estados haussa. Em Zaria, o
sarki Muhammad Rabo, no final do culo XV, é tradicionalmente considerado
o primeiro chefe muçulmano
110
. Em Kebbi, o primeiro sarki, Muhammad Kanta
(c. 1516–1554) e alguns de seus chefes converteram -se, acredita -se, ao Islã. Isso
é mais que provável, pois, tendo sido chefe militar no reinado do devoto Askiya
105 AL -MAGHĪLĪ, 1932.
106 Uma tradução inglesa foi publicada por PALMER, 1913 -1914.
107 Ver p. 289.
108 Reproduzida por RATTRAY, 1913, v. 1, p. 10 -6.
109 HUNWICK, 1971b, p. 216 et seqs.
110 SMITH, H F. C. 1971, p. 196 -8.
328
África do século  ao século 
Muhammad I, Kanta deve ter sofrido a influência do Islã. Os nomes muçulmanos
de muitos de seus sucessores evidencia a permanência de leve verniz de cultura
islâmica em Kebbi, apesar de a maioria dos Kebbawa ter mantido a religião tra-
dicional ainda por muito tempo. Temos poucas informações sobre a islamização
em outras regiões do território haussa durante este período. No caso de Yawuri,
podemos conjeturar a existência de pequenos grupos muçulmanos antes de 1600,
pois a região era local de encontro dos mercadores de nozes -de -cola na rota do
Bornu a Gonja; é fato conhecido que esses comerciantes difundiam o Islã ao longo
das vias comerciais, e fundavam pequenas conias nos lugares mais importantes
111
.
De modo geral, a islamização limitou -se à elite dirigente e a grupos de nego-
ciantes durante este período; a religião muçulmana teve impacto nas cidades e
grandes centros e, mesmo neste caso, a maioria dos que se diziam muçulmanos
não o era por inteiro, e continuava a crer em outros deuses, invocados perto de
árvores e de rochas sagradas em seus santuários.
Pode -se afirmar que o Islã se integrou nos esquemas religiosos africanos
porque não era considerado religião estrangeira, ou incompatível com a visão
religiosa haussa, e – o que é mais importante – porque a sociedade muçulmana
não reivindicava, nessa época, exclusividade para sua ideologia religiosa, estando
disposta a acomodar muitos traços das crenças e costumes tradicionais. Esta foi,
provavelmente, a atitude da maioria dos conversos e seus descendentes; a elite
restrita de eruditos expatriados (ou seus discípulos) esforçava -se, no entanto, por
seguir mais estritamente as leis e costumes islâmicos. Por outro lado, a popula-
ção rural continuou a observar a religião tradicional e a empregar a magia e a
feitiçaria ainda por muito tempo. Aparentemente, não houve qualquer oposição
à nova religião, ao menos enquanto os juristas muçulmanos não exigiram a
transformação de certas normas sociais e culturais antigas.
No campo político, o Islã apoiou o processo de centralização em muitos
Estados haussa, ajudando a enfraquecer a estrutura política tradicional, baseada
no controle dos locais importantes de culto. Antes do surgimento dos Estados
centralizados, o controle político nas pequenas chefarias ligava -se estreitamente
aos atos religiosos dos dirigentes.
Na Crônica de Kano escrita do ponto de vista mulmano –, numerosos
relatos sobre a oposição de chefes locais, apresentados como “não crentes”, que se
revoltavam contra os esforços de centralização dos dirigentes de Kano, considerados
verdadeiros muçulmanos. À conquista destas chefarias seguiu -se a destruão
111 Ver BALOGUN, 1980, p. 216.
329
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
deliberada e em grande escala dos principais pontos de culto tradicional, de
forma a privar os chefes locais de sua fonte essencial de poder. Santolo, em Kano,
foi o último destes antigos sítios a ser destruído, no reinado de Yaji (1349–1385).
Outro efeito da difusão do Islã foi o afluxo de grande número de eruditos e
religiosos de várias regiões da África, o que motivou a propagação de novas ideias
políticas, sociais, culturais, e o desenvolvimento da alfabetização ou melhor,
da capacidade de escrever e ler em árabe, e depois em haussa, empregando o
alfabeto árabe (sistema ajami)
112
. Estes fatores contribuíram, por sua vez, para
melhorar a administração do Estado, e também para aperfeiçoar várias práticas
e operações comerciais. Enfim, a introdução e a difusão do Islã ligaram o terri-
tório haussa mais estreitamente a uma área cultural mais vasta e desenvolvida.
Organização política e administrativa
Apesar das difereas regionais, a organizão potica haussa seguiu uma linha
semelhante, nas diversas etapas de sua formação e desenvolvimento, baseada na iden-
tidade cultural e socioecomica, que se exprimia, sobretudo, por uma ngua comum.
Ao mesmo tempo, o sistema administrativo surgido nos Estados haussa, desde
o século XIV, testemunha a influência do Kanem -Bornu, de onde vieram os
modelos de muitas instituições e funções por vezes conservando seus nomes
kanuri/kanembu. De fato, o Bornu foi, durante muito tempo, o modelo de civi-
lização e cultura superiores, e sua influência foi continuamente reforçada pela
imigração proveniente da região do lago Chade.
É interessante observar que os Estados haussa nunca consideraram o Bornu
como inimigo o que não acontecia com o Songhai, Kebbi ou Kwararafa
–, apesar das incursões dos chefes do Bornu, e dos tributos que eram obriga-
dos a lhes pagar. Parece que os Haussa reconheciam sem maiores problemas
a superioridade do Bornu. Por outro lado, a estrutura político -administrativa
haussa, em todos os níveis, exceto no mais elevado, era original e dependia
das circunstâncias locais.
Em todo o território, as pequenas comunidades locais (kanyuka, singular kauye)
eram formadas por grupos de famílias (gidaje, singular gida), dirigidos por um
chefe, o maigari. Estas comunidades eram, de fato, constitdas por aldeias agrí-
colas, geralmente muito pequenas, às vezes temporárias. A seguir, situavam -se as
112 É preciso observar, entretanto, que ainda não foi encontrado nenhum manuscrito ajami haussa anterior
a 1600.
330
África do século  ao século 
vilas (garuruwa, singular gari), maiores e mais esveis, comandadas por um sarkin
gari ou magajin gari (chefe de vila), que podia ser auxiliado por chefes de distrito
(masu -unguwa, singular mai -unguwa). No topo da hierarquia, encontrava -se a birni
(plural birane), capital do terririo, dirigida o por um sarkin birni (esta expressão
o existia em língua haussa), mas por um sarkin kasa, ou chefe do território, cuja
autoridade se estendia, naturalmente, a todos os chefes de nível inferior.
Os fatores que parecem ter sido decisivos para a formão das birane, como sedes
de novo tipo de poder potico, eram, em primeiro lugar, a multiplicidade de recursos
agrícolas e artesanais do território haussa, em segundo, a expano do corcio de
longa distância, principalmente no século XV, e, finalmente, a existência de mura-
lhas, que protegiam a população urbana e agrícola das cidades -Estado durante as
guerras. As birane eram noveis pelo cater cosmopolita da população resultante
do corcio –, e tamm pela lentidão com que parecem ter -se estabelecido
113
.
À frente do país, o sarki (rei) tinha poder absoluto. Sua pessoa física era
sagrada, ao menos teoricamente, pois o destino do reino estava ligado a ela.
Em geral, era escolhido dentre os membros das linhagens reinantes. Apesar
de a sucessão de pai para filho ser comum, deve -se notar que a Crônica de
Kano assinala o nome da mãe de cada chefe, sem dúvida devido a vestígios do
sistema matrilinear. O sarki dividia o poder com oficiais de alta patente; parte
deles pertencia à sua própria linhagem, outros às linhagens do antigo regime,
transformadas então em aristocracias hereditárias. Alguns homens desta elite
eram membros do Conselho de Estado, nomeado pelo monarca. No Gobir, este
conselho era chamado Tara -ta -Gobir (os “Nove de Gobir ou Taran Gobir);
quando o rei morria, todos os candidatos à sucessão deviam aceitar suas deci-
sões
114
. O Conselho de Kano também tinha o nome de Tara -ta -Kano (os “Nove
de Kano”). Estes conselhos lembram o Conselho dos Doze no antigo Império
Sēfuwa do Kanem -Bornu
115
. Como observamos acima o sarki de Kano Rumfa
foi o primeiro a nomear escravos e aeunucos para importantes cargos de
Estado, confiando -lhes o controle do tesouro, a guarda da cidade e do palácio, e
as comunicações com os funcionários livres; exerciam também diversas tarefas
domésticas, como a guarda do harém
116
. O funcionário de Estado mais impor-
tante era o galadima
117
, espécie de primeiro -ministro ou grão -vizir, encarregado
113 Ver SMITH, H. F. C., 1971, p. 187 -91; conforme a tradição, foram necessários pelo menos duzentos
anos para criar, de fato, a cidade -Estado de Kano.
114 NICOLAS, 1969, p. 207.
115 Ver TEMPLE, 1922, p. 467; URVOY, 1949, p. 37 -42.
116 PALMER, 1928, v. 3, p. 112.
117 O título provinha do Bornu, onde designava, porém, o governador das províncias ocidentais, ou seja, as
mais próximas do território haussa.
331
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
de todos os negócios de Estado. Por vezes, este cargo era ocupado por herdeiro
legítimo e, muito frequentemente, o sarki não passava de títere nas mãos de um
galadima poderoso. Este comandava inúmeros funcionários e dignitários, cada
um responsável por um setor específico ou uma unidade territorial, que tanto
podia ser uma província inteira como apenas um grupo de vilas.
Por falta de documentação, é impossível reconstituir o processo de desen-
volvimento do sistema administrativo haussa. A partir de cerca de 1530, como
sublinhou M. G. Smith, muitos fatores, entre os quais o Islã, e especialmente
os escravos sua captura, seu papel como pagamento de tributos e produto de
exportação, suas povoações, os cargos que ocupam como funcionários, eunucos e
concubinas foram decisivos para o desenvolvimento de governos centralizados,
por vezes ditatoriais
118
. A nomeação de escravos para postos oficiais pode ser
interpretada como mais um passo para enfraquecer a posição das antigas linha-
gens e, consequentemente, para assegurar poder mais absoluto ao sarki. Algumas
“inovações” de Rumfa (o confisco de propriedades e mulheres ou a obrigação
da corveia) ilustram o aumento das prerrogativas reais e assinalam, ao mesmo
tempo, mudanças na estrutura social.
Desenvolvimento econômico
As possibilidades de desenvolvimento econômico no território haussa podem
ser resumidas desta forma:
Em primeiro lugar, as jazidas de minério de ferro eram ricas e bem distribuídas,
como atestam não somente a Crônica de Kano (para a própria região de Kano),
como também pesquisas arqueológicas em outras áreas
119
. A maioria destas jazidas,
exploradas na época, localizava -se perto das regiões florestais, onde se produzia,
em abundância, madeira para aquecimento e carvão de madeira, próprio para
a fundição do minério. O ferro do monte Dala contribuiu, com certeza, para o
desenvolvimento da aglomeração que, mais tarde, tornou -se a cidade de Kano.
Em segundo lugar, os solos de quase todas as áreas do território haussa eram
ricos e férteis; os primeiros documentos – de Ibn Battūta e de Leão, o Africano
sublinham que a agricultura era a atividade econômica mais importante dos
Estados haussa, o que é confirmado em todos os estudos anteriores.
118 SMITH, M. G., 1964a e 1964b.
119 A respeito do trabalho em ferro em Zazzau, ver SUTTON, 1976, 1977. Sobre o Gobir, ver artigo de D.
Grebenart.
332
África do século  ao século 
Em terceiro lugar, apesar de não dispormos de dados estatísticos sobre a
densidade demográfica haussa, podemos estimar, pelas inúmeras cidades e vilas
dos vários Estados haussa, que o território era bastante povoado. A distribuição
da população era regular, de forma que não havia excessiva concentração demo-
gráfica numa região do país.
Um quarto fator seria a localização geográfica do território haussa, entre o
Sahel e o Saara ao norte, a savana e a floresta tropical ao sul; podia, desta forma,
ser intermediário no intercâmbio de mercadorias entre estas regiões.
Graças a estes fatores, o território haussa logo desenvolveu o artesanato e o
comércio de longa distância. Novas pesquisas seriam, no entanto, necessárias, para
reconstituir a história econômica do território, desde o início do atual milênio.
Apesar de ter -se a impressão de que os Haussa se dedicavam sobretudo ao
comércio, foram, na verdade, antes de mais nada, agricultores, sendo a agricul-
tura o centro da vida econômica do país. A terra, utilizada sob a supervisão de
um chefe, pertencia à comunidade (aldeia, vila, cidade). Nunca era vendida, e
seu usufruto cabia aos que a cultivavam. Os estrangeiros à comunidade podiam
comprar um lote e explorá -lo, desde que autorizados pelo chefe comunal. Mais
tarde, com o progresso do feudalismo, o sarki passou a ter a possibilidade e o
direito de doar terras a qualquer indivíduo, autóctone ou estrangeiro.
Os agricultores (talawaka, singular talaka) eram dirigidos, em suas atividades,
por um chefe, o sarkin poma (chefe das culturas), responsável pela observação
rigorosa do início da estação das chuvas e pelos sacrifícios a serem feitos aos
deuses locais, para que estes assegurassem boas colheitas.
Com o decorrer do tempo, três tipos de fazenda desenvolveram -se no território
haussa: as gandum sarkin (campos do rei), caracterizadas por grande extensão; as
gandum gide (campos da família), chamados geralmente gona (nome genérico
para todos os campos), e finalmente a gayauna ou gayamma (pequeno lote de
terra pertencente a um indivíduo)
120
.
Nos gandum sarkin, como em todas as grandes propriedades dos dignitários
de Estado, o trabalho dos escravos tinha papel essencial. Durante o reinado do
sarki de Kano Abdūllāh Burja (1438 -1452), milhares de escravos viviam em
Kano e seus arredores. A maior parte era, com certeza, empregada na agricultura.
Afirma -se que o galadima do reinado fundou 21 cidades, instalando em cada
uma mil escravos; apesar de não sabermos quais suas ocupações, podemos supor
que trabalhavam na cultura de terras recentemente conquistadas
121
.
120 Com o tempo, o termo passou a ser empregado para designar apenas a terra dada a uma mulher, que a
cultivava e dispunha do fruto de seu trabalho, como bem entendesse.
121 PALMER, 1928, v. 3, p. 110.
333
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
Praticavam -se muitas culturas no território haussa, incluindo diversas varieda-
des de milhete (Pennisetum typhoideum), sorgo, fonio (Digitaria exilis) e arroz (prin-
cipalmente nas regiões ocidentais e em Kebbi). A cultura de plantas industriais,
como o algodão e o índigo, era particularmente importante no Estado de Kano
122
.
Depois da agricultura, o artesanato era a atividade mais importante para a
economia haussa, desde bem antes do século XIV. Graças à divisão do trabalho
e à especialização, alcançou -se nível de produção relativamente alto. A indústria
têxtil ocupava o primeiro lugar e, desde sua origem, fabricaram -se vestimentas
de algodão no território haussa. Todas as etapas do processo de fabricação
descaroçamento, cardagem, fiação, tintura e tecelagem – eram lá executadas. Os
arteos em couro e sapateiros do terririo haussa produziam vasta gama de artigos
(rios tipos de bolsas e caados, selas, almofadas etc.), que supriam não somente os
pses do Suo, como também os mercados da África setentrional
123
.
O trabalho em metal era artesanato muito antigo, e os ferreiros tinham papel
muito importante. A fundição de metal era feita derramando -se, nos fornos,
grande quantidade de pedregulhos ferruginosos, que os Haussa denomina-
vam marmara. A partir desta matéria -prima, os ferreiros os de Kano eram
particularmente célebres fabricavam todos os instrumentos necessários à
comunidade: utensílios de cozinha, instrumentos agrícolas, facas, machados,
flechas, laas etc. Também a cerâmica era fabricada normalmente, e fornecia
os recipientes necessários para a conservação de líquidos e de cereais.
As guildas geriam grande parte das atividades artesanais. Seus chefes eram
nomeados pelo rei, que, às vezes, acatava as indicações dos membros destas
corporações. Tinham como função arrecadar as várias taxas que os artesãos
deviam ao fisco, e também controlar o ingresso na guilda, os métodos de pro-
dução, os critérios de trabalho e os preços.
O local preferido para os intercâmbios comerciais era o mercado (kasuwa).
Na medida em que o comércio foi se tornando uma das atividades mais impor-
tantes da população urbana, o mercado passou a acumular outras funções: era
o grande ponto de encontro e local de reunião, para onde afluíam parentes e amigos,
e onde se contactavam os estrangeiros
124
.
122 LO, o AFRICANO, 1956, p. 476, escreveu: “Nessa província (Kano) são cultivadas muitas espécies
de trigo, de arroz, e também de algodão”.
123 LO, o AFRICANO, 1956, p. 477 et seqs., escreve sobre o Gobir: Alguns dentre eles fabricam sapatos
como aqueles usados pelos romanos de antigamente, que são exportados para Tombuctu e Gao”.
124 ADAMU, 1979, p. 1.
334
África do século  ao século 
O encarregado do mercado, chamado sarkin kasuwa, e seus ajudantes mantinham a
ordem, resolviam disputas entre comerciantes e clientes, e arrecadavam as taxas para
o rei, em neros ou dinheiro.
A classe comerciante logo foi dividida em categorias. Os Haussa distinguiam o
ciniki mercado ou comércio local, de produtos agrícolas e artesanais, em pequena
escala, mantido pelos próprios produtores – do fatauci – comércio atacadista, em
os de profissionais chamados fatake (singular farke ou falke), que tratavam do
comércio de longa distância. Os yan koli (singular dan koli) eram intermediários
que iam de um mercado a outro, vendendo e comprando produtos baratos, ou
vendendo a varejo produtos importados pelos fatake. Os ciniki eram confiados aos
yan kasuwa (singular dan kasuwa), que comerciavam, essencialmente, nas cidades
de origem. Dentro desta divisão geral, havia outros especialistas, como os forne-
cedores de carne, os açougueiros, os fornecedores de cereais etc.
O corretor (dillali, plural dillalai) tinha função importante em todos os merca-
dos haussa: conhecia os preços de cada mercado da região, previa suas flutuações,
as variações de oferta e procura, e especulava com base em seu conhecimento.
Os dillalai recebiam, por seu serviço, uma porcentagem sobre os preços.
Apesar da imporncia do mercado, as transações eram frequentemente
efetuadas em outros locais. No caso dos artesãos, por exemplo, os clientes iam
aos ateliês, instalados nas próprias casas, para comprar o que necessitavam. Por
outro lado, as mercadorias, na maioria das vezes importadas, eram entregues
nas residências dos representantes das classes dirigentes, ou na corte, pois a
posão social destes superiores não permitia que fossem ao mercado. Outra
caractestica do sistema comercial haussa era o papel das mulheres, que, casa-
das ou solteiras, geriam barracas de comesveis, próximas ao mercado, ou
vendiam produtos de algodão.
pouca informação sobre as moedas utilizadas nas atividades comerciais,
mas pode -se supor que, nessa época, a troca dominasse as transações regionais.
As principais unidades monetárias eram fitas de algodão sawage, em haussa
–, sal e escravos. A data de introdução dos cauris farin kudi, ou seja, moeda
branca não é conhecida. A oeste, no Mali e no Songhai, os cauris circulavam
havia muito tempo. No entanto, foram introduzidos no Kanem -Bornu no
século XIX. Até há pouco tempo, pensava -se que os cauris haviam começado a
circular no território haussa durante o século XVIII
125
, mas uma fonte do século
XVI, publicada recentemente, menciona que em Katsina
125 JOHNSON, M. 1970, p. 33.
335
Os Haussa e seus vizinhos do Sudão central
como em todos os países de negros, usa -se como moeda, para comprar pequenos
objetos, uma espécie de concha marinha muito branca; o ouro, por causa de seu peso,
é trocado por mercadorias trazidas pelos comerciantes
126
.
Em virtude da evolução mais lenta dos governos centralizados nessa área, o
território haussa entrou mais tarde do que seus vizinhos ocidentais Mali, Songhai
e orientais Kanem -Bornu na rede de corcio de longa distância. Mas, assim
que tiveram condições, os Haussa aproveitaram plenamente as possibilidades que
sua situação geográfica oferecia. É verdade que os Wangarawa foram pioneiros no
comércio de longa distância no território haussa, mas seu papel parece ter sido um
tanto exagerado por certos autores
127
. De fato, além dos Wangarawa, mercadores da
Africa setentrional, tuaregues, Kanuri e outros grupos tamm participavam desse
comércio. No século XV, quando se iniciou, ao que parece, a transformação da eco-
nomia do território, os Haussa começaram a desenvolver seus negócios e assumiram
algumas rotas, principalmente as que levavam ao sul. O desenvolvimento de Kano
e Katsina, assim como sua rivalidade, estão estreitamente ligados à ascensão de
um comércio de longa distância e à crescente participação dos Haussa neste ramo.
Não se pode descartar a hipótese de que futuras pesquisas nos indiquem a
existência de um comércio haussa voltado para leste. Na verdade, o comércio
fluía em várias direções, aproveitando a localização geográfica do território e a
diversidade de produtos carentes em outras regiões. De modo geral, o eixo prin-
cipal, a princípio, foi o norte –sul; a expansão lateral ocorreu muitos séculos
depois, em direção a leste.
As principais mercadorias do comércio haussa podem ser classificadas de
acordo com seu local de origem:
1. produtos locais artigos de algodão, couro e artigos de couro, produtos
agrícolas (principalmente o milhete –, destinados aos oásis do Saara), almíscar
de algália, penas de avestruz e, provavelmente, borracha;
2. produtos da Africa setentrional (e, em parte, da Europa) objetos de metal,
armas, cavalos, pérolas, artigos de vidro e vestimentas de luxo;
3. produtos do Saara barras de estanho das minas de Takedda (Azeline),
sal e natro de Bilma e de outras minas de sal do Saara. Os principais centros do
comércio de sal eram Agadez e Gobir
128
;
126 LANGE E BERTHOUD, 1972, p. 335.
127 Ver, por exemplo, LOVEJOY, 1978.
128 O vocabulário haussa contém mais de 50 palavras para os diversos tipos de sal, o que indica a importância
deste produto para o comércio e a vida cotidiana.
336
África do século  ao século 
4. produtos do sul a) O principal produto importado eram os escravos
vítimas de incursões ou tributos pagos pelos países vizinhos. Exerciam vários
papéis, sendo usados como moeda ou mercadoria, domésticos, soldados, guardas,
mão de obra agrícola e artesanal. Alguns ficavam no território haussa, outros
eram vendidos em várias partes da África, sobretudo no Magreb
129
. b) O segundo
produto de exportação proveniente do sul eram as nozes -de -cola. O principal
centro produtor era Gwanja (Gonja), ao norte da atual República de Gana. A
rota comercial mais importante de Gwanja para o território haussa atravessava
Zaria e o Borgu.
Não sabemos como era organizado o comércio de longa distância. Nossos
conhecimentos atuais apenas nos permitem dizer que os comerciantes da África
setentrional predominavam no comércio transaariano, enquanto o comércio
meridional e, em parte, o do leste –oeste estavam em mãos de comerciantes
haussa. Parece mais importante o fato de algumas cidades haussa – principalmente
Kano e Katsina servirem de entreposto entre o norte e o sul, como terminais da
rota transaariana. Não é preciso dizer que o desenvolvimento do comércio enri-
queceu a classe dirigente dos Estados haussa. A opulência das cortes, a partir
do século XV, refletia essa prosperidade, graças à qual Rumfa pôde empreender
vastos projetos de construção e numerosas reformas administrativas, políticas
e religiosas.
No final do século XVI, após a queda do Império Songhai, as rotas comerciais
para o oeste tornaram -se inseguras, esgotando -se as relações entre o Songhai e o
Air. Por outro lado, intensificou -se o comércio do território haussa com o norte,
principalmente depois que Katsina, ponto final das caravanas transaarianas,
tornou -se, mais do que nunca, a espinha dorsal da economia haussa, e, de fato,
de todo o Sudão central.
129 Os Haussa distinguiam dois tipos de escravos: os bayi, que haviam sido capturados ou comprados, com
poucos direitos, e os cucenawa, que, como segunda geração, eram mais servos do que escravos. Sobre a
escravidão, ver FISHER, A. G. B. e FISHER, H. J., 1970.
C A P Í T U L O 1 2
337
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
Características gerais da região
Designa -se por Guiné a costa ocidental da África que vai da foz do Gâmbia
ao delta do ger. Sinimo de “Etpia”, ou país dos negros, o termo foi usado
pelos primeiros navegantes portugueses em seus escritos sobre a região. A alta Guiné
compreende o terririo situado entre a foz do rio Gâmbia e o rio Bandama. Esta
parte da costa e seu interior ficaram fora da área de interesse de viajantes e
autores árabes. É provável, no entanto, que desde a época do Império de Gana
existissem relações comerciais entre a savana e estas regiões cobertas por flo-
restas. Não se trata ainda da floresta tropical densa, e, por outro lado, o meio é
bem diferente do da savana.
Uma das características desse território é a fragmentação da população em
grande número de etnias. Com a influência crescente dos Manden (Mandingo),
a frente das migrações impulsiona suas vanguardas para o sul, região das
nozes -de -cola, do ouro, dos escravos e do sal. E, de repente, no século XV, o
litoral do Atlântico deixa de ser os fundos de um beco sem saída, utilizado
apenas para a pesca costeira e para o comércio local, e passa a constituir uma
segunda frente de contato com a Europa, em que logo irá predominar o comércio
de escravos com a América. A partir de então a história da alta Guiné irá se
pautar pela interferência destas duas correntes históricas, nunca conciliadas, a
Os povos da costa primeiros contatos
com os portugueses de Casamance às
lagunas da costa do Marm
Yves Person
338
África do século  ao século 
cujas malhas os povos autóctones tentaram escapar multiplicando iniciativas no
sentido de preservar sua identidade e controlar seu próprio destino.
A civilização do Sahel sudanês, que tem no Manden uma de suas principais bases,
constituiu -se a partir dos séculos VIII e IX por populações camponesas autóctones
confrontadas com os problemas do comércio transaariano, reorganizado naquele
momento, após a islamização da África setentrional. Uma rede de comércio de longa
disncia logo recobre toda a zona sudanesa; seus agentes mais conhecidos o os
lebres comerciantes Maninka (Malin). Esta rede estava suficientemente
organizada no século XII para permitir a exportação, para a África setentrional,
de nozes -de -cola, fruto silvestre eminentemente perecível.
Segundo informações de épocas posteriores, esta rede se estendia até a borda
da floresta, onde existia uma zona de corretagem. Mais para o interior da flo-
resta, os produtores, organizados em guildas por grupos de linhagem, comer-
ciavam por zoneamento: as mercadorias eram passadas de um grupo para o
grupo vizinho sem intermediários especializados. Esta foi certamente a origem
do comércio de nozes -de -cola. Foi também deste modo, com certeza, que se
comercializou durante os séculos XIV e XV a pimenta -malagueta, originária
exclusivamente da Libéria meridional, e que chegava à Europa e principalmente
à península Ibérica pela zona sudanesa e pelo Magreb. Os portugueses desvia-
riam este comércio para o litoral.
Os navegantes portugueses, que percorreram a costa em curtas etapas entre
1450 e 1500, deixaram relatos detalhados sobre a população local, bastante úteis
para o presente estudo. A costa é de modo geral baixa e pantanosa, com áreas de
vasa muito propícias à rizicultura; é recortada por inúmeros cursos d’água prove-
nientes do Futa -Djalon, que se lançam no mar após percorrerem algumas cente-
nas de quilômetros. O mar não teve papel preponderante na vida das populações
costeiras, que permaneceram voltadas fundamentalmente para a agricultura; no
entanto havia os que se dedicavam à cabotagem e extraíam sal para vender às
populações do interior. Mas todos esses produtos alimentavam principalmente
o comércio regional de longa distância, o qual, a partir do momento em que
a influência muçulmana abriu as rotas do Saara, foi obrigado a se adaptar ao
comércio em larga escala com o exterior. Ora, como se sabe, este se baseava
fundamentalmente no ouro sudanês metal raro no mundo mediterrâneo desde
a Antiguidade – e secundariamente nos escravos e no marfim.
O ouro não está diretamente relacionado à alta Guiné, pois as principais
zonas de exploração estão fora dos limites da região, nas bacias do Senegal e
do Níger no Bambuku ou no Burem –, e na do Volta, a leste em Lobi e
em Akan. Pertencem à região apenas as minas pouco importantes do Guerze
339
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
(em Kpele, na atual República Popular Revolucionária da Guiné), mas não
evidências de que fossem exploradas em épocas mais antigas.
Serão os artigos do comércio internacional que irão atrair os portugueses
desde a “descoberta”, quando se abre a segunda frente de contato. E, natu-
ralmente, será o ouro a mercadoria mais cobiçada. Apesar de o ouro não ser
extraído na região, a travessia dela faz -se obrigatória a partir do instante em que
a exportação do metal passa a ser dirigida, não mais para o norte, mas para a
costa marítima. Veremos, porém, que logo os escravos tomarão seu lugar como
principal item do comércio.
Evolução dos territórios da alta Guiné
Definido o quadro, vejamos o que é possível conhecer sobre a evolão
dos povos e suas civilizações durante os seis séculos que aqui nos concernem.
O levantamento é apenas provisório, pois a época é por demais antiga para a
maioria das tradições orais, e os documentos escritos tratam apenas do último
século do período. As pesquisas arqueogicas, que um dia deverão fornecer - nos as
informações que procuramos, são ainda incipientes. É necessário, então, recorrermos
aotodo retrospectivo, com base em dados antropogicos e lingsticos.
Do Casamance ao monte Kakulima
Na zona da alta Guiné fronteiriça à Senegâmbia, em meio a uma rede de bra-
ços de mar e aos estuários do rio Casamance e do Rio Cacheu, encontravam -se
os Balante, os Joola (Diola) e os Flup (Felup), povos rizicultores, que viviam em
comunidades rurais autônomas.
Nesta área, os Banyun, ou Bainuk (os Banhun dos autores portugue-
ses), são considerados autóctones. Até a metade do século XVI, a autoridade
do mande mansa (imperador do Mali) estendia -se por toda esta costa
1
; os
Biafada (que se dizem Joola) e, mais ao sul, os Kokoli (ou Landuman, ou Lan-
doma) constituíram -se em chefarias aunomas. Em meados do século XV,
os Biafada espalharam -se rapidamente até o mar. Chocaram -se com os Bijago,
entrincheirados em suas ilhas, que, graças à superioridade naval, se impuseram,
com invasões ao continente, a a era colonial. Os Bijago sabiam construir
grandes embarcações com capacidade para transportar de 90 a 120 pessoas.
1 FERNANDES, 1951, p. 83 -9.
340
África do século  ao século 
F . Portulano de Mecia de Viladestes, 1413 (mapa manuscrito, colorido, em pergaminho).
341
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
342
África do século  ao século 
F . Mapa da alta Guiné no século XVI. (Y. Person.)
343
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
Mais para o interior, da alta Gâmbia aos contrafortes do Futa -Djalon, os
ancestrais dos povos Tenda os Bassari”, os Koniagui, os Bedik e os Badiar
dominavam vasta região, organizados em comunidades rurais autônomas.
Alguns participaram no fim do século XV, entre 1490 e 1512, das aventuras
militares de Tenguella, conquistador fulah (fulbe ou peul), fundador do Império
dos Denianke. Opuseram, porém, feroz resistência às tentativas de dominação
dos guerreiros fulbe (peul) e manden (mandingo)
2
. Os Tenda praticavam a
agricultura itinerante; suas aldeias eram acampamentos de cultivo.
Do Rio Grande ao Rio Pongo, dominavam os Landuman, os Baga, os Nalu
e os Capi (Tyapy) e Temne, todos rizicultores e também pescadores. Suas aldeias
eram construídas nos pântanos salgados, às vezes sobre diques.o povos de língua
mel. Desde o culo XV, os três primeiros grupos ocupam praticamente os mesmos
donios. Os Baga instalaram -se no litoral da República Popular Revolucionária
da Guiné, do Rio Nunez ao monte Kakulima, e, provavelmente sob sua preso, os
Temne partiram para o sul da ilha de Tumbo, onde fundaram um novo povoado
3
.
Os navegantes portugueses que abordaram estas costas na metade do século XV
atestaram que eram bastante povoadas. Não existiam, porém, vastos reinos entre os
Flup, os Balante, os Landuman, os Nalu ou os Baga; aqueles a quem os navegadores
chamaram de reis eram antes patriarcas ou chefes de clã, de poder muito limitado.
Em sua descrição da costa ocidental da África, Valentim Fernandes
escreve:
“Os reis das aldeias não recebem rendas ou tributos de seus súditos; mas quando
querem plantar, semear ou colher, todos os ajudam gratuitamente; quando querem
construir casas, cercar suas terras ou ir à guerra, todos respondem a seu chamado”.
O poder do rei, no entanto, é limitado pelo Conselho: “Quando o rei quer declarar
guerra, reúne os anciãos e forma seu Conselho. Se estes acham que a guerra é injusta
ou que o inimigo é mais forte, dizem ao rei que não podem ajudá -lo e ordenam a
paz contra a vontade dele
4
.
Essas populações eram adeptas da religião tradicional; não houve influência
islâmica ao sul do Rio Grande. Os portugueses notaram corretamente a base
comum a todos os cultos encontrados ao longo da costa. Os habitantes da região
adoravam ídolos talhados em madeira; a principal divindade era chamada Kru.
Também cultuavam os mortos:
2 Ver o capítulo 7 deste volume.
3 MONTEIL, V., 1966; PEREIRA, 1956, p. 47; FERNANDES, 1951, p. 69 -105.
4 FERNANDES, 1951, p. 83.
344
África do século  ao século 
(...) é hábito fazer -se um memento de todos os mortos. Se é um notável, esculpe-
-se um ídolo parecido com ele; se é homem comum ou escravo, a figura é feita
de madeira e posta numa casa coberta de palha. Sacrificam -se -lhe anualmente
galinhas e bodes
5
.
Esta é a descrição mais antiga dos ritos religiosos e funerários dos povos
da costa; as estatuetas que refere são os nomoli ou pomta (no singular, pomdo),
talhados em esteatita, pedra maleável, e atualmente encontrados nas sepultu-
ras antigas da República Popular Revolucionária da Guiné e da República de
Serra Leoa (ver fig. 12.3). As populações embalsamavam os mortos antes de
sepultá -los.
Do monte Kakulima ao território kru
Ao sul do monte Kakulima começava o domínio dos Temne, ou Temene,
descendentes dos Capi (Tyapy ou “Sapes”), dos quais hoje restam apenas vagas
reminiscências na República Popular Revolucionária da Guiné, pois se acham
concentrados atualmente na República de Serra Leoa. A seu lado encontravam -se
os Limba e os Bulom (Bulem), e, mais atrás, para o interior, os Kissi. Os Bulom e os
Kissi falam a língua sherbro.
Como os outros, estes povos estão organizados em grupos de linhagem e
aldeias autônomas. Sua estrutura política é dominada por sociedades cujos
membros usavam scaras esotéricas, responsáveis pela inicião, como o
simo, ao norte, entre os Baga e os Landuman. Os portugueses não notaram
nenhuma diferença significativa entre essas populações costeiras. Tanto os
Bulom quanto os Temne possuem numerosas aldeias, cada qual contando
aproximadamente de 150 a 300 habitantes; nossos informantes mencionam
aglomerações bulom de 1 mil a 3 mil habitantes. Cada aldeia tem seu patriarca
(bai). A cultura de arroz era muito desenvolvida em toda a costa; no fim do
século XV, os portugueses transportavam para o norte a produção excedente
das reges de Serra Leoa.
Os Bulom e os Bijago construíam grandes embarcações e sua atividade pes-
queira era particularmente bem -sucedida. Desenvolveram também a escultura
em madeira e executavam excelentes trabalhos em marfim (ver figs. 12.3 e 12.4).
Frequentemente os portugueses lhes encomendavam obras de artesanato, como
colheres, saleiros etc.
5 Ver MONTEIL, V., 1966; PEREIRA, 1956; FERNANDES, 1951, p. 69 -105.
345
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
Em época não exatamente determinada, mas provavelmente entre os séculos
XIII e XIV, a língua e a cultura temne difundiram -se um pouco para o interior,
do noroeste do Futa -Djalon a Rokel, na República de Serra Leoa. Quando da
chegada dos portugueses, estes povos ainda dominavam a região desde a altura
de Conacri, mas a linha de frente dos Manden (Mandingo), os Sosoe (Sosso
ou Sussu do Futa -Djalon), já começava a pressioná -los para o sul. Apesar de os
portugueses falarem do “Império dos Sapes”, nunca houve um Estado estrutu-
rado, mas sim um conjunto de chefarias ou grupos de linhagem unidas por uma
cultura comum. Sem dúvida, um dia a arqueologia nos esclarecerá sobre esse
F . Nomoli (estatuetas de esteatita) da República de Serra Leoa. (Referências: MH.02.28.1 a
28.4.) (Fonte: Museu do Homem, Paris.)
346
África do século  ao século 
antigo movimento para o sul, que não deve ser interpretado, segundo o velho
conceito das migrações, como um deslocamento brusco e maciço, mas como
uma lenta difusão cultural, que se estendeu por vários séculos.
Ao longo da costa, para além dos domínios temne e bulam, até o braço do rio
Bandama, encontram -se os povos Kru. Vivem num meio essencialmente flores-
tal que, até o século XVI, era praticamente impenetrável. No que diz respeito ao
período considerado, pouco se pode dizer sobre este grupo tão original, tanto do
ponto de vista linguístico como do antropológico. Como os Nalu, Landuman,
Baga e Bulam, os Kru praticavam ativamente a pesca ao longo do litoral, mas
sua agricultura era menos desenvolvida que a dos vizinhos do norte. O arroz,
provavelmente recebido dos Manden do interior, era então pouco plantado. Os
Kru dominavam território mais vasto do que hoje, que chegava a invadir a savana
na direção de Seguela, onde, a partir do século XVI, eles cederam lugar aos
Maninka (Malinké). Em todo caso, no século XV, os portugueses encontraram
os Bassa e os Kru bem instalados no litoral.
A inuência da savana
Se observarmos a frente de contato sudanesa, veremos destacarem -se os
Manden; os Fulbe (Fulani) só intervieram marginalmente, e no fim do período.
Os Manden do sul, em contato desde tempos muito antigos com os povos da
região, tiveram sua cultura fortemente influenciada pelos Fulbe. Do século XIII
ao século XIV, foi contínuo o avanço dos Manden em direção ao mar, entre o
Rio Grande e a costa da Libéria.
Os Manden, ou seja, o conjunto de povos de língua maninka, bambara, jula
etc., constituem o núcleo do mundo manden, e deixaram sua marca na histó-
ria no culo XIII como construtores do lebre Império do Mali. Já muito
cedo interessaram -se pela alta Guiné. Estão organizados principalmente
os Maninka e os Bambara em grandes aldeias por grupos de linhagem
patrilineares, reunidas, por sua vez, em kafu ou jamana, pequenas unidades
territoriais com caráter de Estado, que sem vida o são anteriores ao
Imrio do Mali, mas cuja permancia é notável. No âmbito das aldeias,
a base da vida política são as grandes sociedades de inicião (jow). O Islã,
embora minoririo em mero de adeptos, o pode ser desconsiderado,
pois es ligado ao corcio de longa disncia, fazendo -se presente em toda
parte. A estratificão social é relativamente bem desenvolvida, e a tradição
de organizão estatal como superestrutura arrecadadora de tributo dos kafu,
bastante generalizada.
347
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
Centrado no Níger, o Império do Mali, que sobreviveu até a primeira metade
do século XVII, voltava -se para a imensidão das savanas e para o controle do
comércio transaariano. Provavelmente o comércio de longa distância princi-
palmente o de nozes -de -cola e o de escravos – despertou o interesse do império
pelas rotas do sul que levavam à borda da floresta, mas, ao que parece, não houve
controle político contínuo além da linha que ia de Kurussa a Kankan (na atual
República Popular Revolucionária da Guiné) e até Odienné (na atual República
da Costa do Marfim). No entanto os soberanos sempre estiveram empenhados
em estabelecer boas relações com os chefes da região da floresta.
A leste do Futa -Djalon, que, parece, jamais esteve subordinado ao domínio
do Mali seus planaltos de arenito estéril eram de difícil acesso, constituindo
um obstáculo às intervenções –, a expansão Maninka deu -se fora do contexto
imperial. Nas zonas mais próximas do império, uma lenta expansão de campo-
neses sob a proteção de guerreiros teria possibilitado a absorção dos autóctones.
Grandes e nobres linhagens dividiam o poder, sem centralização política, exceto
Figura . Escultura africana em marm, representando navio e guerreiros portugueses. Vista de conjunto
e detalhe. (Foto Werner Forman Archive.) (Fonte: Fagg, W. B., 1970.)
348
África do século  ao século 
em períodos de supremacia militar: os Konde do Sankaran, no alto Níger, pelo
menos até o século XIV, e os clãs maninka dos Kuruma e dos Konate do Toron,
de Kankan a Odienné, o mais tardar no século XV.
Mais ao sul, os primeiros a chegar teriam sido os Joola, que foram até a borda
da floresta à procura de nozes -de -cola e ouro, e, sem dúvida, a oeste, em busca da
malagueta e de escravos. A leste, fora da zona aqui estudada, teriam atingido o
golfo da Guiné, antes dos portugueses, em direção à Costa do Ouro (República
de Gana). Com eles apareceram os primeiros focos do Islã. As contendas com
os autóctones levaram -nos a recorrer aos guerreiros maninka, que organizaram
politicamente o país e trouxeram camponeses, que assimilaram os autóctones –
os Koranko, na atual República Popular Revolucionária da Guiné e na República
de Serra Leoa, o mais tardar no século XV; os Konya (Konianke) e os Mau, por
volta do fim do século XV; os Uagadugu (Morodugu), mais tarde, nos séculos
XVI e XVII. Alguns, como os Kono e os Vai, avançaram até o mar a partir do
século XV. É quase certo que foram os Kamara do Konya os responsáveis pela
grande invasão somba que atingiu a costa da Libéria e de Serra Leoa entre
1540 e 1550.
No Bandama, esta grande expansão maninka encontraria as vanguardas dos
Joola, que no século XIV já conheciam as rotas que iam de Djenné às minas de
ouro dos Akan (em Begho) e ao golfo da Guiné (nos antigos Boron, Uagadugu
F . Trompa de marm com cenas de caça. (Foto Werner Forman Archive.) (Fonte: Fagg, W. B.,
1970.)
349
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
e Koro). No final do século XVI havia desse lado, em direção ao baixo Ban-
dama, uma saída para o mar.
No entanto o novo mundo dos Maninka meridionais, das nascentes do
Níger ao Bandama, não estava voltado para o mar, mas para o Sudão, o Sahel
e o norte, e só bem tarde sofrerá o impacto do tráfico de escravos. A influência
do mar, do elemento muçulmano e do comerciante será significativa no fim
do século XVII, quando os povos do alto Níger, indo dar no Atlântico, irão
convulsionar a cultura dos autóctones (Sosoe, Temne) e romper o equilíbrio de
seu próprio território
6
.
Os Estados ou províncias manden da costa
É a partir da primeira metade do século XIII, e no noroeste, que parece ter
ocorrido uma série de importantes acontecimentos, que culminaram na formação
de um núcleo de cultura maninka no Kaabu (Gabu), entre o Gâmbia e o Rio
Grande. O Império do Mali, senhor das zonas auríferas do alto Senegal e do
alto Níger, parece ter imposto sobre toda a Senegâmbia uma hegemonia, que
não sobreviverá à crise que o irá atingir um século mais tarde. Mas, mais ao
sul, do Gâmbia aos contrafortes do Futa -Djalon, sua obra será duradoura, por
se basear num povoamento novo e na transformação profunda das sociedades
indígenas. A tradição atribui essa reviravolta a Tiramaghan Traore, general
de Sundiata, que teria então conquistado e organizado o Kaabu. Esse grande
Estado, que sobreviverá até o século XIX mais precisamente, até 1867 –, foi
originalmente o governo ocidental do Mali, cujo domínio se estendia, a oeste,
às minas de ouro do Bambuku, e tinha assegurada uma saída para o mar, que,
embora fosse utilizada apenas para a extração de sal e para a pesca, parecia
ter fascinado os Maninka da zona sudanesa.
O Kaabu é cercado por uma série de Estados vassalos, povoados às vezes
por não Manden aculturados, como os Kokoli (Tyapy), os Biafada e os Kas-
sanga (Bainuk orientais), ou como o reino de Brassu (Oyo, no Rio Cacheu),
ou ainda como os vários reinos gambianos que os portugueses encontrarão no
século XV remontando o rio: Niumi, Bati (Badibu), Niani, Wuli. Os Balante,
hostis a qualquer forma de poder centralizado, mantiveram -se afastados e
parte deles foi subjugada. Apesar de a língua e a cultura manden dominarem
e se desenvolverem até hoje, o sistema político que se organizou foi bastante
autônomo em relação ao centro do alto Níger. É digno de nota o fato de que,
6 Ver RODNEY, 1970, e WYLIE, 1977.
350
África do século  ao século 
sob a influência dos autóctones, a aristocracia do Kaabu adotou o sistema de
sucessão matrilinear. Dela se originou a linhagem dos Gelowar, que organizou
os reinos seereer em data desconhecida, mas com certeza anterior à chegada dos
portugueses em 1446.
Na direção do baixo Casamance, o reino vassalo dos Bainuk -Kassanga man-
terá a identidade até ser destruído pelos Balante, em 1830. Do título de seu rei
(casa mansa) os portugueses derivaram o nome dado ao rio.
O principal acontecimento para os Maninka ocidentais será evidentemente a
chegada dos portugueses entre 1446 (descoberta do Gâmbia) e 1456 (descoberta
do Rio Grande). Daí por diante o oceano torna -se a principal frente de acultura-
ção, e seu significado para o Império do Mali muda completamente. O Gâmbia,
amplamente navegável, continuará sendo uma das principais vias de acesso ao
interior do continente até o século XIX. Por ali passa a ser exportado o ouro do
Bambuku e mesmo o do Burem, e pouco depois também grande quantidade de
escravos. A partir do fim do século XV (em 1484–1485, em 1487 e em 1534) é
esta a rota seguida pela grande maioria das missões portuguesas para chegar ao
imperador do Mali. Por volta dessa mesma época, forma -se uma aliança contra
os Denianke de Tenguella, que, por terem conquistado o alto Senegal partindo
do Futa -Djalon, constituíam ameaça àquela rota. Essa ameaça será afastada com
o estabelecimento dos Denianke no Futa -Toro. No entanto os Estados Maninka
do norte do Gâmbia, do Niumi ao Niani, serão subjugados pelo reino seereer
do Salum, consolidado no início do século XVII, e viverão, até o século XVIII,
ao ritmo do tráfico de escravos.
O Kaabu consegui apenas manter sua autoridade ao sul do rio Gâmbia
(Kantora) e se esfoará para se comunicar diretamente com os portugueses,
mais ao sul, pelo Rio Cacheu e pelo Rio Grande. Tudo indica, pom, que,
apesar das provões que i atravessar no século XVI, continua fiel ao Império do
Mali, reduzido e privado de seus territórios sahelianos, mas ainda forte, ao contrário
do que por muito tempo se afirmou. Pode -se, sem dúvida, precisar a data do fim
dessa ligação histórica. Pesquisas cuidadosas levam a crer que o Bambuku, com
suas minas de ouro, permaneceu sob o controle do Mali até 1599, data da derrota
final do mansa Mamudu frente a Djen. Foi conquistado então – em nome dos
Denianke de Futa -Toro, que constituíam na época o Império do “Grande Ful”
por renegados portugueses, recrutados pelo famoso Ganagoga, judeu de
Crato convertido ao islamismo, genro do silatigui (rei) dos Denianke
7
. A partir
7 MOTA, 1969; ver também DONELHA, 1977.
351
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
de então, por volta de 1600, torna -se impossível qualquer comunicação entre
o Kaabu e o alto ger, e o Mali continuase desmembrando até o quarto de
século seguinte
8
.
Mais ao sul, o interior do território dos “Sapes” era ocupado pelo imenso
maciço do Futa -Djalon, cujos vastos planaltos, cortados por vales profundos, são
estéreis, mas propícios, devido ao clima, à criação de gado. A partir de época
ainda não determinada, este território é dominado por dois povos estreitamente
aparentados: os Jalonke e os Sosoe (ou Sussu), que falam dialetos de uma mesma
língua, o manden, muito próxima, mas diferente, do maninka.
Os Fulbe e os povos do Futa ‑Djalon
A civilização dos Jalonke, que ocupam o norte e o leste do maciço, espalhando -se,
a leste, a o Burem, rego do ouro, é do tipo manden, e sua organização, tradicional,
em linhagens patrilineares, aldeias e pequenas chefarias semelhantes aos kafu. Parte
deles, pelo menos, deve ter estado sob o domínio do Mali, durante o apogeu
do império, até os distúrbios do final do século XV; quanto aos Jalonke do alto
Níger, sem dúvida sofreram esse domínio até o fim do século XVI.
A oeste e ao sul do maciço, os Sosoe, ao contrário, parecem ter vivido isolados
em pequenos grupos, e sua cultura ter se transformado pela influência dos povos
Mel. Assim, sua organização política, muito menos estruturada, deu espaço
à sociedade de iniciação simo, de origem temne ou baga. Pouco a pouco, no
entanto, sua língua se impôs aos povos da costa. Nessa época, os Baga e os Nalu
eram ainda bastante numerosos nos vales do Futa -Djalon, que só abandonaram
definitivamente no século XVIII, quando da djihād fulbe (peul).
Camponeses e caçadores, estabelecidos nas franjas do mundo sudanês, alheios,
durante muito tempo, ao islamismo, os Sosoe viveram apartados até que dois fato-
res viessem romper seu isolamento trazendo rotas importantes de comércio a seu
território: a irrupção dos Fulbe (Peul ) e a chegada dos portugueses à costa.
Os Fulbe, pastores seminômades de língua atlântico -ocidental muito pró-
xima do seereer, entraram na região no século XV. Em meados desse século,
quando o Mali começava a perder sua autoridade sobre o Sahel, grupos fulbe
(peul) deixaram o Futa (no leste da atual República Islâmica da Mauritânia)
para atravessar o alto Senegal e o Gâmbia por um vau até hoje lembrado pela
tradição. Por volta de 1450, nos confins ocidentais do Futa -Djalon, Dulo Demba
atacou os Biafada, ainda vassalos do Mali. Um pouco mais tarde, o grupo de
8 Ver o capítulo 7 deste volume.
352
África do século  ao século 
Temmala (Tenguella) instalou -se em terras jalonke na região de Guema -Sanga.
Dali partiu, no final do século, para combater os Maninka do Kaabu e do Gâm-
bia e depois, no começo do século XVI, para conquistar o alto Senegal e o Futa -
Toro, onde Koly Tenguella fundou a dinastia dos Denianke.
No fim do século XV a ligação do Futa -Djalon ao Império do “Grande Ful”
seria apenas simbólica, no entanto, ao partir, os Denianke não levaram junto
todos os Fulbe. Estes criadores de gado, então praticantes da religião tradicio-
nal, se instalam com seus rebanhos nos planaltos habitados pelos Sosoe e pelos
Jalonke. Por volta de 1560, unem -se aos Sosoe do Bena, nos confins de Serra
Leoa, para deter a invasão dos Mane, que acabavam de submeter os territórios
do sul. Contentam -se, no entanto, com sua posição marginal até o afluxo dos
muçulmanos, que a eles se unem no fim do século XVII. Submetem então os
Jalonke, cujo território conservou este nome, na guerra santa de Karamoxo Alfa,
que tem início em 1727.
A chegada dos portugueses, que bito despertou o comércio costeiro,
mudou o destino dos Sosoe. A partir do fim do século XV intensifica -se o
tráfego de caravanas jaxanke (diakhanke), que atravessam a região para ligar
as minas de ouro do alto Senegal (Bambuku) e do alto Níger (Burem) às
margens dos rios. Os Sosoe acompanham o movimento, rechaçando os Baga
e os Temne em direção ao Rio Pongo e ao Bena, aonde chegaram em meados
do século XVI. Entre eles aparecerão os primeiros núcleos de islamismo, mas
é somente no fim do século XVII e começo do XVIII que irão sofrer, assim
como seus vizinhos do sul, profunda mutação cultural e social provocada pela
influência sudanesa.
A pressão manden sobre o litoral – avanço dos Maninka
A frente florestal do alto Níger ao rio Sassandra é dominada por diversos
grupos propriamente Manden, como os Koranko ou os Maninka ao sul (Konya,
Mau). Nessa região os Joola provavelmente estabeleceram, desde muito cedo,
uma rede de comércio de nozes -de -cola, que incluía uma zona de corretagem,
onde se faziam contatos com os produtores das florestas, considerados bárbaros”,
apesar de falarem o manden – como os Gura, Dan, Kpele e Loma (Toma) ou o
mel – como os Kissi.
A região é bem afastada dos centros políticos do Mali, e não se sabe em que
medida e em que período o poder central realmente dominou. Embora sem
datas precisas, pode -se afirmar que lentamente se estabeleceu uma colonização
de guerreiros, camponeses e comerciantes, que passaram a constituir o grosso da
353
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
populão, pela assimilação ou expulsão dos povos autóctones mencionados acima.
indicações de que os grandes movimentos de população ocorreram nos culos
XIV e XV
9
, período em que o recuo do Mali para o norte fazia que os esforços
se voltassem para o sul. O maior deles parece ter acontecido antes da descoberta
portuguesa, ou, ao menos, sem relação com ela. De qualquer modo, a forma pela
qual os Mane se referem ao Império do Mali sugere que os Konya, ainda que
teoricamente, reconheciam -lhe a autoridade em meados do século XVI.
A leste do alto Níger, o estabelecimento dos Sankaran e dos Toran, em contato
com os Kissi e os Loma, data provavelmente doculo XIV. Se é possível compre-
ender a invasão mane, o estabelecimento dos Konya e dos Mau em Tuba, na Costa
do Marfim, apesar de mais recente, deve remontar ao menos ao final do culo XV.
Deve -se enfatizar a importância deste planalto, onde as condões o saudáveis e
favoveis à crião de gado, pois é cercado de montanhas que dominam ao sul a
floresta tropical, a pouca disncia de Monróvia e de Freetown. Sua posição sugeriria
uma abertura para a costa tão logo esta adquirisse importância comercial. A região
é povoada por clãs Maninka sob o domínio dos clãs Kamara e Diamande, cujo
legendário ancestral, Feren -Kaman, rechaçou ou assimilou os autóctones Kpele.
Logo depois, essas terras elevadas atraíram muitos clãs Fulbe, especialmente no
culo XVII, mas os novos imigrantes iriam adotar a ngua maninka. Estabelecidos
diante da frente florestal, os Manden tiveram de atravessá -la pelo menos duas vezes
para alcançar a beira -mar, embora em circunstâncias bem diferentes
10
.
Os Kono e os Vai
São Manden que se estabeleceram na zona de florestas de Serra Leoa e da
Libéria antes da descoberta portuguesa, ou seja, por volta de 1460. É possível que
tenham se instalado ali no século anterior, mas o fato de as línguas kono e vai per-
manecerem próximas do maninka conta em favor de data relativamente recente.
Em todo caso, foi a partir do alto Níger, sem dúvida do Sankaran, que clãs
maninka, dirigidos pelos Kamara e, portanto, como confirma a tradição, apa-
rentados aos que, em seguida, iriam se instalar no Konya, alcançaram o mar na
altura da zona fronteiriça entre a Libéria e Serra Leoa. Parte deles ficou pelo
9 Se tomarmos ao da letra as genealogias, a data mais provável corresponderá à metade do século
XVI, mas a comparação com os Keita do alto Níger prova que é estruturalmente impossível, por esse
procedimento, fazer remontar a história dos Maninka a mais de quatro séculos. Os cálculos baseados no
número de gerações mostram apenas a duração mínima do período.
10 Esta dupla travessia me levou, em trabalho anterior (PERSON, 1961), a dividir incorre tamente a invasão
mane em duas. A primeira deu origem ao clã Massaquoi, e a segunda, ao cFahnbule, ambos dominantes,
até hoje, entre os Vai (povo manden da República da Libéria).
354
África do século  ao século 
caminho e veio a constituir o povo Kono, em planaltos salubres semelhantes ao
Konya
11
. Os outros, dirigidos, segundo a tradição, por Kamala, o Moço, Fango-
loma e Kiatamba, atingiram o mar na altura do lago Pisu (Robertsport), onde
formaram o povo Vai. Os portugueses, impressionados com a quantidade de suas
aves domésticas, chamaram -nos de “Galinhas”. Estes antigos sudaneses adota-
ram a civilização dos recém -chegados, mas parecem ter conservado estrutura
política bastante centralizada. Adaptaram -se bem rapidamente ao novo mundo
comercial criado pela chegada dos portugueses, apesar de que inicialmente sua
migração sem dúvida deve ter sido orientada pela busca do sal e pela pesca.
Logo iriam sofrer a invasão de outros sudaneses, os Mane, certamente de mesma
origem, mas estes não iriam abalar -lhes o equilíbrio social.
A invasão mane ou manden
O segundo grande avanço dos Manden em direção ao mar corresponde às
famosas invasões dos Mane -Somba e Kwoja -Karu. documentação imensa,
mas complexa, de qualidade variável e frequentemente mal estudada a esse
respeito. Sua relação com a etnografia e a história dos povos modernos ainda
não foi levantada, e os numerosos estudos existentes sobre estes fatos ainda não
permitem traçar um quadro completo.
A invasão mane é um desses grandes movimentos que de tempos em tempos
abalaram a história de certas regiões da África, como o dos Jaga, meio século
mais tarde em Angola, ou o dos Zulu, no século XIX. Estes movimentos revo-
lucionaram mais as instituições e as relações entre os homens do que o mapa
etnolinguístico. É o caso da invasão mane, que, neste plano, teve papel menos
importante que a dos Vai, embora, sem dúvida, tenha sido responsável pela
expansão da língua manden no sul e pela origem da etnia Loko. Mas sobretudo
contribuiu para difundir as instituições políticas centralizadas e para estender a
rede do comércio sudanês de longa distância.
Não obstante alguns estudiosos, como o professor Hair, ainda pareçam duvi-
dar
12
, afigura -se evidente que a invasão mane foi desencadeada a princípio pelos
Manden familiarizados com o comércio de longa distância e com as rotas do
ouro do leste (alusão a uma guerra contra Elmina). Como seu movimento surgiu
mais de oitenta anos depois da descoberta portuguesa, pode -se admitir que o
11 Em manden, kono signica esperar. Segundo a tradição de Fandama (centro de tradi ções manden), assim
foram chamados esses imigrantes porque caram esperando e, não tendo recebido nenhuma notícia da
linha de frente, permaneceram nos planaltos de Serra Leoa.
12 HAIR, 1967.
355
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
desejo de abrir uma rota comercial de ligação direta com a costa estivesse rela-
cionado com ela. Superiores na organização política e militar, os invasores não
eram numerosos nem estavam habituados à floresta. Só foram bem -sucedidos
porque mobilizaram progressivamente os vencidos, produzindo um efeito de
bola de neve, de tal modo que, em curto espaço de tempo, eram uma ínfima
minoria que avaava pela força do movimento que haviam desencadeado.
Assim se explica a dualidade que, logo à primeira vista, causou surpresa aos
observadores portugueses.
As ilhas do Cabo Verde
As ilhas do Cabo Verde, com suas terras áridas e desertas, foram colonizadas
primeiramente em 1462 segundo o modelo da Madeira, mas em 1484 voltaram
ao domínio da coroa portuguesa. Desde o início estabeleceu -se a capital em
Santiago, a ilha mais próxima da África, onde residia o governador e, a partir
F . Comerciantes europeus em contato com os habitantes do Cayor em Cabo Verde. Água -forte.
(Fonte: Dapper, 1668.)
356
África do século  ao século 
F . A cidade negra de Rusco.
F . Habitações dos negros.
de 1535, o bispo, cuja jurisdição se estendia à costa do continente, do Senegal
ao cabo Mesurado (República da Libéria).
Em razão do clima, o arquipélago foi rapidamente povoado por maioria de
escravos comprados na Senegâmbia e Guiné. Mais tarde, em 1582, as duas ilhas
principais, Fogo e Santiago, contarão 1600 brancos, 400 negros livres e 13700
escravos. A economia das ilhas no século XVI baseava -se na criação de gado, na
cultura do algodão e na tecelagem através de técnicas africanas. Logo, não mais
contentes com importar escravos para uso próprio, as ilhas passaram a exportá -los
para a América. Enquanto São Tomé e o Congo abasteciam o Brasil, as ilhas do
Cabo Verde, a partir dos anos 1530–1540, voltaram -se para a América espanhola.
Pode -se estimar em 3 mil o número de escravos anualmente exportados da
região, parte deles em troca de tecidos de algodão de Cabo Verde.
357
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
F . Fetiches.
A partir do momento em que entra em questão o corcio com a costa conti-
nental e a Arica, é preciso que se tenham em conta as caractesticas espeficas
da colonização portuguesa. Ela se baseava na ideia de um monopólio real do
comércio, cedido a concessionários por prazos e regiões bem determinados.
A carta de 1466 garantia aos habitantes o direito ao comércio com a “Guiné
do Cabo Verde”, ou seja, com a costa até o cabo Mesurado. Mas, em 1514, as
Ordenações Manuelinas proibiram viajar à Guiné sem licença e, mais ainda,
estabelecer -se ali.
No início do século XVI, a grande preocupação das autoridades portuguesas
era lutar contra seus emigrantes que se fixavam no continente, com a concordân-
cia dos soberanos africanos, e se casavam e se impunham como intermediários
comerciais. Eram os lançados (de lançar: lançar -se à aventura) ou tangomãos (os
que adotaram os costumes locais)
13
. Em 1508 um decreto especial visou os que
13 BOULÈGUE, 1968.
358
África do século  ao século 
F . Fauna e ora da alta Guiné. (Fonte das gs. 12.7 a 12.11: Barbot, 1740.)
F . O rei de Sestro (século XVII).
359
Os povos da costa primeiros contatos com os portugueses de Casamance às lagunas da costa do Marm
viviam em Serra Leoa. Foram considerados criminosos, e certamente muitos
eram pessoas marginalizadas, principalmente os cristãos -novos, ou seja, judeus
convertidos à força.
Conclusão
Os países da costa oferecem campo ainda virgem para a pesquisa. As fon-
tes escritas a partir do século XV devem -se aos navegadores portugueses, e
os arquivos de Lisboa acabam de ser abertos aos pesquisadores. Os trabalhos
da arqueologia mal começaram. O estudo de algumas tradições mostra que
esta região não viveu fechada sobre si mesma; o comércio de nozes -de -cola e
de outros produtos da floresta logo atraiu os Manden, que estabeleceram às
margens da floresta poderosas comunidades de comércio ou reinos, como o de
Kaabu e o de Konya. Muitos povos da costa, como os Nalu, os Baga e os Bulom,
são conhecidos por suas esculturas. Seu domínio da rizicultura fez daquela região
verdadeiro celeiro para os povos da savana, cujos reis geralmente tinham boas
relações com os chefes locais
14
.
14 Um provérbio maninka diz: “Quem quer azeite de dendê e nozes -de -cola não entra em guerra contra o
rei dos Kisi”. Raramente os guerreiros da savana se aventuravam por essa região; as orestas e os pântanos
impediam as amplas manobras da cavalaria.
C A P Í T U L O 1 3
361
Das lagunas da Costa do Marm até o Volta
O território
Depois do cabo Palmas, a costa orienta -se nitidamente na direção sudoeste–
nordeste, descrevendo um arco circular, que forma o golfo da Guiné; à medida que
nos aproximamos do equador, a vegetação torna -se mais e mais densa, e a floresta
começa a predominar. Uma particularidade notável é o aparecimento de lagunas
ao longo da costa. A região costeira pode ser dividida em três áreas: 1) a leste
do cabo Palmas, até o rio Tano,uma sequência de lagunas
1
paralelas à costa;
2) do Tano até a planície de Acra, algumas colinas dão a ilusão de paisagem
acidentada (cabo Three Points); 3) nas proximidades da foz do Volta, a região
assume aspecto árido; a floresta praticamente desaparece, para ceder lugar a uma
clareira com árvores esparsas.
O clima predominante é o tropical, com pluviosidade elevada, atingindo a
média de 2000 mm por ano. uma estação chuvosa de março a julho, a que
se segue uma estação seca de agosto a setembro; depois, outra estação chuvosa
de outubro a novembro e, finalmente, uma estação seca de dezembro a março.
A atmosfera está sempre carregada de pesada umidade, mesmo em estação seca.
A floresta exerce importante influência sobre o conjunto da região.
1 Elas são em número de doze Noni, Tadio, Make, Ebrie, Aghien, Kodio -Bue, Ono, Potu, Ehi, Hebo,
Tagba e Aby - e totalizam uma superfície líquida de 2400 km.
Das lagunas da Costa do Marm
até o Volta
Pierre Kipré
362
África do século  ao século 
O problema das fontes
recentemente a região despertou o interesse dos historiadores. Durante
muito tempo, sua atenção esteve voltada para as regiões da savana e do Sahel,
mais ao norte, sede dos impérios cuja história está repleta de fastos e de epopeias.
Os viajantes e historiadores muçulmanos que se detiveram no Sudão, entre os
séculos X e XVI, não conheceram as áreas florestais. Faltam, portanto, registros
escritos. Quanto à arqueologia, mal começa a prospecção. as tradições são
abundantes, mas suscitam certo número de problemas.
As fontes escritas
Trata -se essencialmente dos relatos de viagem de navegadores portugueses
do século XV ao XVII; tais fontes só dizem respeito, portanto, ao final do perí-
odo que ora nos ocupa. De 1471 a 1480, a região que vai do cabo Palmas à foz do
Volta foi explorada pelos portugueses, que entraram em contato com as popu-
lações locais; já em 1481 começaram a construir o forte de São Jorge da Mina
(Elmina), que lhes garantiu o controle efetivo sobre o comércio costeiro. Duas
fontes são essenciais: a obra do navegante Duarte Pacheco Pereira, que partici-
pou do reconhecimento da costa e escreveu, em 1505–1508, seu Esmeraldo de situ
orbis, no qual descreve a costa ocidental da África, do Marrocos até o Gabão; e
a descrição da África por O. Dapper. Este último retoma o conjunto dos relatos
de viagem e apresenta uma síntese do que davam a conhecer sobre a África no
século XVII
2
. Mas que informações nos dão estas fontes portuguesas?
Elas descrevem certos povos da costa e apresentam alguns pormenores sobre
suas atividades. No cabo Palmas, Duarte Pacheco Pereira esteve em contato
com povos a quem chamou de Eguorebo, isto é, os Grebo. Os rios que se lançam
no oceano são assinalados de maneira precisa; no Santo André, ou Sassandra,
observa os harrari, ou arrozais”. Mais a leste, o Rio Pedro pode ser identificado
como sendo o rio Tabu; o Rio Laguoa é o nosso Grande Lahu. Adiante do Rio
Laguoa, Duarte Pacheco Pereira observa “sete aldeias muito populosas”, cujos
habitantes se revelam hostis aos navegadores. Trata -se dos Kru; “são gente má”,
acrescenta o navegante
3
; até o Rio Mayo (rio Comoé), os estrangeiros são mal
acolhidos: “Ignoramos que comércio essa região possa ter, mas sabemos que é
2 PEREIRA, 1956; DAPPER, 1668.
3 PEREIRA, 1956, p. 119 -21.
363
Das lagunas da Costa do Marm até o Volta
muito populosa”
4
. Em Axim, os portugueses construíram um fortim, de nome
Santo Antônio; pouco mais tarde, ergueram o forte de Elmina. A descoberta do
ouro na região foi a causa desse estabelecimento acelerado. Para a construção do
forte, o rei de Portugal enviou nove navios carregados de pedras e de cal; o forte
foi construído sob ameaça permanente dos habitantes, que, muito naturalmente,
se opunham ao empreendimento português. O rei de Portugal tinha encontrado
uma fonte de ouro, que pretendia explorar sozinho.
Elmina tornou -se rapidamente centro comercial, atraindo muitos
mercadores:
Esses mercadores pertencem a várias nações, a saber: Bremus, Attis, Hacanys, Boroes,
Mandinguas, Cacres, Anderses ou Souzos, e outras que deixo de nomear, para não
me alongar excessivamente
5
.
Nessa lista podemos identificar os Attie (Atchi), os Akan, os Bron (Abron)
e os Manden (Mandingo). O afluxo de mercadores na direção de Elmina com-
prova a importância do comércio; antes de chegarem os portugueses, os Manden
(Mandingo) eram os melhores clientes da “gente da floresta”. Notemos ainda
que os Akan, os Attie e os Bron tinham interesse em tal comércio porque, sem
a menor dúvida, havia depósitos de ouro em suas terras.
A maior parte desses povos do século XVI foi identificada; o território entre
o rio Bandama e o cabo Three Points tinha o nome de Costa das Presas (Mar-
fim) ou Costa dos Quaquá.
A Costa do Ouro (atual República de Gana) ia do cabo Three Points até o Volta;
os portugueses, em seus relatos, citam o nome de rias aldeias. A de Sama, com
seus 500 habitantes, é apresentada como aldeia grande; os portos Pequena Fante
e “Grande Fante nos situam em território fanti. Esta região, com Elmina,
converteu -se em fins do século XV em importante mercado de ouro.
Os portugueses deixaram, esparsas, indicações preciosas sobre os costumes
locais, mas subsistem muitas lacunas por preencher para que se possa reconstituir
a vida desses povos no quadro das instituições por eles implantadas.
As fontes arqueológicas
As pesquisas arqueogicas começaram pouco tempo; alguns tios foram
abertos na Reblica de Gana e na Reblica da Costa do Marfim, e os primeiros
4 Ibid., p. 121.
5 Ibid., p. 123.
364
África do século  ao século 
resultados indicam que se podem esperar informações valiosas, mesmo nas
regiões em que a floresta parece impenetrável. Ao norte, onde a floresta se
limita com a savana, escavações efetuadas no sítio de Begho, em território bron,
indicam que muitos objetos culturais teriam vindo de Djenné
6
. As mesmas
escavações atestam que havia relações comerciais intensas com o vale do médio
Níger, relações que, segundo M. Posnansky, deviam ser antigas.
Begho foi centro comercial de ligação entre a floresta e a savana zona de
contato, na qual se instalara, além dos Bron, importante colônia de Maninka
ou Jula. As escavações realizadas a partir de 1970, especialmente na área Nya-
rko, em Begho, parecem mostrar que esse sítio começou a existir por volta de
1100
7
. Sabe -se ao certo que no século XIV Begho era um dos mais importan-
tes mercados de nozes -de -cola. Segundo M. Posnansky, é provável que à mesma
época a sociedade akan estivesse estruturada de modo a desempenhar o papel de
intermedrio entre os Manden (Mandingo) e a zona mais meridional de produção
de nozes -de -cola; também evidências do comércio de ouro entre Begho e o
Mali. Esse ouro devia provir de regiões situadas mais ao sul; as relações com a
floresta intensificaram -se no século XIV, período de apogeu, em que a demanda
de ouro se tornou muito intensa.
Do lado oeste, no território guro, a infiltração mandingo começara muito
antes dessa época. O tráfico de nozes -de -cola parece, pelo que se conhece hoje,
bem mais antigo do que se pensava; a linha do paralelo 8
º
N marca o contato
entre a savana e a floresta; ao longo dela se situava a maior parte dos centros
comerciais. Os materiais encontrados nas redondezas de Oda, na República de
Gana, e em Séguié, na República da Costa do Marfim, ainda não foram datados.
Em Séguié, trata -se de fossos de forma ovoide, semelhantes a sítios de defesa,
com profundidade variando entre 4 e 6m. As escavações ali realizadas revelaram
grandes quantidades de cerâmica
8
, mas não há certeza quanto à sua datação (ver
figs. 13.2 e 13.4). Faz -se necessário também um estudo comparativo entre a cerâ-
mica desses sítios e a de regiões vizinhas; os atuais habitantes, os Abè (Abbey),
dizem que seus ancestrais já encontraram esses fossos assim, ignorando quem os
fez. As tradições sustentam que os Abè se instalaram nesse território pouco antes
da grande migração akan do século XVIII
9
. Em todo caso, a existência de tais
vestígios em plena floresta autoriza -nos a pensar que ainda se poderá encontrar
6 POSNANSKY, 1974, p. 48
7 POSNANSKY, 1975b.
8 POLET, 1974, p. 28 -44.
9 POSNANSKY, 1974, p. 46.
365
Das lagunas da Costa do Marm até o Volta
F . Mapa dos sítios arqueológicos na laguna Aby. (Fonte: Revista Godo-Godo, Abidjã, (2): 123, 1976.)
366
África do século  ao século 
F . Cachimbos descobertos no sítio de Séguié (subprefeitura de Agboville).
F . Cachimbos descobertos na necrópole de Nyamwã (uma das ilhas Eotile da Laguna Aby).
367
Das lagunas da Costa do Marm até o Volta
F . Vasos descobertos na necrópole de Nyamwã (uma das ilhas Eotile da laguna Aby). (Fotos das
gs. 13.2 a 13.15: Institut d’Histoire, d’Art et d’Archéologie Africains d’Abidjan.)
F . Bracelete descoberto no sítio de Séguié (subprefeitura de Agboville).
368
África do século  ao século 
material muito interessante; um vazio a ser preenchido. Vimos, com base
nas fontes portuguesas, que a costa era ocupada por comunidades de pescadores
e de agricultores; a pesquisa deve concentrar -se decididamente na costa e em
direção à floresta, mais precisamente nos locais mencionados pelos navegantes.
O Instituto de Arqueologia e Arte da Universidade de Abidjã efetuou son-
dagens na zona das lagunas, mas a pesquisa depara com dificuldades sérias nessa
área de mangues, devido ao grande acúmulo de folhas mortas. se começou,
porém, a estudar a laguna Aby, mediante sondagens em três ilhas: Belibele,
Assoco, Nyamwã (ver figo 13.1). A par dos concheiros do Neolítico, deixados
pelos primeiros ocupantes da costa
10
, encontra -se grande quantidade de restos
de cozinha; três necrópoles foram parcialmente escavadas, e recolhidos ossos,
braceletes e pérolas, nenhum ainda datado (ver figs. 13.3 e 13.5).
Está provado, em todo caso, que existem sítios interessantes às margens das
lagunas
11
.
As fontes orais
o abundantes, pois cada etnia conserva um mito de origem, ou uma epopeia, ou
um relato de migrão. A fragmentação étnica chega a extremos, pois se encontram
etnias com menos de 20 mil almas, distribdas em aldeias esparsas na floresta. As
fontes orais apresentam, portanto, sérios problemas aos pesquisadores, havendo
algumas particularidades que é forçoso destacar. Em primeiro lugar, a memória de
algumas etnias não remonta além do século XVIII; em segundo, constatam -se fre-
quentes contaminações entre grupos étnicos diferentes. Vários grupos pretendem
que seus ancestrais tenham descido do céu; para uns, com a ajuda de uma corrente
de ouro, para outros, por uma corrente de ferro etc.; outros grupos afirmam que
seus ancestrais saíram de um formigueiro, ou de um buraco. A contaminação é
evidente, ainda mais que certos clãs consideram e tratam como “irmãos” a outros
clãs; os Avikam, por exemplo, afirmam que os Aladian são seus “irmãos”. Mas
a maior parte das etnias narra migrações efetuadas por seus ancestrais, recla-
mando uma origem exterior ao território que atualmente ocupam; tradições
muito difundidas dizem que os Adiukru vieram do oeste, em oito importantes
levas migratórias. Mas qual é seu território de origem? A que período remonta
a primeira migração? Em que época se completou tal movimento? Estas são
questões que não podem ser respondidas com uma pesquisa sucinta.
10 Cf. o capítulo 16 do volume III.
11 POLET, 1976, p. 121 -39.
369
Das lagunas da Costa do Marm até o Volta
Outras etnias, muito numerosas, reunidas sob o nome de Akan, situam sua
origem na região da atual República de Gana. as tradições dos Akwapim
(Akwamu) localizam seu território de origem em Kong, ao norte, em plena
savana; da mesma forma, os Fanti da costa afirmam que seus ancestrais vieram
de Tenkyiman, no noroeste da República de Gana. O problema não é simples,
portanto. Deve -se começar por efetuar uma coleta sistemática, identificando e
localizando cada etnia; o concurso de várias disciplinas revela -se necessário para
que se possam distinguir traços culturais comuns e efetuar classificações, pois está
claro que nenhuma etnia constitui uma entidade em si: todas estão relacionadas
a um conjunto mais amplo. Completado o trabalho de coleta e classificação, o
historiador pode então reconstituir o passado recorrendo aos métodos usuais
de sua disciplina. Aqui, mais do que nunca, faz -se necessária a colaboração de
linguistas, arqueólogos, antropólogos e historiadores. Um exemplo encorajador
desse tipo de cooperação foi dado pelos pesquisadores da Universidade de Gana
e da Universidade Nacional da Costa do Marfim, que se traduziu no Colóquio
de Bonduku, de 4 a 9 de janeiro de 1974, cujo tema foi “Os povos comuns a
Gana e à Costa do Marfim”. Confrontando os dados fornecidos pela tradição
oral, pela arqueologia e pela antropologia, os pesquisadores ganenses e ebúrneos
chegaram à conclusão de que não apenas é possível escrever a história das etnias,
como ainda se pode discernir o processo pelo qual sua interação numa mesma
área permitiu que produzissem uma cultura nova.
Antes de encerrarmos estas linhas sobre as tradições orais, conm assinalar que
a fragmentão étnica de que falamos ocorreu entre os séculos XVII e XIX.
Com efeito, as tradições parecem ser de pouca ajuda neste campo, uma vez
que são raras as que podem remontar a tempos anteriores ao século XVII. Con-
tudo os Akan, os Kru e os Bron estavam instalados no século XV, época em
que também existia a aldeia de Acra. Um exemplo típico é o dos Ndenyae.
Segundo suas tradições, eles foram conduzidos ao território que atualmente
ocupam por um ancestral de nome Ano Asena. Vinham da região chamada
Anyanya, situada no leste de Gana.
Ano Asena deu leis aos homens; antes dele [...] não havia árvore, não havia nada. À
frente de Ano Asena, desceu uma bacia de cobre do céu, pendendo de uma corrente.
A tradição também afirma que foi Ano Asena quem ensinou a agricultura aos
homens, dando -lhes a banana e o inhame. Mas, efetuados a investigão e o con-
fronto de várias tradições, evidenciou -se que Ano Asena viveu no século XVII.
370
África do século  ao século 
Claude Perrot, que realizou estas pesquisas, descobriu na Europa documentos que
situam com precisão o ancestral dos Ndenyae no século XVII, por volta de 1690
12
.
Poamos ser tentados a localizar na mais remota antiguidade esse ancestral que
ensinou a agricultura aos homens. Mas o que se passou, na realidade? No final do
culo XVII, uma guerra eclodiu no reino de Aowin, em Gana. Ano Asena, chefe
de clã, deixou o território com seus homens e foi instalar -se na rego de Assinie,
onde vivem atualmente os Ndenyae, que pertencem ao grande clã Akan. Nesse
novo território, o povo reconstruiu o mito antigo de origem em torno da figura de
Ano Asena, a quem foram dados todos os atributos de um ancestral tico. Esse
remanejamento da tradição criou uma nova história que o povo adotou, relegando
à noite dos tempos os acontecimentos que precederam sua migração.
Demos este exemplo para recomendar prudência no manejo das tradições; é
interessante ver, no caso de Ano Asena, como o pesquisador consegue reconstituir
o passado, confrontando diversas fontes orais e escritas, e mesmo arqueogicas
13
.
É precisamente pelo confronto dos diversos dados disponíveis que tenta-
remos esboçar, em suas linhas gerais, a história desta região, do século XII ao
XVI. Muitas lacunas permanecerão, devido à documentação de que dispomos;
indicaremos, porém, as direções que ora se impõem à pesquisa.
Os povos da costa e do interior
Tradicionalmente os povos da área são divididos em dois grupos: os das
lagunas e florestas e os que vivem no interior (floresta rala e savana). Os pri-
meiros eram chamados paleonegríticos, devido à suposição de que se achavam
estabelecidos na floresta e na costa desde a pré -história. Mas tal esquema não
resiste às novas descobertas da antropologia e da linguística. Sabe -se hoje, com
efeito, que em sua maioria os povos das lagunas e os do interior pertencem ao
grupo de língua kwa. Recordemos que os navegantes portugueses deram, a uma
parte da costa, o nome de “Costa dos Quaquá (ver fig. 13.6)
14
.
Num estudo notável, intitulado Who are the Akan? (Quemo os Akan?)
15
, o
professor Adu Boahen, ao ressaltar os principais elementos da cultura akan, funda -se
nos estudos linguísticos mais recentes para afirmar a unidade lingstica dos povos
12 PERROT, 1974.
13 Ibid.
14 DAPPER, 1668, p. 290 -306.
15 BOAHEN, 1974, p. 66 -81, refuta as antigas teorias, segundo as quais os Akan são originários da
Mesopotâmia, da Líbia ou da Gana antiga. Retomando as teorias linguísticas de J. H. Greenberg, o
historiador ganense situa na região Chade -Benue o território de origem dos Akan.
371
Das lagunas da Costa do Marm até o Volta
F . Mapa das migrações akan. (D. T. Niane.)
372
África do século  ao século 
chamados Akan e refaz as etapas da migração que os levou até sua localizão atual.
É o caso de recordar que os Akan constituem, atualmente, 45% da populão em
Gana e 33% na Costa do Marfim. Deles fazem parte as seguintes etnias: em Gana,
os Bono, os Ashanti, os Kwahu, os Akyem, os Akwapim, os Wasa, os Twifo, os
Assinie, os Akwamu, os Buem, os Safwi, os Aowin, os Nzima, os Ahanta, os Fanti,
os Gomua e os Azona; na Costa do Marfim dizem -se Akan os Abron (Bron), os
Anyi (Agni), os Sanwi, os Baule, os Attie, os Abè, os Abidji, os Adiukran, os Ebrie,
os Ega (Dra), os Eotile, os Abure, os Agwa, os Avikam e os Aladian
16
.
Os Akan formam, portanto, vasto grupo linguístico; no período que ora
estudamos, provavelmente ainda não havia ocorrido a fragmentação deles nos
diferentes grupos, embora estivessem definidos certos dialetos.
Os povos das lagunas e os Akan pertenceriam ao grupo kwa: uns e outros
integram a família linguística Volta -Comoé. Os antepassados dos povos que
falam kwa teriam vindo do Chade -Benue por etapas
17
; passando pelo Níger
inferior, atravessaram o atual Benin e o Togo até chegar às lagunas. Ali teriam
criado as instituições que hoje os governam. Do Adansi numerosos migrantes
partiram para o oeste, onde se mesclaram com os povos das lagunas, dando
origem aos Baule, aos Nzima, aos Safwi e aos Anyi (Agni)
18
.
Em síntese, devemos destacar três centros de povoamento (ou de dispersão):
a região Chade -Benue, território de origem; a região das lagunas, de onde par-
tiram os Akan da atual República de Gana; e o Adansi, onde se originou a
última leva, que povoou o oeste (atual República da Costa do Marfim).
A arqueologia pouca informação acerca desses movimentos populacionais;
mas vimos que em 1300, na região de Begho, os Akan (fração Bron) esta-
vam organizados em comunidades bem estruturadas para o comércio de ouro e
nozes -de -cola com os Mandingo
19
.
Os povos das lagunas
Quando esses povos chegaram às lagunas? Provavelmente muito antes do
século XII
20
. Vimos que os portugueses entraram em contato com os Kru, os
Fanti e outras populações costeiras. No culo XV, os Kru formavam comuni-
16 BOAHEN, 1974, p. 66.
17 STEWART, 1966.
18 BOAHEN, 1974, p. 76 -81.
19 Concordando com M. Posnansky, A. A. Boahen considera que foi entre os anos 1000 e 1500 que os
Akan desenvolveram as estruturas fundamentais de sua sociedade.
20 Cf. o capítulo 9 do volume III.
373
Das lagunas da Costa do Marm até o Volta
dades organizadas por grupos de linhagem, independentes umas das outras. “Os
negros desta costa são exímios pescadores e têm pirogas com castelo de proa e
usam manteletes como velas”
21
. Os Kru, como se sabe, são até hoje excelentes
marinheiros. Os portugueses observaram que a costa era densamente povoada e
contava grandes aldeias. Assinalaram que os habitantes de “Pequena Fante”, de
“Sabu” e da “Grande Fante” falavam a mesma língua que os povos de Elmina. Mas
as comunidades eram independentes; os relatos dos navegadores informam - nos
que os chefes eram, acima de tudo, chefes religiosos
22
. O grupo Kru, que domina
as regiões ocidentais, conseguiu manter sua organização por grupos de linhagem
graças à proteção eficaz que lhe reservavam as lagunas e a floresta.
Ainda através dos portugueses, sabemos que os povos das lagunas manti-
nham relações comerciais com os povos do interior; as populações do Rio Lahu
vendiam sal a populações do interior, com as quais mantinham “grande comér-
cio de roupas”. Todas as evidências nos mostram que os povos das lagunas não
estavam isolados dos vizinhos das florestas próximas ou da savana; entre eles
havia troca de sal, peixe, tecidos, ouro e cobre.
Concluindo, ao findar o século XV, os povos das lagunas viviam em comuni-
dades organizadas por grupos de linhagem, sob a autoridade de patriarcas, cujo
poder era mais religioso que político. Dos Kru, segundo o professor M. F. Harris,
originaram -se os Aisi (de Abra, Nigui e Tiagha), os Adiukru (Bubury e Dibrimon)
e os Ebrie -Abia
23
. Mas, dado o atual estágio dos nossos conhecimentos, parece
difícil afirmar quando tais ramificações ocorreram e em que condições.
Assim, ao comar o século XVI, uma parte do grupo Akan ocidental,
principalmente os habitantes das margens das lagunas, era organizada por
grupos de linhagem razoavelmente distintos. Muito pouco sabemos a res-
peito de suas instituições; os chefes, porém, manifestavam clara tendência
a afirmar seu poder político.
As origens da sociedade akan
Vimos que os Akan, na verdade, compõem a população básica dessa região,
que os povos das lagunas constituem seu tronco mais antigo
24
.
21 DAPPER, 1668, p. 302 -4.
22 DAPPER, ibid., p. 304, menciona um rei temido em toda a costa devido a seus poderes mágicos.
23 HARRIS, 1974, p. 135.
24 BOAHEN, 1974, p. 72 -3.
374
África do século  ao século 
F . Mapa da área entre o vale do Níger e o golfo da Guiné. (Posnansky, 1974.)
375
Das lagunas da Costa do Marm até o Volta
A relativa homogeneidade antropológica que se constata na região da floresta
deve -se, segundo o professor M. F. Harris, ao fato de que
originalmente três troncos produziram aquelas populações, que vieram a se mesclar.
Do tronco akan, o mais fecundo, cujo principal epicentro está em Gana, provêm,
além dos Anyi (Agni), os Baule, os Akye, os Abure, os Mabto, os Abè, os Aladian,
os Nzima, os Ebrie, os Adiukru, os Akradio e os Akan”. Menciona o tronco kru, que
citamos, e, por fim, os “povos que se estabeleceram em tempos antigos, como os
Ewotire, os Agwa, os Kimpa etc.”
25
.
O problema es em situar no tempo a separação desses diferentes subgrupos
do tronco materno. Tamm resta saber se o desenvolvimento das instituões e
dos principais elementos da cultura akan oriental (Gana) é anterior ao século XV.
Em seu estudo sobre a sociedade akan, M. Posnansky postula ser o culo XVII
o ponto de virada; os novos elementos de cerâmica encontrados tanto ao longo da
costa como na floresta atestam notável evolução. Algumas terracotas apresentam
elementos decorativos antropomórficos ou temas animais
26
. O trabalho do cobre
e do ouro é muito antigo, embora a arqueologia o tenha descoberto nenhum
objeto dos séculos XIV e XV nos Estados bron, cujo início se pode situar no século
XV. Os objetos culturais encontrados no curso de escavações devem ser analisados
à luz dos dados da tradição, da antropologia e de outras disciplinas.
Para que se preencham as lacunas entre o século XV, data em que chega-
ram os portugueses, e o XVII, que marca a expansão dos reinos akan, é preciso
recolher mais informações junto aos guardiães da tradição oral; posteriormente,
as escavações poderiam também revelar elementos novos da cultura material
desses povos. Contudo é razoável supor que, no início do século XV, começa-
vam a desenvolver -se reinos akan tanto na costa como no interior: na costa, os
reinos de Asebu, Fetu, Aguafo e Fanti, embora ainda apresentassem dimensões
modestas no final do século, estavam organizados para o trabalho e o comércio
do ouro; no interior, Begho era a capital de um reino bron muito voltado para
o comércio com os Mandingo.
Os fundamentos da sociedade akan
Os Akan orientais são universalmente considerados como responsáveis pela
elaboração dos elementos culturais que ora nos interessam. As guerras dos séculos
25 HARRIS, 1974, p. 135.
26 POSNANSKY, 1974, p. 46 -8.
376
África do século  ao século 
XVII e XVIII provocaram movimentos migratórios dirigidos para oeste, e vários
grupos levaram consigo seus traços culturais essenciais, a saber:
1) uma língua comum com numerosas variedades dialetais. (Por ocasião do
Colóquio de Bonduku, o professor C. Wondji assinalou que a partir daquele
momento os pesquisadores deveriam reservar o termo akan ao domínio polí-
tico e empregariam o termo twi para designar o grupo linguístico pertencente
à família kwa
27
);
2) o sistema matrilinear de sucessão no poder (do tio ao sobrinho pelo lado
materno);
3) o sistema de denominação das crianças. (Dão -se dois nomes à criança: o
do dia da semana em que nasceu, mais outro, que é escolhido no cpaterno);
4) o calendário akan, cujo mês tem 42 dias, e que parece resultar da combi-
nação do calendário akan original, com semana de seis dias, e do muçulmano, no
qual a semana tem sete dias. Mas continua havendo muita controvérsia quanto
à origem de tal calendário
28
. Segundo Niangoran -Boah, tratar -se -ia de “mês
ritual com um número bem definido de dias. É em função de tal mês que as
populações das províncias organizam suas atividades religiosas”
29
.
A música dos Akan e suas danças são as mesmas para todos; os festivais e
outras festas coincidem com a colheita do inhame.
Todo Akan pertence a dois clãs, um matrilinear e outro patrilinear. São oito
os clãs matrilineares e doze os patrilineares. Na cosmogonia akan, segundo o
professor Adu Boahen, os dois clãs são complementares; o clã matrilinear é tido
como o que o sangue, enquanto o patrilinear, como o que determina o caráter,
o espírito e a alma da pessoa
30
.
O mundo akan reconhece -se, então, com facilidade, graças a esses traços
culturais que modelaram os homens. O Estado akan é fortemente centralizado.
Cada Estado compreende um número variável de cidades e vilas, sob a autori-
dade de um rei e de uma rainha.
Cada Estado akan possui seu panteão, sendo o sacerdote muito escutado pelo rei.
Tamm é de se notar a presença da rainha ao lado do rei, nas solenidades da corte
31
.
27 WONDJI, 1974, p. 680.
28 GOODY, 1966.
29 NIANGORAN -BOAH, 1967, p. 9 -26, apud BOAHEN, 1974, p. 69.
30 BOAHEN, 1974, p. 70 -1.
31 DIABATÉ, H., 1974, p. 178 -80.
377
Das lagunas da Costa do Marm até o Volta
De início, explica H. Diabaté, a rainha detinha o poder; parece que foi somente ao
se constituírem os reinos que os homens tomaram o poder, a cujo exercio, porém,
mantiveram associada a rainha. Provavelmente, nos culos XIV e XV, quando
os clãs viviam em núcleos isolados, independentes, sem precisarem de um chefe
comum
32
, aceitavam uma rainha à sua frente; mas, quando necessitaram combater
com maior frequência, quer para sobreviverem quer para se expandirem, preferiram
ter um dirigente sempre pronto para a guerra
33
. Podemos concluir que os reinos
akan se estruturaram na passagem do século XVI para o XVII. As necessidades de
defesa fizeram que o papel da rainha fosse reforçado pela presença de um chefe
militar que com ela partilhasse o poder; o aparecimento do rei marca, portanto, a
passagem da sociedade organizada por grupos de linhagem a reino. Desde então, o
rei passou a ter papel mais político que ritual.
Conclusão
A região das lagunas viu desenvolverem -se, do culo XII ao XV, comunidades
organizadas por grupos de linhagem, independentes entre si. Já se iniciara uma
relativa divisão social do trabalho; os Kru provavelmente pescavam peixe em
grande quantidade para poder vender o excedente a seus vizinhos; uma corrente
comercial seguia da costa para o norte. Os povos da costa vendiam sal e alguns
tecidos especiais. O ouro exercia muita atração sobre os Mandingo, que desde
muito tempo praticavam o tráfico de nozes -de -cola; após 1500, transpondo Begho,
atravessaram o território bron, chegando a Elmina, onde entrarão novamente em
contato com os portugueses, a quem já conheciam da Senegâmbia. Antes da che-
gada dos portugueses, no final do século XV, os povos akan constituíam a maioria
da população e haviam criado reinos e cidades -Estado.
32 RATTRAY, 1929, p. 81.
33 DIABATÉ, H., 1974, p. 185.
C A P Í T U L O 1 4
379
Do rio Volta aos Camarões
Ecologia e linguística
oito séculos, a orla marítima da região situada entre o rio Volta e os
Camarões não tinha aspecto muito diferente do que tem hoje. Mais para o
interior, todavia, os pântanos de água doce que cobrem a maior parte do delta
do Níger e também os cinturões de florestas pluviais estavam menos afetados
pela colonização intensiva. Desde essa época, as derrubadas de árvores e as
queimadas realizadas na estação seca converteram quase metade da floresta
original numa savana secundária. Nas atuais República do Togo e República
Popular de Benin, onde a área ocupada por florestas era menor que na atual
República Federal da Nigéria, a queimada anual da vegetação virtualmente
destruiu a floresta primitiva. Também ao leste do Níger, a agricultura eliminou
centenas de quilômetros quadrados da floresta pluvial original, substituindo -a
por dendezeiros (ver fig. 14.1).
A derrubada da floresta primária teve início milhares de anos, quando
as populações negras se instalaram pela primeira vez na região. Acelerou -se
sensivelmente com a difusão das técnicas de emprego do ferro, que favoreceu a
passagem de uma economia de caça e coleta para uma economia agrícola. No
século V da era cristã, se utilizava o ferro em quase toda a zona florestal, o que
resultou num aumento considerável da densidade da população. Essas tradições
Do rio Volta aos Camarões
Allan Frederick Charles Ryder
380
África do século  ao século 
são particularmente fortes entre os Yoruba – que, historicamente, talvez consti-
tuam o grupo mais importante de toda a área –, embora a análise dialetal de sua
língua indique que a migração desse povo se orientou da floresta para a savana.
Há, pois, contradição evidente entre a análise linguística e as tradições históricas.
Levantou -se a hipótese de que essa contradição se explicaria pela movimentação
de populações secundárias da floresta para a savana e vice -versa.
Três grupos principais de dialetos yoruba foram identificados
1
. Dois parecem
apresentar características de maior antiguidade e, portanto, de estabelecimento
anterior: o central (que compreende as áreas de Ife, Ijesha e Ekiti) e o do sudeste
(que compreende as áreas de Ondo, Owo, Ikare, Ilage e Ijebu). No século XII,
todos esses territórios se localizavam dentro da zona florestal. O terceiro grupo
cujos dialetos eram falados pelos habitantes de Oyo, Osun, Ibadã e parte seten-
trional da área de Egba, formava o grupo do noroeste, associado historicamente
ao Império de Oyo, e parece ser menos antigo que os outros. Essa análise é
confirmada pelo mito de Ife, que situa a criação da Terra em Ile -Ife, enquanto
o mito de Oyo, recolhido por Samuel Johnson, no final do século XIX, postula
as origens dos Yoruba em migração vinda do leste
2
.
Uma análise semelhante da língua edo mostra que seus vários dialetos podem
ser reunidos em dois grupos, um setentrional e outro meridional, sendo que
o último comporta o dialeto do reino de Benin, o mais evoluído nos planos
político e cultural. No entanto, não se determinou até hoje se essa divisão cor-
responde a uma sequência histórica de fixação e dispersão
3
. Faz -se necessário
um estudo sistemático dialetal da língua igbo, mas uma hipótese de que a
população Ibo se teria expandido para norte, nordeste, oeste e sul a partir do
lugar de origem, supostamente perto de Owerri -Umuahia
4
.
Foram encontrados vestígios de migrações dos Ijaw (Ijo) na parte central do
delta do ger e imediações. Em resumo, os indícios de que dispomos atualmente
levam a crer que a maior parte das populações importantes para a evolução his-
tórica dos últimos milênios provinha das zonas florestais.
No início do período ora estudado, as línguas faladas na região certamente
não haviam assumido suas formas atuais, nem se distribuíam segundo o padrão
atual. Formalmente, é provável que fossem mais próximas entre si do que hoje
em dia; o método glotocronológico, segundo o qual as principais línguas kwa
1 ADETUGBO, 1973.
2 JOHNSON, S., 1921.
3 ELUGBE, 1974 .
4 OTTENBERG, 1961.
381
Do rio Volta aos Camarões
F . Mapa da região entre o Volta e os Camarões no período de +1100 a +1500. (A. F. C. Ryder.)
382
África do século  ao século 
foram formadas com muitos milênios de distância, está amplamente desacredi-
tado. É provável também que essas línguas fossem mais numerosas, pois grande
número delas, sem dúvida, desapareceu, suplantado pela expansão de grupos
linguísticos mais vigorosos e bem -sucedidos. Em apoio dessa hipótese pode -se
indicar o fato de que, em áreas pouco acessíveis, várias línguas – cada uma delas
falada em apenas uma ou duas aldeias parecem ter sobrevivido em meio ao
avao dos Yoruba e dos Edo
5
. Acontecimentos decisivos ocorreram entre + 1100 e
+ 1500, como conseqncia da expano de alguns grupos, que impuseram sua supre-
macia linguística, e às vezes política, a vastos terririos, anteriormente ocupados por
populões mais fracas ou até desabitados. O exemplo mais impressionante dessa
expansão foi a formação de Estados territoriais importantes como os de Oyo,
Benin e Ife, mas nem sempre foi isso o que aconteceu; a dispersão dos Ibo, por
exemplo, não levou à constituição de um grande Estado ibo, mas a uma série de
povoações independentes, organizadas por grupos de linhagem (ver fig. 14.2).
As sociedades baseadas em grupos de linhagem
Esse é o nome dado às sociedades onde não há poder centralizado, nas quais
os clãs ou as linhagens vivem lado a lado, em completa independência. A autori-
dade do patriarca ou chefe do grupo de linhagem não era absoluta, e cada grupo
explorava área mais ou menos vasta do território. Algumas técnicas agrícolas
eram rudimentares e a procura de bons solos provocava migrações.
No período aqui abordado, nota -se um crescimento da população associado
ao progresso técnico e ao surgimento de regime alimentar mais rico. Por isso, não
se pode dissociar a cultura intensiva do inhame e a abundância de dendezeiros
do estabelecimento maciço dos lbo na floresta a leste do Níger. Em certos pontos
do território Ibo, as derrubadas chegaram a provocar a devastação da floresta
6
.
Essa expansão também teve como resultado a exploração mais intensiva do solo
e o surgimento de grandes aglomerações em aldeias. Sem que se possa explicar
como, dessas aldeias originaram -se Estados, cidades bem estruturadas, com uma
autoridade política bem individualizada.
Entre os Ibo, muitas linhagens mantiveram -se independentes, contrastando
com outras sociedades, onde o grupo de linhagem era dirigido por um poder
5 Comunicão pessoal do Doutor Carl Homan, do Departamento de Linguística e nguas Nigerianas da
Universidade de Ibadã. A natureza e anidades internas desse grupo de línguas são ainda mal conhecidas.
6 ALAGOA, 1972, p. 189 -90.
383
Do rio Volta aos Camarões
F . Mapa das populações do delta do Níger. (D. T. Niane.)
384
África do século  ao século 
central um rei com corte e funcionários. Pode -se, portanto, distinguir as socie-
dades baseadas em grupos de linhagem das cidades -Estado e dos reinos, cujo
poder político era mais elaborado. A forma de sociedade mais comum é a comu-
nidade dispersa, definida por território”, resultado de uma conjuntura em que
a reserva de terras periféricas disponíveis para uma população em expansão é
insuficiente; para se fixarem em novas terras, alguns grupos precisam separar -se
dos parentes mais próximos e solicitá -las a outros grupos, com os quais têm poucos
ou nenhum laço de parentesco.
Na floresta encontram -se, ao lado de reinos e cidades, muitos grupos de linha-
gem que mantiveram sua independência e que vivem sob a autoridade mais
ritual do que política dos patriarcas. Talvez os Akposo da República do Togo
tenham conseguido preservar sua organização por grupos de linhagem graças ao
terreno acidentado onde vivem. Mas a maioria dos povos se viu constrangida a
abandonar essa forma de organização e a fundir linhagens vizinhas em comunida-
des mais vastas, do tipo de aldeias, para formar um sistema de defesa eficaz contra
seus inimigos. Às vezes o inimigo era a população autóctone, lutando para prote-
ger seu território dos invasores. As tradições ife relativas a um longo conflito, em
tempos remotos, com os Igbo
7
podem se referir a uma situação similar. Os Owo
têm uma lenda semelhante, de luta contra um povo conhecido como os “Efene”.
No entanto, a defesa não foi a única razão para o surgimento de comunidades
reunidas em aldeias em oposição à forma dispersa de ocupação.
Por exemplo: a parte dos Ijaw (Ijo) que migrou do delta de água doce para a
região de ntanos salgados foi, consequentemente, forçada a trocar sua economia
baseada na agricultura e na pesca por outra, baseada na pesca em água salgada e
na produção de sal por ebulição. Em seu ambiente anterior, os Ijaw (Ijo) viviam
em grupos autônomos, governados por uma assembleia de todos os adultos do
sexo masculino, presidida pelo decano. Na nova aldeia de pescadores, composta de
várias linhagens sem laços de parentesco e em competição com outras aldeias pela
ocupação de terras insuficientes, a idade deixou de ser critério para o exercício da
autoridade e foi substituída pela competência pessoal e pelo fato de se pertencer
à linhagem dominante, geralmente a do ancestral fundador.
Além de propiciar o surgimento de novas formas de organização, a aldeia
favoreceu o surgimento de instituições que se contrapunham à afiliação a linha-
gens. As mais comuns eram as classes de idade e as sociedades secretas. As pri-
meiras reuniam os homens e, bem mais raramente, as mulheres, em grupos etários
7 Não se deve confundir os Igbo da lenda de Ife com os Ibo que vivem atualmente na Nigéria oriental.
385
Do rio Volta aos Camarões
que serviam ao conjunto comunitário da aldeia. Os habitantes de sexo masculino
eram divididos basicamente em dois grupos: os jovens e os mais velhos. Por
vezes, havia um sistema tríplice, no qual se distinguia, além dos jovens e adultos
maduros (que constituíam as forças combatentes da aldeia), o grupo dos mais
velhos, que formavam o conselho de governo. As cerimônias de iniciação, que
precediam a entrada em cada classe etária, permitiam afirmar a solidariedade em
nível de aldeia, em contraste com a solidariedade em nível de linhagem; também
contribuíram bastante para libertar os membros das sociedades secretas de seus
vínculos familiares, levando -os a privilegiar a fidelidade ao corpo social
8
.
Assim como a felicidade do grupo familiar era acreditava -se garantida
pelos espíritos dos antepassados, a quem o decano da linhagem rendia homena-
gem em nome de sua família, também o chefe da aldeia mantinha relações pri-
vilegiadas com as forças espirituais que poderiam trazer o bem ou o mal a toda
a comunidade. Os cultos de Ama -teme -suo e Amakiri, entre os Ijaw, ilustram
bem como se deu a emergência de conceitos religiosos especificamente relacio-
nados à comunidade. O de Ama -teme -suo é particularmente impressionante,
pois encarna “a verdadeira essência e a alma da própria comunidade, e pode -se
dizer que dele dependia o destino da aldeia
9
.
A aldeia, como estrutura social, era comum no século XIII? O fato de os Esta-
dos territoriais mais antigos de que temos algum conhecimento terem se formado
por volta dessa época atesta que, pelo menos em certas regiões, principalmente na
floresta seca, as aldeias estavam bem estabelecidas. As evidências arqueológicas,
atualmente, o ajudaram a encontrar uma resposta categórica para a queso, pois
quase nunca existem meios para determinar se um depósito antigo provém de uma
aldeia ou de colônias dispersas. Daí não se poder afirmar que tipo de ocupação do
solo produziu o carvão vegetal extraído dos poços de Ile -Ife, que a datação pelo
carbono -14 situa entre +560 e +980. a mesma incerteza quanto ao sítio de
Yelwa, às margens do ger, cujos depósitos arqueológicos indicam uma ocupação
prolongada, desde + 100 até + 700. Somente pesquisas minuciosas e extensivas
em vastas áreas poderiam demonstrar inequivocamente a existência de aldeias e
determinar a época de sua formação
10
. O problema também poderia ser abordado
8 As classes etárias e sociedades secretas existem na maioria das sociedades africanas, do Senegal à Zâmbia,
incluindo a Nigéria e os Camarões. As classes de idade são a estrutura ideal para o trabalho coletivo,
como a caça e a aradura.
9 ALAGOA, 1972, p. 200.
10 O material usado para a construção de habitações foi, a princípio, a madeira e o bambu; por volta de +900,
provavelmente, empregava -se a terra batida (ou banco). Nas clareiras e savanas, as aldeias multiplicaram -se
rapidamente, em meio a uma rede de trilhas e vias de comunicação.
386
África do século  ao século 
através do estudo cuidadoso das tradições relativas às origens, às migrações e às
instituições religiosas, sociais e políticas. Pesquisas desse tipo entre os Ijaw per-
mitiram retraçar a dispersão desse povo pelo delta do Níger e demonstrar que
ela começou, com relativa certeza, o mais tardar no final do século XII. Também
podemos atribuir a esse mesmo período a introdução de povoamentos do tipo de
aldeias entre os Ijaw, pois, como se mencionou anteriormente, foi a dispersão no
novo ambiente que deu origem à nova estrutura política.
Se as evidências arqueológicas não permitem estabelecer distinção entre uma
ocupação agrícola dispersa e uma aldeia, no primeiro milênio da era cristã, é
ainda mais difícil afirmar a existência de unidades políticas mais importantes
que a aldeia nessa época. É, no entanto, razoável supor que elas existissem, não
sendo necessário procurar influências externas, nem mesmo sudanesas, para
explicar a transformação de uma aldeia em cidade -Estado na região de florestas
da Africa ocidental. O modelo proposto por R. Horton para descrever a trans-
formação de uma comunidade organizada por grupos de linhagem em uma
aldeia compacta mostra como, no decorrer do processo, os primeiros órgãos de
um Estado podem começar a aparecer por adaptação interna
11
. A liderança
perde seu caráter transitório, as linhagens fundadoras adquirem maior autori-
dade, assiste -se ao surgimento de instituições com um espírito comunitário, e
não mais familiar, e os princípios de integração política, baseados na residência
e legislação comuns, tornam -se fundamentos do princípio de soberania.
Reinos e cidades
Uma vez estabilizada, a aldeia crescia rapidamente, se o solo fosse fértil,
tornando -se uma comunidade importante; a partir de eno, fazia -se necesrio
montar uma organização militar eficaz. É bem provável que, mesmo nas regiões
florestais, as rotas e os intercâmbios comerciais tenham sido importantes para o
desenvolvimento das cidades. Uma vez constitda, a cidade se tornava um cen-
tro ecomico ativo, que atraía comerciantes. Tudo leva a crer que as cidades se
formaram num clima de rivalidade, quando não de hostilidade. As mais comba-
tivas aumentaram seu território absorvendo outras cidades e outros territórios.
No entanto, a floresta, além de frear o expansionismo, contribuiu para limitar os
domínios da cidade; poucas foram as que tiveram um raio de ação para além de
11 HORTON, 1971.
387
Do rio Volta aos Camarões
60 km da capital; as que ultrapassaram esse limite, dependiam de “vassalos” ou de
chefes de linhagem.
Nossa insistência em sublinhar a origem autóctone do Estado da região flores-
talo deve ser interpretada como a negação de qualquer influência externa. Um
Estado pode ter -se inspirado em alguma prestigiosa fonte exterior para elementos
de seu fausto e cerimonial, ou mesmo para tomar de empréstimo um chefe. Nos
Estados da região florestal alguns exemplos cuja autenticidade é inquestiovel;
o emprego generalizado de espadas cerimoniais e de títulos de chefaria do Beni é
um entre tantos outros. Assim, o há rao para supor que esse tipo de intermbio
não ocorresse entre os Estados da rego florestal e os da savana.
Na época em que Gana dominava o Sudão ocidental, certamente existiam
relões comerciais com os países da floresta. Essas permutas entre a floresta e a
savana tamm podem ter favorecido o intercâmbio de traços culturais e institui-
ções entre as duas reges. Nos culos XII e XIII, a expansão dos povos da savana
na direção da floresta é atestada pela amplitude do corcio de nozes -de -cola,
ouro e cobre. Os Manden (Mandinga ou Wangara) e os Haussa logo entraram em
contato com os povos da floresta, estabelecendo relões de guerra e comerciais
12
.
Um exemplo de evolução para Estado sem qualquer influência exterior per-
ceptível pode ser encontrado na transformação da aldeia autônoma dos Ijaw
em comunidade com características de um Estado. Nas aldeias de pescadores,
na parte oriental do delta do Níger, os chefes adotaram o título eloquente de
amanyamabo (“proprietário da aldeia”). A necessidade de trocar seu peixe e seu
sal por alimentos que não podiam cultivar, estimulou o comércio dessas aldeias
com os Ijaw e os Ibo do interior. Esse comércio, por sua vez, reforçou a auto-
ridade das instituições estatais; a aldeia cresceu, transformou -se numa cidade,
cujo chefe tornou -se rei ou “proprietário da cidade”.
Os Yoruba
O conjunto de Estados que agrupava os povos de língua yoruba era o mais
importante da região, pois estendia -se do Atakpame, a oeste, até Owo, a leste;
de Ijebu e Ode Itsekiri, ao sul, até Oyo, ao norte. Suas origens são mais obscuras
que as dos Estados ijaw, pois o prestígio de dois Estados yoruba Ife e Oyo
impregnou as tradições dos outros. Sugeriu -se, por exemplo, que a reivindicação
12 É praticamente certo que, já nos séculos IX e X, o cobre de Takedda chegava a Ife e Benin, assim como
a Igbo -Ikwu.
388
África do século  ao século 
dos Popo (Gun) de serem descendentes dos Ife teria origem no século XVII,
quando seu território foi conquistado pelos Oyo, e tornou -se importante para
os conquistadores estabelecerem o vínculo com os Ife, para justificar seu domí-
nio sobre um povo “yoruba”
13
. É claro que todas as afirmações tanto de povos
quanto de dinastias que pretendem descender dos Ife devem ser encaradas com
cautela. Mais uma vez, é instrutivo voltarmos aos Estados ijaw, dos quais muitos
pretendem ser originários do Benin. A este respeito, escreveu -se:
A pretensão de derivar sua ascendência do Benin e de outras regiões mais distantes
reflete, de fato, uma atitude singular dos Ijaw em relação às origens, isto é, pro-
fundo preconceito contra indivíduos e grupos que não conhecem seus antepassados.
Assim, um grupo que não mais se lembra do local de origem tende a escolher um
que era considerado poderoso, antigo e distante o suficiente para não ameaçar sua
autonomia
14
.
Esse gosto pela ascendência não é, com certeza, peculiaridade dos Ijaw; os
Yoruba e muitos outros povos que reivindicam origem ife inspiram -se, prova-
velmente, em considerações do mesmo tipo. Em alguns lugares, a investidura
de um dirigente proveniente de Ife, ou mesmo de outro Estado yoruba, parece
ter levado toda a população a pretender ascendência ife
15
.
Admitindo -se que o berço dos Yoruba corresponda às regiões onde se falam
grupos de dialetos do centro e do sudeste, é nessa área que devemos procurar
as origens das instituições estatais yoruba. A pretensão dos Ife de serem os
fundadores do primeiro Estado yoruba é com certeza convincente. Todas as
numerosas versões mesmo as provenientes de Oyo da lenda de Oduduwa,
fundador desse Estado, reconhecem a supremacia de Ife, e não há outras lendas
rivais que tentem atribuir essa distinção a qualquer outro Estado. Estabeleceu -se,
pelo método do carbono -14, que o carvão vegetal descoberto no sítio da cidade
de Itayemu data do período compreendido entre + 960 e + 1160, o que confirma
as considerações precedentes, pois esses vestígios são anteriores aos de todos os
outros sítios urbanos yoruba
16
. Outro argumento em favor da reivindicação ife
é a relativa proximidade do núcleo urbano das bordas setentrionais da floresta,
13 LAW, 1973.
14 ALAGOA, 1972, p. 187.
15 A evolução dos Estados pode ser esclarecida por um estudo dos topônimos. Atualmente esse é um campo
de pesquisa quase totalmente dominado pela etimologia popular.
16 É preciso reconhecer que as pesquisas arqueológicas em sítios yoruba são ainda muito escassas.
389
Do rio Volta aos Camarões
o que teria exposto seus habitantes, mais cedo que os demais, a uma pressão das
populações estabelecidas na savana.
As origens
Segundo a lenda de Ife, uma primeira geração de Estados yoruba constituiu -se no
tempo dos netos de Oduduwa, que se teriam dispersado a partir de Ife; esses Estados
eram: Owu, Ketu, Benin, Ila, Sabe, Popa e Oyo. É, no entanto, pouco provável que
sua criação tenha ocorrido simultaneamente e da forma descrita na lenda. O
caso de Popa foi discutido. A lista de reis de Sabe contém apenas 21 nomes,
enquanto a de Ketu enumera 49 e a de Ife, 47. Por outro lado, Ijebu, que não
consta entre os primeiros Estados yoruba da lenda, parece ser o mais antigo, com
uma lista de 52 reis. Com certeza, ainda resta muito a aprender sobre a ordem
e o modo como nasceram esses Estados.
Um Estado yoruba típico tinha dimensões bem modestas, sendo quase sem-
pre formado por uma única cidade e as aldeias próximas. Nos últimos séculos,
a área de Ekiti contava pelo menos 16 ou 17 reinos, e nada indica que eles
alguma vez tenham sido em número menor ou mais extensos. Parece que as
cidades de Egbado nunca constituíram um Estado de grandes dimensões ou
uma federação, enquanto os Egba, assim como os Ijebu, formaram uma federa-
ção de pequenas cidades -Estado, ao invés de um reino centralizado. Os 130 km
de extensão do eredo correspondem, provavelmente, aos limites do território de
Ijebu propriamente dito. Parece que mesmo Ife não chegou a dominar um vasto
território
17
. Os Akoko, estabelecidos no limite nordeste da influência yoruba,
nunca ultrapassaram o nível de aldeia em sua estrutura política.
Em meio a essa multio de pequenos Estados, a grande exceção foi o reino de
Oyo, embora seu cater “imperial tenha se desenvolvido um tanto tarde, talvez
no começo do culo XVII. Esse caso único pode, talvez, ser explicado pela
topografia – savana típica –, onde prosperou o Império Oyo, que permitia uma
facilidade de movimentos maior que na floresta e, portanto, o deslocamento da
cavalaria e de grandes contingentes de infantaria, por distâncias maiores. De
fato, acredita -se que o desenvolvimento de Oyo tenha sido mais influenciado pelos
Estados vizinhos da savana – Borgu e Nupe – que pelos Estados yoruba da rego
florestal. Ele teve de se afirmar primeiro frente a seus rivais do norte, antes de poder
lançar -se à conquista dos Yoruba. Pela lista de reis de Oyo, sue -se que o reino
tenha sido fundado no começo do século XV. O abandono da capital, sob a pressão
17 ADETUGBO, 1973, p. 193.
390
África do século  ao século 
dos Nupe, durante o segundo quarto do século XVI, es bem determinado. A evi-
ncia arqueogica mais antiga até hoje descoberta parece remeter a um período
posterior à reocupação da capital, por volta do final do culo XVI. Em resumo, é
pouco provável que Oyo tenha atingido grande importância no fim doculo XV.
Ife
Considerando a posição central que essa cidade ocupa na história geral dos
Yoruba, é surpreendente que a história de Ife seja tão pouco conhecida.
Afora a abunncia relativa de detalhes sobre Oduduwa – legendário fundador
do Estado – e sobre seus sucessores imediatos, os relatos que encontramos na tra-
dição oral o fragmenrios, com relação aos períodos subsequentes. Os vesgios
arqueogicos conseguem preencher algumas lacunas, mas as pesquisas neste campo
ainda mal se iniciaram. Uma primeira fase da história do Estado começaria por volta
do culo XI, caracterizada por um tipo de habitat disperso, pelo emprego comum de
pisos de cacos de cerâmica justapostos, por uma instria de contas de vidro e por
uma refinada arte da terracota, especializada na elaboração de figuras naturalistas,
principalmente de cabas humanas. Estas levaram alguns etnólogos a estabelecer
uma ligação entre as culturas de Ife e de Nok, apesar do milênio que separa uma da
outra. A grande semelhança da arte da terracota de Ife com a encontrada em outros
centros de cultura yoruba é ainda mais reveladora. Cabeças de um estilo próximo
ao de Ife foram descobertas em Ikinrum e Ire, perto de Oshogbo, em Idanre, perto
de Ikare, e, mais recentemente – o que é particularmente interessante –, em Owo,
onde grande número de esculturas em terracota foram exumadas entre os vesgios
doculo XV (ver fig. 14.3). A disseminação da prática desse estilo por vastas áreas
poderia testemunhar a grande influência exercida por Ife, mas é possível que se trate
simplesmente de femeno cultural difundido entre os Yoruba, mais associado a
ritos religiosos que à realeza de Ife. Em outras palavras, Ife é apenas um dos muitos
centros que produziram esse tipo de objeto, e cada vez é mais difícil sustentar que
teria a exclusividade desse estilo. Da mesma forma, os pisos de cacos de cemica,
descobertos juntamente com figuras de terracota, o o exclusivos dessa cidade,
pois outros semelhantes foram encontrados em Owo, Ifaki, Ikerin, Ede, Itaji, Ekiti,
Ikare e, ainda mais longe, em Ketu e em Dassa -Zumé, na República Popular de
Benin, e também no distrito de Kabrais, na Reblica do Togo. Em Yelwa, foram
encontradas num tio ocupado a cerca de +700; em Daima, perto do lago Chade,
entre desitos do século VIII; e em Benin, entre os vestígios do culo XIV. Os
pisos de cacos de cerâmica mais antigos descobertos até agora em Ife datam de cerca
391
Do rio Volta aos Camarões
F . Cabeça em terracota (Owo, Nigéria). (Fonte: Shaw, T., 1978.)
392
África do século  ao século 
de + 1100; os mais recentes m impressões de espigas de milho, o que significa que
o podem ser anteriores ao século XVI
18
.
O desaparecimento das técnicas de fabricação do piso e aparentemente tam-
bém da arte da terracota deve -se provavelmente a uma catástrofe que teria
abalado os Ife no século XVI. As 25 cabeças de “bronze de Ife (trata -se, na
verdade, de latão e de cobre), que estilisticamente e de forma impressionante
se parecem com as terracotas, podem ter sido feitas nos anos imediatamente
anteriores ao desastre, quando, em virtude das importações de cobre e latão
pelos portugueses, os metais destinados à fundição e à moldagem se tornaram
relativamente abundantes. Atualmente podemos apenas conjeturar sobre a natu-
reza dos acontecimentos que destruíram essa cultura; a hipótese mais verossímil
parece ser a de conquista por uma dinastia estrangeira.
Se essa interpretação da história de Ife for correta, a dinastia que reina atual-
mente é a mesma que se estabeleceu no culo XVI, construiu o palácio na sua
atual localização e tamm os primeiros muros ao redor do centro da cidade. É
possível que a nova dinastia tenha preservado algumas instituições políticas e sociais
de sua predecessora, mas nada indica que o regime anterior seja mais semelhante
ao seguinte no plano político que no arstico. o é posvel, portanto, descrever
exatamente a forma de governo que existia em Ife antes do século XVI. Também
se ignora se o parentesco com a civilização ife, reivindicado por bom mero de
Estados yoruba, data de um peodo antigo ou mais recente da história de Ife.
Se o desenrolar das cerimônias de entronizão e os emblemas reais de
hoje são muito semelhantes na maioria dos países yoruba, inclusive em Ife, eles
diferem sensivelmente das insígnias que usam por efígie os personagens que
supostamente teriam pertencido a famílias reais da primeira fase da história de
Ife. Podemos, então, concluir que a realeza yoruba dos tempos modernos pro-
vém de época mais recente, mesmo que originariamente os Estados se tenham
constituído segundo os modelos da Ife dos tempos antigos.
Não se exclui a hipótese de que a grandeza e a decadência dos Estados do
Sudão ocidental nos séculos XV e XVI tenham influenciado direta ou indire-
tamente a formação dos Estados yoruba na zona florestal do golfo da Guiné.
Nessa época formaram -se, ou melhor, reconstituíram -se muitos grandes Estados
localizados ao norte dos que tratamos neste capítulo, sendo os mais importantes
os de Borgu, Idah e Kwararafa (Kororofa)
19
. Seu surgimento e sua expansão
18 O milho, originário do Novo Mundo, foi introduzido na África pelos portugueses, no século XVI.
19 Ainda conhecemos pouco a respeito das relações entre a savana e a oresta. Considerando a importância
do comércio, cada vez mais evidente, é possível que as relações fossem mais intensas no passado do que
hoje. Ver SHAW, T., 1970, p. 284.
393
Do rio Volta aos Camarões
podem, certamente, explicar as desordens sofridas nesse período pelos Estados
vizinhos do sul. Sabemos que os Nupe expulsaram os Yoruba da antiga Oyo no
começo do século XVI, e que, antes de voltarem à sua capital, três quartos de
século mais tarde, os Oyo haviam reorganizado suas forças militares, reforçando
a cavalaria, força de combate dos exércitos dos Estados da savana. Os Oyo
tomaram dos Nupe o culto Egungun dos ancestrais e, possivelmente, algumas
particularidades de seu Estado reconstituído também tiveram a mesma origem.
O reino do Benin
O Benin foi o primeiro Estado desta costa em que estiveram os portugueses, com
o qual logo estabeleceram tanto laços diploticos quanto comerciais. Localizado
a sudoeste de Ife, acredita -se que o Benin tenha se tornado reino bem cedo, talvez
desde o culo XII. No culo XV, ele parece ter sofrido uma transformação que, em
certos pontos, lembra a de Ife no culo XVI. Não se exclui que tenha existido uma
escie de Estado entre os Edo (Bini) antes do século XIII, mas tanto a tradição
do Benin como a dos Yoruba atribuem o estabelecimento definitivo de um reino a
um descendente da prestigiosa família reinante em Ife. Diz a tradição que alguns
chefes do Benin pediram ao rei de Ife, Oduduwa, que lhes mandasse um príncipe, e
o rei enviou -lhes o filho Oronyan. Isso aconteceu provavelmente por volta de +1300.
Ainda segundo a tradição, os poderes dos primeiros soberanos dessa dinastia de
Ife eram limitados pelos poderes hereditários dos chefes auctones, denominados
uzama. No entanto, é possível que a própria dinastia tenha conferido aos uzama os
tulos e a organização, pois há semelhanças entre esses tulos e os mais comuns
entre os Yoruba, o que só poderia ser explicado por uma imitação de uma parte ou
de outra
20
. Os seis chefes uzama parecem ter desempenhado papel político bem
semelhante ao que seria atribuído mais tarde aos sete portadores do título de oyomesi
(oyo missi) de Oyo. Se a hipótese de R. Horton sobre a formação dos Estados for
admitida, poder -se supor que muitos reinos adotaram variantes desse princípio
de base, que prevê um equibrio de poder entre o rei e chefes representantes de
grupos de linhagem. A tradição afirma que o quarto soberano da dinastia do Benin
conseguiu romper o equibrio em seu favor, depois de luta armada contra os chefes
uzama. Esse soberano instalou -se daí por diante num pacio mais amplo, onde
20 A menos que tanto os títulos yoruba quanto os do Benin provenham de uma mesma fonte exterior. Os
títulos edo são oliha, edonen, ezomo, ero, eholo nire e oltoton. Seus homólogos yoruba são olisa, odon, ojomo,
aro, osolo e oloton.
394
África do século  ao século 
cercou -se de grande corte e criou certo número de tulos o hereditários para seus
homens mais importantes; mesmo assim, nem ele nem seus sucessores ultrapassaram
a condição de primus inter pares diante dos poderosos uzama.
No século XV, profundas agitações internas transformaram em autocracia essa
monarquia de poder limitado, e o pequeno Estado tornou -se um grande reino.
A tradição atribui essa transformação a um soberano chamado Ewuare, que se
apoderou do trono, expulsando e assassinando um irmão mais novo; conta -se
que a luta provocou a destruição de grande parte da capital. Essa explicação dos
acontecimentos em termos de um primogênito e sucessor legítimo lutando
contra um irmão mais novo usurpador é suspeita, na medida em que parece uma
tentativa de preservar a legitimidade indispensável à genealogia de uma dinastia
que, em todos os outros pontos, nesse momento, estava desacreditada. Tende-
mos mais a ver, na violência que acompanhou a asceno de Ewuare ao poder e nas
transformações radicais que se sucederam, a conquista do Benin por uma potência
estrangeira.
A cidade
Ewuare reconstruiu a capital de acordo com novo plano e deu -lhe o nome de
Edo, denominação que permanece até hoje
21
. No centro da cidade, como em Ife,
escavaram -se enormes fossos e construíram -se muralhas, cujo traçado o levava
em conta as construções mais antigas. No interior dos muros, uma grande avenida
separava o pacio da cidade”, ou seja, dos bairros onde habitavam membros de
numerosas corporões de artesãos e especialistas do ritual, a serviço do soberano.
O pacio propriamente dito comportava três departamentos: o guarda -roupa, os
servidores pessoais do soberano e o harém, servidos por um pessoal dividido, por
sua vez, em três categorias, análogas às classes de idade das aldeias edo.
Cada corporação da cidade” estruturava -se do mesmo modo e era filiada ao
departamento correspondente do pacio. O pessoal mais graduado do pacio rece-
bia títulos vitalícios. motivos para crer que Ewuare convocava para serviços
palacianos todos os ditos nascidos livres, impondo -lhes um período de trabalho
obrigatório nos postos mais baixos. Após ter completado esse serviço, a maioria
voltava às suas aldeias. Ewuare impunha aos ditos nascidos livres uma escarificação
facial que lhes conferia a qualidade de servidores do oba” para reforçar o laço
pessoal que os unia ao soberano.
21 A origem do nome “Benin”, como a cidade e o reino são chamados por todos os não Edo, é cercada de
mistério. A etimologia popular não uma explicação satisfatória. É possível que os primeiros portugueses
que desembarcaram na costa tenham ouvido dos Ijaw o termo beni, que signica “habitantes das águas”, e
aplicaram -no erroneamente aos Edo.
395
Do rio Volta aos Camarões
O governo de Ewuare
Remodelado por Ewuare, o governo do Benin era composto pelo soberano
e três grupos de dignitários: os uzama, cujo cargo era hereditário, os chefes de
palácio, e uma ordem (criada por Ewuare) de chefes de “cidades”. Esses dig-
nitários do topo da hierarquia constituíam o conselho, que deliberava com o
soberano qualquer assunto que lhe fosse submetido. Cada um se encarregava do
controle de certo número de unidades tributárias em que o reino estava dividido.
Os súditos de categoria inferior eram os mensageiros, os efetivos do exército,
ou executavam, de várias maneiras, a vontade do rei. Entre outros princípios
constitucionais que passaram a ser adotados nessa época, convém citar o direito
de sucessão ao trono por primogenitura; Ewuare conferiu ao seu herdeiro pre-
suntivo o título de edaiken, que ele acrescentou à ordem dos uzama. Também no
campo da religião, Ewuare, que era tido como grande mágico, reforçou o poder
místico atribuído ao soberano, ao introduzir a comemoração anual da festa Igue,
durante a qual suas forças vitais eram renovadas.
Outra realização de Ewuare a criação de um grande reino envolveu -o
em guerras constantes contra os vizinhos. À frente das tropas, submeteu outras
populações edo, grande parte dos lbo que viviam a oeste do Níger e alguns
Yoruba do setor oriental, inclusive, diz -se, as cidades de Akure e Owo. Entre
os territórios conquistados, os mais distantes conseguiram preservar certo grau
de autonomia, pagando tributos ao Benin; a outros, Ewuare impôs governos
calcados no modelo do Benin, tendo à frente príncipes de sua família; apenas
os povos que viviam num raio de aproximadamente 60 km da capital estavam
sob o controle direto do Benin. Nessa região central, o rei tinha o poder de
condenar alguém à pena de morte.
A tradição não diz se Ewuare reformou radicalmente o exército, o que poderia
explicar o sucesso dessa expansão. Talvez o segredo de suas vitórias fosse a capa-
cidade de mobilizar os ditos, que lhe permitiu reunir forças superiores às dos
adversários. No entanto, para integrar grande número de ditos fisicamente fortes
à máquina de guerra, era -lhe também necessário empreender numerosas expedi-
ções, cujo butim e tributos obtidos se destinavam à manutenção do exército.
Durante mais de um século, os sucessores guerreiros de Ewuare organizaram
regularmente incursões militares nas províncias limítrofes ou mesmo mais dis-
tantes. A maior parte dos povos do Edo setentrional foi dominada pelo Benin.
A influência yoruba, que se estendia para o leste, foi obrigada a recuar, diante
da forte pressão de Edo sobre seu território. Ultrapassando Owo e Akure, os
exércitos do Benin submeteram vastos territórios de Ekiti. Acredita -se no Benin
396
África do século  ao século 
que Ijebu, um dos Estados yoruba mais antigos, teria vivido temporariamente
sob a tutela de Edo. Apesar de esse fato não ter sido confirmado em Ijebu,
alguns aspectos de seu governo a associação do palácio ifore, por exemplo têm
muitos pontos em comum com o do Benin. Semelhanças desse tipo também são
encontradas em Ondo, outro Estado yoruba limítrofe. A conquista pelo Benin
poderia explicar essas semelhanças, mas é possível que alguns Estados yoruba
tenham reivindicado ou pelo menos aceito de bom grado um soberano do
Benin, após Ewuare ter estabelecido o prestígio de sua dinastia. Foi o caso dos
Itsekiri, um ramo oriental dos Yoruba, entre os quais Iginua, neto de Ewuare,
instalou -se como soberano. Cercado por um grupo fiel a Edo, ele fundou um
reino segundo o modelo do Benin, que reconheceu por muitos séculos a sobe-
rania da dinastia -mãe.
As particularidades do Estado do Benin, depois de reformado por Ewuare,
foram descritas aqui com abundância de detalhes que poderia parecer exces-
siva. Isso se deve porque, por um lado, esse soberano teve papel crucial na his-
tória dos Edo, e, por outro, porque exerceu grande influência sobre os vizinhos;
e tamm, finalmente, porque o reino do Benin é o único Estado da região de
cujas instituições anteriores ao século XVI temos conhecimento razvel. A
história antiga do Benin é bem mais detalhada que os rudimentos recolhidos
em todos os outros Estados graças à riqueza da tradão oral preservada pela
corte, às informações recolhidas pelos visitantes europeus nos culos XVI e
XVII e às pesquisas arqueológicas que vêm sendo realizadas na cidade nas
últimas duas décadas, que confirmam a tradição, situando no século XV a
construção da grande muralha de Ewuare e a renovação do palácio (ver fig.
14.4). A arqueologia também esclareceu a evolução da célebre arte do Benin,
a moldagem do latão e do bronze pela técnica da cera perdida. Estabeleceu-
-se que todos os objetos de latão descobertos entre os vestígios anteriores ao
século XVI tinham sido forjados, e não moldados. Embora seja provável que
a moldagem pela técnica da cera perdida fosse conhecida em tempos mais
antigos, as evidências arqueológicas e o estudo estilístico de numerosos obje-
tos em latão encontrados, que ainda hoje existem no Benin, indicam que essa
arte só floresceu no século XVI, quando grandes quantidades de latão foram
importadas da Europa
22
.
22 Uma das peças mais célebres, atribuída à primeira fase das moldagens em latão no Benin, é a cabeça
de uma iyoba, ou “rainha -mãe”. Se a identicação for correta, a cabeça não pode ser anterior à primeira
década do século XVI, quando o soberano Esigie criou o título de iyoba especialmente para sua mãe.
397
Do rio Volta aos Camarões
A arte de Ife e o problema dos bronzes do golfo
Até hoje, a arte africana tem sido estudada quase que exclusivamente do
ponto de vista estético, negligenciando -se, frequentemente, o contexto socioló-
gico no qual foi criada. Com a civilização de Ife -Benin, temos ocasião de estudar
uma arte africana em seu contexto histórico -sociológico. Em geral, a escultura
em madeira domina a arte negro -africana, de forma que a maior parte das peças
que extasiam os estetas é de época recente; a brilhante exceção é a da civilização
F . Cidade de Benin escavação feita na parte mais profunda do muro da cidade, vista do fosso
exterior. (Fonte: Connah, 1975.)
398
África do século  ao século 
de Ife -Benin, onde se encontram obras de arte em terracota e bronze: daí a
importância dessa região na evolução geral da arte negro -africana.
Falamos acima que os objetos em latão eram ou forjados, ou feitos pela técnica
da cera perdida, conhecida em Ife, provavelmente, desde antes do culo XIII.
À luz de pesquisas mais recentes, uma ligação natural une a arte da terracota de
Ife, ilustrada por figuras naturalistas, principalmente cabeças humanas, à cultura
de Nok, que remonta à Idade do Ferro (no século V antes da era cristã). Isso é
essencial e sublinha a grande difusão da cultura nok, que não deve ser circunscrita
aos planaltos de Bauchi; além disso, temos provas de intercâmbios e contatos con-
tínuos entre os países da savana, ao norte, e os da floresta, ao sul. Assim, os célebres
objetos em bronze e latão de Ife e do Benin são o resultado da evolução artística,
iniciada pelo menos na Idade do Ferro, numa área cultural muito vasta.
Pouparemos o leitor de todas as elucubrações dos colonizadores, que tentaram
descobrir uma origem extra -africana para essas obras de arte, de um naturalismo
o puro que um especialista europeu de arte yoruba observou:
Se examinarmos a cabeça reproduzida [a de um oni de Ife do culo XIII], seremos
tentados, à primeira vista, a exclamar: ‘É, sem dúvida, uma obra da Renascença!
23
.
Foi o aleo Leo Frobenius quem descobriu as esculturas de Ife, em 1910, durante
uma viagem à África. Mas, no fim do culo passado, ocorreu um fato sobre o qual
não se pode silenciar: Ife foi saqueada por uma coluna inglesa e a cidade foi pilhada
pelos conquistadores, que levaram para a Inglaterra muitas esculturas do palácio.
Leo Frobenius apresentou as obras -primas de Ife ao mundo civilizado; logo
artistas e etnólogos perderam -se em hipóteses fantasiosas para explicar o assim
chamado milagre de Ife”
24
. Em 1939, descobriu -se, não longe do palácio do oni
de Ife, um grupo importante de bronzes. A partir daí, muitas descobertas foram
feitas, tanto em Ife quanto no Benin.
Características e desenvolvimento da arte do Benin
Em 1949, Bernard Fagg coordenou escavações em Abiri, não muito longe de
Ife. Ali, numa sepultura, descobriu três cabeças em terracota; uma era elaborada
no mais puro estilo naturalista, enquanto as duas outras eram estilizadas ao
extremo. Como ele próprio observa, aparece
23 FAGG, W. B., 1963, p. 105.
24 W. B. FAGG, 1963, p. 105, escreveu: “Já foi dito muitas vezes que estes bronzes eram obras dos egípcios,
de artistas ambulantes gregos ou romanos, de um italiano da Renascença ou até de jesuítas portugueses”.
399
Do rio Volta aos Camarões
F . Placa do Benin, representando o cerimonial do abate de uma vaca pelos servidores do oba.
(Foto Arquivo Werner Forman.)
400
África do século  ao século 
F . Benin: tocador de auta em bronze. (Foto Arquivo Werner Forman.) (Fonte das gs. 14.5 e
14.6: Forman, W.; Forman, B. & Dark, P., 1960.)
401
Do rio Volta aos Camarões
na cultura de Ife um fenômeno estranho, extremamente raro na hisria da cultura mun-
dial: trata -se da coexisncia, na mesma cultura, de uma arte inteiramente naturalista
com outra quase completamente abstrata, fenômeno inconcebível nas épocas clássicas do
Renascimento, na Europa
25
.
Ele considera uma das cabeças o melhor exemplo do estilo realista ou natura-
lista de Ife, pois todas as medidas são rigorosamente harmoniosas e até se pode
notar a bossa occipital”. O rosto reflete calma, e um equibrio interior confere -lhe
surpreendente densidade de expressão. Ao lado dessa cabeça, na mesma sepul-
tura, foram encontradas outras duas, extremamente estilizadas:
dois buracos representam os olhos e um traço horizontal, a boca. A estilização é ainda
mais enfatizada [...] e ainda assim esses objetos, encontrados na mesma sepultura, são
de mesma origem [...]. Materiais, técnicas de cozimento e estado de conservação são
idênticos. É evidente que se deve atribuir duas expressões tão diferentes do espírito
humano não à contribuição de uma raça estrangeira à África, mas a uma crença
mística da antiga religião yoruba
26
.
De fato, a princípio, a arte de Ife e do Benin tinha caráter essencialmente
religioso.
O que representavam essas cabeças? Na maior parte das vezes, o oni, chefe
religioso de Ife. Elaboradas após sua morte, eram colocadas na sepultura. No
museu do palácio do oni encontram -se expostas
centenas de fragmentos de cabeças e de figuras em terracota, do mesmo estilo que
os bronzes. Algumas são artisticamente do mesmo nível, ou até de nível superior aos
belos bustos de bronze, e quase todas essas obras e fragmentos foram descobertos
não em explorações organizadas, mas por acaso, em dois ou três dos cem templos
de Ife. Muitas apresentam evidente caráter ritual, pois essa arte era estreitamente
ligada à vida da comunidade
27
.
A tradição afirma ter o oba do Benin requisitado e recebido do oni um hábil
escultor, que iniciou os artesãos do Benin na técnica da moldagem de bronzes;
assim, Ife é verdadeiramente a cidade -mãe de onde vieram a religião e a arte
com a qual se presta homenagem aos ancestrais. Como o culto dos antepassados
era o fundamento da religião tradicional, Ife criou uma arte para perpetuar a
lembrança daqueles que velam pelos vivos”. O grande número de figuras encon-
25 FAGG, W. B., 1963, p. 106.
26 Ibid., p. 106.
27 Ibid., p. 104.
402
África do século  ao século 
tradas nos templos também sugere que algumas fossem objetos de culto nos
próprios santuários, não se destinando a serem enterradas. Essa arte, porém, não
ficou circunscrita à área do Ife -Benin. Foram feitas descobertas, não somente
no delta do Níger mas até no norte, nos confins de Nupe.
F . Vaso em bronze enfeitado com corda.
F . Desenho esquemático do mesmo vaso: (a) borda; (b) inserção da borda no corpo do vaso; (c)
corpo do vaso; (d) parte superior do suporte; (e) inserção da parte inferior na superior do suporte; (g) enreda-
mento feito de corda; (h) cabo para transporte.
403
Do rio Volta aos Camarões
F . Bronze esculpido em forma de altar.
F . Cabaça ritual. (Fonte das gs. 14.7 a 14.10: Shaw, T., 1970.)
404
África do século  ao século 
Igbo ‑Ikwu
Descoberto em 1939 no leste da Nigéria, o sítio de Igbo -Ikwu foi explorado
em 1959 pelo professor Thurstan Shaw, revelando quase 800 peças de bronze,
completamente diferentes das de Ife -Benin. Igbo -Ikwu é um complexo urbano
em cujo centro situavam -se o palácio e os templos. Foram encontradas várias
construções: uma grande sala, onde havia louça, objetos de culto e tesouros;
a câmara funerária de um grande sacerdote, ricamente decorada; um enorme
buraco onde havia cerâmicas, ossos e diversos objetos.
Há, certamente, algumas diferenças entre os achados de bronze de Igbo -Ikwu
e as obras de arte de Ife; no entanto, muitos traços comuns mostram que os dois
centros eram parte de uma mesma cultura. De fato, como em Ife, estamos diante
de uma monarquia ritual
28
.
O virtuosismo dos artistas de Igbo -Ikwu é notável, tanto nas obras de ter-
racota quanto nas de bronze; trabalhavam o material habilmente, dando -lhe a
forma pretendida, com uma riqueza de detalhes que beirava a afetação. Reci-
pientes de bronze em forma de cabaça e vasos de cerâmica ornados de motivos
serpentinos foram elaborados com grande maestria (ver figs. 14.7, 14.11, 14.12
e 14.14 -14.16).
Acredita -se que Igbo -Ikwu tenha sido a capital religiosa de um vasto reino,
onde teriam sido depositados os tesouros, sob a guarda de um rei -sacerdote,
Eze Nzi
29
. Faltam -nos informações seguras sobre a cultura de Igbo -Ikwu; as
pesquisas junto aos detentores da tradição oral ainda prosseguem, enquanto
os arqueólogos veem ampliar -se a área de manufatura de bronzes. No entanto,
Igbo -Ikwu, com sua monarquia ritual e abundância de moldagens pela técnica
da cera perdida, parece contradizer a hipótese precedente, a respeito da época
em que foi introduzida a fundição de latão, e até mesmo muitos dos postula-
dos relativos à formação dos Estados; pois a datação pelo carbono -14 indica
que uma cultura altamente refinada já existia no século IX entre os Ibo, cujas
sociedades, como se sabe, eram baseadas em grupos de linhagem. Em outras
palavras, a cultura de Igbo -Ikwu antecede de pelo menos dois séculos a de
Ife -Benin e todas as outras culturas com grau comparável de evolução até hoje
descobertas na zona florestal. Sem a datão pelo carbono -14, poder -se -ia
situar, sem hesitação, os objetos descobertos em Igbo -Ikwu nos séculos XVI
e XVII. O reino vizinho de Onitsha, aliás, foi fundado mais ou menos nessa
28 SHAW, T., 1970, p. 266.
29 Ver WILLETT, 1967, p. 172 -3.
405
Do rio Volta aos Camarões
F . Grande vaso em bronze, visto de cima.
F . O mesmo vaso, visto lateralmente.
406
África do século  ao século 
F . Bracelete de bronze feito em forma de nó.
F . Cerâmica: vista geral.
407
Do rio Volta aos Camarões
F . Cerâmica: detalhe.
F . Cerâmica: vista geral.
408
África do século  ao século 
época, sob a influência do Benin; o Estado de Igala, que teria contribuído
para a organização das chefarias entre os Umeri, grupo ao qual pertencem os
Igbo -Ikwu, foi criado no século XV. Em que medida é possível confiar na
datação pelo carbono -14? Quando obtida através de carvão vegetal, deve -se
ter muita prudência, porque um depósito superficial de carvão pode remontar
a época bem anterior àquela em que foi enterrado num poço ou qualquer tipo
de escavação. Além disso, a confiabilidade das datas indicadas pelo carbono -14
nas proximidades do equador tem sido seriamente posta em dúvida
30
. Convém
observar que uma das cinco datas atribuídas aos vestígios de Igbo -Ikwu é a de
1445 ± 70, que coincide com a de 1495 ± 95, conferida aos objetos descobertos
24 km a leste, entre os quais se encontram sinos de bronze moldados num estilo
semelhante ao de Igbo -Ikwu. Esse Estado constitui, portanto, um enigma que
merece ser resolvido, ou por um aperfeiçoamento na técnica de datação pelo
carbono -14 ou por uma revisão geral nas hipóteses atuais sobre a evolução dos
Estados nessa região
31
.
Os bronzes de Nupe
Mais ao norte, ao longo do rio Níger, entre Busa e a confluência do Benue,
foram descobertos bronzes em vários sítios (ver figs. 14.18 e 14.19).
São chamados os bronzes de Tsoede”, nome do fundador do reino nupe
no século XVI. De acordo com a tradição, essas peças foram trazidas de Idah,
capital de Igala, por Tsoede. A tradição também diz que Tsoede trouxe consigo
ferreiros, que ensinaram à gente de Nupe a moldagem pela cnica da cera
perdida
32
.
Muitas figuras foram encontradas em Tada, Jebba e Gurap. Cada um desses
centros tem estilo próprio, mas certa semelhança entre eles atesta a influência
de Ife ou do Benin, como escreve F. Willett:
30 OZANNE, 1969.
31 Foram fornecidas várias datas, obtidas pelo carbono -14: 1075 ± 130 (séculos IX -XIII); 1100 ± 110
(séculos X -XIII); 1110 ± 145 (séculos X -XIII). A cronologia de toda a região precisa ser revista; dos
estudos já feitos, evidencia -se que o delta do Níger tinha contatos estreitos com o Nupe ao norte e, mais
ao longe, com a savana do Sudão central, por onde passava o cobre vindo de Takedda, para que chegasse
em Ife -Benin e Igbo -Ikwu. As grandes correntes de comércio entre a savana e a oresta existiam,
provavelmente, desde a antiguidade remota.
32 O rei Tsoede é uma personagem lendária; uma tradição diz que ele chegou a Nupe numa almadia de
bronze. Ele representa uma síntese: situa -se seu nascimento por volta de 1463; em 1493, dizem que foi
levado como escravo para Idah; em 1523, teria fugido, para tornar -se rei de Nupe em 1531. Tsoede teria
morrido em 1591, o que signica que viveu 128 anos!
409
Do rio Volta aos Camarões
F . Reconstituição feita por arqueólogos do enterro de um chefe em Igbo -Ikwu. (Fonte das Figs.
14.11 a 14.17: Shaw, T., 1970.)
410
África do século  ao século 
F . Mapa dos sítios dos bronzes de Tsoede. (Fonte: Shaw, T., 1973, p. 234.)
411
Do rio Volta aos Camarões
F . Estátua em bronze (de Tsoede), de uma gura sentada. (Fonte: Eyo, 1977.)
412
África do século  ao século 
“Na história da fundição de bronze em todo o vale do Níger, há mais do que um ou
dois fios a desemaranhar. Trata -se de uma peça de tecido, e será necessário muito
tempo para separar os fios da urdidura e da trama”
33
.
Thurstan Shaw indicou algumas orientações de pesquisa para encontrar a
fonte do cobre utilizado em toda a região do baixo Níger
34
. Segundo Shaw, é
necessário dar mais atenção ao estudo das relações norte –sul, entre a região e o
mundo árabe -muçulmano; o comércio pode ter começado desde antes do século
X, e foi precisamente para controlar essa via comercial sul–norte que o poder
se deslocou de Ife para a antiga Oyo. Dessa forma, os bronzes encontrados em
Jebba (Tada) situam -se na área de contato, no Níger.
Resumindo, serão ainda necessárias muitas pesquisas para estabelecer um
quadro cronológico e para melhor compreender as diversas escolas de bronze.
Como essa região não produzia cobre, a fonte mais próxima seria a mina de
Takedda; daí o dossiê sobre as relações entre o Níger, o Benue e o Sudão ainda
estar longe de se concluir.
Os Ijaw e os Ewe
falamos sobre a formação dos Estados ijaw, situados no delta do Níger. As
tradições de Okrika, Bonny e Nembe levam a crer que foram fundados antes
do século XVI. Nembe, por exemplo, teria sido criada em meados do século
XV pelos sobreviventes de um conflito interno. Tornou -se cidade -Estado, agru-
pando povoações de mesma cultura num raio de 15 km. Absorveu em seguida
um grupo de Itsekiri, que introduziu o culto de Ogidiga ou Ada e se apoderou
dos rituais do Estado. Essa migração se deu paralelamente à fundação do reino
de Itsekiri pelo Benin, e é interessante notar que, em última análise, as origens do
culto de Ada em Nembe parecem se ligar a oda, que significa espada”, símbolo
da autoridade do rei do Benin.
A migração dos Ijaw para a parte oriental do delta fez com que entrassem
em contato com os Ibibio, os Ogoni e os Ndoki, minorias étnicas que, em
condições favoráveis, frequentemente se inspiraram nas estruturas estatais
dos Ijaw. O Estado mais notável foi o antigo Calabar, situado no atual Cross
33 É evidente que o período em questão é mítico, de acordo com WILLETT, 1967, p. 212: É possível que
Tsoede pertencesse ao nal ou, talvez, bem ao início desse período e que sua existência tenha sido
‘esticada para preencher o ‘buraco que o separa do rei histórico” .
34 SHAW, T., 1973.
413
Do rio Volta aos Camarões
River, fundado pelo ramo efik dos Ibibio. Sua criação, entretanto, parece datar
do século XVII. Em épocas anteriores, as margens do Cross tinham sido ocupadas
pelos Ejagham, os Ekoy e os Efutop, povos semibantu, origirios da área meridio-
nal dos Camaes. Como os Ibo, preservaram uma sociedade baseada em grupos de
linhagem, até serem absorvidos pelos Efik.
Conclusão
No final do século XV, quando os portugueses chegaram a essa costa, os
Estados mais importantes eram Oyo e Benin. Havia também cidades inde-
pendentes muito bem estruturadas, que incorporavam grupos de linhagem a
governos menos elaborados. Benin e Oyo estavam se tornando reinos podero-
sos e expansionistas. O processo de formação de Estados acelerara o ritmo da
interação cultural entre as populações, favorecendo a difusão das instituições,
práticas e objetos cerimoniais, cultos religiosos e, provavelmente, tecnologia. A
moldagem pela técnica da cera perdida, por exemplo, segredo cuidadosamente
guardado e associado à monarquia divina, acabou, no entanto, se difundindo.
As relações econômicas também adquiriram maior intensidade e complexi-
dade: o palácio do soberano, com suas necessidades de suprimento e serviços
especializados, foi um fator determinante dessa evolução. Além disso, os Esta-
dos estavam melhor equipados para organizar um comércio exterior, suprir
mercados, organizar a coleta e transporte de produtos e garantir a segurança
dos comerciantes que viajavam para longe. Os Estados ijaw mandavam grandes
almadias para bem longe no interior, com o objetivo de trocar o sal que eles
manufaturavam por gêneros alimentícios que não podiam produzir. O rei do
Benin podia organizar um comércio de escravos, marfim e pimenta em grande
escala. Os tecidos de Ijebu eram fornecidos para os mercados de uma vasta
região. Graças à sua posição entre os Estados da região florestal e os da savana,
Oyo controlava grande parte do comércio entre uns e outros. Assim, quando,
pela primeira vez, os portugueses desembarcaram na costa, no final do século
XV, encontraram em Ijebu, Benin e entre os Ijaw Estados bem estabelecidos,
cuja economia já estava adaptada às necessidades do comércio internacional. A
maneira como enfrentaram o desafio dos contatos comerciais, culturais e polí-
ticos com os Estados europeus constitui um dos temas centrais da história de
todos os povos dessa região nos quatro séculos seguintes.
C A P Í T U L O 1 5
415
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
A importância do Egito na vida política e ecomica
da época
Para o observador superficial, o período compreendido entre o término do
século XII e o começo do XVI pode parecer o menos africano de toda a história
egípcia. O regime que se instalou no Cairo em + 1171 veio substituir o califado
fatímida, nascido no Magreb e cujo poderio assentou definitivamente seu eixo
no vale do Nilo. A região tornou -se a força principal de um império aiúbida e,
posteriormente, mameluco que se estendia até o Eufrates e aos passos do Tau-
rus anatoliano, e cujos maiores empreendimentos se situaram fora do continente
africano; em outros tempos nem sequer o estatuto de província integrante do
conjunto omíada, abássida ou otomano parece ter deixado o Egito tão separado
do resto da África. Tudo isso pode ser certo; mas não termina aí: esse período,
no qual a preponderância egípcia se afirmou no mundo médio -oriental, foi
também aquele em que as rotas transaarianas conduziram ao Cairo os príncipes
do Kanem, do Mali e de Songhai, a caminho dos lugares santos muçulmanos
do Hidjāz (Hedjaz), e delas se serviram os comerciantes egípcios para chegar
ao interior da África. E não dúvida de que esses séculos de história egípcia
foram importantes para a evolução de grande parte da África da parte que
seria afetada pelo Islã. No Egito aiúbida e mameluco o Islã sunita adquiriu sua
O Egito no mundo muçulmano
(do século XII ao início do XVI)
Jean -Claude Garcin
416
África do século  ao século 
forma definitiva, que marcaria, em graus variados, os princípios de comporta-
mento e a estrutura de pensamento da maioria dos muçulmanos africanos. Até
o antigo foco islâmico magrebino é tributário desse período da história egípcia:
o desaparecimento do califado xiita do vale do Nilo de certa forma aproximou
do Magreb o Oriente muçulmano, fonte tradicional de cultura e religião, con-
tribuindo assim para o aspecto unitário que o Islã assumiu na África. O Cairo
foi a grande escola desse islamismo. Os desenvolvimentos políticos e culturais
que as margens do Nilo conheceram nesse período concernem a grande parte
do continente: à Etiópia, ao Sudão central e ao Sudão ocidental.
O renascimento egípcio depois da queda dos Fatímidas
(Salāh al ‑Dīn e o surgimento de novo espaço político)
Todas as regiões que constituíam a base territorial do sultanato aiúbida (e, com
pequenas alterações nos limites geográficos, do sultanato mameluco) viram -se
reunidas sob a autoridade de Sah al -Dn Yūsuf Ibn Ayyūb conhecido no Ocidente
como Saladino –, na luta contra a Cruzada. Sabe -se que nem o califa abássida
de Bagdá eno dominado pelos emires seldjúcidas turcos do Iraque, rem-
-chegados das estepes da Ásia para o serviço do califado, e já divididos nem o
califa famida do Cairo tamm tutelado por seus chefes militares e ameado
pela reconquista assida que os seldjúcidas empreenderam naria – puderam, ou
quiseram, opor -se à instalação dos ocidentais na Palestina e no alto Eufrates
(territórios situados entre os dois califados), por volta dos anos finais do culo
XI, e à sua consolidação, no século seguinte. Os muçulmanos, a princípio pouco
conscientes da natureza dessa instalação, demoraram a reagir; o espírito de guerra
santa quase desaparecera no Islã; a contra -ofensiva dirigida pelos emires que
governavam Mossul resultara na reunificação das regiões reconquistadas do alto
Eufrates com os territórios do interior da Síria (de Alepo a Damasco) sob a auto-
ridade de um deles, o turco r al -Dn; os califas do Egito, no entanto, só oca-
sionalmente apoiavam esses esfoos de seus rivais. A guerra contra o reino latino
de Jerusalém ter -se -ia sem dúvida prolongado se, no próprio Egito, a competição
entre os chefes do exército fatímida pelo poder efetivo (o vizirato) não forçasse
os concorrentes a buscarem ajuda militar externa, em Damasco e Jerusalém. Foi
para impedir a instalação definitiva no Egito das tropas do reino de Jerusalém que
o próprio califa concordou com a asceno ao vizirato fatímida do comandante
do corpo do exército enviado por Damasco, Shrkūh, emir de origem curda, que
pouco tempo depois faleceu subitamente, sendo substituído por seu sobrinho
Saladino (1169). Dois anos mais tarde, este último vizir dos Fatímidas egípcios
417
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
proclamava a extinção do califado xiita, restabelecendo no Oriente a unidade de
obediência aos Abássidas, sob a autoridade de Nūr al -Dn, frente aos Estados
cruzados. Começava a surgir o espo político do novo Império Muçulmano.
Na verdade, porém, a submissão teórica do emir do Egito ao príncipe de
Damasco não impediria a rivalidade entre os dois poderes no interior do espaço
abássida. Prevendo o conflito, Saladino procurou garantir um local para uma
possível retirada sua em direção ao sul: tentou primeiro a Núbia, que logo desis-
tiu de conquistar, depois o Iêmen, rapidamente ocupado (1174), futuro posto
avançado da prosperidade egípcia às margens do oceano Índico. Mas r al -Dn
morreu no mesmo ano da ocupação, 1174, e, como deixasse herdeiros pouco
capazes de prosseguir sua obra, em alguns meses Saladino chegava a Damasco.
Em 1182, seu poder atingia Alepo; em 1186, anexava os últimos territórios do
Eufrates que ainda lhe resistiam; no ano seguinte, a vitória de Hattn e a recon-
quista de Jerusalém punham fim à existência do reino cruzado. A unidade de
fato estava estabelecida, porém desta feita tendo no centro do novo império o
Egito, que, até então pouco empenhado no combate às Cruzadas, iria tornar -se
a principal força de resistência ao Ocidente e alvo das futuras expedições.
A ideologia do novo poder
Essas circunstâncias e a personalidade de Saladino, cujo ideal político se resu-
mia no renascimento do Islã, tiveram papel importante na reconstrução” do
Egito – pois, de fato, após a queda dos Fatímidas empreendeu -se uma verdadeira
reconstrução do Egito muçulmano. O xiismo o era muito difundido entre os
muçulmanos egípcios, exceto, talvez, no alto Egito, onde demorou a desaparecer;
mas, considerado ao mesmo tempo um cisma político e uma traição ao autêntico
islamismo, a ele se atribuía grande parte da responsabilidade pela fraqueza em
que se encontrava o mundo muçulmano perante as investidas do Ocidente. Era
preciso estabelecer firmemente, na esfera política, na social e na mentalidade dos
homens, o Islã da tradição e da comunidade, o Islã “sunita”. Os distantes califas
abássidas, que graças à debilitação do poder dos seus protetores seldjúcidas, então
recuperavam a independência política real é verdade que no quadro limitado
das regiões iraquianas –, passaram a ser considerados com muito respeito. A pere-
grinação a Meca, antes perturbada pela existência do reino cruzado de Jerusalém,
tornou -se mais fácil, estando agora os peregrinos mais bem protegidos contra os
abusos a que antes se expunham nas mãos das autoridades locais egípcias ou do
Hidjāz, este, cada vez mais submetido à influência do Egito: a fama de Saladino
espraiou -se até os confins ocidentais da África muçulmana.
418
África do século  ao século 
No próprio Egito, o novo poder empenhou -se em formar uma classe de
homens versados nas disciplinas religiosas, jurídicas e literárias, que veio a cons-
tituir um firme sustentáculo do Estado sunita. O sistema de ensino em madra-
ças, importado do Oriente seldjúcida, instalou -se no Egito definitivamente; as
madraças eram concebidas essencialmente para formar esses homens de con-
fiança, dedicados ao Islã sunita, que se pretendia implantar
1
. Para o primeiro
impulso, recorreu -se muitas vezes a juristas e professores oriundos dos meios
muçulmanos militantes da Síria ou do Oriente; mas, pouco a pouco, os quadros
propriamente egípcios cresceram, configurando uma categoria social que deveria
servir de intermediário entre os governantes e o povo. Do Oriente, bem como do
Magreb, também vieram místicos – especialmente para o alto Egito, de maioria
maliquita. Vivendo em grupo, nos khānkāh (conventos), ou isolados, nos ribāt
do alto Egito, incumbiram -se de restabelecer a vida espiritual mais ortodoxa
entre os muçulmanos ou, simplesmente, de dar a eles a instrução religiosa que
comumente lhes faltava, em especial aos camponeses. Quando o místico magre-
bino Abū’l -Hasan Al al -Shādhil se fixou em Alexandria, em cerca de 1244,
apenas veio somar seus esforços ao empenho que se fazia para a construção
de um Egito sunita. Foi esse o móvel fundamental do empreendimento político
aiúbida, concebido como baluarte contra os inimigos internos e externos do Islã:
culminou com a criação de sólidos mecanismos socioculturais, que haveriam de
sobreviver ao próprio regime que contribuíra para implantá -los.
A paz aiúbida
A construção do Egito sunita, que começara no ímpeto da contracruzada,
fez -se num clima de pacificação política, em meio à paz e à prosperidade eco-
nômica proporcionadas pelo fim dos combates. A destruição do reino cristão
de Jerusalém e a redução da presença dos cruzados a umas poucas praças -fortes
ao longo da costa (1187) constituíram um violento golpe para os príncipes
europeus, que prepararam vigorosa reação: a Terceira Cruzada, cujos efeitos
Saladino teve dificuldade em conter. Os cruzados, não conseguindo reconquistar
Jerusalém, recuperaram e fortificaram a costa sírio -palestina, o que Saladino,
antes de morrer, aceitou como fato consumado (1193). Na verdade, a pequena
dimensão e a localizão estratégica do território costeiro, ora ocupado
1 Com efeito, muito antes da ascensão de Saladino ao poder,existia um pequeno número de madraças
em Alexandria e no antigo Cairo (al -’Fustāt). Ver a tese de doutoramento (Ph. D.) de LEISER, G.,
1977.
419
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
pelos ocidentais, tornariam menos ameaçadora sua implantação. Aliás, por não
haver apenas militares entre eles, mas também comerciantes, sua presença até
contribuiria para a prosperidade dos Estados aiúbidas. A despeito das queixas
nos meios muçulmanos, os sucessores de Saladino também se empenharam em
garantir a paz, ao mesmo tempo que entre os ocidentais, especialmente entre
os que se haviam fixado no Oriente, diminuía o espírito de cruzada, prevale-
cendo a consciência dos múltiplos interesses que tinham na manutenção do
status quo. Agressões ainda ocorreram, como a instalação de uma base de ataque
em Damieta, de 1218 a 1221 (Quinta Cruzada), visando o coração do poder
que obstaculizava as investidas do Ocidente. Por seu lado, porém, os poderes
muçulmanos mostravam -se dispostos a fazer concessões, chegando a desistir de
Jerusalém em 1225, sob a condição de que fosse mantida como cidade aberta.
Graças a essa política, as regiões sírias do Império Aiúbida, em contato com as
feitorias cristãs da costa, conheceram grande prosperidade
2
.
O Egito tamm aproveitou a paz, acrescentando à riqueza que lhe vinha de sua
produção agrícola tradicional (e do cultivo, que então se difundia, da cana -de -açúcar)
os lucros de um corcio menos perturbado com os ocidentais. Como seu prede-
cessor fatímida, o Estado aiúbida necessitava de tal comércio. Faltavam -lhe
produtos importantes, como o ferro, a madeira e o pez, indispensáveis para a
construção de uma frota de guerra. Comprava -os dos mercadores de Veneza,
Pisa e Gênova, que os forneciam a despeito do interdito religioso contra a venda
de produtos estratégicos que pudessem ser utilizados contra os cruzados
3
. É que
o Egito tinha a oferecer em troca o alume, utilizado, no Ocidente, pela indústria
têxtil, e sobretudo os preciosos produtos do Extremo Oriente.
Nesse domínio, o Estado aiúbida tirou grande proveito dos esforços dos califas
fatímidas no sentido de recuperar para as vias do mar Vermelho e do vale do Nilo
o antiquíssimo comércio do oceano Índico, responsável pela riqueza do Egito
greco -romano. Na segunda metade do século XI, a rota dos mercadores de espe-
ciarias encontrou no Egito o traçado que manteria por três séculos (ver fig. 15.1):
as valiosas mercadorias do Oriente eram desembarcadas no cais de Aydhāb, às
margens do mar Vermelho, sendo então transportadas em caravanas até o Nilo, na
altura de Kūsentão capital do alto Egito, situada um pouco ao norte de Lúxor
–, de onde seguiam pelo rio até Alexandria. Nesta cidade os mercadores ocidentais
2 Desde o começo do século XIII diminuiu sensivelmente o espírito de cruzada. Embora adeptos das duas
religiões continuassem a bater -se, os interesses comerciais impunham -se cada vez mais aos governantes.
3 Sobre a dominação comercial do espaço mediterrânico pelos ocidentais, ver o capítulo 26, de J.
Devisse.
420
África do século  ao século 
deviam aguardá -las, pois o Cairo lhes fora interditado desde o governo de Sala-
dino. Tampouco lhes era permitido chegar ao mar Vermelho. O Egito, portanto,
tinha total controle sobre esse comércio, e nada precisava temer quanto ao mar,
ainda mais porque era um príncipe aiúbida que governava o Iêmen (até 1231). Os
especialistas desse grande comércio oriental, os mercadores chamados do Karim
ou “Karm”, cujo nome e origem ainda hoje não estão bem explicados, também
mantinham relações que pressentimos das mais estreitas com o Iêmen: eram
mencionados, no final do califado fatímida, nas cartas dos comerciantes judeus do
Egito, e, com o advento dos Aiúbidas, repentinamente começaram a aparecer nos
documentos muçulmanos. Esse tráfico, que fazia circularem homens e mercado-
rias pelo Nilo nos dois sentidos, o era vantajoso apenas para as alfândegas do
Estado e para os que lucravam com seu financiamento; contribuía também para
a prosperidade e a unidade humana do vale.
O Estado e sua organização: a classe militar no poder (os sucessores de
Saladino)
Embora a história da evolução política do Egito aiúbida ainda esteja por ser
escrita, podemos considerar que a administração e o governo não procuraram
romper com a tradição fatímida. A despeito da orientação claramente muçulmana
do aparelho político, os cristãos do Egito, ou coptas, ainda eram muito numero-
sos e continuavam, como no tempo dos califas xiitas, a desempenhar boa parte
dos serviços administrativos, herdeiros de técnica burocrática que sobrevivia às
mudanças no poder. O governo aiúbida, com seus serviços ministeriais (dīwān),
foi um prolongamento do fatímida: o fundador da dinastia fora também o último
vizir dos califas do Cairo, e os sultões aiúbidas e mamelucos conservaram dos
vizires o título de soberania, mālik, pelo qual eram frequentemente designados
4
.
Contudo Saladino era também um emir curdo, nascido numa família que ser-
via aos seldjúcidas. Tanto o seu empreendimento político quanto a estabilidade de
seu poder (da mesma forma que o de seus sucessores) assentavam no exército. Este
assumiu, naturalmente, o lugar da casta militar fatímida, mantida, já no segundo
século do califado, pelo sistema do iktā‘, quer dizer, a cada emir se atribuía, sob
estrito controle e supervisão, a renda fiscal de uma ou mais localidades, conforme
a importância do emir e o número de homens que ele devia manter a seu serviço.
Com pequenas diferenças, tal sistema então vigorava em todo o Oriente. O exér-
cito de Saladino, composto por curdos e turcos, era, de modo geral, considerado
4 WIET, 1937.
421
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
pelos egípcios como uma tropa de estrangeiros. Na verdade, era principalmente a
estrutura do poder político que extrapolava o quadro geográfico egípcio e obedecia
a concepções até então desconhecidas nas margens do Nilo. Como outros emires
iranianos ou turcos que o antecederam, que puseram a serviço do califado abássida
a força de seus homens e terminaram por exercer o poder, também Saladino tinha
uma concepção familiar da organização política: os diversos membros do grupo
agnático recebiam, sob a direção do chefe, a administração soberana de províncias
ou cidades. O império assim se resolvia numa federação de principados autôno-
mos, confiados ao governo de uma família que muito tivesse feito pelo Islã, o
se excluindo que um príncipe mudasse para uma outra capital se interesses supe-
riores o exigissem. O Egito, por sua importância, teve o privilégio de constituir,
de maneira geral, o domínio reservado por aquele que desempenhava ou aspirava
ao papel de chefe de grupo.
Mas essa eleição de grupos familiares diferentes para a defesa e governo
dos muçulmanos (exceto em Alepo, onde a sucessão dos príncipes se fazia
de pai para filho) ameaçava acentuar em cada um dos principados a separa-
ção que existia, no plano étnico, entre governantes e governados. A divisão
não bem definida das responsabilidades foi a causa principal das rivalidades
e conflitos armados entre os príncipes, nos quais terceiros foram chamados a
intervir, em especial os cristãos da costa sírio -palestina: dessa forma, estes se
integravam no jogo político médio -oriental. Em 1193, Saladino legara o Egito
a seu filho al -Mālik al -‘Azz, mas logo o irmão de Saladino, al -Mālik al -‘Ādil,
então governando as regiões do Eufrates, mostrou ter mais autoridade para
arbitrar os conflitos entre seus parentes e também maior ambição. Depois da
morte de al -Mālik al -‘Azz, em 1198, terminou por instalar -se no Cairo em
1200, impondo sua firme direção aos demais príncipes aiúbidas até a morte,
em 1218, em Damasco, ocorrida ao mesmo tempo que as tropas da Quinta
Cruzada desembarcavam em Damieta. Nessas circunstâncias, seu filho al -Mālik
al -Kāmil não encontrou dificuldades em suceder -lhe no Cairo, e tentou retomar
a política que o pai adotara em relação aos parentes. Teve, porém, muito menos
êxito que ele, especialmente devido a sua atitude de conciliação para com os
ocidentais. Quando morreu, em 1237, não conseguira reconstituir a unidade
familial dos tempos de Saladino e al -Mālik al -‘Ādil, e por um momento até
chegara a ver, coligados contra ele, todos os príncipes aiúbidas, exceto um de
seus filhos, al -Mālik al -Sālih, cuja ambição muito precoce o relegara à região
do Eufrates. Foi este último que, depois de inacreditáveis peripécias, terminou
por suceder -lhe no Cairo, em 1240. Com base em suas experiências, porém,
al -Mālik al -Sālih chegara à conclusão de que um príncipe somente se poderia
422
África do século  ao século 
impor, em competição tão acirrada pelo poder, se contasse com um exército fiel
(mas isso os outros abidas também sabiam, e também tentavam obter), formado
por homens que em tudo dependessem do chefe; homens comprados e educados
por ele, cuja sorte dependesse de seu sucesso: mamelucos ou escravos de ra branca
neste caso, mais precisamente, turcos. Aquartelado na ilha de Roda (Rawda), no
Cairo, o regimento dos mamelucos bahridas (da palavra bahr, que no árabe do
Egito se emprega para designar o Nilo
5
) logo se tornou o principal sustentáculo
do último grande príncipe da Dinastia Curda, cujos princípios de transferência
do poder haviam feito crescer no Egito o domínio de um grupo, até então
conhecido na história do Oriente muçulmano.
Os Mamelucos turcos
O regime mameluco representou a instalação, na chefia da sociedade muçul-
mana do Egito, da poderosa casta militar, que passou, a partir daí, a escolher
entre seus membros os sultões. Embora neste contexto seja comum falar -se em
dinastias”, foi um regime que praticamente deixou de se preocupar com esse
tipo de sucessão familiar, exceto quando isso lhe trouxesse vantagem política
imediata. O grupo armado que o príncipe aiúbida tinha a servi -lo passou a ser
autossuficiente: teve seus chefes naturais e constituiu, com grupos rivais, a única
classe política na qual do jogo das relações de força nascia o sultão. Consumou -se
a ruptura entre governantes e governados; para estes últimos, os primeiros eram
chamados de “Mamelucos turcos (que os historiadores ocidentais chamaram de
bahridas, termo que designa, propriamente, o regimento instituído por al -Mālik
al -Sālih), e, a partir de 1382, de “Mamelucos circassianos”.
A origem do seu poder: a luta contra os mongóis e contra os cruzados
A tomada do poder pela casta militar resultou do surgimento de um novo
e terrível perigo o avanço mongol em direção ao Ocidente. A princípio, a
ofensiva mongol foi percebida em função de alguns efeitos inesperados que
suscitou. Quando a primeira grande vaga invasora chegou à Hungria, nos anos 1240,
instalando nas planícies do baixo Volga o khanato mongol do Kipčāk, no Oriente
mulmano, apenas as proncias iranianas, como o sultanato do Khrizm, e algu-
mas mais adiante haviam sido atingidas pelos mongóis. Procurando sobreviver,
5 Parece que esta é mesmo a etimologia autêntica de bahrida (em árabe, bahriyya). A ideia de que bahr
designaria o mar, como no caso do árabe clássico, o que implicaria uma origem ultramarina dos bahridas,
não nos parece válida.
423
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
F . Mapa do Oriente Médio sob os Mamelucos. (J. -C. Garcin.)
424
África do século  ao século 
bandos armados haviam fugido dessas regiões, e al -Mālik al -Sālih até pensara
em utilizá -los para formar a força militar de que necessitava para consolidar sua
supremacia sobre os demais Aiúbidas; porém não demorou a preferir, aos incon-
troláveis khwarizmianos, os escravos brancos de raça turca, que a conquista do
Kipčāk pelos mongóis lançava em grande número nos mercados: foram estes os
homens que constituíram o regimento bahrida
6
. Quanto aos khwarizmianos, as
devastações que fizeram nas províncias sírio -palestinas, incluindo o massacre dos
cristãos de Jerusalém, em 1244, provocaram a reação do Ocidente. Em 1249, o
exército da Sexta Cruzada, comandado por Luís IX, rei de França, desembarcou
em Damieta, mais uma vez apontando o Egito como principal responsável pelos
acontecimentos do Oriente.
A situação logo se revelou das mais graves, pois al -Mālik al -Sālih morreu
nessa ocasião, e o príncipe que deveria suceder -lhe no trono, Turānshāh, estava
em campanha no Eufrates. Foi o regimento bahrida que salvou o Egito da inva-
são, vencendo e aprisionando Luís IX. Quando o novo sultão chegou, a vitória
estava assegurada, e os bahridas apareciam como a principal força no Estado.
Turānshāh rapidamente tentou impor -lhes sua autoridade, e foi assassinado
(maio de 1250); com a morte do último soberano aiúbida do Egito, o poder
voltava aos Mamelucos. Para evitar a reação dos outros Aiúbidas, mantiveram
por certo tempo a viúva de al -Mālik al -lih no sultanato, associada a um
deles mesmos. Isso, porém, não impediu a guerra com os príncipes da família
aiúbida, nem as intrigas que estes souberam provocar entre os Mamelucos, que
talvez perdessem o poder se uma segunda vaga mongol não viesse mostrar que
somente eles eram capazes de defender o Islã. Em 1258, os mongóis tomaram
Bagdá, e o califa abássida foi executado por ordem do neto de Gengis Khān,
Hulagu. Os principados aiúbidas foram rapidamente ocupados, e os invasores
alcançaram Gaza. Se retardaram a entrada no Egito, foi apenas por razões da
política interna mongol
7
. O sultão mameluco Kutuz, aproveitando -se dessa
demora, derrotou, em setembro de 1260, em Ayn Djālūt, perto de Nablus,
as forças mongóis que ficaram. Os mongóis tiveram que recuar aa outra
margem do Eufrates; a permanência do regime mameluco estava assegurada.
6 A tomada do poder por uma casta militar no Egito não constituiu um fenômeno isolado veja -se o
caso dos Seldjúcidas, em Bagdá. Do século XIII ao XV, até a época de Tamerlão, a Ásia exerceu intensa
pressão sobre o Oriente Médio.
7 Tratava -se essencialmente da morte do grande Khān Mongke, irmão de Hulagu, ocorrida após a conquista
de Alepo e Damasco pelos mongóis. Pressionado pelas circunstâncias, Hulagu regressou à Pérsia, deixando
na Síria apenas parte de seu exército.
425
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
O poder dos Mamelucos turcos nasceu, portanto, dos serviços por eles pres-
tados ao Islã, que os príncipes aiúbidas, seus senhores, não tiveram forças para
guardar dos perigos cristão e mongol. A ameaça mongol e o choque provo-
cado no mundo muçulmano,desamparado devido ao fim trágico do califado,
marcaram de forma duradoura a constituição do sultanato mameluco e sua
política: o Estado Mameluco foi simplesmente a perpetuação de uma orga-
nizão sociomilitar de facto, que, nascendo da resistência à agressão externa,
viabilizou -se pelo gênio militar e político de um dos emires do regimento
bahrida, que tomou o poder pela foa em 1260: Baybars.
A chegada dos monis havia modificado profundamente a situação no Oriente.
Aproveitando -se da diversidade de religiões que marcava os recém -chegados, os
pncipes ocidentais pensaram montar uma coalio contra o Is junto com esses
aliados inesperados, que haviam destruído o califado. As feitorias cristãs na costa
sírio -palestina voltavam, assim, a constituir um perigo: embora em sua maioria se
mantivessem neutras durante a invasão mongol, bem poderiam servir de pontos
de apoio a futuros ataques. Portanto era preciso destruí -las. A ameaça mongol
aterrorizava, se comparada com as forças que os Mamelucos lhe podiam contrapor.
A sorte destes era que os próprios mongóis se encontravam divididos: Hulagu
e seus descendentes, os Ilkhān da Pérsia, que instalaram sua capital em Tabriz,
estavam em conflito com os Khān do Kipčāk, que se haviam convertido ao Is
e permitiam que os Mamelucos recrutassem escravos turcos em seu meio. O
motivo do conflito era a Anatólia; como no resto do Oriente, tribos turcomanas
a haviam invadido no decorrer do século XI, e, valendo -se da passividade mais ou
menos benevolente dos bizantinos, ali se instalaram, sob a direção dos príncipes
dissidentes da falia seldjúcida (os Seldcidas ditos de Rum”, isto é, os instalados
no antigo território bizantino, em oposição aos grandes Seldjúcidas”, do Iraque).
Esse sultanato, que teve início brilhante, foi subjugado em 1243 pela primeira vaga
mongol, a dos mongóis do Kipčāk; porém, na distribuição dos papéis no interior
do grande império asiático, coube aos mongóis da Pérsia o controle da Anatólia
dos turcomanos – o que resultou em vários conflitos, nos quais, por mais de uma
vez, salvou -se o Estado mameluco.
É considerando toda essa situação, dominada pelo fator mongol, que melhor
se pode avaliar a política do novo sultão, al -Mālik al -Zāhir Baybars (1260–1277).
Aproveitando -se das tréguas proporcionadas aos muçulmanos pelas lutas entre
khanatos rivais e pelas tensões internas que ocorriam quando um príncipe mongol
sucedia a outro, Baybars destruiu as bases mais perigosas dos cristãos na Síria e na
Palestina (entre 1265 e 1268, e novamente em 1270, ante a ameaça de novo ataque
ocidental, que, porém, foi desviado para Túnis no último instante); e em 1277,
426
África do século  ao século 
na Anatólia, onde as tribos turcomanas toleravam mal a dominação mongol,
comandou uma expedição que veio a afirmar o papel que o novo poder mameluco
entendia desempenhar na proteção de todos os muçulmanos. Os grandes sultões
que reinaram depois de Baybars al -Mālik al -Mansūr Kalā‘ūn (1279 -1290) e
al -Mālik al -Nāsir Muhammad Ibn Kalā‘ūn (1310–1341) deram prosseguimento
a sua empreitada. As tentativas dos mongóis se repetiam: em 1282, chegaram até
Homs; em 1300, até Damasco; em 1310, voltaram a atravessar o Eufrates, que se
tornara então fronteira do Estado. A conquista da última praça -forte dos cruzados
na costa palestina, São João de Acre, em 1291, foi a resposta dos Mamelucos a
novos projetos de aliança mongol com os reis do Ocidente. A eliminação desse
perigo e a convero ao Isdos Ilkhān da Pérsia, ocorrida em 1295, pareciam
garantir aos muçulmanos uma existência sem mais ameaças. Contudo a tolerância
acordada pelos Ilkhān em relação ao xiismo (1310), embora o fosse contínua,
começava a liderar um confronto entre a maioria sunita do Oriente Médio e um
bloco iraniano -mongol de tendência xiita, que podia inspirar desconfiança; a
ameaça, embora diminuísse, não desaparecera. Somente a decadência do Estado
dos Ilkhān permitiu a paz, em 1323. O Estado mameluco superara os perigos
que o haviam feito nascer; estendia sua hegemonia até os limites da Anatólia,
libertada dos mongóis, onde a turbulência turcomana se dissipara no confronto
com diversos principados. O principado dos Otomanos, no norte, havia retomado
sua velha tradição de luta e relações ambíguas com o que restava de Bizâncio, e
sua importância ainda era pequena. Nessa época, o Estado mameluco apareceu,
realmente, como a grande potência do Islã.
O poder mameluco e a África
o espanta que esse poder, tão duramente conquistado contra as ameaças
tanto da Europa como da Ásia, vá afirmar -se na África. As vias responsáveis pela
prosperidade mameluca pertenciam, na maior parte, ao continente africano. O
grande comércio com o Extremo Oriente continuava utilizando a rota do mar
Vermelho e do vale do Nilo: o Iêmen teve que reconhecer a hegemonia egípcia,
que também procurou impor -se nas etapas menores do tráfico, aliando– se com
os emires de Dahlak
8
, por exemplo, ou reivindicando a soberania sobre Sawākin e
Musawwa. O inimigo mongol tentou desviar para o golfo Pérsico o rico comér-
cio, e por certo tempo as especiarias também adotaram as rotas mongóis. Mas
os negociantes de Veneza, Gênova e Barcelona acabaram tendo que se curvar à
8 Ver WIET, 1951 -2.
427
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
evidência dos fatos: a partir de 1340, a rota do mar Vermelho, que alimentava os
portos egípcios e as feitorias em recuperação do Levante, praticamente não teve
mais rival. Era pelo grande rio africano que viajavam as especiarias. Os mercadores
karm
9
deveram -lhe sua fortuna, e suas atividades estenderam -se à África ociden-
tal, onde as crônicas registram que um dos mais notáveis dentre esses senhores do
grande comércio internacional veio a morrer em Tombuctu, em 1334.
Esses relacionamentos africanos o indissociáveis do conjunto das relações
políticas e culturais. Pelo menos a partir de 1261, quando Baybars se instalou
no poder, os príncipes africanos e seus súditos começaram a fazer peregrinações
a Hidjāz passando pelo Cairo. Suas visitas, que se faziam notar, despertaram no
público culto o interesse pela existência dos reinos muçulmanos da África. Foi
então que Ibn Fadl Allāh al -‘Umar redigiu sua enciclopédia geográfica, cuja parte
referente à África constitui hoje fonte fundamental para o historiador. Já ao povo
do Cairo chamaram mais a atenção as marcas de munificência: a fundação de uma
madraça maliquita pelo soberano do Kanem, em al -Fustāt, ou a largueza com que
o mansa Mūsā do Mali distribuiu ouro, durante a sua peregrinação de 1324. O
ouro do Mali contribuiu para alimentar a cunhagem da moeda egípcia. Também
os sultões reservaram aos príncipes africanos uma boa acolhida, por sinal não
sem a intenção de ampliar a influência política egípcia. Esta, calculavam eles, se
expandiria na África na esteira dos têxteis de luxo, das maneiras oficiais da corte,
dos livros que os visitantes encontravam na grande metpole.
Naturalmente, graças à grandeza e à prosperidade do Império Mameluco,
o poderio egípcio irradiava -se sobre a África. Mas também se afirmava de
maneira mais voluntária, e mais brutal, nas regiões próximas ao Egito: em 1275,
foi anexado o norte do reino cristão da Núbia, e instalados príncipes vassalos
em Dongola, os quais, aos poucos, ali foram se fixando. Na sua expansão, aliás,
o Estado egípcio contou com auxiliares eficazes: os beduínos. Os Banū Kanz,
ancestrais dos atuais Kenūz, que mais tarde se instalaram entre Assuã e a fron-
teira do Sudão, contribuíram ativamente para a destruição do reino cristão de
Dongola, do qual se tornaram príncipes depois da adoção oficial do Islã, em
1317
10.
Os Djuhayna e outros grupos de árabes do sul, como os Bali, os Djudhām
e os Tayy, haviam avançado em grande número, por essa época, rumo ao sul,
9 Os especialistas não chegaram a um acordo sobre o sentido de karīmī. Trata -se de leitura errada, ou
quem sabe esse termo designaria os comerciantes do Kanem (Kanimi)? Se válida esta última hipótese, o
Kanem terá desempenhado, no desenvolvimento do comércio oriental, um papel até hoje insuspeitado.
10 A igreja de Dongola, transformada em mesquita (Dunkula al -’adjūz), tem uma inscrição que marca a
data exata da conversão: 29 de maio de 1317 da era cristã (16 Rab‘ I, 717).
428
África do século  ao século 
para o Darfūr e a África central, partindo da região de Asyut e de Manfalut. A
Núbia deixou de constituir um obstáculo, e parece que o poder egípcio, que até
os tempos de al -Mālik al -Nāsir Muhammad tratara de impedir, na medida do
possível, os grandes deslocamentos de nômades, passou a -los com simpatia:
por um lado, a partida de grupos turbulentos aliviava provisoriamente o Egito
e, por outro, esses mesmos homens tornavam -se súditos distantes no extremo
sul, com os quais a chancelaria do Cairo mantinha correspondência. Já em 1320
Manfalut, que se tornara um centro de venda de escravos, alimentava com ren-
dimentos fiscais (iktā‘) o tesouro privado do sultão. Isso era apenas o começo,
porém; o que mais chamou a atenção dos muçulmanos africanos, no Egito dos
Mamelucos, foi o modelo de civilização que este lhes ofereceu.
O Islã egípcio
O móvel fundamental do Estado mameluco não podia deixar de ser o mesmo
do Estado aiúbida: defender o Islã contra todos os ataques embora tivesse
praticamente desaparecido o inimigo interno. Os ensinamentos sunitas haviam -se
difundido pelo Egito; no Cairo, em Alexandria, em s e até em pequenas loca-
lidades do interior, fundaram -se madraças, entre as quais umas eram construções
suntuosas que deviam servir à glória dos emires e grandes comerciantes que
as houvessem instituído, enquanto outras não passavam de estabelecimentos
modestos, cujos recursos apenas bastavam para pagar os professores e manter os
estudantes. Em todo caso, porém, contribuíam para formar a classe de homens
eruditos e religiosos desejada por Saladino. Constituíra -se, portanto, um meio
sunita propriamente egípcio, no seio do qual a província, através de suas elites,
podia participar da vida da capital. A mística ortodoxa, fiel à inspirão de
al -Ghazzāl, animava a vida espiritual: formavam -se shadhilī, ou confrarias
religiosas; o ensino da tradição muçulmana fazia renascer a história, através
das coletâneas biográficas ou das sumas enciclopédicas de um al -Udfuw, de
um al -Nuwayr, de um Ibn Abd al -Zāhir, de um Ibn al -Furāt (para men-
cionarmos egípcios). Nos postos mais elevados da chancelaria estatal, ainda se
recorria aos serviços de sírios, como a um Fadl Allāh al -‘Umar, mas a obra
de um al -Kalkashand, por volta do final do século XIV, mostrava os meios
egípcios preparados para retomar a grande tradição dos secretários do califado
abássida. O Islã sunita havia constituído sua base egípcia.
É verdade que a casta militar mameluca, outra herdeira do regime aiúbida,
nem sempre encontrava, entre esses juristas, professores e religiosos do Egito,
a aprovação irrestrita que teria desejado para sua gloriosa defesa do Islã. Aos
429
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
egípcios que, ao contrário dos sírios, nunca tinham sido diretamente atingidos
pelas ofensivas mongóis parecia que a proteção dada aos muçulmanos não
justificava o luxo dos emires, sustentado pelos recursos que a casta militar exigia
do país. Os juristas sentiam -se um pouco como representantes do povo egípcio
frente aos mamelucos estrangeiros e a uma administração financeira que, em
grande parte, continuava confiada a cristãos. Os soldados que chegavam a emires
eram homens rudes, muitas vezes insolentes, com formação religiosa rudimentar
e mais fluentes na língua turca do que na árabe. Seu ofício era a guerra. Mas o
povo menos culto era sensível ao prestígio conferido pelas vitórias muçulmanas e
à beleza das construções ordenadas por Baybars, Ibn Kalā‘un e al -Mālik al -Nāsir
Muhammad. A pompa dos sultões, herdada do fausto dos Fatímidas, conquis-
tava os corações, e as práticas religiosas espetaculares, embora de ortodoxia
duvidosa, de estranhas confrarias originárias do Extremo Oriente e protegidas
pelos emires, seduziam as almas simples. O islamismo do povo comum coinci-
dia com o da casta militar, com pequenas diferenças, o que reforçava a unidade
política mameluca. O importante não era, doravante, garantir a coesão social e,
por meio desta, afirmar a glória do Islã?
A glória do Islã era maior no Egito do que em qualquer outro lugar, pois
o Cairo se convertera na residência do califado abássida restaurado. Baybars
acolhera um membro da família do antigo califa, que escapara ao massacre e
lhe pedia ajuda para reconquistar sua capital. Obteve apenas um contingente
simbólico e morreu em combate; mas, assim como em Bagdá no século XI, no
tempo em que um sultão exercia o poder, à frente da casta militar, em nome
e por conta do califa, Baybars recebera do Abássida a investidura oficial que
legalizava seu sultanato. Outro sobrevivente teve reconhecida a sua linhagem
abássida e o califado, mas não quis lançar -se num empreendimento militar sem
perspectivas; assim, o califa do Islã instalou -se definitivamente no Cairo, em
1262, e as orações passaram a ser feitas em seu nome. Logo eclodiu o conflito
entre o sultão e o califa, no qual os juristas se viam tentados a identificar o
único príncipe legítimo; mas, não contando com maiores apoios, o Abássida foi
submetido a uma vigilância permanente em sua residência. O mesmo aconteceu
com muitos de seus sucessores; porém os sultões não ousaram desfazer -se desses
califas simbólicos, e no entanto incômodos, cuja existência sempre lhes recordava
que o sultanato, no Islã, constituía apenas um poder de facto: fora do Egito, e
mais particularmente entre os muçulmanos da África, a presença do califa no
Cairo aumentava a glória do sultão.
O Cairo, onde por essa época a coletânea das Mil e uma noites estava se com-
pletando, tornou -se a nova Bagdá. Aquela cidade não era apenas a capital do Egito
430
África do século  ao século 
ou do Império Mameluco: da Síria e de todos os pses do Islã vinha -se transmitir
em suas madraças uma cultura à qual o meio egípcio apenas começava a dar sua
contribuição. Essa cultura era certamente menos rica que a dos tempos clássicos, de
inspiração sunita mais uniforme; havia, porém, uma preocupão de não se deixar
perder a herança do passado, de classifi-la e assimilar tudo o que o novo espírito
do Islã militante permitisse conservar. Para esse fim compilaram -se enormes sumas,
das quais a obra do historiador Ibn Khaldūn (que chegou ao Egito em 1382)
constituiu um dos melhores exemplos embora a lição genial desse aristocrata
conservador, que várias vezes exerceu a função de grande cádi maliquita do Egito,
fosse apenas uma, dentre as muitas que então se davam nas madraças do Cairo.
O sistema político mameluco
Esse florescimento da sociedade muçulmana ocorreu sob a proteção dos
mamelucos turcos. Era no interior desse grupo, constantemente renovado, com
algumas dezenas de milhares de homens dedicados à defesa do império, que
se dava o jogo propriamente político. Os mamelucos turcos vinham, em sua
maioria, do Kipčāk. Das margens do mar Negro, os comerciantes genoveses os
levavam até Alexandria, enquanto grandes negociantes do Oriente muçulmano
também os importavam por via terrestre. Mas havia igualmente desertores das
mais diversas proveniências, até mesmo mongóis. A coerência do seu meio assen-
tava na uniformidade da educação recebida: treinamento físico e militar, a que
se acrescentavam rudimentos de instrução para tornar muçulmanos esses jovens
escravos, que um dia talvez fossem libertos e pudessem aspirar a altas posições.
A manutenção da casta militar continuava a basear -se na repartição variável
das concessões fiscais (iktā‘) em que se dividia o país: o sultão tinha direito a
uma parte das concessões, que foi ampliada por al -Mālik al -Nāsir Muhammad
para melhor consolidar seu próprio poder; os outros emires recebiam o restante
conforme sua posição. Esses recursos, aliás, contribuíam indiretamente para o
desenvolvimento das cidades: pois era nos centros provinciais e na capital que
residiam, em geral, os mamelucos. No Cairo, residências abarrotadas de provi-
sões, dinheiro e produtos valiosos do artesanato urbano abrigavam os emires e
seus homens, sempre a postos para atender aos chamados do sultão, instalado
na cidadela de Salāh al -Dn, que dominava a cidade.
Os mecanismos políticos asseguravam uma seleção impiedosa
11
. Baybars
e Kalā‘ūn tinham saído, ambos, das fileiras do regimento bahrida. Seguindo
11 DARRAJ, 1961.
431
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
F . Cairo: túmulo de Kayt Bay (1472 -1474). Arquitetura mameluca.
432
África do século  ao século 
F . Cairo: pórtico monumental da mesquita de Kansuh al -Ghūri (construída em 1504).
433
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
F . Cairo: interior da mesquita de Djawhar al -Lāla, de origem etíope (1430). (Fonte das gs. 15.2
a 15.4: Wiet & Hautecoeur, 1932.)
434
África do século  ao século 
o exemplo aiúbida, adquiriram seus próprios mamelucos, e desde então todo
emir, chegando ao sultanato, passou a ter como primeira preocupação constituir
uma força que o capacitasse a exercer realmente o cargo. Nem todos o conse-
guiram, pois podia acontecer que fossem depostos antes de comprarem número
suficiente de homens. Se o conseguiam, porém, estava garantida a estabilidade
política: formava -se um novo grupo de mamelucos, designados pelo nome do
sultão que os recrutara, estreitamente unidos em torno de seu senhor até a morte
deste, quando os vínculos de camaradagem e o mérito pessoal talvez fizessem
surgir do próprio grupo o novo sultão. Cada sultão, portanto, criava um novo
grupo, decidido a conservar -se nos principais cargos do Estado, que ameaçaria,
enquanto aquela geração subsistisse, o poder do sultão seguinte.
Compreende -se, nesse contexto, que a continuidade dinástica não pas-
sasse de uma apancia, a despeito da vontade de numerosos sultões e apesar
de muitas vezes se utilizar a expressão “dinastia da falia de Kalāūn para
designar a dominão dos mamelucos turcos. Com efeito, mais afortunado
que Baybars (12601277), Kaūn, que tomou o poder depois dele (1279
1290), conseguiu transmitir o sultanato a seu filho al -lik al -‘Ashrāf Khall
(12901293), o conquistador de São Jo de Acre, embora este o tenha
conservado por pouco tempo. Duas vezes seu irmão Muhammad tornou -se
sultão porque, nas duas ocasiões, os emires que deviam assumir o sultanato
o se sentiam fortes o bastante para impor -se aos rivais; seu terceiro e
mais duradouro sultanato (13101341) deveu -se ao próprio esforço. Depois
de sua morte, os doze filhos e netos, que reinaram de 1341 a 1382, prati-
camente não chegaram a exercer efetivamente o poder senão por poucos
meses, dada a pouca idade que tinham quando assumiram o cargo. O governo
nessa época na realidade foi exercido por grandes emires, sūn, Tāz e
Shaykhū, cujo prestígio se manteve vivo na arquitetura urbana do Cairo,
pelas construções que eram a manifestão de seu poder. Em compensação,
a bessima mesquita de al -Mālik al -Nāsir Hasan (1356 -1362) foi a única
grande construção sultânica.
A história desse período ainda não foi escrita, mas pode -se perguntar se
foi o respeito à dinastia que impediu aqueles três grandes emires de aspirarem
ao sultanato. Ou terá sido porque o sistema começava a falir, faltando -lhes
assim poder suficiente para terem êxito? Quando o emir Barkūk se tornou
sultão, em 1382, inaugurando um reinado que, com curta interrupção, duraria
até o fim do culo (1399), restabeleceu a grande tradão mameluca; mas ele
era um circassiano, e um novo tipo de vínculo, de origem étnica, sustentava
seu poder.
435
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
O Egito no m do século XV: os contatos africanos (os Mamelucos
circassianos)
Pouco se conhece sobre a evolução do sultanato mameluco na sua segunda
fase, que corresponde principalmente ao culo XV; grande parte da hisria desse
período baseia -se em conjeturas. Costuma -se situar a ruptura entre as duas fases em
1382, quando se instaurou o poder dos Mamelucos circassianos, e não dúvida de
que, à época, podia -se perceber sensivelmente que a vida potica passava a obedecer
a regras diferentes. Mas a transformação foi mais profunda e começou antes dessa
data. Por outro lado, foi somente mais tarde, como resultado da grave crise que
afetou o sultanato e o Egito no icio do culo XV, que o regime mameluco tomou
outra fisionomia. Surgiu um novo Egito, que jáo era mais o medieval.
Mudanças profundas
Houve mudança no modo de recrutamento dos mamelucos: o khanato do
Kipčāk, em decadência durante a segunda metade do século XIV, não tinha
mais condições de fornecê -los em grande número. Procurou -se então recrutá -los
especialmente na região do Cáucaso, e os circassianos, que não eram desconhe-
cidos no exército mameluco, impuseram -se aos demais grupos em virtude de seu
senso de solidariedade étnica e familiar. Seu exclusivismo perante as outras raças
acabaria reduzindo ainda mais a classe política real, o grupo em cujo interior
podiam ser escolhidos os sultões: a raça, tanto quanto a rígida formação nos
quartéis, era o que conferia o direito de acesso ao trono
12
. Embora necessidades
urgentes obrigassem seguidas vezes à aquisição de mamelucos de origens varia-
das, estes não participariam do jogo político, reservado aos circassianos. Soldados
limitados ao ofício das armas, os mamelucos de outras proveniências étnicas
paulatinamente vieram a medir sua lealdade pelo valor de seu soldo.
Se a composição e a estrutura da casta militar se modificaram, os recursos
tradicionais advindos do iktā também se alteraram, ou seja, reduziram -se. O
Egito, como por sinal a Europa,começava a ser atingido por epidemias, como
as de 1349 (a Peste Negra) e de 1375, que se tornariam frequentes no correr do
século XV. Elas afetaram severamente os mamelucos, cujos contingentes tinham
que ser renovados mais rapidamente, e também os habitantes das cidades e
os camponeses egípcios. O resultado foi que, baixando o rendimento da terra,
também caiu a receita do iktā.
12 O nome burdjiyya ou burdjis, dado aos mamelucos circassianos, tem origem na prática política e militar do
sultão al -Mansūr Kalā‘ūn, que aquartelara em torres (abrādj, no singular burdj) um regimento formado
por seus próprios mamelucos.
436
África do século  ao século 
A essas mudanças duradouras, resultado de situações às quais o poder mame-
luco tinha que se adaptar, acrescentaram -se as consequências da política adotada
pelos sultões turcos no alto Egito, igualmente decisivas. Havia -se tolerado que
as tribos beduínas se instalassem na região e a usassem como base para suas
expedições contra o sul e a África central (nessa época os Djudhām fizeram
incursões no Bornu
13
). Essas tribos tornaram -se poderosas no alto Egito e, após
os dez anos de conturbações e de repressão infrutífera que se seguiram à morte
de al -Mālik al -Nāsir Muhammad, foi necessário admitir sua presença. Elas até
forçaram os Banū Kanz, implantados na Núbia, a recuarem na direção de Assuã,
tornando, portanto, impraticável a pista de Aydhāb a Kūs, que deixou de ser
utilizada por volta dos anos 1360. Kūsayr substituiu ‘Aydhāb, por certo tempo,
como porto de desembarque de especiarias. Mas, como os emires procurassem
compensar a queda dos seus rendimentos mediante cobranças excessivas e arbi-
trárias, os mercadores acabaram preferindo desembarcar suas preciosas cargas
o mais longe possível ao norte, em Tūr, na costa da península do Sinai, usada a
partir de 1380. Assim, não foi mais pelo Nilo que circularam as especiarias, o
que iria alterar a utilização humana do espaço egípcio (ver fig. 15.1).
Quando Barkūk chegou ao poder, essas numerosas transformações eram ainda
imperceptíveis, reveladas apenas por certa desordem na conduta do Estado, pela
perda de autoridade e pela turbulência entre os emires, que se haviam empobre-
cido. O sultanato de al -Mālik al -Zāhir Barkūk (1382 -1399) marcou -se, assim,
por um controle mais estrito sobre as províncias, pela transferência dos berberes
Hawwāra do delta ocidental para o alto Egito, com o fim de reduzir o papel
das tribos árabes, e pelo gradual fortalecimento do poder central. Seu governo
parecia dar continuidade às tradições dos grandes sultões turcos: o Cairo voltou
a ver construções sultânicas.
A crise do início do século XV
A verdadeira crise eclodiu depois da morte de Barkūk: crise interna e externa, que
por poucoo s fim ao sultanato mameluco. No exterior, a hegemonia mameluca
viu -se ameaçada na Anatólia. Um principado turcomano, o dos Otomanos,
ganhara nova dimensão gras à guerra que movia contra os cristãos, até
nos Balcãs. (Desde 1366, a Europa pensava em socorrer Constantinopla.)
13 Em 1391, o rei do Bornu escreveu uma carta ao sultão Barkūk, queixando -se da conduta dos
Djudhām e de outras tribos árabes, que atacavam seu povo e vendiam súditos seus a mercadores do
Egito, da Síria e outros países. Ver AL -KALKASHANDĪ, 1913 -9, v. 1, p. 306, v. 8, p. 116 -8.
437
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
Os Otomanos reivindicavam a sucessão do sultanato seldjúcida de Rum e pro-
curavam, pouco a pouco, dominar os outros principados. Suas tropas começavam
a penetrar em regiões sob protetorado mameluco quando um segundo perigo,
ainda mais inquietante, apareceu: na Asia central, Tamerlão, oficial dos príncipes
mongóis, empenhara -se na missão de restaurar o grande império, desta feita
em nome do Islã purificado pela espada – recomeçava o terrível avanço mongol
para oeste. Em 1400, Tamerlão atacou os Mamelucos. Rapidamente chegou a
Damasco e poderia entrar no Egito sem maiores dificuldades; porém também
necessitava restabelecer o domínio mongol na Anatólia e preferiu dedicar -se
primeiro a essa tarefa. Depois de ter massacrado os Otomanos (1402), alguns
problemas obrigaram -no a regressar à Asia.
Uma vez mais, o Egito escapara da invasão, e o sultanato mameluco voltava
a encontrar no Leste condições favoráveis para sua influência. O ímpeto oto-
mano rompera -se por um bom tempo, e os principados turcomanos da Anatólia
retomavam suas rivalidades tradicionais, como outros, no Iraque, de instituição
mais recente. Mas que hegemonia o sultanato mameluco poderia reivindicar? Os
mongóis haviam abandonado espontaneamente o território por eles devastado,
e dessa vez era aos próprios invasores que os príncipes turcomanos deviam o
retorno de sua autonomia. Poupado por milagre, o Império Mameluco nada
podia fazer, e essa impotência iria persistir devido a males que o corroíam por
dentro.
Após a morte do sultão Barkūk, seus mamelucos naturalmente contestaram a
transmissão do poder ao filho, Faradj. Mas talvez porque as solidariedades políti-
cas, que em outros tempos se forjavam num longo aprendizado em comum nos
quartéis, não fossem fortes o bastante para permitir a um dos emires impor -se, ou
então porque nenhum tivesse poder suficiente para tanto (como antes da ascensão de
Bark), a casta militar se dilacerou em infindáveis rivalidades, sangrentas es. Os
ânimos estavam tão perturbados que, quando finalmente Faradj perdeu o poder
e a vida, em 1411, por um momento se confiou o sultanato ao califa abássida. O
regime parecia vacilar. Ainda mais graves eram os males que atingiam o Egito,
responsáveis pela longa demora na solução da crise política. A insuficiência das
cheias do Nilo e a fome que começara em 1403, mais a peste de 1405 reduziram
a população, arruinaram as cidades e paralisaram a administração. No alto Egito,
os beduínos, berberes ou árabes dominavam: durante toda a década puderam
governar a região praticamente sem sofrer nenhum controle do Cairo. O Egito
conhecia uma crise de amplitude raramente igualada em toda a sua história. O
Estado mameluco iria desaparecer ou transformar -se.
438
África do século  ao século 
O Egito perante o perigo cristão: a luta contra os portugueses a
reconstrução e o novo Egito
Nessas difíceis circunstâncias, um mameluco de Barkūk, Shaykh, tornou -se
sulo sob o nome de al -Mālik al -Muayyad (1412–1421) e começou a reagir, com
a máxima energia, a todos os problemas. Sucedeu -lhe outro mameluco de Barkūk,
al -Mālik al -‘Ashraf rsbāy (1422–1438), que completou a tarefa de restauração
da ordem. A administração recuperou sua regularidade, e o alto Egito, talvez sem
a devastada província de Assuã, voltou ao controle do poder mameluco, graças à
colaboração dos berberes Hawwāra, que haviam instalado seu domínio em Djirdja
durante os anos em que o Cairo não exerceu sua autoridade. Mas, para o poder,
o mais importante era encontrar um meio de compensar a queda nos recursos
financeiros do sultanato, causada pela crise – pois as epidemias continuaram até
o fim do sultanato de Bārsbāy e voltaram a irromper mais no final do século.
Ora, havia um domínio no qual o Egito não tinha concorrentes a temer, espe-
cialmente depois das guerras mongóis: o corcio das especiarias. Provenientes de
Aden, as mercadorias então atravessavam o Egito pelas vias mais curtas: de Tūr
até Alexandria, Roseta ou Damieta, ou se dirigiam para os portos rios. rsbāy
entendeu (1425–1427) dever reservar exclusivamente ao sultanato as vantagens
desse comércio. Para nada perder dele, as mercadorias seriam reunidas e taxadas em
Djeddah, porto do Hidjāz eno parte integrante do império (os contemponeos
a diziam: do Egito), e a venda aos comerciantes ocidentais ficaria a cargo de óros
oficiais. Essa mudança evidentemente lesava os interesses dos príncipes iemenitas,
que controlavam Aden, do grande corcio privado (inclusive os Karm, embora
estes estivessem em decadência) e dos comerciantes do Ocidente, forçados a
comprar pelo preço estabelecido pelo sultão (sobretudo os venezianos, que durante
o século XV respondiam por dois terços das compras feitas ao Egito). As reações
foram fortes, mas o sulo persistiu em sua política. Tamm precisava proteger
esse comércio, agora estatizado, especialmente no Mediterrâneo, cujas costas eram
assoladas por corrios cataes e genoveses. O reino cristão de Chipre, suspeito de
prestar -lhes apoio, foi alvo de uma incursão, na qual seu rei foi levado preso (1425
–1426). Operões análogas, pom sem o mesmo sucesso, foram tentadas poste-
riormente contra Rodes (1440 –1444). Esse monolio proporcionou a Bārsbāy e
aos sucessores os recursos de que necessitavam e deu à sociedade egípcia nova base
econômica, que se percebia por vários indícios.
Contra os emires, que tinham de se contentar com o rendimento cada vez
menor do ik, o sultão adquirira nova força, que nenhuma oposição, por mais
perigosa, voltaria a ameaçar, a não ser em alguns casos muito particulares. Os
439
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
únicos problemas devidos à casta militar vinham, eno, dos novos recrutas, que
o exclusivismo do grupo circassiano reduzia à condição de simples mercenários,
treinados depressa demais, ávidos e reivindicadores. A natureza do sultanato estava
se modificando. o eram mais emires jovens ou na flor da idade, que, com o
apoio ativo de seus homens, tomavam o poder, no qual exerceriam suas qualida-
des e satisfariam suas ambições – porém homens maduros ou mesmo idosos, que
assumiam um encargo às vezes pesado demais para eles e que se portavam mais
como políticos do que como soldados. Esses homens também se consideravam
bons muçulmanos, o que atenuou a oposição entre a casta militar e a dos sábios
e religiosos. A legitimidade dos sultões o foi mais contestada, e isto reduziu
bastante a importância da presença, cada vez mais discreta, dos califas abássidas.
A proporção dos muçulmanos em relação aos cristãos parece haver aumen-
tado muito no Egito dessa época. Durante os anos difíceis do primeiro quartel
do século, quando o povo miúdo era tentado a atribuir às minorias a responsabi-
lidade por seus males, houve inúmeras conversões. O Egito tornou -se mais uni-
formemente muçulmano, frente a uma pressão do Ocidente, que se manifestava
tanto pelas incursões dos corsários na costa (até se falava em uma aliança secreta
entre os cristãos do Ocidente e o negus da Etiópia, para tentarem, uma vez mais,
atacar o Islã pela retaguarda) quanto pela presença de mercadores, que vinham
livremente ao Cairo com seus tecidos caros e suas moedas de ouro. Em suma,
parece que essa renovação do sultanato através da exploração mais completa
possível das vantagens do grande comércio internacional conferiu à sociedade
mameluca do Egito um vigor novo, uma estabilidade e uma paz que até então
não conhecera mas também lhe causou a dependência das relações de troca
que a ligavam ao Ocidente, fragilidade que se começava a perceber.
Contudo os viajantes ocidentais que se haviam aventurado fora dos funduk das
cidades litorâneas, e cujas memórias têm enorme valor para os historiadores, não
eram os estrangeiros mais numerosos no Cairo. Os que vinham da África ocidental
constituíam uma colônia em constante mudança, instalada nos bairros periféricos,
mais vulnerável às epidemias, quando se detinham por curtos ou longos períodos,
às vezes definitivamente, em seu caminho para o Hidjāz. Os peregrinos africanos,
cujo número parece haver aumentado muito por volta da metade do século XV,
agora também dispunham, como as delegações oficiais enviadas de outros países
aos lugares santos, de seu emir da peregrinação”. O sunismo dos mestres do Cairo
ou do Hidjāz, que vemos citados no Ta’rīkh al -fatsh e no Ta’rīkh al -Sūdān, dera
frutos, criando na África, como anteriormente no Egito, sua base social cujo papel
na vida política dos reinos africanos ganhava importância. Um exemplo estava nas
peregrinações de príncipes, a quem o califa abássida dava a investidura, quando
440
África do século  ao século 
de sua passagem pelo Cairo, como foi o caso do askiya Muhammad, em 1496.
os sultões mamelucos, que lançavam pesados impostos sobre os peregrinos, eram
sensíveis antes de mais nada ao precioso metal que estes portavam.
Os contatos com a África se faziam igualmente atras do alto Egito. Os emi-
res beduínos, que se haviam tornado proprietários de terras, grandes comerciantes
e bons muçulmanos, por sua vez dominavam cada vez mais o país, enriquecendo -se
com as trocas: os cavalos que criavam e os escravos que mandavam vender no Cairo
14
eram itens importantes do corcio. As especiarias o circulavam mais pelo alto
Egito, que se convertera num mundo distinto do formado pelo delta, pois conti-
nuava a ter numerosa população cristã e conservava um ritmo mais lento de vida.
Assim, foi especialmente no delta que floresceu a riqueza, cheia de contrastes,
do Egito dos circassianos, no qual o animado comércio das cidades colidia com
a pobreza dos campos. Multiplicavam -se as construções de estilo novo, de que o
longo sultanato de al -Mālik al -‘Ashraf Kayt Bay (1468–1496), que terminou de
dar ao Cairo o aspecto que a cidade ainda hoje conserva, marcou o apogeu: foi o
coroamento definitivo dos esforços dos circassianos (ver figs. 15.2, 15.3 e 15.4).
A década de 1480 sem dúvida assinalou uma reviravolta na história do sul-
tanato e do Egito. As dificuldades com o exterior começavam a comprometer o
longo processo de reerguimento do país, mas já então o século XV egípcio, a des-
peito das condições difíceis, marcava -se como um período a que não faltou nem
estilo nem originalidade. A influência do Egito fora mantida, graças à majestosa
organização de seu Estado e ao florescimento de sua cultura. A escola egípcia de
historiadores atingiu o auge de seu desenvolvimento, com destaques que vão desde
al -Makrz, que chegou a testemunhar o triste começo do culo, passando por
al -Ayn, Ibn Hadjar al -Askalān, Ibn Taghrbrd, al -Sakhāwtodos egípcios e
filhos de mamelucos –, chegando a os cronistas dos tempos difíceis que estavam
por vir, lbn Iyās e o prolífico al -Suyūt, que se orgulhava de ver seu renome chegar
até o Takrūr.
Um novo contexto internacional
Durante muito tempo o equilíbrio das forças no Oriente mostrou -se favorá-
vel aos circassianos. Os Timúridas, sucessores de Tamerlão, príncipes pacíficos e
protetores das artes, que governavam o Irã e a Ásia central, haviam desistido de
qualquer iniciativa belicosa efetiva. Além disso, o fato de os grupos turcomanos
14 Ver KA‘TI, 1913 -4; AL -‘UMARI, 1927.
441
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
voltarem a se dividir politicamente permitiu que o Estado mameluco, uma vez
reorganizado, retomasse sem maiores riscos sua política tradicional de inter-
venção na Anatólia. Os sultões voltaram a ter seus protegidos. Esse turbulento
mundo turcomano, aliás, requeria vigilância: os Timúridas viam as fronteiras
de seus Estados reduzirem -se sob pressão dos turcomanos do Iraque, e os sul-
tões não deixaram de estar atentos aos numerosos conflitos que se produziam,
visivelmente conscientes dos limites de suas forças, que uma série de incidentes
menores pusera em evidência. Pretendendo controlar a evolução política des-
ses recém -chegados ao Islã, com quem os mamelucos deviam sentir algumas
afinidades, o sultanato do Cairo desempenhava seu papel de grande potência.
Mas, para obter resultados sempre pouco consistentes na sociedade turcomana,
de forças instáveis porém em busca de unidade, terminaria por atrair para o
Egito, e dali para todo o norte da África, a dominação de um grupo étnico que
inicialmente sequer cogitava de insta lar -se em área tão extensa.
Vencidos e divididos, os Otomanos começaram a recompor suas forças com
muita pruncia. Foi somente sob Mehmed II (1451–1481) que se retomou o
avanço otomano: a queda de Constantinopla (1453) foi festejada no Cairo, mas
conferia ao Estado otomano em expano a honra, embaraçosa para os Mamelu-
cos, de campeão do Islã, enquanto os protegidos turcomanos dos Mamelucos na
Anatólia tornavam sua causa indefensável na medida em que se aliavam com os
ocidentais, para evitar sua absoão pelos Otomanos. O confronto entre Mame-
lucos e Otomanos, inevitável, deu -se sob Kayt Bay: um primeiro conflito indireto
começou em 1468 e, felizmente para o Cairo, chegou ao fim em 1472, graças à
intervenção dos turcomanos do Iraque, contra os quais os Otomanos precisaram
reunir todas as suas forças. Seguiu -se uma guerra aberta entre os dois sultanatos,
que durou de 1483 a 1491. A vitória mameluca, duramente alcançada e ao pro
da estabilidade interna do Estado, mais uma vez barrava a expano dos Otoma-
nos. Estes concentraram seus esforços no Mediterrâneo, na guerra santa contra
os ocidentais, com quem aprenderam a manusear armas de fogo. Mas o mundo
turco mano continuava em turbulência, agora perturbado pelo movimento xiita dos
Sefévidas, que em 1501 conseguiram unir iranianos e turcomanos: o I, então, ofi-
cialmente xiita pela primeira vez na história, ameaçava seus rivais Otomanos, sunitas.
Para explorar tal situação, que tanto podia reservar -lhes perigos quanto vantagens,
os sultões mamelucos precisariam ter muita perspicácia e, acima de tudo, dispor de
grande força – essa força, já abalada pela guerra, bruscamente lhes faltou.
Foi então que a expansão portuguesa no oceano Índico, atingindo ao mesmo
tempo o comércio veneziano e os recursos financeiros do Estado mameluco
dele dependente, pareceu ameaçar os alicerces econômicos do edifício político
442
África do século  ao século 
F . Candeeiro em vidro esmaltado (época mameluca). (Fonte: Cairo, A life story of one thousand
years – 969 -1969.)
443
O Egito no mundo muçulmano (do século XII ao início do XVI)
dos circassianos. A presença dos portugueses fez -se notar depois da viagem de
Vasco da Gama, em 1498. Eles passaram a comprar especiarias e organizaram
o bloqueio do mar Vermelho. Contornando a um tempo a África e o Islã,
os golpes que desferiram no poderio mameluco evidenciavam o quanto este
tinha seu destino ligado ao do continente africano. O último grande sultão
circassiano, al -Mālik al -Ashraf Kansūh al -Ghūr (1501–1516), ainda tentou
reagir. Seu próprio rival otomano, preocupado em exercer o papel de defensor
do Islã e vendo o perigo que ameaçava o Hidz’, ajudou -o a constituir uma
frota. Mas, depois da derrota da esquadra egípcia em Diu, na costa ocidental
da India em 1509, restou ao Império Mameluco a defesa intransigente do mar
Vermelho. Tal impotência deveria ter dissuadido o Cairo de qualquer atitude
de provocação a leste, onde o quadro político se modificava rapidamente.
Com efeito, encorajados pelo Ocidente, os Sefévidas estavam criando difi-
culdades para os Otomanos. Quando Salm, o novo sultão otomano, num
ímpeto de energia, quis reagir, não teve o apoio dos Mamelucos, apesar da
ajuda que lhes dava no mar Vermelho: no Cairo, os velhos reflexos da polí-
tica turcomana haviam prevalecido sobre a lucidez. Salm travou sozinho o
combate e, graças às armas de fogo otomanas, conseguiu deter a expansão do
xiismo (1514) limitando -o ao Irã. Decidiu então pôr fim à influência nefasta
que seu rival mameluco, embora já incapaz de proteger o Islã sunita, se recusava
a deixar de exercer sobre o mundo turcomano. O destino do Imrio Mameluco
foi decidido numa única batalha, em Mardj Dabik, ao norte de Alepo, em 24 de
agosto de 1516, na qual as armas modernas venceram os cavaleiros circassianos,
que as desprezavam. A morte, em combate, do velho sultão mameluco, as
intrigas no meio da casta militar, o prestígio do novo protetor do Islã sunita
e a indiferença dos epcios transformaram em uma conquista completa e
fácil o que, de início, parecia constituir apenas um limitado ajuste de contas.
Conclusão
Quando a dominação dos Otomanos se estendeu ao Egito, em 1517, foi todo
um poder político que se esboroou. Como este se tornara patrimônio de uma
classe política restrita e que se renovava com dificuldade, acabara perdendo tanto
seus meios de sobrevivência quanto a legitimidade, advinda da defesa eficaz
do Islã. Um governador otomano instalou -se no Cairo, e confirmou -se o poder de
um emir bedno em Djirdja; assim se oficializou a distinção, que seria duradoura,
entre o Egito da costa e o Egito do interior. Mas as estruturas sociais em nada
444
África do século  ao século 
se modificaram, mantendo -se assim por muito tempo. A sociedade mameluca
sobreviveria, portanto, a si mesma, como vestígio de um empreendimento polí-
tico e cultural que fora sua razão de ser e que detém um lugar de destaque na
história do Islã e na da África.
C A P Í T U L O 1 6
445
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
Decadência e morte dos Estados cristãos da Núbia
São poucos, na história mundial, os exemplos de acordos internacionais que
se tenham conservado por tanto tempo quanto o bakt *, que durante seis séculos
foi considerado a base legal das relações pacíficas entre o Egito muçulmano e
a Núbia cristã
1
. Apesar dos ocasionais ataques de pequena escala e represálias
que se seguiam, a paz foi respeitada enquanto as mútuas obrigações existentes,
inclusive o fornecimento de produtos, eram cumpridas, de maneira que, em
princípio, a trégua não deixava pairar qualquer dúvida sobre a validade dos acor-
dos. Com todas as modificações e suspensões temporárias a que esteve sujeito, o
bakt constituiu uma conveniente fórmula de interdependência econômica.
Sob os Fatímidas, as relações entre o Egito e a Núbia parecem haver realizado,
da melhor maneira possível, o objetivo proposto de boa vizinhança e de uma
certa cooperação. Este objetivo atendia tanto aos interesses dos califas fatímidas,
que precisavam de escravos para os seus exércitos e de paz em sua fronteira meri-
dional, quanto aos da Núbia, que então atingia o apogeu de seu poderio político
e de seu desenvolvimento cultural. Os períodos dos Aiúbidas (1171–1250) e dos
Mamelucos (1250 –1517), que correspondem à época examinada neste capítulo,
1 Ver, sobre os aspectos jurídicos do bakt, a Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 1, p. 996.
A Núbia, do m do século XII
até a conquista pelos Funj,
no início do século XVI
L. Kropáček
* Tratado assinado entre dirigentes do Egito e reis da Núbia. Ver detalhes p. 634.
446
África do século  ao século 
foram marcados por uma progressiva deterioração das relações do Egito com
a Núbia. O fator setentrional, entendido no sentido mais amplo, terminou por
revelar- se decisivo para o declínio da Núbia. Podemos discernir dois processos
que se conjugavam: por um lado, a pressão que os soberanos egípcios exerciam
sobre o decadente poder núbio, e por outro, a penetração crescente de nômades
árabes na Núbia, contribuindo para a desagregação de suas estruturas sociais.
O que sabemos da história política da Núbia cris deve- se, quase inteiramente,
a fontes escritas árabes de origem egípcia
2
. Os documentos locais do final da época
criso escassos e pouco significativos. O valor do testemunho arqueológico
foi reforçado, pom, na década de 1960, graças aos programas de recuperação
e preservação exigidos pela construção da barragem de Assuã. A campanha de
salvação promovida na Núbia inferior levou ao estudo de sítios que em outras cir-
cunstâncias não teriam chamado a atenção, como humildes vestígios domésticos;
os resultados obtidos deram grande estímulo à interpretação da história da Núbia,
na medida em que enfatizaram seus desenvolvimentos internos
3
.
Segundo as fontes árabes, a geografia potica da Núbia, nos séculos XII e XIII,
mantinha- se semelhante à que fora descrita nos documentos mais antigos. Podiam- se
distinguir dois reinos ribeirinhos: al- Makurra (Makuria em greco- copta), que tinha
capital em Dunkula a antiga Dongola , e Alwa (Alodia). As fronteiras separando
estes dois reinos situavam- se entre a quinta e a sexta cataratas. O posto avançado
mais ao norte de Alwa é mencionado, muitas vezes, pelo nome de al- ’Abwāb
(“as Portas”, hoje Kabushiya). Nos dois reinos, a sucessão ao trono era regulada
sobretudo pelo princípio matrilinear, que reconhecia o direito hereditário no
filho da irmã do soberano.
As instituições sociais e políticas da Núbia eram essencialmente de caráter
étnico o que parece ter sido mal compreendido, de modo geral, nas fontes
existentes e também nas interpretações que elas suscitaram.
Al‑ Makurra
Como já foi sugerido, temos boas razões para acreditar que as relações entre
os soberanos fatímidas no Egito e na Núbia fossem bastante amistosas. Existem
indícios suficientes, tanto documentais quanto materiais, de que o comércio
entre os dois países florescia nessa época. Para tomarmos um único exemplo: o
2 As fontes árabes que aqui utilizamos são praticamente as mesmas que foram muito bem exploradas e
analisadas por HASAN, Y. F., 1967.
3 Ver, especialmente, SHINNIE, 1965; ADAMS, W. Y., 1966 e 1967.
447
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
estudo das cerâmicas encontradas em escavações comprova que havia movimen-
tos de pessoas em ambas as direções, bem como influência das artes fatímidas
sobre os objetos manufaturados na Núbia. O intercâmbio comercial, resultante
do sistema do bakt que naquele momento assumiu provavelmente sua forma
clássica –, simbolizava as vantagens da segurança e do comércio para as duas
partes. A diferença de religião não parecia constituir obstáculo sério. Fontes
árabes evocam as boas relações existentes entre o patriarcado de Alexandria
e o rei da Núbia, que funcionava como seu protetor, a justa punição aplicada
no Egito a calúnias antinúbias relativas a supostas medidas dirigidas contra os
muçulmanos, e também a calorosa acolhida e hospitalidade concedidas ao ex- rei
núbio Salomão, no Cairo, em 1079.
A boa disposição manifestada pelos Fatímidas em relação a seus vizinhos
meridionais pode explicar- se pelo isolamento em que se sentia o regime xiita
no mundo islâmico. Do lado núbio, parece que essa simpatia fatímida teria sido
retribuída, ocasionalmente, por ajuda direta. Com efeito, as incursões núbias em
território egípcio, no século X, coincidiram com a campanha fatímida para a
conquista do mesmo espaço, interrompendo- se quando esta se completou, para
somente recomeçarem depois que os Aiúbidas depuseram o regime amigo. Os
núbios cooperavam com os egípcios, também, devolvendo- lhes escravos fugi-
dos e refugiados políticos. Igualmente sob esse aspecto, as disposições do bakt
refletem as convenções da época fatímida.
Um importante fator no poderio militar dos Fatímidas era representado
pelas tropas negras de origem sudanesa, que em larga proporção provinham
de al- Makurra e de ‘Alwa. Depois de exercerem papel predominante durante a
segunda metade do século XI, graças especialmente ao favor da mãe negra de
Khalifa al- Mustansir, seus rivais turcos e berberes conseguiram expulsar boa
parte desses soldados para o alto Egito. Nessa região, enfrentariam mais tarde,
e por rias vezes, os mesmos inimigos políticos. Contudo, as tropas negras
continuaram sendo sólidos sustentáculos do regime fatímida e, nos últimos anos
deste, opuseram obstinada resistência à ascensão dos Aiúbidas.
As tropas árabes, que mais tarde se tornariam responsáveis por uma série de
conturbações, revelaram- se implacáveis e, em várias ocasiões, rebelaram- se. Com
toda a probabilidade, parte delas escapou à repressão descendo para o sul, sem
que seu efetivo ou comportamento ulterior tomasse proporções alarmantes. Na
política dos Fatímidas, em relação aos árabes, destaca- se a engenhosa solução
que deram ao problema dos Banū Hilāl, a quem enviaram na direção oeste, para
a África setentrional. Na fronteira meridional, precisaram reprimir os Banū
Kanz, que aspiravam à independência. Conduziu- se a campanha punitiva em
448
África do século  ao século 
F . Mapa da Núbia do m do século XII ao começo do XVI (conquista funj). (L. Kropáček.)
449
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
1102–1103, e o rebelde Kanz al- Dawla, que procurou refúgio em al- Makurra,
foi entregue aos egípcios pelo rei da Núbia. Depois disso, instalaram- se postos
militares em Assuã para vigiar a fronteira; não houve na região, porém, sérias
perturbações da paz até a queda dos Fatímidas. Por sinal, os cronistas árabes
nada encontraram que merecesse ser registrado das relações núbio- egípcias
durante os 70 últimos anos do califado famida, o que permite supor que
essa época fosse marcada pela coexistência pacífica e por um comércio regular.
O corcio prosseguiu sem problemas. Os termos do bakt indicam que era cos-
tume autorizar os deslocamentos dos negociantes muçulmanos e proporcionar- lhes
protão, embora sua instalação permanente só fosse tolerada, normalmente, nas pro-
ximidades da fronteira setentrional. A longo prazo, da mesma forma que no Sudão
ocidental, o corcio abriu caminho ao Islã. Em seus movimentos, os comerciantes
acumulavam conhecimentos sobre o país, que depois transmitiam aos interessados.
Com o zelo de pessoas privadas, os mercadores fizeram mais pela difuo do Islã
do que os próprios agentes oficiais de propaganda, encarregados pelos Fatímidas de
pregarem a crença xiita. No caso do Sudão nilótico, o raio de ão destes últimos
se restringiria a Aydhāb, enquanto a maior parte das atividades missionárias era
espontânea e discretamente desenvolvida pelos comerciantes.
Em compensação, a história das relações entre o Egito e a bia sob os Aiúbidas
começou, em 1172, com uma ofensiva núbia à qual o exército aiúbida, chefiado por
Turānshāh, irmão de Saladino (Salāh al- Dn), respondeu com um contra- ataque
que culminou na captura e ocupação temporária de Kasr Ibrm.se sugeriu que
o fato de a Núbia tomar a iniciativa das hostilidades, poderia ser o resultado de
uma aliança entre Fatímidas e núbios
4
.Um pouco mais tarde, o exército aiúbida
venceu os árabes rebeldes Banū Kanz, e os forçou a se retirarem de Assuã para
al- Mars, a parte setentrional do reino de al- Makurra. Existem numerosos depoi-
mentos sobre a arabização e a islamização crescentes dessa região, ocorridas entre
os séculos IX e XII. A presença dos Banū Kanz (que eram de origem árabo- bia),
e os casamentos entre eles e os núbios, constituíram simplesmente um indício a
mais desse duplo processo.
A migração de cabilas árabes originárias do Egito em direção ao sul desenvol-
veu- se em maior escala, sem precedentes. A forte preso que as cabilas nômades ou
seminômades sofreram sob os Aiúbidas, e ainda mais no tempo dos Mamelucos,
ocasionou sérias confrontões. As mais importantes campanhas mamelucas contra
os rebeldes ‘urn (ou bednos, como se tornou usual chamá- los) são registradas
4 SHINNIE, 1971b, p. 46.
450
África do século  ao século 
nos anos de 1302, 1351, 1353, 1375 e 1395. Para os beduínos, havia uma
maneira de escapar à perseguição impiedosa: o refúgio no Sudão. Outras ame-
aças, como a fome e as epidemias de peste, também os impeliram na mesma
direção. Em número crescente, nômades ladrões de comida aproximavam- se,
pelos desertos, da Núbia ribeirinha elementos destrutivos que avançavam
pelas zonas habitadas, saqueando e lutando com os moradores, com o poder
estabelecido, e também entre si. Eram considerados um grave perigo, tanto no
Egito como na Núbia.
A história das relações entre a Núbia e o Egito dos Mamelucos deve ser
considerada nesse contexto. Diante das pilhagens a que estava exposto, e da gra-
dual perda de sua coesão interna, al- Makurra mostrou- se cada vez menos capaz
de sustentar seu papel de vizinho cooperador, garantindo a paz nas fronteiras
meridionais. Os Mamelucos, por sua vez, investiram toda a sua força numa polí-
tica que visava reduzir esse país à condição de reino vassalo. Suas intervenções
foram facilitadas pela discórdia no interior da família reinante, que mais tarde
se agravou devido à conversão de alguns dos seus membros ao Islã.
Parece razoável pensar que a adoção, a partir do sultão Baybars (12601277),
de uma política ativa de intervenção nos negócios núbios tenha sido motivada, em
larga medida, por preocupações com a segurança do Egito. Também já se sugeriu
que a grande quantidade de butim conquistado nas campanhas da bia e nas
expedições contra os beduínos do alto Egito pode indicar que esses reiterados ata-
ques tivessem, igualmente, motivação econômica
5
. Os cronistas da época registram
uma abertura diplomática, cujo resultado foi a solicitação, pelo sultão, da retomada
das entregas previstas pelo bakt, suspensas desde uma data que se desconhecia.
Ao invés disso, porém, o rei Dāwūd da Núbia efetuou uma rie de incursões
em território egípcio, culminando em 1272 na tomada de Aydhāb, porto no mar
Vermelho que tinha enorme importância para o comércio egípcio. se pensou
que essa ação tivesse o objetivo de ajudar os cruzados, mas nada parece validar tal
hipótese. Os motivos mais prováveis seriam a perspectiva imediata de um saque
considerável, e a vingança contra a dominação de Sawākin pelos Mamelucos,
alcançada poucos anos antes. Merece, porém, ser notada a coincidência no tempo
das campanhas conduzidas pelos Mamelucos na Síria e na Núbia.
Em 1276, Baybars ordenou uma expedição punitiva de grande envergadura,
que venceu Dāwūd, e atribuiu o trono de al- Makurra a seu primo e rival, que
as fontes mencionam sob o nome de Shakanda ou Mashkad. Em retribuição
5 Ver HASAN, Y. F., 1967, p. 114.
451
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
pela ajuda dos Mamelucos, Shakanda, mediante um juramento cristão dos mais
solenes, aceitou certo número de obrigações, que praticamente representavam
a substituição do bakt tradicional por uma autêntica vassalagem
6
. Assumindo
o título de ib (representante) do sultão, Shakanda prometeu pagar- lhe um
tributo anual que absorvia metade da renda do país, mais determinado número
de animais do Sudão. Al- Mars (ou, o que é mais provável, os seus rendimentos)
passou ao controle direto do sultão. Os núbios que não se decidissem a abraçar
o Islã, deveriam pagar um imposto anual per capita (a djizya). Os nômades ára-
bes que se refugiassem na Núbia seriam extraditados. Além disso, a política de
Shakanda estaria permanentemente sujeita à aprovação do sultão.
Além dessas condições políticas e econômicas humilhantes incluídas no
acordo, a Núbia teve que suportar considerável amputação de seus recursos
humanos embora certamente seja exagerada a cifra dos 10 mil habitantes
que, segundo as fontes históricas, teriam sido levados ao Egito como escravos.
É significativo, do ponto de vista político, que tais prisioneiros incluíssem reféns
tomados na família real e o próprio ex- rei Dāwūd, entregue pelo governador de
al- Abwāb, a quem pedira asilo. Certo interesse na sua sorte transparece da cor-
respondência mantida por Baybars e o soberano da Etiópia, Yekuno Amlak.
Reduzido à condição de reino vassalo de poderoso suserano, al- Makurra
não conseguiu restaurar sua ordem interna. Novas expedições mamelucas se
seguiram. Contudo, se a intenção era que a Núbia continuasse a exercer o papel
de Estado- tampão entre o Egito e os nômades saqueadores, essa política brutal
de repetidas intervenções terminou por se revelar pouco inteligente. Os Mame-
lucos devastaram e despovoaram o país, e assim debilitaram a capacidade de
resistência do Estado ribeirinho contra os nômades, até reduzi- lo à completa
ineficácia. Disso se aproveitaram muitos árabes, que se juntaram aos exércitos
dos Mamelucos, procurando butim que lhes proporcionasse vida mais fácil fora
do Egito. Ibn al- Furāt, em 1289, avaliou seu número em 40 mil, cifra esta que
certamente incluía tanto os homens quanto o resto da tribo
7
. Os Bānu Kanz, por
sua vez, haviam apoiado os Mamelucos desde suas primeiras expedições.
O rei Shamāmūn foi um adversário obstinado dos Mamelucos. Embora fosse
vencido duas vezes, atacou a guarnição que os Mamelucos haviam estabelecido
em Dunkula e matou seu chefe e os traidores. Em 1290, escreveu ao sultão
Kalā‘ūn, pedindo- lhe perdão e dispondo- se a pagar um bakt de montante mais
6 HASAN, Y. F., 1967, p. 109, o texto completo do acordo, tal como foi transcrito por al- Nuwayr e
conservado no Kitāb al- sulūk de al- Makrz. Ver também TRIMINGHAM, 1949, p. 69.
7 IBN AL- FURĀT, 1936- 1942, v. 8, p. 83, citado por HASAN, Y. F., 1967, p. 114.
452
África do século  ao século 
elevado. Parece que o sultão, que então se ocupava em lutar contra os últimos
restos dos cruzados, aceitou essa oferta.
A bia, assim, ficou a salvo de campanhas militares durante uma década. Em
1305, outra expedição foi enviada do Cairo, a pedido do rei Ammy, que necessitava
de ajuda para enfrentar conturbações internas. Mais tarde, como o sucessor de
Ammy, Karanbas, o quisesse ou o pudesse pagar o tributo combinado, foi efe-
tuada uma expedição punitiva, na qual se incluía um novo pretendente destinado
a substituir o rei. Pela primeira vez, esse pretendente designado era muçulmano:
o sobrinho do rei Dāwūd, a quem as fontes históricas dão o nome de Sayf al- Dn
Abdallāh Barshambū (ou Sanbū). Karanbas reagiu propondo outro candidato
muçulmano, o Kanz al- Dawla (isto é, o chefe dos Banū Kanz) Shujā‘ al- Dn, que,
segundo ele, tinha maior direito à sucessão por ser filho de sua irmã.
A ascensão de Sanbū ao trono de Dunkula marca o começo da conversão
oficial de al- Makurra ao Islã. O acontecimento é comemorado por uma placa
em árabe, que registra a transformação em mesquita da velha catedral de dois
andares da capital, o que foi oficialmente proclamado por Sayf al- Dn Abdallāh
al- Nāsir no dia 16 Rab‘ I, 717 da Hégira (29 de maio de 1317). O reinado
desse soberano imposto foi, porém, curto. O Kanz al- Dawla conseguiu obter
bom apoio popular tanto entre os núbios como entre as cabilas árabes, o que lhe
permitiu vencer e matar seu rival, o parente afastado escolhido pelo Cairo.
O sultão receava que um soberano de sangue tanto núbio quanto árabe
servisse de eixo a uma aliança mais ampla; por isso procurou impor um novo
governante de sua escolha. Depois da morte prematura desse último, outra
expedição, em 1323–1324, devolveu o trono ao rei Karanbas, que durante o
cativeiro no Cairo abraçara o Islã
8
. O Kanz al- Dawla, porém, expulsou o tio e
retomou o poder. Não sabemos claramente por que razão os Mamelucos não
tentaram nova intervenção.
A sequência da história distica tamm é pouco clara. Evidencia- se, do que
as fontes relatam sobre os acontecimentos de 1365–1366, que a luta interna pelo
poder prosseguiu, marcada por intenso envolvimento árabe. Os Banū Kanz nela
desempenharam importante papel, assim como seus aliados, os Ba‘Ikrima
e os Banū Dja‘d, que tomaram controle de Dunkula. O rei refugiou- se no cas-
telo de al- Daw, em al- Mars, enquanto Dunkula era abandonada, em ruínas.
8 Ibid., p. 120. Este autor se funda na autoridade de Ibn Khaldūn e de al-‘Ayn. É interessante notar
que uma inscrição pia grega, em escrita núbia antiga, encontrada no mosteiro de São Simão em Assuã,
ainda exalta o rei Kudanbes, grande monarca cristão, “presidente dos césares”. Ver também GRIFFITH,
1928.
453
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
As tropas mamelucas, que emissários bios solicitaram ao Cairo, cumpriram
sua miso massacrando os árabes, fazendo prisioneiros nas regiões setentrionais
e obtendo a submissão dos Banū Kanz e dos Ba ‘Ikrima. Os reis bios man-
tiveram al- Daw como local de resincia, enquanto se abandonava a maior parte
de al- Makurra à desordem, privada de qualquer autoridade central. A única refe-
rência ao rei núbio data de 1397, e diz respeito a mais um pedido de ajuda contra
distúrbios internos.
Os últimos tempos do reino bio assim nos aparecem envoltos na obscuridade.
As fontes egípcias calam- se a seu respeito. Outros testemunhos, de proveniência
sudanesa, que são a tradição oral e as genealogias, referem- se apenas ao desen-
volvimento de novos sistemas étnicos às margens do Nilo e em suas proximida-
des, sem demonstrarem nenhum interesse pelo desaparecimento daqueles que
tinham sido os soberanos do país. Os acontecimentos de que temos registro
indicam, pelo menos, que a Núbia jamais foi anexada. As invasões egípcias não
podem ser consideradas como uma tentativa sistemática de destruição ou de
colonização. Tiveram, porém, o resultado de privarem al- Makurra de boa parte
da sua vitalidade e eficácia enquanto Estado organizado. Aludindo à islamização
e arabização da família real, um historiador sudanês escreve que
o reino núbio foi vítima mais de uma subvero interna do que de uma destruição
9
.
Outros autores falam da “subversão da Núbia cristã
10
, da absorção de seu poder
por imigrantes.
Os casamentos mistos foram fator importante na arabização da Núbia. O
sistema matrilinear que vigorava nesse país capacitava os filhos de pais árabes
com mães núbias à sucessão, da mesma forma que lhes dava direito a uma parte
das terras e a outros bens. vimos como funcionava esse processo, quando
examinamos a sucessão política dos Banū Kanz. A gradual conversão ao Islã da
população núbia constituiu outro aspecto desse mesmo processo complexo, que
se desenvolveria em meio à situação visivelmente caótica posterior ao desapa-
recimento da autoridade central.
O conjunto dos testemunhos que resulta dos trabalhos arqueológicos mais
recentes permitiu estabelecer, com seguraa, alguns fatos concretos que se
referem a essa fase de hostilidades
11
. O aumento da insegurança, mais ou menos
a partir de meados do século XII, foi acompanhado pelo desenvolvimento da
9 HASAN, Y. F., 1967, p. 90.
10 HOLT, 1970, p. 328.
11 Ver ADAMS, W. Y., 1966, p. 149.
454
África do século  ao século 
arquitetura de defesa e de implantações residenciais, destinadas a conferir pro-
teção a concentrações maiores de população cristã. O exame dos sítios habitados
revela que se generalizavam certos elementos de construção, para cuja função
a hipótese mais plausível é que visasse proteger os bens e víveres contra os
saqueadores, enquanto os habitantes optavam, provavelmente, pela fuga. Mura-
lhas defensivas externas e torres de atalaia (ver fig. 16.2) são frequentes apenas
na Núbia superior e nos sítios cristãos mais tardiamente ocupados, acima da
segunda catarata. Numerosos vestígios de comunidades cristãs de implantação
tardia foram encontrados em ilhas. As defesas, que nesses estabelecimentos
insulares se dirigem contra a terra firme, assim como as aberturas na direção
sul nas torres de atalaia da região da catarata, parecem indicar que se temia um
inimigo vindo do deserto, provavelmente do sul, que não estivesse habituado às
barreiras aquáticas
12
.
Assim, parece razoável supor que o principal perigo eram os “grupos de
saqueadores do deserto” árabes, na maior parte, talvez também berberes,
Zaghāwa e outros. Assim, por um lado, as fontes de época, que exprimem o
ponto de vista egípcio, fazem- nos imaginar aldeias queimadas, rodas- d’água
destruídas e quantidades de habitantes escravizados por exércitos invasores que
vinham do norte (elas também mencionam a política de terra arrasada, que seria
adotada pelos núbios quando se retiravam face aos invasores); por outro lado, à
luz da arqueologia, vemos que outro perigo era mais importante, mais durável e
mais agudo. Foi esse fator – a penetração dos árabes – que mais contribuiu para
destruir a antiga organização social e política da Núbia, e deflagrar um processo
de transformação cultural de longo alcance.
Alwa
A história de ‘Alwa é ainda mais obscura que a dos últimos dias do cristia-
nismo organizado no reino de al- Makurra. A imagem habitual de reino próspero
deve- se, principalmente, aos relatos de Ibn Sulaym (975) e Abū Sālih; (começos
do século XIII), completados por informações dadas por mercadores muçulma-
nos. Alwa era um bom mercado para a compra de escravos. A descrição de Abū
Sālih mostra o reino em plena prosperidade, contando com 400 igrejas mais ou
menos, inclusive uma vasta catedral em Soba.
12 ADAMS, W. Y., 1966, p. 150, escreve: “Quanto mais descemos em direção ao sul, mais forticações
encontramos, e mais antigas elas se revelam, na cronologia do período cristão”. Ele admite, porém, que
essa armação baseia- se apenas em sua observação pessoal, não sistemática, de sítios cristãos do Batn
al- Hadjar e da Núbia superior.
455
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
Durante o período dos Mamelucos, as referências egípcias a Alwa torna-
ram- se extremamente raras. A única personagem a ser mencionada com fre-
quência foi Adur, soberano de al-‘Abwāb, que várias vezes extraditou reis núbios
foragidos, tentando com isso assegurar as boas graças dos sultões mamelucos. Em
1287, um embaixador do sultão foi enviado a Adur, a pedido deste, em missão
de informação que se prendia a queixas que ele fizera contra o rei de Dunkula.
Em 1290, como observa o mesmo autor medieval
13
, requereu- se ajuda do sultão
contra um inimigo externo, que com toda a probabilidade vinha do sul.
A decadência de Alwa provavelmente seguiu o mesmo padrão da de al-
Makurra. Imigrantes árabes começaram a penetrar em regiões marginais, de
onde terminaram chegando ao coração do país; casaram- se com seus habitantes
e assumiram o controle das pastagens, dissolvendo, dessa forma, o tecido social e
minando a autoridade central. Os ataques de povos negros do sul constituíram
mais uma ameaça que pressionou o potencial do país e seus recursos humanos,
talvez já reduzidos em função do comércio de escravos. Também a Igreja come-
çou a estagnar no isolamento. Na segunda metade do século XV, a degradação
geral permitiu que os árabes se instalassem no próprio centro do país, perto de
Soba. O ponto mais meridional da expansão árabe na Guezira foi a cidade de
Arbadj, fundada por volta de 1475.
Até há bem pouco tempo, foi costume situar a queda de ‘Alwa em 1504, ano
em que se estabeleceu o sultanato funj, com centro em Sennar. Não é necessário,
porém, que os dois acontecimentos tenham se dado simultaneamente, e o existe
razão suficiente para abandonar a tradição antiga, segundo a qual Soba foi tomada
por árabes agindo por conta própria, provavelmente em data anterior
14
. A tradição
que descreve essa expedição afirma que ela foi organizada e dirigida por um chefe,
Abdallāh, alcunhado Djammā‘ (o que rne”), do ramo Kawāsima dos árabes
Rufā‘a. O ataque foi lançado contra a alegada tirania dos reis de Alwa, designados
Anadj. Soba foi conquistada e provavelmente destruída, e seus habitantes foram
obrigados a se dispersar. Os descendentes de Abdallāh também conhecidos
como ‘Abdallābi garantiram sua hegemonia sobre as cabilas mades e os núbios
arabizados, numa extensa região à volta da conflncia dos dois Nilos e mais ao
norte. A capital desses novos senhores foi estabelecida em Kerr, perto da garganta
de Sablūka, que lhes garantia a dominação sobre o curso principal do Nilo.
13 IBN ‘ABD AL- ZĀHIR, 1961, .p. 144- 5, citado por HASAN, Y. F., 1967, p. 13.
14 Ver HOLT, 1960; ver também CHITTICK, 1963b. Segundo este último autor, depois da queda de
Alwa um general cristão se refugiou em Kerr, que pareceria ser a praça- forte a que se refere a Crônica
de ‘Abdūdlābi.
456
África do século  ao século 
A supremacia dos árabes não demorou a ser contestada. Em inícios do século
XVI, apareceu subitamente, na Guezira, nova leva de migrantes, que descia o
Nilo Azul. Eram criadores nômades pagãos, chamados Funj. A sua origem mais
remota suscitou hipóteses tão variadas entre si, como a que os identifica com os
Shilluk e as que procuram seu berço em algum lugar do Bornu ou na Etiópia
setentrional
15
. O estabelecimento de relações entre os árabes e os Funj, a pro-
pósito dos acontecimentos de 1504, é explicado por duas tradições divergentes.
A primeira delas, ainda conservada numa revisão efetuada no século XIX pela
Crônica funj, fala em uma aliança do chefe funj ‘Amāra Dūnkās com ‘Abdallāh
Djammā‘, dirigida contra Soba, enquanto a segunda, que conhecemos graças a
James Bruce, menciona uma batalha entre árabes e Funj travada nos arredores
de Arbadj. Sem a menor dúvida, os dois grupos disputaram os direitos de pas-
tagem na Guezira meridional, assim como a supremacia política.
A vitória e consequente hegemonia couberam aos Funj, enquanto os árabes
Abdallābi retomavam à sua posição subordinada. A supremacia funj, à qual se
associaram os Abdallābi, estendeu- se sobre grande parte do Sudão nilótico e
inaugurou novo período na história do país. O grau de estabilidade política que
então se atingiu facilitou o aumento ulterior do prestígio dos árabes, bem como
a islamização efetiva da Núbia.
O triunfo do Islã
O desaparecimento do cristianismo
A conversão islâmica da Núbia não foi um processo contínuo, que se teria
desenvolvido progressivamente do norte para o sul do país. A propagação do
Islã começou bem antes do período que ora estudamos, prosseguiu segundo
ritmos desiguais nas diversas regiões, e somente se pôde dizer mais ou menos
completada sob os Funj. Os meios que produziram a islamização foram nume-
rosos: a atividade de mercadores muçulmanos, que eram admitidos na Núbia
havia séculos, a infiltração dos árabes, assim como a pressão direta e, mais tarde,
até o oportunismo, que se constata, por exemplo, entre outros fatos, no tratado
de Shakanda e na conversão da casa real de Dunkula.
15 A mais antiga autoridade a defender a “teoria shilluk” foi BRUCE, 1790, que visitou Sennar em 1772.
a “teoria bornu” tem A. J. Arkell como principal defensor. Para uma análise mais pormenorizada a
este respeito, vejam- se os comentários de HOLT, 1963.
457
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
A cristã não desapareceu de um golpe juntamente com o sistema governa-
mental bio: perdurou ainda por muito tempo. Na cada de 1960 descobriu- se,
em Kasr Ibrm, a sepultura de um bispo enterrado com rolos em língua copta e em
árabe, comprovando que a Igreja ainda tinha dignitários em atividade pelo menos
até 1372. É possível que a comunidade cristã se tenha mantido por várias gera-
ções depois dessa data. Nos anos ao redor de 1520, um padre português, de nome
Francisco Alvares, que viajava pela Etpia, contou a um companheiro seu, a quem
chamava Jo da Síria, que existia um ps dos “Nubiis”:
que estivera nesse país e que nele existiam 150 igrejas, as quais ostentavam ainda
crucifixos e efígies de Nossa Senhora, e outras efígies pintadas nas paredes, imagens
estas todas antigas; que o povo desse país não era cristão, nem mouro, nem judeu, e
que ardia de desejo de tornar- se cristão. Essas igrejas situar- se- iam todas dentro de
velhos castelos, dispersos pelo país inteiro, e haveria tantas igrejas quantos castelos
16
.
Alvares também falou em uma embaixada cristã enviada desse país à corte
etíope, para pedir a esta que lhes mandasse padres e monges que ensinassem o
povo – o que o padre João etíope não pôde atender, em virtude de estar subor-
dinado ao patriarca de Alexandria. Até pouco tempo atrás, considerou- se que o
país em pauta fosse Alwa, mas recentemente sugeriu- se que se tratava da região
de Dunkula. A questão continua em aberto; a investigação arqueológica parece
prometer novas descobertas, atestando a persistência prolongada de comunida-
des cristãs locais na Núbia.
No que se refere à cronologia do avanço do Islã, a maior parte dos teste-
munhos, que entretanto não são indiscutíveis, provém da região setentrional.
Provavelmente, as minorias muçulmanas viveram muito tempo em paz com seus
vizinhos cristãos, com quem dividiam a mesma cultura material. A inexistência
de tumbas árabes após a metade do século XI suscitou a hipótese de que pode-
ria haver ocorrido uma perseguição dos muçulmanos pelos cristãos, que parece
corroborada por um depoimento sobre a conversão individual de um muçulmano
ao cristianismo
17
. Esse testemunho, porém, é insuficiente para autorizar uma
conclusão mais precisa.
As violências contra crisos, assinaladas posteriormente e que foram simultâneas
às invasões, devem ter sido atos ocasionais, em vez de resultarem de algum plano
ou mesmo de ódio religioso amplamente difundido. Isso vale para algumas
medidas discutidas em pormenor pelos cronistas, como a conversão da igreja
16 Ver ÁLVARES, F., 1881, p. 351- 2.
17 Ver, por exemplo, ADAMS, W. Y., 1965, p. 172.
458
África do século  ao século 
em mesquita, a prisão e tortura do bispo e o abate dos porcos depois da con-
quista de Kasr Ibrm pelos Aiúbidas. De modo geral, os monumentos cristãos
da Núbia não têm muitos vestígios de violência e destruição, embora alguns
provavelmente tenham sido pilhados pelos beduínos. As fontes escritas não
afirmam, tampouco, que o cristianismo enquanto tal fosse visado pelos ataques.
Como escreve W. Y. Adams,
o povo cristão da Núbia estava preso entre forças muçulmanas, egípcias e mades,
cada uma das quais sentia pelas outras hostilidade igual à que tinha pelos núbios. Se,
afinal, o cristianismo núbio acabou sendo destruído, foi mais por acidente do que
por algum desígnio nesse sentido
18
.
Existiram, porém, importantes causas internas para a debilitação do cristia-
nismo núbio. Segundo opinião corrente, esta era essencialmente uma religião
de elite, sem raízes profundas na massa popular. O culto estava associado, em
18 Ver ADAMS, W. Y., 1966, p. 151.
F . A igreja e o monastério de Faras (Núbia) circundados por forticações árabes, vistos do
leste.
459
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
ampla medida, ao clero copta e a uma cultura estrangeira, excluindo os santos ou
mártires núbios. As inscrições funerárias que encontramos são todas em grego
ou em copta. Nas palavras de J. S. Trimingham, a Igreja núbia
jamais se tornou indígena no sentido em que o Islã hoje o é
19
.
Apesar disso tudo, porém, os afrescos das igrejas nas quais houve escavações
também revelam, às vezes, rostos negros de bispos núbios autóctones. Tampouco
se deve ignorar as inscrições pias em ngua bia, embora a devoção do clero
o constitua um indício seguro quanto à dos camponeses. A persistência de
crenças mais antigas que as cristãs é atestada no relato de Ibn Sulaym (século X),
assim como pela sua continuação no islamismo popular sudanês de nossos dias.
A Igreja núbia era associada ao Estado e a uma cultura urbana elaborada, mas
achava- se isolada quase que completamente da cristandade estrangeira devido a
19 Ver TRIMINGHAM, 1949, p. 76.
F . Muralha da cidadela árabe de Faras, reconstruída com antigos blocos. (Fonte das Figs. 16.2
e 16.3: Michalowzki, 1962.)
460
África do século  ao século 
seus vizinhos muçulmanos. Não deveríamos, porém, ser enfáticos demais a este
respeito. A arte núbia parece indicar contatos com os bizantinos e mesmo, talvez,
com os cruzados
20
. Ao lado do monofisismo predominante e das ligações com
o patriarcado copta, deparamos também com elementos que comprovam ritos
melquitas, mesmo em tempos mais recentes
21
. O isolamento tendia, porém, a
aumentar pelos meados do século XIII; os vínculos com o patriarcado de Ale-
xandria romperam- se, e, provavelmente, não foram mais enviados padres coptas
para a Núbia. Contudo, ainda nos séculos XIV e XV, registro de peregrinos
núbios em sua capela da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, e, mais tarde
que isso, em serviços religiosos na Galileia.
Assim, numa situação que o é fácil de definir, os fatores externos espe-
cialmente uma imigração de massa que dificultava a manuteão de Estados
cristãos independentes – devem ter sido os fatores decisivos para a transformação
religiosa. Com o decnio da Igreja enquanto força social, as conversões ao
Islã, que os poderosos recém- chegados marcaram como um sinal de pres-
gio, generalizaram- se gradativamente em meio ao povo, tornando- se um dos
principais fatores de reintegração social.
A arabização dos núbios
Grande parte das migrações das cabilas árabes em direção à Núbia e ao inte-
rior deste país, assim como as vigorosas combinações dos povos núbios na for-
mação de novos grupos, produziram- se durante o período que ora descrevemos.
O resultado, depois do período obscuro que se seguiu ao desaparecimento dos
Estados núbios, de ter sido uma mesclagem racial em larga escala, na qual
finalmente predominou a adesão à língua e à cultura árabes. A arabização do povo
andou junto, porém, a uma africanização igualmente pronunciada dos imigrantes,
que hoje se evidencia tanto nas características raciais quanto nos traços culturais
dos árabes sudaneses, bem adaptados ao ambiente de seu novo país.
As fontes de que dispomos para um estudo histórico dos movimentos espe-
cíficos que levaram à formação do povo da Núbia setentrional somente podem
ser utilizadas com muita cautela. Compõem- se, principalmente, de lendas e tra-
dições genealógicas, cuja forma atual é de composição recente. Essas genealogias,
20 Os contatos com Bízâncio foram particularmente documentados graças às escavações efetuadas em
Faras pelos poloneses. Também existem vestígios de relações com a Pérsia. Para mais detalhes sobre
estas questões, ver MICHALOWSKI, 1965 e 1967.
21 Isso também foi conrmado pelas escavações de Faras. Sobre o cristianismo núbio, ver KILHEFNER,
1967.
461
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
conhecidas pelos nomes de ansāb ou nisba, foram conservadas pela transmissão
oral (ou, em alguns casos, escrita) como bens de grande valor
22
. É possível
retraçar a um tempo bastante remoto a origem de algumas dessas genealogias.
O autor mais reputado de grande número de nisba é al- Samarkand, figura algo
legendária do século XVI, que teria compilado um livro de genealogias para os
Funj. Essa obra destinava- se a convencer o sultão otomano da legitimidade da
ascendência árabe e islâmica dos núbios, e portanto dissuadi- lo de eventuais
planos hostis contra estes. O mesmo objetivo demonstrar a filiação a um
nobre ancestral árabe – torna suspeitas e indignas de fé numerosas genealogias,
especialmente nas suas partes mais antigas.
De modo geral, os grupos de famílias, desprezando os aspectos quantitati-
vos do parentesco pelo sangue, utilizam suas nisba para se orgulharem de uma
identificação com as antigas cabilas e confederações árabes. Por exemplo, os
Djuhayna históricos alegam ser originários da Arábia meridional (Kahtān),
enquanto os Dja‘aliyyn se dizem da Arábia setentrional (‘Adnān), pretendendo
também descender do tio do Profeta, al- Abbās, sendo portanto aparentados com
a dinastia abássida. Os Funj, por sua vez, dissimularam suas origens por trás de
pretensa e tendenciosa ascendência omíada. Outra alegação muito pretensiosa
apareceu em alguns clãs e famílias de doutores islâmicos, que se apresentam
como sendo Ashrāf, isto é, descendentes do Profeta e de sua parentela próxima.
Infelizmente, as informações suplementares ou as correções que encontramos
nos escritores árabes medievais são fragmentárias e menos impressionantes do
que essas nisba tão sofisticadas.
A descrição dos movimentos de numerosos grupos étnicos não caberia no
quadro do nosso estudo. Sua infiltração, que durante séculos deu- se de maneira
basicamente pacífica, a partir do século XII se desenvolveu, convertendo- se em
migração de massas. Posteriormente, numerosos nomes de etnias, que estavam
entre as mais mencionadas pelos documentos medievais, desapareceram por
completo, enquanto surgiam novas unidades. Nunca devemos esquecer o caráter
fluido dos grupos étnicos, quando considerados num longo período. As rotas
que os árabes seguiam em sua extensa marcha, ora conduzindo grandes reba-
nhos, ora na miséria, são parcialmente identificáveis, graças aos vestígios que
chegaram até nós.
Assim, o sufixo - āb, que aparece com muita frequência nos nomes étnicos a
leste do Nilo, deve- se à “família ou “clã Tu- Bedawie (Bedjaw) e, portanto,
22 A mais rica coleção existente de nisba foi reunida e publicada por MAMICHAEL, 1922.
462
África do século  ao século 
indica a passagem das cabilas pelo território bedja. Esta foi, provavelmente, a
primeira região a sofrer a imigração árabe, que vinha tanto da outra margem
do mar Vermelho quanto do Egito. A terra era pouco favorável à instalação
de grande número de pastores, e assim os contatos entre os Bedja e os árabes,
embora resultassem até mesmo em casamentos mistos, não culminaram em uma
fusão completa. As cabilas árabes dirigiram- se para mais longe, até as planícies
suavemente onduladas do Butāna e o Nilo médio, onde encontraram outros
grupos que desciam da Núbia. Muitos terminaram se instalando na Guezira.
Numerosos grupos de árabes dirigiram- se para o sul, pelo vale do Nilo.
se mencionou que alguns deles participaram, de vontade própria, das expedi-
ções dos Mamelucos. A sua posterior infiltração nas estepes ao sul de Dunkula
deu- se em várias direções. Certos grupos foram para oeste. Wād al- Milk e Wād
al- Mukaddam devem ter- lhes parecido vias cômodas. Para penetrarem no Darfur,
outra possibilidade era constituída pelo Darb al- Arba’n (a rota dos quarenta
dias”), que partia dos oásis egípcios do deserto ocidental.
A maior parte dos grupos núbios de língua árabe pretende, em suas nisba,
pertencer a um desses dois grupos os Dja’aliyyn ou os Djuhayna.
O grupo Dja’aliyyn compreende especialmente os povos sedentários do vale
médio do Nilo e do Kordofan, em particular os Djawābra, Bedayriyya, Shā‘ikya,
Batāhn, Djama‘āb, Djamā‘ya e Djawāmi‘a, além dos Dja‘aliyyn propiamente
ditos, que vivem entre Atbara e a garganta de Sabaluka. Seu ancestral epônimo
comum foi um abássida, Ibrāhm Dja‘al, que pode ter vivido no século XII
ou XIII. Sua alcunha Djaal explica- se segundo a tradição popular de que era o
generoso e hospitaleiro que dizia aos esfomeados: Djaalkum minnā, recebemos- te
entre os nossos”
23
. As nisba que chegaram até nós não são, em todo caso, confveis,
em relão aos tempos anteriores aoculo XVI.
Em seu conjunto, os Dja‘aliyyn eram núbios arabizados e, apesar de alegarem
uma genealogia exclusivamente árabe, na verdade surgiram da mestiçagem entre
árabes e núbios. Sua pátria é a região do Nilo médio, ao sul da quarta catarata, onde
teriam encontrado espo entre os territórios que eno eram controlados pelos
dois reinos cristãos. Os nomes Djama‘āb, Djamā‘ya, Djawāmi‘a sugerem uma
associação etimológica com a raiz verbal árabe djama‘a, reunir”o que mais uma
vez comprova a mestiçagem dos imigrantes árabes, que continuaram a casar- se
com membros dos povos autóctones, fato que as nisba omitem por completo.
Nos começos do século XVI, certos grupos Dja‘al migraram mais para oeste,
até o Kordofan, onde se fundiram nas etnias núbias sem, contudo, perderem o
23 Ibid., v. 2, p. 28 e 128.
463
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
nome nem a consciência de sua identidade Dja‘al. Os casamentos de seu chefe
com as filhas dos poderosos do local são tema constante nas lendas populares
que contam a ascensão dos governos nessa região. Os soberanos dos Takal, nas
montanhas da Núbia, no Darfūr, Wadai e Bornu, assim como os Mussabba‘āt
do Kordofan alegam ter antepassados dja‘al.
Os Djuhayna têm mais direito de se dizerem árabes. Ao contrio dos
Dja’aliyyn, preferiram conservar- se nômades, beneficiando- se das condições
favoráveis oferecidas pelas pastagens do reino então em decadência de Alwa.
Um excessivo espírito de sistematização induziu os genealogistas a incluírem,
erradamente, entre os Djuhayna todos os grupos nômades ou não dja‘al.
Assim, no sentido amplo dessa denominação, atualmente são considerados como
Djuhayna também os árabes do Butāna (Shuki‘yya e Rufā‘a) e os da Guezira
(Kināna e Mesallamiyya), assim como os nômades que criam camelos nas partes
remotas do Kordofan (Kabābsh, Dār Hāmid e Hamar) e os Bakkāra criadores
de gado. Todos alegam descender do mesmo ancestral:Abdallāh al- Djuhan.
A penetração dos árabes no Kordofan provavelmente continuou por perí-
odo mais longo. Já no século XIV, evidencia- se uma penetração para oeste, até
adiante do Darfūr, na savana chadiana. Os pioneiros desse avanço foram os árabes
Djudhām, cujo nome posteriormente caiu em desuso. Os Kabābish parecem ter- se
composto de vários elementos que terminaram por exprimir sua unidade mediante
a invenção de um antepassado epônimo fictício: Kabsh Ibn Hamad al- Afzār.
Kabsh significa carneiro”, o que não deixa de ser simbólico, num meio pastoril. O
irmão de Kabsh seria o ancestral dos Fazāra, cujo nome, frequentemente mencio-
nado nas fontes mais antigas, acabou em desuso após o período mahdista.
O nome genérico Bakkāra (de bakara, vaca”) aplica- se aos grupos de cria-
dores que atualmente têm seu habitat ao sul da principal estrada que corta o
Sudão de leste a oeste. O clima dessa zona não é adequado ao carneiro nem ao
camelo, o que levou os Bakkāra a abandoná- los em favor do gado bovino. Esses
animais, porém, são montados e tratados, de modo geral, da mesma maneira
que os camelos. Imigrantes tardios, provavelmente encontraram as pastagens
do norte já ocupadas e por isso precisaram procurar novo modo de vida. Assim
como fizeram os Kabābish, absorveram alguns dos antigos clãs dos Djudhām.
Sua cor negra escura comprova a que ponto chegou sua mestiçagem com os
povos negróides.
A rota pela qual vieram os Bakkāra não está bem definida. Alguns deles
pretendem que seus antepassados tenham vindo da Tunísia e do Fezzān. Nume-
rosas tradições locais atestam que houve movimentos migratórios, comerciais e
culturais que tomaram esse caminho, seguindo até o Darfūr.
464
África do século  ao século 
Parece que na origem dos Bakkāra esteve a miscigenação dos Djudhām, que
vinham do Nilo, com outros grupos que haviam passado pelo Tezzān e pelo
Chade. Uma tradição das mais vivazes conta que, umas dez gerações, seus
ancestrais partiram para oeste, depois retornaram em direção ao leste, até che-
garem a seu habitat atual. A alegação de laços com os Banū Hilāl pode também
constituir indício de contatos culturais duráveis com a África setentrional, ou
mesmo da presença de pequenos grupos Hilāl entre os povos que se deslocaram
do sul do Egito em direção à Núbia
24
.
Além de árabes, as levas de recém- chegados que atingiam o Sudão nilótico com-
preendiam berberes puros e berberes arabizados, que foram, pom, menos numero-
sos nessa região do que nas situadas mais a oeste. As fontes registram movimentos
de Howara parcialmente arabizados no interior do Egito, entre os séculos XIV e XV.
Pequenas implantações howara encontram- se tanto no Kordofan quanto no Darfūr.
Os movimentos migratórios que teriam como origem o Magreb provavelmente
incluíam, além dos Hilāl e de outros grupos árabes, também berberes arabizados.
As transformações culturais e sociais
A Núbia sempre foi região importante, por estar situada entre as civilizações
adiantadas do Mediterrâneo e as da África tropical. O desaparecimento de seu
governo central e a mudança de religião, ocorrendo em meio à miscigenação
ou aliança em larga escala de grupos étnicos e linguísticos, fizeram novamente
desse país atualmente conhecido pelo nome de República Democrática do
Sudão – uma encruzilhada de influências, todas absorvidas e remodeladas até se
tornarem as partes constitutivas de um conjunto novo e único. A sociedade que
então surgiu apresentava características étnicas e culturais semelhantes, em
muitos pontos, às atuais, que fazem do Sudão uma entidade afro- árabe única,
um microcosmo da África
25
. A primeira consequência da neutralização do poder
estatal deve ter sido o empobrecimento e a diminuição da segurança. Além das
razões históricas evocadas para a queda do padrão de vida, as investigações
modernas aventaram a hipótese de deterioração climática, que se revelou através
da baixa do nível normal do rio Nilo
26
.
As fontes anteriores a esse período manifestam grandes divergências quando
tratam da situação material dos núbios, dividindo- se as testemunhas oculares
24 Ver HASAN, Y. F., 1967, p. 169- 71.
25 Sobre este tema, veja- se especialmente ‘ABD AL- RAHĪM, 1970.
26 Ver HEIZELIN, 1957, p. 320.
465
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
em função de sua origem e partido. Assim, o relato de um enviado aiúbida do
século XII menciona um país pobre que cultiva o sorgo e a tamareira, e é
governado por um reizinho ridículo, enquanto o armênio ‘Abū Sālih menciona
com admiração, pela mesma época, uma cultura urbana elaborada. As investiga-
ções arqueológicas modernas confirmaram essa última opinião, ao mesmo tempo
que aumentaram consideravelmente os elementos de que dispomos para apreciar
a produção artística núbia, em particular os afrescos de igrejas e a cerâmica.
Enquanto a pintura indica inspiração bizantina, a cerâmica seguiu a tradição
meroítica local. Mudanças importantes vieram com o Islã.
Enquanto aguardamos novas revelações arqueológicas, não contamos com
nenhum elemento relativo à situação da Núbia propriamente dita (al- Makurra
e al- Mars) durante o período obscuro que vai da destruição de Dunkula até
o aquartelamento no país de guarnições otomanas, em inícios do século XVI.
W. Y. Adams recentemente formulou a hipótese de que a Núbia média (entre
Maharraka e a terceira catarata), por ser uma região pobre, provavelmente teria
sido abandonada por sua população cristã em fins do século XIII. Depois de
três séculos de nomadismo na zona de chuvas (situada mais ao sul) e de se
converter ao Islã, essa mesma população teria retomado a seu habitat anterior.
Isso bem poderia explicar a estranha diferença que se constata entre as línguas
núbias faladas pelos Mahas, na Núbia média, e as dos Kenūz (mais ao norte) e
dos Danākla (ao sul). Estas duas últimas línguas se revelam estreitamente apa-
rentadas, porém muito diferentes do mahasi que é falado entre os territórios de
ambas. Segundo W. Y. Adams, os povos islamizados que falam kenzi teriam se
infiltrado na zona quase despovoada que se encontra ao sul da terceira catarata,
a partir dos últimos tempos da decadência do reino, impondo assim sua lín-
gua; por sua vez, os Mahas teriam conservado, graças a seu suposto período de
nomadismo, uma língua mais próxima do núbio antigo. Essa hipótese, porém,
não é aceita por todos os especialistas
27
.
De modo geral, parece provável que durante o período mal conhecido da
história núbia, parte considerável da antiga população sedentária se tenha tor-
nado nômade, ou seminômade, devido à diminuição do espaço cultivável. Para
Ibn Khaldūn, que foi contemporâneo do declínio da Núbia cristã, a evolução
do país correspondia exatamente a seu esquema sociológico, no qual a vida
sedentária constituiria o último estágio da civilização, iniciando, a partir daí, a
decadência, a qual ele contrasta com a coragem e a vitalidade dos beduínos. Os
27 Ver ADAMS, W. Y., 1966, p. 153- 5. Quanto a opinião de P. L. Shinnie, veja- se HASAN, Y. F., 1971,
p. 44.
466
África do século  ao século 
acontecimentos núbios também pareciam corroborar sua opinião a respeito da
rápida morte de uma nação vencida.
Depois de descrever a maneira pela qual as cabilas árabes, especialmente os
Djuhayna, provocaram a desintegração do reino e uma situação de anarquia
generalizada, Ibn Khaldūn escreve:
E não resta nenhum vestígio de autoridade central em suas terras, devido às mudan-
ças nelas introduzidas sob a influência da beduinização árabe, por meio de casamen-
tos mistos e alianças
28
.
Apesar do realismo dessa descrição, seria demasiado simplista considerar que a
Núbia tenha vivido uma nomadização geral.
A influência cultural dos árabes e do Islã deu origem a certo número de
inovações que se encontram intimamente ligadas. Algumas delas já foram men-
cionadas, em particular a passagem da organização matrilinear à patrilinear, e
a procura generalizada de uma identidade árabe. A mudança linguística
representada pela adoção do idioma árabe poupou apenas a Núbia propriamente
dita, de Assuã até um limite situado pouco adiante de Dunkula, na direção do
sul; mesmo assim, o bilinguismo alastrou- se também nessa região. Por outro
lado, os dialetos do árabe que são falados em toda a zona situada entre o Bornu
e o rio Nilo denotam marcadas influências africanas.
Os Funj e seus sucessores implantaram as regras islâmicas (sharī‘a) apenas
gradativamente. A posição das mulheres mudou, que se viram eliminadas da vida
pública. Novos hábitos surgiram quanto ao casamento e às demais cerimônias
que marcam os acontecimentos da vida familiar ou social e religiosa.
Desapareceram as artes visuais e a arquitetura da época cristã. Os imigrantes
beduínos, confirmando perfeitamente a opinião de Ibn Khaldūn, faziam pouco
caso das belas artes; nada trouxeram, à Núbia, da delicadeza de gosto e das
técnicas requintadas de seus correligionários das terras centrais do Islã. Desse
ponto de vista, o Sudão não foi mais do que um setor periférico e negligenciado.
Por outro lado, as estéticas africanas autóctones subsistiram, continuando a
manifestar sua presença nas artes menores e no artesanato.
Ibn Khaldūn também afirma que a conversão ao Islã isentava os núbios do
dever de pagarem a djizya. Ignoramos em que medida esse ponto do acordo de
Shakanda foi efetivamente aplicado, se é que o foi. É indiscutível, porém, que as
pessoas que abraçavam o islamismo ficavam a salvo da escravidão. No passado,
as invasões, as entregas determinadas pelo bakt, assim como eventuais presentes
28 IBN KHALDŪN, 1956- 1961, v. 5, apud HASAN, Y. F., 1967, p. 128.
467
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
e as vendas de escravos a mercadores muçulmanos, haviam muitas vezes afe-
tado a própria população núbia, nos períodos em que havia falta de cativos que
praticavam as religiões tradicionais. Assim, a nova situação, caracterizada pela
expansão do dār al- Islām (mundo islâmico), exigia que se fossem buscar terri-
tórios de preação e compra de cativos mais ao sul e mais a oeste. No entanto, é
provável que tenha havido poucas mudanças no emprego da mão de obra servil,
que continuou a desempenhar papel apenas acessório na vida econômica. Além
disso, não dispomos de qualquer indício de que tenha ocorrido alguma alteração
na tecnologia do trabalho agrícola, que se manteve simples.
O desaparecimento do governo central, o empobrecimento da população e a
preponderância do nomadismo constituíram, sem dúvida, sintomas de regressão
social temporária. As estruturas étnicas foram reforçadas, em prejuízo do poten-
cial crescimento de instituições estatais semelhantes às chefarias. Em compen-
sação, os novos sistemas sociais e culturais adquiridos e desenvolvidos durante
e após o período obscuro prepararam melhor os emergentes povos sudaneses
para o ulterior desenvolvimento histórico nessa zona de contato entre as órbitas
culturais árabe e africana.
A Núbia e a África
Os historiadores contemporâneos do Sudão nilótico têm a convicção, firme
e justificada, de que no passado se atribuiu importância excessiva ao fator seten-
trional (isto é, ao árabe), em detrimento tanto dos desenvolvimentos internos
autônomos quanto dos contatos com as culturas negras da África
29
. Este exem-
plo particular de influências recebidas e exercidas pela zona sudanesa suscitou,
desde algum tempo, abundantes especulações.
A natureza específica das informações disponíveis é razão evidente para esse
desequilíbrio. As fontes literárias árabes constituem o conjunto mais importante,
enquanto o trabalho arqueológico apenas começa a dar os primeiros passos.
Contudo, somando- se à exploração das tradições orais e ao estudo comparativo
das instituições, a arqueologia produziu resultados interessantes, especial-
mente ao longo do eixo sudanês leste– oeste. Continuamos, porém, sujeitos a
cometer mal- entendidos, mediante a identificação errônea de nomes locais e
29 HAIR, 1969. A necessidade de amplo reexame dos estudos sudaneses foi um dos fatores que determinaram
a organização da primeira conferência internacional patrocinada pelo Sudan Research Unit de Cartum,
em fevereiro de 1968. Ver HASAN, Y. F., 1971.
468
África do século  ao século 
étnicos que, à primeira vista, parecem semelhantes, ou ainda – devido a outros
tipos de interpretação incorreta de diferentes informações.
No que diz respeito ao Egito, é conveniente insistirmos, uma vez mais, no
elevado grau de independência cultural da Núbia perante as comunidades coptas
do outro país. É claro que os contatos foram estreitos durante muito tempo.
Nos peodos de perseguição, os monges coptas iam procurar regio na Núbia
30
.
Existem, em contrapartida, sinais suficientes da influência núbia sobre o alto
Egito. Os documentos núbios mais interessantes foram encontrados nos mosteiros
coptas. Entre as descobertas feitas no Egito, devem ser citados numerosos cacos
de louça caracteristicamente núbios, do artesanato que é conhecido pelo nome
de “cerâmica de Dongola”. Bastará indicar que temos numerosos testemunhos
literários e arqueológicos da existência de contatos comerciais entre os dois
países vizinhos.
A leste, as atividades da Núbia também resultaram em contatos com o Egito
e os árabes. Pouco sabemos da política núbia em relação aos Bedja, que prova-
velmente não se privaram de efetuar incursões ocasionais nas aglomerações da
região ribeirinha. De acordo com Ibn Khaldūn, alguns deles converteram- se ao
cristianismo. O problema da presença núbia no deserto oriental, porém, ainda
não foi elucidado em seu conjunto.
Graças aos escritores árabes, dispomos de melhores informações quanto
ao comércio no mar Vermelho, que florescia no período que ora nos interessa,
depois que os Fatímidas fizeram dele a principal rota de comércio com a Índia.
Assim foi até a irrupção dos portugueses, em inícios do século XVI. Os portos
mais importantes na costa sudanesa eram ‘Aydhāb e Sawākin, ambos fundados
por mercadores muçulmanos. O comércio entre esses portos e o vale do Nilo
estava inteiramente nas mãos dos árabes; os Bedja, cujo território era percor-
rido por eles, parecem ter cooperado de modo geral, senão sempre. Sua boa
vontade e a segurança das rotas caravaneiras estavam garantidas por tratados
e, em certos casos, pelo pagamento aos chefes locais de parte dos rendimentos.
Na região de ‘Aydhāb, essa participação tendeu a aumentar, da época dos Fatí-
midas até o século XIV, quando Ibn Battūta visitou esse porto, então em plena
prosperidade
31
.
Aydhāb servia, principalmente, ao comércio com o Egito. Os peregrinos que
iam para Meca também usavam o porto, especialmente durante a presença dos
30 A presença de monges coptas é documentada, entre outros elementos, pelas estelas funerárias encontradas
em Ghazāli. Para maiores detalhes, ver SHINNIE & CHITTICK, 1961, p. 69 et seqs.
31 HASAN, Y. F., 1967, p. 73.
469
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
cruzados na Palestina, que representavam sério perigo para o itinerário do Sinai.
Contudo, na segunda metade do século XIV, o desenvolvimento de Djeddah
na margem asiática do mar Vermelho – causou notável declínio na importância
de Aydhāb para o comércio com o Oriente. Isto também se deveu, certamente, à
agitação que era constante no hinterland de Aydhāb. Entre 1420 e 1430, o sultão
Bārsbāy, em represália contra os árabes locais e os Bedja arabizados, desferiu
golpe fatal contra o porto
32
.
Devido à sua posição geográfica, Sawākin provavelmente constituía uma
saída comercial mais importante para a Núbia do que para o vizinho do norte.
A natureza das fontes escritas de que dispomos implica, porém,termos infor-
mações sobre suas relações com o Egito. Em 1264–1265, o sultão Bārsbāy
puniu com uma expedição militar o soberano árabe de Sawākin, mas depois
concordou em nomeá- lo representante local dos Mamelucos. Durante certo
tempo, a submissão do senhor de Sawākin foi simbolizada pela entrega anual
de 80 escravos, 300 camelos e 30 kintār de marfim, isto é, mercadorias tipica-
mente sudanesas, que continuavam muito procuradas no Egito
33
. Em meados
do século XV, Sawākin voltou a ser tomada por um exército dos Mamelucos,
ficando, desde então, diretamente submetida à sua autoridade.
Por mais estranho que isso possa parecer, os conhecimentos que temos das
relações da Núbia com a Etiópia cristã são muito insuficientes. foram men-
cionados alguns contatos isolados, como a missão núbia enviada sem sucesso
à corte etíope, da qual falou F. Álvares. Apesar da escassez de testemunhos,
podemos supor que as relações entre as políticas cristãs da Núbia e da Etiópia
fossem mais estreitas do que se pôde provar. É possível que novas informações
venham a ser descobertas do lado etíope.
Para o sul, o quadro é igualmente obscuro. Não é sequer possível assinalar,
com certeza, até onde se estendiam os limites de Alwa. Os sítios mais ao sul
dessa cultura foram localizados perto de Wad Medani, mas é muito provável
que ela tivesse alcançado uma extensão maior. É igualmente plausível que regiões
situadas nesse lado fornecessem escravos com frequência. Os autores árabes que
escreveram sobre Alwa distinguem os Nuba dos outros negros. Um nome de
etnia citado muitas vezes é Kurs, Kersa ou Karsā
34
. É- nos dito que estes viviam
32 Uma tradição que se referia à destruição de ‘Aydhāb foi registrada por LEÃO, o AFRICANO, 1956, p.
484- 5, por volta de 1526. Note- se que, nesse texto, Aydhāb foi erroneamente mencionada pelo nome
de Zibid ou Zabid. Ver também, sobre a mesma questão, HASAN. Y. F., 1967, p. 81- 2.
33 A informação é de HASAN, Y. F., 1967, p. 85, que se funda na autoridade de al- Nuwayr,
34 Tais nomes são mencionados por Ibn Sulaym, Ibn Hawkal e Ibn Abd al- Zāhir. ARKELL, 1961, p. 195,
sugere que sejam povos do Darfūr ou, ainda, de etnias idênticas aos Maba do Wadai.
470
África do século  ao século 
nus; outra fonte conta que se vestiam com peles e que faziam os espíritos locais
efetuar as colheitas em seu lugar. Outros povos negros, provavelmente nus, que
viviam adiante de Alwa, são mencionados sob o nome de Takunna ou Bakunna
35
.
Ibn Abd al- Zāhir conta- nos que, por volta de 1290, o país dos Anadj – isto
é, Alwa foi atacado por um inimigo. Y. Fadl Hasan supõe que esse ataque
viesse do sul, talvez dos ancestrais dos Funj, enquanto A. J. Arkell sugere que os
invasores se originariam do Kanem ou do Darfūr
36
. Certamente, não eram raros
os ataques vindos do sul. Por fim, registra- se que os Funj avançaram em Guezira,
partindo do sul e acompanhando o curso do Nilo Azul. No conjunto, somos
levados a considerar a hipótese de que pode haver certa relação entre a destrui-
ção da Núbia cristã e o que parece ter sido uma reação em cadeia de movimentos
populacionais em toda a região, que talvez até incluíssem o avanço para o sul de
nilotas que do Nilo superior seguissem em direção aos lagos equatoriais
37
.
Para oeste, é mais fácil determinar os contatos e influências recíprocas. Com
a mesma falta de senso crítico que fazia atribuir à antiga Méroe a difusão da
metalurgia, também a Núbia foi considerada como centro de propagação do
cristianismo até regiões tão remotas como a África ocidental. Essa tese requer
certas reservas, senão completo ceticismo. U. Monneret de Villard recolheu
muitíssimas tradições cristãs da África ocidental
38
, e a ideia de difusão em larga
escala do cristianismo, partindo da Núbia, ainda é sustentada por vários estudio-
sos
39
. Há, porém, numerosas vozes céticas sugerindo que o cristianismo possa ter
adotado outras vias através do Saara – passando, por exemplo, pelo Goraan ou,
ainda, que tenha havido confusões com a influência islâmica
40
.
Na verdade, o problema da influência da Núbia cristã na África ocidental
é um pouquinho mais claro que o da irradiação cultural de Méroe, tão bem
exposto por A. J. Arkell. Indiscutivelmente, a Núbia amadureceu uma civiliza-
ção elevada, que se pode equiparar à dos impérios do Sudão ocidental, e que
podia ser considerada como um modelo sedutor. Não podemos negligenciar,
35 Esses povos são referidos por Ibn al- Fakih e al- Mas‘ūd. Ver HASAN, Y. F., 1967, p. 7. Por sua vez,
ARKELL, 1961, p. 189- 90, aventa a hipótese de que seu nome se tenha conservado nas denominações
dos Djebel Kon do Kordofan, ou dos Djukun da Nigéria,
36 Ver HASAN, Y. F., 1967, p. 137 e ARKELL, 1961, p. 199.
37 Ver o instigante artigo de POSNANSKY, 1971, p. 51- 61.
38 MONNERET DE VILLARD, 1938.
39 Para maiores detalhes, ver HOFMANN, 1968. O tema de uma colaboração bizantina, persa, kisra e
núbia na cristianização da África foi retomado, em seguida a Leo Frobenius, por PAPADOPOULOS,
1966; ver a resenha de sua obra por McCALL, 1968.
40 Ver BECKER, 1913.
471
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
simplesmente, as muitas tradições dos povos da África ocidental a respeito de
sua origem oriental. P. L. Shinnie assim as comenta:
Diante de tal massa de material, que sempre sugere contatos com o leste, não há cabi-
mento em supor que tudo seja apenas ficção e mito. É posvel que tais documentos
contenham elementos de verdade ou, pelo menos, a sugestão de que certas influências
culturais vieram do leste
41
.
Uma vez que é raro essa tradição oral remontar a mais do que uns cinco séculos,
Shinnie propõe que tais influências sejam atribuídas à Núbia medieval, mais do
que a Méroe.
Os escritores árabes forneceram poucas informações a esse respeito. Ibn
Hawkal, no século X, falou numa população ocidental (al- Djabāliyyūn), que
estaria sujeita a “Dunkula”, e de outra (al- Ahādiyyūn), que obedeceria a ‘Alwa.
Viveriam ambas num território de nome Amkal, montando em camelos e usando
armas e sandálias semelhantes às dos ocidentais (Maghāriba), com quem teriam
semelhanças físicas. Essa informação
42
, sem dúvida parcialmente deformada, não
é fácil de se interpretar.
Os sinais materiais de influência núbia sobre o oeste são escassos. Conhe-
cemos uma inscrição em núbio antigo e, mais importantes, estruturas em tijolo
vermelho em Zenkor e Abū Sufyān, na estrada lesteoeste que atravessa o
Kordofan setentrional. A cerâmica de Zenkor assemelha- se à de Soba. Os dois
sítios ainda aguardam que se faça algo mais do que simples levantamento e
coleta superficial
43
. Estruturas de tijolos vermelhos de mesmo tipo encontram- se
mais adiante, no Darfūr e no Chade (sítio de Ayn Galakka) e na direção do
Bornu; o sítio mais ocidental a tê- las é Nguru, ao norte da Nigéria. No Darfūr,
os tios em questão incluem o palácio real de Uri, a umas 560 milhas de
Dunkula. Arkell sugere que um dos lugares visitados em 1287 pelo enviado
do sultão Kalā‘ūn a pedido de Adur lugares cujos nomes são conservados
no texto árabe sem indicação dos sons de vogal bem poderia ser Uri
44
. Em
Ayn Farah, no norte do Darfūr, as ruínas de construções em tijolo vermelho,
identificadas após certa hesitação como sendo um mosteiro e algumas igrejas,
contêm pedaços de cerâmica de origem núbia, dos séculos VIII ao XI, decorada
com símbolos cristãos. As construções foram datadas entre o século VIII e o
41 Ver o artigo de SHINNIE, 1971b, p. 48.
42 Ver IBN HAWKAL, 1938, p. 58.
43 Ver PENN, 1931 e SHAW, W. B. K., 1936.
44 ARKELL, 1961, p. 198.
472
África do século  ao século 
XIII, não com certeza absoluta
45
. Nessa cadeia de sítios análogos, o único que
pode ser datado com uma certa precisão é Birnin Gazargamo, no Bornu, que é
do século XV ou XVI.
Nos sítios chadianos de Koro Toro e Bochianga, a mais de 900 milhas do
Nilo, encontrou- se cerâmica denotando influência núbia e produzida por volta
do ano 1000 da era cris
46
. Ainda não podemos determinar se essas pas
resultam de um comércio com a Núbia ou de uma implantação local. Também
devemos notar que os dois locais apresentam objetos de metalurgia, o que mais
uma vez suscita o problema da difusão dessa técnica partindo do vale do Nilo.
A extensão das relações da Núbia com o Kanem- Bornu e, talvez, com o
Sudão ocidental continua incerta, enquanto esperamos que se proceda a inves-
tigações arqueológicas sistemáticas. A região- chave a ser estudada será o Darfūr,
cuja historiografia relativa ao período anterior ao surgimento da hegemonia
Fūr Kayra (em 1640) ainda é amplamente legendária e conjetural. De modo
geral, só existe acordo quanto ao caráter pacífico da transmissão da hegemonia,
dos Dādju do sul aos Tundjur do norte e, finalmente, aos Fūr
47
. A questão da
origem dos dois primeiros povos e da data de suas respectivas hegemonias
provocou muita especulação
48
. Como ambos viviam em territórios distintos,
é possível que seu poder se tenha exercido simultaneamente, pelo menos por
algum tempo. As genealogias e tradições de que dispomos a seu respeito são
manifestamente falsas, seguindo o princípio bem conhecido da invenção de uma
ascendência árabe.
A maior parte dos esforços de reconstituição da história do Darfūr foi desen-
volvida por A. J. Arkell. Sua hipótese inicial situava a hegemonia tundjur em
1350–1535
49
; contudo, a descoberta de uma influência cristã em Ayn Farah
levou- o a modificá-la
50
. Passou a situar o reino tundjur sob proteção núbia, tendo
45 A respeito de Ayn Farah, ver ARKELL, 1960, bem como NEUFVILLE & HOUGHTON, 1965.
Este último estudo enfatiza as características muçulmanas dos edifícios construídos sobre vestígios mais
antigos.
46 MAUNY, 1963.
47 Para um resumo sucinto de nossos conhecimentos sobre esta questão, ver BALFOUR- PAUL, 1955. Para
um estudo mais pormenorizado, ver LAMPEN, 1950, assim como os trabalhos já citados de Arkell (ver
notas 49 e 50).
48 Quanto aos vestígios do cristianismo encontrados entre os Tundjur, ver MAcMICHAEL, 1920, p. 24-
32 e 1922, p. 66 et seqs. A tradição de sua origem hilāl foi registrada por NACHTIGAL, 1879- 1881
e CABROU, 1912. Por outro lado, porém, Barth conservou outras tradições que mencionam os Hilāl
vindo do Nilo; BECKER, 1913, tenta conciliar essas duas posições.
49 ARKELL, 1936, 1937 e 1946.
50 ARKELL, 1959 e, mais recentemente, 1963.
473
A Núbia, do m do século XII até a conquista pelos Funj, no início do século XVI
seu apogeu entre os séculos VIII e X. A informação fornecida por Ibn Hawkal
deverá ser entendida como um endosso dessa tese? Em todo caso, Arkell faz o
nome tundjur derivar de Makurra, e também vê ligações entre este último nome
e o do sábio estrangeiro das lendas do Darfūr, Ahmad al- Ma‘kūr. Por volta de
1240, pensa ele, o Darfūr foi conquistado pelo grande rei Dūnama, do Kanem,
cujos domínios chegavam até al- Mars, no rio Nilo, que é o ponto mais próximo
da rota desértica Darb al- Arba‘n, A mesma hipótese supõe que se manteve uma
forte influência do Bornu sobre o Darfūr nos 400 anos seguintes, em especial
sob o reinado do may Idrīs
51
.
Existe realmente certa documentação interna de semelhaas entre as
instituições de todos os Estados mulmanos emergentes da savana nilo- chadiana
documentação esta que se pode interpretar como atestando influência do Bornu,
mas não necessariamente como sinal de supremacia política. Tal inflncia parece
notar- se, entre outras coisas, nas divies quadripartites da administração, em certos
traços arquitetônicos e na posição assumida pelas rainhas- es no governo. O último
traço, porém, tamm se encontra na Núbia.
Segundo Arkell, Uri, no norte do Darfūr, foi um centro de dominação de
Tundjur e, mais tarde, do Kanem. Provavelmente, constita importante entreposto
destinado ao corcio de longa distância, no cruzamento do Darb al- Arba‘n com
a rota oesteleste da savana, conhecida esta em árabe pelo nome de tak al- n.
No período que ora examinamos, podemos supor que o comércio por essa via
tenha conhecido altos e baixos, mas não parece provável que ela tenha sido
utilizada para a peregrinação até Meca antes do século XVI. As fontes escritas
nada indicam em contrário. Todo o trajeto conhecido dos peregrinos do oeste e
do sul do Sudão – inclusive as famosas viagens dos soberanos do Mali, Songhai
e Bornu dirigia- se para a costa da África setentrional, passando em seguida
para o Egito e o porto de Aydhāb. A rota terrestre interna, ao longo do cinturão
povoado do Sudão, somente parece ter sido adotada pelas peregrinações bem
mais tarde, após as importantes modificações ocorridas no século XVI. Embora,
por um lado, a invasão marroquina do Songhai e a crescente insegurança exer-
cessem influência negativa sobre as rotas do Saara ocidental, por outro lado
criaram- se condições favoráveis ao uso das rotas no Sudão oriental, graças ao
fim da implantação cristã no vale do Nilo e à ascensão e consolidação do poder
islâmico em Sennar, no Darfūr e no Wadai. O movimento de peregrinos na rota
do Sudão só aumentou, porém, lentamente, sendo preciso esperar muito tempo
51 Ver também o capítulo 10 deste volume.
474
África do século  ao século 
para que tomasse proporções consideráveis
52
. No que diz respeito ao Darfūr,
geralmente se supõe que o Islã apareceu nesse país sob os Tundjur, como religião
de corte, tornando- se realmente popular no tempo dos Fūr Kayra.
O conjunto da região nilo- chadiana foi muito afetado, nesse período, pela
penetração dos povos árabes. O desenvolvimento cultural, comercial e político
que se seguiu não pode ser entendido adequadamente, se não levarmos em conta
os efeitos, cada vez mais notáveis, que sua presença teve sobre os povos suda-
neses. Em 1391, o sultão Barkūk recebeu no Cairo uma carta do rei do Bornu
queixando- se da conduta dos Djudhām e de outros árabes, que atacavam seu
povo e vendiam seus súditos, indiscriminadamente, a mercadores de escravos do
próprio Egito, da Síria ou de outros países. Esse documento, que foi conservado
por al- Kalkashand
53
, é testemunho admirável do alcance que tomavam, nessa
parte do mundo, as relações tanto políticas quanto comerciais.
Da mesma forma que no vale do Nilo embora em menor medida , a
presença dos árabes modificou a carta étnica do espaço nilo- chadiano, reunindo
condições favoráveis para o progresso da islamização e para o desenvolvimento
de novos Estados sudaneses mais a oeste. Dada a total inexistência de fontes
escritas mais antigas, esses novos começos acham- se refletidos nas complexas
montagens de um material legendário muito rico, abundante na região. Uma
exploração arqueológica sistemática impõe- se, para tentar desemaranhá- los.
52 Ver AL- NAQAR, 1971.
53 AL- KALKASHANDĪ, 1913- 1919, v. 1, p. 306 e v. 8, p. 116- 8.
C A P Í T U L O 1 7
475
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
Geograa política do Chifre da África, do século XIII ao
século XVI
A partir do último quarto do século XIII, a geografia potica do Chifre da África
tornou -se extremamente complexa. O Estado mais conhecido da área era o reino
criso, nas montanhas setentrionais da Etpia, que, em 1270, passara das mãos dos
Zagwe às da Dinastia Salonida”. Na época, as fronteiras setentrionais desse
reino estendiam -se aproximadamente, ao sul, até os distritos setentrionais de
Shoa; a oeste, até a região situada a leste do lago Tana e do curso superior do
Nilo Azul; e, a leste, até as bordas do planalto da Etiópia. Mas, afora esse Estado
cristão, existiam na região várias unidades políticas de importância e extensão
variadas. Imediatamente a noroeste do antigo reino zagwe, além do rio Tacazze,
os Falacha (também chamados de “judeus da Etiópia”) parecem ter constituído
um Estado independente, que estava constantemente em luta contra as tentati-
vas de invasão cristã. Parece que o reino de Godjam, mencionado pela tradição,
se localizava no setor montanhoso logo ao sul do lago Tana. E, o que é mais
importante: pelas tradições históricas da região, tudo indica que um Estado
poderoso, conhecido como “o reino de Damot”, teria dominado um vasto ter-
ritório ao sul das gargantas do Nilo Azul. Quase nada se sabe sobre esse reino
africano tão antigo, mas as tradições que o evocam mostram claramente que,
O Chifre da África: os Salomônidas
na Etiópia e os Estados do
Chifre da África
Tadesse Tamrat
476
África do século  ao século 
muito antes do surgimento dos principados cristãos e muçulmanos na região, os
reis de Damot exerciam hegemonia efetiva sobre todo o planalto de Shoa.
Também existiam na área principados muçulmanos estabelecidos ao longo de
toda a costa que vai do arquipélago das ilhas Dahlak, no mar Vermelho, à cidade
somali de Brava, no oceano Índico. A explicação para essa situação geográfica
seria a importância estratégica do litoral para os intercâmbios comerciais entre
o rico planalto da Etiópia central e meridional, a costa da África oriental e as
regiões do golfo de Aden e do mar Vermelho.
Como consequência desse comércio, a partir do século XIII surgiram podero-
sas comunidades muçulmanas, que acabaram por constituir principados e vários
Estados bem organizados, entre os quais destacaram -se, no interior, Shoa, Awfat
(Ifat ), Dawaro, Hadya, Fatagar, Bali e Adal
1
. Apesar de os principais povoamen-
tos da costa Dahlak, Zayla (Zeila), Berbera, Makdashaw (Mogadíscio), Merka e
Brava parecerem ter se imbuído mais da cultura islâmica, foram as comunidades
do interior que se esforçaram com maior constância – e sucesso – para criar um
verdadeiro império muçulmano na parte oriental do Chifre da África.
Povos e línguas
O conhecido historiador italiano Conti Rossini descreveu com precisão a
Etiópia como um museu de populações”. Essa imagem, que reflete as extre-
mas antiguidade e complexidade do quadro étnico e lingstico eope, também é
válida para o Chifre da África como um todo. Além dos grupos congolês -kordofanês
e khoisan, duas outras grandes famílias de línguas africanas, a afro -asiática e a
nilo -saariana, são bem representadas na região. O grupo afro -asiático é o mais
importante em termos de distribuição e interesse, pois falam -se três de seus seis
ramos no Chifre da África o semítico, o cuxítico e o omótico sendo cada um
fonte de dialetos bem diversificados
2
.
Parece evidente que, durante todo o período estudado neste capítulo, a maio-
ria das populões do Chifre da África falava o cutico, que é geralmente
1 Apesar de omitir Adal, AL -‘UMARĪ, 1927, p. 2, cita “sete reinos muçulmanos na Abissínia”: Ifat,
Dawaro, Arababni (outras formas: Arabayni ou Arababn), Hadya, Sharkha, Bali e Dara. Essa lista foi
repetida sem qualquer modicação e nessa ordem por AL -MAKRĪZĪ, 1895, p. 5, que as denomina
“reinos do país de Zayla”.
2 Sublinhamos os termos que servem para classicar as línguas, devido ao fato de os especialistas ainda
estarem longe de um acordo sobre a classicação das línguas africanas.
477
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
F . Mapa da Etiópia e do Chifre da África. (T. Tamrat.)
478
África do século  ao século 
subdividido em cuxítico setentrional (beja), cutico central (agaw) e cuxítico oriental
3
.
Os Beja (Bedja) eram a população que vivia na porção mais setentrional da
região, instalada na área que hoje constitui o norte da Eritreia. Ao sul dos Beja
encontravam -se os povos que falavam vários dialetos de agaw e viviam nas ter-
ras montanhosas do centro e do sul da Eritréia (os Bilin ou Bogos); em certas
partes de Tigre; no país dos Zagwe, em Wag e em Lasta; no país dos Falacha, a
oeste do rio Tacazze; e, finalmente, nas regiões montanhosas de Godjam, ao sul
e sudeste do lago Tana. É bem possível que, nos séculos XIII e XIV, ainda se
encontrassem em Amhara alguns focos de língua agaw. No interior do Chifre
da África, porém, a maior parte das terras era habitada por povos que falavam a
língua e vários dialetos do cuxítico oriental, cujas duas principais subdivisões são o
burji -sidamo e o cuxítico das planícies. Parece que o burji -sidamo se espalhou pelas
áreas que hoje correspondem a porções do sul de Shoa, Arussi, Bali e certas par-
tes do planalto de Harar. Por sua vez, o cuxítico das planícies era falado, ao norte,
nas terras baixas, áridas e quentes, entre as bordas do planalto da Etiópia e o mar
Vermelho, em todo o interior, habitado principalmente pelos Somali, e em certas
regiões da atual Etiópia, ao sul e sudeste do lago Chamo, de cujas imediações
partiram os povos de língua galla, que se dispersaram no século XVI.
Conhecido até recentemente como cuxítico ocidental
4
, o omótico era falado
provavelmente pelos habitantes do sudoeste da Etiópia, entre a parte meridional
das gargantas do Nilo Azul e a bacia do Orno. Embora a maior parte das línguas
bem diversificadas que derivam do omótico estejam concentradas no perímetro
bem restrito da bacia do Orno, a existência das línguas aparentadas, shinasha e
mao, no sudoeste do Godjam e em Welega, respectivamente, parece indicar que
o omótico espalhou -se mais amplamente em todo o sudoeste da Etiópia antes da
dispersão dos Galla no século XVI.
O terceiro ramo do grupo afro -asiático representado na Etiópia e no Chifre
da África é o semítico. Do século XIII ao século XVI, os povos que domina-
vam política e culturalmente a região eram, em sua maioria, de língua semítica.
Conhecidas sob o nome coletivo de etiópio -semíticas, as línguas semíticas da
Etiópia são numerosas e variadas. Antigamente se acreditava que haviam sido
introduzidas no norte da Etiópia, as 700, por imigrantes procedentes do
sul da Abia, mas essa hitese já não parece plausível. Estudos recentes
indicam que sua história remonta a tempos mais antigos do que se supunha.
3 BENDER, 1976.
4 FLEMING, 1964, deu uma contribuição muito importante, ao demonstrar que o omótico, anteriormente
classicado como cuxítico ocidental”, constitui uma família distinta da afro -asiática.
479
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
Hoje, acredita -se que os dois ramos – norte e sul do etiópio -semítico separaram -se
pelo menos três séculos antes da ascensão de Aksum (Axum). Aparentemente, o
esbo da divisão atual dessas línguas começou desde o fim do século XIII. O gueze
(ge’es ou ghées), uma das três línguas etiópio -semíticas do norte, era a língua
literária da Igreja etíope desde o século IV da era cristã e sobreviveu como tal
até hoje, conservando intactas suas formas originais. As duas outras, o tigre e
o tigrinya eram e ainda são faladas nas províncias que foram outrora as mais
importantes do Império de Aksum: a Eritreia e o Tigre. Excetuando -se algumas
comunidades de língua tigre situadas no litoral e no norte da Eritreia, as outras
regiões, habitadas originalmente, nos tempos do Império de Aksum, por povos
de língua tigre e tigrinya, passaram quase intactas para o domínio do reino
cristão da Etiópia, no século XIII da era crista. Em nítido contraste com isso,
muitas línguas e grupos de dialetos que constituem o etiópio -semítico meridional
tiveram evolução histórica bem mais complexa, cujos detalhes são ainda pouco
conhecidos. As últimas tentativas de classificação do etiópio -semítico meridional
distinguem dois ramos principais, batizados de exterior” e “transversal”
5
. Os que
falam etiópio -semítico meridional “exterior” (os Gafat, e os Gurage do centro, do
norte e do oeste) parecem ter sido a ponta -de -lança da expansão semítica na
Etiópia central; durante o período ora estudado, eles conseguiram ocupar um
setor geográfico mais ou menos contínuo entre o curso superior do Awash e
as gargantas do Nilo Azul, na atual Shoa ocidental. Ignoramos o início de sua
história, mas parece certo que estivessem instalados nessa região antes do
estabelecimento da Igreja cristã em Aksum e da expansão da nova religião para
o sul. Acredita -se que alguns grupos permaneceram em guerra contra a Etiópia
cristã até os séculos XIV, XV e mesmo XVI.
As referências mais antigas aos povos de língua etiópio -semítico meridional
“transversal” (amhara, argobba, gurage oriental, harari) também levam a crer que
os próprios Amhara ainda não haviam aderido completamente ao cristianismo
no início do século IX. No entanto, desde esse período começaram a se integrar
ao reino cristão, que acabariam por dominar no final do século XIII, quando do
advento da dinastia dita “salomônida”. É bem mais difícil reconstruir a história
primeva dos outros ramos do etiópio -semítico meridional “transversal” (argobba,
gurage oriental e harari); seus utilizadores parecem ter -se distribuído para o sul
e para o sudeste dos Amhara, e é bem possível que tenham sido os primeiros
elementos das comunidades muçulmanas que se expandiram e se desenvolveram
5 BENDER, 1976.
480
África do século  ao século 
em Shoa, em Awfat
6
e, com certeza, também em Fatagar e em Dawaro. É
importante observar que a antiga cidade fortificada de Harar e suas imediações,
onde hoje se fala o harari e o argobba, constituíram o novo centro político dos
príncipes muçulmanos Walasma, exilados de Awfat quando seus antigos domí-
nios – como veremos mais adiante neste capítulo – foram finalmente anexados
pelos cristãos, no final do século XIV.
Além desses ramos do etiópio -semítico, assim distribuídos pelo interior da
Etiópia, de um extremo ao outro do longo corredor que liga as montanhas da
Eritreia à bacia inferior do Awash, falava -se também o árabe: era a língua reli-
giosa e comercial de todas as colônias do mar Vermelho, do golfo e do oceano
Índico, das grandes vias comerciais e dos mercados importantes do interior; aliás,
em vários sítios foram encontradas sepulturas com inscrições em árabe.
Os principados muçulmanos do litoral
Além do reino cristão da Etiópia e de alguns dos principados muçulma-
nos mais poderosos, quase nada se sabe a respeito dos numerosos Estados que
certamente existiram na região, no final do século XIII. Os velhos Estados
africanos – Falacha, Godjam, Damot –, assim como o grande número de povos
islamizados do litoral e interior do Chifre da África, aparecem na história
da região quando militarmente submetidos por vizinhos mais poderosos, cris-
tãos ou muçulmanos. Como o objetivo deste capítulo é revelar, na medida do
possível, a interação dessas várias entidades políticas, convém sublinhar desde
que os dados de que dispomos para reconstituir a história política e cultural
das populações do Chifre da África concernem apenas à Etiópia e aos Estados
muçulmanos mais poderosos, como os sultanatos de Awfat, Dawaro, Adal e
Dahlak. De modo geral, a história local desses antigos Estados foi bastante
negligenciada. Muitas pesquisas linguísticas e arqueológicas seriam necessárias
para se poder afirmar algo sobre a dinâmica cultural e política desses povos.
Embora no estado atual de nossos conhecimentos pareça difícil fixar linhas
amplas e características estruturais para a evolução de grande parte dos povos
do Chifre da África durante o período, a exploração de algumas fontes árabes
permite montar um quadro sucinto dos rios principados muçulmanos do
litoral, que surgiram em função do comércio e que eram mais ou menos bem
conhecidos e frequentados por mercadores e negociantes árabes.
6 CERULLI, 1941, v. 1, p. 32 -4.
481
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
Situadas além do limite setentrional extremo do Chifre da África, as ilhas
Dahlak, que dominam o canal de Masawah, constituem, com as ilhas Farsan,
localizadas no litoral da península Arábica, uma ponte virtual entre o Iêmen e
a costa da Eritreia e também escala importante nas relações norte –sul do mar
Vermelho. desempenhavam esse papel desde a Antiguidade, e muito cedo,
no século VII da era cristã, os muçulmanos ocuparam a maior dessas ilhas
Dahlak al -Kabr –, utilizando -a como local de exílio e prisão nos reinados dos
califas omíadas e abássidas, antes que ela caísse em mãos da Dinastia Zabid, do
Iêmen, no século IX
7
.
Aproveitando as dissensões internas do mundo muçulmano no século XIII,
da era cristã, o arquipélago pôde recobrar sua independência e constituir -se
em emirado. Engajando -se no comércio e na pirataria, conseguiu neutralizar
as ameaças dos Mamelucos do Egito, através de uma diplomacia ativa e uma
política eficaz de alianças oportunistas com os próprios Mamelucos contra as
tendências hegemônicas dos soberanos iemenitas e etíopes. Essa política dos reis
de Dahlak foi frutífera, pois parece que o arquipélago ainda era independente
quando da chegada dos portugueses, no início do século XVI
8
.
Graças a Ibn Battūta – que percorreu toda a costa oriental da África, desde
o litoral egípcio do mar Vermelho até Kilwa –, dispomos de detalhes sobre a
região entre Zayla e Makdashaw (Mogadíscio) no século XIV
9
. Segundo esse
autor, a cidade de Zayla era habitada por uma comunidade negra, os Barbara,
certamente os mesmos Barabin (isto é, os Somali) mencionados por Yākūt
10
. A
cidade estava ativamente engajada no comércio, na criação de camelos e ovelhas
e na pesca; a atmosfera reinante era a de uma grande conurbação, que enfrentava
problemas de urbanização e limpeza.
Makdashaw era uma grande metrópole comercial. A crião de ovinos permitia
que seus habitantes fabricassem
o tecido cujo nome é o mesmo dessa cidade, e que não tem rival. De Makdashaw, é
exportado para o Egito e para outras regiões
11
.
Eles também cultivavam bananas, mangas, legumes, além de arroz, base da
alimentação. O porto da cidade era frequentado por numerosas embarcações,
7 Sobre as ilhas Dahlak, ver Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 2, p. 90 -1.
8 Ver WIET, 1951 -1952, p. 89 -95.
9 Ver IBN BATTŪTA, 1922 -1949, v. 2, p. 179 -91, e 1966, p. 22 -6.
10 YĀKŪT, 1866 -1873, v. 1, p. 100; v. 2, p. 966; v. 4, p. 602.
11 IBN BATTŪTA, 1966, p. 23.
482
África do século  ao século 
acolhidas à entrada da barra por uma flotilha sunbuk de pequenas embarca-
ções –, certamente utilizada tanto para a pesca quanto para o transporte a curta
distância de mercadorias nas imediações da cidade. Esta é descrita como uma
comunidade bem civilizada, onde a sociabilidade e hospitalidade características
do mundo do comércio eram altamente desenvolvidas. Uma importante aris-
tocracia, formada por comerciantes poderosos, jurisconsultos e funcionários do
sultão, dominava -a. O próprio sultão xeque, segundo o testemunho de Ibn
Battūta encontrava -se no topo de sólida organização, criada, com certeza, pela
necessidade de se garantirem as melhores condições de troca possíveis. Temos
poucas informações sobre a evolução política da dinastia e sobre a classe política
durante este período, mas tudo indica que a corte do sultão da cidade contava
com vários vizires, com funções administrativas precisas.
O autor não nos informa sobre a língua local, que coexistia com o árabe
nesse mundo cosmopolita; mas ela atesta toda a força das estruturas culturais
africanas, embora com o progresso da islamização o ensino do Corão fosse bem
desenvolvido. Ibn Battūta insiste bastante no grande número e na forte presença
dos talaba (propagadores), e na preponderância do rito shafiita entre o povo.
Os geógrafos árabes também nos informam sobre três outras cidades comer-
ciantes do litoral somali do Chifre da África: Berbera, Merka e Brava. Ber-
bera, era, de fato, bem conhecida na Antiguidade como porto importante. A
cidade e o interior dessa região urbana foram bem descritos no Périplo do mar
da Eritreia de Hannon, e também por Ptolomeu e por Cosmas Indicopleustes.
Sua importância certamente não foi menor na época que ora estudamos, pois
o topônimo serviu para denominar, durante muito tempo, o golfo de Aden,
chamado indiferentemente pelos próprios geógrafos árabes de mar ou golfo de
Barbara”. De acordo com esses geógrafos, os Berābir que habitavam o país (e
que, como a maioria deles apontou, não são os berberes), eram bem diferentes
dos Swahili (Waswahili) e abissínios. Temos bons motivos para pensar que se
tratasse dos Somali
12
. Também no plano político, Berbera parecia ligada, em
sua evolução, a outras comunidades muçulmanas da região, principalmente a
Zayla, relativamente próxima, e ao sultanato de Adal, entre os séculos IX ou X
e o século XIV da era cristã.
Situadas no outro extremo do Chifre da África, as cidades de Merka e Brava
parecem ter pertencido ao império comercial de Mogadíscio e de sua flotilha,
o que se explicaria, em parte, pela redistribuição e pela existência de circuito
12 É necessário frisar que a palavra somali aparece pela primeira vez no início do século XV num hino
etíope, que data do reinado de Negus Isaac. Ver Encyclopaedia of Islam, nova ed., v. 1, p. 1172 -3.
483
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
comercial nada negligenciável. Estaríamos, então, diante de uma rede relati-
vamente densa de trocas entre Mogadíscio e esses dois portos, que eram bem
menos importantes para o comércio inter -regional.
As diversas comunidades muçulmanas eram peças -chave do que And
Miquel chamou de tabuleiro de xadrez comercial”. Sua importância estava
intimamente ligada à existência de um vasto interior, rico e ativo.
Os Estados cristãos e muçulmanos perante as
comunidades de religião africana tradicional
O desenvolvimento de vias comerciais que saíam do golfo de Aden em dire-
ção ao interior do Chifre da África foi, desde o século X da era cristã, um dos
elementos essenciais da história de todos os povos da região. Mesmo quando
foram objeto de discórdia entre as principais potências da região, que disputa-
vam seu controle, as vias contribuíram para todo tipo de interação entre as popu-
lações locais, de cultura, religião e língua diferentes. Grupos vindos de quase
todos os pontos do país tiveram papel mais ou menos importante na evolução
econômica e política iniciada com a abertura dessas rotas, principalmente na
época que ora estudamos, quando houve movimentos prolongados de expansão
e conquista dos principais Estados cristãos e muçulmanos. A partir de meados
do século XIII, até mesmo o reino cristão dos Zagwe, no norte da Etiópia, havia
deixado de considerar o sultanato de Dahlak como sua única saída para o mar
Vermelho e começou a utilizar a rota de Zayla, que passava por suas províncias
meridionais. Essa mudança capital na importância econômica de Zayla pode ser
considerada fator determinante, não apenas para a emergência de Awfat como
o Estado muçulmano mais importante entre o golfo e o planalto de Shoa, mas
também para o deslocamento gradual, em direção ao sul, do centro político da
Etiópia cristã, o que resultou no advento da Dinastia “Salomônida”.
Yekuno -Amlak, fundador da nova Dinastia “Salomônida”, era um dos chefes
locais de Amhara de cuja origem e início de carreira pouco sabemos. No entanto,
as tradições identificam -no unanimemente como o homem que pôs fim à Dinastia
Zagwe, em 1270. As eternas polêmicas entre os soberanos zagwe e os salonidas”
dominam os anais da época: boa parte da hisria de Yekuno -Amlak foi forjada, de
forma a legitimar seu advento como se fosse a restauração da antiga Dinastia “Salo-
nida de Aksum. Essa concepção eclipsou um pouco as razões de ordem prática,
que parecem explicar melhor o sucesso de Yekuno -Amlak e de seus partidários.
Havia muito que as colônias cristãs das províncias mais meridionais do reino de
484
África do século  ao século 
Zagwe estavam integradas à vasta rede de relações comerciais com os principados
mulmanos distribuídos entre o golfo de Aden e o planalto de Shoa. Toda a região
do alto e dio Awash era uma zona fronteiriça, onde cristãos, muçulmanos e
comunidades de religião tradicional vinham interagindo havia três séculos.
A região parece ter feito parte dos domínios do famoso “rei de Damot
mencionado por Ibn Khaldūn
13
a quem as tradições cristãs atribuem papel predo-
minante no século XIII. Conhecido nessas tradões pelo nome de Motelami, o rei
de Damot era um monarca pagão; a existência de colônias cristãs e muçulmanas
no planalto de Shoa, ao norte do alto Awash, sempre dependia de sua boa von-
tade. Esse quadro de relações entre as comunidades de crença tradicional e seus
vizinhos cristãos e muçulmanos começou a tomar forma, o mais tardar, entre os
séculos X e XI, quando cristãos procedentes do norte da Etiópia e mercadores
muçulmanos do golfo de Aden estabeleceram suas respectivas comunidades
nessa área. No século XII, por ocasião do renascimento da Etiópia cristã sob o
domínio dos Zagwe, os cristãos parecem ter se tornado mais confiantes e até
mesmo ter pedido que os Zagwe interviessem em seu favor. Provavelmente a
tradição zagwe se refere a esse fato, quando evoca uma expedão contra Damot
14
.
A expedição foi um fracasso: além de Damot o cair sob o domínio do rei
zagwe, este e muitos outros cristãos perderam a vida no campo de batalha. A
ascendência zagwe sobre as comunidades cristãs parece ter -se reforçado nessa
época, e os cristãos da área passaram a se considerar súditos dos reis zagwe. Suas
relações com as províncias cristãs de Amhara e, mais ao norte, as de Angot e
do Tigre intensificaram -se.
Muitos dos colonizadores cristãos de Shoa estavam envolvidos no comércio
de longa distância com o Tigre, ao norte. Segundo antiga fonte que se refere
ao século XIII, os negociantes iam ao Tigre buscar sal, que trocavam em Shoa
por cavalos e mulas
15
. Isso parece, então, indicar que os cristãos estabelecidos na
época na região que hoje é Shoa setentrional, embora fossem em número relati-
vamente pequeno, haviam conseguido uma fatia importante do comércio interno
do planalto da Etiópia, ao norte do alto Awash. Também praticavam a agricultura
mista, e tradições bem antigas apresentam alguns deles como prósperos fazen-
deiros, com grandes famílias e, inclusive, certo número de escravos. Espalhados
por vasta área, organizavam -se em pequenas chefarias que parecem ter sido,
originariamente, tributárias dos reis de Damot. Essas colônias muito dispersas
13 IBN KHALDŪN, 1852 -1856, v. 2, p. 108.
14 CONTI ROSSINI, 1904, p. 22 -6.
15 TAMRAT, 1972a, p. 82.
485
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
tinham forte sentimento de sua identidade comum e de sua interdependência; no
apogeu da soberania zagwe em Lasta, parecem ter constituído, com seus vizinhos
de Amhara, uma província cristã maior, na região do atual Wello.
Ao lado desses cristãos viviam famílias muçulmanas estabelecidas nos contra-
fortes orientais do planalto de Shoa. Como as duas comunidades haviam sido, a
princípio, submissas aos reis de religião africana tradicional da área, é provável
que seus territórios não tivessem delimitações bem definidas. Da mesma forma
que os cristãos, os muçulmanos tinham sentimento bem vivo de sua identidade e
compartilhavam a crença que atribuía a fundação de suas comunidades a árabes
de Meca
16
. No século XIII, porém, formaram certo número de entidades políti-
cas independentes e concorrentes, que tendiam a ir aos poucos se libertando da
tutela do rei de Damot. Uma delas, o “sultanato de Shoa”, compreendia muitos
principados rivais dominados por pequenos grupos de linhagem, originários de
um mesmo ancestral árabe. Talvez a região mais tarde conhecida pelo nome
de Fatagar também fizesse parte desses povoamentos tão intimamente ligados.
Outra comunidade muçulmana importante era Awfat, que adquiriu notoriedade
sobretudo no século XIII. Desde sua implantação, cada um desses povoamen-
tos tinha sido reforçado por um número crescente de conversões locais ao Islã.
Segundo a análise linguística dos nomes de monarcas e os relatos de al -‘Umar,
a maior parte da população das comunidades muçulmanas e cristãs, pelo menos
em Shoa, falava o etiópio -semítico
17
.
Assim como seus vizinhos cristãos, esses muçulmanos gozavam de vida rela-
tivamente confortável, baseada não apenas na agricultura mista, como também
muito mais do que entre os cristãos no comércio de longa distância. Nesse
campo, os árabes levavam vantagem, pois as rotas de caravanas entre o golfo de
Aden e Shoa atravessavam áreas onde o Islã predominava desde o século XIII.
Eles controlavam, assim, com firmeza, o comércio internacional. No entanto,
para poderem levar o comércio mais para o interior e até o centro do reino
zagwe, tinham de contar com a cooperação dos cristãos de Shoa e Amhara, que
parecem ter atuado como intermediários e garantido etapas de pouso, na ida
e na volta, nos planaltos cristãos. Essa interdependência criou interesses forte-
mente solidários entre as comunidades cristãs e muçulmanas da região. Gra-
ças à importância crescente do porto de Zayla, no golfo, como principal saída
comercial da Etiópia central, essa associação tornou -se cada vez mais estreita
e lucrativa. Apesar de estarem conscientes de suas respectivas identidades,
16 CERULLI, 1931, p. 43; 1941, p. 15 -6.
17 AL -‘UMARĪ, 1927, p. 1 -2.
486
África do século  ao século 
existia um espírito de mútua tolerância entre os dois grupos, de forma que,
provavelmente, nenhum conflito maior no plano religioso atingiu essas zonas
fronteiriças durante aqueles tempos tão remotos.
As vésperas da ascensão de Yekuno -Amlak ao poder, portanto, tudo parece
indicar a importância das comunidades criss de Amhara e Shoa como interme-
diárias comerciais entre as áreas muçulmanas e o resto do reino zagwe no norte. A
cooperação econômica com os comerciantes reforçava sua inflncia tanto na corte
dos Zagwe quanto no resto das terras cristãs. Tem -se a impressão de que, antes de
se consolidar definitivamente como novo monarca da Etpia cristã, Yekuno -Amlak
constituiu lidas alianças tanto com os crisos quanto com os mulmanos de Shoa.
É significativo que as tradões mais verosmeis relativas a Amlak sublinhem o papel
de seus guerreiros”, vindos de vários distritos de Shoa setentrional
18
. Além disso,
numa carta a Baybars, sultão do Egito (1260 -1277), ele declarava ter numerosos
cavaleiros muçulmanos em seu exército
19
. Numa das raras pinturas representando
o novo monarca, ele aparece num trono elevado e cercado, segundo a legenda da
tela, por mulmanos e escravos”
20
. Tudo isso parece indicar que, bem mais do
que a legitimidade de sua pretensão de restaurar” a Dinastia “Salomônida do
antigo Aksum, foi sua posição econômica, potica e militar de destaque que capa-
citou Yekuno -Amlak a depor o soberano zagwe
21
. A principal conseqncia de seu
sucesso foi a transferência do centro da Etpia cris para o sul, para Amhara e
Shoa. A partir dessa época, o reino poderia participar mais diretamente do rápido
desenvolvimento do corcio entre o golfo e o interior da Etiópia.
O reino da Etiópia sob os Salomônidas
Os primeiros tempos da dominação “salomônida” foram muito difíceis, pois
a nova dinastia teve de consolidar tanto sua autoridade dentro do reino cristão
quanto suas relações com os povos vizinhos. Dois dos problemas mais incômo-
dos eram: primeiro, a instauração de regras coerentes de sucessão ao trono e,
18 PERRUCHON, 1893, p. 368; CONTI ROSSINI, 1922, p. 296 -7.
19 MUFADDAL, 1973 -1974.
20 WRIGHT, W., 1877.
21 Esse poder foi certamente observado por Marco Polo e rios geógrafos e cartógrafos da Europa
mediterrânica da época. POLO, 1955, p. 292 -3, em suas descrões das guerras entre Yekuno -Amlak e
os principados muçulmanos, nota que os abissínios “são considerados os melhores guerreiros de toda a
província”. Essas informações diversas seriam retomadas e ampliadas em toda a cartograa mediterrânica
da época. Ver FALL, 1978, p. 300 -10.
487
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
segundo, a elaboração de política eficaz para as relações islâmico -cristãs, tanto
no interior da Etiópia quanto no resto do Chifre da África. O problema suces-
sório foi resolvido com a criação de uma nova instituição no monte Geshen,
que a partir desse período ficou conhecido pelo nome de montanha dos reis”.
Todos os descendentes varões de Yekuno -Amlak, exceto o monarca reinante e
a progênie direta, ficavam detidos nos cumes inacessíveis da montanha, cujos
desfiladeiros e contrafortes eram vigiados por rias centenas de guerreiros
incorruptíveis. Ali os príncipes eram tratados com todas as honras devidas aos
membros da família reinante e, dentro dos limites do monte Geshen, gozavam
de todo o tipo de cortesias. Isolados do mundo exterior, e efetivamente privados
de qualquer relação social ou política verdadeira com o resto do reino, a maior
parte dos príncipes dedicava -se a estudos religiosos nos quais eles exceliam
e destacava -se por suas criações poéticas em língua gueze e composições de
música sacra. Quando o monarca reinante morria sem deixar herdeiros entre
os parentes imediatos, escolhia -se um príncipe do monte Geshen, que subia ao
trono. Assim, a montanha dos reis” representava um engenhoso instrumento
constitucional que contribuiria, por todo o período estudado neste capítulo, para
garantir a estabilidade e continuidade do reino cristão.
Mas tarefa bem mais árdua era estabelecer relações harmoniosas com as colô-
nias e grupos muçulmanos cujo poder estava aumentando da rego entre o
golfo de Aden e o vale do Awash. Durante os primeiros 50 anos da hegemonia
salomônida”, as relações entre cristãos e muçulmanos atingiram um ponto de
equilíbrio forçado; foi somente durante o reinado decisivo do enérgico Amde
Tsion (1314 -1344), neto de Yekuno -Amlak, que o reino cristão, pouco a pouco,
estendeu sobre a região o domínio militar, que se manteve durante todo o período
aqui enfocado. Na época da ascensão de Amde Tsion ao trono, a Etiópia passava
por grandes dissensões internas. Seu território limitava -se às antigas possessões
zagwe, com algumas anexações sem importância na região de Shoa. Reinava a
insegurança por toda parte, tanto nos sultanatos muçulmanos do leste e sudeste,
como nas comunidades judaicas (Falacha) e naquelas em que se praticavam as
religiões tradicionais, que se estendiam do noroeste até o sudoeste e o sul. Amde
Tsion, monarca guerreiro por excelência, não tardou em atacar, metódica e pes-
soalmente, cada um desses problemas. Ignora -se a cronologia exata de suas pri-
meiras campanhas, mas o próprio rei nos conta, num ato de conceso de terras,
que empreendeu expedições contra os chefes reinantes de Damot e Hadya, de
1316 a 1317, e, pouco após, contra Godjam. Também é provável que a região ao
norte do lago Tana, cujos habitantes mais conhecidos eram os Falacha, tenha sido
anexada pela primeira vez nessa época. Todas as campanhas foram vitoriosas, e
488
África do século  ao século 
as zonas que mencionamos foram integradas ao reino cristão. A conquista dessas
províncias no interior dotou Amde Tsion de grandes reservas humanas para seu
exército e garantiu -lhe o controle completo sobre os terminais das rotas comerciais
provenientes do golfo de Aden. Assim o rei se encontrou em posição de superio-
ridade para se impor ao conjunto de comunidades muçulmanas, distribuídas entre
o golfo e o vale do Awash. Além de Awfat, que se tornara o principado islâmico
mais importante desde o reinado de ‘Umar Walasma, os centros de população
muçulmana de Dawaro, Sharkha e Bali viviam essencialmente do comércio com
países longínquos, praticado na região que Amde Tsion acabava de tomar.
Essa nova sujeição ecomica ao rei criso, cujos efeitos começaram a se fazer
sentir, parece ter criado na maioria dos meios muçulmanos um clima de mal-
-estar e hostilidade contra o conquistador. Entre essas comunidades, a de Awfat
adquirira preeminência política e militar durante o reinado de ‘Umar Walasma,
contemporâneo de Yekuno -Amlak. Alguns anos antes de 1332, Amde Tsion
queixava -se de que a liberdade de circulação de seus ditos tinha sido restrin-
gida por Ak al -Dn, neto de ‘Umar Walasma, pois dizia -se que um deles havia
sido capturado e vendido como escravo pelos muçulmanos. O incidente foi um
pretexto para a invasão de Awfat e suas possessões pelo exército cristão. A cidade
foi saqueada e o sultão morto durante a batalha. Apesar de seu filho Deradir ter
corajosamente continuado a lutar, com o auxílio de pastores muçulmanos das
planícies a leste de Awfat, toda a resistência foi aniquilada. Pela primeira vez em
sua hisria Awfat foi reduzida, pelas os de Amde Tsion, a Estado triburio, com
guarnições militares dos conquistadores ocupando posições -chave no território. A
partir d, os outros grandes principados apressaram -se em negociar a paz com Tsion
e diz -se que pelo menos dois deles, Dawaro e Sharkha, fizeram tratados de amizade
com o rei cristão. A vitória militar sobre Ak al -Dn assumiu, assim, todo o seu
significado; e, graças à conquista anterior dos principados de religião tradicional
de Hadya, Damot e Godjam, o rei Amde Tsion encontrou -se, em menos de dez
anos de reinado, à frente de um reino cristão acrescido de área enorme.
Mais adiante examinaremos a estrutura administrativa por meio da qual o
rei manteve sob seu firme controle e governou de maneira eficiente império tão
vasto. Mas é preciso notar que as revoltas contra Amde Tsion eram frequentes,
não nas províncias recém -anexadas, como também em outras regiões mais
bem integradas ao reino. Por volta de 1320, por exemplo, Tsion teve de reprimir
um levante local dos cristãos ao norte da província do Tigre; pouco depois, ele
parece ter empreendido campanha até a costa da Eritreia
22
. Mas as rebeliões mais
22 TURAIEV, 1906, p. 53; TAMRAT, 1972a, p. 95 -6.
489
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
graves enfrentadas pelo monarca ocorreram em 1332: várias regiões bem distan-
tes umas das outras se levantaram simultaneamente, o que levou às suas famosas
conquistas daquele ano. As operações militares e anexações de 1332 estão bem
documentadas
23
. Resultaram, em resumo, principalmente na redução dos grandes
principados muçulmanos de Awfat, Dawaro, Sharkha e Bali ao estatuto mais
severo de Estados tributários, e ao reforço da posição militar dos cristãos em todas
as frentes. A partir dessa época, a fama dos feitos de Amde Tsion espalhou -se
pelo Oriente Médio, e al -‘Umar, seu contemporâneo, escreveu sobre ele:
Diz -se que 99 reis em suas mãos, e que ele completa a centena.
Apesar de essas cifras serem com certeza fantasiosas, al -‘Umar incluía expli-
citamente entre os Estados tributários de Amde Tsion os que denominava “os
sete reinos muçulmanos da Etiópia”, entre os quais estavam Awfat, Dawaro,
Sharkha e Bali
24
.
Os Estados muçulmanos da Etiópia
O vasto império formado por Amde Tsion e governado por seus descenden-
tes, sem muitas anexações territoriais, até o século XVI, não constituía, porém,
um Estado unitário. Podemos considerá -lo, no máximo, como uma confederação
bastante frouxa de grande número de principados, diferentes nos planos reli-
gioso, étnico e linguístico, cuja coesão dependia principalmente da supremacia
do poder central.
Toda vez que a autoridade da corte relaxava, mesmo que apenas um pouco, os
vassalos sentiam -se tentados a readquirir a independência. Durante grande parte
do período que ora estudamos, a maioria dos principados continuou a ser admi-
nistrada por seus príncipes hereditários, sob a autoridade suprema dos imperadores
crisos. A melhor descrição das relações entre os reis cristãos e os príncipes vas-
salos dos territórios recém -anexados, na época, é novamente de al -‘Umar:
Apesar de todos os soberanos desses reinos transmitirem seu poder com base na
hereditariedade, nenhum tem autoridade efetiva, se esta não lhe tiver sido investida
pelo soberano de Amhara. Quando um desses reis morre e ainda varões em sua
família, estes vão ao soberano e empregam todos os meios possíveis para obter seus
23 PERRUCHON, 1889, p. 271 -363, 381 -493.
24 AL -‘UMARĪ, 1927, p. 25 -6.
490
África do século  ao século 
favores porque é ele [ ... ] quem detém a autoridade suprema, e, diante dele, não
passam de lugares -tenentes
25
.
Ao escrever essas linhas, al -‘Umar tinha em mente os Estados tributários
muçulmanos, mas a descrição reflete a organização característica do império
cristão da época. O grande exército, que os imperadores cristãos sempre man-
tiveram como símbolo de poder, era indispensável para garantir a submissão
permanente dos territórios vassalos. Guarnições imperiais estavam frequente-
mente estacionadas nas províncias, principalmente nos primeiros tempos que
se seguiam às conquistas. Eram comandadas por uma hierarquia de dignitários
nobres que agiam sem consultar os príncipes hereditários locais, e permane-
ciam estreitamente ligados à corte imperial. Como regra geral, os soldados das
guarnições que ocupavam os territórios recém -conquistados eram recrutados
em outras regiões, entre populações de raça e língua diferentes: dessa forma se
reduzia ao mínimo qualquer risco de conflito ou deslealdade. Os postos mili-
tares cuidavam para que a menor rebelião local fosse imediatamente debelada,
para que o tributo anual fosse devidamente enviado ao imperador, para que as
grandes vias comerciais continuassem abertas à circulação com toda segurança
e, finalmente, para que a vontade do imperador fosse respeitada sob todos os
aspectos. No caso de a guarnição não conseguir dominar os distúrbios locais, o
comandante apelava para o imperador, que mandava reforços de tropas estacio-
nadas em territórios vizinhos; se o problema fosse muito grave, como aconteceu
em 1332, o monarca em pessoa liderava a expedição contra os rebeldes.
Em linhas gerais, este foi o sistema característico do período “salomônida”,
até o começo do século XVI; o império, então, tornara -se tão heterogêneo e
difícil de governar que a única forma de os reis impedirem seu desmembra-
mento era manter a corte em constante pé de guerra, pronta para se deslocar a
qualquer momento para onde a gravidade da situação exigisse. Essa é a melhor
razão para explicar as constantes movimentações da corte e a ausência de qual-
quer centro urbano nesse período.
Estrutura política do Império Etíope
Os reis salomônidas” administravam seus imensos territórios a partir desses
acampamentos móveis. No entanto, apesar do caráter itinerante, a corte imperial
25 AL -‘UMARĪ, 1927, p. 19.
491
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
permanecia sempre o centro da vida econômica e política de todos os súditos
do reino; constituía uma espécie de cadinho, no qual se fundiam suas diferen-
ças culturais e linguísticas. A estrutura e organização interna da corte foram
tratadas detalhadamente em outro trabalho
26
. É suficiente dizer, aqui, que o
papel da corte nômade correspondia exatamente ao de uma capital fixa. Uma
multidão proveniente de todos os pontos do império a seguia em seus desloca-
mentos. O grande exército e a guarda real, a ela incorporados permanentemente,
eram recrutados em todas as possessões da coroa, e seus oficiais deviam sempre
escoltar o monarca, para onde quer que ele fosse. Além disso, havia milhares
de pessoas que assistiam o imperador e se encarregavam das tarefas domésticas,
bem como aqueles que acompanhavam os altos funcionários do reino.
Padres especialmente designados sempre seguiam a corte em suas viagens,
para oficiar o serviço religioso nas numerosas capelas imperiais e assistir as
necessidades espirituais do rei e dos que o cercavam. Onde quer que se insta-
lasse, o acampamento real também tendia a se tornar uma espécie de centro de
intercâmbio de provisões e mercadorias; assim, os negociantes, artesãos e vários
profissionais, cristãos ou muçulmanos, também convergiam para lá, a fim de
oferecer seus artigos e serviços. Na estação seca, quando o deslocamento era
mais fácil, afluíam incessantemente para a corte numerosos súditos vindos das
províncias: os príncipes vassalos e governadores locais trazendo seu tributo, e
muitos outros que solicitavam a justiça do monarca e de seus conselheiros para
os litígios difíceis de resolver. Assim, a todo momento, o número de pessoas que
viviam no acampamento imperial era comparável ao de uma cidade média.
Da mesma forma que uma aglomeração urbana clássica, o acampamento do
rei desempenhava importante papel unificador, reunindo milhares de indivíduos
de língua, raça e religião diferentes. Num certo sentido, a corte nômade cumpria
essa função com mais eficácia do que uma corte sedentária: no caso de uma
cidade permanente, o movimento da população rural se num sentido único,
em direção à cidade. Ao contrário, a corte itinerante, além de acolher habitante
dos campos, travava – por seus deslocamentos contínuos de uma extremidade a
outra do império – relações bem mais dinâmicas com as regiões que atravessava.
Seu papel unificador estendia -se, assim, por área bem mais ampla.
Esse contato constante entre a corte e o país contribuiu, sem dúvida, para
a assimilação cultural e integração política de milhares de etíopes de origens
diversas, que acabavam travando contato. Isso acontecia principalmente com
26 TAMRAT, T. 1972a, p. 103 -6 e 269 -75.
492
África do século  ao século 
numerosos prisioneiros de guerra trazidos de territórios recém -conquistados.
Muitos eram integrados ao exército cristão; os outros, ao serviço doméstico do
monarca e de seus inúmeros dignitários. É provável que linhagens dirigentes,
cujo poder era hereditário nos principados vassalos, tenham vivido na corte
como verdadeiros reféns, ou em visitas prolongadas a seu suserano. Com o
tempo, muitos deles ligaram -se pessoal e profundamente ao imperador e à sua
família e puderam ocupar postos -chave nas altas esferas do poder, tanto na corte
imperial quanto nas províncias. No entanto, como a corte imperial permanecia
numa mesma região apenas por breve período, o contato com a população local
era passageiro e superficial, quando não opressivo; com efeito, a região visitada
via -se sobrecarregada por requisições maciças, tendo de abastecer e servir a corte
e, definitivamente, a visita do monarca e seu enorme séquito não era das mais
agradáveis para grande parte da população. Em consequência, o papel integrador
da corte reduzia -se consideravelmente.
Na verdade, a única autoridade que os imperadores podiam exercer de fato
sobre os territórios vassalos continuou baseando -se no governo indireto. Apesar
da nomeação de grande número de funcionários graduados para a corte e para
os diversos níveis de administração local, nunca se consumou um sistema de
administração imperial centralizado, e a vida cotidiana da população nas várias
chefarias e principados continuou a ser regida pelos costumes locais. Para ate-
nuar parcialmente os particularismos locais é que os monarcas e seus volumosos
séquitos visitavam com regularidade as principais regiões do império.
As conquistas de Amde Tsion não somente aumentaram o tamanho da
corte e do exército como também enriqueceram o rei e seus sucessores. Grande
parte dessa opulência provinha dos tributos regulares arrecadados nos territórios
vassalos. Os que não pagavam tributos eram culpados de alta traição e frequen-
temente condenados à desonra, à prisão ou mesmo à morte. Os anais da época
não esclarecem as bases econômicas do império, mas o grande número de con-
cessões de terra que a história atribui aos reis salomônidas” desse período parece
indicar que um dos segredos de seu poderio era a distribuição de feudos aos
muitos súditos fiéis, como recompensa por serviços prestados. Além disso, a con-
quista dos territórios muçulmanos das fronteiras do leste parece ter assegurado
boas rendas para os imperadores, uma vez que passaram a dominar o comércio.
Adquiriram total controle militar das regiões do interior, de onde os muçul-
manos tradicionalmente traziam suprimentos de escravos habasha, vendidos
por alto preço no Oriente Médio. Também alguns países recém -conquistados
forneciam ouro e marfim, frequentemente citados como as duas mercadorias
de troca mais importantes da região. Finalmente, as terras férteis do planalto
493
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
etíope supriam as cidades litorâneas das duas margens do mar Vermelho em
suas necessidades de cereais e frutas frescas.
Essas operações comerciais em toda a região traziam rendas aos imperadores
de duas maneiras: primeiro, porque todas as mercadorias sofriam uma espécie de
taxação, quando importadas ou exportadas; segundo, porque os monarcas logo
começaram a participar diretamente do comércio a longa distância, investindo
seu capital em caravanas ricamente supridas, que viajavam sob a direção de
funcionários da coroa. A longo prazo, no entanto, o sucesso obtido pelos cristãos
nas províncias do interior serviu para favorecer o restabelecimento e a reorga-
nização do poder muçulmano na região situada entre Zayla e as fronteiras dos
principados de Awfat, de Dawaro e de Bali. O renascimento das comunidades
muçulmanas foi mais uma vez conduzido por um ramo dissidente da família de
‘Umar Walasma, que transferiu seu quartel -general para o planalto de Harar, a
partir de onde os chefes teceram notável rede de alianças muçulmanas pela vasta
região que se estendia das ilhas Dahlak, no mar Vermelho, à costa dos Somali,
no oceano Índico, e também por todos os países árabes vizinhos. Essa evolução
foi descrita detalhadamente em outro texto; basta dizer aqui que o fogo da
oposição muçulmana à dominação cristã manteve -se sempre aceso nessa região
até o século XVI, quando irrompeu a djihād (guerra santa) pregada pelo imã
Ahmad Ibn Ibrāhm (c. 1527 -1543), também chamado Gragne.
O renascimento da Igreja etíope
Além das conquistas e da expansão territorial que estudamos brevemente,
uma das consequências marcantes do crescente poder do Estado cristão sob os
imperadores “salomônidas foi o renascimento da Igreja etíope e suas renova-
das tentativas de evangelizar o interior da Etiópia. Quando da emergência da
Dinastia “Salomônida”, em 1270, a Igreja só estava firmemente implantada nas
antigas províncias da Eritreia central e meridional, Tigre, Wag, Lasta, Angot,
Amhara e numa parte das terras montanhosas de Shoa, que separam a bacia do
Nilo Azul da do Awash. Em geral, naquela época, quanto mais ao sul estivesse a
localidade, mais frágil e precária era a posição da Igreja. Todos os grandes centros
de educação cristã ainda se situavam em Tigre e em Lasta, berço dos Zagwe e
sede episcopal dos bispos egípcios. Portanto, não era possível estudar teologia e
ordenar -se padre sem passar longos anos nessas regiões do reino zagwe. Aparen-
temente, essa possibilidade era rara para os indivíduos das regiões distantes
do sul etíope, e a existência da Igreja em Shoa setentrional devia -se mais à
494
África do século  ao século 
lealdade persistente de algumas famílias cristãs desigualmente espalhadas por
toda a região que à autoridade espiritual do clero do lugar. Segundo a tradição,
mesmo em Amhara, mais ao norte, a fundação de importante escola monástica na
ilhota do lago Hayk por um monge de Lasta, Iyesus -Mo‘a personagem notável,
que devia sua própria formação religiosa ao antigo monastério de Debre -Damo,
no Tigre, ocorreu somente às vésperas do advento da Dinastia “Salomônida”.
Todavia, com a ascensão dessa nova dinastia e o deslocamento do centro do
reino para o sul, começaram a surgir em Amhara e Shoa setentrional muitas
escolas religiosas, que logo se tornaram centros de propagação da cristã em
todas as direções. As duas forças propulsoras da expansão foram as atividades
dentro da própria Igreja, que parecem ter sido retomadas já no período zagwe, e
o compromisso pessoal assumido pelos imperadores “salomônidas” de implantar
a Igreja em todas as possessões. Apesar de a maior parte dos reis zagwe ter tam-
bém se comprometido com a Igreja, seus sucessores salomônidas” dispunham
de autoridade mais extensa e muito mais recursos para apoiar os esforços do
clero etíope.
Quase todos os novos monastérios que, pouco a pouco, se estabeleceram em
Amhara e Shoa a partir do último quarto do século XIII tinham relações mais
ou menos diretas com a escola de Iyesus -Mo‘a na ilha do lago Hayk. Seus fun-
dadores ou eram alunos do monge ou tinham recebido sua educação de algum
de seus discípulos. Durante os primeiros 50 anos do reinado dos salomônidas” e
antes das grandes conquistas de Amde Tsion, apenas Amhara e Shoa setentrio-
nal ofereciam a segurança necessária para o estabelecimento de monastérios.
Desde suas origens, a Igreja etíope tinha estado profundamente impregnada
das tradições monásticas dos desertos egípcios e do vale do Nilo e, quando fun-
daram suas comunidades, os discípulos de Iyesus -Mo‘a seguiram rigorosamente
as regras dos antigos cenobitas, Santo Antão e São Pacômio. O estudo das tra-
dições históricas desses conventos mostra com clareza que, originariamente, seus
fundadores eram levados não tanto pelo proselitismo quanto pela busca de sua
salvação pessoal. Quase sempre, o fundador decidia simplesmente “retirar -se do
mundo para ir viver longe de sua aldeia num eremitério isolado. O lugar esco-
lhido era geralmente uma gruta natural nos flancos de uma montanha deserta,
e a razão de os antigos monastérios etíopes situarem -se, em geral, em lugares
inacessíveis pode ser encontrada, provavelmente, nessas origens históricas. A
princípio, o fundador vivia só, ou em companhia de alguns jovens discípulos. Nos
primeiros anos, esses anacoretas levavam vida severamente ascética, inteiramente
consagrada a orações e à meditação; infligiam -se jejuns cruéis, e até mortificações
corporais. Inicialmente alimentavam -se de frutos selvagens, mas logo começaram a
495
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
desmatar as terras vizinhas para cultivar legumes e outras plantas. Pouco a pouco
entraram em contato com os habitantes da região, que logo passaram a admirar
o zelo religioso da comunidade e a espalhar pelas regiões vizinhas a reputação de
santidade dos fundadores e seus companheiros. O eremitério começava, então,
a receber visitas de devotos ou simples curiosos. Alguns visitantes acabavam
por entrar no convento, enquanto outros contentavam -se em estabelecer laços
espirituais com o fundador, solicitando sua bênção e orações e fazendo doações
à comunidade. Com o tempo, a influência espiritual desses monges se ampliava
e, se a localização geográfica permitisse, se estendia até os membros da casa do
governador da província e aos familiares da corte “salomônida”.
A comunidade recebia terras, gado e outros bens de famílias e dignitários locais,
quando não do próprio imperador. À medida que prosperava, edificava uma igreja
mais respeitável, cercada de muitas cabanas, que serviam de alojamento para os
monges ou como escolas e para outras necessidades comunais. Além dos devotos
que, em número crescente, se integravam à comunidade por motivos puramente
espirituais –, miseráveis, velhos e órfãos procuravam -na em busca de alimento e
abrigo. O renome de santidade do monastério e de seus religiosos espalhava -se
para regiões distantes, de onde eram trazidos muitos doentes de corpo ou espírito
para serem miraculosamente curados pelos homens de Deus. Assim o monastério
se tornou centro de peregrinações regulares. Além disso, a maioria dos monasrios
mantinha conventos sob sua autoridade espiritual, às vezes localizados a muitos
quilômetros de distância. Vendo -se obrigada a garantir a subsistência de toda
essa gente, a comunidade tornava -se uma verdadeira cidadezinha com centenas
de habitantes permanentes. Abandonando a simplicidade de suas origens, cada
ordem editava um complexo regulamento para guiar a vida comunitária; uma
hierarquia de monges eleita democraticamente controlava o respeito às leis e geria
os bens temporais do monastério, que enriquecia continuamente.
A fama espiritual desses monastérios também se devia a outro elemento, seu
papel na educação, pois todos abrigavam permanentemente certo número de lite-
ratos que ensinavam, segundo a tradição, a ler e a escrever, a música sacra muito
desenvolvida na Igreja etíope –, a poesia e gramática gueze, a história da Igreja
e a exegese das Santas Escrituras
27
. Favoreciam -se principalmente os mestres da
caligrafia e pintura religiosa: os grandes monastérios disputavam os melhores
especialistas dessas disciplinas, a quem cumulavam de honras e davam excelente
remuneração. Tentando criar um clima cultural mais estimulante e manter o corpo
27 O melhor estudo recente sobre a história da educação dispensada pela Igreja etíope é o de SERGEW
HABLE SELASSIE, 1972, p. 162 -75.
496
África do século  ao século 
docente em contínuo desafio, os estudantes necessitados e os que se mostravam
promitentes recebiam ajuda material. Ao final de seus estudos, eles poderiam even-
tualmente optar pela vida religiosa, quer tomando o bito monástico da ordem,
quer tornando -se padres casados ou cumprindo outras funções eclesiásticas.
Mas não somente os virtuais homens de Igreja seguiam o severo programa de
estudos desses estabelecimentos. Aos tempos modernos, as escolas monásticas
mantiveram o monopólio da instrução, e seu ensino era a preparação essencial
para os futuros dirigentes do país. Afora os privilégios devidos ao nascimento e à
fortuna, o fato de um indivíduo ter -se distinguido nos altos estudos religiosos era
a maneira mais segura de acesso à elite cristã. Como vimos acima, os membros
da família salomônida que viviam obrigatoriamente no monte Geshen tinham
à sua disposição instituições de ensino do mesmo tipo e a maioria dos altos
funcionários da corte ou das províncias havia estudado em escolas monásticas.
Foi essa posição -chave ocupada pela Igreja no ensino mais que qualquer outra
coisa o que fez com que, ao longo dos séculos, sua influência fosse permeando
toda a estrutura política da Etiópia cristã.
Essas atividades religiosas, culturais e educativas existiam nos antigos monas-
rios do norte do país desde a época do reino cristão de Aksum. Mas foi preciso
esperar o último quarto do culo XIII e o primeiro do culo XIV da era cristã para
que se difundissem por muitas reges de Amhara e de Shoa setentrional. Durante
esse primeiro período, as comunidades fundadas pelos dispulos de Iyesus -Moa
desenvolveram -se regularmente. As mais importantes eram Debre Asbo (mais
tarde rebatizada “Debre Libanos”), fundada em Shoa pelo abade Tekle -Haymanot
(c. 1215 -1313) e Debre Gol, em Amhara, fundada pela iniciativa do abade Anorewos
e de Beselote Mikael; também é preciso citar o monastério insular de Daga, no meio
do lago Tana, que a tradição atribui a outro dispulo de Iyesus -Mo‘a, Hirute Amlak.
Segundo as tradições hagiográficas dessas escolas monásticas, assim que diplo-
mados, seus discípulos partiam para o interior do país para fundar suas próprias
comunidades. Toda a região, principalmente Shoa, ficou coberta de monastérios, e
o número de padres com sólida formão começou a aumentar. Nas regiões mais
setentrionais da Etpia, ocorria um processo de renovão mostico semelhante,
conduzido por um santo homem de muitos recursos, o abade Eustateos, cujas
atividades religiosas acabaram ‘por atingir os territórios crisos de Bogos, Marya,
Hamasen, Serac e algumas partes de Kunama, onde hoje é a Eritreia
28
.
28 Maiores detalhes sobre os movimentos de expansão da Igreja podem ser encontrados em TAMRAT,
1972a, p. 156 -205.
497
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
Coincidindo com a anexação, por Amde Tsion, de numerosos territórios não
cristianizados, a expansão no interior da Igreja era uma verdadeira bênção. Com o
assentimento do imperador, o bispo egípcio que era chefe do episcopado etíope na
época, o abunna (“bispo”) Jacob’ parece ter começado a organizar sistematicamente
as principais ordens monásticas e a delimitar as dioceses nas quais cada ordem
seria responsável pela evangelização e a vida espiritual das populações. Vimos
acima que Amde Tsion aquartelava guarnições nas regiões recém -conquistadas. O
imperador e seu bispo egípcio reforçaram esse movimento de expansão, recrutando
padres nos monastérios para enviá -los a esses territórios, junto com as tropas cris-
s. Assim, pouco a pouco, multiplicaram -se as igrejas e conventos no território dos
Falacha,em Godjam, em Damot e até mesmo nos feudos muçulmanos de Awfat,
Dawaro e Bali. Eram -lhes concedidas generosas porções de terra, e as populações
locais tinham a obrigação, perante o imperador cristão, de proteger as igrejas e
facilitar -lhes o exercício do culto. A falta a essa obrigação era frequentemente
citada como o motivo principal das expedições punitivas do exército imperial.
Embora a princípio a proteção política e militar tenha acelerado a eclosão de
comunidades cristãs em todo o Império “Salomônida”, os laços muito estreitos
que a Igreja sempre manteve com o poder político impor -lhe -iam, a longo prazo,
sérias obrigações. Considerada pelos povos vassalos como uma das armas de um
poder civil imperialista e tirânico, ela nunca conquistou o coração ou as almas
dos povos conquistados. Mesmo com a poderosa proteção do Estado imperial,
a Igreja sempre se chocava com a oposição persistente dos tradicionais chefes
espirituais desses povos
29
, e seu destino foi inexoravelmente ligado ao do impé-
rio. Sob a total dependência econômica do sistema feudal etíope, a Igreja nunca
conseguiu chegar a uma verdadeira autonomia espiritual e moral; sua influência
foi, de fato, insignificante, a não ser nas antigas províncias setentrionais e nos
principais centros de poder cristão instalados em territórios anexados. A dura
realidade ficou particularmente evidente quando o império ruiu, pressionado
pela djihād, nas duas primeiras décadas do século XVI.
A notável expano da Igreja durante esse período não acarretou, no entanto,
nenhuma mudança em suas estruturas essenciais. Continuou submissa à autori-
dade espiritual do patriarca de Alexandria, e nomeavam -se bispos egípcios para
a liderança da hierarquia eclesiástica. Um fato muito importante foi o apare-
cimento de duas grandes ordens monásticas, as assim chamadas “casas de
Tekle -Haymanot e de Eustateos. A casa de Tekle -Haymanot tinha bases mais
29 TAMRAT, 1972b.
498
África do século  ao século 
F . Lalibela: igreja (“casa”) de São Jorge. Vista aérea de conjunto da igreja escavada. (Foto G.
Gerster/ Agence Rapho.) (Fonte: Bernheim, M. & Bernheim, E./Agence Rapho, 1979.)
F . Lalibela: parte superior da igreja (“casa”) de São Jorge, vista do interior de sua escavação. (Foto
E. Haberland, Instituto Frobenius.)
499
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
F . Lalibela: elevação vertical da
igreja (“casa”) de São Jorge. (Foto E. Haberland,
Instituto Frobenius.)
F . Lalibela: janela da
igreja (“casa”) do Redentor do Mundo.
(Foto E. Haberland, Instituto Frobe-
nius.)
500
África do século  ao século 
sólidas, por ter laços mais estreitos com a corte do monarca; am disso, sua
casa -mãe de Debre Libanos, em Shoa, valia -lhe a obediência da maioria das
comunidades religiosas do império. A “casa” de Eustateos havia comado
como minoria militante nos primeiros anos do século XIV e, apesar de tam-
bém ter fundado, durante o século XV, outras comunidades em Tigre, no terri-
tório dos Falacha, em Godjam e em Shoa, seus principais centros continuaram
a ser os monastérios construídos pelos discípulos de Eustateos na Eritreia,
entre os quais o de Debre Bizen teria, mais tarde, um papel dominante.
No entanto, é importante sublinhar que, como o próprio império cristão, a
Igreja etíope manteve -se descentralizada. Não obstante a tendência à classifi-
cação dos grandes monastérios por ordem de importância espiritual e histórica,
cada um deles era praticamente autônomo e quase completamente indepen-
dente de todos os outros. Isso também era verdadeiro para as relações entre os
conventos de uma mesma ordem. O episcopado egípcio e o imperador sempre
se esforçaram para reduzir essa descentralização, com o objetivo de afirmar sua
autoridade direta sobre os monastérios concedendo privilégios econômicos e
fazendo uso do poder de ordenação, que era exclusivo dos bispos. Obtiveram
o efeito desejado no caso de numerosas igrejas seculares, servidas por padres
casados, suscetíveis ao controle leigo, mesmo a nível local. Mas os grandes
monastérios defenderam com todas as forças sua autonomia e impediram o
estabelecimento de uma poderosa hierarquia nacional. É claro que tanto na corte
real quanto na episcopal havia certo número de dignitários eclesiásticos, que
granjeavam um poder considerável como conselheiros espirituais do imperador
e de seus bispos egípcios. Durante grande parte do período aqui estudado, os
monarcas escolhiam seu dignitário eclesiástico de maior prestígio, o akabe -seat,
no monastério insular de Hayk; a partir do começo do século XVI, os abades
de Debre Libanos - que mais tarde receberam o título de echege - começaram
a ascender a essa elevada função. Mas a grande autoridade exercida por esses
eclesiásticos em todo o império devia -se principalmente à sua posição oficial na
corte do reino, e não ao fato de pertencerem a uma hierarquia nacional dotada,
entretanto, de poderes espirituais incontestáveis.
O presente capítulo cobre o período histórico mais fecundo da Igreja etíope.
Apesar de não ter conseguido implantar -se com firmeza e definitivamente em
todos os territórios recém -anexados pelo império, a Igreja, sem vida, se esta-
beleceu firmemente em muitas regiões onde sua influência ainda era, no final do
século XIII, fraca ou nula. Não obstante as frequentes rivalidades; as ordens de
Tekle -Haymanot e Eustateos desempenharam papel notável nesse movimento
de expansão. Mas muito mais importante foi a renovação espiritual e cultural no
501
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
interior da Igreja etíope. I. Guidi e E. Cerulli elaboraram estudos excelentes sobre
a literatura etíope desse período
30
. Pode -se ter uma idéia do desenvolvimento das
artes durante esses séculos nos relativamente poucos manuscritos iluminados, nos
dípticos e nos afrescos de igrejas, assim como nas muitas cruzes e bastões episco-
pais de cerimônia ricamente ornados, conservados através dos séculos pelos cuida-
dos zelosos dos centros monásticos da Etiópia medieval
31
(ver figs. 17.6 -17.8).
Esse renascimento cultural foi acompanhado de perto e encorajado pelos
imperadores, alguns dos quais homens de grande saber. O mais notável foi
o imperador Zera -Yakob (1434 -1468), que contribuiu pessoalmente para essa
produção literária e que é considerado autor de vários tratados de teologia
32
.
As numerosas tradições hagiográficas da época testemunham a intensa ativi-
dade religiosa reinante nas comunidades monásticas, em algumas das quais
empreendeu -se o remanejamento completo do patrimônio eclesiástico, litúr-
gico e doutrinal, O período foi marcado por bom número de controvérsias
doutrinais e conflitos a respeito da liturgia, quando se contestou seriamente a
autoridade do patriarca de Alexandria. O espírito de independência da Etiópia
se havia reforçado tanto, e a confiança nos bispos egípcios havia declinado a
tal ponto, que durante o último quarto do século XV houve um poderoso, mas
fracassado, movimento de secessão total face ao patriarcado de Alexandria
33
.
Lutas entre cristãos e muçulmanos
Os portugueses entram em cena
Os laços tradicionais com o patriarca de Alexandria eram de valor inestimá-
vel para o império cristão. Embora essa lealdade mantivesse a Igreja etíope sob
a tutela constante da hierarquia copta do Egito, essa relação constituía a única
ligação da Etiópia com os antigos centros cristãos da Terra Santa e com o resto
da cristandade. Tendo sempre compreendido esse fato, os imperadores e seus
principais conselheiros nunca permitiram que os conflitos ocasionais surgidos
no decorrer dos séculos entre o episcopado egípcio e o clero etíope provocassem
um cisma definitivo. A diferença religiosa entre seu país e os povos vizinhos,
30 GUIDI, 1932; CERULLI, 1956.
31 Um estudo detalhado sobre a arte etíope desse período poder ser encontrado em LEROY, 1964, p. 61 -76;
ver também CHOJNACKI, 1971, p. 21 -65.
32 TAMRAT, 1972a, p. 243, nota 4.
33 Ibid., p. 230, nota 4; p. 245 -7.
502
África do século  ao século 
F . Manuscrito etíope do século XV, representando a árvore da vida (monastério de Kebran).
503
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
F . Manuscrito etíope do século XV, representando a Crucicação (monastério de Kebran).
504
África do século  ao século 
F . Manuscrito etíope do século XV, representando a Anunciação (monastério de Yahya Giyorgis).
(Fonte das gs. 17.6 a 17.8: UNESCO/New York Graphic Society, 1961.)
505
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
que viviam nas duas margens do mar Vermelho e do golfo de Aden, sempre
colocou um grave dilema para os imperadores da Etiópia, no plano da política
externa. Por um lado, havia o desejo natural de explorar sua condição de cristãos
para estabelecer relações e alianças militares com a Europa cristã, e até mesmo
participar das últimas Cruzadas; por outro, havia a preocupação de elaborar uma
política mais realista de coexistência com seus vizinhos muçulmanos.
O Egito dos Mamelucos, Estado de maior poder e prestígio da África orien-
tal, que controlava com firmeza as vias internacionais de acesso ao Mediterrâ-
neo, possuía a chave dessas opções políticas contraditórias. Por esse motivo, os
imperadores “salomônidas”, desde sua ascensão ao trono, desenvolveram uma
diplomacia muito circunspecta em relação à corte do Cairo e aos países árabes
vizinhos, principalmente o Iêmen, com o qual os etíopes mantinham contínuas
relações comerciais. Diz -se que sempre ofereciam “escravos de ambos os sexos,
ouro e outros presentes” aos sultões mamelucos, cada vez que solicitavam o envio
de novo bispo egípcio
34
. Escreviam aos sultões para lhes suplicar que facilitassem
a passagem dos peregrinos etíopes que iam à Terra Santa e lhes garantissem um
retorno seguro.
Mas essa circunspecção não era sempre compatível com o novo sentimento
de poder que tomou conta da Etiópia cristã após a anexação de vastos territórios
muçulmanos por Amde Tsion. Percebe -se claramente, no período seguinte ao
do reinado de Amde Tsion, a atitude cada vez mais agressiva dos imperadores
etíopes para com os Mamelucos. Como os sultões egípcios visassem sempre
proteger os interesses islâmicos na Etiópia, Amde Tsion e seus sucessores logo
começaram a exigir em contrapartida que o Cairo respeitasse a liberdade de
culto e outros direitos civis dos cristãos coptas e que os Mamelucos tomassem
enérgicas medidas para a população parar de perseguir os coptas do Egito.
Segundo as tradições coptas e etíopes, esse conflito começou a se agravar a par-
tir do reinado de Saifa -Arad (1344 -1370), filho e sucessor imediato de Amde
Tsion. De acordo com o relato de viajante italiano que percorreu a Etiópia no
século XV, esse monarca teria conduzido um exército até o vale do Nilo, para
servir de reforço às tropas do rei de Chipre, Pedro de Lusignan, que sitiava a
Alexandria em 1365
35
. Al -Makrz conta que David I (1380 -1412), filho de
Saifa -Arad, havia invadido o território de Assuã, vencido os árabes e saqueado
34 QUATREMÈRE, 1811, v. 2, p. 268 -71.
35 SCHEFER, 1892, p. 148. Para os outros conitos de Saifa -Arad com o Egito, ver PERRUCHON, 1893,
p.177 -82; BUDGE, 1928, v. 1, p. 177 -9.
506
África do século  ao século 
as terras do Islã
36
. Mas al -Makrz designa especialmente o imperador Isaac
(1413 -1430) como inimigo declarado do Islã, relatando que Isaac queria estabe-
lecer uma poderosa aliança com a Europa cristã para acabar com a supremacia
muçulmana no Oriente Médio
37
.
Outro escritor árabe do século XV, Ibn Taghrbird (1409 -1470), descreve
mais detalhadamente a história da delegação que Isaac mandou em segredo
para a Europa e cujos membros foram aprisionados no caminho de volta pelas
autoridades egípcias de Alexandria. O chefe da missão, um persa residente na
Etiópia, foi enforcado em praça pública no Cairo e, entre as mercadorias con-
fiscadas pelos egípcios, encontrava -se
grande número de uniformes sobre os quais estavam bordados uma cruz e o nome
do hati em letras douradas. Destinavam -se ao exército etíope
38
.
Algum tempo depois, as relões voltaram ao normal. Mas quando Zera -Yakob
(1434 -1468) soube que novas perseguições contra os coptas resultaram na destrui-
ção da célebre igreja copta de Mitmak (al -Magtas), enviou uma carta de vigoroso
protesto ao sultão Jakmak (1438 -1453). Como este lhe respondesse ironicamente,
Zera -Yakob mandou deter o diplomata egípcio portador da carta, mantendo -o
aprisionado por quatro anos
39
. Essa arrogância manifestada pelos imperadores da
Etpia do século XV contrasta estranhamente com o tom obsequioso do fundador
da Dinastia “Salomônida”, Yekuno -Amlak (1270 -1285) que, em suas cartas ao
sultão egípcio Baybars, dizia -se “o mais humilde dos servidores do sultão
40
; mas
ela é reflexo das transformões ocorridas desde o final do século XIII.
Esses fatos tiveram algumas consequências para a Etiópia cristã. Apesar das
dificuldades pessoais com que defrontavam, os monges etíopes iam, em número
cada vez maior, em peregrinação à Terra Santa. Um testemunho isolado, refe-
rente ao período entre o século XIV e o início do XV, aponta a existência de
pequenas comunidades etíopes, em certos monastérios egípcios do vale do Nilo,
no monte Sinai, em várias localidades da Terra Santa, na Armênia, nas ilhas de
Chipre e Rodes e em várias cidades da Itália, como Veneza, Florença e Roma.
Para onde quer que fossem, esses eopes vangloriavam -se a seus correligiorios das
conquistas de Amde Tsion, de seus sucessores e da expansão de seu imrio. Talvez
36 AL -MAKRĪZĪ, apud QUATREMÈRE, 1811, p. 276 -77.
37 AL -MAKRĪZĪ, 1790.
38 QUATREMÈRE, 1811, p. 277 -8. IBN TAGHRĪBIRDĪ (1382 -1469), in POPPER, s.d., p. 59 -61.
39 AL -SAKHĀWĪ, 1897, p. 71 -2 e 124 -5.
40 MUFFADDAL, 1973 -1974, p. 384 -7.
507
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
os viajantes exagerassem ao falar das imensas riquezas, dos recursos inesgotáveis
e do poder prodigioso dos imperadores etíopes. Mas foi exatamente no começo
desse período, que se começou a confundir o legendário Preste João, das índias,
com os monarcas cristãos da Etiópia. Além disso, certos estrategistas parecem
ter pensado seriamente em levar a Etiópia cristã a participar das últimas Cruza-
das, o que seria possível, não só porque se dizia que os monarcas etíopes estavam
em vias de adotar uma política agressiva em relação ao Egito, como também
porque os Mamelucos tentavam explicitamente cortar qualquer comunicação
entre a Etiópia e a Europa. Segundo um viajante que esteve na região no século
XIV, os cristãos da Etiópia
teriam se comunicado de bom grado conosco, os latinos, mas o sulo da Babilônia
[isto é, do Egito] nunca deixa um latino ir àquele país, de medo que ele se alie conosco
para alguma guerra
41
.
No entanto, quanto mais fortes e prósperos se sentiam os etíopes, mais se
reforçava a sua vontade de estabelecer contatos estreitos com o resto do mundo
cristão; assim, apesar do infortúnio sofrido pela delegação enviada à Europa
em 1427 -1429 por Isaac, seu irmão e sucessor, Zera -Yakob, decidiu enviar, em
1450, uma nova embaixada para terras europeias. Esta foi mais bem sucedida:
depois de visitar pelo menos Roma e Nápoles, voltou e salva para a Etiópia,
em companhia de muitos artesãos e profissionais europeus
42
.
Mas, afinal, os etíopes enfrentavam uma luta sem esperanças, pois o dis-
punham de nenhuma forma de acabar realmente com seu isolamento. Além do
controle absoluto das vias internacionais que levavam ao Mediterrâneo, o Egito
dos Mamelucos dispunha de consideráveis meios de pressão sobre o patriarcado
de Alexandria. Medidas rigorosas contra o patriarca poderiam facilmente abalar
todas as bases religiosas e políticas da Etiópia cristã. Houve muitas tentativas
desse gênero, ao longo da história das relações etíopes -egípcias; mas, quando se
chegava a esse ponto, os etíopes sempre eram obrigados a recuar de suas posições
extremadas. No século XV, devido à política arrogante dos monarcas etíopes em
relação aos Mamelucos, os patriarcas egípcios sofreram muitos inmodos e humi-
lhações. Acabamos de falar, por exemplo, do enviado egípcio do sultão Jakmak à
corte de Zera -Yakob, que foi mantido preso por muito tempo. Como represália,
o sultão convocou o patriarca, mandou espancá -lo e provavelmente obrigou -o a
pedir a Zera -Yakob que libertasse o embaixador. Afora isso, aparentemente após
41 CERULLI, 1943, 1947, v. 1, p. 133.
42 CERONE, F., 1902 -1903; WITTE, 1956.
508
África do século  ao século 
o regresso desse mensageiro, o sultão ordenou que o patriarca (em 1448) se absti-
vesse de qualquer relação com a Etiópia sem sua autorização expressa
43
.
As consequências dessa sanção religiosa foram sentidas na Etpia por mais de 30
anos,o se tendo enviado ninguém para substituir o último dos bispos egípcios de
Zera -Yakob, falecido antes de 1458. Foi preciso aguardar até 1480 -1481 para que se
entronasse um novo bispo, no reino do neto de Zera -Yacob, Eskender (1478 -1494).
E, para que isso acontecesse, os etíopes tiveram de enviar suas súplicas habituais
e os presentes costumeiros ao sultão do Cairo. A profunda vulnerabilidade da
Etiópia neste ponto e a imensa satisfação do povo ao ser solucionada a crise
podem ser lidas na crônica real que descreve a repercussão da chegada do novo
bispo:
Os padres tornaram -se numerosos, as igrejas foram restauradas e a alegria espalhou-
-se por todo o reino
44
.
A Etiópia era por demais distante da Europa cristã e por demais integrada
ao Oriente Médio para ter chances de estabelecer relações fecundas e contínuas
com a cristandade ocidental.
O declínio da Etiópia
Nas últimas décadas do século XV, a Superioridade tradicional do império
cristão no equilíbrio de forças no interior da Etiópia e do Chifre da África
começou a mostrar sinais de declínio. O reinado de Zera -Yakob marcara o apo-
geu da dominação cristã sobre todos os territórios que, no decorrer dos 150 anos
precedentes, tinham sido conquistados por seus ancestrais
45
. Mesmo no plano
interno do reino cristão, esse imperador havia sido bem sucedido na reconcilia-
ção com a ordem monástica militante de Eustateos, cujas desavenças com o resto
da Igreja etíope tinham trazido, havia um século, graves consequências políticas
e regionais. O rei esforçara -se por reorganizar completamente a Igreja etíope,
para que ela pudesse exercer melhor sua missão evangélica por todo o reino,
onde o monarca proclamara a repressão enérgica a todos os costumes e práticas
religiosas tradicionais. Sendo ele próprio um teólogo ilustrado, Zera -Yakob pôs
fim a sérios litígios doutrinais que dividiam a Igreja e perseguiu sem piedade os
43 AL -SAKHĀWĪ, 1897, p. 210.
44 PERRUCHON, 1894, p. 340.
45 A carreira de Zera -Yakob é estudada mais profundamente em TAMRAT, 1972a, p. 220 -47.
509
O Chifre da África: os Salomônidas na Etiópia e os Estados do Chifre da África
monges dissidentes. Quis até acabar com os deslocamentos incessantes da corte,
fundando uma nova capital em Debre -Berhan, em Shoa, onde estabeleceu uma
administração fortemente centralizada.
Quanto à defesa do império, Zera -Yakob rechou os ataques contínuos do reino
de Adal às províncias do leste, esmagou a revolta dirigida por seu vassalo mulmano,
o sulo de Hadya, e reforçou sua autoridade militar nas possessões mais longínquas,
onde estacionou tropas de uma lealdade a toda prova. No planalto da atual Eritreia,
Zera -Yakob fundou uma colônia de soldados Maya, recrutados em uma tribo de
famosos guerreiros de Shoa. Mandou construir um porto em Girar, no mar Ver-
melho, o longe do tio atual de Masawah
46
. Zera -Yakob jamais parou de lutar
contra os grandes problemas, tendo sido bem sucedido na maior parte das vezes.
Seu reino marcou realmente o apogeu do desenvolvimento cultural, político e
militar da Etiópia no fim da Idade Média. Mas com grandes dificuldades
conseguiu levar seus empreendimentos a bom termo, pois, por todos os lados,
deparava com uma resistência organizada. As obras escritas por ele próprio, as
crônicas e certas tradições hagiográficas relativas ao período mostram que a
atividade incansável do monarca desencadeou uma grande agitação política e
até mesmo alguns complôs para depô -lo. Esses textos também revelam que Zera-
-Yakob usou de medidas fortemente repressoras para esmagar a oposição, e muitas
são as histórias de eclessticos graduados e outros dignitários condenados à prio
em terras de exílio lonnquas. De fato, um dos primeiros atos oficiais de seu filho
e sucessor Baida Mariam (1468 -1478) foi a anistia de grande número de prisionei-
ros poticos e o abrandamento do poder centralizado que seu falecido pai quisera
instaurar na nova capital de Debre -Berhan. No entanto, o afrouxamento das garras
de ferro com que Zera -Yakob havia governado o tardou em resultar numa nova
exploo de revoltas em muitas frentes. Apesar dos grandes esforços do jovem rei
para dominá -las, ele nunca chegou a igualar a temível autoridade do pai.
Sérias dissensões internas seguiram o breve reinado de Baida Mariam que,
ao morrer, deixou dois filhos menores, ainda jovens demais para assumirem as
responsabilidades imperiais. As querelas de sucessão entre os partidários dos
dois jovens príncipes, que se prolongaram por muitos anos, minaram o poder
do império cristão
47
. A primeira grande derrota sofrida pelo exército cristão na
frente de Adali ocorreu no reinado de Baida Mariam, e pode -se dizer que, a
partir desse período, o declínio do poderio cristão na Etiópia e no Chifre da
África não cessou até o colapso final provocado pela djihād do imã Ahmad.
46 CONTI ROSSINI, 1903, 181 -3; KOLMODIN, 1912 -1914.
47 TAMRAT, 1974.
C A P Í T U L O 1 8
511
O desenvolvimento da civilização swahili
O período compreendido entre os séculos XII e XV da era cristã é particular-
mente interessante na história das ilhas e da costa oriental da África. Foi a época
em que se formou na região uma comunidade étnica cuja melhor denominação
seria população swahili”, Foi também a época em que se atestou plenamente a
existência de alguns Estados, cujos primeiros registros datam do século X da era
cristã. Outro fato importante é que, nesse período, o desenvolvimento histórico e
cultural da África oriental não sofreu qualquer influência externa perturbadora,
enquanto o surgimento de conquistadores portugueses no começo do século
XVI interrompeu o processo de desenvolvimento, modificando sensivelmente
suas condições e características. Como o período também se caracteriza por
grande desenvolvimento cultural, é razoável considerarmos que a civilização
swahili estava então em seu apogeu, sobretudo se atentarmos para a sua subse-
quente decadência.
No século XII, os Swahili não constituíam uma comunidade homogênea no
plano étnico ou social. No plano étnico, sobre um fundo formado por uma popu-
lação de língua bantu, acrescentavam -se elementos do interior do continente e
do exterior, tais como árabes, persas e indianos, provenientes da costa setentrio-
nal do mar da Arábia e do oceano Índico. No plano social, havia disparidades,
na medida em que existia uma classe dirigente isolada e distinta da massa de
homens livres. A estrutura formal da sociedade continuava fundamentada em
O desenvolvimento da civilização swahili
Victor V. Matveiev
512
África do século  ao século 
clãs ou grupos étnicos, mas continha elementos de diferenciação por classes.
Pois, embora considerados iguais aos outros, os membros da classe dirigente
sobressaíam por serem ricos e porque suas funções tradicionais lhes conferiam
influência especial.
Ao lado da classe dirigente, encontravam -se outros indivíduos que eram
ricos, mas não tinham acesso ao poder e à influência atribuída pela tradição,
pois sua riqueza se originava do comércio. Gente comum formava a massa da
populão swahili. Além disso a sociedade swahili, no início do culo XII, também
incluía escravos, cuja existência é possível supor pela leitura dos autores árabes
que descrevem sua exportação. Mas seu papel dentro da sociedade não é claro;
pode ser que fossem exclusivamente objeto de um comércio inter -regional. No
fim do século XV, os escravos parecem ter tido função econômica, segundo o
relato de um anônimo português que os descreve em atividades agrícolas em
Kilwa
1
.
A civilização swahili reflete esse processo de diferencião social; uma
cultura tradicional, a do povo, distinguia -se de outra, a da classe dirigente.
Mas, devido à falta de fontes, nossos conhecimentos sobre essa civilizão
são falhos.
A economia e os intercâmbios comerciais
A civilização swahili baseava -se em três atividades econômicas principais: a
agricultura, a pesca marítima e o comércio.
A agricultura e a pesca
A agricultura atividade da maior parte do povo ao lado da pesca e da
coleta de frutos do mar constitam as fontes essenciais de subsisncia da
população. Al -Masūd, autor do século X, enumera as seguintes culturas no
país: banana, durra (variedade de sorgo), inhame (al -kalari), leo (da família
da horte), coco
2
. Outras fontes falam da cana -de -úcar e do tamarindo. No
culo XV, o autor português anônimo citado conta que em Kilwa Kisiwani
havia coco, laranjas, lies,rias leguminosas, cebolinha e ervas aroticas,
nozes de areca, várias escies de ervilhas, milho (provavelmente durra ou
1 FREEMAN -GRENVILLE, 1962b, p. 217.
2 AL -MAS‘ŪDĪ, 1861 -1877, v. 1, p. 334; v. 3, p. 7, 11, 29. Ver também MATVEIEV, 1971, p. 26 -7.
513
O desenvolvimento da civilização swahili
sorgo). Também fala da pecuária (gado grande de chifres, ovelhas, cabras) e
da cultura do algodão. Essas informações e a descoberta de fusos de terracota
atestam a ptica da fiação e da tecelagem. No plano agrícola, o coqueiro tinha
papel especial para os habitantes da costa oriental da África e das ilhas.
A pesca e a coleta de frutos do mar eram tão importantes quanto a agri-
cultura; são mencionadas pelos autores árabes, que aludem frequentemente ao
consumo de peixes, frutos do mar e moluscos pela população local. Mas o oceano
não fornecia recursos apenas para a alimentação. Fontes árabes informam -nos
sobre a coleta e a venda de pérolas, conchas, carapaças de tartarugas marinhas,
âmbar. O peixe não só era consumido no local onde era pescado como também
era vendido, o que leva a supor uma atividade pesqueira em grande escala.
Sabe -se que as conchas eram utilizadas para a manufatura de pratos, colheres e
colares. De modo geral, os relatos árabes falam dessas atividades em todo o lito-
ral, sem maiores detalhes geográficos. No entanto, em sua descrição de algumas
cidades, al -Idrs faz da pesca a principal atividade de Malindi
3
.
A pesca e a coleta de frutos do mar estarão estreitamente ligadas ao desen-
volvimento da navegão em suas duas formas: por um lado, na arte da cons-
trução de navios e, por outro, no desenvolvimento dascnicas de navegão,
em particular da astronomia. Um estudo dos conhecimentos astronômicos
da época mostra, com efeito, que eles puderam ser desenvolvidos por meio
da navegação no oceano Índico; logo, há motivos para se acreditar que os
navegadores africanos tenham dado sua contribuão nesse sentido
4
.
Pode -se supor que a construção de navios não se limitava à fabricação de
mtumbwi (barcos talhados a machado) e de mitepe (almadias costuradas). O
autor anônimo português viu no porto de Kilwa muitos navios grandes, cujas
dimensões eram aproximadamente as de uma caravela de 50 toneladas; infeliz-
mente, não indicou a quem pertenciam. A existência de diversas categorias de
navios pode ser indiretamente deduzida do fato de haver, na língua kiswahili,
grande variedade de termos para designar navio”o que indica, provavelmente,
uma diferenciação específica, segundo a utilização que deles se fazia –, além do
fato de existir grande número de tipos de embarcação ao início do culo XX.
Caso essa hipótese seja verdadeira, ela invalida a tese de que os habitantes da
África oriental não praticavam o comércio marítimo no oceano Índico.
3 MATVEIEV & KUBBEL, 1965.
4 MISIUGIN, 1972, p. 165 -77.
514
África do século  ao século 
O comércio e o desenvolvimento da vida urbana
Os Swahili do povo viviam em cabanas de troncos e barro, cobertas de folhas
de palmeiras ou gramíneas. Essas cabanas se agrupavam em aldeias ou cidades.
É provável que as fontes árabes se refiram a esse setor da população swahili,
quando descrevem a caça ao leopardo ou ao lobo, a exploração de minério de
ferro para a venda, a arte de enfeitiçar animais ferozes para torná -los inofensivos
(por exemplo, para que não atacassem o homem), os cães ruivos utilizados na
caça aos lobos e aos leões e um tambor enorme, semelhante a um barril, ao qual
os Swahili devotavam um culto e cujo som era assustador
5
.
Mas a cultura da costa da África oriental não se resume a isso. Os árabes
também nos informam a respeito de outro tipo de civilização existente no litoral:
a civilização urbana, mais refinada e ligada ao desenvolvimento do comércio
marítimo. As diferenças de nível cultural foram notadas por autores árabes, e
Abū l -Kāsin al -Andalus indica que, nas populações como as da África oriental,
os habitantes das cidades extasiam sua alma com o estudo da filosofia
6
.
Parece que as cidades constituíam -se essencialmente de cabanas, mas também
devia haver construções em pedra, onde moravam os membros ricos e influen-
tes da sociedade swahili. As cidades eram principalmente centros comerciais
para onde afluíam mercadorias indígenas e onde aportavam navios estrangeiros.
Eram também centros de propagação do Islã.
Como as estimativas do valor das mercadorias eram variáveis, o comércio era
extremamente lucrativo: não sendo produzidos na rego, os bens importados eram
objetos de luxo, e aos olhos do comprador adquiriam mais valor do que realmente
tinham. Por outro lado, a abundância de produtos preciosos, como o ouro e o mar-
fim, e a certeza de sempre se poder obtê -las faziam com que seu valor diminuísse.
Além disso, a posição geográfica vantajosa – praticamente todo o litoral da África
oriental faz parte da zona das monções – favorecia a navegação no oceano Índico
e possibilitava a existência do comércio naquela parte do mundo.
No século XII, supõe -se que as correntes comerciais da África oriental pas-
sassem pelo arquipélago Lamu e por Zanzibar. Escavações arqueológicas em
Zanzibar mostram que o principal centro de comércio da área era a cidade de
Manda, na ilha de mesmo nome, que floresceu nos séculos IX e X da era cristã
e continuou ativa até o século XII ou mesmo XIII
7
. Após esse período, a maior
5 MATVEIEV & KUBBEL, 1965, p. 305.
6 Ibid., p. 194.
7 CHITTICK, 1967a, p. 4 -19.
515
O desenvolvimento da civilização swahili
parte do comércio começou a passar por Kilwa. A riqueza e o brilho da cidade
de Manda podem ser atestados pela grande quantidade de bens importados
que foram descobertos: cerâmicas islamos -sassânidas, celadons de Hue e
esgrafitos. Muitas delas, esmaltadas ou não, lembram as que foram descobertas
nas escavações de Siraf.
A descoberta de esrias de minério de ferro atesta a existência de fundões.
No entanto, é difícil avaliar a importância dessas fundições apenas pelo testemu-
nho arqueológico. Pode ser que as indicações de al -Idrsa respeito da cidade
de Malindi “O ferro é seu principal recurso e principal objeto de comércio
8
– dissessem respeito a toda a região e que de Malindi se transportasse o ferro até
Manda, cujo bem de exportação mais importante, fonte de riqueza da cidade, era
o marfim.
AI -Idrs também descreve outras cidades do litoral e das ilhas, mencionando
as seguintes: Marka (Merca), Brava, Malindi, Mombaça, Pangani (El -Banas)
e Ungudja (antigo nome de Zanzibar). Segundo uma nova identificação que
parece convincente, a cidade situada após Pangani, com o nome de Butakhna,
seria Kilwa
9
. Isso permite supor que Kilwa existia algum tempo, mas que
ainda não se tornara um dos grandes centros comerciais da costa. Fontes árabes
mais antigas também citam Sofala, de onde era exportado o ouro. Comparando -se
as informações, é possível localizar esses sítios na região de Kilwa.
As pesquisas arqueológicas efetuadas em Kilwa Kisiwani mostram o quadro
de uma vida comercial bastante ativa
10
. Foram encontrados um grande número
de cauris, usados como dinheiro, de cerâmicas de importação, do tipo esgrafito,
com decorações incisas em amarelo com reflexos acobreados ou recobertas de
esmalte verde -escuro, de objetos de vidro, e, em quantidade menor, contas de
vidro, de cornalina e de quartzo, e louça de esteatita de Madagáscar. O principal
produto de exportação era o ouro. Em meados do século XII, começou -se a
importar da China porcelana song e, em menor quantidade, celadons.
Os produtos de importação mais característicos de Gedi eram cerâmicas isla-
míticas pretas e amarelas”, esgrafitos com decorações incisas amarelas e verdes,
e vários tipos de celadons. Gedi e Mogadíscio que devia existir não são
mencionadas nas fontes árabes. Malindi e Mombaça eram centros comerciais
8 MATVEIEV & KUBBEL, 1965, p. 304.
9 TOLMACHEVA, 1969, p. 276.
10 As descrições das escavações arqueológicas realizadas na África oriental e da arquitetura swahili baseiam -se
nas seguintes obras: KIRKMAN, 1954a, CHITTICK, 1961, 1966, e 1967b, 1974, v. 2.
516
África do século  ao século 
F . Mapa das rotas de comércio interno e transoceânico das cidades da costa da África oriental
(V. V. Matveiev.)
517
O desenvolvimento da civilização swahili
F . Mapa das rotas de comércio interno e transoceânico das cidades da costa da África oriental
(V. V. Matveiev.)
518
África do século  ao século 
menos importantes de onde se exportava ferro e peles de leopardo; de Malindi
também se exportava peixe.
No começo do século XIII, Yākūt escreveu que Mogadíscio era uma das
cidades mais importantes da África oriental e que seus habitantes eram árabes
muçulmanos que viviam em comunidades. Na época, Mogadíscio exportava
ébano e sândalo, âmbar cinzento e marfim. O autor também notou a miscige-
nação de sua população e mencionou igualmente a existência das cidades de
Mtambi e Mkumbulu, na ilha de Pemba.
Cada uma dessas cidades tem seu sultão, independente do vizinho. Na ilha há mui-
tas aldeias e cidadezinhas. Seu sultão afirma que é árabe e que seus ancestrais são
originários de Kufa, de onde partiram para vir a esta ilha
11
.
Kilwa foi mencionada pela primeira vez com este nome na obra de Yākūt;
Yākūt foi também o primeiro a falar da cidade de Mafia, que ele situa não
numa ilha, mas no litoral, e da ilha de Tumbatu, em seu relato sobre Zanzibar
(Landjuia -Ungudja). Segundo ele, Zanzibar teria sido um Estado independente,
e a cidade de Ungudja, centro comercial frequentado por navios; os habitantes
de Tumbatu seriam muçulmanos.
Nessa época, Kilwa e provavelmente a ilha de Mafia eram governadas pela
Dinastia Shirazi. Em meados do século XIII, assistiu -se à luta entre Kilwa e o
povo Shanga, que possivelmente era a população da ilha Sanjo ya -Kati. A causa
provável do conflito era a rivalidade pelo domínio das correntes comerciais
que passavam pela região. Como atesta a Crônica de Kilwa, esta cidade teria
finalmente conseguido a vitória
12
, o que aparentemente teve por consequência
o desenvolvimento do comércio e da civilização swahili, que remonta ao início
do século XIV e coincide com a ascensão ao poder, em Kilwa, de uma dinastia
associada ao nome de Abū al -Mawāhib,
Naquela época, Gedi continuava a negociar os mesmos produtos alimentícios;
como no período precedente, os principais clientes tanto de Gedi quanto Manda
eram as cidades persas, principalmente a de Siraf.
O volume de mercadorias importadas por Kilwa aumentou sensivelmente. Entre
elas encontrava -se grande quantidade de esgrafitos, geralmente verde -escuros, mais
raramente amarelos com reflexos verdes; porcelanas chinesas da época song,
entre as quais alguns celadons; objetos de vidro, principalmente garrafas e
11 YĀKŪT, 1866 -1873, v. 4, p. 75 -6; v. 5, p. 302 e 699.
12 Kilwa chronicle, in FREEMAN -GRENVILLE, 1962a.
519
O desenvolvimento da civilização swahili
frascos, às vezes ornados com motivos em relevo, e que serviam, provavelmente,
para conservar perfumes e quermes (khōl).
Os objetos de vidro encontrados em Gedi se parecem, na forma e na deco-
ração, com os encontrados nas escavações de Kilwa. São, principalmente em
Gedi, em sua maioria, garrafas e frascos, provavelmente originários do Iraque
ou do Irã. Importavam -se cada vez mais louça de esteatita e contas de vidro de
Madagáscar, sobretudo três variedades de contas, ornadas com pequenas inci-
sões, e, mais raramente, contas em forma de bastonetes.
O comércio parece ter alcançado o apogeu no século XIV. A fonte mais
importante em língua árabe sobre esse período é a obra de Ibn Battūta, que
visitou a África oriental
13
em 1332. Ele descreveu Mogadíscio como grande
centro comercial; explicou que era costume que o comerciante estrangeiro, ao
chegar, procurasse entre os habitantes da cidade um agente de confiança, para
tomar conta de seus negócios. Essa prática também é mencionada por Yākūt,
mas ele não entra em muitos detalhes. Além dos produtos descritos por Yākūt,
Mogadíscio também comerciava seus makdāshī, ou seja, “tecidos de Mogadíscio”.
A rede comercial de Mogadíscio não era a mesma que a das cidades mais meri-
dionais. Assim, os makdāshī eram vendidos até no Egito, enquanto do Egito e
de Jerusalém vinham outros tipos de tecido. As outras cidades da África oriental
não mantinham relações com o Egito ou com a Síria.
No culo XIV, Manda havia perdido sua importância; a de Malindi,
Mombaça e outras cidades continuava insignificante. De acordo com as pes-
quisas efetuadas por H. N. Chittick, foi somente nessa época que a cidade de
Patta surgiu, na ilha de mesmo nome
14
.
Os intercâmbios: centros, produtos, quantidade
No século XIV, Gedi começou a importar novos produtos: manteve até
meados do século XIV a importação de esgrafitos, pouco a pouco substituídos
por cerâmicas verde e azul de esmalte muito fino e brilhante, que aparentemente
provinham do Irã. Também encontravam -se entre as mercadorias vários tipos de
celadons, de porcelanas brancas e todos os tipos de contas: de barro vermelho,
redondas ou alongadas, de cerâmica, de vidro, ornadas com pequenas incisões
ou com forma de bastonete etc.
13 IBN BATTŪTA, 1853 -1859, v. 2, p. 176 et seqs.
14 CHITTICK, 1967a, p. 27 -9.
520
África do século  ao século 
F . Siyu, ilha de Pate: prato de porcelana chinesa engastado num túmulo, mostrando a utilização
feita da porcelana.
F. Ilha de Maa: pratos de porcelana chinesa engastados no muro kibla, na mesquita de Juma.
521
O desenvolvimento da civilização swahili
O centro comercial mais importante era Kilwa, onde o volume de cerâmica
importada tinha aumentado muito. Havia pouca cerâmica islatica: as maispicas
eram vasos de qualidade, com desenhos negros e esmalte amarelo -fosco, prova-
velmente fabricados em Aden, de onde eram importados. Durante a segunda
metade do século XIV, apareceram cerâmicas islamíticas monocrômicas, de forma
semi esférica, borda arredondada, com o corpo esmaltado de verde -claro.
Importavam -se cada vez mais porcelanas da China, principalmente celadons,
frequentemente azulados. Encontrou -se grande número de celadons em forma
de tus. A porcelana de barro branco -azulado, de estilo antigo, era mais rara. No
entanto, havia muitas cemicas chinesas verde -pálidas, com desenhos negros incisos
sob o esmalte. Também era maior a quantidade de contas em forma de bastonete,
comparada ao número daquelas com incisões; ao mesmo tempo, começaram a sur-
gir contas alongadas azul -cobalto. Os vasos de esteatita deixaram de ser importados,
embora, aparentemente, os objetos de vidro continuassem os mesmos.
No século XV, encontravam -se em Gedi os mesmos objetos de importação
do século precedente, ou seja, cerâmicas islamíticas verdes e brancas, recobertas
de fino esmalte brilhante. Pela primeira vez apareceram porcelanas de barro
branco -azuladas, cujos motivos são de um estilo característico da época ming,
no século XV.
A importação de contas de vidro apresentava praticamente as mesmas caracte-
rísticas do século precedente, mas não se importavam mais tantos objetos de vidro.
Geralmente, considera -se o século XV em Kilwa como época de relativa decadên-
cia devido às lutas internas pelo poder entre as várias facções da camada superior
da sociedade. As importações, pom, continuavam a aumentar, principalmente
as de cerâmicas islamíticas monocrômicas, cuja qualidade havia melhorado um
pouco. Sua cor ia do verde -azulado ao verde. Havia o dobro de porcelana chinesa
que de cerâmica islamítica; aqui também os objetos de porcelana mais difundidos
eram celadons e objetos de barro branco -azulado. Também encontrava -se um
grande número de recipientes de vidro, principalmente garrafas. Quanto às contas
de vidro, eram quase todas vermelhas, em forma de bastonetes.
Os produtos de exportação, como dissemos, eram sobretudo o marfim e
o ouro, além de escravos (Ibn Battūta descreve razias cujo objetivo era capturar
escravos), presas de rinocerontes, âmbar cinzento, pérolas, conchas e, nas regiões
setentrionais, peles de leopardo.
Outra mercadoria importante, que era em parte importada e, em parte, bricada
na região, eram os tecidos de algoo, que representavam, aparentemente, grande
volume na massa de intercâmbios. Sabe -se que no século XV quantidades con-
sideráveis de tecidos de algodão chegavam a Mombaça e a Kilwa, de onde eram
522
África do século  ao século 
F . Mapa da ilha e da cidade de Kilwa. (V. V. Matveiev.)
523
O desenvolvimento da civilização swahili
reexpedidas para Sofala
15
. Pode -se imaginar a importância dessa mercadoria
pelo registro encontrado na Crônica de Kilwa de que a ilha de Kilwa fora com-
prada, e o preço havia sido uma quantidade de tecido correspondente ao seu
perímetro.
O comércio marítimo que ligava a costa da África oriental e as ilhas aos
países da costa setentrional do oceano Índico favoreceu os contatos entre os
habitantes dessas regiões, enriquecendo -os. Essas relações comerciais eram parte
de um processo mundial e constituíam um ramo da grande via comercial
que ligava o Ocidente ao Oriente, onde os portos da África oriental não eram
terminais, pois outra ramificação conduzia a Madagáscar. Sem dúvida, existia
contato entre o litoral e os territórios auríferos do interior, próximos do lago
Niassa; dali vinha o ouro que chegava a Kilwa. A partir do século XIV, algumas
regiões auríferas de Sofala passaram para o domínio dos sultões de Kilwa, que
começaram a nomear governadores para a região. A antiguidade dos contatos é
atestada por descobertas arqueológicas de objetos provenientes do litoral ou até de
paíseso africanos. G. Caton -Thompson já notara que as contas amarelo -lio
descobertas nas escavações do Zimbábue eram parecidas com as contas de vidro
encontradas em várias regiões da Índia no século VIII da era cristã
16
. O vidro
azul -claro e verde encontrado também no Zimbábue pode ter a mesma origem:
parece muito com o vidro da Índia ou da Malásia.
Da mesma forma, o exame atento das cerâmicas locais de Gedi (classes 1 e
2) e sua semelhança com uma das variedades de cerâmica encontradas no Zim-
bábue permitiram a J. S. Kirkman concluir que existiam relações entre o litoral
e os proprietários das minas de ouro no interior do continente
17
. As regiões
auríferas próximas do rio Zambeze, no interior do continente e no território
da atual República de Zâmbia, foram sem dúvida as primeiras com as quais se
estabeleceram relações comerciais, o que pode ser comprovado pela descoberta
de cauris que eram trocados por ouro e marfim, em Gokomera e Kolomo.
No atual território da República Unida da Tanzânia, na região de Engaruka,
as escavações numa aldeia ligada ao comércio permitiram que se descobrisse
o mesmo tipo de cauris e de contas de vidro (dos séculos XV e XVI) que as
encontradas em Kilwa e outras cidades do litoral.
Finalmente, al -Idrs, no século XII, observou a existência do comércio de
caravanas com as regiões do interior.
15 STRANDES, J., 1899, p. 97 -100; 1961.
16 CATON -THOMPSON, 1931, p. 81.
17 KIRKMAN, 1954a, p. 72 -3 e 78 -9.
524
África do século  ao século 
Como não tinham animais de carga, eles próprios transportavam as mercadorias.
Carregavam -nas sobre a cabeça ou nas costas até duas cidades, Mombaça e Malindi,
onde vendiam e compravam
18
.
Os primeiros meios de troca utilizados nas relações comerciais foram princi-
palmente os cauris, encontrados em todas as escavações, no litoral e no interior.
Aparentemente as contas de vidro e, mais tarde, a porcelana da China também
desempenharam esse papel. Nas regiões de comércio mais intenso apareceu um
novo meio de troca, na forma de moeda metálica, cujos centros de fabricação
parecem ter sido Kilwa e Mogadíscio. De acordo com as pesquisas de G. N.
Chittick, as moedas de bronze e prata surgiram em Kilwa com o advento da
Dinastia Shirazi, no final do século XII
19
. Ao contrário das moedas de Kilwa,
o único exemplar encontrado em Mogadíscio traz a data de 1332
20
. As moe-
das encontradas no litoral não se distribuíam de forma equitativa ao longo da
costa. G. S. P. Freeman -Grenville
21
observa que nenhuma foi encontrada entre
Mnarani e Kilwa Masoko, e atribui essa ausência à falta de pesquisas arqueo-
lógicas na área. Seja por esse motivo, seja por que não se cunhavam moedas e,
assim, elas não eram utilizadas na região, o fato é que só foram encontradas nos
grandes centros comerciais, em Kilwa Kisiwani e Kisimani Mafia, em Kwa na
ilha Djwani, nas ilhas de Zanzibar e de Pemba, além de alguns exemplares no
Quênia. A presença de moedas permite supor que o comércio local tenha se
desenvolvido sensivelmente na costa e nas ilhas circunvizinhas, tornando neces-
sária a adoção dessa forma de pagamento. As moedas deviam ter um valor de
troca maior que o dos cauris, e sua introdução parece demonstrar a importância
das operações comerciais. Essa hipótese é confirmada pelo fato de a mercadoria
principal de Kilwa ser o ouro, cujo valor intrínseco era muito alto. Por outro lado,
a abundância de ouro, considerado como mercadoria, devia ser obstáculo à sua
transformação em meio de troca. As regiões onde foram encontradas moedas
podem servir como indicação da extensão geográfica do comércio local. Além
disso, é provável que a explicação para a ausência de informações sobre o local,
a data de cunhagem e o valor nas moedas de Kilwa seja dada pelo fato de que,
anteriormente, quando os pagamentos eram feitos em cauris; o que importava
era o número de unidades.
18 MATVEIEV & KUBBEL, 1965, p. 305.
19 CHITTICK, 1965.
20 CHITTICK, 1971.
21 FREEMAN -GRENVILLE, 1957, 1960a.
525
O desenvolvimento da civilização swahili
Grande fonte de lucros, o corcio foi a base da riqueza das cidades do litoral e
do desenvolvimento social e cultural da sociedade swahili. Por sua própria natureza,
permitiu contatos com várias civilizões, como a árabe, a persa e a indiana. Apesar
da enorme quantidade de objetos provenientes da China encontrados nas escava-
ções, este país o participou diretamente do corcio com a África antes do culo
XV. De acordo com as pesquisas recentes de V. A. Velgus, um dos especialistas mais
competentes em fontes escritas chinesas, os navios chineses am de o alcançarem
o golfo Pérsico,o ultrapassavam, a oeste e ao sul, as ilhas de Sumatra e Java;o
chegavam, portanto, à costa da África oriental
22
. As primeiras indicações da chegada
de esquadras chinesas à costa da África oriental datam de 1417 -1419 e de 1421-
-1422; eram comandadas por Cheng -Ho.
A civilização swahili (do século XIII ao século XV)
Esta riqueza e estes contatos influenciaram o desenvolvimento econômico,
social e cultural da África oriental. Por um lado, as aldeias transformaram -se
em cidades. Por outro, formou -se na sociedade swahili um grupo influente, que
começou a competir pelo poder com a antiga nobreza, cujos donios e influência
eram associados a fuões sociais tradicionais. Para reforçar sua posição, o novo
grupo tinha necessidade de uma nova ideologia, o islamismo, conhecido através
de contatos com árabes e persas. As circunstâncias históricas permitiram que
o Islã se difundisse na África oriental, partindo do princípio que, em caso de
necessidade, as pessoas adaptam suas necessidades a uma realidade estrangeira,
porém existente, antes de, analogamente, criar a sua própria. As condições
concretas dessa difusão não são conhecidas; pode -se, no entanto, afirmar que
o Islã não foi imposto à força, como durante a conquista árabe. Também não
houve proselitismo em favor da religião muçulmana. É possível, então, pensar
a conversão ao islamismo como voluntária, exprimindo a necessidade profunda
da sociedade em adotar uma nova ideologia.
A penetração do Islã começou, aparentemente, entre o fim do século VII e o
início do VIII. No século X, al -Mas‘ūd mencionou a presença de muçulmanos,
que falavam uma língua africana, na ilha de Kambala. Atribui -se a essa época
a difusão do Islã pelas ilhas da costa da África oriental: no século XIII, a nova
religião comou a se espalhar pelo pprio litoral. Era, evidentemente, diferente
da religião muçulmana dos pses árabes. Provavelmente, como demonstrou J. S.
22 VELGUS, 1969.
526
África do século  ao século 
Trimingham a respeito de período mais recente, o que importava, no início,
era simplesmente ser considerado muçulmano, e esta religião coexistia com os
cultos tradicionais
23
. Este fato é por si mesmo muito importante, pois ilustra o
enfraquecimento e o desaparecimento de velhos laços sociais, que cederam lugar
a novos. Além disso, pode -se supor que o Islã também era traço de realce na
diferenciação com os outros africanos não muçulmanos. No início, o Islã mar-
cava essencialmente as aparências, mas com o tempo sua influência tornou -se
mais profunda, à medida que o número de adeptos aumentava. A prova externa
destas mudanças foi o crescimento do número de mesquitas.
O progresso e difusão do Islã
O começo da expansão do Islã deve, sem dúvida, remontar às últimas décadas
do século XII, e seu desenvolvimento ocorreu nos séculos XIV e XV. Assim,
em 1331 -1332, Ibn Battūta descreveu Mogadíscio como uma cidade bastante
islamizada. Dos habitantes de Kilwa acrescentou ainda que “suas maiores qua-
lidades são a e a justiça”; seu sultão recompensava os devotos e os nobres
24
Sabemos da existência de mesquitas nesta época em Mogadíscío, Gedi, Kaole,
Kilwa, Sanjo Magoma etc.
A conversão ao Islã representava, aparentemente, a passagem a uma nova
etapa, inevitavelmente a outras formas de conduta e de vida. A manifesta-
ção concreta da mudança consistia na adoção de vestimentas, nomes e títulos
muçulmanos. Este último ponto tinha importância particular na tomada de
consciência dos novos laços sociais, embora tenha sido um processo gradual,
que passou por uma fase de coexistência dos títulos antigos (africanos) e novos
(muçulmanos) por exemplo, o de mfalme e sultão –, resultando, por fim, no
desaparecimento dos primeiros. Também é possível supor que, na prática, as
prescrições e proibições do Islã não foram adotadas em sua totalidade, e que os
costumes e ritos ligados aos cultos tradicionais perpetuaram -se.
Os primeiros a abraçar o Islã foram, provavelmente, os ricos comerciantes,
seguidos pela antiga nobreza e, finalmente, por certas camadas populares, ou seja,
membros da comunidade que ambicionavam chegar ao nível de seus opulentos
correligionários.
A aparição e difusão do Islã levaram à adoção, nesta área da África, de traços
de civilização aplicáveis ao contexto local. Dando crédito a Ibn Battūta, que
23 TRIMINGHAM, 1964, p. 24 -8 e 46 -7.
24 IBN BATTŪTA, 1853 -1859, v. 2, p. 194.
527
O desenvolvimento da civilização swahili
menciona cádis em Mogadíscio e Kilwa
25
, pode -se concluir que a sociedade
swahili começou a aplicar alguns elementos, mas não todos, do sistema jurídico
muçulmano.
A introdução e a difusão do Islã num clima de intensas atividades comer-
ciais explicam a utilização de muitos termos da língua árabe, principalmente no
comércio, na religião e na justiça. Adotou -se para a língua kiswahili, pelas neces-
sidades do comércio e da religião, para os registros dos ritos que deveriam ser
observados, e para a codificação dos direitos e privilégios das diversas camadas
da sociedade swahili, uma escrita baseada na grafia árabe. Como demonstrou V.
M. Misiugin, é preciso saber kiswahili para ler a escrita, isto é, ela pode ter
sido criada pelos Swahili. A criação remontaria, segundo o próprio Misiugin, a
um período entre o século X e o XIII
26
.
Urbanismo e arquitetura
Outra consequência da difusão do Islã, além do surgimento de mesquitas no
território swahili, foi o desenvolvimento das construções em pedra.
As escavações dirigidas por J. S. Kirkman e G. N. Chittick permitem que
comecemos a traçar um quadro geral da evolução da arquitetura nas ilhas e na
costa da África oriental. Seu início remonta ao século XII em Gedi, Zanzibar
e Kilwa. O primeiro período caracteriza -se por uma técnica de construção que
consistia em assentar blocos de coral com argila vermelha. O único monu-
mento da época, mencionado nas fontes escritas, é a grande mesquita de Kilwa,
infelizmente reconstruída várias vezes, nada restando da obra original. Outro
vestígio do século XII, que traz a data de 1107, é uma inscrição da mesquita de
Kizimkazi em Zanzibar, que hoje orna uma mesquita do século XVIII.
Do século XIII, conhecemos três mesquitas em Kisimani Mafia, a parte norte
da grande mesquita de Kilwa, uma pequena mesquita na ilha de Sanjo ya Kati,
dois minaretes próximos a Mogadíscio – um tem a data de 1238 –, e, no mihrāb
da mesquita de Fakhr al -Dn, a indicação do ano de 1269. Houve poucas
mudanças nas técnicas de construção em relação ao século anterior: grandes e
de forma rudimentar, os blocos de coral, de 25 a 30 cm, eram fixados com cal
obtida da calcinação do coral
27
.
25 Id., ibid., p. 183 -4;
26 MISIUGIN, 1971, p. 100 -15.
27 Essas indicações baseiam -se no artigo de CHITTICK, 1963a, p. 179 -90.
528
África do século  ao século 
No século XIV, Kilwa, principal centro comercial, passou por período de
grande desenvolvimento na sua arquitetura
28
. Começaram a utilizar pedras de
tamanho mais ou menos idêntico, fixando -as com argamassa. Conseguia -se,
assim, simplificar ainda mais a construção, apesar de sua qualidade ser natural-
mente inferior à do século precedente. As pedras só eram talhadas com cuidado
para o acabamento do mihrāb e esquadrias de portas e janelas. Surgiram novos
elementos arquitetônicos: cúpulas esféricas ou pontudas, arcos semicirculares,
colunas de pedra, baixos -relevos ornamentais. No entanto, parece que essas rea-
lizações limitaram -se a Kilwa; em outros locais, os tetos continuaram planos.
O monumento mais notável da época é o palácio fortaleza ou centro
comercial de Husuni Kubwa. A menção ao nome do sultão al -Hasan Ibn
Sulaymān II (1310 -1333) levou G. N. Chittick a propor o século XIV como
data de construção deste edifício, que serviu de modelo para a arquitetura das
casas das camadas ricas da população. De modo geral, as habitações tinham face
norte ou leste, com pátios adjacentes em frente. A morada comportava vários
quartos longos e estreitos. A comprida parede do primeiro deles provavel-
mente o vestíbulo – era contígua ao pátio, com uma porta de acesso. Os outros
quartos eram paralelos ao primeiro. Seu número variava, mas geralmente havia
uma peça principal após o vestíbulo e, em seguida, um dormitório. Nos fundos,
à direita, situavam -se os banheiros, ao lado dos quais se encontravam instalações
destinadas às abluções. Como não havia janelas, a não ser na fachada voltada
para o pátio, os quartos interiores eram sempre escuros. Este tipo de moradia
era comum em Gedi, Kisimani Mafia, Kaole e Kilwa. O conjunto de Husuni
Kubwa compunha -se, em grande parte, de habitações deste tipo; o resto do ter-
reno era ocupado aparentemente por uma piscina. Este monumento, único na
arquitetura da África oriental, é verdadeira obra -prima, apesar de sua finalidade
ainda não ter sido esclarecida.
Outro monumento notável do século XIV é a grande mesquita de Kilwa,
reconstruída nessa época.
Durante o culo XIV, Kilwa foi coberta de casas de pedra e tornou -se
uma grande cidade, mostrando, incontestavelmente, sua crescente opulência. O
desenvolvimento da construção prosseguiu na primeira metade do século XV,
acompanhado por um aperfeiçoamento das técnicas. Derramava -se argamassa
misturada a cascalho num molde, método utilizado até para a construção de
cúpulas. As colunas, até então monolíticas, passaram a ser feitas de uma mistura
28 Para qualquer informação sobre arquitetura, técnicas de construção e resultados de escavações arqueológicas
em Kilwa, consultar principalmente o notável trabalho de CHITTICK, 1974.
529
O desenvolvimento da civilização swahili
de pedras e argamassa. Manteve -se o tipo básico de casa, que passou, por vezes, a
mostrar um ou dois andares. Detalhe característico da época consistia em utilizar
vasos esmaltados de porcelana da China ou da Pérsia no corpo da construção,
para decorar abóbadas e cúpulas. A casa com uma mesquita dentro dos limites
de Makutani é típica da arquitetura da época em Kilwa.
No reinado do sulo Sulaymān Ibn Muhammad al -Mālik al -‘Ādil (1412 -1442),
a grande mesquita de Kilwa uma das obras -primas da arquitetura swahili da
África oriental acabou de ser reconstruída, adquirindo seu aspecto atual (ver
fig. 18.5).
Muitas são as opiniões sobre esta arquitetura. G. S. P. Freeman -Grenville,
por exemplo, partindo da semelhança entre a estrutura de certas construções de
Kilwa (principalmente o palácio do século XVIII) e das casas comuns de taipa
29
,
conclui sobre a origem local, africana, das construções em pedra. Os arqueólogos
J. S. Kirkman e G. N. Chittick supõem que os árabes e os persas estejam na ori-
gem desta evolução; observam, no entanto, que vários detalhes das construções
são incompatíveis com as regras do Islã aplicadas nos países árabes. J. S. Kirkman
descobriu na mesquita de Gedi motivos de decoração em forma de pontas de
lança, inadmissível na Arábia ou no Irã. G. N. Chittick escreve que
no plano material, e mais especialmente na arquitetura, a população da costa desen-
volveu uma civilização original em muitos aspectos, que podemos definir como
proto sswahili’
30
.
Esta opinião é próxima da de J. E. Sutton e P. S. Garlake:
Por sua estrutura e seu estilo de construção religiosa e civil, por suas técnicas de
construção, com suas moldagens em pedra talhada e motivos de decoração, a arqui-
tetura swahili conservou, ao longo dos séculos, tradições originais que a distinguem
da dos árabes, persas e de outros países muçulmanos
31
.
Eles, no entanto, parecem querer enfatizar a origem não africana desta arqui-
tetura, seu caráter não criador”, pois precisam que se trata mais “de obras de
mestres pedreiros do que de arquitetos”
32
. Apesar de não dispormos da obra de
Sutton e Garlake, gostaríarnos de observar que o que aparentemente chamam
de caráter não criador poderia refletir o esforço consciente dessa arquitetura em
29 FREEMAN -GRENVILLE, 1962, p. 92.
30 CHITTICK, 1971, p. 137.
31 SUTTON, J. E. & GARLAKE, P. S. Tanzania notes and records, n. 67, 1967, p. 60.
32 Ibid.
530
África do século  ao século 
adotar certos modelos; se considerarmos, por exemplo, a evolução das técnicas
de construção, podemos constatar sua adaptação racional aos materiais da região,
que se soube utilizar da melhor maneira possível.
De acordo com as fontes portuguesas, as ruas de Kilwa eram estreitas e ladeadas
de casas de taipa, cobertas com ramos de palmeira. Nos bairros de casas de pedra,
as ruas também eram estreitas e havia bancos de pedra ao longo das paredes
das habitações.
A construção mais importante da cidade era o palácio, que provavel-
mente tinha dois ou a mesmo três andares em algumas partes. As portas
das edificões eram de madeira, assim como outros elementos decorativos,
de madeira ricamente esculpida. Este tipo de decorão era bem comum em
rios pontos do litoral, principalmente em Bagamoyo e Zanzibar. Duarte
Barbosa
33
sublinha o alto nível desta arte, o que leva a supor que sua origem
33 BARBOSA, 1918, v. 1. p. 17 -31.
F . A grande mesquita de Kilwa, com suas duas partes geminadas. (Fonte: Bernheim, M. & Ber-
nheim, E./Agence Rapho, 1979.)
531
O desenvolvimento da civilização swahili
remonte a culos anteriores. Como se sabe, os portugueses se impressiona-
ram com o aspecto das cidades, cujas constrões em nada ficavam a dever
às de Portugal, e com a riqueza de seus habitantes, a elencia das roupas, de
seda ou de algodão, ricamente bordadas em ouro. As mulheres usavam brincos
de pedras preciosas e, nos braços e tornozelos, correntinhas e braceletes de
ouro e prata.
O alto nível de desenvolvimento da civilizão swahili pode ser avaliado
pela descoberta, nas escavações, de luminárias de terracota, presumivelmente
usadas para iluminar as partes escuras das casas, o que leva a supor que as
pessoas tinham o hábito de ler, escrever, fazer contas etc. Também se utiliza-
vam velas. Compunham o mobiliário tapetes e esteiras e, às vezes, tamboretes
e camas suntuosas com incrustrões de marfim, madrepérola, prata ou ouro.
Na casa dos abastados encontrou -se cerâmica importada: faianças e porcelanas
do Iraque, do Irã, da China e também do Egito e da Síria. A cerâmica local
era utilizada em geral para a preparação de alimentos, e pela população mais
pobre. No período entre os séculos XII e XV, havia dois tipos principais de
cerâmica com muitas variantes quanto à forma e à decorão; vasos com base
redonda ou pontuda, que se destinavam ao uso sobre o fogo; e vasos largos
e pouco profundos, parecidos com tigelas ou pratos fundos, provavelmente
utilizados para a alimentão.
As estruturas do poder
Centros de intercâmbio comercial e de difusão do Islã, as cidades swahili da
África oriental eram também frequentemente unidades administrativas, capi-
tais de pequenos Estados dirigidos por dinastias muçulmanas locais. O melhor
exemplo desses centros é Kilwa, bem conhecida como sede administrativa de
uma dinastia, graças às duas versões de sua Crônica
34
. Segundo esta fonte, a
dinastia cujos membros não eram africanos, mas persas era originária da
cidade de Shiraz. Em quase todas as cidades da África oriental existem mitos
semelhantes, mas permanece a questão sobre a origem da camada dirigente das
cidades swahili, que constituía um grupo social rico e islamizado. A resposta a
essa questão seria significativa para se poder determinar se a civilização swahili
é africana ou se foi trazida à África por estrangeiros.
34 FREEMAN -GRENVILLE, 1962a e 1962b.
532
África do século  ao século 
F . Vista geral do portal de entrada do forte de Kilwa Kisiwani.
F . Detalhe do portal de entrada do forte de Kilwa Kisiwani. (Fotos S. Unwin.)
533
O desenvolvimento da civilização swahili
F . Ilha do Songo Mnara: ruínas da mesquita de Nabkhani .
F . Mihrāb da grande mesquita de Gedi. (Fotos S. Unwin.)
534
África do século  ao século 
Do mito à realidade histórica
Atualmente duas teorias a respeito de tal matéria. De acordo com a
primeira, a civilização que se desenvolveu na costa da África oriental é obra de
persas e árabes; eles teriam construído as cidades, introduzido o Islã, difundido
sua própria cultura, que seria de nível superior à dos africanos; ou, ao menos,
estariam na origem desta evolução, a que teriam dado o primeiro impulso. À
população local se atribui papel passivo, então; os recém -chegados teriam se
cercado de grande número de empregados domésticos, mulheres, protegidos etc.,
africanos e teriam sido assimilados mais ou menos rapidamente. Ao invés de se
desenvolver, a herança cultural dos africanos teria, aos poucos, se degradado, de
forma que,o fossem as contribuições do exterior, todo o desenrolar da história
da África teria ocorrido em circuito fechado.
Elaborada no fim do século XIX por J. Strandes
35
, esta teoria baseia -se na
filosofia da história de Hegel, segundo a qual todos os povos do mundo se
dividem entre os que exercem uma ação histórica, sendo capazes de criar, e
os que, fora da história, passivos, incapazes de criar, esperam ser guiados pelos
povos ativos. Esta concepção ernea pode ser encontrada, atualmente, com algumas
variações, nos trabalhos de historiadores como J. Gray
36
, G. Mathew
37
, R. Oliver
38
e
G. S. P. Freeman -Grenville
39
, ou nos de arqueólogos como J. S. Kirkman
40
, para citar
apenas nomes ligados à historiografia da África oriental.
A outra concepção, desenvolvida no Ocidente pelo arqulogo G. N. Chittick
41
e
na União Sovtica por V. M. Misiugin
42
, ainda é objeto de estudos complementa-
res. Aproxima -se, aliás, do ponto de vista de historiadores africanos, como Joseph
Ki -Zerbo
43
e Cheikh Anta Diop
44
. Baseia -se na hipótese de uma participação
ativa e dirigente dos africanos em sua própria história. Afirma, fundamentando -se
em pesquisas sérias e objetivas, que as dinastias dos principados urbanos são de
origem incontestavelmente africana.
35 STRANDES, 1899.
36 GRAY, J. M., 1962, p. 622.
37 MATHEW, 1953 e 1956.
38 OLIVER & MATHEW, 1963; OLIVER, 1962.
39 FREEMAN -GRENVILLE, 1958 e 1962a.
40 KIRKMAN, 1954b.
41 CHITTICK, 1974.
42 MISIUGIN, 1966.
43 KI -ZERBO, 1972, p. 10 -2, 190 -2.
44 DIOP, 1955, p. 19.
535
O desenvolvimento da civilização swahili
O sistema de transmissão de poder
V. M. Misiugin pesquisou a Crônica da cidade de Pate, demonstrando que
existia, antes do advento da Dinastia Nabkhani, um Estado dirigido pelos
Wapate, antiga aristocracia que gozava do privilégio do poder real e portava o
título de mfalme.
Em virtude das regras jurídicas consagradas pela tradição para o título e a função de
mfalme, a dinastia reinante de Pate devia conservar, como necessidade de sobrevivência,
um sistema de divio em grupos por grau de parentesco. Nesse sistema os homens
do clã Wapate que portavam e transmitiam o título de mjalme pertenciam ao mesmo
grupo de idade [à mesma geração] – o ndugu. Nestas condições, o título de mfalme era
transmitido, o de um indivíduo para o outro, mas de uma geração a outra, ou seja,
a todo o ndugu. Como os Wapate eram uma aristocracia fechada, o ndugu devia ser
bastante restrito, mas contava alguns indivíduos. O título de mfalme o era vitalício;
passava de um indivíduo a outro do ndugu, à medida que cada um atingia a maioridade.
Um homem atingia formalmente a maioridade ao se casar. Em razão do caráter
fechado do clã aristoctico, os homens casavam com mulheres do mesmo clã, que, por
sua vez, faziam parte do ndugu da mesma geração. A transmissão do título de mfalme
ocorria durante a cerimônia do casamento.
De acordo com a tradição, todos os Wapate portavam, por certo tempo, o título de
mfalme, que conferia o poder supremo. Os homens, então, deviam desempenhar as
funções ligadas ao título, enquanto as mulheres eram depositárias deste poder.
Assim, Sulaymān, fundador da dinastia nabkhani, recebeu o título de príncipe, con-
forme a tradição, por ter esposado uma mulher al -Bataviyuni [Wapate]. O título de
príncipe foi -lhe conferido, não porque sua esposa fosse filha do príncipe da época – o
que era uma circunstância fortuita –, mas porque ela pertencia ao ndugu da geração
seguinte
45
.
Não se pode, no entanto, pela sobrevivência da regra do ndugu, concluir que
a sociedade swahili permaneceu no estado clânico:
A regra do ndugu significa, originariamente, que, em determinada época, os Wapate,
que tinham preponderância econômica sobre os outros clãs, reservaram para si um
elemento do sistema de relações de parentesco, privando, no mesmo ato, os outros
do direito ao poder supremo
46
.
45 MISIUNGIN, 1966, p. 61.
46 Ibid., p. 63.
536
África do século  ao século 
Consequentemente, o advento de Sulayn, fundador da Dinastia Nabkhani, e o
fato de ter chegado ao poder pelo casamento testemunham a antiguidade da divio
social em classes entre as populações do litoral. No entanto Sulayn não pertencia
ao grupo de príncipes Wapate; era ligado ao clã por sua mulher, atras da qual
havia recebido o título. Dessa forma, o grupo de pncipes corria o risco de perder o
direito ao título, que pelo regulamento do ngudu, este deveria ser transmitido aos
iros do marido, que poderiam o ser casados com mulheres wapate. A esposa do
príncipe, que pertencia ao clã Wapate, tornava -se, eno, depositária do direito abs-
trato ao tulo de príncipe, cuja função efetiva era desempenhada pelo marido. Assim,
as origens do marido não tinham muita imporncia; o essencial era que se tornara
parte do sistema existente, próprio do litoral africano e originariamente africano.
Tentamos aplicar estes princípios de pesquisa ao estudo da Crônica de Kilwa,
e, ao que parece, a regra do ngudu também comandou o modo de transmissão
do poder nesta cidade. Isso fica mais claro particularmente na passagem do
primeiro capítulo, onde é mencionado Muhammad Ibn ‘Al, primeiro príncipe
reinante, sucedido por seu terceiro irmão, Baskhāt Ibn ‘Al, e depois pelo filho
deste último, Al (Ibn Baskhāt), que, segundo a Crônica, se apropriou do poder
em detrimento dos tios paternos, Sulaymān, al -Hasan e Dāwūd. É clara a alusão
à regra de sucessão, que foi transgredida: o poder não deveria ter sido entregue
a ‘Al Ibn Baskhāt, mas sim aos tios.
Indicação análoga pode ser encontrada no terceiro capítulo da Crônica, que
trata dos respectivos direitos dos irmãos al -Hasan Ibn Sulayn al -Matūn
e Dāwūd ao título de sultão. wūd, nas funções de sultão, considerava -se
representante do irmão durante sua ausência e reconhecia que deveria a ele se
submeter, caso voltasse. Essa observação nos parece ainda mais interessante pelo
fato de os dois irmãos pertencerem à dinastia Abū al -Mawāhib, originária do
Iêmen e à qual se atribui o florescimento da civilização de Kilwa.
É também interessante observar que a Crônica de Kilwa (em sua variante
swahili), como a Crônica de Pate, relata que o primeiro sultão da cidade era um
persa que esposou a filha do chefe local.
Pode -se concluir, pela adão da regra do ngudu como modo de transmissão
do poder, que a organizão estatal nas cidades africanas era de origem local, assim
como a regra do ndugu era uma instituão social de origem puramente africana.
A ascensão ao poder através do casamento com a filha do chefe local não é
fenômeno exclusivo de Pate e Kilwa; G. S. P. Freeman -Grenville cita em sua
obra muitos outros casos idênticos. Parece, então, possível admitir a hipótese de
que a mesma situação de Pate predominou em todo o litoral, sob o aparente
domínio do Islã, de seus costumes e regras.
537
O desenvolvimento da civilização swahili
O Islã e a ideologia do poder
A influência do Islã estava ligada ao papel cada vez mais importante das
camadas sociais swahili enriquecidas pelo comércio. A situação destas camadas
sociais parece ter -se tornado tão boa que a velha aristocracia também tentou
reforçar sua posição através do Islã, principalmente por alianças matrimoniais
com muçulmanos ricos, que, por sua vez, para se igualarem aos aristocratas
locais, tendiam a dizer -se de descendência árabe, às vezes até de famílias árabes
ou persas célebres na história dos países muçulmanos.
Assim, os antigos mitos swahili que narram a chegada de grupos muçulmanos, mais
ou menos numerosos, às cidades da África oriental nos séculos VII e VIII e, depois,
nos séculos IX e X, são substituídos pelos relatos da chegada, provenientes da Arábia
e da Pérsia, dos fundadores das dinastias reinantes em muitas cidades swahili e da
fundação destas cidades por árabes e persas
47
Tais mitos não são fenômenos isolados, podendo -se encontrar muitos deles
no Kitāb al -Zanūdj
48
, bem como em outras épocas e outros lugares, dentro e fora
da África. Sem dúvida, em virtude de um mito do gênero, a dinastia etíope ainda
hoje afirma descender do rei Salomão e da rainha de Sabá. No Sudão oriental,
os povos africanos atribuem sua origem a “tribos” árabes que teriam surgido na
África. A fundação do Estado do Kanem é atribuída a seu primeiro rei, Sefe, que
a tradição identifica com o rei iemenita Sayf Dhu Yazan. A família dos Keita,
que governa o Mali, remonta suas origens aos parentes do profeta Maomé. Até
na Nigéria subsiste um mito segundo o qual os ancestrais dos Yoruba seriam
cananeus vindos da Síria e da Palestina. Como se pode observar, esses mitos
sempre atribuem a origem de povos inteiros, a fundação de Estados, a instalação
de dinastias reinantes a estrangeiros de raça branca, que teriam chegado à África
em épocas remotas, e nunca a fatores ou acontecimentos puramente africanos.
Trata -se evidentemente de fenômeno de ordem geral que caracteriza, em alguns
casos, as sociedades no momento em que se transformavam em sociedades de
classes.
Outra evidência indireta desse fenômeno é fornecida por pesquisadores,
como A. H. J. Prins
49
, que exemplos de grupos que se pretendem de origem
árabe ou shirazi, quando não dúvida sobre sua origem africana.
47 Ibid., p. 67.
48 CERULLI, 1957.
49 PRINS, 1961, p. 11 -2.
538
África do século  ao século 
Conclusão
Parece que a civilização da África oriental, a civilização swahili, foi fruto do
desenvolvimento comercial. O comércio, expandindo -se, permitiu seu cresci-
mento e progresso; mas foi também seu ponto fraco, pois não estava ligado ao
desenvolvimento das forças produtivas da região. Ao se estudar o nível de ocupa-
ção da população, constata -se que a sociedade swahili permaneceu no estágio de
desenvolvimento das forças produtivas em que sem dúvida se encontrava antes
da expansão de suas atividades comerciais, o que se evidencia pela raridade de
utensílios de ferro ou outros metais exumados pelas escavações. Quase todos
os bens produzidos ou obtidos pela sociedade swahili tanto os produtos de
caça quanto o ouro ou o ferro não se destinavam ao consumo interno, mas
à exportação. Ora, o comércio por si era insuficiente para assegurar a base
dessa civilização e seu desenvolvimento. Bastava que as rotas comerciais fos-
sem interditadas, os circuitos comerciais interrompidos para, com a ruína do
comércio, essa civilização perder seus elementos fundamentais. Como se sabe,
foi exatamente o que aconteceu com as cidades da África oriental.
Avalia -se serem várias as circunstâncias que contribuíram para a decadência
da sociedade swahili. A invasão dos Zimba e, parece, a diminuição das chuvas,
com a consequente modificação no regime das águas constituíram obstáculo ao
desenvolvimento das cidades do litoral. Mas a causa principal da decadência,
no nosso entender, foi a destruição do comércio marítimo pelos portugueses.
Bem armados, equipados com artilharia e concebidos para a guerra marítima, os
navios portugueses representavam uma força invencível. Sua constante presença
na região sob o comando de Rui Lourenço Ravasco, a captura de vinte navios
carregados de mercadorias, a destruição de numerosas embarcações da flotilha
de Zanzibar, a pilhagem e destruição de cidades litorâneas da África oriental,
principalmente de Kilwa, foram golpes dos quais o comércio marítimo da região
jamais se recuperou e sob os quais também pereceu a civilização swahili.
C A P Í T U L O 1 9
539
Entre a costa e os Grandes Lagos
No início do século XII da era cristã, a característica dos caminhos percorri-
dos até então pela evolução histórica no interior da África oriental parece uma
surpreendente correlação entre ecologia e etnicidade. Ainda pouco numerosas,
apesar das importantes migrações bantu para a África oriental durante o pri-
meiro milênio da era cristã, as sociedades de língua bantu concentravam -se, em
sua quase totalidade, nas regiões mais chuvosas, onde as precipitações alcan-
çavam, no mínimo, 900 a 1 000 mm por ano
1
. Pode -se deduzir que, embora a
maioria dos Bantu da África oriental tenha adotado o cultivo de cereais e com
frequência a criação de vários tipos de gado durante o primeiro milênio
2
, suas
comunidades ainda davam prioridade às tradições agrícolas baseadas no cultivo
de raízes e tubérculos, introduzidas pelos primeiros imigrantes do grupo. Em
compensação, nas planícies e planaltos do interior das atuais República do Quê-
nia e República Unida da Tanzânia, dominava a agricultura mista praticada na
África oriental, que associava o cultivo de cereais à pecuária extensiva. Em todo
o cinturão setentrional dessa zona de solos, em geral, mais secos, a maioria das
1 Os agrupamentos, as posições e a história da cultura bantu deste estudo baseiam -se sobretudo em dados
e conclusões das seguintes obras: NURSE, 1974; NURSE & PHILLIPSON, 1974; HINNEBUSCH,
1973; EHRET, s.d.
2 EHRET, 1974a.
Entre a costa e os Grandes Lagos
Christopher Ehret
540
África do século  ao século 
sociedades falava línguas nilóticas, enquanto os cuxitas meridionais eram os mais
numerosos nas terras situadas ao sul
3
.
O interior da costa da África oriental
No interior imediato da costa da África oriental, podem -se identificar três
grupos bantu principais: os Sabaki, os Seuta e os Ruvu.
A língua sabaki comportava três dialetos, utilizados numa estreita faixa de
terra mais recuada da costa do Quênia. O miji -kenda, dialeto ancestral, era
falado ao sul do rio Tana, provavelmente no interior imediato e no sul de Mom-
baça, e de até o extremo nordeste do território da atual República Unida
da Tanzânia. Perto da desembocadura do Tana e possivelmente também no
interior do território lamu, pode -se situar a comunidade que falava o dialeto
proto kipokomo do sabaki
4
. O terceiro dialeto, ligado ao proto kiswahili, se
manifestara nos centros comerciais da costa propriamente dita
5
.
Como a faixa litorânea acesso ao interior, mais seco, do Quênia oriental,
as comunidades sabaki deram lugar a povos cujos modos de subsistência eram
completamente diferentes. Ao norte do Tana, encontravam -se pastores que fala-
vam uma forma antiga do somali. Ao longo e ao sul desse rio, pode -se localizar
os nilotas meridionais, cuja economia também era pastoril
6
. Um importante traço
cultural sabaki, que pode ser resultado da interação dos Bantu com essas popu-
lações do interior, é o sistema de classes etárias dos Miji -Kenda e Pokomo. Em
geral, acreditava -se que o sistema era de origem galla e que se havia difundido
no século XVII; no entanto é certo que entre os Pokomo os conceitos nilotas
meridionais continham os primeiros elementos das classes etárias. Portanto as
influências que resultaram nessa instituição devem ser situadas antes de 1600.
Os pastores do interior e os Bantu do litoral coabitaram com povos que ainda
praticavam a coleta e a caça; com algumas variações, esta situação perdurou até
nossos dias. Ao norte do Tana, os Boni de hoje, que falam um dialeto do somali,
claramente distinto, podem ser considerados caçadores -coletores que embora
tenham adotado a língua somali dos pastores, que dominavam a região há pelo
3 EHRET, 1974b, cap. 2.
4 Ibid., quadro 2 -1; as palavras de empréstimo ali são atribuídas à língua kinyika (miji -kenda) mas provêm
do proto kipokomo.
5 Ver capítulo 18 deste volume.
6 EHRET, 1974b, v. 2, cap. 2 e 4.
541
Entre a costa e os Grandes Lagos
menos um milênio, mantiveram seu modo de subsistência
7
. No interior do ter-
ritório lamu, o vocabulário dos Dahalo, caçadores -coletores de língua cuxítica
meridional, mostra através da evidência de empréstimos de palavras suas relações
constantes, mas que não chegavam a ameaçar sua integridade, com os Pokomo
e Swahili predominantes na região durante muitos séculos, relações estas que
remontam, pelo menos, ao início do primeiro milênio.
O segundo grupo bantu, ou Seuta, vivia ao sul das primeiras comunidades
sabaki, atrás da costa noroeste da atual Tanzânia, numa área situada aproximada-
mente entre o Wami e o baixo Pangani. Os Proto sseuta do ano 1100 já haviam
acrescentado plantas de origem indonésia inclusive inhame, taro e banana às
suas tradições agrícolas africanas mais antigas. Esse tipo de desenvolvimento
agrícola provavelmente também foi adotado por Sabaki contemporâneos. Não é
certo, no entanto, que o cultivo intensivo da banana, como encontrado entre os
Shambaa das regiões montanhosas, últimos descendentes dos Proto sseuta, ainda
não fosse praticado. No decorrer dos cinco séculos seguintes, o agrupamento
seuta original dividiu -se em três grupos de comunidades. O dialeto kishambaa
surgiu no noroeste da área seuta entre os migrantes que avançavam pelo meio
montanhoso dos Usambara. O protozigula -ngula apareceu em meados do milê-
nio como dialeto das comunidades ceuta que subiram o rio Warni em direção
aos montes Ngulu, enquanto no centro dos primeiros estabelecimentos seuta
falava -se uma forma antiga do dialeto hoje conhecido como bondei.
Assim como na República do Quênia, a faixa costeira bastante chuvosa do
nordeste da Tanzânia acesso a um interior cada vez mais árido. Desde a era
proto -seuta, e provavelmente no período de 1100 a 1600, as comunidades seuta
foram vizinhas próximas dos cuxitas meridionais que falavam uma língua mbu-
guan. Sendo provável que os Mbuguan, a princípio, se dedicaram à criação de
gado e posteriormente ao cultivo de cereais, parece conveniente situá -los nas por-
ções orientais do atual território seuta, entre as estepes massai e a faixa costeira.
Na bacia do Wami, ao sul dos Seuta, viviam os Bantu Ruvu. No culo
XII, eles constituíam dois grupos de comunidades, cada qual com seu próprio
sistema agrícola. Pode -se dizer que as comunidades ruvu orientais, que deram
origem aos atuais Wakutu, Wakwele, Wadoe, Wazaramo, Wakarni e Waluguru,
concentravam -se nas baixadas mais úmidas recuadas da costa. Consequentemente
devem ter praticado a agricultura mista afro -indonésia, combinação de plantações que
se atribuiu, mais ao norte, a seus vizinhos Bantu. Os Ruvu ocidentais, cujos dialetos
7 Ver FLEMING, 1964.
542
África do século  ao século 
deram origem às modernas línguas chikagulu e chigogo, devem ter se afastado
desse quadro no decorrer de sua expansão para o oeste, em direção às nascen-
tes do Wami. Diferem quanto aos métodos de alimentação, por priorizarem o
cultivo de grãos e a criação de gado. Também é possível que difiram quanto
aos métodos de cultivo em consequência das relações com os grupos cuxitas
meridionais que já viviam na região, embora esta hipótese ainda não tenha sido
comprovada. Os cuxitas, que mantiveram relações com as primeiras comunida-
des ruvu ocidentais, parecem ter constituído o prolongamento meridional dos
Mbuguan, vizinhos dos Protosseuta.
Do lago Niassa ao lago Vitória
No início do século XII uma segunda e importante região de povoamento
bantu se estendia ao longo da borda meridional da África oriental, próxima do
extremo norte do lago Niassa (Malavi). Na região montanhosa da ponta nor-
deste do lago é possível localizar a sociedade protonjombe. A língua njombe
é a ancestral dos idiomas modernos ekikinga, kihehe, ekibena e sango. Outra
comunidade bantu que falava uma forma antiga do ikinyakyusa vivia a oeste
dos Njombe, muito provavelmente na mesma região dos atuais Wanyakyusa.
A noroeste de seu território, ao longo do corredor montanhoso entre os lagos
Tanganica e Niassa, dois outros povos bantu falavam dialetos divergentes da
língua comum ao corredor; próximos dos antigos Wanjombe e dos Wanyakyusa
situavam -se os Protonyiha, e, a oeste destes, os Protolapwa. No extremo sudeste
dessa região de populações bantu, os Protossonge e os primeiros Wapogoro
eram, respectivamente, os vizinhos meridionais e orientais dos Njombe, enquanto
os grupos que falavam nguas que originaram o chiyao, o chimakonde e o chimwera
espalhavam -se ao longo e a leste do rio Ruvuma, provavelmente até o litoral do
oceano Índico
8
.
Toda a região da extremidade setentrional do lago Niassa foi, ao mesmo
tempo, o ponto de partida de importantes movimentos de expansão bantu e a
área onde ocorreram, entre 1100 e 1600, migrações internas consideráveis. Na
parte ocidental do corredor, as comunidades Lapwa atravessaram, em meados
8 As semelhanças que aparecem no vocabulário essencial das línguas songe, calculadas a partir da lista
utilizada por D. Nurse e D. W. Phillipson (1974) são de mais ou menos 70%. A comparação com as
datas adotadas por esses autores sugere que a diferenciação no songe começou cerca de mil anos. A
porcentagem de semelhanças entre as línguas chiyao, chimakonde e chipogoro e entre essas línguas e o
songe é menor, o que leva a pensar que já existiam diferenciações desde o início do século XII.
543
Entre a costa e os Grandes Lagos
desse período, uma era de expano que permitiu à língua lapwa espalhar -se além
dos limites de seu atual território, e que levou à divisão do lapwa em seus três
dialetos modernos: o kinyamwanga, o kimambwe e o ichifipa. O testemunho de
numerosos vestígios permite imaginar que a expansão das populações de ngua
lapwa deve -se, em parte, ao fato de elas terem absorvido um povo do Suo central,
na região interlacustre
9
. Mas as migrações mais importantes foram as dos Songe
orientais, que se estabeleceram por toda a extensão das baixadas áridas (com pre-
cipitações anuais inferiores a 1 000 mm), compreendidas entre o rio Rufiji e a
zona mais úmida do rio Ruvuma. Entre seus descendentes estão os Matumbi,
os Ndengereko, os Ngindo e os Wabunga. Sua habilidade em se estabelecer
em áreas contíguas às terras de cultivo bantu e impróprias para a criação de
gado mostra que, em sua agricultura dos séculos XI e XII, os Protossonge
orientais davam prioridade aos cereais e outros grãos. A rapidez de seu avanço
e a densidade extremamente baixa de sua população atual parecem sugerir que
apenas os grupos de cadores -coletores precederam -nos na maior parte das
terras baixas ao sul do Rufiji.
No entanto os mais importantes movimentos internos de população ocorre-
ram na área njombe. Os primeiros Wakinga penetraram, ao sul, em territórios
antes pertencentes aos Songe, enquanto um importante componente njombe
era absorvido pela sociedade protonyiha. Em seguida, no século XVI, as duas
principais estirpes de príncipes dos Wanyakyusa e a casa reinante dos Ngonde
de língua ikinyakyusa foram constituídas pelos imigrantes Wakinga
10
. Também
no final desse período, a região do corredor começou a receber imigrantes Bantu
vindos de outras partes, principalmente do oeste e do sudoeste. Embora todos os
Bantu da região houvessem conservado por muito tempo alguns princípios de
autoridade, a unidade política local mostrava -se extremamente reduzida e rela-
tivamente instável. É possível que os príncipes Wanyakyusa, descritos por S. R.
Charsley
11
tenham sido o protótipo dos primeiros chefes da região do corredor.
Os imigrantes do oeste e do sudoeste parecem ter rompido frequentemente o
sistema de relações entre as comunidades e assim precipitado a formação de
principados maiores, cujos postos -chave eram assumidos por seus líderes. Dessa
forma criou -se, no século XVI, a autoridade nyamwanga, mas, de modo geral,
9 Para conhecimento dos vários indícios e provas linguísticas dessa absorção, ver EHRET, 1973.
10 Ver a este respeito WILSON, M., 1959a, cap. 1.
11 CHARSLEY, 1969.
544
África do século  ao século 
somente a partir do século XVII os fatores provenientes do oeste e do sudoeste
tiveram importância maior
12
.
No início deste milênio uma terceira zona de contínua colonização bantu
situava -se às margens orientais do lago Vitória. No século XII, encontravam -se
comunidades bantu no sudeste do lago Vitória, desde Mara, ao sul, até o golfo
de Kavirondo, ao norte. Ao longo das margens setentrionais do golfo, formando
um arco a noroeste que acompanhava o limite oriental dos Basoga, localizava -se
o mosaico de comunidades de língua bantu protonordeste -Vitória. Os Bantu do
sudeste do Elgon, ramo destacado do grupo precedente, habitavam a região situada
ao sul e a sudeste do monte Elgon. Na margem norte do lago, o terririo dos Bantu
do nordeste do Vitória confundia -se com as regiões de língua bantu lacustre.
Apesar de sua contiguidade ao norte com os Bantu lacustres, as sociedades
situadas no leste do lago Vitória eram sensivelmente diferentes das sociedades
lacustres, diferença esta que refletia muitos séculos de interação e aculturação
entre as populações bantu e não bantu nas margens orientais do lago Vitória.
Por volta de 1100, todos os Bantu do leste do Vitória praticavam a circuncisão
dos meninos e, a sudeste do lago, como parecem sugerir os dados etnográficos
correspondentes, praticava -se também a excisão feminina. Os Bantu lacustres
desconheciam estes dois costumes, que, entretanto, eram prática normal entre os
cuxitas e nilotas meridionais, vizinhos dos Bantu do leste do Vitória. Além disso,
as sociedades do leste do Vitória parecem ter -se organizado em pequenas unida-
des locais baseadas no clã ou em grupos de linhagem. Como entre seus vizinhos
não bantu, não existia autoridade, enquanto era regra nas sociedades lacustres
contemporâneas a instituição de chefes e monarcas, forma de liderança que pode
ser considerada um dos princípios mais antigos da organização bantu
13
.
Para as comunidades do sudeste do Vitória, limitadas de um lado pelo lago,
os nilotas e os cuxitas do outro flanco constituíram obrigatoriamente um fator
contínuo na história de sua cultura, do século XII ao XVII. Para os povos que
falavam o mara, originário da língua utilizada no sudeste do Vitória, o cresci-
mento da população pela absorção dos antigos nilotas meridionais constituiu
uma evolução particularmente notável. Esse processo – principalmente entre os
ancestrais dos Kuria, dos Zanake, dos Ikoma contemporâneos e outros aca-
bou por transplantar o sistema cíclico de classes etárias dos nilotas meridionais
para a antiga organização social e política, baseada em clãs, característica do
sudeste do Vitória. Com a fusão dos Bantu e dos nilotas meridionais numa
12 BROCK, 1968.
13 Cf. VANSINA, 1971.
545
Entre a costa e os Grandes Lagos
única sociedade, produziu -se a fusão de ideias sobre estrutura social, tomadas
respectivamente das duas fontes, apesar de o mara ter predominado como língua
do amálgama
14
. No subgrupo Musoma das comunidades do sudeste do Vitória,
foram atestados também claros contatos com os nilotas meridionais
15
, mas ainda
não há evidências de que esses contatos tenham exercido o mesmo impacto
sobre a evolução cultural. No que se refere ao ramo Gusii do subgrupo Mara, não
foram os nilotas meridionais, mas, ao contrário, os cuxitas do planalto meridional
que sofreram o impacto mais marcante. A primeira comunidade de língua gusii
desenvolveu -se, aparentemente, absorvendo os povos do planalto, sem nunca ter
adotado o sistema de classes etárias dos nilotas meridionais, como o fizeram as
outras comunidades Mara
16
. A partir de 1600, mesmo durante os períodos de
relações estreitas entre os Gusii e os Kipsigi, povo nilota meridional, a adoção
da identidade gusii implicava a manutenção do tipo local de organização comu-
nitária, que se estabelecera antes de 1600.
Durante o mesmo período, de 1100 a 1600, as sociedades do nordeste do
Vitória foram envolvidas num sistema de contatos culturais os mais variados. A
oeste de seu território, os imigrantes Bantu lacustres parecem ter influenciado,
em graus diversos, os costumes sociais e a divisão étnica. Assim, o declínio da
circuncisão e de sistemas não cíclicos de classes etárias entre os Baluyia pode ser
atribuído ao movimento periódico, fora das regiões de línguas lacustres, das socie-
dades que ignoravam estes conceitos. Da mesma forma, nas encostas ocidentais
do monte Elgon, os Itung’a, que habitavam anteriormente a região, foram pouco
a pouco substituídos, entre 1100 e 1600, em parte por populações de língua gisu
do nordeste do Vitória, mas também por uma segunda sociedade bantu, os Syan,
que se aglutinavam em torno dos imigrantes vindos do Busoga ou do Buganda
atuais. Inversamente, as evidências linguísticas parecem demonstrar que os imi-
grantes do nordeste do Vitória disseminaram -se, em grande número, entre os
Busoga e durante o mesmo período. Pode -se sustentar com pertinência que o
período do herói legendário Kintu na história oral dos Busoga e dos Buganda
representa importante instalação de populações vindas do nordeste do Vitória,
que talvez remonte ao século XIV
17
, o que explicaria as evidências linguísticas.
Parece impossível pôr -se em dúvida a tradição segundo a qual as ações de Kintu
introduziram a banana no Buganda e no Busoga, se se entender que se trata,
14 EHRET, 1971, cap. 5.
15 Ibid., apêndice D4.
16 EHRET, 1974b, cap. 2, pto. 6.
17 COHEN, D. W., 1972.
546
África do século  ao século 
não da introdução primeira da banana, mas de um tipo de cultivo e de utilização
intensivos da fruta, já praticados, na época, nos arredores do monte Elgon.
No entanto, entre as comunidades setentrionais e orientais do mosaico do
nordeste do Vitória, predominaram os contatos com os nilotas. O ponto de
encontro das ideias dos Itung’a do oeste do Elgon e dos nilotas meridionais de
Kitoki, que viveram ao sul do monte Elgon durante a maior parte do período
estudado, contribuiu para a importância maior dada ao gado no reperrio
de subsistência protogisu. Muito tardiamente nesta época, do século XVI em
diante, o encontro dos nilotas meridionais de língua luyia e kalenjin, nos vales
escarpados de Nandi, resultou na formação de comunidades de língua bantu que
conservaram os princípios mais antigos da estrutura social e política baseada
no clã, aos quais vieram se acrescentar os sistemas cíclicos de classes etárias de
origem kalenjin. Outra expansão bem tardia foi a entrada de imigrantes luo na
extremidade meridional da região, nas proximidades do golfo de Kavirondo, no
século XVI. Quase insignificantes a princípio, os Luo rapidamente ganhariam
grande importância nos séculos seguintes.
Nas zonas do interior do Quênia e da Tanzânia
Enquanto no interior do Quênia e da Tanzânia a maioria das comunidades Bantu
havia se estabelecido em regiões com precipitações anuais de mais de 1 000 mm, no
século XI algumas delas começavam a se adaptar a climas mais secos. Eram,
entre outras, os Ruvu ocidentais, já mencionados, e talvez também um grupo de
comunidades de língua prototakama da Tanzânia ocidental. Com relação à geo-
grafia lingstica das línguas takama modernas nyaturu, kimyiramba, kinyamwezi-
-kisukuma e kikimbu cabe melhor a hitese de um núcleo prototakama na
margem ocidental do rio Wembere, região com precipitações anuais de 600
a 1 000 mm. Se, em certas partes do terririo era possível cultivar algumas plantas
africanas mais antigas, parece que dificilmente elas poderiam garantir colheitas
regulares, e, portanto, também os Prototakama devem ter preferido os cereais
que permitissem maior regularidade de subsistência.
Várias sociedades nilotas e cuxitas meridionais predominaram no século XII
no restante do interior do Quênia e da Tanzânia, misturando -se com algumas
concentrações isoladas de Bantu. Tanto os nilotas quanto os cuxitas foram atraídos
pela crião de gado, mas seria erro conside -los pastores desinteressados do tra-
balho agrícola. De fato, se se fizer uma avaliação com base nas práticas usuais
em sociedades análogas, mais modernas, é provável que o cultivo de grãos, na
547
Entre a costa e os Grandes Lagos
maioria dos casos, constituísse o principal meio de subsistência. No entanto, em
determinadas regiões de poucas precipitações ou com chuvas mal distribuídas,
como a estepe dos Massai e vastas áreas do nordeste do Quênia, é possível que
a agricultura tenha sido completamente ou quase completamente suplantada
pela criação de gado.
O contraste mais marcante com a situação atual reside na importância e na
expansão das populações cuxitas meridionais, entre as quais os povos do Rift
Valley oriental, de longe, os mais numerosos. No primeiro milênio da era cristã,
no apogeu de sua importância, as sociedades do Rift Valley oriental dominavam
a vasta região que se estendia, ao sul, do Kilimandjaro e dos montes Pare ao
território dodoma, na atual Tanzânia. Criavam gado bovino, ovino e caprino; sua
cultura principal era o milhete -do -mangue, acompanhado do sorgo e, quando
as chuvas permitiam, de Eleusine. Por volta de 1100, a homogeneidade contínua
das terras do Rift oriental foi rompida pela expansão dos Dago (Dadio) e dos
Ongamo, populações nilotas.
No centro da Massailândia, apesar da hegemonia dago na região, a pequena
comunidade dos Asax
18
conseguiu se manter com a caça e a coleta, que ainda pra-
ticavam. Com um tipo de economia radicalmente diferente, os caçadores -coletores
tinham condições de coexistir socialmente com a populão que dominava anterior-
mente o Rift oriental, mesmo após terem adotado a língua do Rift. Enquanto os
pastores do Rift foram expulsos ou absorvidos pelos Dago, os Asax conseguiram
sobreviver como unidade social independente e continuaram a falar sua própria
língua, o cuxítico.
Ao sul da Massailândia central, duas importantes sociedades do Rift oriental
mantiveram a prática da pecuária e do cultivo de grãos, como seus ancestrais
do primeiro milênio. Uma delas, os Kw’adza
19
, era descendente direta da antiga
sociedade do Rift oriental que predominava na Massailândia, e falava uma língua
próxima do asax. Seu território compreendia partes das áreas massai meridionais,
mpwapwa e dodoma na Tanzânia
20
. A outra, que eventualmente podemos cha-
mar Iringa -cuxita meridional, possuía territórios de extensão indeterminada, mas
parece ter sido a vizinha meridional dos Kw’adza e ter -se estendido o bastante
para o sul e em número suficiente para ter tido significativa influência sobre os
Protonjombe por volta do ano 1100 e ter sido um elemento notável na formação
dos Hehe (Wahehe), Bena (Wabena) e Sango nos séculos seguintes.
18 Em obras e estudos anteriores os Asax são referidos como Aramanik.
19 Esta forma parece ser a transcrição correta. De qualquer modo, é preferível a “Qwadza”.
20 EHRET, 1974b, v. 4, cap. 2.
548
África do século  ao século 
Após 1100, a aridez dos territórios kw’adza e iringa por muitos séculos con-
tinuou sendo um entrave à expansão bantu. Paralelamente ao seu crescimento
em número, seja pela absorção das populações cuxitas meridionais pre existentes,
seja devido aos intercâmbios comerciais, as comunidades bantu substituíram
seus antigos métodos agrícolas por uma agricultura mista do mesmo tipo que
a dos Iringa e dos Kw’adza. Entre aqueles agrupamentos bantu destacam -se
as comunidades dos Njombe das regiões montanhosas do sul da Tanzânia, dos
Ruvu ocidentais do território de Kilosa e várias comunidades dos Takama situ-
adas a oeste dos Kw’adza. No século XVI, iniciaram -se importantes movimen-
tos de expansão dos Bantu a partir dessas três zonas diferentes. Nos planaltos
meridionais, as comunidades do Rift oriental recuaram não somente com o
primeiro avanço dos imigrantes njombe, que falavam o dialeto ekibena -kihehe
ancestral, mas também sob a pressão de migrantes ruvu vindos do oeste, embora
este movimento não pareça ter sido anterior a 1600.
No território dodoma, os Kw’adza começaram a se sentir pressionados simul-
taneamente pelas três direções. Introduzida pelos imigrantes ruvu orientais, a
língua chigogo acabou se impondo, mas os vestígios do vocabulário chigogo
21
,
assim como da tradição histórica gogo, aludem a expansões da população do
Uhehe para o sul e do território takama para o oeste, suficientes, afinal, para
submergir seus predecessores Kw’adza. Em 1600, porém, esse processo estava
começando, e os Kw’adza continuariam a ser fator importante na história da
Tanzânia central.
A dispersão dos imigrantes takama em território dodoma foi apenas uma das
formas de expansão takama, muito mais importante na Tanzânia ocidental, onde
começou a partir do ano 1000. No decorrer dos primeiros séculos do milênio,
os estágios iniciais dessa dispersão resultaram na divisão dos Prototakama em
três grupos de comunidades. Falando uma língua takama considerada ances-
tral do iramba e do nyaturu modernos, a sociedade wembere surgiu entre os
colonos takama dos planaltos áridos a leste do rio Wembere. É possível que as
comunidades que falavam o kikimbu ancestral tenham começado a se formar
logo ao sul do alto Wembere, enquanto os Proto wanyamwezi -Wasukuma resi-
diam em algum lugar a noroeste da bacia do Wembere
22
. A existência no atual
Usukuma de uma diversidade linguística maior do que no Unyamwesi implica
que o território de origem dos Protowanyamwezi -Wasukuma seja a região do
21 Ver RIGBY, 1969, principalmente cap. 2 e 3.
22 Quanto a esta tripartição dos Takama e suas modalidades, ver NURSE & PHILLIPSON, 1974.
549
Entre a costa e os Grandes Lagos
Usukuma
23
, e o grande número de palavras emprestadas do cuxítico meridional
encontradas no vocabulário kinyamwezi -kisukuma mostra que a sociedade dos
Protowanyamwezi -Wasukuma nasceu em parte do amálgama dos falantes do
takama com povos cuxitas meridionais que anteriormente habitavam ao sul do
lago Vitória
24
. Por outro lado, existem poucos traços de influência do cuxítico
meridional entre os falantes das línguas protokiwembere e do kikimbu antigo, e
parece que os colonos Wawembere e Wakimbu penetraram em territórios antes
parcamente povoados por caçadores -coletores. Assim, os Hatsa do lago Eyasi
parecem ser os últimos elementos não assimilados destas primeiras comunida-
des. Seus vizinhos, os Sandawe, pertenceriam à mesma categoria, mas teriam
escapado à assimilação dedicando -se à vida agrícola.
O período de 1100 a 1600 marca -se pela expansão e diferenciação contínuas
dos Takama. Muito cedo, os Wawembere começaram a desenvolver a separação
entre o norte e o sul que deu origem respectivamente às sociedades dos Iramba
e dos Nyaturu. No entanto as expansões mais importantes foram as das comu-
nidades dos Wanyamwezi -Wasukuma até que, por volta de 1600, as popula-
ções que falavam dialetos da língua kinyamwesi -kisukuma se espalharam ao sul
das margens do lago Vitória, quase alcançando a região habitada pelos atuais
Ukimbu. Talvez, a partir de 1600, os imigrantes wakimbu também tenham
começado a se infiltrar para o sul e sudoeste em direção aos territórios que
ocupam hoje. Foi no quadro destes últimos episódios da expansão dos Takama
que certo número de colonos takama deslocou -se para leste e fundiu -se com
outros colonos bantu da região do Dodoma.
As regiões montanhosas: Kilimandjaro e Quênia
Ao norte da Massailândia central, nas encostas do Kilimandjaro, uma ou
várias comunidades cuxitas meridionais do Rift Valley oriental continuaram
vivendo como no culo XII, enquanto um ou dois grupos do mesmo Rift
oriental podem ser situados nos montes Taita
25
. Parece que o traço comum
a essas sociedades do Rift Valley oriental era a utilização da irrigação e do
adubo na prática de uma agricultura baseada principalmente em cereais. Esses
23 Devemos esta indicação mais precisa a D. Nurse (comunicação pessoal, jul. 1974).
24 Trata -se provavelmente dos cuxitas meridionais do Nyanza; ver EHRET, 1974b, v. 6, cap. 2.
25 Num estudo anterior, nós os descrevíamos simplesmente como Rift; ver EHRET, 1974b, v. 4, cap. 2 e
quadros 4 -6, 4 -7. Pesquisa inédita sobre outros dados de vocabulário mostrou -nos sua aliação inequívoca
ao Rift oriental.
550
África do século  ao século 
dois aperfeiçoamentos foram responsáveis pelos fundamentos essenciais de um
grande acontecimento na história agrícola da África oriental: o desenvolvimento
de uma agricultura intensiva, de altitude, em que a banana era o produto básico.
As comunidades de língua bantu, na medida em que assimilavam os cuxitas
meridionais, operaram com sucesso a fusão da tradição bantu de plantação com
os métodos agrícolas cuxitas, a ela acrescentando a banana indonésia. o se
sabe com certeza onde e quando apareceu a nova tradição de altitude, mas no
início do segundo milênio ela já criara raízes nas pequenas comunidades bantu
do Kilimandjaro, do monte Quênia e dos montes Pare. A difusão ulterior da
tradição de altitude permitiu o início da colonização shambaa na cadeia dos
montes Usambara, em meados do milênio. É possível que as comunidades dos
planaltos do Rift oriental se tenham familiarizado com alguns cultivos da tra-
dição de altitude, mas é provável que as tenham adotado realmente quando
de sua assimilação pelos Bantu em expansão nas terras altas.
No século XII, os grupos da área montanhosa do Rift Valley oriental foram
confinados às terras altas devido à expansão dos Ongamo pelas planícies de
Kaputie, ao norte do Kilimandjaro, nas bases meridionais da própria montanha
e provavelmente também nos contrafortes da cadeia do Pare
26
. Os Ongamo
falavam uma língua tão próxima do protomassai dos arredores do monte Quê-
nia que as duas línguas eram, na época, igualmente compreensíveis para os dois
povos que as utilizavam. Os empréstimos do vocabulário ongamo às fontes que
têm em comum com o massai indicam que estes povos não somente criavam
gado, como também cultivavam a Eleusine e o sorgo. No entanto, se é possível
que o controle exercido pelos Ongamo nas planícies tenha afastado as popula-
ções do Rift oriental para as montanhas, a pressão direta sobre as terras do Rift
era feita pelas pequenas comunidades bantu rechaçadas para as montanhas.
É bem provável que os Protochagga do século XII tenham se instalado nas
encostas sudeste do Kilimandjaro, embora também seja plausível a existência de
uma zona primária de colonização nas proximidades, no norte do Pare. Esses
migrantes já dominavam a agricultura de altitude e, no ciclo de culturas, davam
prioridade à banana. Sustentaremos aqui que a imensa produtividade da tradição
de altitude foi o fator determinante da rápida expansão dos Chagga nos cinco
séculos seguintes, durante os quais assimilaram os Ongamo e as comunidades
do Rift oriental.
26 Ver EHRET, 1974b, quadro 8 -2.
551
Entre a costa e os Grandes Lagos
As primeiras fases da dispersão dos Chagga deram origem a quatro grupos
de comunidades. Três deles estabeleceram -se no Kilimandjaro: os Wajagga oci-
dentais, na encosta sul da montanha; os Wajagga do centro, próximo do atual
Moshi; e os Rombo, na encosta leste. Por outro lado, os primeiros Gweno
apareceram no Pare setentrional, onde se encontram traços de uma população
anterior do Rift oriental. O constante avanço da colonização chagga durante a
primeira metade do milênio favoreceu a divisão dos Chagga Rombo em várias
comunidades isoladas na encosta oriental da montanha, enquanto, na mesma
época, certo número de imigrantes wajagga ocidentais passava do Kilimandjaro
às encostas arborizadas do vizinho monte Meru. No século XVI, as comunidades
do Rift Valley oriental predominaram no sudoeste, longe do Kilimandjaro,
como se pode notar pelos empréstimos de vocabulário do cuxítico meridional no
dialeto siha dos Wajagga ocidentais
27
. Os Ongamo ainda eram numerosos nos
contrafortes orientais do Kilimandjaro, mas aparentemente não mais exerciam
influência fora desta zona.
Mais do que a do Kilimandjaro, a história dos montes Taita entre 1100 e 1600
parece ter sido dominada por problemas de acomodação entre as populações do
Rift oriental e os Bantu. As comunidades do Rift oriental precederam os Prototaita
nesta região; continuaram sendo elemento importante da populão, mesmo após sua
cisão em sociedades distintas, a Dawida e a Sagala, durante os primeiros culos
do milênio. Mas a absorção definitiva das populações do Rift oriental pelas
comunidades bantu dos montes Taita pode ser situada com certeza em séculos
mais recentes. Um fator adicional de divisão, principalmente entre os Sagala, foi
a intrusão de outros imigrantes bantu vindos de áreas de língua sabaki do litoral
e dos montes Pare. O elemento do litoral manifestou -se com tanta força entre
os Sagala que sua língua foi enriquecida por numerosos termos emprestados do
sabaki e, ainda mais curioso, sofreu mudanças fonéticas, cujos traços podem ser
encontrados nas línguas sabaki de parentesco mais distante, mas não na dawida,
bem mais próxima. O fator costeiro começou a afetar os montes Taita na época
de declínio da influência do Rift oriental, aparentemente não anterior ao século
XVI. Suas dimensões políticas e sociais manifestaram -se de forma mais evidente
em períodos posteriores, não estudados neste volume.
O movimento dos grupos sabaki e sua implantação nos montes Taita foram
provavelmente alguns dos elementos da rede de imigrações em torno da qual se
cristalizou a identidade étnica dos Akamba, ao norte dos montes Taita, no Ukambani
27 Ver NURSE & PHILLIPSON, 1974.
552
África do século  ao século 
do século XVI
28
. Mas no Ukambani os imigrantes do sul amalgamaram -se com
uma população com antecedentes no monte Quênia e de língua thagicu.
Por volta de 1100, os ascendentes thagicu haviam formado um pequeno grupo
de comunidades bantu nas encostas meridionais do monte Quênia. Da mesma
forma que a sociedade protochagga contemporânea, estavam comprimidos entre
os cuxitas meridionais, cuja língua era, nessa região, o kirinyaga
29
, e outras popu-
lações pastoris, no caso, os nilotas meridionais, estabelecidos nas planícies um
pouco abaixo. Os Protomassai viviam provavelmente a noroeste, além das flo-
restas do monte Quênia; não parece, porém, que as populações de língua massai
tenham exercido influência, antes de 1600, sobre as comunidades thagicu.
Entre 1100 e 1600, as comunidades thagicu ampliaram seu território avan-
çando pela floresta e se espalhando largamente pelo sul da montanha. Na mesma
época, o protothagicu original dividiu -se em muitos dialetos, que são os ances-
trais do kikuyu -embu, do chuka e do meru. Um desses dialetos apareceu entre os
imigrantes thagicu que se afastaram do monte Quênia em direção ao Ukambani
central e setentrional.
No século XVI, as divisões étnicas atuais dos Thagicu começavam a tomar
forma. As grandes expansões dos séculos ulteriores proviriam de duas destas
emergentes sociedades, os Kikuyu, na garganta que separa o monte Quênia da
cadeia dos Nyandarua, e os Meru, a leste do monte Quênia, na outra extremidade
dos territórios thagicu. Simultaneamente, os imigrantes sabaki mantinham rela-
ções com os Thagicu estabelecidos em Ukambani, criando assim uma sociedade
de língua thagicu, mas cuja cultura apresentava muitas semelhanças com a dos
Taita ou dos Bantu do litoral. Exemplos disso são o fato de os Akamba terem
adotado como arma usual o arco e a flecha em substituição à lança, e a ausência
das classes etárias, princípio de organização política e social, de grande impor-
tância no monte Quênia. As comunidades cuxitas meridionais permaneceram no
leste da monhanha, algumas delas provavelmente nas vizinhanças dos Kikuyu,
enquanto bandos de caçadores -coletores controlavam as encostas arborizadas da
cadeia dos Nyandarua ao sul dos Kikuyu. o foi dada ainda nenhuma explica-
ção satisfatória para a presença de populações pré -bantu no Ukambani, mas a
presença de alguns nilotas meridionais provavelmente parentes muito próxi-
mos dos nilotas das planícies áridas vizinhas do nordeste do Quênia – parece se
comprovar no Ukambani oriental pela sobrevivência de alguns empréstimos do
vocabulário nilótico meridional no dialeto kitui moderno do kikamba.
28 Ver JACKSON, 1972.
29 Ver EHRET, 1974b, v. 7, cap. 2.
553
Entre a costa e os Grandes Lagos
A oeste de um eixo Quênia -Kilimandjaro estende -se, no interior do Quênia
e da Tanzânia, a única grande região na qual a tendência geral à bantuização do
período 1100 -1600 revelou -se inoperante. Até depois de 1500, as sociedades
nilotas meridionais, em particular os Kalenjin e os Dago, dominaram a região.
Por volta de 1100, os Protokalenjin e os Kitoki, nilotas meridionais que lhes
eram intimamente aparentados, controlaram o território situado a leste e que
se estende dos contrafortes sul do monte Elgon às planícies do Uasingishu.
Durante os dois ou três séculos seguintes, os Kalenjin espalharam -se por toda a
largura do planalto do Uasingishu, avançando a leste e a sudeste até as áreas do
Rift Valley do Quênia central e meridional. Nos séculos ulteriores, as contínuas
expansões dos Kalenjin apenas reforçaram as divisões linguísticas e étnicas que
começavam a surgir em diversas partes do território.
No sudeste do monte Elgon, a sociedade Kalenjin Elgoni afastou -se do
modelo comum kalenjin devido à absorção dos Bantu do Elgon do sudeste.
Assim, os clãs territoriais, como entre os Bantu do nordeste do Vitória, eli-
minaram as classes etárias cíclicas como princípio fundamental da organiza-
ção da sociedade kalenjin do Elgon. Pelas mesmas razões, os Kalenjin Elgoni
começaram a evoluir para uma agricultura baseada na cultura da banana e,
aproveitando -se dessa vantagem, começaram a se espalhar pelos arredores das
encostas arborizadas do monte Elgon.
A leste da montanha, as primeiras populações potok foram dominadas, em
meados do milênio, por seus vizinhos do norte, os Itung’a, enquanto a sociedade
protonandi tomava forma ao longo da extremidade ocidental do planalto de
Uasingishu, bem ao sul dos Potok. As primeiras etapas do desenvolvimento dos
Nandi foram acompanhadas da incorporação dos cuxitas meridionais do planalto. É
provável que uma das contribuições cuxitas a seus descendentes e sucessores, os
Kalenjin, tenha sido a difusão da irrigação na agricultura entre as populões keyo
e marakwet, de língua nandi, atualmente instaladas nas encostas do Elgeyo. Em
meados do milênio, a expansão nandi tomou o rumo sul, em direção às florestas
e às planícies do território banhado pelo rio Nyando. As comunidades nandi e
kipsigi atuais parecem descender, em parte, desses colonos nandi.
Mas a expano étnica mais explosiva, que procovou consequências de
maior alcance, foi a dos Kalenjin meridionais. Suas comunidades ancestrais
evoluíram na franja meridional avaada das primeiras expansões kalenjin.
Do sul do Qnia central, infiltraram -se rapidamente para o sul, a princípio
pelas planícies ao longo das escarpas do Rift, depois ao leste dos planal-
tos do Kondoa, passando pela estepe da Massailândia. Em meados do milê-
nio, os imigrantes kalenjin meridionais se haviam instalado no sul aos
554
África do século  ao século 
limites do território dos Bantu Ruvu ocidentais. Na Massailândia central e
setentrional, os Dago, predominantes na região, cederam ao avanço kalenjin.
Na Massailândia meridional, os Kwadza foram por sua vez assimilados ou
expulsos pelos Kalenjin meridionais. Na Tanzânia setentrional, as escarpas do
Rift Valley constituíram uma barreira à expansão dos Kalenjin meridionais,
pois os Dago continuavam a controlar as regiões montanhosas do Loita e do
Ngorongoro
bem como, suspeita -se, as planícies ocidentais do Serengeti e de
Mara. O domínio dago sobre essa região foi abolido no século XVII, não
pelos Kalenjin, mas pelos invasores massai.
Nos planaltos do Kondoa e de Mbulu, a expansão dos Kalenjin meridio-
nais não afetou os cuxitas meridionais do Rift ocidental, nem os Protoirangi,
sociedade bantu. Pouco se sabe da hisria dos povos da região entre 1100 e
1600, com excão de uma população cuxita do Rift ocidental, os Iraqw. A
penetrão dos colonos iraqw em direção ao norte ao longo das escarpas do
Rift a a zona de disputa dos Dago e dos Kalenjin meridionais é claramente
indicada pelos empréstimos do vocabulário iraqw ao kisonjo
30
. Os Wasonjo,
povo de ngua bantu, apresentavam a característica única de ser um grupo
voltado principalmente para a agricultura, isolado, em pequenos territórios
encravados em terras onde a irrigão era posvel, entre pastores Dago e
Kalenjin meridionais. Pode -se imaginar os colonos Iraqw se deslocando à
procura de refúgios do mesmo tipo pelas encostas do Rift para desenvolve-
rem um modo de vida semelhante. Por suas próprias tradições, convém situar
os Sonjo antes de 1600, nas encostas do Rift Valley, abaixo dos planaltos do
Loita
31
. Os grupos iraqw isolados parecem ter sido os vizinhos meridionais
dos Sonjo; viviam possivelmente em locais parecidos com as instalações sonjo
atuais abaixo do lago Natron provavelmente no famoso sítio arqueológico
de Engaruka.
No outro extremo do terririo kalenjin, no Baringo e no planalto de
Laikipia, os Protomassai evolam, durante este período, para uma divio
em ts sociedades distintas: os Samburu, os Tiamu e os Massai. Desde o
início do século XVI, a mais meridional das três, a dos Massai, começou a
fazer incures nas antigas terras kalenjin ao longo do Rift Valley, no Quênia
central. Por volta de 1600, os Massai haviam se espalhado progressivamente
para o sul, ao longo do Rift, até os limites setentrionais da Tanzânia. Dali
30 Ibid., v. 4, cap. 2.
31 Devemos estas indicações precisas a A. Jacobs (comunicação pessoal, set. 1976).
555
Entre a costa e os Grandes Lagos
comaram a amear, mais ao sul, a hegemonia dos Dago e dos Kalenjin
meridionais.
Movimentos de população e intercâmbios culturais
Em consequência da complexidade destes eventos, os movimentos de popu-
lação aparecem como fator constante das transformações históricas no interior
do Quênia e da Tanzânia. No entanto, entre 1100 e 1600, é provável que os imi-
grantes nunca tenham penetrado em terras totalmente desertas. Por conseguinte
a história de que participaram foi uma história de sociedades em conflito e de
intercâmbios de ideias daí resultantes no curso da formação de novos grupos
sociais e políticos. Um fator essencial que explica em grande parte a expansão
particular dos territórios de língua bantu é a capacidade de adaptação crescente e
rápida à agricultura que muitas populações bantu possuíam. Em grandes áreas da
Tanzânia central e ocidental, a disposição manifestada pelos imigrantes bantu de
passar do consumo de tubérculos coletados ao do milhete -do -mangue e do sorgo,
conhecidos pelos seus vizinhos cuxitas e nilotas, permitiu -lhes estabelecerem -se
entre as populações autóctones e assimilá -las gradualmente. Em várias poões
montanhosas do nordeste da África, a expansão bantu foi favorecida por um tipo
de adaptação muito particular: a prática da agricultura de altitude.
Uma das consequências secundárias do desenvolvimento da agricultura entre
os Bantu foi o desmatamento de novas terras até então ocupadas unicamente
por comunidades que ainda dependiam da coleta e da caça. Em outras partes
da Tanzânia ocidental, nas regiões imediatamente a leste do rio Wembere, é
possível que o modo de vida agrícola, afinal, só tenha sido instaurado entre 1100
e 1600, quando do estabelecimento das colônias takama, que cultivavam cereais.
Ao norte, a tradição montanhesa de plantação permitia a utilização de áreas
florestais, anteriormente deixadas aos caçadores -coletores, enquanto, no Kili-
mandjaro, é possível que os Chagga tenham garantido sua expansão, não tanto
por penetrar diretamente nas terras de seus predecessores, mas por conquistar
a floresta, deslocando -se paralelamente e acima de seus competidores e depois
assimilando -os pouco a pouco.
Paralelamente a essas mudanças culturais e étnicas mais importantes, é pos-
sível que alguns intercâmbios limitados entre povos tenham se desenvolvido
de tempos em tempos em todo o interior da África oriental; mas apenas numa
região verificou -se a existência simultânea de diferentes espécies de excedentes de
produção de tal importância que precipitaram a criação de verdadeiros mercados.
556
África do século  ao século 
F . Mapa da localização aproximada provável dos povos do interior da África oriental no século
XII. (C. Ehret.)
557
Entre a costa e os Grandes Lagos
F . Mapa da localização aproximada provável dos povos do interior da África oriental no século
XVI. (C. Ehret.)
558
África do século  ao século 
Essa região era a dos montes Quênia e Kilimandjaro, onde os montanheses que
praticavam agricultura intensiva viviam lado a lado com criadores de gado, cuja
prática da pecuária era também intensiva; uns e outros coabitavam com gru-
pos de caçadores -coletores
32
. Os pastores produziam excedentes de couro cru;
podiam então confeccionar vestimentas de couro, necessárias aos agricultores
das montanhas. Por sua vez, os montanheses dispunham de toras, que serviam
de matéria -prima para a produção de grandes recipientes, como colmeias, bebe-
douros etc., e cultivavam cucurbitáceas (abóboras, melões etc.), a partir das quais
faziam cabaças e outros recipientes, tão importantes para as comunidades das
planícies. Em épocas de escassez, os montanheses podiam oferecer excedentes
de suas colheitas em troca do gado das populações das planícies vizinhas mais
áridas. Enfim, é possível que ocasionalmente os caçadores -coletores pudessem
fornecer o excedente de mel e peles de suas atividades de subsistência.
Um outro fator era a divio desigual dos desitos de minério. Mesmo durante o
século XVI, os Wageno do Pare setentrional estavam integrados ao sistema comercial
planície -montanha pelo seu papel como principais produtores e fornecedores de ferro
e utenlios de ferro
33
; os Thagicu parecem ter desempenhado papel semelhante nos
arredores do monte Quênia. Mas, na maior parte do restante do interior do Quênia
e da Tanzânia, os mercados viriam a constituir uma caractestica regular da vida
ecomica bem depois de 1600, e mais por influências externas que locais.
32 A antiguidade dos termos que designam “mercado constitui um sério indício da antiguidade dos próprios
mercados. São encontrados no protothagicu e no antigo chagga, senão no protochagga.
33 Ver KIMAMBO, 1969.
C A P Í T U L O 2 0
559
A região dos Grandes Lagos
O historiador que se propuser reconstituir a história da região interlacustre
da África oriental, no período que vai do começo do século XIII ao final do XV
da era cristã,de enfrentar vários problemas sérios.
Em primeiro lugar, são escassos as tradições orais e os dados linguísticos
relativos a essa época; também não dispomos de dados arqueológicos adequados.
As tradições orais, por exemplo, muitas vezes evocam figuras paternais legendá-
rias que são apresentadas alternadamente como divindades, como ancestrais de
todo o povo, como fundadores de clãs ou, ainda, como introdutores de alguma
cultura agrícola (banana, milhete etc.) ou da criação de gado. As histórias de
suas façanhas deram origem a tradições populares, cuja autenticidade histórica
é difícil de determinar. Não surpreende, nessas condições, que um historiador
como C. Wrigley tenha concluído que os mitos chwezi, para tomar apenas
um exemplo, não fornecem nenhum dado válido a respeito da história antiga
da região interlacustre. Segundo ele, admitir que os espíritos a que aludem os
mitos e as práticas religiosas dos Chwezi representam soberanos que teriam
efetivamente reinado no século XV na região interlacustre seria a mesma coisa
que supor que Odin e Freya (Frija) fossem reis da Suécia em tempos primitivos,
como pretende a Inglinga Saga
1
.
1 WRIGLEY, 1973 e 1958.
A região dos Grandes Lagos
Bethwell Allan Ogot
560
África do século  ao século 
Um segundo problema que os historiadores que se interessam por essa rego
m de enfrentar é o do preconceito com que se costuma enfocar as relações entre
os povos agrícolas e os pastoris. Em muitos textos de hisria, os pastores são apre-
sentados como conquistadores civilizados que trouxeram a ordem a um lugar onde
antes reinava a anarquia. Os agricultores, ao contrário, o representados como
uma massa silenciosa e cil, que nunca gerou nenhum progresso, nem fundou
nenhum Estado. Um excelente exemplo desse preconceito encontra -se em Ruanda:
A. Kagame, por exemplo, reluta em admitir que esse Estado possa dever qualquer
instituição aos agricultores; ele também o está preparado para aceitar a ideia de
que os “Hutu possam ter exercido autoridade sobre os nobres pastores “hamitas
2
.
Nossa inteão nesse catulo é mostrar que a formação de Estados entre os agricul-
tores antecede a vinda da maior parte dos grupos de pastores. Tamm pretendemos
demonstrar que os dois tipos de povos conviveram em paz durante longo período,
até o momento em que, no século XV, começou o grande processo de constituição
de Estados, o qual por sua vez foi em grande medida responsável pela distinção de
classes sociais ou castas na região. A esse respeito, é importante assinalar que termos
como pastores e agricultores o m, aqui, significação étnica, mas apenas ocupacio-
nal. As tradões da região interlacustre indicam que um pastor que perdesse seu
gado e não pudesse reavê -lo convertia -se em agricultor, enquanto o agricultor que
adquirisse gado se tornava pastor
3
. Essas mudanças ocorriam continuamente na
rego, tanto no plano individual quanto aovel de grupos.
Outro problema para um historiador que se ocupe do estudo dessa rego no
período considerado é o da cronologia. De 20 anos para cá, vários especialistas
dedicaram -se ao estudo das cronologias bantu e nilotas, combinando os intervalos
entre gerões, as correlações de referências e os eclipses mencionados nas tradições.
Uma leitura mais atenta dessa abundante literatura mostra, porém, que o existe
acordo geral nem sobre a cronologia de tal ou qual Estado, nem sobre o quadro
cronológico relativo à evolução da rego interlacustre em seu conjunto. Por exem-
plo, a exatio da genealogia bito, no Bunyoro, foi recentemente questionada por
D. P. Herige
4
. O mesmo problema genealógico também é de enorme importância
em Ruanda. A. Kagame defende a tese de que esse Estado tenha sido fundado
no século X da era cristã, apresentando uma genealogia real desde 959
5
. Contudo,
2 KAGAME, 1955, p. 112.
3 Ver KARUGIRE, 1971.
4 HENIGE, 1974.
5 KAGAME, 1959. A genealogia começa assim: Gihanga I (959 -992), Gahima I (992 -1025), Musindi (1025-
-1058), Rumeza (1058 -1091), Nyarume (1091 -1124), Rukuge (1124 -1157) e Rubanda (1157 -1180).
561
A região dos Grandes Lagos
alguns autores, como Jan Vansina, consideram que, dos soberanos arrolados por
Kagame, os sete primeiros o seriam personagens hisricas, com a posvel exceção
de Gihanga. Segundo Vansina, a fundação do Estado de Ruanda teria ocorrido na
segunda metade do culo XV
6
. E, mesmo que conseguíssemos resolver a queso
da cronologia dos Estados isoladamente, ainda faltaria integrar as cronologias de
Ruanda, Gisaka, Bunyoro, Kiziba, Mpororo, Buganda, Busoga, Nkore, Karagwe,
Ihangi Ihangiro, Kyamutwara, Buzinza e Sukuma, numa estrutura cronológica
sica que cobrisse todo o período que ora nos interessa. Tarefa, evidentemente,
das mais árduas.
Finalmente, um historiador interessado no estudo dessa região teria de
enfrentar o fato de que, até há bem pouco tempo, a maior parte dos relatos his-
tóricos publicados dizia respeito apenas aos reis e suas cortes, em cujas tradições
se baseavam para tratar das origens e desenvolvimento dos Estados centralizados
da região interlacustre. É este o caso, especialmente, dos trabalhos de A. Pagès,
Lacger e A. Kagame acerca de Ruanda. Tais obras históricas têm necessaria-
mente alcance limitado, sobretudo no que se refere aos setores da sociedade que
estão fora dos círculos reais.
Uma vez assinalados os principais problemas, passemos então à história da
região situada entre os grandes lagos da África. Por razões de conveniência his-
tórica, nós a dividiremos em quatro partes: o complexo de Kitara; o complexo de
Kintu; o complexo de Ruhinda, e o complexo de Rwanda (ou Ruanda). Empre-
gamos o termo “complexo para evocar, a um tempo, a natureza multiétnica da
região e a confluência das tradições culturais que constituem sua história. Mas,
por outro lado, os quatro complexos ligam -se uns aos outros, estando associados
no quadro da história geral da região.
O complexo de Kitara
A história do complexo de Kitara, que da perspectiva geográfica cobre a
maior parte dos atuais territórios do Bunyoro e do Toro, assim como as porções
vizinhas do Nkore, Mubende e Buganda, foi estudada recentemente por Carole
A. Buchanan
7
. Trata -se, certamente, do mais antigo sistema estatal da região
interlacustre, e sua história costuma ser pensada em função da chegada de três
grupos de invasores: os Batembuzi, os Bachwezi e os Babito. É bom notar,
6 VANSINA, 1960.
7 BUCHANAN, 1974.
562
África do século  ao século 
porém, que essa apresentação histórica – que, em linhas gerais, reflete a divisão
da história do complexo de Kitara em três grandes fases deixa de lado, o que
é muito significativo, os povos de língua bantu, que predominam na região.
Devemos daí concluir que essa maioria de falantes de línguas bantu sempre se
limitou a observar a história, sem jamais dela participar?
Para responder a essa questão, é indispensável recordar que a chegada da
maior parte dos Bantu precedeu a dos três grupos de invasores. C. A. Buchanan
postula que algumas das mais antigas migrações que se conhecem, em direção ao
complexo de Kitara, devem ter ocorrido entre 722 e 1200. Os primeiros clãs que
se instalaram nessa região certamente se originavam do Sudão central; vinham,
portanto, do norte ou do noroeste
8
. Os especialistas não são acordes com rela-
ção à história antiga dos povos do Sudão central, porém os dados linguísticos
sugerem que sua presença na região antecedeu a vinda dos primeiros Bantu. Se
assim for, isso significa considerando -se as evidências arqueológicas que
estariam estabelecidos na área antes do século IV da era cristã
9
. Os primeiros
clãs de língua bantu parecem ter vindo do oeste do lago Mobutu (lago Albert)
e se dispersaram por toda a região ao sul do Nilo. Segundo suas tradições,
dedicaram -se principalmente à agricultura, cultivando a Eleusine e o sorgo;
alguns, porém, criavam gado.
C. A. Buchanan sugeriu que as primeiras migrações bantu para a região
interlacustre se deram nos séculos X e XI, baseando -se no fato de que não se
encontrou, nas mais antigas camadas de Kibiro (c. do século X) nenhum exem-
plar de cerâmica com depressões na base, que é costume associar à presença de
povos de língua bantu
10
.
Alguns desses clãs bantu participaram mais tarde da formação de peque-
nos Estados agrários, o que C. A. Buchanan associa ao período batembuzi da
história de Kitara e, experimentalmente, data dos séculos X a XIV
11
. Se tiver
razão, estará resolvida a questão que formulamos anteriormente, acerca do papel
desempenhado pelos povos de língua bantu na história da região. A resposta,
pelo menos no que se refere aos Batembuzi, seria que não estamos lidando com
pastores imigrantes, mas com os mais antigos grupos bantu presentes na área.
8 EHRET, 1974c, p. 8.
9 EHRET, 1967, p. 3; SUTTON, 1972, p. 11 e 23.
10 PEARCE & POSNANSKY, 1963; CHAPMAN, 1967; HIERNAUX & MAQUET, 1968, p. 43.
11 NYAKATURA, 1947. Sua genealogia propõe os anos de 869 a 899 para o primeiro Batembuzi e os de
1301 a 1328 para o último, que foi o rei Isaza.
563
A região dos Grandes Lagos
A obra de Buchanan constitui o primeiro estudo sério do período pré -bachwezi,
Até sua publicação, os historiadores e outros especialistas chamavam o período
batembuzi de o reinado dos deuses”, considerando seu povo como mais mito-
gico do que histórico. Segundo as tradições kinyoro, foram dezenove os Abakama
Abatembuzi, ou reis pioneiros”
12
; contudo, a tradição nkore registra apenas quatro
deles, o lhes atribuindo qualquer nome coletivo. Alguns desses reis como Hangi,
Kazoba e Nyamuhanga – são espíritos ancestrais adorados pelos Bachwezi.
Buchanan conseguiu dissipar as brumas que encobriam nosso conheci-
mento dos Batembuzi porque se preocupou menos com as tradições relativas
às cortes e deu maior importância à história dos clãs. Uma das mais antigas
unidades políticas por ela identificadas é a chefaria de Bugangaizi, fundada pelo
clã dos Bagabu, que a tradição classifica entre os Batembuzi, e cujo fundador
foi Hangi. Os Bayaga cujo nome original era Basehe constituem outro clã
anterior aos Bachwezi, que certamente emigrou do vale do Samliki na mesma
época. Suas tradições associam -nos à introdução do gado (provavelmente ainda
não se tratava do gado de chifres compridos) na região, e às salinas de Kibiro,
no lago Mobutu. Outro clã cuja preeminência parece estar associada a uma base
econômica é o dos Basiita. Este é um dos maiores clãs da região interlacustre.
Seus membros identificam -se com Sitta, fundador de um dos clãs de Bugisu,
com o clã abendega (= carneiro”) do Buganda e do Busoga, com os Baswaga do
Bakonjo e os Byabashita do Kibale. Ocupam posição de destaque nas tradições
dos Estados do Nkore, do Kiziba e do Buhaya, onde são vinculados a uma forma
mais antiga de chefaria, que antecede os Bahinda. Sua ascensão ao poder e sua
dispersão por região muito extensa parecem dever -se, segundo suas tradições,
ao fato de que sabiam trabalhar o ferro. O topônimo Mbale ou Kabale, que se
encontra no Mwenge, no Bugisu (na República de Uganda), no noroeste da
República Unida da Tanzânia e na parte ocidental da República do Quênia está
ligado, nas tradições, à presença dos Basiita.
Por volta de 1250 existia, a leste das montanhas do Ruwenzori, certo
número de pequenas chefarias bantu, nascidas das chefarias dos Batembuzi do
Bugangaizi ou copiadas destas. Por exemplo, de acordo com F. X. Lwamgira, o
primeiro rei do Kiziba viveu entre 1236 e 1263
13
; no entanto, ao mesmo tempo
havia várias outras sociedades de língua bantu organizadas em unidades políticas
menores, mas importantes, como linhagens e clãs.
12 Ibid., p. 6 -65.
13 LWAMGIRA, 1949, p. 65.
564
África do século  ao século 
A história do cbaranzi instaura uma ligação entre os Batembuzi e a dinas-
tia que os substituiu no poder sobre o complexo de Kitara a dos Bachwezi.
Segundo a tradição kinyoro, o fundador do clã, Bukuku, foi um plebeu, que
exerceu altas funções na corte de Isaza (c. 1301 -1328), último dos reis pio-
neiros”. Supõe -se que ele tenha sido o sucessor de Isaza e, ao mesmo tempo,
que ele seja o avô de Ndahura (c. 1344 -1371), o grande monarca do período
bachwezi. O próprio clã tinha como totens o gafanhoto e o almiscareiro, e
provavelmente provinha da região do Busongora, a oeste. Como veremos mais
adiante, esses dois totens exerceram importante papel na história do Buganda e
do Busoga, enquanto nomes de grupos da época pré -kintu, e portanto também
pré -bachwezi, que emigraram do oeste para o leste, atravessando as savanas para
chegar às margens do lago Vitória (Nyanza).
Como indicamos, Bukuku, que era agricultor, permitiu estabelecer rela-
ções de parentesco entre os reis pioneiros e os Bachwezi. O pai adotivo de
Ndahura, a seguirmos as tradições do Bunyoro e Nkore, seria um negociante
de cerâmicas, membro do cbakopi
14
daí o outro nome dado a Ndahura:
Karubumbi (de mubumbi, “ceramista”). Talvez essas crenças visassem legitimar
a posição de Bukuku, plebeu que alcançou grande renome. Contudo, tais tradi-
ções são muito difundidas na região, e delas devemos inferir que a fundação e o
desenvolvimento dos Estados centralizados da região interlacustre não podem
ser atribuídos exclusivamente a aristocracias pastoris externas à região. A soma
de diversos fatores internos, inclusive certas iniciativas locais, poderia fornecer
explicação mais convincente.
Quando Bukuku sucedeu a Isaza, teve de enfrentar a oposição de vários
chefes que não admitiam submeter -se à autoridade de um plebeu. Bukuku
esmagou essa rebelião, mas a insatisfação, que continuou generalizada, permitiu
que Ndahura tomasse a coroa e fundasse a dinastia bachwesi. As tradições do
Bunyoro e Nkore são acordes em que essa dinastia teve dois reis Ndahura e
Wamara e um regente, Murindwa, que dirigia os negócios públicos durante
as expedições guerreiras do irmão Ndahura.
Apesar dessa concordância quanto aos nomes dos soberanos, e embora exista
ampla literatura sobre a Dinastia Bachwezi, os historiadores ainda não chega-
ram a um acordo acerca da validade de tal literatura. G. W. B. Huntingford
sugere que os Bachwezi fossem de origem hamita”, aparentados aos Sidama do
14 NYAKATURA, 1947; KATATE & KAMUGUNGUNU, 1967.
565
A região dos Grandes Lagos
sudoeste da Etiópia
15
. R. Oliver acredita que os Bachwezi fossem personagens
históricas: diz ele que,
no conjunto, parece que o reino ganda de Chwa se identifica com o dos Chwezi,
e que o país conquistado pelos Bito constituía [...] uma única unidade política,
dominada pelos pastores hima, sob a égide de reis do clã chwezi
16
.
Antes desses autores, J. P. Crazzolara havia proclamado como fato indubi-
tável que os Bachwezi e os Bahima formavam um único e mesmo povo, que
pertencia à etnia luo
17
. M. Posnansky, baseando -se em evidências arqueológicas,
admite a existência histórica dos pastores bachwezi e a correlação entre eles e a
cultura bigo, a qual ele situa entre 1350 -1500. Para dizer a verdade, ele vai ainda
mais longe identifica Bigo como a capital de um reino de pastores que teria
existido no Buganda ocidental, entre 1350 e 1500
18
.
Enquanto todos esses historiadores admitem a existência real dos Bachwezi,
C. Wrigley é quase o último, em nossos dias, ainda a sustentar que eles nada
mais foram do que
um panteão familiar, uma série de divindades individualizadas e distintas por seus
nomes, imaginadas como um grupo familiar humano magnificado e asso ciadas mais
do que tudo às forças e aos fenômenos naturais mais marcantes
19
.
Neste capítulo, aceitamos a existência histórica dos Bachwezi. Assim, ao apre-
sentarmos os principais acontecimentos que se produziram no complexo de
Kitara entre 1350 e 1500, vamos considerá -los como parte da história da África
oriental, e não como um aspecto de sua mitologia.
Existem duas grandes teorias a respeito desses acontecimentos. Alguns his-
toriadores, como R. Oliver, defendem a tese de que o Império Bachwezi foi
fundado em decorrência de uma incursão dos pastores bahima. Não chegam a
um acordo, porém, quanto à proveniência exata destes últimos: antes se pensava
que viessem do nordeste, provavelmente da Etiópia meridional; mas, recente-
mente, vários representantes dessa escola sugeriram que talvez os Bahima se
originassem do sul.
15 HUNTINGFORD, 1963, p. 86.
16 OLIVER, in OLIVER & MATHEW, 1963 -1976, v. 1, p. 181 -2
17 GRAZZOLARA, 1950 -1954, v. 2, p. 94 -7 e 102 -3. Neste capítulo, empregamos a graa correta – luo –, e
não a variante europeizada, lwoo.
18 POSNANSKY, 1966, p. 4 -5.
19 WRIGLEY, 1973, p. 226.
566
África do século  ao século 
Num estudo a respeito da influência cultural dos cuxitas meridionais sobre
a região interlacustre, assim se exprime Chris Ehret:
O fato de que os cuxitas meridionais tenham continuado a exercer papel importante, até
data bem tardia, na metade sul da região interlacustre suscita a intrigante possibilidade de
que a cultura dos pastores tutsi e hima da época moderna, cuja presença é marcada nessa
zona, se originaria na dos cuxitas meridionais, e, portanto, aqueles poderiam ter vindo do
leste, e não do norte
20
.
Essa infiltração dos Bahima na região produziu -se, ao que se supõe, no século
XIII e no começo do XIV. A ela se seguiu um período de instabilidade, durante o
qual os Bahima e seus aliados entre os ocupantes anteriores constituíram, pouco
a pouco, uma aristocracia por sobre a população de agricultores, até estabelece-
rem, no século XIV, um Estado fracamente estruturado.
Segundo a outra teoria, que hoje ganha terreno rapidamente, os Bachwezi
seriam chefes locais que se impuseram em decorrência de transformações eco-
nômicas e demográficas que estavam ocorrendo na região interlacustre. É certo
que o Império de Kitara foi fundado por Ndahura (c. 1344 -1371), grande rei
guerreiro que, partindo da pequena chefaria do Bugangaizi, estendeu seu poder
a um vasto território que compreendia o Bunyoro, o Buganda ocidental, o Toro,
o Kigezi setentrional, as ilhas Sese, o Nkore, o Kiziba, o Karagwe, parte do
nordeste de Ruanda e parte do Quênia ocidental. Não contando com os recur-
sos militares e administrativos nem com os meios rápidos de comunicação que
seriam indispensáveis para instituir um Estado centralizado em área tão extensa,
ele se apoiou em agentes que designava para representá -lo em todas as partes
do domínio. As principais riquezas econômicas desse império de organização
frágil foram, ao que parece, o sal, o gado e o ferro.
O rei Ndahura, que muitas vezes comandava o próprio exército em campa-
nha, foi capturado no Bukoba, durante uma invasão de Ihangiro, quando suas
tropas entraram em pânico devido a um eclipse do sol. Ao ser libertado, preferiu
emigrar para oeste, em vez de retomar, desacreditado, à sua capital, Mwenge. A
tradição nada diz sobre sua história ulterior.
Sucedeu -lhe o filho Wamara (c. 1371 -1398), que, por razões de segurança,
transferiu a capital de Mwenge para Ber (Bwera). O reinado de Wamara foi
ainda mais agitado que o do pai, em grande parte devido à chegada de vários
grupos de imigrantes. Estes incluíam os Jo -Oma, que em sua maioria vinham da
região dos montes Agoro; os clãs de língua bantu originários do leste, associados
20 EHRET, 1974c, p. 11.
567
A região dos Grandes Lagos
ao complexo de Kintu”, de que falaremos mais adiante; invasores vindos do sul,
que provavelmente constituíam um grupo na vanguarda do cbashambo; e,
finalmente, os Luo, que começaram a infiltrar -se no império de Kitara partindo
do norte do Nilo. Os especialistas ainda não puderam determinar com segurança
se os Jo -Oma eram luo ou bahima, embora as pesquisas mais recentes efetua-
das por J. B. Webster e sua equipe, em Makerere, pareçam favorecer a segunda
tese
21
. Seja como for, o ponto que convém enfatizar é o seguinte: segundo a
reconstituição histórica que ora expomos, os Bachwezi não eram nem bahima
nem luo, mas sim uma aristocracia bantu que se destacou em Uganda ociden-
tal, nos séculos XIV e XV. Com a chegada dos pastores bahima (quer tenham
vindo apenas do norte, ou tanto do norte quanto do sul) e dos Luo, durante o
reinado do último rei bachwezi, esse império fracamente estruturado tornou -se
heterogêneo, tanto do ponto de vista étnico quanto linguístico. As dificuldades
de integração política suscitaram tensões internas, que terminaram levando à
destruição o Império de Kitara.
O rei Wamara havia tentado conquistar o apoio dos rem -chegados,
confiando -lhes importantes cargos políticos; por exemplo, Miramira, do c
bashambo, e Rugo e Kinyonyi, ambos do cbalisa, foram encarregados de
representá -lo nas regiões vizinhas ao lago Masyoro, que mais tarde se tornaram
o Kitagwenda, Buzimba e Buhweju. Um Muhima, de nome Ruhinda, ficou
encarregado dos rebanhos reais; Nono, do cbasiita, foi nomeado subchefe de
Karagwe, enquanto Kagoro, um Luo, recebeu o comando supremo dos exércitos.
O próprio rei concluiu um pacto de sangue com Kantu, que havia se tornado o
líder dos clãs bantu vindos do leste. Essas medidas, porém, foram consideradas
sinais de fraqueza pelas comunidades de imigrantes, que não tardaram em fazer
valer sua força própria.
Houve então grande fome, a que se seguiu uma doea que se alastrou
por todo o império, dizimando o gado; tornou -se geral a insatisfação. Kagoro,
comandante -em -chefe dos exércitos de Wamara, valeu -se da ocasião para orga-
nizar um golpe de Estado contra os Bachwezi, que foram massacrados impiedo-
samente e cujos corpos foram jogados nas águas. A aristocracia bachwezi, que de
qualquer forma não podia ser muito numerosa, foi, dessa forma, aniquilada, ou,
como afirma a tradição, “desapareceu”. Assim terminou o Império Bachwezi, que
foi substitdo por dois conglomerados: os Estados luo -babito do Bunyoro -Kitara,
21 WEBSTER, 1978.
568
África do século  ao século 
Kitagwenda e Kiziba; e, mais ao sul, os Estados bahinda (ou bahima) do Kara-
gwe, Nkore, Kyamutwara, Ihangiro e, talvez, do Gisaka (ver fig. 20.2).
A queda do Império Bachwezi provocou luta encarniçada entre os Luo e os
Bahima (os Babito e os Bahinda), pelo controle político da região. A história
dos dois novos Estados, nos três séculos que se seguiram, deve ser estudada no
contexto dessa batalha pela hegemonia política.
Começando pelos novos Estados luo, é importante assinalar que, a nosso
entender, não se pode explicar a evolução histórica de Uganda ocidental em ter-
mos de uma teoria simplificadora, segundo a qual as sucessivas levas de pastores
que conquistaram esse país teriam nele introduzido a civilização
22
. Conforme
explicamos acima, os Luo começaram a penetrar no território de Kitara em
tempos do rei Wamara. Antes dessa época, porém, os povos de língua luo se
estavam irradiando em várias direções a partir do lugar de origem que era,
provavelmente, o sul do Sudão. Os Luo setentrionais parecem ter permanecido
nessa mesma região, enquanto os Luo centrais e meridionais se dirigiram para
o sul, até a região dos montes Agoro. Um estudo glotocronológico dos dialetos
luo sugeriu que essa dispersão pode ter ocorrido por volta do ano 870 200),
o que a situa, portanto, entre 670 e 1070
23
.
As tradições orais indicam que os povos de ngua luo continuaram as suas
graduais expansão e dispersão durante os séculos XIII e XIV (ver fig. 20.1). Essas
datas estão confirmadas por dados linguísticos, que permitem supor que a sepa-
ração dos Luo protocentrais e meridionais se tenha dado entre c. 1170 e 1470
24
.
No final do culo XIV, quatro comunidades luo se haviam constituído: um grupo
vivia perto dos montes Agoro; outro, ao longo do Nilo, perto da ponta norte do
lago Mobutu (Albert), na região conhecida como triângulo do Pakwac; um ter-
ceiro ocupava a área entre Nimule e Shambe (Baar); finalmente, os ancestrais dos
Joka -Jok se haviam instalado em algum lugar ao sul dos montes Agoro
25
.
Segundo as tradições dos Luo, ao chegarem à região dos montes Agoro eles
encontraram vários grupos de outras etnias. Um desses povos foram os Muru,
em meio aos quais se fixaram e com quem fizeram numerosos casamentos. Essa
população miscigenada deu origem aos Joka -Jok e aos Pawir -Pakwac, que mais
22 Ver OLIVER, in OLIVER & MATHEW, 1963 -1976, p. 180; OGOT, 1967, p. 46 -7; POSNANSKY,
1966, p.5.
23 BLOUNT & CURLEY, 1970. Naturalmente, tenho consciência do fato de que muitos linguistas, hoje
em dia,não reconhecem a validade dos estudos de glotocronologia.
24 Ibid.
25 OGOT, 1967. Os Joka -Jok já viviam na parte ocidental do Quênia no nal do século XV.
569
A região dos Grandes Lagos
tarde emigraram da região. Por sua vez, os povos de língua luo que permanece-
ram nas proximidades dos montes Agoro receberam, mais ou menos entre 1320
e 1360, a imigração dos Jo -Oma (Bahima). Nessa época, as principais atividades
dos primeiros eram a caça e a agricultura, e parece que foram os pastores bahima
que os ensinaram a criar o gado. Mais tarde, devido a uma doença que dizimou
o gado na região, os pastores foram forçados a emigrar em grande número.
Cruzaram o Nilo e entraram no Império Bachwezi sob o reinado de Wamara,
como já relatamos. Os que ficaram na área dos montes Agoro foram absorvidos
pelos povos de língua luo, que, sob a direção de seu rei Owiny I (1409 -1436),
haviam fundado o Tekidi, um dos mais antigos Estados luo
26
. De acordo com
as tradições luo, Owiny casou -se com Nyatworo, uma moça do cbahima, de
quem teve um filho, de nome Rukidi. Chegando à idade adulta, porém, o prín-
cipe Rukidi rompeu com o pai e, com seus seguidores, emigrou para Pakwac.
Depois do golpe de Estado efetuado por Kagoro, foi convidado pelos imigrantes
luo estabelecidos na região a assumir o poder político no Império de Kitara.
Ele e seus homens ficaram conhecidos pelo nome de Babito, e assim foi que
Rukidi fundou a Dinastia Babito de Kitara (c. 1436 -1463), da qual falaremos
mais adiante. Dessas histórias do reino de Tekidi,-se como já nessa época era
extremamente difícil distinguir os Luo dos Bahima, dada a ampla miscigena-
ção reinante. É provavelmente por isso que J. P. Crazzolara e outros autores se
referem a esses Bahima de fala luo como se fossem Luo.
Mais ao norte, no Baar, uma fusão étnica análoga estava se produzindo entre
os Luo e os Madi. Desse cadinho histórico surgiram vários clãs reais, como os
Patiko, os Nyimur, os Padibe, os Atyak ou Kwong, os Koc, os Pagaya e outros
mais, que haveriam de exercer importante papel na história da parte setentrional
da região. Sabemos, por exemplo, que os Patiko, dirigidos por Labongo, migraram
do Pari -Baar para o Nilo, até o triângulo de Pakwac. Alguns deles – inclusive os
membros de outro clã, conhecido como Anywagi (Anywah) acompanharam
Rukidi até o Império de Kitara. Também consta que os Bakwonga (que em
sua maior parte eram originários do Sudão central), assim como os Bacwa e os
Bagaya (ambos clãs de origem luo setentrional), emigraram para o sul e penetra-
ram no Kitara. Afirma C. A. Buchanan que isso deve ter acontecido pelo menos
uma geração antes de Rukidi
27
. Assim, a ideia de um exército luo invadindo o
Império de Kitara deve ser descartada, por não ter fundamento. Pequenos grupos
26 Ver BUCHANAN, 1974, p. 181.
27 Ibid.
570
África do século  ao século 
F . Mapa das primeiras migrações dos Luo. (B. A. Ogot.)
571
A região dos Grandes Lagos
continuaram a espraiar -se para o norte, pelo Sudão; o oeste, pelo Zaire; o leste,
pela Etiópia; e o sul, pelo Kitara, Bukedi e Quênia ocidental.
As tradições do Bunyoro, Kiziba, Nkore e Karagwe evidenciam que foi muito
mais fácil para os Babito e os Bahinda depor Wamara que adquirir o controle
do império. Os novos governantes criaram e difundiram o mito da extinção
dos Bachwezi; também tentaram legitimar o poder alegando parentesco com os
Bachwezi, mas, infelizmente para eles, tal propaganda não conseguiu convencer
seus súditos. Os chefes designados pelos Bachwezi continuaram a controlar seus
próprios territórios. O clã real bariisa, por exemplo, conseguiu implantar chefa-
rias independentes no Buzimba e Buhweju
28
. No Pawir, o clã real luo conservou
a independência política, embora permanecesse à sombra do Bunyoro -Kitara. Nas
demais regiões, a autoridade dos Luo e dos Bahima teve de se impor mediante
uma combinação de força e de astúcia.
No Kiziba, por exemplo, a luta durou mais de uma geração, até que Kibi, um
caçador luo (c. 1417 -1444), conseguisse implantar a hegemonia dos Luo. Graças
a hábeis manobras políticas e a generosas distribuições de caça, alcançou o apoio
de vários clãs importantes, como os Bagaba – o velho clã real dos Batembuzi –,
os Basiita e os Baranzi
29
.
No Bunyoro -Kitara a luta foi mais longa ainda. Apesar de bem -sucedido
em seu golpe, Kagoro não foi capaz de unificar sequer os Luo, quanto mais o
conjunto do Estado. Garantiu, porém, que pelo menos os atributos reais (entre
os quais os tambores) fossem deixados para os Babito. Afinal, os Luo mandaram
chamar Rukidi para chefiá -los, que aceitou vir, acompanhado dos Babito, seus
seguidores. Ele percebeu que, em várias partes do país, o povo lhe era hostil. Era
tão grande a hostilidade ao novo regime em Bwera, por exemplo, que Rukidi
se viu forçado a transferir a capital para Bugangaizi, no centro do velho Estado
batembuzi. Também teve dificuldades em fazer reconhecer a legitimidade do seu
poder e em integrar um Estado que se baseava numa sociedade etnicamente tão
heterogênea. A situação somente se estabilizou depois de 1500, quando princi-
piou a expansão bunyoro em direção aos Estados bahinda e a Ruanda
30
.
Como vimos acima, os Bachwezi haviam designado Miramira, do c
bashambo, e membros do clã balisa para exercerem a chefaria na região que cerca
o lago Masyoro. Depois da morte de Wamara, começou a luta pela supremacia
nesse território. Dois irmãos babito Wakole e Nyarwa conseguiram matar
28 NGANWA, 1948, p. 6 -7; KANYAMUNYU, 1951.
29 LWAMGIRA, 1949.
30 Sobre a política expansionista do Bunyoro -Kitara, ver nossa contribuição no capítulo 26 do volume V.
572
África do século  ao século 
Miramira e fundar o Estado de Kitagwenda, ajudados pelo clã bahima dos
Bashekatwa
31
.
O complexo de Ruhinda
Esse complexo tinha como centro geográfico o que hoje constitui o distrito
de Kigezi, Ankole e o distrito de Bukoba, na República Unida da Tanzânia,
assim como uma parte do Burundi e de Ruanda. No período que ora estudamos,
os principais Estados foram Nkore e os Estados buhaya de Karagwe, Ihangiro,
Kiyanja, Buzinza e Kyamutwara, assim como certas partes do futuro reino de
Ruanda, como Ndorwa (ver fig. 20.2). Apesar das fronteiras políticas e das bar-
reiras linguísticas, essa região possuiu uma unidade histórica, que data do período
que ora estudamos. Assim, foi nela que a influência dos pastores Bahima -Batutsi
parece ter sido mais notável. Vários clãs antigos, como os Basiita, os Bagahe,
os Basigi, os Bazigaaba, os Bakimbiri, os Bashambo, os Baitira, os Batsyaba, os
Bagyesera, os Baishekatwa, os Bungura e os Babanda, estão dispersados por toda
a área. Isso é especialmente importante numa região em que os clãs, sobretudo
os maiores, tendiam a representar chefarias de populações miscigenadas mais
do que grupos de parentesco exogâmico
32
. Muitos Bahima se incorporaram a
clãs bantu, enquanto famílias bantu se integravam em clãs batwa e vice -versa.
Essa homogeneidade é confirmada pelo fato de que em sua maior parte os atuais
habitantes da região falam rukiga, ruhororo, runyankore ou runyambo todos
eles dialetos estreitamente aparentados ou, ainda, runyarwanda. Outro fator
de coerência histórica é o fato de que a maioria dos grupos da região sofreu os
efeitos da expansão do Estado de Ruanda – mas esta é uma questão que ultra-
passa os limites do presente capítulo.
As tradições parecem indicar que, por volta de 1200, no início do período que
estamos examinando, as florestas eram muito mais extensas do que hoje em dia;
nelas viviam os Batwa, que se dedicavam à coleta e à caça de maior porte, inclu-
sive de elefantes e búfalos
33
. Os agricultores bantu eno começaram a introduzir -se
gradativamente na região, vindo basicamente do sul e do oeste. Derrubaram partes
da floresta e se fixaram, cultivando o milhete e o sorgo; afora isso, praticavam a caça e
trabalhavam o ferro. Os Barongo, por exemplo, eram caçadores e ferreiros muito
31 Ver WHEELER, 1971.
32 GÉRAUD, 1977, p. 24.
33 Ver RWANDUSYA, 1972.
573
A região dos Grandes Lagos
tempo antes que os Bahima penetrassem no Buzinza
34
. As tradições do c
bazinga também ensinam que seu ancestral Kasinga era ferreiro e feiticeiro no
Karagwe. Ele foi expulso de sua terra pelo próprio irmão, Muhaya, e refugiou -se
em Ndorwa antes da chegada dos Batutsi
35
.
Inicialmente, os grupos de ngua bantu se organizaram segundo o esquema
da família extensa, com os chefes de família constituindo a autoridade suprema.
Reuniam -se para ministrar justiça e decidir questões relativas ao bem -estar da
população. Mas, à medida que aumentou o número de imigrantes, o sistema clâ-
nico foi se desenvolvendo. É bom assinalar, porém, que nessa região os clãs não
se compunham necessariamente de descendentes do mesmo ancestral: o costume
da “fraternidade de sangue”, por exemplo, encorajava os recém -chegados a se
integrarem em famílias mais antigas, e certos grupos de imigrantes procuraram
obter a proteção de clãs poderosos, juntando -se a eles, adotando sua língua e seus
costumes. Na verdade, a passagem de um clã para outro parece haver constituído
prática corrente nessa região.
Dessa forma, os clãs se tornaram organizações políticas dotadas de frontei-
ras territoriais. O chefe do ctambém chefiava o território, que era designado
pelo nome da família dominante: assim, o Busigi, por exemplo, era basicamente
ocupado pelos Basigi, o Bugahe, principalmente pelos Bagahe etc. Os grandes
clãs, como os Bazigaaba, os Bagyesera, os Basigi e os Bahanda, tinham um rei ou
chefe (mwami), que exercia liderança tanto política quanto religiosa; respondia
também pelo bem -estar da população e pelo estado do gado e das colheitas. O
mais das vezes, tais mwami eram igualmente fazedores de chuva
36
. As tradições
nos ensinam, por exemplo, que os Bagahe do Ndorwa, às margens do lago
Bunyoni, os Basigi do Busigi (região que hoje pertence a Ruanda) e, ainda, os
Babanda do Kinkizi, eram hábeis na produção de chuvas.
Parece que, no início do século XV, alguns desses clãs bantu tinham dinas-
tias bem estabelecidas. Sabemos, por exemplo, que membros do clã basiita rei-
navam no Nkore, no Karagwe e outros Estados buhaya antes que os Bahinda
tomassem o poder. As tradições históricas de Ruanda mencionam um grupo
de agricultores conhecidos como os Barengye. Considera -se que fossem dos
mais antigos habitantes da região; concentravam -se principalmente em torno
de Nduga, na área ocidental da atual República de Ruanda. Eles utilizavam
34 KATOKE, 1975, p. 14.
35 GÉRAUD, 1977, p. 28.
36 Segundo PAGÈS: A maior parte dos fazedores de chuva de Ruanda são descendentes dos chefes de
clãs bantu locais” (apud GÉRAUD, 1977, p. 30).
574
África do século  ao século 
enxadas de ferro enormes e muito rudimentares
37
. Supunha -se que tivessem
sido eliminados pelos Babanda, muito tempo antes da chegada dos Batutsi
38
;
felizmente, sabemos agora que ainda se encontram Barengye no noroeste da
República Unida da Tanzânia e na parte ocidental da República de Uganda, de
Bufumbira até Toro. Parece, assim, que essa antiga comunidade de língua bantu,
que praticava a metalurgia do ferro, devia estar distribuída por Ruanda e pelo
sudoeste de Uganda, antes da chegada dos pastores à região.Na maior parte dos
casos, era dos Barengye que provinham as famílias governantes.
Outro clã de agricultores, que provavelmente se inclui entre os mais antigos
habitantes de Ruanda e do sudoeste de Uganda, são os Bungura, que, segundo
M. d’Hertefelt, ainda eram numerosos no Ruhengeri (noroeste da República de
Ruanda) em 1960
39
. Infelizmente, não se encontrou entre os Bungura nenhuma
tradição relativa a uma migração ou à formação de um Estado o que pode,
porém, constituir um indício a mais da sua antiguidade na região.
Os Bazigaaba também parecem ser parte dos agricultores instalados há mais
tempo nessa região. Sabemos que fundaram o Estado de Mubari no extremo
leste de Ruanda, com um rei (Kabeija) e um tambor real (sera), na mesma época
em que os Banyiginya apareceram pela primeira vez na história
40
. Mas também
são encontrados em grande quantidade no Nkore e na região de Rujumbura, no
Kigezi. Em cada um desses três lugares adotaram um totem distinto: o leopardo
em Ruanda, o antílope em Rujumbura e uma vaca rajada no Nkore. Como
assinalou D. Denoon:
Essa distribuição e diversidade apontam, com segurança, para a existência de um Estado
multiclânico (provavelmente o de Mubari), de onde se teria originado uma longa diás-
pora. Os emigrantes teriam conservado o nome de Bazigaaba, primeiro num sentido
potico e depois para designar uma categoria social, e também teriam mantido os emble-
mas tomicos que caracterizavam os clãs do Estado bazigaaba inicial
41
.
Havia outros grupos de fala bantu, como os Banyangwe, Basiita, Banuma e
Baitira, que desempenhavam papel importante na região, no final do século XV,
quando os Bahinda começaram a dominar o Nkore.
37 RENNIE, 1972, p. 18 -9.
38 GÉRAUD, 1977, p. 27.
39 HERTEFELT, 1971, quadro 8.
40 PAUWELS, 1967, p. 208.
41 DENOON, 1972, p. 6.
575
A região dos Grandes Lagos
Para dar uma ideia do sistema político que se havia desenvolvido na parte
ocidental da região interlacustre no começo do século XV, mencionarei, enfim,
o clã dos Baishekatwa, cujo totem era o ensenene. Membros desse clã se encon-
tram em Ruanda (os Bahondogo, que reinaram sobre o Bugyesera, seriam
seus descendentes), no Kigezi (onde eles são os mais antigos habitantes do
Rujumbura), em Tora e no Nkore. As tradições de Buganda também nos con-
tam que o censenene chegou ao Buganda pelo oeste, seguindo Kimera, como
veremos adiante. Parece, portanto, que os Baishekatwa são um clã muito antigo,
de Uganda ocidental, estendendo -se do Busongora até o sul de Ruanda.
Até aqui só falamos dos agricultores de língua bantu. Devemos agora tratar
dos pastores. Em primeiro lugar, é importante reiterar o que foi dito, que a
origem dos pastores nessa região é incerta. Alguns autores afirmaram que eles
vieram do norte mas, como observou J. K. Rennie,
é impossível excluir uma origem local do pastoralismo talvez no Karagwe ou em
suas proximidades
42
.
Em segundo lugar, é necessário revisar a opinião tão amplamente difundida
de que os pastores teriam chegado à região como conquistadores, estabe-
lecendo aristocracias pastoris sobre as populações de agricultores. Da mesma
forma que no Kitara, podem -se citar vários casos de coexistência pacífica entre
pastores e agricultores
43
. Na verdade, até o século XV, quando surgiram vários
Estados pastoris (como veremos a seguir), foi sobretudo dos clãs de agricultores
que se originaram as dinastias reinantes.
Um grupo como o dos Bariisa, por exemplo, é considerado um dos mais
antigos clãs pastoris da região. Segundo suas tradições, eles emigraram do norte
possivelmente do Bunyoro para o Karagwe, no sul, e depois voltaram para
o norte percorrendo os atuais territórios do Kigezi e Ankole ocidental. Quando
chegaram ao Mpororo, os membros do cse dispersaram nas mais diversas
direções. Entre eles, estava uma família de três irmãos Kateizi, Kinyonyi e
Rugo e uma irmã, Iremera, que foram guiados por uma águia até a corte do
rei Wamara, último dos soberanos bachwezi. Kateizi desistiu da empreitada, para
se fixar no Buhweju, onde se casou com mulheres da região, tornou -se agricultor
e fundou o subclã dos Bateizi. Os outros dois irmãos e a irmã prosseguiram até
chegarem, finalmente, à corte dos Bachwezi. Iremera casou -se com o rei, Rugo
foi nomeado governador de Buzimba e Kinyonyi tornou -se representante de
42 RENNIE, 1972, p. 23.
43 KARUGIRE, 1971, p. 122 -3.
576
África do século  ao século 
Figura . Mapa da localização dos Bachwezi e dos imigrantes. (B. A. Ogot.)
577
A região dos Grandes Lagos
Wamara no Buhweju. Cada um deles recebeu do soberano um tambor real e
100 cabeças de gado
44
. Dessa tradição se evidencia que nem todos os pastores
começaram como dirigentes; e o caso dos Bateizi comprova que alguns deles
jamais tomaram o poder.
Entre os grupos de pastores que emigraram mais tarde, incluem -se três clãs
que tiveram papel determinante na fundação de novos clãs no Nkore, Karagwe,
Ihangiro e Kiziba. São eles os Bashambo, os Basiita e os Bahinda. A tradição
registra que os Bashambo, vindos do norte, se estabeleceram em Ndorwa e suas
cercanias, no nordeste de Ruanda, depois se dispersaram para o norte e o leste,
pelo Nkore e o Kigezi oriental
45
. Eram provavelmente Bahima os que ingressa-
ram no Estado de Kitara antes ou durante o reinado dos Bachwezi. Parece que
os Basiita se orientaram numa direção oposta à dos Bashambo. Aparentemente,
partindo do Karagwe ou de suas adjacências, seguiram para o norte. Durante o
período bachwezi, foram nomeados Basiita para governar o Karagwe e o Nkore
esses postos couberam, respectivamente, a Nono e Karara.
Assim chegamos ao último grupo, o dos Bahinda. Existe muita controvérsia a
respeito de sua origem. Segundo as tradições nkore, os Bahinda seriam descenden-
tes dos Bachwezi, e Ruhinda fundador de uma série de dinastias no Karagwe,
Kyamutwara, Nkore e Ihangiro seria filho de Wamara, último rei dos Bachwezi
46
.
Luc de Heusch, porém, sugeriu que os Bahinda seriam nilotas. Afirma que os Luo,
invadindo o Bunyoro, venceram os Bachwezi; estes eno se retiraram para o sul, a
Bwera e Nkore, que estavam protegidos das incures dos luo pelas fortificações de
Bigo. Contudo, foram flanqueados pelos Bahinda (um ramo dos Luo), que chegaram
a eles depois de atravessarem o Karagwe. Os Bahinda conseguiram uma viria
decisiva sobre o rei Wamara no Nkore, e assim puderam instituir novas dinastias no
Nkore, Karagwe, Ihangiro e Kyamutwara. Essa teoria, porém, foi refutada, de maneira
convincente, por S. R. Karugire
47
.
Por outro lado, D. Denoon defendeu a tese de que
Ruhinda era um Mugyesera, do Gisaka, que ou estava ampliando o território de seu
Estado, ou tinha rompido com ele
48
.
44 KANYAMUNYU, 1951.
45 As mulheres bashambo ao que se arma casaram -se com homens bachwezi. Ver GÉRAUD, 1977;
HEUSCH, 1966.
46 KARUGIRE, 1971, p. 126 -7.
47 Ibid., p. 126.
48 DENOON, 1972, p. 10.
578
África do século  ao século 
Para sustentar essa afirmação, assinala que os Bagyesera e os Bahinda possuem
o mesmo totem, um macaco; que os Bafumbira e Batoro chamam o Nkore pelo
nome de “Bugyesera”, ou seja, “reino dos Bagyesera”; que a completa ausência
do clã bagyesera no Nkore, contrastando com a presença de membros desse
clã em todas as zonas que o circundam, pode ser explicada se admitimos
que Bahinda seja o nome local dos Bagyesera; e, finalmente, que a conhecida
magnitude do poder dos Bagyesera é compatível com esta teoria. Eles consti-
tuíram o poder predominante no Nkore ocidental e no Kigezi oriental até o
fim do século XVII, e suas incursões setentrionais chegaram até o Busongora e
Mwenge. Contudo, tudo o que D. Denoon demonstrou foi que havia um grupo
pastoril predominante na região, que talvez pudesse se identificar como sendo os
Bagyesera. Mas não parece estar provada a identificação dos Bagyesera com os
Bahinda, especialmente porque Denoon não conseguiu demonstrar que existisse
uma relação entre Ruhinda e os Bagyesera.
Parece que as tradições bunyoro registradas por J. Nyakatura fornecem uma
explicação aceitável para a origem de Ruhinda. Este teria sido um rico pas-
tor muhima, dos tempos do rei Wamara
49
. Tornou -se importante na corte dos
Bachwezi, sendo nomeado chefe dos rebanhos. Quando Kagoro deu o golpe
de Estado, Ruhinda levou parte dos rebanhos reais para o Karagwe. Segundo
as tradições locais, foram Ruhinda e seus seguidores que introduziram o gado
de chifres longos no Karagwe. Nessa época, eram os clãs basiita e banyangwe
que tinham recebido dos Bachwezi tambores, símbolos de autoridade que
governavam essa região meridional. Nono, um membro do cbasiita, governava
o Karagwe, enquanto Nkombya e Karara, ambos do cbanyangwe, governavam
respectivamente o Ihangiro e o Nkore.
o poucos os reis dessa época cujos reinados podem ser datados com tanta segu-
raa como o de Ruhinda. As dinastias de quatro Estados (Buzinza, Kyamutwara,
Karagwe e Nkore) pretendem descender de seus filhos. Combinando os lculos
fundados nessas quatro genealogias, obtemos as datas de c. 1405 -1447 para Ruhinda.
As tradições kiziba citam Ruhinda na gerão de c. 1417 -1444.
Quando Ruhinda chegou ao Karagwe, valeu -se da sua enorme riqueza em
gado para afastar Nono do poder. Tratou, então, de estabelecer uma sólida base
de operações no Karagwe, antes de se dirigir rumo ao norte, para o Nkore.
Assegurou -se do controle desta última região mediante acordo político com o
importante e influente clã banyangwe. Em troca do reconhecimento da liderança
49 NYAKATURA, 1947, p. 65 -6, 290; ver também o manuscrito inédito de LWAMGIRA, F. X. “História
de Karagwe, Ihangiro, Nyamitwara etc.” p. 1 -3.
579
A região dos Grandes Lagos
de Ruhinda, os Banyangwe receberam a garantia de que não seriam perseguidos
e teriam respeitadas as propriedades. Da mesma forma que Rukidi, também
Ruhinda montou uma propaganda bem elaborada, com o fim de convencer seus
súditos de que ele descendia dos Bachwezi.
Deixou o filho Nkuba governando o Nkore e voltou a atenção para
Kyamutwara e Ihangiro. No primeiro, matou Mashare, o delegado local de
Wamara, e substituiu -o por outro de seus filhos, Nyarubamba. No Ihangiro,
provavelmente agiu por meio de colaboradores locais, que envenenaram outro
representante de Wamara, de nome Ihangiro, membro do c abayango, e
enviou o filho mais mo, também chamado Ruhinda, para reinar nessa área.
Finalmente, invadiu o Buzinza, depôs Nshashame e instalou mais um filho
em seu lugar
50
. Assim, depois de implantar sua base no Karagwe, Ruhinda
rapidamente conquistou todas as regiões vizinhas, nelas substituindo os repre-
sentantes dos Bachwezi pelos filhos. Quando morreu, em Buzinza, estava a
caminho de criar no sul um Estado bahinda semelhante ao Estado babito do
norte, ou ao Estado ruanda instituído pelos Banyiginya do Buganza. Com
sua morte, pom, essa vasta área sob sua inflncia desagregou -se. Os filhos,
que eram seus mandatários, tornaram -se soberanos independentes, fundando
as dinastias do Karagwe, Ihangiro, Kyamutwara e Buzinza. Esses Estados
bahinda que sucederam ao Imrio de Kitara eram pequenos, e assim per-
maneceram por muito tempo.
Desta exposição se evidencia que ao desaparecimento dos Bachwezi se seguiu
a formação, na região interlacustre, de uma série de Estados: Gisaka, os Estados
bahinda, Ruanda, Ndorwa (dos Bashambo), os Estados babito e Buganda (de
que ainda não falamos). Com a possível exceção do Buganda, a maior parte dos
novos Estados tinha elementos pastoris bem marcados. Ruhinda era um criador
de gado; os Bagyesera, Banyiginya e Bashambo eram pastores, e os Babito, de
caçadores e agricultores que tinham sido, rapidamente assumiram todas as carac-
terísticas dos demais grupos governantes, pastores.
O complexo de Ruanda
Para estudarmos a hisria mais antiga de Ruanda, adotaremos aqui o
esquema de J. Vansina
51
, com as modificações propostas por J. K. Rennie em
50 KARUGIRE, 1971, p. 130 -1, 137 -42.
51 VANSINA, 1960.
580
África do século  ao século 
um importante ensaio
52
. Ao fazer isso, estamos conscientes da enorme influência
que os trabalhos de Kagame
53
e os dos membros da Associação dos Missionários
Africanos (Frades Brancos) geralmente exercem sobre os estudiosos do período;
mas esses trabalhos padecem de duas graves deficiências: em primeiro lugar,
eles se restringem às cortes reais, e por isso pouco nos dizem das reações das
sociedades que estavam sendo incorporadas ao Estado de Ruanda; em segundo
lugar, a sua objetividade é severamente limitada pela adesão de seus autores à
teoria “hamita”, hoje considerada caduca.
Em síntese, Kagame e a Associação dos Missionários Africanos sustentam que
o território da atual República de Ruanda era anteriormente povoado por uma
mistura heterogênea de famílias e clãs bantu, que demonstravam escassa organi-
zação política. Um grupo homogêneo de pastores “tutsi hamitas”, vindos do norte,
então chegou à região, nela introduzindo a criação de animais, o trabalho do ferro,
o conceito de realeza, uma hierarquia social assentada em castas e várias culturas
agrícolas até então desconhecidas. Sob a direção de seu chefe, Gihanga, eles esta-
beleceram várias dinastiastutsi”, a partir do século X da era cristã, que depois se
integraram para formar o Estado de Ruanda. Por diversos meiosa diplomacia,
as conquistas e o poder econômico esteado na posse do gado –, esse Estado “tutsi”
se expandiu gradativamente, até cobrir todo o território da atual República de
Ruanda. Os povos vencidos foram assimilados graças a um sistema que os con-
vertia em vassalos; assim, os Bantu (Hutu) receberam o direito de utilizar o gado
em troca de sua lealdade e da prestação de serviços. Esses acontecimentos também
assinalaram a origem do sistema de classes em Ruanda, ou o que o sociólogo J. J.
P. Maquet chamou de a premissa da desigualdade em Ruanda
54
.
Para apresentarmos um quadro equilibrado da história de Ruanda, é indis-
pensável que examinemos a história dos Estados e sociedades da época anterior
aos Nyiginya.
Segundo as tradições, é quase certo que os primeiros habitantes da região
fossem Batwa, que viviam nas florestas, de caça e coleta; além disso, praticavam
a cerâmica e a cestaria. Mais tarde, quando começaram a chegar agricultores, que
derrubaram partes da floresta para ali se fixarem, os caçadores vieram oferecer -lhes
peles e carnes, em troca de sal e objetos de ferro.
Os agricultores de língua bantu cultivavam sorgo, criavam gado e abelhas,
caçavam e ainda praticavam um artesanato rural. Vestiam -se com peles de cabra
52 RENNIE, 1972.
53 KAGAME, 1954, 1959, 1961, 1963.
54 MAQUET, 1961.
581
A região dos Grandes Lagos
e cascas de árvores. Organizavam -se em linhagens e clãs, sob a direção de seus
respectivos chefes
55
.
No século XV, grande parte dos povos de ngua bantu estava organizada em
pequenos Estados, cada um dos quais compreendia rias linhagens submetidas a
uma linhagem dominante, e era dirigido por um mwami (chefe ou rei), que era ao
mesmo tempo chefe territorial e dirigente religioso encarregado de fazer chover
56
. A
situão assemelhava -se, portanto, à que descrevemos para o complexo de Ruhinda.
elementos para se afirmar que algumas dessas linhagens como a linhagem
Rubunga do clã singa, e a linhagem Heka do clã zigaba tinham gado antes
mesmo de se estabelecer em Ruanda o clã dos Nyiginya. Vários Estados importantes
também já estavam constituídos antes da chegada desse clã. Cada um deles estava
sujeito ao controle de um clã dominante, mas é bom recordar que os nomes de clãs,
nessa época, eram mais propriamente etiquetas políticas do que denominões para
grupos exogâmicos que descendessem de um ancestral enimo.
É do consenso geral que, antes dos Nyiginya, sete grandes clãs formavam
Estados: Singa, Zigaba, Gesera, Banda, Cyaba, Ongera e Enengwe
57
. Os três
primeiros são considerados como abasangwabutaka, o que significa “os que
estavam aqui antes de todos os outros”, ou seja, os primeiros donos da terra
em Ruanda
58
. Qual era a natureza desses Estados? Como foram incorporados
a Ruanda? Discutiremos aqui a primeira dessas questões, mas a segunda extra-
polaria o quadro de nosso estudo.
De acordo com as tradições tutsi, o mais antigo Estado em Ruanda pro -
vavelmente foi fundado pelas linhagens renge do cSinga. Compreendia a
maior parte do território atual da República de Ruanda, com exceção da parte
oriental, mas era muito frágil sua organização, e seu nome sequer foi conservado
pela história. Contudo, o que as tradições evidenciam é que os Renge tinham
elaborado um complexo sistema de monarquia ritual. Sabemos que, em fins do
século XVI, um corpo de especialistas nos ritos, conhecidos como os Tege e que
alegavam descender de Nyabutege, foi integrado às instituições do Estado de
Ruanda. Supunha -se que Nyabutege fosse um descendente de Rubunga, espe-
cialista do ritual renge, de quem Gihanga, fundador dos clãs tutsi de Ruanda,
tirou a ideia do tambor real e o código do ritual renge de realeza
59
. Em meados
55 HERTEFELT, 1962, p. 41 -4; VANSINA, 1960, p. 78.
56 VANSINA, 1960, p. 77 -8.
57 KAGAME, 1955.
58 KAGAME, 1954, p. 56.
59 KAGAME, 1955, p. 13.
582
África do século  ao século 
do século XVII, todos os Estados renge haviam sido anexados pelo Estado de
Ruanda.
No extremo leste de Ruanda se situava o Estado de Mubari, pertencente ao
clã Zigaba, ocupando, ao que parece, vasta região. O clã nyiginya é mencionado
pela primeira vez na história de Ruanda no momento em que os Zigaba lhe
doam a colina de Gasabo
60
, autorizando -o a ter seu próprio chefe, porém sob
a condição de reconhecer -se submetido aos Zigaba. Nessa época, foram fre-
quentes os casamentos entre membros dos dois grupos. O Estado de Mubari,
contudo, perdeu completamente sua independência no final do século XVI,
quando o soberano ruandense Yuki II Gahima retirou dos Zigaba seu tam-
bor real, sera. Embora perdendo a independência política, a dinastia conseguiu
sobreviver até a segunda metade do século XVIII, quando Kigeri III Ndabarasa
(1765 -1792) matou o seu rei e pôs fim à dinastia. Pequenos grupos de Zigaba
então emigraram para diversas partes do sudeste de Uganda, onde, conforme já
vimos, tiveram papéis de destaque.
Parentes próximos dos Zigaba eram os Gesera, que governavam o pode-
roso Estado de Gisaka, no sudeste de Ruanda, e provavelmente também o de
Bugyesera. O Gisaka conseguiu manter sua independência até o século XIX,
quando terminou por se desintegrar e foi anexado pelo mwami Rwogera (c.
1830 -1860). Mas os Gesera continuaram a governar, a o culo XX, dois
pequenos Estados que se tinham separado do Gisaka: o Busozo, no sudoeste
de Ruanda, aparentemente fundado no começo do século XVII, e o Bushiru,
no noroeste
61
.
No centro -norte de Ruanda existia outro Estado o Busigi –, que tinha um
chefe fazedor de chuva, e só foi incorporado a Ruanda no início doculo XX
62
.
Vários outros Estados menores poderiam, ainda, ser mencionados. Acre-
ditamos, porém, que demos exemplos em número bastante para provar que
a autoridade de Ruanda não foi imposta a povos que viviam sem Estado. O
Gisaka, para citar um caso, durante muito tempo foi tão bem organizado
quanto Ruanda, no início de sua história. Esses Estados, de dimensões e poder
variáveis, tinham desenvolvido instituições monárquicas, assim como ritos que
visavam agir sobre a terra e a chuva. Algumas dessas instituições políticas e
religiosas foram adotadas pelo jovem Estado de Ruanda à medida que ele foi
se expandindo, nos três séculos seguintes. Na verdade, se os ritos da corte de
60 KAGAME, 1954, p. 53 -4.
61 ARIANOFF, 1952.
62 PAUWELS, 1967, p. 223.
583
A região dos Grandes Lagos
Ruanda eram eficazes no plano político, isto se devia em grande medida ao
fato de eles incorporarem rituais agrícolas e pastoris, e de algumas importantes
funções rituais terem sido confiadas a agricultores que, assim, adquiriram par-
ticipação e interesse no sistema.
Mais ou menos a partir do século XV, aumentou rapidamente o número de
pastores nesses Estados. Inicialmente, não constituíam uma casta dominante, e
pode até ser que em algumas áreas tenham desempenhado o papel de clientes”
dos agricultores. Jan Vansina apresentou provas suficientes para demonstrar que,
no nordeste, no noroeste e no oeste de Ruanda, pastores e agricultores conviviam
em paz. O sistema de vassalagem que viria a caracterizar as relações entre os dois
grupos se desenvolveu depois de 1500, quando ambos tiveram de se integrar a
um novo Estado de Ruanda.
Embora sempre haja riscos em se tentar explicar o passado pelo presente, em
geral admite -se que pelo menos nove dos grandes clãs de Ruanda sejam Tutsi
e, portanto, tenham origem pastoril. Esses clãs são os dos Sindi, Nyakarama,
Ega, Shambo, Sita, Ha, Shingo, Kono e Hondogo. Eles elaboraram uma árvore
genealógica nacionalista, que faz todos os Tutsi descenderem do fundador mítico
Gihanga.
Esses pastores não se deslocavam em grupos numerosos e homogêneos; ao
contrário, foram chegando em pequenos grupos, até que, no final do século XV,
se consideraram fortes o bastante para se organizar em linhagens, no sul, onde
logo entraram em conflito com os agricultores. Contudo, com exceção de dois
grupos, nenhuma dessas linhagens era suficientemente poderosa, no século XV,
para constituir um Estado independente. As exceções foram os Hondogo e os
Nyiginya. Os primeiros estavam estabelecidos às margens do lago Mugesera, no
sul, e tinham uma organização política que lhes possibilitou expulsar os Gesera
para o Gisaka, a leste. Os Nyiginya formariam a dinastia reinante de Ruanda.
Tinham vindo do Mubari, a leste, e tinham se instalado como vimos no
Gasabo, no centro de Ruanda, às margens do lago Muhazi. Ao terminar o
século XV, haviam conseguido formar um Estado centralizado, cujas instituições
incorporavam tanto pastores quanto agricultores. A formação de um Estado
independente de Ruanda, sua consolidação e expansão são assuntos que fogem
ao período que ora estudamos
63
.
63 Segundo a cronologia de RENNIE, 1972, que é uma versão modicada da proposta por VANSINA,
1960, apenas três reis pertencem ao período de que ora nos ocupamos: Ndahiro Ruyange (1424 -1451),
Ndoba lho de Ndahiro (1451 -1478) e Samembe lho de Ndoba (1478 -1505).
584
África do século  ao século 
A região do Buganda, Busoga e do monte Elgon
Segundo D. W. Cohen, entre os séculos XII e XV vários clãs de língua bantu
deixaram a região do monte Elgon -lago Vitória. Não são claras as razões para
essa grande migração. M. S. M. S. Kiwanuka sugeriu que
o avanço dos Luo para sudeste tenha exercido certa influência sobre esses deslo-
camentos de população
64
,
mas, na verdade, esses movimentos começaram, como as próprias tradições dos
Luo mostram muito bem, pelo menos um século antes da primeira migração
dos Luo na região.
Esses emigrantes bantu desempenhariam importante papel na evolução polí-
tica de sua nova pátria a partir do século XII. Entre eles se contava o grupo dos
clãs de Kintu, que, segundo Cohen, parecem ter -se fixado ao sul do lago Kyoga
e foram responsáveis pela fundação de vários pequenos Estados, inclusive o de
Buganda, na margem norte do lago Vitória
65
.
Não sabemos se uma pessoa de nome Kintu realmente existiu. O que parece
evidente é que essa personagem está associada a uma série de clãs de língua bantu,
que têm como totens o leopardo e o leão. Segundo as tradições do Buganda,
os principais lugares em que Kintu se deteve como Nnono, Buvvi, Bukesa,
Mangira, Magonga, Butwala etc.correspondem às terras ocupadas pelo clã do
leopardo, no Buganda. Da mesma forma, Kanyanya e Lwada, que hoje contam
entre os principais territórios do clã do leão no Buganda, são considerados tra-
dicionalmente como pontos em que Kintu também se deteve.
Antes da chegada do complexo de clãs leão -leopardo, a margem setentrional
do lago Vitória era habitada por diversos clãs de língua bantu, como os do
pangolim, do almiscareiro, do macaco Colobus, do passarinho, do peixe Protopterus
e do antílope Redunca. Em Buganda, estes clãs recebem o nome de banansagwa,
isto é, “os encontrados aqui”. Politicamente, esses clãs eram dirigidos por chefes
independentes uns dos outros. Contudo, o cdo antílope Redunca havia esta-
belecido, no que hoje é o Busoga meridional, a chefaria multiclânica de Bugulu,
dirigida pelo igulu. A vida dessa comunidade estava centrada numa impor-
tante indústria cerâmica e num grande templo religioso, ambos controlados
pela linhagem dominante dos Abaiseigulu. Esse clã tinha migrado ao longo da
64 COHEN, D. W., 1972, especialmente as p. 70 et seqs.
65 KIWANUKA, 1971, p. 33.
585
A região dos Grandes Lagos
margem setentrional do lago Vitória, seguindo o rumo leste -oeste. Seu primeiro
encontro com os clãs do leão -leopardo aconteceu em Bugulu.
O cdo peixe Protopterus também pertence aos banansagwa, que encon-
traram o complexo de Kintu na região de Bugulu. Segundo suas tradições,
recolhidas por D. W. Cohen no Busoga, Buganda e nas ilhas do lago Vitória,
eles provinham de um lugar chamado Bumogera, entre Kisumu e o monte
Elgon, onde se destacavam como pescadores e ferreiros. (Para os clãs e lugares
aqui mencionados, ver fig. 20.3.) Não sabemos exatamente quando nem por
que deixaram seu lugar de origem. Partindo de Bumogera, atravessaram o lago
Vitória; alguns foram para o sul do Busoga, outros para as ilhas Buvuma, outros
ainda para o Busagazi, na costa do Kyaggwe. Deste último ponto, um chefe
de clã chamado Mubiru se dirigiu para Mangira, no interior das terras, onde
encontrou Kintu.
Os membros do cque seguiram para o sul do Busoga eram chefiados por
Walumbe e encontraram o grupo de Kintu no Bugulu. Parece que foi nesse
momento que a personagem real ou simbólica de Kintu despontou como chefe
do grupo leão -leopardo. Ele se casou com Nambubi, filha de Walumbe, e assim
começou a importante associação entre os clãs do leão -leopardo e o clã do peixe
Protopterus. A chegeda desse grupos de imigrantes obviamente preocupou o
igulu. Segundo a tradição, foi ele quem – utilizando provavelmente um oráculo
aconselhou Kintu e as famílias leão -leopardo a partirem.
Kintu e seus seguidores decidiram seguir para oeste. Assim atingiram o
Buswikira, que ainda hoje é considerado, nas tradições busoga, como o ponto
de chegada de Kintu e Nambubi na sua viagem começada em Ggulu, isto é, no
paraíso”. Esse lugar que a história da gênese do Buganda chama de Ggulu, ou
paraíso”, que Kintu deixa para trás, parece ser uma representação simbólica do
Bugulu e seu santuário. Logo a eles se juntaram, no Buswikira, seus parentes por
afinidade, os membros do clã do peixe Protopterus, chefiados por Walumbe. Não
demorou, porém, a surgir uma luta entre o cdo leão -leopardo e o do peixe Pro-
topterus a respeito da divisão das terras, o que levou o último grupo a estabelecer-
-se um pouco mais a oeste, no Buyanirwa. As tradições dos Abaisemaganda do
Busoga apresentam Walumbe como a principal de suas divindades, cujo santuário
é sempre cuidado por membros do clã do peixe Protopterus. Segundo as tradições
busoga, Buswikira foi o centro das atividades de Kintu no Busoga; também dizem
elas que os grupos dirigentes abaiseisumbwa e abaisekuyema, que fundaram as
chefarias do Bunyole, Bukasango e Bukyema às margens do lago descendem
dos filhos de Kintu.
586
África do século  ao século 
Figura . Mapa do itinerário do complexo de Kintu e do complexo de Kimera. (B. A. Ogot.)
587
A região dos Grandes Lagos
Do Busoga, Kintu teria emigrado para oeste, até o território que iria consti-
tuir o núcleo do Buganda. Afora os clãs leão -leopardo, dizem as tradições que
os seguintes clãs acompanharam Kintu ou se juntaram a ele em sua marcha para
oeste: elefante, lontra, antílope Cephalophus, hipopótamo, cão e inhame. Tam-
bém encontraram uma parte do cdo peixe Protopterus, chefiada por Mubiru,
que chegara antes à região e era hostil a Kintu e aos seus seguidores. Mas a
ameaça mais séria para Kintu veio do rei Bemba do Buddu. Tirando a chefaria
do Bugulu, da qual tratamos, a chefaria de Bemba (no Buddu) era a única
organização política multiclânica bantu da época anterior a Kintu, nas regiões
que correspondem aos atuais Busoga e Buganda. Não demorou a eclodir um
conflito entre Kintu, que se aliara com um dos clãs autóctones (o do macaco
Colobus), e o rei Bemba. Este foi morto, e Kintu (ou seu sucessor) começou então
a estabelecer o núcleo do que se converteria no Estado de Buganda.
Esta reconstrução das histórias do Buganda, Busoga, Uganda oriental e
Quênia ocidental durante o período considerado permitiu -nos enfatizar o ponto
que levantamos no começo do capítulo a saber, que vários pequenos Estados
haviam sido fundados na região interlacustre, por agricultores de língua bantu,
antes que os grupos pastoris começassem a ter papel político importante. Parece
que na área examinada, no período entre 1200 e 1500, as atividades dos pastores
conservaram um caráter marginal. O Buganda, em especial, e, em certa medida,
os pequenos Estados do Busoga, desenvolveram -se como Estados florestais,
cujas economias dependiam mais da agricultura que de uma combinação de
agricultura com pecuária, com seus consequentes sistemas de castas e estrutu-
ras de classes. Até do ponto de vista demográfico sabemos que os banansagwa
(povos autóctones do Buganda) eram agricultores; os clãs de Kintu também o
eram; e Kimera e seus seguidores, que vinham do oeste e cuja história agora
vamos contar, também se tornaram, basicamente, agricultores.
Tanto D. W. Cohen quanto C. A. Buchanan observaram que alguns dos clãs
do complexo de Kintu parecem ter se dirigido para oeste, penetrando no Kitara
66
.
Como a chegada dos grupos de Kintu ao centro do que hoje é o Buganda,
segundo Cohen
67
, parece ter sido imediatamente anterior ao começo do reinado
dos Bachwezi em Uganda ocidental, torna -se inteiramente plausível que o grupo
que emigrava para oeste chegasse ao Kitara em tempos do rei Wamara, como
indicamos acima. Por essa época uma pessoa de nome Kantu se destacara
como líder dos imigrantes originários do leste. O rei Wamara, dissemos, firmara
66 BUCHANAN, 1974.
67 COHEN, D. W., in WEBSTER, 1978.
588
África do século  ao século 
com ele um pacto de sangue, dentro de sua política de assimilação dos imigran-
tes. Mas esse grupo oriental parece ter constituído uma grave ameaça a Wamara.
Seu chefe, Kantu, foi morto, o que, segundo as tradições bunyoro, comprometeu
em muito a estabilidade do império
68
. Sentindo -se em perigo, diversos grupos
de clãs começaram a migrar, rumo às florestas tropicais que se estendem ao
longo da margem setentrional do lago Vitória. Essa migração oeste–leste até
o Buganda leva -nos a abordar um dos problemas históricos não resolvidos da
região interlacustre – o que se refere ao complexo de Kimera.
Kimera (c. 1344 -1374) é frequentemente identificado com a região do Kitara.
Além disso, o que é mais importante, ele é considerado o fundador de uma nova
dinastia na pequena chefaria do Buganda
69
. A maior parte das controvérsias a
seu respeito versa sobre a identidade de seu clã. Uma tradição vinculou -o ao
clã do antílope Tragelaphus scriptus, de origem luo. Outra tradição filia -o ao c
do gafanhoto, dos Bahima. Por essa razão, M. S. M. S. Kiwanuka, por exemplo,
sustenta, baseando -se na história do cdo gafanhoto escrita por A. Kaggwa,
que Kimera provavelmente seria um membro da Dinastia Basonga, que se havia
estabelecido no Kisozi. De qualquer forma, ele acrescenta, abonando as palavras
de J. L. Gorju, para quem:
Kimera parece ter chegado ao Buganda antes que os primeiros governantes babito
penetrassem no Bunyoro
70
.
Na verdade, porém, o que devemos considerar importante não é a identidade
pessoal de Kimera; deveríamos tentar entender o sentido das tradições relativas
a ele ou aquilo que denominamos “o complexo de Kimera”.
Essas tradições parecem referir -se às migrações de diversos grupos que fugi-
ram do Império Bachwezi para as florestas equatoriais, desde os tempos de
Ndahura até a ruína daquele império. Inicialmente, parece que tentavam escapar
da insegurança generalizada que resultara das campanhas militares de Ndahura.
O próprio Kimera parece ter deixado Kitara nessa época. Com a morte de
Kantu, a que se seguiu a queda do Império Bachwezi, novos refugiados deixaram
Kitara para se refugiar no Buganda, ou no Nkore, ou ainda em outras áreas que
apresentavam um quadro de estabilidade política.
A tradição é omissa quanto aos itinerários que esses refugiados tomaram. É
muito possível que os primeiros grupos, como aquele a que pertencia Kimera,
68 NYAKATURA, 1947.
69 KIWANUKA, 1971, p. 36 -41.
70 Ibid., p. 40 -1; KAGGWA, 1905; GORJU, 1920.
589
A região dos Grandes Lagos
tenham estabelecido aglomerações ou mesmo Estados no seu trajeto, da mesma
forma que os clãs leão -leopardo estavam fazendo no Busoga. Ademais, esses
grupos de refugiados compunham -se de vários clãs e falavam diversas línguas.
Alguns deles eram, provavelmente, grupos indígenas do Kitara que falavam o
bantu; outros eram pastores Bahima; havia caçadores e agricultores luo; e, ainda,
clãs bantu que procediam do complexo de Kintu. De acordo com as tradições
do Buganda, o complexo de Kimera englobava os seguintes clãs: do búfalo, do
antílope Tragelaphus scriptus, do gafanhoto, do esquilo, da gralha e do cervo.
Assim, aquele que recolher as tradições do cdo antílope Tragelaphus scriptus
no Buganda como fez J. P. Crazzolara haverá forçosamente de concluir
que Kimera e seus seguidores eram luo; mas, se estudar unicamente o clã do
gafanhoto como fizeram A. Kaggwa e seu tradutor, M. S. M. S. Kiwanuka
–, terá de deduzir que eles eram Bahima
71
. Por outro lado, se se invocar a data
em que estabeleceu a dominação babito no Bunyoro -Kitara como argumento
para descartar a hipótese de que Kimera fosse de origem luo, convirá recordar
que muitos grupos luo precederam os Babito no Bunyoro, como já observamos
anteriormente.
Esses povos que fugiam de diversos regimes políticos teriam, naturalmente,
ideologias contrárias aos Bachwezi, aos Babito e aos Bahima. Não se estranhe,
então, que as tradições que ligavam o Buganda a qualquer um desses três grupos
tenham sido suprimidas, mesmo quando existiam provas extremamente consis-
tentes de tal ligação. Por exemplo, se compararmos as tradições bachwezi do
Bunyoro e Nkore com as do Buganda, que raramente mencionam os Bachwezi,
encontraremos várias semelhanças, que os historiadores não podem ignorar. No
Bunyoro e Nkore, afirma -se que o porteiro do rei Isaza de Kitara era Bukulu,
do cbalanzi. As tradições do cda lontra das ilhas Sese (que é o mesmo
que o clã balanzi) também se referem a um Bukulu. No Bunyoro e Nkore, a
filha de Bukulu que foi mãe do rei Ndahura chamava -se Nyinamwiru; o
equivalente kiganda é Namuddu, nome que se repete com muita frequência nas
lendas de Sese. Nas regiões a oeste, conta -se que o neto de Bukulu tinha o nome
de Mugasha, enquanto a tradição do Buganda o chama de Mukasa. Dizem as
tradições do Nkore que Mugasha desapareceu no lago Vitória; as do Bunyoro
afirmam que o rei Wamara desapareceu no mesmo lago e que também foi res-
ponsável pelo surgimento do lago Wamala. no Buganda, este último feito é
atribuído a Wamala, um descendente de Bukulu. Além disso, assim como os
71 CRAZZOLARA, 1950 -1954; KAGGWA, 1971.
590
África do século  ao século 
espíritos bachwezi são deificados no complexo de Kitara, os Buganda divinizam
os espíritos de descendentes de Bukulu, como Nende e Mukasa. Não será pos-
sível, então, que os descendentes de Bukulu, no Buganda, fossem Bachwezi?
Voltemos agora aos clãs de imigrantes que constituíram o complexo de
Kimera. Se deixaram o Bunyoro em épocas diferentes, também devem ter che-
gado ao Buganda em tempos distintos. Contudo, desafortunadamente, todos
esses clãs refugiados, pouco importando a data de sua chegada, hoje se con-
sideram como tendo pertencido ao grupo de Kimera. A principal razão para
isso é que as pessoas gostam de se associar ao sucesso. Kimera, liderando seus
grupos refugiados, fundou uma nova dinastia e um Estado que unificou os 35
clãs de variada proveniência que se haviam estabelecido na região. Todos esses
clãs desejavam associar -se à realeza; daí nasceu no Buganda o costume de cada
clã oferecer esposas ao kabaka (rei), tendo assim oportunidade de lhe dar um
sucessor
72
.
Por volta de 1500 assim se encerrava, na história do Buganda, o período de
migração e implantação do novo reino. A sua consolidação e expansão eram
tarefas que pertenciam ao futuro.
72 KIWANUKA, 1971, p. 91 -110.
C A P Í T U L O 2 1
591
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
Culturas e sociedades na Idade do Ferro
por volta do ano 1000
Pelo final do primeiro milênio da era cristã, os povos cujo desenvolvimento
os situava na Idade do Ferro ocupavam a maior parte da região de savanas arbo-
rizadas que se situa entre os rios Zambeze e Limpopo, chegando até o oceano
Índico, a leste, e cobrindo, ao norte do Zambeze, os atuais territórios da Zâmbia
e do Malavi
1
. Descendentes de grupos de caçadores do fim do Neolítico ainda
viviam em bolsões mais remotos da savana arborizada, entrando esporadica-
mente em contato com seus vizinhos agricultores e morando em abrigos nos
rochedos ou pequenos acampamentos a céu aberto, nos quais foram encontradas
ferramentas por eles utilizadas, ao lado de cerâmica da Idade do Ferro. Outros
povos que praticavam a caça e a coleta, ancestrais dos grupos san de nossos
dias, também ocupavam boa parte da região do Kalahari, ao sul e ao oeste das
savanas arborizadas, território este que conservaram até tempos mais recentes.
Os povos da Idade do Ferro, nessa vasta zona do sul da África central, eram em
sua maior parte camponeses que se dedicavam a uma agricultura de subsistência;
sua produção de alimentos concentrava -se na criação de animais de porte grande
1 FAGAN, 1967 -1969.
As bacias do Zambeze e do Limpopo,
entre 1100 e 1500
Brian Murray Fagan
592
África do século  ao século 
F . Mapa dos sítios e tradições arqueológicas mencionados no texto. (B. M. Fagan.)
593
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
e pequeno e no cultivo de cereais como o sorgo e o milhete. A caça e a coleta
representavam importante papel na sua atividade econômica; as únicas formas
de agricultura que eles praticavam era a itinerante, e dependia da cuidadosa
seleção do tipo de terra adequada.
Embora a mais antiga implantação da Idade do Ferro que se conhece nessa
região do sul da África central date do ano 200, e tal ocupação se tenha com-
pletado num prazo de tempo relativamente curto, as primeiras povoações de
agricultores estavam muito espalhadas em áreas livres da mosca tsé -tsé, e as
densidades demográficas médias eram extremamente baixas. A distribuição das
faixas da tsé -tsé era afetada pelo padrão do nomadismo agrícola, que por sua
vez influenciava a distribuição demográfica. Durante este primeiro milênio, a
população agrícola aumentou lentamente; estendia -se a superfície das terras
cultivadas junto com o desenvolvimento dos métodos de limpeza das flores-
tas e das técnicas de cultivo. A abertura de novas áreas decorria, em parte, do
emprego dos métodos predatórios da agricultura itinerante que, comparados
com resultados obtidos em tempos modernos, apresentam um aproveitamento
da terra inferior em pelo menos 50%. No plano tecnológico, o lavrador da Idade
do Ferro conhecia apenas uma metalurgia do ferro das mais rudimentares; sabia
fundir o cobre para fazer ornamentos e, mais tarde, fios. Uma cerâmica simples,
mas bem feita, era de uso corriqueiro. Como todas as sociedades que praticam
a agricultura de subsistência, também as do sul da África central estavam bem
adaptadas às savanas arborizadas presentes em toda a região, conhecendo inti-
mamente os tipos de solo e clima, a vegetação e a arte de empregar os materiais
locais para a construção e para a economia doméstica. Cada comunidade era
auto ssuficiente no essencial, abastecendo -se do restante nas aldeias vizinhas ou
graças a um comércio local.
As culturas da Idade do Ferro Antiga no sul da África central foram estudadas
detalhadamente por certo número de arqueólogos, cujo trabalho concentrou -se
basicamente nos estilos da cerâmica e na datação pelo carbono -14
2
. Os vasos
simples, com ranhuras e incisões, dos mais antigos agricultores mostram grande
diversidade, de uma ponta a outra dessa região, e uma série de variações regio-
nais, de distintas “tradições” e “culturas” foram propostas para classificá -los. Não
precisamos tratar, aqui, das minúcias dessas sociedades; basta dizer que as tradições
culturais e as implantações da Idade do Ferro Antiga conservaram -se até muito
depois do primeiro milênio, em várias partes dessa região. Mantiveram -se, por
2 Ver especialmente PHILLIPSON, 1968 e 1974.
594
África do século  ao século 
muito tempo, a metalurgia rudimentar do ferro, as técnicas agrícolas baseadas no
emprego da enxada, as cabanas feitas de barro e cobertas de folhas de palmeira,
e uma organização sociopolítica inteiramente fundada na pequena aldeia. Esses
povos da Idade do Ferro Antiga foram os antepassados imediatos das culturas
que se desenvolveram nos séculos seguintes.
Uns 1000 anos depois que os agricultores da Idade do Ferro Antiga
instalaram -se às margens do Zambeze, algumas novas tradições culturais surgi-
ram de ambos os lados do rio. Uma destas tinha por centro o planalto de Batoka,
no sul da atual Zâmbia. Nesta região, a savana arborizada cede lugar a áreas
em que o capim cresce sem obstáculos, proporcionando boas pastagens para o
gado. Essas terras mais altas, a salvo da mosca tsé -tsé, bem irrigadas, tinham
sido ocupadas por povos da Idade do Ferro Antiga, por volta do século IV. No
final do primeiro milênio, seus estabelecimentos foram ocupados por campone-
ses da chamada cultura de Kalomo, cujo modo de vida era bastante similar ao
deles; os novos ocupantes, porém, davam muita importância à criação de gado.
Contrastando com os vasos marcados por ranhuras e incisões dos primeiros
séculos, a nova cerâmica era mais simples, decorada apenas por alguns motivos
Figura . A colina de Isamu Pati (Zâmbia), durante as escavações. (Foto B. M. Fagan.)
595
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
horizontais, em faixas, incisadas ou finamente impressas. Os vasos, muitas vezes,
tinham o formato de sacos.
Um sítio em especial, Isamu Pati, perto da moderna cidade de Kalomo, foi
escavado em larga escala (ver fig. 21.2). Como a maior parte dos sítios da Idade
do Ferro que se encontram no planalto de Batoka, Isamu Pati é uma grande
colina, formada pela acumulação, séculos a fio, dos restos de objetos utilizados
por seus moradores. No século VII, e nos duzentos anos que se seguiram, havia
pequenas aldeias na colina; as aglomerações posteriores foram, porém, muito
maiores. Aproximadamente no ano 1000, a cultura de Kalomo manifestava todo
o seu vigor nesse local. A aldeia mais recente das existentes em Isamu Pati, que
foi abandonada no século XIII, consistia numa série de cabanas de pau -a -pique,
construídas à volta de um curral que ficava no topo da colina. Os habitantes
concentravam suas atividades econômicas na pecuária e no cultivo de cereais;
para fabricarem suas ferramentas agrícolas, pontas de flecha e outros objetos
úteis, valiam -se de uma tecnologia bem simples. Em cada aldeia dessa cultura
de Kalomo e tais aldeias foram encontradas tanto no vale médio e superior
do Zambeze quanto no planalto de Batoka –, descobriram -se sinais de escambo
local ou mesmo de longa distância. Em várias aldeias, foram descobertos fios
e contas de cobre que, sem a menor dúvida, vinham de regiões a muitas cente-
nas de quilômetros, onde esse metal era encontrado em jazidas de superfície e,
posteriormente, fundido. Mais significativa ainda foi a localização, em sítios e
sepulturas da cultura de Kalomo, de um punhado de contas de vidro importa-
das da costa oriental, e de raras conchas de cauri; estes achados comprovam a
existência do comércio e do escambo de longa distância nessas regiões remotas
da África central. Mas o número de tais operações era provavelmente muito
pequeno para poder afetar a estrutura social da Idade do Ferro Antiga.
Com toda a probabilidade, as origens da cultura de Kalomo estão naquelas
da Idade do Ferro Antiga, existentes no curso superior do rio Zambeze. Como
já se pôde deduzir, a tecnologia e as estratégias econômicas do povo de Kalomo
assemelham -se muito às dos camponeses da Idade do Ferro Antiga, o que indica
a longa sobrevivência da cultura dessa Idade no planalto de Batoka. Presume -se
que a população da Idade do Ferro tenha -se espalhado rapidamente por uma
vasta área, em decorrência tanto da fragmentação das aldeias, quanto das pres-
sões exercidas sobre as terras cultiváveis e as pastagens
3
. Esta adaptação às novas
condições deve ter constituído um sucesso, pois há indícios de que a cultura de
3 Ver PHILLIPSON, 1968, p. 191 e 212.
596
África do século  ao século 
Kalomo se manteve até 1450 em algumas áreas perto de Choma, bem como no
vale do Zambeze. Por razões que permanecem obscuras, a cultura de Kalomo
parece não ter alcançado o norte e o noroeste do planalto de Batoka.
Outros sítios, nenhum deles com importância comparável à das colinas de
Kalomo, são encontrados na região de Mazabuka e Loshinvar. A tradição kan-
gila, que tira seu nome de uma localidade perto de Mazabuka, tem sua expressão
mais bela em Sebanzi, nos confins das planícies do rio Kafue (Kafue Flats); nesse
lugar, a tradição kangila funde -se, durante certo tempo, à cultura moderna de
Ila -Tonga, que durante vários séculos floresceu por todo o planalto de Batoka.
Constatando alguns paralelismos entre os estilos das cerâmicas de Kalomo e
de Kangila, certos especialistas supuseram que as duas tendências de cerâmica
deveriam ser atribuídas a povos de língua ila -tonga é um dos mais antigos
grupos linguísticos implantados ao norte do Zambeze. Os Ila-Tonga teriam -se
instalado em seus territórios atuais pelo menos uns 1000 anos. No distrito de
Namwala, na extremidade noroeste das Kafue Flats, outro conjunto de grandes
colinas apresenta uma cerâmica de tipo Idade do Ferro Recente, aparentada às
de Kalomo e Kangila, que os especialistas ainda não puderam definir de maneira
satisfatória. Enquanto aguardamos os resultados das pesquisas em andamento,
podemos pelo menos presumir que estes três tipos de cerâmica denotam uma
ocupação muito antiga do sul da Zâmbia pelos Ila -Tonga.
A história posterior da Zâmbia é marcada, acima de tudo, por amplos movi-
mentos de população e importantes manobras políticas nos últimos cinco séculos,
resultando na introdução de novas tradições culturais, originárias do Zaire, que
obscureceram e absorveram as culturas da Idade do Ferro Antiga. Na Zâmbia
setentrional, ocidental e oriental, porém, os povos da Idade do Ferro Antiga pre-
servaram suas culturas por muito tempo depois do ano 1000. David Phillipson
identificou duas importantes tradições de cerâmica, que se supõe tenham emer-
gido na Zâmbia em princípios do segundo milênio. A tradição luangwa cobre
as partes central, setentrional e oriental do território, chegando até o Malavi,
enquanto a tradição lungwebungu é encontrada na Zâmbia ocidental. Ambas
se mantiveram até tempos recentes; pouco se sabe de suas origens, mas, nas suas
formas atuais, são muito diferentes das tradições da Idade do Ferro Antiga.
As transformões ecomicas e sociais dos séculos XI e XII
Ao sul do rio Zambeze, porém, as culturas da Idade do Ferro Antiga, do
primeiro milênio, foram substituídas em várias regiões por novas sociedades,
597
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
durante os séculos XI e XII. Delas, a mais conhecida possui o nome de tradição
de Leopard’s Kopje (Colina do Leopardo), estendendo -se do vale do Limpopo
rumo ao norte, até a região de Bulawayo e pontos centrais da bacia do Zambeze
e do Limpopo (ver fig. 21.1)
4
. As aldeias de Leopards Kopje são menores que
os estabelecimentos agrícolas mais antigos, provavelmente em decorrência de
alterações tecnológicas introduzidas pelo homem. Ao contrário dos sítios da
Idade do Ferro Antiga, muitos destes locais foram ocupados várias vezes. As
boiadas parecem ter sido maiores. Figuras representando bois e a descoberta de
ossos bovinos em algumas sepulturas fazem supor que esse gado tivesse mais
importância do que nos séculos anteriores. Leopards Kopje marca uma ruptura
tão nítida com as tradições da Idade do Ferro Antiga, que parece quase certo que
os criadores dessa tradição fossem imigrantes, tendo poucas relações culturais
diretas com seus predecessores na região.
Não se encontraram vestígios dos povos de Leopards Kopje ao norte do
Zambeze. se sugeriu que eles teriam conquistado seu território atual vindo das
pradarias de Botsuana e Angola, regiões cuja arqueologia ainda se desconhece;
no entanto, isso não passa de suposição. Como seus predecessores, os primeiros
homens de Leopard’s Kopje viviam sobretudo do cultivo do milhete e do sorgo,
bem como da caça e da coleta. Assim como os seus vizinhos de Kalomo, conhe-
ciam uma tecnologia rudimentar do ferro. Algumas contas de vidro e conchas
marinhas, importadas, chegaram a suas aldeias, dispersas pela região. Pelo final do
século XII e começo do XIII, contudo, como a população aumentasse, iniciou -se o
cultivo das terras mais férteis, porém de conformação mais difícil para a lavoura,
que se encontram no cinturão aurífero de Matabelelândia. Fundaram -se, então,
aldeias que foram ocupadas por muito mais tempo, mudança que pode haver
coincidido com o começo da lavra e do trabalho do ouro, porque os mais antigos
objetos neste metal descobertos ao sul do rio Zambeze datariam mais ou menos
do século XII. Alguns desses tios de Leopard’s Kopje, como o de Bambandyanalo,
no vale do Limpopo, eram de tamanho considerável, desenvolvendo -se, também, à
volta de um curral. Em outro local – Mapela Hill, a 111 km do primeiro –, numa
colina de 92 m de altura, construíram -se terraços, com pedras sumariamente
empilhadas; de qualquer forma, um trabalho de dimensões tão vastas que deve
ter exigido considerável esforço da comunidade. Além disso, um grupo de caba-
nas maiores que as demais foi erguido no terraço mais alto; elas eram muito
sólidas, e, provavelmente, destinavam -se a personagens que gozassem de posição
4 HUFFMAN, 1974b.
598
África do século  ao século 
privilegiada em sua sociedade, fato que marca significativo contraste com as
culturas mais antigas, nas quais não se qualquer vestígio de hierarquia ou
diferenciação social. Contas de vidro e outras importações também se tornam
mais comuns, como se o ritmo das trocas a longa distância houvesse sensivel-
mente aumentado.
Em tempos posteriores, a cultura de Leopards Kopje a nítida impressão
de que a economia tenha se diversificado, tornando -se mais controlada. As
principais atividades econômicas foram, então, a mineração, a metalurgia e as
trocas comerciais, assim como a agricultura de subsistência. O poder político
e a riqueza concentraram -se nas mãos de número relativamente pequeno de
pessoas, que viviam nos maiores centros das principais localidades. Isto se com-
prova no famoso sítio de Mapungubwe, onde pequeno grupo de ricos dirigentes
ocupou, no século XV, o topo de uma longa colina baixa que domina o vale do
rio Limpopo. À sombra dessa colina, grandes depósitos de restos deixados por
uma população bem maior, que vivia numa aldeia ali situada
5
. Contas e placas
de ouro foram desenterradas de sepulturas do alto da colina, junto a numerosas
contas de vidro e outros objetos importados. As abundantes jazidas de cobre
do vale do Limpopo obviamente constituíam grande fonte de riqueza para
os dignitários de Mapungubwe, cuja residência eminente é considerada lugar
sagrado ainda em nossos dias. O sítio de Mapungubwe seria dirigido por um
grupo minoritário, que dominava política e religiosamente os camponeses da
localidade? Que tipo de relações havia entre o sítio do rio Limpopo e o Grande
Zimbábue, a nordeste? Questões que continuam abertas ao debate. Pouco se
sabe, ainda, a respeito das grandes tendências que, gradualmente, levaram ao
cultivo de solos mais pesados e à construção de moradias mais espaçosas e
duráveis; para dizer a verdade, não dispomos sequer de hipóteses provisórias
que tentem explicar tais fenômenos.
Mas existem, por outro lado, vestígios de novas sociedades agrícolas em outras
regiões ao sul do Zambeze. Para o lado do nordeste, havia a tradição de Musen-
gezi, que florescia perto dos confins meridionais do vale do rio Zambeze e no
planalto ao norte, enquanto a tradição de Harare foi localizada na área de Harare
(até poucos anos atrás, Salisbury). São duas sociedades camponesas que apresen-
tam características sociais e culturais elaboradas, semelhantes às de Leopard’s
Kopje após o século XII. A cerâmica dos dois grupos apresenta um estilo mais
característico da Idade do Ferro Recente. E é possível que os camponeses que
5 FAGAN, 1964.
599
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
praticam agricultura de subsistência na região de Inyanga, a leste, pertençam a
uma etapa posterior das mesmas tradições, uma vez que eles conservaram os
métodos de cultivo simples nas encostas até os tempos mais recentes.
Cada uma dessas tradições culturais que parecem corresponder a novas
tendências suscitadas, em fins do primeiro milênio, por imigrações ou pela
introdução de inovações tecnológicas na região sobreviveu, com profundas
modificações, até recentemente. A tradição de Leopards Kopje cindiu -se em
dois ramos, o norte e o sul, este último conservando -se até o século XIX. se
tentou, a partir de elementos puramente hipotéticos mas bastante plausíveis,
estabelecer correlação entre essas tradições descobertas pelos arqueólogos e os
grupos linguísticos ainda hoje existentes entre os rios Zambeze e Limpopo. As
línguas shona constituem a principal família linguística representada nessa área,
incluindo pelo menos seis grupos de dialetos (chikalanga, chikaranga, chindau,
chimanyika, zezuru e korekore). Entre os demais idiomas estão o ndebele (que
apareceu no século XIX), o chitonga, o hlengwe e o chivenda, nenhum deles
originário da região. O próprio shona não tem nenhuma relação direta com o
bantu do sudeste. Supõe -se, porém, que várias das tradições culturais descritas
anteriormente possuam ligações estreitas com algum dos grupos de dialetos
shona. Assim, os povos de Leopards Kopje estão ligados ao chikalanga, e a
cultura de Harare ao zezuru. Embora ainda não se disponha dos elos que per-
mitiriam ligar o chikaranga, o korekore, o chindau e o chimanyika às tradições
expressas na cerâmica ou nos sítios arqueológicos, as tradições orais, de certa
forma, autorizam -nos a pensar que a maior parte das culturas que acabamos de
descrever, nascidas entre o Zambeze e o Limpopo na Idade do Ferro Recente,
podem ser associadas a povos que falavam línguas shona. E foi entre eles que
grandes transformações políticas e econômicas ocorreram, após o século XII.
As origens da cultura do Zimbábue
As lebres ruínas do Grande Zimbábue, perto da moderna cidade de
Masvingo (que se chamou Fort Victoria), simbolizam uma das partes mais
notáveis dessas transformações. Elas são famosas tanto pela excelência de sua
arquitetura quanto pelas teorias extravagantes que cercam sua origem
6
. Hoje,
todos os estudiosos sérios consideram que o Grande Zimbábue foi uma realiza-
ção essencialmente africana, construído com material local e segundo princípios
6 Ver SUMMERS, 1963, para exposição e crítica dessas teorias.
600
África do século  ao século 
arquitetônicos desenvolvidos durante muitos séculos. Por outro lado, porém, as
causas últimas para o surgimento da organização econômica, política e religiosa
que deu origem a este sítio, e a outros análogos existentes entre os rios Zambeze
e Limpopo, permanecem envoltas em mistério
7
.
As descobertas arqueológicas e a ocupação mais antiga
Os vestígios da ocupação do Grande Zimbábue no começo da Idade do
Ferro limitam -se aos estratos inferiores da longa sequência cultural que aparece
na colina chamada Acrópole (Acropolis Hill), que domina o Grande Cercado
(Great Enclosure), certamente a mais impressionante das construções do Grande
Zimbábue, e a mais uns restos de cerâmica espalhados pelo vale que fica abaixo.
O nível da Acrópole correspondente à Idade do Ferro Antiga foi datado de
tempos anteriores ao século IV, não se podendo afirmar que o estabelecimento
então existente no Grande Zimbábue fosse realmente significativo. Com toda
a probabilidade, os vales separando essas colinas bem irrigadas proporcionavam,
na expressão de Peter Garlake,
bons terrenos de caça e um campo aberto, com solos leves e fáceis de cultivar”.
Foi somente por volta do século X ou XI a data ainda é incerta que povos
da Idade do Ferro Recente instalaram -se no Grande Zimbábue. Pouco se sabe
a respeito, que foram encontradas poucas áreas ocupadas por eles além da
implantação gumanye no Grande Zimbábue. Sua cerâmica não se assemelha à
da Idade do Ferro Antiga, e já foi aproximada, por alguns, à de Leopard’s Kopje,
embora existam diferenças notáveis entre elas.
A tradição gumanye ainda é mal conhecida, e assim permanecerá até que
sejam encontrados e escavados outros sítios do mesmo tipo. Os portadores dessa
tradição instalaram -se no Grande Zimbábue antes que as grandes muralhas
deste local estivessem completadas; supõe -se que representavam outra tradição
cultural da Idade do Ferro Recente, próxima da cultura de Leopard’s Kopje,
que tem vários traços em comum com Gumanye. Mas, seja qual for a realidade
de Gumanye, o fato é que, por volta do século XII, a cultura deste povo sofre
nítida transformação. A cerâmica melhorou de acabamento, fabricaram -se figu-
ras humanas de argila, e aumentaram muito as importações de contas de vidro e
outros objetos. As construções de pau -a -pique tornaram -se muito mais sólidas,
7 Sobre essa questão, ver GARLAKE, 1973.
601
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
começaram a proliferar os adornos de cobre, bronze e ouro, e fizeram -se comuns,
no Grande Zimbábue, muros e muralhas de pedra.
Uma evolão paralela a esta se constata, pelo menos parcialmente, em sítios de
Leopard’s Kopje, como o de Mapela, citado. Por volta de 1300, estavam lançadas
as bases para um Estado poderoso e influente um Estado cujo centro encontrava -se
no Grande Zimbábue e que dominava uma vasta parte da Mashonalândia central e
meridional. Parece fora de dúvida que esse Estado, na sua origem, compartilhasse
numerosas tradições culturais com os povos de Leopards Kopje, e é muito pro-
vável que essa identidade fundamental também se estendesse ao uso da mesma
língua, o shona. Citemos, novamente, Peter Garlake:
Mais ou menos desde o fim do século XII, a diversificação, a expansão e a acumulão
de riquezas, assim como uma crescente especialização social, econômica e funcional que
resultou destes fatores, haviam ocorrido nestas duas culturas, a tal ponto que se tornou
possível a construção de grandes estabelecimentos que, como áreas delimitadas nos
sítios arqueológicos, podiam ser utilizados, para funções definidas, por alguns grupos
ou agrupamentos de populações
8
.
É possível que o Grande Zimbábue tenha sido um desses estabelecimentos.
Antes de descrevermos o Grande Zimbábue propriamente dito, convém
examinarmos mais de perto algumas das hipóteses aventadas para explicar a
formação do Estado que se ergueu à sua volta. Duas grandes teorias foram
propostas com esta finalidade. A primeira, formulada pelo historiador Donald
Abraham
9
, considera os Shona como imigrantes do final do primeiro milênio da
era cristã, que não somente teriam introduzido na região as técnicas de minera-
ção e outras inovações tecnológicas, como também teriam trazido consigo seu
próprio culto dos ancestrais. Isso os levou a fundarem santuários, dos quais o
principal foi construído numa colina chamada Mhanwa, e recebeu o nome de
dzimba dzemabwe (casas de pedra). Segundo Abraham, os dirigentes dos Shona
souberam, graças a astuciosas manobras políticas, exercer influência hegemônica
sobre uma confederação bastante flexível, com os chefes vassalos lhes pagando
tributo, em marfim e ouro em pó. Os negociantes árabes da costa da África
oriental haviam estabelecido relações com essa poderosa aliança e valiam -se dela
para expandir o comércio do ouro e do marfim. Mas o poder central do Estado
estava em mãos dos chefes e sacerdotes que controlavam o culto do Mwari e
os complexos rituais de sacrifícios aos ancestrais que o completavam, servindo
8 Ibid.
9 ABRAHAM, 1961.
602
África do século  ao século 
assim de intermediários entre o Mwari e o povo. Essa hipótese religiosa – como
é chamada baseia -se em pesquisas das tradições orais dos Shona, cujos por-
menores, porém, ainda não foram publicados.
Segundo a outra grande hipótese, o surgimento do Estado de Karanga deve -se,
sobretudo, à intensificação das trocas comerciais. Aumentou muito, no culo XIV,
o uso no Grande Zimbábue de contas de vidro e outros objetos importados, como
o vidro sírio, a faiança persa e o celadon chinês, sinais que evidenciam grande
expansão do comércio. Objetos de ouro e cobre também proliferam no Grande
Zimbábue, pois a exploração destes minérios generalizara -se ao sul do Zambeze.
Na mesma época, a cidade árabe de Kilwa, no litoral, conheceu rápido avanço
econômico, sendo provável que tal prosperidade se devesse à expansão do tráfico
de ouro e marfim mantido com a região de Sofala, na costa de Moçambique,
que durante séculos foi o entreposto litorâneo para a venda de ouro proveniente
do sul da África central. Talvez valha a pena notar que, ao visitar Kilwa, em
1331, o viajante árabe Ibn Battūta mencionou o comércio aurífero de Sofala,
originado em Yufi, na terra dos Limis”, situada no interior, a um mês de viagem
de Sofala
10
.
Esta hipótese comercial baseia -se no aumento das exportações e importações,
e pressupõe que, numa sociedade organizada por grupos de linhagem com um
mínimo de estratificação social, o chefe deverá ser o homem mais rico. Parte de
sua riqueza, porém, é redistribuída aos demais membros da sociedade, por meio
de funções cerimoniais, casamentos, funerais etc. À medida que se ampliam as
trocas comerciais, no entanto, a riqueza total acumulada e não redistribuída à
sociedade aumenta, levando a uma concentração acentuada da opulência e da
autoridade política em mãos de poucos indivíduos, situação esta que, a longo
prazo, pode ser socialmente nefasta. Um rico potentado poderá, então, pagar a
indivíduos para que executem obras públicas, ou ainda, por uma simples decisão
política, forçar uma população a trabalhar para o Estado segundo um sistema
de corveias, adotado outrora, por exemplo, entre os Lozi da Zâmbia. Assim,
no caso do Grande Zimbábue, a crescente riqueza dos chefes teria favorecido
uma maior redistribuição da mesma, a concentração da população num centro
comercial importante e a organização das forças de trabalho para que se cons-
truíssem as enormes muralhas do Grande Cercado e da Acrópole. A hipótese
comercial assenta -se basicamente na ideia de que a criação do Estado teve como
10 IBN BATTA, 1958 -1962. Ainda não existe uma identicação segura desse sítio. Podemos incluir no
arquivo das relações existentes entre Kilwa e o Grande Zimbábue uma moeda descoberta no Grande
Zimbábue datando do tempo de al -Hasan ben Sulaymān (c. 1320 -1333).
603
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
causa principal a expansão do comércio na costa oriental, e na convicção de que
o poder econômico é idêntico à autoridade política suposição que pode ser
válida apenas parcialmente. Pressupõe, também, que a construção das muralhas
de pedra tenha exigido considerável mão de obra, o que tampouco é evidente,
se julgarmos o caso partindo de análises efetuadas em outras regiões.
Poder político e econômico na formação do Estado do
Grande Zimbábue
As duas hipóteses dão bem pouca importância às realidades de uma agricul-
tura de subsistência e dos complexos mecanismos de decisão que controlam, no
sentido mais amplo possível, a orientação global da evolução social. O Estado do
Grande Zimbábue nasceu muito antes da tradição oral que lhe sobreviveu; tudo
o que dele sabemos deve -se à investigação arqueológica ou a uma informação
linguística bastante genérica. Os arqueólogos estabeleceram que os povos de
língua shona podem ter sido os responsáveis pelas tradições da Idade do Ferro
Recente surgidas entre o Zambeze e o Limpopo. Por volta do século XIII, as
tradições de Leopard’s Kopje e de Gumanye apresentavam sinais de considerável
elaboração, que se devia tanto à extensão dos contatos comerciais quanto a uma
maior centralização da autoridade política. Em algumas regiões, o aumento sem
precedentes da densidade demográfica pode ter favorecido o aprimoramento dos
métodos empregados na agricultura itinerante, adotando -se provavelmente cni-
cas de desmatamento e de queimada mais eficazes, que permitissem peodos mais
longos de repouso da terra entre as semeaduras. Mesmo que tenha havido certa
concentração demográfica no Grande Zimbábue e outros centros, a maior parte
da população se manteve disseminada nas aldeias menores, que se instalavam
e se transferiam segundo os imperativos do nomadismo agrícola e da pecuária.
Contudo, quando um centro maior, como o Grande Zimbábue, atra uma
população rural mais densa, as consequências a longo prazo teriam sido graves,
no tocante à fertilidade dos solos, ao uso excessivo dos pastos e à degradação
do meio ambiente.
As sociedades africanas da Idade do Ferro que viviam da agricultura de
subsistência eram basicamente autossuficientes, embora certas matérias -primas,
como o minério de ferro ou as madeiras das choupanas, fossem obtidas a uma
distância razoável. Dispunham de pouco ou nenhum incentivo para praticar o
comércio de longa distância, exceto certas motivações religiosas ou econômicas
e é difícil identificar estas últimas numa comunidade aldeã fundamentalmente
autárquica. Além disso, uma coisa é sentir estas motivações em escala limitada,
604
África do século  ao século 
outra coisa, bem diferente, é unificar uma população rural dispersa sob uma
tutela religiosa, política ou comercial.
Se é evidente que a demanda de matérias -primas estimulada pelo comércio
costeiro da África oriental suscitou necessariamente novas iniciativas econômicas,
esse comércio, isoladamente, não bastaria para reunir o povo sob uma única auto-
ridade política ou religiosa. Para que tal evolução se processasse, era preciso não
apenas que um pequeno número de famílias tivesse o entendimento das coisas
religiosas ou políticas, mas também que, conscientemente ou não, a sociedade no
seu conjunto optasse por uma organização social e política mais hierarquizada,
mesmo que os interessados o tivessem plena consciência de tal processo, na
época. É um erro pensar a origem do Grande Zimbábue, ou de qualquer outro
reino africano, em termos de motivação puramente religiosa ou comercial. O
mais correto é entender que ambos os fatores, assim como muitos outros que as
escavações arqueológicas mal permitem identificar, exerceram importante papel
nas sociedades da Idade do Ferro, quando as perspectivas políticas e econômicas
destas se ampliaram do espaço da aldeia para um horizonte mais largo.
Sejam quais forem as causas profundas da expansão do Grande Zimbábue,
não dúvida de que se trata de monumento impressionante
11
. O sítio está
dominado pela Acrópole, longa colina de granito coberta de enormes matacões
(ver figs. 21.3, 21.4, 21.6 e 21.7). Com o correr das gerações, os moradores foram
unindo esses matacões com muros de pedra, formando assim pequenos cercados
e passagens estreitas. O cercado da ponta ocidental é o maior de todos, rodeado
por espessa muralha de pedras sem arrimo. A análise estratigráfica revelou a
longa sequência de ocupação na Idade do Ferro Recente, fornecendo, assim,
elementos para dividir a história do Grande Zimbábue em, pelo menos, três
fases. A ocupação mais intensa começou por volta do século XI, mas nenhum
muro de pedra foi construído até o século XIII, quando as pequenas cabanas de
pau -a -pique dos primeiros tempos foram substituídas por casas de barro mais
espaçosas. O muro de arrimo, em pedra, do cercado ocidental foi construído
pela mesma época, quando aparecem mais restos de objetos importados nos
depósitos encontrados. Foi nos séculos XIII ou XIV, também, que se ergueram
as primeiras construções no vale que fica abaixo da Acrópole.
O Grande Cercado, com suas muralhas maciças de pedras sem arrimo, foi cons-
truído pouco a pouco durante o século seguinte (ver figs. 21.4 e 21.7). A muralha
que o circunda tem uma altura média de 7,30 m, 5,50 m de espessura na base e 1,30
11 Ver HUFFMAN, 1972.
605
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
a 3,60 m no alto. A muralha propriamente dita tem uma parte central em pedra
bruta, contida de ambos os lados por pedras dispostas horizontalmente sem arga-
massa. Está decorada com motivos de aspas (em ziguezague), num comprimento
de 52 m (ver figs. 21.4 e 21.7). No seu interior, há outra muralha, inacabada, que
evidentemente foi substitda pela que existe atualmente. Entre as duas muralhas,
uma estreita passagem leva a uma torre nica, admiravelmente bem construída,
que domina o Grande Cercado (ver fig. 21.9). Não se sabe qual o significado da
mesma. O Grande Cercado propriamente dito está dividido numa série de peque-
nos cercados, nos quais se encontram os alicerces de casas razoavelmente grandes
de pau -a -pique. Pode -se supor que essa construção impressionante e de grande
significado político servisse de residência aos governantes do Grande Zimbábue.
Os sedimentos do Grande Cercado e os estratos superiores da Acrópole
continham muitos enfeites de ouro e cobre, além de tigelas e esculturas de fina
qualidade feitas em pedra -sabão, retirados pelos primeiros caçadores de tesouros.
Foram desenterradas também grandes quantidades de contas de vidro impor-
tadas, bem como porcelana e vidro de origem chinesa, persa e síria datando até
mesmo do século XIV. É evidente que, por essa época, o comércio costeiro da
África oriental havia penetrado profundamente no interior do continente. O
Grande Zimbábue tornara -se importante centro comercial, e supõe -se que seus
soberanos exercessem um invejável monopólio sobre as atividades de troca. Afinal
de contas, era vantajoso para o negociante estrangeiro, ou seu agente, trabalhar
em cooperação com os dirigentes políticos do interior, o que garantia tanto sua
segurança quanto o maior lucro possível. Aliás, numa situação em que os mineiros
e a mineração estavam sob o controle político do Grande Zimbábue, ligados ao
soberano por tributos e elos religiosos, os comerciantes não tinham outra opção.
É difícil, todavia, avaliar em que medida os árabes, que dominavam o comércio
costeiro, teriam exercido papel político significativo nos negócios do Zimbábue,
ou influenciado a arquitetura e a tecnologia desse Estado africano
12
.
Uma escola de pensamento atribui aos árabes papel proeminente no projeto
do Grande Cercado, compara a torre cônica com as mesquitas da África oriental,
e afirma que as fiadas de pedras das muralhas do Grande Zimbábue são muito
diferentes das construções habituais de pau -a -pique existentes nas aldeias shona.
Contudo, devemos assinalar que a arquitetura do Grande Zimbábue é simples-
mente a extensão lógica dos grandes cercados e bairros reservados aos chefes,
construídos com palha, barro e madeira nos outros Estados africanos, com a
12 Para as relações comerciais existentes entre a África oriental e o Oriente, ver os trabalhos de CHITTICK,
1968, 1970 e 1974, bem como CHITTICK & ROTBERG, 1975.
606
África do século  ao século 
Figura . Ruínas do Grande Zimbábue. Mapa do sítio principal. (Fonte: Summers, 1963.)
607
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
F . O Grande Zimbábue: a Acrópole e o Grande Cercado. (Fonte: Summers, 1963.)
608
África do século  ao século 
F . Cerâmica extraída dos estratos superiores da Acrópole, no Grande Zimbábue. (Fonte: Garlake,
1973.)
609
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
F . Vista interior da plataforma elíptica, partindo -se do alto da muralha externa, perto da torre
cônica do Grande Zimbábue.
610
África do século  ao século 
única diferença de que, no nosso caso, utilizou -se pedra. Foi usada por ser mais
durável, e porque havia grande quantidade de granito, esfoliado em camadas
naturais de 50 a 100 cm de espessura, nos arredores do Grande Zimbábue. Seus
construtores puderam obter número ilimitado de blocos aproveitáveis, que mal
precisavam talhar, servindo -se da esfoliação natural do granito em camadas, ou
acelerando este processo pelo emprego do fogo e da água.
Com exceção da torre cônica, estrutura excepcional de significado desconhe-
cido, nada existe na arquitetura do Grande Zimbábue que fuja à prática africana.
Na verdade, as muralhas sem apoio, os terraços e o trabalho deco rativo da pedra
foram usados em numerosos outros sítios contemporâneos e mesmo posteriores
ao Grande Zimbábue. O que ressalta ao visitante é a dimensão das ruínas, que
suscita tantos mitos sobre sua suposta antiguidade. É praticamente impossível
discernir uma influência inegavelmente árabe, quer na construção do Grande
Zimbábue, quer no conjunto de sua cultura. Seria engano ver, nos dirigentes
desse Estado, marionetes que teriam sido manipuladas pelos árabes, seguindo
planos destes. Nem é provável, a despeito das alegações em contrário, que tenha
havido mais do que um pequeno grupo de árabes ou de seus agentes residindo na
esfera de influência do Grande Zimbábue. O comércio de longa distância deve
ter sido, na melhor das hipóteses, esporádico, consistindo em visitas regulares,
possivelmente sazonais.
A expansão do Estado do Grande Zimbábue e
a sua hegemonia na região
O caráter excepcional do Grande Zimbábue deve -se apenas às suas dimen-
sões, porque se trata da maior entre umas 150 ruínas existentes na região gra-
nítica situada entre os rios Zambeze e Limpopo. Nas suas proximidades, bem
como na Mashonalândia, outras ruínas, que apresentam de um a cinco cer-
cados, rodeados pelo menos parcialmente de muralhas sem arrimo e tendo no
seu interior cabanas de pau -a -pique. A regularidade de sua alvenaria segue o
mesmo estilo do Grande Zimbábue. As ruínas que já foram exploradas às vezes
continham objetos de ouro, braceletes de fio de cobre, contas de vidro, assim
como braseiros e fusos com discos perfurados, caractesticos da cultura do
Grande Zimbábue. Nas ruínas de Ruanga e Chipadze, revela -se a importância
do gado. Cinco das ruínas já escavadas permitiram estabelecer uma cronologia,
sugerindo que todas elas tenham sido construídas e ocupadas entre o começo
do século XIV e o fim do XV. Algumas parecem datar ado culo XVI.
611
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
F . A muralha do Grande Cercado no
Grande Zimbábue.
F . Escultura em pedra-
-sao de um pássaro numa base
monolítica, nas ruínas de Philip no
vale do Grande Zimbue. (Fonte
das gs. 21.6, 21.7 e 21.8: Garlake,
1973.)
F . A torre cônica do Grande
Zimbábue. (Foto Department of Information,
Zimbábue.)
612
África do século  ao século 
Todos esses sítios são de dimensão menor, porque se destinavam a pequenas
populações. Habitualmente, encontram -se perto de colinas nas quais a pedra é
abundante, e parecem pequenos demais para terem sido entidades economica-
mente autossuficientes; provavelmente foram construídos por mão -de -obra de
aldeias vizinhas, que viviam da agricultura itinerante praticada na savana. Peter
Garlake insistiu no fato de que nenhuma destas aldeias sem muros apresenta
objetos do tipo que se encontra nas ruínas:
Os estabelecimentos que forneciam tal mão de obra devem ter conhecido uma
cultura material que parece não ter relações com a das ruínas, embora nada indique,
nestas, a existência de outros grupos culturais.
E prossegue, afirmando que a assistência fornecida assumia a forma de tributos
ocasionais, o que por enquanto não passa de hipótese.
Nas ruínas de Nhunguza, encontrou -se uma única cabana, muito espaçosa,
dividida em três cômodos. Um destes podia acolher grande número de pessoas,
outro continha apenas um assento, o terceiro era
uma câmara completamente separada, que devia servir para a guarda de objetos
de especial valor, incluindo ( ... ) algo que devia ser um monolito assentado num
pedestal de pedra entalhada.
Essa construção nada usual podia muito bem ser a sede em que reinava uma
proeminente autoridade religiosa, cujo poder explicaria a existência desse cer-
cado singular e constituiria a força que unificava o Estado do Grande Zimbábue.
Tem -se a impressão de uma autoridade política e religiosa extremamente pode-
rosa, incontestada, cujo domínio sobre uma população rural dispersa pelo país
baseava -se em alguma espécie de crença unificadora, compartilhada por todas
as famílias, nos poderes do Mwari divino ou de outra divindade. O comércio
de longa distância, por mais regular que possa ter sido, nunca constituiria meca-
nismo igualmente eficaz, pois somente afetava uma parte menor da população
total.
As fronteiras do Estado do Grande Zimbábue ainda se encontram mal definidas,
embora se saiba que sua base situava-se no centro de Mashonalândia. Algumas
ruínas semelhantes às do Grande Zimbábue encontram -se na atual Matabele-
lândia, devido à infiltração de povos do Grande Zimbábue nessa região que era
ocupada pela cultura de Leopards Kopje. No entanto, somente após o declínio
do Grande Zimbábue, no século XV, a Mashonalândia adquiriu certa prepon-
derância em matéria de empreendimentos políticos e comerciais; essa questão,
porém, escapa ao quadro do presente capítulo.
613
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
A s relações comerciais com a costa da África oriental
A influência do Grande Zimbábue e de seus estabelecimentos tributários
fazia -se sentir muito além das fronteiras imediatas, e relativamente próximas, do
próprio Estado. A prosperidade de Kilwa, na costa da África oriental, seguia de
perto as flutuações do comércio de ouro com Sofala. no século X, o geógrafo
árabe al -Mas‘ūd mencionava Kilwa e o comércio aurífero nos seus escritos
13
.
Quatro séculos mais tarde, Ibn Battūta descrevia a mesma Kilwa como uma das
mais belas cidades do mundo
14
, uma aglomeração cuja prosperidade baseava -se
no comércio de ouro com o sul. Sem a menor dúvida, a riqueza dos senhores do
Grande Zimbábue cresceu e declinou acompanhando as fortunas do tráfico cos-
teiro. A própria Kilwa conheceu vicissitudes comerciais. Atingiu o ápice da pros-
peridade no século XV, quando se empreendeu a reconstrução da famosa Grande
Mesquita, com domos e abóbadas tão bem trabalhados. Um século depois, porém,
Kilwa, a costa da África oriental e até o Estado do Grande Zimbábue estavam em
plena decadência. Quando os portugueses chegaram a Sofala, o comércio costeiro
não passava de uma sombra do que tinha sido. Assim, apesar do seu isolamento,
o Grande Zimbábue havia contribuído, através dos contatos comerciais e do ouro
que produzia, para a prosperidade e crescimento econômico o somente da costa
da África oriental, como de terras muito mais distantes.
O funcionamento do comércio costeiro é mal conhecido poucos sítios
comerciais do interior já foram investigados ou escaparam ao interesse insidioso
dos primeiros caçadores de tesouros. Nos séculos XIV e XV, porém, houve
atividade comercial notável ao norte da Mashonalândia e no vale do Zambeze,
cujos vestígios ensejaram magníficas descobertas arqueológicas. Essa região era
povoada desde a Idade do Ferro Antiga, que durou, ali, até o fim do primeiro
milênio da era cristã. Entre os séculos XII e XIV, o norte da Mashonalândia
foi ocupado pelos fabricantes da cerâmica de Musengezi, que praticavam uma
agricultura de subsistência e mantinham um mínimo de contatos comerciais.
Pensa -se que falavam o shona. Embora nos seus estabelecimentos mais tardios
sejam encontrados com certa frequência objetos adquiridos comercialmente, a
cultura de Musengezi parece estar a uma enorme distância da riqueza dos seus
vizinhos meridionais do Grande Zimbábue.
13 AL -MAS‘ŪDĪ, 1962 -1971.
14 IBN BATTA, 1958 -1962, v. 2, p. 379 et seq.; ver também Encyclopaedia of lslam, nova ed., v. 5, p.
106 -7.
614
África do século  ao século 
O mesmo não se pode dizer, porém, da extremidade noroeste da Masho-
nalândia nem da parte inferior do vale do dio Zambeze, onde existiram
estabelecimentos maiores, nos quais o trabalho e o comércio do cobre assumiram
grande importância. O sítio de Chedzugwe, no fértil distrito de Urungwe, cobria
uma superfície de uns 30 hectares de prados da melhor qualidade; a abundância
de ossos de gado e de outros animais comprova o destaque que tinham, nas suas
atividades econômicas, a pecuária e a caça. Mas a metalurgia do cobre e do ferro
também estava longe de ser secundária, que ambos os minerais achavam -se
em quantidade na região. O cobre era fundido em lingotes padronizados em
dois pesos fixos; faziam -se braceletes com fios de cobre, e era corrente o uso de
ligas de estanho. Também se conheciam os têxteis, e se fabricava cerâmica de
excelente qualidade, cujas tigelas e copos tinham um acabamento e delicadeza
de decoração praticamente sem rivais no mundo (ver fig. 21.10)
15
.
A arqueologia e os limites da inuência do Grande Zimbábue
Os habitantes de Chedzugwe mantinham relações não apenas com o Grande
Zimbábue, como também com o vale do Zambeze. Seus belíssimos lingotes de
cobre e suas cerâmicas tão delicadas foram encontrados até no sítio isolado de
Ingombe Ilede, onde, em 1960, realizaram -se marcantes descobertas, que nos
ensinaram alguma coisa sobre os antigos mecanismos de comércio, tanto local
quanto de longa distância. Ingombe Ilede fica no alto de uma colina baixa, na
planície coberta pelo Zambeze em suas inundações, a alguma distância da mar-
gem norte do rio. Hoje ocupado por uma estação de bombeamento, o sítio da
Idade do Ferro foi descoberto quando se construíam grandes reservatórios de
água. Onze sepulturas ricamente decoradas encontravam -se no alto de Ingombe
Ilede, sendo recuperadas – felizmente – antes de se completar a construção dos
reservatórios. Deitados bem próximos uns dos outros, os esqueletos estavam
cercados por uma espantosa coleção de objetos locais e importados. Um deles,
ricamente adornado, portava um colar de conchas do gênero Conus conchas
marinhas da África oriental tradicionalmente associadas ao estatuto de chefe
bem como colares e fieiras de ouro, ferro, cobre e contas de vidro importadas,
que rodeavam o pescoço e a cintura. Outra concha do gênero Conus e dois
amuletos de madeira – que poderiam estar relacionados com o mundo islâmico
foram encontrados à altura da cintura, na mesma sepultura. Lingotes de cobre
em forma de cruz (ver fig. 21.11), gongos de ferro, enxadas de uso cerimonial
15 Ver GARLAKE, 1970.
615
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
F . Cerâmica extraída de Chedzugwe, Zimbábue. (Fonte: Garlake, 1973.)
616
África do século  ao século 
e conjuntos de ferramentas utilizadas para fabricar fios de metal repousavam
junto à cabeça ou aos pés de vários esqueletos. Seus membros estavam rodeados
de manilhas de fios de cobre, que possivelmente haviam sido fabricadas com
as ferramentas encontradas junto aos corpos. O ácido cúprico dessas manilhas
preservou várias camadas de tecidos de algodão ou de casca de árvore, provavel-
mente pertencentes às roupas de seus proprietários. Nos estratos superiores de
Ingombe Ilede, foi encontrado grande número de fusos com discos perfurados;
portanto, pelo menos uma parte dos panos era tecida localmente.
O mais notável nessas sepulturas é que, excetuando -se a cerâmica, quase todos
os objetos ali encontrados eram artefatos ou materiais obtidos pelo comércio de
F . Dois lingotes de cobre em forma de cruz do Ingombe Ilede, Zâmbia, pós -século XI. (Foto
B. M. Fagan.)
617
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
longa distância. Não existia nenhuma jazida importante de minério de cobre,
ouro ou ferro nessa parte do vale do Zambeze, embora fosse cil obter tanto
o sal quanto as presas de elefante, duas mercadorias essenciais para o comércio,
das quais a primeira destinava -se ao consumo doméstico. Os lingotes de cobre
são idênticos aos de Chedzugwe, e a cerâmica de bela aparência encontrada nas
sepulturas é virtualmente a mesma que existe no sítio do distrito de Urungwe.
Em Ingombe Ilede, porém, existem contas de vidro em maior número. À pri-
meira vista, nada parece justificar que um lugar como Ingombe Ilede, onde não
havia jazida alguma de minerais, tomasse parte no comércio de longa distância.
Mas a explicação pode estar nos abundantes depósitos de sal do rio Lusitu:
durante a Idade do Ferro, os pães de sal constituíam mercadoria muito valorizada,
especialmente nas trocas locais. O controle que exerciam sobre as salinas pode ter
levado os habitantes de Ingombe Ilede a manter contatos com outras comuni-
dades, que viviam nos planaltos ao norte e ao sul do Zambeze; estas dispunham
de metais preciosos que podiam trocar pelo sal, e que por sua vez serviriam ao
povo de Ingombe Ilede para adquirir artigos de luxo, no comércio com a costa
oriental do continente. O papel de intermediários atribuído aos habitantes de
Ingombe Ilede não passa de hipótese, pois é igualmente plausível supor que tanto
os bens de luxo como o cobre, o ouro e o ferro fossem trocados diretamente por
sal do rio Lusitu, em transações efetuadas com Urungwe e o Grande Zimbábue.
Existe muita incerteza acerca da data das sepulturas de Ingombe Ilede, pois
as tentativas de datação dos esqueletos pelo carbono -14 defrontaram -se com
graves problemas. Sabe -se que existia uma grande construção de pau -a -pique no
ponto mais elevado da aldeia, mas seus alicerces já haviam sido destruídos, antes
do início das escavações arqueológicas, pelos construtores dos reservatórios de
água. As sepulturas com objetos de ouro encontravam -se sob os alicerces dessa
cabana, que pode ter sido destruída intencionalmente no decorrer dos ritos fune-
rários. Os esqueletos pertencem aos últimos anos da existência de Ingombe Ilede,
aldeia habitada, talvez de maneira intermitente, desde o século VII. Pelo final do
primeiro milênio, o local foi abandonado pelos seus moradores, camponeses que
praticavam a agricultura de subsistência e mantinham contatos com os agriculto-
res do planalto de Batoka, mais ao norte. Ingombe Ilede certamente não foi um
centro comercial durante os primeiros séculos de sua história. Mas, por volta de
1400, o local voltou a ser ocupado brevemente, ocasião em que foram realizados
os sepultamentos com seus objetos de ouro, nas fossas de cinza fina do alto da
colina. É a este último período de ocupação que se podem atribuir os objetos
importados, o ouro, o cobre e a cerâmica de melhor qualidade encontrados em
Ingombe Ilede. O Grande Zimbue conhecia, então, o apogeu de sua importância
618
África do século  ao século 
e prosperidade, e os árabes exerciam firme controle sobre o comércio da costa
oriental. Contudo, mesmo que Ingombe Ilede tenha sido um centro comercial, a
riqueza e lucros provenientes dessas trocas certamente estariam concentrados nas
mãos de poucas pessoas – as que estão enterradas no alto da colina. Nos limites
meridionais desse tio, encontraram -se mais 31 sepulturas, contemporâneas
dos esqueletos recobertos de ouro exumados no topo da colina. Somente alguns
desses corpos enterrados às pressas portavam algum modesto enfeite contas
de vidro, conchas de água doce ou um bracelete de cobre. Parece, pois, fora de
questão que existia certa estratificação social em Ingombe Ilede.
A aldeia de Ingombe Ilede marca, provavelmente, o limite setentrional da
atividade comercial que ligava os vales do Zambeze e do Limpopo, limite este
que reflete as idiossincrasias do comércio costeiro e a complexidade das relações
políticas do Estado do Grande Zimbábue com seus vizinhos. Até o presente
momento, foi -nos impossível vincular essas sepulturas mais ricas de Ingombe
Ilede a qualquer grupo histórico conhecido, embora certas referências existentes
em documentos portugueses do século XVI excitem nossa curiosidade. Entre
1506 e 1515, Antônio Fernandes partiu de Sofala em duas viagens de exploração
do interior. Visitou os chefes locais e descreveu como funcionava o comércio do
ouro. Contou que ouviu falar de um grande rio ao norte do reino do Monomo-
tapa, no qual o povo dos “Mobara trocava cobre por tecido, cruzando o rio em
canoas para comerciar com os árabes. De modo geral, aceita -se que haja alguma
ligação entre Ingombe Ilede e esses Mbara do século XVI.
O nal do século XV: mudanças e transformações
Quando o Estado do Grande Zimbábue está no apogeu, o sul da África cen-
tral acha -se no limiar da documentação histórica e da tradição oral. Pelo final do
século XV, o Grande Zimbábue começa a ser abandonado por boa parte de sua
população. As forças associadas ao poder econômico e político deslocaram -se
para o sul e para o oeste, sob a chefia do poderoso clã rozwi. As tradições orais
registram o surgimento de um soberano hereditário, o mwene mutapa (senhor
do saque)
16
, sendo o primeiro Mutota. Seu filho Mutope expandiu o território
do mwene mutapa para o norte, transferindo sua capital para uma região seten-
trional, longe do Grande Zimbábue. Posteriormente, por volta de 1490, as partes
meridionais do reino romperam com a autoridade central, constituindo, sob a
16 Para alguns autores, mwene mutapa quer dizer “senhor dos metais”.
619
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
liderança de Changamire, um poderoso Estado separado. O mwene mutapa
conseguiu conservar uma pequena faixa de território, ao longo do Zambeze, que
se estendia até o oceano Índico. Seu domínio acabou caindo sob a influência
portuguesa, no decorrer dos séculos XVI e XVII.
Mas esses acontecimentos políticos não bastam para explicar por que um
sítio tão importante quanto o Grande Zimbábue foi abandonado de maneira tão
rápida e inesperada. Práticas religiosas e atividades econômicas idênticas às suas
eram seguidas em outros lugares. A população continuou vivendo da agricultura
de subsistência baseada no nomadismo agrícola. Talvez esteja neste ponto a
razão para o abandono do Grande Zimbábue: é possível que os campos circun-
dantes tenham se tornado incapazes de manter sequer um circuito disperso de
pequenas aldeias, e menos ainda a complexa superestrutura da população não
agrícola residente no próprio Grande Zimbábue. A intensificação da agricultura
pode resultar da irrigação ou fertilização artificial do solo. Nenhum desses
métodos era praticável na savana arborizada que cercava o Grande Zimbábue.
Quando as terras cultiváveis esgotaram -se, só restou uma coisa a fazer: procurar
terras novas para desmatá -las e iniciar novas lavouras e, desta maneira, alimentar
a população existente. Bastava que se diminuíssem os períodos de descanso da
terra, ou que se deixasse entrar o gado (de menor ou maior porte) nos pastos
onde a grama estava se recompondo, para interromper os ciclos agrícolas vitais
–, o que inevitavelmente resultava na degradação do meio ambiente, no desgaste
das pastagens, e, finalmente, na migração de largos contingentes de população
para novas áreas cultiváveis. Quando isto aconteceu nas cercanias do Grande
Zimbábue, o mwene mutapa precisou partir, por mais sagrado que se considerasse
seu local de residência, ou por imponentes que fossem as muralhas de pedra
que definiam os seus cercados. Parece muito provável que os desequilíbrios
políticos do final do século XV tenham estado estreitamente ligados às limita-
ções ambientais que sempre ameaçam as estruturas políticas ou religiosas (por
complexas que sejam) baseadas na agricultura de subsistência e numa população
rural dispersa.
Por volta de 1500, o sul da África central tinha passado por grandes trans -
formações políticas e econômicas. Um certo grau de unidade política e de estra-
tificação social havia nascido entre os rios Zambeze e Limpopo, favorecida pela
intensificação do comércio de longa distância e pelas solicitações dos mercados
mais remotos, e também pela evolução interna das próprias sociedades africanas
–, a concentração da riqueza em mãos de poucos, a centralização do poder polí-
tico em nível superior ao da aldeia, a criação de um refinado aparelho estatal no
qual os assuntos seculares e religiosos dependiam da pessoa de um chefe a quem
620
África do século  ao século 
F . As tradições e fases arqueológicas. (B. M. Fagan.)
621
As bacias do Zambeze e do Limpopo, entre 1100 e 1500
se atribuía ascendência divina. Estas transformações, especificamente africanas,
ocorreram também em muitos dos Estados mais fortes da África central e de
outras partes do continente. Mas sua viabilidade exigia a conservação de fortes
redes comerciais e de um sistema de agricultura de subsistência suficiente para
alimentar a população. Estes fatores revelaram -se, numa análise histórica, deter-
minantes para o crescimento e a prosperidade do Estado do Grande Zimbábue,
e de seu sucessor, o Estado rozwi. E, por trás da ascensão e queda de tantas
chefarias maiores e menores, o fio condutor da vida na Idade do Ferro, que nos
é confirmado por muitas descobertas arqueológicas, continuou a depender da
agricultura e de sua economia de subsistência, baseada nas diversas lavouras, na
pecuária e na criação de pequenos animais.
C A P Í T U L O 2 2
623
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
O estágio atual de nossos conhecimentos
Reconstruir o passado dessa vasta zona do continente africano no período
que vai de 1100 a 1500 constitui um difícil desafio para o historiador. São pou-
cas as fontes de época de que dispomos atualmente, uma vez que o mais antigo
manuscrito existente data somente de 1492, e as incipientes escavações efetuadas
em Shaba e no baixo Zaire (Congo) e em outras regiões, não nos podem forne-
cer um quadro cronológico bem definido. as fontes escritas posteriores tratam
apenas do reino do Kongo. Tornam -se mais frequentes no período posterior a
1500, e por isso utilizaremos várias relações tardias (de 1587, 1624 etc.), pelas
informações que nos podem dar sobre o período anterior a 1500, ou melhor,
neste caso, a 1483.
Entre as fontes não contemponeas eso as tradições orais do Kongo, registradas
pela primeira vez em 1624, e outras que tratam dos reinos costeiros, recolhidas por
O. Dapper e G. A. Cavazzi, entre 1641 e 1667 isto é, dois ou três séculos
após os acontecimentos. Quanto às outras regiões, a coleta das tradições orais
teve início em fins do culo passado, mas tornou -se sistemática desde a
independência, em 1960. As tradições orais revelaram -se uma fonte essencial
para a compreensão tanto da história quanto da cultura locais.
Para o período em questão e para o anterior, a utilização de dados linguísticos
poderia ser fundamental, embora eu acredite que por essa época as migrações
A África equatorial e Angola:
as migrações e o surgimento
dos primeiros Estados
Jan Vansina
624
África do século  ao século 
bantu já tivessem chegado ao fim – opinião que não é partilhada por todos os
especialistas. Todos concordamos, porém, em que tal período coma muito
depois do fim da sociedade protobantu, cujos traços principais podemos
reconstituir mediante a análise de seu vocaburio. O estudo das diferencia-
ções entre as nguas e do processo de formação dos Estados, embora tenha
sido apenas começado, promete dar bons frutos. Quanto às línguas faladas nas
savanas do norte, pertencentes ao grupo oriental do ramo Adamawa -Leste,
de J. H. Greenberg, e ao grupo sudânico central, ainda não foram analisadas
de maneira rigorosa pela lingstica histórica.
Restam os dados etnográficos. Mas é dicil de estabele -los porque de
icio é necessário limpar o terreno, mediante uma crítica rigorosa, para
assim se chegar pelo menos à situão existente antes da colonização; em
seguida, deve -se recorrer a uma metodologia extremamente delicada, como
mostram as tentativas feitas pela antropologia histórica desde o fim do
século XIX. Contudo, um estudo etnológico aprofundado, somando -se a
uma alise da difusão e dos empréstimos lingsticos, pode esclarecer mui-
tos aspectos da história. Da mesma forma que acontece com as línguas,
igualmente na etnografia não basta estabelecer descrões pormenorizadas
onde elas ainda não existem; é preciso também tentar obter os dados mais
objetivos posveis.
A cronologia é o ponto mais difícil para todo esse material mais tardio,
que o es datado pelo carbono -14 nem por documentos escritos. Os ele-
mentos linguísticos e etnográficos de que dispomos não fornecem sequer uma
cronologia relativa. Apenas comparando os resultados assim obtidos com os
da arqueologia é que chegamos a uma certa datação. As tradições orais for-
necem uma sequência relativa – é verdade –, mas que vale para os períodos
posteriores aos tratados pelos mitos de origem. Portanto, nessa área, com
excão da região litorânea, toda a cronologia desse período continua incerta.
Somente escavações intensivas, acompanhadas de datações sistemáticas através
do recurso ao carbono -14, poderão melhorar essa situão.
Nessas condições, a única abordagem possível é tentar reconstituir a his-
tória a partir dos dados arqueológicos e linguísticos que temos, relativos ao
período em estudo e ao período anterior, cotejando -os com os testemunhos
mais recentes. Dessa forma construiremos um quadro ligando os fios mais
antigos aos mais novos – embora este conjunto, afinal, não passe de uma soma
de hipóteses a serem verificadas.
625
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
Os povos
Se a expansão das línguas bantu pode refletir a ocorrência de grandes migra-
ções, então estas terminaram bem antes do ano 1100. É verdade que, segundo
R. Oliver, seguindo nisto a tese do linguista M. Guthrie, a origem da grande
massa dos povos de língua bantu se situaria em Shaba e na região adjacente
do nordeste da atual Zâmbia. Essa área de proveniência dos Bantu poderia
estender -se, a oeste, até o oceano Atlântico. Segundo R. Oliver, foi nela que se
desenvolveu um estilo de vida “bantu”, fundado numa agricultura basicamente
de cereais e no emprego intensivo do ferro. Esse desenvolvimento, segundo
essa teoria, teria levado a uma expansão demográfica, fazendo os povos bantu
subirem os rios e a costa para penetrar na floresta, onde ainda por volta do ano
1000 existiam grupos bastante esparsos de caçadores e pescadores vivendo num
esgio pré -agrícola
1
. Por volta de 1500 provavelmente se encerrara esse avanço
a partir do sul, embora ainda hoje se constate a existência de grandes bolsões de
agricultores de língua não bantu e de caçadores pigmeus
2
. Em Angola, também
se encontram grupos de caçadores talvez sejam uma parte do povo san que
não foi expulsa para o sul.
Essa teoria, porém, é rejeitada como inverossímil por numerosos linguistas,
que, concordando com J. H. Greenberg, localizam a origem dos falares bantu
na região que está entre os rios Benue e Cross. De acordo com J. H. Greenberg,
os povos de língua bantu se deslocaram gradualmente para o sul, colonizando
a região entre os rios Sanaga e Ogoue muito antes do ano 1000, talvez até
mesmo antes da era cristã. Um movimento paralelo ocorreu ao longo dos rios
Ubangui -M’Bomu durante o mesmo período. Depois disso, houve uma espécie
de explosão de línguas a partir de um núcleo secundário existente na região das
línguas kikongo, ou em Shaba ou na região interlacustre, que um ramo dos
mais antigos grupos de língua bantu teria seguido no rumo leste pelas bordas da
grande floresta, passando depois pelos rios Ubangui e M’Bomu. Mas também
essa dispersão a partir do núcleo secundário já estava terminada muito antes do
ano 1000: isso nós sabemos porque no kiswahili – uma das línguas derivadas do
bantu um primeiro vocábulo dessa procedência é assinalado por al -Djākhis
em data anterior a 868. A meu entender, os estudos linguísticos mais recentes
1 OLIVER, 1966; GUTHRIE, 1962.
2 Sobre essa expansão bantu, ver, de B. Fagan, o capítulo 6 do volume 3 desta História geral da África.
626
África do século  ao século 
F . Mapa da África central, c. 1500. ( J. Vansina.)
627
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
explicam melhor a questão, e aceito a tese de que as migrações nessa região
tinham chegado ao fim ainda no primeiro milênio da era cristã
3
.
Também é provável que o impacto dos povos que falavam as línguas orientais
do ramo Adamawa -Leste tenha desagregado o bloco dos que falavam as línguas
do grupo sudânico central, bem antes de 1100. Mas, tanto na parte nordeste da
floresta e ao norte da curva do rio Zaire como na bacia do Ubangui continuava a
disputa entre as diversas nguas, inclusive as bantu; às vezes uma conseguia afastar
outra, mas parece que isso tudo acontecia sem grandes movimentos de popula-
ção. As línguas do grupo sudânico central não conseguiam impor -se aos povos
que falavam bantu, e vice -versa, enquanto as nguas mais antigas da região, que
pertenciam ao grupo oriental do ramo Adamawa -Leste, eram desgastadas pelas
demais. Os pigmeus aderiram, basicamente, àsnguas do grupo sudânico central.
Tudo isso leva a pensar que, no confronto das culturas, as forças presentes se
equivaliam, e que a história desse século deve ter -se resumido a ganhos ou perdas
menores, ora para um lado, ora para outro, séculos a fio. Em outras regiões, a subs-
tituição das nguas autóctones pelo bantu estava completada ou por completar -se,
mas devemos supor que, no decorrer desse processo, os imigrantes de expressão
bantu integraram à sua civilização muitos dos complexos culturais autóctones. E
isso pôde acontecer sem provocar grandes migrações, as quais, para dizer a verdade,
parecem mais a exceção do que a regra, nessa parte do continente.
Provavelmente as primeiras formações étnicas regionais existiam bem
antes de 1500. O caso mais bem conhecido é o dos Imbangala, formados pelos
Lunda, Luba, Ovimbundu e Ambundu
4
. A influência das comunicações se cons-
tata especialmente na bacia central, onde uma tripla divisão do trabalho ligava
agricultores, caçadores (pigmeus, em sua maioria) e pescadores. Estes últimos
mantinham intensos contatos tanto com os agricultores, a quem vendiam peixe
e cerâmica, em troca de produtos vegetais e de carne, como com os pescadores
dos canais de água doce mais próximos. Esse entrelaçamento de interações,
por toda a bacia central, explica por que as línguas mongo permaneceram tão
uniformes nessa região. na floresta de Maniema, o relevo montanhoso e
a vegetação particularmente densa tornavam difíceis as comunicações; ainda
assim, porém, encontramos nela dois grandes grupos, os Lega e os Komo, cuja
unidade cultural foi mantida
5
.
3 GREENBERG, 1963, p. 30-8; HEINE, HOFF & VOSSEN, 1977; COUPEZ, EVRARD & VANSINA,
1975, p. 152; PHILLIPSON, 1977.
4 MILLER, J. C., 1972a.
5 GUTHRIE, 1953, apresenta um mapa que mostra com clareza essa distribuição demográca; VANSINA,
1966a, p. 93-103, 105-14.
628
África do século  ao século 
A influência permanente dos autóctones é obviamente mais visível na área
da floresta do nordeste, entre os rios Zaire, Ubangui e M’Bomu. Poderíamos
até supor que os diferentes grupos cultivaram deliberadamente suas oposições
linguísticas para traduzirem melhor, nos fatos, sua vontade de se individualizar.
E o linguista C. Ehret vai ainda mais longe. Afirma que os povos que falavam
as línguas do grupo sudânico central não ocupavam apenas o nordeste, mas tam-
bém todo o território a leste do Lualaba (alto Zaire). Antes mesmo da chegada
dos povos de fala bantu, eles se encontravam divididos em distintos grupos.
Deixaram poucas marcas nas línguas da região, mas seu legado mais importante
seria o espírito de individualização, que teriam transmitido àqueles cuja língua
adotaram. Ainda é cedo demais para se julgar a validade dessa teoria ou avaliar
seus resultados
6
. A marca dos povos que falavam as línguas do grupo sudânico
central e outros aparece claramente no mapa das savanas setentrionais, expli-
cando a presença de certos bolsões” étnicos – embora nunca devamos esquecer
que o mapa atual representa uma situação produzida pelas grandes migrações
que agitaram essa região do século XVII ao XIX.
Assim foi que a imigração banda, originária do Dar Banda localizado
logo ao sul do Bahr al -‘Arab, no Sudão –, varreu os grupos sabanga e kreish em
todo o leste e no centro dessa região. Por volta de 1900 os Sabanga constituíam
apenas pequenos pontos perdidos na massa banda, e em sua maioria assimilados
por ela. De todo o seu grupo, apenas o reino nzakara teve força suficiente para
sobreviver. Os Banda deixaram o território de origem para escapar às razias,
cada vez mais frequentes, de escravagistas que vinham do Darfūr, e mais tarde
do próprio Nilo. Na mesma época, o oeste da atual República Centro -Africana
foi agitado por maciça migração gbaya, provocada pelas incursões haussa em
busca de escravos, originários de Adamawa.
História e civilização da região
Agricultura
Os dados ecológicos e arqueológicos disponíveis permitem -nos afirmar que
antes de 1100 a agricultura era praticada por toda parte, com exceção do
interior de Angola meridional, que fica perto demais do deserto de Kalahari,
e de algumas regiões florestais. Os principais cereais cultivados eram o sorgo
6 EHRET, 1974a.
629
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
vermelho e outros milhetes (saa -sanga). Dentre os tubérculos, predominavam
os inhames africanos, de várias espécies; provavelmente não se cultivava o taro
asiático (coco -yam), enquanto a bananeira e a cana -de -açúcar, da mesma prove-
niência, eram cultivadas principalmente na floresta, embora também o fossem
na savana. Como legumes, consumiam -se feijões e amendoim (Voandzeia). As
proteínas indispensáveis à alimentação eram fornecidas pela caça, pesca e coleta
de lagartas e larvas. Animais domésticos galinhas, cabras e cães também
eram criados em toda a região. No sul da floresta, criavam -se carneiros; e, pelo
menos na parte inferior do rio, também gado de chifres e porcos. Certamente
existia uma tecnologia agrícola diferenciada na floresta e na savana: nesta, a
alimentação se baseava nos cereais, contrastando com as bananas e os inhames
da primeira. Havia até áreas dedicadas especialmente ao cultivo de palmeiras.
Mas é fundamental recordar que a floresta era recortada por trechos interme-
drios de savana natural, ao longo da costa, entre o rio Gao e o curso superior
do Zaire e dentro da curva deste último; provavelmente também se cultivavam cere-
ais nessas regiões. O único impedimento a essa cultura talvez fosse a excessiva
umidade que reina perto do equador, mas essa questão poderá ser resolvida
por meio de escavações arqueológicas e estudos de botânica. Nas proximida-
des dessas savanas intermediárias, assim como na orla da floresta, o homem
beneficiava -se, portanto, das vantagens de dois meios ambientes que, muitas
vezes, se complementavam. Era nesses lugares que as colheitas estavam menos
sujeitas ao imprevisível, e que se podia contar com o crescimento da população,
iniciado desde a introdução da agricultura e das ferramentas de ferro. Tal
crescimento deve ter levado, antes mesmo do ano 1000, a migrações para outras
regiões menos povoadas.
Notemos, ainda, que não era apenas na floresta que se podia desfrutar de um
duplo meio ambiente. Também na savana arborizada, a presença de matas ciliares
ao longo dos rios desempenhava exatamente o mesmo papel que as savanas inter-
mediárias na floresta, especialmente nos vales do Ubangui, do Kasai e do Lualaba.
Ademais, às margens desses três rios, bem como às do Chari, a abundância de
peixes favorecia o crescimento e a concentração demográficos. Uma dieta rica
em proteínas pode ter aumentado a taxa de fecundidade, favorecendo, portanto,
o crescimento da população.
Artesanato e comércio
Por toda a região, as técnicas artesanais haviam assumido em 1100 as
características que conservariam até mais ou menos 1900: a metalurgia do ferro
630
África do século  ao século 
estava bem desenvolvida, e entre as demais atividades se incluíam a cerâmica,
a fabricação de cestos, a tecelagem em ráfia, a tanoaria e a extração de sal do
mar, dos mangues, de plantas ou ainda de sal -gema. As escavações efetuadas
em Bouar, na República Centro -Africana, bem como as de Sanga, comprovam
a existência da metalurgia. É possível que as minas de ferro de Munza, em
Shaba, tenham sido exploradas desde muito cedo, e que tal fato estivesse ligado
à expansão do reino luba
7
.
Com essas técnicas, nasceu um comércio regional. As primeiras indicações do
emprego de cruzetas de cobre como moeda aparecem no Cinturão do Cobre, por
volta do ano 1000; até 1450 -1500, essa prática se havia alastrado do rio Zambeze
até o Lualaba. Os portugueses encontraram no Kongo, em 1483, uma moeda
imaginária, a que se dava o nome de nzimbu; por volta de 1500, quadrados de
ráfia circulavam, como unidade de valor, nas rotas comerciais de toda a savana
meridional fronteira ao Atlântico. No século seguinte, o sal -gema de Kisama
funcionou como moeda
8
. Os primeiros transportadores eram provavelmente
os pescadores, cuja atividade não se resumia à obtenção de peixe, mas também
incluía a produção de cerâmicas que podem ser encontradas ao longo dos canais
navegáveis dos numerosos rios da região. Em Shaba e na alta Zâmbia, certa-
mente houve mineiros -comerciantes especializados em cobre. E também deve
ter havido um comércio de ferro e sal, dirigido para as regiões onde somente
se conhecia o sal tirado das cinzas de plantas. Finalmente, é provável que, na
floresta, os caçadores autóctones estivessem se habituando a trocar caça por
pontas de flecha de ferro, bananas e sal.
A sociedade e a organização do poder
Com o aumento demográfico que sucedeu à expansão e difusão das técnicas
artesanais e do comércio, a sociedade organizou -se em linhagens patrilineares.
De início, os grupos de fala bantu agrupavam -se em aldeias bastante com-
pactas. É muito possível que tenha havido fortes tendências matrilineares no
interior dos grupos e que elas se tenham desenvolvido na savana meridional
antes mesmo do período de que tratamos. Com efeito, além de encontrarmos o
tradicional cinturão matrilinear da África central, da Namíbia até o Zambeze
e do Ogoue até o lago Tanganica, sabemos que G. P. Murdock e outros autores
7 VIDAL, P., 1969; VIDAL, P. & DAVID, 1977, p. 3-4, identicaram outro sítio da Idade do Ferro
na conuência dos rios Nana e Mode, na República Centro-Africana; MARET, VAN NOTEN &
CAHEN, 1977; REEFE, 1975.
8 GRAY, R. & BIRMINGHAM, 1970; BISSON, 1975.
631
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
afirmaram também que os povos da floresta a oeste do rio Lualaba estavam
todos organizados matrilinearmente, assim como os Luba de Shaba. Talvez
essa ainda fosse a norma, por volta do ano 1000. No século XV, em todo caso,
os povos da floresta adotavam a sucessão patrilinear, mas os Luba de Kasai, e,
provavelmente, também os de Shaba, ainda eram matrilineares. mudaram
seu regime de sucessão depois de 1500
9
.
Na prática, parece que o sistema matrilinear bantu admitia o princípio da
autoridade dos homens sobre as mulheres, o que frequentemente acarretava
uma residência patrilocal, que por sua vez favorecia a fragmentação dos clãs.
As linhagens matrilineares se debilitavam, ao passo que se fortalecia a estrutura
da aldeia, que era necessário manter uma ordem na vida comunitária. Essa
autoridade na aldeia se baseava em princípios territoriais e, portanto, políticos.
Assim, desde o começo, os povos de língua bantu tiveram chefes políticos a
nível de aldeia.
Já os povos que adotavam a sucessão matrilinear de outras línguas que não a
bantu, dispersados pelo território da atual República Centro -Africana, viviam
em aglomerações menores, sob a direção dos homens de uma linhagem, que
não chegavam, porém, a exercer sobre eles o poder de chefe. Não tinham pro-
priamente aldeias, mas uma sucessão de povoados menores o que se ligava,
também, ao caráter bastante igualitário de sua sociedade. Contudo, em outras
regiões, ao longo dos rios Ubangui e Chari, os habitantes patrilineares da floresta
residiam em conjuntos maiores de povoados, as linhagens detinham mais poder
e existiam chefes reconhecidos como tais
10
.
Também havia senhores da terra, reconhecidos como tais, em toda a parte
meridional da savana, assim como na orla da floresta, tanto ao sul como ao
norte. Eles mantinham uma relação privilegiada com a terra, por intermédio de
espíritos de quem eram os sacerdotes; assim, desfrutavam de uma autoridade
que, na verdade, era política. Esses senhores da terra parecem ter governado
conjuntos de aldeias, cada um dos quais constituía uma espécie de distrito ou
uma unidade territorial um embrião de reino.
O processo que culminou no reconhecimento dos senhores da terra como
chefes políticos está ligado ao fortalecimento das linhagens. O aumento nas
rendas auferidas por uma linhagem reforçava, ao mesmo tempo, o poder do seu
chefe. Dessa forma, o patriarca se converteu em chefe territorial e depois em
9 MURDOCK, 1959, p. 287; VANSINA, 1978, p. 105-10. Esses dados indicam que os Luba (de quem
os Kete são um subgrupo) eram matrilineares.
10 KALCK, 1959, p. 45-54; VANSINA, 1966a.
632
África do século  ao século 
fundador de Estado, mediante a absorção de outras linhagens ou a imposição
de sua autoridade pela força das armas.
No âmbito da aldeia, a produção de um excedente permitia liberar do traba-
lho manual o chefe da linhagem. Além disso, como o crescimento demográfico
proporcionasse braços suplementares, também os chefes de família se isentaram
do trabalho e constituíram um conselho, em torno do patriarca. Assim se deu
a gestação do Estado.
O Estado nasceu, portanto, do fortalecimento da autoridade de um chefe de
linhagem, que se revelou capaz de impor -se a outras linhagens. Tal Estado pode
definir -se como um território que englobava algumas aldeias que reconhecessem
a autoridade política de um chefe. Este era rodeado de agentes ou funcionários
que formavam o seu conselho. Nos primeiros tempos, o rei, como um líder
político, conservava ainda o essencial de seus atributos de chefe religioso – daí o
caráter sagrado que lhe era conferido. Mas, uma vez superada essa fase, à medida
que se multiplicaram os conselheiros, juízes, dignitários e guardas do chefe que se
estava transformando em rei, tornou -se necessário, para atender às necessidades
do Estado, organizar um sistema de redistribuição dos excedentes retirados dos
produtores. Esses reis, chefes ou conselheiros arrebanhavam seguidores usando
da generosidade, especialmente na farta distribuição de vinho ou cerveja. Foi
por isso que o rito da “bebida do rei veio a se tornar, em muitos Estados, o mais
importante distintivo da supremacia real. Assim se fez necessária a obtenção de
um excedente superior ao normal. Ora, apesar de não haver aperfeiçoamento da
tecnologia, havia terra disponível em abundância: a solução econômica esteve em
requerer maior número de braços. O trabalho era o único fator que poderia ser
mudado; vem daí, provavelmente, o estatuto do escravo doméstico. Um escravo
era um servidor que produzia obedecendo às diretrizes de seu amo e aumentava
em uma unidade a força de trabalho agrícola, aentão basicamente composta de
mulheres. Os primeiros escravos foram certamente prisioneiros de guerra.
A frequência dos combates há de ter aumentado à medida que as senhorias
se convertiam em Estados, que, para se expandirem, elas tinham de absorver
outras senhorias ou patrilinhagens. Outra fonte possível de trabalho cativo seria
a comutação da pena de morte imposta a certos criminosos
11
.
Houve casos, porém, em que não nasceu um Estado, embora as condições
sociais e ecológicas fossem favoráveis. Assistimos, então, à elaboração de distintos
11 DE JONGHE & VANHOVE, 1949; MIERS & KOPYTOFF, orgs., 1977. Cf. também MEILLAS- SOUX,
org., 1975.
633
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
sistemas políticos. Alguns valorizavam a igualdade acima de tudo e recusaram -se
a abandoná -la. Outros preservaram parte desse espírito igualitário, formando
confederações de linhagens baseadas em associações ritualizadas sem chefe.
O exemplo mais espetacular dessa “escolha” foi certamente o dos Ngbandi,
que, embora fornecessem linhagens de soberanos a outros povos, continuaram
vivendo, eles próprios, sem ter Estado. Um caso mais comum foi o dos Gbaya,
que mantinham constantes relações com etnias organizadas em Estados, como a
dos Mbum, mas não quiseram seguir -lhes o exemplo. Da mesma forma, os Sara
ajudaram a constituir o Estado de Bagirmi, mas desenvolveram a sua sociedade
no quadro das linhagens.
Certas características religiosas provavelmente eram comuns aos agricultores
de toda a região: a feitiçaria, os rituais de fecundidade dirigidos pelo senhor da
terra, a importância dos espíritos locais e de ancestrais, o respeito tributado aos
adivinhos e curandeiros. A reconstituição de uma série de termos comprova que
tudo isso já existia no mundo protobantu.
Todas as formas de autoridade, desde a do pater familias até a do soberano
ou de uma associação, detinham caráter sagrado. o deve surpreender, portanto,
que toda a realeza fosse sacralizada, nem que fossem semelhantes as concepções
do sagrado porque as bases religiosas eram as mesmas por toda a região. A
esse princípio uniforme deu -se, com excessiva ligeireza, o nome de realeza
sagrada e procurou -se encontrar uma origem única para ele. Mas, dessa maneira,
desprezaram -se as importantes diferenças existentes entre os diversos reinos e
que se devem ao fato de eles terem nascido de processos independentes. Foi esse
o caso dos reinos luba, ou dos Estados da costa atlântica, para citarmos apenas
os exemplos mais conhecidos.
Se discutimos mais longamente a formação dos conjuntos políticos de maior
dimensão é porque foi justamente durante o período ora em pauta que se fun-
daram e consolidaram os Estados, especialmente na savana meridional.
As savanas setentrionais: os povos
A tradão oral dos Ngbandi, que vivem hoje em dia na curva do rio Ubangui,
organizados em linhagens patrilineares (o equivalente, de fato, a senhorias), remonta
aos tempos anteriores a 1500. Uma vez interpretados, seus mitos de origem reve-
lam que eles vinham de uma região limítrofe do Dar Banda, no atual Sudão,
que foi ocupada pelos Banda no século XIX. Esse território estava limitado,
ao norte, por um afluente do Bahr al -Ghazāl, o Bahr al -‘Arab, e tinha em suas
634
África do século  ao século 
proximidades as jazidas de cobre de Hofrat en -Nahas, que, por não dispormos
de nenhuma referência, não sabemos quando começaram a ser exploradas.
A partir mais ou menos do ano 1300, grupos nômades de árabes Bakkara
chegaram ao norte desse rio; é possível que tenham sido eles que expulsaram
os Ngbandi. Os mitos evocam brancos armados de arcos e flechas, lanças, facas,
dardos e até mesmo fuzis, a quem se os nomes de Azundia e Abara. Esse
conflito teria ocorrido no século XV; durante dois séculos, uma migração contí-
nua teria levado os Ngbandi a uma região próxima a Bangassu. No final da sua
migração, eles encontraram povos de língua bantu, a norte do M’Bomu, entre
os rios Chinko e Mbari
12
.
Parece provável que os Zande tenham sido localizados por volta de 1500,
entre Kotto e Dar Runga, que o oeste da atual República Centro -Africana esti-
vesse então ocupado pelos Manja/Ngbaka, e a sua parte oriental, pelos Bantu.
Os povos que falavam as línguas do grupo sudânico central estavam dividi-
dos, nessa época, em pelo menos dois blocos: um englobava os Sara e o futuro
Bagirmi, o outro se situava no alto Nilo e na floresta do nordeste, mas alguns
grupos, como os Kreish ou os Yulu, já se teriam instalado no Dar Banda e perto
do território originário dos Ngbandi.
No século XVI, urna linhagem ngbandi fundou o reino nzakara, cujos súditos
falavam a língua zande, enquanto outros Ngbandi instituíam grandes senhorias
baseadas em grupos de linhagem
13
. A análise dos dados lingsticos disponíveis
na rego das florestas de Uele mostra que o caso ngbandi é apenas o exemplo mais
conhecido de um movimento lento e amplo, que levou povos do oeste para o leste e
do norte para o sul. A complexidade da forma pela qual se deu o povoamento dessa
rego foi exposta por J. A. Larochette
14
; entretanto, ele subestima os movimentos
culturais e históricos que nela ocorreram.
Seria um equívoco atribuirmos todas essas expansões e contradições linguís-
ticas a migrações espetaculares. J. Costermans provou, quanto aos Bangba, que
sua história migratória consistiu num movimento errante de famílias que se
deslocavam muito lentamente; esse caso deve ser mais comum do que o de vastas
migrações, a respeito das quais, por sinal, o dispomos de provas diretas para
nenhuma parte desta região
15
. Fenômenos linguísticos de aculturação certamente
12 TANGHE, 1929, p. 2-37; BURSSENS, 1958, p. 43-4. Na verdade, porém, as tradições orais do grupo
ngbandi somente se referem à região do Chinko e Mbari.
13 DAMPIERRE, 1967, p. 156-81.
14 LAROCHETTE, 1958.
15 COSTERMANS, 1953.
635
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
também tiveram seu papel. Todos os pigmeus, por exemplo, adotaram línguas
do grupo sudânico central. Estudos aprofundados de ordem linguística, cultu-
ral e diretamente histórica poderiam ajudar a resolver pelo menos parte dessa
confusão, e as sequências culturais poderiam ser datadas através de investigações
arqueológicas. Enquanto aguardamos esses trabalhos, temos de nos contentar
com os limitados dados a que nos referimos.
A. de Calonne -Beaufaict, que trabalhou nessa região antes de 1914, sustentava
que até 1500 ela estava aquém da Idade do Ferro e contava que tinha visto pes-
soalmente machados polidos de hematita cravados em troncos de árvores muito
velhas. Essas pedras polidas, pedras de polir e meias -luas formam o Neolítico
ueliano, que poderia ter relação com indústrias semelhantes da atual República
Centro -Africana e até mesmo de uma área tão distante quanto a região central
da atual República Unida de Camarões. O arqueólogo F. van Noten conseguiu
provar, porém, que aqui deparamos com uma sobrevivência do emprego da pedra,
ao lado do uso do ferro. Com efeito, as ferramentas são fabricadas em hematita
contendo alto teor de ferro. É de se supor que a fusão do minério e a produção
de uma ferramenta a partir do ferro bruto não resultavam, em muitos casos, num
instrumento de qualidade muito superior, pelo menos se fosse levado em conta
o trabalho que era necessário para essa transformação. Por isso a ferramenta de
pedra com elevado teor de ferro conseguiu conservar -se em uso durante muito
tempo
16
. De qualquer forma, não é evidente que o aparecimento da técnica do
ferro bastasse para pôr fim, imediatamente, ao uso da pedra.
A grande oresta equatorial
A floresta o constituiu uma barreira, como imaginam tantos autores, entre as
savanas do norte e do sul, e sim um filtro. Pelo menos duas rotas a cortavam: uma
seguia a costa, enquanto outra era uma via fluvial, que partia do Kadei Sangha,
tomava os rios Ubangui e Zaire, até chegar ao lago Malebo (Stanley Pool). A
navegação marítima já era praticada antes mesmo do ano 1000, como demons-
tra a presença dos Bubi em Fernando Pó. Pode -se também argumentar que a
estatuária de madeira policromada dos povos que vivem ao longo do golfo da
Guiné ou de Benin, desde o território dos Yoruba até Loanga, indica a ampla
16 CALONNE-BEAUFAICT, 1921, p. 135; NOTEN, 1968; MARET, NOTEN & CAHEN, 1977, p. 486
e 498.
636
África do século  ao século 
difusão dessas cnicas transmitidas de lugar em lugar por via marítima
17
. Quando
os portugueses chegaram, toda a costa era povoada por pescadores. Quanto
ao sistema fluvial, a confluência dos rios Ubangui, Sanga e Zaire forma um
vasto mangue, de mata inundada, no qual somente pescadores conseguem viver.
Também aqui encontramos vestígios de influências que cruzaram a floresta,
tratando -se provavelmente de artigos trazidos por pescadores.
Deslocamentos pela oresta
Para citar apenas os exemplos mais conhecidos, observemos que, antes
mesmo do ano 1000, sinos simples, sem badalo, tinham cruzado a floresta.
Foram seguidos por sinos duplos do mesmo tipo, antes de 1450 (ver fig. 22.2);
estes se encontram em Ife, durante o período clássico, e em Zimbábue, por
volta de 1450. Tais produtos envolvem o conhecimento de uma metalurgia que
inclui a fabricação do ferro em placas e a solda. Os sinos duplos eram usados
para reproduzir os tons da linguagem falada e indicam a existência de línguas
tonais (bantu) na floresta e mais ao sul. Além disso, as funções desses objetos
eram análogas, desde a Nigéria até a Zâmbia: o sino duplo sempre constituiu um
símbolo, entre outros, da chefia política. As facas de arremesso também vieram
do norte para o sul, onde foram mencionadas por observadores, mais ou menos
em 1587. Outros objetos ainda – como porta -bilros, alguns tipos de faca e uma
espécie de tambor fendido para a transmissão de sinais foram encontrados
desde o Benin até, pelo menos, o lago Malebo, sem que possamos saber quais
vieram do norte, quais do sul. O que é mais importante nessa ampla difusão é
que ela mostra que a floresta e a savana meridional não estavam completamente
isoladas do resto do continente. Com os objetos também podem ter ido as ideias,
que atravessaram a floresta nos dois sentidos
18
.
O que aconteceu de mais importante na própria floresta, durante esse período,
foi a penetração e difuo da noção de chefe político”, como algo distinto do
chefe de parentela”. As línguas mongo traduzem o direito do sangue pelo termo
mpifo, enquanto usam a palavra okofo para exprimir o direito do primeiro ocupante,
do dono da terra. Entre os Mongo, as senhorias”, ou linhagens nas quais era bem
marcada a autoridade do chefe, desenvolveram -se desde muito cedo. O mpifo, ou
17 OLBRECHTS, 1941. Esse autor observou tais fenômenos, mas atribuiu-os, erroneamente, ao período
posterior à chegada dos portugueses.
18 VANSINA, 1969; CORDELL, 1973.
637
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
senhor”, que conseguisse aumentar seus rendimentos, formar umaclientela de
pessoas a quem alimentava e impor -se a outros senhores”, tornava -se rei.
A organização social na oresta e nas clareiras
Antes de 1500 também houve uma expansão lenta, mas considerável, dos
povos que se expressavam em línguas de tipo mongo, pelo sul dos rios Sankuru
e Kasai. Alguns grupos efetuaram uma profunda penetração pelos dois lados do
rio Loanga, no território entre o Loanga e o Kasai, e nas duas margens do rio
Kamsha. Quanto à passagem do norte para o sul, do rio Lukenye até o Sankuru,
depois mais para o sul até o rio Lulua, dispomos de provas, sob a forma de tra-
dições orais examinadas por análise linguística. Foi possível reconstituir o modo
F . Sino duplo de ferro, de Mangbetu (Zaire). (Foto Museu Real da África Central.)
638
África do século  ao século 
de vida vigente nessas pequenas chefarias, ou nkumu. O chefe é assistido apenas
por um capitão -de -guerra. É comum encontrar aldeias dirigidas por conselhos
de anciãos que também assistiam o chefe. A nível de aldeia, talvez houvesse
dois porta -vozes, um para cada lado da rua central. As relações com os pigmeus
eram ambivalentes. Alguns grupos parecem ter vivido em simbiose, enquanto,
em outros casos, agricultores e pigmeus chegavam a guerrear. Quanto à estru-
tura social, observa -se a quase identidade de conceito entre idade e autoridade e
uma alternância nítida das gerações. Em comparação com os Mongo em geral,
esses grupos meridionais haviam começado a estabelecer regras ligadas à aliança
matrimonial, o que diminuía a importância da linhagem primária enquanto
grupo constituído e fortalecia a unidade territorial. No plano econômico, os
fatos mais dignos de nota eram o cultivo do sorgo (milhete) nos trechos de
savana que existiam em meio à floresta, e a conhecida habilidade dos povos que
nela habitavam na metalurgia do ferro. Os Songye assim admitem que foram os
Kuba, oriundos da floresta, que os ensinaram a fundir o ferro; isso pode ser ou
não verdade, mas a documentação etnográfica mostra que a metalurgia do ferro
estava bem implantada no meio florestal. Queimando árvores de madeira muito
dura, os homens da floresta conseguiam produzir temperaturas muito elevadas,
e já haviam até descoberto como fabricar o aço
19
.
A história da floresta que vai do Gabão, pelo Camarões, até a República
Popular do Congo ainda é muito pouco conhecida. Grupos se deslocaram do
norte de Sanaga até o sul da atual República Unida de Camarões; é o que se
costuma chamar de migração pahwin”, mas que foi, na verdade, um movimento
bastante vagaroso, cujo começo se deu antes de 1500
20
. Mais ou menos por volta
dessa data, estruturas políticas de tipo nkumu se desenvolveram nessa região.
Finalmente, sabemos que boa parte da floresta do nordeste do Gabão prova-
velmente não foi habitada, ou pelo menos não o foi por agricultores, que se
conservou como mata primária até tempos recentes.
No Maniema, a leste do curso superior do rio Zaire, houve outros movimen-
tos lentos de população, mas que ainda não foi possível datar. Também aqui os
movimentos resultaram de uma forte mobilidade de grupos minúsculos que
conheciam a agricultura, continuavam a praticar a pesca e absorveram comuni-
dades inteiras de caçadores pigmeus.
Antes de 1500, a parte meridional do Maniema certamente abrigava os
antepassados dos povos lega. É possível que, por essa época, eles tivessem
19 VANSINA, 1978, p. 90-103 e passim.
20 LABURTHE-TOLRA, 1977, p. 79-414.
639
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
desenvolvido associações sociopolíticas conhecidas como bwami. Estas consis-
tiam numa hierarquia complexa de graus; os membros do grau superior exerciam
autoridade coletiva, política e moral sobre toda a região que participava da sua
bwami. Supõe -se que foi a partir dessas associações (bwami) que alguns grupos
interlacustres ocidentais, que viviam entre os lagos Kivu e Tanganica, no pilar
ocidental da fossa tectônica, teriam elaborado suas noções de chefaria e de reino.
Mais uma vez, portanto, o impulso inicial para a definição de estruturas políticas
veio da floresta. Associações similares da região florestal podem também estar
na origem das senhorias” eletivas que os Songye desenvolveram, mais ao sul.
Se a conexão for mesmo do norte para o sul, esse processo igualmente dataria
do período anterior a 1500
21
.
As savanas de Shaba
Nas savanas ao sul da bacia, distingue -se claramente uma tradição oriental
e outra ocidental da costa atlântica. A primeira pode até subdividir -se em uma
tradição luba e uma outra, do alto Kasai e do alto Shaba. Ricas tradições narram
como nasceram os impérios luba e lunda. Mas que crédito merecem? Alguns
as consideram mera fantasia, ou que refletem e justificam estruturas do século
XIX. Luc de Heusch entende que são mitos, porém mitos forjados quando da
formação dos impérios
22
. Na verdade, esses juízos não se baseiam na análise das
tradições, cujo estudo do valor documental ainda está por ser feito.
O principal sítio que comprova um desenvolvimento precoce das técnicas
metalúrgicas é o de Sanga; mas, antes de propor qualquer cronologia, precisa-
mos aguardar os resultados finais das investigações arqueológicas. podemos
afirmar, porém, que desde o culo XI da era crisse encontram sinais de
considerável diferenciação social, confirmação indireta de que ocorria um for-
talecimento das chefarias. Muito cedo se estabeleceu uma rede comercial que ia
dos lagos do rio Lualaba até o curso médio do Zambeze, na qual serviam como
moeda as cruzetas de cobre. Essas cruzetas apareceram pela primeira vez no
Cinturão do Cobre (atual fronteira entre a Zâmbia e o Zaire) entre os séculos
IX e XII da era cristã, logo depois de começar nessa região a Idade do Ferro
Recente. Como sabemos que o sítio de Ingombe Ilede mantinha ligações com
21 Ver BIEBUYCK, 1973, p. 11-2 e passim, a respeito da bwami. Esses exemplos provam que a oresta foi,
em muitos casos, um foco de irradiação cultural.
22 HEUSCH, 1972.
640
África do século  ao século 
F . Jarra antropomórca (período Kisaliense).
641
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
o comércio da costa oriental, restam poucas dúvidas de que essa rede regional
estivesse em contato com a do oceano Índico desde antes de 1500
23
.
A tradição oral menciona chefesluba no Malavi e na Zâmbia setentrional,
central e oriental em diversas épocas, sendo as datas propostas para o Malavi as
mais antigas. São as mesmas fontes que nos falam da fundação de Estados luba e
lunda; graças aos trabalhos de J. C. Miller
24
, sabemos que um Estado lunda exis-
tia antes de 1450. É possível que pequenos grupos de artesãos tenham emigrado
para essas regiões; o comércio regional provavelmente favoreceu tal expansão.
Os reinos luba e lunda
As fontes orais e o conhecimento do país
Nas savanas meridionais, os reinos luba e lunda definiram -se precocemente.
Essas formões estatais se desenvolveram perto dos lagos do Lualaba.
Shaba, região mineira também rica em recursos agrícolas, bem cedo viu nas-
cerem chefarias que, estruturando -se, deram origem a reinos. As facilidades
para o comércio, nessa região de savanas, também podem haver estimulado o
surgimento de Estados.
Foram os Luba e os Lunda os primeiros a organizá -los. A esse respeito, a maior
parte das informões de que dispomos provém das tradições orais, particularmente
abundantes nestes dois grupos. Por enquanto não dispomos, porém, de um corpus
consolidado de suas tradições, que ainda estão sendo coletadas.
Reza a tradição que o reino luba foi fundado por um certo Kongolo, que
instalou a capital perto de Kalongo; esse mito luba de origem, combinado com
outras tradições, fornece informações úteis sobre a cultura, senão sobre a história,
dos Luba. Estima -se, vagamente, que o Estado luba tenha aparecido antes de
1500. Resultou da fusão de diversos clãs sob a autoridade de um chefe único.
Não se conhece bem a organização política do reino; o que está certo é que seus
súditos se organizavam em patrilinhagens. Cada linhagem possuía suas aldeias e
seus chefes tinham escravos. O kiloto, ou chefe de linhagem, reconhecia a autoridade
do rei. O monarca estava rodeado de funcionários; destes, conhecem -se pelo menos
dois: o guarda dos emblemas, conhecido como inabanza, e o chefe militar, ou
23 PHILLIPSON, 1977, resume todos os dados anteriores a 1977. MARET, NOTEN & CAHEN, 1977,
p. 487-9. Ver também o capítulo 21 deste volume, a cargo de Brian M. Fagan.
24 MILLER, J. C., 1976.
642
África do século  ao século 
twite. A realeza luba fundava -se no princípio de bulopwe, ou “caráter sagrado”,
inerente ao sangue real, que os Luba chamavam de mpifo
25
.
Os recursos em sal e metais da região de Shaba favoreceram o comércio, a
miscigenação e o surgimento de grandes aglomerações. Desse ponto de vista,
prosseguiu a evolução constatada no primeiro milênio. A introdução dos sistemas
25 VANSINA, 1966b, p. 71-87; ROBERTS, 1976, p. 36-41; REEFE, 1977, nega as inuências luba sobre
os Lunda; mas devo observar que J. Hoover (em comunicação pessoal) e Ndua Solol não aceitam seus
argumentos. LANGWORTHY, 1972, p. 28-30 e também 21-7.
F . Túmulo de Kikulu (KUL -T), com uma cruzeta de metal claramente visível no tórax (túmulo
de Kabambian A, séculos XIV -XVI).
643
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
F . Conteúdo de um túmulo kisaliense clássico, no sítio de Kanga (século XII).
F . Estátua “Ntadi Kongo”,
de pedra, de Mboma, baixo Zaire.
(Fotos das gs. 22.4 a 22.6 P. de Maret,
Museu Real da África Central.)
644
África do século  ao século 
de parentesco patrilinear, dando maior ênfase à pureza do sangue, favoreceu a
implantação de senhorias nas trilinhagens reinantes e facilitou a coesão territorial.
O princípio sagrado dos Luba, o bulopwe, ainda está vinculado ao sangue real.
Instituições políticas
Aqui o princípio ideológico do reino luba se distingue nitidamente dos princípios
políticos songye. Os Songye tinham uma realeza eletiva, fundada na riqueza das
linhagens; muitas vezes a conferiam por prazo determinado, fazendo -a depender
tamm do conselho de uma associão esotérica, o bukinshi. As associações esoté-
ricas constituíam o mecanismo do governo entre os Luba orientais, matrilineares.
Geograficamente, tudo isso se revela bastante próximo do mundo lega da floresta,
e somos tentados a ver uma ligação entre a bwami e estas formas de governo
ligação muito diferente dos elos (culturais) que existiram entre os Songye e os
Luba centrais. A invenção do bulopwe teria ocorrido entre estes últimos, talvez
na região dos lagos do Lualaba. Houve, aliás, vários reinos luba; além de Kikonja,
na região dos lagos, sabemos da existência da senhoria kalundwe
26
.
Quanto aos Lunda, pode -se admitir até que se prove o contrário que toda
a região que se estende do alto Kwango ao alto Kasai meridional e às regiões
adjacentes da Zâmbia praticava o sistema de parentesco perpétuo, um sistema
complexo segundo o qual o sucessor “se tornava” seu predecessor, assumindo seu
nome, suas relações de parentesco, seus encargos e prerrogativas
27
. O sistema
negava, assim, a passagem do tempo, para garantir uma coerência sem falhas e
a continuidade de toda a ordem social. Permitia a perpetuação das relações de
poder derivadas de alianças matrimoniais, conquistas, integração, e de acordos
mútuos ou “fraternos” entre os chefes. Depois de 1500 se revelou poderoso
instrumento na montagem de um autêntico império, congregando vários reinos
sob a autoridade dos Lunda.
Devemos observar que essa região situada entre o Kasai e o Kwango é pobre
em recursos naturais e provavelmente era pouco povoada, enquanto a leste, entre
o Lualaba e o Luapula, estavam sendo exploradas salinas e jazidas de cobre.
Mais para o sul, o vale superior do Zambeze dispunha de mais recursos que o
território lunda, porém menos ainda que o sul de Shaba. Nesta região, porém,
26 WILSON, A., 1972,o acredita que tenha existido um Estado luba de grande extensão territorial antes
de 1800. Mas sua tese é parcialmente desmentida por YODER, 1977, p. 67-97 e 120-53. Para o caso
de Kuaba, ver YODER, 1977, p. 56-7 e comparar com WEYDERT, 1938, e WAUTERS, 1949. Ver
também FAIRLEY, 1978, sobre os Benekie. REEFE, 1981, é a obra mais recente sobre a questão.
27 MILLER, J. C., 1972b, p. 45-68, 81-2, 166-8.
645
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
haveria de se constituir um Estado complexo: o Estado lozi. Pode -se admitir
que sua fundação tenha sido parcialmente inspirada nos Lunda, mas não se sabe
em que data ele se expandiu
28
.
Angola
Na bacia do Lui, um afluente do alto Kwango, as chefarias se desenvolveram
cedo, bem antes de 1500, e seus habitantes eram governados pelos Pende. Também
aqui J. C. Miller um crescimento constante da dimensão das chefarias
29
. Na
região do rio Lui havia muitas salinas.
Finalmente, o mais tardar pouco depois de 1500, viu -se no planalto ao sul
de Libolo um Estado kulembe, que talvez tenha sido uma das primeiras for-
mações estatais dos Ovimbundu. Sua organização era diferente: caracterizava -o
uma associação de iniciação militar, o quilombo (kilombo). Foi em Libolo ou
em Kulembe que começaram a ser construídas as tumbas de pedra, das quais
hoje só restam ruínas, que ainda não foram adequadamente escavadas. Quanto
aos outros Ovimbundu, talvez também conhecessem a instituição do kilombo,
que se encontra na tradição relativa à fundação de Humbe, Estado cuja data de
formação desconhecemos, situado no sul de Angola. Ou, quem sabe, o kilombo
pode ter sido introduzido em Humbe pelos Imbangala, que somente no século
XVI vieram a constituir uma etnia diferenciada. Os Ovimbundu falam uma
língua bantu do sudoeste, e alguns grupos, como os Huambo, indicam a borda
sul do planalto como seu lugar de origem, especificamente um lugar chamado
Feti, para o qual as escavações dão as datas de 710 ± 100 e 1250 ± 65. A última
data se refere certamente ao grupo ovimbundu, mas é possível que o mesmo
valha para a data anterior. As escavações precisam, portanto, ser retomadas
nesse local. É possível que a formação de alguns dos 14 Estados ovimbundu
tenha começado antes do século XVI; a língua, a presença do gado e o sistema
de parentesco ligam essa civilização à dos povos de língua bantu da Namíbia e
do sul de Angola.
Estes últimos povos se dividiam em três ramos principais: os Nyaneka -Humbe,
os Ambo e os Ovaherero. Os primeiros, culturalmente muito próximos dos
Ovimbundu, não se organizaram em Estados importantes, com exceção dos
28 MAINGA, 1973, p. 16-21; PRINS, G., 1980.
29 MILLER, J. C., 1972b, p. 55-88; HEINTZE, 1970 e 1977, p. 754-62. (Este último artigo critica certas
teses de J. C. Miller.)
646
África do século  ao século 
Humbe. Agruparam -se, basicamente, em numerosas chefarias menores. Os
dois outros grupos também estão presentes na Namíbia. Os Ambo praticavam
a agricultura, mas sua principal atividade econômica era a criação do gado de
chifres longos. Sua organização política consistia, no século XIX, em 12 Estados,
dos quais três possuíam considerável poderio militar. Os chefes reinavam de suas
capitais fortificadas. Todos os cargos eram hereditários pela linha materna. O
poder tinha por distintivos a posse do fogo sagrado e a do gado, servindo esta
última também de fundamento para a estrutura econômica. Os Ovaherero eram
nômades, como os seus vizinhos, os Khoi da Namíbia, vivendo dos rebanhos
de bovinos e ovinos, da coleta e da caça. Da mesma forma que os Khoi, até
o século XIV não utilizavam o ferro. Mas eram de língua bantu, e sua dupla
ascendência os distinguia dos Khoi. Finalmente, no sul de Angola e no norte da
Namíbia também havia grupos de caçadores San, e alguns caçadores negros, os
Twa – entre os quais se incluíam os Bergdama (“negros da montanha”), ferreiros
da Namíbia –, que falavam línguas khoisan
30
.
Esta era a situação da região, por volta de 1850. Que história tinham esses
povos? Os Nyaneka -Humbe dizem -se autóctones, enquanto os Ambo e os
Ovaherero afirmam ter vindo do leste. Pode -se admitir que tenham vindo do
rio Zambeze, e, com o gado que adquiriram, tenham seguido o rio Cubango
rumo ao oeste. Quanto aos ovinos, os Ovaherero devem -nos aos Khoi a não
ser que datemos sua migração da primeira metade do primeiro milênio, o que
parece ser exagerado. Em todo caso, as pinturas rupestres associadas com car-
neiros mostram indivíduos que só podem ser khoi. Os Ambo assimilaram muitos
caçadores twa e o m problemas em reconhe -lo, enquanto os Nyaneka -Humbe,
que integraram caçadores tanto twa quanto de outras provenncias o especificadas,
sentem vergonha em confes -lo. Também os Ovaherero parecem ter assimilado
muitos Twa, porque Kaokovela, que os Ovaherero meridionais ocupam uns
duzentos anos, chama -se na verdade Otwa, “território dos Twa”.
Houve um momento, pois, em que os caçadores negros de cultura san, que
ocupavam a costa até 13° de latitude sul, contornaram pelo sul o planalto central
para se juntarem, a leste, a outros grupos san. Ao sul, ocuparam toda a costa
setentrional da Namíbia. No interior, tiveram vizinhos san e khoi. Alguns desses
grupos adquiriram a arte de fundir o ferro. Pode -se supor que foi nessa época
que os grupos de nguas bantu do sudoeste ocuparam o planalto central de
Angola, alguns pontos no sul e no próprio oeste, enquanto a leste foram viver
30 Ver ESTERMANN, 1960, e VEDDER, 1938, assim como HAHN, VEDDER & FOURIÉ, 1966.
647
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
nos vales de Angola oriental, deixando para os San os espaços entre os rios.
Rumo ao norte e às nascentes do Cuito e do Cuando, onde o território é mais
bem irrigado, havia povos de agricultores, que culturalmente estavam na Idade
do Ferro e linguisticamente pertenciam ao grupo lunda -guanguella -cokwe. Os
Ovaherero e os Ambo ainda viviam nos vales.
As savanas do sudoeste
Os portugueses encontraram dois grandes reinos na costa, os do Kongo e
Loango, e outro no interior, o reino tio do “Grande Makoko”. As tradições
registram que os dois primeiros se formaram pela fusão gradativa de Estados
menos importantes e que a dinastia de Kongo se origina no norte do rio, não
muito longe da dinastia de Loango. Pode -se supor que esses reinos tenham
nascido entre os séculos XIII e XIV. De acordo com O. Dapper, todos esses
reinos se originaram nas regiões a norte do lago Malebo, isto é, onde era o
reino dos Tio. Essa afirmação é plausível, menos porque uma tradição relativa
a uma mesma pessoa ou lugar (Ngunnu) liga os povos de Tio, Loango e Kongo
– tradição essa que provavelmente tem um caráter apenas etiológico –, do que
porque a sucessão à chefia do Estado é bilateral entre os Tio e os Kongo, o que
representa um caso único na África, quiçá no mundo. Segundo essa tradição,
qualquer descendente de um dos reis anteriores poderia – em teoria – pretender
o trono em igualdade de condições com todos os demais. Notemos, ainda, que
o berço dos Kongo foi logo a oeste do Manianga, sob o regime bateke (tio).
Se for verdadeira essa origem comum, então os primeiros Estados a norte
e noroeste do lago Malebo deviam existir antes do século XIV talvez até
mesmo antes do ano 1000. Somente as escavações nos primeiros cemitérios
conhecidos das dinastias kongo, vili e tio, assim como de Mbanza Kongo (São
Salvador), poderão nos proporcionar uma data e um contexto mais definidos.
É razoável supor que as civilizações dessa região tenham começado a adquirir
caráter próprio no norte, na orla da floresta, ou na floresta de Mayombe. Essas
civilizações se adaptaram à savana e, nos planaltos bateke, até mesmo à estepe. A
sua expansão, inclusive a das línguas, mostra uma vez mais um “inchaço a partir
de dois centros primordiais, um para os Kongo e outro para os Tio (Bateke).
Os Kongo se espalharam ao sul do rio; os Vili de Loango se disseminaram
ao longo da costa, nos rumos norte e nordeste, até o rio Ngunie, afluente do
Ogoue; finalmente, os Tio, que vinham da orla da floresta (na região próxima
648
África do século  ao século 
ao equador), ocuparam todos os planaltos que encontraram no caminho do sul,
das florestas do Gabão e da região das cataratas do rio.
Ao ser registrada pela primeira vez, em 1624, a tradição kongo mencio-
nou um período de ocupação gradativa das terras ao sul do rio, no terririo
dominado pelas chefarias ambundu (ou ndembo). O Kongo conquistou tais
chefarias até Matamba e Ndongo, reduzindo -as, pelo menos, à condão de
triburios irregulares pois o reino propriamente dito terminava, segundo
parece provável, em Loje; mas também incluía a costa a Luanda, a sua ilha
e a parte do continente situada entre os rios Cuanza e Bengo. Dispomos
de menores detalhes quanto à conquista ou formação de Estados em outras
regiões, embora exista uma relão das senhorias independentes que foram
incorporadas para formar as províncias centrais de Loango. Pode -se reco-
nhecer nelas uma evolão política bastante regular, mas não há informações
relativas às etapas que antecedem o surgimento das grandes senhorias, como
Ngoi, Kakongo, o núcleo de Loango, Bungu, Nsundi e Mbata. É de se presu-
mir que se tenha seguido o mesmo roteiro -padrão que na floresta equatorial:
grandes aldeias matrilineares com chefes e conselheiros (um por linhagem);
formação de chefarias em consequência de casamentos entre aldeias e, talvez,
de conquistas ou de supremacia espiritual (usando -se encantamentos, espíritos
etc.); e, finalmente, uma sorte diversa, que fez algumas chefarias crescerem e
outras desaparecerem, durante o processo de constituão de pequenos reinos
como os já mencionados.
Por toda parte se encontra o culto dos esritos (ligados à terra) e dos
ancestrais, considerados, uns e outros, como deuses. O comércio parece ter -se
desenvolvido cedo também nessa região, pois em 1483, quando chegaram os
portugueses, já circulavam moedas. Existia uma aristocracia, e os trabalhos
agrícolas eram efetuados por escravos. As escavações realizadas na ilha de
Mbamu e no Kinshasa podeo nos fornecer datas mais precisas para esses
fatos.
O reino do Kongo antes de 1500 e suas instituições
31
O Kongo merece uma descrição mais longa, não porque fosse o Estado
de maior extensão ou poder, mas por ser o mais conhecido da tradição. Nimi
31 Ver RANDLES, 1968, para a bibliograa mais completa e a descrição mais exata que foram feitas
sobre essa questão.
649
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
Lukeni fundou -o quando cruzou o rio, depois de deixar Bungu, no Mayombe, e
foi conquistar a chefaria ambundu de Mbanza Kongo. Ali ele dividiu” o poder,
e, em seguida, conquistadores e nativos se misturaram, os nobres com os nobres,
a gente comum com a gente comum”.
Também dispomos de uma interessante Descrição do reino de Congo e das suas
terras circunvizinhas, de autoria de dois escritores do fim do século XVI, Filippo
Pigafetta e Duarte Lopes:
O reino divide -se em seis províncias: Bamba, Sogno, Sundi, Pango, Batla e Pemba.
A província de Bamba, a mais extensa e rica, é governada por Dom Sebastião Mani
Mamba, primo do Rei Dom Álvaro, que faleceu recentemente; es situada na
costa do rio Ambrize, em direção ao sul, até o rio Coanza; nela há muitos senhores
dependentes, dos quais os mais importantes são Dom Antônio Mani Mamba, irmão
de Dom Sebastião e seu lugar -tenente, Mani Lemba, Mani Dandi, Mani Bango,
Mani Luanda, que governa a ilha de Luanda, Mani Corimba, Mani Coanza e Mani
Cazzani. Todos esses senhores exercem sua autoridade sobre as partes litorâneas do
reino. No interior, para o lado de Angola, ouvimos falar dos Ambundo, que também
estão sob a responsabilidade de Mani Bamba: são os Angasi [Ngasi], Chinhengo
[Kungengo], Motolo, Cabonda e muitos outros de sangue menos nobre. Observai
que a palavra mani quer dizer ‘senhor’ e a segunda parte do nome indica a região ou
senhoria. Assim, por exemplo, Mani Bamba quer dizer ‘Senhor da região de Bamba
e Mani Corimba, ‘Senhor de Corimba’, sendo que Corimba é uma parte de Bamba,
e o mesmo vale para todos os demais senhores (...)
Bamba, como dissemos, é a principal província do Congo; ela é a chave do reino,
seu escudo e espada, sua defesa, seu bastião contra o inimigo (...) Seus habitantes
são corajosos e estão sempre dispostos a tomar armas, e a repelir os inimigos que
lhes vêm de Angola (...) Em caso de necessidade, pode -se reunir um exército de
quatrocentos mil homens
32
.
Essa passagem nos descreve com suficientes detalhes as divisões administra-
tivas. Seguramente são exageradas as cifras relativas ao exército que o rei poderia
recrutar em Bamba, mas indicam, pelo menos, que o país era densamente povo-
ado e possuía sólida estrutura administrativa. O mani, ou governador, residia em
Banza, que era o nome dado à residência do chefe
33
.
32 PIGAFETTA & LOPES, 1965.
33 DAPPER, 1668, p. 219; VANSINA, 1973, p. 339 e 345; RANDLES, 1968, p. 17-25; MARTIN, P.,
1972, p. 3-11.
650
África do século  ao século 
Governo e organização provincial
O rei do Kongo exercia grande autoridade, mas não um poder absoluto.
Competia -lhe a nomeação dos governadores, excetuado o de Mbata, que era
eleito pelo povo e os dignitários da família Nsuku, com a confirmação real”. Na
província de Soyo, a função de governador era hereditária. Parece que, antes de
1500, o soberano do Kongo governava um reino cujo território era muito mais
extenso, o que explicaria por que continuou a reivindicar sua soberania sobre
Kisama, Ngoi, Kakongo, Loango e as chefarias e reinos de Teke e Suku.
Os governadores coletavam impostos e tributos, que depois encaminhavam
ao rei. O tributo compreendia o nzimbu (conchas usadas como moeda), qua-
drados de ráfia (que também serviam de moeda), sorgo, vinho da palma, frutas,
gado, marfim e peles de animais (de leopardo e leão). Como se vê, os tributos e
impostos comportavam uma parte em moeda, outra em víveres, uma em produ-
tos comerciais e ainda uma simbólica (as peles de leão e leopardo) .
Por volta de 1530 o rei do Kongo ainda reclamava a soberania sobre Kisama,
Ngoi, Kakongo, Loango, as chefarias e reinos teke, Kongo ria Mulaza (perto
do rio Kwango) e Suku. Mas essas alegações provavelmente não passavam de
ficção. Em 1483, o cerne do reino compreendia seis províncias: Soyo, entre o
rio e o oceano; Mbamba, ao sul de Soyo; Nsundi, no nordeste; Mbangu, ao sul
de Nsundi; Mbata, no leste; e Mbemba, com a capital, no centro. Além disso,
também dependiam diretamente do rei algumas chefarias cujo território chegava
até o Wembo e, talvez, até o Wando.
O rei era assistido por um corpo administrativo central, cujos membros ele
podia demitir. Na capital, esse órgão incluía o chefe do palácio, que tinha os
encargos de vice -rei, um juiz supremo, um coletor de impostos com os seus
tesoureiros, um chefe de polícia, um chefe dos mensageiros, e ainda outra alta
personagem, conhecida como punzo, de cujas funções nada sabemos. Isso deve,
aliás, fazer -nos lembrar que os manuscritos nos falam das funções que eram
facilmente compreensíveis para os europeus que os redigiam. Fora desse corpo
ainda havia o senhor kabunga, que desempenhava as funções de sumo sacerdote e
cujo antepassado fora senhor de terra na área da capital, antes de Nimi Lukeni.
Os governadores das províncias eram muitas vezes parentes imediatos do
rei, que confiava o Nsundi e o Mbangu a seus filhos favoritos. Assim, estes
dispunham de sólida base para disputar a sucessão, quando da morte do pai. Os
governadores nomeavam os senhores menores, que, por sua vez, davam ordens
aos nkuluntu, chefes hereditários das aldeias.
651
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
As tumbas dos ancestrais ficavam bem perto da capital e eram veneradas.
O poder era sagrado, mas não a pessoa do rei, embora lhe dessem o nome de
nzambi mbungu, “espírito superior”. O rei não era como o comum dos mortais.
Cometendo incesto com a irmã, tornava -se sem família o que o capacitava,
e somente a ele, a governar todas as famílias com justiça e imparcialidade. Esse
ato e sua iniciação lhe conferiam formidável poder sobre os encantamentos, que
era comparável ao dos feiticeiros. Suas insígnias incluíam, entre outras coisas,
um chapéu, um tambor, um bracelete de cobre ou marfim, a bolsa dos impostos
e um trono em forma de banquinho quadrado – objetos que simbolizavam sua
posição de primeiro senhor do reino e detentor de um poder supremo que o
separava dos demais homens. Uma etiqueta complexa salientava a preeminência
e o caráter singular do soberano.
Podemos dizer que conhecemos bem a capital do Kongo e a vida na corte
no século XV, graças às descrições pormenorizadas de F. Pigafetta e D. Lopes.
Contudo, o sítio da capital ainda não foi submetido a escavações rigorosas.
Embora a capital do reino do Kongo esteja, de certa forma, englobada no território de
Pemba, a cidade e seus arredores, numa circunferência de umas 20 milhas, o governados
pelo rei em pessoa e podem ser considerados como um distrito à parte... Na ngua do
país, [a cidade] é chamada Banza, o que quer dizer, de modo geral,corte, residência do
rei ou governador’
34
.
Situando -se quase no centro do reino, a capital era uma praça -forte, da qual “se
pode enviar rapidamente socorro a qualquer região”. Cidade bem construída,
cercada de muralhas de pedra, Banza que os portugueses batizaram de São
Salvador – era também uma grande metrópole comercial, onde se encontravam
as principais rotas comerciais provenientes da costa e do interior.
Teoricamente, o rei devia ser eleito e aconselhado por um colégio de eleitores,
composto de nove ou doze membros. O senhor kabunga tinha direito de veto
sobre suas deliberações, e o governador de Mbata, inelegível para a realeza, era
seu membro nato (como depois também foi o governador de Soyo). Provavel-
mente, os demais eleitores não pertenciam à família real. Na verdade, porém, o
mais das vezes eles se limitavam a referendar o nome do filho do defunto que
parecia dispor de maiores poderes, quando da morte do rei seu pai. Durante o
reinado, esse conselho, que poderia incluir membros do corpo administrativo,
tinha o direito de supervisionar o rei, especialmente nas questões referentes
34 PIGAFETTA & LOPES, 1965, p. 78-9.
652
África do século  ao século 
à guerra, à nomeação ou deposição de governadores, e ao comércio (era sua
incumbência declarar abertas ou fechadas as estradas).
O pagamento de salários” aos funcionários comprova que a produção era
comercializada, e que o Estado a controlava, assim como também supervisio-
nava a oferta de conchas nzimbu. Deve ter havido longo período de intenso
desenvolvimento comercial; os artigos trocados parecem ter incluído tanto obje-
tos necessários como ferramentas de ferro, cerâmicas, sal marinho, esteiras
e cestos quanto bens de prestígio, que englobavam joias de cobre e marfim,
quadrados de ráfia e tecidos de fibra originários do litoral. Se havia escravos,
seu tráfico deve ter sido bastante restrito antes de 1483. É de se notar que não
existia especialização em tempo integral em nenhuma atividade de artesanato
e que as duas especialidades mais prestigiadas tecer a ráfia e fundir o ferro
reservavam -se à nobreza.
As principais rotas de comércio levavam à capital: de Luanda lhe vinham
os nzimbu; do baixo Zaire chegavam o sal marinho e outros produtos locais
(peixes, cerâmicas, cestos); do lago Malebo provinham a ráfia e outros artigos da
região, especialmente cerâmicas; uma quarta rota servia ao transporte de cobre
do Mbamba, e talvez de cobre e chumbo obtidos ao norte das cataratas do rio;
finalmente, outra estrada trazia artigos de Matamba.
É essencial proceder a escavações em São Salvador, em Kinshasa, nas capitais
provinciais, na ilha de Luanda e nos demais lugares onde se pode suspeitar da
existência de um mercado, para que tenhamos uma ideia mais precisa sobre a
vida econômica do reino antes de 1483.
A sociedade
Pouco sabemos da estrutura social da época. Sequer o princípio matrilinear es
claramente atestado, embora se possa supor que ele existisse. temos segurança
quanto à sucessão régia, porque o nome do primeiro rei era composto de um nome
vinculando -o ao pai e de outro ligado ao pai de sua e. Ambos os nomes, porém,
o de clãs ainda conhecidos, como o de Mbata o que nos faz supor que houvesse
grupos de descendência unilinear, quase certamente matrilineares.
Tamm se sabe com certeza que as aldeias, dirigidas por nkuluntu, eram peque-
nas e diferenciadas dos centros, cujo governo cabia a senhores. As capitais provinciais
parece que tinham o estatuto de cidades, e de fato é esse o nome que os textos o a
Mbanza Kongo, à residência do governador de Soyo e, mais tarde, a Kinshasa.
A estratificação social é nítida. Existiam três ordens: a aristocracia, os homens
livres e os escravos. A aristocracia formava uma casta, pois seus membros o podiam
653
A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados
casar -se com plebeus. No interior das duas ordens livres, os casamentos serviam de
instrumentos de aliança entre as famílias; parece que existiam casamentos prefe-
renciais. Na aristocracia, distinguiam -se os kitomi, antigos senhores do chão (ou da
terra), que eram, nas províncias, o equivalente do kabunga da capital; provavelmente
eles formavam uma aristocracia vinculada aos demais senhores por casamentos
preferenciais análogos aos que uniam a dinastia ao Mbata e ao kabunga.
Conclusões gerais
A época de 1100 a 1500 somente será mais bem conhecida quando se efetuarem
escavações intensas e se obtiver um progresso considerável nas investigações
linguísticas e etnográficas.
A impressão geral produzida pelo que conhecemos leva a duas constata-
ções básicas: a importância da floresta, onipresente, poderosa força ecológica; o
precoce desenvolvimento de sistemas estatais. O segundo ponto já se suspeitava,
pois, após o término das migrações e das agitações por elas causadas, após a
introdução da metalurgia do ferro, era de se esperar que se formassem reinos.
A imporncia da floresta, porém, a hoje foi totalmente desconhecida.
Não se compreendeu que uma floresta intercalada de savanas, assim como a
orla da floresta, forneciam um meio ambiente duplamente rico, comparável ao
das matas ciliares que se encontram ao sul e ao norte. Em especial, a formação
de todos os Estados mais antigos pode ser atribuída a um ambiente desse tipo,
excetuando -se o centro luba primitivo que, porém, também dispôs de condi-
ções geográficas das mais favoráveis, com seus lagos, suas baixadas, que deviam
ser parcialmente cobertas de florestas, e suas savanas.
Notemos, para terminar, que nem todas as fontes posveis foram trabalhadas:
o estudo sistemático das tradições e dos mitos de origem, a pesquisa linguística e a
investigação arqueológica ainda eso comando. Grandes perspectivas se abrem
para a investigão histórica nessa rego que, durante muito tempo, se supôs não
possuir documentos.
C A P Í T U L O 2 3
655
A África meridional: os povos e as formações sociais
A África meridional:
os povos e as formações sociais
Léonard D. Ngcongco em colaboração com Jan Vansina
A historiograa e o problema das fontes
A história da África meridional apresenta muitos problemas. Por isso a
Unesco, responvel pela Hisria geral da África, promoveu, em 1977, em
Gaborone (República da Botsuana), o encontro de um grupo de especialistas
em historiografia da África meridional. A atual situação potica da região o
favorece a pesquisa hisrica. Devido ao apartheid, a história dos povos negros do sul
do Limpopo foi menos estudada que a de outras populões africanas. No volume
VIII da presente obra, o problema do apartheid será tratado no contexto da África
contemponea, mas cabe aqui também examinar seus efeitos nefastos para a
historiografia da região.
A tendência a centrar os estudos no passado da minoria branca dominante acentuou -se
com as posições gidas adotadas pelas universidades e editoras sul -africanas em geral,
que se recusaram a aceitar a validade de fontes não escritas para a reconstrução histórica
1
.
Além disso, os historiadores brancos da República da África do Sul recusam o
concurso de ciências como a arqueologia, a antropologia e a lingstica. Ainda mais
rio é o fato de os historiadores oficiais do ps do apartheid escolherem nos arqui-
vos material concernente apenas aos brancos, deixando deliberadamente de lado
1 NGCONGCO, 1980, p. 17.
656
África do século  ao século 
os documentos referentes aos povos africanos. Para finalizar essa caracterização da
historiografia da região sob o donio do apartheid, observemos que
os ricos arquivos portugueses, que tanto contribuíram para a compreensão da história
de muitas sociedades da África oriental, principalmente das litorâneas, documentos
que auxiliaram no estudo da história pré -colonial das sociedades do Zimbábue, de
Angola e de Moçambique, têm sido sistematicamente negligenciados pelos histo-
riadores sul -africanos
2
.
Estes historiadores não somente rejeitam a tradição oral corno fonte sem valor,
corno também demonstram, em relação aos registros escritos, uma seletividade
inquietante” e anticientífica.
Toda a literatura histórica acumulada por quatro gerações de historiadores
da África meridional inscreve -se contra a história dos povos africanos. Não tem
sido fácil reunir a documentação para escrever esta História geral da Africa, mas,
no caso presente, defrontamo -nos com uma política deliberada para ignorar,
senão destruir os documentos existentes! A negação (ativa) da cultura e da his-
tória africanas é uma arma perigosa nas mãos dos que controlam o apartheid.
No entanto têm ocorrido mudanças no contexto da África meridional: a
independência do Zimbábue em 1980 abriu amplo campo para a pesquisa.
Também Angola e Moçambique, desde sua independência, oferecem novas
perspectivas aos estudos, que se iniciaram nos Estados vizinhos, como Malavi,
Zâmbia, Botsuana, Suazilândia e Lesoto; multiplicam -se as conferências e os
seminários, e um esforço real no sentido de integrar as tradições orais.
O estágio de nossos conhecimentos
A história da África meridional é dominada por dois problemas: em pri-
meiro lugar, o das datas em que os vários povos lá se estabeleceram, ou seja, dos
movimentos ou migrações dos povos; em segundo, o da natureza do poder, que
implica a necessidade de definir suas estruturas, o que, por sua vez, remete -nos
à origem dos reinos ou Estados.
Primeiramente, deve -se dizer que as pesquisas mais recentes demonstraram a
antiguidade do povoamento khoi -khoi
3
na rego; alguns chegam a afirmar que os
2 Ibid., p. 18.
3 Khoi-khoi é como se autodenominam os chamados hotentotes. O termo hotentote, frequentemente usado,
tem conotação pejorativa.
657
A África meridional: os povos e as formações sociais
povos estabelecidos na região do Cabo eram importantes criadores de ovelhas. No
tio de Lydenburg, no leste do Transvaal, foram descobertas esplêndidas cabeças de
cerâmica (século V da era cristã) e provas irrefutáveis da existência de agricultura.
O icio da Idade do Ferro Antiga, que terminou por volta de 1100, situa -se neste
período. Usando o método de datação por carbono -14, R. R. Inskeep situa por volta
dos anos 80 ± 20 antes da era cristã a data mais remota do aparecimento do ferro
entre o Zambeze e o Limpopo. A cultura da Idade do Ferro Antiga propagou -se
pela África meridional: as cerâmicas foram encontradas em muitos lugares.
Por volta de 1100, começou a segunda Idade do Ferro, ou Idade Média do
Ferro, intimamente ligada às migrações dos povos de língua bantu. Os espe-
cialistas de Gaborone, examinando esta questão, rejeitaram a antiga teoria da
migração bantu. Um grupo de pesquisadores e o professor C. Ehret, utilizando
um corpus modificado de 90 palavras especialmente adotado a partir das 100
palavras universais de Morris Swadesh, estudaram as correlações entre dois
grupos de línguas da área central da África meridional. Um desses grupos com-
preendia dialetos shona bem variados, falados entre o Limpopo e o Zambeze,
e o outro, os dialetos sotho, nguni, tsonga, chopi e venda, sendo este último
chamado de língua bantu do sudeste. Segundo C. Ehret,
as primeiras populações de língua shona teriam se estabelecido no território a que
hoje corresponde o Zimbábue, enquanto os Protobantu do sudeste teriam ocupado
uma região mais ao sul, provavelmente no norte do Transvaal
4
.
O período entre 1000 e 1500 foi decisivo para a história da África meridio-
nal. Novos modos de vida difundiram -se após 1100. Os Khoi -khoi tornaram -se
criadores de gado e se espalharam por vasta área. A imporncia do gado tamm
aumentou consideravelmente entre outros povos, provavelmente de ngua bantu. É
nesse período, ou mesmo antes, que se deve procurar a origem das grandes tradições
culturais o características dos povos de língua bantu dessa região, os SothoTswana
e os Nguni
5
. Foi por volta de 1500 que se cristalizaram algumas dessas tradições,
herdadas pelos principais grupos étnicos conhecidos no século XIX, diretamente de
seus ancestrais. As mudanças influenciaram profundamente a vida nas comunidades
4 NGCONGCO, 1980, p. 20. Referimo-nos constantemente ao número 4 dos Histoire générale de l’Afrique;
études et documents. De fato, a Unesco reuniu em Gaborone, na Botsuana, entre 7 e 11 de março de
1977, os melhores especialistas nos problemas do povoamento da África meridional.
5 Sotho-Tswana e Nguni o nomes de etnias que datam do século XIX, e que foram universalmente adotados
para designar as duas comunidades culturais de língua bantu da África meridional, que vivem ao sul e a
oeste dos Venda e dos Tsonga. Ver WILSON, M., 1969a, p. 75-6, e 1969b, p. 131-3; LEGASSICK,
1969, p. 94-7; MARKS, 1969, p. 126-7.
658
África do século  ao século 
de pescadores instaladas na costa, de pastores estabelecidos próximo do litoral do
Cabo e de caçadores
6
. Mas ainda nos faltam informações sobre esse período crucial.
Os testemunhos escritos o extremamente raros e só tratam dos últimos anos do
período. A arte rupestre, de modo geral, continua sem datação e apresenta proble-
mas de interpretação diceis de resolver. A tradição oral ressente -se de referências
cronológicas quando remonta a esse peodo. Os dados lingsticos ainda não foram
suficientemente explorados; dever -se -ia tentar reconstituir sobretudo o vocabulário
do antigo nguni e do antigo sotho, e seria proveitoso estudar os empréstimos de
palavras khoisan
7
nas nguas bantu e vice -versa. Trabalhos de antropologia com-
parativa sobre problemas regionais a partir de uma perspectiva temporal apenas
começaram
8
.
Sérios problemas aparecem quando se confrontam indicações provenientes de
várias fontes, inclusive as descobertas arqueológicas. É prática usual estabelecer -se
paralelo entre uma tradição comum de cerâmica e laços de ordem linguística ou
étnica, muitas vezes mesmo quando os indícios são bastante fracos. Este capítulo
se apoiará essencialmente nos resultados de escavações arqueológicas, mas as
descobertas arqueológicas serão associadas a grupos culturais e linguísticos
se os dados disponíveis assim o justificarem. Este rigor evitará críticas, válidas
para grande parte de trabalhos anteriores: em muitos tratados e monografias
consagrados a diversos povos, a especulação é frequentemente elevada ao nível
de hipótese douta e até mesmo apresentada como evidência.
Examinaremos sucessivamente a evolução das línguas bantu meridionais, seu
desenvolvimento ao norte e ao sul do Drakensberg e a expano dos Khoi -khoi.
A evolução das línguas bantu meridionais
As línguas bantu da África meridional pertencem aos grupos venda, sotho,
tsonga, nguni e inhambane
9
. Apesar de antigamente alguns autores conside-
rarem que essas línguas e o shona constituíam uma subdivisão do bantu, pes-
6 Designamos como caçadores” os povos da África meridional anteriormente chamados bosquímanos
ou San. San é um termo khoi-khoi que signica “cliente”, “ladrão” ou “vagabundo” e não é usado por
nenhum grupo de caçadores para referir-se a si mesmo. Ver ELPHICK, 1977, p. 19-20 e 23-8.
7 O termo khoisan é utilizado para designar as línguas não bantu da África meridional. Ver KÖHLER,
1975, p. 309-13. Tamm usaremos a palavra khoisan no sentido biológico, pois os biólogos, infelizmente,
empregam-na para designar populações aparentadas da África austral. Ver HIERNAUX, 1974, p. 98-112.
8 KUPER, 1975.
9 DOKE, 1954.
659
A África meridional: os povos e as formações sociais
quisas posteriores demonstraram que tal classificação era incorreta. O todo
léxico -estatístico mostra que as línguas shona, venda, tsonga, inhambane e
sotho -nguni são ramificações de mesma importância do bantu oriental. Isso
significa que a imensa maioria dos povos de língua bantu da África meridional
pertencem a um único grupo lingstico, distinto não somente dangua shona, mas
também do venda do norte do Transvaal, bem como do tsonga e do inhambane,
do sul de Moçambique e das planícies do Transvaal.
C. Ehret e seus colaboradores acharam a correlação mais forte entre o venda e
o shona (55%), depois entre o tsonga e o shona (41%), seguidos do chopi (38%),
do sotho (37%) e do nguni (35%). Para eles, uma vez que os Shona e os Bantu
do sudoeste formam subgrupos distintos do ponto de vista linguístico, é evidente
que houve dois centros de difusão das línguas bantu para as vastas regiões do
sudeste. C. Ehret e seu grupo veem na correlação entre o shona e as outras línguas
do grupo bantu do sudeste a prova de que o protonguni e o proto ssotho -tswana
se difundiram rapidamente a partir de sua região de origem, onde são faladas as
línguas sotho -chopi -tsonga, que ainda permanecem confinadas ao vale do baixo
Limpopo. O nguni e o sotho -tswana, ao contrário, difundiram -se amplamente
pelas duas vertentes do Drakensberg
10
. A diferenciação linguística entre os grupos
sotho e nguni é muito mais recente que as outras divisões e ocorreu na região
onde atualmente vivem os povos que falam essas línguas, isto é, na própria África
do Sul, muito depois de se terem estabelecido os povos de língua bantu. Como
veremos, os povoamentos típicos dos Tswana e outros Sotho e dos Nguni já exis-
tiam por volta de 1500, sendo razoável sugerir que já havia ocorrido a separação
das línguas, o que nos daria como data -limite aproximada o ano de 1600. Esses
dados confirmariam as raríssimas tradições orais que concernem principalmente
às genealogias que remontam ao século XVI e a períodos anteriores.
É impossível estabelecer relação direta entre os dados arqueológicos e o
aparecimento dos povos de língua bantu. Até pouco tempo, os arqueólogos
associavam esses povos a comunidades que praticavam a agricultura e a meta-
lurgia, situando, portanto, sua chegada nos primeiros séculos da era cristã. No
entanto, mais recentemente, R. R. Inskeep e D. W. Phillipson estabeleceram
paralelo entre a expansão da última época da Idade do Ferro, a Idade do Ferro
Recente, que começou por volta do ano 1600, e a difusão das línguas bantu na
África meridional. Eles se limitam a observar que a difusão dessas línguas e a
da cerâmica da Idade do Ferro Recente representam importantes mudanças
10 EHRET, 1973.
660
África do século  ao século 
culturais e a última grande mudança cultural desse tipo de que temos conheci-
mento. Em consequência, a chegada dos povos de língua bantu não pode estar
relacionada a nenhum período arqueológico ulterior
11
.
Não se pode afirmar que os Bantu tenham levado técnicas agrícolas superio-
res ou ferramentas melhores a toda parte. O que se deve enfatizar, no entanto, é
que talvez novas técnicas tenham contribuído para o crescimento da produção
e favorecido novas formas de sedentarização. A chegada dos Bantu não foi bem
o acontecimento”, como querem fazer crer antigos pesquisadores.
Deve -se admitir que por um longo período houve interação entre as línguas
shona, venda e tsonga na região entre o Zambeze e o Limpopo, o que poderia
explicar o grande número de termos aparentados em nguni e sotho, e também
a semelhança considerável das práticas sociais (herança patrilinear, circuncisão e
poligamia)
12
. Os mesmos costumes e as mesmas formas de organização sociopo-
lítica são resultado de longa coabitação. Deve -se observar que todos os grupos,
afora os Nguni, têm totens correspondentes às linhagens ou clãs.
Os historiadores concordam quanto às migrações bantu na África meri-
dional, mas é preciso se dobrar à evidência de que não houve invasão, e sim
infiltração de pequenos grupos. As tradições orais não foram suficientemente
examinadas, nem criticadas judiciosamente; elas poderiam fornecer informações
que remontam ao século XVI e até a períodos anteriores. Os arqueólogos não
deveriam ignorar esses dados.
Ao norte do Ukhahlamba
A segunda Idade do Ferro, ou Idade Média do Ferro, ocorreu entre 1100 e 1600.
Esse período é representado por aldeias descobertas na região de Olefantspoort,
em Melville Koppies e em Platberg. As aldeias compreendem dez ou vinte casas
com chão de terra batida, dispostas num plano circular e cercadas por paliçada.
Nas ruínas foram encontrados dentes de bovinos, ovelhas e cabras, utensílios de
ferro e “grãos de milhete carbonizados em bom estado de conservação
13
.
As culturas datadas da Idade Média do Ferro são, com certeza, de comuni-
dades de língua bantu (1100 -1600) e quase certamente, segundo R. J. Mason,
de povos sotho -tswana. Nas aldeias podem ser encontradas algumas habitações
11 INSKEEP, 1979, p. 124-8 e 153; PHILLIPSON, 1977, p. 197-209, principalmente p. 206. Afora essa
hipótese infeliz, esses dois trabalhos são os mais recentes e modernos da arqueologia de nossa região.
12 INSKEEP, 1979; EHRET, 1973; PHILLIPSON, 1977.
13 MASON, 1973.
661
A África meridional: os povos e as formações sociais
com paredes de pedra. Exceto no caso do estilo Leopards Kopje, ainda não foi
possível encontrar nenhum sítio onde a passagem do início ao último período
da Idade do Ferro Antiga apareça claramente.
Pode ser que os arqueólogos tenham de abandonar esta importante distinção,
ao menos em sua forma atual. O único sítio em que é possível verificar a transi-
ção fica em Eiland, no Transvaal central, onde o sal foi explorado durante todo
o período. A cerâmica da Idade do Ferro Antiga foi substituída nos séculos XI
ou XII por produtos de estilo Mapungubwe (na tradição de Leopards Kopje)
e mais tarde pela cerâmica de Phalaborwa
14
. Não longe dali, o sítio de Silver
Leaves (Tzaneen) mostra a mesma evolução (ver fig. 23.1).
Cerâmica e estilo de vida bem diferentes foram descobertos em Phala - borwa,
um dos dois grandes centros produtores de cobre do Transvaal na época, situado
próximo do Olifants afluente do Limpopo que Vasco da Gama chamou, em
1498, de “rio do cobre” –, cerca de 80 km a leste do Drakensberg. A mineração
vinha -se desenvolvendo desde pelo menos o século VIII, mas a povoação mais
antiga, descoberta até agora, remonta a um período entre 960 e 1130 da era
cristã. O estilo da cerâmica não tem equivalente na Idade do Ferro Antiga, mas
ela é praticamente idêntica à que é feita hoje pelos habitantes de Phalaborwa.
Vários séculos antes do início do período aqui estudado, a cerâmica já tinha seu
caráter atual, também encontrado entre os Lobedu, a cerca de 90 km ao norte
15
.
Isso prova que a cerâmica não é um barômetro para mudanças culturais. Desde
alguns séculos, a sociedade lobedu vem se diferenciando sensivelmente da
de Phalaborwa, em particular no campo político famosa por suas rainhas da
chuva). A própria Phalaborwa encontra -se agora na órbita cultural dos Sotho
ao norte, mas em 1700, como Lobedu, fazia parte do reino venda, e há motivos
para se acreditar que pelo menos no século XVII, senão mais tarde, os habitantes
dessa localidade falavam uma língua próxima do venda, e não do sotho. Desde
então, grandes mudanças vêm ocorrendo, mas que não se refletem na tradição
da cerâmica
16
.
A continuidade na região foi assegurada por mineradores e comerciantes, que
eram também ceramistas, os “indígenas” das tradições orais, que os chamavam
de “Salang de Shokane” e os pretendiam diferentes talvez porque fossem de
cultura tsonga e bem inferiores a seus conquistadores, estes, ligados à tradi-
ção política venda. Por outro lado, pode ser que alguns relatos que começaram
14 INSKEEP, 1979, p. 132; PHILLIPSON, 1977, p. 204; KLAPWIJK, 1974.
15 DER MERWE & SCULLY, 1971-1972.
16 Para maiores informações sobre a evolução a partir de 1700 aproximadamente, ver SCULLY, 1978a.
662
África do século  ao século 
F . Mapa da África meridional: sítios arqueológicos (1100 -1500). (J. Vansina.)
663
A África meridional: os povos e as formações sociais
a proliferar recentemente na região a respeito dos contatos com caçadores de
língua não -bantu sejam fundamentados numa tradição autêntica. Parece então
que, entre 1100 e 1500, houve, nas planícies do Transvaal, estabelecimentos
agrícolas que comerciavam uns com os outros e trocavam seus produtos artesa-
nais. As minas de Phalaborwa eram fonte de objetos de ferro num raio de pelo
menos 30 km, e fonte de cobre em distâncias ainda maiores. É provável que
parte desse cobre tenha alcançado o baixo Limpopo e, por via terrestre, a costa.
Tzaneen fornecia sal à região, e, mais ao norte, o cobre extraído em Messina
era comerciado em ampla área. R. T. K. Scully levantou a hipótese de que a
sociedade tornara -se Estado graças ao desenvolvimento da indústria metalúr-
gica de Phalaborwa e ao comércio dela resultante. As chefarias instaladas em
toda a planície do Transvaal, a princípio pequenas, tinham ainda de lutar com
bandos de caçadores nômades e competir com chefarias vizinhas. Mas, no fim
do período que aqui estudamos, ou talvez no século XVII, a administração dos
Venda subjugou -as, unindo -as num só reino
17
.
No triângulo ao norte do rio Vaal, delimitado por Rustenburg, Klerksdorp e
Johannesburgo, foram encontrados vestígios de um grupo de aldeias pertencentes
à mesma tradição, numa escala de datas entre 1060 e 1610, e lá R. J. Mason
18
realizou algumas escavões. Sobre os pavimentos de gesso das casas redondas
havia plataformas, também de gesso, enquanto as paredes eram de materiais
perecíveis, provavelmente paliçadas de madeira ou, dada a escassez de madeira
no alto veld, bambu revestido de barro. Cultivava -se o milhete e criava -se gado,
inclusive caprino e ovino. As casas eram dispostas ao redor de um espaço oval ou
circular, com área de mais ou menos 1 ha, que, certamente, devia ser um curral
(kraal) para o gado. As aldeias eram pequenas, compreendendo apenas de dez a
vinte cabanas, ao menos nos três sítios estudados. Esse tipo de estabelecimento
provoca grande interesse, pois precedeu a construção em pedra, que, segundo
as evidências atualmente disponíveis, se difundiu amplamente no alto veld do
Transvaal no século XVII
19
. Como apenas quatro, das centenas de estabeleci-
mentos identificados no Transvaal central e meridional, foram escavados, é bem
possível que pesquisas futuras descubram sítios com muros de pedra, datando
de período anterior a 1500. Isto é ainda mais provável quando se sabe que, no
Estado Livre de Orange, um tipo de construção em pedra, o tipo N, remonta
pelo menos a 1400 -1450.
17 SCULLY, 1978b, p. 25; ver também INSKEEP, 1979, p. 135.
18 MASON, R. J., 1962 e 1973.
19 PHILLIPSON, 1977, p. 198-200. A cerâmica descoberta nesses sítios é conhecida como Uitkomst e
parece bem próxima da Buispoort da região de Rustenburg.
664
África do século  ao século 
sítios do tipo N ao norte e ao sul do alto Vaal, até o rio Wilger, a oeste,
e até o Drakensberg, ao sul e a leste. É uma área de boa pluviosidade e rica em
pastagens. A disposição dos celeiros, estábulos e habitações com um muro cer-
cando todo o estabelecimento é forte evidência da economia mista de agricultura
e de criação de gado. Após 1600, o tipo N transformou -se em outros tipos de
estabelecimentos, que se difundiram por toda a região do Estado Livre de Orange
situada ao norte do atual Reino de Lesoto. Uma variante desses tipos posteriores,
que apareceu o mais tardar em 1600, tem evidente caráter tswana
20
.
Somente pesquisas futuras poderão determinar se os estabelecimentos cons-
truídos, não em pedra, mas em outros materiais, encontrados no triângulo Rus-
tenburg–Klerksdorp–Johannesburgo, bem como, talvez, um sítio não datado de
Lydenburg, mais a leste são, de fato, precursores dos estabelecimentos em pedra
do tipo N ou próprios do Transvaal. Ao norte do Vaal, os sítios anteriores à cons-
trução em pedra e os que correspondem aos estabelecimentos de tipo N ou de
tipo próximo encontram -se na região entre os rios Marico e Crocodilo, território
associado à dispersão de alguns grupos sotho, pelo menos desde o século XVI
21
.
Embora tentadora em vista dos dados de que dispomos atualmente, a hipótese
de R. R. Inskeep, que identifica esses estabelecimentos anteriores à pedra e os de
pedra ao modo de vida sotho e, indiretamente, ao grupo linguístico sotho, ainda
é prematura. As tentativas feitas anteriormente por R. J. Mason para relacionar
diferentes estilos de cerâmica do período compreendido entre 1100 e 1500
naquelas aldeias a certos grupos tswana ainda não foram submetidas à prova do
tempo
22
. Somente pesquisas futuras poderão resolver esse problema.
No entanto os argumentos a favor dessa hipótese têm peso. Os estabeleci-
mentos em pedra do tipo N estão na origem de grupos posteriores, um dos quais
é bem característico dos Tswana (habitações bilobadas). Por outro lado, é válido
traçar paralelos entre a difusão de novas tendências arquitetônicas e as tradições
orais que narram os movimentos das famílias governantes, pelo menos depois
do século XVI. Na região correspondente ao atual Zimbábue, os governantes
fizeram construções em pedra durante o período que ora estudamos, e as ruínas
em pedra nessa região ou em Moçambique estão associadas à expansão dos gru-
pos dirigentes. A ideia do uso de pedras para a construção de paredes pode ter
vindo daí. Mas talvez seja uma invenção local da região de Johannesburgo, onde
20 MAGGS, 1976a e 1976b.
21 INSKEEP, 1979, p. 138 (faz generalizações um tanto excessivas); ver LEGASSICK, 1969, p. 100 e
103.
22 Ver os comentários de FAGAN, 1969, p. 60-2; MASON, R. J., 1962.
665
A África meridional: os povos e as formações sociais
as pastagens são boas, mas pouca madeira. De qualquer forma, ao adotar esse
material, os dirigentes políticos estabeleceram, sem dúvida, normas de prestígio
e estilos que asseguraram a difusão desse novo tipo de habitação.
Os sítios de ocupação ao norte do Drakensberg mostram mudanças drásticas
evidentes após 1100. O gado assumiu muito maior importância na economia
em relação ao período anterior. O grau de organização local também cresceu,
pois, durante o período em estudo, as dimensões dos estabelecimentos aumen-
taram consideravelmente. Os dados disponíveis correspondem à impressão geral
transmitida pela tradição oral de que os Estados começaram a se constituir no
século XVI. Se compararmos essa situação com a do veld (Phalaborwa), ou
com a da Botsuana, as transformações ocorridas perto do Vaal são ainda mais
espetaculares. As mudanças nos tipos de estabelecimento e na cerâmica parecem
ter sido bem marcantes. Como se explica tal fato?
É bem possível que a chave do enigma esteja na Botsuana, onde as pesquisas
de J. R. Denbow levaram à descoberta de mais de 150 sítios datando de 800 a
1300. As escavações empreendidas em dois sítios mostram uma evolução local
contínua da fase Zhizo da cerâmica Gokomere (Idade do Ferro Antiga) para os
utensílios Tautswe. A maioria dos sítios na Botsuana central (norte de Maha-
lapye) mostra claramente uma pecuária intensiva. Alguns depósitos de estrume
na região chegam a ter 1 m de espessura
23
. A subsistência dos habitantes da área
vinha, em parte, da pecuária: o meio era muito favorável a essa atividade, graças
às boas pastagens do veld e às nutritivas folhas de mopane. Foi ali, e não em Natal,
como acreditava T. N. Huffman, que o gado parece ter -se multiplicado. Ostios da
Botsuana mostram menos indícios de corcio com a costa da África oriental após
o ano 100 da era cristã, fato queo surpreende, pois o Zimbábue, e mais tarde o
Mapungubwe, a leste, começaram a centralizar a atividade comercial. Após 1300
aproximadamente, o número de sítios descobertos decresce rapidamente, talvez
porque o clima tenha se tornado mais árido o Kalahari não é longe dali ou em
virtude de um deslocamento da região de incidência da mosca tsé -tsé, que teria
forçado a emigração dos habitantes com seu gado.
É muito tentador associar esse declínio populacional com o aparente cresci-
mento demográfico que teria ocorrido no oeste do Transvaal ocidental e com as
evidências de criação intensiva de gado. Pode ser que alguns grupos que viviam
parcialmente da pecuária se tenham instalado com seus animais num meio mais
favorável próximo do Vaal e que os rebanhos tenham atraído outros grupos para
23 DENBOW, 1979.
666
África do século  ao século 
suas comunidades. A introdução da lobola (dote pago em cabeças de gado) e dos
contratos de clientela (para o gado) teria tornado isso possível, favorecendo os
proprietários dos maiores rebanhos. A lobola, a clientela e o pagamento de tributo
em cabeças de gado caracterizarão posteriormente as culturas sotho e tswana. A
travessia do Vaal fez -se acompanhar da adoção de uma economia agropastoril e,
mais tarde, da introdução da ordenha. Os autóctones provavelmente criavam gado,
mas apenas para o aproveitamento da carne e não para a produção de leite.
Contra essa hipótese pode -se argumentar que até agora não foi possível
estabelecer qualquer ligação entre a cerâmica Tautswe e aquela produzida nas
margens do Vaal durante a Idade do Ferro Recente. No entanto ainda não se fez
nenhum estudo comparativo nesse sentido, e estilos mais recentes adotados ao
longo do Vaal não devem necessariamente ser idênticos aos antigos estilos dos
imigrantes
24
. Uma nova expressão pode ter -se desenvolvido do contato entre o
estilo indígena e o importado.
Achamos que foi isto o que aconteceu. Mais tarde, uma mudança no meio
ambiente natural ou humano (o desenvolvimento da organização política do
Zimbábue) da Botsuana central levou à imigração em direção ao Vaal e ao
aparecimento de modos de vida e de línguas característicos dos Sotho -Tswana.
Como veremos, é provável que os povos que viviam parcial ou totalmente da
criação de gado tenham se deslocado mais para o sul e para o leste e influenciado
toda a população do sudeste e do sudoeste da África.
Ao sul de Ukhahlamba
Até agora só três sítios testemunham a existência da Idade do Ferro Recente
ao sul do Drakensberg. Atualmente, o território é ocupado por povos de língua
nguni, cujo modo de vida é mais centrado no gado do que entre os Sotho -Tswana;
seus estabelecimentos são bem menores e menos disseminados, e sua cultura
também difere em muitos outros aspectos da dos Sotho -Tswana.
Foram feitas escavações em Blackburn, próximo da lagoa de Umhlanga, a
cerca de 15 km ao norte de Durban, que trouxeram à luz uma aldeia de mais ou
menos 12 casas, duas das quais foram completamente exumadas
25
. Construídas
num plano circular, com 5,5 m de diâmetro, as estruturas parecem ter tido a
forma de colmeia e seriam sustentadas internamente por uma ou mais estacas
24 Quanto à inovação no domínio da cerâmica, ver INSKEEP, 1979, p. 132-3 e quadro 9 (interessante, mas
muito dogmático).
25 DAVIES, 1971.
667
A África meridional: os povos e as formações sociais
centrais. As paredes provavelmente eram feitas de galhos, e o telhado, de sapé.
Nesse aspecto eram muito semelhantes às construções nguni e khoi -khoi. As
dimensões da aldeia correspondem igualmente ao modelo nguni e khoi -khoi.
No sítio também se encontrou sucata de ferro. Os restos de comida incluíam
ossos de caça, conchas e espinhas de peixe. Essas constatações sugerem ser antes
uma aldeia de ancestrais dos Khoi -khoi ou mesmo de pescadores da costa, que
um estabelecimento nguni. Como os Nguni, da mesma forma que os Sotho -
Tswana, são conhecidos pelo tabu de comer peixe, as descobertas significam
ou que esse tabu se desenvolveu após o século XI ou que o sítio pertencia a
caçadores do litoral de língua khoisan. A cerâmica, conhecida pela classificação
NC2, tem uma vaga semelhança com a Thembu (nguni). O mais interessante
é que o mesmo tipo de cerâmica foi encontrado numa grande área de ruínas
próxima do Vaal: deve ter existido contato entre as populações das duas regiões.
Todos esses indícios fornecem material para reflexão, mas é difícil chegar a uma
conclusão, pois nenhum outro sítio foi descoberto. R. R. Inskeep tem razão,
portanto, em se recusar a especular sobre esses contatos
26
.
O sítio de Moor Park, próximo de Estcourt, remonta ao culo XIII ou
XIV. Localiza -se num promontório e é cercado por um muro que circunda não
apenas as casas, mas também as clareiras e terraços, o que prova que se tratava
obviamente de importante posto de defesa. Os vestígios das casas parecem
indicar que os pisos eram retangulares. Se esse dado for correto, trata -se de um
caso único em toda a África meridional. Seus habitantes utilizavam o ferro,
cultivavam o sorgo, caçavam e criavam gado. Ainda não foi possível associar,
com segurança, a nenhum estilo conhecido as cerâmicas ali encontradas. Não
fossem os pisos aparentemente retangulares, o sítio estaria mais em consonância
com as atividades econômicas atribuídas aos ancestrais dos Nguni do que com
os vestígios da lagoa Umhlanga
27
.
O último grupo de sítios foi encontrado em 1978 perto da foz do rio Umngazi,
no Transkei; representa ocupações da Idade do Ferro Antiga, dia e Recente.
Ali foram descobertas evincias de fundição de ferro e um piso de cabana feito
com barro cozido semelhante aos pisos do alto veld. o se fez nenhuma datação
por carbono -14, tendo -se deduzido a época a partir dos tipos de cacos de cerâmica
descobertos. Se se confirmasse uma data antiga para o piso da cabana e para a
fundição, nossa conceão tanto das ligões entre as sociedades do norte e do sul
26 INSKEEP, 1979, p. 145.
27 DAVIES, 1974.
668
África do século  ao século 
do Drakensberg como da época em que os presumíveis ancestrais dos Nguni se
estabeleceram tão ao sul sofreria mudança profunda
28
.
No momento, a informação mais antiga que temos sobre os Nguni provém dos
sobreviventes dos naufrágios ocorridos no século XVI nas costas de Natal ou do
Cabo
29
. As informões reunidas a partir de tradições orais indicam que o Transkei
foi habitado pelos Xhosa, organizados em chefarias pequenas e instáveis, o mais tar-
dar no culo XV. Antes disso, as falias dirigentes haviam vivido durante gerações
perto das margens do alto Mzimvabu, mais especificamente perto do atualmente
desconhecido córrego Dedesi. Em 1959, M. Wilson afirmou, com base em dados
comparativos, que essas falias viviam ao menos desde 1300
30
. Mas essa data não
é precisa; apenas aproximada. É certo que, por volta de 1500, os Nguni ocupavam
quase todo o território no qual viviam em 1800, apesar de nas reges ocidentais
estarem misturados com os Khoi -khoi, a quem assimilariam progressivamente.
Os Khoi -khoi deixaram marcas profundas nas línguas nguni ocidentais e
orientais. Segundo L. W. Lanham, tal influência só se iniciou quando as línguas
xhosa e zulu começaram a se diferenciar
31
. Isso deve ter ocorrido tardiamente,
pois, pouco antes de 1600, um marinheiro que naufragou na costa afirma que
essas línguas eram apenas dialetos de uma única língua, e ele havia percorrido
praticamente todo o litoral
32
. O khoi -khoi exerceu influência bastante acentuada
sobre o zulu e o xhosa, contribuindo, respectivamente, com cerca de 14% e 20%
do vocabulário. Essa influência transformou o sistema fonético dos Xhosa, o
que significa que ela se exercia quando o xhosa começou a se diferenciar do
nguni oriental. Os Khoi -khoi devem ter ocupado um território que avançava
profundamente em Natal, pois até as línguas nguni orientais foram afetadas
33
.
Os Nguni começaram a se dedicar parcialmente à criação de gado, prefe-
rindo esta atividade à agricultura, provavelmente em razão da influência khoi-
-khoi. Mas seus rebanhos não foram diretamente adquiridos dos Khoi -khoi,
pois estes criavam gado Afrikander, e os Nguni, a variedade Sanga, também
28 MATIYELA, 1979,
29 WILSON, M., 1969b; há um resumo nas p. 78-85.
30 M. Wilson retoma os aspectos essenciais de seu artigo intitulado e Early History of the Transkei and
the Ciskei (l959b), sem, no entanto, mencionar datas. Nesse artigo diz: “... durante o período coberto
pelas genealogias, ou seja, desde 1300, mas talvez alguns séculos antes”. A data de 1686, associada ao
reino de Togu, chefe xhosa, foi utilizada para a maioria dos cálculos (como em WILSON, M., 1969b,
p. 95). Mas essa data é incerta. Ver também PEIRES, 1973; e HARINCK, 1969, p. 154 e 155.
31 LANHAM, 1964.
32 WILSON, M., 1969a (Naufrágio do Santo Alberto em março de 1593).
33 LANHAM, 1964; HARINCK, 1969, p. 150-3.
669
A África meridional: os povos e as formações sociais
comum no norte do Drakensberg. Em matéria de criação de gado, a influência
dos Khoi -khoi foi bastante profunda, e os empstimos de vocabulário indicam
que eles aprenderam a tratar dos animais com povos menos numerosos. Foi com
eles que os dirigentes xhosa aprenderam a montar em bois e a usá -los como
animais de carga
34
. Do ponto de vista religioso a influência khoi -khoi sobre os
Xhosa também foi marcante; L. W. Lanham considera isto uma prova de que os
Khoi -khoi viviam em terras nguni, presença mais tarde confirmada nas regiões
fronteiriças ocidentais pela sobrevivência de topônimos khoi -khoi. Outras indi-
cações da influência khoi -khoi podem ser encontradas possivelmente no tipo
de habitação e, com certeza, na prática que consistia em cortar uma falange do
dedo mínimo.
Fisicamente os atuais Nguni são mestiços do tipo “negro” com o tipo
khoi -khoi
35
. A miscigenão é bem pronunciada entre os Xhosa, cujos gens
parecem ser 60% khoi -khoi. Isto também é válido para os Tswana. Os Nguni
orientais têm menor porcentagem de gens khoi -khoi, mas seu parentesco é ainda
bem acentuado. Isso não é de espantar no caso dos Nguni ocidentais, e mesmo no
dos Tswana, pois seus contatos com os caçadores e com os Khoi -khoi estão bem
documentados; mas surpreende constatar indicadores o claros de mestiçagem
nos Nguni orientais.
Se juntarmos os elementos linguísticos (que evocam a influência khoi -khoi)
aos indícios biológicos (que podem ser atribuídos tanto aos caçadores como aos
khoi -khoi), devemos concluir que, em dado momento, grande mero de
Khoi -khoi viveu em Natal, ou que os Nguni e os Khoi -khoi tiveram contato
íntimo mesmo antes de os Nguni se instalarem em Natal, o que é menos prová-
vel, pois, neste caso, a proporção de palavras khoi -khoi seria mais alta nas línguas
nguni orientais e ocidentais. Parece então que os Khoi -khoi tiveram papel mais
importante do que o até agora reconhecido pelos historiadores. Como veremos,
essa influência o se limitou aos Nguni, mas se estendeu a grande parte da África
do Sul e da Namíbia.
Os Khoi ‑khoi
Em 1488, Bartolomeu Dias descobriu o Cabo da Boa Esperança; visitou
Mossel Bay e viu africanos, com os quais teve contato. No final de 1497, durante
uma expedição de Vasco da Gama, estabeleceram -se contatos com africanos
34 WILSON, M., 1969b, p. 96, 103-5, 107-9.
35 HIERNAUX, 1974, p. 107-10.
670
África do século  ao século 
na baía de Santa Helena (ao norte do Cabo) e também em Mossel Bay. Em
1510, o vice -rei das Índias, dom Francisco de Almeida, foi morto, juntamente
com 60 soldados portugueses, em Table Bay, num confronto entre khoi -khoi e
portugueses
36
, o que prova que os Khoi -khoi eram suficientemente organizados
para aniquilar a coluna portuguesa munida de armas de fogo. Um século e meio
depois, os Khoi -khoi enfrentaram os holandeses (1652), que queriam se instalar
no Cabo. Iniciou -se então uma longa guerra de extermínio dos indígenas.
Mais recentemente, tornou -se claro que, do ponto de vista linguístico, o
khoi -khoi pertence ao grupo tshu -khwe, da família de línguas khoisan, que
inclui também várias línguas faladas pelos caçadores da Botsuana setentrional
e mesmo uma língua falada na costa meridional de Angola
37
. De fato, a língua
khoi -khoi, dividida em dois ou três dialetos, era falada num território que,
posteriormente, se estendeu do norte da Namíbia ao Cabo e, mais a leste, até
o rio Great Fish. Além disso, em determinado momento, deve ter chegado a
Natal, como mostra sua influência sobre o nguni. R. Elphick observa que, con-
sequentemente, o khoi -khoi era uma das línguas mais faladas na África, e que
a homogeneidade linguística deste grupo parece indicar uma dispersão bastante
recente e rápida a partir do berço dos Tshu -khwe. Os Khoi -khoi criavam gado
de grande porte e ovelhas de cauda grossa, montavam bovinos e usavam bois
para transportar seus bens e estacas para a construção de suas casas. Isso lhes
dava grande mobilidade, característica que se ajusta à difusão de sua língua.
Apesar das sensíveis diferenças em relação aos caçadores, seus caracteres físicos
também correspondem ao grupo “khoisan
38
. A maioria das diferenças pode
ser atribuída aos efeitos de uma dieta diferente (leite), apesar de outras, como
as peculiaridades serológicas, não serem facilmente explicáveis. Embora haja
divergências nesses detalhes, todos os antropólogos aceitam atual mente que os
Khoi -khoi e os caçadores pertencem à mesma entidade somática, o que con-
firma as conclusões tiradas a partir da linguística. Os Khoi -khoi pertencem à
população de caçadores da África do Sul.
Constata -se a presença dos Khoi -khoi no sul da província do Cabo em 1488.
Tendo em conta a homogeneidade dengua em tão grandes distâncias, R. Elphick
36 Ver AXELSON, 1973a e 1973b.
37 WESTPHAL, 1963; KÖHLER, 1975, p. 305-7 e principalmente p. 305-9 (teoria dos hamitas), p. 322-30
(Tshu-khwe, que ele chama de “Khoe”).
38 ELPHICK, 1977, p. 8-10; HIERNAUX, 1974, p. 100 e p. 103-7, principalmente 106-7.
671
A África meridional: os povos e as formações sociais
F . Mapa da expansão khoi -khoi. (J. Vansina.)
672
África do século  ao século 
estima que os Khoi -khoi o tenham chegado muito tempo antes dessa data, embora
o trajeto da Botsuana ao Cabo tenha durado pelo menos um século
39
.
Os ancestrais dos Khoi -khoi conseguiram obter gado em grande quanti-
dade no norte da Botsuana, e provavelmente desenvolveram a raça Afrikander,
aprenderam a forjar metais, mas não a fundi -los, e abandonaram parcialmente
seu modo de vida baseado na caça e na coleta. É muito tentador sugerir que
alguns sítios encontrados por J. R. Denbow na Botsuana constituem vestígios de
antigos estabelecimentos khoi -khoi, e não apenas campos abandonados por povos
de língua bantu. Embora controversos, os restos humanos de Bambadyanalo,
perto do Limpopo, também parecem ser indícios de populações que se dedica-
vam, ao menos parcialmente, à criação de gado, e pareciam fisicamente com os
Khoi -khoi do século XI
40
. O decréscimo populacional na Botsuana após 1300
fornece -nos uma data não apenas para a expansão dos agrupamentos humanos
provavelmente de língua bantu, que foram para o Vaal, mas também para o início
da expansão dos Khoi -khoi (ver fig. 23.2).
Do alto veld, os Khoi -khoi espalharam -se para o sul e sudeste, seguindo o curso
dos rios quando posvel
41
. Chegando à confluência do Orange com o Vaal, uma
parte desceu o Orange, até a Namaqualândia e a Namíbia, onde alcaaram
Sandwich Harbour antes de 1677. Outra parte foi para o sul seguindo os cursos
d’água, atravessou o Sneeuwberge e dividiu -se em dois grupos: um foi para leste e
para o interior, da costa até Natal; outro, para oeste, chegando às maravilhosas pas-
tagens na região do Cabo. Ainda um ramo deste último grupo migrou pela costa
norte até o rio Olifants e juntou -se finalmente a seus iros da Namaquandia
42
.
Resta examinar um ponto discordante antes de aceitar essa hipótese: os vestí-
gios encontrados em Middledrift. Este sítio arqueológico a céu aberto, próximo
do rio Keiskamma, data do século XI
43
. eram criados animais domésticos,
mas os utensílios não são da Idade do Ferro. Foram descobertos apenas frag-
mentos de cerâmica e utensílios de pedra. Se considerarmos Middledrift um
39 ELPHICK, 1977, p. 12-3.o há pinturas rupestres representando gado no oeste do Cabo e na Namíbia.
Por outro lado, foram encontradas só cinco pinturas rupestres representando ovelhas, embora esses animais
fossem criados nessas regiões desde o início da era cristã. Pesquisas mais aprofundadas poderão possibilitar
que se avalie a data da chegada dos Khoi-khoi no extremo sul da região. No século XVII, no entanto,
os bôeres não a encontraram completamente despovoada.
40 DENBOW, 1979, n. 14; ELPHICK, 1977, p. 11. Quanto a Bambadyanalo, ver FAGAN, 1969, p. 52-3.
41 ELPHICK, 1977, p. 18-9. O autor baseia-se no comportamento dos Korana ao longo do rio Riet e no
material arqueológico da área, apesar de sua data ser posterior a 1500. Ver INSKEEP, 1979, p. 145-6.
42 ELPHICK, 1977, p. 14-21.
43 DERRICOURT, 1973.
673
A África meridional: os povos e as formações sociais
sítio khoi -khoi, devemos abandonar a hipótese acima, porque a expansão khoi -khoi
remontaria a um peodo por demais antigo, e talvez também porque as técnicas
testemunhadas por esses vestígios o muito rudimentares. Mas o razão
para atribuí -lo aos Khoi -khoi apenas porque não corresponde a nossas ideias
atuais sobre a cultura dos povos de língua bantu! Pode -se aceitar provisoriamente
Middledrift como um sítio onde os caçadores adquiriam seu gado, assim como,
um milênio antes, os povos instalados ao longo da costa do Cabo aperfeiçoaram
a criação de carneiros. Os caçadores de Middledrift teriam sido assimilados ou
expulsos pelos Khoi -khoi.
A expansão khoi -khoi afetou profundamente a vida de todos os habitantes da
África meridional. Mencionamos seu impacto sobre os povos de ngua bantu em
Natal e no Cabo oriental. A hitese mais aceita é a de que os Nguni o encon-
traram os Khoi -khoi em Natal, e que progressivamente repeliram ou absorveram os
encontrados no Cabo oriental. O conjunto de informações disponíveis, pom, con-
tradiz essa hipótese. Os Khoi -khoi encontraram estabelecimentos agrícolas disper-
sos a leste do rio Kei, mas os conquistaram para assegurar seu donio no Transkei
e talvez mesmo em algumas regiões de Natal. Levou um culo, ou talvez dois,
para as comunidades agcolas das planícies situadas entre o Drakensberg e o mar
alcançarem densidade suficiente para se tornarem mais poderosas numericamente
que outras populões, e poderem assim dominá -las e absorvê -las. Isso explica por
que os Xhosa adotaram tantos traços khoi -khoi, o que o é incompavel com o
advento da dominação xhosa noculo XVI.
A oeste, os Khoi -khoi influenciaram os Herero de forma diferente, mas
também marcante. Sem adotar a língua khoi -khoi, os Herero acolheram seu
modo de vida pastoral e provavelmente em parte a forma de organização clânica.
Parece que esses povos de línguas bantu ocidentais encontraram os Khoi -khoi
no oeste da Botsuana, de onde também emigraram para a Namíbia, porém, mais
ao norte que os Khoi -khoi. Não é possível precisar quando isso aconteceu, mas
não se pode descartar a hipótese de uma data anterior a 1500
44
.
Politicamente, os Khoi -khoi dividiam -se em grupos de cs, e, às vezes,
quando o número de cabeças de gado aumentava, formavam unidades políticas
maiores, sob a liderança de chefes hereditários. Era frequente as relações entre
as várias chefarias terem por base o tributo, pelo menos no século XVII, pois
os Khoi -khoi, do Cabo ao Kei, faziam parte de um único sistema de tributos.
44 BIRMINGHAM & MARKS, 1977, p. 607. As tradições herero conhecidas foram resumidas por VEDDER,
1938, p. 131-53. Ele sustenta (p. 151-3) que a tradição oral indica uma migração proveniente da Botsuana
setentrional, e propõe 1500 como data aproximada.
674
África do século  ao século 
A organização política baseava -se na riqueza individual, enquanto o sistema
de herança e o regime matrimonial transmitiam parcialmente a riqueza
de uma família para seus descendentes. Consequentemente, apesar da grande
disncia entre ricos e pobres, os reveses da sorte podiam ocorrer em apenas uma
geração. Acontecia de os mais pobres abandonarem esse modo de vida, voltando à
caça e à coleta, como ocorreu com os strandloopers (“vagabundos de praia) do Cabo.
Os pobres de determinado c podiam unir -se para atacar um c vizinho,
apropriar -se do gado e melhorar sua situação. À medida que o gado crescia,
fortalecia -se o sistema político, mas, se o número de animais se reduzisse por
falta de chuvas ou devido a uma epizootia ou ainda em razão da intensificão
do roubo de gado por criadores pobres, as tensões superavam os interesses
comuns, os conflitos se multiplicavam e os chefes mais ricos tornavam -se as
maiores vítimas dos ladrões, o que resultava na redução de sua riqueza e de sua
autoridade no grupo de clãs. Assim, se é fácil compreender que a princípio os
Khoi -khoi conseguiram impor -se aos agricultores, menos organizados e com
menor mobilidade; a longo prazo as variações climáticas e as epizootias, assim
como as pronunciadas desigualdades sociais entre os próprios Khoi -khoi favo-
receram os fazendeiros, pelo menos, os do leste do Kei
45
A presença dos Khoi -khoi teve consequências mais profundas entre os caça-
dores e criadores de ovelhas autóctones e entre os caçadores do litoral porque
todos viviam dos mesmos recursos, numa concorrência maior do que com os
agricultores e criadores de gado. Entre 1100 e 1500, os autóctones todos
nômades e, em princípio, todos caçadores – tinham várias ocupações. Ao longo
do litoral, haviam se tornado quase sedentários e viviam dos produtos do mar
46
.
Na costa ocidental do Cabo e às margens do baixo Orange, entre Augrabies Falls
e Prieska, criavam ovelhas de cauda grossa; no interior, viviam principalmente da
caça e da coleta de veldkost (bulbos e raízes). Naqueles séculos, as regiões mais
áridas do Karroo, as areias do Kalahari e os planaltos mais frios provavelmente
não eram habitados. Em alguns pontos do leste, como talvez Middledrift, alguns
caçadores começaram mesmo a criar gado.
Com a chegada dos Khoi -khoi, os criadores de ovelhas e possíveis criadores de
gado bovino perderam seus rebanhos e voltaram a caçar, ou tornaram -se clientes
dos Khoi -khoi. Os grupos que viviam no sourveld (estepe com terras ácidas) da
costa ou nas praias sobreviveram por tempo suficiente para ensinar aos Khoi -khoi
empobrecidos como se tornar strandloopers, mas, ao final, também foram dominados
45 Quanto à estrutura sociopolítica, consultar ELPHICK, 1977, p. 23-68; HARINCK, 1969, p. 147-8.
46 INSKEEP, 1979, p. 114-7.
675
A África meridional: os povos e as formações sociais
pelos Khoi -khoi. No interior, os pastores e os caçadores competiam com sucesso
variável e se miscigenavarn em graus diversos. Para os Khoisan, os caçadores eram
apenas “ladrões” (san), e os caçadores consideravam, sem vida, os criadores de gado
“lapios” que os afastavam das melhores fontes de água e dos melhores terrenos de
caça. Em geral, por suas dimenes, os clãs khoi -khoi levavam vantagem sobre os
pequenos bandos dos competidores. Porém, quando o meio se tornava mais hostil, os
caçadores restabeleciam certo equibrio na medida em que muitos criadores viam -se
forçados a recorrer à caça, e alguns chegavam a se integrar aos bandos de caçadores.
Mesmo assim, o modo de vida khoi -khoi impunha -se progressivamente. No culo
XVII, o khoi -khoi havia se tornado a ngua franca de todo o Cabo ocidental, o
que denuncia certa dominação cultural. Parece evidente que a expansão khoi -khoi,
qualquer que seja a forma exata que tomou, transformou a vida de todos os grupos
de caçadores autóctones. Desde o culo XIX, ao norte ou ao sul do Kalahari não
mais caçadores em estado puro”.
Conclusão
O fato mais marcante do peodo que estudamos no presente capítulo foi, ao
lado da difusão da língua bantu, a expano dos Khoi -khoi na África meridional.
Esta provavelmente se deveu a uma deterioração das condões cliticas na parte
do Kalahari situada na República da Botsuana ou por uma grande mudança da área
de incincia da mosca t -t, seo pelos dois fatos. Qualquer que seja a causa, por
volta de 1330, as regiões centrais e setentrionais da República da Botsuana, onde se
desenvolveu uma forma original de economia pastoril, estavam sendo abandonadas.
Alguns povos da rego o eram khoi -khoi, mas de ngua bantu, e levavam consigo
seus rebanhos.
Na região do Zimbue e no alto veld, ao sul do Limpopo, o gado foi absor-
vido pela economia agrícola, e os imigrantes, ao menos entre os ancestrais dos
Sotho -Tswana, tomando o poder, começaram a estabelecer chefarias no norte do
Drakensberg. Não sabemos ainda se alguns desses imigrantes chegaram a ir mais ao
sul. É possível que os ancestrais dos Nguni tenham adquirido mais gado do que
possam, mas que o mero de imigrantes tenha se mantido limitado. De qualquer
forma, os Nguni desenvolveram uma economia mais centrada na criação de gado
do que a dos Sotho -Tswana. Era uma inovão adaptada, suscitada pela observação
do modo de vida dos Khoi -khoi que invadiram suas terras.
Os dados históricos ainda são bastante incompletos. Mesmo que todas
essas hipóteses aventadas sejam confirmadas por pesquisas futuras, não teremos
676
África do século  ao século 
esclarecido o desenvolvimento de uma economia pastoril, mesmo no norte da
República da Botsuana, talvez entre 800 e 1300. Tampouco saberemos a quem
atribuir essa evolução. Ela provavelmente não poderia ser atribuída aos povos
de língua bantu, pois muitos termos de pecuária da África meridional não são
de origem bantu oriental. Poderiam ser de origem khoisan – um historiador os
atribui às línguas do grupo sudânico central
47
. No entanto, até o momento, os
argumentos invocados em apoio a essa tese são por demais frágeis. Com efeito,
seria necessário provar que populações de línguas do grupo sudânico central
saíram em massa do nordeste do Zaire indo até a Botsuana e ao Zimbábue, e que
esta expansão precedeu à dos povos de língua bantu. Estamos mais inclinados
a crer que aqueles termos de pecuária são de origem tshu -khwe, e que foram os
ancestrais dos Khoi -khoi que, durante cinco séculos, aperfeiçoaram o modo de
vida pastoril. Eles adotaram a criação de gado, mas não quiseram abandonar as
tradições de nomadismo e caça.
Existem ainda muitas dificuldades para delimitar as realidades históricas da
África meridional. Muitos pontos permanecem obscuros no estudo das migra-
ções bantu:
Se os Nguni e os Sotho estiveram reunidos numa determinada época, quando e
onde se separaram? Que caminhos seguiram em sua migração para o sul? Quando
atravessaram o Limpopo?
48
Outra dificuldade vem do fato de que a maior parte dos dados arqueológicos ao
sul do Limpopo foi recolhida no Estado Livre de Orange e concerne aos Sotho-
-Tswana. Para termos uma ntese dos nossos conhecimentos, devem ser feitas
pesquisas complementares no sul de Moçambique, na Namíbia, na Suazilândia,
no Lesoto e na Botsuana.
47 EHRET, 1972 e 1973.
48 UNESCO, 1980b, p. 23.
C A P Í T U L O 2 4
677
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
Os componentes essenciais da população de Madagáscar já se encontravam
presentes no final do culo XII, apesar de outras ondas migrarias terem se
seguido entre os culos XII e XVI. O povoamento de Madagáscar faz parte
do vasto quadro de relações entre o sudeste da Ásia e a África através do oceano
Índico. Tendo reconhecido a importância dessa questão, o Comi Cienfico
Internacional para a redão da Hisria geral da África, sob o patrocínio
da Unesco, organizou, dos dias 15 a 19 de julho de 1974, uma reunião de
especialistas em Port Louis (Maurício) para debater o tema “Relações históricas
atras do oceano Índico
1
.
O problema do povoamento de Madagáscar é tratado no capítulo 25 do volume
3. Muitas questões ainda não foram resolvidas; a determinação das contribuições
africana, árabe, hindu e indonésia para o povoamento e a cultura de Madagáscar,
por exemplo, ainda provoca muitas discussões entre os pesquisadores
2
.
Neste capítulo, o enfoque será menos a ntese definitiva da civilizão
e da hisria de Madagáscar entre os séculos XII e XVI do que a tentativa
de esclarecer a lenta e complexa interão étnica e cultural que, no icio
do culo XVI, deu uma identidade original à grande ilha. Parece certo que,
1 UNESCO, 1980a.
2 Ver volume 3, capítulo 25; ver também KENT, 1970: o autor, com base na análise linguística, tentou
avaliar a contribuição africana tanto no plano político como no cultural.
Madagáscar e as ilhas vizinhas,
do século XII ao XVI
Faranirina Esoavelomandroso
678
África do século  ao século 
F . Madagáscar. Mapa das vias de migrações e povoamento da ilha. (F. Esoavelo mandroso, com a
colaboração de T. Rajaona, usando elementos do Atlas de Madagáscar, de S. Ayache, e do Atlas do povoamento
de Madagáscar, de F. Ramiandrasoa). Nota: As últimas vagas migratórias de indonésios chegaram entre os
séculos XII e XIII. Os povos islamizados (Swahili e árabes) tiveram como base principal as ilhas Comores,
de onde partiram para circunavegar a ilha pelo norte.
679
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
após o século XII, Madagáscar ainda recebeu árabes, indonésios e africanos. As
tradições orais de Imerina e de Betsileo evocam, a este respeito, as guerras que
os reis, no comando dos recém -chegados, teriam liderado contra as populações
autóctones, designadas pelo nome de Vazimba”, vencidas e rechaçadas para o
interior
3
. Essas tradições comportam listas genealógicas que remontam ao século
XIV e até ao XIII.
No entanto muitos estudiosos acreditam que as migrações neo indonésias
dos séculos XIII e XIV concernem aos Merina; há muitas dúvidas quanto à
existência dos “Vazimba”, seus adversários de acordo com as tradições. De fato,
para alguns, vazimba significa ancestrais; não se refere, portanto, a determinado
povo; o termo serviria para designar, de forma vaga, as populações, sem dúvida
negras, que precederam os indonésios nos planaltos
4
.
Os sorabe
5
, conservados cuidadosamente pelos Antemoro, uma população do
sudeste, são também uma fonte sobre o povoamento da ilha, pois registram a
chegada e a instalação dos árabes vindos de Meca.
As migrações mais recentes parecem ter tido papel determinante na for-
mação de conjuntos políticos bem estruturados, apesar de terem encontrado
populações agrupadas em reinos. Mas quando situar a chegada das últimas
ondas? Seria necessário proceder a um estudo crítico das várias tradições escritas
e orais, principalmente as que vêm das dinastias que tendem naturalmente a
insistir na sua antiguidade.
A partir do século XV e até o início do XVI, as fontes portuguesas descre-
vem os povos e os reinos da ilha. Os reinos estavam em pleno desenvolvimento
quando os portugueses chegaram, mas o problema é saber ainda o período de
sua formação. Estariam antes do século XII? Como se formaram? Existem
muitas teorias, mas, é preciso dizer, o atual estágio de nossos conhecimentos e a
insuficiência das pesquisas neste campo não fornecem respostas definitivas.
3 Sobre Imerina, ver CALLET, 1908. Os Tantara, uma das mais importantes compilações de tradições orais
do território merina, foram coletados por R. P. Callet entre 1868 e 1883 e contêm indicações preciosas
sobre os Merina. Um estudo crítico dos Tantara foi feito por DELIVRÉ, 1974. Sobre o território betsileo,
ver RAINIHIFINA, 1975; RATSIMBAZAFIMAHEFA, 1971.
4 As discussões sobre os Vazimba” basearam -se, a princípio, em argumentos de ordem linguística; ver
FERRAND, 1891 -1902. As antigas populações designadas por esse termo pareciam não conhecer
algumas técnicas (metalurgia, criação de gado); ver BOITEAU, 1958. Para um estudo mais recente sobre
o povoamento da ilha, ver Ravoajanahary, in UNESCO, 1980a.
5 Os sorabe o manuscritos em língua antemoro, redigidos em caracteres árabes. São as tradições dos katibo
(escribas, guardiões da tradição). Estes manuscritos são conservados em bibliotecas na França, Noruega
e Inglaterra; ver MUNTHE, 1977.
680
África do século  ao século 
Teriam sido os negros, primeiros ocupantes prováveis, que estabeleceram os
fundamentos desses reinos, ou os fundadores teriam sido os imigrantes da Indo-
nésia? O elemento muçulmano desde cedo teve papel importante; em vista da
extensão e profundidade desta influência, a tese da origem árabe ou muçulmana
dos reinos não foi afastada por certos estudiosos, como veremos.
A origem dos reinos em Madagáscar
Não existe um povo vazimba”; as tradições que o mencionam provavelmente
atestam a existência anterior de certas populações difíceis de identificar. Essas
mesmas tradições serviram de ponto de partida para a afirmação de que não
existiam instituições reais antes da chegada das últimas ondas imigratórias; no
território betsileo, as tradições confirmam os dados: as populações autóctones
não tinham rei, e se nomeavam chefes em caso de guerra.
As tradições e as hipóteses
P. Ottino acredita que as populações vindas da Indonésia distinguiam -se
por traços de cultura, e não por uma escala cronológica de tempo na ordem de
chegada. Segundo esse autor, havia os imigrantes portadores de cultura popu-
lar que remonta às tradições malaio-polinésias” e os oriundos de uma cultura
aristocrática, “característica do hinduísmo indonésio, no tocante à separação
de papéis do Estado e da realeza”; de fato, as festas dinásticas de Imerina são
reminiscências das que se encontram nas regiões hinduizadas do arquipélago
da Insulíndia. Na realidade, muitas tradições insistem no caráter recente desta
onda de imigrantes, e distinguem -na das outras. P. Ottino situa a chegada dessa
aristocracia no século XII
6
. A aristocracia de Imerina se distinguiria, então,
segundo esta tese, por sua cultura hindu.
J. Lombard sublinha que
a constituição das grandes unidades políticas no sul e no oeste se deu em razão da
chegada de grupos arabizados
7
.
6 OTTINO, 1975.
7 LOMBARD, J., 1973.
681
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
A tese da origem árabe das instituições reais ou monárquicas tem o endosso de
muitos autores, que insistem nas inovações trazidas pelos muçulmanos para as
sociedades do sudeste, a única área onde agrupamentos por ceram conhecidos.
Observemos que podem ter existido diferentes núcleos de poder e que, de
qualquer forma, estamos diante de uma simbiose no plano biológico, cultural e
político. Por exemplo, encontra -se a influência muçulmana nas instituições políti-
cas dos Merina, mas o se pode ter certeza da época em que houve contatos entre
Andriana e os imigrantes estabelecidos no sudeste. J. P. Domenichini observa com
exatidão que o se deve perder de vista a contribuição africana. Também sustenta
que o é correta a ligação da origem dos reinos à chegada dos muçulmanos; seria
preciso analisar as instituições de cada região. Apenas ts dos 14 sampy reais vêm
do sudeste. Apoiando -se nos relatos das tradições orais sobre a descoberta de
outros sampy, e na própria natureza desses feitiços mágicos, o autor conclui que
a instituição do sampy é anterior à difusão da cultura e da religião muçulmanas em
Madagáscar, mesmo que mais tarde a instituição tenha sofrido esta influência
8
.
No oeste, P. Ottino situa antes da chegada dos Maroserana o aparecimento
dos primeiros reinos
de pequena extensão territorial e, sem dúvida, sem doutrina de sucessão polí tica cla-
ramente definida.
Liga esses reinos pré -sakalava aos primeiros imigrantes bantu matrilineares,
populações que viviam da agricultura, enquanto os reinos sakalava provêm de
grupos de criadores de gado (bantu patrilineares)
9
.
Estes vários estudos devem ser encarados com prudência; eles incitam -nos,
sobretudo, a procurar os componentes de uma cultura que esclareceriam as
várias contribuições e o mecanismo de suas combinações. Tudo leva a crer que
o surgimento dos reinos é posterior ao século XII. Antes dessa data, podem ter
existido aqui e ali clãs muito bem estruturados que constituíram as células de
base dos reinos. O reino nada mais era que a reunião destes clãs em grandes
entidades fortemente hierarquizadas.
No entanto, é verdade que Raminia, fundador do reino islamizado do sudeste,
e seus descendentes tiveram grande influência. Segundo P. Ottino, o fundador
desse reino seria originário do sudoeste indiano. Ao estudar as dinastias do oeste
aparentadas entre si (Maroserana, Andrevola), E. Fagereng atribui -lhes uma origem
8 DOMENICHINI, 1971.
9 OTTINO, 1975.
682
África do século  ao século 
comum indo rabe, retomando em parte a hipótese de A. Grandidier criticada por
R. K. Kent
10
. As tradições destas dinastias associam -nas a estrangeiros que
desembarcaram numa época tardia na parte sul da ilha, e que teriam emigrado
em seguida para o oeste.
O entrelaçamento de migrações internas é ainda mais difícil de desembara-
çar; parece que, uma vez na ilha, os recém -chegados continuaram a deslocar -se.
Apesar de as entidades étnicas se terem mantido, a miscigenação é evidente,
como testemunha a unidade cultural da ilha.
A chegada dos Merina e a ocupação de Imerina:
nascimento do reino merina
As terras montanhosas são hoje ocupadas pelos Merina, os Sihanaka,
os Betsileo e os Bezanozano; algumas tradições afirmam que sua origem é a
mesma, apesar de os Merina, cujo ancestral Andriantomaza liderou a expedição
que desembarcou na baía de Antongil, constituírem uma aristocracia entre eles.
Deste ponto da costa, os recém -chegados alcançaram pouco a pouco as terras
montanhosas
11
. O ponto de desembarque parece ter sido mesmo a baía de
Antongil, tanto se vieram diretamente do sudeste asiático a Madagáscar quanto
se fizeram escalas no continente africano e nas ilhas Comores.
A chegada dos últimos imigrantes da Ásia pode ser situada entre os séculos
XIII e XV. É provável que, no fim deste período, tenham desembarcado em
pequenas ondas migratórias, espalhando -se na ilha ao longo de uma via marcada
por sítios, hoje reconhecidos e estudados. De Maroantsetra chegaram ao interior,
parando nas nascentes do Vaharina, na extremidade ocidental das falésias de
Angavo. Vohidrazana, ao norte de Tamatave, e Ambatomasina Vohidrazana de
Noramanga constituíram algumas etapas desta caminhada
12
.
Os relatos dos viajantes árabes do século XIII, e mesmo dos europeus no
XVI, corroboram a hipótese de uma chegada tardia de imigrantes indonésios
na costa leste
13
.
As tradições dos Betsileo também evocam o mesmo caminho para os imi-
grantes, da costa às nascentes do Mahatasiatra, conduzidos por Iarivo, fundador
10 Ver FAGERENG, 1971; OTTINO, 1975; KENT, 1970.
11 RAMILISON, 1951 -1952.
12 MILLE, 1970.
13 RALAIMIHOATRA, 1969 e 1971.
683
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
das dinastias locais. Foi uma penetração lenta, que nada teve de invasão maciça
e brutal, como nos mostra claramente a análise das tradições.
De fato, os recém -chegados não empreenderam guerras contra os antigos
ocupantes logo ao chegar. Os Tantara ny Andriana começam evocando a longa
coabitação das duas comunidades em Imerina. Teria sido somente após dois rei-
nados de Andrianaponga a Andriamanelo –, que os hóspedes teriam, segundo
a tradição, começado a guerrear contra seus hospedeiros.
Num país tão vasto, recoberto provavelmente em grande parte pela floresta e
pouco povoado, era possível que grupos humanos dispersos vivessem isolados uns
dos outros por bastante tempo, sem concorncia, enquanto nenhum deles mani-
festasse pretensões territoriais e políticas precisas. No entanto, gradativamente
foram estabelecidos contatos e alianças matrimoniais entre os recém -chegados e
os autóctones. Embora as tradições orais distingam claramente os Merina, os
Betsileo e os Sihanaka dos “Vazimba”, em outros relatos passa -se, sem ruptura,
de uma genealogia de reis ditos “vazimba” a uma de reis merina. Estes últi-
mos não se apresentariam, desta forma, como herdeiros e sucessores legítimos
dos primeiros reis? Não se exclui a possibilidade de que os últimos a chegar
tenham encontrado um quadro estatal com o qual colaboraram, confiscando -o
e renovando -o em seguida. Mais tarde, houve conflitos entre os tompon -tany
(senhores da terra) e os novos vizinhos. Numa tradição citada por R. P. Callet
14
,
os motivos parecem ter sido as ambições políticas dos Merina, que admitiam
com dificuldade a divisão de terras com os primeiros ocupantes, os senhores
do solo. O vencedor, o rei Andriamanelo, teria vencido os autóctones graças
à superioridade do armamento de ferro de seus soldados, pois os primeiros
habitantes ignoravam o uso desse metal. Uma questão importante: quando e
como o ferro foi introduzido na ilha?
15
Segundo uma teoria aceita, o ferro teria
chegado a Madagáscar antes do primeiro milênio de nossa era. O problema é
que os últimos imigrantes atribuem a si essa invenção capital.
De minha parte, aceito de boa vontade a teoria de J. -C. Hébert, bem engenhosa:
segundo ele, os Vazimba seriam simplesmente populações do interior com as quais
os últimos chegados (os Merina) e também os Sakalava estabeleceram relações
jocosas (ziva) “que supõem privilégios entre os quais o menos curioso não
é o insulto gratuito (ainda hoje manazimba quer dizer insultar)
16
. Assim,
14 Ver CALLET, 1908.
15 Ver volume 3, capítulo 25.
16 A hipótese é sedutora. Na África ocidental, as relações jocosas de parentesco têm papel importante;
atenuam, em muitos casos, a tensão social. Nas Repúblicas do Senegal, do Mali, da Guiné e da Costa
684
África do século  ao século 
vazimba” poderia designar um conjunto de populações mestiças de negros e
indonésios que ocupavam as terras montanhosas antes dos Merina.
As tradições merina e betsileo evocam, em sua maioria, uma fuga dos ven-
cidos para o oeste até o Menabe. Expulsos pelos reis das terras montanhosas,
instalaram -se em território sakalava; a lembrança deste deslocamento perma-
nece viva na memória de seus descendentes. Inquiridos sobre sua origem, os
Mikea, população que vive na floresta de Befandriana -sul (região de Tulear),
afirmam descender dos Vazimba” rechaçados por reis merina
17
. Não se pode, no
entanto, admitir sem discussão a hipótese de uma fuga generalizada dos autóc-
tones, que teriam deixado no local apenas os túmulos, ao mesmo tempo temidos
e venerados, como prova de sua antiga existência
18
. Além disso, a presença do
clã dos Antehiroka, descendentes dos Vazimba no próprio centro de Imerina, a
oés -noroeste de Antananarivo, permite refutar a hipótese de uma expulsão total das
primeiras populações. Mesmo que algumas tenham deixado Imerina, o Betsileo
ou o Menabe os Zafisoro, antiga popu lação do oeste, teriam emigrado para
leste após a conquista sakalava –, a maioria permaneceu. Os últimos imigrantes
tinham, de fato, interesse em se entender com os grupos considerados senhores
da terra (tompon -tany), em virtude de sua presença anterior. As alianças matri-
moniais multiplicaram -se e um modus vivendi se estabeleceu, pouco a pouco,
entre os vencedores e os vencidos. Os primeiros garantiram para si a adesão dos
antigos habitantes e os favores das divindades da terra
19
. Por sua submissão, os
segundos esperaram um tratamento menos rigoroso. No oeste,
a aliança entre os imigrantes e o grupo tompon -tany dos Andrambe deu origem ao
primeiro personagem histórico da dinastia dos Andriambolamena
20
.
do Marm, os Manden (Mandingo) e os Fulbe (Peul) fazem festas especiais onde os parentes jocosos
trocam presentes e insultos num ambiente em que não existem mais barreiras que separam os ricos dos
pobres, os grandes dos pequenos. (Nota do diretor do volume.)
17 Pesquisa de setembro de 1974 organizada pelo Centro Universitário de Tulear. Pesquisas feitas antes
e depois desta trazem -nos outros elementos de resposta sobre a origem das populações. Os Mikea
apresentam -se como refugiados ou da autoridade da dinastia real de Maroserana ou dos colonizadores.
Ver DINA & HOERNER, 1975.
18 Segundo uma tradição betsileo relatada por H. Dubois, não se encontra nenhum traço de “vazimba”
nem nas famílias reais nem nas de seus súditos. Os “Vazimba” teriam todos se retirado para oeste. Ver
DUBOIS, 1938.
19 HÉBERT, 1958. Hébert relaciona as palavras vazimba e ziza, termo que designa o parente jocoso, e
aventa a hipótese de uma aliança do “tipo zivana” entre os “senhores da terra e os recém -chegados.
20 Ver LOMBARD, J., 1973.
685
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
Assim nasceu o reino do Menabe, criado pelos Andrambe, onde se instaurou
um ritual de orações dedicadas aos ancestrais do rei por um oficiante chamado
mpitoka
21
.
Desta forma, os recém -chegados merina, betsileo e outros tornaram -se
gradualmente os senhores do território e organizaram os reinos, que contaram
com a contribuão econômica e cultural dos muçulmanos, os quais, como
se sabe, frequentavam, desde antes do século IX, Comores e Madagáscar. A
influência árabe e muçulmana, ao mesmo tempo política, econômica e cultural,
tornou -se muito forte na grande ilha e ilhas vizinhas, sobretudo nos séculos XII,
XIII e XIV.
A penetração do islamismo em Madagáscar e nas ilhas Comores
Com o desenvolvimento dos centros comerciais da costa da África oriental
22
e
a expansão da cultura swahili, grupos de muçulmanos da costa da África oriental
começaram a frequentar Madagáscar e Comores. Um fluxo contínuo de inter-
câmbio desenvolveu -se, então, entre as duas margens do canal de Moçambique,
mais tarde consolidado pelas colônias de populações muçulmanas que se insta-
laram nas ilhas Comores e em certas regiões de Madagáscar. Como ocupantes das
ilhas, etapas entre os empórios swahili da costa da África oriental e Madagáscar,
os habitantes das ilhas Comores conservaram melhor as tradições culturais de
seus países de origem. Em Madagáscar, porém, a situação foi menos definida. O
sudeste, região mais afastada dos centros de civilização swahili, foi pouco a pouco
integrado à tradição malgaxe, conservando, no entanto, alguns de seus traços ori-
ginais. Por outro lado, no nordeste, os descendentes dos grupos islamizados, que
mantiveram contato íntimo com os correligionários comerciantes de Comores
ou dos empórios da África, conservam até hoje sua verdadeira originalidade que
lhes conferem sua ascendência, seus costumes e suas tradições de gente do mar.
As tradições comorianas e malgaxes falam de ancestrais de origem árabe
obrigados a abandonar o país devido a suas convicções religiosas. Os sorabe
Antemoro relatam a chegada, por volta do século XV, de Ralitavaratra, ancestral
dos Antemoro -Anakara
23
detentor de relíquias sagradas legadas por Moisés
à sua família e cobiçadas pelo sultão de Meca, Al Tawarath que precisou
21 Ibid.
22 Segundo CHITTICK, 1967a, a islamização desta faixa costeira, que se estende de Mogadíscio a Sofala
começou por volta do século X com os estabelecimentos muçulmanos de Pemba e Zanzibar; ainda
no século XII, em muitas cidades continuou -se a praticar as religiões tradicionais.
23 Os Antemoro -Anakara são uma casta nobre antemoro com atribuições religiosas.
686
África do século  ao século 
fugir, sendo seguido por cerca de 30 fiéis. Após muitas peripécias, encontraram
a “terra prometida” às margens do rio Matitanana. As tradições conservadas
pelos Antambohoaka e pelos Antanosy (populações do sudeste malgaxe) evocam
também a vinda de Meca de um ancestral comum, Raminia
24
. Uma tradição
comoriana assinala a chegada a Anjuan, por volta do século XIV, de sunitas que
tiveram de abandonar a Pérsia por causa da dominação zaidita
25
. Tais relatos
refletem claramente a vontade de uns e outros de estarem ligados aos centros
mais célebres do Islã para poderem se impor e melhor salientar sua ascendência
ao mesmo tempo muçulmana e árabe
26
.
Apesar de as tradições insistirem nas causas religiosas para explicar a migra-
ção de grupos de árabes para o sul, a atração exercida por Comores e Madagáscar
foi bastante forte. Era cada vez maior o número de migrantes interessados no
comércio do mundo swahili. Ora, numerosos fatores – o estudo das viagens ára-
bes no oeste do oceano Índico, o conhecimento dos empórios da África oriental,
a existência em Comores e no noroeste de Madagáscar de tradições culturais
bem próximas das do mundo swahili, a descoberta nos sítios do nordeste e
sudeste da ilha de objetos que testemunham claramente relações comerciais
entre esse território e os portos africanos exigem outra forma de abordagem
do problema das migrações desses povos islamizados.
A escala do mundo swahili
Mesmo antes do estabelecimento de colônias muçulmanas, as cidades e ilhas
do litoral africano entre Mogadíscio e Sofala desenvolviam intensa atividade
comercial
27
. Voltadas mais para o mar do que para o interior, essas escalas, cuja pros-
peridade se consolidou a partir dos séculos XII e XIII, estenderam sua influência
para bem além da costa. Os empórios serviam de escala entre a Arábia – e talvez
mesmo a Índia –, de um lado, e Madagáscar e Comores, de outro. Além disso,
muitos imigrantes islamizados, chegando à rego, foram fortemente impregnados
pela cultura swahili, exercendo papel essencial na difusão do Islã na ilha.
No entanto, apesar de haver poucas informações na documentação escrita,
há motivos para crer que a influência africana foi grande. A arqueologia provou
24 FLACOURT, 1661.
25 ROBINEAU, 1962.
26 Essa tendência a reivindicar -se de origem árabe é encontrada em quase todas as dinastias islamizadas da
África oriental e do Sudão.
27 CHITTICK, 1974.
687
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
que as cidades costeiras foram, na realidade, fundadas por africanos e não por
árabes. Deve -se usar de cautela ao se falar na influência muçulmana, pois os
árabes, nesse caso, não estariam necessariamente envolvidos. o nenhuma
razão para não se admitir a existência de relações antigas entre as populações
negras da ilha e as do continente.
Os empórios comerciais
Os empórios do noroeste malgaxe e de Comores apresentavam muitas seme-
lhanças com as cidades da costa da África oriental, tanto por sua configuração
como pelo modo de vida de seus habitantes. As ruínas das fortificações, os ves-
tígios de mesquitas, as antigas casas com portas ricamente esculpidas que ainda
existem em Anjuan são testemunhos de uma vida profundamente marcada pelo
Islã e pela civilização árabe nos empórios de Mutsamudu, Wani, Domoni e
Sima
28
. Apesar de seus preconceitos, os portugueses deixaram descrições inte-
ressantes da vida nas escalas do noroeste de Madagáscar no início do século
XVI. Referindo -se a um dos empórios mais importantes, o de Nosy Langany,
escreveram:
Sua população [a de Lulangane] era composta por muçulmanos mais civili zados e mais
ricos do que os que habitavam todos os outros pontos da costa, pois suas mesquitas
e a maioria das casas eram de pedra calcárea com terraços, como as de Kiloa [Kilwa]
e Monabza [Mombaça]
29
.
Restos de fortificações comparáveis aos da costa da África oriental foram
descobertos no sítio de Mahilaka
30
. As baías profundas que recortam o litoral
noroeste da ilha, Ampasindava, Mahajamba e Boina, abrigam uma série de esta-
belecimentos comerciais (Mahilaka, Sada, Nosy Langany, Nosy Boina etc.), que
mantinham relações estreitas com Comores e com a África e que participavam
da cultura marítima swahili.
O carregamento das embarcações árabes nas costas malgaxes consistia em
arroz, objetos de cloritoxisto (recipientes destinados ao uso funerário: taças com
pé, panelas trípodes), cujo principal centro de fabricação encontra -se em Iharana
(na costa noroeste de Madagáscar)
31
. Os empórios malgaxes importavam pérolas
28 VÉRIN, 1967a.
29 Apud POIRIER, 1954.
30 MILLOT, 1912; VÉRIN, 1973.
31 VERNIER & MILLOT, 1971.
688
África do século  ao século 
F . Sítio de Antongona (séculos XV -XVIII). De acordo com uma gravura do m do século XIX.
No alto da montanha, cercada por aviavy e amontana (Ficus), a vila (rova) era a residência dos príncipes; a
entrada abre -se numa forticação de pedra insossa.
F . Antsoheribory, na baía
de Boina. A arquitetura desta porta de
coral talhado de um túmulo antalaotse
mostra as semelhanças culturais da
costa da África oriental.
689
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
indianas, tecidos, cerâmica chinesa – pratos e tigelas, presentes, com frequência,
no mobiliário funerário. As escalas da costa noroeste garantiam a redistribuição
dos produtos importados; as escavões em Rezoky e em Asambalahy exumaram
objetos característicos de sítios swahili
32
. Apesar da concorrência europeia a
partir do século XVI, as colônias de populações islamizadas continuaram a
exercer suas tão lucrativas atividades.
O povoamento das ilhas Comores e o grupo dos Antalaoetse.
Apesar de Comores e, principalmente, a ilha de Anjuan provavelmente terem
recebido imigrantes indonésios e bantu, estes foram submersos por ondas suces-
sivas de populações islamizadas, originárias da costa da África oriental. Segundo
um processo clássico, os últimos a chegar se impuseram pela foa, pretendendo -se
defensores da verdadeira num país onde os crentes, longe das fontes do Is, ten-
diam a descuidar de seusbitos religiosos”
33
. Procurando estabelecer o domínio
político sobre as primeiras populações, os recém -chegados deram novo impulso
a sua religião
34
.
As colônias de muçulmanos do noroeste de Madagáscar formaram o grupo
dos Antalaotse, preponderante economicamente, à semelhança de uma poderosa
burguesia comercial organizada em verdadeiras cidades -Estado, dirigidas por
chefes ao mesmo tempo políticos e religiosos
35
.
A civilização malgaxe, do século XII ao século XVI
Convém deixar claro que pouco sabemos da época dita “vazimba além do que
contam as tradições daqueles que rechaçaram as primeiras populações e lançaram
as bases dos reinos. Muito se pode esperar da arqueologia, mas os trabalhos mal
começaram; os projetos de escavações, sob o patrocínio do Museu e do Centro de
Arte e de Arqueologia da Universidade de Antananarivo, começam a tornar -se
sistemáticos; importantes trabalhos estão em curso em Androy
36
. O leitor deve
32 VÉRIN, 1980.
33 ROBINEAU, 1962.
34 Por exemplo, mandando construir mesquitas. É o caso do “xiraziano Hassani ben Muhammad, que
mandou construir no século XV a mesquita de Sima.
35 Cidades -Estado, réplicas das da costa da África oriental e símbolos da cultura marítima swahili; ver
MOLLAT, 1980.
36 HEURTBIZE & VÉRIN, 1974; ver DOMENICHINI, 1979a; ver WRIGHT, T., 1977.
690
África do século  ao século 
se reportar ao volume 3 desta obra, onde se trata do primeiro povoamento da
ilha e da cultura encontrada pelos imigrantes que chegaram após o século XII.
Entre os séculos XII e XV, à medida que os recém -chegados desembarcavam
na ilha, integravam -se aos grupos existentes ou se organizavam segundo o modelo
clássico dos autóctones. Desconhecemos o processo em que se deu a interação
entre as etnias africanas e asiáticas; em compensação, os documentos escritos
mostram -nos os muçulmanos swahili instalando -se em Comores e na ilha, e
mantendo contato com a costa swahili.
Cultura material
As pesquisas de campo realizadas por arqueólogos mostram que a agricultura
é anterior ao período aqui estudado. Após o século XII, a cultura do arroz, do
inhame, da banana e do cacau espalhou -se por toda a ilha. Os animais domésti-
cos, bois e aves, eram de origem africana. Seria arriscado tentar discernir divisões
F . Ambohitrikanjaka (Imerina). Planta da complexa rede de forticões (fossos às vezes reforçados
com muros de pedra insossa) de um sítio no alto de um monte, do século XV aproximadamente. (J. P. Domenichini
e D. Rosamuel.)
691
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
sociais extensivas
37
. À medida que a ilha se povoava, multiplicavam -se as aldeias e
organizavam -se os clãs. A pesca era muito importante, e a piroga com flutuador
lateral dava aos ilhéus um bom domínio do mar. A cultura do arroz era impor-
tante, constituindo, esse produto, a base da alimentação.
A cultura material das regiões do sul, do oeste e de uma parte do norte parece
ter sido predominantemente africana. Segundo C. Ravoajanahary, a cultura do
arroz em campos inundados é uma técnica indonésia, enquanto a criação de zebu
e a cultura do inhame são tipicamente africanas
38
. De acordo com esse autor,
foram as últimas ondas migratórias do século XIV
que introduziram os modelos políticos e rituais que, a partir do século XV, favo-
receram a formação dos primeiros reinos malgaxes, a princípio no sudeste, depois
paralelamente no sul, oeste e terras montanhosas.
Pode -se supor que as estruturas de base existissem no século XV: as famílias
se agrupavam em clãs, por sua vez reunidos em aldeias mais ou menos autônomas.
Os trabalhos arqueológicos trouxeram à luz muitas cerâmicas (ver fig. 24.5),
a partir das quais ainda não se podem, todavia, tirar conclusões válidas; no
máximo, definir alguns estilos de cerâmica próximos do estilo indonésio e outros
próximos do estilo africano. Numerosas datações por carbono -14 deverão ser
feitas para que se possam preencher lacunas em nosso conhecimento
39
.
A realeza e suas instituições
Do clã ao reino
Organizados em torno de chefes ou patriarcas, os clãs parecem ter se formado
muito cedo. Os termos foko, troki, firazana designam as principais características
do clã: o aspecto comunitário (foko = comunidade) e uma mesma ascendência para
os indivíduos que o compunham (firazana = ascendência; troki = seio materno).
O cconstituía a unidade básica do reino, e se apoiava nas aldeias ou na terra
cultivada. A maioria das tradições põe ênfase nas lutas entre clãs na fase de
formação dos reinos. Dentro do clã, a autoridade pertencia aos anciãos, cujo
porta -voz era o patriarca, o mais idoso. A cultura e os ritos religiosos sedimen-
tavam ainda mais a unidade linguística.
37 BOITEAU, 1974.
38 Ver RAVOAJANAHARY, 1980, p. 91 -2.
39 Ver VÉRIN, 1980, p. 116 -7.
692
África do século  ao século 
Os primeiros reinos e sua evolução
Apesar de a origem árabe dos príncipes que nas ilhas Comores substituí-
ram os fani primeiros chefes islamizados que sucederam os beja do peodo
pré -islâmico não ter, aparentemente, apresentado qualquer problema, a das
dinastias conquistadoras malgaxes apresenta alguns. Muitas tradições evocam os
laços de parentesco que uniam as dinastias do oeste e do sul (Maroserana, Sakalava
e Mahafaly, Zafimanara da região do Androy) às do sudeste (os Zafiraminia
do Anosy). A área de estabelecimento de grupos arabizados aparece como o
berço de grande número de dinastias malgaxes. A tradão manm a lembraa
de migrações leste –oeste a partir do terririo antemoro, por um lado (migração dos
Zafiramba Tanala), e do Anosy, por outro (migração dos Maroserana). A rota tomada
pelos futuros soberanos do Menabe seguia o rio Itomampy, passava ao norte do
Onilahy e atravessava o Fiherenana e o Mangoky antes de chegar a Bengy
40
.
Tentar agora ver o que nas concepções monárquicas seria uma herança exclu-
sivamente africana ou indonésia na medida em que se pode dizer que as
instituições da realeza resultaram, em parte, do dinamismo próprio às primeiras
sociedades permitiria definir melhor o papel dos arabizados ou muçulmanos
na constituição dos reinos malgaxes. É dessa forma que o estudo dos aspectos
africanos da cultura malgaxe levou os historiadores a procurar no continente as
origens de certas instituições fundamentais, como o culto de relíquias dos reis
40 Ver LOMBARD, J., 1973.
F . Reconstituição de uma tigela encontrada em Milangana no Vakinisisaony. Cerâmica gratada,
típica dos produtos de Imerina do século XV. (Conforme desenho de J. P. Domenichini, passado a limpo
por Rambeloarison.)
693
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
mortos (culto dos dady no território sakalava). R. Kent assemelha ao célebre
Império de Monomotapa o Reino dos Maroserana Volamena, sem, no entanto,
concluir pela origem africana dos últimos. Depois de criticar severamente o
mito dos reis brancos” de origem asiática, defendido por A. Grandidier, R. Kent
levanta a hipótese de uma origem muito miscigenada dos Andriana Merina.
No seu entender, eles descenderiam dos tompon -tany, novos imigrantes de ori-
gem desconhecida, e talvez até dos arabizados zafiraminia
41
. As instituições
políticas são, portanto, uma simbiose das contribuições negra, asiática e muçul-
mana, enriquecida por contribuições de novos imigrantes desconhecidos, talvez
Zafiraminia arabizados. E refletem essas muitas influências; a maior parte dos
autores hoje concorda em que se deva trazer à luz o importante papel desem-
penhado pelos árabes na história política e social da ilha. Os textos estabelecem
claramente que no século XIV novas concepções foram introduzidas na esfera
do poder político, principalmente na divisão do reino em “unidades territoriais
homogêneas”. Nós próprios observamos a importância que as tradições atribuem
às dinastias de Zafiraminia de origem árabo -hindu, assim como a das tradições
de outros grupos antemoro, os quais incluíam alguns elementos vindos direta-
mente de Meca, os Antanpansemac (“povo das areias de Meca”)
42
.
Com relação a essa questão, muito ainda deve ser feito para que se possa
conhecer melhor os fundamentos do poder em Madagáscar; no entanto é certo
que a realeza se fortaleceu no século XV, com uma influência muçulmana bem
marcada.
A religião
É uma simbiose de elementos africanos e indonésios, sem excluir a influên-
cia do Islã, que continuou preponderante, principalmente nas ilhas Comores.
Geralmente é difícil distinguir os diferentes grupos de migrantes; mas o que
importa é a simbiose, que grande originalidade a Madagáscar.
O panteão
No panteão malgaxe, o primeiro lugar é ocupado pelo principal deus da
Indonésia: Zanahary ou Andriananahary, nas regiões litorâneas, Andriananitra
(senhor perfumado), no interior. É a divindade mais poderosa, a que criou o
mundo, formou a sociedade e concedeu os costumes. É a primeira divindade
41 Ver KENT, 1970.
42 FLACOURT, 1661.
694
África do século  ao século 
evocada nas preces, mas é um deus distante; para atingi -lo, os homens apelam
para divindades secundárias ou gênios, da água e da floresta. O espírito dos
ancestrais também é invocado; as preces são dirigidas aos “Vazimba”, senhores
da terra. Florestas, rochedos e árvores grandes podem ser lugares de culto.
As oferendas
São feitos sacrifícios para as divindades; é muito frequente o sacrifício do
búfalo, menos, porém, que o do boi, praticado por toda parte e em várias ocasiões
da vida
43
.
O feiticeiro
Entre as crenças, é preciso mencionar o feiticeiro, temido na sociedade.
É difícil concluir se o feiticeiro é de origem asiática ou africana; o nome pelo
qual é designado, inpamosary, é asiático, mas encontram -se na África feiticeiros
com as mesmas características que em Madagáscar.
Os funerais
Como na Indonésia, pratica -se em Madagáscar o funeral duplo; entre os
Betsileo, os que carregam o morto dançam como possuídos, caminhando para
o túmulo em ziguezague.
Todos os elementos que hoje podemos analisar remontam provavelmente a
essa época de síntese entre os séculos XII e XVI.
Conclusão
Ainda resta muito a fazer para que se possa elucidar melhor este período da his-
tória da grande ilha, período essencial para a formão do povo malgaxe, que desfruta
de incontestável unidade linguística, mas que ainda apresenta problemas.
Agradecemos a Unesco, que, organizando a reunião de especialistas em
Maucio, contribuiu para estimular o interesse pelo problema geral das relações
históricas através do oceano Índico. Madascar está a tal ponto envolvida
em tais relações que sua cultura e sua hisria serão elucidadas à medida
43 Qual a origem do sacrifício do boi? Acredita -se que os bois foram introduzidos na ilha pelos negros. É
uma prática que remontaria a passado muito distante.
695
Madagáscar e as ilhas vizinhas, do século XII ao XVI
que aprofundarmos nossos conhecimentos sobre essas relações. As escavações
arqueológicas e as coletas de tradições orais mais diversificadas, e mais sisteticas
no plano regional, ajudarão a compreender a diversidade dos elementos cons-
titutivos da cultura malgaxe.
Este estudo apresenta, inevitavelmente, muitas lacunas. Vários pontos per-
manecem obscuros; é preciso ainda levantar alguns fady (tabus), principalmente
aqueles relativos aos famosos túmulos dos “Vazimba”.
Madascar apresenta um caso de simbiose, cujo estudo é ainda mais interessante
que o da história da África. A Abia, a Índia, a África e a Indosia encontraram -se
nessa ilha, oferecendo ao mundo exemplo eloquente de mestiçagem biológica
e cultural que deu tão belos frutos.
C A P Í T U L O 2 5
697
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
Entre 1100 e 1500, a África foi um parceiro privilegiado nas relações intercontinentais
do Velho Mundo. Tanto atras do Mediterrâneo como atras do oceano Índico,
um corcio intenso, mais frequentemente intermediado pelos mulmanos, ligava
a Europa e a Ásia ao continente africano. Deve -se enfatizar que vários tipos de
corcio organizado no interior da África existiam desde a pré -história. Como
veremos neste capítulo, as pesquisas pouco a pouco vão fornecendo informa-
ções cada vez mais precisas, em particular no que diz respeito à amplitude dos
intercâmbios entre regiões do continente africano. No entanto no atual estágio
de nossos conhecimentos não é possível ainda tratar de maneira exaustiva as
relações entre as várias regiões da África do século XII ao XVI.
Parece que no plano econômico e comercial a África estava em plena expansão
nos séculos XIV e XV; mas os contatos com o Ocidente abertos pelo tráfico de
escravos significaram a interrupção de um impulso vigoroso, que teria mudado
o curso da história da África, caso o comércio se tivesse desenvolvido com mer-
cadorias de fato. Grandes correntes de intercâmbios culturais atravessaram o
continente em todas as direções, confundindo -se por vezes com as correntes de
comércio.o havia mais regiões isoladas, pois nem florestas nem desertos cons-
tituíam barreiras intransponíveis. Hoje, as escavações arqueológicas, o estudo das
línguas africanas e das tradições orais abrem novas perspectivas para a pesquisa
histórica e começam a esclarecer o problema das migrações, da transferência de
tecnologia e das relações entre regiões bastante afastadas.
Relações e intercâmbios
entre as várias regiões
Djibril Tamsir Niane
698
África do século  ao século 
O papel do Islã, tanto na difusão de ideias como no comércio, foi de extrema
importância à época, como ilustram as viagens de Ibn Battūta para a China e
pela África oriental e ocidental. Nossos conhecimentos sobre as populações no
período que ora tratamos muito devem aos trabalhos dos geógrafos, viajantes e
historiadores muçulmanos.
O Saara e o Sahel: um espaço privilegiado para
a pesquisa no estudo das relações exteriores
Em meados deste século, historiadores europeus tentaram explicar o atual
atraso tecnológico da África pela existência do Saara, que, segundo diziam, teria
isolado a África negra do mundo mediterrâneo. Na realidade, mesmo quando se
tornou desértico, o Saara nunca constituiu uma barreira. Afinal, não era desabi-
tado. Era a terra dos nômades, que mantinham contatos estreitos com os povos
sedentários do norte e do sul. Entre 1100 e 1500, o Saara serviu como zona de
passagem privilegiada, e pode -se dizer que esse período correspondeu à idade
de ouro do comércio transaariano. A partir do século X, o comércio de ouro da
África ocidental com a África setentrional desenvolveu -se com regularidade. O
Saara foi comparado, com procedência, com o mar: o Sahel sudanês e as frontei-
ras meridionais da África setentrional seriam seu litoral. No sul, Tichit, Walata,
Tombuctu, Tirekka e Gao eram os terminais mais importantes das caravanas de
Tamdult, Sidjilmasa, Tlemcen, Wargla e Ghadames. Só o dromedário se pres-
tava para a travessia do deserto, que levava dois meses, senão três. Isso explica
a importância das grandes pastagens ao norte e ao sul do Saara, reservadas à
alimentação e à criação de dromedários, e também as disputas, às vezes violentas,
entre os nômades pelo controle desses pastos.
Tanto ao norte como ao sul, o comércio transaariano estendeu -se bem além
dos portos” mencionados; o Tuat e o Ghura, o Djard tunisiano e os oásis líbios
foram tão importantes para o comércio transaariano quanto os próprios portos”.
Do Sahel à savana florestal, as vias terrestres e fluviais completavam o sistema
transaariano. Certamente é este o caso da atual República do Senegal, sendo
bem conhecido o sistema constituído pela bacia superior do Níger
1
. As mais
1 Arqueólogos poloneses e holandeses acreditam ter encontrado importante índice da circulação de pessoas
e de bens, do alto Níger, onde foi construída Niani, até o território dogon, na ocorrência de algumas
cerâmicas de forma tão característica que a conexão torna -se indiscutível. Mas resta saber em que direção
ela se deu: se do sul para o norte, ou se do norte para o sul.
699
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
recentes pesquisas realizadas em Burkina Fasso (ex -Alto Volta) e nas Repúblicas
de Gana e da Nigéria sugerem que se desenvolveram relações comerciais entre
a África ao sul do Saara e o Magreb. A área em questão situa -se na savana, e há
muitas evidências arqueológicas de que era bem frequentada
2
. No norte da atual
República Federal da Nigéria, essa corrente de circulação certamente encontrava
a que vinha da atual República do Chade, de que trataremos mais tarde.
Os nômades, senhores do deserto, foram muito beneficiados pelo comércio
transaariano, pois as caravanas levavam -lhes cereais e tecidos em troca de carne,
sal e água. Assim, os mades e os povos sedentários complementavam -se.
As caravanas necessitavam de guias na imensidão do Saara; estes lhes eram
fornecidos pelos nômades, que conheciam as rotas e eram pagos a preço de
ouro. A travessia do Saara tinha que ser preparada minuciosamente; os camelos
eram alimentados durante várias semanas. Para chegar ao Sudão, Ibn Battūta
foi a Sidjilmasa, ponto de encontro dos que partiam do Marrocos para o sul, e
anotou: “Nesta cidade comprei camelos, que alimentei com forragem durante
quatro meses”
3
. A caravana era liderada por um chefe, que a todos comandava
como um capitão de navio. Começada a viagem, ninguém deveria atrasar -se ou
avançar muito rapidamente, nem se afastar do grupo, pois podia se perder no
imenso deserto.
Os nômades, como os Messufa, especializados no comércio transaariano,
forneciam guias e mensageiros para as caravanas. Sigamos a caravana de Ibn
Battūta para Niani (Mali), capital do império dos mansa. Após 25 dias de
viagem, a caravana chegou a Teghazza, importante salina do Saara; homens e
animais descansaram até recobrar fôlego. Depois de dez dias a caravana partiu
em direção a Walata. Dez dias antes da chegada, os caravaneiros enviaram um
mensageiro à cidade. Este levava cartas a correspondentes “que lhes alugariam
casas e viriam encontrá -los com uma provisão de água quando faltassem quatro
dias de viagem
4
. O mensageiro era muito bem pago: 100 mithkāl, segundo Ibn
Battūta. A caravana estaria perdida se o mensageiro não conseguisse chegar
a Walata; mas isso raramente acontecia, pois os Messufa conheciam bem o
deserto. Em 1964, Theodore Monod descobriu grande quantidade de cauris,
2 Ver POSNANSKY, 1974; BOAHEN, 1974. Ele acredita serem os Akan originários da região entre
o Benue e o lago Chade, mostrando claramente que os movimentos de ida e vinda entre o norte e as
regiões orestais do sul não são um mito; a análise linguística e toponímica podem desvendar as formas
de migração e as rotas comerciais. Cf. SHAW, T., 1970, v. 2, p. 280 -7.
3 IBN BATTA, in CUOQ, 1975, p. 292 -3.
4 Ibid., p. 293.
700
África do século  ao século 
barras de cobre e restos de tecido enterrados na areia, na Mauritânia; pode
tratar -se de mercadorias de uma caravana que “naufragou” no deserto
5
.
Ibn Battūta chegou a Walata, a primeira cidade do Mali, depois de dois
meses de viagem. Ali morava um governador representante do imperador do
Mali, e a caravana teve de preencher algumas formalidades alfandegárias. Walata
também era um centro comercial onde mercadores negro -africanos se encon-
travam com mercadores árabo -berberes. Isso explicaria a longa estada de Ibn
Battūta na cidade – cerca de 51 dias. De Walata, após 24 dias, o viajante alcan-
çou “Malli” (Niani), capital dos mansa. As estradas eram seguras; nos limites
do império, era possível viajar sozinho sem temer ladrões ou bandidos. Os
viajantes das estradas do Velho Mundo apreciavam muitíssimo essa segurança.
Enquanto no Sudão imperou um poder forte, os nômades contentaram -se em
tirar proveito dos serviços que podiam prestar às caravanas. Quando o poder se
enfraqueceu, provocando a ruína das cidades, eles deixaram o deserto e passaram
a rondá -las.
O comércio do ouro
No século X, o rei de Gana era, segundo Ibn Hawkal,
o soberano mais rico da terra [...] possui grande riqueza e reservas de ouro, que tem
sido extraído desde tempos remotos em proveito dos reis que o antecederam e em
seu próprio benefício.
No Sudão, acumular ouro era uma antiga tradição, ao passo que em Gana o
rei tinha o monopólio sobre as pepitas encontradas nas minas:
Quando são descobertas pepitas de ouro nas minas do país, o rei reserva -as para si,
deixando o pó de ouro para seus súditos. Se não fizesse isso, o ouro seria abundante
e se depreciaria [...] Diz -se que o rei possui uma pepita do tamanho de uma grande
pedra
6
.
No entanto os sudaneses sempre mantiveram os muçulmanos na mais com-
pleta ignorância quanto à localização das minas de ouro e à forma de explorá -lo.
O mansa Mūsā I, sem mentir e fornecendo várias explicações, inclusive sobre a
exploração das minas, não deu maiores esclarecimentos aos habitantes do Cairo
5 A datação por carbono -14 situa estes vestígios em 1165 ± 110 (ou seja, entre 1055 e 1275).
6 IBN HAWKAL, in CUOQ, 1975, p. 74. Quanto a esta pepita, herdada pelos mansa, Ibn Khaldūn conta
que um rei de Niani vendeu -a barato para mercadores egípcios. IBN KHALDŪN, in CUOQ, 1975, p.
340 -7.
701
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
que lhe fizeram perguntas sobre seu fabuloso império. Isso explicaria como o
rei do Mali manteve sua reputação de riqueza extraordinária. Pouco mais de
uma geração após sua peregrinação, o mansa apareceu segurando na mão sua
pepita de ouro no famoso atlas de Maiorca feito para Carlos V da França. Os
maiorquinos poderiam ter sabido dessa história pelos muçulmanos. Hoje está
praticamente estabelecido que, além das conhecidas jazidas de Galam, Burem
e Bambuku, o ouro das regiões pré -florestais e florestais – atuais Repúblicas da
Costa do Marfim, de Gana e da Nigéria alimentava o comércio setentrional
daquela época. É sabido que o comércio de ouro do Mali foi muito importante
na Idade Média, mas seria arriscado adiantar estimativas sobre a quantidade do
metal exportada. A generosidade dos mansa leva à suposição de que o montante
de ouro acumulado era considerável. No Sudão, o ouro era tido como “sagrado”,
ou, ao menos, dotado de poder misterioso. No pensamento tradicional, apenas
o rei podia dominar o “espírito do ouro. A mesma concepção prevalecia nas
regiões florestais do sul, onde as chefarias possuíam muito ouro.
O sal e outras mercadorias
O sal teve um papel preponderante no comércio transaariano, bem como
no de outras regiões africanas. Muitos dirigentes da África ocidental constan-
temente tentaram abaixar seu preço
7
. Oficiais alfandegários controlavam rigo-
rosamente as exportações e importações de sal. As minas de Teghazza supriam
os mercados do Sudão ocidental; as regiões do rio Senegal obtinham sal -gema
em Awlil, mas a distribuição desse sal dificilmente ultrapassava o interior da
curva do Níger.
Grande parte da renda da coroa provinha da taxação do sal, e isso se manteve
no século XIV. Ibn Battūta, que visitou Teghazza, nos dá informações precisas:
Os sudaneses vêm até aqui [Teghazza] para se abastecer de sal. O carregamento vem
de Iwalatan [Walata] ao preço de 8 a 10 mithkāl e é vendido na cidade de Malli
[Niani] por 20 ou 30 e às vezes até 40 mithkāl
8
.
O sal servia de moeda comercial para os sudaneses, assim como o ouro e a
prata. Cortavam -no em pedaços para negociá -lo. Apesar de o burgo de Teghazza
ser de pouca imporncia, ali se comercializava grande quantidade de de ouro.
7 DEVISSE, 1972, p. 50 et seq., 61 et seq.
8 IBN BATTA, in CUOQ, 1975, p. 288 -90.
702
África do século  ao século 
O sal era muito caro no Sudão. O preço era quatro vezes maior em Niani
e Walata; provavelmente os povos da floresta pagavam -no ainda mais caro. O
sal -gema cortado em pedaços pequenos servia de brinde ou dinheiro miúdo para
os comerciantes itinerantes. Da mesma forma, as nozes -de -cola provenientes da
floresta serviam de moeda nos mercados das aldeias. Começa a parecer provável
que os povos da floresta obtivessem sal por outros meios, como, por exemplo,
pela queima de plantas salíferas. O sal também vinha da costa, embora em
pequena quantidade
9
.
Falta sal no interior do Sudão; alguns indivíduos trazem -no em segredo, e as pessoas
trocam -no por um monte equivalente de ouro
10
.
Essa informação do autor árabe não é destituída de fundamento, apesar de
parcialmente exagerada; é fácil imaginar os Wangara ou os Haussa negociando
com seus clientes nas áreas da floresta onde iam comprar nozes -de -cola, ouro
e escravos.
O cobre também era artigo importante no comércio da África ocidental e
de outras partes do continente. Pesquisas de anos recentes começam a revelar as
formas mais antigas do comércio do cobre na África ocidental
11
.
A possessão de uma mina de cobre no século XIV ainda tinha grande sig-
nificado econômico, fato que foi demonstrado na “entrevista” do mansa do Mali
ao povo do Cairo, quando ele disse:
Na cidade de Tigida [Takedda], há uma mina de cobre vermelho, que é expor - tado
em barras para a cidade de Niani, constituindo uma fonte especial e inigualável de
renda. Na verdade, mandamos esse cobre ao Sudão pagão, onde o vendemos à razão
de 1 mithkāl de ouro por dois terços do seu peso em ouro
12
.
Trata -se de uma precisão extrema. O mithkāl sudanês pesa aproximadamente
4,25g. Se o cobre era vendido por quase seu peso em ouro, o Mali deve ter -se
beneficiado de um comércio particularmente lucrativo com as populações da
floresta”, a que o mansa se refere quando fala no “Sudão pagão”.
9 DAPPER, 1686, p. 280.
10 AL -‘UMARĪ, in CUOQ, 1975, p. 282.
11 Ver História geral da África, v. 3, capítulo 14. Atualmente se reconhece a antiguidade da produção e do
comércio do cobre, principalmente na área do Sahel. Cabe lembrar a importância das recentes desco-
bertas no Air relativas à antiguidade da fundição e provavelmente do comércio de cobre. Ver também
BERNUS, GOULETQUER & KLEINMAN, 1976.
12 AL -‘UMARĪ, in CUOQ, 1975, p. 282.
703
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
O relato de viagem de Ibn Battūta, que passou muitos meses em Niani,
a impressão de que as cidades do Sahel e do Saara eram organizadas para
servir ao mesmo tempo de pontos de parada e de centros comerciais. É o caso
de Teghazza e de Takedda (“Tigida”), principais centros comerciais do cobre
13
.
O grande viajante informa -nos que o cobre era moldado em barras grossas ou
finas. As primeiras eram vendidas ao preço de 1 mithkāl de ouro por 400 barras,
e as segundas ao preço de 1 mithkāl por 600 ou 700 barras. As barras de cobre
eram utilizadas na região como moeda para a aquisição de madeira, carne, sorgo,
manteiga e trigo. Ibn Battūta também diz que o povo de Takedda não tinha
outra ocupação além do comércio”. Essa gente todo ano viajava para o Egito, de
onde importava todos os tipos de finos tecidos e outros artigos. Os habitantes de
Takedda eram prósperos e gozavam uma vida abastada, tendo grande número de
escravos de ambos os sexos. As escravas instruídas só raramente eram vendidas,
e por um preço alto. Ibn Battūta teve dificuldades para comprar uma,que os
que as possuíam recusavam -se a vendê -las
14
. Conta que um habitante que con-
cordou em vender -lhe uma delas arrependeu -se tanto que quase morreu com o
coração partido”. Infelizmente não nos relata em que consistia a educação dessas
mulheres escravas, tão requisitadas. É muito provável que fossem procuradas por
seus talentos culinários ou por sua grande beleza.
De Takedda, Ibn Battūta partiu para Tuat numa grande caravana, com cerca de
600 mulheres escravas. Esse é um dado muito revelador, pois nos informa quantos
escravos uma caravana podia transferir do Sudão para o Magreb, e também que o
objetivo do tráfico de escravos era fornecer empregados domésticos, às vezes bem
especializados em algumas atividades, para a aristocracia árabo -berbere. Os sobe-
ranos sudaneses também importavam escravos, sobretudo do Cairo, para formar
sua guarda pessoal. Quando o mansa sentava no trono em praça pública,
ats dele postam -se cerca de 30 mercerios [mamelucos] turcos ou o, comprados para
ele no Cairo. Um deles segura um guarda -sol de seda encimado por uma pula e um
ssaro dourado representando um gavião
15
.
Para os soberanos e a aristocracia, o que contava era ter uma comitiva bem
dotada e leal.
Alguns autores tentaram atribuir importância injustificada à exportação de
escravos para os países árabes. No período ora estudado, esse comércio não
13 IBN BATTŪTA, in CUOQ, 1975, p. 295.
14 Ibid., p. 318. Quanto ao cobre de Takedda, ver BERNUS & GOULETQUER, 1976.
15 AL -‘UMARĪ, in CUOQ, 1975, p. 269.
704
África do século  ao século 
constituía uma hemorragia, pois o que mais interessava aos árabes no Sudão era
o ouro, cuja necessidade para cunhagem se fazia urgente ao redor do Mediter-
râneo. Raymond Mauny arriscou uma estimativa do número de escravos negros
exportados para o norte da ordem de 20 mil por ano, ou 2 milhões por século
16
.
Os árabo -berberes não tinham tanta necessidade de mão de obra para uma
demanda tão grande. É importante lembrar o famoso tratado, referido como o
bakt, assinado pelos dirigentes do Egito e pelos reis da Núbia. Estipulava ele
que o rei da Núbia deveria mandar 442 escravos anualmente para o Cairo, assim
distribuídos: 365 para o tesouro público, 40 para o governador do Cairo, 20 para
seu delegado em Aswan (Assuã), 5 para o juiz de Aswan e 12 para os 12 notários
da cidade. O tributo exigido pelo sultão do Cairo prova que as necessidades da
corte não eram enormes.
O tfico transaariano de escravos, se foi permanente do século VIII ao
XVI, nunca ultrapassou certo limite. Para alimentar esse comércio, os sobera-
nos guerreavam com o sul, preferindo poupar as reservas disponíveis em seus
Estados.
Os árabo -berberes não procuravam ouro, como também marfim. As presas
de elefantes africanos eram muito valorizadas na Arábia e na Índia por serem
mais moles e, portanto, mais fáceis de esculpir do que as dos elefantes da Ásia,
extremamente duras
17
. O Sudão também vendia peles, ônix, couro e cereais
para os oásis do Saara. No século XIV, quando do apogeu do Mali, a rota mais
frequentada era a que foi utilizada por Ibn Battūta; uma outra rota, bastante
usada pelos peregrinos do Mali, ia de Tombuctu a Kayrawān (Kairuan), pas-
sando por Wargla.
Nas cidades do Magreb, bem como em Ghadames e no Egito, havia dinastias
de comerciantes ricos, verdadeiros armadores”, que carregavam as caravanas
transaarianas. Um exemplo notável é o dos irmãos al -Makkar, de Tlemcen, que
elaboraram criteriosa divisão de trabalho: dois deles ficavam em Tlemcen, um
em Sidjilmasa e dois outros no Sudão, tendo conseguido criar uma vasta rede
comercial sob a proteção dos mansa do Mali.
O de Tlemcen despachava a seu iro saariano as mercadorias por ele requisitadas, e o
saariano lhe enviava peles, marfim, nozes -de -cola e ouro em . O de Sidjilmasa, como
a agulha de uma balança, informava -lhes as tenncias de subidas e quedas dos preços e
16 MAUNY, 1961.
17 SHAW, T., 1970, v. 2, p. 272 -85.
705
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
escrevia -lhes sobre a situão dos vários co merciantes e sobre os acontecimentos locais.
E assim crescia sua riqueza, e sua situação melhorava consideravelmente
18
.
Os irmãos al -Makkarconstitam, assim, verdadeira corporação em Tlemcen,
com filiais em Sidjilmasa e Walata, e com rede de informão e intermedrios pró-
prios. Provavelmente os mercadores manden (mandingo) e haussa organizavam seus
negócios e casas de comércio da mesma forma, em suas relões com os centros
comerciais da savana e da floresta
19
.
É bem provável que o papel das comunidades judaicas nesse comércio tenha
sido muito importante. A pesquisa de T. Lewicki revelou a participação dos
judeus de Tuat desde os séculos VIII e IX
20
. Deve -se acreditar no Ta’rīkh
al -fattāsh quando menciona fazendeiros judeus na região de Tendirma, no
Níger? Em todo caso, muitas referências a judeus: no início do século XVI,
o português Valentim Fernandes fala dos judeus” ricos, mas oprimidos, de
Walata
21
.
No século XV, com a ofensiva da Reconquista, os cristãos estabeleceram -se
no Magreb. Muitos comerciantes italianos foram atraídos para o Sudão, pois sua
riqueza em ouro tornara -se lendária. Benedetto Dei, viajante e escrivão floren-
tino, afirma ter errado pela região até Tombuctu entre 1469 e 1470
22
. O genovês
Antonio Malfante é conhecido pela famosa carta que enviou do Tuat a sua casa
comercial em Gênova. Malfante visitou o Tuat e recolheu valiosas informações
sobre o Sudão nigeriano e sobre o Tuat enquanto encruzilhada de comércio
23
.
Mas o contato direto entre a Europa e o Sudão deu -se pelo Atlântico, no século
XV, com os navegadores portugueses.
Ibn Khaldūn nos informa que havia caravanas de 12 mil camelos indo do
Sudão ao Egito
24
. A travessia do Saara em linha reta era difícil devido às tem-
pestades de areia na diagonal Níger–Nilo; assim, era raro as caravanas irem
diretamente para o Egito. Nas rotas normais do Níger ao Magreb, as caravanas
tinham em média mil camelos.
18 IBN AL -KHATĪB, in CUOQ, 1975, p. 324 -6.
19 Os sociólogos hoje podem constatar a existência de grupos e associações familiares entre os Maninka, os
Hal Pulaar, os Haussa e os Soninke. Irmãos e primos sediados em Dakar, Bamako, Abidjan, Acra, Kumasi,
Kano e Lagos dividem o controle do comércio de nozes -de -cola, tecidos e muitos outros artigos.
20 LA RONCIÈRE, C. de, 1924 -1927, v. 1, p. 143 -59.
21 FERNANDES, 1951, p. 85; LEWICKI, 1967; MONTEIL, C., 1951, p. 265 -98.
22 LA RONCIERE, C. de, 1924 -1927, v. 1, p. 143 -59.
23 MAUNY, 1961, p. 50 -2; DIOP, 1960.
24 IBN KHALDŪN, in CUOQ, 1975, p. 349.
706
África do século  ao século 
A difusão de ideias e técnicas
Como resultado do comércio transaariano, muitos árabo -berberes se esta -
beleceram nas cidades do Sudão Walata, Niani, Tombuctu e Gao, entre outras
25
;
a maioria dessas cidades tinha um bairro árabe. Os casamentos criavam laços de
parentesco que os genealogistas sudaneses adoram deslindar. Os historiadores
ainda discutem se foi pelo contato com os árabo -berberes que se introduziu a
filiação patrilinear no Sudão. Na época do Império de Gana, a sucessão ao trono
o era por linha direta, mas colateral; o herdeiro era sempre o sobrinho do rei (o
filho de sua irmã). Foi difícil para o Mali do século XV aceitar a sucessão direta
(de pai para filho)
26
. A influência muçulmana não foi um fator decisivo nesse caso
em particular. Se examinarmos as regiões florestais do sul, vamos encontrar dois
tipos de descendência, e é difícil falar de influência islâmica no Congo a essa época.
A islamização da África negra nesse período não se deu pela violência, mas
pacificamente, pela influência dos comerciantes árabo -berberes, os Wangara e os
Haussa. Além do episódio belicoso dos Almorávidas, houve poucas guerras com
o objetivo de propagar o islamismo. A nova religião levava em conta as antigas
práticas das sociedades tradicionais; mas Ibn Battūta admirou a devoção dos
muçulmanos negros, sua assiduidade às orações e sua fidelidade ao culto coletivo,
obrigando mesmo seus filhos a seguirem seu exemplo. Os Wangara, sempre
indo de aldeia em aldeia, construíram mesquitas em vários centros comerciais,
como marcos, ao longo das rotas das nozes -de -cola. Em virtude da tolerância
tradicional dos negros, podiam orar até nas aldeias pagãs.
Na cidade, o árabe tornou -se a língua dos letrados e cortesãos; segundo
al -‘Umar, o mansa Mūsā I falava corretamente o árabe; este governante pode
ser considerado o responsável pela introdução da cultura muçulmana no Mali
27
.
Nasceu uma literatura africana de expressão árabe, que floresceu na curva do
Níger, principalmente no século XVI, sob os askiyas. Do século XIV ao XVI,
houve intercâmbios constantes entre as Universidades do Sudão e do Magreb.
No século XIV, porém, o Cairo foi o grande centro de atração para os sudaneses;
situado na rota de peregrinação, tinha muitos habitantes negro
28
.
25 IBN BATA, in CUOQ, 1975, p. 312 -23.
26 Ver capítulo 6 deste volume.
27 Foi aparentemente durante o reinado do mansa Mūsā I que ocorreu a divisão entre os Maninka (Malinke)
e os Bambara. Os últimos, recusando -se a aceitar o Islã, criaram a sociedade secreta do “komo”, em reação
à política imperial. Os Bambara (Ban -ma -na) são “os que rejeitaram os mansa”.
28 IBN KHALDŪN, in CUOQ, 1975. Ibn Khaldūn, o célebre historiador árabe, em geral obtinha suas
informações de um literato do Mali que vivia no Cairo.
707
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
Os soberanos do Sudão rodeavam -se de juristas e conselheiros árabes, que, em
sua maioria, seguiam o culto maliquita. No entanto, no século XIV, Ibn Battūta
menciona a existência de caridjitas brancos entre os Diafununke do Mali
29
.
O papel cultural e econômico dos muçulmanos foi mais notável no sul do
Saara. Ao voltar de sua peregrinação, o mansa Mūsā I trouxe em sua comitiva
escritores e um arquiteto que empregou para construir a famosa sala de audiência,
onde Ibn Battūta foi recebido em 1353 pelo mansa Solimão, irmão e sucessor
de Mūsā I
30
.
As relações entre o Chade e o Mediterrâneo
Ao estudar as relações entre a África ao sul do Saara e o Mediterrâneo, os
historiadores concentraram -se particularmente no Sudão ocidental, devido às
numerosas fontes naquela parte do continente. Muitos viajantes árabes, entre
os quais Ibn Hawkal e Ibn Battūta, foram ao Sudão pelas rotas ocidentais. No
entanto o Sudão central e os países da bacia do lago Chade também estabele-
ceram relações ativas com o Magreb, a Líbia e o Egito. Durante o período que
estudamos, nessa região encontravam -se grandes conglomerados políticos, como
o reino do Kanem -Bornu, enquanto as cidades haussa conduziam um comércio
florescente entre o lago Chade e o Níger
31
.
No século XIV, o reino do Kanem estendia -se de Fezzān, ao norte, a Wadai,
a leste. A política dos soberanos do Kanem era de abertura para o norte, a cujos
reis enviavam embaixadas com ricos presentes
32
. Havia muitas rotas importantes
do Chade para o norte. A primeira era a do Kanem para o Egito; ia do lago
Chade ao Fezzān, após cruzar Kawār e suas minas de sal; depois de Zawla, no
Fezzān, a rota cruzava os oásis líbios (sokna) e alcançava o Cairo margeando a
costa. A segunda rota, procedente do lago, passava por Bilma, indo para leste
através do Tibesti, onde se exploravam pedras preciosas no século XV, para
alcançar Aswan e finalmente o Cairo. A terceira rota saía do Kanem para Ghāt
e Ghadames; dali, um ramo ia para Túnis e outro para Trípoli. Essas rotas eram
tão frequentadas quanto as ocidentais. Foram mais movimentadas nos séculos
29 IBN BATA, in
CUOQ,
1975, p. 311.
30 IBN KHALDŪN, in CUOQ, 1975, p. 347 -8.
31 Ver capítulos 10 e 11 deste volume.
32 Em 1391, Mai Abū ‘Amr ‘Uthmān ben Idrs, sultão do Bornu, mantinha correspondência com o sultão
Barkūk. Ver capítulo 10 deste volume.
708
África do século  ao século 
XV e XVI com a ascensão das cidades haussa e do Bornu, mas, quando grupos
árabes se estabeleceram no Darfūr para iniciar o tráfico de escravos, as relações
comerciais deterioraram -se.
Nas regiões entre o Níger e o lago Chade e nos arredores do lago, os principais
itens de exportação eram o couro, os escravos e as presas de elefante. Os Haussa
foram os animadores do comércio no Sudão central, onde atuavam como inter-
mediários entre a savana e a floresta, como os Manden (Mandingo) no oeste. É
bem possível que os Haussa muito cedo tenham estabelecido relações comerciais
com os reinos e cidades do delta do ger: Oyo, Ife, Benin e até Igbo -Ikwu; cada
vez mais pesquisadores acreditam que grande parte do cobre usado tanto em
Ife como em Igbo -Ikwu vinha do Sahel (Takedda). Thurstan Shaw, que con-
duziu as primeiras escavações em Igbo -Ikwu, levanta a hipótese de um comércio
intenso entre o delta e a savana
33
. Em todo caso, os Haussa estavam envolvidos
no comércio de longa distância nessas regiões. Zaria, a cidade mais meridional,
era a cabeça de ponte em direção às regiões florestais.
A savana e a oresta
Até há pouco tempo, a floresta era considerada meio hostil para todas as for-
mas de estabelecimento humano; particularmente densa, a floresta equatorial era
descrita como uma barreira semelhante ao Saara, senão mais hostil. Agora se sabe
que a floresta não deteve nem os povos em migração nem as técnicas e ideias.
África ocidental
Os geógrafos árabes, inclusive Ibn Sa‘d e Ibn Khaldūn, achavam que o
deserto começava ao sul da savana
34
. Os povos da savana, que poderiam ter escla-
recido os árabes, preferiram calar -se sobre a região que fornecia grande quanti-
dade do ouro negociado nas cidades sudanesas; entretanto o mansa Mūsā I deixou
bem claro no Cairo que tinha grandes lucros com o cobre que explorava. O cobre
do Mali era trocado nas regiões florestais por ouro, marfim, nozes -de -cola e tamm
escravos. Esse corcio entre os imrios do Suo e a floresta meridional começa a
ser objeto de sérios estudos. Rotas comerciais atravessavam a floresta em todas as
direções; torna -se cada vez mais claro pelas pesquisas arqueológicas, linguísticas
33 SHAW, T., 1970, p. 279 -83; e 1973, p. 233 -8. A grande quantidade de objetos de cobre em Igbo -Ikwu
levanta um problema, pois não há minas de cobre na área; a mina mais próxima é a de Takedda.
34 As regiões equatoriais e mais meridionais não são habitadas.” IBN KHALDŪN, 1967 -1968, p. 100.
709
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
e antropológicas que, no passado, a savana e a floresta complementavam -se. Os
povos da floresta designam os Manden (Mandingo) como Jula (Costa do Mar-
fim) ou Wangara (Gana), os dois termos significando comerciante”. As rotas
de nozes -de -cola eram salpicadas de cidades, habitadas parcial ou totalmente
por Jula ou Haussa. É muito provável que os Mandingo já tivessem estabelecido
contato com os povos da floresta antes do século XIV. Os reinos de Kongo e de
Begho, localizados na savana arborizada, eram postos avançados dos mercados
de nozes -de -cola e de ouro das regiões florestais
35
. A floresta é descontínua ao
redor do golfo da Guiné; nas Repúblicas de Gana e da Nigéria amplas clareiras
se abrem em toda a sua extensão, do norte ao oceano Atlântico. Nessas áreas,
os contatos com o Sudão eram mais fáceis e mais constantes. Os comerciantes
wangara e haussa tinham alcançado, nessa época, o território ashanti e tam-
bém o yoruba, passando pelo Bono Manso.
Nesse caso também, não nos é possível precisar a quantidade de mercadorias
vindas da savana, nem o quanto era mandado das regiões florestais ao Sudão. No
entanto, até recentemente, os Mandingo e os Haussa costumavam vender contas,
sal, âmbar, bacias de cobre e peixe defumado ou seco de Djenné e Mopti nas fei-
ras das aldeias florestais. A floresta da África ocidental não é densa, podendo ser
facilmente penetrada; os Wangara percorriam -na em suas caravanas de jumentos.
Mas era mais frequente o estabelecimento dos Wangara e Haussa em grandes
aldeias nas bordas da floresta; havia outros povos, intermediários entre eles e o
extremo sul, que tinham o monopólio do comércio de nozes -de -cola.
As nozes -de -cola tinham importante papel, que mantêm ainda hoje, na
vida social do oeste africano. São encontradas até no Congo, como observou F.
Pigafetta
36
. Seu comércio envolvia vários grupos étnicos. Apesar de ainda não
conhecermos o mecanismo dessa atividade, a descrição de Zunon Gnobo é
bastante sugestiva; relata que a zona das nozes -de -cola era dividida em setores
de acordo com a qualidade da fruta.
Ao norte, a savana arborizada, pobre em cola; ao sul, os setores de Gbalo, Bogube,
Yokolo, Nekedi, Ndri, que se destacavam pela qualidade de sua cola. Era o ponto
de convergência dos circuitos norte –sul e dos do interior do Bete. O anteparo guro
35 As tradições orais dizem que a cidade de Kong data da época de Sundiata. No entanto as escavações
arqueológicas em curso no sítio não conrmam este dado. Assim como o trabalho de urstan Shaw,
também as pesquisas conjuntas das universidades de Abidjan e Acra sobre os povos comuns aos dois
Estados mostram a antiguidade das relações savana -oresta. Shaw, especialista em bronzes de Igbo -Ikwu,
acredita que o comércio de cobre entre a savana e a oresta pode datar dos séculos IX e X. Ver SHAW,
T., 1970, p. 268 -70.
36 PIGAFETTA & LOPES, 1881.
710
África do século  ao século 
F . Mapa da circulação de homens e técnicas na áfrica ocidental. ( J. Devisse.)
711
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
impedia relações comerciais diretas entre os Jula e os Zebuo. Estes comerciantes
malinke podiam alcançar os mercados guro, onde se abasteciam com a cola do
sul. Os fornecedores guro desciam para encontrar as mulheres zebuo, que colhiam
a cola nas áreas das etnias bete e guro do sul
37
.
De todo modo, estamos diante de um corcio muito antigo entre a savana e a
floresta; os Mandingo estavam mais interessados no ouro do que nas nozes -de -cola;
foi a procura desse artigo que os levou a criar pontos de parada na savana arborizada,
que mais tarde se tornaram grandes centros comerciais
38
. O ouro era abundante nas
regiões meridionais; as pesquisas aos poucos nos permitem descobrir os circuitos
do ouro dessas regiões
39
.
A floresta, portanto, não constituiu barreira, mas atuou como filtro das cor-
rentes econômicas, ideias e técnicas (ver fig. 25.1). Nota -se também, pelo estudo
das tradições orais, que muitos povos da floresta eram originários da savana; as
correntes de comércio têm antiguidade remota. Deve -se observar que muitos
povos da savana reconheciam a superioridade, senão a profundidade, do conheci-
mento das populações florestais no campo da farmacopeia e no da arte esotérica
da linguagem dos tambores.
A parte setentrional da floresta tropical sofreu constantes invasões de agri-
cultores; recuou também em muitas frentes nas Repúblicas da Guiné, da Costa
do Marfim, da Libéria e de Gana. Na República Federal da Nigéria, as prin-
cipais rotas de comunicação iam de Nupe ao delta, onde, em várias localidades
em que a população procedeu a desmatamentos, abrindo clareiras, floresceram
e cresceram as cidades yoruba.
A África oriental e central
Ainda hoje numerosas questões se colocam para as pesquisas. Pergunta -se,
por exemplo, como eram coletados os produtos exportados das regiões litorâneas
ao mundo muçulmano e à Ásia, que tipo de organização existiu nesses séculos
para o comércio de marfim ou de peles de animais selvagens, cuja importância
nos períodos mais remotos e nos mais recentes conhecemos, mas dele pouco
sabemos no que diz respeito ao período aqui estudado. Havia redes de transporte
37 ZUNON GNOBO, 1976, p. 79.
38 Localizada no noroeste da República de Gana, Begho foi, desde o século XIV, ponto central do comércio
das bordas da oresta. Estava ligada a Djenné e ao alto rio no século XII. Uma importante colônia
maninka ali vivia e também se encontravam comerciantes haussa.
39 No momento, as informações de que dispomos são de épocas tardias. Os reinos dos Baule e dos Akan
dicilmente remontam a período anterior ao século XVII.
712
África do século  ao século 
regulares para tais produtos? Por quais intermediários passavam? Que artigos
iam, em troca, da costa oriental para o interior do continente? Sendo possível
estabelecer comparações com a África ocidental, onde evidência dessas impor-
tações, pode -se perguntar que parte das importações de tecidos realizadas pelos
centros comerciais costeiros era redistribuída no interior
40
.
Seria útil saber a quantidade de cauris desembarcada anualmente na costa e
sua destinação
41
. Aagora, fora do Zimbábue, poucos traços foram encontrados
dos artigos de luxo que chegavam aos portos do oceano Índico. Isso significaria
que nada era vendido ou dado aos povos do interior, ou que as pesquisas ainda
não nos permitiram encontrar tais evidências?
Pelo menos, podem -se distinguir nitidamente algumas correntes comerciais
pelo interior, da Etiópia ao Zambeze. Um exemplo é o do comércio do sal. Vimos
acima a importância dos vários tipos de sal no comércio transaariano. Todos os
tipos de produção, de Idjil a Bilma, de Taudeni ao Air, competiam para suprir
a África de sal
42
. Além desses exemplos bem conhecidos, estudados, quantos
pontos de exploração de sal, pela coleta de eflorescências superficiais ou pela
exploração de pequenos lagos interiores, tiveram papel mais obscuro, mas ainda
mais duradouro? O sal de Danakil era um dos produtos das exportações axumitas
desde os séculos III e IV da era cris
43
; é muito improvável que o o fosse nos
séculos seguintes. Embora a prodão desse sal provavelmente nunca tenha adqui-
rido maiores proporções
44
, é bem possível que o produto tenha sido distribuído ao
menos pelas regiões vizinhas durante os séculos que nos concernem.
Também seria útil estudar as formas antigas muito prováveis de exploração
do sal na costa sul da República Democrática da Somália e no norte da República
do Quênia até a ilha de Patta. Segundo V. L. Grotanelli, foram encontrados
muitos depósitos de sal marinho, cuja exploração por coleta era realizada por
mulheres e crianças
45
. Também havia grandes concentrações de sal -gema, que
parece ter sido objeto de comércio.
As fontes escritas raramente mencionam esses fatos, que, no entanto, são
essenciais. Quando por acaso o fazem, a referência é pouco explorada. Vasco da
40 Ver VÉRIN, 1975, p. 77.
41 Evidências arqueológicas de sua penetração foram encontradas nas Repúblicas de Zâmbia e do Zaire
meridional.
42 Quanto ao sal do Air, ver BERNUS & GOULETQUER, 1976, p. 53 -65; BERNUS, GOULETQUER,
KLEINMAN, 1976; HUGOT & BRUGGMAN, 1976, p. 129 et seq.
43 GERSTER, 1974, p. 197 -210.
44 A produção dos anos 1964 -1966 foi estimada em apenas 10 t anuais. Ver WOLDE -MARIAM, 1970.
45 GROTANELLI, 1965, p. 92.
713
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
F . Mapa da África central, oriental e meridional do século XI ao XV. Produções que alimentavam
um comércio relativamente de longa distância. (J. Devisse.)
714
África do século  ao século 
Gama, por exemplo, explica no relato de sua primeira viagem que os africanos
com os quais seus homens tiveram contato no sul do continente carregavam
cabaças com água do mar para obter sal por evaporação. muitas evidências de
que métodos de produção de sal semelhantes existiam há muito tempo na costa
atlântica, pelo menos ao redor do golfo da Guiné, mas não houve um estudo
sistemático para fundamentar esta informação precisamente datada por Vasco da
Gama. Na mesma passagem, o navegador conta que os homens portavam lanças
de ferro e adagas com cabo de marfim; mas também essas informações, de grande
significado para a história do transporte do ferro e do marfim, nunca foram
exploradas. Aqui está pelo menos um caso típico em que parece indispensável o
recurso às tradições orais relativas aos intercâmbios comerciais. De fato, as tradi-
ções orais nos permitem, com frequência, voltar muitos séculos no passado.
As informações são maiores sobre a mineração de sal no sul da República
Unida da Tanzânia
46
. As minas de sal de Uvinza no sudeste do país, ainda hoje
exploradas, estendem -se por mais de 15 km. A primeira pesquisa arqueológica
revelou que em Uvinza havia intensa atividade de preparação e comercialização
do sal antes de 1500. Foram encontrados recipientes onde se produzia sal por
evaporação, através da fervura. A datação por carbono -14 indica que a minera-
ção começou por volta do século V ou VI da era cristã e que teve continuidade.
Em Ivuna, na mesma área, é certo que o sal foi produzido do século XIII ao
século XV (ver fig. 25.2).
Os pesquisadores concordam com que o sal era exportado para regiões dis-
tantes e que permitiu um comércio regular. Pesquisas semelhantes deveriam ser
feitas mais ao norte, em salinas menos importantes em Saja, a 230 km ao norte
de Ivuna; em Uganda, em Kabiro; e também na República de Zâmbia, visando as
fontes de sal de Bazang, que parecem ter sido exploradas desde tempos remotos.
Experiência extremamente interessante foi feita recentemente no Burundi, na
região do Kumozo
47
: foi extraído sal de plantas halófilas bem conhecidas dos
detentores da tradição oral, que trazem na memória as técnicas de fabricação
desse sal de origem vegetal. Parece bastante razoável supor que para muitas
regiões da África oriental a produção de sal de origem vegetal, proibida pelos
colonizadores europeus, foi por muito tempo importante fonte de sódio. No
Reino do Kongo, o sal era monopólio real. São necessários estudos sobre os
depósitos de sal de Mpinda, perto do estuário do Zaire (Congo), e de Ambriz,
no norte da República Popular de Angola (ver fig. 25.2).
46 FAGAN & YELLEN, 1968; SUTTON & ROBERTS, 1968.
47 NDORICIMPA et al., 1981.
715
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
Com o progresso das pesquisas, poderemos descobrir como o comércio de média
e de longa distância, além das dádivas e dos intercâmbios locais, garantiam a circu-
lação de valiosos bovinos pela África oriental. Também seria interessante pesquisar,
nessa área, a circulação de pedras preciosas, objeto de corcio florescente
48
. Seria
interessante ainda tentar levantar os rios tipos de moeda que vieram facilitar
as atividades de troca, as quais, de antemão, consideramos intensas e bastante
difundidas; o exemplo das conchas do Kongo, cuja produção era monopólio real
quando da chegada dos portugueses, o é provavelmente único.
A densa floresta equatorial, por muito tempo considerada impenetrável, bar-
reira intransponível, não impediu as relações entre as savanas setentrionais e meri-
dionais, principalmente onde as mudanças climáticas e o trabalho do homem
abriram grandes brechas. Em seu estudo sobre sinos – uma das prerrogativas dos
reis da savana –, Jan Vansina mostrou que estes cruzavam a floresta equatorial de
norte a sul. Assim, foram encontrados sinos em Ife e, bem mais tarde, após 1400,
no Zimbábue
49
. Os especialistas em mensagens usavam os sinos para reprodu-
zir os tons do discurso oral. Pesquisas ulteriores revelaram que os punhais de
arremesso foram transmitidos aos povos meridionais pelos do norte através da
grande floresta equatorial. Enfim, técnicas, objetos e ideias puderam cruzar a
floresta do norte para o sul e do sul para o norte. Os povos migravam em todas
as direções sem que a floresta impedisse esses movimentos.
Nas regiões florestais, os rios constituíam eixos de circulação permanente;
apesar de cada grande setor ser controlado por grupos étnicos coesos e domi-
nadores, as vias fluviais contribuíram em grande parte, graças aos pescadores,
para a difusão de técnicas e ideias.
Na costa atlântica, da desembocadura do rio Zaire (Congo) até a República
Popular de Angola, as populações locais dedicavam -se à cabotagem; especialistas
acham que algumas influências se difundiram pelo mar. Assim, segundo J. Vansina,
as estatuetas policrômicas encontradas na área que vai da República Federal da
Nigéria até a República Popular de Angola testemunhariam a disseminação por
mar de determinada técnica. De fato, é bem possível que o tráfego marítimo
tenha sido bem mais ativo do que se pensa hoje.
É lamentável que, apesar de tantas discussões teóricas sobre a economia e
a sociedade africanas antigas, haja tão poucos trabalhos em conjunto consa-
grados à pesquisa das formas, técnicas e valores das produções antigas e de sua
48 Um exemplo de pesquisa na África ocidental é dado por LEWICKI, 1967. Outro exemplo, relativo à
importância das joias como força propulsora do comércio, está em VÉRIN, 1975, p. 73.
49 VANSINA, 1969. Ver capítulo 22 deste volume.
716
África do século  ao século 
comercialização embora seja evidente a importância dos resultados de cada
pesquisa. Quantos preconceitos relativos à “imobilidade das sociedades afri-
canas no que concerne ao desenvolvimento e à inovação seriam eliminados se,
ao invés de se usarem como ponto de referência os séculos de contato com os
europeus, durante os quais a África foi oprimida pelos efeitos socioeconômicos
do tráfico de escravos, fosse feito um sério esforço no sentido de explorar o
período que ora estudamos, do qual, paradoxalmente, não conhecemos nem as
estruturas políticas nem as formas da vida econômica e social. Nesse aspecto,
o campo aberto para a pesquisa é imenso, mas praticamente inexplorado, afora
o trabalho de um pequeno grupo de arqueólogos. No entanto é esta África
que devia ser conhecida, através de suas estruturas sociopolíticas, no sentido
de estabelecer uma sociedade nova, profundamente enraizada nos valores de
sua civilizão.
O cobre e o ouro, bases dos intercâmbios
na África meridional
Hoje sabemos com certeza que a exploração do cobre em algumas regiões
da África meridional começou nos primeiros séculos da era cristã
50
. O metal
era extraído principalmente de sítios de Shaba, no noroeste da atual República
de Zâmbia, no planalto central do Zimbábue e, em menor escala, no alto Lim-
popo. As descobertas arqueológicas e as datações obtidas nos últimos anos não
deixam dúvidas a respeito do comércio de longa distância de barras, cruzetas
ou ligas de cobre.
O primeiro nome que os portugueses deram ao Limpopo, quando começaram
a explorá -lo, foi “rio do cobre”; a necessidade de encontrar minas de cobre a qual-
quer preço para se libertar da dependência dos produtores europeus do metal e
a importância, em termos quantitativos, de suas exportações de cobre a partir do
final do século XV para a África, onde a demanda era grande, explicam por que
a perspectiva de encontrar cobre na África meridional era tão atraente.
numerosas evidências de que, por muito tempo, o cobre também foi
bastante apreciado pelos africanos
51
. Primeiramente era usado como joia: muito
50 Ver v. 2, capítulos 25 e 27; v. 3, capítulo 23; e capítulo 22 deste volume.
51 A partir do século IX da era cristã, o cobre trabalhado era um produto importante do comércio muçulmano
com a África negra.
717
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
cedo, o Compêndio de maravilhas
52
observou que as mulheres dos negros usavam
argolas de cobre nos pulsos e orelhas” e que enfeitavam seus cabelos “com aros
de cobre e com conchas”. Provavelmente devemos pensar em termos de joias de
cobre quando Ibn Battūta
53
descreve o povo que ocasionalmente vinha à corte do
mansa “usando grandes brincos de meio palmo de largura”. O uso comum do cobre
e de suas ligas como marca de presgio político em várias regiões do continente é,
provavelmente, também muito antigo. Estes fatos bastam para nos convencer de
que havia um comércio de longa distância desse metal semiprecioso
54
. o se
pode também descartar a ideia de que as cruzetas de cobre podem ter servido de
moeda na África meridional, da mesma forma que as pequenas barras de cobre
produzidas em Takedda, de que fala Ibn Battūta
55
.
Ao sul da floresta equatorial, na savana arborizada, as riquezas minerais de
Shaba provavelmente atraíram inúmeros povos. Não dúvida de que foi ali
que se desenvolveu a técnica de trabalhar metais ferrosos e não ferrosos. Como
consequência, o comércio de longa distância expandiu -se rapidamente naquela
região. Os reinos luba e o império lunda floresceram na área de Shaba antes de
1500. Estudos sobre as línguas e as migrações de populações, a análise dos mitos
de origem e do sistema de parentesco possibilitam ter ideia dos problemas
socioculturais da região
56
. Parece cada vez mais claro que os homens viajavam
em todas as direções, tanto na floresta como na savana. Essa pesquisa revela que
Shaba foi um polo cultural de onde partiram vastas correntes de intercâmbio; a
influência luba se fez sentir até nas províncias do Zambeze
57
.
Já no século X, al -Mas‘ūd fala do lugar que o ouro ocupava na África meri-
dional nestes termos:
Os limites do mar de Zanguebar situam -se nos territórios de Sofala e de al -Wakwak,
terras que produzem ouro em abundância
58
.
52 I. BEN WASIF SAH, s.d.
53 IBN BATTA, in CUOQ, 1975, p. 313.
54 Para um exemplo de joias de cobre achadas em túmulos, ver VOGEL, 1971, p. 99.
55 IBN BATTA, in CUOQ, 1975, p. 718.
56 Ver capítulo 22 deste volume.
57 Muitos autores consideram as tradições orais dessas regiões (luba -lunda) como desenvolvimentos literários
ou amplicações das lendas para legitimar o status quo no século XIV. Seria mais cientíco proceder a uma
análise mais aprofundada. Ver WILSON, A., 1976.
58 AL -MAS‘ŪDĪ, 1965, v. 2, p. 322 -3.
718
África do século  ao século 
O texto é suficiente para mostrar que no século X os muçulmanos tinham
conhecimento do ouro da África meridional, que então era explorado e prova -
velmente exportado.
Mais uma vez a arqueologia confirma e esclarece as fontes escritas. Apesar de
suas conclusões serem discutíveis, é difícil contestar a qualidade das informações
básicas, cronológicas e quantitativas de R. Summers relativas à exploração do
ouro no planalto dos Shona
59
. O exame sistemático dos vestígios de mineração,
das sondagens e das datações permitiu que o autor traçasse mapas precisos. A
mineração parece ter começado por volta do século VII, imediatamente ao sul
do Zambeze, no vale do Mazoe, e ter -se expandido entre os séculos IX e XI
por todo o planalto, de onde alcançou a região do Limpopo somente no século
XV. De acordo com R. Summers, a maior parte das exportações ia para a costa
através do vale do Sabi em direção a Sofala; mas os dois outros eixos desse
comércio passavam pelo Zambeze e pelo Limpopo (ver fig. 25.2). W. G. L.
Randles, que seguiu em larga medida as conclusões de R. Summers, acredita,
como muitos outros historiadores, que a prosperidade do Zimbábue nos séculos
XIV e XV pode ser explicada pela concentração do comércio no Sabi nas mãos
de uma minoria rica, e que as profundas transformações na navegação no Sabi
após o século XV explicariam a decadência do comércio através do Zimbábue
e o enfraquecimento de Sofala
60
.
Não convém, portanto, como é frequente, ligar a exploração e o comércio
do ouro ao destino do Zimbábue apenas. Como na África ocidental, onde as
rivalidades pelo controle da produção e da exportação do ouro explicam muitos
pontos da história do século X ao XV, é provável que o ouro do sul alcançasse
seus compradores muçulmanos por diversas vias, apesar dos esforços dos diri-
gentes do Zimbábue para estabelecer o monopólio, principalmente nos séculos
XIV e XV.
Qualquer que seja o caso, e mesmo devendo considerar com reservas as
estimativas de R. Summers quanto à produção de ouro a partir do século XI de
aproximadamente 9 a 10 t por ano, é preciso admitir que o ouro do sul alcan-
çou o norte mais cedo do que acredita a maioria dos historiadores, interessados
exclusivamente no destino de Kilwa e na cunhagem do metal precioso. Esse ouro
tinha provavelmente papel importante no comércio africano no século XI.
Os navegantes muçulmanos praticavam a cabotagem até Sofala nessa
época; ela só foi interrompida com a chegada dos portugueses, apesar de as
59 SUMMERS, 1969.
60 RANDLES, 1975, p. 14 et seq.
719
Relações e intercâmbios entre as várias regiões
rivalidades entre as cidades costeiras terem -na tornado talvez mais difícil. A
cabotagem, que chegava a Áden, gerou correntes de exportação dos produtos
do interior da África para os mundos muçulmanos, indiano e chinês e criou
estaleiros, sobre os quais não sabemos praticamente nada.
Apesar de a extensão do comércio do ouro no século XI ser discutível, nin-
guém questiona sua importância nos séculos XIII e XIV. As estimativas de
seu volume quando da chegada dos portugueses a Sofala permitem pensar que,
durante esses séculos, muitos milhares de toneladas de ouro viajavam todo ano do
sul para o norte. Escavações no bairro fortificado do Grande Zimbábue, infeliz-
mente conhecido como Acrópole, revelaram os locais onde se fundia o precioso
metal; é provável que o ouro também fosse refinado antes de ser exportado.
Nos séculos XIV e XV, o ouro teve papel predominante entre as mercadorias
exportadas do planalto dos Shona e entre os produtos vendidos para a aristocra-
cia governante do Zimbábue. No entanto atualmente a maioria dos historiadores
concorda com que o ouro não era a fonte da riqueza do Zimbábue e que pro-
vavelmente se deveria pensar antes no desenvolvimento da criação de gado no
planalto ervoso e não infestado pela mosca tsé -tsé. Uma grande seca no século
XIII contribuiu para levar os criadores de gado ao planalto mais hospitaleiro.
Como os reis sacrificiais dos povos criadores de gado, os senhores do Zimbábue
teriam primeiramente construído a partir dos rebanhos seu poder e riqueza, um
ou dois séculos antes de expandirem -nos consideravelmente pelo maior controle
possível do comércio do ouro. Isto é, se não seguirmos uma distinção antiga,
mas ainda ocasionalmente aceita, entre mineradores”, “criadores de gado”, e
construtores”: o primeiro grupo teria explorado o ouro, o cobre e outros metais
antes de 1100; o terceiro seria responsável pelas famosas construções de pedra
do Grande Zimbábue. Sua origem étnica e sua língua são desconhecidas; nada,
porém, nos impede de acreditar que estes “construtores” e mineradores” são
os ancestrais diretos dos povos que vivem no planalto do Zimbábue, isto é, os
Sotho e os Shona
61
.
Infelizmente, não temos informações suficientes sobre estas questões. A exis-
tência do Estado racista da África do Sul constitui um bloqueio à pesquisa, mas
com a independência da República do Zimbábue novas perspectivas se abrem.
Conhece -se bem a pré -história dessas regiões graças aos trabalhos dos pes-
quisadores anglo -saxões, mas o obscurecimento predomina quando se aborda o
61 SUMMERS, 1960 e 1963.
720
África do século  ao século 
período histórico. Tudo se faz para negar aos negros a paternidade das culturas
florescentes que se desenvolveram antes de 1500.
Elementos recolhidos aqui e ali provam, no entanto, que essas civilizações
estiveram interligadas e apresentam uma unidade incontestável. A leste, o vale
do Zambeze foi a via de penetração das influências do norte, inclusive as dos
Bantu. Nos reinos que se expandiram nas savanas meridionais, o trabalho e o
comércio dos metais tiveram papel primordial. Ao sul do Zambeze, podem -se
distinguir duas áreas de intensa atividade cultural: o planalto zimbábue e, bem
mais ao sul, o planalto do Lughveld
62
.
Um outro aspecto do comércio interafricano vem assumindo grande impor-
tância nos últimos anos. P. Vérin foi o primeiro a insistir nas relações frequentes
entre Madagáscar, as ilhas Comores e a costa oriental do continente. Sugeriu
que, se a partir da costa numerosas influências ganharam as ilhas, alguns pro-
dutos, como os objetos malgaxes talhados em cloritoxisto, podem muito bem
ter se difundido ao longo da costa até Kilwa
63
.
Se se confirmarem as intuições e hipóteses de P. Vérin em futuras pesquisas,
será preciso reavaliar seriamente o que com frequência se tem dito dos limi-
tes meridionais das zonas de navegação africana e árabe no oceano Índico. A
vigorosa retomada da pesquisa arqueológica em Madagáscar a partir de 1977
provavelmente deverá trazer, a julgar pelos primeiros resultados anunciados,
elementos importantes para o nosso conhecimento dessas regiões.
62 Ver capítulo 21 deste volume.
63 VÉRIN, 1975, p. 72 -3; ver DOMENICHINI, 1979b.
C A P Í T U L O 2 6
721
A África nas relações intercontinentais
A África vista pelo resto do mundo
É difícil dizer o que os africanos, no interior do continente, pensavam de
si mesmos, nos quatro séculos que vão de 1100 a 1500, à luz de seus referentes
culturais, em constante mudança, e de suas tradições seculares. Mas não se deve
desanimar; apesar das dificuldades que apresenta, essa investigação é funda-
mental. Começa- se a discernir que transformações as sucessivas aculturações
provocaram do ponto de vista da percepção do espaço na África. Seria fascinante
saber, por exemplo, como um comerciante africano do século XV visualizava seu
próprio meio ambiente. Em todo caso, hoje podemos afirmar com segurança
que os negociantes do Takrūr, no Mali, mais precisamente, os Wangara
1
, tinham
uma ideia razoável da geografia do mundo muçulmano, e talvez até mesmo de
todo o mundo conhecido na época. No século XV, os comerciantes wangara
eram letrados, ou pelo menos havia entre eles grande número de letrados com
1 Wangara: esse termo é grafado de várias maneiras pelos escritores árabes Wankāra, Wanghāra, Wangāra,
Wangarāta e talvez mesmo Amdjara (al-Mas‘ūd, no século X). Os Wangara são confundidos, por vezes,
com os Gangara, a quem se atribuem, sem muita precisão, algumas ruínas antigas do Sahel. Os Wangara
não aparecem nas fontes árabes antes do século XI ou XII. A eles eram atribuídas então a extração e a
comercialização do ouro no alto Níger. No século XIV, seu nome frequentemente era associado ao de
Djenné, e, segundo Ibn Khaldūn, sua área de inuência estendia-se até regiões muito a leste. Mais tarde,
o nome Diula ( Jula) tendeu a substituir o anterior, e ainda é utilizado para designar os comerciantes de
língua manden (mandingo) da zona de savana até a República de Gana.
A África nas relações intercontinentais
Jean Devisse, em colaboração com Shuhi Labib
722
África do século  ao século 
um conhecimento bastante preciso do meio em que viviam. Os Wangara usavam
o termo Saheli (o Sahel) ou Kogodugu (terra do sal) para referir o norte, de onde
vinham os comerciantes árabes ou berberes com seus camelos carregados de barras de
sal. Os termos Worodugu (terra da cola) e Tukoro (floresta) designavam o sul, cujas
florestas, de dicil acesso, forneciam as preciosas nozes- de- cola. Estendendo- se
de leste a oeste do continente, o Gbe Kan (terras limpas), escassamente
arborizado, era percorrido pelos negociantes wangara a pé, a cavalo ou em
lombo de burro.
Graças às peregrinações de seus soberanos, rios povos da região sudanesa
tinham conhecimento preciso do Magreb, do Egito e a da própria Arábia,
desde o século XIII. Embota não seja possível fazer uma estimativa em termos
numéricos, a julgar pelos documentos disponíveis, a existência de embaixa-
dores negros residentes no Cairo por volta do final do século XV sugere uma
forte presença de sudaneses naquela cidade. Às margens do oceano Índico, os
Zandj e os Swahili deviam conhecer muito bem o mundo árabe oriental, a
Índia e talvez mesmo a distante China. É bastante provável que comerciantes
negros do Sudão e da África oriental fossem em missões comerciais até as
cidades e proncias árabes. Ensinava- se geografia nas escolas de Tombuctu, e
sem a menor dúvida os manuais de base eram os mesmos utilizados no Cairo.
Al- Umar conta que um soberano como o mansa Kanku sā, do Mali, tinha
ideia muito clara da extensão das terras dos povos negros e do lugar que nelas
ocupava seu império.
Por enquanto, temos mais informações sobre a maneira pela qual as culturas
periféricas conheciam e, acima de tudo,viam o continente africano. Falar em
culturas periféricas é agrupar sob a mesma denominação o mundo muçulmano,
tanto africano quanto não africano veremos adiante as importantes implicações
disso – , e os mundos asiático, bizantino e ocidental.
Os muçulmanos conheciam a África. Mas, no culos XIV, sua tradão
cultural, transmitida de geração em gerão, ainda refletia ideias antiqua-
das e conhecimento incompleto. Essa visão escolástica, como veremos, con-
trastava com o processo de descobrimento do continente que, já ativo no
século XI, desenvolveu- se notavelmente durante o XIV. Até mesmo o grande
Ibn Khaldūn reconhecia que suas fontes para tratar de regiões inteiras ainda
eram Ptolomeu e al- Idrs
2
. Sobre as regiões equatoriais, escreve revelando
perplexidade:
2 IBN KHALDŪN, 1967-1968, p. 100.
723
A África nas relações intercontinentais
Os filósofos concluíram que, devido ao calor e ao clima seco que caracterizam as
duas primeiras partes do mundo
3
, as regiões equatoriais e as mais ao sul eram des-
povoadas”. Contudo, afirma o grande historiador, a observação e a tradição mantida
sustentam o contrário. Que posição tomar?” Depois de pesar os argumentos aduzidos
de ambos os lados, ele conclui que “pode existir uma civilização nas regiões equato-
riais e mais ao sul, como se conta, mas trata- se de muito pouca coisa
4
.
Para compreendermos a atitude mental assumida, frente à África e aos mares
que a circundam, pelas culturas baseadas em religiões monoteístas, devemos
levar em conta dois conjuntos de ideias presentes em todos os escritores judeus,
cristãos ou muçulmanos nos séculos que nos interessam. O primeiro decorre
da crença de que a terra é totalmente cercada pelas águas de um oceano. A água
foi retirada”, diz ainda Ibn Khaldūn, de certas partes do mundo onde Deus quis
criar os seres vivos e que desejou povoar com a espécie humana...”
5
. A África,
o mais meridional dos continentes conhecidos, era banhada por mares muito
extensos e ainda inexplorados
6
. Para os herdeiros da cultura grega, fossem árabes
ou ocidentais, as regiões equatoriais, com seu calor tórrido, constituíam, tanto
em terra quanto no mar, os limites do mundo em que o homem podia suportar
viver. Além disso, todos esses legatários das culturas mediterrâneas pensavam,
ainda nas palavras de Ibn Khaldūn, que “o berço da civilização fica entre a ter-
ceira e a sexta parte do mundo nem ao norte nem ao sul
7
. Não se encontrarão
melhores informações sobre o oceano Atlântico e suas ilhas no ensinamento
tradicional dos estudiosos de gabinete, tanto muçulmanos quanto cristãos
8
. As
ilhas Afortunadas as ilhas Canárias –, no oceano Atlântico, constituíam o
3 De acordo com a tradição ptolomaica e muçulmana erudita, o mundo dividia-se em sete partes ou
“climas”, da região sul (equatorial) à norte (boreal). As “duas primeiras partes” aqui mencionadas corres-
podem aproximadmente, na África, às regiões equatorial e tropical norte (ver g. 26.1).
4 IBN KHALDŪN 1967-1968, p. 103-4.
5 Ibid., p. 90 et seq.
6 Ibid., p. 111-2.A primeira parte do mundo situa-se imediatamente ao norte do equador. Ao sul, há só
a civilização mencionada por Ptolomeu; depois, os ermos e os desertos de areia até o círculo de água a
que se chama Oceano.”
7 IBN KHALDŪN (ibid., 101-17) fala da parte da África ocidental frequentada por comerciantes mar-
roquinos. Nas suas regiões meridionais, essa parte da África constitui uma reserva de escravos “Lamlam”,
diz ele, “com escaricações no rosto. Mais adiante, ao sul, os homens que existem estão mais perto de
animais do que de seres racionais [...]. Não é possível incluí-los entre os seres humanos” [p. 166]. O
modo de vida desses homens deve-se a “seu distanciamento da zona temperada [distanciamento que]
os faz, em sua natureza, acercarem-se dos animais selvagens e, na mesma proporção, afastarem-se da
espécie humana”.
8 Sobre as ilhas Canárias, ver, por exemplo, ALIDRĪSĪ, in CUOQ, 1975, p. 127; IBN SA‘ĪD, in CUOQ,
1975, p. 202-12.
724
África do século  ao século 
F . A Terra segundo al- Idrs e Ibn Khaldūn.
725
A África nas relações intercontinentais
limite ocidental do mundo conhecido. Muitos autores árabes, até o século XIV,
consideravam- nas desabitadas. Dhu l- Karnayn (Alexandre, o Grande) certa vez
as visitou, mas não conseguiu navegar mais para oeste, ou por causa das pesadas
brumas, ou por receio de se perder e perecer
9
.
Os viajantes muçulmanos passaram a ter uma perspectiva completamente
diferente, pelo menos depois do século X, à medida que foram penetrando ao
sul do trópico de Câncer, pelo mar, nas costas orientais, ou por terra, na África
ocidental
10
. Muitas observações desmentiram os estereótipos da cultura livresca;
a partir do século XIV, essas informações diretas derivam basicamente de Ibn
Battūta e al-‘Umar
11
. Do oceano Índico, ademais, o mundo islâmico aprendeu
todo o saber asiático relativo à navegação e à astronomia.
Para os autores voltados principalmente para a África ocidental, muitos
problemas que gostaríamos de ver abordados e resolvidos continuam sem res-
posta, devido tanto ao mistério com o qual as culturas africanas, ciosas de sua
autonomia, visivelmente se envolvem, quanto às limitações impostas pelas auto-
ridades à entrada irrestrita de comerciantes e missionários muçulmanos na área
do Sahel e da savana.
Pelo menos, das praias do Mediterrâneo à curva do Níger, às nascentes do
Senegal e do Níger, à atual República do Chade e ao norte da atual Repú-
blica Federal da Nigéria, um espaço contínuo se oferecia à visita, à reflexão e
à descrição dos autores árabes. A região que deles se conservou desconhecida
– basicamente a área da floresta – apresentava características muito mais estra-
nhas, se comparada com a “norma mediterrânea”, do que o deserto ou a estepe.
A região da floresta, com seus mecanismos climáticos tão particulares, seria
precisamente o espaço que os europeus, que não sabiam praticamente nada do
interior do continente, viriam a descobrir. A África ainda hoje sofre as conse-
quências da heterogeneidade das áreas descobertas, quase aleatoriamente, por
partes distintas.
9 IBN SA‘ĪD, in CUOQ, 1975, p. 202.
10 A exceção, no que se refere à África ocidental, foi a hipotética viagem de Ibn Fātima ao longo da
costa africana, tal como é relatda por Ibn Sa‘d (in CUOQ, 1975, p. 212) e outros, o que discutiremos
adiante.
11 Não é nossa intenção descurar das grandes investigações empreendidas, no século X, por al-Mas‘ūd,
no XI, por al-Bakr, e, no XII, por al-Idrs. O notável estudo que T. Lewicki consagrou a este último
comprova a seriedade com que ele compilou as informações coletadas, sob sua chea, por uma grande
equipe. Ver LEWICKI, 1966.
726
África do século  ao século 
No Ocidente cristão, pouco interesse havia pela África enquanto tal
12
. Os
comerciantes desejosos de penetrar os segredos ocultos pela “cortina muçul-
mana lançavam um olhar utilitarista sobre o continente. Alguns seguiram com
muita atenção os esforços dos cartógrafos para reunir a informação recebida
dos árabes e transmitida através da Espanha em mapas com nexo, nos quais a
forma da África, ao norte do trópico de Câncer, aparece mais ou menos correta.
Os maiorquinos, que herdaram a ciência árabe por intermédio dos judeus pro-
venientes da Espanha, consolidaram o conhecimento assim recebido na mais
famosa das primeiras grandes cartas marítimas
13
. Em 1339, o célebre mapa
de Angelino Dulcet (ou Dalorto) revelou aos cristãos a existência de um rex
Melli”, possuidor de muito ouro. Pelo final do mesmo século, os acurados mapas
dos Cresques, pai e filho, mostram claramente que, para os seus autores, a chave
para o sul encontrava- se em Tlemcen, e também que se começava a conhecer as
rotas que levavam à “terra dos negros”
14
.
Junto com esse esforço por sintetizar o conhecimento existente, fizeram- se
várias tentativas – sem dúvida numerosas, e provavelmente fadadas ao esqueci-
mento de chegar à terra dos negros pelas rotas comerciais saarianas. A expe-
dição do genovês Malfante a Tuat, em 1447, pertence a essa série de tentativas,
que produziu escassos resultados
15
. Por outro lado, desde o final do século XII,
os egípcios proibiram com eficácia a penetração cristã ao sul do Cairo e no mar
Vermelho. Mas, durante muito tempo ainda, os cristãos estariam mais interessa-
dos nos muçulmanos que viviam na África do que no continente propriamente
dito.
Essa situão se manteve até que a expansão portuguesa, pela primeira
vez, levou os europeus a terem contato com grande número de negros não
muçulmanos. A fundação do Colégio de Miramar, nas ilhas Baleares, em 1276, e
de um centro de estudos do árabe e do islamismo na Ifrkiya, no final do século
12 Ver MEDEIROS, 1973. Entre as curiosidades pitorescas, conhecidas em latim como mirabilia, devem
incluir-se a referência de Dante ao Cruzeiro do Sul e as alusões de Petrarca às ilhas Canárias (cf.
HENNING, 1953-1956, v. 1, p. 369 et seq.). Igualmente, a referência de Raimundo Lúlio, num famoso
romance do nal do século XIII, a “Gana e aos negros que rodeavm essa cidade – numerosos, idólatras,
alegres e amantes da justiça –, deve ser considerada, da mesma forma que tantos detalhes comparáveis
que lemos em outros autores, como um voo de fantasia literária.
13 Cf. VERNET, 1958.
14 Naturalmente, aqui é possível indicar de modo sumário os aspectos mais destacados dessa questão.
Ela foi abordada em numerosas publicações, e merece a atenção dos pesquisadores, pois está muito
longe de se esgotar o levantamento de todas as observações contidas nesses documentos.
15 LA RONCIÈRE, C. de, 1924-1927, v. 1, p. 144 et seq. A versão do texto publicada por La Roncière
mereceria cotejamento com o manuscrito. Quanto à interpretação dessa viagem dada por esse autor, ver
HEERS, 1971, p. 66 et seq.
727
A África nas relações intercontinentais
XIII, corresponde aos desejos e esperanças por parte de dominicanos e francis-
canos de converter os muçulmanos. Como efeito secundário, o conhecimento a
respeito da África ganhou algumas características novas.
Era muito raro os papas intervirem no próprio continente africano. Em
certos casos, nos fins do século XI, houve interferências papais com o fim de
preservar os últimos vestígios do cristianismo, que então desaparecia da Ifrkiya.
De outras vezes, elas visaram garantir, mediante representações diplomáticas
enviadas a soberanos muçulmanos, a sobrevivência das igrejas ou caso do
Marrocos – até mesmo dos bispados criados para as comunidades europeias de
comerciantes e mercenários residentes no Magreb. Ocasionalmente, tais repre-
sentações assumiam caráter mais indiscreto, constituindo intervenções diretas
na vida do Magreb
16
. Os cristãos da península Ibérica iriam deixar uma marca
decisiva no conhecimento da África. Buscando metais preciosos e batendo- se
com os muçulmanos, acreditavam ter encontrado no “Preste Joãofigura fami-
liar aos cruzados, que o resto da Europa então começava a esquecer um aliado
africano contra o Islã.
Embora os asiáticos conhecessem a costa da África oriental desde muito
antes da grande e decisiva expansão do século XV, deram pouca importância
segundo os documentos atualmente disponíveis ao continente africano
17
.
Uma área em expansão: da diplomacia mediterrânea às
trocas afro‑ europeias
Até há bem pouco tempo, os historiadores restringiram sua atenção às rela-
ções diplomáticas e às guerras entre a África islâmica e o Ocidente. Não cabe
aqui repetir o que é fartamente conhecido. Basta simplesmente observar que,
embora a resistência islâmica às investidas dos cristãos não fosse bem coorde-
nada, os cristãos, por sua vez, não estavam capacitados a agir de maneira coesa
e unificada. De oeste para leste, sob várias dinastias, que governavam territórios
das mais diversas dimensões, os Estados muçulmanos da Espanha, do Marrocos,
de Tlemcen, da Ifrkiya e do Egito, depois do desaparecimento dos Almóadas,
estiveram frequentemente em luta uns com os outros. Poderosa força unificadora
16 Foi este o caso em 1251, quando Inocêncio IV pediu a criação de santuários cristãos na costa do Marroscos;
ou ainda em 1290, quando Nicolau IV se dirigiu numa encíclica a todos os cristãos da África setentrional;
ou em 1419, quando Martinho V se dirigiu à hierarquia cristã no Marrocos.
17 DUYVENDAK, 1949; FILESI, 1962a e 1962b; CHOU YI LIANG, 1972.
728
África do século  ao século 
do ponto de vista espiritual e cultural, o Islã não constituía, em termos políti-
cos e militares, um elemento de coesão capaz de suplantar as divergências de
interesses entre os príncipes. Da mesma forma, porém, a diferença de interesses
econômicos levava os Estados cristãos, de Castela até a Itália, a um conflito
aberto, a despeito de sua ideologia comum.
Aparentemente, a história diplomática, militar e potica da rego mediterrânea
durante esses séculos não tem muita lógica. Gênova constantemente apoiou o reino
de Granada contra o de Castela. Granada, apesar de seus apelos, recebeu pouca
ajuda do Marrocos ou do Egito. A rivalidade entre os habitantes dos dois lados do
estreito de Gibraltar pelo controle dessa via fundamental de acesso ao Atlântico
explica os conflitos diplomáticos entre os Manidas e Granada
18
. Os interesses do
Egito, Estado cliente de Castela e Aragão, mostram as razões de sua fraca ajuda
a Granada. Os Manidas entraram em conflito com seus vizinhos de Tlemcen,
enquanto os Hassidas tentavam repelir estes últimos para oeste e também impedir
qualquer expano marínida mais vigorosa. As relações difíceis e contraditórias entre
venezianos e genoveses, por um lado, e Mamelucos e Otomanos, por outro, também
seo incompreensíveis se nos prendermos à aparência das relações diploticas. A
realidade situa- se em outrosveis, é de outra escala.
Os muçulmanos, senhores do comércio entre a Ásia e a Europa simples-
mente em razão de sua esfera de influência político- econômica, também puse-
ram a economia saheliana em estreito contato com o sistema mundial de trocas.
Tanto direta como indiretamente, a África setentrional obteve importantes recur-
sos especialmente ouro – das regiões meridionais, talvez até das áreas às bordas
da floresta. Esse processo se desenvolveu vagarosamente, do século VII ao X,
tornando- se mais rápido nos séculos XI e XII. As rotas meridionais ou oblíquas”
agora estavam ligadas às principais artérias do comércio muçulmano
19
. Envolviam
a África ocidental à época dos impérios do Mali e de Gana; mas também o Air,
o Chade, o Darfūr e o curso médio do Nilo
20
. Na região saheliana, as consequên-
cias foram profundas
21
; no norte, a partir do século XI, organizaram- se Estados
18 O tratado assinado em 1285 por Castela e os Marínidas marcou uma profunda alteração no equilíbrio
de forças. Os Marínidas renunciaram a suas reivindicações quer à terra espanhola quer à presença naval
em suas costas. Em troca – fato que para nós se reveste de considerável importância cultural –, obtiveram
a liberação de 13 carregamentos de livros de Córdoba para Fés. DUFOURCQ, 1966, p. 206.
19 Os Fatímidas, e em seguidda os Omíadas da Espanha, os Almorávidas e depois os Almóadas bene-
ciaram-se sucessivamente das vantagens da hegemonia sobre os mais importantes pontos terminais das
rotas do sul. Ver ROBERT, D. , ROBERT, S. & DEVISSE, 1970; DEVISSE, 1972.
20 Falta muito para que se esclareça a história da circulação de pessoas e bens nessa região.
21 Já desenvolvemos este raciocínio; ver DEVISSE, 1972.
729
A África nas relações intercontinentais
F . Relações econômicas entre as margens do Mediterrâneo ocidental. ( J. Devisse).
730
África do século  ao século 
F . Mapa dos locais onde o ouro africano era procurado (séculos XII- XV) pelos comerciantes
europeus. ( J. Devisse).
731
A África nas relações intercontinentais
em cada ponto de convergência das estradas que vinham do sul, entrando cada
um deles em competição com os vizinhos. Entre os príncipes desenvolveu- se
uma concorrência econômica, que, em geral, não trouxe nenhum benefício para
os súditos, exceto nos casos – como o de Tlemcen, por exemplo – em que surgiu
uma burguesia comercial. A partir do século XII, os Estados cristãos começaram
a tirar vantagens dessa concorrência e do enfraquecimento político e militar que
ela acarretava. O espaço muçulmano e seus anexos meridionais então se viram
ligados a uma área muito mais vasta, em plena expansão econômica – os países
do Mediterrâneo ocidental e, mais tarde, à Europa como um todo. Os mais
notáveis efeitos dessa “revolução foram sentidos do século XIII até o XV
22
. O
Mali e o Songhai organizaram minucioso sistema de controle das exportações
e de taxação sobre os bens importados. Ademais, a diversificação das rotas de
exportação e dos clientes, sistematicamente procurados pelos mansa do Mali e
pelos soberanos de Gao, certamente contribuiu em boa medida para desenvolver
todo tipo de relações entre o Sahel e seus parceiros rivais do norte do continente.
O frequente envio de embaixadas, as viagens e troca de cartas começam a dar- nos
ideia da ativa e hábil diplomacia dos soberanos negros, que tentavam evitar as
consequências desastrosas de um monopólio por parte dos compradores de seus
produtos
23
. Essa situação nova teve repercussões profundas e cada vez maiores
nas relações entre a África setentrional e a tropical, assim como na condição
interna dos reinos muçulmanos do norte. Os sucessos e reveses das dinastias
marínida, watássida e sádida no Marrocos, por exemplo, estiveram muito ligados
a dificuldades ou melhoras nas relações com o sul.
A pressão militar e comercial dos cristãos ampliava- se. A quantidade de tra-
tados e o número de vezes que foram renovados comprovam a obstinação dos
comerciantes e soberanos do norte e a fraca resistência oposta pelos magrebinos
(ver fig. 26.2). A multiplicação de empórios ou feitorias, mais ou menos isolados
do seu contexto magrebino e em permanente rivalidade entre si, mostra a impor-
tância que a Europa atribuía a seu comércio com a África (ver fig. 26.3). Desde
essa época, a África, até a faixa da floresta, passou a fazer parte do espaço de
exploração econômica do sul pelo norte
24
. Somente o Egito conseguiu controlar
o comércio europeu em seus portos, de tal modo que suas sucessivas dinastias
dele tiraram diversas vantagens
25
.
22 LOPEZ, 1974, p. 252.
23 Ver DEVISSE, 1972; ver também ABITBOL, 1979, p. 370.
24 DEVISSE, 1972, p. 369.
25 Ver CAHEN, 1965.
732
África do século  ao século 
Concorrentes ferozes, os europeus não aplicaram os mesmos métodos no seu
comércio com a África. Todos procuravam obter a balança comercial que lhes
fosse mais vantajosa, mas suas possibilidades econômicas e estratégicas eram
bastante variadas. Veneza manteve- se fiel, até o fim do século XV, a um tipo de
comércio que começava a ceder lugar a formas mais modernas. Os comerciantes
venezianos compravam especiarias asiáticas no Egito e na Síria para revendê- las a
alto preço. Confiantes de que dispunham do monopólio de vendas num mercado
que não podia ser saturado, eles não cuidavam de importar grandes quantidades,
e assim pediam por sua mercadoria os preços mais exorbitantes. Desse ponto
de vista, o Egito e os países do Mediterrâneo oriental revestiam- se da maior
importância para Veneza
26
. Quando surgiram dificuldades no século XV, porém,
os venezianos não se recusaram a fornecer vidros, têxteis, cobre e coral a Trípoli
e Túnis, em troca de ouro. Outro fator que lhes deu grandes possibilidades de
enriquecimento foi o monopólio sobre o açúcar que vinha do Oriente, de Chipre
e Creta. Assim, durante muitos anos o Egito e a bacia oriental do Mediterrâ-
neo, como pontos terminais das rotas comerciais asiáticas e médio- orientais,
interessavam- lhes mais do que a África propriamente dita
27
.
No século XIV, os genoveses vendiam trigo
28
e escravos a essas mesmas regi-
ões orientais. Da Inglaterra obtinham tecidos de lã de muito má qualidade, mas
que podiam ser vendidos a baixo preço
29
. Sem ter muito lucro em cada operação,
conseguiram multiplicar o volume de vendas, constituindo assim importante
comércio em termos de valor
30
. Da mesma forma que os catalães, mas por mais
tempo e em escala maior, os genoveses fretavam seus navios a muçulmanos para
o transporte de pessoas e bens entre o Egito e a Espanha. A África magrebina
26 Sobre as consequências que essa opção teve para os venezianos, ver ROMANO, TENENTI & TUCCI,
1970, p. 109 et seq.
27 A partir do século XV, os venezianos, também pressionados pela expansão otomana, passaram a dar
grande importância ao comércio com Trípoli – e em especial à importação de ouro –, fato de que apenas
começamos a nos dar conta.
28 O controle da exportação do trigo do mar Negro pelos genoveses constituía um dos seus trunfos frente
aos Mamelucos, da mesma forma que em tempos passados os bizantinos se serviam desse controle como
meio de pressão sobre os Fatímidas do Egito. Seria interessante saber se existiriam outras formas de
“diplomacia frumental” no Magreb, por exemplo, que tivessem constituído um meio de pressão sobre
países sujeitos a colheitas irregulares. O estudo do comércio de grãos no interior da África nesse período
ainda não foi realizado. Existem apenas algumas referências a respeito em documentos do século XIV. Em
1477, um navio levou 640 t de cereais de Orã a Gênova; também no séclo XV, o trigo era transportado da
costa atlântica do Marrocos até Portugal.
29 Os tecidos europeus chegavam até bem longe no sul. Ibn Battūta (in CUOQ, 1975, p. 305) refere-se a
eles ao descrever as roupas dos mansa do Mali.
30 Em 1445, 90 kg de cauris são arrolados entre as mercadorias conscadas dos genoveses pelo reino de
Granada. A respeito, ver HEERS, 1975, p. 120.
733
A África nas relações intercontinentais
F . Mapa do uxo do ouro africano na economia muçulmana da África setentrional. (J. Devisse).
734
África do século  ao século 
e a bacia oriental do Mediterrâneo tinham grande importância para eles. A
conquista otomana, porém, expulsou- os dessa última região, e eles passaram a
se apoiar inteiramente no comércio com a África setentrional Para competir
com os venezianos na venda de açúcar, pediram preços muito inferiores e, pela
primeira vez na história, desenvolveram um comércio a granel desse produto.
Mas isso exigiu que viessem a controlar, direta ou indiretamente, as áreas pro-
dutoras de açúcar. Foram os espanhóis – muçulmanos ou cristãos – os primeiros
a fornecer grandes volumes de açúcar
31
. Isso naturalmente os induziu a uma
aproximação com os genoveses, que mais tarde se associaram estreitamente à
política portuguesa dos descobrimentos, introduzindo o plantio de cana- de-
açúcar nas ilhas atlânticas ocupadas pelos portugueses e comerciando o açúcar
produzido nas ilhas da Madeira e Canárias. Como era de esperar, essa política
dos genoveses fez os italianos irromperem no estreito de Gibraltar e no Atlân-
tico, despertando seu interesse pelas novas técnicas de construção naval, então
pesquisadas sobretudo em Portugal, e levou- os a uma participação mais ou
menos direta na exploração marítima
32
.
Esses fatos merecem ser enfatizados, pois explicam todos os mecanismos da
futura expansão portuguesa no Atlântico e prefiguram as consequências que tal
expansão teve para a África. Os catalães, últimos a entrar em cena, não alcan-
çaram o mesmo nível de poder dos seus fortes rivais italianos; limitaram- se a
multiplicar as pequenas operações, com baixo rendimento
33
. Outros portos e
países ocidentais se esgotaram tentando seguir esses exemplos.
Mas não é este o ponto mais interessante. O importante não foram as peque-
nas quantidades de nozes- de- cola, de pimenta- malagueta e de outros produtos
mais ou menos decorativos, inclusive o marfim
34
: foram o ouro e os escravos
arrancados do seio africano que tornaram a presença da África bastante evi-
dente na economia mediterrânea. Nenhuma investigação exaustiva se fez ainda
sobre esses temas; portanto resta- nos descrever em linhas gerais os resultados
obtidos.
31 Desse ponto de vista, a queda do reino de Granada, em 1492, certamente constituiu um revés severo,
embora temporário, para a política genovesa de venda de açúcar, e provavelmente contribuiu para a
intensicação da produção nas ilhas do Atlântico. Ver HEERS, 1971, p. 89 et seq. e 170.
32 VERLINDEN, 1966b.
33 Sobre o comércio catalão, ver DUFOURCQ, 1966.
34 Grotttanelli (1975) mostrou que os europeus importavam objetos de marm da África antes mesmo
da expansão portuguesa. Esse fato, muito pouco estudado, e que mereceria a atenção dos pesquisadores,
sugere que a inuência da arte africana na europa é anterior ao século XV.
735
A África nas relações intercontinentais
Do século IX ao XII, o ouro africano contribuiu sobremaneira para a exce-
ncia das cunhagens famida, omíada, almorávida, almóada e haféssida
35
.
Continuou a afluir para o norte da África, com algumas variações, das quais
pouquíssimo sabemos, até o final do século XV (ver fig. 26.4). Proporcionou
aos governantes, que controlavam sua circulação com maior ou menor êxito, não
apenas a matéria- prima para a cunhagem de moedas, mas também o prestígio
político e o luxo de suas cortes, de que falam os escritores árabes. Mas fatos novos
vieram pouco a pouco modificar essa situação em proveito dos europeus.
Agora se sabe que, pelo final do século X, os cristãos espanhóis tinham come-
çado a obter ouro do sul
36
; os métodos são, ainda, muito rudimentares. Porém, a
partir do século XIII, as coisas mudaram, e os lucros se acumularam
37
. Estimou- se
que o comércio com a Tunísia rendesse então aos cristãos de 20 mil a 60 mil dina-
res anuais, e o comércio com Bidjāya (Bougie) de 12 mil a 24 mil. Em 1302 e nos
anos seguintes, Maiorca recebeu cerca de 2 mil dinares de ouro
38
, saldo do comér-
cio com Bidya. Em 1377, Gênova importou o equivalente a 68 mil libras de ouro,
cuja maior parte passara por Granada ou pela Espanha cristã
39
; 75 anos mais tarde,
Gênova obtinha cerca de 45 mil ducados por ano através dos mesmos circuitos
40
.
O valor global das exportações catalãs para todo o Magreb e não apenas os lucros
–, é estimado no século XV, em 400 mil ou 500 mil dinares anuais
41
, tendo Bar-
celona um rendimento anual da ordem de 120 mil dinares
42
. Lamentavelmente,
o dispomos de estimativas para o comércio oriental de Veneza e Gênova, que
certamente lhes rendeu muito dinheiro. Não surpreende, em tais circunstâncias,
que uma ativa classe de comerciantes surgisse nos principais portos cristãos do
Mediterrâneo e em algumas grandes cidades, como Milão e Florença. que lucro
gera lucro, o poder desses capitalistas”, que aumentou graças à organização de
sociedades de negócios, capacitou- os a empreender a construção naval
43
em larga
escala e a armar frotas de tonelagem cada vez maior.
35 Muito se publicou a respeito. Ver especialmente o Jornal of Economic and Social History of the Orient e as
publicações da Royal Numismatic Society, inglesa, e da American Numismatic Society of New York.
36 BONNASSIÉ, 1975-1976, v. 1, p. 372 et seq.
37 VILAR, 1974, p. 42.
38 DUFOURCQ, 1966, p. 429.
39 HEERS, 1957, p. 101.
40 Ibid., 1971, p. 177; ARIÉ, 1973, p. 363.
41 DUFOURCQ, 1966, p. 555-6. O autor atribui a Ifrkiya um valor de mais ou menos 125 mil dinares,
de 30 mil a 70 mil dinares para o Magreb central, de cerca de 200 mil para o Marrocos.
42 Ibid., p. 556.
43 Tornou-se difícil a construção naval para os muçulmanos, devido à falta de madeira, desde que perderam
o acesso aos abundantes recursos desse material na ilhas do Mediterrâneo e na Espanha.
736
África do século  ao século 
Pela mesma época, sabe- se, após a metade do século XIII retomou- se no
Ocidente a cunhagem de moedas de ouro, que estivera interrompida durante
vários séculos
44
. Não há dúvida de que tal fato resultou, em parte – numa exten-
são ainda por ser avaliada , do ouro africano obtido em portos muçulmanos.
O estudo dos aspectos científicos e econômicos dessas moedas está em curso e
certamente ampliará nosso conhecimento sobre tais questões. Porém, seja como
for, mesmo se levando em conta o ingresso do ouro oriental vindo da África
meridional através do Egito, a quantidade de ouro que chegava à Europa con-
tinuava insuficiente para atender às necessidades do Ocidente num período de
plena expansão econômica
45
.
A sede de ouro constituiria um poderoso fator a motivar os europeus para a
conquista e a dominação econômica do mundo. O interesse pelo ouro africano
demonstrado pelos cristãos do Mediterrâneo, que leva Malfante e muitos outros
à busca de rotas auríferas no interior do continente, nesse contexto se torna mais
compreensível. Os ganhos obtidos no comércio, a que os próprios reis não fica-
vam insensíveis
46
, não constituíam o único meio dos ocidentais para a obtenção
do ouro africano. Os tributos impostos pelos conquistadores cristãos em troca
de uma proteção muito ilusória também produziram confortáveis lucros para
os governantes, nesse caso
47
.
No século XII, os reis de Túnis pagavam 33 mil besantes de ouro por ano
à Silia
48
. Depois de 1282, Arao tentou, sem sucesso, impor a renovação desse
tributo. (No século XIV, a Ifrkiya voltou a pagar, pom, pequenas somas
da ordem de 20 mil dinares e de maneira irregular.) A aliança naval
com os catalães, que os Marínidas solicitaram em 1274 por curto espaço de
tempo, custou aos marroquinos cerca de 40 mil dinares
49
. Em 1309, o apoio de
44 Gênova teve uma moeda estável de 1330 até o nal do século. Em 1443, depois de um período de crise,
reformou seu sistema monetário em relação ao ouro. As outras cidades italianas, especialmente Veneza
e Florença, adotaram igual medida. A partir de 1310 Maiorca cunhou 1 real de ouro de 3,85 g. Sob
Afonso X, Castela passou a usar o peso do dinar almóada (4,60 g) para seu dobrão de ouro.
45 C. -E. DUFOURCQ (1966) calcula que entrasse em Aragão cerca de 70 Kg de ouro africano por ano.
J. Heers considera que 200 Kg do metal chegassem anualmente a Gênova. Sobre o montante de ouro
em circulação na economia, comparado com suas necessidades reais, ver VILAR, 1974, p. 32-3.
46 Ao assinarem acordos com seus iguais muçulmanos, os reis cristãos às vezes obtinham a devolução de
parte das taxas alfandegárias pagas na África por seus comerciantes: em 1229-1230, o rei de Aragão
recebeu aproximadamente 500 dinares de Tlemcen; em 1302, Bidjāya prometeu restituir-lhe um quarto
de suas taxas aduaneiras, cerca de 1500 dinares por ano; no início do século XIV a Ifrkiya restituía a
Aragão 50% desses valores.
47 Sobre os efeitos monetários de tais negociações, ver VILAR, 1974, p. 42-3.
48 YVER, 1903, p. 135.
49 DUFOURCQ, 1966, p. 179.
737
A África nas relações intercontinentais
Aragão custou- lhes mais 7 mil dinares. Para apreciarmos o valor desses pre-
sentes”, é o caso de lembrar que uma embaixada de Granada voltou do Cairo,
no século XIV, com uma dádiva de 2 mil dinares egípcios para o soberano
násrida
50
. Mostrou- se, há pouco tempo, que os granadinos, destinatários de
parte do ouro africano, remetiam de 10 mil a 40 mil dinares por ano a Castela
51
sem contar as antecipações efetuadas por ocasião de uma vitória militar cas-
telhana. No século XV, essas somas foram reduzidas, talvez porque o ouro se
tivesse tornado mais escasso em Granada. Bidjāya prometeu dar 1 mil dinares
anuais sem dispor deles a Aragão, em 1314 e 1323, e pagou 8 mil dinares
em 1329. Ao mesmo reino de Aragão, Tlemcen pagou somas variando de 2 mil
a 6 mil dinares por ano, entre 1275 e 1295.
Tais pagamentos, está claro, refletiam em ampla medida a relação de força
entre muçulmanos e cristãos. Outros métodos, como o de alugar frotas ou tropas,
provaram- se ainda mais lucrativos. muitos exemplos de locação de navios.
Em 1304, o Marrocos fretou uma frota aragonesa por 30 mil dinares. Em 1302,
e novamente em 1309, Jaime II de Aragão ofereceu aos Marínidas barcos total-
mente equipados e armados, a 500 dinares mensais de aluguel por navio. Fez
igual proposta aos Haféssidas, em 1309, sendo que o lucro real resultou em cerca
de 250 dinares mensais. C.- E. Dufourcq calcula que, mantendo- se esse ritmo, o
custo de construção de um navio se amortizaria em quatro ou cinco meses
52
. Em
1313, Tlemcen alugou seis galeras por um ano, contra o pagamento de 35 mil
dinares. Em 1377, Pedro IV de Aragão forneceu a Granada navios equipados
com besteiros por 900 dinares ao mês
53
. Quanto aos soldados, a partir de meados
do século XIII os catalães forneceram uma tropa cristã aos Haféssidas. Parte do
preço de locação dos mercenários era entregue ao rei de Aragão, que assim tinha
um lucro de aproximadamente 4 mil dinares anuais
54
; um sistema equivalente
organizou- se em Tlemcen
55
, e também no Marrocos, onde o preço pago era de
10 mil dinares de ouro, em 1304. C.- E. Dufourcq estimou que, a partir do fim
do século XIII, a renda obtida por esses meios pela coroa aragonesa somava 15
mil dinares, isto é, mais de 10% de suas rendas totais
56
.
50 ARIÈ, 1973, p. 119.
51 Ibid., p. 214.
52 DUFOURCQ, 1966, p. 541.
53 ARIÈ, 1973, p. 269.
54 DUFOURCQ, 1966, p. 103.
55 Ibid., p. 149 et seq.
56 Ibid., p. 560 et seq.
738
África do século  ao século 
Com base nessa informação, e enquanto aguardamos um quadro mais com-
pleto, é possível pensar que proporção não desprezível do ouro africano ingres-
sou no circuito comercial europeu. Ainda que as somas envolvidas representassem
apenas uma porção muito pequena da quantidade de ouro possivelmente entre 4 t
e 8 t importada anualmente do oeste e do sul da África pelo norte do continente,
e ainda que tais somas fossem ridiculamente pequenas se comparadas com as
necessidades reais da economia europeia, constituíam considerável ingresso.
Além disso, a pressão exercida pelos europeus nos empórios comerciais mostra
que todos os interessados estavam conscientes dos lucros que ali podiam obter.
A pressão econômica acompanhava- se de novo esforço para o estabelecimento
de comunidades religiosas, especialmente no Marrocos
57
, numa época em que
as velhas estruturas da Igreja africana acabavam de desaparecer na Ifrkiya
58
, e
as tímidas tentativas feitas por Roma para estabelecer relações com a Etiópia,
no século XV, praticamente não estavam tendo resultados.
Não nos surpreende que os reinos muçulmanos da África setentrional acei-
tassem tal situação, se observamos que ela em muito os beneficiava. As taxas
alfandegárias percebidas sobre as importações europeias montavam, em geral, a
10%, isto sem contar os privilégios garantidos em tratados. Somente o comércio
catalão rendia 6 mil dinares por ano aos cofres dos Marínidas, bem como outras
rendas consideráveis a Tlemcen. Durante o século XV, a alfândega haféssida em
Túnis teve um rendimento anual de 150 mil dinares
59
. Ainda compensava para
essas dinastias, embora a Europa se enriquecesse às custas de seus países, pagar
pelas tropas necessárias para garantir a segurança nas estradas, especialmente ao
sul de Tlemcen, e para a administração fiscal. Os mais clarividentes dos gover-
nantes do Magreb acusaram a colonização comercial europeia de desestabilizar,
mais e mais, suas economias; a maior parte de seus colegas, porém, deixou- se
ir com a corrente.
Desde o século VII, as incursões em território inimigo e à captura de escravos
sendo alguns deles vendidos e outros aproveitados nas mais diversas tarefas
constituíram um dos traços constantes das relações belicosas entre muçulma-
nos e cristãos. Nos séculos X e XI, tal “mercado foi particularmente favorável
aos muçulmanos da Espanha. A tendência reverteu- se, a contar do século XII, à
medida que aumentou a pressão militar e naval dos cristãos sobre os muçulmanos.
57 JADIN, 1966, p. 33-69. As ordens mendicantes chegaram ao Marrocos, e bispos foram designados para
Fés e Marrakech com o m de assistirem os mercenários cristãos.
58 Ibid., MAHJOUBI, 1966.
59 DUFOURCQ, 1966, p. 563 et seq.
739
A África nas relações intercontinentais
Esse desequilíbrio deixou os cristãos com um número crescente de escravos a
empregar ou vender, que incluía não apenas magrebinos, mas também negros
da África setentrional ou mesmo de regiões mais ao sul
60
.
Sabemos, com certeza, que escravos sudaneses” ou núbios eram importados
por todos os países da África setentrional. Isto é bem conhecido no tocante
ao Egito, porém menos, por enquanto, no que se refere à África ocidental
61
.o
dúvida de que os primeiros contatos entre cristãos e negros ocorreram por
intermédio do mundo muçulmano. A iconografia, por exemplo, revela o lugar
dos “mouros negros” nos exércitos da Espanha muçulmana que se batiam com
os cristãos
62
; no século XII, Ibn Abdūn conta- nos, em seu manual, Hisba, que
esses negros eram encontrados na Sevilha almorávida e reputados perigosos
63
.
Durante os séculos XIV e XV, esse vergonhoso tráfico esteve basicamente em
mãos dos mercadores cristãos. Os catalães eram mestres em tal comércio; desde
o século XIV os mercadores do norte da Espanha enviavam escravos negros para
o Roussillon. Em 1213 uma mulher negra, escrava e cristã, foi vendida por um
comerciante genovês a um de seus colegas. No século XV, segundo as fontes de
que dispomos, a bacia ocidental do Mediterrâneo e Veneza em menor medida
aumentaram suas importações de mão de obra negra, e a Cirenaica desempe-
nhou papel essencial nesse tráfico, pelo menos de 1440 a 1470. Na segunda
metade do século, 83% dos escravos que viviam em Nápoles eram negros. Tam-
bém havia muitos negros na Sicília
64
.
Um fato importante foi o surgimento, no mercado mediterrâneo, de negros
da “Guiné”
65
. A competição entre os europeus então se acirrava.em 1472 as
cortes portuguesas requeriam do rei que a reexportação de escravos o tráfico
60 Durante os séculos XII e XIII, várias fontes revelam a presença de negros na Sicília: 23 escravos na
Catânia em 1145, por exemplo, e um negro cristão escravo em Palermo, em 1243; no século XII, os
muçulmanos dados pelo rei normando à abadia de Monreale, na Sicília, incluem cerca de 30 nomes
que poderiam ser de negros. (Essas informações, parcialmente inéditas, são de jovens pesquisadores da
Universidade de Paris-VIII).
61 Ver, por exemplo: AL-YA‘KŪ (891), in CUOQ, 1975, p. 49; AL-ISTAKHRĪ (951) ibid., p. 65;
AL-MUKADDĀSĪ (946-988), ibid., p. 68; AL-BĪRŪNĪ (973-1050), ibid., p. 80; AL-BAKRĪ (1068),
ibid., p. 82; AL-ZUH(1154-1161), ibid., p. 115 et seq.; AL-IDRĪSĪ (1154), ibid., p. 127 et seq.;
IBN ‘IDHĀAL-MARRĀKUS (século XIV), ibid., p. 220; AL-‘UMARĪ (1301-1349), ibid., p.
255 et seq.; IBN BATTŪTA (1356), ibid., p. 380 et seq.; IBN KHALDŪN (1375-1382), ibid., p. 329
et seq; AL-MAKRĪZĪ (1364-1442), ibid., p. 380 et seq.; AL-MAGHĪ(1493-6), ibid., 399 et seq.
Ver também MAUNY, 1961, p. 336-43, 377-9 e 442-4.
62 Ver, em especial, STEIGER, 1941; GUERRERO-LOVILLO, 1949.
63 IBN ‘ABDŪN, 1947, § 204.
64 VERLINDEN, 1966a. O autor outros exemplos além desse. Ver também VERLINDEN, 1977, p.
200 et seq.
65 Mencionados, pela primeira vez, em Barcelona, no ano de 1489; VERLINDEN, 1966a, p. 338.
740
África do século  ao século 
se iniciara em meados do século, com incursões nas costas da Mauritânia fosse
estritamente fiscalizada; essa nova mão de obra devia servir prioritariamente ao
desenvolvimento agrícola de Portugal e das ilhas sob seu controle. Mas isso seria
desconhecer o espírito de empreendimento dos italianos e dos catalães. De 1486
a 1488, Bartolomeo Marchionni, um florentino residente em Portugal, notou
que aumentava o comércio na Costa dos Escravos
66
; aumentavam as importações
de cativos. Os genoveses cujo controle sobre as finanças e a navegação lhes
atribuía importante papel na economia portuguesa – e os catalães reexportavam
e revendiam essa força de trabalho. O mercado escravo de Valencia esteve bem
suprido a partir de 1494. Em 1495- 1496 nele se venderam cerca de 800 cati-
vos, que incluíam considerável número de negros obtidos através de Portugal
67
.
Alguns desses escravos eram de origem senegalesa
68
.
As consequências de tal afluxo foram muito rias. A primeira delas foi a queda
nos pros: os escravos negros passaram a ser vendidos aos preços mais baixos, e sua
sorte foi descrita como a mais miserável de todas. Tornou- se habitual considerar o
trabalho dos negros, que era árduo e confvel, como particularmente adequado para
as tarefas agrícolas mais pesadas; o efeito disso logo se fará notar. Algumas classes
sociais das sociedades mediterrâneas adotaram atitude desdenhosa e altiva perante
esses negros desafortunados, atitude esta que não era compartilhada, então, pelos
europeus do norte
69
.
No século XV, o crescimento econômico que a África conhecera no século
anterior foi comprometido pelos graves acontecimentos que se sucediam na sua
periferia. A luta pelo controle do oceano Índico e a expansão otomana estiveram
entre os fatores de ruptura do antigo equilíbrio. A expansão europeia rumo ao
Atlântico viria a constituir outro fator, com ainda mais graves consequências
para a África, responsável pela brutal interrupção, por séculos a fio, do cresci-
mento que se iniciara no século XIV.
66 De 15 de junho de 1486 a 31 de dezembro de 1493, chegaram a Lisboa 3589 escravos, dos quais pelo
menos 1648 estavam destinados a mercados orentinos. VERLINDEN, 1962, p. 29; ver também RAU,
1975.
67 Ver CORTÈS-ALONSO, 1964. Foram vendidos em Valencia, em 1489, 62 canarinos, e outros 90 em
Ibiza, nas ilhas Baleares; 21 em Valencia em 1493, 130 no ano seguinte, 99 em 1496 e os últimos 26 em
1497. A respeito do tráco dos guanchos, ver VERLINDEN, 1955a, p. 357, 550, 561, 562-7 e 1028. Os
números de negros africanos foram: mais de 200 em 1484; cerca de 50 em 1490; quase 350 em 1491;
aproximadamente 180 em 1492; perto de 180 em 1493; mais ou menos 150 em 1495; cerca de 150 em
1496; e por volta de 110 em 1497. Os fornecimentos foram interrompidos nessa data até 1502.
68 CORTÈS-ALONSO, 1964, p. 56 et seq. Em geral, tinham muito pouca idade: 9, 12 ou 15 anos.
69 Esperamos contribuir para ampliar este material publicando, em futuro próximo, um longo estudo sobre
a iconograa dos negros no Ocidente.
741
A África nas relações intercontinentais
F . Manuscrito árabe do século XIII mostrando a presença de negros nas embarcações do oceano
Índico. (Fonte: Bibliothèque Nationale, Paris, Ms. árabe 5847, fólio 119, verso).
742
África do século  ao século 
A África, a Ásia e o oceano Índico
Os volumes anteriores mostraram que as relações com os ricos centros pro-
dutores asiáticos levaram à abertura de grandes rotas comerciais, por terra e
mar, todas elas orientadas para a Ásia ocidental. Os muçulmanos detinham o
controle de tais rotas desde o século VII, pom havia competição acirrada entre
a que terminava no sul do golfo Pérsico, alimentando o comércio mesopotâmico
e sírio, e a que ia dar no mar Vermelho, passando pelo Nilo, responsável pelo
desenvolvimento dos portos do delta. Esses dois pontos terminais mantiveram- se
permanentemente em rivalidade. Durante a época de que tratamos, como ocor-
ressem distúrbios de toda sorte na Ásia e também ruísse a dominação muçul-
mana na Mesopotâmia, o Egito ficou em vantagem, e conheceu assim seu mais
faustoso período de controle sobre o comércio oriental, do califado fatímida ao
mameluco
70
.
O Mediterrâneo foi abandonado de fato aos cristãos a partir de 1100. Con-
tudo os esforços militares e comerciais destes para atingir, através do Egito, a
principal rota internacional de comércio com o mar Vermelho não deram frutos.
Por seu lado, porém, os egípcios e seus sucessivos soberanos raramente dispu-
seram de acesso direto ao grande comércio do oceano Índico. Quase sempre
precisaram passar pela mediação das várias dinastias que se sucediam em Áden,
o eixo de tal comércio.
De qualquer forma, a partir do século XII, os especialistas nesse grande
comércio, os Karm
71
, asseguraram o tráfico de especiarias, pedras preciosas,
ouro e cobre entre a Ásia e África, por um lado, e Aderi e o Egito, por outro.
Sua prosperidade foi se consolidando incessantemente durante três séculos. Até
a conquista otomana, os Karm e os mercadores muçulmanos, que os imitavam,
gozaram de grande prosperidade, que veio a favorecer os portos mediterrâneos
do Egito, aonde os ocidentais iam comprar aqueles raros e preciosos produtos.
Sob os Aiúbidas (1171- 1250), Aydhāb tornou- se um dos mais movimenta-
dos portos do mundo
72
. Ibn Djubayr visitou- o, em peregrinação, no ano de 1183.
Até desistiu de contar as caravanas que viu, tão numerosas eram. A unificação
política e naval do mar Vermelho nunca foi muito durável, porém, e nem os
70 LABIB, 1965.
71 Ocasionalmente se vincula o nome Karm ao do Kanim (Kanem) chadiano. Tal vinculação tem o
endosso das pesquisas mais recentes. A respeito, ver Encyclopaedia of Islam, nova ed. v. 4, p. 640-3, verbete
“Karm”. Em tamul, karya signica “negócio”; não é fora de propósito achar aí uma relação interessante.
Ver também GOITEIN, 1966, especialmente cap. 17 e 18; e GARCIN, capítulo 15 deste volume.
72 Sobre o crescimento desse porto, ver GARCIN, 1972; PAUL, 1955.
743
A África nas relações intercontinentais
Aiúbidas nem seus sucessores tiveram êxito no promovê- la. O verdadeiro fator de
unificação era constituído pelos comerciantes, em especial os Karm, baseados em
Áden, que transportavam, compravam e vendiam produtos da Ásia, da África
e do Mediterrâneo. Os Karm atuavam como intermediários diplomáticos
quando surgiam conflitos entre os senhores do Egito e os dinastas de Áden.
Também negociavam acordos entre príncipes asiáticos e egípcios. As autoridades
egípcias davam a esses indispensáveis auxiliares salvo- condutos para eles e seus
bens, bem como o direito de importarem livremente produtos ocidentais no
Egito. Assim se garantia o fluxo de especiarias e de escravos para os entrepostos
do Nilo. A hegemonia econômica egípcia estendeu- se, sob os Mamelucos, até os
portos na costa ocidental do mar Vermelho – Sawakin, Massawa e Assab.
Áden também era o principal ponto de passagem obrigatória de um outro
comércio o comércio com a costa da África oriental, que se estava desenvol-
vendo em grau menor ou menos conhecido que o asiático e com lucros aparen-
temente também menores
73
. É provável, contudo, que os numerosos sinais de
interesse de membros da família fatímida e casas comerciais egípcias por esse
comércio africano estejam relacionados à necessidade de ouro que tinha o Egito
no século XII, quando se esgotavam as minas de Wād al- Allāk e era impossível
ou difícil obter o metal precioso da África ocidental
74
.
De acordo com al- Idrs, no século XII já existia intensa atividade comercial
na costa da África oriental. Exportava- se ferro com grande lucro, especialmente
para a Índia, cujo aço, por ser de alta qualidade, exigia importações considerá-
veis de matéria- prima. Por volta de 1240, Ibn al- Ward escreveu, a respeito da
região ao redor de Sofala: “é um território imenso, cujas montanhas abrigam
jazidas de ferro, exploradas por seus habitantes. Os indianos vêm e compram-
lhes esse metal a preço bastante elevado”. Os séculos XIII e XIV assistem ao
73 Ver os volumes 2 e 3 desta História Geral da África. Enquanto aguardamos a publicação de outros
estudos sobre tal questão, vale a pena notar que, segundo Goitein, nem todo o comércio passava por
Áden. GOITEIN, 1966, p. 355, e 1967 passim. Fontes árabes e chinesas também fornecerão importntes
informações adicionais; ver WHEATLEY, 1959.
74 O problema da importação do ouro do sul ainda não foi abordado com toda a atenção que merece, devido
à falta de colaboração entre os especialistas. Basta, no entanto, agrupar as publicações mais importantes
para se compreender que, por volta do ano 1000, sua mineração e exportação certamente tinham
começado. Ver, em particular, SUMMERS, 1969, que parece convencido de que a produção se iniciou
em tempos antigos, e também HUFFMAN, 1974a, que apresenta importante bibliograa. Este último
autor insiste em que a mineração do ouro em larga escala data do século XI. No outro extremo, vamos
encontrar os artigos bastante eruditos de EHRENKREUTZ, 1959 e 1963, de leitura imprescindível para
a apreciação da cunhagem fatímida em sua real amplitude e justa qualidade; essa amplitude e qualidade
pressupõem uma provisão de ouro em tal abundância que, naquele tempo, nem o Egito, nem a Núbia,
nem a África ocidental poderiam fornecer aos Fatímidas. Mas é necessário assinalar que ainda são muito
poucos os especialistas que concordam fosse tão antigo esse comércio do ouro no Egito. .
744
África do século  ao século 
desenvolvimento desse comércio costeiro. Marfim, coletado no interior e muito
prezado nos mercados muçulmanos, chineses e indianos, peles de animais, ferro
e ouro constituíam os mais importantes produtos de exportação. A madeira sem
dúvida deverá integrar essa lista, quando estudos comparáveis aos realizados
sobre o Mediterrâneo confirmarem o importante papel da África nesse comércio
internacional, superado apenas pela Ásia
75
.
O ouro proveniente do sul, exportado através de Sofala porém negociado em
Kilwa, predominava nesse tráfico. R. Summers avalia a produção sul- africana
em 10 t anuais no correr desses séculos, começando a declinar no século XV
76
.
Mas, ainda que aceitemos cifras mais modestas, deve- se admitir que esse ouro
certamente desempenhou na economia mundial um papel por ora pouquís-
simo estudado – comparável ao do ouro africano ocidental.
Muitos produtos chegavam, de navio, a essa costa; alguns de particular interesse
devido à sua procedência: cauris
77
, plantas novas que rapidamente se aclimataram
na África
78
, vestimentas e contas de vidro, vendidas aos africanos a preços eleva-
dos
79
. Tratava- se fundamentalmente de um comércio de cabotagem, em navios de
formas e tonelagens variadas, que provavelmente utilizavam Kilwa como porto de
base. As áreas mais ao sul, até o canal de Mambique, onde as condões meteoro-
lógicas eram muito diferentes das conhecidas no norte do oceano Índico, não foram
exploradas de forma sistemática pelos navegadores muçulmanos antes do século XV.
O sul”, na verdade, manteve- se envolto em mistério, primeiro porque, de acordo
com Ptolomeu, tinha um caráter mais oriental do que verdadeiramente meridio-
nal; depois porque nele se situaria um território misterioso – Wakwak – , rico de
promessas e ameaças, à espera do viajante intrépido. Também havia um “fim do
mundo do qual se sabia muito pouco (ver fig. 26.1).
75 LOMBARD, M., 1972, p. 153-76.
76 SUMMERS, 1969, p. 195.
77 Ibn Battūta estende-se sobre o comércio dessa concha das ilhas Maldivas na costa oriental. Sobre os
cauris a biograa é extensa no que respeita à África ocidental; quanto ao oceano Índico, ver, por exemplo,
PELLIOT, 1933, p. 416-8.
78 Ver ainda IBN BATTA. Para um relato mais recente, ver CHITTICK & ROTBERG, 1975;
UNESCO, 1980a.
79 Em Kilwa e Sofala, comerciantes swahili adquiriam tecidos de algodão, de seda e de lã com seu ouro. No
séculoXIII, 67% das taxas aduaneiras arrecadadas em Kilwa eram provenientes dos tecidos de algodão
importados. Parece que nessa região da África, da mesma forma que na parte ocidental, os ornamentos
de cobre eram tão valorizados quanto os de ouro. Estudos recentes de W. G. L. Randles e R. Summers
enfatizam, porém, a cautela com que os muçulmanos se dedicaram à coleta do ouro no sul. Os dois
autores notam o contraste desse ritmo mais lento – embora, no total, tenham se encontrado quantidades
consideráveis do metal precioso – com a busca febril do mesmo ouro a que se lançaram os portugueses,
quando se estabeleceram no sul do continente.
745
A África nas relações intercontinentais
Aproveitando as monções de verão, navios muçulmanos zarpavam todo ano
de Mombaça ou Malindi para a Ásia. Esses barcos tiveram importante papel no
desenvolvimento das técnicas de navegação, que melhoraram consideravelmente
do século XIII ao XV. A navegação astronômica, que muito devia às invenções
e observações dos chineses; o uso da bússola, que provavelmente chegou aos
árabes e mediterrâneos, pela mesma época, da China; a ciência dos ventos, das
correntes e das variações da fauna e da flora marinhas; a elaboração de cartas de
navegação, nas quais os pilotos muçulmanos anotavam suas observações: tudo
isso constituiu um capital científico e técnico precioso, do qual os portugueses
viriam a beneficiar- se, à sua chegada a Mombaça
80
.
Em suma, esse comércio, que obviamente contrariava, e muito, os interesses
dos africanos do interior, enriqueceu todos os intermediários, africanos e não
africanos, estabelecidos nos empórios costeiros
81
. Marinheiros africanos eram
utilizados em barcos de cabotagem e em outros que regularmente faziam o
percurso entre a Ásia e a África, pelo menos a crer em certas pinturas em
manuscritos (ver fig. 26.5). Outros deixaram a África, talvez de maneira mais
ou menos volunria, para estabelecer colônias na Arábia meridional e a
mesmo na costa ocidental da Índia, onde começa a ser estudada sua impor-
tância histórica
82
.
Mais de 50 cidades, do cabo Gardafui até Sofala, demonstravam a vitalidade
do fenômeno urbano na zona swahili antes da chegada dos árabes. A partir do
século XII, como comprovam a arqueologia e o estudo crítico das fontes, peque-
nos grupos de emigrantes do mundo muçulmano vieram ter a essas cidades e às
ilhas litorâneas, embora inexistisse qualquer esforço uniforme ou sistemático de
colonização. A vinculação dessas cidades com o comércio de larga escala, então
em desenvolvimento, do oceano Índico, passando por Áden ou na linha direta
África– Ásia favorecida pelas monções, fez que se desenvolvesse nas cidades
costeiras uma rica aristocracia de mercadores, muçulmanos em sua maioria, que
por vezes desafiaram o poder das autoridades tradicionais. Da mesma forma
que na África ocidental, essas cidades constituíam cadinhos étnicos e culturais,
cuja fisionomia ia gradualmente sendo transformada pelo Islã e onde as línguas
árabe e swahili se mesclavam. As próprias cidades litorâneas disseminando- se
80 Estudos a esse respeito multiplicam-se. Ver, por exemplo, BARRADAS, 1967; TIBBETS, 1969.
81 Kilwa cunhava moedas desde o século XIII.
82 Ver UNESCO, 1980.
746
África do século  ao século 
F . Mapa do cerco português da África no século XV. (J. Devisse).
747
A África nas relações intercontinentais
por outros lugares mais ao sul contribuíram para tornar inextricável o problema
das origens dessa população tão mesclada
83
.
As classes dominantes da região desfrutavam de um grau de prosperidade
confirmado pela arqueologia. Belas mesquitas e palácios construídos em pedra,
magníficos vidros importados do golfo Pérsico, cerâmicas de além- mar e da China,
o todos indicadores claros dessa riqueza. Os soberanos e as classes opulentas
entesouravam em seus palácios preciosas faianças de Sultanabad e Nishapur, por-
celana chinesa de cor verde- pálida (celadon) do período song, esplêndidos pratos
decorados do período ming, pérolas e pedras preciosas da Índia, estatuetas de ouro
ou marfim, joias de jade e cobre, assim como tapetes do Oriente Médio.
É claro, porém, que desses exemplos atípicos o se deve concluir que toda a
população daquelas cidades fosse rica. As cidades sem vida constituíram polos
de atração: permitiram a importação de cnicas novas e a emergência de um modo
de vida que contrastava com o dos africanos do interior, tal como foi descrito por
al- Mas‘ūd, no século X. Também o dúvida de que contribuíram para o desen-
raizamento e empobrecimento daqueles que a elas acorreram desprecavidos.
Recente estudo de H. N. Chittick e R. I. Rotberg
84
apresenta- nos uma das
mais prósperas de tais cidades, Kilwa, que Ibn Battūta descreveu como sendo
“uma das mais belas do mundo”, com edifícios de quatro e cinco andares, des-
critos pelas fontes chinesas do século XV
85
.
De fato os chineses visitaram, em grande número, essa costa da África durante
o século XV. Faz- se menção da chegada de africanos à China, possivelmente a
partir do século VI ou VII
86
; pinturas do período tang mostram negros africanos
em grutas budistas, uma compilação do século XIII faz referência provavelmente
ao território swahili. Mas apenas as descobertas arqueológicas é que indicam
vestígios da presença chinesa na África oriental, a partir do século VIII
87
. E
não provas de que tais vestígios se devam a relações diretas antigas entre
chineses e africanos. Tudo mudou no século XV: já em 1402 um mapa coreano
83 Foi só muito tardiamente, talvez mesmo antes do século XV, que as tradições relativas à fundação dessas
cidades foram deformadas para que coubesse atribuir-lhes origem asiática. O mito de shirazi”, ainda
bastante difundido em nossos dias, é, na sua formulação rígida, de elaboração muito recente. Ver o
capítulo 18 deste volume. Dentre muitos outros trabalhos relevantes, alguns aguardando publicação, ver:
HIRSCHBERG, 1931; GROTTANELLI, 1955.
84 CHITTICK & ROTBERG, 1975.
85 Sobre outra dessas cidades, Shungwaya, ver GROTTANELLI, 1955.
86 CHOU YI LIANG, 1972. Ver também HIRTH, 1910; ROCKHILL, 1915; FRIP, 1940-1941; LO
JUNG-PANG, 1955; FILESI, 1962a, 1962b.
87 CHOU YI LIANG, 1972.
748
África do século  ao século 
apresentava uma imagem aproximadamente correta, não ptolomaica, do sul da
África; em 1470, as crônicas ming incluíam a descrição precisa de uma zebra;
e uma pintura chinesa de 1444 retrata uma girafa certamente a que chegara
à corte imperial alguns anos antes (como veremos a seguir). Além do tráfico
de escravos, as fontes chinesas mencionam mais quatro importantes artigos de
exportação da África oriental: ouro, âmbar, sândalo e marfim.
Uma armada chinesa, de navios enormes para a época
88
, sob o comando de
Cheng- Ho, muçulmano de Yunnan, fez sete grandes viagens cruzando o oceano
Índico, entre 1405 e 1433; esses navios se detiveram duas vezes em costas afri-
canas, uma entre 1417 e 1419, e outra entre 1431 e 1433. Durante a primeira
viagem, a frota singrou até Malindi, para levar de volta a delegação enviada em
1415 a Pequim para presentear a corte imperial com uma girafa
89
. As cidades de
Brava e Mogadíscio são mencionadas nos relatos da segunda viagem. Tais viagens
o consideradas como o coroamento dos empreendimentos marítimos chineses,
porém foram subitamente interrompidas devido a acontecimentos domésticos na
China. o obstante, graças ao tráfico marítimo árabe, persa e gujaráti entre a
China, o sudeste asiático e a África oriental, produtos chineses, tais como porce-
lana e seda, continuaram sendo vendidos nos mercados da África oriental depois
dessas expedições, da mesma forma que antes delas
90
. Na ilha de corais de Songo
Mnara, próxima a Kilwa, G. Mathew descobriu faianças vitrificadas de origem
tailandesa, assim como grandes quantidades de porcelana chinesa datando do final
do período song até o início do período ming (aproximadamente de 1127 a 1450
da era cristã)
91
. Na China, entre 1440 e 1449, Wang Ta- Yuan escreveu um livro
em que mencionava as ilhas Comores e Madagáscar.
Por volta de 1450, um estável sistema de trocas comerciais entre a costa orien-
tal da África, o noroeste de Madagáscar então ligado a Kilwa por um tráfico
regular , o Egito, a Arábia e a Ásia contribuía para a prosperidade dos empórios
comerciais e da região do oceano Índico como um todo. Em 1487, Pero da Covi-
lhã, encarregado pelo rei de Portugal de missão secreta no Mediterrâneo oriental,
obteve informações sobre as dimensões do comércio da costa oriental, até a altura
de Sofala. A 24 de julho de 1488, Bartolomeu Dias contornou o extremo sul da
África, convencendo- se assim de que a forma do continente nas suas partes meri-
88 Tais navios eram de 1500 t, enquanto a capacidade dos primeiros barcos portugueses a singrar o oceano
Índico era de 300 t.
89 Ver DUYVENDAK, 1938.
90 Ver FREEMAN-GRENVILLE, 1955; KIRKMAN, 1967; CHITTICK & ROTBERG, 1975.
91 MATHEW, 1956.
749
A África nas relações intercontinentais
dionais o era a que lhe fora atribuída desde os tempos de Ptolomeu. Em 1497-
1498, a armada de Vasco da Gama esteve atracada durante 32 dias, para reparos,
na costa sudeste da África. Os navegantes observaram que se usavam flechas e
azagaias de ferro, que se produzia sal por evaporação da água do mar, que as adagas
tinham cabos de marfim, e que algumas das mulheres cujo mero superava
o dos homens portavam ornamentos labiais. A 2 de mao de 1498, Vasco da
Gama encontrou, pela primeira vez, africanos de fala árabe, em Moçambique, e
surpreendeu- se com a qualidade de suas vestes. A 7 de abril, o sulo de Mombaça
deu calorosa acolhida aos portugueses. Dezessete dias mais tarde, estes partiram
para a Índia, guiados por Ibn Madjid, autor de uma carta marítima
92
. Em agosto
de 1499, alguns sobreviventes dessa primeira expedição regressaram a Portugal.
Uma era completamente nova na história do oceano Índico e da costa oriental da
África iria ter início – era precedida por grandes insurreições na costa atlântica.
O domínio do Atlântico e suas consequências
para a África
O “Mediterrâneo atlântico”
Assim comumente era chamada no século XVI a parte oriental do Atlântico
delimitada pelas costas ocidentais da península Ibérica e pela África, Madeira,
Açores e Canárias.
As fontes árabes deixam- nos perceber que os autores, restritos a transmi-
tir o conhecimento até então adquirido, tudo ignoravam sobre essa região do
mundo, assim como sobre a África continental
93
; mesmo as ilhas Canárias eram
muito pouco conhecidas, apesar de ativamente frequentadas por comerciantes
e navegadores
94
. Temos todas as razões para acreditar, porém, que em muitos
92 O texto árabe dessa carta foi publicado por FERRAND, 1921-1928; cf. nota 80.
93 Sobre o Atlântico, ver a Encyclopaedia of Islam, nova ed. v. 1, p. 934. Os textos de al-Idrs (in CUOQ,
1975, p. 143) e de Ibn Khaldūn (in MONTEIL, 1967-1968, p. 115) bastam para evidenciar a má quali-
dade da informação que lhes chegava. Cabe assinalar que os escassos conhecimentos dos árabes sobre os
mares a oeste da África contrastam agudamente com seu domínio do oceano Índico e de suas costas.
94 No século XII, os aventureiros de Lisboa talvez tenham chegado às ilhas Canárias (MAUNY, 1960, p. 91;
1965). No século XIII, a viagem de Ibn Fātima, segundo o relato que devemos a Ibn S‘ad (in CUOQ,
1975, p. 212), mostra que os muçulmanos então tentavam explorar a costa africana. O relato de Ibn Fātima
revela que essa expansão não era, absolutamente, desinteressada, e que não se tratava de interesse cientíco.
Ao sul do Marrocos, o navegador descobriu uma região que temos diculdade de localizar – um deserto
arenoso porém “excelente para o cultivo da cana-de-açúcar”. No século XIV, al-‘Umar (in CUOQ, 1975,
p. 281) conta-nos que um vizir de Almería tentou explorar a costa africana.
750
África do século  ao século 
casos foram navios muçulmanos os primeiros a ligar as costas às ilhas, embora
não exista registro escrito de sua passagem
95
. Não se pode colocar em dúvida a
importância do mar para os habitantes da costa. Ibn Sa‘d observa que
o atum é o componente alimentar básico dos povos do Marrocos e al- Andalus: ele
é cortado em dois, transversalmente, e depois pendurado para secar
96
.
No século XI, al- Bakr nota a produção de âmbar na costa da África negra
97
,
e, no século XII, al- Idrs menciona o comércio de sal que ocorria entre Awlil e o
Senegal
98
. A área explorada provavelmente o era muito extensa, pois os viajantes
o se aventuravam a distanciar- se muito do litoral
99
. O uso do mar como meio de
evolução e como fonte de alimentos é tão incontestável que os primeiros viajantes
portugueses assinalaram a presença de povos que se nutriam de peixe na costa da
África ocidental, profundamente desprezados pelos caçadores do interior.
A conquista do “Mediterrâneo atlântico pelos europeus não se deveu a uma
superioridade técnica destes. As verdadeiras razõesm outros fundamentos. No
culo XII, a armada almóada gozava de reputação tal que Salāh al- Dn (Saladino)
pediu seu apoio contra as frotas cristãs que operavam no Mediterrâneo oriental.
No final do século XIII, o poder naval marínida se exaurira após as grandes
batalhas travadas pelo estreito de Gibraltar. E fator ainda mais decisivo foi que
os cristãos então controlavam quase todas as principais áreas do Mediterrâneo
ocidental em que se produzia madeira para a construção de navios
100
.
Além disso, nos portos cristãos, a acumulação do capital necessário à constru-
ção naval fez- se em mãos de comerciantes e de seus sócios, mais frequentemente
do que nas dos detentores do poder político. A política de construção naval
assim se vinculou diretamente à acelerada expansão econômica de 1200 a 1600.
Este processo se estendeu ao Atlântico norte após 1277. As frotas genovesas,
e depois também as venezianas, ligaram a Itália mercantil fazendo escalas
em portos como os das ilhas Baleares, Sevilha, Lisboa, Madeira e Baiona à
95 Parece-nos haver algum exagero nas teses propostas por um autor chinês (HUI LIN LI, 1960-1961) a
partir de fontes chinesas. A identicação dessas regiões proposta por esse autor precisaria ser corroborada
por testemunhos cientícos mais consistentes.
96 In CUOQ, 1975, p. 202.
97 Ibid., p. 83.
98 Ibid., p. 128.
99 A propósito do Atlântico norte, J. Heers (1966, p. 230) reconhece a importância das descobertas dos
pescadores, sobre segmentos inteiros de futuras rotas transoceânicas, e o exemplo dos pescadores
lisboetas que, no século XVI, chegaram até a baía de Hudson..
100 LOMBARD, 1972, p. 153-76.
751
A África nas relações intercontinentais
Inglaterra e à Flandres industriais. Aqui, o papel predominante coube ao poder
econômico
101
. Os muçulmanos não reagiram ao crescente desafio europeu, tanto
devido à fraqueza dos reinos do Magreb à exceção dos interlúdios haféssida
e sádida quanto porque, de modo geral, o mar não constituía fator essencial
para o bom sucesso dos empreendimentos econômicos muçulmanos. As carava-
nas carregavam muito mais ouro do que podiam comportar as caravelas
102
; e os
comerciantes e autoridades dos países magrebinos não tinham nenhum interesse
econômico evidente, nos séculos XIV e XV, para competir com os cristãos no
mar ao custo de pesados investimentos. Isso explica por que foram tão desiguais
os esforços para a conquista do Mediterrâneo atlântico”: foi necessário quase
um século de investimentos
103
, de esforços persistentes e de fracassos, para se
consumar tal conquista ao termo do século XIV, embora as dificuldades técnicas
sequer se comparassem com as que aguardavam os exploradores ao sul do cabo
Bojador. E também explica o papel predominante dos italianos nessa fase de
expansão
104
. Durante esse estágio inicial, Portugal não dispunha de comerciantes
e banqueiros capazes de desembolsar o capital necessário
105
.
A maior parte das viagens de descoberta feitas nessa área pelos europeus
jamais será do nosso conhecimento; de vez em quando, casualmente os histo-
riadores trazem uma delas à baila. Por questão de prudência, tem sido cada vez
mais comum entre os historiadores o uso do termo redescoberta” para referir
a primeira expedição europeia bem documentada que tenha levado à ocupação
de um território determinado
106
. Hoje se tornaram evidentes as razões por que
os cristãos se estabeleceram tão rapidamente no “Mediterrâneo atlântico”. A
busca de ouro pode ter sido um fator importante
107
, mas fica evidente que muito
mais determinante foi a expectativa de se obter uma produção em larga escala
de certas colheitas úteis – trigo, uvas e cana- de- açúcar nas ilhas do Atlântico.
101 Durante o século XV, o volume de tráco nessa rota marítima representou aproximadamente 40 vezes
o volume do antigo tráco por via terrestre entre Itália e Flandres, através da Champagne.
102 Ver GODINHO, 1969.
103 HEERS, 1966, p. 273-93.
104 GODINHO, 1962; RAU, V., 1967, p. 447-56.
105 VERLINDEN, 1955b, p. 467-97 e 1961.
106 CORTESÃO, A., 1971, 1972 e 1973; FALL, 1978. Este último, com vários argumentos importantes,
sustenta que existe forte probabilidade de que numerosos outros navegantes, muçulmanos e cristãos,
tenham ultrapassado o cabo Bojador antes dos portugueses.
107 Quanto à expedição dos irmãos Vivaldi, opiniões opostas são expressas por V. de M. Godinho (1962 e
1969) e J. Heers (1957 e 1971). É certo que os portugueses necessitavam de ouro; entre 1387 e 1416, o
preço desse metal subiu 12%. A cunhagem de moedas de ouro somente se retomou em Portugal no ano
de 1436, sendo que moldes muçulmanos foram utilizados até 1456.
752
África do século  ao século 
Madeira
108
, as ilhas Canárias e por certo tempo os Açores, antes de ocorrer a
expansão ao sul do cabo Bojador, foram tomados pelos canaviais. O papel do
comércio de açúcar como instrumento da expansão ainda não foi satisfatoria-
mente estudado. no século XIII, o Marrocos exportava açúcar para Flandres
bem como para Veneza. Os canaviais marroquinos, antes de conhecer uma
verdadeira explosão sob os Sádidas, já se desenvolviam sem interrupção desde o
século IX; porém, até a época dos Sádidas, o rendimento da produção, os investi-
mentos e a organização das vendas não bastavam para garantir ao Marrocos um
lugar significativo no concorrido comércio açucareiro. Os esforços marroquinos
deram- se um pouco tarde, quando, sob a pressão dos genoveses, pesados inves-
timentos já haviam induzido um notável aumento da oferta de açúcar nas ilhas.
Essa expansão ocorreu poucas décadas antes do desenvolvimento da produção
açucareira americana, no século XVI.
A exportação da mão de obra africana esteve diretamente vinculada a esse
esforço. Antes dos negros africanos, no século XIV os guanchos das ilhas Caná-
rias foram sujeitos à escravidão relacionada ao açúcar e à agricultura de lucro
109
.
Ao sul do cabo Bojador
A exploração de uma região marítima
O Atlântico dos ventos alísios e dos anticiclones, como bem mostrou R.
Mauny, propunha à navegação problemas técnicos distintos dos que se conhe-
ciam anteriormente
110
. De 1291 a 1434, pelo menos do lado cristão, muitas das
tentativas de exploração naval ao sul do cabo Bojador fracassaram. A tese de R.
Mauny, segundo a qual os navios que se aventurassem muito ao sul do Bojador
não teriam condições de retomar, voltou recentemente a ser contestada
111
; mas
permanece o fato de que no século XV, para terem êxito, essas viagens reque-
riam considerável esforço e investimento e pesados sacrifícios em homens e
material. A experiência adquirida no “Mediterrâneo atlântico ajudou a levantar
soluções; mas estas se revelaram insuficientes, e foi necessário desenvolver pes-
quisas científicas e técnicas no Mediterrâneo ocidental, com base muitas vezes
108 Por volta de 1455, Ca da Mosto registrou que os canaviais da Madeira estavam em plena produção. Em
1508, a ilha produziu 70 mil arrobas de açúcar.
109 Ver GODINHO, 1962 e 1969. No nal do século XV, escravos guanchos eram vendidos em Sevilha
(PEREZ-EMBID, 1969, p. 89), ampliando-se seu número depois de 1496. Acerca de sua venda pelos
cristãos de Salé, ver o testemunho de Ibn Khaldūn (in MONTEIL, V., 1967-1968, p. 115).
110 MAUNY, 1960.
111 Por LONIS, 1978, entre outros.
753
A África nas relações intercontinentais
nas realizações dos árabes, para se conseguir dominar as novas condições
112
. As
necessidades financeiras eram ainda maiores do que nos tempos precedentes
113
.
Além disso, era necessário dominar as técnicas de navegação astronômica ou, ao
menos, da utilização de bússolas e de cartas marítimas
114
, bem como construir·
navios pequenos e fáceis de manobrar
115
. As caravelas eram duas ou três vezes
menores em tonelagem que os cargueiros venezianos. Adaptavam- se bem aos
ventos do Atlântico e podiam remontar rios, porém somente foram úteis durante
o curto período em que pouca importância tinha a questão da tonelagem a
transportar. No século XVI, serão substituídas por pesados galeões no comércio
com a Ásia.
Reunidas todas as condições para o sucesso, a exploração sistemática desen-
volveu- se muito rapidamente e, embora basicamente relacionada à Europa, sob
certos aspectos teve um seriíssimo efeito sobre a vida africana no século XV.
Descoberto pela primeira vez na totalidade de sua conformação periférica, o
continente em si mereceu pouca atenção de seus descobridores. Os portugue-
ses, desapontados por encontrar tão pouco ouro, que este na sua maior parte
continuava em mãos muçulmanas no norte e no leste, rapidamente reduziram
a África ao papel de fornecedora de mão de obra. Assim, uma vez rompido
o isolamento secular da costa oeste, começou a exportação para a América
de parte considerável da população africana. As perspectivas econômicas do
Novo Mundo pareciam infinitas; a Ásia, a que finalmente os europeus atingi-
ram desviando- se do Islã, agora fornecia especiarias, pedras preciosas, tecidos e
porcelana. A América e a Ásia eclipsaram o continente negro nas preocupações
dos brancos.
Antes de dar prosseguimento a esse ponto, convém chamar a atenção para
um texto de al- ‘Umar, que, como tantos outros, despertou muita controvérsia,
nem sempre de natureza científica. O mansa Kanku Mūsā, relata al- ‘Umar,
falava de seu antecessor no trono do Mali nos seguintes termos:
Ele não acreditava que fosse impossível cruzar o oceano. Queria atingir o outro
lado do mar e estava entusiasmado por fazê- lo. Equipou 200 embarcões, que
levariam os homens, e outras tantas abasteceu com ouro, água e provisões sufi-
cientes para vários anos. Então disse aos encarregados das embarcações: Não
112 Ver BEAUJOUAN, 1969; MOTA, 1958; e POULLE, 1969.
113 HEERS, 1966.
114 Usadas desde 1317 no mar Mediterrâneo, as cartas marítimas somente começaram a incluir o Atlântico
no curso do século XV. A primeira a dar conguração satisfatória da África ocidental e de seu oceano
data aproximadamente de 1470; a primeira a mencionar as ilhas do Cabo Verde e de São Tomé é de
1483. Ver LA RONCIÈRE, C. de, 1967; LA RONCIÈRE, M. de, 1967.
115 GILLE, 1970.
754
África do século  ao século 
regresseis antes de atingir o outro lado do oceano ou sem que se esgote vossa água
ou provisão’. Eles zarparam. Passou o tempo. Passou muito tempo, e ninguém
regressava. Finalmente um barco, um único, regressou. Perguntamos a seu mestre
o que ele tinha visto e conhecido, e ouvimos: ‘Navegamos durante muito tempo,
até que no meio do mar apareceu um rio com fortíssimas correntezas. Eu estava
no último barco. Os outros continuaram navegando e, ao chegar a esse ponto,o
conseguiram retornar e desapareceram. Não sabemos o que aconteceu com eles.
Quanto a mim, regressei daquele lugar sem me aventurar na correnteza’. O sultão
rejeitou essa explicação. Mandou então preparar 2 mil embarcações, mil para ele
e seus homens e as outras para água e provisões. Nomeou- me para substituí- lo,
embarcou com seus companheiros e zarpou. Foi a última vez que os vimos, a ele
e a seus companheiros
116
.
Já se tentou ver nesse interessantíssimo documento a prova de uma possível
descoberta da América pelos malienses antes de Colombo
117
, por vezes mesmo
de um tal domínio do mar que teria levado os negros do Atlântico até o oceano
Índico
118
. Nessa disposição “competitiva”, é claro que são poucas as chances de
se chegar a conclusões firmes e confiáveis. Contestando tais interpretações, R.
Mauny várias vezes insistiu que as condições técnicas de que então dispunha a
África ocidental tornavam impossível tal viagem, e que, de qualquer modo, esta
não teria deixado consequências conhecidas ou efeitos duradouros
119
.
Deixando de lado essas questões, gostaríamos de sugerir algumas linhas
complementares de reflexão. Antes de mais nada, é preciso desarmar o “debate
técnico”. A navegação existia certamente desde muito tempo em todas as cos-
tas da África, e não razão para se supor que os africanos refletissem menos
que outros povos sobre as técnicas requeridas para vencer as dificuldades reais
e consideráveis que o mar apresentava. A pesca, a cabotagem e as atividades
116 AL-‘UMARĪ in CUOQ, 1975, p. 274-5. Sobre esse texto, pode encontrar-se uma bibliograa,antiga,
in HENNIG, 1953-1956, v. 3, p. 161-5.
117 WIENER, 1920-1922; ver também HAMIDULLAH, 1958, p. 173-83. Este autor retoma de M. D.
W. Jereys (1953a) um argumento que não se pode considerar denitivo no atual estágio de nossos
conhecimentos a saber, o de que o “rio mencionado seria o Amazonas. Isso signica desconhecer
dois fatos: primeiro, que antes de chegarem a esse “rio no mar” os navios se teriam deparado com várias
correntes marítimas, das quais as mais fortes os impeliriam para o Caribe e não para o Brasil; segundo,
que o empuxo do Amazonas repeliria os barcos para o mar, em vez de puxá-los para a costa do que hoje
é o Brasil. É, verdade, porém, que essas correntes, se fossem seguidas, poderiam fazer navios cruzarem
o Atlântico de leste a oeste, na latitude de Dakar, rumo à América, mas tornariam impossível o retorno.
Será este o sentido da narrativa de al-‘Umar? Ver também RILEY, 1971.
118 HUTTON, 1946.
119 MAUNY, 1971.
755
A África nas relações intercontinentais
desenvolvidas ao longo das costas, descritas pelos primeiros navegadores euro-
peus, não deixam margem para dúvidas a esse respeito: uma certa parte do mar,
tanto a leste quanto a oeste, era dominada pelos africanos. É verdade, porém, que
o mar não ocupava lugar de destaque na economia ou na organização política
dos poderes africanos. A África vivia dentro de si mesma: todos os centros de
decisão econômica, política, cultural, religiosa situavam- se a longa distância das
costas
120
.
Por isso é ainda mais interessante ver um mansa preocupar- se com o Atlân-
tico. Deve- se notar, em primeiro lugar, que a aculturação muçulmana provavel-
mente ainda não afetara as classes dominantes do Mali. O legado ptolomaico
com as inibições que entranhava provavelmente não influenciaria as ideias do
mansa: o oceano era uma área por explorar, como o deserto ou a floresta
121
.
Depois, tendo em conta o papel desempenhado pelas províncias marítimas do
Mali, os esforços desse reino para diversificar as relações econômicas do Sahel
com seus parceiros e, finalmente, o número de tentativas muçulmanas ou euro-
peias efetuadas no século XIII e em princípios do XIV, não parece nada sur-
preendente que um mansa tentasse explorar e dominar esse oceano, que outros
estavam começando a descobrir. O próprio tom da narrativa mostra que o mansa
Mūsā, por sua vez, considerava irrealista essa operação, talvez apenas porque
tivesse falhado. As consequências econômicas de sua peregrinação, com a maciça
exportação de ouro que efetuou, não foram menos desastrosas que a tentativa
de seu predecessor. Reposta em tal contexto, essa tentativa merece ser levada
a sério, com um estudo de suas causas e das possíveis consequências humanas
por exemplo, um pequeno desembarque na América do Sul
122
. Consequências
econômicas, segundo todas as evidências, não existiram
123
.
120 Devemos salientar, porém, o forte interesse do Mali por suas “províncias marítimas” da Casamance, da
Gâmbia e, mais provavelmente ainda, da atual República de Serra Leoa. Tal interesse tem se evidenciado
cada vez mais, especialmente pelos trabalhos recentes de jovens historiadores africanos.
121 Para aprofundar a discussão desse tema, conviria empreender uma coleta sistemática das tradições man-
den (mandingo) relativas ao oceano, o que jamais foi feito, pelo menos que seja do nosso conhecimento.
Valerá a pena citarmos aqui a resposta atribuída por Zurara àqueles que foram encarregados pelo infante
D. Henrique de explorar as regiões ao sul do cabo Bojador: “Como passaremos – diziam eles – os termos
que poseram nossos padres, ou que proveito pode trazer ao infante a perdição de nossas almas juntamente
com os corpos, que conhecidamente seremos homicidas de nós mesmos? [...] Isto é claro diziam os
mareantes que depois deste cabo não há gente nem povoação alguma [...] As correnteso tamanhas,
que navio que lá passe, jamais nunca poderá tornar”. ZURARA, 1896, 1899.
122 Sobre algumas tentativas infundadas e infelizes nesse campo, ver JEFFREYS, 1953.
123 O volume 5 desta História geral da África traz um estudo da controvertida questão da existência de
um milho africano pré-colombiano, e da possível introdução de um milho americano por navegadores
muçulmanos ou negros, que teriam descoberto a América antes de Colombo.
756
África do século  ao século 
Expansão, decepção, exploração
Logo que conseguiram o firme controle das feitorias das costas do Marro-
cos, de onde importavam tecidos, cavalos e ouro, os portugueses contornaram o
cabo Bojador, em 1434. Levaram nove anos até dominar as técnicas de retorno
pelos Açores; em 1443, a expansão ao longo das costas africanas tornou- se
possível (ver fig. 26.6); 54 anos mais tarde atingiram o sul do continente, e ao
se completarem 60 anos navegavam regularmente o oceano Índico. Durante
a segunda metade do século XV, três posturas se superpõem, relativamente à
África: expansão, decepção e exploração.
A brutalidade e a pilhagem marcaram os primeiros estágios da expansão,
que se tornou mais organizada depois de 1450; o comércio então substituiu as
incursões. Com uma importância variável, Arguin e Mina (São Jorge da Mina,
atual Elmina) constituíram os portos de escala do comércio português na costa
africana. De partiam pequenas quantidades de produtos bem vendidos na
Europa, como o couro, o âmbar e a goma. Mas os artigos mais procurados pouco a
pouco o se revelar decepcionantes quanto ao volume, em relação às experiências
iniciais. A expansão começou sob o controle da coroa e parcialmente em seu
proveito. Quando se tornou por demais onerosa, atribuíram- se concessões indi-
viduais
124
. Mas a coroa portuguesa jamais abandonou por completo sua política
de controle direto, embora não tivesse meios para exercê- la e, menos ainda, para
defender seu teórico monopólio contra os demais países europeus
125
.
Deceões de toda espécie logo se acumularam. A primeira ligava- se à própria
natureza do comércio: expedões anuais feitas com reduzido número de pequenos
navios dificilmente trariam elevados lucros. As tentativas de penetrar no interior do
continente fracassaram todas. Em 1481, Jo II de Portugal, querendo encontrar
uma via fluvial que levasse ao ouro, ordenou, sem sucesso, que fizessem explodir os
pidos de Felu, no rio Senegal. Em 1483, outra deceão: o curso do Zaire (Congo),
cuja largura parecia oferecer fácil acesso ao interior, é barrado pelas intranspoveis
corredeiras de Yelada. Em 1487, os portugueses tentaram instalar uma feitoria em
Wadane, para obter parte do ouro que se sabia passar por ali, na rota de Tombuctu
para o Marrocos, e depararam com uma hostilidade geral. O corcio de Kantor,
124 Arguin haveria de permanecer sob constante e rme controle régio. Ao sul do Gâmbia, em várias ocasiões
assinaram-se contratos com armadores privados de navios. Em troca do pagamento de uma taxa e da
exploração anual de certa extensão da costa, era-lhes permitido car com os lucros obtidos no local.
125 O exemplo mais famoso, no século XV, foi a viagem de Eustache de la Fosse e de seus companheiros à
Costa do Ouro (1479-1480), que terminou em tragédia: foram capturados e ameaçados de enforcamento,
por se haverem aventurado a ir até Elmina sem autorização real. Ver DE LA FOSSE, 1897.
757
A África nas relações intercontinentais
no mbia, era tão rigidamente controlado pelo Mali que o podia ser muito
lucrativo. Mais ao sul, pelo menos até a costa dos Grãos, os estrangeiros o eram
muito bem acolhidos nem os ancoradouros eram favoráveis a seus navios.
A atenção dos europeus esteve monopolizada, durante muito tempo, pela
procura do ouro africano
126
. Hoje sabemos que os portugueses fracassaram em
sua pretensão de canalizar para as costas o grosso da produção aurífera
127
. Consi-
derando toda a costa atlântica, o montante que os portugueses obtiveram nunca
excedeu e talvez sequer tenha atingido 1 t por ano
128
. Relativamente às necessi-
dades da economia europeia, em rápido crescimento, passados os primeiros anos,
a decepção foi grande. Os portos do Mediterrâneo, como pouco a pouco vamos
descobrindo, continuaram a receber ouro africano, transportado em caravanas.
A malagueta e a pimenta- do- reino
129
do Benin substituíram o ouro por algum
tempo; mas, no que diz respeito ao comércio internacional dos fins do século
XV, embora a malagueta ainda vendesse bem, a pimenta africana perdeu sua
competitividade assim que apareceu no mercado sua similar asiática.
Em suma, do ponto de vista econômico, o comércio era muito modesto,
embora os relatos dos séculos anteriores levassem a esperar maravilhas da África.
Quantidades bastante pequenas de prata, escassa ao sul do Saara
130
, de tecidos
131
manufaturados nas feitorias do Marrocos, de cavalos e de cobre conseguiam
manter equilibrada a balança comercial.
Não foram menores os desapontamentos fora da esfera econômica. O reino
do célebre Preste João, a quem portugueses e espanhóis tanto sonhavam, desde
o século XIV, em ter como aliado contra os muçulmanos, não foi localizado,
nem no norte nem no oeste da África. Em meados do século XV, um francis-
cano anônimo declarava fervorosamente situar- se na África o reino da salvação.
Diogo Cão pensou ter encontrado o seu caminho quando, em 1483, descobriu
a embocadura do rio Zaire (Congo). Mas nenhuma parte da África negra se
revelou cristã ou sequer disposta a lutar contra o Islã.
126 Em 1447, a expedição de Antonio Malfante a Tuat teria sido nanciada pelo banco genovês dos Centurioni,
que àquele tempo estava interessado em abrir uma rota terrestre até as especiarias asiáticas, passando pela
Rússia e pela Ásia.
127 Ver GODINHO, 1969; DEVISSE, 1972.
128 Cabe aqui recordar que R. Mauny (1960) avaliou o comércio de ouro entre a África ocidental e o norte
do continente em menos de 4 t anuais.
129 Ver MAUNY, 1961, p. 249-50.
130 Na África, a prata valia mais que o ouro e era importada dos países cristãos. O próprio Magreb, por razões
econômicas internacionais, então constituía excelente mercado para a prata. FERNANDES, 1938, p. 97.
131 Fabricavam-se tecidos, embora os primeiros viajantes notassem, com compreensível interesse, que os
habitantes da África andavam nus ou com muito pouca roupa.
758
África do século  ao século 
O desapontamento inicial causado por um clima insólito daria resultados
positivos no futuro, na medida em que iria aguçar o senso de observação tanto
dos navegadores quanto dos comerciantes
132
. As contínuas chuvas de verão da
zona do Benin, assinaladas em primeiro lugar por Ca da Mosto, contrastavam
com as condições áridas das regiões mais ao norte
133
, determinando a completa
interrupção de toda a atividade agrícola numa estação que, na Europa, era a
da colheita. E, no entanto, como observou Ca da Mosto, eles semeavam antes
das chuvas e colhiam depois que elas passavam estranho tipo de agricultura,
aos olhos de um mediterrâneo. A observação do regime dos ventos, necessária
para a navegação, revelou um mecanismo desconcertante: o surgimento e o
desaparecimento dos ventos alísios do nordeste e do sudeste
134
. O fato de que
as temperaturas variassem bem pouco não era menos espantoso.
Os costumes dos habitantes, a constrangida e às vezes irônica observação de suas
cerimônias religiosas tradicionais, deram origem aos primeiros comentários etno-
gicos, como, por exemplo, os de Valentim Fernandes
135
. A palavra feitiço, que mais
tarde viria a ter injustificada popularidade, ainda não havia aparecido
136
.
Tais observações poderiam levar a descobertas úteis, como aconteceu na
navegação, mas a esse respeito o mar trouxe melhores resultados que a terra
137
. A
princípio os portugueses haviam pensado em aclimatar plantas europeias, como
a uva e o trigo, e homens ao solo africano; mas o meio ambiente geográfico
repeliu os transplantes agrícolas, e o clima desanimou os homens
138
.começara
132 Ver DAVEAU, 1969.
133 Em Arguin chove apenas três meses por ano, em agosto, setembro e outubro”. CA DA MOSTO, 1895.
134 Logo se teria que calcular os tempos de zarpar em função desses ventos. No começo do século XVI, Duarte
Pacheco Pereira notou que havia apenas “três meses por ano nos quais os navios que devem ir às Índias
têm que estar prontos para partir, ou seja, em janeiro, fevereiro e março; e, dos três, o melhor é fevereiro”.
Talvez devêssemos observar que, nos meses de inverno, navegava-se pouco no Mediterrâneo.
135 FERNANDES, 1951, v. 2, p. 71, 73, 77, 83, 101. O autor descreve, entre outras coisas de interesse, os
“ídolos” adorados pelos africanos.
136 Sobre “feitiço”, ver ARVEILLER, 1963, p. 229-30. O adjetivo português feitiço, que originalmente
signica “articial”, não era usado no sentido do francês factice (factício), atestado no século XIII. Feitiço
originou uma série inteira de palavras em outras línguas. Fetichista vem, em francês, da tradução (1605)
de um livro holandês de viagens, de 1602, de P. de Marees; na mesma língua, “fetiche” somente aparece
em 1669. A palavra teria que ser estudada em português e castelhano.
137 Foi antes de mais nada por razões utilitárias que o Ocidente saiu de seu etnocentrismo a constatação
das diferenças geográcas levou à busca das causas a que elas se deviam; mas a abordagem cientíca
demorou muito tempo para completar a rica, e rápida, coleta de observações.
138 Duarte Pacheco Pereira observou que o clima na costa do Benin era pouquíssimo saudável durante todo
o ano, sendo particularmente insuportável nos meses de agosto e setembro, quando chovia sem parar.
Todos estes rios – dizia abundam de febres, que são muito nocivas a nós, brancos.”
759
A África nas relações intercontinentais
a revolução contra o legado cultural ptolomaico
139
, mas os africanos não viram
esvair- se os preconceitos inerentes a ele.
A transposão da agricultura europeia para a África logo se comprovou invvel,
mas restava a possibilidade de novos cultivos de cana- de- úcar em terras virgens,
como as da ilha de São Tomé, ocupada em 1470, que o mercado açucareiro con-
tinuava a crescer. Desse projeto surgiu, como algo mais ou menos natural, a ideia
de deslocar ao de obra necessária”; assim os negros capturados foram levados
para outras ilhas produtoras de açúcar no “Mediterrâneo atlântico
140
.
O comércio de escravos, com efeito, estabelecera seu ritmo anual nas
costas africanas uns 30 anos antes de começar essa deportação para as ilhas
141
.
A partir de 1440, escravos capturados em vários pontos da costa onde hoje se
situa a Mauritânia estavam sendo objeto de um escambo, justificado por Gomes
Eanes de Zurara em termos que bem nos poderiam parecer cínicos, não tivesse
ele revelado, primeiramente, as profundas contradições dos europeus:
E aqui haveis de notar que estes negros, posto que sejam mouros como os outros,
são porém servos daqueles por antigo costume, o qual creio que seja por causa da
maldição que depois do dilúvio lançou Noé sobre seu filho Caim [Cam] [ ... ] pero
negros fossem, assim tinham almas como os outros, quanto mais que estes negros
não vinham da linhagem de mouros, mas de gentios, pelo qual seriam melhores de
trazer ao caminho da salvação
142
.
Como a motivação do lucro ressarcia- lhes a consciência
143
, muito poucos pare-
cem ter tido escrúpulos quer na troca de um mouro branco por vários negros, quer
na escravização direta dos negros
144
. Em 1444, organizou- se uma companhia em
Lagos, Portugal, para explorar o tráfico de escravos. No mesmo ano, nessa cidade,
240 escravos foram divididos entre o infante D. Henrique, o Navegador, a Igreja
de Lagos, os franciscanos do cabo São Vicente e comerciantes.
139 Duarte Pacheco Pereira: “Toda a costa africana, do Benin ao Congo, tem muitas árvores e gentes; tal região
está perto do círculo equatorial, que os antigos diziam inabitável; nós, graças à experiência, descobrimos o
contrário ...”
140 VERLINDEN, 1955a, p. 630-1.
141 Ibid., p. 617; e 1967, p. 365-77.
142 ZURARA, 1896, 1899, p. 90.
143 Uma bula de 8 de janeiro de 1454, dirigida pelo papa Nicolau V ao rei Afonso V de Portugal, autorizava-o
a privar da liberdade “todos os mouros e outros inimigos de Cristo”, sem excetuar os “guineenses”. Ver
VERLINDEN, 1955a, p. 618,
144 Uma vantagem adicional era que os negros convertidos retomariam a seus países e difundiriam o cristianismo.
Antes disso, teriam dado toda a informão de que dispusessem sobre essa África tão pouco conhecida, onde
haveria ouro em abundância ...
760
África do século  ao século 
Em 1448, estabeleceu- se em Arguin um “comércio regular” que consistia na
troca de bens contra seres humanos. Arguin provavelmente garantiu o forneci-
mento de várias centenas de escravos por ano até o final do século XV. Mais ao
sul, a organização não foi menos “lucrativa”: após 1460, cerca de 1 mil escravos
foram levados do território entre o cabo Verde e Sine- Salum. Para as regiões
ainda mais ao sul, é difícil fazerem- se estimativas relativas ao século XV
145
.
O número de cativos chegados de Lagos, em Portugal, à Casa dos Escravos
régia de Lisboa, é avaliado por C. Verlinden em cerca de 880 por ano
146
. Castela,
que reconhecera já em 1474 o monopólio portugs sobre esse tráfico, comprava
escravos em Lisboa. No final do culo é certo que havia um fluxo regular de
cativos para Portugal, embora não possamos fornecer dados seguros quanto ao seu
mero
147
. A organização do sistema do escambo estabilizou- se por volta do final
do culo XV. O valor pelo qual se trocava um escravo, muito oscilante nos pri-
meiros anos desse corcio, fixou- se eno num nível uniforme praticamente por
toda parte: mais ou menos 6 escravos por 1 cavalo
148
. Na costa, como no interior
do continente, o cavalo era objeto muito valorizado nas trocas; mas, em algumas
reges, especialmente nas equatoriais, o cobre gradualmente substituiu o cavalo
149
.
Durante séculos, desgraçadamente, o tráfico negreiro constituiria de longe a mais
lucrativa de todas as transações comerciais efetuadas por europeus nas costas da
África.
Em resumo, no século XV, os europeus causaram grande impacto nos vários
arquipélagos da costa atlântica da África, porém penetraram muito pouco no
interior do continente. Não afetaram de forma duradoura os antigos sistemas
comerciais nem o equilíbrio básico de poderes. Sua tentativa de entrar em con-
tato com o mansa do Mali enviando- lhe uma embaixada entre 1481 e 1495
não parece ter tido maiores resultados. É difícil atribuir a essa medida qualquer
145 O orentino Bartolomeo Marchionni, que recebera a concessão para o tráco de cativos na Costa dos
Escravos de 1486 a 1488, pagava por esse contrato 45 mil ducados anuais.
146 VERLINDEN, 1955a, p. 617 et seq.; ver também p. 358-62.
147 Na obra mais bem informada a esse respeito (CURTIN, 1969, p. 17-21) supõe-se que 175 mil escravos
tenham sido levados da África no século XV. Acrescente-se a estes o número dado por C. Verlinden (1977).
Numerosos estudos publicados por autores portugueses e espanhóis também devem ser consultados, entre
eles, CORTÉS-ALONSO, 1963, 1964 e 1972; SILVA, 1979. Ver também MOTA, 1981.
148 Ca da Mosto mostra que, de início, 15 escravos eram trocados por 1 cavalo, no norte. Esse número variava
de 10 a 12 na Senegâmbia. No nal do século XV, em Sine-Salum, a proporção ainda utuava de 6 a
15 por cavalo.
149 A importância deste problema, que excede as costas africanas, é tratada pelo professor D. McCall em
uma monograa em fase de preparação.
761
A África nas relações intercontinentais
influência sobre a migração dos Fulfulde (Fulbe) rumo ao sul, que começou por
volta de 1480- 1490.
As relações dos europeus com o rei Nkuwu do Kongo, embora mais próximas,
conservaram- se ambíguas e não tiveram consequências decisivas nessa época.
Em 1483, após uma embaixada portuguesa, o monarca pediu que lhe enviassem
uma missão. Recebeu- a em 1491; ela incluía alguns franciscanos, que o batiza-
ram no dia 3 de maio daquele ano, carpinteiros, criadores de gado e pedreiros
para ensinar seus ofícios e supervisioná- los. Sérias dificuldades surgiram, porém,
em 1493 ou 1494, quando o rei, tendo que escolher entre a poligamia e a nova
fé, preferiu a apostasia. A introdução do cristianismo não teve melhor sucesso,
por essa época, na costa do golfo do Benin ou na Senegâmbia
150
. Com exceção
do Marrocos, que constitui um caso muito particular
151
, estabeleceu- se uma
estrutura institucional cris somente nas ilhas as Canárias, por exemplo,
tiveram um bispo nessa época.
Em contrapartida, não tardou a fazer- se sentir a influência indireta da pre-
sença dos europeus nas costas africanas, ainda que num espaço geográfico rela-
tivamente restrito. Na Senegâmbia, os portugueses encontraram um equilíbrio
dual estabelecido aparentemente desde muitos anos. Por um lado, realizando
uma espécie de bloqueio do ferro, conforme observaram os viajantes portugueses,
os mansa do Mali impuseram por certo tempo sua hegemonia à região de Casa-
mance, até o norte do Gâmbia; e, por outro, abandonaram a região situada entre
o Senegal e o Gâmbia ao poderoso Estado diolof (jolof). A introdução do ferro
europeu, embora em pequenas quantidades, alterou esse equilíbrio. O comércio
português foi ainda mais eficaz no dissolver as relações políticas e sociais então
existentes, o que primeiro aconteceu na Senegâmbia, repetindo- se depois o feito,
após 1500, na costa do Benin e, especialmente, no Kongo. O buurba do Diolof
(Jolof) conseguira, provavelmente desde alguns séculos, o reconhecimento de
seu poder pelo Cayor e pelo Bawol. A partir de 1455, o buurba pediu cavalos
aos recém- chegados, e por volta de 1484 essa prática tornou- se regular
152
. Mas
por essa ocasião o governante do Diolof (Jolof), que até então tinha seu inte-
150 Houve missões franciscanas na Guiné-Bissau a partir de 1469. Em 1489, tentou-se converter um chefe
seereer, que foi assassinado pela própria escolta de portugueses quando regressava da Europa. Em 1484,
os dominicanos estabeleceram-se no Benin.
151 De acordo com um tratado rmado pelo Marrocos e seus vários parceiros europeus, em 1225, os cristãos
tinham sido autorizados a se instalar numa série de lugares desse país. As ordens mendicantes tentaram,
sem sucesso, converter os habitantes; bispos tiveram suas sés em Marrakech e Fés; e abriram-se igrejas,
nas feitorias da costa, para atender aos grupos de mercenários cristãos. Sobre esses pontos, ver JADIN,
1965, p. 36-68.
152 Ver BOULÈGUE, 1968.
762
África do século  ao século 
resse voltado para o comércio doméstico, passava a ocupar- se do comércio que
se desenvolvia nas costas. Porém, como os tempos futuros haveriam de mostrar,
no novo comércio a vantagem geográfica seria do Cayor e do Bawol.
As consequências sociais dessa nova situação, contudo, logo se revelaram no
mínimo tão importantes quanto as políticas. A sociedade da Senegâmbia des-
crita pelos escritores ao tempo da descoberta incluía um número de ocupações
das mais típicas como a dos griots, tecelões, ferreiros e sapateiros mas não
comerciantes. Na falta destes últimos, foi o rei quem organizou o comércio com
os recém- chegados, e tal atividade lhe proporcionou meios para reforçar seu
poder, que à época, por muitas razões, começava a ser contestado. E, do lado dos
portugueses, cavalos e ferro muito embora se reiterasse, de público, a hipócrita
proibição de exportar este metal para terras não cristãs como que exigiam uma
moeda de troca”: o escravo.
As fontes disponíveis mostram, sem sombra de dúvida, que existia “escravi-
dão nas sociedades da segunda metade do século XV, provavelmente devido a
uma série de razões que os historiadores vão gradualmente descobrindo – guer-
ras, dívidas, fome , mas a estrutura desse tipo de sociedade não se baseava na
escravidão, e a condição desses subalternos, na Senegâmbia, era provavelmente
de natureza essencialmente privada. É óbvio, porém, que as coisas mudaram bem
depressa, desde que se tornou necessário “negociar com escravos” para pagar as
importações. O poder real e aristocrático obteve lucros pessoais com essa prá-
tica, mas também desonra social e moral. Com toda a probabilidade, num curto
espaço de tempo as relações sociais e as relações com os povos vizinhos viram- se
profundamente alteradas.
Na Senegâmbia ainda existem centros de resistência ao Islã; fora do antigo
Takrūr, poucas chefarias foram convertidas. Entre os Diolof (Jolof ), o Is
começa a difundir- se nas camadas populares como um elemento possível de
contestação do poder tradicional, enquanto os reis, da mesma forma que os
dirigentes da dinastia marroquina dos Watássidas, começavam a permitir que os
europeus se envolvessem em problemas internos, entre reinos bem como entre
diferentes estratos sociais.
C A P Í T U L O 2 7
763
Conclusão
Conclusão
Djibril Tamsir Niane
Este volume da História geral da África se encerra com o início da pre-
ponderância e expansão dos europeus. Os séculos XV e XVI constituem um
período de mudança total, não somente na história do continente negro, mas
também na história geral de nosso planeta. Na verdade, iniciava- se nova era para
a humanidade: a caravela leve com suas velas manejáveis, a pólvora de canhão
e a bússola proporcionaram à Europa o controle do mar e de todo o sistema
comercial do mundo.
Os portos do Mediterrâneo esse lado do Velho Mundo caíram em
letargia, apesar do imenso esforço dos comerciantes italianos, principalmente
genoveses, que, durante todo o século XV, tentaram chegar ao ouro do Sudão
por intermédio dos comerciantes do Magreb. Em 1447, o célebre comerciante
Antonio Malfante conseguiu alcançar Tuat; após sua estadia na região, levou a
Gênova informações preciosas sobre o distante Sudão e sobre o tráfico de ouro.
Mas, como se sabe, foram os espanhóis e os portugueses que encontraram as
rotas marítimas para as Américas, o Sudão e as Índias; é notável que os reis
portugueses e espanhóis tenham podido realizar seus sonhos por meio dos
serviços prestados pelos navegadores italianos. Com a circunavegação, os muçul-
manos, que até então haviam desempenhado papel preponderante, cederam
lugar aos cristãos da Espanha e de Portugal. Não foi por acaso que as descobertas
marítimas foram feitas pelos portugueses e espanhóis, herdeiros da ciência árabe
764
África do século  ao século 
após um longo contato, ao mesmo tempo belicoso e pacífico, como nos mostrou
o professor Mohamed Talbi
1
.
Durante o período que vai do século XII ao XVI, a África teve papel prepon-
derante na economia mundial; a descoberta da América por Cristóvão Colombo,
em 1492, revelou novas fontes de ouro e prata aos europeus; as minas do Peru e
do México logo superaram as do Burem, no Bambuku, do Ngalam e de Mwene
Mutapa no fornecimento de metais preciosos.
Três características principais marcaram a história da África no período que
acabamos de estudar: primeiro, nos planos político e religioso; segundo, nos
planos econômico e cultural; e, terceiro, um dinamismo histórico.
Nos planos político e religioso
Em primeiro lugar, houve o desenvolvimento de reinos, impérios e cidades.
O Islã impusera- se, através da arabização progressiva de toda a África seten-
trional; ao sul do Saara, tornou- se a religião oficial em muitos reinos e impérios,
mas a África negra não foi arabizada: nessa área, o Islã foi muito mais um acon-
tecimento político do que religioso. No entanto, por toda parte favoreceu as rela-
ções comerciais. No Sudão, o volume das atividades comerciais provocou rápido
desenvolvimento social, fazendo surgir uma nova camada, a dos comerciantes e
eruditos negros. Ao sul do Saara, o Islã adaptou- se, ou, mais exatamente, foi um
verniz superficial que cobriu apenas a corte e os comerciantes que mantinham
contato com os árabo- berberes.
A religião tradicional, baseada no culto dos ancestrais, continuou a mesma,
tanto entre os povos governados por soberanos islamizados quanto entre os
não muçulmanos. A analogia do cerimonial de corte em Kumbi- Sāleh, Niani e
no Yatenga é significativa. Os súditos cobriam- se de e prostravam- se, antes
de se dirigir ao soberano. Também, por toda parte, o soberano era tido como
responsável pela felicidade e prosperidade do império, sendo este o fundamento
do respeito que os súditos lhe manifestavam. Daí alguns especialistas logo pas-
sarem a falar em “realeza sagrada” ou em “realeza divina”. Finalmente, é preciso
sublinhar o espírito de tolerância dos reis negros que favoreceram a instalação
dos árabo- berberes nas cidades, ainda antes de se converterem ao Islã. Mas sua
conversão não acarretou o abandono das práticas religiosas ancestrais. Em cer-
tas regiões, houve uma simbiose original; assim, no fundo tradicional sudanês
1 Ver o capítulo 3 deste volume.
765
Conclusão
encontraremos muitas influências islâmicas, cujos mitos e heróis foram apresen-
tados de forma bem diferente dos modelos antigos. O mesmo pode ser dito do
cristianismo e do fundo tradicional africano na Etiópia. Mas as duas religiões
reveladas, o Islã e o cristianismo, ficaram em de guerra durante séculos. No
entanto, apesar da tensão entre muçulmanos e cristãos no Chifre da África, o
comércio nunca perdeu seus direitos
2
.
O desenvolvimento de vias comerciais que saíam do golfo de Aderi em direção ao
interior do Chifre da África foi, desde o século X da era cristã, um dos elementos
essenciais da história de todos os povos da região. Mesmo quando foram objeto de
discórdia entre as principais potências da região, que disputavam seu controle, as
vias contribuíram para todo tipo de interação entre as populações locais, de cultura,
religião e língua diferentes. [...] A partir de meados do século XIII, até mesmo o
reino cristão do Zagwe, no norte da Etiópia, havia deixado de considerar o sultanato
de Dahlak como sua única saída para o mar Vermelho e começou a utilizar a rota
de Zayla, que passava por suas províncias meridionais
3
.
Desse modo, as oposições religiosas e as guerras episódicas provocadas por elas
o impediram a mistura de populações, assim como os intercâmbios culturais e
econômicos não foram interrompidos.
No plano político, os grupos étnicos eram em sua maioria suficientemente
estruturados para resistir às tentativas de assimilação: mesmo quando um dos
grupos sobressaía e impunha sua lei, daí resultava não a fusão em torno do clã
vencedor, mas a criação de uma federação de clãs, na qual cada um mantinha
mais ou menos sua personalidade de acordo com o grau de estruturação. O fato
é marcante; no Magreb, por exemplo, os reinos marínida, haféssida e sádida eram
formados por grupos de cabilas (clãs) em torno da cabila do soberano. O mesmo
aconteceu no Mali, onde os clãs manden (mandingo) se agregaram a outros clãs,
e também no Mossi, Rwanda e entre os Mwene Mutapa.
No norte e nordeste do continente, o Magreb e o Egito tomaram- se partes
distintas no mundo muçulmano. Após o breve período de unidade do Magreb
sob os Almóadas, três Estados começaram a definir seus contornos: o Marrocos,
no extremo ocidente, a Tunísia e a Argélia. A personalidade de cada uma dessas
entidades se estruturou após a quebra de unidade política efêmera. Nessa área,
é notável que a arabização tenha se generalizado muito lentamente. As cabilas
eram uma realidade política e social, e os soberanos tinham de contar com os
2 Ver, a esse respeito, o capítulo 17 deste volume.
3 Capítulo 17 deste volume.
766
África do século  ao século 
xeques, chefes de clãs ou cabilas. Entre o golfo de Gabes, limite da Ifrkiya ou
Tunísia com o vale do Nilo, o espaço líbio era uma zona fiel, ora aos soberanos
da Tunísia, ora aos do Cairo. Os últimos, principalmente os da Dinastia dos
Mamelucos, deram ao Egito a supremacia no mundo muçulmano. O Cairo foi
uma capital política ouvida no Ocidente e no Oriente.
O Islã cimentou a ligação entre o Magreb, o Egito e o Oriente muçulmano;
nenhuma região, porém, teve a pretensão de se impor ou recriar a unidade
muçulmana da época anterior. No fim do período que estudamos, o Islã apre-
sentava claro recuo no plano político: os cristãos passaram à ofensiva na Itália
e na península Ibérica; caiu Granada, o último reino árabe da Espanha; os cris-
tãos atravessaram o Mediterrâneo e lançaram suas primeiras bases no Magreb;
a cruzada dita de São Luís é um exemplo. Na vanguarda da ofensiva cristã, os
portugueses estabeleceram- se em Ceuta, no fim do século XV, querendo nitida-
mente fazer do Marrocos a cabeça- de- ponte para sua penetração na África.
No final do século XV, os soberanos da península Ibérica tomaram a iniciativa
dos muçulmanos, por terra e por mar, e procuraram as rotas de acesso ao Sudão,
rico em ouro.
O caso da Núbia, onde o cristianismo foi desenraizado após longa luta,
merece ser sublinhado
4
. De acordo com o professor Kropáček,
segundo opinião corrente, [o cristianismo] era essencialmente uma religião de elite,
sem raízes profundas na massa popular. O culto estava associado, em ampla medida,
ao clero copta e a uma cultura estrangeira, excluindo os santos ou mártires núbios. [...]
Apesar disso tudo, os afrescos das igrejas nas quais houve escavações também revelam,
às vezes, rostos negros de bispos bios autóctones. [...] A persistência de crenças mais
antigas que as cristãs é atestada no relato de Ibn Sulaym (século X), assim como pela
sua continuação no islamismo popular sudanês de nossos dias
5
.
Mas a arabização o foi feita pacificamente. Os invasores tiveram de dominar
muitas revoltas; na realidade, os negros foram submersos por ondas de imigrantes
árabes.
Os historiadores contemporâneos do Sudão nilótico têm a convicção firme e jus-
tificada, de que no passado se atribuiu importância excessiva ao fator setentrional
(isto é, ao árabe), em detrimento tanto dos desenvolvimentos internos autônomos
quanto dos contatos com as culturas negras da África. Este exemplo particular de
4 A esse respeito, ver o capítulo 16 deste volume, que também mostra uma nova abordagem sobre as
transformações culturais e sociais ocorridas no mesmo período, na Núbia.
5 Capítulo 16 deste volume.
767
Conclusão
influências recebidas e exercidas pela zona sudanesa suscitou, desde algum tempo,
abundantes especulações
6
.
Pesquisas mais recentes mostraram que o Sudão nilótico sempre foi zona de passa-
gem, área de contato entre numerosos clãs ou grupos étnicos negros. Anualmente
a arqueologia revela novos elementos da cultura negra na civilização sudanesa.
Existiram clãs no deserto: no Saara, cada cpossuía um domínio de per-
curso; a extrema mobilidade imposta pela natureza não permitiu o estabeleci-
mento de Estados centralizados; o mesmo aconteceu nas florestas equatoriais,
onde os pigmeus sobreviveram em condições extremamente difíceis, acampando
aqui e ali, sempre à procura de caça. É o caso dos Khoi- Khoi, dos San e de todas
as populações afastadas para os desertos ou para as florestas pelas populações
sudanesas e bantu mais bem armadas, que conheciam o uso do ferro e sabiam
manejar lanças.
Para concluir estas observações gerais sobre a evolução política, podemos
dizer que antes de 1600, em toda a África, o estágio clânico havia sido alcançado
ou superado e que, onde quer que as condições o tenham permitido, criaram- se
cidades, reinos e impérios viáveis. Desse modo, fundaram- se formações políticas
originais, enriquecidas por contribuições externas, conhecendo- se muitos méto-
dos de governo. O passado africano conta com uma riqueza de experiências polí-
ticas cujo estudo foi apenas esboçado. As diferentes etapas do desenvolvimento
político mostram uma evolução que vai do cao agrupamento de clãs em reinos
e ao agrupamento de reinos em impérios. A partir de agora, é possível empreen-
der o estudo das instituições políticas em muitas regiões do continente.
É certo que, desde antes do século XII da era cristã, reinos e impérios haviam
se desenvolvido na extremidade meridional do continente, ao sul da linha que vai
da Namíbia à foz do Limpopo. Nessa região prosseguem as pesquisas arqueoló-
gicas. Mas a existência da República da África do Sul constitui um empecilho
para a pesquisa histórica. São poucas, de fato, as informações sobre as regiões
florestais da África central e sobre as savanas do sul, apesar das contribuições
da arqueologia para trazer à luz a cultura material da região. A análise do pro-
fessor Vansina, especialista em tradições bantu, permite afirmar que, no período
considerado, o Estado, ou seja, um corpo político estruturado, era realidade
bem antiga nas regiões em questão:
De qualquer modo, os Estados devem ser antigos. [Não é por acaso] que as gran-
des necrópoles de Sanga e Katoto se localizam às margens dos lagos do Lualaba,
6 Capítulo 16 deste volume.
768
África do século  ao século 
exatamente ao sul do próprio centro do império luba, que poderia ser sua manifes-
tação mais tardia. Mas as necrópoles datam de antes do ano 1000 da era cristã. É
indiscutível que aglomerações tão densamente povoadas como aquelas cujos traços
são conservados em Sanga não eram mais governadas por simples relações entre os
clãs. Além disso, a antiguidade dos Estados de tipo luba explicaria a vasta extensão
de línguas aparentadas que cobrem todo o Kasai oriental, a maior parte do Shaba e
o nordeste, o Cinturão de Cobre e parte do noroeste da Zâmbia.
É preciso mencionar também que, no começo de nosso século, súditos bri-
tânicos criaram a Rhodesian Ancient Ruins Ltd. ou Ancient Ruins Co. Em
algumas décadas essa famosa companhia pilhou os túmulos reais da civiliza-
ção do Zimbábue- Mapungubwe, arrebatando sistematicamente os tesouros de
vários deles. Essa civilização da África meridional parece ter muitas afinidades
com a do Zimbábue, pois trata- se de uma civilização mineira, com construções
em pedra, como as de Manykeni em Moçambique. No antigo Transvaal, os
Sotho e os Shona construíram grandes monumentos em pedra; de acordo com
as pesquisas mais recentes, a civilização de Mapungubwe realizou a simbiose
da cultura bantu com a de povos mais antigos, como os Khoi- Khoi. O uso
do ferro disseminara- se bem antes do século X; temos todos os motivos para
acreditar que os túmulos da colina de Mapungubwe e arredores pertenceram a
uma civilização que floresceu pelo menos entre os séculos XI e XV, senão mais
cedo ainda, antes de entrar numa agonia longa e lenta sob os efeitos da insta-
bilidade política e social causada pelo tráfico de negros. algo de viciado no
raciocínio de certos pesquisadores que tendem a situar a introdução do ferro na
África meridional somente por volta dos séculos IX e X, quando se sabe que,
em primeiro lugar, as relações entre o vale do Nilo (Méroe Napata) e a região
interlacustre e as savanas do Limpopo foram contínuas; em segundo lugar, não
havia nenhum obstáculo ao deslocamento dos homens e, consequentemente,
aos intercâmbios regionais, tanto no plano cultural quanto no comercial. Além
disso, as pesquisas mais recentes indicam que talvez já se trabalhasse o ferro na
África meridional antes da era cristã, o que veio abalar muitas teorias.
ainda muitos pontos obscuros sobre a gênese e o desenvolvimento dos rei-
nos dessas regiões no período que estudamos. Mas, se ainda levantamos questões
sobre o Zimbábue, não é mais para saber se os construtores dos monumentos
ciclópicos são brancos ou negros. Está demonstrado que essas construções em
pedra são obra dos Shona. Mas quais foram as instituições políticas desse reino?
Como era sua estrutura social? Como se operavam os intercâmbios comerciais
entre o Zimbábue e as cidades do litoral? São questões ainda sem resposta.
769
Conclusão
Nos planos econômico e cultural
A característica mais marcante é a intensidade das relações inter- regionais e
intercontinentais estimuladas por mercadores árabes, persas, berberes, chineses,
manden (mandingo) e haussa. Ao sul, os Shona e outras populações das savanas
subequatoriais desenvolveram um comércio florescente em direção ao oceano
Atlântico e ao oceano Índico através do Congo, da região interlacustre e do
Mwene Mutapa.
Os soberanos negros estavam perfeitamente conscientes do papel econô-
mico e político de metais como o ouro, o cobre, o ferro, cuja exploração era
controlada. Esse aspecto é essencial, pois em muitos estudos e artigos sobre a
África tem- se a impressão de que este continente era um reservatório de ouro
para árabes, berberes e persas, como se os soberanos existissem para servir
aos estrangeiros; nesses estudos transparece a negação implícita da existência
de Estados organizados. Não é por acaso que os soberanos africanos proibiram,
nessa época, o acesso de viajantes árabes às regiões auríferas!
Cada parceiro lucrava com o comércio, baseado no princípio da igualdade.
Certamente também não se devia ao acaso que, no Sudão, o maior soberano
portasse o título de kaya maghan, rei do ouro, e, ao sul, seu homólogo de paí-
ses ricos em ouro, cobre e ferro, de mwene mutapa, senhor dos metais. Esses
soberanos e seus povos sabiam perfeitamente que a prosperidade e a fama dos
reinos fundamentavam- se nos metais preciosos. Os soberanos conheciam a
importância dos metais em suas relações com o exterior. O kaya maghan tinha
direito exclusivo sobre as pepitas de ouro e fiscalizava rigorosamente a saída do
metal precioso. O mesmo devia acontecer no Zimbábue e no Mwene Mutapa.
Isto deve ser enfatizado, pois alguns africanistas nos fazem supor que os africa-
nos e seus soberanos entregavam seus tesouros aos primeiros comerciantes que
aparecessem e não tinham consciência do bem público!
Esses dirigentes souberam jogar com a atração do ouro para garantir os
serviços dos estrangeiros; assim, o mansa Mūsā I atraiu à sua capital arquitetos,
eruditos e religiosos, a quem pagou pensões em ouro. Os soberanos do Zimbá-
bue também pagaram com ouro a porcelana chinesa e outros produtos de luxo,
muito usados na corte. Graças ao ouro, ao cobre e ao marfim, os soberanos afri-
canos obtiveram produtos e gêneros de primeira necessidade, como o sal (pago,
se fosse necessário, por seu peso em ouro), porcelanas chinesas, brocados, sedas
e excelentes armas, todas coisas que realçavam o brilho da corte.
770
África do século  ao século 
A África setentrional e as costas orientais tiveram importância particular
como intermediários: pela África setentrional transitavam produtos e merca-
dorias da Europa e os metais preciosos que davam vida às relações comerciais
no mundo mediterrâneo. Os privilégios de tal posição não explicariam a luta
acirrada entre as cidades comerciantes do Magreb pelo controle das vias por
onde fluíam as riquezas do Sudão? Ibn Khaldūn compreendeu perfeitamente
esse fenômeno na parte de sua História universal em que trata dos berberes.
Foi por isso provavelmente que empreendeu a longa e minuciosa pesquisa para
conhecer a história dos territórios negros, dos quais dependiam, em grande
escala, o comércio e a atividade das cidades magrebinas e egípcias.
A costa oriental, desde o Chifre da África até Sofala, se abre amplamente
para o oceano Índico, o que põe a África em contato direto com o mundo
oriental e extremo- oriental. Se o tráfego marítimo permitiu a edificação de
cidades comerciantes na costa, os reis do interior, principalmente “os senhores
dos metais”, não deixaram de construir cidades e monumentos qualificados de
ciclópicos pela imponência das dimensões e da arquitetura, que não deixam
transparecer nenhuma influência exterior.
No período que estudamos, o comércio baseava- se no intercâmbio de tecidos,
armas e vários produtos provenientes das profundezas da savana e da floresta,
vendidos até nas longínquas China e Indonésia. Esta era a importância do
oceano que banha Madagáscar. A grande ilha realizou, como todas as cidades
da costa, uma simbiose das culturas oriental e africana em todos os planos:
linguístico, econômico etc. Com o comércio, novas plantas originárias da Ásia
foram introduzidas na África, como o algodão, importado pelos árabes para o
Sudão desde antes do século X.
As atividades culturais e os intercâmbios inter- regionais jamais haviam atin-
gido tal importância anteriormente: o comércio do livro florescia em Gao e Tom-
buctu. Em todo o Sudão, do Atlântico ao mar Vermelho, nasceu uma literatura
negro- muçulmana. Os reinos da Abissínia, do Bornu e do Songhai, do Takrūr e do
Mali desenvolveram uma literatura original, onde a teologia e a história ocupavam
lugar de destaque; as cidades ao sul do Saara mantiveram relações culturais com
as do norte por intermédio das peregrinações ou do comércio.
Entre os séculos XII e XVI ocorreu a dispersão dos povos de língua bantu
por toda a África central. Possuidores de técnica agrícola mais eficiente, graças
aos instrumentos de ferro, a influência cultural bantu não cessou de se afirmar
em direção ao sul. Em 1497, quando Vasco da Gama dobrou o cabo da Boa
Esperança, a parte meridional do continente muito já era sede de civilizações
brilhantes: a agricultura e a criação de gado prosperavam. Mas, para justificar a
771
Conclusão
instalação precoce de europeus na extremidade sul do continente, os estudiosos
não hesitaram em afirmar que essa parte da África estava quase vazia! Era uma
justificativa pro domo bem cômoda, mas não resistiu às pesquisas históricas. A
verdade é que, a partir do século XVII, os holandeses e, a seguir, os ingleses
começaram a empurrar os africanos para as regiões inférteis. No século XIX,
aconteceu a invasão das regiões mineiras do Zimbábue e do Transvaal, explo-
radas cinco culos antes pelos poderosos soberanos de Mwene Mutapa, de
Mapungubwe e Manykeni, em Moçambique.
Apesar da grande importância dos metais nesse período, a agricultura era a
base principal da economia dos reinos ao sul do Saara; a produção apoiava- se
na exploração familiar das terras. No entanto, aqui e ali, existiam grupos de
populações escravizadas que trabalhavam para os soberanos. Na África negra era
mais comum o sistema de servidão, com tributos e prazos fixados pela tradição;
nos oásis ao sul do Magreb, escravos e camponeses exploravam a terra para os
grandes senhores e soberanos. Foram desenvolvidas grandes plantações nas ilhas
próximas das costas da África oriental. Mas em nenhum lugar, nesse período,
grupos de escravos foram explorados de maneira sistemática.
A criação de gado, atividade principal em algumas sociedades, estava sem-
pre intimamente ligada, nas regiões úmidas e de campos, à agricultura. A zona
do Sahel sudanês era o domínio de percurso dos pastores; alguns grupos que
chegaram a penetrar em terras ao sul, tendiam a se sedentarizar: foi o caso dos
Fulbe (Fulani) no Macina, no Futa- Djalon etc.
Os ofícios, na África negra, eram reservados aos membros das castas, pelo
menos na zona sudanesa; em outras reges, como no Magreb ou no Egito, organi-
zavam- se associações de ofícios, verdadeiras corporações. A falta de documentação
escrita não autoriza falar da organização dos ofícios na África meridional, onde,
no entanto, o trabalho em metal havia atingido alto nível. O estudo minucioso
das tradições poderá dar indicações preciosas sobre a organização do trabalho
nessas regiões.
Em geral, o modo de produção patriarcal prevalecia em quase toda parte. O
chefe do clã, o chefe de cabila, o rei ou o imperador não eram tiranos, mas frutos
de uma tradição que tendia a proteger o homem das extorsões ou arbitrarieda-
des dos chefes ou reis. Nos séculos XIV e XV, no Magreb, eram frequentes as
revoltas das cabilas contra os coletores de impostos do sultão.
Um fato muito importante é a existência de uma classe de mercadores, embrião
de uma burguesia. Os mercadores, islamizados ou o, facilitaram as relões entre
regiões e povos. Isto foi enfatizado em vários capítulos do presente volume. Foi
772
África do século  ao século 
nesse período que se desenvolveu a vocação para o comércio de povos como os
Manden (Mandingo) e os Haussa.
Se é permitido fazer uma comparação, pode- se dizer que, por todo o Velho
Mundo, da África à China, passando pela Arábia e pela Europa, do Atlântico
ao Bósforo, os reinos e os impérios haviam alcançado alto nível de desenvolvi-
mento: a aventura europeia, iniciada no século XV, poderia ter sido empreendida
pela África ou pela China, especialmente a segunda, que conhecia muito
tempo a bússola e a pólvora. Um imperador do Mali não havia tentado descobrir
onde acabava o oceano Atlântico, o mar circundante”?
7
Mas a roda da História
havia escolhido a Europa. Por quase cinco séculos a Europa Ocidental, esta
ponta avançada da Ásia, predominaria.
O dinamismo histórico africano
Após essas constatações, não se pode deixar de observar que a grande carac-
terística do continente durante o período estudado foi um dinamismo histórico
próprio. Não é possível explicar o desenvolvimento das civilizações no conti-
nente, durante o período estudado, pela simples influência do Islã, como se fez
até agora. Vimos que as brilhantes civilizações do Benin, do Congo (Zaire), do
Mapungubwe e do Zimbábue desmentem tal teoria.
Mesmo os Estados islamizados tiravam sua força moral menos do Islã que
da tradição africana, mais viva que nunca. As populações autóctones da África
setentrional, apesar de islamizadas e arabizadas, preservaram a identidade cultural.
Foi o caso dos berberes, que, tendo aceito o Islã, conseguiram conservar a língua
e alguns traços de cultura.
A instabilidade política constatada em algumas regiões devia- se a causas
internas, e as soluções que se davam aos problemas refletiam as tendências
profundas das populações. Um caso típico foi a introdução do Islã na África
ocidental: o movimento almorávida foi essencialmente negro- berbere; seu
desenvolvimento provocou no Sudão, por exemplo, o desmembramento do
velho império de Gana. Seguiu- se uma série de guerras entre as províncias, do
que resultou a restauração do império sob a égide dos Manden (Maninka), cujos
soberanos se haviam convertido já no século XI. O novo império ou Império do
Mali ganhou novas províncias e estendeu sua influência para bem além de Gana.
Num quadro com enfeites islâmicos, era uma nova evolução que despontava,
7 Ver o capítulo 26 deste volume.
773
Conclusão
prelúdio ao nascimento de novas cidades de uma nova sociedade logo domi-
nada por uma aristocracia de mercadores e eruditos negros. São inúmeros os
exemplos que mostram a dinâmica interna das sociedades africanas. Também o
cristianismo etíope foi um exemplo notável; isolada do resto do mundo cristão,
a Etiópia modelou sua Igreja de acordo com seus valores antigos.
No plano teórico, ainda há muitas controvérsias para definir o modo de pro-
dução que prevaleceu na África pré- colonial. Mas, como se pode caracterizar o
modo de produção de países dos quais não se conhece a história, nem mesmo
em linhas gerais? Em primeiro lugar, é necessário reconstituir o passado, ou
seja, mostrar a inter- relação das instituições e apresentar os componentes das
sociedades, o que ainda requer muitas pesquisas mais
8
.
Como dissemos acima, se o ouro, o cobre e o marfim ocupavam lugar de
destaque nos intercâmbios da África tropical com o resto do mundo, para o kaya
maghan, o mansa e o “senhor dos metais”, a base da economia era a agricultura,
pois os camponeses e os artesãos constituíam a maior parte da população.
Os comerciantes e os dignitários formavam, na corte e nas cidades, uma aris-
tocracia numericamente pequena em relação à massa de camponeses e criadores
de gado. Um fato essencial a se observar é que a propriedade privada da terra
não foi a base da evolução social e econômica da África negra, como aconteceu
com a Europa. Na África negra, antes da imposição da economia monetária, a
terra era considerada um bem indiviso da coletividade. Os reis ou imperadores
tinham “domínios humanos”, ou seja, terras exploradas por coletividades escra-
vizadas; mas um exame mais atento mostra que se tratava mais de servidão que
de escravatura. No Império do Mali, por exemplo, e, em seguida, no de Gao, os
povos e as etnias escravizados eram obrigados a pagar tributos fixos por família,
como mostrou claramente o professor Sékéné Mody Cissoko:
As técnicas agrícolas não evoluíram muito desde aquele tempo. A enxada (o kaunu
dos Songhai), os adubos animais, a prática da horticultura no vale, a cultura itine-
rante na savana etc., são os mesmos séculos, mas o vale do Níger torna- se mais
densamente povoado por indivíduos que praticam a agricultura, a pesca e a criação.
As grandes propriedades dos príncipes ou dos ulemás eram exploradas por escravos
estabelecidos em colônias agrícolas. O próprio askiya, grande proprietário de terras,
tinha seus campos, espalhados pelo vale, cultivados por comunidades de escravos
sob a direção de capatazes, os fanfa. Uma espécie de imposto era arrecadado sobre
8 Deve-se evitar, sobretudo, generalizações apressadas, uma vez que as linhas gerais da história de certas
regiões do continente apenas começam a se esboçar.
774
África do século  ao século 
as colheitas e enviado a Gao. O mesmo ocorria com os escravos pertencentes a
particulares
9
.
No entanto, em algumas regiões os escravos tiveram papel essencial na eco-
nomia e no exercício do poder. Foi o caso do Sudão central, entre o Níger e o
Chade. Nas cidades haussa, parte do exército era formada por escravos. André
Salifou também distingue os escravos da coroa dos escravos domésticos. Os
escravos da coroa eram escolhidos entre os servidores e colaboradores mais
dedicados aos reis.
Os jovens escravos cujos pais haviam sido capturados, vendidos ou mesmo
mortos durante o combate eram em geral criados na corte com os príncipes do
país, e finalmente reconheciam como pai o próprio sultão, sob cuja sombra
haviam crescido. Não eram vendidos ou maltratados. Além disso, ocupavam
postos importantes nos aparelhos militar e administrativo do país.
Esses fatos não eram novidade; com frequência, para contrabalançar a influ-
ência da aristocracia, o rei confiava postos importantes a escravos que natural-
mente se haviam devotado à pessoa do soberano e não tinham ambição política.
Houve casos célebres de escravos poderosos na história do Magreb, do Egito e
do Mali. De modo geral, o número de escravos nunca ultrapassou o de campo-
neses. Os homens livres trabalhavam o solo por sua própria conta, mas homens
livres e tributários deviam serviços ao soberano ou ao senhor local.
Na fase atual das pesquisas podemos afirmar que:
1. Apesar de a economia fundamentar- se na agricultura e na criação de gado,
a propriedade privada não era generalizada; o direito principal pertencia
à comunidade. A classe de mercadores começava a realizar certa acumu-
lação de capital, mas acabou não formando uma verdadeira burguesia.
2. A África não era um continente subpovoado, fato extremamente impor-
tante; um célebre historiador escreveu:A civilização é filha do número”.
Sem esse número”, os imperadores de Gana não teriam podido edificar
os grandes palácios de Kumbi- Sāleh, nem os magrebinos as belas mes-
quitas de Fés, Kairuan e os grandes entrepostos de Sidjilmāsa. Sem esse
mero”, os imperadores e reis do sul não teriam podido construir o
Grande Zimbábue. Assim, o continente era muito povoado, principal-
merite a África ao sul do Saara: no vale do Senegal, no delta interior do
9 Ver o capítulo 8 deste volume.
775
Conclusão
Níger, ao redor do lago Chade, havia centenas de aldeias agrícolas, centros
comerciais e cidades.
As primeiras escavações arqueológicas nessas regiões permitem a afirma-
ção categórica nessa questão. Os monumentos gigantescos não foram obra de
“hordas de escravos”; graças à piedade dos súditos e à sua concepção de realeza,
que fazia com que todos se considerassem filhos do rei, foi possível realizar
esses trabalhos. A coerção sobre as “hordas de escravos” parece cada vez mais
uma explicação superficial, como se as catedrais góticas e as basílicas romanas
tivessem sido construídas por escravos ameaçados pelo chicote. A fé tem grande
ressonância no coração e espírito dos homens.
Temos algumas indicações sobre a população de certas regiões; de acordo
com Mahmūd Ka‘ti, o Mali contava 400 cidades ou grandes aglomerações; as
aldeias agrícolas formavam uma linha contínua ao longo dos rios. A produção
agrícola era muito importante; o já citado professor Sékéné Mody Cissoko
enfatizou a importância da produção de arroz, por exemplo, no Songhai dos
séculos XV e XVI: um único fanfa ou capataz; dirigindo os trabalhos de uma
comunidade de tributários, podia fornecer mais de 1 000 sunu ao rei. Os sunu
eram grandes sacos de couro cuja capacidade era mais ou menos de 70 kg. Para
se ter uma ideia das reservas de víveres do rei, basta lembrar que o rei de Gao ali-
mentava e sustentava quase unicamente com suas reservas agrícolas um exército
permanente (100 mil homens), guarnições perto das grandes cidades comerciais
e uma corte muito numerosa. É difícil se fazer uma estimativa da população; no
entanto, o grande número de cidades comerciais bem povoadas e a construção de
monumentos como os do Zimbábue levam a supor uma população densa. Nessa
época de expansão comercial, as cidades podiam totalizar 10% da população
global do continente. A África, portanto, estava longe de ser subpovoada; no
entanto, de norte a sul e de leste a oeste a população se espalhava desigualmente,
devido à existência de desertos e densas florestas. A África dessa época deve ter
sofrido epidemias, períodos de seca ou grandes inundações, mas os documentos
de que dispomos falam pouco de fome. Os viajantes árabes sublinharam com
frequência a abundância de víveres; Ibn Battūta, o globe- trotter do século XIV,
observou- a nas costas orientais e no Sudão. Para o continente como um todo,
pode- se estimar uma população de, no mínimo, 200 milhões
10
.
10 As regiões que mais forneceram escravos encontram-se entre as mais povoadas: a costa do golfo da Guiné
(da República da Costa do Marm
à
República Federal da Nigéria), a foz do Congo (Zaire), a atual
República popular de Angola etc.
776
África do século  ao século 
3. O comércio de escravos foi praticado antes de 1600 na África, mas os
números envolvidos eram limitados. Não nenhuma comparação com o
tráfico negreiro que a Europa iria impor ao mundo negro a partir de 1500.
Os europeus mantiveram inicialmente boas relações comerciais com os
soberanos do Sudão, da Guiné, do Congo etc.; por volta de 1550, porém,
os portugueses foram afastados pelos holandeses, ingleses e franceses,
que sem exceção construíram empórios e fortes nas costas africanas, para
obter mais proveito desse tráfico.
Para melhor conhecer a história do período do século XII ao século XIV,
as pesquisas devem se apoiar cada vez mais na arqueologia, na linguística, na
antropologia e, também, nas tradições orais. Estas podem, por um lado, ser
confrontadas com os escritos e, por outro, podem guiar como foi o caso em
Kumbi- Sāleh e Niani – os arqueólogos em campo. A busca de manuscritos deve
continuar; parece que existem bem mais documentos escritos sobre esse perí-
odo do que se pensava. A insistência na necessidade de proceder a uma coleta
sistemática das tradições orais da África negra nunca será exagerada. O caso da
Somália é um exemplo para reflexão; lá foram organizadas coletas sistemáticas;
nada foi negligenciado, nem canções infantis, nem cantos populares, nem fór-
mulas mágicas. Gostaríamos de citar aqui um trabalho inédito do saudoso Musa
Galaal, membro do Comitê Científico Internacional para a Redação de uma
História Geral da África, intitulado: “Stars, seasons and weather”
11
. Na Somália,
o estudo das estrelas e das constelações mencionado em língua somali como
xiddigo é apresentado em forma de poemas curtos, assim como o estudo formal
do céu propriamente dito, das constelações e estrelas visíveis em certos períodos
do ano, que serviam de base para o estabelecimento do calendário. É notável
que o estudo das estrelas estivesse intimamente ligado à vida do povo. Li com
raro prazer o manuscrito que Musa Galaal teve a gentileza de me emprestar. Sua
leitura confirmou minha crença de que as tradições orais ainda nos reservam
muitas surpresas agradáveis. Nessa obra o autor reuniu elementos da astronomia
somali e revelou que os camponeses e pastores conheciam muito bem a cosmo-
grafia. Todas as constelações e planetas são descritos em breves cantos; o calen-
dário das atividades agrícolas e as migrações dos nômades fundamentavam- se
em conhecimentos seguros, frutos de experiências de muitos séculos. Quando
o estudo de Musa Galaal for publicado, certamente levará muitos africanos a se
voltarem com interesse para a ciência dita “tradicional”.
11 GALAAL, não publicado.
777
Conclusão
Nossa longa experiência no campo da tradição oral nos autoriza a afirmar que
há ainda muito a se estudar neste domínio, onde só se vê, na maioria das vezes,
o aspecto histórico ou literário; os Dogon do Mali e muitas outras populações
aprofundaram suas pesquisas sobre o céu e as constelações; outras populações
dedicaram sua atenção ao estudo do solo e das plantas. A tradição oral oferece
material para muitos tipos de pesquisa; não deve, pois, chamar a atenção ape-
nas dos historiadores ou eruditos, mas também dos cientistas, dos juristas e até
dos cientistas políticos, que por vários motivos teriam interesse em estudar as
antigas instituições da África negra. Mas reconheçamos que é difícil penetrar
no mundo da tradição oral, pois os iniciados” vivem num mundo pouco aberto,
senão fechado. Cabe aos Estados africanos criar melhores condições para que
os detentores de nosso patrimônio possam participar no desenvolvimento de
nossa sociedade em mutação.
Ainda nas aldeias distantes das regiões mais isoladas bom número de
“iniciados” e sábios aldeões”. Pouco foi perdido, mas tudo ainda está por se
fazer. Em última análise, é mais um trabalho para os governos africanos que
para pesquisadores isolados. Por um lado, os governos teriam de definir uma
política no campo da pesquisa e proporcionar meios aos especialistas africanos;
por outro, deveriam preparar as populações para participar de um trabalho de
massa, onde todos se sentissem envolvidos. O conhecimento da terra e da cultura
local é indispensável para aqueles que querem agir em favor das populações dos
campos.
Antes de deixar o problema das tradões, observemos que a tradão artística
africana tem suas raízes justamente nesse período, que viu nascerem e se desenvol-
verem os povos e Estados que deram origem à África moderna. A arte muçulmana
do Magreb e do Egito produziu nessa época algumas de suas obras -primas, como
as mesquitas de Fés, de Túnis, de Tlemcen e do Egito dos culos XIV e XV. Se
os objetos de arte da África ao sul do Saara são raros, durante esse período,
é porque, no que se refere às esculturas, por exemplo, os artistas trabalhavam
sobretudo a madeira; mas, em parte, essa raridade deve- se também a nossa
ignorância. Existem em Portugal, na França, na Itália, na Grã- Bretanha, nos
museus de Paris, Londres, Bruxelas, Berlim, Lisboa e Vaticano obras- primas de
cuja existência os africanos nem mesmo têm conhecimento.
Em compensação, a civilização do Ife- Benin nos legou os célebres bronzes e
cabeças de latão, conhecidos em todo o mundo. A arte do Ife- Benin é de um natu-
ralismo tão puro que os “africanistas” começaram por negar sua origem africana.
Mas hoje se sabe que o Ife não é um caso isolado; os bronzes de Igbo- Ikwu e do
Nupe provam que a técnica da fundição do bronze era amplamente difundida,
778
África do século  ao século 
como foi demonstrado pelas recentes descobertas de estatuetas de bronze na
República da Guiné- Bissau. O problema da difusão dessa técnica se enquadra
num contexto bem mais amplo.
O que nos revelarão no plano da arte as escavações do Zimbábue e da África
meridional? De qualquer forma, pode- se cultivar as maiores esperanças.
779
Membros do Comitê Cientíco Internacional para a Redação de uma História Geral da África
Prof. J. F. A. Ajayi
(Nigéria) –
1971 Coordenador do volume VI
Prof. F. A. Albuquerque Mourão (Brasil)
1975
Prof. A. A. Boahen (Gana)
1971 Coordenador do volume VII
S. Exa. Sr. Boubou Hama (Níger)
1971-1978
(Demitido em 1978; falecido em 1982)
S. Exa. Sra. Mutumba M. Bull, Ph. D. (Zâmbia)
1971
Prof. D. Chanaiwa (Zimbábue)
1975
Prof. P. D. Curtin (EUA)
1975
Prof.
J.
Devisse (França)
1971
Prof. M. Difuila (Angola)
1978
Prof. Cheikh Anta Diop (Senegal)
1971 Prof. H. Djait (Tunísia)
1975
Prof.
J.
D. Fage (Reino Unido)
1971-1981
(Demitido)
S. Exa. Sr. M. El Fasi (Marrocos)
1971 Coordenador do volume III
Prof. J. L. Franco (Cuba)
1971
Sr. Musa H. I. Galaal (Somália)
1971-1981
(
F
alecido)
Prof. Dr. V. L. Grottanelli (Itália)
1971
Prof. E. Haberland (República Federal da Alemanha)
1971
Dr. Aklilu Habte (Etiópia)
1971
S. Exa. Sr. A. Hampaté Ba (Mali)
1971-1978
(Demitido)
Membros do Comitê Cientíco
Internacional para a Redação de uma
História Geral da África
780
África do século  ao século 
Dr. I. S. El-Hareir (Líbia)
1978
Dr. I. Hrbek (Tchecoslováquia)
1971 Co diretor do volume III
Dra. A. Jones (Libéria)
1971
Pe. Alexis Kagame (Ruanda)
1971-1981 (Falecido)
Prof. I. M. Kimambo (Tanzânia)
1971
Prof.
J.
Ki-Zerbo (Alto Volta)
1971
Coordenador do volume I
Sr. D. Laya (Níger)
1979
Dr. A. Letnev (URSS)
1971
Dr. G. Mokhtar (Egito)
1971
Coordenador do volume
II
Prof. P. Mutibwa (Uganda)
1975
Prof. D. T. Niane (Senegal)
1971
Coordenador do volume
IV
Prof. L. D. Ngcongco (Botsuana)
1971
Prof. T. Obenga (República Popular do Congo)
1975
Prof. B. A. Ogot (Quênia)
1971
Coordenador do volume V
Prof. C. Ravoajanahary (Madagáscar)
1971
Sr. W. Rodney (Guiana)
1979-1980 (Falecido)
Prof. M. Shibeika (Sudão)
1971-1980 (Falecido)
Prof. Y. A. Talib (Cingapura)
1975
Prof. A. Teixeira da Mota (Portugal)
1978-1982 (Falecido).
Mons. T. Tshibangu (Zaire)
1971
Prof.
J.
Vansina (Bélgica)
1971
Rt. Hon. Dr. E. Williams (Trinidad e Tobago)
1976-1978 (Demitido em 1978; fale-
cido em 1980)
Prof. A. Mazrui
(Qnia)
Coordenador do volume
VIII
(não
é
membro do
Comitê)
Prof. C. Wondji (Costa do Marfim)
Codiretor do volume
VIII
(não é membro do
Comitê)
Secretaria do Comitê Científico Internacional para a Redão de Uma Hisria Geral da África
Sr. Maurice
Glelé,
Divisão de Estudos e Difusão de Culturas, Unesco, 1, rue Miollis,
75015 Paris
781
Dados biográcos dos autores do volume IV
Introdução D. T. Niane (Senegal): especialista no mundo mandingo; publicou inúmeras
obras sobre a África ocidental ao tempo dos grandes impérios, do culo XI
ao XVI; antigo diretor da Fundação L. S. Senghor, Dakar; pesquisador.
Capítulo 2 O. Saidi (Tunísia): especialista na hisria dos Aladas; publicou diversas
obras sobre a história clássica do Magreb, da Tusia em particular; leciona
hisria na Faculdade de Letras e na École Normale Supérieure da Uni-
versidade de Túnis.
Capítulo 3 M. Talbi (Tunísia): islamólogo; publicou numerosas obras e artigos
sobre vários aspectos da religião e da cultura islamítica; leciona na
Faculdade de Letras, Túnis.
Capítulo 4 I. Hrbek (Tchecoslováquia): especialista nas fontes árabes da história
da África, particularmente da África ocidental, e no Islã; publicou
muitas obras e artigos relativos a essas áreas; pesquisador do Instituto
Oriental, Praga.
Capítulo 5 H. R. Idris (França): especialista na língua e na literatura árabes; lecionou
história do ocidente muçulmano; falecido.
Capítulo 6 D. T. Niane
Capítulo 7 M. Ly-Tall (Sra.) (Mali): especialista na história do Mali; publicou
obras sobre o Império do Mali; leciona na École Normale Supérieure,
Bamako; pesquisadora.
Dados biográcos dos
autores do volume IV
782
África do século  ao século 
Catulo 8 S. M. Cissoko (Senegal): especialista na história do Tombuctu medieval;
tem rios trabalhos publicados sobre a história da África ocidental;
mestre-assistente da Faculdade de Artes, Dakar.
Capítulo 9 M. Izard (França): especialista na história da bacia do Volta e particular-
mente na dos reinos mossi; tem rias obras publicadas sobre a história
pré-colonial, colonial e moderna dessa região; pesquisador sênior no Centre
National de la Recherche Scientifique, Paris.
Capítulo 10 D. Lange (República Federal da Alemanha): especialista na história
pré-
colonial do Sudão central; publicou vários trabalhos sobre esse
período; leciona na Universidade de Niamey.
Catulo 11 M. Adamu (Nigéria): especialista na história dos Haussa; tem várias
obras publicadas sobre a maria; diretor do Centre for Nigerian Cultural
Studies da Universidade Ahmadu Bello, Zaria.
A. Salifou (Níger): especialista na história dos Haussa; publicou diversos
trabalhos sobre o ger e a Nigéria; leciona no Níger.
Capítulo 12 Y. Person (França): especialista em história da África, em particular
no mundo mandingo; tem muitas obras publicadas sobre história da
África; professor da Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne;
falecido.
Capítulo 13 P. Kipre (Costa do Marfim): especialista na hisria moderna e contempo-
nea da Costa do Marfim; publicou vários artigos com base na tradição
oral; leciona na École Normale Supérieure, Abid.
Capítulo 14 A. F. C. Ryder (Reino Unido): especialista na história da África oci-
dental; publicou várias obras sobre os períodos pré-colonial e colonial
dessa região; professor da Universidade de Bristol.
Capítulo 15
J.
C. Garcin (França): especialista na história do Egito muçulmano;
publicou vários estudos sobre o Egito mameluco e sobre o alto Egito
muçulmano; leciona na Universidade de Provença, Aix-en-Provence.
Capítulo 16 L.
Kropáček
(Tchecoslováquia): especialista na história social, política
e religiosa do Sudão; publicou várias obras sobre o Darfūr; leciona
no Departamento de Estudos Orientais e Africanos da Universidade
Charles, Praga.
Capítulo 17 T. Tamrat (Etiópia): especialista na história medieval da Etiópia; tem
vários estudos publicados sobre esse período; leciona na Universidade
de Adis-Abeba.
Capítulo 18 V. Matveiev (URSS): historiador e etnólogo; publicou numerosas obras
sobre as fontes árabes da história da África; pesquisador sênior do Insti-
tuto de Etnografia da Academia de Ciências da URSS, Leningrado.
783
Dados biográcos dos autores do volume IV
Capítulo 19 C. Ehret (EUA): linguista e historiador da África oriental, tem muitos
trabalhos e artigos publicados sobre a história pré-colonial e colo-
nial da África oriental; leciona na Universidade da Califórnia, Los
Angeles.
Capítulo 20 B. A. Ogot (Quênia): especialista em hisria da África, em parti-
cular na história da África oriental; publicou várias obras e artigos
sobre a história e a arqueologia da África oriental; professor, pes-
quisador, antigo diretor do International Louis Leakey Memorial
Institute for African Prehistory, Nairobi.
Capítulo 21 B. M. Fagan (Reino Unido): antropólogo, arqueólogo; publicou nume-
rosas obras sobre as culturas da Idade do Ferro e da Idade da Pedra
da África oriental e meridional; professor de antropologia na Univer-
sidade da Califórnia, Santa Bárbara.
Capítulo 22 J. Vansina (Bélgica): especialista em tradição oral; publicou várias obras
sobre a história da África central e equatorial; leciona na Universidade
de Wisconsin, EUA.
Capítulo 23 L. Ngcongco (Botsuana): especialista na história pré-colonial da África
meridional; publicou vários estudos sobre a Botsuana dos tempos pré-
coloniais; lecionou na Universidade de Botsuana; diretor do Instituto
Nacional de Pesquisa, Gaberones.
J.
Vansina
Capítulo 24 F. Esoavelomandroso (Sra.) (Madagáscar): especialista na história
de Madagáscar; publicou vários estudos sobre a história de Mada-
gáscar do culo XVI ao XVIII; lecionou na Faculdade de Letras,
Antananarivo.
Capítulo 25 D. T. Niane
Capítulo 26
J.
Devisse (França): especialista na história do nordeste da África do
século
IV
ao
XVI;
arqueólogo; publicou muitos artigos e obras sobre
história da África; professor de história da África na Universidade de
Paris I, Panthéon-Sorbonne.
S. Labib (Egito): especialista na história medieval da África; publicou
várias obras sobre a história social e econômica do período; leciona na
Universidade de Utah (EUA) e na Universidade de Kiel (República
Federal da Alemanha).
Capítulo 27 D. T. Niane
785
Abreviações e listas de periódicos
AAAfrican Affairs, Londres, OUP
AB — Africana Bulletin, Varsóvia, Universidade de Varsóvia
AEA — Anuario de Estudios Atlánticos, Madri
AEDA Archivo Español de Arqueología, Madri
AEO — Archives d’Études Orientales
AESC — Annales – Économie, Sociétés, Civilisations, Paris
AFRCD Afrique Française: Renseignements Coloniaux et Documents, Paris.
Comité de l’Afrique Française et Comité du Maroc
Africa (L), — Londres.
Africa (R), — Roma
Africana Linguistica, — Tervuren, Musée Royal de l’Afrique Centrale
Africanist: The Africanist, Washington DC, Howard University, Association of
African Studies
Afrika Museum Groesbeck, Países Baixos
AHES — Annales d’Histoire É:conomique et Sociale, Paris
AHS African Historical Studies (lnternational Journal of African Historical Stu-
dies), Boston University, African Studies Center
AI — Annales Islamologiques, Cairo
AIEOA — Annales de l’lnstitut d’Études Orientales d’Alger, Argel
AJ Antiquaries Journal, Journal of the London Society of Antiquaries, Londres, OUP
AL — Annales Lateraniensis, Cidade do Vaticano
ALS African Language Studies, Londres, School of Oriental and African Studies
al-Andalus al-Andalus, Revista de Ias Escuelas de Estudios Árabes de Madrid
y Granada, Madri
Abreviações e
listas de periódicos
786
África do século  ao século 
AM — Afrikana Marburgensia, Marburgo
Ambario Tananarivo
ANM — Annals of the Natal Museum, Natal
Annales du Midi Revue de la France Méridionale, Toulouse
Anthropos — Revue Internationale d’Ethnologie et de Linguistique, Friburgo
Antiquity Gloucester
Arabica Revue d’Études Arabes, Leida, Brill
Archiv Orientalni Oriental Archives: Journal of African and
Asian Studies Praga
Arnoldia Salisbury, National Museums of Rhodesia
ARSP — Archiv für Rechts-und-Sozialphilosophie, Berlim, Leipzig
AS — African Studies, Johannesburgo, Witwatersrand University Press
ASAM — Annals of the South African Museum, Cidade do Cabo
ASp Afrika Spektrum, deutsche Zeitschrift für moderne Afrikforschung, Pfaf-
fenhofen, Afrika Verlag
ASPN Archivio Storico per la Province Napoletane, Nápoles
A-T Africa Tervuren, Tervuren
AU — Afrika und Übersee, Hamburgo, Universität
AUA Annales de l’Université d’Abidjan, Abidjã
AUM Annales de l’Université de Madagascar (Série lettres et sciences humaines),
Tananarivo
Awrak (textos árabes e espanhóis), Madri, 1978 Instituto Hispano-Árabe de
Cultura
Azania Nairobi, British Institute of History and Archaeology in East Africa
BA — Baessler Archiv, Berlim, Museum für Völkerkunde
BAM — Bulletin de l’Académie Malgache, Madagáscar
BARSOM — Bulletin de l’Académie Royale des Sciences d’Outre-Mer, Bruxelas
Ba-Shiru Madison, Wisconsin University, Department of African Languages and
Literature
BCEHSAOF Bulletin du Comité dÊtudes Historiques et Scientifiques de
l’Afrique
Occidentale Française — Dakar
BCGP — Bolletino Culturale da Guiné Portuguesa, Bissau
BEO — Bulletin d’Études Orientales, Damasco
BHSN — Bulletin of the Historical Society of Nigeria, Ibadã
BIBLB Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian
BIE Bulletin de l’Institut d’Égypte, Cairo
(B)IFAN — (Bulletin de l’) Institut Fondamental d’Afrique Noire (antigo Bulletin de
l’lnstitut Français d’Afrique Noire), Dakar
787
Abreviações e listas de periódicos
BLPHGAM Bulletin de Liaison des Professeurs d’Histoire et de Géographie
d’Afrique et de Madagascar, Mejec-Yaoundé
BM — Bulletin de Madagascar, Tananarivo
BNR — Botswana Notes and Records, Gaborone
Boston University Papers in African History Boston University African Studies
Center
BPH Bulletin Philosophique et Historique, Paris, Comité des Travaux Historiques
et Scientifiques, Section d’Histoire et de Philologie
BRAH — Boletín de la Real Academía de la Historia, Madri
BSACH Bulletin of the Society for African Church History, University of Aberdeen,
Department of Religious Studies
BSOAS — Bulletin of the School of Oriental and African Studies, Londres
CA — Current Anthropology, Chicago
CEA — Cahiers d’Études Africaines, Haia, Mouton
China Review — Hong Kong
CHM — Cahiers d’Histoire Mondiale, Paris, Librairie des Méridiens
CJAS — Canadian Journal of Ajrican Studies (Revue Canadienne des Études Africai-
nes), Ottawa, Carleton University, Department of Geography, Canadian Association
of African Studies
CNRS — Centre National de la Recherche Scientifique, Paris
COM — Cahiers d’Outre-Mer, Bordéus, Institut de la France d’Outre-Mer
CRTSASOM Compte-Rendus Trimestriels des Séances de l’Académie des Sciences
d’Outre-Mer, Paris
CSIC — Consejo Superior de lnvestigaciones Científicas, Madri
CSSH — Comparative Studies in Society and History, Cambridge, CUP
CUP — Cambridge University Press, Londres até 1978, depois Cambridge
Der Islam Zeitschrift für Geschichte und Kultur des Islamischen Orients, Berlim
EAPH East African Publishing House
EAZ — Ethnographisch-Archäologische Zeitung; Berlim
EcHR Economic History Review, Londres, Nova York, CUP
EHR — English Historical Review, Londres, Longman
EM — Études Maliennes, Bamako
EP — Etnografia Polska, Wroclaw, Polska Akademia Nauk, Instytut Historii Kultury
Materialny
Éthiopiques — Revue Socialiste de Culture Négro-Africaine, Dakar, Fondation Léo-
pold Senghor
Ethnos — Estocolmo, Museu Etnográfico da Suécia
EV — Études Voltäiques, Mémoires, Uagadugu
788
África do século  ao século 
FEQ Far Eastern Quarterly (mais tarde Journal of Asian Studies), Ann Arbor,
Michigan
FHP Fort Hare Papers, Fort Hare University
Garcia da Orta — Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar
GJ — Geographical Journal, Londres
GNQ — Ghana Notes and Queries, Legon
Godo-Godo Bulletin de l’Institut d’Histoire d’Art et dArchéologie Africaines,
Université d’Abidjan
HAJM — History in Africa: a Journal of Method, Waltham, Mass.
Hespéris Rabat, Institut des Hautes Études Marocaines
HJAS — Harvard Journal of Asiatic Studies, Harvard
H-T — Hespéris-Tamuda, Rabat, Université Mohammed V, Faculté des Lettres et des
Sciences Humaines
IAI — International African Institute
IFAN Ver BIFAN
IJAHS International Journal of African Historical Studies (antigo African Historical
Studies), Boston University, African Studies Center
IIALC — International Institute of African Languages and Cultures
IRCB — Institut Royal Colonial Belge
JA — Journal Asiatique, Paris
JAH — Journal of African History; Londres, Nova York, OUP
JAI — Journal of Anthropological lnstitute, Londres
JAL — Journal of African Languages, Londres
JAOS Journal of the American Oriental Society, New Haven
JAS — Journal of the African Society ; Londres
JATBA Journal d’Agriculture Traditionelle et de Botanique Apliquée, Paris, Muséum
National d’Histoire Naturelle
JEA — Journal of Egyptian Archaeology, Londres
JES — Journal of Ethiopian Studies, Adis Abeba
JESHO — Journal of Economic and Social History of the Orient, Londres
JHSN — Journal of the Historical Society of Nigeria, Ibadã
JMAS — Journal of Modern African Studies, Londres, CUP
JMBRAS — Journal of lhe Malayan Branch of the Royal Asiatic Society, Cingapura
JNH Journal of Negro History; Washington DC, Association for the Study of Afro-
American Life and History
JRAI Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland,
Londres
JRAS — Journal of the Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, Londres
JRASB — Journal of the Royal Asiatic Society of Bengal, Calcutá
789
Abreviações e listas de periódicos
JSA — Journal de Ia Société des Airicanistes, Paris
JSAIMM Journal of the South African lnstitute of Mining and Metallurgy,
Johannesburgo
JSS — Journal of Semitic Studies, Manchester, Manchester University Department of
Near Eastern Studies
KO — Kongo Overzee, Antuérpia
KS — Kano Studies, Kano, Nigéria
Kush — a Journal of the Sudan Antiquities Services, Cartum
L’Homme — Cahier d’Êthnologie, de Géographie et de Linguistique, Paris
MA — Moyen Âge, Paris
Man — Londres
MIO Mitteilungen des Instituts r Orientforschung, Berlim, Akademie der
Wissenschafte
MNMMR Memoirs of the National Museums and Monuments of Rhodesia,
Salisbury
MSOS Mitteilungen des Seminars für Orientalische Sprachen an die Friedrich
Wilhelm Universität zu Berlin
Muslim Digest Durban
MZ — Materialy Zachodnio-Pomorskie, Varsóvia
NA — Notes Africaines, Dakar, IFAN
NAk — Nyame Akuma, Calgary, University of Calgary, Department of Archaeology
Nature — Londres, Nova York
NC — Numismatic Chronicle, Londres, Numismatic Society
NED — Notes et Études Documentaires, Paris, Direction de la Documentation
OA — Oriental Art, Londres
OCP Orientalia Christiana Periodica, Roma
Odu — Journal of West African Studies (antigo Journal of African Studies, Ife; prece-
dido pelo Journal of Yoruba and Related Studies, Ibadã), Ife, University of Ife
OL Oceanic Linguistics, Carbondale, Southern Illinois University, Department of
Anthropology
OSA — Omaly Sy Anio, Tananarivo, Universidade de Madagáscar
OUP Oxford University Press
PA Présence Africaine, Dakar
Paideuma — Mitteilungen zur Kulturkunde, Frankfurt-am-Main
PAPS Proceedings of the American Philosophical Society, Nova York
RASGBI — Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland
790
África do século  ao século 
RBCAD — Research Bulletin of the Centre of Arabic Documentation, Ibadã
RDM — Revue des Deux Mondes, Paris
REAA Revista Espola de Antropologia Americana, Madri, Universidad de
Madrid
RES — Revue d’Êthnographie et de Sociologie, Paris
RGM Revue de ographie du Maroc, Universidade de Rabat, Faculdade de
Geografia
RH — Revue Historique, Paris, PUF
RHC — Revista de Historia Canarias, Las Palmas
RHCF Revue de l’Histoire des Colonies Frunçaises (mais tarde Revue Française
d’Histoire d’Outre-Mer), Paris
RHCM — Revue d’Histoire et de Civilisation du Maghreb, Argel, Société Historique
Algérienne
RHES — Revue d’Histoire Économique et Sociale, Paris
RHSP — Revista de História, São Paulo
RIBLA — Revue de l’lnstitut des Belles Lettres Arabes, Túnis
RNADA Rhodesian Native Affairs, Departmental Annual, Salisbury
ROMM — Revue de l’Occident Musulman et de la Méditerranée, Aix-en-Provence
RRAL Rendiconti della Reale dell’Accademia dei Lincei, Classe de Scienze Morale,
Storiche e Filologiche
RS — Revue Sémitique, Paris
RSACNM Recueil de la Société Archéologique de Constantine, Notes et Mémoires,
Constantine
RSE — Rassegna di Studi Etiopici, Roma
RSO — Revista degli Studi Orientali, Roma, Scuola Orientale dell’Università
SAAB — South African Archaeological Bulletin, Cidade do Cabo
Saeculum — Friburgo
SAJS — South African Journal of Science, Johannesburgo
Sankofa — Legon (Gana)
Savanna a Journal of the Environmental and Social Sciences, Zaria, Universidade
Ahmadu Bello
Scientia Rivista di Scienza, Milão
SHG — Studia Historica Gandensia, Gand
SI — Studia lslamica, Paris
SM — Studi Magrebini, Nápoles
SNED — Société Nationale d’Édition et de Diffusion, Argel
SNR — Sudan Notes and Records, Cartum
SOAS — School of Oriental and African Studies, Londres, London University
South Africa — Pretória
SS — Sudan Society, Cartum, Universidade de Cartum
791
Abreviações e listas de periódicos
Swahili Nairobi, East African Swahili Committee
SWJA — South Western Journal of Anthropology (mais tarde Journal of Anthropolo-
gical Research), Albuquerque, University of New Mexico
Taloha Revue du Musée d’Art et d’Archéologie, Tananarivo
Tamuda — Rabat
Tantara Tananarivo, Société d’Histoire de Madagascar
THSG — Transactions of the Historical Society of Ghana (antigo Transactions of the
Gold Coast and Togoland Historical Society), Legon
Times The Times Londres
TJH Transafrican Journal of History; Nairobi, East African Literature Bureau
TNR Tanzania Notes and Records (antigo Tanganyika Notes & Records), Dar es
Salaam
TNYAS Transactions of the New York Academy of Sciences, Nova York
Toung Pao Revue lnternationale de Sinologie, Leida, Brill
UCLA — University of California, Los Angeles
Ufahamu — Journal of the African Activist Association, Los Angeles
UJ — Uganda Journal, Kampala
Universitas — Legon, University of Ghana
WA World Archaeology; Henley-on-Thames
WAAN West African Archaeological Newsletter, Ibadã
WAJA West African Journal of Archaeology, Ibadã
Zaïre — Kinshasa
ZDMG — Zeitung der Deutschen Morgenländischen Gesellschaft, Leipzig
793
Referências bibliográcas
Referências bibliográcas
Prólogo
Esta bibliografia foi organizada para atender às necessidades de especialistas
de diferentes países; inclui as obras referidas no volume IV. As obras estão lis-
tadas por autor, como é conhecido, ou pelo título, sempre em ordem alfabética.
Quanto às que constituem parte de uma série geral, figuram todas sob o nome
do autor, como forma de contornar a dificuldade apresentada pela diversidade
de sistemas de catalogação, vindo em seguida o título da série junto aos dados
concernentes à publicação. Contrariamente à prática de alguns bibliógrafos, a
primeira data indicada para cada obra é, na medida do possível, a da primeira
publicação (ou da fase conclusiva, no caso dos manuscritos árabes), para que se
possam distinguir mais nitidamente as obras antigas das edições ou traduções
modernas. Os primeiros nomes foram adotados somente para os autores árabes,
designados pelos nomes árabes sob os quais são mais conhecidos e/ou citados
no texto; em certos casos, no entanto, serão encontradas remissões às variantes
dos nomes árabes e aos nomes comuns.
Os nomes e títulos originalmente escritos em árabe foram transliterados
segundo o sistema utilizado na Encyclopaedia of Islam, valiosa fonte de referência.
(As transliterações adotadas pelos redatores e tradutores não foram modificadas
nos títulos.) Outras informações bibliográficas foram levantadas junto a certo
número de bibliotecas e catálogos diversos.
794
África do século  ao século 
ABD AL-‘AZĪZ B. MUHAMMAD B. IBRAHĪM AL-SINHĀDDJĪ AL-F
ISHTĀLĪ. séc. XIV. Manahil al-Saja akhbar al-Muluk al-Shurafa; 1964, ed. Abd
Allāh Gannun, Tetuán.
ABD AL-BĀSIT B. KHALIL, AL-MALATI. séc. XV. al-Raud, al-Basim; 1936, ed. e
trad. francesa R. Brunschvig, Deux récits de voyage inédits en Afrique du nord au XV
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siècle, Paris, Larose.
ABD AL-RAHĪM, M. 1970. Arabism, Africanism and self-Identication in the Su-
dan. JMAS, 8 (2): 233-49.
ABD AL-RAHMĀN B. ABD ALLĀH AL-SA‘DĪ. Ver AL-SA‘DĪ.
ABD AL-WĀHID AL-MARRĀKUSHĪ. 1224. Al-Mudjib fi talkhis Akhbar al-Ma-
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nigérien en 1591 à l’hégémonie de l’empire peul du Macina en 1833. Paris, Maison-
neuve et Larose.
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Records and Oral Tradition. JAH, 2 (2): 211-25.
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Hulal al-sun-dusiya fīl akhbar al-tunisiya; 1870, ed. e trad., A history of Africa, espe-
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859
Índice remissivo
África central, sul: cultura
da Idade do Ferro,
591-621; cultura
de Leopard’s Kopje
(Colina do Leopardo),
597-620, Ver também
Zimbábue.
África equatorial, 622-695.
África meridional: civili-
zações e culturas, 7-15,
599-621, 655-676,
766-778; colonização
europeia, 769; comér-
cio, 697-720; pesquisa
histórica na, 655-676.
África ocidental, ver Áreas
costeiras; Florestas.
África oriental, costa, 511-
538, 683-695.
África oriental, interior,
539-558; interlacustre,
559-590.
Agricultura: África equa-
torial, 623-653; África
meridional, 10, 658-
676; África oriental,
interior, 539-558; alta
Guiné, 337-359; no
Chifre da África, 475-
509; Haussa, 328-9;
interlacustre, 559-590;
lagunas da Costa do
Marfim, 368-9; Mada-
gáscar, 689; Magreb,
118; Mali, 134-192,
214; portuguesa, 758-
9; Songhai; 220-236,
770;
Algodão, 185-189, 264,
333, 512.
Árabe, língua, 479, 674.
Áreas costeiras, África
oriental, 511-38, 600-
621, 684-720.
Áreas costeiras, europeus
em, 11, 743-762; África
oriental, 443, 445, 743;
alta Guiné 337-359;
Benin, 391-413; Mali,
193-209, 761.
Arqueologia, África cen-
tro-meridional, 10-11,
593-621, 717-18;
África equatorial, 646,
648; África meridional,
655-676; alta Guiné,
337-359; forma de ocu-
pação do solo revelada
pela, 379-80; lagunas
da Costa do Marfim,
361-377; Madascar,
687-9; Mali, 133-192;
Núbia, 445-474; região
interlacustre, 561; Son-
ghai, 211-218; Swahili,
516-525, 743; Tanzânia,
Índice remissivo
860
África do século  ao século 
715; zona de floresta da
África ocidental, 390-
413.
Bantu: na África meridio-
nal, 655-676; na área
interlacustre, 559-590;
atividades econômi-
cas, 539-558, 570-580;
cultura, 8-10; estrutura
social, 629; no interior
da África oriental, 539-
549; línguas, 656-659;
movimentos de popu-
lação, 554-591,623-6,
656-9, 680, 769; orga-
nizão potica, 542-
647, 768-7; entre os
Swahili, 511.
Ferro, metalurgia e comér-
cio do, 471, 739, 763;
África equatorial,
628-635; África orien-
tal, interior, 557-571;
Haussa, 332-334;
Madagáscar, 682; Mali,
134, 141, 186; Swahili,
516; Yatenga, 264;
Zimbábue, 616.
Floresta, regiões de, África
ocidental: cultura, 374-
414; ecologia, 361-380;
economia e comércio,
361-414, 706-720;
nguas e povos, 361-
377; reinos e cidades,
377-394; sociedades
baseadas em grupos de
linhagem, 371-9.
Floresta equatorial, regiões
de: agricultura, 623-
653; comunicações
através de, 634-6, 716;
formação de Estados
em, 652.
Fontes escritas, 1, 8, 135, 777;
Fontes escritas árabes, 7-8,
289, 697-723.
Fontes escritas portu-
guesas, sobre a África
centro-meridional, 619,
717; sobre a costa da
Guiné, 340-360; sobre
o Kongo, 637-51; sobre
Madagáscar, 679, 685;
sobre o Mali, 193-209;
sobre a Núbia, 455;
sobre o Swahili, 512-
430; sobre o tráfico de
escravos, 715; sobre
a zona de lagunas da
Costa do Marfim, 361-
377.
Griots, 142-176, 219.
Haussa, povos, 299; cul-
tura e civilização, 311;
origens, 300-2.
Ibn Battūta, 7, 74, 468,
699, 723; a respeito da
África oriental, 519-24,
600-10, 669; a respeito
do Chifre da África,
480-1; a respeito do
corcio de sal, 700;
a respeito do Islã, 704;
a respeito do Kanem-
Bornu, 279-286; a
respeito do Mali, 146-
152,172-181, 699-718.
Ibn Khaldūn, 7, 74, 427; a
respeito dos Almóadas,
33; background e vida,
130; a respeito dos
Banū Ghāniya, 51-57;
a respeito do Chifre da
África, 483; a respeito
do comércio, 706, 769;
conhecimento geog-
fico, 722-24; a respeito
da Cruzada contra
Túnis, 94; a respeito da
cultura zanida, 107;
a respeito do declínio
de uma civilização, 75;
a respeito de dinastias
nômades, 97; filosofia,
130-1; a respeito do
Kanem-Bornu, 287; a
respeito do Mali, 144-
149, 156, 164-6, 193;
a respeito da Núbia,
466-7.
Al-Idrs, a respeito do
comércio na África
oriental, 739; a respeito
do comércio de sal, 745;
conhecimento geog-
fico, 724; a respeito
de Gao/Songhai, 212;
Geografia, 6; a respeito
do Mali, 143; mapa-
múndi, 6; a respeito do
Sudão, 8, 135-7, 282-5;
a respeito do Swahili,
512-522.
Ife, 381-413, 706.
Igbo-Ikwu, 399-405, 706.
Imerina, 677-785.
Índico, oceano: africanos
orientais no, 513; rela-
ções através do, 677.
861
Índice remissivo
Índico, oceano, comércio
no, 738-769; através do
Egito, 418-464; Mada-
scar e o, 785, 707,
720; através do Swahili,
514-523.
Línguas: África centro-
meridional, 598; África
equatorial, 623-642;
África meridional, 657-
676; África oriental,
interior, 539-551; Chi-
fre da África, 477-483;
europeias, influência
árabe nas, 84-5; golfo
da Guiné, 379-81.
Mali, Império, 6-8; admi-
nistrão e governo,
149-189, 197-208,
348-350, 765; alta
Guiné e, 337-59; back-
ground e origens, 133-
48; comércio, 151-172,
186-209, 701- 762;
contato europeu, 173-
209, 761; cultura e
civilização, 168-191,
706; declínio, 193-209;
economia, 172-209;
estrutura social, 151-
2, 199-200; exploração
maríti- ma, 753-755;
importância no mundo
muçulmano, 164-167;
Islã no, 144-172, 187,
209, 700; mansa, 156,
164-181; povo mossi
e, 237-242; povos do,
172-6, 195; Songhai
e, 211-224; viagem de
Ibn Battūta ao, 699.
Metalurgia: África centro-
meridional, 593- 614,
716; África equatorial,
629-637; África meri-
dional, 9, 661, 770;
Costa do Marfim, 403.
Migrão: África centro-
meridional, 596-600,
770; África equatorial,
623-647; África meri-
dional, 656-676; África
ocidental, zona de flo-
resta, 369-382; África
oriental, interior, 542-
555; Kanem-Bornu,
286; Madagáscar, 677-
695; bia, 460-470;
região interlacustre,
559-590; Swahili, 536-
38; território haussa,
314-324.
Moedas, 524-5, 735-38;
África equatorial, 630-
653; África oriental,
715; cauri, 8, 266, 335,
523-5, 595, 711, 744;
cobre, 630-641, 703,
717; nozes-de-cola,
701; sal, 630, 701;
Sudão, 228.
Nok, cultura, 390-398.
Nômades: ascensão de
dinastias, 97; comércio
transaariano, 698-700;
efeitos na Núbia, 449-
465; no Egito, 427-28;
no Magreb, 97-115; no
Mali, 172.
Organização política e
administrativa, 11, 12,
765-7; África equato-
rial, 623-653; África
ocidental, zona de
floresta, 372-414;
Almóada, 26-46, 89,
127-8; alta Guiné,
337-359; área interla-
custre, 564-590; Bantu,
542-647, 768-7; Egito,
415-444; Etiópia, 486-
493; Haféssida, 127-
8; Haussa, 302-329;
Kanem-Bornu, 277-
299; Khoi-khoi, 674;
Madascar, 677-695;
Magreb pos-almóadas,
90-131; Mali, 149-
189, 197-208, 348-
350, 765; Marínida, 97,
124-5; Mossi, 258-62;
Núbia, 446; sociedades
baseadas em grupos de
linhagem, 372-3, 382-
3; Songhai, 212-226;
Swahili, 531-6; Zim-
bábue, 601-3, 618.
Ouro, produção e comér-
cio, 2, 491, 709; África
meridional, 9, 596-621,
718-747; alta Guiné,
340-354; Costa do
Marfim, 361-377;
envolvimento europeu,
114, 721-762; impor-
ncia para os reinos
africanos, 668; Mali,
135-192, 208, 387, 425;
Swahili, 511-520, 743-
4; Takrūr, 138; transaa-
riano, 136-7, 698-702.
Portugueses, exploração
e expansão, 11, 725-
862
África do século  ao século 
762; África meridio-
nal, 669; alta Guiné,
área costeira, 340-356;
no Benin, 391, 414;
corcio e atividades
econômicas, 756-762;
Magreb, 112-116, 765;
Mali, 172, 193-209,
771; tráfico de escravos,
721-762.
Religião tradicional, 14,
764; África ocidental,
zona de floresta, 384-
415; África equato-
rial, 649; alta Gui,
343; Chifre da África,
482-3; Mali, 199-209;
Mossi, 260; Songhai,
212-236; território
haussa, 307, 328-9.
Sudão, arabização, 4-6,
424-474, 704; comér-
cio, 337, 340, 699-710;
conhecimento geo-
gráfico, 721-2; escra-
vos do, 4, 702; reinos
e impérios, 6, 135-42;
vida intelectual, 235-6,
705, 769. Ver também
Haussa; Mali.
Swahili: conhecimento
geográfico, 722; cultura
e civilizão, 2, 525-
538, 745; dialeto, 540;
economia e comércio,
511-538, 684-687,
745-6; Islã no, 513-558;
organização política e
administrativa, 531-6;
povos e estrutura social,
511-525.
Tradições orais, 435-6, 775;
África centro-meridio-
nal, 723; África equa-
torial, 633-48; África
meridional, 658, 660;
África ocidental, zona
de floresta, 368-396;
evidências de comércio
a partir de, 712; Haussa,
301-316; Ijaw, 385;
Kongo, 623-4; Mada-
gáscar, 677-695; Man-
den, 135-192, 242-4;
Mossi, 242-3, 249-50;
sobre a Núbia, 451;
região interlacustre, 559-
590; Sudão, 7, 460-1.
Tráfico de escravos, 4, 697;
alta Guiné, 340-354;
Egito, 440, 703; envol-
vimento europeu, 738-
762, 774; Etiópia, 491;
Kanem-Bornu, 279-
283; Mali, 198, 703;
Núbia, 450, 453, 703,
738; Swahili, 511-538.
Al-’Umar, Ibn Fadl Allāh,
8, 427, 723; a respeito
da Etiópia, 488-9; a
respeito do Kanem,
282-288; a respeito do
Mali, 155, 172, 722,
753; a respeito dos
Mossi, 241.
Yoruba: análise linguística,
379-381; cultura e civi-
lização, 368-413; Esta-
dos, 386-397; origens,
386-8, 537.
Zambeze, bacia do, 591-
621, 720.
Zimbábue, 8, 10, 11, 768;
comércio e imporn-
cia regional, 599-618,
717-720, 769; declínio,
618-620; organização
potica e administra-
tiva, 601-3, 621; ori-
gens, 598-610.
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda
espécie ocultaram ao mundo a verdadeira história da
África. As sociedades africanas eram vistas como
sociedades que não podiam ter história. Apesar dos
importantes trabalhos realizados desde as primeiras
décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius,
Maurice Delafosse e Arturo Labriola, um grande
número de estudiosos não africanos, presos a certos
postulados, afirmava que essas sociedades não podiam
ser objeto de um estudo científico, devido, sobretudo,
à ausência de fontes e de documentos escritos.
De fato, havia uma recusa a considerar o povo africano
como criador de culturas originais que floresceram e se
perpetuaram ao longo dos séculos por caminhos
próprios, as quais os historiadores, a menos que
abandonem certos preconceitos e renovem seus
métodos de abordagem, não podem apreender.
A situação evoluiu muito a partir do fim da Segunda
Guerra Mundial e, em particular, desde que os países
africanos, tendo conquistado sua independência,
começaram a participar ativamente da vida da
comunidade internacional e dos intercâmbios que ela
implica. Um número crescente de historiadores tem se
empenhado em abordar o estudo da África com maior
rigor, objetividade e imparcialidade, utilizando com
as devidas precauções fontes africanas originais.
No exercício de seu direito à iniciativa histórica,
os próprios africanos sentiram profundamente a
necessidade de restabelecer em bases sólidas a
historicidade de suas sociedades.
Os especialistas de vários países que trabalharam nesta
obra tiveram o cuidado de questionar as simplificações
excessivas provenientes de uma concepção linear e
restritiva da história universal e de restabelecer a
verdade dos fatos sempre que necessário e possível.
Esforçaram-se por resgatar os dados históricos que
melhor permitissem acompanhar a evolução dos
diferentes povos africanos em seus contextos
socioculturais específicos.
Esta Coleção traz à luz tanto a unidade histórica da
África quanto suas relações com os outros continentes,
sobretudo as Américas e o Caribe. Durante muito
tempo, as manifestações de criatividade dos descendentes
de africanos nas Américas foram isoladas por certos
historiadores num agregado heteróclito de africanismos.
Desnecessário dizer que tal não é a atitude dos autores
desta obra. Aqui, a resistência dos escravos deportados
para as Américas, a “clandestinidade” política e cultural,
a participação constante e maciça dos descendentes de
africanos nas primeiras lutas pela independência, assim
como nos movimentos de libertação nacional, são
entendidas em sua real significação: foram vigorosas
afirmações de identidade que contribuíram para forjar o
conceito universal de Humanidade.
Outro aspecto ressaltado nesta obra são as relações da
África com o sul da Ásia através do oceano Índico,
assim como as contribuições africanas a outras
civilizações por um processo de trocas mútuas.
Avaliando o atual estágio de nossos conhecimentos sobre
a África, propondo diferentes pontos de vista sobre as
culturas africanas e oferecendo uma nova leitura da história,
a História Geral da África tem a indiscutível vantagem
de mostrar tanto a luz quanto a sombra, sem dissimular as
divergências de opinião que existem entre os estudiosos.
Nesse contexto, é de suma importância a publicação
dos oito volumes da História Geral da África que ora se
apresenta em sua atual versão em português como fruto
da parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil,
a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade do Ministério da Educação do Brasil (Secad/
MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
UNESCO HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA VOLUMES I-VIII
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das Nações Unidas
para a Educação,
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